Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A MOBILIDADE DA ORDEM URBANA
A reconstrução dos lugares na São Luís do século XIX
Ananias Alves Martins
FLORIANÓPOLIS
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
ANANIAS ALVES MARTINS
A MOBILIDADE DA ORDEM URBANA
A reconstrução dos lugares na São Luís do século XIX
ORIENTADORA: PROF
a.
DR
a.
MARIA BERNARDETE RAMOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História Cultural da
Universidade Federal de Santa Catarina,
como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre, sob a orientação da
Prof
a
. Dr
a
. Maria Bernardete Ramos.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
MESTRADO: HISTÓRIA CULTURAL
FLORIANÓPOLIS
2005
ads:
3
A MOBILIDADE DA ORDEM URBANA
A reconstrução dos lugares na São Luís do século XIX
Ananias Alves Martins
Esta dissertação foi julgada e aprovada em sua forma final para obtenção do título de mestre
em história cultural.
Banca examinadora:
__________________________________________________
Prof
a.
Dr
a.
Maria Bernardete Ramos – Orientadora (HST/UFSC)
__________________________________________________
Prof
o.
Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho (HST/UFSC)
__________________________________________________
Prof
a.
Dr
a.
Sandra Jatahy Pesavento (HST/UFRGS)
__________________________________________________
Prof
a.
Dr
a.
Alícia Gonzáles Castells – suplente (ANT/UFSC)
4
AGRADECIMENTOS
Estes meus estudos e pesquisas junto à Universidade Federal de Santa Catarina possuem o patrocínio
institucional do Estado do Maranhão e da Prefeitura Municipal de São Luís, onde exerço serviço
público como profissional de carreira. De fato, quem me patrocina é o povo maranhense.
De outra forma, a Federação também patrocina, mantendo a universidade pública e gratuita,
onde também fiz minha graduação (UFMA).
Considero que, tanto o direito ao ensino de qualidade quanto às leis que nos permitem hoje reciclar
profissionalmente são conquistas de muitos anos de luta e envolveu muita gente,
inclusive o meu grêmio estudantil, que tive o privilégio de dirigir. É preciso também pensar que o
povo local, o de Santa Catarina e particularmente o de Florianópolis, andou patrocinando coisas,
disponibilizando serviços, mesmo os pagos, na feira, nos transportes, na saúde, mas, também, serviços
públicos de qualidade pelas ruas e calçadas por onde se andam, a iluminação, os jardins bem cuidados,
os espetáculos artísticos, as bibliotecas e acervos culturais, as galerias de arte. Mas, na forma do meu
objetivo, foram os professores da UFSC que me prestaram o melhor serviço.
Em nome de todos, e também dos funcionários do Departamento de história, devo me referir
com carinho a quem ficou particularmente responsável
por me acompanhar e me ver concluir esta tarefa,
Maria Bernardete Ramos
Mas tem muito mais gente envolvida neste projeto, amigos, que não deixei de fazer, e teria feito outros
se houvesse tempo e possibilidade, dos quais recordarei quando estiver lá próximo ao círculo central
da terra, onde não há os dias e as noites frias que aqui passei, diversas muito agradáveis. Também
novos parentes, por tabela, que me proporcionaram bons momentos.
A responsável por eles existirem para mim é também
responsável por incontáveis coisas nesta minha missão,
no domínio da razão, da logística e da emoção,
Maria Rosânia Tomaz
Aos parentes sanguíneos, que sempre foram além disto,
Zênite (mãe), Paulo, Estevão, Antonio, Igor (filho); José (em memória).
Ao meu revisor Júlio Queiróz.
Não se faz nada sozinho, por isso espero trazer alguma contribuição social com o meu trabalho, só
assim a gratidão que sinto poderá se materializar.
5
Resumo: Este trabalho se destina a demonstrar como a ordem da cidade de São Luís, capital
do Estado do Maranhão, se modificou profundamente com o passar do século XIX, se
diferenciando dos séculos antecedentes, XVII e XVIII, tanto no aspecto físico quanto no de
convivência social. A mudança do padrão econômico e do perfil do morador foi possível após
a transformação da cidade em porto comercial, atrelado à lógica mercantil, que exportava
produtos primários para a Europa, o que ocorreu na segunda metade do século XVIII. O
implemento, por um lado, de segmento mercantil forte associada a lavradores proprietários e,
por outro, de um grande número de escravos destinados às tarefas domésticas e portuárias,
tornou a cidade inadequada para a nova ordem dominante, tendo que ser removidos diversos
aparelhos urbanos, como o quartel, a cadeia, o patíbulo, o matadouro, os cemitérios e até
mesmo as residências de construções elementares, ao mesmo tempo em que vieram à tona
questões sanitárias e o destino às atividades insalubres. O conflito na reordenação da cidade se
aprofunda quando o segmento proprietário resolve também ser distinto, criando um ambiente
de “sociedade elegante”, disputando assim as ruas com os trabalhadores e tentando dar um ar
de “civilização” aos espaços públicos. Em parte resulta na destinação de lugares que serão as
periferias da cidade, do fim do século XIX ao início do XX, para onde irão os mais pobres,
principalmente depois de decretado o fim da escravidão.
Palavras-chave: cidade; civilização; periferia; distinção; escravidão; elites.
Abstract: This work if destines to demonstrate as the order of the city of São Luís, capital of
the State of the Maranhão, if it modified deeply with passing of century XIX, if differentiating
of the antecedent centuries, XVII and XVIII, as much in the physical aspect how much in the
one of social convivência. The change of the economic standard and the profile of the
inhabitant was possible after the transformation of the city in commercial port, atrelado to the
mercantile logic, that exported primary products to the Europe, what it occurred in the second
half of century XVIII. I implement it, on the other hand, of strong mercantile segment
associated the farmers proprietors and, for another one, of a great number of slaves destined to
the domestic and port tasks, it became the inadequate city for the new dominant order, having
that to be removed diverse devices urban, as the quarter, the chain, the gallows, the slaughter
house, the cemetaries and even though the residences of elementary constructions, at the same
time where they had come to tona sanitary questions and the destination to the unhealthy
activities. The conflict in the reordenação of the city if goes deep when the segment
proprietor also decides to be distinct, creating an environment of "elegant society", thus
disputing the streets with the workers and trying to give a air of "civilization" to the public
spaces. In part it results mainly in the destination of places that will be the peripheries of the
city, of the end of century XIX to the beginning of the XX, for where they will go poor, after
intentionally the end of the slavery.
Word-key: city; civilization; periphery; distinction; slavery; elites.
6
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
I. PLANTA I - Ordenação inicial de São Luís traçada pelo engenheiro Francisco de
Frias Mesquita. Registrada no período holandês (1644). Página 34
II. RASCUNHO - das medidas padrão exigidas pela câmara municipal de São Luís para
a construção dos canos de águas pluviais. Página 57
III. MAPA DE LOCALIZAÇÃO DA ILHA DE SÃO LUÍS Página 90
IV. LARGO DO CARMO (hoje Praça João Lisboa) e o padrão construtivo do século
XIX ainda preservado Página 91
V. PLANTA II - aparelhos da cidade sobre mapa de 1844. Página 92
VI. PLANTA III - direção dos ventos: gráficos sobre planta de 1844. Página 93
VII. PLANTA IV – referências de localidades em planta de 1912. Página 94
VIII. PLANTA V - topografia e ocupação aproximada sobre planta de 1844. Página 95
IX. PLANTA VI – Centro de São Luís em 1998. Planta de tombamentos e referências.
Página 96
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO. 08
CAPÍTULO I
SÃO LUÍS, DE POVOAMENTO DE FRONTEIRA À IMPORTANTE CIDADE PORTUÁRIA DO IMPÉRIO. 15
CAPÍTULO II
A CÂMARA, A ORDEM DAS CIDADES E OS CÓDIGOS DE POSTURAS. 35
CAPÍTULO III
A NOVA ORDEM DOS APARELHOS URBANOS. 52
CAPÍTULO IV
A ORDEM DAS GENTES DENTRO DA CIDADE. 97
CAPÍTULO V
CONVIVER COM OS DESIGUAIS E SER DISTINTO. A ORDEM SIMBÓLICA. 117
CONCLUSÃO:
SURGE O POVO E SE CONSOLIDA A ORDEM DA DISTINÇÃO. 155
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 172
ANEXO ÚNICO. 183
8
INTRODUÇÃO
Para a cidade de São Luís, capital do Estado do Maranhão, o século XIX chegou
implantando uma nova ordem. Esta diz respeito não somente à forma como são desmontadas
velhas estruturas coloniais, mas também a um processo histórico particular, que inclui uma
tardia prosperidade mercantilista se comparada a estados vizinhos do Nordeste, que
notabilizaram cidades portuárias alavancadas com a exportação do açúcar. No caso da cidade
de São Luís, para o século XIX, terá que alcançar de forma mais acelerada certos padrões de
urbanismo e investir de forma frenética na renovação de sua planta construída, nisso gerando
diversos conflitos. Raimundo Gaioso, no princípio do século, em seu Compêndio histórico-
político dos princípios da lavoura do Maranhão, reclamaria da muita liberdade que todos
tinham de edificar na Capital.
Porém, a questão construtiva era apenas um dos aspectos de renovação. Quem chegou
a São Luís no início do século XIX pasmou com a mistura de prosperidade e rusticidade das
elites, apegadas ao jogo e dormindo em redes em seus casarões de quatro pavimentos. Foram
os casos de Bernardo da Gama, que conviveu na cidade como Ouvidor, tendo documentado
suas impressões em Informação sobre a Capitania do Maranhão dada em 1813 ao Chanceler
Antônio Rodrigues Velloso e de Henry Koster, viajante inglês que escreveu Viagem ao
Nordeste do Brasil.
O que segue a estes relatos, anteriores à década de 20 daquele século, é uma completa
transformação na forma de lidar com a cidade, fosse no aspecto do aformoseamento físico,
fosse nos gostos e projetos dos mais ricos, que patrocinaram um teatro em 1818 e enviaram
seus filhos para estudar na Europa, e ainda pela maneira de lidar com o que era considerado
“pouco civilizado”, ao que se soma o que não era higiênico ou não era “decente”.
9
Na segunda metade do século XIX essas distinções se acentuam, quando a elite adota
a postura de “sociedade elegante”. Ao mesmo tempo, os trabalhadores, escravos ou não,
manifestam diversas formas de lazer nas ruas, aos quais se contrapunha o comportamento
europeizado dos dominantes.
A construção deste cenário na presente dissertação, de relações e conflitos, se deu por
meio da eleição e desenvolvimento de algumas etapas. A primeira delas, referente à
necessidade de apresentar a cidade de São Luís e resumir a história de alguns importantes
aspectos que antecedem o século XIX. Uma narrativa que vai desde a fundação do primeiro
núcleo povoado à transformação da cidade em portuária, vinculada ao mercantilismo
internacional. A segunda etapa tem caráter instrumental ao contextualizar a Câmara, como
principal instituição que, da colônia ao império, foi responsável pelos ordenamentos urbanos
no Brasil, na sua forma mais antiga, com seu principal instrumento: os códigos de posturas. A
terceira etapa trata da forma como a cidade foi afastando os equipamentos urbanos de
repressão ou sanitários dos lugares mais disputados pelos moradores proprietários, com
destaque para a formação de uma região destinada ao confinamento médico e sanitário. A
quarta etapa se detém no tratamento dado ao morador, a forma de habitar e conviver em suas
diversas regras frente ao novo urbanismo: para o livre pobre, o afastamento das áreas mais
cobiçadas; para o trabalhador escravo, gente de convivência doméstica, as regras de conduta.
A quinta etapa trata de um distanciamento entre os grupos, estes em regra tratados de: livres
proprietários, livres pobres e escravos, aos quais cabe, internamente, outra eventual distinção.
Aqui é a categoria simbólica que está operando em favor do apartamento social; por fim,
conclui-se que estes fatos reunidos produzem a forma como encontramos a cidade no fim do
século XIX e início do XX, quando se formaram de vez os grandes bairros proletários.
A importância da narrativa que aparece no primeiro capítulo, se relaciona aos fatos
que determinaram a construção do povoamento em condições adversas e de fronteira,
10
causando muitas vítimas, dos imigrantes, em busca de uma vida digna, aos povos indígenas,
principalmente. Mas, na rota do está por vir, a forma como se constrói a sociedade citadina,
suas carências, seus conflitos, sua administração e seu papel frente ao processo colonizador -
a exemplo da destruição decorrente da guerra com os holandeses e o extermínio em massa dos
índios da redondeza - determinaram tanto a reestruturação física quanto a organização social,
com consequências no século XIX.
Se, por um lado, a planta ortogonal deixada pela influência da colonização no período
de união ibérica facilitou a construção de uma cidade asseada e regular, onde quase não
aparecem reclames a respeito de existência de becos estreitos, que evitem a circulação do ar,
propagando miasmas; por outro, o declínio do projeto urbano fosse pela guerra, fosse pelo
estado de subsistência que a cidade experimentou, determinaram que, sobre a planta pré-
definida, se processasse uma completa renovação urbana.
Fiz questão de elaborar um capítulo exclusivo para a Câmara e com ele a introdução a
assuntos com os quais pouco se lida na literatura brasileira. As câmaras municipais e o
municipalismo não têm a mesma relevância em nossa historiografia em relação ao que ocorre
nos estudos de Portugal. Ora, se para os portugueses assuntos de municipalismo são tão
importantes para se falar de cidades, nós que herdamos todas as instituições do colonizador e
continuamos as usando após a independência, deveríamos lhes dar similar valor.
Neste aspecto, tenho visto na literatura das cidades tentativas de singularizar posturas
municipais, que na maioria das vezes emanam de legislação comum ao campo lusófono, numa
necessidade de buscar diferenciais, que em alguns casos apelam para o exótico, como
veremos adiante. Assim, muitas das vezes, o que deveria ser ressaltado como construção
histórica de um contexto particular fica encoberto por informações imprecisas. Alerto no texto
para a existência de uma Lei geral no século XIX, sobre as câmaras, que contém o núcleo de
diversos códigos de posturas das cidades brasileiras que a sucede. Tento mostrar como esta
11
influenciou diretrizes do código de postura de São Luís de 1866. Assim, por si, os códigos
pouco dizem sobre a cidade, e podem portar apenas letras mortas, na medida que são
repetições de leis gerais, mas podem se tornar fundamentais instrumentos na construção de
cenários, ao se cercarem de outras fontes.
No capítulo três, parecia, a princípio que estava apenas diante de um monte de
fragmentos sem conexão, entretanto, listando o que chamei de aparelhos da cidade fui
percebendo que tinham uma lógica que os afastavam de determinados locais e os
aproximavam de outros. Foi um trabalho cansativo que dependeu primeiro da listagem de
equipamentos dos quais já tinha conhecimentos prévios, como patíbulo, pelourinho,
hospícios, conventos, cemitérios, matadouro, quintas, para depois usar o instrumento de
localização do Word no Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão, de
César Marques. Isto depois de eu ter levado semanas para digitalizar e corrigir suas 634
páginas.
O resultado, que ainda considero incompleto, norteou a leitura de todas as demais
fontes, inclusive as de plantas cartográficas, levando a entender como a cidade estava se
especializando e reservando uma “área limpa” para a elite endinheirada, que investiu em um
formidável patrimônio civil para época, em sólidos casarões, que, pelas circunstâncias
posteriores, ainda estão em grande parte preservados e compõem o Centro Histórico da São
Luís atual.
Ali interferem, além de questões que podemos atribuir à necessidade de civilização, os
novos conhecimentos médicos e sanitários que iram competir de igual com o poder dos
dirigentes da Câmara, ao definir o urbanismo. Neste caso, não precisou nem de mediação,
através das principais cidades brasileiras, já que aportavam tais conhecimentos diretamente
provindos da Europa, fosse pela comunicação acessível, fosse pelo retorno dos estudantes
maranhenses de medicina e engenharia que iam para aquelas plagas obter diplomação
12
superior. Neste sentido, uma extensão deste trabalho pode se deter às questões de
mapeamento de profissionais destas áreas, suas escolas e suas intervenções, assuntos que
entraram de vez na agenda do historiador de cidades.
No quarto capítulo, referente às gentes, pus em conflito o século XIX com os que o
antecederam. Estão ali, enfiados no terreno mais cobiçado do município, os velhos moradores,
gente simples e pobre, que com suas casas cobertas de palhas, afrontam o novo padrão
construtivo, e são afrontados por ele. A cidade havia sido planejada desde o século XVII para
ser povoada e tudo se fazia para assentar colonos, independente de condição financeira ou
status do requerente de terra, mas, no século XIX, as regras estavam ao lado dos ricos
mercadores, ávidos por solos onde construir: na melhor topografia, com os melhores
equipamentos urbanos.
Na vertente senhor e escravo, situações anteriores de convivência doméstica se
materializavam com o compartilhamento de bens, nas heranças, nas liberdades por gratidão,
no sexo, ou mesmo com seu revés, de uma justiça igualmente doméstica e como poucos
limites (observada a série de testamentos do século XVIII), que, no século XIX serão freadas,
pelo maior rigor decorrente do status e da distinção e pelas regras públicas que proliferam.
Este é um cenário mais plausível que empírico, pois se é certo que a civilidade é para ser
exibida no coletivo, não se tem dados sobre o que se fazia nos “quintais” de tal sociedade,
quando se tornou “decente”.
Mas tinham os proprietários ainda que conviver com os escravos em seus portões e vê-
los no lazer das ruas, no ópio, na nudez dos dias quase sempre quentes, e a única saída era ter
regras com maior rigor, para esconder esta face que “sujava a civilidade”, quando, em
qualquer sociedade, não se pode combinar civilidade e escravidão.
Segue o capítulo cinco tratando do aprofundamento da distinção entre proprietários e
trabalhadores. Ao poder econômico é sobreposto um valor simbólico. As elites que
13
acumularam riquezas com o grande comércio internacional, depois de grandes investimentos
em residências, passaram a despender em requintes, como o de enviar os filhos para estudar
na Europa, adotar modas importadas, promover grandes saraus com os seus pares, vestir à
última moda de Paris e assim se diferenciar completamente do restante da sociedade,
impingindo um ar de nobreza à rude cidade dos mercadores; somando o simbólico ao poder
inquestionável que já possuíam, instituindo a “ordem social”.
Como Pierre Bourdieu ressalta, em A economia das trocas simbólicas o modo de
distribuição do prestígio social dispõe apenas de uma autonomia relativa, posto que se une à
ordem econômica, mas a “ordem social” deriva sua autonomia parcial da possibilidade de
desenvolver sua própria lógica enquanto universo de relações simbólicas.
Assim, as elites se distanciaram e até abandonam paulatinamente velhas práticas de
convivência festiva nos ambientes da Igreja, onde, apesar de se distinguir dos demais,
conviviam lado a lado com escravos e pobres.
Mas uma tão grande massa de gente vivendo na cidade como escravos e trabalhadores
em geral não permaneceu passiva. O povo da rua encenava o seu próprio teatro distintivo em
grandes passeatas de “congos”, “cheganças”, “fandangos”, “turés”, “caninha verde”, com
autos dramáticos, que disputavam o espaço público com o grupo dominante. Entre estas
passeatas, o “baralho”, que já trazia uma crítica à sociedade branca, que a câmara e a polícia
tratavam de reprimir, de forma recorrente.
Ainda assim, no final do século XIX, a cidade já tinha determinado o que era centro e
periferia na nova ordem e, aos novos residentes, provenientes de imigração do interior ou da
própria cidade, como uma das consequências do fim da escravatura, restou o grande cinturão
periférico - em parte o que fora destinado às atividades insalubres e de isolamento médico e
sanitário - onde se agregavam em torno dos trabalhos do recém criado complexo fabril. Agora
14
eram juridicamente iguais a todos, sob a proteção da república, mas tratados como estranhos
e estigmatizados numa deturpação do sentido de “ser do povo”.
15
CAPÍTULO I
A São Luís de povoamento de fronteira à importante cidade portuária
Este capítulo tem a função não só de situar o leitor em fatos que antecederam o
processo de ajuste da ordem urbana, física e humana, da cidade de São Luís no século XIX,
como também ressaltar que a forma como o projeto inicial foi concebido com suas variáveis,
teve conseqüências impactantes para a capital, fosse pela existência de uma planta geopolítica
já implantada, fosse pelos fatores que retardaram um projeto colonial clássico, que no
Maranhão, só se realizou quando o próprio monopólio colonial já estava decadente no
contexto global.
A efetiva ocupação do extremo Norte da fronteira brasileira pelos portugueses foi
iniciada com mais de um século de atraso, primeiro em território maranhense e em seguida
alastrada ao Grão-Pará e, de lá, para a conquista do restante território amazônico, anexado
posteriormente de forma oficial ao domínio português no século XVIII, ultrapassando as
fronteiras imaginárias do Tratado de Tordesilhas
1
.
1
A idéia de ocupação de fronteiras era programática e não ocasional, visto o que lembra Ferreira de geopolítica
em Alexandre Gusmão e que será recuperado como argumento para o Tratado de Madri de 1750: (...)
Alexandre Gusmão elaborava um plano semelhante. Ao dissertar sobre as regiões brasileiras que deveriam
receber os casais das ilhas, defendeu que as áreas mineiras não deveriam se beneficiar desse esforço
populacional, pois estas por si só atrairiam os povoadores. Contudo, estabelecia Paranapanenma e Mato
Grosso como as únicas exceções àquele princípio, por se encontrarem nos limites “onde convém acrescentar
moradores”. O grande arquiteto do Tratado de Madrid procurava, desta forma, garantir a viabilidade do uti
possidetis, planeando recorrer aos contingentes humanos oriundos dso arquipélagos atlânticos para o reforço
populacional das regiões de fronteira no Brasil. FERREIRA, Mário Clemente. Os casais das ilhas e a
política do uti possidetis no Brasil. In: As migrações e os descobrimentos portugueses, séculos XV e XVI.
In: Migrações e imigrações nas ilhas. CEHA, 2001, p.105. Defendi este argumento de um “militarismo civil”
em: MARTINS, Ananias. Os madeirenses na ocupação civil das fronteiras. In: A Madeira e o Brasil.
Funchal: CEHA, 2004.
16
Tal missão, quando concretizada, foi destinada inicialmente aos imigrantes ilhéus
açorianos e também madeirenses, e à Igreja, via os jesuítas - que construindo missões,
possibilitaram o surgimento de vilas e cidades -, quando o interesse maior da metrópole na
região parecia ser, naquele momento, garantir fronteiras e afastar as ameaças das nações
rivais, principalmente a França, a Holanda e a Inglaterra.
As condições históricas desse processo aparentemente foram determinadas pela
estratégia de ocupação da costa brasileira onde, no convexo, a faixa litorânea central teria
prioridade por razões mercantilistas, cabendo às periferias ou pontas a condição de expansão,
o que se justificaria tanto com as ocupações dos ilhéus no Norte, já no século XVII, quanto as
do extremo Sul no século XVIII. Este argumento se sustenta em um momento histórico
específico, visto que, a princípio, havia um audacioso projeto de colonização da faixa de
Capitania Hereditária denominada Maranhão doada a João de Barros em 1535, que era rico
mercador, em função do comércio das Índias.
Para concretizá-lo, em outubro de 1535, saiu de Lisboa uma expedição com dez
navios, ocupados por novecentos homens de armas, sendo 113 com cavalos e farta munição -
comandada pelo Capitão-Mor Aires da Cunha, com representação de Fernão d’Álvares de
Andrade e dois filhos de João de Barros. Foi a maior expedição de caráter particular
despachada do Reino, mas naufragou na costa brasileira, próxima ao destino. Houve ainda
outras duas expedições fracassadas do donatário, em 1550 e 1555, esta última por terra.
2
Em decorrência disto, os franceses conseguiriam chegar com sucesso e sem
resistências à Ilha de Upaon Açu
3
(São Luís), atravessando a Baía (posteriormente de São
Marcos), ocupando terras, na América, que, com o aval de Roma, somente Portugal e a
Espanha tinham. Guiavam-se pela lei da conquista e do uso, pela qual quem chegasse
2
MEIRELES, Mário M. João de Barros, primeiro donatário do Maranhão. São Luís: ALUMAR, 1996, p.
70, 79, 80.
3
Nome original da Ilha de São Luís, dado pelos tupinambás: Ilha Grande.
17
primeiro poderia ocupar usufruir e colonizar a terra (uti possidetis), o que fizeram, quando
Jacques Riffault estabeleceu em Upaon-açu, em 1594, um posto de comércio de madeiras, que
eram enviadas para a França para produção de tintas usadas nos tecidos. Nessa ponte, Charles
de Vaux, que se manteve nas terras exploradas, tornou-se amigo dos tupinambás
4
, aprendeu a
língua nativa e facilitou a aproximação dos franceses.
Em 1612 a França resolveu implantar definitivamente uma colônia estável na região.
Foram armados quinhentos homens em três navios, as naus Regence, Charlotte e o patacho
Saint’Anne. A missão foi comandada pelo fidalgo Daniel de La Touche, senhor de La
Ravardiére, em companhia dos nobres Francisco de Rasily e Nicolau Harley, com a finalidade
de fundar a França Equinocial. Junto com a missão chegaram padres capuchinhos,
demonstrando toda determinação que tinham os franceses em se estabelecer regularmente. É
do capuchinho Claude D'Abeville a obra mais completa de descrição dos hábitos e costumes
dos índios da região e da paisagem, além dos passos colonizadores e das resistências naqueles
anos
5
.
Os franceses, ao chegarem, construíram um forte na área em que atualmente se
encontra o Palácio dos Leões (Centro da cidade), e o batizam de Saint Louis, na mesma data
em que rezaram a primeira missa, consolidando o domínio: oito de setembro de 1612.
Posteriormente e, ainda hoje, a fundação da capital maranhense, São Luís, tem essa referência
como marco fundador, e os nascidos na cidade são denominados de ludovicenses, referência a
Ludovicus, do latim.
É deste período a União Ibérica. Em 1578, o rei português D. Sebastião I desapareceu
na Batalha de Alcácer-Quibir em Marrocos, sem deixar herdeiro. Felipe da Espanha agregou
os dois reinos em 1580, fato que persistiu até 1640. A Espanha, em particular, não desejava
4
Índios que migraram da costa de Pernambuco, onde já haviam tido contato com os portugueses.
5
ABEVILLE, Claude d’. Historia da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras
circunvizinhas. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1985.
18
que franceses agora instalados em São Luís, chegassem às suas terras, avançando para o
oeste - pois estes já faziam incursões pelos rios para o interior do continente - nas quais ela
possuía minas de ouro
6
, resolvendo mobilizar as forças militares portuguesas no Brasil para
acabar com a ameaça. Um grupo militar de quatrocentos homens comandados por Alexandre
de Moura acompanhado de índios, deslocados de Pernambuco chegou por terra até um ponto
banhado pela Baía de São José, próximo a uma reentrância de água no continente,
denominada Baía de Guaxenduba, onde se travou uma batalha que determinaria a rendição
dos franceses em 1615.
Daquele fato em diante, a ocupação do território tomaria novos rumos, se inserindo em
área de fronteira de ocupação civil, como mecanismo para evitar novas invasões.
A região do Maranhão é considerada a primeira a receber colonos ilhéus de forma
organizada (provavelmente a primeira deste caráter na América), havendo notícias de
chegadas desde 1617, 1619, 1621, 1676
7
. Para São Luís em particular, além da viagem de
Estácio da Silveira (1619)
8
, em 1621, vieram quarenta casais com Antonio Ferreira de
6
Havia muitos relatos de penetração até o Peru a partir do Maranhão e contatos dos índios com espanhóis, um
deles pode ser lido em: SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação Sumária das cousas do Maranhão. São Luís:
UFMA/SIOGE, 1979.p25. A opção militar como estratégia de ocupação do Norte para formar um cinturão de
proteção às minas espanholas é também defendido por ALCÂNTARA, Dora. Azulejos portugueses do
Maranhão. Rio de Janeiro: Fontana, 1980.
7
JANEIRO, Maria de Lourdes & FERNANDES, José Manoel. Um percurso da arquitetura açoriana – do
arquipélago ao Brasil. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. Anais da 2º semana de
estudos açorianos. Florianópolis: Ed. UFSC, 1989. P.61
8
Sobre esses açorianos chegados em 1619, se levarmos em consideração o que Maria da Conceição Vilhema
nota sobre a imigração açoriana para o Brasil, em que o conceito de casal não coincidia com o de duas pessoas,
pois vinham numerosos filhos, criadagem e agregados, se tornando mais apropriado para designar uma pequena
tribo. VILHEMA. Maria da Conceição. A viagem do imigrante açoriano para o Brasil em meados do século
XVIII. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. Anais da 2º semana de estudos açorianos.
Florianópolis: Ed. UFSC, 1989. Podemos concluir, como fez Arthur Reis, que se tratava de mil colonos, o
suficiente para iniciar uma povoação. REIS, Arthur César Ferreira. Épocas e visões regionais do Brasil.
Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas, 1966. Esta expedição é a mais bem documentada.
Simão Estácio Silveira chegou ao Maranhão em 1619, como capitão de uma das naves da expedição de Jorge
19
Bittencourt e Jorge de Lemos Bittencourt. Em 1625 foram outros casais com Francisco
Coelho de Carvalho. Nos navios N.S. da Palma e São Rafael, tendo como capitão Manoel do
Vale, chegaram cinquenta casais em 1676, e, nas naus N.S. da Penha de França e São
Francisco Xavier, vieram mais colonos
9
.
A estes colonos, juntaram-se tropas portuguesas, já ali estacionadas, em consequência
da guerra contra os franceses. Também há notícias de terem ficado alguns homens da França,
por estarem vivendo maritalmente com nativas. Os franceses fundaram o primeiro núcleo da
cidade com a construção do Forte São Luís e algumas casas
10
.
Boa parte desse contingente de pessoas, fixado inicialmente na Ilha de São Luís, irá se
deslocar para Santo Antônio de Alcântara (Tapuitapera, como era conhecida antes de seu
batismo cristão), do outro lado da Baia de São Marcos, região sob a jurisdição da Câmara de
São Luís, permitindo seu crescimento e desdobramento em Vila autônoma, a partir de 1648,
com pelourinho e Câmara própria. Em 1646, o procurador da Câmara de São Luís em
pronunciamento fez saber que havia muitos moradores em Tapuitapera com chãos nesta
cidade e ora estavam em Tapuitapera com vila feita, não querendo obedecer a esta cidade e
os mandados desta Câmara, e haver pessoas nesta cidade que não tem chãos para poderem
Lemos de Bittencourt e foi o primeiro a se dirigir aos pobres de Portugal -- possíveis emigrantes para o Brasil -
- a fim de atraí-los a terra com propaganda escrita. Na sua Relação sumária das coisas do Maranhão, publicada
em Lisboa, em 1624, descreveu o céu saudável, as águas puras, o chão fértil da terra. “....vai o Maranhão cada
dia em crescimento, e a terra mostrando a sua fertilidade e fecúndia: e são feitas muitas roçarias de farinhas e
outras culturas, e há já muitas casas de telhas, muito boas olarias, muitas caças, pescarias, mariscos, frutas,
mel, hortas, sal e lenha, e algumas criações e outras muitas cousas (...) e a cada dia se vai enobrecendo a terra
com igrejas e outros edifícios particulares, e a Câmara do Maranhão tem perto de cem mil réis de renda de
foros de sua légua de terras que lhe tomou ao longo da cidade, só falta comércio de navios, em que os homens
se valham do que tiverem, e haja a troco o que lhes falta, que como houver um navio na terra, logo começara a
florescer e mostrar as grandezas de sua fertilidade. SILVEIRA, op.cit. p32.
9
LIBERMAN, Maria. O levante do Maranhão “judeu cabeça do motim”. Manoel Beckman. São Paulo:
Judaica-Brasil. 1983, p.19
10
O lugar foi consolidado pela colonização portuguesa por se tratar de promontório de frente para a Baia de São
Marcos, de onde se vigia a entrada de navios.
20
fazer casas em que morem
11
, o que confirma o povoamento dos colonos pelo território
12
. De
Alcântara desdobrou a Vila de Guimarães, com características semelhantes.
Para João Francisco Lisboa, pesquisador maranhense do século XIX, numa
interpletação particularmente sua, o início da colonização se deve às expedições militares,
composta de elementos pertencentes às diversas capitanias vizinhas e fortalezas, assim como
aos casais que chegaram do arquipélago açoriano, com isso constituindo as classes sociais.
Os portugueses e seus imediatos, descendentes de brancos que se dividiam em nobres e
cidadãos, peões ou mercadores, mecânicos, operários e trabalhadores de qualquer espécie e os
de segundo plano, composto de infames pela raça ou pelo crime, como cristãos novos ou
degredados, ao que se somavam índios escravos ou não e uma pequena quantidade de escravos
proveniente de Angola, Guiné e Cabo Verde
13
.
Considerando-se que seiscentos soldados guardavam a Ilha de São Luís, e a eles se
juntaram os imigrantes, formou-se uma população, que fez Pedro Calmon achar se tratar de
11
A idéia de “haver pessoas nesta cidade que não tem chãos para poderem fazer casas em que morem”, parece
não corresponder ao fato de a Câmara ainda possuir muitas terras para doar, o que continuou fazendo nos
séculos seguintes, corresponde, porém, à idéia de que cidade é o maior adensamento de casas, que naquele
momento significava o núcleo inicial representado na planta deixada pelos holandeses (V. mapa I).
12
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro da Câmara acórdão 1646. p.5. Tapuitapera foi tutela de São Luís
até 1648, quando se tornou vila independente, tomando por batismo português o nome de Santo Antonio de
Alcântara. Para Antonio Lopes “é fácil compreender por que não se fundou Vila antes de 1648. Doada a
Capitanhia em 1627, por Francisco Coelho de Carvalho, a doação, entretanto, só foi confirmada em março de
1639, por Felipe III. Em 1641, os holandeses apoderaram-se do Maranhão (...) só depois de restaurado o
domínio em 1645 é que se resolveu o dissídio (...) e dera ensancha à Câmara de São Luís para pretender
impedir continuasse Tapuitapera incluída nos termos doados a fim de constituírem capitania”. LOPES,
Antonio. Alcântara: subsídios para a história da cidade. Rio de Janeiro: MEC/DPHAN, 1957. Além de
Alcântara, São Luís possibilitou o desdobramento de outras vilas e cidades, como a de Rosário na margem do
Rio Itapecuru, e no continente Icatú, na Baia de São José. Há recomendações reais para a fundação da Vila de
Icatu, a Segunda Vila do Maranhão depois de Alcântara, pedindo transferência de cinquenta colonos de São
Luís para povoá-la, distribuição de índios entre eles para servirem de mão-de-obra, além de venda de trinta
escravos africanos a preços módicos para os povoadores. Livro Grosso do Maranhão: ANAIS da biblioteca
nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 66, 1º parte, 1948.
13
LISBOA, João Francisco de. – Jornal de Timon. Lisboa: Tipologia Matos Moreira e Pinheiros, 1901, v.01,
ps. 109-110.
21
uma colônia de povoamento
14
, exigindo que fossem implantados os instrumentos
administrativos que irão caracterizar e definir São Luís enquanto cidade.
O Senado da Câmara havia sido instituído provisoriamente em 1615 por Alexandre de
Moura, general que comandou a conquista de São Luís aos franceses. Antes de deixar a terra,
lhe transferiu uma légua de terras, e deu a Jerônimo de Albuquerque, que iria governar o
Estado, normas pelas quais deveria orientar a sua administração. Recomenda a reforma do
Forte São Felipe (Fundado pelos franceses sob o nome de São Luís), conforme o projeto do
engenheiro Francisco de Frias Mesquita
15
, para o que deixava seis pedreiros, carpinteiros,
duas ferrarias, uma serralharia, uma olaria, cal, etc. O regimento possuía ainda duas linhas
recomendando que a cidade fosse bem arruada e direta, conforme a “traça” que ficava em
poder do capitão-mor
16
, comandante da conquista da ilha, das posses francesas.
No entanto, somente com a chegada em 1619 dos trezentos casais dos Açores, sob o
comando do Capitão Simão Estácio da Silveira, é que a Câmara foi fundada na sua forma
ritual definitiva, fazendo-se a primeira eleição entre os colonos e elegendo-se os juizes,
vereadores e procurador
17
.
14
CALMON, Pedro. História Social do Brasil – espírito da sociedade colonial. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympo Editora. 1963.
15
O plano ortogonal da cidade de São Luís foi desenhado pelo Engenheiro Mor Francisco de Frias, que já havia
projetado o forte que foi erigido em Icatú (depois Vila Velha de Icatú), em 1614, no continente, nas
proximidades da Ilha de São Luís, para combater os franceses. O forte tinha forma de um perfeito sexágono e
foi batizado de Santa Maria, ao celebrar-se a missa em 28 de outubro de 1614. MARQUES, Augusto César
Marques. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro: Fon-Fon e Seleta,
p.225. O projeto ortogonal de ocupação, atribuído à influência espanhola, foi seguido a risca pelos colonos
conforme desenhos deixados pelos holandeses. As plantas da cidade foram registradas por Frans Post em
desenhos cujos originais se encontram no Museu Britânico. As gravuras foram reproduzidas no grande livro de
Gaspar Barlaeus sobre o Brasil holandês História dos feitos recentemente praticados no Brasil, e copiadas
depois para a obra de Santa Teresa sobre as guerras de Portugal com a Holanda.
16
“Regimento do capitão-mor Alexandre de Moura ao capitão-mor Jerônimo de Albuquerque para o bem do
Governo da Província do Estado do Maranhão. Citado por: VIVEIROS, Jerônimo. História do Comércio do
Maranhão - 1612-1895. São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1954. p.11”.
17
.Para tornarem uma povoação de colonos, cuja vida civil e econômica precisava ser organizada,
22
Nada indica que nos começos os açorianos tivessem tido vida fácil, fosse na viagem
migratória, fosse na implantação da colônia no Maranhão. As próprias condições de
instalação eram difíceis em região de floresta
18
e, na maioria das vezes, tiveram que utilizar
modos de trabalho e de vivência culturais indígenas para a sobrevivência. Levando-se em
conta que a época pioneira tivesse sido ainda mais difícil que as posteriores imigrações, a
notícia dada pela pesquisadora Ramos Flores em “povoadores da fronteira” - no contexto de
um debate sobre precariedade das viagens e instalações iniciais de açorianos no Sul do Brasil
- de uma imigração para São Luís de 1853 (ainda no século XIX), em condições difíceis,
indica um caminho a considerar
19
.
Do ponto de vista dos conflitos e reajuste no processo de consolidação da cidade de
São Luís, três eventos serão fundamentais neste período inicial. Em primeiro lugar, a
convivência com a sociedade indígena, a qual os colonizadores desejavam submissa,
fornecedora de mão-de-obra, nunca fraternal, cujo revés inicial foi a revolta conhecida como
“do Índio Amaro”.
O episódio da ocupação francesa influenciou principalmente o destino dos índios do
litoral, os tupinambás. Aliados dos franceses no trabalho e na guerra (diga-se de passagem,
também os exploravam), viram seu território invadido no pós-guerra não só pelos
concretizaram esta necessidade o Capitão Mor Diogo da Costa Machado, e o auditor geral Luís de
Madureira, organizando a Câmara Municipal de São Luís. Reunindo o povo por bando e feita a votação,
saíram por eleitores Rui de Sousa, Capitão Pedro da Cunha, Sargento Mor Afonso Gonçalves Ferreira, Alvaro
Barbosa Mendonça e o Capitão Bento Maciel Parente (...). Formou-se assim o corpo de eleitores, cinco, que
elegeu os capitães Simão Estácio da Silveira e Jorge da Costa Machado para juizes, o Sargento Mor Antonio
Vaz Borba e Álvaro Barbosa para vereadores e Antônio Simões para procurador. Estes escolheram Estácio da
Silveira para presidente. De fontes encontradas, mas não identificadas por VIVEIROS, op,cit., v.1.
18
Pelo que indica, a estada dos franceses anteriormente facilitou a tarefa colonizadora, visto que parte do terreno
onde a cidade se implantou inicialmente estava planado e as obras do forte adiantadas, na quais ergueram
apenas um grande muro. Havia construções até de dois pavimentos e uma serralharia montada.
19
FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000.
23
portugueses, que muitos já conheciam de Pernambuco, aos quais chamavam Peró, como
também pelos arquiinimigos tapuias, como denominavam os nativos do interior, velhos rivais
de guerras, que vieram com as tropas ibéricas.
O colonizador, pouco considerou a distinção cultural ou étnica das tribos, quando se
tratava de ajuntamento dos índios a serviço das obras de colonização, tendo-os, quando
pacificados, reordenado em tribos as quais denominavam obrigadas, o que significa, na
antropologia, retribalização, a serviço dos interesses coloniais, instaladas em localidades da
Ilha de São Luís, fora do perímetro municipal. Em condição de semilivres, grupos indígenas
tinham que suportar, na maioria das vezes, elementos estranhos ao seu convívio cultural,
misturando tupinambás e tapuias, dirigidos por um serviço de catequese realizado pelos
jesuítas, ou administrados pelo Senado da Câmara.
A primeira reação indígena veio em 1617, em Cumã (região de Alcântara e
Guimarães), onde viviam numerosas tribos tupinambás. Um índio, catequizado e alfabetizado
em português, chamado Amaro, traduziu para os seus iguais uma carta do Governo que levava
em mãos de Belém a São Luís. Segundo ele, tratava-se de orientações como escravizar os
índios. A desconfiança fundada – mesmo que fosse inverídica a notícia - fez com que os
índios matassem todos os colonos que residiam no povoado, ação que ficou conhecida como
"A Revolta do Índio Amaro", desencadeando uma reação exterminadora por parte dos
colonizadores europeus. O governador Matias de Albuquerque, que estava no Pará, voltou a
São Luís e comandou uma expedição que perseguiu os tupinambás durante quatro meses, até
as proximidades do Rio Gurupi, matando-os em grande quantidade. Os portugueses contaram
mais uma vez com a ajuda de índios aliados, naquela expedição.
No Pará, os índios tupinambás também sublevaram e foram massacrados, mas fizeram
a guerra estender-se e difundir-se em vários pontos do Maranhão. Bento Maciel Parente,
sertanista que estava preso em Pernambuco, foi libertado pelo Governo Geral para ir ao
24
Maranhão dar combate aos revoltos, levando oitenta soldados e quatrocentos índios,
realizando uma perseguição aos nativos desde Tapuitapera (Alcântara), até o Pará e, mesmo
finda a resistência, continuando a matança até a extinção dos tupinambás naquela região
20
.
Com suas ações truculentas contra os nativos, Bento Maciel Parente acabou
acumulando poder e prestígio vindo a se tornar Governador do Estado Colonial do Maranhão
em 1638, implantando uma política de "descimentos" cujo objetivo era aprisionar índios nas
fronteiras amazônicas e Sul do Maranhão. A matança e a dispersão dos índios das
proximidades de São Luís, Tapuitapera, Cumã e Belém, levaram rapidamente a uma crise de
Mão-de-obra, tendo como consequência, no século XVII, a valorização política e econômica
da fronteira Oeste e a preferência que os governadores passaram a ter por Belém, apesar da
sede do governo permanecer em São Luís. A consequência mais obvia para minha pesquisa é
a baixa referência nas fontes ao elemento índio na ocupação da cidade e a sua presença, mais
como indivíduo, já destribalizado, que como etnia, e reponsável por povoamentos “caboclos”
no interior da Ilha de São Luís.
A escassez do trabalho indígena foi amenizada com as retribalizações, em aldeias
obrigadas, tuteladas pela Câmara, que tinham essa denominação por serem reserva de
trabalho, que poderia ser recrutado, sem opção, mediante pagamento de jornais
21
. Outras
formas foram os conhecidos descimentos, ao que parece de efeito limitado, e ainda a compra
do Pará, com os “panos da terra”. As etnias restantes do grande extermínio, os escravizados
dos descimentos, bem como os guerreiros nativos aliados, deveriam oferecer trabalho à nova
sociedade em construção, dividida no interesse de dois projetos: ora perseguidos pelo colono
20
Essa versão da Revolta do Índio Amaro pode ser lida tanto em BERREDO, Bernardo Pereira. Anais
históricos do Estado do Maranhão. 4.ed. Rio de Janeiro: Tipo Editor Ltda.,1988. quanto em LISBOA, João
Francisco. Jornal de Tímon – Apontamentos, notícias e observações para servirem à História do
Maranhão. Brasília: Alhambra, s/d, p.45. Versão original de 1858.
21
Jornal ou jornada, pagamento diário. As referências são: “pagar o jornal dos índios”. Fazia-se a arrematação
das carnes verdes em que o arrematador tinha o direito a índios cedidos pela Câmara para o trabalho.
25
que os queria como escravos, ora defendidos pelos jesuítas, que os queria cristãos e nas
obras da Igreja, dilema que se prolongou durante todo o século XVII e parte do XVIII.
A consequência prática é que estes “lugares de índio” dentro da Ilha, como São José,
Vinhais, Maioba, Maracanã, etc., se tornaram povoados ou vilas com a lei de alforria ao
trabalho indígena em 1755
22
, constituindo reserva demográfica migratória para o município
de São Luís
23
.
Um segundo aspecto de intervenção no processo de formação da cidade foi a ocupação
holandesa. Em 1641, mesmo já tendo sido firmada a paz entre portugueses e holandeses, o
comando holandês de Recife mandou conquistar o Maranhão em dezoito embarcações, com
mil militares liderados pelo Almirante Jan Cornelizoon Lichtardt e pelo Coronel Koin
Anderson, rendendo São Luís.
No dia 25 de novembro de 1641, entraram facilmente na Baia de São Marcos e na foz
do Rio Bacanga, desembarcando as tropas no Porto do Desterro, ao pé da igreja do mesmo
nome. Saquearam a igreja e declararam dominada a cidade. Diante da maioria das forças
holandesas, as tropas portuguesas na Ilha, dirigidas pelo governador Bento Maciel Parente – o
valente matador de índios - se renderam. Em seguida, uma parte das tropas foi enviada para o
continente, a fim de controlar os engenhos de açúcar nas margens do Rio Itapecuru, quando
conquistaram o Forte de Rosário, que reconstruíram
24
.
22
Somente com as reformas pombalinas em 1755, com o desdobramento e ampliação de Vilas e fim da
escravidão dos nativos, surgirão os vereadores índios. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Cidades e vilas
pombalinas no Brasil do século XVIII. In Universo Urbanístico Português 1415-1822 – coletânea de
estudos. Helder Carita e Renata Araújo (coor). Lisboa: CNCDP, 1998. Como é o caso da Vila de Vinhais,
dentro da Ilha de São Luís, hoje logradouro da cidade.
23
Ainda hoje os três municípios dentro da Ilha: São José; Paço do Lumiar e Raposa, são apenas cidades satélites.
24
O período de três anos em que o domínio holandês esteve em convívio com os habitantes da terra é muito
pouco estudado ou conhecido. Sabe-se apenas que fundaram cinco engenhos de açúcar, conforme César
Marques. MARQUES, op. cit., p. 63.
26
Quase um ano depois, quatro líderes iniciam uma reação à ocupação holandesa. Dois
colonos: Antônio Muniz Barreiros Filho e Antonio Teixeira de Melo, e dois chefes indígenas:
Joacaba Mitangai e Henrique de Albuquerque. Começaram tomando o Forte de Rosário.
Depois, entraram na Ilha combatendo e vencendo o inimigo até acamparem no Outeiro da
Cruz, lugar de nova batalha. Sem mais resistências da tropa contrária, puderam avançar,
chegando aos muros do Convento do Carmo, vizinho à grande fortaleza da cidade, onde
fizeram o cerco e travaram grandes batalhas. Os portugueses trazem reforços do Pará e os
Holandeses, de Pernambuco. Aos poucos, índios e portugueses foram cercando os holandeses
e os deixando sem munição e alimentos, até que resolvessem partir, o que ocorreu em 2 de
fevereiro de 1644
25
. Depois da batalha de São Luís, outras regiões ganharam estímulo e
continuaram as expulsões dos batavos, no Ceará e Pernambuco, até que estes se retiraram do
Brasil.
A luta contínua, que durou mais de um ano, deixou a cidade gravemente em ruínas. O
fogo da guerra destruiu prédios e documentos da Câmara da cidade, além de quase todos os
muros da magnífica cidadela de São Luís, que cercava o Promontório. O esforço de
reconstrução da cidade foi constante e insuficiente, a infra-estrutura básica havia desaparecido
e não haveria novos grandes investimentos até o fim do século XVIII.
Em reconhecimento por sua bravura, os colonos de São Luís receberam os mesmos
privilégios dos cidadãos do Porto: de não serem recrutados para serviço militar; não irem para
prisão comum quando cometessem delitos, só podendo ser presos em suas próprias
residências; não sofrerem nenhum tipo de castigo corporal; poderem portar livremente suas
espadas e usarem adereços só permitidos a nobres e militares, como bainhas de veludo, terços
dourados, punhos de fio de ouro, trajar sedas e usar metais, privilégios que acabaram com o
25
Há quem reivindique aí o surgimento das primeiras forças militares do Brasil, por exemplo: MEIRELES,
Mário Martins. História do Maranhão, 2. ed. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 1980.
27
tempo, sendo desrespeitados pela Coroa e Governadores, mas marcaram a ousadia política e
administrativa dos locais
26
.
Para tal ousadia, se soma a importância regional que foi concedida à cidade de São
Luís na administração da Coroa Portuguesa. Em 20 de junho de 1618 foi ordenada a criação
do Estado Colonial do Maranhão. A medida, porém, só foi decretada em 13 de junho de 1621
e a instalação efetiva do novo Estado só se tornou realidade em 1626, com a posse do
primeiro governador, Francisco Coelho de Carvalho. Pela carta régia de 25 de fevereiro de
1652 foi Extinto o Estado do Maranhão e foram restabelecidas as duas capitanias, a do
Maranhão e a do Grão-Pará, independentes entre si. Dois anos após, nova Resolução Real de
25 de agosto de 1654 retomava o antigo Estado do Maranhão, agora sob a denominação de
Estado do Maranhão e Grão-Pará. O Estado, desmembrado do Brasil, abrangia a atual área
que vai do Ceará ao Amazonas e, ao sul, parte do Goiás
27
(hoje Tocantins).
26
Politicamente, a Câmara de São Luís no século XVII foi considerada um dos bons exemplos de afirmação e
extrapolação do poder e autonomia local, citado na literatura nacional. como registrou João Lisboa: “Do exame
e estudo dos seus arquivos, das memórias do tempo e das leis e cartas régias, consta que os mesmos senados,
com direito ou sem ele, taxavam o preço do jornal dos índios, e mais trabalhadores livres em geral, aos
artefatos dos ofícios mecânicos, à carne, sal, farinha, aguardentes, ao pano e fio de algodão, aos
medicamentos, e ainda às próprias manufaturas do Reino. Regulavam o curso e o valor da moeda da terra,
proviam sobre a agricultura, navegação e comércio, impunham e recusavam tributos, deliberavam sobre
entradas, descimentos, missões, a paz e a guerra com os índios, e sobre a criação de arraiais e povoações”.
LISBOA, João Francisco. Op.cit p.45.
27
MEIRELES, Mário M.op, cit, p. 82. Sobre o uso nas ordenações: “De 1621 até o final da primeira metade do
século XVIII – portanto, durante a maior parte do período de vigência do livro V das Ordenações Filipinas, o
Estado do Brasil designava uma circunscrição administrativa separada do então chamado Estado do Maranhão
ou Estado do Grão-Pará e Maranhão. Apesar disso, a palavra Brasil era usada muitas vezes para designar toda a
extensão das possessões portuguesas na América. Ordenações Filipinas, livro V. Silvia Hunoud Lara (org).
São Paulo: Companhia das Letra, 1999, P.65. Este fato teve uma grande carga afetiva e política para o
Maranhão que Luís Antônio Vieira da Silva, um dos principais historiadores maranhenses no Império, destacou
como causa relevante da não adesão do Maranhão á independência do Brasil em 1822. SILVA, Antônio Vieira
da. História da independência da Província do Maranhão. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana,
ed. Original de 1862. 2.
a
ed. 1972. ps. 23-4.
28
Contudo, para os colonos, era necessário mais que isso. Consideravam-se lançados a
uma precária economia regional, com moeda metálica inexistente. A circulação monetária e
pagamentos nessa economia eram resolvidos com rolos de linha e de pano. O mais comum em
todos os relatos e documentos primários do período é a existência de certa quantidade de rolos
de panos, novelos de linha e panos produzidos nas cidades, que serviam tanto para
confeccionar vestimentas, quanto para pagar salários, fazer trocas, comprar escravos, exportar
para outras cidades ou para Portugal e ainda servir de moeda. É extraordinário o número de
panos e rolos de panos que aparecem em testamentos, como herança e pagamentos, até
meados do século XVIII
28
. E, ainda, sem escravos africanos e em tudo dependentes da escassa
28
. Escrevendo sobre numismática maranhense, Oswaldo Soares ao se referir ao século XVII afirma que, uma
história monetária desta época não existe, a moeda da terra utilizada neste tempo era fazenda e novelos de
algodão. Há notícias de que durante a ocupação francesa ocorreu no Maranhão a moeda francesa. Durante a
União Ibérica, sabemos que circularam no Brasil moedas portuguesas e reales castelhanos e durante a ocupação
holandesa parece que nenhuma moeda cunhada passou a circular no Maranhão. SOARES, Osvaldo.
Numismática maranhense. São Luís: Revista do Instituto Histórico e geográfico do Maranhão. Nº 1, p. 94,
nov de 1948. Em “Cripto maranhenses e seu legado” José Dervil Mantovani nota sobre o sistema monetário e
de crédito reinante “Entre os livres, eram tempos de confiança na palavra empenhada. O açoriano Bartolomeu
Pereira devia, em fins do séc XVII a Antônio da Fonseca quinhentos e tanto mil réis ou "o que na verdade se
achar do seu livro (do credor)", e prescreve, ainda que apenas para após a sua morte, que lhe paguem; deve a
Manoel Andrade da Fonseca, "segundo a conta que ele mandou", 500 mil réis, parcialmente pagos com açúcar
do engenho que Bartolomeu possuía no Munim. Era importância significativa, algo como o preço de 5 escravos
dos bons ou 10 dos mais baratos, ou meia fazenda. E estavam confiados ao arbítrio do devedor. Se alguém
jurasse ser credor de quantias menores (até 4 mil réis), "tendo razão para os pedir", também se lhes pagaria.
Tanta confiança na probidade de credores reaparece nos testamentos com alguma freqüência até meados dos
anos 50. Gaspar dos Reis em 1744 devia a uma capela de jesuítas 100 mil réis "em bom dinheiro", para
distingui-lo do dinheiro usado por Gabriel da Costa Quental, que em 1741 devia 20 mil réis em "pano de
algodão, dinheiro da terra" a Antônio Barbosa. O serviço de José Pereira da Silveira de "acabamento das partes
(de uma edificação), e mais madeiras", custou, em 1751, a João Gomes Pereira 11 rolos de pano, "ou o que ele
na verdade disser como homem de consciência"; no mesmo ano, a "esmola (de João Theófilo) aos Lugares
Santos de Jerusalém" estava orçada em 5 rolos de pano. Em 1745 João da Cunha devia "4 bois ao meu
compadre Francisco da Silva Passos, procedidos de 4 surrões de sal que me vendeu"; um boi por cada surrão de
sal. Ele já vendera a Francisco Caetano "um pouco de gado há bastantes anos", e sobre este "está correndo
juros, e não tenho cobrado até o presente mais que um rolo de pano"; o sogro de Bartholomeu Pereira devia em
1766 a José Ferreira da Cunha, 57 couros de veado dos quais este testador tinha recibo; em 1761 José da Motta
29
mão-de-obra indígena, a qual tinham que disputar com os jesuítas. O resultado foi uma
crescente animosidade entre colonos e a política da Coroa, cujo agravante eram os impostos
que ainda se viam obrigados a pagar, até que surgiu o terceiro grande fato de (des)ajustamento
no século XVII, a Revolta de Beckman.
Em 1682, Portugal decidiu incluir a região no grande sistema comercial de seu
Império, levando à euforia os comerciantes de São Luís. Para realizar a transformação, criou a
Companhia de Comércio do Estado do Maranhão, empresa destinada a explorar de forma
privilegiada o resultado da economia, introduzindo escravos africanos para a produção,
garantindo o plantio da cana-de-açúcar, cacau e tabaco em larga escala. Na prática, tratava-se
de uma empresa de capital privado que teria o direito de explorar a produção e o comércio da
região por vinte anos, à medida que investisse recursos em equipamentos e mão-de-obra.
Teria o direito sobre a administração dos índios, que deveriam plantar alimentos para os
escravos africanos que chegassem.
Entretanto, ao invés da Companhia garantir o desenvolvimento comercial local,
começou por cobrar altos preços nas mercadorias oriundas de Portugal, muitas delas de má
qualidade e geralmente falsificadas. Os escravos africanos, que eram a grande promessa de
investimento, chegavam em pequena escala e a preços aviltados. Os proprietários locais, que
desejavam uma economia semelhante à de Olinda, em Pernambuco, por exemplo, ficaram
Verdade era credor de Francisco Amádio; importância: 3 escravos". MOTA, Antonia da Silva; Mantovani,
José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano, 2001. p. 16-17
A fiação em teares, ao que supomos trazidas dos Açores, mas também de prática indígena, parece ter sido uma
das pilastras da sustentabilidade daquela sociedade. o mercado interno colonial, que funcionava à base de um
sofisticado escambo, onde no Maranhão a principal moeda de troca e pagamentos de jornal e soldos era o
algodão, em forma de panos e fios. Marin também registrou atividades de tecelagem e pequena produção
agrícola de arroz entre os colonos entre o Pará e o Macapá. MARIN, Rosa Elizabeth Azevedo. . Os açorianos
nas terras conquistadas pelos portugueses no Vale do Amazonas – açorianos no Cabo Norte – século
XVII. In: BARROSO, Véra Lucia Maciel (org.) orianos no Brasil. Porto Alegre: EST Edições, 2002.
30
insatisfeitos de não poderem investir no grande plantio monocultor do açúcar, que geraria
um enriquecimento rápido do lavrador.
Manoel Beckman e Tomas Beckman, reunidos na Câmara Municipal, liderando um
grupo de colonos, sustentaram oposição a tudo que ocorria. Em 24 de fevereiro de 1684
formaram uma junta governativa para assumir a direção do Estado, no lugar do governador
Francisco Sá Meneses, ausente em Belém. Suas principais medidas foram expulsar os jesuítas,
considerados prejudiciais à economia, à medida que se opunham ao trabalho dos indígenas, e
acabar com as taxações e privilégios da Companhia de Comércio. A princípio, o movimento
obteve êxito, mas ao tentar conseguir a adesão dos dirigentes de Alcântara e Belém não
recebeu a reação esperada, recusando-se aquelas cidades a participar do movimento revoltoso.
Em 15 de maio de 1685, chegou de Portugal um novo governador nomeado pelo rei,
como missão de prender todos os revoltosos. Como percebeu a grande adesão popular à
revolta, resolveu perdoar a muitos, com exceção dos líderes. Deste momento em diante, o
movimento se enfraqueceu e Beckman buscou refúgio. Tendo sido posta a sua captura a
prêmio foi traído, preso e enforcado em 2 de novembro de 1685, na Praia do Armazém, onde
existe um monumento em sua memória (Avenida Beira Mar, Centro)
29
.
Com o movimento revoltoso, a Companhia de Comércio perdeu prestígio, tendo sido
extinta pouco tempo depois, ficando São Luís economicamente semelhante ao que era antes,
com sua pequena economia de mercado interno até meados do século XVIII.
Do ponto de vista do mercado local, há indícios de que o período anterior ao grande
mercantilismo forjou uma economia regional plural, até porque a ocupação por colônia de
moradores e a distribuição de terras entre os colonos favoreciam uma economia de
29
Um dos trabalhos que reúnem informações inéditas sobre o assunto é LIBERMAN, Maria. O levante do
Maranhão “judeu cabeça do motim”. Manoel Beckman. São Paulo: Judaica-Brasil. 1983. trabalha com a
hipótese da vingança maior a Beckman estar relacionada ao fato de ele ser cristão novo. A revolta de Beckman
é considerada um dos primeiros movimento dentro do atual território brasileiro a se opor às determinações do
governo de Portugal. Portanto, das primeiras insurreições nativistas.
31
subsistência. A Câmara de São Luís convocou em 1756 (marco da implantação da
Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão) os pequenos plantadores que
circundavam a cidade para a implantação de uma reforma agrícola, num primeiro combate à
policultura comercial. Os produtos favorecidos deveriam ser preferencialmente a cana de
açúcar, o algodão e o tabaco, em detrimento da diversidade de produtos, como mandioca,
arroz, milho, feijão, gergelim e outros semelhantes gêneros comestíveis O lavrador que
quiser se ocupar na plantação de algodão, não se ocupará na plantação de outro gênero
para vender e só poderá o fazer do que necessitar para a sua casa e família
30
.
Esta reforma indica a existência de uma economia de produção de policultura
camponesa e de mercado, anteriores às reformas pombalinas, porém voltadas para o consumo
interno, principalmente para as cidades e povoações, o que corresponde a uma ocupação de
povoamento, sem desconsiderar a existência neste período de exportação para a Europa
31
.
Foi a partir das reformas políticas e econômicas modernizadores do Primeiro Ministro
de D. José I para o Brasil, com destaque no Maranhão para a Criação da Companhia de
Comércio do Grão Pará e Maranhão, que a produção agrícola foi dinamizada. Buscava-se o
fomento de todos os produtos: algodão, cacau, cravo, café, arroz, anil, urzela, urucu, gengibre,
etc...De todos esses gêneros, o arroz e o algodão foram os que mais mereceram o incentivo da
Companhia. São Luís recebia créditos, ferramentas e, principalmente, africanos
32
. Somente
30
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livros de acórdãos- 1753-1761, pp.116-118.
31
Uma das evidências é o comércio que os açorianos em São Luís continuaram fazendo com as ilhas. Do
testamento de 1676 de Bartolameu Pereira de Lemos, produtor instalado na Ilha, temos: (...) Declaro que na
chumberga mestre Francisco dos Sanctos Carreguei duas caixas de asucar branco e hu’ de mascavado as
brancas {{277v}} As brancas quarenta e nove arobas amascavada vinte [ilegível
] arobas a entregar na ilha
Tresseira [ilegível 2 palavras
] nas mais partes ao mestre _//_ [ilegível 2 palavras] mais duas caixas de asucar
branco Com quarenta e sette arobas, e hua’ de mascavado Com vinte e quatro Arobas no navio Santa Ines, e
Santo Antonio Mestre Luis Franco, e assim mais vinte e duas ou Vinte e tres arobas de Cravo que tudo
emtregou na Tresseira a Joao’ de Lemos Cabral que tem o prosedido em seu poder que se lhe procurara que te
o prezente nao’ tenho avizo seu. (...). MOTA, 2000, op.cit.
32
RIBEIRO, Jalila Ayoub Jorge. A desagregação do sistema escravista no Maranhão (1850-1888). São Luís:
32
entre 1757 e 1777, a região recebeu 25.965 escravos por tráfico, da Companhia Geral do
Comércio do Grão-Pará e do Maranhão
33
.
No relato de Caio Prado:
A primeira remessa de algodão brasileiro para o exterior (com exclusão daquela remessa
pequena e intermitente exportação do século XVI, referida acima e que não progrediu), data,
ao que parece, de 1760, e provém do Maranhão que neste ano exporta 651 arrobas. De
Pernambuco exporta-se a partir de 1778, sendo em quantidade insignificante até 1781. A
Bahia e o Rio de Janeiro seguirão o passo. Mas é no Maranhão que o progresso da cultura
algodoeira é mais interessante, porque ela parte aí do nada, de uma região pobre e inexpressiva
no conjunto da colônia. O algodão dar-lhe-á vida e transformá-la-á, em poucos decênios, numa
das mais ricas e destacadas capitanias
34
.
Mas, o conjunto das reformas
35
, que, em parte, rompe como a organização do mundo
colonial, terá expressiva repercussão na cidade de São Luís, particularmente com a noção de
cidades regulares, bem planejadas, de que tirou proveito o primeiro plano urbano, já ortogonal
e implantou um estilo arquitetônico a que denominam os arquitetos de “pombalino”. E, ainda,
é um projeto que acompanha a reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1775.
Despontava São Luís, na segunda metade do século XIX, como a quarta capital do
Império Brasileiro, pela circulação de dinheiro e padrão construtivo do conjunto
arquitetônico. Isso se deu em um acelerado processo de renovação urbana, com ricos
comerciantes se estabelecendo em grande casario de comércios e residencias, inicialmente
muito caóticos, onde haverá a convivência da opulência com a resistência do povoamento
ainda elementar da fase anterior, de uma economia menor voltada principalmente para o
SIOGE, 1990, p.30
33
ibidem, p.55.
34
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 82.
35
Ver conjunto de reformas em FLEXOR, Maria Helena Ochi. Cidades e vilas pombalinas no Brasil do
século XVIII. In Helder, op.cit. p.255-265.
33
mercado interno. Esta agressividade será notada nos capítulos referentes à nova ordem das
coisas e das pessoas.
De acordo como o levantamento feito por Mota e Mantovani nas cartas-de-datas dos
livros da Câmara de São Luís no século XVIII, os lotes do início até meados daquele século,
em média de cinco braças de frente por 15 braças de fundo
36
, ainda eram doados a todas as
categorias sociais e ocupações, na continuidade do povoamento, sem privilégios à
concentração, assim designados: Alferes, soldados, oficiais de pedreiro, de carpinteiro, de
ourives, clérigos, índios forros, ferreiros, mulheres, viúvas. Entretanto, com o avanço rápido
da economia e lavoura, a capital portuária também se tornou um espaço altamente valorizado,
modificando a estrutura de distribuição de terras e possibilitando a hierarquização espacial
37
.
36
Antiga unidade de medida de cumprimento equivalente a dez palmos, ou seja, 2,2m. FERREIRA, Aurélio
Buarque do Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 326.
Considerando essas medidas, vemos que o lote simples era uma pequena quinta, tipo 11por 33m. De acordo
com o código de posturas de 1866 muitos aproveitavam os quintais para criar galinhas, porcos, cabras e até
vacas.
37
MOTA, Antonia da Silva e Mantovani, José Dervil. São Luís do Maranhão no Século XVIII: a construção
do espaço urbano sob Lei das Sesmarias. São Luís: Edições FUNC. 1998, p.37-84. O corpus desta pesquisa
foram os livros da Câmara de São Luís e os documentos se chamavam “doação por carta-de-datas e sesmarias”.
34
35
CAPÍTULO II
A Câmara, a ordem das cidades e os códigos de posturas.
As câmaras municipais, instrumentos de gerência dos municípios brasileiros,
instaladas desde a colônia em lugares onde se desejava garantir o povoamento, com seu corpo
de juízes, vereadores e procurador, denominado Senado da Câmara, foi a instituição principal
do ordenamento das cidades e vilas no Brasil do século XIX. De herança portuguesa, os
municípios garantiam autonomia local, visto que possuíam território próprio desmembrado
das capitanias, e era regular que não fossem gerenciados por gente de fora, mas pelos nascidos
na terra, a partir do momento em que isto foi possível.
Como base legislativa, as câmaras antigas utilizavam as ordenações manoelinas e
filipinas, mas tinham também que criar instrumentos novos, à medida que os problemas iam
surgindo conforme o contexto do mundo colonial. Em muitos casos, as câmaras ousavam de
uma função permitida de administração do município para posicionamentos políticos que
chegavam a embates com o Rei, com o Governador, com o clero e, até mesmo, com os
colonos, visto que as câmaras não representavam o conjunto dos moradores. Tinham os
nomes dos vereadores e juízes escolhidos em uma lista de gente melhor posicionada
economicamente, os chamados “homens bons”, sendo estes ainda restritos a proprietários de
terras com algum mérito de “nobreza”
38
.
3838
Os vereadores, que sempre eram pessoas oriundas e relacionadas com o campo, passavam parte de seu tempo
na cidade, o que pode ser observado nas regularidades das vereações. Por volta de 1648, em São Luís,
procuram limitar as suas vindas à cidade, a um intervalo de quinze em quinze dias, para cuidarem das lavouras
que possuíam, o que não deixa de ser uma permanência estável. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de
acórdãos, 1646-1648, p.16. Os livros do século XVII de São Luís não parecem indicar, como muitas vezes se
crê, que os vereadores deveriam ser necessariamente proprietários rurais, mas pertencer a algum tipo de
nobreza, que na maioria das vezes está relacionada aos chamados primeiros povoadores e seus descendentes,
36
No decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII, as câmaras eram reguladas por
ajustamentos feitos a partir de ordenações reais, na grande maioria das vezes para conter
pretensões de aumento de prerrogativas por parte dos vereadores e juízes e mantê-las nas
funções administrativas. Já no século XIX, sob a nova ordem independente, a base de
gerenciamento legislativo será a Lei de organização das câmaras municipais de 1.º de outubro
de 1828, com subtítulo Criando em cada cidade e vila do Império Câmaras Municipais
39
. No
entanto, é preciso notar que ela é também resultado de processo legislativo anterior das
câmaras e contêm, de forma residual, aspectos de antigas ordenações. Pela forma que finaliza,
será o regimento supremo de organização das câmaras, a partir de então: “Ficam revogadas
todas as leis, alvarás, decretos, e mais resoluções, que dão às Câmaras outras atribuições, ou
lhes impõem obrigações diversas das declaradas na presente lei, e todas as que estiverem em
contradição à presente.”
Logo no Título I, a Lei de 1828 reestruturou as novas Câmaras, determinando que nas
cidades se compusessem de nove membros e as das vilas de sete - em sua versão original a
composição era com dois juizes, dois vereadores (auxiliares dos juizes) e um procurador, com
eleições anuais - sendo que, conforme a nova Lei, a eleição passaria a ser de quatro em quatro
anos, obrigando a terem quatro sessões ordinárias por ano de seis dias cada.
ou àqueles que já costumavam ocupar cargos de vereação, o que parece ser uma redundância. Decididamente
não poderiam ocupar cargos de vereadores e juízes os oficiais mecânicos, comerciantes ou os que não fossem
naturais, além de soldados e índios, até meados do século XVIII, o que acabava reduzindo aos mesmos,
geralmente proprietários e senhores rurais que obtiveram terras no povoamento e seus descendentes, ainda
assim, somente os que estavam residindo na Capitania de jurisdição do município. Uma das regras era
concorrer pessoas de estirpe descendentes dos primeiros povoadores e conquistadores. Jerônimo de Viveiros
lembra que o Alvará de 26 de julho de 1643 proibia a inserção de oficiais mecânicos, mercadores, filhos do
Reino, judeus, soldados e degredados. Conforme o mesmo pesquisador, em 1649 se abriu uma exceção para os
filhos do reino. VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara: seu passado econômico, social e político. São Luís:
Fundação Cultural do Maranhão, 1977, p. 30-31.
39
ASSEMBLÉIA GERAL DO IMPÉRIO. Lei de organização das câmaras municipais de 1.º de outubro de
1828. Disponível na internet em: www.resenet.com.br/historia2.htm, capturado em 7 de outubro de 2004.
37
A participação ficou restrita aos endinheirados, acompanhando o voto censitário da
constituição do Império
40
, um retrocesso na legislação que fora criada no período pombalino,
na qual se passou a admitir vereador índio com as novas vilas emancipadas, após 1755
41
e
nivelando, em todos os casos, o poder aquisitivo dos integrantes, o que não sabemos ter sido
possível para todas as cidades e vilas. Contudo, então a renda predominara sobre qualquer
critério distintivo. De qualquer forma, a administração das cidades continuou nas mãos de um
grupo de privilegiados.
A função de vereador nunca foi profissional durante a colônia e o império e era
exercida muito mais como serviço cívico a que alguns se esquivavam, justamente por
possuírem propriedades que necessitavam ser administradas - e não parecia que a função
trouxesse alguma vantagem financeira, não obstante as reclamações ocorridas em séculos
anteriores sobre as chamadas “provas”, que eram quantias de alimentos que os vereadores
requeriam para qualificar o preço, ou privilégios como indicar juízes de órfão
42
, e outros
privilégios e propinas.
Com a Lei de 1828, este caráter cívico/obrigatório permaneceu, implicitamente, não só
por omitir vencimentos, mas principalmente por se ater às possibilidades de recusa. Alguns
40
A Constituição de 1824 institui o voto censitário – os eleitores são selecionados de acordo com sua renda. O
processo eleitoral é feito em dois turnos: eleições primárias para a formação de um colégio eleitoral que, por
sua vez, escolherá nas eleições secundárias os senadores, deputados e membros dos conselhos das Províncias.
Os candidatos precisam ser brasileiros e católicos. Nas eleições primárias só podem votar os cidadãos com
renda líquida anual superior a 100 mil-réis. Dos candidatos ao colégio eleitoral, é exigida renda anual superior
a 200 mil-réis. Os candidatos à Câmara dos Deputados devem comprovar renda mínima de 400 mil-réis e, para
o Senado, de 800 mil-réis. A maioria da população fica excluída não apenas do exercício dos cargos
representativos como também do próprio processo eleitoral. CONHECIMENTOSGERAIS.COM.BR. Historia
do Brasil. Disponível na internet http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/primeiro-
reinado.html. Capturado em 15 de janeiro de 2005.
41
Ver: FLEXOR, Maria Helena Ochi. Cidades e vilas pombalinas no Brasil do século XVIII. In: CARITA,
Helder e ARAÚJO, Renata (coor). Universo Urbanístico Português 1415-1822- coletânea de estudos.
Lisboa: CNCDP, 1998.
42
Tutelavam os órfãos e administravam os seus bens quando herdeiros.
38
poderiam até se sentir agravados por ter sido indevidamente incluídos na lista dos votantes e
recorrer. Os vereadores poderiam ser reeleitos, mas escusar-se, se a reeleição fosse imediata.
O eleito não aproveitará motivo de escusa, exceto por enfermidade grave ou prolongada, ou
emprego civil, eclesiástico, ou militar, cujas obrigações sejam incompatíveis de se exercerem
conjuntamente. Mas, curiosamente, pagavam multa por ausência não justificada.
A Lei ressalta que “As câmaras são corporações meramente administrativas, e não
exercerão jurisdição alguma contenciosa”. Uma precaução a um histórico de intrigas. “Os
vereadores tratarão nas vereações dos bens, e obras do Conselho, do governo econômico e
policial da terra; e do que neste ramo por à prova dos seus habitantes”. Ainda assim, quando
tal legislação foi elaborada, as câmaras das capitais tinham a importante função política de dar
posse aos governadores, o que lhes foi subtraído com a instalação das assembléias provinciais
a partir de 1834. Deste momento em diante, até mesmo as posturas municipais passaram a
submeter-se às leis provinciais, instância na qual eram aprovadas.
Mas, do conjunto das novas determinações, o que mais nos interessa são as diretrizes
para estabelecimento das regras com que as câmaras teriam que gerenciar as cidades de suas
jurisdições e, consequentemente, como isso interfere no cotidiano das relações sociais.
Sobre a manutenção da regularidade das cidades e fruição dos meios de transportes:
Cuidarão saber o estado em que se acham os bens, e obras do Conselho, para reivindicarem os
que se acharem alheados contra a determinação das leis, e farão repor no antigo estado as
servidões, e caminhos públicos não consentindo de maneira alguma que os proprietários dos
prédios usurpem, tapem, estreitem, ou mudem a seu arbítrio as estradas
.
Ou, ainda, modificações no tratamento com os bens públicos gerais, mas
principalmente com as terras dentro das léguas doadas aos conselhos, seu principal
patrimônio, sobre as quais tinham anteriormente completa autonomia de decisão, visto que as
No formato da internet não há paginação.
39
terras das cidades possuíam a finalidade predominante de povoamento e eram doadas
basicamente aos mais pobres em cartas-de-datas, aos quais não cabia possuir terras em
sesmarias. Entretanto, no século XIX, as terras urbanas, com o grande desenvolvimento do
comércio, passam a ter maior valor e a população livre paulatinamente cresce. Com isso as
câmaras passaram a ter que prestar contas às autoridades em instância superior, e a proceder
não apenas pela simples petição do interessado, como era prática anterior, mas por leilão:
Não poderão vender, aforar, ou trocar bens e móveis do Conselho sem autoridade do
Presidente da Província em Conselho, enquanto se não instalarem os Conselhos Gerais, e na
Corte, sem a do Ministro do Império, exprimindo os motivos, e vantagens da alienação,
aforamento, ou troca com a descrição topográfica e avaliação dos peritos dos bens que se
pretenderem alienar, aforar ou trocar.
Obtida a faculdade, as vendas se farão sempre em leilão público, e a quem mais der, excluídos
os oficiais que servirem então nas Câmaras, e aqueles que tiverem feito a proposta, e exigindo-
se fianças idôneas, quando se fizerem a pagamentos, por se não poderem realizar logo a
dinheiro, pena de responsabilidade pelo prejuízo daí resultante.
A questão relativa à distribuição das terras urbanas provavelmente não se inaugura
com a Lei das Câmaras, esta simplesmente reflete uma nova ordem que vem se ajustando para
as principais cidades do Império. Como já citamos no primeiro capítulo, os lotes eram doados
a todas as categorias sociais e ocupações, sem privilégios à concentração. Entretanto, no
nosso caso, com o crescimento econômico da lavoura maranhense, São Luís, como capital
portuária, também se tornou um espaço altamente valorizado, modificando a estrutura de
distribuição de terras e possibilitando a hierarquização espacial
43
. Este fato foi detectado por
Mota e Mantovani:
43
MOTA, Antonia da Silva e Mantovani, José Dervil. São Luís do Maranhão no Século XVIII: a construção
do espaço urbano sob Lei das Sesmarias. São Luís: Edições FUNC. 1998.
40
O espaço urbano inevitavelmente irá se alterar com as políticas de incentivo. Neste
momento, as atividades urbanas se intensificam e a população se eleva e diversifica
etnicamente. Uma das primeiras conseqüências deste fenômeno é a valorização dos chãos
urbanos
44
.
Consideram os autores acima que o final no século XVIII a Câmara foi incisiva na
cobrança dos foros para restringir o controle de terras:
Através desses expedientes a propriedade imobiliária era tornada inacessível a uma camada da
população que, privada de meios outros de sobrevivência, por-se-ia a serviço do estamento
proprietário. Desta forma – sugerimos – garantia-se a presença de uma população urbana não
escrava em situação de dependência e a serviço do segmento dominante
45
.
Sem invalidar o argumento, uma leitura dos livros de receitas e despesas da Câmara
Municipal do século XVII em diante faz notar que havia rendimentos provindos dos citados
foros, contudo a leitura das vereações dirá haver um contínuo relaxamento e uma crônica
inadimplência. Pode-se então argumentar que, com a valorização do lote na área principal, o
rigor na cobrança dos foros tenha se tornado instrumento de expulsão dos mais pobres.
A Lei de 1828 trata ainda de diversas normas administrativas, como a questão das
arrematações de obras. Mas, dentro do Título em questão aparecem, como “desgarradas”,
duas vertentes que irão predominar nas posturas municipais do século XIX, aformoseamento e
humanização.
Tomarão por um dos primeiros trabalhos fazer construir, ou consertar as praças públicas, de
maneira que haja nelas a segurança e comodidade, que promete a Constituição. Participarão ao
44
MOTA, 1998, op. cit., p.37.
45
MOTA, Antonia da Silva; Mantovani, José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto maranhenses e seu legado.
São Paulo: Siciliano, 2001, p.41.
41
Conselho Geral, os maus tratamentos, e atos de crueldade, que se costumam praticar com escravos,
indicando os meios de preveni-los.
Providências que gerarão uma outra competição similar, visto que o saneamento da
cidade implicará uma outra desumanização, a expulsão dos centros das cidades de atividades
de sobrevivência da parcela mais pobre da população, como criação de animais, curtimento de
couros e vendas por pregão em tabuleiros, logo, o afastamento de grupos sociais para áreas
mais insalubres e com menor infraestrutura.
O título II interessa particularmente aqui por demonstrar a inexistência de
singularidade no tratamento das normas administrativas das cidades. É que, muitos autores, ao
lerem posturas locais, imaginam se tratar de casos únicos e até exóticos, não obstante estes
existirem em função das particularidades econômica e infraestrutural de cada lugar. Mas, em
linhas gerais, as posturas do século XIX seguem a regra do que ali está estabelecido. O título
II trata de “posturas policiais”
46
.
Considera o caput do título que as câmaras “terão a seu cargo tudo quanto diz
respeito a policia e economia das povoações, e seus termos, pelo que tomarão deliberações, e
proverão por suas Posturas sobre os objetos seguintes...”. Sobre o que segue, farei uma
comparação, comentada, entre a Lei e o Código de Posturas de São Luís do Maranhão de
1866
47
.
Uma leitura que se pode fazer sobre quase todos os códigos de posturas, é que dizem
mais pelo que proíbem do que pelo que tornam norma. As proibições só surgiriam mediante a
existência de antigas práticas e costumes, que se deseja mudar pela força da lei e da coerção
46
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa de Antônio Moraes e Silva [2.
a
ed., 1813, 2º vol, p.424],
polícia se refere ao Governo ou administração interna da República, principalmente no que diz respeito às
comodidades, limpeza, segurança dos cidadãos.
47
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Código de posturas de 1866, 1882, 1891. O código de 1866 foi publicado
separado nas Leis da Província. Dos outros dois, apenas conheço o original manuscrito. Atualmente utilizo uma
cópia do original.
42
policial. Entretanto, comparando textos dos códigos de São Luís como os da Lei de 1828,
pela semelhança de assuntos e abordagens, tem-se dois ou ambos os casos: ou se procurou
atalhar possíveis problemas de ordenamento na cidade antes que eles existissem de fato, ou as
cidades brasileiras do século XIX, marcadamente as que mais se desenvolviam, passavam a
enfrentar problemas similares, por terem estruturas similares de fundação, baseadas em
culturas européias herdadas, diante de uma sociedade escravista. Neste sentido, e para
exemplificar, as cidades brasileiras do século XIX terão que resolver de vez a questão dos
enterros dentro das igrejas, em um primeiro momento transferindo-os para os adros e
cemitérios contíguos, para depois formar os cemitérios municipais, que ainda transitam a
partir dos cemitérios de irmandades.
No aspecto social, é este o século que demarca a formação prototípica do periférico
dentro das cidades, para onde vão todas atividades insalubres, onde progressivamente se
avizinham os mais pobres. Proibir ajuntamentos para fazer batuques fora das áreas designadas
tem sentido idêntico a proibir que frite peixe na frente das casas para comércio ou se curta os
couros, não obstante impedimentos de caráter étnico, como o primeiro, se tornarem
privilegiados para o pesquisador da cultura. Aqui significa tornar a periferia espacial: na feira
e beiras de embarcadiços, já contaminadas por diversos odores, pode se fritar peixes; nas
praias e lugares de “segunda categoria”, pode se tocar tambor.
A ponte da Lei de 1828, com o Código de Posturas do terceiro quartel do século XIX
de São Luís, é esclarecedora. Este nos remete para a confluência entre a higiene e a periferia
física, que fica cada vez mais nas bordas urbanas e recebem em si as atividades grosseiras e
de fortes odores, ou as que necessitam de estruturas pesadas, ou são insalubres, onde passam
carros de boi ou se vende a grosso. Lá onde o valor urbano é baixo, aglutina-se
progressivamente a demanda por moradia de baixa renda.
43
Instrumentalmente, a ameaça do uso da força, ou o uso efetivo dela, determina o que é
decente ou indecente, humano e desumano, como banhar nu nas fontes públicas, fumar
maconha publicamente, juntar-se em quitandas para beber, fazer gritarias ou, do lado
dominante, deixar escravos velhos na rua para mendicância, manter instrumentos de cativeiro
em escravos que circulam nas ruas, ou simplesmente grosserias como castigos corporais nas
escolas, outras de exclusão médica como manter os alienados mentais restritos à casa ou aos
hospícios. Assim, tanto a Lei de 28 e seu aparelhamento no código de 1866, estabelecem um
jogo de forças na cidade, na qual ordenar, embelezar e higienizar são do mesmo campo de
isolar, excluir, segregar e esconder do público.
Na parte de aformoseamento, a Lei de 1828 prevê cuidados com alinhamento,
limpeza, iluminação e desempachamento de ruas, cais e praças, conservação e reparos de
muralhas feitas para segurança dos edifícios e prisões públicas, calçadas, pontes, fontes,
aquedutos, chafarizes, poços, tanques, e quaisquer outras construções em benefício comum
dos habitantes ou para decoro e ornamento das Povoações. (...)
A postura de São Luís de 1866 inicia-se exatamente no Título I com Regularidade e
Aformoseamento, onde se prevê que nenhum edifício será construído nem reconstruído sem
prévia ordem da Câmara (art.10); ninguém poderá abrir buracos nas ruas e praças...(art.11);
Ninguém poderá causar danos nos muros e paredões de edifícios públicos...(art.12) etc., mas
também medidas restritivas a um certo segmento social, em nome da segurança como: dentro
da cidade fica proibida a edificação de casas cobertas de palha...(art.60).
Sobre higiene e combate às epidemias, a Lei de 1828 prevê o estabelecimento de
cemitérios fora do recinto dos templos, o esgotamento de pântanos, e qualquer estagnação de
águas infectas; asseio dos currais e matadouros públicos, colocação de curtumes em locais
adequados; deslocamento de depósitos de imundícies, quando possam alterar e corromper a
salubridade da atmosfera.
44
Esta é uma fase que, além dos preceitos corriqueiros de organização da cidade pelos
métodos de segurança, regularidade, aformoseamento, entra em cena o poder médico e
higienista, que interfere diretamente na administração e nas leis, levando os vereadores a
dividir o poder com médicos, engenheiros e sanitaristas, detentores dos conhecimentos
técnicos e científicos que previnem ou debelam as epidemias, na qual o planejamento e o
futuro das ocupações dependerão dos pareceres e relatórios de tais indivíduos, a pedido dos
camerais, ou da Assembléia Provincial. Caponi lembra que, a partir do fim do século XVIII,
se iniciou essa nova estratégia de poder, preocupada com os mecanismos que pudessem
contribuir para melhor modelar o corpo e melhor controlar e conhecer os fenômenos
populacionais. Este foi o momento no qual se iniciaram e multiplicaram os estudos
estatísticos sobre demografia, taxas diferenciais de mortalidade, registro de nascimento e
doenças, distribuição e concentração de epidemias, etc.
Então, e pela primeira vez na história, o biólogo ingressa no registro da polícia: a vida passa a
entrar no espaço de controle de saber e da intervenção do poder. O sujeito como sujeito de
direitos passa a ocupar um segundo plano, deixando o seu espaço para o homem como um
elemento a mais na escala dos seres vivos
48
.
Acompanhando outros autores, Sandra Caponi afirma que o corpo e a saúde ingressam
no registro do saber e das intervenções políticas no início do século XIX, com a emergência
da clínica e a reorganização do hospital, por um lado e, por outro, com os estudos estatísticos
dos higienistas relativos ao controle de epidemias.
Seguindo a Lei geral, e também por conta de um conjunto de médicos e engenheiros
que se instalaram no Maranhão, já desde a primeira metade do século XIX, a postura de 1866
possuía um capítulo particularmente destinado a essas questões, prevendo local de matadouro
48
CAPONI, Sandra. Corpo, população e moralidade na história da medicina. In: ESBOÇOS – Revista do
Programa de Pós-Graduação em história da UFSC. Chapecó: UFSC, 2002. nº 9, ISSN 1414-722X, ps. 73-4.
45
de animais, condução das carnes, higiene e acompanhamento de veterinário para o rebanho,
asseio dos pesos e das vendas; Forma hermética de conduzir cadáveres, lugares de
enterramentos de animais, canalização de esgotos, aterramento de pântanos, proibição de
moradias em lugares baixos e insalubres dos edifícios, horários para despejos de excrementos
humanos no mar etc.
No campo da segurança, a Lei de 1828 tinha regulamentação para edifícios ruinosos,
escavações e precipícios nas vizinhanças das povoações; mandando-lhes por divisas para
advertir os que transitavam; suspensão e lançamento de corpos, que pudessem prejudicar ou
enxovalhar aos viandantes; cautela contra o perigo proveniente da perambulação de animais
ferozes ou danados e daqueles que, correndo, podem incomodar os habitantes, providências
para acautelar, e atalhar os incêndios. Nessa categoria entram os loucos e embriagados ao lado
de animais ferozes. A pessoa que andar embriagada pelas ruas desta cidade será multada em
dez mil reis e três dias de prisão, e sendo escravo será entregue a seu senhor para que este o
puna como entender (1866, art.104)
Particularmente sobre hábitos de vozerias nas ruas em horas de silêncio, injúria e
obscenidades contra a moral pública que aparecem na Lei de 28, regula a postura de 1866:
todo que com palavras ou acções insultar a qualquer pessoa será multado...”(art.93); “É
proibido fazer vozerias, alaridos e dar gritos nas ruas, sem ser para pedir socorro ou
capturar algum criminoso...(art.94).
Há várias questões sobre o gado e sua circulação; sobre os que trazem gado solto sem
pastor em lugares onde possam causar qualquer prejuízo aos habitantes ou lavouras,
providências de pastagem e descanso dos gados para o consumo diário, enquanto os
Conselhos os não os tivessem em terrenos próprios. Diretrizes para que existam os
matadouros públicos ou particulares, com licença das Câmaras, com cálculo do arroubamento
de cada uma rês, estando presentes os exatores dos direitos impostos sobre a carne. Venda
46
somente em lugares patenteados pela Câmara para que possa fiscalizar a limpeza e
salubridade dos talhos e da carne, assim como a fidelidade dos pesos. Proteger os criadores e
todas as pessoas, que trouxerem seus gados para os vender, contra quaisquer opressões dos
empregados dos registros e currais dos Conselhos onde os haja, ou dos marchantes e
mercadores deste gênero, castigando com multas e prisão, nos termos do título terceiro, art.
71, os que lhes fizerem vexames e acintes para os desviarem do mercado.
Toda a questão relativa ao gado, ao seu abate, comercialização e subprodutos como o
couro, mereceram grande destaque na Lei e, em São Luís, uma postura específica em 1882.
Tratava-se de uma questão genérica, que, provavelmente, enfrentou a maioria das cidades em
processo de urbanização. A carne bovina era um dos principais itens do abastecimento
alimentar e necessitava ser consumida fresca. Logo, os animais vivos tinham que estar o mais
próximo possível do mercado consumidor, porém, sem competir com o trânsito e a
urbanidade.
Em São Luís do século XIX, a solução foi instalar um grande matadouro público na
periferia, ao sul da cidade e conduzir o gado por estrada própria, criar lugares de comércio
apropriado e transferir a curtição de couros também para o matadouro, o que antes era feito
em diversas ruas. Medidas similares foram tomadas quanto àqueles que criavam animais em
seus quintais e os deixavam circular nas ruas e, o mais provável, é que esta prática de
pequenos criatórios de subsistência se afastasse das partes mais centrais da cidade. O artigo
151 da Salubridade dirá: fica proibido criarem-se porcos, vacas, carneiros e cabras nos
quintais e chãos dentro da cidade, sendo apenas concedido para uso doméstico uma vaca ou
uma cabra.
Dentre outras questões de competência das câmaras de que trata a Lei de 1828, e que
encontramos correspondentes posturas, há questões de construção, reparo e conservação das
estradas, caminhos, plantio de árvores para preservação dos seus limites à comodidade dos
47
viajantes, e das que forem úteis para sustentação dos homens, e dos animais, ou sirvam para
fabricação de pólvora e outros objetos de defesa; Poderem autorizar espetáculos públicos nas
ruas, praças e arraiais, uma vez que não ofendessem a moral pública, mediante alguma
módica gratificação para as rendas do Conselho, que fixariam por suas posturas; Cuidariam os
vereadores, além disto, em adquirir modelos de máquinas e instrumentos rurais ou das artes,
para que se fizessem conhecidos aos agricultores industriosos; Tratariam de haver novos
animais úteis ou de melhorar as raças dos existentes, assim como de ajuntar sementes de
plantas interessantes e árvores frutíferas ou prestadias (sic) para as distribuírem pelos
lavradores; Cuidariam do estabelecimento e conservação das casas de caridade, para que se
criem expostos, se curassem os doentes necessitados e se vacinassem todos os meninos do
distrito e adultos que o não tivessem sido, tendo médico ou cirurgião do partido. Para o
Código de 1866 temos: Todo aquele que recusar mandar vacinar as pessoas de sua família,
que ainda não o tiverem sido, quando for para isso avisado, pelo empregado respectivo, será
multado...(1866, salubridade, art.181).
Teriam inspeção sobre as escolas de primeiras letras e educação e destino dos órfãos
pobres, em cujo número entrassem os expostos; e quando estes estabelecimentos e os de
caridade de que trata o art. 69, se achassem por lei, ou de fato encarregados em alguma cidade
ou vila a outras autoridades individuais, ou coletivas, as câmaras auxiliariam sempre quanto
estiver de sua parte para a prosperidade e aumento dos sobreditos estabelecimentos.
Em suma, a estrutura em que se constituiu o código de posturas de São Luís de 1866,
não destoa muito da lei das Câmaras de 1828 e, em muitos casos, possui redação similar.
Mesmo artigos contextualizados somente na experiência da cidade, como proibição de fumar
diamba (maconha), ou fritar peixes nas portas das casas, se enquadra em aspectos como
ordem pública e salubridade.
48
Ainda assim, para provar uma certa circulação de regras para as cidades brasileiras,
correntes nas Câmaras do século XIX, não necessariamente inspiradas na Lei de 1928, vou
utilizar um trabalho sobre uma cidade de características sociais, econômicas e geográficas
mais distintas: A cidade de Campinas, emo Paulo. Trata-se do trabalho de José Roberto
Amaral Lapa sobre a cidade entre 1850-1900
49
, que tem como uma de suas principais fontes
primárias os códigos de posturas.
Faço por serem exemplos de duas cidades com características diferentes, inclusive a
geográfica, pois Campinas não é litorânea, o que em termos colonial e imperial tem grande
significado; e de gerações de ápices econômicos diferentes, visto que enquanto São Luís tinha
extraordinário acúmulo de capital já no início do século XIX, o que lhe permitiu significativa
renovação urbana, como prova a instalação de alto custo de galerias subterrâneas para
canalização de águas pluviais e captação de água potável, Campinas terá seu ápice econômico
na segunda metade do século XIX, com o plantio de café para exportação, que se dava na
região.
Entretanto, observando-se o que escreve Amaral da Lapa sobre as posturas municipais
do início do século XIX, 1829 e 1831
50
, vemos que não se distanciam muito do que foi escrito
para São Luís em 1866. A forma como são determinadas as aberturas de novas ruas e seus
consequentes espaços de circulação de veículos, flagrando a existência de uma tendência ao
urbanismo espontâneo, precedente não só nos dois casos, como tamm previsível para outras
cidades e vilas na Lei de 1828.
Lapa faz, por exemplo, uma associação direta entre formas de urbanismo e categorias
sociais. Para ele, o fato de não terem sido encontradas posturas do começo do século que
tratassem de passeios públicos ao lado das de trânsito de veículos, o que iria ocorrer a partir
49
LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. São Paulo: EDUSP,
1996.
50
ibidem, p.61-3.
49
da década de 70, significa a relutância da existência de uma ordem senhorial reformada,
enquanto que o urbanismo humanista corresponderia à ordem burguesa. A compatibilidade
entre animais, veículos e um personagem que se movimenta neste espaço: o pedestre, marcou
a mudança da ordem senhorial para a ordem burguesa
51
.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que a questão das calçadas já estava prevista na
Lei de 1828 e não significava novidade legislativa circunstancial, não obstante cada cidade ter
usado os artigos da Lei conforme as necessidades e poder financeiro disponível. Ainda assim,
a ordem civilizatória não é privilégio burguês e poderia ser instituída no campo senhorial,
como bem sabemos.
Um exemplo de ordens para as cidades brasileiras, independentemente de elas estarem
contidas em leis gerais, é a obrigatoriedade de se manterem as luzes dos corredores das casas
acesas para auxiliarem na iluminação das ruas, o que aparece tanto nas posturas de Campinas
quanto nas de São Luís; ou a proibição de se dobrarem sinos aos mortos, o que, pela
repetição, causava grande transtorno sonoro. A questão referente ao livro de Lapa está em não
tratar o assunto de forma comparada, ou fazer uma leitura linear entre a existência da postura
e possível comportamento social. Para estes casos, o melhor é comparar o cabedal legislativo
com o desenrolar dos fatos em outros documentos.
Não obstante, em regra, a rota de Amaral Lapa é profundamente significante para o
século XIX, pois se aproxima de quase tudo que está ocorrendo nas principais cidades
brasileiras, ou seja, um processo de urbanismo “higenizador” e “aformoseador”, que teria
como contraponto a produção dos espaços periféricos, aos quais ele chama de antros, mas que
também suprime velhas estratégias de sobrevivência dos oprimidos:
Esta é a cidade praticada, vivida ao arrepio das posturas, da vigilância, do poder público. A
cidade de cada um, que cada um procura viver à sua maneira, num jogo cotidiano de ludíbrio,
51
LAPA, op. Cit., p. 62.
50
ou confronto com a autoridade e a sociedade. Deste jogo acabam todos participando, mas é
claro que aos pobres e escravos ficam reservados os esforços e os riscos maiores, bem como as
menores possibilidades de compra, arreglo, tráfico de influências, suborno, defesa formal e
explícita contra os guardiões da lei e da ordem
52
.
É evidente para quem estuda o processo de participação e de uso da cidade pelos
trabalhadores africanos, que as posturas municipais tiveram papel central na reorganização
social. Ainda que muitas fontes sobre repressão da expressão festiva ou ajuntamentos de
escravos possam ser encontradas em jornais da época e em documentos policiais, são, porém,
as posturas que darão definitivo suporte legal dentro das cidades para o poder coercitivo agir.
Assim, sobre posturas e repressão, relata João Reis que:
Fosse pelo desejo de erradicar os “bárbaros costumes africanos”, fosse pela necessidade de
impedir que a festa servisse de pretexto para a revolta, a Bahia imperial buscou proibi-la por
meio de posturas municipais e editais da polícia. Essas leis serviam para disciplinar, controlar,
reprimir, sempre que necessário, a circulação dos negros pelos espaços públicos
53
Legislações semelhantes aparecem no código de posturas de São Luís de 1866, muito
provavelmente como reedição de posturas antecedentes: Os batuques e danças de pretos são
proibidos fora dos lugares permitidos pela autoridade
54
. Mas ao que parece, proibição de
batuques dentro da cidade era regra provincial desde os anos 1830 em diante, delegada à
execução das Câmaras Municipais
55
.
52
LAPA, op. Cit., p.124.
53
REIS, João José. “Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”. In:
CUNHA Maria Clementina P. (ed.) Carnaval e outras festas: ensaios da historia social da cultura.
Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 2002, p.115.
54
SÃO LUÍS, Código de posturas, op. cit., p. 43
55
ASSUNÇÃO. Matthias Röhrig. A formação da cultura popular maranhense. Algumas reflexões
51
Em suma, os estudos relativos à economia urbana, ao uso dos espaços e sociedade,
principalmente à segregação humana com a formação de periferias no século XIX, devem
levar em consideração como fonte as vereações das câmaras e os códigos de posturas, por
serem estes os principais responsáveis pelo ordenamento destes fatores, mas nunca perder de
vista uma ordem mais ampla pela qual o Brasil Imperial se regia, com as suas leis gerais e
provinciais, ou mesmo com o intercâmbio de regras, conhecimentos e legislação. Com isto,
não incorrer em erros de particularidades, sem, no entanto, desconsiderar o processo de
desenvolvimento de cada lugar, conforme fatores sociais, políticos e econômicos em curso.
preliminares. In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 14, agosto de 1999.
52
CAPÍTULO III
A nova ordem dos aparelhos urbanos
Faltando dezenove anos para o fim do século XIX, Aluízio de Azevedo publicou o
romance O mulato. Iniciou-o percorrendo os quatros pontos cardeais periféricos da cidade de
São Luís e suas associações com situações “degradadas”, ficando de fora a área central e bem
estabelecida. A leste: A praça da Alegria apresentava ar fúnebre; ao sul: ao longe, para as
bandas de São Pantaleão..; ao norte: da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade de
sons invariáveis...; a oeste: A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o
resto da cidade.
Este mapa descritivo de Azevedo, aqui parcialmente citado, da configuração espacial e
funcional da cidade - com propósito de revelar o quadrante precário de acordo com o uso -
começa a se configurar no início do século XIX, com a implantação de uma estrutura urbana
agressiva, que passa a incorporar centenas de moradias assobradadas, resultante da densa
penetração de capital, decorrente de atividades agrícolas e comerciais de que tratamos
anteriormente.
Rapidamente, vai se estabelecer uma disputa pelo núcleo espacial da cidade, onde a
ordem anterior, acomodada pela sociedade colonial, irá de encontro tanto com o novo padrão
de opulência, quanto com os novos valores da sociedade imperial no Maranhão. A cidade
sofrerá grande interferência classificatória, na qual os costumes da fase anterior serão
distinguidos por categorias - explícita ou implicitamente - como rurais e urbanas, salubres e
insalubres, confiáveis ou perigosas e, principalmente, decentes ou indecentes, humanas ou
53
brutais, que passarão a ter imediata repercussão na definição do caráter dos moradores e sua
“civilidade”.
Os usos habituais quando passam a ser inconvenientes, insalubres ou delatoras de
vilidade, sofrerão afastamento do eixo melhor estabelecido da cidade com as suas melhores
condições de construção, apartando-se dos lugares principais, entre eles o Largo do Carmo em
sua centralidade privilegiada; o promontório do poder, onde a cidade foi fundada, com a Casa
da Câmara, o Palácio do Governo e a igreja principal e os três principais corredores de ruas de
oeste a leste, Grande, Paz e Sol (Ver Planta 5), enquanto diversas funções encontram novo
lugar na ordem espacial e, na maioria dos casos, definem uma nova periferia que se estende
para as áreas baixas, de alagados, região das praias e portos, consolidando a topografia alta
como a de melhor estabelecimento. Nas palavras do geógrafo Lopes, no início do século XX,
sobre o avanço topográfico:
Tendo ocupado, a princípio, apenas a extremidade da chapada, a cidade progrediu depois pela
lombada principal, subindo por três longas ruas (bairro central). Expandiu-se, em seguida, para
os vales e apicuns vizinhos, êstes gradualmente conquistados do mar./ (...)/ Foi mais lenta a
edificação nas partes deprimidas intermédias e, nesse processo edificativo, partindo das
lombadas para as partes baixas, está evidente a influência do terreno na construção da cidade.
Reproduzindo aproximadamente os relevos, São Luís tomou a forma de uma dupla cruz./(...)/
O movimento habitual, assaz limitado, tem por coração o Largo do Carmo (Praça João
Lisboa), que centraliza a parte principal da cidade, ficando o entrocamento das vias dos bairros
antigos com os da lombada mediana./ É em tôrno dessa praça e nos trechos contíguos das ruas
de Nazaré e Grande, que estão comumente os órgãos da publicidade, os centros de diversões,
etc. É um cadinho onde se combinam os elementos diferenciados da vida urbana
56
.
Definido inicialmente este referencial de zona principal e zona de expansão,
avançamos pelo que nos informa duas plantas urbanas de São Luís que refletem a evolução
espacial da cidade de 1844 e 1912 (ver mapas III e IV), o suficiente para, no limite da minha
56
LOPES, Raimundo. Uma Região Tropical. Rio de Janeiro: Cia. Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 105-7.
54
pesquisa, entender a organização dos espaços na cidade. As plantas pemitem um
acompanhamento das referências textuais, como acima citado. Na de 1844, a cidade já tinha
passado por grande renovação urbana que iremos descrever, mais ainda não completado o
desmonte dos equipamentos que herdara desde a colônia. Na segunda, a de 1912 encontramos
os equipamentos e estrutura de que falam os documentos da segunda metade do século XIX.
Dos documentos, o principal no mapeamento de aparelhos e funções urbanas foi o
Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão, de César Marques, que contém
informações até o ano de 1870 (data da edição original). Informa, com base em Cartas Régias,
cartas-de-datas, documentos da Assembléia Provincial e, principalmente de Posturas
Municipais e Vereações
57
, o remanejamento dos lotes e espaços urbanos com suas respectivas
funções, principalmente aquelas que estavam relacionadas com os equipamentos da era
colonial, como o patíbulo, o pelourinho, a cadeia pública, cemitérios, hospitais, matadouro,
açougue, hospícios
58
, quintas e sítios rurais adjacentes ao centro, ao que se pode observar
como foi se configurando a nova concepção da cidade no Império nos aspectos sanitário,
médico, da ordem pública e do aformoseamento
59
.
57
MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. 3. ed., SUDEMA, São
Luís, 1970. Edição original de 1870. Pelo grande uso que faz dos livros da Câmara, a introdução de Antônio
Lopes, da edição de 1970, centra questão na municipalidade e nos livros.
58
Os hospícios construídos pelos jesuítas em áreas mais afastadas da cidade eram lugares destinados a doentes,
reclusos, doentes contagiosos e incluía os chamados “alienados mentais”.
59
O livro possui 634 páginas só na parte de dicionário, cada qual com duas colunas em letra arial nove,
provavelmente para evitar o volume. Exigiu um atento esforço investigativo, pois nem sempre se encontra o
assunto relacionado ao verbete e alguns interesses não possuem verbetes, mas estão diluídos. Uma alternativa
foi escanear e aplicar o programa OCR (Optical Caracter Recognition), mas não se consegue nessas condições
resultados além de 60%, e um razoável dispêndio de tempo, devido, inclusive, manchas do papel antigo. Além
do mais, o autor não é cronologicamente rigoroso com datas de um mesmo assunto e às vezes faz diversos
informes isolados. Além de tudo, escreve para os seus contemporâneos, supondo que muitas referências fossem
conhecidas previamente. Desta forma, o cotejamento com os mapas, livros da Câmara e o código de posturas
foi fundamental.
55
Neste caminho documental são relevantes os últimos códigos de posturas do século
XIX: o de 1866 complementado pelo de 1882, que, junto com o de 1891, formam uma
unidade no livro de posturas da Câmara
60
, pelo que revela do cotidiano da cidade e a forma
como se desejava legislar sobre ele, ou planejar seu futuro.
A eficácia da leitura dos códigos constitui-se em ver as práticas na sua proibição,
compreendendo em primeiro plano que se legislava sobre os costumes conhecidos e
circunstâncias plausíveis de ocorrer, e nunca os imaginários, sem perder de vista, em segundo
plano, a legislação imperial mais geral, de que tratamos no capítulo anterior, o que pode ser
balizado pelo surgimento de referências diretas a lugares conhecidos da cidade, além do que
contém de planejamento futuro com as expressões “de agora em diante” ou “seis meses após a
promulgação desta postura”. Assim, reprimir pode significar corrigir; a maioria dos artigos
não incide sobre a anormalidade, o excepcional, implicando, na maioria dos casos, em antigos
costumes, agora confrontantes com a nova ordem pretendida. Dito isso, passemos à evolução
do plano citado acima por Raimundo Lopes e suas funções.
No início do século XIX, as principais obras da cidade se destinavam a consolidar as
áreas residenciais e de circulação da topografia alta (mapa V). Com um volume de chuvas
típico da região amazônica, com grande intensidade nos seis primeiros meses do ano, e sua
área central posta praticamente em uma península em relação à ilha, a cidade literalmente
escorria para as beiras à medida que a ocupação e o desmatamento se intensificavam,
causando prejuízo de mão dupla, com a danificação do calçamento e o assoreamento dos
portos.
Aparecem seguidamente os autos de arrematação de obras das galerias subterrâneas
nos livros da Câmara. É uma infra-estrutura de grande monta destinada a conter e canalizar as
águas com obras nas ruas onde o declive acentuava. Rua dos Covões (atual Rua de Santana),
60
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Código de posturas de 1866, 1882, 1891. O código de 1866 foi publicado
separado nas Leis da Província, dos outros dois, apenas conheço a versão do original manuscrita.
56
Rua das Violas, na proximidade da Fonte do Ribeirão, Rua de Santo Antônio, ao lado do
convento de mesmo nome. Cito um auto, traduzido, que representa um padrão de referência,
para que se entenda a dimensão dos recursos envolvidos naquele momento.
Deveria o cano geral passar pela Rua dos Covões, que era do limite Sul da topografia
alta, atualmente Rua de Santana. Deveria iniciar desde a Rua Formosa, uma perpendicular
próxima ao Largo do Carmo e, em direção leste chegar à Rua dos Ferreiras, regulando o cano
conforme a medida em libra que for necessária, ou seja, ora mais grosso, ora mais fino, mas
terá uma medida definida no lugar em que as águas despejam. Algumas medidas têm de ser
respeitadas. O cano não terá mais de 1,32m de largura e 1,78m de altura. Toda a sua base
deve ser feita com lage e o corpo do arco não pode ter menos que 66cm de largura, para poder
suportar o peso do entulho, que deve ficar 1,78m para cima. A soma da altura do cano com a
altura do aterro acima deveria chegar até 3,96m ou até 4,4m, nos lugares onde há mais
declive. Tal declive deve ser suave, aterrando ou rebaixando onde for necessário. A superfície
da rua deve ser medida pela Rua Grande (paralela mais alta) e depois calçada com Lages ou
pedras grandes, de 44cm
2
.
61
A realização de tais obras subterrâneas, com as dimensões referidas, pode ser
confirmada in loco em São Luís. Um sofisticado sistema de captação de águas pluviais foi
revelado pelos serviços de restauração e revitalização do Bairro Praia Grande. As águas são
captadas desde a rua limítrofe da parte alta, na Rua da Palma e desce por galerias debaixo do
61
Texto original: “(..). rua dos cavoens, dando princípio na rua formosa no canto de Bernardo Rodrigues Lima
athe encostar com a rua dos Ferreiras, sem do [...] os dois lados de grossura que exigir a libra honde for ,
principalmente no (?) honde terá para despedição das agoas hum como faziha do de (?) e mais não será de seis
palmos de largo e oito de alto asdigo, digo se (?) toda a sua base com lage tendo a o corpo deste mesmo cano
pelo menos três palmos, para a sua poder com o pezo do entulho, que deve subir lhe oito palmos sobre o
mesmo arco, que com altura desta chega dezoito the vinte palmos, que contudo fica sendo o lugar mais banho
de soa(?) fizer com declive suave, sendo aterrada quanto necessário for, rebaixando-se e entulhando-se, sendo
acabada do modo que dê (?) despedição as agoas que (?) eber, que devem desagoar pelo outro, lugar que fica
sobre o referido como medida a superfície pella rua grande (?) sendo calsadas com lages o pedras grandes, de
dois plamos quadrados”. SÃO LUÍS, Senado da Câmara, Livro de Registros Geral, 1766-1839, p. 202-208.
57
casario e ruas baixas, desembocando no Rio Bacanga e permitem a passagem de pessoas, em
alguns trechos (1,8m).
O urbanista Olavo Silva no trabalho Arquitetura Luso-Brasileira no Maranhão não
duvida por critérios técnicos e documentais da datação dos sistemas de melhoria urbana,
atribuídos ao Império:
No Império, São Luís experimentou um grande crescimento: Apareceram melhorias nos
serviços de infra-estrutura, elevando o nível de conforto do hábitat urbano e despertando nos
proprietários rurais o interesse pela capital. Serão dessa época as galerias subterrâneas, que a
história oral vincula a esconderijos de religiosos, mas, segundo levantamentos do Projeto
Praia Grande, um ousado sistema de captação de águas pluviais, com trechos de até 2 m de
altura e extensa ramificação cruzando quadras do centro antigo. Em 1856 iniciava-se a
instalação pela Companhia Anil, de chafarizes públicos com água canalizada do Rio Anil.
58
Em 1825 teve início a iluminação pública com uso de lampiões a óleo. Desta época
ainda são encontrados uns poucos suportes de ferro batido para candeeiros em sacadas ou
cunhais. Posteriormente foram substituídos pelo álcool terebintinado e, em 1863, pelo
hidrogênio
62
.
Aos poucos, a infraestrutura implantada consagrou o trecho principal e secundário da
cidade, que coincide com desenvolvimento urbano, que cita acima o geógrafo Raimundo
Lopes. Os sucessivos deslocamentos de atividades que não se comportavam com os novos
critérios de urbanidade e civilidade, visariam principalmente valorizar esse trecho, passando a
ser exercidas nas regiões imediatamente periféricas. Isso se comportou de forma paralela a um
desmonte de estruturas coloniais, que já se vinha processando. Iniciarei por um equipamento
que teve função primordial no período colonial, mas que se tornara obsoleto e inadequado no
lugar original, o quartel.
O quartel dos governadores, em frente à Baía de São Marcos, no Largo, ponto
fundamental do poder, onde estavam a Casa de Câmara e Cadeia, a morada dos Capitães
Governadores e o templo católico principal, a Sé, teve que ser um dos primeiros desmontes de
equipamento construídos para o tempo colonial em São Luís. No princípio, todos esses
instrumentos eram abarcados pelo perímetro da antiga fortaleza que ali existia, local de
fundação da cidade, como um conjunto da defesa, ao mesmo tempo abrigo de uma acrópole,
encima de um promontório.
A relação direta entre governo e quartel se dava fundamentalmente por ser o
mandatário um capitão-general, que não possuía status político civil e deliberava quase tudo
através da Câmara da Capital (como foi regra no Brasil). Apesar de a casa do governador ter
passado por várias reformas de ampliação, somente em 1771, no período do Governador
62
SILVA F. Olavo Pereira Da. Arquitetura Luso-Brasileira no Maranhão. Belo Horizonte: Formato, 1998, p.
29.
59
Capitão-General Joaquim de Melo e Póvoas, foi mandado reconstruir para oferecer melhores
condições de palácio, em época que prosperava a economia do Maranhão.
O palácio viria se especializar em lugar de pompa e cerimônia civis, ao tempo em que
a barra em frente à Baía de São Marcos deixava de ser estratégica à segurança como fora, pois
as primeiras forças militares tinham como principal missão conter invasões estrangeiras que
por ali chegavam embarcadas. Além disto, tanto a função militar quanto o caráter da
segurança haviam mudado: o governo era então mais civil e administrativo, e as ameaças,
provenientes principalmente de questões internas, com relatos de “bárbaros” do interior da
ilha fazendo passeatas violentas e entrando no perímetro urbanizado da cidade, deram razão
ao novo posicionamento, que passou a ser na entrada da cidade por terra. Assunção cita
Dunshee de Abranches o seguinte trecho referente ao início do século XIX :
O Governo prohibira os fógos e destacára forças para que os bandos tradicionais de Bumba-
meu-boi não passassem do areal do João Paulo. Apesar dessas ordens rigorosas, na
noite de 23 de Junho [de 1823], armados de perigosos busca-pés de folhas de Flandes e de
carretilhas esfusiantes, grupos de rapazes, inimigos ferozes dos puças, affrontaram a
soldadesca até o Largo do Carmo, onde dançaram e cantaram versalhadas insultuosas contra
os portugueses, através de um verdadeiro combate de pedras, pranchadas e tiros de toda a
espécie”
63
.
Por carta régia de 27 de junho de 1792, foi autorizada a construção do novo quartel e
executada e cumprida em 1793 pela Portaria da Junta da Fazenda. Na construção, foram
usadas muitas pedras de cantaria de Portugal, uma obra muito cara e faraônica que envolvia
interesses para além da segurança, tendo levado mais anos do que os necessários para ser
63
ASSUNÇÃO. Matthias Röhrig. A formação da cultura popular maranhense. Algumas reflexões
preliminares. In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 14, agosto de 1999. A matéria citada é:
ABRANCHES, Clóvis Dunshee de. A setembrada e a revolução liberal de 1831 em Maranhão. Jornal do
comércio 1933, Rio de janeiro, arquivo nacional.
60
terminada e chegou a produzir prisões por superfaturamento. De acordo com César Marques
foi o primeiro quartel regular do Brasil
64
O quartel foi implantado no limite oeste da área urbana da cidade, onde até então só
havia propriedades rurais. Na topografia é continuidade da área mais alta da cidade e fica no
entremeio da última perpendicular da “cruz dupla” de que fala Raimundo Lopes (v. mapa V),
divisor de duas regiões de ocupação tardia e funções inversas no século XIX, a região dos
Remédios (Norte na planta) e a Região de São Pantaleão (Sul na Planta).
O Largo do Quartel e sua continuidade topográfica em direção ao Rio Anil tornaram-
se uma reserva para as elites melhor estabelecidas, que no último quartel de século XIX e
inícios do XX construíram em seu redor casas bem estruturadas, que passaram de sítios a zona
de desenvolvido urbanismo. Basta lembrar que ali em frente, o chamado Campo do Ourique
constituía, no código de posturas de 1866, um dos limites do urbano, a última periferia de
quem vinha do Caminho Grande e tinha que descarregar suas mercadorias conduzidas em
carros de boi, para não percorrer as ruas da cidade.
No lado esquerdo e mais deslocado para o caminho principal, estava a antiga Quinta
das Laranjeiras, com uma capela própria e um portão com brasão de nobreza da família de
Bagé, proveniente do Rio Grande do Sul
65
, este ainda existente
66
. As quintas também se
64
MARQUES, César, op.cit, p.430.
65
Paulo José da Silva Gama, 2º Barão de Bagé. Nascido em 30 de abril de 1782, era filho do Governador e
Capitão-General Paulo José da Silva Gama, 1º Barão de Bagé. Veio para o Brasil na esquadra que trouxe a
Família Real. Depois de ter sido Ajudante-de-Ordens de seu pai no Governo do Rio Grande do Sul, chegou ao
Maranhão no desempenho do mesmo cargo, ainda com seu pai, conforme Carta-Patente de 26 de junho de
1811. Aqui viveu por muitos anos e aqui participou ativamente de quase todos os acontecimentos mais notáveis
durante largo período, tendo, inclusive, conspirado contra os inimigos da independência na Província. Morreu
aos 86 anos, em 28 de fevereiro de 1868. A Baronesa Dona Maria Luíza do Espírito Santo e Silva, filha do
Alcaide-Mor José Gonsalves da Silva e de Maria Josefa da Anunciação da Silva, natural do Maranhão, era
herdeira do Morgado da Quinta das Laranjeiras, instituído em 20 de janeiro de 1812. Nota de rodapé em:
SILVA, Luís Antônio Vieira. História da Independência da Província do Maranhão 1822/1828. Rio de
Janeiro: Companhia Editora Americana, 1972, p.95.
61
tornaram reservas para futuros lotes habitacionais ou aparelhos urbanos. Das conhecidas
neste trabalho, a das Laranjeiras foi das poucas que não foi fracionada para dar lugar a outros
usos, principalmente de loteamento para moradias populares. A este eixo chamo Quartel-
Laranjeiras.
Em 1863 o quartel continua a gastar do cofre público, para tornar-se mais pomposo e
acompanhar a elegância com se reconstruiu na cidade alguns edifícios mais nobres, em época
de maior expansão da pompa das elites, como o Teatro São Luís (posteriormente Artur
Azevedo). No suntuoso portão de frente foi assentada armas brasileiras, abertas a cinzel em
mármore com dístico, e iniciada a iluminação a gás. Para se ter uma idéia da obra, César
Marques anotou as seguintes informações do prédio que foi reconstruído
67
.
Em frente do portão da retaguarda está uma pirâmide de mármore branco raiado de azul, de
quatro faces, 15 palmos de altura, apoiado sobre quatro esferas, que descansam sobre um
plinto superior e um pedestal de ordem coríntia, assentado em três séries de degraus, que se
desenvolvem no sentido dos quatro rumos gerais do globo. A elevação desta pirâmide é de 36
palmos. Numa de suas faces estão as armas brasileiras primordialmente abertas em relêvo, e,
na face do pedestal, correspondente às armas... <uma inscrição>
68
.
Diferente do quartel, que, apesar de destinado à repressão e contenção de rebeldias,
não interveria como “peça suja” ou indesejável para os grupos bem estabelecidos e os no
poder, outros aparelhos e funções da cidade pareciam incomodar quando se tratou de construir
uma nova ordem para a cidade.
O primeiro embaraço dos grupos dirigentes para conciliar a idéia de um avanço na
concepção civilizatória local, que passava pela violência com o corpo, o castigo público e a
exposição do flagelo do indivíduo, que tomava formas diferentes por todo o século XIX,
66
Atualmente abriga o Colégio dos Irmãos Maristas, que já foi um dos mais preferidos pela elite local.
67
inexplicavelmente se encontrava em ruínas já na década de 20 do século XX.
68
MARQUES, César, op. cit., p. 431.
62
esteve relacionado com o patíbulo. Instrumento presente desde os primeiros tempos
coloniais, já pertencia aos “lugares infames” da cidade e, em 1815, encontramos notícia de
seu deslocamento, por ordem do Tribunal da Relação, de um ponto já extremo da cidade,
quase fim da atual Rua da Paz
69
, para um ponto ainda mais extremo, num largo, onde é a atual
Praça da Alegria, que era conhecida como Largo da Forca Velha.
Entretanto, em pouco tempo, a própria praça começou a agregar funções assessórias
dentro do eixo central, abrindo nova discursão sobre aquele equipamento macabro de
enforcamento. Em 1829, a Câmara Municipal fez adequação do Largo para funções
periféricas melhor relacionadas com o urbanismo, um mercado de frutas e hortaliças e
gêneros chegados dos sítios do Caminho Grande para o abastecimento da cidade. Assim, a
Câmara esteve:
Reivindicando-a como propriedade sua. E pedindo a transferência do patíbulo dali para outra
parte, obrigando-se a conceder lugar próprio ao semelhante fim nos subúrbios da cidade e ou
fora dela, “quando se não achar melhor um cadafalso volante”
70
.
Dos locais sugeridos para deslocar o patíbulo, estavam os fundos da Quinta do Barão
de Bagé, caminhando cada vez mais para a periferia sudeste. De outras soluções não
conhecidas para aquele (agora) detestável símbolo da cidade, que ficou também como
lembrança de heroísmo. por conta do enforcamento de Manoel Beckman, quando se
posicionava originalmente na Praia do Armazém (atual Beira Mar). Enfim, optaram por não
ter lugar definido de patíbulo, tornando-o móvel, permanecendo guardado no Arsenal da
Marinha na Praia Grande, a ser usado em local designado para a pena.
Desta forma, o patíbulo moveu-se da Periferia leste para a do oeste, não sendo
respeitável tê-lo nos lugares transitáveis e de usos urbanos. Semelhante constrangimento às
69
MARQUES, César, op. cit., p. 481.
70
ibidem, p. 542.
63
autoridades da cidade deu-se com o pelourinho, mesmo sendo ele parte integrante dos
mecanismos simbólicos de poder, ainda assim, instrumento da crueldade pública e instituída,
o que talvez se explique a dificuldade de manter a tradição.
Quanto à Praça da Alegria, no limite Leste, seria incluída no território de apoio à zona
central da municipalidade e poderia ser abarcada no eixo São Pantaleão, de que falamos.
Quando a câmara decidiu tornar a Praça do Comércio, na Praia Grande mais higiênica,
utilizou-se do código de posturas para que ela e outras periferias se tornassem alternativas
para a venda a grosso:
Fica prohibida a venda em grosso de legumes frescos, aves e frutas na praça do comércio e
ruas circunjacentes e a retalho estacionada delles, nestes, digo, nestas e nas demais ruas e
praças da cidade menos na Praça do Mercado, d’Alegria e Santo Antônio; e de facto <fato de
boi> ou de ventre que não sejam na do Mercado
71
.
Na última década do século, em seu romance realista, Aluízio de Azevedo descreve a
Praça da Alegria ainda com essas funções periféricas:
A praça da Alegria apresentava ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouvia-
se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada , de mulher,
cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada
por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de
mosca, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração”
72
.
Uma peça paradoxal para a cidade foi o pelourinho, que se interpôs na contramão das
modas civilizadoras de uma sociedade escravista em São Luís, e persistiu no decorrer do
século XIX, mesmo sob polêmica, no Largo do Carmo, mais notável do ponto de vista do
convívio social. Também último aparelho das funções coloniais a ser removido, desafiou,
71
Código de posturas, op. cit., p.16.
72
AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 199, p.15.
64
enquanto pôde, a tentativa de uma ordem de aparente aspecto europeu, que tentava impor
uma elite educada.
A cidade, mesmo tendo sido construída em bases clássicas portuguesas, não contou,
desde a fundação, com este símbolo de autonomia e justiça, muito provavelmente por conta
de um planejamento urbano imbricado com o urbanismo espanhol
73
. Há reclames sobre o fato
de a cidade não possuir aquele instrumento de justiça, como os de Bernardo José da Gama,
em 1813, que fora Ouvidor e Juiz de Fora no Maranhão: Não há hum Pelourinho (coisa
incrível) posto que a Câmara tenha de rendimento mais de treze mil cruzados anuais
74
.
Se, por um lado, não havia pelourinho onde se fizesse a justiça pública, no
entendimento da época, por outro, Gama considerou detestável a forma como se exercia a
autoridade nas relações privadas, com espancamentos dos submissos e palmatórias
domésticas, numa demonstração de vergonha com o castigo em praça, contudo de nenhum
pudor em privatizar os castigos.
César Marques, contemporâneo da escravidão e do pelourinho, apesar de sensível à
causa da abolição, não tinha um julgamento apropriado sobre aquele símbolo, chegando a
dizer sobre a sua fundação: “parece-me esta a verdadeira época da colocação deste triste
monumento”, demonstrando desconhecer sua função pública, inclusive para além de
instrumento de justiça, como instrumento de autonomia da cidade (originalmente significava
que o rei havia cedido a sua mais sagrada prerrogativa, a de juiz).
Quando alguém era publicamente submetido a chibatadas, sabia previamente o
número delas, decorrente da lei que institui o castigo pelo delito cometido, e tinha a todos os
73
Defendemos essa tese em colóquio na cidade de Coimbra. MARTINS, Ananias Alves. São Luís e Alcântara
na estratégia território-colonial. In: Atas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português 1415-
1822. Lisboa: CNCDP, 2001.
74
GAMA, Bernardo José da. Informação sobre a Capitania do Maranhão dada em 1813 ao Chanceler
Antônio Rodrigues Velloso. Viena D´austria: Impresa do filho de Carlos Gerold, 1872, p.15.
65
presentes como testemunhas. De outra forma, a existência de pelourinho demonstrava a
existência de autoridade pública local.
Em 12 de novembro de 1720, o Governador D. Fernando Pereira Leite de Foios por
Provisão Régia registrou estar admirado em ver pela primeira vez uma cidade portuguesa sem
pelourinho
75
. Pelos levantamentos documentais de César Marques, no Dicionário histórico e
geográfico, somente em setembro de 1815 foi erguido o pelourinho no Largo do Carmo, para
castigar os delinquentes, justamente na mesma data em que o patíbulo era afastado ainda mais
para a periferia.
A Praça do Carmo não era exatamente o local funcional e simbólico para o pelourinho,
pois não estava ali a referência principal do poder. A rigor nas cidades portuguesas, o
pelourinho era instalado em frente à Casa de Câmara e Cadeia, compondo um conjunto, como
ainda hoje pode ser visto no cenário da cidade de Alcântara, no Maranhão. Desta forma,
houve alguns pedidos de remoção do pelourinho daquele lugar, após a sua edificação, em
épocas distintas. Alguns desejavam pô-lo no “lugar correto”, no pátio da cadeia pública, junto
à Câmara, como consta na correspondência e 1879:
A Câmara Municipal da capital, accusando a recepção do officio que V. Ex.a se dignou a
dirigir-lhe em data de 12 do corrente, determinando a remoção para o pátio da cadeia pública,
do pelourinho, que se acha no Largo do Carmo; tem a honra de trazer ao conhecimento de V.
Ex.a que em data de 15 de março de 1865, esta Câmara dirigiu-se à Presidência da Província,
pedindo auctorisação para fazer semelhante remoção, o que não conseguio por declarar a
mesma Presidência da Província em officio de 22 do dito mês, sem desconhecer as vantagens
que haveria na remoção proposta, não podia assentir ao pedido da Câmara
76
.
A presidência alegava que a remoção seria cara e que implicaria praticamente em uma
demolição, além do mais, o pelourinho era “um próprio nacional” e nessa condição não
75
MARQUES, op. cit., p.430
76
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de registro de correspondência, 1877-1881, p.19.
66
poderia ser alienado. O pelourinho era instrumento e símbolo da justiça e compunha o
cenário das cidades portuguesas, juntamente com o executivo-legislativo, representado pelo
Senado da Câmara.
Essa relação com o pelourinho continuaria complicada para os humanistas, os
abolicionistas e a elite mais europeizada, à medida que o século findava. Dunshee de
Abranches, político abolicionista, oriundo das ricas famílias maranhenses, em seu livro de
histórias vivenciadas, publicado em 1942, deixou claro que os instrumentos públicos de
tortura não eram bem vistos pela classe dominante naquela época, pois estariam relacionados
com os baixos costumes coloniais, não mais condizentes com o Segundo Império:
Nos meus onze para doze anos <1879 ou 1880>, felizmente, quando comecei a interessar-me
pela causa dos cativos, estes três instrumentos de suplício: o pelourinho, o tronco e a forca, já
não mais funcionavam em Maranhão. A pena de morte, em vigor no código criminal, estava
virtualmente abolida pelo recurso de graça ao imperador que comutava em galés perpétua. A
de açoites pode dizer-se, só era então usada nos quartéis e nos navios de guerra. Suavizavam-
se assim, pouco a pouco, os baixos costumes coloniais. Os troncos foram ficando esquecidos
nos porões e nos baixos dos grandes palacetes, assinalados por frades de pedra nas entradas, e
dos vastos sobrados de paredes que eram perfeitas muralhas de fortalezas.
E adiante:
Ao enfrentar o pelourinho, sentia no coração revoltado o desejo de vê-lo um dia derrubado.
Esse ominoso monumento colonial era para mim uma mancha desonrosa no centro principal
de uma cidade civilizada. Mais de uma vez o velho Januário me garantira que , acerca (sic) de
trinta anos, não se castigava ali mais os negros. Januário era o popular guardião do Teatro São
Luís, fronteiriço da minha residência
77
.
Na melhor das hipóteses, se o informante de Abranches tem razão, o pelourinho
funcionou ativamente até os anos cinquenta do século XIX, mas sobreviveu como símbolo
dos procedimentos coloniais entre o Largo do Carmo e a vizinhança do teatro das elites e,
77
ABRANCHES, Dushee de. O cativeiro. São Luís: ALUMAR, 1992. p. 35-6. Grifos meus.
67
pelo visto, repudiado, não por praticar castigos, que se fazia no âmbito privado, mas por
expor o atraso do segmento dominante mais refinado.
Astolfo Marques, que presenciou e documentou a derrubada do pelourinho em 1889,
por ocasião da república, também tinha dúvidas entre as suas duas funções conhecidas, a de
instrumento de repressão e castigo e a de símbolo de vila e cidade, cabeça de termo. Tendo
sido símbolo tardio em São Luís, tornou-se o último instrumento de crueldade escravocrata a
desaparecer, apesar de sua localização, causando constrangimento à sociedade que, há algum
tempo, vinha afastando da vista pública e dos lugares principais a face atrasada e pouco
civilizada de si mesma
78
.
Nas práticas coloniais, a cadeia estava associada ao pelourinho, ambos como
instrumento de justiça, que compunham, em regra, unidade com a Câmara, na Casa de
Câmara e Cadeia, existente em São Luís no mesmo Largo do poder de que falamos acima,
marco inicial da cidade. Como o pelourinho não se encontrava instalado ali e o quartel havia
se deslocado para a entrada do núcleo principal da cidade, desde 1830 as autoridades
municipais tinham levado a cabo o projeto e a planta de transferir a cadeia para uma periferia
distante, provavelmente por já causar constrangimentos aos transeuntes no principal eixo de
circulação das autoridades políticas, econômicas e eclesiásticas.
O terreno escolhido foi em uma das extremidades da cidade, por trás da Igreja dos
Remédios, em um campo amplo, onde havia existido rancho de escravos da fazenda de
Manoel José Medeiros, senhor da Quinta do Marajá, estendida por todos os lados até a beira-
mar
79
, eixo periférico que denomino Jenipapeiro - Remédios, até então dividido entre a
atividade rural e a aldeia de pescadores, na praia.
A construção foi contratada em 23 de julho de 1834; o plano alterado em 1836; tendo
a obra sofrido paralisação em 1842, por não comprimento do contrato pelo empresário
78
MARQUES, Astolfo. A nova aurora (novela maranhense). São Luís: TIP. TEIXEIRA, 1913, p.55.
79
MARQUES, César. op. cit., p.163
68
arrematador, mais uma vez demonstrando alto nível de corrupção, que deveria circular entre
os senadores da Câmara e os empresários arrematadores, semelhante ao que ocorreu na
construção do quartel.
Somente em 1855, por ordem do Governo da Província, entrou em cena a
Administração das Obras Públicas, que concluiu o edifício, o que acaba coincidindo com o
período mais “elegante” da sociedade local em seus principais espaços de circulação, apesar
de o projeto ter-se iniciado na primeira metade do século. Naquele ano foram os presos
transferidos para a nova cadeia, já no limite do esgotamento do modelo implantado para a
colônia. “Em ordem de fazer-se para ali a transferência dos presos, que existiam na cadeia,
então nas grandes lojas do Paço da Câmara”
80
. Seguiram-se alguns melhoramentos e
humanização com construção de capela e enfermaria.
A capela era denominada de São Luís, Rei de França e, desde 1808 era peça integrante
da Casa de Câmara e Cadeia, que servia aos presos e vereadores. Com a transferência para a
nova capela da cadeia, concluída em 1856, foram também cedidos ícones da cidade: as
imagens de Nossa Senhora da Vitória, do Senhor Crucificado, de São Luís Rei de França
(padroeiro) e de São Sebastião
81
. Aparentemente, coincide com um certo abandono da relação
direta entre São Luís padroeiro e as “origens francesas” da cidade
82
.
80
MARQUES, César, op. cit., 163
81
LOPES, Manuel. Breve histórico do Palácio La Ravardiére. São Luís: SIOGE, 1987, p.7.
82
Quando Lacroix trata do mito da fundação francesa de São Luís diz terem os portugueses ignorado qualquer
referência à França como fundadora por não ter encontrado essa referência em registros que pesquisou até o
ano de 1896
82
e que fora fruto de um elitismo em decadência: “Até 1896, nenhum jornal ou outra qualquer
publicação destacou o 8 de setembro como data memorável pela fundação de São Luís. Os Almanaques da
Província consideram a fundação da cidade após a fundação dos franceses. Não existe um verbete França
Equinocial nem outra referência à fundação francesa de São Luís no Dicionário Histórico Geográfico da
Província do Maranhão, de César Marques. João Francisco Lisboa, comparando as invasões francesa e
holandesa, observou que “a francesa é apenas conhecida dos homens de letras, e, como a holandesa, não vive
na memória do povo LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus
mitos. São Luís: Lithograf, 2002, p. 121.
69
Entre as mudanças na ordem da cidade no século XIX, no sentido de criarem-se
zonas especializadas e separar-se do convívio social funções indesejáveis, insalubres ou de
exposição da violência, as mais significativas foram as destinadas à segregação sanitária e
médica, principalmente no que diz respeito aos enterramentos, tanto de pessoas quanto de
animais.
A questão dos cemitérios é peça chave na nova ordem. A cidade seguiu o mesmo
sistema lusitano e europeu de enterramentos dentro dos templos católicos ou em cemitérios
construídos na parte externa. Também era comum que os nobres e “bons” da província
tivessem lugar dentro do templo, enquanto toda demais gente ficava nos enterramentos
externos do adro. Conforme testamentos conhecidos, os enterros nobres foram bem
recompensados, doando o testador considerável fatia de seus bens para a confraria religiosa
junto à qual seria sepulto
83
.
Não demoraria a que novos conceitos de higiene fossem adotados em São Luís no
final do século XVIII e início do XIX, definindo durante todo este século usos dos espaços
urbanos de forma especializada, incluindo o isolamento dos corpos em decomposição.
Escreve César Marques sobre a primeira ocorrência dessa preocupação:
Em 25 de abril de 1788 o Capitão-General Fernando Pereira Leite de Foios oficiou à Câmara
dizendo que “como todos os corpos se dão sepultura no estreito recinto do adro da Matriz da
mesma capital, sucedendo encontrar-se ao abrir das sepulturas vestígios de não estarem bem
consumidos os cadáveres”, aconselhava ele que, à vista da presente epidemia de bexigas, em
que se tem perdido infinitas pessoas, elegesse um sítio e terreno próprio para um cemitério, e
cercá-lo de madeira, , ficando em estado de se poder benzer e habitar para sepulturas de
católicos
84
.
83
Ver: MOTA, Antonia da Silva; Mantovani, José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto maranhenses e seu
legado. São Paulo: Siciliano, 2000.
84
MARQUES, César. op. cit., p.192.
70
Nos mesmos informes, um primeiro cemitério foi construído em 1804 em um terreno
da Santa Casa da Misericórdia, no final da Rua Grande de frente para a Rua do Passeio
(transversais), ou parte leste nos limites da área urbana, pertencente à Santa Casa de
Misericórdia. No mesmo corredor da Rua do Passeio, caminhando para o sul, e ao sul da
Santa Casa de Misericórdia, se estabeleceu naquele ano de 1804 um cemitério para pobres e
escravos.
Em 29 de dezembro de 1804, D. Antônio de Saldanha da Gama participou para a Côrte que
em observância à Carta Régia de 14 de janeiro de 1801 tinha mandado edificar um cemitério,
onde seriam enterrados os cadáveres de toda a escravatura e mais gente pobre ou morta no
Hospital, proibindo expressamente que se continuasse a enterrar nos largos das igrejas, e beira
de estradas, como até aqui se fazia
85
.
A Santa Casa de Misericórdia, localizada no corredor da Rua do Passeio, periferia da
cidade durante praticamente todo o século XIX, marco entre a cidade residencial e diversas
quintas e sítios que a cercavam entre o leste e o sul, funcionava como “secretaria social” da
população ludovicense. Desde 1776, quando foram estabelecidas suas atividades, passou ela a
fazer assistência aos excluídos, com hospital, casa dos expostos, casa para os presos que
recebiam assistência médica, cemitério, este em funcionamento entre 15 de janeiro de 1805 a
6 de abril de 1855
86
.
Em 1829, houve uma tentativa de reestruturar os cemitérios dentro da cidade, com os
terrenos que os templos e seminários católicos possuíam. Uma comissão da Câmara foi
organizada para isto, tendo designado vários terrenos contíguos a elas. Contudo, César
Marques informa que tal não ter sido executado, lembrando que, em seu tempo, apenas havia
notícias de um cemitério abandonado junto ao convento de Santo Antônio. Considera que a
solução dada pelo cemitério da Misericórdia tenha sido satisfatória nos primeiros tempos.
85
MARQUES, César, op. cit., p.193.
86
ibidem, p. 193 e 481.
71
Quando a Irmandade dos Passos solicitou a abertura de um cemitério sob a sua tutela
em 1841, iniciou-se um prolongado debate médico e sanitarista que iria definir de vez a
especialização espacial do Sul da cidade para a exclusão sanitária e dar diretrizes para o
código de posturas de 1866. O terreno escolhido foi uma quinta (Quinta do Machadinho), no
caminho que saía da cidade para o interior da Ilha, lado Leste, a princípio uma gleba afastada.
Mesmo assim, surgiram boatos de que o cemitério, já em fase de construção, seria prejudicial
à saúde pública. A Câmara, então, nomeou uma comissão formada por médicos para dar um
parecer sobre condições do terreno e localidade, saindo o seguinte parecer:
Éste edifício de forma quadrilonga, de dezoito braças de largo sobre quarenta de comprido, de
uma arquitetura simples e agradável, é mais um monumento solene, que atestará aos nossos
vindouros e gênio empreendedor da nossa época. Acha-se situado em uma vasta planície junto
às fraldas do outeiro denominado - Alto da Carneira, - tendo à sita frente (norte) o Caminho
Grande, do qual se acha arredado cêrca de vinte braças, por de trás (sul) o Apicum, ao lado
esquerdo uma grande parte da cidade, ao lado direito a continuação da estrada e terras
adjacentes. / Um espêsso e sombrio bosque o envolve lateral e posteriormente, convidando
assim à meditação, e desenvolvendo por tal guisa sentimentos tristes e piedosos nos ânimos
dos visitantes, sem contudo impedir o acesso de ar suficiente para expelir os elementos
deletérios que ai aparecem. A sua posição geográfica portanto não pode ser mais útil e
sàbiamente escolhida./ O terreno sobre o qual ele está construído é bastante sêco e arenoso, e
possui todas as condições químicas necessárias para retardar a fermentação pútrida ou
amoniacal, isto é, a putrefação dos cadáveres, o que não permite tão fácilmente a acumulação
dos vapõres e gases que soem formar-se em casos tais. A noculdade ou inocuidade das
emanações pútridas sendo uma questão puramente de concentração, só aspirando diretamente
as exalações cadavéricas é que poderão haver lugar alguns acidentes fatais./ Coríon
inclinando-se sobre o cadáver na ocasião em que se fazia uma observação na Faculdade de
Paris caí em síncope, e morre setenta horas depois; o célebre Fourcroy é acometido de uma
grave erupção exantematosa. Languerienne e Dufrenoy ficaram lânguidos por muito tempo, e
o último nunca mais se restabeleceu. / Na igreja de Santa Maria, em Lucina, em Roma, onde
só muito tarde largaram o pernicioso costume de sepultar os mortos, no recinto do templo, a
terra apresenta ondulações, produzidas pelos gases emanados dos corpos que Jazem sob a sua
superfície, e os indivíduos que a se demoram são atacados de febres de mau ca. ráter./ Quando
pelo contrário, as exalações pútridas são disseminadas e levadas para longe sobre as ondas de
72
um ar livre em nada prejudicam a saúde Pública. Os habitantes da Villete passam bem, põsto
que recebem continuadamente as emanações odorantes infectas de Montfaucoi./ O nõvo
cemitério, pois, que ora se está construindo, sendo apenas reservado para os irmái do Senhor
Bom Jesus dos Passos, nenhuma influência pode ter sobre os que habitam em suas
imediações./ Os ventos que mais comumente reinam na Ilha do Maranhão, segundo as
observações feitas pelo hábil e inteligente Sr. Paraibuna são:
Todos estes ventos sopram de maneira tal que sempre passam mais ou menos distantes do
lugar em que está se construindo o cemitério; e somente os terrais, que principiam no mês de
dezembro e duram até julho, é que poderão acarretar alguns miasmas, que tênues e destacados
não podem prejudicar a salubridade Pública
87
.
A relação específica entre direção dos ventos e sanitarismo, aparenta ser antiga em São
Luís (ver mapa III), e não parece ter sido iniciada no século XIX. Em 1616, um ano depois de
Jerônimo de Albuquerque ter cedido uma légua de terras na margem direita do Rio Bacanga
87
Continua: Em quanto à influência moral diremos que longe de infundir terror aos viandantes, ou de considerá-
lo como objeto de recreio, como alguém pode crer, o novo cemitério apenas despertará idéias pias e religiosas,
e bom é que neste século em que é moda ser espírito forte, zombar de todas as crenças e afetar incredulidade,
haja um monumento, que faça lembrar ao homem ímpio e desprezador de todos os cultos os sagrados deveres
impostos pela religião de nossos pais./ Taís são as breves e sinceras observações, que a comissão tem a honra
de apresentar a V. S. Maranhão 18 de outubro de 1848. - Ilmo. Sr. Coronel Isidoro Jansen Pereira, Digníssimo
Presidente da Câmara Municipal desta cidade. - José Maria Faria de Matos Júnior. - José Miguel Pereira
Cardoso. (drs. em medicina). - Verissimo dos Santos Caldas, cirurgião. MARQUES, César, op. cit., p. 194-5.
Janeiro N. E. N. Julho E.
Fevereiro Agosto E. SE. E.
Março Setembro E.
Abril Outubro E. N. E.
Maio Novembro
Junho
Variáveis:
demoram-se mais
nos de NE e SE..
Dezembro
N. E.
73
para o Senado da Câmara de São Luís, também cedeu duas léguas na margem esquerda para
a Ordem Carmelita construir seu hospício (na frente da cidade sentido oeste – ver mapa IV), o
que teria ocorrido somente em 1718, liderado por Frei Antônio de Sá. Em 8 de maio de 1784
a notícia é de que haviam remetido para o Bomfim alguns presos da cadeia que estavam
acometidos de bexiga, e era lugar de exclusão dos doentes pobres. Em 1804, estava falido
como hospício, permanecendo a capela. Em 1806, a Câmara de São Luís propôs construir ali
um grande armazém para fazer quarentena dos prêtos-novos que eram os recém chegados da
Costa da África.
Não se realizou, porém esta idéia, e foram os escravos enviados para êste lazareto, fazendo a
Santa Casa grandes obras sobre a ruína dele. Recebia a Santa Casa por cada um 32 rs.
diariamente, importando esta renda desde 1800 a 1811 em 4:240$000, correspondente a
13.250 escravos que ali estiveram recolhidos
88
.
A Ponta do Bomfim, apesar de próxima da cidade, não tinha os ventos em sua direção.
Os ingleses que chegaram a São Luís com o tratado comercial de 1810
89
tiveram o seu
88
MARQUES, César. Op.cit, p. 156.
89
“A colônia inglesa estabelecida no Maranhão tornou-se, em pouco tempo, rica e poderosa. De outra maneira
não podia ter acontecido, que o tratado de 1810, amparava-lhes os capitais que investissem em seu comércio,
tornando-o um jogo mais ou menos livre de possíveis prejuízos. Assim garantidos, muniram-se de crédito na
praça de Londres e fundaram aqui grandes casas comerciais. Enriqueceram-se no meio social maranhense, mas
não se deixaram por ele absorver. Com o seu temperamento frio e egoísta, vivendo para os seus interesses
mercantis, abstiveram-se de qualquer fusão com os naturais do país. Poucos, muitos poucos contraíram núpcias
com maranhenses. Para isso não deixou de influir a diversidade de religiões, o que, aliás, os levou a ter igreja e
cemitério próprios. Todavia, essa diversidade não explica por si só o retraimento dos britânicos, que até nas
moradias se afastam da cidade, preferindo tê-las no Caminho Grande, subúrbio pouco habitado então, e onde
construíram vivendas, batizadas com nomes do país natal: Britânia, Irlanda, Escócia. Com este mesmo
propósito, tiveram a seu serviço médicos ingleses: James Hall e seu filho Tomaz Hall. O primeiro, mais
conhecido pelo apelido de - médico inglês, aqui clinicou de 1812 a 1832, quando morreu; o segundo, nascido
no Maranhão, mas naturalizado inglês, só deixou a terra quando a colônia britânica estava a extinguir-se.
VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão 1612-1895. São Luís: LITHOGRAF, 1992,
edição fac-similar. 3v. v. 1, p. 130. Pode-se afirmar que, com os ingleses a sociedade maranhense conheceu
pela primeira vez um modelo onde as classes se mantêm em convivência distante. Também se pode dizer que
74
primeiro cemitério no Bomfim, depois transferido para Rua de São Pantaleão, ao Sul da
Santa Casa, em um terreno adquirido da Câmara e construído entre 1816 e 1825
90
.
Com o parecer, a Câmara autorizou a construção do Cemitério dos Passos, que só
passaria a funcionar em 1849. Entretanto, nem todos se deram por convencidos e nova
polêmica surgiu em torno da direção dos ventos e da contaminação das águas da Fonte do
Apicum, considerada a melhor da cidade e a preferida das elites, como delata a ordem do
governo provincial à Câmara:
A Junta Provisória e Administrativa do Governo Civil desta Província, ordenna que a Câmara
desta cidade, sem perda de tempo, passe com assistenssia do Tenente Engenheiro Joaquim
Candido Guilhobel, a examinar as vertentes de agoa, que se acham a margem do Apicum
denominado quinta, das quais se prove a cidade da melhor agoa de beber: e mande naquellas
que achar melhor, levantar bocas de pedra da altura de quatro palmos a fim de impedir que as
agoas sujas que dasabão pela concoressia das lavadeiras não tornem a reverter para as ditas
nascentes, o que é muito prejudissial a saude publica
91
.
A questão chegou à Assembléia Provincial e nova comissão de médicos e com um
engenheiro foi criada em 1853, chegando à conclusão de que o cemitério era praticável apenas
em termos, pois os ventos favoreciam e não contaminavam as águas, contudo, a composição
do solo e a topografia desfavoreciam
92
.
precedem comportamentos, como manter cemitérios distantes e em lugares que seriam posteriormente adotados
pelos higenistas portugueses. É também notável que tendo instalado seu bairro no Caminho Grande não tenham
sido importunados pelos grupos que, do interior, tomavam de assalto a cidade em seus movimentos de
contestação ou de lazer.
90
MARQUES, César. Op.cit, p.157 e 199.
91
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Registro de Ofício e Portarias, 1822-1823, p. 221-2.
92
O novo parecer foi assim formulado: "O Cemitério dos Passos em nossa opinião está muito mal colocado:
porque está na frente da única estrada, que existe para os subúrbios da cidade, e por onde necessariamente tem
de passar o bom, como o convalescente, em seus passeios higiênicos, pelo que terá de despertar neste idéias
bem lúgubres, sobretudo se ali existir algum objeto que lhe seja caro, como pai, mãe, mulher, filhos e irmãos;
2º - porque ocupa uma baixa circundada de um lado por um grande morro em que está situado o sítio - Monte
Cristo do Comendador João Gualberto da Costa, e do outro lado por uma eminência que conquanto não possa
75
Da comissão, o médico José Maria Faria de Matos discordou e foi voto vencido.
Mesmo assim, apresentou a parte seu relatório ao presidente da província, indo além da
questão do cemitério, propondo medidas gerais de saneamento, fim da pobreza, moralidade
pública para combate às doenças venéreas e polícia para a cidade. Conclui dizendo:
Mandai antes secar êsses imensos e imundos charcos, a que chamamos pântanos, sobretudo
os do Bacanga, onde nascem, vivem e morrem animais e vegetais de toda a espécie, e
ter o nome de morro, todavia tem muitos pés acima do nível ocupado pelo cemitério; o que sem dúvida proíbe
a circulação do ar, e portanto os miasmas provenientes da putrefação cadavérica tem de girar em uma pe-
quena atmosfera, e sempre acumulados, quando deviam ser o mais possível espalhados, e à proporção que
fossem exalados; e é por isso que se exige que os cemitérios sejam altamente colocados, e bem isolados, porque
não havendo assim empecilho à circulação do ar, os miasmaso prontamente difundidos, e por uma grande
atmosfera, e não há por isso o menor receio de epidemias, que ocasionam a acumulação deles; 3º - porque as
primeiras camadas deste terreno são de barro vermelho misturado com areia, e as mais profundas de argila. Os
terrenos assim compostos contêm grande umidade, o que retarda a putrefação cadavérica, quando esta deve ser
o mais possível favorecida; e é por essa razão que se dá preferência aos terrenos secos, e calcários para a
fundação dos cemitérios. Além destas razões acresce que aquele cemitério está circundado de grandes árvores
especialmente à sua frente, e até no seu interior, o que ainda torna-o menos ventilado. / Este cemitério tem a
forma quadrangular, com a frente para o norte, e está completamente fechado por muros, e duas grades de
ferro, e tem uma capela no seu centro. Os carneiros, ou catacumbas a julgarmos todos por umas que vimos
abertas, são mal construídas porque as suas paredes não contêm espessura bastante para deixar de ceder aos
gases, que se desenvolvem com a putrefação cadavérica, tanto que em muitas que estavam ocupadas, notamos
fendas que se não podem atribuir senão à dilatação ocasionada por aqueles gases, e em algumas as matérias
gordurosas estavam como que embebidas, e formando com a cal das paredes matérias concretas, e como
saponáceas. / Se a posição deste cemitério é má em relação à sua topografia. e composição química do
terreno, todavia não o é nem em relação aos ventos, que costumam reinar nesta cidade, e nem tampouco em
relação às águas do Apicum porque estas acham-se em distância superior a 150 braças; pelo que ainda que o
terreno estivesse completamente saturado de restos cadavéricos jamais poderia ser-lhes nocivo, visto que em
tão grande distância a filtração torná-las-ia perfeitamente puras. ainda quando dada a hipótese de que fossem
elas ter aquelas fontes, o que não está provado, ou pelo menos não temos disso a convicção. Do exposto
concluímos 19 que a posição do Cemitério dos Passos não é nociva quer em relação aos ventos, quer em
relação às fontes, 29 que a sua posição topográfica é má e bem assim a composição química de seu terreno,
pelo que se já não é nocivo à saúde Pública, porque contém poucos cadáveres, todavia pode vir a sê-lo,
sobretudo se não forem removidos alguns inconvenientes que podem, e devem quanto antes ser removidos.
Maranhão 24 de abril de 18. 54. Os membros da comisão Dr. José Sérgio Ferreíra, Dr. Paulo Saulnier de
Plerrelevée, Dr. Raimundo José Faria de Matos, Raimundo Teixeira Mendes (engenheiro civil). Dr. José Maria
Faria de Matos, vencido". MARQUES, César. op. cit., p. 195. Grifos meu para destaque de fatores “técnicos”.
76
acabareis com essas febres de mau caráter, que se hão tornando endemicas em nossa capital, e
suas funestras consequências tais como irritação do aparelho digestivo, hipertrofias do baço e
fígado, hidropsias de que é vítima talvez a terça parte da nossa população
93
.
Com base em autores de história da medicina, Caponi comenta esses conceitos
predominantes no século XIX quanto a doenças carregadas pelos ventos, qualidade dos solos
e das águas, que dera poder de intervenção aos médicos e sanitaristas nos destinos das
cidades, determinando os lugares de isolamentos, agora divulgados no Maranhão. Conforme a
autora:
Os controles sanitários relativos à moradia popular, chamada de “tugúrio” ou “cortiço”, bem
como a emergência de seu correlato (o visitante), mostram que é possível falar de
complementaridade entre as diferentes estratégias sanitárias adotadas pelos higienistas
clássicos e pelo “novo higienismo”, herdeiro da chamada “revolução Pasteuriana”, A partir
dos estudos de Villermé sobre as condições de vida dos operários da indústria algodoeira, até a
reforma de Haussmann, que transformou a urbanização de Paris, um mesmo tema se repete: a
necessidade de excluir, para as zonas rurais (Villermé) ou para a banlieue (Hauussmann), as
classes populares, identificadas como perigo moral, no primeiro caso, como o perigo político
no segundo, e com o perigo médico em ambos.
Para a higiene clássica, cada homem, e consequentemente cada sociedade, devia ser pensado
com relação ao meio, ao terreno em que habita, ao modo com circula a água e o o ar que
transporta miasmas ou gazes nocivos. Era necessário conhecer efeitos que o clima podia
provocar no corpo, nas fibras dos habitantes e também em seu modo de agir, em sua
moralidade
94
93
MARQUES, César, op. cit., p. 196-7.
94
CAPONI, Sandra. Corpo, população e moralidade na história da medicina. In: ESBOÇOS – Revista do
Programa de Pós-Graduação em história da UFSC. Chapecó: UFSC, 2002. nº 9, ISSN 1414-722X, p.76. no
aspecto teórico, mais sobre o assunto de poder médico e urbanismo pode ser lido em: CHALHOUB, Sidney.
Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia das Letras, 1996. Entretanto, as
realidades do Rio de Janeiro e de São Luís são diferentes, enquanto se fala de cortiço no século XIX na Capital
77
De tais intervenções ficaram diretrizes que os dirigentes da cidade punham como
meta. O código de posturas de 1866 reforçaria, a reboque das diretrizes já lançadas pela Lei
geral de 1828, normas de prevenção sanitária, dentre as quais, a questão dos pântanos,
grandes produtores de miasmas, foi inserida:
Os possuidores de terrenos pantanosos e alagados dentro desta cidade são obrigados no prazo
de seis meses depois de intimados pelos fiscais a aterrá-los e beneficiá-los de modo a
tornarem-se enxutos e salubres. Aos contraventores multa de trinta mil reis e no fim de quinze
dias depois disto não derem começo aos benefícios dos mesmos terrenos serão multados em
dobro, fazendo a Câmara os aterros à custa dos possuidores
95
.
O elogio ao cemitério da Santa Casa, por estar em ótima topografia, ter as matérias
calcárias ideais e ter sido construído com todas as condições higiênicas, somadas à questão da
direção do vento que soprava predominantemente na cidade vindos do leste ou do norte,
tornaram o Sul área adequada quando à instalação de equipamentos de saúde pública. Assim,
as áreas nobres que haviam se constituído como quintas, darão paulatinamente espaço aos
aparelhos sanitários e insalubres da cidade. Lembrando-se que, em 1848, surgiu esse debate
sobre direção dos ventos e em 1850 o matadouro tamm foi deslocado para um ponto ainda
mais ao sul.
Segmentos das elites que preferiam as águas da fonte do Apicum continuaram
inquietos, a ponto de César Marques dizer que em fins de 1869 tendo havido muitos
falecimentos de pessoas estimáveis por suas qualidades e membros de grandes famílias,
do Império, em São Luís apenas há moradias periféricas na região das baixas, e tal termo só será realidade no
início do século XX, com a formação de aglomerados de moradias próximas ao centro, para atender às fábricas.
Talvez a leitura de Aluísio de Azevedo em O mulato (1881), para São Luís e O cortiço (1890), para o Rio de
Janeiro, possa mostrar que o autor não encontrou periferias com as mesmas características ainda no período
escravocrata. Além disso, a cidade é arejada, com muitas ruas amplas e segue sua expansão pelo plano retilíneo
original, o que facilitava a circulação dos ventos e a dispersão dos miasmas, conforme a ciência de época.
95
Código de posturas, op. cit.
78
procurou-se explicar pelo consumo da água daquela fonte. Correu então muita polêmica, até
que em 1870 foi o cemitério finalmente desativado
96
.
O conflito com os enterramentos na cidade seria definitivamente resolvido, após o
surgimento do Cemitério do Gavião em 1855 com o desmonte de mais uma chácara no sul da
cidade, a Quinta do Gavião, onde existia a Fonte do Gavião, que cedera originalmente o
topônimo. O ano foi um dos mais terríveis para a cidade em termos de epidemias, como a
varíola e o sarampo
97
, e os dois cemitérios ativos, o da Santa Casa e o dos Passos não foram
suficientes para tantos óbitos. A região onde está o Cemitério do Gavião é área da Madre de
Deus e ficou lado a lado com o matadouro.
O eixo da topografia alta desde a Rua de São Pantaleão até o logradouro da Madre-de-
Deus, tinha todas as condições de ser zona privilegiada para moradia, não fosse a questão dos
ventos. A definição de que o Sul da cidade era realmente o lugar que recebia todos os ventos,
ou a quase inexistência de ventos provenientes do sul, pode ser constatada levando em conta o
lugar que fora designado para o armazém da pólvora, muito ao Sul do núcleo habitado, nas
margens do denominado Rio das Bicas. E mais, todos os depósitos explosivos ficariam
distantes, onde não soprassem os ventos sobre ele:
Não se poderão estabelecer fabricas de fogo de artifício dentro da cidade, e nem tão pouco
vender-se polvora ou outro qualquer genero suceptivel de explozão. Aos contraventores a
96
MARQUES, César, op. cit., p.197.
97
desde 1851 são tomadas diversas providências de saneamento, por causa da epidemia de febre amarela: “Em
1851 a capital foi acometida pela febre amarela, não importada da Bahia, de Pernambuco e do Pará, onde
reinava, e sim desenvolvida espontaneamente no centro da capital, como escreveu o Dr. Raimundo José Faria
da Matos no Observador de 14 de junho, e originada pela irregularidade da estação invernosa, excessivo calor,
pouca ventilação, muitas causas de insalubridade, como a existência de um curral no centro da cidade,
esterquílineos em diversos pontos, águas estagnadas, misturas de água doce com a salgada, etc., como escreveu
o Dr. José Miguel Pereira Cardoso no Correio de Anúncios na 64 desse ano. / O Dr. José da Silva Maia, que
nesse tempo foi o diretor-geral da Polícia, de Saúde, por nomeação Provincial, em ofício de 13 de junho dando
conta de sua comissão ao presidente da Província disse que esta moléstia acometeu nove décimos da população
da capital, isto à, 27. 000 almas, e que apenas faleceram 255 pessoas”. ibidem, p.486.
79
multa de trinta mil reis, e o dobro nas reincidencias, e oito dias de prisão. Os lugares para esse
fim destinados serão quaisquer que, ficando fora da cidade estiverem a sóta-vento dela e
sempre a uma distância de mil braças do armazém da pólvora
98
.
A Quinta da Madre de Deus era formada por terras rurais de Manoel João Correia de
Sousa, que, em data não conhecida, deve tê-las recebido em cartas de data e sesmarias do
Senado da Câmara. Deixou-a de herança junto com outros bens para a Santa Casa de
Misericórdia, em 1830. A Santa Casa vendeu a Quinta a Manoel Duarte Godinho em 1838 e
seus herdeiros a venderam à Câmara Municipal para ali instalar o matadouro
99
.
A Madre de Deus, bem ao sul do núcleo inicial, é hoje um dos bairros da cidade,
adjacente ao perímetro do Centro. Sua designação vem de uma antiga capela construída em
terras de realengo, daquelas que pertenciam à área de aproximação da margem.
Em 4 de outubro de 1713, no seu sítio da roça, nesta cidade, o Capitão-mor Manoel da Silva
Serrão e sua mulher fizeram traspasso ao Capitão-mor Constantino de Sá “dos pilares, arcos,
alicerces e mais obras que se achavam na ponta de terra chamada Santo Amaro, feitas
com licença da Câmara com o fim de levantar-se aí uma igreja, e também concederam-lhe a
mercê que a Câmara lhe fizera com a mesma intenção.
Achou o capitão Constantino mais seguro pedir para si essa mesma mercê da forma por que
foi dada ao dito Serrão, e requerendo à Câmara disse “estar fazendo uma ermida para nossa
senhora da Madre de Deus, aurora da vida”, e lhe foi concedida em vereação de 10 de
dezembro de 1713
100
.
98
Código de posturas, op. cit. E o armazém da pólvora já ficava muito ao Sul, nas margens do denominado Rio
das Bicas.
99
MARQUES, César, op. cit., p.448.
100
MARQUES, César, op. cit., p.434.
80
A capela acabou sendo administrada pelos jesuítas, que construíram ao lado um
prédio de dois andares para servir como Casa de Recreação e Exercícios Religiosos.
Os jesuítas fundaram ainda no Maranhão a Casa dos Exercícios e Religiosa Recreação de
Nossa Senhora da Madre Deus, dentro da cidade, na Ponta de Santo Amaro. A quinta já existia
em 1713, quando o Capitão-Mor, Constantino Sá, requisitou à Câmara a utilização de certos
materiais existente nessa Ponta de Santo Amaro, para uma ermida que estava erguendo a
Nossa Senhora da Madre de Deus, Aurora da Vida. O Sítio foi-lhe trespassado já por outros.
Os padres compraram a quinta para Casa de Campo dos mestres e estudantes do Colégio do
Maranhão, no qual havia, em 1713, estudos gerais de Teologia, Filosofia, Retórica, Gramática,
e ultimamente uma escola de ler, escrever e contar, como expõe à Câmara o P. José Lopes,
requerendo alguns terrenos para ampliar a Quinta da Madre Deus
101
.
Em 1760, com a expulsão dos jesuítas, passaram a capela e casa para a administração
civil. Como possuía um colégio, onde foram administradas aulas de teologia, filosofia,
retórica e gramática com um volume de seiscentos livros, intentou-se fundar ali um colégio
para os nobres da terra, mas fez-se sede provisória do Governo, enquanto o novo Palácio não
ficasse pronto, pois estava sendo construído desde 1771. Em 1811 passou a abrigar o hospital
militar que antes ficava próximo ao largo do Carmo, na esquina da Rua de Santana (antes Rua
dos Covões, também Rua da Relação) com a Rua do Desterro (hoje Palma)
102
, abrindo o
precedente para tornar-se área médica e sanitária.
A biblioteca foi extraviada e o local passou a ser enfermaria com funções que vão
sendo modificadas, medidas pelo perfil e categoria de enfermos que atendeu, que, em si, dão
idéia da transição pela qual a região passaria, de quinta nobre a confinamento sanitário.
Inicialmente atendia militares do Exército, posteriormente os do corpo da polícia, adiante os
101
SOUZA, Pe. José Coelho De. Os Jesuítas no Maranhão. São Luís, 1977. p.69.
102
MEIRELES, Mário M. Apontamentos para a história da medicina no Maranhão. In: Dez estudos
históricos. São Luís: Alumar, 1994, p.201.
81
presos de justiça e, na segunda metade do século XIX, as pessoas pobres ou escravas
atacadas pela varíola.
A capela deu origem à antiga toponímia da estrada
103
que saía da cidade para essa área
rural como Estrada da Madre de Deus, renomeada Rua de São Pantaleão em função da Igreja
de São Pantaleão ali edificada em 1780. O terreno adjacente à ermida, até a Fonte do Bispo,
do lado oriental da São Pantaleão, passou de terras de realengo para quinta particular em
1793, doada pelo Governador D. Fernando Antonio de Noronha a Luís Raposo do Amaral.
Nesta unidade do que é hoje bairro da Madre de Deus foram construídas no fim do século
XIX duas grandes fábricas, São Luís e Cânhamo, fazendo tríduo com o Hospital Geral, que
ficara no lugar do antigo conjunto de capela e seminário.
Desta forma, o bairro da Madre de Deus formou-se de um complexo de lotes com
funções diferentes: a região baixa, ou Praia da Madre de Deus, onde um pequeno povoado de
pescadores sobrevivia em terras da união; a Quinta da Madre de Deus, que se tornou Quinta
do Matadouro; a quinta adjacente à ermida e a Quinta do Gavião, que se tornou Cemitério do
Gavião.
Localizei ainda outras quintas próximas, menos importantes, com um estudo
minucioso e atento do Dicionário Histórico de César Marques e também no livro de sesmaria
e cartas-de-datas de Mota e Mantovani. Os autores encontraram entre 1720 e 1810 doações 54
lotes nesta área, logo alto índice de ocupação tardia, só perdendo para a região da ermida dos
Remédios no outro extremo, 136 lotes
104
. A ocupação tardia dessas duas regiões foi relatada
por Lopes em 1916:
103
MARQUES, César, op. cit., p.435.
104
MOTA, Antonia da Silva e Mantovani, José Dervil. São Luís do Maranhão no Século XVIII: a construção
do espaço urbano sob Lei das Sesmarias. São Luís: Edições FUNC. 1998, p.92-4.
82
Atingindo o cimo da chapada, a edificação transbordou sôbre as duas alas que dela aí se
destacam, formando os dois bairros mais recentes (Remédios, São Pantaleão). O progresso da
província na primeira fase do Segundo Império facilitou a criação dêsses bairros
105
.
O território ao sul continuou ampliando a função de isolamento sanitário, ainda com o
código de posturas de 1866:
Ficam designados os terrenos ao sul do cemitério publico da Santa Casa para enterramento de
animais e carnes pútridas: os que enterrarem fora destes lugares pagarão dez mil reis de multa,
e nas reincidências o dobro
106
.
Em 3 de fevereiro de 1869 o Presidente da Província, considerando ser urgente tomar
providencia sobre um asilo conveniente para os infelizes lázaros, que vagavam a esmolar por
esta cidade durante a noite, determinou ao administrador das Obras Públicas mandar edificar
um pequeno prédio, com as acomodações indispensáveis, no terreno com muro pertencente à
Santa Casa da Misericórdia, que confrontava pela parte posterior com o Cemitério do Gavião.
Iniciada a obra, uma comissão, composta de engenheiros e médicos, foi contrária ao edifício e
à localidade, por não preencherem o fim que se tinha em vista, ou seja, dar dignidade aos
doentes. A construção, que ficou parada, continuou, naquele mesmo lugar, considerado por
César Marques impróprio:
tanto ao físico como ao moral dos infelizes morféticos, porque colocado esse hospital no
terreno, que confronta pela parte posterior com o Cemitério do Gavião, aí respiram eles o ar
mefítico desse cemitério, e têm constantemente diante dos olhos essas cenas lúgubres, que
105
LOPES, Raimundo. op. cit., p.105.
106
Código de posturas, op. cit., Sul da Santa Casa
83
diária e freqüentemente se dão nos enterramentos dos cadáveres, e que aterram os bons, quanto mais
os doentes e mormente tão desgraçados!
107
Fica então evidente que a questão do afastamento sanitário, que determinou o lugar
dos cemitérios, para evitar doenças e contaminações pelos miasmas, não se aplicava a todos,
mas prioritariamente aos que estavam bem estabelecidos na área central da cidade. De outra
forma, dependendo da conveniência dos dirigentes, até mesmo os pareceres médicos
poderiam ser desrespeitados, em se tratando de gente “desqualificada” para a convivência
com os demais.
Interessa que, em regra, essa região (São Pantaleão e a contígua Madre-Deus) deu
lugar a infra-estruturas urbanas se especializando em destino sanitário, numa transição
mediada pela implantação de sítios doados a nobres e altos funcionários de terras de
aforamento da Câmara ou de realengos do governo. Desta forma, muitas terras foram
retornadas ao domínio municipal, possibilitando uma posterior ordem de distribuição espacial
dentro da cidade, cuja última consequência foi tornar-se reserva urbana, na qual irão se
instalar moradias populares, principalmente após o fim da escravatura, quando o trabalhador
livre precisava se avizinhar dos lugares de produção na cidade.
Tal região passou de maior para menor valor urbano por causa das ordens sanitárias,
decorrentes da direção dos ventos, logo, a relação entre valor territorial e concorrência de
população de baixa renda teve uma ordem mediada pela ciência de época, para além de
questões topográficas e urbanísticas. A instalação de equipamentos médicos e sanitários no
lugar permitiu se tornar ali, para o fim do século XIX, uma reserva de ocupação dos mais
pobres, quando em parte estes instrumentos são desmontados.
107
MARQUES, César, op. cit., p. 380.
84
Na posição inversa dos bairros recentes, na datação de Raimundo Lopes, no
designado logradouro de Remédios, ocorreu o contrário: serviu no final do século XIX para se
instalarem sítios e casas da gente mais rica, saída de dentro do Centro tradicional, que já
demonstrava algum esgotamento, tendo sido a rua que saia da frente do quartel até a Igreja
dos remédios a mais prestigiada a partir daquele momento
108
.
A região de Remédios foi ocupada fundamentalmente no início do século XIX por
sítios rurais de produção, abrigando alguma escravaria. Em associação com a toponímia, a rua
por trás da igreja dos Remédios é a Rua das Hortas, fronteira à antiga Quinta do Marajá, de
Manoel José de Medeiros.
Atrás do templo ficava o rancho dos escravos da Quinta, que foi deslocado para a
cadeia pública em 1834
109
. Também era conhecida a Quinta do Jenipapeiro, que,
provavelmente deu nome ao lugar, pertencente à família aristocrática de Dunshee de
Abranches, que relata em sua obra, O cativeiro, como os seus familiares deixaram a área
central e prestigiada para morar no sítio (por volta do último quartel do século XIX):
A minha família já se achava instalada na Quita do Jenipapeiro, situada na extrema direita do
Largo dos Remédios, à beira do Anil. Tendo regressado de sua viagem de núpcias à Europa , o
Dr. Costa Rodrigues comprara o palacete onde eu nascera à Rua do Sol e residiram os meus
pais por mais de trinta anos seguidos. Afastados do coração da cidade, já não tínhamos
diariamente a casa cheia de visitas como outrora. Nos domingos somente é que nos
procuravam as pessoas amigas
110
.
108
O Resultado desta “segunda onda de progresso” construtivo ainda é visível hoje e foi de grande monta.
Resulta de um capital que foi concentrado em São Luís com o prolongado declínio da lavoura a partir das
dificuldades com a mão-de-obra escrava e seu efetivo desaparecimento. Infelizmente, como não constitui
acervo do patrimônio colonial, este já difícil de conservar pelas dimensões, sofre acelerada descaracterização.
109
Onde hoje funciona atualmente o Hospital Universitário.
110
ABRANCHES, Dunshee de. O cativeiro (memórias). São Luís: Alumar, 1992, p. 135.
85
No entanto, é fácil observar que o fracionamento dessa área rural beneficiou também
residências mais simples, de datação antiga, encrave de moradias populares, provavelmente
por terem se firmado como moradias de escravos já no fim do XIX e de ex-cravos que
prestavam serviços locais
111
, ou, ainda, considerar que a presença da cadeia inibia a
construção de mansões imediatamente atrás da Igreja dos Remédios.
Em termos de moradia popular, de gente livre, o que temos sobre São Luís são as
doações de cartas-de-datas, que aparecem nos livros da Câmara e foram, em parte compilados
por Mota/Mantovani
112
, demonstrando que até a grande expansão econômica do século XVII
era comum pessoa livre possuir terras no núcleo principal da cidade, o que fora revertido em
favor de grandes proprietários do comércio escravocrata ou dos fazendeiros da zona rural. No
entanto, uma das regiões mais antigas, o Desterro, permaneceu com as características iniciais,
não cedendo, durante todo o século XIX, para a renovação urbana. De outro lado, fornecendo
mão-de-obra livre que complementava as atividades urbanas não desempenhadas por
escravos.
O Bairro do Desterro, imediatamente ao sul da ocupação inicial, onde está a Igreja de
Nossa Senhora do Desterro, existe desde o século XVII. Pelo processo de valorização das
áreas ocorrido posteriormente, aquela região teve menor valor urbano por razões
desconhecidas. Não dá para afirmar simplesmente que a questão dos ventos tenha sido
determinante e, na relação com a topografia é favorecido, pois o principal do Bairro encontra-
111
Sobre a convivência nessa região, no início do século XIX, o jornal A Pacotilha em edição de 20/01/1835
comentava: É costume velho o de reunirem-se umas pretas e negrinhas à Rua da Alegria, canto da Tapada,
onde celebram as mais indecentes usanças dos ritos de corrupção, a que elas se entregam sem consideração de
ordem alguma pelas pessoas do lugar. Mas como esse costume é abusivo é de crer que a polícia trate logo de
correr com ele dali. Assim pensa quem o faz chegar ao nosso conhecimento. Em 1915 mesmo o jornal diz
terem solicitada para que desse notícia sobre “o abuso , que se dá diariamente à Rua das Hortas, com o rufar de
caixas do Divino Espírito Santo, todas as madrugadas, incomodando assim a vizinhança . Apud: Comissão
Maranhense de Folclore. Tambor de Crioula – ritual e espetáculo. São Luís: SECMA, 1995, p.35.
112
MOTA, 1998. Op.cit.
86
se em área alta. Na baixa, junta-se à área de praia de pescadores contígua às margens do Rio
Bacanga.
O geógrafo Lopes, escrevendo no início do século XX, confirma a vocação popular do
Bairro do Desterro:
No primeiro tabuleiro da chapada, logo na extremidade que separa as duas ribeiras do Anil e
do Bacanga, é que se estendeu a cidade, no século XVII. Ao tempo dos holandeses <1641-
1644>, ela abrangia apenas a praça principal (a atual Avenida Maranhense) e algumas ruas
próximas, até o bairro do Desterro./ A edificação foi, ao menos em parte, renovada mas o
pequeno núcleo do Desterro, com a sua igreja de estilo antiquado, as suas casas baixas, os seus
becos e betesgas aladeiradas, em degraus, a sua praia pitoresca, apertada entre a barreira e o
cais, ainda conserva um acentuado arcaísmo, é uma relíquia da cidade colonial
113
.
Talvez o fato de precisar-se manter um bairro de trabalhadores próximo ao principal
porto, o da Praia Grande, explique, mas também algumas circunstâncias espaciais tornam o
Desterro, no século XIX, associado aos ambientes de trabalho mais insalubres, com sua praia
destinada à venda de mercadorias a grosso.
Em 1821 a faixa de reentrância das águas entre a Praia do Desterro e a Praia da Madre-
Deus recebeu as funções de matadouro, açougue e curtume
114
(mapa IV, ver mercado) em
substituição à Praia de Santo Antônio, antigo limite da cidade a sudoeste no século XVIII,
também logradouro popular de então. Tal lugar ficou conhecido após algumas décadas de uso
como Largo do Açougue Velho, que era mantido pela municipalidade. A área de baixio
recebia diversos canais de água que desciam de fontes próximas, uma delas existente até hoje,
a Fonte das Pedras, conhecida desde o século XVII. A planta recebeu constantes obras de
melhoria para abrigar uma praça regular de comércio e tornar-se também conhecida por Praça
do Mercado, onde tudo era vendido sem maiores cuidados higiênicos.
113
LOPES, Raimundo. Op.cit, p. 104-5.
114
MARQUES, César, op. cit., p.448.
87
Em 1850, o matadouro saíra daquele lugar para evitar a relação promíscua que tinha
com os alimentos, que também desembarcavam ali, passando o lugar a ser conhecido como
Praça da Hortaliça que ainda hoje abriga o Mercado Central da cidade. Entretanto, naquele
momento continuava a ter funções consideradas mais insalubres que a região Praia Grande-
Trapiche, esta, na segunda metade do século XIX, mais exigente de rigor sanitário.
Em 22 de novembro de 1858 o Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá, como
presidente desta província, usando da atribuição que lhe fora conferida pelo art. 29 da
Resolução de 25 de outubro de 1831, resolveu aprovar provisoriamente, e mandar executar em
postura da Câmara Municipal da capital proibindo o desembarque de porcos, aves, canas e
frutas vindas do interior nas praias do Trapiche e suas imediações, e obrigando a efetuar a
descarga destes gêneros na Praia do Açougue Velho ou na do Portinho, quando aí faltasse a
maré e designado que fossem vendidos unicamente nessa praça
115
.
O Portinho, tradicional área de desembarque de pesca, pelo seu furo que avançava por
terra e permitia atracamentos próximos, ficava ao sul da Praça da Hortaliça. Quanto ao
matadouro público, este foi transferido em 1850 para a Quinta da Madre de Deus, ainda mais
ao sul, só que em terras altas.
Como já mencionado, o Desterro tinha uma relação direta com o mundo do trabalho
livre além do que, o centro motriz da economia da cidade ficava logo ali, na descida da
ladeira, no porto principal da Praia Grande.
A Praia Grande, uma reentrância do Rio Bacanga, onde fundeavam navios, era o ponto
comum de baixio de três importantes zonas iniciais: Desterro ao sul; Largo do Carmo a leste e
o “promontório do poder”, ao norte, formando uma pequena baía abrigada onde desde o início
da colonização fundeavam embarcações. Foi ocupada com aterros de particulares no último
quartel do século XVIII, para ser porto principal da cidade e praça comercial
116
, por onde
115
MARQUES, César, op. cit., p.543-4.
116
Durante diversos períodos dos quais tratamos, conforme a época, a administração dos serviços e obras da
88
circulou o maior montante do capital comercial do Estado. A solicitação partiu do
governador José Teles da Silva ao ministro português Martinho de Melo e Castro, em 1784,
por se tratar de área fora da jurisdição da Câmara e dentro das 30 braças de preamar, que eram
de domínio do Rei, que concedia os chãos para formar uma praça regular, guarnecida de
construções dos três lados, em forma de “U”, abrindo para o porto.
Em pouco tempo, o lugar estaria ocupado por sólidos casarões de pedra e cal e
azulejaria nas fachadas, com requintes da arquitetura colonial portuguesa, uma exceção na
fisionomia das áreas baixas e de praia. Contudo, nunca foi um espaço definido como nobre
dentro da simbologia dominante, ainda que na segunda metade do século XIX tenha tido
afastado diversas atividades do comércio a grosso, pois permitia um convívio mesclado entre
proprietários da burguesia comercial, seus caixeiros, seus escravos, estivadores, pescadores,
domésticos e funcionários públicos em atividade de compras, além de diversos embarcadiços,
num verdadeiro desfile de tipos sociais variados, sem falar em diversos cheiros que
emanavam das variadas mercadorias, mais fungos que atacavam algumas delas. Um cenário
plausível, que foi assim descrito por Aluísio de Azevedo:
A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque era
aquela hora justamente a de maior movimento comercial . Em todas as direções cruzavam-se
homens esbofados e rubros; cruzavam-se os negros no carreto e os caixeiros que estavam em
cidade se dará de cinco formas: primeiro com a ingerência direta das Câmaras pagando de suas rendas para a
realização: a arrematação, é o caso principalmente das fontes públicas e do calçamento das ruas; com
ingerência impositiva da Câmara para manter o aformoseamento da cidade, como é o caso de manterem os
proprietários limpas as suas frentes de casas e terrenos; arrendando serviços a terceiros, como ocorria com o
transporte de São Luís a Alcântara; incentivando os moradores a realizarem serviços de utilidade pública, com
favorecimento de terreno onde desejava-se urbanizar; ou pelo Departamento de Obras Públicas, após 1846.
Este penúltimo mecanismo permitiu a ocupação da Praia Grande, terreno alagadiço na baixa da cidade de São
Luís, que passou a tornar-se importante com a intensificação das atividades portuárias na Segunda metade do
século XVIII. MARQUES, César, op. cit., p.545.), onde paulatinamente se consolidou o bairro comercial Para
mais pesquisas sobre urbanismo em fases iniciais da cidade tenho publicado MARTINS, Ananias Alves. o
Luís e Alcântara na estratégia território-colonial. In: Atas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico
Português 1415-1822. Lisboa: CNCDP, 2001.
89
serviço na rua; avultavam os paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos
sovacos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do
sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes, os pés
e as virilhas; fazilham-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a biqueira do chapéu
nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a
comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das amendoeiras, nas portadas dos armazéns,
entre pilhas de caixões de cebolas e batatas portuguesas, discutia-se o câmbio, o preço do
algodão, a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais;”
117
.
Desta forma, a cidade perpassa o século XIX estabelecendo diversas especializações
espaciais onde antes havia um conjunto justaposto de funções. Contudo, não existe mudança
nos espaços sem se mexer com os que vivem neles e a seguir tentaremos ver, em parte, a nova
ordem das gentes na cidade.
117
AZEVEDO, op. cit., p. 15-6.
90
91
92
93
94
95
96
97
CAPÍTULO IV
A ordem das gentes dentro da cidade
A consequência imediata das mudanças nos aparelhos urbanos, meios de repressão e
lugares sanitários e de segurança, é a formação de uma orla subsidiária ao núcleo principal da
cidade de São Luís, o que ficou basicamente definido por volta de 1870. A nova ordem tendeu
principalmente a definir onde certas práticas e costumes dos moradores não serão mais
permitidos, como antes e onde e em que condições viverão os que não pertencem à ordem
doméstica da escravidão, a de “morar” como seus donos.
Em 1866, pelo Código de Posturas, temos uma definição parcial sobre o núcleo
melhor estabelecido da cidade, onde incide maior legislação reguladora:
Os proprietários de terrenos dentro da cidade
118
, no âmbito compreendido pelas ruas dos
Remédios-Passeio de norte a sul e as de Riachuelo e a da Sáavedra de leste a oeste, que
estiverem que edificar, e bem assim os donos d’aqueles prédios, que carecerem de ser
concluídos exteriormente com muros e dentro do mesmo espaço, deverão no prazo de seis
meses contando da data de publicação deste código, dar princípio à dita edificação, quanto a
parte que diz respeito à perspectiva da cidade, isto é, cercá-los de muro com aparência exterior
de casa sob pena de pagarem de multa trinta mil reis, e o dobro em cada termo dos novos
prazos que lhe forem marcados até o exato cumprimento desta postura. Fóra deste perímetro e
ainda dentro da cidade são obrigados sob as mesmas multas, a cercá-los convenientemente
119
.
118
No decorrer deste trabalho é essa a demarcação que fazemos: Cidade é a área urbana, central, densamente
construída. O município é toda a jurisdição territorial da Câmara, que, por sua vez, é constituído pela cidade,
povoamentos, terras não aforadas, quintas de plantio e terras dos religiosos. Quando existiam, as aldeias dos
índios consideradas “obrigadas”, ficavam fora dessa jurisdição.
119
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Código de posturas de 1866, 1882, 1891. Transcrição paleográfica do livro
de posturas: original. p.18.
98
Viver dentro do núcleo principal da cidade já não era tarefa de pouco custo, dado que
as exigências passavam a se acumular. Ao mesmo tempo, no primeiro momento, as fronteiras
mais próximas não pareciam muito atraentes, com grande parte dos terrenos contínuos
topograficamente acidentados ou sem infra-estrutura, levando os novos moradores livres e os
deslocados a se submeterem a uma qualidade mais baixa de vida. Pelo que indica o código de
posturas de 1866, boa parte da área de expansão contígua ainda estava recebendo aterros na
segunda metade do século XIX, tanto que, em todo o perímetro, é destinado para depósitos
obrigatórios de entulhos:
O vácuo existente entre o Caes da Sagração e o muro do Palácio do Governo e as barreiras
adjacentes até próximo à antiga casa da Trindade / Do mesmo caes à Praia Pequena, em
direção à doca da Praia do Cajú. Leste: As escavações existentes entre a Rua do Mamoim,
lado direito por cima da fonte do mesmo nome. / Junto ao paredão do Campo do Ourique. Sul:
As escavações da Rua do Norte, lado esquerdo, entre os cemitérios velho e novo. / As
escavações que finda a Rua da Madre de Deus, por cima da fonte denominada do Bispo
120
.
O ponto de partida desta questão, para os moradores livres e pobres está na forma
como o crescimento do interesse pela cidade, somado ao rápido acúmulo de riquezas,
principalmente após os anos 60 do século XVIII, colocou antigos e pobres moradores,
colonizadores iniciais em contraste com as novas edificações de sobrados relacionados ao
comércio e à moradia de passagem de senhores rurais, gerando uma fase de transição
desfavorável aos primeiros. Ao que parece é iniciada pela restrição ao acesso ao solo.
Já em 17 de dezembro de 1779, o Governador D. Antonio de Sales Noronha oficiou ao
Senado da Câmara dizendo ter presenciado no corpo da cidade muitas casas cobertas de
pindoba
121
(palha), e assim ordenava que não concedessem chãos a pessoas sem
120
Código de posturas de 1866, op. Cit., p.79.
121
Raimundo Lopes descreve da seguinte forma o processo construtivo maranhense no início do século XX:
“Outros constrastes se notam quanto à “habitação”, quer sob o ponto de vista do “material”, quer sob o plano e
fins./ A respeito do material, distinguimos a casa de palha, a de barro, as de “adôbe” e de tijolo, a de “pedra”,
99
possibilidade para fazerem edifícios nobres, e que quando fossem concedidos devia ser
debaixo dessas condições
122
.
Na entrada da segunda década do século XIX parece não ter havido muitas
modificações no cenário de moradias no perímetro principal da cidade, com diversos
moradores de baixa renda instalados ali, o que fica claro no relatório do Juiz de Fora e
Ouvidor Interino, Bernardo José da Gama, em 1813, dando conta da assimetria que isto criou,
com base em sua idéia de normalidade urbana, na qual a convivência entre ricos e pobres
destoava e era melhor que a forma construtiva fosse mediana, claro que em favor dos novos
sobrados, mais sólidos e mais seguros. O seu relato também evidencia que a chegada da
prosperidade econômica não atingiu favoravelmente todos os colonos (homens livres), mesmo
os mais antigos:
Tudo alí tem durado, para assim dizer, a Lei da natureza, pois faltam os primeiros passos da
mais grosseira Polícia
123
: por cujo motivo não he raro o achar-se infinitas cabanas de palha nas
praças públicas, e entre as grandes casas nobres o que bem serve para marcar o atrasamento
daquele governo, apesar dos contínuos incêndios que acontecem, pela Providência, como para
despertar sua inacção. Há bastantes daqueles edifícios nobres, e talvez desprorcionados ao
termos de uma série que vai da construção espontânea, com elementos vegetais, às edificações mais complexas
e estáveis. Os tipos característicos são a “casa de palha”, a de “barro” e a de “tijolo” – as mais compatíveis com
os recursos do meio que lhes fornece abundante matéria-prima; é pela deficiência desta que a casa de pedra não
é mais frequente, apesar de suas vantagens de durabilidade, num clima úmido./ Para a casa de palha utiliza-se a
folha da palmeira tenra (pindoba) e dela é coberta toda a habitação, teto e paredes. Ë pouco durável esse
revestimento, que se pode várias vezes renovar sobre a mesma armação de madeira. Como estrutura, a maioria
são palhoças que não passam de humílimos tejupares, sem diferenciação interna e sem o mínimo conforto; são
as células elementarísssimas da vida das construções. Mas há também cabanas sólidas e apresentando
compartimentos distintos./ A habitação de taipa de barro e a de adôbe formam os tipos de transição para a de
tijolo; esta mesma, quando rural, é muitas vezes coberta de palha. LOPES, Raimundo. Uma Região Tropical.
Rio de Janeiro: Cia. Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 76-7.
122
MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. 3. ed., SUDEMA, São
Luís, 1970. Edição original de 1870, p. 446.
123
Polícia se refere a urbanismo, ordem e regularidade da cidade.
100
resto da cidade, onde (he notável) não se acha aquela mediania de Fortunas que aparecem em todas
as cidades capitais; mas há uma opulência misturada no meio da maior baixeira
124
.
Raimundo Gaioso, em seu Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do
Maranhão, escrito por volta de 1818 que tenta, a sua maneira, descrever fatores econômicos e
sociais do Maranhão, revelou sobre a cidade de São Luís que Tem muito sofríveis edifícios, e
com muita commodidade; mas a desigualdade do terreno lhes tira huma parte de sua
formosura [...] A liberdade que cada qual tem de edificar como lhe parece, faz que tudo he
irregular
125
.
Gama referiu-se a uma situação para ele conflitante, a convivência da opulência e de
moradores pobres, e indica, nas entrelinhas, ao falar de todas as cidades capitais, que a
“normalidade” é a não convivência, o que o Governador Noronha faz explicitamente ao
ordenar não ceder terrenos a quem não possa construir edifícios nobres.
Nas primeiras décadas do século XIX, o cenário de obras parece frenético, mais dando
a impressão de um canteiro de obras, onde rapidamente se erguiam da noite para o dia
enormes sobrados, independente da vizinhança, com um grande privilegiamento para a
construção civil, demonstrando que a riqueza era uma particularidade do empreendimento
privado que se expandia sob diversas concessões do estado. Desta maneira, Rossine informa
de suas conclusões sobre a euforia urbana daquela época:
Nas vésperas da partida de D. João VI, era contundente a presença dos portugueses no
Maranhão. São Luís era uma cidade em crescimento, consolidando e expandindo o conjunto
arquitetônico da Praia Grande, do Portinho e do Desterro, que a opulência maranhense
estampou-se mais no casario que no relicário sacro. Como se fosse um materialismo superior,
comerciantes e lavradores preferiram o requinte do casario à suntuosidade dos templos
124
GAMA, Bernardo José da. Informação sobre a Capitania do Maranhão dada em 1813 ao Chanceler
Antônio Rodrigues Velloso. Viena D´austria: Impresa do filho de Carlos Gerold, 1872, p.13.
125
GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do
Maranhão. Rio de Janeiro: Mundo Inteiro, 1970, p. 113.
101
religiosos. As igrejas maranhenses são quase franciscanas, se comparadas com as mineiras, baianas e
pernambucanas”
126
.
Os novos proprietários não necessitavam apenas das terras para construir, mas de
construções em um padrão superior ao que vinha sendo praticado pelos antigos moradores. De
acordo como o levantamento feito por Mota e Mantovani nas cartas-de-datas dos livros da
Câmara de São Luís, no século XVIII, os lotes do início daquele século até seus meados, em
média, de 5 braças de frente por 15 braças de fundo
127
, eram doados a todas as categorias
sociais e ocupações, sem privilégios quanto à concentração. Alferes, soldados, oficiais de
pedreiro, de carpinteiro, de ourives, clérigos, índios forros, ferreiros, mulheres, viúvas.
Entretanto, com o aumento econômico da lavoura, a capital portuária se tornou um espaço
valorizado, modificando a estrutura de distribuição de terras e possibilitando a hierarquização
espacial
128
.
Lembram, como já foi citado em outro momento deste trabalho que o espaço urbano
irá se alterar com a intensificação das atividades urbanas e a elevação e diversificação étnica
da população, cuja conseqüência é a valorização dos chãos urbanos
129
.
Ainda de acordo com os autores, todas as reformas que se seguiram ao período
pombalino tiveram como consequência no espaço urbano o acúmulo de terras em poder de
particulares. Afirmam os autores que, se no período anterior eram necessários argumentos de
126
CORRÊA, Rossini. Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís: SIOGE,
1993, p. 74.
127
Braças: antiga unidade de medida de cumprimento equivalente a dez palmos, ou seja, 2,20m. FERREIRA,
Aurélio Buarque do Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986,
p.326. Considerando essas medidas, vemos que o lote simples era uma pequena quinta, tipo 11por 33m. De
acordo com o código de posturas de 1866 muitos aproveitavam os quintais para criar galinhas, porcos, cabras e
até vacas.
128
MOTA, Antonia da Silva e Mantovani, José Dervil. São Luís do Maranhão no Século XVIII: a construção
do espaço urbano sob Lei das Sesmarias. São Luís: Edições FUNC. 1998, p.37-84.
129
ibidem, p.37.
102
ordem pública ou religiosa para adquirirem-se terrenos de maiores proporções, exemplo os
doados à Companhia de Jesus, os novos acúmulos que se dão por pedido de anexação de
terreno vizinho já não possuem justificativas nas cartas de doação. Esse processo é
intensificado nas últimas duas décadas do século XVIII. “A regularidade dos lotes verificada
antes de 5 braças de frente por 15 de fundo – deu lugar a lotes urbanos de até cinqüenta
braças ou mais..”
130
.
Consideram que o final no século XVIII a Câmara foi incisiva na cobrança dos foros
para restringir o controle de terras nas mãos apenas dos capitalizados. Que através desses
expedientes a propriedade imobiliária era tornada inacessível a uma camada da população
que, privada de meios outros de sobrevivência, por-se-ia a serviço do estamento
proprietário
131
.
Esta afirmação sobre o controle da mão-de-obra livre pela mão da não concessão de
espaços tem validade relativa, ao que parece se tratava de fato de uma disputa pelos espaços
privilegiados dentro da cidade, com retorno direto nos negócios e no conforto, cuja
consequência foi afastar a população livre e pobre para os lugares de piores acesso e
topografia, independente disso, dentro do sistema produtivo, quase sempre, só sobrava aos
pobres oferecer a mão-de-obra.
A persistência no perímetro melhor estabelecido não é, em si, garantia de auto-
suficiência. Ao contrário, é cada vez mais danosa à sobrevivência dos de baixa renda em
dinheiro, do tipo auto-suficiente, por causa de condições não só relativas à posse. Não só a
polícia foi mais rigorosa com o padrão construtivo já no início do século XIX, mas também,
com o tempo, foram tomadas medidas em relação àqueles que criavam animais em seus
quintais e os deixavam circular nas ruas e, o mais provável, é que esta prática de pequenos
130
MOTA, 1998, op. Cit., p.51.
131
MOTA, Antonia da Silva; Mantovani, José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto maranhenses e seu legado.
São Paulo: Siciliano, 2001, p.41.
103
criatórios de subsistência se afastasse das partes mais centrais da cidade. O artigo 151 da
Salubridade do código de 1866, dirá: fica proibido criarem-se porcos, vacas, carneiros e
cabras nos quintais e chãos dentro da cidade, sendo apenas concedido para uso doméstico
uma vaca ou uma cabra. Algo corriqueiro como vender peixe frito com acompanhamento de
cuxá
132
, nas portas e nas ruas para obter-se uma renda extra, uma persistente prática da cidade
de São Luís, teve restrições dentro da cidade e foi parar nas beiras e nas feiras
133
.
Mas o fato de algumas proibições ainda persistirem após a segunda metade do século
XIX, fosse por novos interesses, fosse por recorrência, demonstra que a renovação urbana
definitiva, em desfavor dos pobres, foi paulatina, impedindo a rápida formação de
aglomerados sectários. Em 1866, o código de posturas tenta inibir novamente as chamadas
“casas de palha’ no perímetro urbano, que ainda constituíam um entrave de “civilidade” e
segurança:
Dentro da cidade fica prohibida a edificação de casas cobertas de palha ou de qualquer outro
material de fácil combustão, e assim cobrir novamente de palha as que já o tiverem sido. As
contraventores a multa de dez mil reis, e na reincidência vinte, desfazendo-se a cobertura a
custa de quem estiver feito
134
.
À questão, a princípio, aparentemente restrita ao padrão de material construtivo, como
fator de expulsão de um tipo de morador que se aproveitava dos recursos diretos da natureza
132
Existia ainda a venda do "arroz de cuxá", que é um prato típico da culinária maranhense. O prato completo é
composto por arroz branco, peixe frito e o cuxá, recebendo impropriamente o nome de arroz de cuxá. O cuxá é
feito com os seguintes ingredientes: gergelim, farinha seca (branca), camarão seco, vinagreira (espécie de
verdura) e, como tempero, cheiro verde, cebola e pimenta. Pregoeiros de São Luís - Silvana Rayol. Boletim da
Comissão Maranhense de Folclore, nº 19, junho de 2001.
133
Código de posturas, op. cit., artigo 119, proibindo. Se tornou habitual fritar peixe nas periferias e festas
específicas. “No fim de uma rua uma lanterna encarnada numa portinha, anunciava peixe frito e arroz de cuxá,
que uma mulata quarentona, nhá Cesária Canela, expunha todas as noite a venda”. PINTO, Fulgêncio. Dr.
Bruxelas & Cia. São Luís: Typ. Chaves & CIA, 1924, p. 51.
134
Código de posturas, op. cit., p. 20.
104
disponíveis, com o avançar do século, se soma o custo da exposição pública, o de manter as
aparências, ter calçadas e construir esgoto, produzir um desenho para ser aprovado na
Câmara, constituindo fatores restritivos ao morar no perímetro da cidade para quem tinha
poucos recursos:
Ficam obrigados os donos dos prédios desta cidade situados no perímetro marcado no artigo
53 , a mandar rebocar e caiar pintar ou estucar as paredes exteriores dos mesmos prédios, que
não forem de azulejos ou estuque, não tenham sido recentemente pintadas ou caiadas, e a
renovar a caiação todos os anos e a pintura de três em três anos. Aos contraventor a multa de
trinta mil reis, e o dobro no fim de cada prazo de quinze dias, que lhe for marcado para o
fazerem
135
.
Os donos de chãos e terrenos dentro da cidade não consentirão nelles immundicias, nem águas
estagnadas, nem tão pouco a edificação de casebre sem que na frente façam parede que simule
o frontispício de casa, cujo risco e desenho deverão ser aprovados pela câmara
136
.
De outro lado, na sociedade escravista, a construção de um padrão construtivo de
escala maior e mais sólida não significa um distanciamento entre as elites proprietárias, os
trabalhadores escravos e muitos intermediários livres. Ao contrário, os sobrados comerciais
teriam que abrigar além da família proprietária, escravos domésticos, trabalhadores caixeiros
e suporte para estrebaria e toda a parafernália de depósitos. Os demais sem função comercial
também hospedavam seus trabalhadores escravos e eventuais trabalhadores livres.
A descrição arquitetônica do padrão residencial dos sobrados urbanos de comercio,
adaptados ao clima tropical e à sociedade, destaca as múltiplas funções da edificação, para
vendas ou serviços na parte baixa, residência nos pavimentos de cima, divididos entre o andar
dos proprietários e um pavimento destinado à hospedagem dos caixeiros viajantes
137
. Tem-se,
135
Código de posturas, op. cit., p. 19.
136
ibidem, p. 57-8.
137
Sobre a arquitetura do Centro Histórico e suas funções ver: CENTRO HISTÓRICO DE SÃO LUÍS –
MARANHÃO: Andrés Luis phelipe de Carvalho Castro (org.). São Paulo: Audichromo Editora, 1998, p.39-
42. e SILVA F. Olavo Pereira Da. Arquitetura Luso Brasileira no Maranhão. Belo Horizonte: Formato,
105
então, uma situação de convivência entre distintos segmentos sociais em circunstância de
compartilhamento do espaço construído.
Na hierarquia do sobrado, a parte inferior é a mais desqualificada em termos de status,
por ser destinada ao comércio de todo tipo, onde circulam carroças levando e trazendo
mercadorias e onde trabalhadores braçais atuam incessantemente; ou por abrigar a escravaria,
ou, ainda, por se prestar a aluguéis de baixa renda. O inquilino aí sofria de maior umidade e
menor circulação de ar, principalmente no tipo porão baixo, logo suscetível a doenças. Depois
que em meados do XIX muitas epidemias grassaram, a Câmara passou a coibir este tipo de
morada quando não asséptica. Proibiu-se a moradia em quartos inferiores dos sobrados
quando nas paredes internas deles não houvesse aberturas para a renovação e circulação de ar.
Os que morassem em tais quartos pagariam a multa de cinco mil reis e o dobro de quinze em
quinze dias, em quanto não mudarem
138
. Aqui parece se tratar dos livres.
Os escravos urbanos aparecem morando nas propriedades de seus senhores, em regra
no mesmo edifício, nas tais partes baixas ou em quintais, é como ocorre nos testamentos de
proprietários
139
, desde o século XVIII, a citar este trecho detalhado de 1752:
Dona Lourença legou dinheiro para ex escrava Dona Margarida remir do cativeiro a neta
Sotéria e alforriou e legou 10 mil réis (..). à sua escrava Clara, deixando-lhe também o "rancho
nos fundos do meu quintal (..). em que moram alguns dos meus escravos (..). porém não os
chãos dele, (..). pertencentes às casas, e a quem as comprar (..). (mas assegurando-se de que)
enquanto ela (ex escrava) viver, não possa ser lançada fora nem (..). pagar pensão"
140
.
A proximidade entre senhores e escravos leva a diversas situações conflitantes pela
condição dessa situação de domínio em um mesmo ambiente doméstico. Rose Silva
1998, p.33-126.
138
Código de posturas, op. cit., p. 60-1.
139
MOTA, 2001, op. cit.,
140
MOTA, Antonia da Silva; Mantovani, José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto maranhenses e seu legado.
São Paulo: Siciliano, 2000, p. 20.
106
trabalhando com situações de convivência na sociedade escrava no Maranhão, com maior
incidência em São Luís, informa que os testamentos evidenciam as alforrias e a transição de
escravos em duas situações, ou como bens ou como herdeiros, tendendo a esboçar-se, em
regra, uma situação de harmonia e vínculo afetivo entre o senhor e o escravo,
Os fatos são apresentados como se houvesse uma harmonia familiar entre senhores e escravos,
fortemente marcada por um afeto recíproco que envolve desde consangüinidade até
concubinatos, passando por reconhecimentos por serviços prestados, assistência na velhice,
etc. Tal vínculo afetivo, por mais sincero que seja - e sem dúvida o é, nos testamentos - a rigor
mal disfarça o interesse material de obter do escravo um máximo de serviços ou rendimentos,
e do senhor a predileção, privilégios e proteção.
141
Entretanto, segundo pesquisou a autora, os divórcios e justificações de Sevícias
tornam evidentes os costumes e valores daquela sociedade escravista, evidenciando os
conflitos e subdivisões de status e estatutos dentro de uma sociedade já plenamente polarizada
pelo ser e não ser livre. Rose Silva destaca que, em todos os casos de litígio estudados o
escravo é o grande mediador do debate, objeto de desejo sexual, causador de mágoas,
testemunha de casos, e até carrasco de livres. Em tais circunstâncias, penso que a autora
chegou a esboçar um quadro onde se convive com os desiguais.
Ainda nestes documentos percebe-se toda a dinâmica da sociedade, em que um é vizinho do
outro, pessoas se encontram para contar casos numa “logéa” ou num armazém, participam de
casamento para poder desfrutar da alegria conduzida por uma “assembléia de música”,
escutam discussões de vizinhos do quintal de suas casas, ou seja, fatos corriqueiros que
141
SILVA, Kelcilene Rose. Troca de amores e favores: senhores e escravos no Maranhão setecentista.
[online] Disponível na Internet via www.nethistória.com/secoes/hb.shtml
. Arquivo capturado em 20 de junho
de 2003. Neste trabalho, a autora contou com um corpus de oitenta e um testamentos que fazem parte de dois
livros de testamentos entre 1763 e 1800, treze divórcios, três justificações de Servícias, um Auto de
Justificação e um Feito Civil, documentação do acervo da Arquidiocese de São Luís, atualmente sob
administração do Arquivo Público do Estado. Desvenda do teor dos documentos, situações variadas, que no
conjunto compõem o quadro de negociação e conflito na sociedade escravista maranhense.
107
mexem com a sociedade, hábitos que têm dia e lugar marcados, como a “noite da iluminação da
Ponte da Alfândega”, e retratados por aqueles que vivenciaram seus momentos
142
.
As circunstâncias de convivência entre senhores e escravos se intensificam, quando a
população cativa do Maranhão chega aos mais altos níveis brasileiros, com reflexo em São
Luís. De acordo com os levantamentos de Jalila Ribeiro, a princípio, entre 1757 e 1777, o
Pará e o Maranhão receberam por tráfico da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e
Maranhão cerca de 25.965 escravos. Deste total, 12.587 “peças
143
” ficaram no Maranhão
144
.
A pesquisadora detecta um vazio estatístico, mas encontra informantes para afirmar
que, só entre 1812 a 1820, os escravos entrados no território maranhense, vindos da costa da
África ou de portos brasileiros, foram 36.356, numa média anual de 4.000 cativos. Em 1819, o
Maranhão com 133.332 escravos, ficava atrás de Minas Gerias com 168.000; Bahia com
147.263 e Rio de Janeiro com 146.060. O vizinho Pará, que havia iniciado o processo
importador por igual, mantinha 33.000 escravos, apenas 26,6 do percentual da população,
enquanto no Maranhão era de 66,6%, o maior índice brasileiro de então.
142
SILVA, Kelcilene Rose, op. cit. Os Autos de Justificação e Feito Civil, que trabalha a autora, relatam
justificativas de batismo, paternidades, estado civil, no primeiro caso, e querelas judiciais como prestações de
contas de testamenteiros, queixa de agressão, cobrança de débitos, no segundo caso. Com os documentos a
autora fez três séries de abordagens. A primeira trata da dubiedade da situação do escravo nos testamentos, ora
como bens, hora como forros e herdeiros, ressaltando que a condição de forro e/ou herdeiro também implicava
limites e obrigações. A segunda, principalmente com documentos de divórcio traz a violência, os maus tratos e
a agressão não só do senhor ou senhora contra o escravo, mas também contra a mulher, ainda que senhora e
livre, por parte de senhores e até com uso de escravos.
143
“Os escravos chamavam-se peças. Como fôlegos vivos, e bens perituros, acautelava-se o perigo da sua perda.
Como gado ou mercadoria, marcava-se, e carimbava-se para não se confundirem uns com os outros, em
prejuízo dos respectivos senhores. Cometiam-se crimes, e um dos mais graves era tentar fugir do cativeiro,
julgavam-se em voz, sem forma nem estrépito de juízo; e a mutilação, e a marca de ferro em brasa, já
instrumentos de boa arrumação mercantil, e sinais distintivos da propriedade, passavam a figurar entre as
disposições da política e justiça real. Nunca a tirania doméstica havia descido tão baixo. LISBOA, João
Francisco. Jornal de Timon – apontamentos, notícias e observações para servirem à história do
maranhão. Tomo II, 2º vol. Brasília-DF: Editora Alhambra, edição sem data, p.60. a edição original é de 1858.
144
RIBEIRO, Jalila Ayoub Jorge. A desagregação do sistema escravista no Maranhão. São Luís: SIOGE,
1990. p. 55-7.
108
O Ouvidor Bernardo da Gama em 1813 sentenciou existir em São Luís 18.000
habitantes, sendo apenas a décima parte de brancos (calcula-se consequentemente 1.800).
A cidade é pequena, e compoem-se de duas freguesias, as quais em soma contem o número de
dezoito mil habitantes de todas as cores, sendo de brancos só a décima parte; mas toda a força
da população acha-se espalhada pelas fazendas, visto que a agricultura é o forte do Paiz,
principalmente nas margens do dito Itapecurú, a quem deve toda a sua opulência; daqui vem o
achar-se as ruas da cidade quase sempre desertas, e raramente avista-se nelas um homem
branco
145
.
Se, para o início do século XIX, os números referentes ao Maranhão, entre livres e não
livres refletirem a situação de São Luís (onde, teoricamente, há mais ocupação para livres e
mais casos de alforria), 66,6% seriam de escravos, ou 11.988 e 6.012 livres, logo, retirado os
10% de brancos (não necessariamente ricos), flutuaria uma população estimada de 4.212 entre
negros, pardos e índios livres, que seriam teoricamente responsáveis, em parte, pelas moradias
entrepostas aos edifícios nobres. Os demais locais de moradia de baixa renda “sem
impeditivos” ficariam nas beiras, em terras sem domínio da Câmara (zona de preamar), com
os moradores ocupados com a pesca e o pequeno comércio de gêneros diversos.
Se no início do século XIX se fala de moradores pobres entre casarões, para o fim
desse século e começo do XX, as referências aos lugares para essa gente remetem cada vez
mais às Praias, designação que se refere às duas margens dos rios Bacanga e Anil que se
encontram na Baía de São Marcos e circundam a paisagem do núcleo principal da cidade na
época
146
, como a do Caju, do Desterro, Praia Pequena, Madre de Deus, Jenipapeiro, Praia do
Açougue, Praia do Armazém e Praia de Santo Antonio
147
. Tais áreas de preamar não eram de
145
GAMA, op. cit., p. 10.
146
Atualmente todas substituídas pelo Aterro do Bacanga, no Rio Bacanga e Avenida Beira Mar, na Parte do Rio
Anil.
147
A designação de praias se refere às duas margens dos rios Bacanga e Anil que se encontram na Baía de São
Marcos e circundam a paisagem do núcleo inicial da cidade.
109
domínio da Câmara, que tinha que preservar trinta braças de beira, tendo se tornado zonas de
ocupação.
A Praia de Santo Antônio, decorrente da Igreja de Santo Antonio no alto da colina,
aparece como uma das mais antigas referências de moradias de baixa renda, não sem
propósito ali esteve instalado o primeiro matadouro da cidade e, na vizinha Praia do
Armazém, o primeiro patíbulo. Pelo que publica Aluísio de Azevedo em 1881, continuou no
final do século XIX a ser de uso popular:
Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de uma
buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergirem, apressadas e
cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça,
rebolando em grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas
148
.
Mas, se ao morador livre e pobre as medidas de reordenamento urbano podem afastar
para a periferia contínua, aos cativos, a quem coube a convivência em meio aos proprietários,
deveriam ser contidas as atitudes consideradas não civilizadas, rudes ou bárbaras, praticadas
na vizinhança, conflito que se intensificou na segunda metade do século XIX. Também a
proximidade que fazia compartilhar as práticas dos escravos, expunha os métodos rudes de
repressão dos senhores. As novas leis precisavam também conter a própria rudeza dos
proprietários, atingindo as práticas grotescas de repressão aos escravos
149
. Como conhecido
no código de 1866:
148
AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1991, p.15.
149
A referência aos códigos de posturas e aos livros da Câmara naquilo que eles sugerem de condicionamento
social para todas as classes, como uso de multas e cadeia, demonstrando que o processo civilizador atinge
indiscriminadamente o conjunto da sociedade. Civilizar não era só uma questão de reprimir os “rudes”, acima
de tudo as “práticas rudes”, incorporadas em condições históricas anteriores, só possível com o monopólio da
força. É comum nos códigos dizer-se “pelo escravo pagará o senhor”. Em outra escala é similar à construção do
monopólio da força para os estados nacionais como se encontra em Weber: “ Daí segue-se que não é difícil de
compreender que, com esta monopolização da violência física como ponto de interseção de grande número de
interconexões sociais, são radicalmente mudados todo o aparelho que modela o indivíduo, o modo de operação
110
É expressamente proibido andarem pelas ruas da cidade escravos com gargalheiras, grilhetas
e outros instrumentos de castigo. Aqueles que assim forem encontrados serão retidos por
qualquer dos fiscais que depois de tirar-lhes os mesmos instrumentos, os entregará aos
senhores, que pagarão a multa de dez mil reis, e o dobro nas reincidências
150
.
Diante do cenário delator de brutalidade, com escravos que percorriam as ruas com
instrumentos de confinamento, correntes no pescoço e nas mãos, escravos velhos e
improdutivos mendigando pelas ruas
151
, ainda a crueldade com os animais de carga e o
castigo corporal nas aulas. Havia uma sociedade envergonhada de tantas práticas públicas de
repressão, antes rotineiras, a que se somam as atitudes de incômodo frente ao patíbulo e ao
pelourinho.
E por esta época, é verdade que não mais combinavam com o ar de civilidade
implantado na cidade, mas a repressão apenas passava do lugar público aos porões dos navios,
pois, ainda depois da implantação da República, este aparelho era usado contra os que se
colocavam fora da ordem.
O código de posturas de 1866 ainda frente aspectos de uso do espaço público e formas
de entretenimento, tinha diversas restrições, como horário para bebidas e jogos, : “as lojas de
bebidas espirituosas e casas de jogo lícito se conservarão abertas só até as dez horas da
noite” (p.33); Embriaguez pública: “A pessoa que andar embriagada pelas ruas desta cidade
das exigências e proibições sociais que lhe moldam a constituição social e, acima de tudo, os tipos de medo que
desempenham um papel em sua vida”. Apud: ELIAS, Norbert. O processo civilizador – uma história dos
costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. Neste aspecto, e também referente às câmaras para o século XIX,
Amaral Lapa dirá como palavras diretas: “O poder público que representa os dominantes legislará sobre os
dominados, mas também sobre os que dominam, pois há uma relação de forças que, o implicando geralmente
em reciprocidade, precisa legitimar-se, contudo, para poder ter efeito e socializar a idéia de que a lei é para
todos”. LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. São Paulo:
EDUSP, 1996, p.126.
150
Código de posturas, p. 34.
151
Ibidem, p.34-5.
111
será multada em dez mil réis e três dias de prisão, e sendo escravo será entregue a seu
senhor para que este o puna como entender” (p.36); Por insultar pessoas nas ruas e por
gritarias (p.33); Reunião de escravos nas quitandas: “São proibidas as reuniões de mais de
quatro escravos nas quitandas ou qualquer outra casa de comércio desta natureza onde
vendem bebidas espirituosas, mormente se estiverem entretidos em jogos de rifas” (p.40).
Tudo, explicitamente tinha o objetivo de uma “higenização social” - tentando impedir as
práticas corriqueiras dos despossuídos, que tinham apenas as ruas como lugar para vivência
coletiva -, em favor de uma civilidade desejada.
Muitas restrições aos tipos embriagados que percorriam as cidades e vilas da província
eram recorrentes e à embriaguez alcoólica está associado o uso de outras drogas. Assunção
lembra sobre bebidas, desde a dos índios à da cana introduzida pelos europeus:
O cauim não foi integrado à subcultura rural, e os caboclos tinham que ficar embriagados com
a cachaça de cana ou a tiquira, um alcool feito de mandioca. Ulteriormente, a supressão da
embriaguez pública tornou-se uma das leis “modernizantes” que as elites brasileiras
impuseram ao povo, seguindo o modelo europeu ocidental. Tais leis foram também decretadas
no Maranhão do século XIX (Collecção de Leis, 1846: nº 225)
152
.
A proibição de práticas conhecidas como a nudez e o uso e venda de diamba
(maconha) pelas ruas da cidade – o que deveria ser corriqueiro – são tão relevantes quando a
repressão à embriaguez alcoólica.
É proibido em lugares públicos o fumar diamba ou expô-la ou vende-la para tal fim
(Art.52, 1866). Assunção considera que esta prática (plantar e usar cannabis sativa),
provavelmente trazida da África, era parte integrante da formação cultural popular,
empregada em algumas casas de culto Afro-brasileiro para facilitar os transes dos recém
iniciados. “Seu uso era tão difundido e importante entre camponeses e pescadores do
152
ASSUNÇÃO. Matthias Röhrig. A formação da cultura popular maranhense. Algumas reflexões
preliminares. In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 14, agosto de 1999.
112
Maranhão que alguns estudiosos têm atribuído uma função estrutural à cannabis sativa no
folclore”
153
.
Bernardo da Gama em seu relatório de 1813, que ressaltou somente os aspectos que
considerava negativos na urbanidade e comportamento do morador de São Luís, constatava
ser comum ver-se pessoas da plebe andando nuas.
E por que os costumes não são derigidos pelo medo de Religião, a modéstia, e a honestidade
de famílias (era consequência necessária), passaram a ser palavras vãs, o que fazem objeto de
mofa. A desenvoltura tem chegado ao último auge, que se pode comprehender, athé pela
escandalosa impudência, e nudez, com que as da plebe (que são a maior parte) estão
habituadas a andar pelas ruas públicas, cuja vista, e familiaridade tem geralmente feito
disvanecer-se o pudor de todas do mesmo sexo
154
.
A questão higiênica era diretamente relacionada à moral coletiva, a nudez e ao sexo. O
médico José Maria Faria de Matos, um dos responsáveis pelo parecer sobre localidade
apropriada para cemitérios com relação à salubridade, em 1854, apresentou um relatório ao
presidente da província, indo além da questão do cemitério, propondo medidas gerais de
saneamento, moralidade e polícia para a cidade, dizendo:
Derramai o batismo da instrução sobre a cabeça do povo, aboli a mendicidade, melhorai o seu
estado de finanças, e regulareis essas afecções morais, essas nevroses terríveis, que começam a
aparecer entre nós debaixo das formas as mais bizarras. Estabelecei medidas enérgicas,
violentas mesmo, de repressão contra a imoralidade Pública, que há tocado o seu apogeu de
intensidade, e diminuireis pelo menos a soma de sífilis que infecciona a nossa população e
com ela as moléstias por astenia e consunção, e entre as quais figura a tísica. A Província já
vos deve muito, fazei tudo isto, e dever-nos-á mais ainda, e uma sociedade inteira vos
agradecerá, e a humanidade que sofre vos agradecerá e abençoará - Deus guarde a V.
Exa. - Maranhão, 1 de maio de 1854. - limo Exmo. Sr. Dr. Eduardo Olímpio Machado,
Presidente da Província. - José Maria Farias de Matos
155
.
153
Ibidem.
154
GAMA, op. cit., p. 23
155
MARQUES, op. cit., p. 196-7.
113
Assunção resgata uma carta publicada no jornal Farol Maranhense de 1829, em que o
autor reclama da desmedida nudez de homens e mulheres de todas as idades pelas ruas,
inclusive nas fontes públicas, fonte que ressalta que isso não existia nas cidades européias, ao
que parece um dos principais parâmetros, devido aos viajantes que circulam nos dois
mundos
156
. [...]He tal a pouca vergonha no Maranhão que de dia há quem se banhe nas
fontes públicas, e nos poços particulares expostos ao público, e isso no meio da Cidade [...]
homens, mulheres de todas as idades”
157
.
Mesmo no âmbito das festas religiosas praticadas pelas irmandades onde se viam
muitos dos segmentos sem posse, escravos ou não, havia notícias da prática da nudez (aqui
parcial, mas nem sempre o era), como ocorre em 1852 em que o bispo D. Manuel Joaquim da
Silveira considerou existirem um grande número de crianças já púberes que se apresentavam
como anjos, seminus, na Festa de São Benedito a que saía do Largo da Igreja de Santo
Antônio:
Sendo informado que na procissão de S. Benedito, que faz na 2.a feira depois do Domingo de
Páscoa a irmandade do mesmo santo, se apresenta um grande número de crianças entre elas
algumas já puberes, seminuas – o que é um verdadeiro desacato ao acto religioso, e que
escandaliza ao Povo Christão, fique V. Paternidade na inteligência, de que não permitimos,
que d’ora em diante acompanhem a dita procissão taes crianças, a que chamam Anjos, neste
estado de seminudez, com quanto aliás, muito enfeitadas; mas se deverão apresentar
inteiramente vestidas, seja qual for a sua condição – livre ou captivo
158
.
156
As críticas e sugestões de organização social no período tem matrizes diversas e espelham o viver desde a
capital do Império à Europa. Como dissemos, os códigos de posturas da Câmara de São Luís, referendado pela
Assembléia Provincial, não é um marco inaugurador, antes resultado de críticas somadas, tanto de funcionários
do império, médicos, sanitaristas e engenheiros, conhecedores de outras sociedades brasileiras e estrangeiras
em estágio diferente de valores, quanto de moradores em busca de ordem e disciplina e, de certa forma, contém
medidas parcialmente implantadas
157
Farol Maranhense, São Luís, 1827:470. Apud: ASSUNÇÃO, op. cit., 1999.
158
PACHÊCO, D. Felipe Condurú. História Eclesiástica do Maranhão. São Luís: S.E.N.E.C. -Departamento
de Cultura - MA, 1968, p. 190.
114
Concluiu o bispo dizendo que para levar a cabo a proibição, o Revdo., guardião do
Convento de Santo Antônio, deveria proibir a saída de tais procissões e em caso de insistência
fizesse recolher a Irmandade e desse o ato por terminado.
As proibições e as posturas parecem que correram atrás de reincidências e se
reeditaram, pois, sobre nudez, reaparece no Código de 1866:
Todo que for encontrado nu, ou indecentemente vestido pelas ruas desta cidade e povoações,
ou a lavar-se nu nas fontes públicas e porto, incorrerá na multa de cinco mil reis e três dias de
prisão, devendo pelo escravo pagar o senhor.(1866, p. 08)
Essa mesma gente “lasciva”, que fumava e bebia, tinha a seu modo próprio de
diversão, juntava-se na cidade para acompanhar procissões ou montar congos, de origem
africana, Caninha Verde, de dança e coreografia européia, ou em baralhos, uma peça lúdica de
caráter abrasileirado. As festividades de negros eram genericamente descritas como batuques
e regularmente proibidas, pois pareciam tumultuar o ambiente das famílias proprietárias ou,
junto com as drogas, precipitar brigas, que podiam ir de rebeldias à destruição do patrimônio,
representado pelo próprio escravo.
No código de 1866 não havia uma proibição direta ao que chamam genericamente de
batuques, mas eram permitidos somente em lugares próprios. “Os batuques e danças de
pretos são proibidos fora dos lugares permitidos pela autoridade”
159
, sendo em São Luís um
dos lugares o caminho de saída da cidade, denominado Caminho Grande.
Assunção sugere que seja uma generalidade para a Província Maranhense já no início
do século XIX:
Na realidade, a "privatização" do catolicismo torna difícil uma generalização acerca
das atitudes da elite diante da religião escrava. Se pudermos confiar nas considerações do
159
Código de posturas, op. cit., p.43.
115
Poranduba, os batuques eram tolerados no final do período colonial no Maranhão: "Para
suavizar a sua triste condição fazem, nos dias de guarda e suas vesperas, uma dansa
denominada batuque, porque n’ela usam de uma especie de tambor, que tem este nome"
(PORANDUBA, 1981:138). Dos anos 1830 em diante, as Câmaras Municipais começaram a
proibir os batuques dentro das cidades depois do toque de recolher, como por exemplo em
Caxias: "Depois do toque de recolher são prohibidos os batuques de negros dentro d’esta villa,
o Juiz de Paz designará o lugar para tais batuques".("Registro das Posturas da Câmara
Municipal de Caxias [...]", 14 de Março de 1831, Lei Municipal No.30, Livro de Atas da
Câmara Municipal, Arquivo Municipal da Cidade de Caxias, Maranhão. Ver também
Collecção de Leis (1841:No.139) para uma lei municipal similar em São José
160
.
Conclui que isto sugere que a repressão institucional, embora presente, não fosse
completa, e tentou limitar a celebração dos batuques a lugares fora das cidades e das vilas e,
que leis similares foram reeditadas durante a década de 1860, demonstrando reincidência.
Se, para fazer batuques era necessário sair da cidade, ao menos do perímetro
urbanizado dela, significa que tais “batuqueiros” não residiam fora dela. Se assim o fosse,
estavam, ao contrário, sendo proibidos de entrar na cidade, logo, era gente do convívio interno
a ela. De outra parte, mandar os escravos se juntarem longe dos olhos e controles dos
senhores não parecia ser bom negócio.
No final do século XIX, mas ainda sob o regime escravo, o trabalho doméstico cativo
parece rarear, em função de diversos fatores que vão do aumento das alforrias à evasão de
mão-de-obra para o sul do País, de onde decorre a escassez e alto preço. Em parte isto
160
ASSUNÇÃO, op. cit. 1999. As fontes citadas são: PORANDUBA MARANHENSE OU RELAÇÃO
HISTORÍCA DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO [...] (1891), Revista do Instituto Histórico-Geográfico
Brasileiro, t.54, Vol.83: 9-184; COLLECÇÃO DE LEIS (1835-1880), Collecção de Leis, Decretos e
Resoluções da Província do Maranhão (São Luís). A obra completa do autor é: ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig
(1995), ‘Popular Culture and Regional Society in 19th Century Maranhão, Brazil’, Bulletin of Latin American
Research, vol.14, 3:265-286.
116
justifica terem elaborado uma Lei de contratos, em forma de código de posturas, em 1882,
nos moldes franceses, para criados, amas de leite, moço de hotel, cocheiros e outras
ocupações. Tratava-se de uma imitação do livret d’ouvrier com regulamentações reordenadas
por Napoleão, um tipo de carteira de trabalho emitida pela polícia, de que constavam os dados
pessoais do trabalhador: nome, função residência e informação do empregador
161
. Na postura
de São Luís constam direitos e deveres de empregado e empregador e aviso prévio de ambos
os lados para casos de rompimento do contrato
162
(anexo). Contudo, na mesma lei, os
trabalhadores residem na casa de seus empregadores, logo submisso à flexibilização do
trabalho extra, não contratual e exploratório, numa versão sofisticada de trabalho escravo e de
continuidade da convivência com desigualdade.
Sendo assim, na nova ordem, aqueles que não podiam ser apartados da convivência,
pela restrição espacial, eram controlados em seus comportamentos por leis e limites, podendo,
no desejo das famílias proprietárias, se manifestar coletivamente desde que longe dos
“espaços civilizados”. Na prática, porém, a disputa da ordem da cidade irá para além dos
aparelhos urbanos e dos lugares onde se vive. As posições passarão ainda por um jogo de
distinção, estigmas e hierarquias.
161
GONÇALVES, Emílio. Carteira de trabalho e previdência social. 2.a ed. São Paulo : LTR, 1992. p. 17
162
De acordo ainda com Gonçalves, No Brasil um dos documentos mais antigos, com características
semelhantes às da Carteira de Trabalho e Previdência Social, nos moldes de hoje, é o livro de registro de
menor, estabelecido pelo Decreto-Lei nº 1.313, de 17 de janeiro de 1891. Ibidem, p. 18.
117
CAPÍTULO V
Conviver com os desiguais e ser distinto. A ordem simbólica.
Do século XIX apareceram documentos sobre como os grupos sociais podiam
concorrer para um mesmo espaço a fim de fruir do lazer, agregados em torno de alguma
festividade da Igreja Católica, mas se mantendo distintos. Entretanto, no decorrer daquele
século, aparecerão formas de congregações sociais separadas e conflitantes, cada uma com
seus próprios grêmios na disputa pelos espaços da cidade.
No primeiro caso, observamos tais festividades relacionadas à Igreja e ocorrendo fora
do perímetro principal da cidade, onde se instalavam conventos e hospícios - para garantir
isolamento necessário a essas atividades.
Temos notícia mais antiga dessa forma de ajuntamentos públicos, dos que se
realizavam desde os primeiros anos do século XIX, nas festividades que ocorriam na capela
do Senhor do Bomfim, na Ponta do Bomfim, do outro lado do Rio Bacanga, em frente à
cidade, localidade que já citamos como lugar onde se fazia quarentena dos pretos recém-
chegados para o trabalho escravo.
Da cidade concorriam muitas pessoas, umas por devoção, e muitas por mero recreio e
passatempo. Armavam-se barracas, dançava-se e cantava-se muito ao som de vários
instrumentos. O convento dava lauto e esplêndido. Porém, neste ano aparecendo alí muitos
africanos com danças escandalosas, algumas pessoas embreagadas, grande tumulto no
embarque, havendo até uma canoa perdida, e alguns ingleses que muito insultaram a Frei José
de Santa Rita, presidente apostólico e perpétuo do mesmo hospício, resolveu este não dar mais
jantares e foi a festividade a pouco e pouco se acabando até extinguir-se de todo
163
.
163
MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. 3. ed., SUDEMA, São
Luís, 1970. Edição original de 1870, p. 157.
118
Por causa das divergências entre os segmentos envolvidos e os descontentamentos,
tais jantares festivos no Bomfim foram extintos em 1827, mas, ao que parece, este modelo de
festas que permitia serem compartilhadas sem deixar de evidenciar as diferentes categorias
sociais, não era ocasional e sim recorrente em São Luís. De uma de suas fontes, o historiador
Mario Meireles
164
no histórico do Convento das Mercês, nos remete a uma composição básica
de três segmentos distintos. Em um mesmo evento se podiam encontrar pessoas gradas
(entenda-se famílias proprietárias e da classe dominante), população (lida como gente livre e
provavelmente pobre), e negros escravos, assim descrito:
Cada vez mais famosas e faladas se fariam, com o passar do tempo, não só as missas
oficializadas com a ajuda de um coral de noviços e catecúmenos, como as festas, geralmente
novenárias, com que eram comemorados os dias de São Pedro Nolasco, São Raimundo
Nonato, Nossa senhora das Mercês, Nossa Senhora da Assunção, Nossa Senhora do Socorro,
de Páscoa e de Natal, sempre terminadas em laudos banquetes e que eram convidadas as
pessoas gradas, enquanto a população se divertia no largo, em torno do Cruzeiro que
degrontava o templo e enquanto os negros escravos cantavam sua nostalgia no rítmico de seus
batuques
165
.
Anteriormente anotamos poder-se distinguir três grupos na questão do espaço de
moradia, enquanto aqui eles se distinguem pelo espaço que ocupam no mesmo evento de
lazer: o banquete dos mercedários, dentro do convento, para os grados; o pátio, para a
164
No livro Dez estudos históricos em que aborda o tema, o autor não usa a informação diretamente ligada à
fonte, apenas declina as fontes que usou para compor o trabalho. ...”César Marques, em seu Dicionário
Histórico e Geográfico da província do Maranhão, Jerônimo de Viveiros e Antônio Lopes, em seus estudos
sobre Alcântara e, também, o que se lê em historiadores paraenses, como Baena, Ernesto da Cruz e Leandro
Tocantins, e ainda o que possa colher nos que escreveram a História da Igreja no Maranhão, como os jesuítas
Bettendorff e José Moraes, e os bispos D. Francisco e D. Felipe Condurú”. MEIRELES, Mário Martins. Dez
estudos históricos. São Luís: Alumar, 1994. p.31
165
MEIRELES, Mario Martins. Convento das Mercês. São Luís: Fundação Memória Republicana, 1991, p. 10.
119
diversão dos livres e, provavelmente na parte de fora, os negros escravos com o seu próprio
lazer e batuques. Juntavam-se assim os grupos em convivência, desiguais e distintos.
Ainda na metade do século XIX temos uma referência semelhante na Festa de Nossa
Senhora dos Remédios, tendo em comum ser festa distanciada do núcleo residencial mais
importante. Realizava-se na Ermida dos Remédios, construída em 1820, numa das pontas da
cidade, lugar de ampla visão para as margens do Rio Anil até onde desemboca na Baía de São
Marcos, que, como vimos, só veio a ter ocupação residencial regular no último quartel do
século. João Francisco Lisboa, no seu folhetim de 1851, fazendo uma concessão aos seus
escritos predominantemente políticos, registrou a festividade in loco, quando esta parecia
estar no auge, destacando o caráter de ser aglutinador de todas as classes:
A festa dos Remédios é a mais popular desta boa cidade de São Luís, quero dizer é a festa a
que concorre maior porção do povo de todas as classes e condições, e a que, na variedade das
distrações que proporciona, deixa mais satisfeitos os concorrentes
166
Trinta anos depois, aparece descrita no romance O mulato de Aluízio de Azevedo,
cujo estilo realista fez citar o próprio folhetim de João Lisboa e variadas datas relacionadas à
Igreja e sua construção. Ambos carregam nas tintas nos diversos tipos sociais que ali
frequentavam, desde escravos aos alforriados, das doceiras às pretas minas com seus cordões
de ouro, dos chefes políticos e militares às senhoras e mocinhas vestidas com a última moda
de Paris, tudo em uma grande catarse coletiva.
Para entender que isso não significou uma confraternização além das fronteiras
hierárquicas e de poder da sociedade (como é comum na abordagem romanceada que se faz
da cidade), é preciso observar com atenção duas descrições de João Lisboa do cenário
externo, no Largo, e no cenário interno, na Igreja. No externo, nem todos estão ali exatamente
166
O folhetim - cuja característica era de ser pequenos contos e romances de rodapés de jornais - de João Lisboa
foi publicado em formato de livreto: LISBOA, João Francisco. A Festa de nossa Senhora dos Remédios. São
Luís: Editora Legenda, 1992, p. 27.
120
para se divertir, o grupo que presta serviços diversos é consideravelmente grande, nas
barracas de bebidas e comidas, nos brinquedos, nas mulheres doceiras com seus tabuleiros, o
que certamente não eram atividades para as famílias ricas, que só iam fruir amenamente da
festa e expor suas modas. Do lado interno à ermida, descreve:
Entramos na igreja, é pequenina, e está principalmente atulhada de pretas e mulatas; as
brancas, as senhoras, a gente do grande tom, essa ocupa as tribunas, as janelas, e até os púpitos
que das salinhas assobradadas, que estão ao lado da igreja, deitam para o interior dela. Nestas
salinhas há mais fresco, e melhor companhia, e o espírito mais bem disposto, pode melhor
entregar-se à devoção e às meditações religiosas
167
.
Ao distinguir a elite dos demais grupos, o texto de Meireles, sobre a Festa do
Convento das Mercês, que, provavelmente, só acompanha uma definição de sua fonte de
época, fala de gente de bom grado, enquanto João Lisboa fala, em seu próprio tempo, de
gente do grande tom. A bondade e a grandeza como fator distintivo estão rigorosamente
presentes quando se trata dos mais ricos frente aos demais.
No entanto, a melhor rota a ser seguida, é que esta forma de ser distinto, na
convivência como os desiguais, progressivamente tenha mudado ao passar do século XIX.
Aluísio da Azevedo relata no informe literário consequente, que no final deste século a festa
da Igreja dos Remédios já não era tão importante quanto antes, e fora decaindo desde o tempo
em que João Lisboa a descrevera, em 1851. Provavelmente porque, de meados deste século
em diante, já existiam outras formas e opções do grupo da elite demonstrar seu poder
simbólico, convivendo no lazer com seus pares. Assim, a “Festa de Remédios” teria sido a
última sobrevivência de uma ordem antiga de exercer lazer com “todas as classes”, na
descrição de João Lisboa. Veremos como isso se construiu.
Em 1813, entre outras críticas que já vimos, Bernardo da Gama também condenava a
ausência de erudição e lazer por causa da existência de muito dinheiro corrente e o
167
LISBOA, op. Cit., p.35.
121
estabelecimento na cidade de muitas famílias ricas sem que estas pudessem gozar das
amenidades proporcionadas pela riqueza e torná-las menos rude:
Não há um theatro, ou divertimento público, que a sã política tanto recomenda, para entreter
os homens em sua aplicação inocente, e que ali fazia-se mais necessário, do que em alguma
outra parte do Brazil. Essa empresa eu já tinha começado: e incluzos offereço a V.S.a o plano
do terreno já alinhado; as escrituras passadas, o plano dos accionistas, e o desenho, pois que
tudo ficou frustado pelas conhecidas hostilidades de hum muito grande General. Não há um
Passeio Público, e nem menos um retalho de terreno aplazível, que convide os moradores a
este exercício
168
.
Bernardo da Gama, não foi o primeiro, que, tendo passado por São Luís, fez anotações
sobre o assunto. Em 1811, o viajante ingles Henry Koster, hospedado em casa de família rica
da cidade, observou a falta de divertimentos para pessoas da classe dominante local, e que:
“O amor pelo jogo pode ser facilmente explicado no pequeno ou nenhum gosto pela leitura, e
as grandes somas de dinheiro reunidas e os raros meios de despendê-las
169
”.
Corrêa, discorrendo sobre a formação da elite no Maranhão do século XIX, tem leitura
semelhante do grupo endinheirado dos primeiros tempos – que estende à sociedade brasileira,
na qual o lazer estava limitado à jogatina de dama e de Gamão, com o estudo e a reflexão
limitados aos seminários (onde os carmelitas concediam titulação de mestrado e doutorado em
teologia), e aqueles que tinham cabedais, estavam só preocupados com “a ostentação
superficial de requinte, quando, às baixelas de prata, correspondia uma deseducação
doméstica real, onde a mão era o utensílio frequente da alimentação”.
170
168
GAMA, Bernardo José da. Informação sobre a Capitania do Maranhão dada em 1813 ao Chanceler
Antônio Rodrigues Velloso. Viena D´austria: Impresa do filho de Carlos Gerold, 1872, p.14.
169
CALDEIRA, José de Ribamar C. O Maranhão na literatura dos viajantes. São Luís: Edições AML/Sioge,
1991, p.26.
170
CORRÊA, Rossini. Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís: SIOGE,
1993, p. 92-3.
122
Pedro Calmon considerou que só paulatinamente, com a chegada da família real no Brasil,
hábitos aristocráticos se tornaram rotineiros para as elites, principalmente no segundo
Império.
Os fidalgos que vieram com a família real e os diplomatas junto de D. João VI, ensinaram à
sociedade do Rio a arte de aliar a riqueza ao convívio aprazível, abrindo as casas aos
espetáculos de bom gosto, à amena conversa, aos bailes. Vinte anos depois, nesses salões, à
moda inglesa, se falava francês
171
.
Da mesma forma, as modas transplantadas pela nobreza desde a corte do Rio de
Janeiro foram absorvidas no Maranhão e apresentadas na Província como grandes novidades,
reproduzidas pelos privilegiados da terra de costumeira convivência nos círculos do Rei.
Antes de modas, como as dos bailes elegantes se tornarem comuns, após a primeira metade do
Século XIX, as famílias proprietárias ficavam, em regra, confinadas às suas residências,
poucos iam às ruas, pois tinham serviçais para todos os fazeres. Suas grandes solenidades
públicas eram casamentos, batizados, funerais e as festas de santos católicos, para o caso de
São Luís, como as citadas acima.
Se o batizado era o grande júbilo social, o sepultamento constituía a melhor afirmação das
posses (...). Os viajantes estrangeiros, que se referem a esse período de nossa civilização, não
poupam exclamações de surpresa e ironia, em face dos espetáculos funerários...
172
Neste período não se podia realmente pensar em lazer festivo de caráter secular no
Brasil; “pagão” no conceito religioso. Contudo, em alguns casos, eram tênues os limites entre
as festividades dos santos e a farra popular. Ao viajante Froger impressionou o mundanismo
com que na Bahia se fazia a procissão de Corpus Christi - a mais oficial, a mais ostentosa de
171
CALMON, Pedro. História social do Brasil -Espírito da sociedade imperial. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1937, p.178.
172
ibidem, p.179.
123
todas: “Seguida de bandos de mascarados, músicos e dançarinos que com as posturas
lúbricas perturbavam inteiramente a ordem da santa cerimônia”
173
.
Ao pesquisar a história do carnaval de São Luís, entre os séculos XVII e parte do XIX,
os poucos festejos que anotei foram de relatos religiosos: as festas do Divino Espírito Santo,
as de Corpus Christi, a festa de São Gonçalo e Santo Inácio de Loyola e certas procissões,
como a do Rei Davi”
174
, que mobilizaram o povo, deslocando famílias de lugarejos e sítios,
que junto com os residente davam uma dinâmica provisória à cidade.
Quando Lacroix buscou a ruptura causada no comportamento social pelo
enobrecimento das famílias da capital maranhense, formulou a mesma questão nos seguintes
termos:
Antes desse tempo de prosperidade econômica, que possibilitou o intercâmbio cultural entre a
Europa e o Maranhão, as festas eram praticamente as atividades da igreja e do estado. Missas
solenes, procissões de santos padroeiros das paróquias, liturgias de natal, de reis e da
quaresma, ladainhas, além das expressões de sincretismo, tais como a Festa do Divino, com
sua caxeiras e cantorias, imperadores e mordomos. O aniversário do Rei, nascimento de um
delfim ou outros acontecimentos importantes da Corte também eram comemorados com
cerimônias religiosas, civis e bailes. No período da prosperidade, os bailes, com suas danças e
contradanças, passaram a ser oferecidos mais frequentemente, até por ocasião das festas
religiosas, como por exemplo na Festa de Nossa Senhora dos Remédios
175
.
Até surgirem diversas modalidades de lazer e entrenimento, distante do tradicional
ambiente eclesial, que se podiam realizar o ano inteiro, são ainda conhecidas as velhas
práticas dos carnavais de entrudo português, que consistia em jogar água e cinzas nos
transeuntes. Considerado por muitos como violento e grosseiro, o entrudo envolvia toda a
173
CALMON, Pedro. História social do Brasil -Espírito da sociedade colonial. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1937, p 86.
174
Sobre a procissão do Rei Davi ver: SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livros da Câmara/. Acórdão 1675-1679,
p.22. (Transcrição)
175
LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus mitos. São Luís: Lithograf,
2002, p. 58.
124
gente da cidade, inclusive os notáveis, como lembrou Maria Ribeiro. Ninguém era poupado;
nem velho, nem moço; homem, senhora, gente importante, gente do povo e até sacerdotes
176
.
Era uma “diversão” sazonal e não permitia qualquer elegância ou distinção.
Em 1813, No tempo em que Bernardo da Gama fez a crítica da pouca sofisticação do
cotidiano, não levou em consideração que estava em uma cidade que se tornara opulenta
repentinamente, já na contramão do sistema mercantilista mundial, que, em tempos atrás já
dera opulência e destaque a outras cidades brasileiras. Já em São Luís, a primeira grande
exportação do algodão foi em 1760, daí para frente possibilitando a formação das grandes
fortunas locais. Casarões surgiriam do dia para noite na velha cidade habitada pelos pobres,
sendo que essas duas estruturas passaram a conviver lado a lado por algum tempo.
As ruas mal calçadas, os covões intransitáveis de que falava Gama foram sendo
saneados com a introdução de largos canos subterrâneos para as águas pluviais e
abastecimento de veios de água em fontes, impedindo que as enxurradas das chuvas levassem
os calçamentos das ruas, ano após ano, e permitindo a construção de ruas onde houvesse
córregos. A praça do comércio, de que tanto reclamou por possuir pouca estrutura, foi
reconstruída, com uma boa alfândega e Casa das Tulhas, como depósitos de alimentos. Os
hospitais e médicos, que dizia não existir, começaram a se tornar realidade, inclusive com
uma casa de misericórdia com boa estrutura.
No item ausência de lazer – claro que para as elites - especificamente um teatro, que
citou, será inaugurado em 1817, com o nome de Teatro São Luís. Estradas são limpas,
passeios públicos são construídos, permitindo “caminhadas terapeuticas”, que reclamava não
ser possível até então e, até o pelourinho, que se admirou não existir, foi implantado no Largo
do Carmo dois anos depois, em 1815, pois na rota da civilidade significava justiça pública.
176
RIBEIRO, Maria José Bastos. O Maranhão de outrora - Memórias de uma época (1819-1924). Rio de
Janeiro: Rodrigues, 1942, p.147.
125
Ainda, a crítica que faz sobre ausência de boas escolas locais, o que levava os
fazendeiros a matricularem seus filhos em centros brasileiros e escolas da Europa, para ele
sem proveito algum para província, pois os formados acabariam por ficar em tais centros mais
desenvolvidos, reverteu-se em “benefício”. Ao retornar, formaram grêmios eruditos locais,
sendo, em parte, responsáveis pela expansão de valores europeus na cidade, o que acabou por
consagra-la pelo título, entre seus pares, de Atenas Brasileira. Neste clube de bem formados
do Maranhão também se destacaram engenheiros, muitos deles responsáveis pelas principais
obras de urbanização da cidade, como é o caso de José Joaquim Rodrigues Lopes
177
.
Sérgio Buarque de Holanda afirmou que a rápida e efêmera ascensão econômica do
Maranhão coincidiu, por sua vez, com um aumento notável no número de estudantes daquela
capitania e província nortista, que chegarão a ultrapassar largamente, no meio século
imediato, os próprios totais de Minas e os de Pernambuco. “Não foi certamente por um
milagre que tivemos a famosa ‘Atenas Brasileira
178
.
177
Sua biografia, conforme César Marques: José Joaquim Rodrigues Lopes - No dia 13 de janeiro de 1803 na
capital do Maranhão nasceu este engenheiro. / Existem os seguintes trabalhos seus: "Carta Geral da Província
do Maranhão correta, aumentada, desenhada, e oferecida à Sociedade Literária do Rio de Janeiro pelo Capitão
de Engenheiros José Joaquim Rodrigues Lopes, mandada gravar pela mesma Sociedade em 1841. "/ "Mapa de
uma parte da Província do Maranhão para servir nas questões de limites entre as comarcas de Caxias, Brejo e
Itapecuru-Mirim, levantada em 1847 pelo Major do Corpo de Engenheiros José Joaquim Rodrigues Lopes,
(manuscrito) ". / Estudou aqui primeiras letras e gramática latina, e foi depois completar os estudos
preparatórios em Lisboa. / Na antiga Academia de Fortificações matriculou-se e estudou todo o seu curso; na
de Marinha, no Colégio dos Nobres, freqüentou os dois primeiros anos matemáticos, e na Escola Médico-
Cirúrgica dedicou-se ao estudo de Física e Química. / Em 1827 foi despachado 2
0
Tenente de Engenheiros, e
designado para servir nesta Província, onde prestou muito bons serviços, como passamos a narrar ligeiramente.
/ Além de ter sido conselheiro de Província e deputado à Assembléia Provincial em várias legislaturas, em que
muito trabalhou e deu muito boas provas de sua esclarecida inteligência e amor ao engrandecimento e
progresso de sua pátria, deu o plano para o antigo Cemitério da Misericórdia, Cais da Sagração, Pirâmide do
Campo de Ourique, Armazém da Pólvora. Farol de Itacolombi, Fontes das Pedras e do Ribeirão, Casa do Júri,
da Assembléia e de várias igrejas do interior, podendo dizer-se que desde 1821 até 1845 nada se fez tendente a
obras Públicas, gerais, municipais e Provinciais sem que ele não fosse ouvido ou não o dirigisse. MARQUES,
César, op.cit., p. 258.
178
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.109. Apud:
126
Corrêa, valendo-se das classificações e conceituações de José Veríssimo em História da
literatura brasileira, afirmou que o conjunto principal dos renomados literatos do século XIX
no Maranhão compõe-se de Gonçalves Dias, de profunda educação estilística, “o primeiro
grande poeta do Brasil”; Odorico Mendes, portador de penetrante cultura clássica, tradutor de
Homero e Virgílio, “o mais acabado humanista que tivemos”; Sotero dos Reis, filólogo, “de
preconceito patriótico, na elevação imponderada de subliteratos brasileiros”; João Lisboa,
jornalista, de alicerçada erudição, cujos escritos “por virtudes de pensamento e de forma não
envelhecem e ficam contemporâneas de todas as eras”. Corrêa acrescenta à lista dos mais do
século XIX, os historicistas César Augusto Marques, Antônio Henriques Leal e Luís Antônio
Vieira da Silva
179
. Logo, a erudição que impregnou a cidade foi real e não apenas fictícia,
mesmo que restrito a um grêmio de notáveis, este distinto da própria elite econômica, que o
patrocinou.
As famílias elegantes, com um suporte urbano que lhes era mais adequado
180
,
passarama freqüentar clubes com saraus dançantes, modelo que se estendeu até o início do
século XX, e nisso aderiram a uma referência cultural refletida nos costumes europeus, nos
bailes e produtos relacionados: roupa, música, modos elegantes e falas, inclusive muitas
destas expressadas em francês. Os clubes ofereciam atrações como a valsa, a polca e o xote
(schottisch)
181
.
CORRÊA, Rossini. Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís: SIOGE,
1993, p. 100.
179
Ibiidem, p. 128-9.
180
A própria gestão da cidade como espaços especializados, que determina onde se mora, onde se trabalha, qual
o caminho para o gado, onde deve ficar o cemitério e o leprosário, os veículos que podem transitar no centro e
outros, funcionam como distinção cultural.
181
A shottisch é escocesa e começou a generalizar-se na Europa em meados do século XIX. Era conhecida como
polca alemã e mais tarde recebeu o nome da sua origem: schottisch. Harmonizada em compasso 4 por 4 ou 2
por 4 tinha um ritmo mais vivo que a valsa e mais lento que a polca. Era dançada aos pares em passos e
volteios que mudavam conforme a moda. Foi muito bem recebida no Brasil como aliás todas as músicas de
danças e tornou-se em pouco tempo muito popular. / A Polca O nome não tem nada com polaca ou polonesa.
127
O escritor maranhense João Afonso do Nascimento, escrevendo sobre diversas modas locais
do século XVII ao XIX, registrou a seguinte referência às modas de baile nos anos 1850-70:
Inovam-se, ou renovam-se, nos salões onde a gente se diverte, várias danças, mais ou menos
importadas do estrangeiro: a valsa, a polka, a schottisch, a mazurka, a redova, a varsoviana -
dançada aos pares isolados, ou dançados por grupos de pares, formando figuras os “lanceiros”,
entremeados de visitas e mesuras, o “príncipe imperial”, a quadrilha francesa, dividida em
cinco pares ou contradanças, a primeira, “pantalon” ou “chaine française”; a segunda, I’été, ou
“en avant deux”, a terceira “la poule”; a quarta, “la pastourelle; a quinta, ‘Ia boulangére,
podendo terminar por um galope, ou por outras figuras diferentes, à escolha do marcante:
“grand’chaine, chaine des dames, promenade, Chassé-croisé, tour de main, balancé,
adicionadas nas reuniões dançantes brasileiras...
182
A moda dos bailes deu à elite alternativas para se distinguir, tanto pelo modelo quanto
pelo ambiente. Aquelas ocasiões já não precisavam ser compartilhadas com a proximidade
dos demais segmentos sociais. Ainda assim, havia uma competição: o trânsito nas ruas se
tornou importante, pois essas garantiriam a boa circulação e segurança para as carruagens, que
Foi mais ou menos em 1830 que um jovem da Boêmia compôs uma linda música em ritmo rico a que chamou
de polca. Um maestro da localidade ao escrever a música deu-lhe o nome de Esmeralda. Essa modalidade
musical escrita em compasso binário, foi muito dançada na Polônia e aceita com entusiasmo em toda a Europa.
Por volta de 1870 foi bem recebida pelos brasileiros. Uma suave modificação no ritmo tornava-a polca de
salão, polca brilhante, polca-marcha, polca-choro, polca típica, etc. Breve história da Música Brasileira:
Schottisch e Polca. Disponível na internet (on line) em: http://www.collectors.com.br/CS06/cs06_05t.shtml.
Arquivo capturado em 12 de dezembro de 2004.
182
NASCIMENTO, João Afonso do. Três séculos de moda (1616-1916). Belém: Tavares Cardoso,
1923
, p 84. Complementa: “...de coisas nossas: “o caminho da roça”, o “careca” (...). Outras vezes, a última
parte da quadrilha comporta o “cotillon”, série de figuras complicadas, dirigidas por um cavalheiro e uma dama
previamente designados, e acompanhados de acessórios de fantasia, que os circunstantes guardam como
lembrança da festa”. Em outra referência lemos: A diretoria do clube tem a honra de apresentar aos distintos
cavalheiros que aceitarem cartões do mesmo e as Ex.as. famílias convidadas o seguinte programa:
Polka-fantástica (das senhoras) Quadrilha - carnaval de 89. Schotisch – união/ Quadrilha Bibi. Valsa –
fantoches/ Quadrilha - o burro do Sr. Alcaide./ Polka um scherzo/ Quadrilha solar das barrigas. Walsa - belo
sexo / Quadrilha carnavalesca. Schotsch – agradável/ Grande galope final. Jornal A PACOTILHA, 10 de fev.
de 1898.
128
pelo seu status de condução, pertenciam à mesma simetria de distinção. Como veremos, a
disputa pela rua se tornará o principal embate social na segunda metade do século XIX,
quando houve valorização dos passeios (calçadas) e passeios amenos ao ar livre se tornam
moda.
Ressalta Lacroix, que os costumes patriarcais da província foram se modificando nessa
época, as boas maneiras cuidadosamente praticadas, e certos usos anteriores foram abolidos.
As damas não eram mais transportadas nas tabocas, ou seja, em finas redes de linha, cobertas
por lençóis de franjas em labirinto, atadas em bambu pintado de variadas cores, mudaram os
hábitos:
As senhoras passaram a fazer suas visitas transportadas nos palanquins, uns dourados, outros
pintados a óleo, outros entalhados com estufados e sanefas de gorgorão, portinholas
desenhadas, à imitação européia. Os negros carregavam esses palanquins orgulhosamente em
seus trajes com librés de cores berrantes, á moda da corte francesa. A assimilação da moda
francesa foi quase universal e o Maranhão não fugiu à regra
183
.
O Teatro São Luís fora a grande vedete das elites no século XIX, distinção nobre do
homme civilisé, e para lá acorreram famosas companhias européias. Registrou Lacroix ocorrer
que o próprio governo, reconhecendo as mudanças ocorridas no estilo da sociedade,
subvencionou uma temporada lírica, o que era moda em Paris:
A 20 de abril de 1856, chegou da Itália uma dessas companhias líricas de primeira classe,
trazida pelo empresário Ramonda, com o compromisso de uma temporada de oito meses,
oferecendo dois espetáculos por semana. Conforme os jornais da época, sua estréia com a
ópera Gema de Vergny, de Donizzette, causou um verdadeiro frenesi numa platéia muito
atenta e “exigente” em um teatro super lotado. (...). César Marques alude à companhia
francesa de Bouffes parisiens, sob a direção de Mr. Hurbain, com apresentações no Teatro São
Luís, pelos idos de 1870 (etc., etc)
184
.
183
LACROIX, op. cit., p. 52-3.
184
Ibidem, p. 60.
129
Desta forma, ao poder econômico foi agregada uma diferenciação simbólica,
ressaltando de vez os espaços entre as classes sociais e criando o conceito de “família
distinta” que João Lisboa tinha considerado apropriado para o seu tempo
185
.
Bourdieu ressalta, utilizando as categorias de Weber, que “a ordem propriamente
social”, enquanto modo de distribuição do prestígio social dispõe apenas de uma autonomia
relativa, posto que se une à ordem econômica como modo de distribuição e utilização dos
bens e das prestações econômicas através das relações de interdependência mais ou menos
estreitas e mais ou menos intensas segundo as sociedades, mas:
...esta ordem social deriva sua autonomia parcial da possibilidade de desenvolver sua própria
lógica enquanto universo de relações simbólicas. De fato, é notável que todos os traços que
Weber atribui ao grupo de status pertencem à ordem simbólica, quer se trate do estilo de vida
ou de privilégios honoríficos (tais como o uso de roupas particulares, o consumo de iguarias
específicas proibidas a outros, o porte de armas, o direito de se dedicar como diletante a
práticas artísticas) ou ainda, as regras e proibições que regulam as trocas sociais,
particularmente os casamentos. Mais especificamente, “todo tipo de situação de classe,
sobretudo quando repousa sobre o poder da propriedade como tal, realiza-se de sua forma
mais pura quando todos os outros determinantes das relações recíprocas estão, tanto quanto
possível, ausentes” - sendo posse e não-posse as categorias fundamentais da situação de
classe”. Por sua vez, os grupos de status se definem menos por um ter que por um ser,
185
O pequeno esquema de João Lisboa que segue ressalta que as formas anteriores pelo nascimento nobre,
ocupação de cargos imperiais, togamento nobilístico, que em si imprimem poder sobre os demais, são
completamente diferentes da superioridade pelo comportamento, modos e gostos, que formaram a classe das
“famílias distintas”: “Entretanto no Maranhão a primitiva nobreza veio a cair em grande abatimento, e no termo
de vereação de 20 de outubro de 1759 achamos que o Senado de São Luís deliberava alistar na respectiva
companhia somente os nobres que tivessem com que tratar-se, sem recorrer a ofícios mecânicos, pois havia
muitos deles caídos na última miséria, e sem estimação alguma de suas pessoas. / Emanciparam a geração atual
dos prejuízos que aviltavam todo o gênero de trabalho, e modificaram consideravelmente, se não conseguiram
extinguir de todo as pretensões exorbitantes de nossos nobres de raça antiga ou moderna, alguns dos quais
ver-se-iam em não pequeno embaraço se os obrigassem à exibição de seus pergaminhos. Os mesmos termos de
nobreza e nobres caíram em desuso, e as qualificações muito mais modestas, que hoje se empregam no
Maranhão para significar as mesmas idéias, são as de famílias distintas, ou principais famílias. LISBOA, João
Francisco. Jornal de Timon – apontamentos, notícias e observações para servirem à história do
Maranhão. Tomo II, 2.o vol. Brasília-DF: Editora Alhambra, edição sem data. Edição original de 1858. p.52.
130
menos pela posse pura e simples de bens do que por uma certa maneira de usar estes bens,
pois a busca da distinção pode introduzir uma forma inimitável de raridade, a raridade da arte
e do bem consumir capaz de tornar raro o bem de consumo mais trivial
186
.
Na outra ponta do conflito distintivo, os negros escravos e os livres pobres, que
convivem no ambiente da cidade, não serão simplesmente calados ou suprimidos na disputa
pelo espaço central mais nobre para o gozo da sociabilidade e do lazer. Terão suas próprias
formas de ser distintos e competir com o grupo dominante. Mesmo que este grupo dominante
tenha maior controle sobre as leis e as posturas proibitórias de certas manifestações, o jogo
social em situação de convivência e disputa pela rua precisa frequentemente ser negociada e
também eventualmente cedida por uma das partes.
Apareceram também, na segunda metade do século, grandes passeatas e teatros dos
negros nas ruas de São Luís. Desde 1774, há relatos e notícias proibindo que os negros
usassem tambores, batuques, violas, pandeiros e outros instrumentos que provocassem danças
e ajuntamentos na cidade. Mas documentos revelando grandes manifestações de rua aparecem
186
Continua: É por isso que, como observa ainda Weber, “poderíamos dizer, ao preço de uma simplificação
excessiva, as classes se diferenciam segundo sua relação com a produção e com a aquisição de bens, e os
grupos de status, ao contrário, segundo os princípios de seus consumos de bens, consumo que se cristaliza em
tipos específicos de estilo vida”. Vale dizer, as diferenças propriamente econômicas são duplicadas pelas
distinções simbólicas na maneira de usufruir esses bens, ou melhor, através do consumo, e mais, através do
consumo simbólico (ou ostentatório) que transmuta os bens em signos, as diferenças de fato em distinções
significantes, ou, para falar como os lingüistas, em “valores”, privilegiando a maneira, a forma da ação ou do
objeto em detrimento de sua função. Em consequência, os traços distintivos mais prestigiosos são aqueles que
simbolizam mais claramente a posição diferencial dos agentes na estrutura social – por exemplo, a roupa, a
linguagem ou a pronúncia , e sobretudo “as maneiras”, o bom gosto e a cultura – pois aparecem como
propriedades essenciais das pessoas, como um ser irredutível ao ter, enfim como uma natureza, mas que é
paradoxalmente uma natureza cultivada, uma cultura tornada natureza, uma graça e um dom. O que está em
jogo no jogo da divulgação e da distinção é, como se percebe, a excelência humana, aquilo que toda a
sociedade reconhece no homem cultivado. BOUDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Ed. Perspectiva S. A., 2001, p. 15-16. grifei.
131
somente no século XIX, mais propriamente em sua segunda metade, quando
paradoxalmente, há mais motivos para se reprimir, pelo que foi dito sobre as ruas. Em parte,
esse paradoxo pode ser resolvido se pensarmos na distinção simbólica que se processa,
afastando a convivência em situação de lazer, demonstrando que o lado dominado não foi
passivo, efetivamente os negros escravos, recriando o teatro a céu aberto, na disputa com o
teatro dos “senhores distintos”.
Dessas passeatas e teatro não se contam grandes novidades inventivas. Algumas das
manifestações são de procedência rural e de ascendência do colonizador europeu, adaptadas
ao meio urbano e às ruas. A princípio se vinculavam a datas específicas, como as das festas
religiosas e de colheitas, porém acabaram se tornando manifestações de usança ordinária, em
datas festivas, presentes no ano inteiro. Exceção ao Baralho, que veremos por fim.
Este lazer manifesto pelos trabalhadores da cidade e das quintas próximas, irá se
prover de manifestações portuguesas a africanas, que, em determinada época foram
transplantadas para o território brasileiro e posteriormente fundidas com o calendário religioso
das festas, e adotadas pela participação que tinham nas solenidades de igrejas, como vimos.
Ganharam ainda autos teatrais, sendo uma das matrizes prováveis a influência do teatro
catequético de herança jesuítica que Mario Meireles afirma ter sido forte entre jesuítas e
mercedários no Maranhão
187
. Conforme informa Tinhorão:
... essa teatralização de caráter evangélico dos primeiros padres, tendo nascido da necessidade
de aproveitar nas igrejas a tendência à participação coletiva, característica dos ritos pagãos
(muito presentes por toda a Europa antes do décimo século), estava destinada com suas
pequenas encenações de episódios bíblicos - como a anunciação do Anjo Gabriel à Virgem
Maria, a visita dos Reis Magos ao Jesus Menino e o Drama da Paixão de Cristo – a passar às
ruas sob forma de procissões espetaculares. E ainda, paralelamente, a evoluir para a forma
declarada de teatro, ao provocar o aparecimento dos dramas didático-religiosos chamados de
187
MEIRELES, 1991. op. cit., p. 10.
132
mistérios, dos baseados nas vidas dos santos, que seriam os milagres, e, finalmente, dos alegóricos
das virtudes cristãs, denominados moralidades.
No Brasil, esse deslocamento da teatralização ritual dos episódios da história sagrada, das
igrejas para as ruas, podia ser comprovado já no primeiro século de colonização”
188
.
Em São Luís, já no século XVII, parece ter sido comum que as festas consideradas
“mundanas” se imiscuíssem entre as atividades religiosas, com tendência embrionária. É o
que faz crer D. Felipe Conduru, ao relatar que no Colégio da Luz em 1706 houve uma cisão
entre os padres dirigentes e os seminaristas porque.
Estabeleceram-se celebrar a festa de Santo Inácio de Loyola com novenários e atos litúrgicos
internos e manifestações externas de regozijo. Degeneraram estas, ao ponto de se realizarem
bailes públicos, mascaradas, liberdades excessivas, `ações decompostas’, ódios e vinganças
189
.
A conseqüência foi a proibição da festa por quatro anos, resultando numa série de
manifestações estudantis, chegando-se à necessidade de pedir intervenção a Lisboa. José
Ramos Tinhorão em sua obra As festas no Brasil colonial, reforça a tese de que no rastro das
comemorações religiosas surgiam festas populares pagãs no Brasil Colonial:
Esse movimento no sentido do encaminhamento das festividades, da área limitada do interior
do templo para o céu aberto do espaço público, iria provocar desde logo um competente
deslocamento da diretriz religiosa de tais manifestações (baseada no estímulo à fé e à devoção)
para objetivos profanos (cujo maior interesse era a afirmação do poder secular e a busca de
diversão)
190
.
Ë provável que tenham tido algum contato com o teatro católico e se envolvido
embrionariamente com as procissões, pois apareceram expressões cristãs nos seus enredos,
188
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Editora 34, 2000, p.68.
189
PACHÊCO, D. Felipe Condurú. História Eclesiástica do Maranhão. São Luís: S.E.N.E.C. -Departamento
de Cultura - MA, 1968, p. 21.
190
TINHORÃO, op. cit., p.67.
133
contudo não podemos perder de vista o distanciamento do colonialismo jesuíta dos primeiros
séculos.
Voltando à questão do século XIX quando temos como uma das mais impressionantes
manifestações de rua a Festa do Congo, na qual já havia se processado a mistura da festa
matriz com a influência da Igreja e as adaptações do povo negro local. O Congo - conforme
Arthur Ramos - é a cerimônia mais antiga que se tem notícia, relacionada aos escravos,
também conhecida como Cocumbis, realizada no Brasil no início do Século XVIII, em
lugares de formação antiga, por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. O cortejo era composto pelo rei, rainha e mais arautos, secretários de estado,
embaixadores, damas de honra e militares, numa mistura da hierarquia africana com a da
monarquia portuguesa
191
.
É mais provável que, os congos de São Luís tenham sido tardios em relação a outras
regiões tradicionais do Brasil, visto que somente no final do Século XVIII começou a se
constituir na área central uma população trabalhadora regular para atender às necessidades
portuárias. Surgem os setores compostos de escravos e ex-escravos para atividades diversas, e
homens livres e pobres, que possibilitarão, em circunstância específica, a adesão às passeatas
rituais. Mesmo assim, os informes que dispomos sobre o congo, são apenas da segunda
metade daquele século
192
.
191
RAMOS, Arthur. O folclore negro no Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1954, p.36.
192
Uma das referências que possuo sobre o Congo em São Luís é a de Maria José Bastos Ribeiro: “Dança do
Congo - pum! pum! pum! lá vinham os negros requebrando-se, saltando, pungando. À frente o rei congo; uma
coroação se reproduzia. Acompanhava-o a filha, a linda princesa Juni. Mas eis que tomada de um mal
desconhecido a moça foi morta. E o canto lúgubre e dolente, reproduzia a triste ocorrência. O pai inconsolável
chamava os feiticeiros da tribo, prometendo a mão da princesa a quem lhe ressuscitasse a filha. A magia negra
entrava em ação, o feiticeiro erguendo-se sobre o corpo já frio, benzia-o, soprava-lhe a boca, e a princesa
voltava à vida. Pertencia àquele homem, porque palavra de rei não volta atrás. Então, a música e os cantos, de
novo alegres e vivos, contavam o casamento e terminavam pela invocação à Virgem Senhora. RIBEIRO, 1942,
op.cit, p.142. é uma típica encenação do mito de fertilidade da terra, existente em todas as culturas, de modos
diferentes. A manifestação herdeira em São Luís é o Bumba-meu-boi, onde o boi morre e é ressucitado pelos
134
Na São Luís da segunda metade do século XIX o congo foi em parte tolerado, mas,
comumente perseguido, manifestação de uma reação vacilante das famílias bem estabelecidas,
que não o suportavam, porém, o consideravam um mal menor, visto que também abrandava
tendências violentas por falta de divertimentos. Em muitos casos, a aceitação não era somente
pelo aspecto pacificador, mas também pela aproximação de um formato organizado e
disciplinado - contraponto à forma distintiva obtida pelas elites - comportava requintes,
muitos assimilados dessas mesmas elites, daí não permitir simplificação.
O Diário do Maranhão, na edição de 27 de janeiro de 1887, noticiava a propósito do
Congo que naquele ano se apresentaria “decente”: “Fizeram homens despesas grandes para
se apresentarem decentes como nos afiançavam que estão, e não seria justo que sejam
prejudicados por alguma falta de formalidade, devida sem dúvida à ignorância”. A
sofisticação a exemplo de “estarem bem vestidos” permite, com isso, serem mais bem aceitos.
Maria José Bastos Ribeiro em seu trabalho O Maranhão de outrora - Memórias de uma época
(1819-1924), dirá para uma manifestação similar: “Todos os negros vestidos de calções curtos
de seda, gibão e manto, espadas em punho, reproduziam o desembarque dos conquistadores
a tomar posse da terra nova
193
. Logo, o outro lado da moeda não era o rude e grotesco,
contraponto do “nobre”.
Há o seguinte informe noticiado no jornal Diário do Maranhão de 1877, dando conta
de um certo canal de negociação entre o grupo dominante e os trabalhadores, o que
certamente repercutiu na opinião da imprensa:
Este divertimento feito por alguns homens de trabalho que devia ter lugar no dia 6 [janeiro],
por ocasião da festa do Rosário, não se efetuou por lhe ser negada a licença pela polícia. / Para
a dança tinham levantado no largo do recolhimento um tablado, e como se estivesse
anunciado, o povo acudiu em grande quantidade descontente e maldizendo o logro. / Temos
feiticeiros.
193
RIBEIRO, op. Cit., p.141.
135
sempre condenado esses folguedos que atravessam a cidade com infernal gritaria, muitos
deles indecentes e rodeados de desenfreada molecagem, entendemos, porém, que não se deve
vedar ao povo que se divirta, ao contrário, se lhe deve facilitar entretenimento que se distraiam
para que não vá consumir o tempo em fazer o mal. Que se proibisse que a dança do Congo
viesse incorporada para o lugar destinado à sua exibição, era justo como primeiro havia
determinado o Sr. Dr. Chefe de polícia, mas consentida a dança, vindo os figurinos reunir-se
ai
194
.
Ao que deixa entender a continuidade do texto, naquele ano a brincadeira foi exibida,
atendido os apelos da imprensa, que, notadamente, demonstrara alguma afeição à festa pelo
seu aspecto disciplinar, o que é significativo se considerado que a imprensa regular foi, na
grande maioria das vezes, porta-voz das críticas das elites indignadas e sem condescendência.
Como havia uma certa flexibilidade, que incluía a cessão dos espaços rituais das
famílias poderosas, é corrente repetir-se uma análise clássica para se entender as relações
como o coroamento de supostos reis africanos no interior das igrejas no Brasil colônia.
Sentencia-se, na linha de Artur Ramos, que autoridades civis e religiosas toleravam o costume
porque, em verdade, era uma forma de ajustar melhor as pressões sociais, decorrentes da
convivência cotidiana com os negros na condição de escravos, dando-lhes uma ilusão barata e
cômoda da situação do reinado. Penso existiram diferenciais de convivência e de
conveniência que precisam ser analisados sem um modelo único, sob circunstâncias
históricas, como: o estágio do urbanismo (versus predominância de práticas rurais); ou
simplesmente contexto do campo (versus o contexto da cidade); escravidão rigorosa (versus
concessões de direitos
195
); as orientações do clero local quanto à popularidade do catolicismo
194
Apud VIEIRA, Domingos. Folclore do Maranhão. São Luís: SECMA/SIOGE, 1976, p.19.
195
Esta referência opera conforme os argumentos de Lara: “A política de domínio senhorial operava, portanto,
no interior de uma relação que não pode ser entendida sem o conceito de luta de classes. Através do
136
(versus o pragmatismo) e o estágio de diferenciação e isolamento das elites (versus a
convivência com distinção).
Então se poderia pensar, criando uma escala, a hipótese que fatores como ruralidade
(mesmo na cidade); escravidão com maior rigor e um clero mais leigo – o que nos remeteria
mais ao ambiente colonial - iria favorecer uma descompressão social pelo lazer. Mas aqui, em
se tratando da São Luís da segunda metade do século XIX, com estes fatores invertidos,
pensamos que a demarcação dos espaços simbólicos da elite favoreceu o ajuntamento das
massas em grandes rituais urbanos, como pura resistência.
O que mais revela a constância com que os escravos e a gente pobre da cidade iam às
ruas para divertimentos coletivos era a diversidade de suas manifestações. Além do congo,
manifestação mais próxima das raízes africanas, fazia os trabalhadores também Cheganças e
Fandangos. Essas peças teatrais têm origem na Península Ibérica, mas foram profundamente
modificados para se tornarem manifestação dos negros de São Luís. Seu sentido, entretanto,
parece datado ao período escravocrata, visto que Astolfo Marques cita a Chegança em 1915
com tom saudosista:
... de todas essas “brincadeiras”, que se revestiam de cunho verdadeiramente popular, era a
Chegança, nos seus cantos dolentes e mimosos, a maior imponência. Esse auto, representativo
das poéticas tradições dos tempos coloniais, constituía a diversão pública primacial da quadra
carnavalesca, mais estrungentemente aplaudida pelo povo empolgado pela folia. Desde o
piloto ao “gajeiro”, nas suas vestes agaloadas, espadachins na cinta, o grupo formava completo
nas suas múltiplas personagens e, simulando as manobras dos navios, percorriam a cidade
triunfalmente, seguido da multidão, toda entusiástica no arremedos dos adulfos, pandeiros e
maracás, ritmicamente chocalhados na marcha
196
paternalismo, os senhores tentavam superar a contradição da impossibilidade dos escravos tornarem-se coisas;
ao definir o trabalho compulsório dos escravos como uma legítima retribuição à proteção e à direção
senhoriais, concebiam a escravidão como uma relação permeada de “direitos” e “deveres”...recíprocos”.
LARA, Silvia Hunold. BLOWIN´ IN THE WIND: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Proj.
História, São Pulo, (12), out. 1995. p.47.
196
MARQUES, Astolfo, O carnaval das ruas, O Jornal, 17 de fevereiro de 1915.
137
Conforme a informação que deixou Antônio Lopes em 1948, em registro do
cancioneiro maranhense, a manifestação da chegança no século XIX foi extraordinária pela
sofisticação e estruturação, chegando a se completar em um ciclo de autos. Cada dia
entrosava-se no episódio central outro episódio ou jornada: o do Mouro, o do Imediato, o do
Piloto, o do Mestre, o da Marujada. Considerou o folclorista ser essa a mais completa das
cheganças brasileiras:
Em quase todos os estados brasileiros somente se conhece por ‘Chegança’ algum desses
episódios. Em outros, dá-se o nome de ‘Chegança’ ao que se denomina ‘Fandango’, no
Maranhão isto é um auto coreográfico acerca da guerra entre dois povos africanos, ao passo
que a palavra “fandango” naqueles, designa simples dança
197
.
É ainda incluída a Caninha Verde como auto, com suas coreografias, praticado no
século XIX em São Luís, produzindo formas de aglomeração festiva dos escravos pela cidade.
Tratava-se de festa popular de origem minhota, trazida de Portugal para o Brasil, definida por
Reis Jr. como representação dramática cheia de canções
198
. Ensina ainda este autor que, em
Portugal, a Caninha Verde surgiu como um divertimento para as colheitas, tendo em vista
atrair moças e rapazes para a vindima. Era uma brincadeira de roda envolvendo homens e
mulheres, divididos em sexos e seções, que se defrontam, cantando e trocando de lugares,
formando pares.
Esses divertimentos, antes relacionados aos homens livres do campo, foram adaptados,
no Brasil, para servir aos negros e escravos que trabalhavam em plantios e colheitas. Em São
Luís o meio rural próximo e produtivo, a exemplo das quintas do Marajá, ou das Laranjeiras a
Leste, favorecia a relação campo/cidade, transformando-a também em manifestação de rua.
197
LOPES, Antonio. A presença do romanceiro – versões maranhenses. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1967, p.117.
198
REIS JR., J. S. Nos desvãos do Alto Itapecuru. São Luís: SIOGE/ FUNC, 1980, p 128.
138
Ainda mais distante da origem, chegara ao carnaval, incorporando com isso algumas
modificações, inclusive os nomes dos personagens.
Em grande parte dos relatos, tais manifestações foram associadas ao carnaval, mas este
é apenas a condição de suas restrições, quando passaram a ser “permissivas”, alternativa que
aparece sugerida pela imprensa desde 1876.
...que sejam permitidas essas danças nos três dias de carnaval, admite-se, mas com o que
ninguém concorda, é que tais foliões conservem-nos em carnaval perpétuo, fazendo os seus
mascarados percorrerem as ruas todos os domingos
199
.
O jornal se referia diretamente à portaria expedida no dia 14 de novembro daquele
ano, de n° 832, da Secretaria de Polícia, que recomendava:
Mui terminantemente que não se consinta que nesta cidade haja de hoje em diante ensaios e
danças de cheganças, congos, fandangos, turés, etc. por depoentes contra a civilização da
capital da província, fazendo dissolver esses divertimentos, que nem sequer devem transitar
pelas ruas
200
.
Pelo exposto, a questão do divertimento e entretenimento públicos em São Luís se
transformou em uma disputa de ocupação de zona central, que envolveu todos os
seguimentos. De um lado, os bailes nobres, os passeios amenos de carruagem ou a pé pelas
ruas e toda uma simbologia transplantada dos centros da moda brasileira e européia, que
exigia principalmente um ambiente urbano adequado e sem constrangimentos, fosse de ordem
material, fosse de ordem “civilizada”, entendida como os bons modos. Do outro, as passeatas
festivas de negros e pobres pelas ruas, com seus batuques e requebros, considerados pela elite
lascivos, em congos, baralhos e fandangos, turés; os banhos seminus nas fontes da cidade
199
Apud: VAZ, Leopoldo Gil Dúcio. "Pernas para o ar que ninguém é de ferro" - As recreações de São Luís
no século XIX. São Luís: mimeo,1992. s/ p.
200
VAZ, op. Cit. s/p.
139
diante do calor tropical; as brincadeiras que amenizavam os trabalhos estafantes, como de
carregar água para abastecer as casas; as rodadas de bebidas nos botecos.
Na rota final do desmonte da relação polarizada entre senhores e escravos, uma
manifestação interessante foi a do Baralho. Parece ter surgido desde o princípio como uma
forma de passeata carnavalesca, não tendo definida como origem européia ou africana, ou de
pertencimento ao calendário de cerimônias católicas, e, nesta modalidade sazonal, não
participou de embates constantes com a sociedade, como ocorreu com o congo (apesar deste
último ter incorporado linguajar católico, terminando com Ave Maria). Não sem razão as
informações sobre ele serem fragmentárias, por serem anuais.
Na descrição de Domingos Viera Filho o baralho era uma brincadeira típica do
carnaval maranhense de outrora e consistia essencialmente de bandos de negros e negras
esmolambados, pintalgados de tapioca de goma, empunhando sombrinhas e chapéus de sol
desmantelados e sem pano, que percorriam as ruas da cidade numa gritaria infernal, ao som de
reco-recos, pandeiros e violões”
201
. Também nota o autor que, por ser uma brincadeira
carnavalesca popular, cheia de ironia, era repudiada por pessoas conservadoras daquela
sociedade, cujo agravante era a sensualidade dançante das mulheres:
O Baralho nos veio do carnaval do passado, era brincadeira de gente do povo, humilde e
simples, escravos, sobretudo. E os gestos obscenos referidos pelo noticiário deveriam ser
naturalmente o bamboleio do corpo em requebros voluptuosos
202
.
Entendo que o Baralho se manifestou pelo afrouxamento dos laços da escravidão na
segunda metade do Século XIX, coincidindo com certa margem de ação dos negros livres e a
gradual integração destes à sociedade em condições ainda submissas, a partir de seus novos
postos nas periferias, do fim do século XIX ao início do XX. Do ponto de vista ritual, é
201
VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore brasileiro - Maranhão. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977, p 28.
202
Ibidem, p.29.
140
provável que o Baralho tenha sido, no princípio, uma crítica aos valores sociais vinculados à
escravidão e aos galantes senhores, fazendo uma leitura de uma inversão de papéis,
ironizando, quando o negro se pintava de branco e usava o consagrado instrumento de
nobreza, a sombrinha, ou o guarda-chuva, para desfilar pelas ruas aos requebros
203
.
Para além disto, o Baralho não foi um simples aglomerado de pessoas fazendo
pândega com suas sombrinhas. Como para como para todas as outras formas de diversões
populares nas ruas, o que havia era receio desses ajuntamentos públicos em dois sentidos, o
do aglomerado popular que podia fugir ao controle dos dominantes, e o aspecto que manchava
o “ar de civilidade da cidade”. Ainda assim, ser do baralho não significava adotar um gesto
rebelde inconsequente, possuíam indumentária, ritmos e canções
204
.
Em São Luís, em determinado momento, ser do “baralho” implicava também um
comportamento social também associado às mucamas, que pertenciam às casas das elites e
faziam “correia” entre estas e todo o mundo exterior ao domicílio. Eram conhecidas como
“negrinhas do Baralho”, matriz do estigma “nigrinha”, atribuído posteriormente às
fofoqueiras.
À descendente da “preta mina”, nascida e criada no Maranhão, “xerimbabo” da “Senhora
Moça”, “cria da casa” alforriada na pia ou já livre de nascença, uma vez atingida a puberdade,
e em conseqüência de certas liberdades, ou pela natureza de certos serviços externos,
como o de vender doces e dores, levar recados às pessoas de amizade, ir buscar amostras e
203
“... como aponta Eneida (op. cit.: 26), Debret “também viu grupos de negros mascarados e fantasiados de
velhos europeus, imitando-lhes muito jeitosamente os gestos de cumprimento à direita e à esquerda as pessoas
instaladas nos balcões”, mostrando já naquela época um carnaval multifacetado. FERNANDES, Nelson da
Nóbrega. O carnaval e a modernização do rio de janeiro. Revista geo-paisagem ( on line ), ano 2, nº 4,
2003, Julho/Dezembro de 2003
, ISSN Nº 1677-650 X. Disponível em:
http://www.feth.ggf.br/Carnaval.htm.
204
Lemos em um de seus versos: “Arriba, siriba, arriba / cajueiro, cajuá / arriba, siriba, arriba / cajueiro, cajuá /
quero ver minha ya yá / menina, esses teus olhos / são bonitos, benza Deus / ninguém lhe bote quebranto / que
ainda / serão meus”. NASCIMENTO, op. cit., p. 125.
141
fazer compras às lojas e tavernas, logo ganhava a rua, e entrava para o grêmio das chamadas
“negrinhas do baralho”
205
.
A negra jovem tinha seu comportamento associado ao baralho, até mesmo no vestir.
Da sua indumentária há a descrição de João Afonso do Nascimento, como única que conheço
na literatura maranhense:
Essas também convencionaram o seu modo peculiar de trajar, em nada sujeito a instabilidade
da moda corrente, se bem que em tudo diferente da preta mina, vestidos de cinta, afogado,
mangas largas e compridas, de canhão, de cintura curtíssima, logo abaixo dos seios, saia muito
curta na frente, e arrastando atrás uma extensa cauda com folho largo da mesma fazenda
anágua farfalhante, dura de goma; nas orelhas argolões de ouro, ao pescoço simples cordão de
ouro com uma figa; calçava chinelos de pelica branca ou de polimento, em que mal introduzia
os dedos dos pés sem meia, apoiando-lhe o meio da sola sobre o salto, o que lhe comunicava
um andar gingado e cadenciado, crepitando nas pedras das calçadas estalidos secos, num
tique-taque ritmado, que denunciava à distância
206
.
Com o fim da escravidão, a brincadeira do baralho passou a ser usada pelas
populações periféricas ao Centro, onde moravam os pobres, como aparecem nos relatos,
praias do Caju, Santo Antonio, Praia Pequena, Desterro e Madre de Deus. Continuou
existindo no século XX, por pouco tempo, mas ainda muito estigmatizado. Astolfo Marques,
em 1915, ao falar da decadência do carnaval colonial na cidade, criticava duramente a
afirmação do Baralho como peça carnavalesca influente entre o povo:
205
Ibidem, p. 125.
206
NASCIMENTO, op. cit., p. 126. “Podia o vestido da negrinha ser de melhor ou pior qualidade, de melhor ou
menor luxo, consoante sua possibilidade financeira, e na aparição da negra com vestido novo provocava
chalaças e pilhérias por parte da molecada, que constituía um poder de crítica nas ruas, diziam: “Quebra, gereba
/ Quando tu acaba de quebra com esse / Quero vê com que tu quebra”. O feitio, o talho, o molde era sempre
invariavelmente o mesmo”. Id. Ibid. p. 126. João da Costa Gomes anotou: E as lestas crioulas de lestas
sandálias de rufio estrepitoso - oriza, jasmim e rosas na carapina -negrinhas do baralho, no conceito e cólera
das famílias escandalizadas” VIEIRA FILHO, 1977, op. cit., p. 28.
142
De parte do Baralho Medonho, na sua fastidiosa assuada, mais um sirigaitamento do que um ato de
merecida audição, e que pretende ser agora, entre nós, a sinfonia do carnaval
207
.
Em 1919, O Jornal noticiava:
Ontem assistimos, com pasmo, o célebre baralho, composto de tipos embriagados e mulheres
sem escrúpulos a fazer, pelas ruas da cidade, os gestos mais obscenos seguidos duma gritaria
infernal. / É vergonhoso, para nós, assistir a essa documentação de nosso atraso, fazendo o
carnaval com essas brincadeiras, que a polícia bem não podia consentir
208
.
Também Fulgêncio Pinto em 1924:
E o Baralho medônio, composto de desordeiros e pescadores de linha, com um pendão
vermelho à frente, uma harmônica, dois violões, cavaquinhos, pandeiros e reco-recos, subia
num alarido tremebundo do lado da praia de Santo Antonio, rumo a Rua da Cruz, com um
bandão de gente atrás, que fazia coro, repetindo aqueles versos tão conhecidos nos bairros da
vagabundagem e desordem de São Luís, nascidos do meio do povo baixo, sem se saber até
hoje o nome de seu autor
209
.
Um dos lugares de distinção, que constituiu um o contraponto à “sociedade”
promovendo a cultura praticada pelos afros-descendentes em São Luís, foi o entorno onde se
encontra a centenária Casa das Minas, templo de culto afro-brasileiro e principal símbolo da
cultura afro-descendente na região do atual centro, também reconhecida hoje como uma das
principais no universo cultural dos templos brasileiros, objeto de inúmeras publicações,
inclusive tendo sido estudada por Pierre Vergêr.
Diante de preocupações quanto à localização do templo, de ter sido definida dentro de
um contexto ritual sagrado, o mais antigo estudioso da Casa das Minas, Nunes Pereira, ao ser
entrevistado, não atribuiu sentido especial à questão. Apenas associou o local antigo dos
207
MARQUES, Astolfo, 1915, op. cit.,
208
O JORNAL, 24 de fev. de 1919.
209
PINTO, Fulgêncio. Dr. Bruxelas & Cia. São Luís: Typ. Chaves & CIA, 1924.
143
cultos às proximidades do Cemitério do Gavião, tendo sido transferido, com todos os
elementos mágicos para o atual local, na São Pantaleão.
....adquiriram escravos uns libertos e outros ainda...Adquiriram aquele terreno onde estão
aquelas casas conjugadas na atualidade da Casa das Minas. Então, transferiram coisas, que eu
nunca vi; coisas secretas que estão enterradas ali, que vieram da África, trazidas por aqueles
missionários, trazidas pelos fundadores.
210
.
Uma associação plausível é que, sendo uma símile dos templos de formação e vivência
religiosa, ao que o catolicismo denomina convento, apesar de acrescido dos rituais públicos,
como nas igrejas, nada mais lógico situar-se naquele momento fora do perímetro principal da
Cidade, como também estavam o Convento das Mercês e o Convento de Santo Antônio,
conforme seu tempo de fundação no século XIX. Como plausível é a associação com os
conventos nas formas litúrgicas de um calendário festivo-religioso anual, com muitas
comemorações de divindades, marcado por generosos banquetes, onde todos comem e bebem
fartamente
211
.
210
MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura. Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Memória
de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luís:
LITHOGRAF, 1997, v.1, p 82.
211
Como relata Jacira Pavão, no Maranhão o caráter religioso é bem significativo no Festejo do Divino Espírito
Santo, mas tem forte significado profano (como costuma-se definir o não clerical), sendo realizado durante
quase o ano inteiro, podendo ser em casa de particulares ou, na maioria das vezes, em terreiros de tambor de
mina: “...como pagamento de promessa por uma graça alcançada, na sua maioria por motivo de saúde./ O
Divino Espírito Santo não só é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, é também o grande homenageado,
símbolo de grande devoção popular. Durante o festejo o sagrado e o profano se confundem, ou melhor dizendo
se misturam de maneira majestosa, porque as festas não só representam um momento de lazer, como de grande
devoção religiosa”. PAVÃO, Jacira . A festa do divino no terreiro das portas verdes. In: Boletim da
Comissão Maranhense de Folclore, n. 11 / Agosto 1998. Para Miguel Real o culto ao Divino é
formulação de destino na mentalidade lusitana, a instalação da terceira era conforme a teologia do
monge franciscano Joaquim de Fiore [mais referido como monge cistercense calabrês]: “A Primeira
Idade é a idade de Deus transcendente e exterior ao homem, a Idade do Pai, correspondente ao Antigo
Testamento; a Segunda Idade é a de Cristo, do Filho, imanente ao homem e impregnada de Amor Universal,
correspondente ao Novo Testamento; finalmente a terceira idade é a idade do Espírito Santo, reinado da
144
À parte de uma conceituação das casas de culto afro como reminiscência de cultura
africana e tudo que se encontra bastante estudado, elas parecem desenvolver uma função
essencial como agregação do povo negro. As festas que ali eram feitas (e ainda são) duravam
de três dias, uma semana, quinze dias. O evento mais significativo se relaciona à forma como
juntam alimentos e os distribuem ritualmente, em uma espécie de “comunismo cristão”. De
todas essas festas, a mais marcante e farta é a que se relaciona com a centralidade do Divino
Espírito Santo, portuguesa com sentido não clerical, de grande influência em todo o
Maranhão.
Em segundo lugar, a Casa das Minas, por sua arquitetura de casa grande rural, situa-se
também nos limites da cidade, próxima às quintas, que eram terrenos doados no domínio do
concórdia entre Deus e o Homem, simbolizada nas festas populares do Espírito Santo através da entronização
de um menino como Imperador do Mundo, da mesa farta com a morte de um boi-touro e da abertura dos
portões das prisões”. REAL, Miguel. Portugal – ser e representação. Algés/Pt: DIFEL, 1998. Ainda, segundo
ele, essa prática social, relacionada ao Espírito Santo funda a sociedade da não-propriedade, do não-trabalho e
do não-partido, contraponto da lógica da razão abstrata, do egoísmo, do lucro e da acumulação de riquezas,
inclusive defendida como sistema por pensadores como o português Agostinho da Silva, que fixou residência
na Paraíba em 1944, onde disse ter encontrado o melhor da mentalidade portuguesa: “Agostinho da Silva vai
encontrar no Brasil, concretamente em Paraíba, uma realidade social semelhante, mutatis mutandis, àquela que
existira em Portugal até ao séculos XV e XVII. Será essa realidade social, o comunitarismo gregário entre os
seus habitantes, a permanente disponibilidade para a interajuda, a capacidade de improviso de quem se
encontra longe dos grandes centros, a ausência de fortes rotinas, o ambiente de rituais de festas particulares a
povos rurais, que marcarão duradouramente Agostinho da Silva e que se estatuirão teoricamente no centro
histórico imaginário da I Dinastia Portuguesa”( p.27-28). Na formulação teórica de Agostinho, o menino
sobrepõe o adulto (o imperador menino do divino), com suas características: recriação permanente da realidade
contra a minuciosa planificação da vida pelos adultos, predomínio do sentimento e da imaginação contra os
imperativos racionais da sociedade, vivência lúdica do cotidiano contra o sério da vida do adulto, malícia sem
maldade, aproveitamento e utilização do que se tem substituindo o que não se tem contra o sacrifício
econômico da população, despojamento da vida, deixando-a acontecer, isto é, aceitação do inesperado e do
imprevisível, contra o vencer na vida que é sempre ser vencido pela vida, estar sempre ocupado sem trabalhar,
produção de um pensamento simlico próprio adverso ao pensamento acadêmico, em suma, vida em festa
duradoura contra a vida em sacrifício permanente (p.42). Na minha particular compreensão essa é uma
cosmologia que deve ser considerada (como análise de referência) para o todo o Maranhão, onde quase todas as
manifestações culturais são seguidas de fartos banquetes comunitários, arrecadados alimentos entre os que
podem, a exemplo da “morte do boi”.
145
patrimônio da Câmara para plantio, a exemplos da Quinta da Boa Hora, na região do atual
Bairro da Madre de Deus; a Quinta do Marajá, hoje Bairro do Diamante/Remédios e a Quinta
das Laranjeiras, onde atualmente existe o Colégio Marista. Sua arquitetura delata mesmo uma
grande influência do meio rural, não sem razão, o que levou a ser tratada por muitos cronistas
como “Casa Grande das Minas”, uma alusão à casa grande dos senhores rurais. Mas que
passou a perder status quando a periferia da cidade que avançou sobre ela, entre fins do século
XIX e primeiras décadas do século XX, ao tempo que houve o processo de empobrecimento
de seus membros e associados, que passaram a pertencer ao operariado da cidade
212
.
No aspecto de associação ou irmandade, a Casa das Minas denotava um sistema de
poder que se expandia por uma rede de influência no culto Jeje e no auxílio à comunidade. Na
versão de Sérgio Feretti:
Foi fundada em data desconhecida e depois estabelecida no bairro da Madre de Deus, tendo
sido plantada, junto com algumas árvores, ainda lá existentes, à rua de São Pantaleão, nº 857,
onde funciona há mais de um século e meio, desde meados da década de 1840, como nos é
dado conhecer. Somente o Governo do Estado, a Arquidiocese de São Luís, a Santa Casa de
Misericórdia, algumas irmandades religiosas (como a de São Benedito e de Bom Jesus dos
Navegantes) e sociedades secretas (como a Maçonaria), que não podem ser identificadas, são
das poucas instituições maranhenses mais antigas do que a Casa das Minas Jeje
213
212
Lendo a entrevista de dona Celeste, publicada em Memória de Velhos (1997) responsável ainda hoje pela
direção da Casa das Minas, tenho a impressão que ela fez uma rota mapeando e contextualizando a Casa e suas
sacerdotisas no espaço urbano de fins do século XIX ao XX. É bastante centrada na história do trabalho e da
moradia. A fábrica, o fazer doces, a costura e as moradias populares são relevantes e espacialmente
relacionadas com o entorno da Casa das Minas na Rua São Pantaleão. Dirá: “em 40 entrei na fábrica, comecei
a atividade de trabalho na fábrica Cânhamo, situada na Rua São Pantaleão 1232, em frente ao Hospital
Geral. Fiquei nesta fábrica 14 anos e 10 meses, quando saí para conhecer o Rio de Janeiro”. MARANHÃO,
op. cit., p. 100.
213
FERRETTI, Sérgio. A importância da Casa das Minas no Maranhão.Boletim da Comissão Maranhense de
Folclore, n.º 16, junho de 2000.
146
Em terceiro lugar, a existência de um grupo de negros com poder econômico
suficiente para adquirir uma quinta em lugar afastado da cidade, onde instalou a Casa das
Minas e ainda possuir escravos (como sugere Nunes Pereira na entrevista) é perfeitamente
plausível. Kelcilene Rose Silva em Amores e Favores: senhores e escravos no Maranhão
setecentista, dedica algumas páginas aos “direitos adquiridos” na sociedade maranhense
escravista, entre eles propriedades por herança e formação de patrimônio com negócios
próprios.
Talvez por heranças, como a que é legada à escrava Eufemia por João da Cunha (1745):
“Deycho a mulata Eufemia filha de Suzana escrava de Anna Maria todas as egoas que se achar
com o seu ferro que he na perna. Deycho mais a dita mulata Eufemia sincoenta vacas de toda a
sorte pello amor de Deos”(107) ou por Lourença de Távora (1752), que lega a uma escrava sua
a alforria da neta desta: “quero que se a minha escrava Margarida inda depois de meu
falescimento quizer remir a Sua neta Suteria pelo preço em que for avaluada no tempo em que
a remir, meos testamenteyros lha entreguem recebendo o dinheyro della, para as despoziçoens
deste meo Testamento”(108) e Paulo Bezerra, que em 1768 legou dinheiro para a alforria de
uma Joanna, que sequer era sua escrava; era alheia: “Declaro que tambem dei a huma Joanna
Rodrigues, que era escrava de Jozé de Mello, cento e quarenta mil reis para Se libertar”
214
.
A autora acrescenta no documento algumas formas em que o escravo ou forro podia
adquirir renda, na prestação de serviços, uma delas ligada a uma forma de magia:
Pode ser que tais serviços tenham assumido forma bastante pitoresca, nas páginas do processo
de divórcio de Maria Teresa Duarte (1778), a qual, segundo o depoimento da índia forra
Celestina Josefa, andou “convidando pretos para lhe fazerem alguns feitissos para matar ao
Reo, promettendo lhe pagamento”. Embora a palavra da índia “por Sua qualidade”, segundo o
juiz, não merecesse crédito, e o texto não esclarece se tais “pretos” eram efetivamente
214
SILVA, Kelcilene Rose. Troca de amores e favores: senhores e escravos no Maranhão setecentista.
[online] Disponível na Internet via www.nethistória.com/secoes/hb.shtml
. Arquivo capturado em 20 de junho
de 2003.
147
escravos, há neste caso evidência de um surpreendente serviço pelo qual escravos poderiam ser
remunerados
215
.
Há também a hipótese aventada por Raimundo Lopes escrita em 1916, segundo a qual
essa confraria das Minas foi formada por negros imigrantes livres. Descontado o fato de
possuir uma visão racializada
216
, de superioridade do branco e do catolicismo, própria dos
institutos de época, é um informe interessante:
No Maranhão, como noutras terras onde o contingente negro foi numeroso, apareceram as
confrarias fetichistas das “Pretas Minas”, que se explicam pela conservação dos costumes e
superstições africanas, por um certo número de negros vindos em liberdade, da costa da
“Mina” (Costa do Ouro e Daomé)./ Ainda hoje existe, em São Luís, essa curiosa associação,
com as suas estranhas práticas, em que o catolicismo romano se mistura às usanças e crendices
do Continente Negro
217
.
Devo lembrar nesta passagem, o poder e carisma pessoal das pretas minas que
circulavam pela cidade no século XIX até início do XX, cujas indumentárias foram descritas
por João Afonso do Nascimento como sendo ainda mais exuberante que das próprias
portuguesas, de onde imitavam a maior parte:
Camisa decotada, de mangas curtas, toda guarnecida de belíssima renda de almofada, quando
não era de labirinto, ou de “cacundé”; saia de finíssimo e alvíssimo linho, tendo na beira largo
folho, também de renda, como de renda é o lencinho que ela cuidadosamente segura na mão
direita; e se a saiola portuguesa, exibe, no dia do orago de sua paróquia, o melhor dos seus
haveres, representados em dixes e tetéias de ouro; o ouro da preta mina é muito mais
abundante, e mesmo muito mais sólido; na cabeça um par de pentes, e um par de “travessas”,
de tartaruga, chapeados de ouro cinzelado; nas orelhas enormes brincos de ouro, obra do
Porto; a começar do pescoço, até o decote da camisa, não se vê a pele do colo, oculta por uma
sucessão de enfiada de contas de ouro em grossos bagos, a última das quais tem
215
(idem)
216
O que me norteia para uma visão crítica dos autores do início do século XX é o trabalho de SCHWARCZ,
Lília: O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
217
LOPES, Raimundo. Uma Região Tropical. Rio de Janeiro: Cia. Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 69.
148
dependurado, no centro, um grande crucifixo de ouro maciço, e, por último, em separado, um
cordão de fortes elos de ouro, de que pendem, na frente e nas costas, os bentinho ou
escapulários (..). metidos entre duas chapas de ouro; nos braços dois ou três braceletes, de
pulseiras de ouro, de alentada grossura e esquisitos feitios; em cada dedo das duas mãos, dois,
três, quatro anelões de ouro, de variados lavores
218
.
Quando se trata de cidade, Assunção, abordando o Maranhão, alerta que a estrutura
social não era um sistema hierárquico monolítico e bem definido, mas sim a expressão de
subsistemas de classificação parcialmente conflitante, permitindo diferentes formas de
percepção da sociedade. “A ideologia racial da superioridade branca não estava ausente nas
classes baixas, especialmente nos grupos intermediários, os quais podiam aspirar a
transcender o limite da cor, mas esse não era o único código possível de interpretação social
das diferenças sociais
219
.
Entretanto, não é possível pensar hierarquias de forma tradicional, somente como uma
cadeia de submissões de cima para baixo, com diálogo pelo mando e obediência, ou simples
apartamento simbólico. A relação entre os do grupo que podemos classificar como
“dominados”, apesar de uma cadeia de valores que tecem entre si, aparece homogênia, em
muitos casos em que o contraponto é o segmento “dominante”, por exemplo, juntando
escravos, forros, livres, negros e mestiços em baralhos.
A situação era ainda mais englobante quando participam de uma peça conjunta que,
inevitavelmente, incluía os dominantes, para estabelecer as estratégias de afirmação por
218
(NASCIMENTO, João Afonso do. 1923: )
219
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig (1995), ‘Popular Culture and Regional Society in 19th Century
Maranhão, Brazil’, Bulletin of Latin American Research, vol.14, 3:265-286. p.6. Apud: SILVA, Carlos
Benedito Rodrigues da. Ritmos da Identidade: mestiçagens e sincretismo na cultura do Maranhão. São
Paulo: 2001, 213p. Tese de doutorado na PUC. p. 148.
149
espelho. As hierarquias, em um dos pólos sociais ou na forma global, se movem em função
do poder em diferentes fragmentos circunstanciais, ou independente da luta para obtê-lo,
como pensa Louis Dumont
220
. Logo, o ouro da preta mina tinha maior função de status e
liderança que de classe social.
A Casa das Minas, junto com a Casa de Nagô, foram pilares da permanência de
diversas manifestações culturais populares que sobreviveram no entorno do centro da cidade.
Lugares de resistência, também de assimilação de modas que partiam do grupo dominante
221
,
220
Dumont, quando procura uma teoria para a hierarquia, o que faz no pósfácio de seu Homo Hierarchicus,
adverte se sustentar basicamente em seus escritos publicados e não pensa com isso criar uma teoria universal,
similar ao que Thompson diz sobre “economia moral” ou em “miséria da teoria”. Mas explora uma idéia de
hierarquia interessante, que não diz respeito somente às relações de posse material, apesar da presença desta,
mas como desejo humano, forma de status, ou aceitação de uma submissão como natural, dirá: “acredito que
hierarquia não seja essencialmente uma cadeia de ordens superpostas, ou mesmo de seres de dignidade
decrescente, nem uma árvore taxonômica, mas uma relação a qual se pode chamar sucintamente de
englobamento do contrário”. DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus – o sistema de castas e suas
implicações.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1992, p. 370. Em um subcapítulo, “necessidade
da hierarquia, lembra que o homem não só pensa, ele age, para dizer que, além das idéias, formula valores.
Um certo consenso sobre os valores e uma certa hierarquia das idéias, das coisas, das pessoas é indispensável à
vida social, o que independe das desigualdades naturais ou da repartição do poder. Entretanto, está certo de que
a hierarquia se identificará de alguma forma com o poder. Também considera compreensível e natural que a
hierarquia englobe os agentes sociais, as categorias sociais. ibidem, p.66.
221
Um exemplo significativo é a comemoração do aniversário da cidade na data de fundação francesa nas casas
de culto, como relatou Sérgio Ferretti. Primeiro ele pergunta se o São Luís IX, que foi canonizado pela Igreja
Católica, é o mesmo Dom Luís, Rei de França, que baixa em terreiros maranhenses, para revelar que não é fácil
de responder e, apesar de ter sido formulada por vários pesquisadores (VERGER, 1982; AUGRAS, 1988;
FERRETTI, M. 1993) e por alguns pais-de-santo (OLIVEIRA, 1989), não costuma ser feita com freqüência por
seus devotos. Apoiado no que ouviu de pessoas ligadas a terreiros de Mina e de Umbanda de São Luís sobre
Dom Luís e São Luís e em observações realizadas na pesquisa sobre a religião afro-brasileira na capital
maranhense, tenta algumas respostas. Lembra, conforme a sua abordagem que, no contexto religioso afro-
maranhense, apesar da grande ligação das entidades espirituais recebidas em transe mediúnico com os santos
católicos, elas não se confundem com eles. Reafirma que as pessoas que recebem voduns, ou que entram em
transe com outros encantados, costumam falar que encantado não é santo e que santo não incorpora e nem
dança em terreiro. Contudo, alguns encantados são tão identificados com determinados santos, que parecem
algumas vezes confundir-se com eles. “É o caso de Maria Bárbara, associada a Santa Bárbara, e o de Dom
Luís, Rei de França, que é associado a São Luís (o rei Luís IX, que foi colocado nos altares pela Igreja
150
prova a descrição acima, longe de ser uma indumentária africana, é de total influência das
elites da província, mas numa relação de proximidade com hierarquia era natural que se
mirassem, já que muitos tamm não descartavam usar de ritos afros.
Junto a outras casas de culto afro-descendente que existiram no centro, a Casa das
Minas foi protetora das manifestações dos trabalhadores. Entre os séculos XIX e XX, foi
protetora da chegança, vista aqui como encenação festiva portuguesa reproduzida pelos
negros em São Luís: “Até aos contemporâneos chegou o ruído que, pela sua pompa e
Católica, e que também é francês). O Dom Luís, que é recebido em terreiros maranhenses, é sempre
apresentado como um encantado nobre, como um rei francês. Além de simbolizado pelas cores: azul, branco e
vermelho - cores da bandeira da França, sua identidade francesa é acentuada nas letras de suas doutrinas:
“Ele é francês, ele é francês, Dom Luís é rei de Mina, ele é francês”. Relata Ferretti que, de acordo com a
História Oral, Dom Luís surgiu na Casa de Nagô com Mãe Alta, fotografada por Pierre Verger, em transe com
"São Luís" (sic), no dia 25 de agosto de 1946 (VERGER, 1982:240). Ali foi classificado como “gentil”,
categoria que parece corresponder ao que os franceses chamam de “gentilhomme”. Como geralmente
acontece com os "gentis", parece que Dom Luís nunca teve muitos filhos. No passado, era também recebido no
terreiro de Maximiana, que foi documentado em 1937 pela Missão de Pesquisa Folclórica (ALVARENGA,
1948). Atualmente é muito conhecido nos terreiros de Jorge Itaci (de Mina), e no de Dona Conceição Moura
(de Umbanda). Dom Luís é geralmente festejado nos terreiros da capital maranhense no dia 25 de agosto,
festa de São Luís IX no calendário católico. Mas esse santo é também homenageado no Maranhão, pelos afro-
brasileiros, no dia 8 de setembro - data da fundação da cidade de São Luís, quando São Luís IX é levado em
procissão pela Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros. FERRETTI, Sérgio. Boletim da Comissão
maranhense de Folclore: 14 /Agosto 1999). Isso leva a uma polêmica cultural muito cara à cidade. Aqui, a
principal questão é de haver, sim, um símbolo de fundação francesa percorrendo o século XIX, a Capela de São
Luís Rei de França, inaugurada na Câmara e Cadeia em 1808 com a presença da imagem de São Luís como
santo padroeiro, a transferência do Santo para a cadeia nova e periférica, para depois aparecer nas casas de
culto afro, é realmente instigante! Talvez – precisaria ser estudado – a simbologia francesa em si não
representava status para as elites da segunda metade do século XIX, somente aquela relacionada à etiqueta e à
erudição, enquanto no início do século XX a simbologia cívica republicana, com valores franceses tenha sido
ressaltada. Um estudo avançado dessa questão poderia registrar fases diferentes de influência francesa no
Maranhão, provavelmente as que influíram também na história nacional da França. A primeira heróica e
medieval, quando os maranhenses liam Carlos Magno e seus doze pares, e os romanceiros; a fase cortesã, que
formou no século XIX a “boa sociedade” e, finalmente, a fase republicana dos símbolos nacionais e cultura
clássica.
151
esplendor, provocara a Chegança na Casa Grande das Minas, ao tempo em que ainda não
se subdividira esse concorrido centro de diversões populares”
222
.
Na outra ponta, as irmandades católicas constituíram importantes instrumentos de
agrupamento e seletividade de grupos sociais em São Luís. Na segunda metade do século
XIX, as irmandades proliferaram e passaram a comemorar seus santos de predileção
associando distintos grupos de interesses.
D. Felipe Condurú relata no seu livro de perguntas e respostas, no 105º quesito
intitulado: que dizer das irmandades ao tempo do Sr. D. Luís Saraiva? Que essas associações,
instaladas nas igrejas no tempo do Império pareciam antes sodalícios civis que religiosos, e
que geralmente tinham estatutos aprovados pela autoridade eclesiástica e, inscritas no
“Registro de Títulos”, gozando de personalidade jurídica. Que, entretanto, não tinham por
objetivo a vida religiosa; mas, a sua finalidade era exclusivamente promover novenários com
missa festiva e procissão do seu Orago
223
.
Ao que parece, houve um tempo específico do aumento na privatização do catolicismo
em São Luís (ou terceirização para os termos de hoje). Coincide com o que César Marques
222
MARQUES, Astolfo. O carnaval das ruas. O Jornal, 17 de fev. de 1915. Mas também se verificarmos o
calendário festivo da casa das minas no século XX relatado por Dona Celeste, e o que se tem registrado pelos
articulistas do Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, se verá que a casa de culto afro consagrou o
mesmo compasso festivo da cidade, em quase nada diferenciado do calendário cristão e cívico, evidentemente
que com motivações próprias. Quanto ao calendário cristão, descreve Mundicarmo Ferretti haver um alto índice
de integração de elementos do catolicismo, porque: a) os voduns são devotos e relacionados a santos; b) as
festas e obrigações seguem o calendário católico e incluem na programação missas (na igreja), procissões e
ladainhas em latim; c) os terreiros realizam festas do Espírito Santo, organizam presépios e ritual de queimação
de palhinhas; d) as casas suspendem as atividades de mina na Quarta-feira de Cinzas, com um ritual
denominado arrambã ou bancada, e só voltam a realizá-las depois da Quaresma; e) tanto a casa de Nagô como a
das Minas faz uso freqüente de velas nos pedidos e consultas aos voduns.(.......) FERRETTI, Mundicarmo.
Tambor-de-mina e diversidade afro-brasileira no Maranhão Apresentado em Salvador, em 16/07/2001, na
53ª Reunião Anual da SBPC - Simpósio: Afro-diversidade II. Publicado no Boletim da Comissão maranhense
de Folclore n. 20 / Agosto 2001.
223
PACHECO, op.cit., p. 350)
152
comenta sobre D. Luís Saraiva, nomeado bispo por Decreto Imperial em 14 de janeiro de
1861 e que chegou ao Maranhão em 14 de março de 1862:
Achando em mau estado quase todas as igrejas, algumas até ameaçando ruínas, e todas sem o
menor asseio, foi lembrado S. Exa. Às respectivas Irmandades a urgência que havia de serem
reparados os templos, e providos dos paramentos necessários, afim de evitar que subissem ao
altar os sacerdotes com vestes rotas, sujas e indecentes
224
.
Nesse tempo, foram feitas grandes restaurações nas igrejas do Rosário, de São João, da
Conceição, de São Pantaleão e dos Remédios, no Convento do Carmo e nas capelas do Senhor
Bom Jesus dos Passos e do Senhor dos Navegantes; e, principalmente, foi reerguido o templo
do bairro popular do Desterro, naquela época em completa ruína. Para este, César Marques
ainda fala de uma grande mobilização na qual ele fez parte de uma comissão de reconstrução,
que envolveu diversos donativos
225
. Se tais obras tivessem sido de alguma forma oficiais,
constariam no Dicionário de César Marques números de orçamento e despesas executadas,
como é comum em seu texto, mas tudo indica que foram obras de donativos diretos de cada
grupo, cuja consequência foi a descentralização do poder clerical local.
Ainda nos relatos de Marques, havia um bispo popular e mobilizador que contava com
o apoio de todas as classes sociais (ali entendidas como comércio, indústria, artesãos, clero),
reforçando uma estrutura não muito bem vista nos posteriores escritos de D. Felipe Condurú
Pacheco, bispo, escritor da história eclesiástica do Maranhão em meados do século XX
226
:
quanto à catolicidade dessas irmandades cheias de cristãos displicentes e até de mações,
224
MARQUES, 1970, op.cit., p. 150.
225
MARQUES, 1970, op.cit., ps. 243-6.
226
D. Felipe Condurú Pacheco fez o curso primário no Seminário de Santo Antônio, em São Luís e os estudos
teológicos no Seminário Maior em Fortaleza, ordenando-se em São Luís em 21 de novembro de 1915. Em
1941 foi nomeado Bispo de Ilhéus, Bahia, e cinco anos depois Bispo de Parnaíba, , Piauí,, cargo a que se
resignou por motivos de saúde, tendo então sido nomeado Bispo de Decoriana, Tunísia, na condição de
resignatário (da orelha do livro)
153
“laivos de laicismo de opa, e a querer mandar no recinto dos templos”(...)”
227
. Entretanto,
Pacheco constrói um texto vacilante, entre a crítica e a defesa da Igreja daquele tempo.
O modelo das confrarias como braços privados das igrejas sobreviverá até os anos
trinta do século XX, com o loteamento por segmentos sociais que irão se diferenciando com a
mudança da sociedade. É importante notar que diversas práticas culturais do segmento mais
pobre ou escravo se desenvolviam via essas irmandades, para depois tomarem completa
autonomia nos meios populares como as festas de santos, natalinas, do divino, sem associação
ou autorização da igreja. Como dirão os pesquisadores e redatores da pesquisa Tambor de
crioula – ritual e espetáculo, em uma interpretação sobre a “cultura de irmandade”:
Deduzimos assim que, apesar de não poder realizar manifestações ligadas à sua cultura de
origem, ou seja, rituais de procedência africana, os pretos que se abrigavam nas irmandades,
praticavam de qualquer maneira um catolicismo de folk, através das festas de largo,
novenários, leilões, procissões, foguetórios, etc.
228
Através das irmandades, Augusto Aranha Medeiros descreveu como se dividiam os
grupos sociais da cidade no início do século XX, por herança do XIX. Seu mapa confirma as
situações conhecidas. Só os brancos carregavam o andor de Bom Jesus dos Passos, como ele
diria a “Irmandade dos Passos existia era só dos portugueses, de gente da “granfa”( ligada à
Igreja do Carmo). Apesar disso, como homem negro, o depoente se tornou continuador da
irmandade, através da procissão de Bom Jesus dos navegantes, que, segundo ele, tem a
mesma imagem, surgida de uma cisão da irmandade dos Passos no início de 1800 (relata ata
datada de 1825), mas abrigada na Igreja de Santo Antonio.
Agora, a irmandade de lá (Bom Jesus dos Passos) acabou. . Também essa aqui (navegantes)
era toda cheia de seleção... Não era todo preto que entrava; era a mesma coisa dos Passos, era
227
PACHECO, op. cit., p. 351.
228
COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE. Tambor de Crioula – ritual e espetáculo. São Luís:
SECMA, 1995, p.34.
154
os mesmos portugueses, essa gente. Mas a vaidade deles veio cair na mão do preto Augusto. Se não
fosse eu, ele já tinha ido há muito tempo embora
229
.
Além dessas, havia a irmandade de Bom Jesus da Coluna, também em Santo Antônio
que, segundo ele, era composta de negros ricos (No começo do século significava o pessoal
que trabalhava na ferrovia e ganhava salário do Governo Federal); A Irmandade dos
Martírios, na Igreja de Santana, de brancos (não destaca classe social, mas subentende-se não
ricos); Bom Jesus da Cana Verde, originalmente da região das Mercês-Desterro que circulou
por outras igrejas. Daí, um ano, Monsenhor Frederico disse: - “Esse ano Bom Jesus vai
recolher na igreja dele, na Igreja do Desterro”. Tinha muita coisa boa, a Irmandade de lá,
apesar de ser de operários, estivadores...
230
. Reforçando o caráter operário da região.
A Irmandade de São Benedito - informou Augusto - teria surgido na Praia do Caju em
torno de 1847, e a imagem sediada na Igreja de Santo Antônio era alvo de procissão e festa de
grande aglomerado de caráter popular.
Aqui, Santo Antonio está numa hierarquia abaixo que Carmo. Santo Antônio abrigou a
irmandade de Navegantes, de brancos dissidentes e “pretos selecionados”, também Coluna,
irmandade de pretos ricos e São Sebastião, a mais popular. Desterro: Bom Jesus da Cana
Verde, classista, irmandade de operários e estivadores. Igreja de São Pantaleão: a irmandade
de Santa Severa, provavelmente popular. Até na religião a hierarquia social e a ordem dos
lugares na cidade se manifesta.
229
MARANHÃO, op. cit., p. v. 2, p.147.
230
MARANHÃO, op. cit., v.2, p.145.
155
CONCLUSÃO
Surge o povo e se consolida a ordem da distinção
O século XIX terminaria em São Luís, de fato, com a Proclamação da República em
1889. Talvez o seu símbolo de falência definitiva – ao menos no que tange a abordagem que
foi desenvolvida até aqui - tenha sido a derrubada do pelourinho; pelos trabalhadores em uma
grande manifestação de rua, que Astolfo Marques descreveu como uma turba indignada
composta de estivadores do Jerônymo Tavares; trabalhadores das companhias das Sacas
(Prensa) e União (Tesouro) e operários da Uzina do Rapozo; embarcadiços, catraieiros e
pescadores das praias do Cajú e do Desterro, cujo motivo de união era festejar a república e
ressaltar o Povo:
...aos magotes, todos que vinham juntar àquelles que, premeditando uma sanha felina e
implacável, ali se achavam inertes, limitando-se a erguer vivas e a brandir ameaçadores
pôrretes, aos quais vinha tilintar um ou outro fragmento de arco de barril”
231
.
Derrubar o pelourinho não significava só apagar a memória da repressão mas,
também, marcar um novo tempo de liberdade e fraternidade, de construção de uma pátria
livre e forte. Tais apelos eram feitos à massa popular mobilizada por lideres também
populares. A atitude de derrubar o pelourinho, apesar de legítima e legitimada por todos – de
um lado por ter sido ele associado ao castigo, fundamentalmente aos trabalhadores, de outro
por denunciar os métodos rudes dos senhores - não agradou a alguns pela forma com que a
maioria toma a frente da questão política e o destino da história local naquele momento,
inclusive destruindo demais marcos simbólicos do passado colonial e imperial da cidade.
231
MARQUES, Astolfo. A nova aurora (novela maranhense). São Luís: TIP. TEIXEIRA, 1913, p.55.
156
Rezolutamente, implacavelmente, qual esfomeados urubús no esfacelamento devorador da carniça, os
mandatários derrocavam o quazi secular monumento que, desde 1815, se erguia ali, no adro do
Carmo, sem que a história, por mais esmiuçada que fosse, elucidasse a sua proviniência, a sua
verdadeira serventia naquelle pinturêsco local
232
.
A descontinuidade inicia, nessa abordagem, quando surge o mais novo símbolo do
regime implantado, o povo. Contudo, o mesmo Astolfo Marques, intelectual negro, autor de A
nova aurora, contemporâneo desses acontecimentos, descreve a contrapartida reacionária
dada pelas elites, para reverter e se assenhorear dos acontecimentos, montando o festival das
comemorações da instauração da república no Maranhão, digna da melhor ficção simbólica ou
dos maiores atos hilariantes que se tem notícia da transplantação de ritos políticos ocidentais
na “periferia do mundo”.
Do interminável cantar de hozanas à república proclamada, certo foi a procissão cívica
promovida pelas classes representativas dos três poderosos fatores de riqueza pública – o
Comércio, a Lavoura e a Indústria, a que, pela sua grandiosa imponência, se considerou o clou
dentre tantas outras. O advento do rejimen da democracia provocára dessas coletividades uma
manifestação única em aparato e galhardia, destinada a ser relembrada ad perpetuam rei
memoriam
233
.
Primeiro, como descreve Marques, “as burras dos senhores das classes conservadoras
abriram-se em pródiga derrama de dinheiro” para garantir a grandiosidade das
comemorações. O comércio e o serviço público não funcionaram e, nos consulados e edifícios
públicos, as bandeiras flutuavam ao vento em grande número. O povo ocupou o primeiro
plano das referências, mas se fragmentou ao serem constituídas as “comissões de todas as
classes sociais”. No largo dos Remédios se aglutinaram os da força militar, com uniforme de
232
MARQUES, Astolfo, op. Cit., p. 93.
233
Ibidem, p. 106.
157
gala frente a uma multidão, para receber a junta provisória que chegava em landaus
imponentes e era saudada pela Marselhesa tocada por bandas marciais.
Soma-se ao estardalhaço uma bateria de fogos e salva de 21 tiros, seguidos de cortejo,
tendo à frente cavaleiros enfaixados, empunhando bandeiras de todas as repúblicas do mundo.
As tropas abriam fileiras para fazer continência e depois marchavam atrás e, a parte mais
alegórica:
Seguia-se o carro alegórico, conduzindo o grupo simbólico da república, da Glória e da
Liberdade: eram três formosas moçolas, belas e sedutoras, tanto e tanto que, no ajustamento
do seu porte ao símbolo, mais pareciam estátuas. Em disposição simétrica formavam os carros
conduzindo cada qual seu guardião, com inscrições das grandes datas republicanas locais e
nacionais.
Estas eram: 2 de novembro 1685 – Suplício de Bequimão; 1789-1792 – Inconfidência
mineira; 1817 – Revolução de Pernambuco; 1835-45 – República do Piratini; 23 de julho 1824
– confederação do Equador; 7 de novembro de 1848 – Revolução Brasileira; 1888 – 1º
Congresso Republicano no Rio de Janeiro; 1870 – Grande manifesto Republicano; 15 de
novembro 1889 – Proclamação da República Brasileira; 18 de novembro de 1889 – adesão do
Maranhão à República
234
.
Prosseguia o cortejo, acompanhado pelos landaus dos governantes atrás e mais
carruagens-corsos: a da Deusa da Justiça, precedendo os magistrados, vestidos no rigor de
suas becas negras; a de Minerva, guiando os estudantes secundários; au grand complet, e os
primários por delegações; a de Ceres, puxando os produtores agrícolas; a das Belas-Artes e
Ofícios, seguida do operariado; e , por fim a de Marte, deus dos guerreiros, abrindo caminho
para toda a força militar toda em uniforme de gala. Desfilou por todas as ruas e praças
principais da cidade, terminando e dissolvendo-se no Teatro São Luís
235
. Aqui o povo, no
234
MARQUES, Astolfo, op. Cit., p. 107.
235
MARQUES, Astolfo, op. Cit., p. 108. Penso ser isto uma matriz de escola de samba, com seus carros
alegóricos e suas alas, que é antecedida pelo corso. O Corso parece ter surgido no Brasil, como registra Eneida,
no ano de 1907: “Levando adiante esse panorama do carnaval carioca nas primeiras décadas do século, vamos
158
sentido republicano, é fragmentado em diversos segmentos e, em última instância, esteve
associado à classe trabalhadora, como estamento
236
. A sequência do autor demonstrou o
silenciamento da voz operária, com perseguições e prisões implacáveis de lideranças
populares. Os novos lugares na ordem estavam definidos.
É interessante a confirmação desta farsa, cujo fim mais adequado foi a transplantação
para as manifestações carnavalescas, nas quais, aos poucos, a idéia do operariado é a do
próprio povo como ala alegórica, não obstante continuar citado como ala social dos mais
pobres. No ano seguinte, o teatro da República se refletiu na estética momesca: O Club
Fenianos do Norte anunciava uma grande passeata no domingo, nos moldes da passeata
republicana, no jornal A Pacotilha de São Luís de 16/02/1890:
...três garbosos cavaleiros, trajados à moda do século XVIII, recordando a época da grande
revolução (...) Irão empunhando três standartes auri-verdes, desfraudados ao sopro do vento e
retornar a 1907 e observar o nascimento do corso, que igualmente às grandes sociedades foi uma manifestação
típica da elite”. Conta-nos Eneida (op. cit.: 151), que no final da tarde de 1 de fevereiro de 1907, as filhas do
Dr. Afonso Pena, então presidente da República, entraram na Avenida Central em carro do palácio
presidencial. O automóvel percorreu a Avenida de ponta a ponta e as moças passeavam jogando confetes e
serpentinas no público e outros veículos com que cruzavam. Logo após surgiram outros carros com pessoas
agindo da mesma maneira”. Citado em FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O carnaval e a modernização do
rio de janeiro. Revista geo-paisagem ( on line ), ano 2, nº 4, 2003, Julho/Dezembro de 2003
,
ISSN Nº 1677-
650 X. Disponível em: http://www.feth.ggf.br/Carnaval.htm.
236
Desde o século XVII já existe a idéia de POVO em São Luís, que aparecia associado à Câmara quando
expandia o poder local para a Junta Geral. A Juntas Gerais eram o instrumento de deliberação excepcional e
dela participavam a nobreza, o clero e o povo, como nos estamentos do Antigo Regime. A nobreza era todos
que estavam na categoria de “homens bons”
236
, proprietários rurais, donos de escravos e engenhos e
descendentes dos moradores que adquiriram nobreza togada nas guerras de conquista e reconquista e, claro,
com redundância, os que costumavam andar pelas vereações; o clero representado pelos catequisadores
jesuítas, mercedários etc. e o povo pelos demais colonos (homens livres). Uma Junta não muito coesa quanto
aos interesses, visto que padres e colonos disputavam entre escravidão e formação de missões indígenas. Os
“nobres” que estavam no Senado, conflitavam com todos por causa da cobrança de impostos e taxas
municipais e todos conflitavam com o governador por causa dos impostos reais dirigidos à construção de
fortalezas militares e recrutamento para guerra. As Juntas gerais acabavam servindo de retaguarda para a
contraposição às ordens reais em questões como o escambo e a cobrança do finto do escravo.
159
com as inscrições a ouro: LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE. (...) seguem-se-
lhe dois cavaleiros, um trajado como na mitologia, o deus marte, e simbolizando O
EXÉRCITO E A ARMADA e o outro representado O POVO e trajado como os operários
franceses do século passado. (...) Num outro carro, MERCÚRIO E CERES, simbolizarão o
comércio e a lavoura (...) em homenagem à ciência e à justiça, duas figuras alegóricas
irão logo após o trabalho e o futuro, num carro adornado a capricho, vestidas segundo a
descrição da mitologia e trazendo os seus respectivos emblemas MINERVA E THEMIS, a
deusa da sabedoria e da justiça
237
.
Ainda naquele século XIX de tanta distinção, o Teatro São Luís (hoje Artur Azevedo),
se abriria pela primeira vez para receber todas as classes sociais, simulando o ideal de
igualdade civil da República. Mas basta seguir um pouco adiante nos relatos para se perceber
que o teatro voltaria a ser lugar de distinção. Cecílio Sá, homem negro, imigrado de
Alcântara, aprendiz de artífice carpinteiro, ainda participou de momentos áureos do teatro
Artur Azevedo, que já não era exclusivo das elites, entretanto continuava a determinar
discriminações sociais, e comportava o povo como categoria - semelhante à Ermida dos
Remédios, quando tratamos da Festa de Nossa Senhora dos Remédios, descrita por João
Lisboa -, dirá:
Aliás, em 1923 foi a primeira vez que assisti teatro, quando chegou aqui as Companhias de
Opereta de Maria Lino, Vicente Celestino. (...). Ali tinha uma escadaria que era mal
iluminada. Então lá encima tinha uma varanda onde eu trazia o pessoal, a ralé ia assistir o
teatro. O teatro não era só para a elite, era dividido, a elite ficava embaixo nas poltronas e
camarotes, etc. E em cima tinha a varanda pro pessoal mais pobre assistir. E lá é que era o meu
237
Apud: ARAUJO, Eugênio. Não deixa o samba morrer: um estudo histórico e etnográfico sobre o
carnaval de São Luís e a escola Favela do Samba. São Luís: Edições UFMA/PREXAE/DAC, 2001, p.71. Os
grifos são do original.
160
camarote. Eu entrava de graça porque eu era amigo do porteiro. Daí, que começou o gosto pelo
teatro
238
Eurico Macedo, engenheiro da Estrada de Ferro São Luís-Terezina que chegou do Rio
de Janeiro em 1906, diz ter encontrado o grupo das elites, a que ele chama de “sociedade
maranhense” apegado às etiquetas e fazendo poucas concessões, como exceção citou
usufruírem o viver aprazível que permitia a Ilha de São Luís, em sítios afastados da cidade.
Era nesses sítios que a rigorosa sociedade maranhense da capital do Estado esquecia todas
as etiquetas nos dias festivos de São João ou de Natal em cada ano, para dar liberdade a todos
os prazeres decentes...
239
.
De uma observação constante nos jornais do início do século XX tem-se a
confirmação de que povo passou a ser a designação do seguimento trabalhador e despossuído.
Do jornal A Rua, se referindo às festas do teatro em 1915: “Dentro de tudo de belo que lá
vimos, quatro máscaras nos despertaram a curiosidade, representando a lavoura, o
comércio, a indústria e o Zé povo”. No início da década de 1920, aparece o corso oficial,
promovido pelo governo, utilizando carros da repartição pública, onde se refere da mesma
forma ao povo: Os automóveis do Estado fizeram, ontem, um belo Corso, que sem exagero,
deu a nota chic da tarde. Zé povo de mãos no bolso, olhava para os lustrosos e polidos carros
e caía-lhe o berço baboso
240
.
O povo, categoria representativa da república, como todos de uma mesma nação sob
as mesmas leis, para além da segmentação que sofrera distinguindo segmentos sociais
238
MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura. Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Memória
de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luís:
LITHOGRAF, 1997. v. I-V, v . 2, p.29.
239
MACEDO, Eurico Teles de. O Maranhão e suas riquezas. São Paulo: Siciliano, 2001, p.19
240
DIÁRIO DE SÃO LUIS. Carnaval. 5 de fev. de 1921.
161
existentes, lavoura, comércio, indústria, operariado, agora era o estigma dos mais pobres
como “Zé povo”.
No fim do século XIX e início do século XX, uma forma balizadora de traçar os
lugares destinados às classes trabalhadores, no limite periférico em expansão, é a localização
das fábricas, que empregaram o maior volume do trabalho urbano regular, apesar da
precariedade da forma contratual, feita por jornadas. É resultado da nova direção do capital,
antes investido no campo pelo setor financeiro e comercial e decorre da crise de mão-de-obra
que se dera com o fim da escravatura.
Em volta de tais fábricas também se constituem ou se povoam novos bairros,
deslocando-se para lá a maior parte da população de baixa renda de três origens fundamentais:
gente do interior, cuja rota náutica pela Praia Grande era regular, vendendo produtos agro-
pecuários; gente dos povoamentos do interior da ilha; pessoas que continuavam a se deslocar
no sentido do centro para a periferia, ex-escravos e gente pobre sem habitação própria.
Os lugares das fábricas, por fatores de salubridade e de acesso ao transporte náutico,
deveriam se distanciar do núcleo da cidade. Esta diretriz já estava dada desde o código de
posturas de 1866, quando a idéia de novos investimentos na produção ainda era tímida: “as
novas saboarias, oficinas de tanoeiros, ferreiros, caldeireiros e todas as mais desta natureza,
que possam incomodar ou prejudicar os habitantes desta cidade, só poderão estabelecer-se
da data desta postura em diante em qualquer lugar do litoral da cidade...”.
241
.
Entre as principais Companhias fabris instaladas na adjacência da cidade, no final do
século XIX, estão a Companhia Fabril Maranhense, edificada na região do “Apicum”, hoje
Canto da Fabril, com seiscentos trabalhadores diretos, inaugurada em janeiro de 1892
242
;
241
SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Código de posturas de 1866, 1882, 1891. Transcrição paleográfica do livro
de posturas: original, p.28.
242
Ocupando uma área de 6.993 metros quadrados. com um motor de 450 cavalos de força que acionava 420
teares e 149 outras máquinas. Sua capacidade de produção era de três milhões de metros de riscado e
162
Companhia de Fiação de Tecidos Maranhense, inaugurada em de janeiro de 1890
243
,
localizada na “Cambôa do Mato” (hoje somente Cambôa); Companhia da Fiação e tecidos de
Cânhamo, fundada em 6 de abril de 1891, instalada no extremo sul da Rua São Pantaleão, ao
lado da antiga Ermida da Madre de Deus
244
. Em setembro de 1894, foi criada a Companhia de
Fiação e Tecelagem São Luís, que funcionava ao lado da Cânhamo
245
; A Companhia
Progresso Maranhense
246
, na Rua São João, próxima ao Mercado Central
247
; A Lanifícios
Maranhenses, na Rua Cândido Ribeiro, paralela à Rua São Pantaleão
248
.
domésticos de algodão por ano.
243
com área de 9.925 metros quadrados. Sua forca motriz era de 300 cavalos, que moviam 300 teares,
produzindo 1.800.000 metros de tecidos domésticos e riscados grossos e finos, e 1.400 quilos de fios em
novelos por ano
244
Em área de 37x 111 metros, com a finalidade de tecer juta. Possuía motor de 120 cavalos para movimentar
105 teares e 28 máquinas operatrizes, empregando 220 operários para produção de 1.400.000 metros de estopa
por ano
245
Com área construída de 45x39 metros. Seu motor de 120 cavalos que dava propulsão a 55 teares, que teciam
320.000 metros de pano de algodão, operados por 55 operários.
246
Com motor de 160 cavalos de força, para 150 teares e máquinas, produzia 685.000 metros de pano de
algodão, fio em novelo e linha para pesca.
247
Como já fora dito no capítulo sobre os aparelhos urbanos: Em 1821 a faixa de reentrância de águas entre a
Praia do Desterro e a Praia da Madre-Deus recebe as funções de matadouro, açougue e curtume, em
substituição à Praia de Santo Antônio, antigo limite da cidade a sudoeste no século XVIII. O lugar ficou
conhecido após algumas décadas de uso como Largo do Açougue Velho, que era mantido pela municipalidade.
A área de baixio recebia diversos canais de água que desciam de fontes próximas, uma delas existente até hoje,
a Fonte das Pedras, conhecida desde o século XVII. A planta recebeu constantes obras de melhoria para abrigar
praça regular de comércio e tornar-se também conhecida por Praça do Mercado, onde tudo era vendido sem
maiores cuidados higiênicos.
248
VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão 1896-1934 (v.3). São Luís: LITHOGRAF,
1992, edição fac-similar, p.49-66. Além destas, outras foram instaladas em pontos mais distantes do centro,
mais sempre relacionadas a ele ou pelo Rio Bacanga, ou pelo Rio Anil: A Companhia de Fiação de Tecidos
Rio Anil, instalada no Anil, localidade situada nos limites fronteiros do território Leste do município de então,
ocupava a área de 103 metros de frente por 98 de fundos. Começou a trabalhar em 1893, com 500 cavalos de
força, que movimentavam 172 teares, 60 maquinas de fiação e 18 de branqueamento. Produzia 1.100.000
metros de morins e madapolões por ano, com a mão-de-obra de 209 operários; construiu-se fábrica para fazer
acabamentos em lã, seda e algodão, além de companhias de fósforos, cerâmica, de pilar arroz, extrair óleo,
fabricar calçados, chumbo e pregos
163
Destas, a fábrica Cambôa, no roteiro nordeste; a fábrica Fabril, na saída leste da
cidade e as fábricas Cânhamo/São Luís no circuito sul, se encarregaram de fechar o grande
cinturão dos bairros do entorno que formariam a periferia adjacente, já no fim do século XIX.
Apesar de as vilas operárias serem construídas por conta das fábricas, abrigavam apenas um
segmento mais qualificado ou dirigente, sendo que o restante das moradias se instalou
basicamente em um processo de posse irregular, grande parte delas atiradas para dentro dos
mangues de então, em palafitas.
Também devemos considerar que entre o núcleo bem estabelecido, até chegar às beiras
ou aos novos bairros, havia um espaço mediano, que deu lugar a cortiços, particularmente o
espaço entre a Rua de Santana correndo para a Casa das Minas, mais ao sul. Entre o fim do
século XIX e o começo do século XX, com a grande migração do campo para cidade,
decorrente principalmente do fim do modelo exportador, agrário e escravista, estrangulado
com a abolição, mais a oferta de trabalho nas fábricas e atividades satélites derivadas, surgiu
um novo investimento em São Luís, o aluguel de imóveis para a população de baixa renda, a
que chamavam, por unidade, de cortiço.
O cortiço era resultado de empreendimentos de proprietários do Centro, em prédios de
usos decadentes, ou como novo investimento, criando as vilas (a era das vilas) de quartinhos,
descritos como um “correr de quartos” que no final tinha uma cozinha e um banheiro coletivo,
também um tanque de água com uma torneira onde todos se abasteciam de água, enchendo os
seus potes individuais para beber em seus quartos. Os que desejavam tinham um fogareiro
dentro do quarto sobre uma folha de flande (folha de zinco – metal) para cozinhar. Era essa
era uma situação comum aos trabalhadores de fábricas, domésticas, estivadores, catadores de
lenha para os fornos a vapor, vendedoras de doces e lanches.
As vilas operárias, construídas próximas aos respectivos complexos fabris, eram
destinadas a trabalhadores qualificados e fiscais da mão-de-obra. É assim que Celeste relata o
164
novo cenário, descrevendo como a Casa das Minas acompanhou a situação de subúrbio que
se instala naquela região nas primeiras décadas do novo século:
E eu achei essa convivência, a casa muito cheia, muita gente, morando na casa, nesta época
tinha muita dançante que tinha família, tinha filho, então lá tinha as divisões, porque lá são
quatro famílias reunidas, juntas com o dono da casa. Então para que ele acomodasse o povo,
ficou estendendo as moradias, pelos quartos no quintal
249
.
O trabalho da fábrica parecia nesta época assimilar qualquer trabalhador sem formação
especializada, tanto que, em paralelo, Celeste se capacitava para ter uma profissão, estudando
corte e costura ou doçaria, do que sobreviveu após o trabalho na fábrica. Assim, trabalhar na
fábrica em todo o depoimento de Mãe Celeste não aparece como profissão, esta está
relacionada a ser manicure, doceira ou costureira. Tolentino do Rosário, quanto às condições
de trabalho dirá: “Agora, quem não aguentasse o galho com a poeira, ficava logo gripado,
daquelas bronquites duras mesmo, né? Bronquite rebelde, até baixava hospital, mas quem
aguentava sorvendo aquela poeira, ia longe
250
.
Da infância, Celeste lembra da avó Severa, que tinha casa de Culto Mina em um
subúrbio próximo ao centro chamado Cavaco. Severa era lavadeira de ocupação e lavava para
o Hospital Geral (Madre de Deus), em um tempo em que essa atividade era exercida por
mulheres em fontes e córregos de água públicos. Particularmente, para o centro da cidade se
lavava nas fontes das Quintas ao Sul, como Severa lavava no Lira, onde havia o Isolamento
do Lira, lugar de quarentenas, Leste da Madre de Deus, que progressivamente se tornou bairro
no século XX. Com a morte da avó, Celeste passou a ser cuidada por uma tia materna. “Essa
também trabalhava de lavar roupa pra fora e gomar. Mas era uma Quinta na Belira (que
249
MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura. Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Memória
de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luís:
LITHOGRAF, 1997. v. I, p.130.
250
MARANHÃO, v.2, p. 110.
165
também se tornou bairro), numa quinta de lavar que tinha antigamente na Belira. Lavava e
passava para fora. (p92). Logo, das mulheres que lhe cuidaram tem lembrança dessa relação
com o Sul e sudeste da cidade (Centro), de onde tiravam sustento. Das quintas também
vinham as frutas utilizadas na doçaria, não sem custo
251
.
A memória de dona Celeste faz sentido em um contexto amplo, ao tempo que restrito a
um segmento social: Casa das Minas, Casa de Nagô e fábricas, mocambos e cortiços são
lugares associados. “...sobre a Casa das Minas, o pessoal da Casa das Minas, quase todos
eram operários de fábrica”/ “O número de dançantes (DANÇAS RITUAIS) maior , da Casa
das Minas, eram funcionários da fábrica Cânhamo
252
.
Retomando a relação entre a cultura e os “lugares” onde ela se movimenta, a Casa das
Minas continuou sendo um epicentro de relações, notavelmente presente no discurso de dona
Celeste, pelo eixo da Rua São Pantaleão, que corta com maior profundidade o centro da
cidade de Norte a Sul e chega à Madre de Deus. Tal rua era o limite da primeira planta urbana
Leste-Oeste do século XVII, onde acabava a zona urbana e iniciava as quintas. Ao Sul
estavam as quintas onde muitas mulheres ganhavam a vida lavando ou comprando frutas para
a doçaria, vendida em tabuleiros na cidade. Ao falar de carestia e abastecimento ela declara:
“...onde era o mercado, por aí, defronte da Fonte das Pedras era só fábrica da arroz, todos
aqueles pontos tinha diversas fábricas, tinha umas 6 a 8 fábricas de arroz juntas, então tinha
muito arroz. Agente comprava até na fábrica, tinha o balcão de sair, de exportação, mas no
balcão vendia, na fábrica mesmo se vendia
253
. Logo, toca no mesmo contexto local, o do
Mercado de produtos a grosso, no antigo açougue e matadouro da cidade, afastado já no
século XIX para o Sul, fronteiro à Rua das Cajazeiras, verdadeiro limite entre o urbano e
suburbano até os anos 40 do século XX.
251
MARANHÃO, op. Cit., v. 1, p.172.
252
Idem, p.98.
253
Idem, idem p.102.
166
A Casa das Minas é parte destacável de um entorno especializado da cidade, na
paralela da Rua São Pantaleão ficava (fica) a Rua das Crioulas, de um tempo que se designava
os nomes das ruas por uma referência principal, predominância de uma vegetação, localização
de um prédio ou função urbana importante, lugar também onde se encontra instalada a Casa
de Nagô, congênere da Minas. A Rua das Crioulas é citada no romance O Mulato de Aluízio
de Azevedo como o lugar onde se vendia comida na cidade, onde freqüentavam comerciários.
Da mesma forma aparece em Dr. Bruxelas:
Ornamentada a capricho pelos irmãos Baltazer, a casinha da Rua das creolas, alugada a dona
Rosa percevêjo, já com dois meses, regorgitava de rapazelhos do comércio e cocótes chics de
cabelo cortado à ba-ta-clan. Fora, no passeio, sob o luar magnífico, reunia-se um bocado de
mulheres depravadas e homens debochados, que detratavam a vida alheia”
254
.
Esta região pode ser definida como de hegemonia afro-descendente. Essa hegemonia é
ditada pela decisiva participação das mulheres na cultura.
Dona Maria Celeste tem um mapa dos cortiços da cidade na memória, lugares onde
moravam parentes e amigos, gente que trabalhava em fábricas. “Então tinha muito cortiço,
porque a maior parte da moradia mais assim de cidade, era cortiço nessa época, em diversos
lugar. Tinha rua que tinha dois, três, mesmo no centro da cidade também tinha, não era só
bairro..
255
..
Se desejarmos estudar o primeiro grande foco de moradia operária na cidade, devemos
nos concentrar entre as faixas que vão da Avenida Magalhães de Almeida norte-sul e a Rua de
Santana oste-leste, quadrante posicionado no fim da melhor topografia, onde se encontram
diversos declives. A rota de Maria Lúcia (1907), filha de Santo da Casa de Nagô, se fez de um
lado para o outro no plano residencial; da antiga para a nova periferia, como de grande parte
254
PINTO, op. cit., p.72.
255
Ibidem, p.133.
167
dos novos moradores da região. Tendo nascido na Rua de Santo Antônio entre a Rua da Cruz
e São João, se estabeleceu mais tarde na área sul, no eixo da São Pantaleão-Crioulas
256
.
Vimos que essa nova expansão foi favorecida pela dissociação entre trabalho e
residência, que permitiu de fato a existência ou ampliação de lugares especializados em
moradias de baixa renda, de lazer em ambientes diferenciados e não “embaixo das sacadas
dos casarões”, como se fazia com os baralhos e congos, no período escravocrata
257
.
Entretanto, agora mais que antes, os trabalhadores eram diferenciados e tratados como
estranhos: gente dos bairros populares, dos “bairros da vagabundagem”, cujos estigmas
começam a aparecer, para compensar a falta de controle pessoal, diante da igualdade jurídica.
Na literatura de O Mulato, de Aluisio de Azevedo, os tipos sociais convivem, porém
se estranham, demonstrando toda a arrogância dos proprietários com seus subalternos, os
caixeiros, os balconistas, as pretas da casa, objetos de crítica, que o fez sofrer a indignação
das elites e o levou ao autoexílio na vida real. Fulgêncio Pinto, ao publicar em 1924 o seu Dr.
Bruxelas e Cia, - diz ser inspirado naquela obra de Aluísio, e procura igualmente localizar os
tipos sociais mais pobres e suas relações como o mundo da elite de São Luís – encontrou um
universo completamente diferente de relacionamento, no qual seus tipos sociais
258
estavam
agora nos bairros pobres, que ele, sem reservas, intitula “bairros da vagabundagem”
259
.
256
PINTO, op. Cit., p.167.
257
Estes mapeamentos urbanos servem a diversos assuntos de pesquisa. Na área da cultura, quando o
pesquisador se depara com leituras de memórias da cultura popular, como as registradas na coleção memória de
velhos, uma das maiores dificuldades de entendimento provém de não saber onde ficam esses lugares da cidade
constantemente citados, o que representam, como historicamente se construíram, por que se repetem, se
associam ao depoente e à sua cultura. Falo basicamente de territorialidade, de onde ele surge para ser o lugar de
fazer cultura no século XX. Becos, ruas, fábricas, lugarejos, povoações, subúrbios, fontes, cemitérios e
matadouros. Lugares que pertencem à mecânica da cidade, que determinaram hierarquias e geraram
comportamentos.
258
Fulgêncio cita nomes e ocasiões conhecidas. Alerta que todas as informações ali contidas provêem de
vivências reais. Parte do que ele próprio viu e viveu das ruas “este teatro, onde representam todos os dias as
grandes tragédias de sangue, as misérias da vida e as cenas canalhas dos vadios e dos malandros”. Parte do
168
Pretende dar voz aos “da margem”, e condena o estilo e modo de vida hipócrita dos
ricos e poderosos, para, em seguida, ressaltar preferência pelo submundo, mais legítimo, pois
menos “caiado”. Dirá sobre os de “classe social”:
Os canalhas, os vis, os hipócritas e os cínicos, que vestidos de palhaços, sacudindo os guisos
da imoralidade, passam pela grande feira do vício, com ar de felinos, deixando risos que
cortam como navalhas, que usam bengalas com castão de oiro e anéis de brilhante,
exteriormente trazem roupagens de santidade, mas no celebro trazem uma cloaca aberta,
donde alam podridões, imundices morais, tipos esses adaptáveis ao século das mentiras
convencionais de nossa civilização
260
.
Fulgêncio, a exemplo de Aluisio de Azevedo manifestou repúdio pela “sociedade da
nossa terra”, “gente altamente colocada”, portadores de galões doirados ao punho e espátulas
reluzentes ao lado, que defendem a “civilização”. Os mesmos que possuem retratos de honra
em quartéis, institutos de educação e associações beneficentes. A crítica de Fulgêncio era
que leu em colunas de jornais (“pessoal do Brodio – dos jornais indígenas”). Revelações de seu amigo Paixão,
tipo irônico e filósofo, inteligente que conhece a crônica variada de todas as almas boas e sórdidas que
perambulam pelas ruas, praças e vielas, além do que cita fatos conhecidos da história e personagens reais.
PINTO, Fulgêncio. Dr. Bruxelas & Cia. São Luís: Typ. Chaves & CIA, 1924, p. 07.
259
Como vertente literária, tanto Aluísio de Azevedo quanto Fulgêncio – aquele mais literato, este mais narrativo
e documentarista - podem ser referendados pela corrente historiográfica que leva em consideração a literatura
como fonte, em função do contexto de sua produção e acaba se opondo a versões da pós-modernidade da
“morte” do autor. Apega-se a uma idéia mais materialista da obra de arte, em detrimento de sua
inexplicabilidade, de sua singularidade, atemporalidade. Então resumo o meu debate nos propósitos da
publicação A história contada – capítulos de história social da Literatura no Brasil, que me convence, e no
que os seus prefaciadores, Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Sidney Chalhoud advogam: (..). é
histoticizar a obra literária – seja ela conto, crônica, poesia ou romance -, inseri-la no movimento da sociedade,
investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade,
mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao
negar fazê-lo. Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem reducionismo
estéticos, dessacrarizá-la, submetê-la ao interrogtório sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para
historiadores a literatura é, enfim, testemunho histórico. CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo
Affonso de Miranda (org.).A história contada – capítulos de história social da Literatura no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
260
PINTO, op. cit., p.3.
169
particularmente implacável por constatar que, utilizando status e posses, os homens da “alta
se envolviam clandestinamente com mulheres das classes baixas ao freqüentarem a periferia,
levando algumas para a prostituição ou separando casais, se embriagando nos bares . Neste
caso, ao que parece, para aliviar o próprio mal estar, da civilização que criaram, acrescidos
de um provincianismo autoritário e católico, mantido pelas aparências
261
. Já se distanciavam
dos amores e favores da sociedade escravista, na qual o sexo era realizado no “quintal”.
Por outro lado, o contraponto para a “sociedade” de Fulgêncio, era o populacho, o
medonho, gente da periferia; dos diversos grupos que se manifestavam festivamente nos
cortejos de Divino, nas rodas de tambor, nas rodas de samba, no bumba-meu-boi, nos
chorados, nos batuques, nos quais rolava muita cachaça, suor e brigas. E do alto de sua
posição de escritor, integrante da elite letrada de seu tempo, Fulgêncio encontrou expressões
das mais estigmatizadas para designar o que aparecera de diferente de uma sociedade que
preservava os bons modos, mas se escondia na hipocrisia, taxando-os de medonhos, devassos,
suarentos, arruaceiros, bêbados. Além disso, diversos personagens populares aparecem com
apelidos depreciativos.
De qualquer forma, o autor registrou esse novo modo de entender as relações sociais
no qual os desiguais se distinguem não somente por enfeites, símbolos, modas
262
, mas
261
Para perceber melhor isso é bom ler REIS, José Ribamar de Sousa dos. ZBM: O reino encantado da
boêmia. São Luís: Lithograf, 2002. ZBM significa Zona do Baixo Meretrício. Dirá o prefaciador sobre isso:
“Essa expressão Baixo Meretrício por nós usada, não é comum em outros centros brasileiros, tampouco em
outras culturas – usamo-la nós, o que de resto sempre me deixou com a suspeita que, se existe um baixo,
forçosamente haverá um alto”. Não que existia o alto, mas “o meretrício”(englobante), que no começo do
século era praticado em casas de famosa madames na região da Praia Grande. Quando na década de 40 ficou
estabelecida oficialmente ali a zona do meretrício, alastrado como espelho por toda a cidade, formou-se o baixo
meretrício, submissão hierárquica e desqualificação do meretrício clássico, que continuou, como nos relata o
livro. Não é um estudo de ciência social, mais se assemelha a uma “etnografia-histórica-biográfica”, sem os
detalhes íntimos.
262
As modas, essas também como o tempo se diluem por todas as classes. As quadrilhas e as polcas,
concorridas nos salões elegantes do Brasil inteiro durante o Século XIX , no Nordeste foram comumente
170
também (agora) pelo espaço físico que ocupam, junto com seus iguais. De outro lado, a
igualdade estava estabelecida pelo novo regimento jurídico pós-escravidão e pelo novo
regime político, o da república. Restavam as diferenciações estabelecidas pelo sistema
econômico, mas também, como segundo (ou terceiro) poder, atribuir valor inferior aos
“novos” residentes.
O grupo de residentes tradicionais passou a estabelecer estigmas para sobrepor-se
como superior. Às moças que trabalhavam nas casas, constantemente imputadas de
inventarem ou transmitirem fofocas, se impunha a fama de nigrinha, uma derivação da
negrinha que freqüentava o baralho; também baratas pelo trabalho doméstico e curica quando
envolvidas com homens. Ao homem interiorano, e aos pescadores das praias de caboclo do
sembal (gente rude e sem referências), maiobeiro; caboclo da Maioba (povoado distante;
pessoa rude), diambeiro (fumador de maconha); ao consumidor de baixa renda de papa-bagre
(peixe de menor qualidade) e ao trabalhador braçal, peão, estiva
263
. Estes estigmatizados, por
sua vez, revidaravam com o tratamento de “barão”, “marajá”, “gente da granfa”. Os
residentes tradicionais se autodenominavam “sangue azul”, quando de feições européias e,
enquanto categoria, “gente da sociedade
264
, e assim tratavam os “inferiores”como estranhos.
reproduzidas no meio rural. Fulgêncio relata a penetração das modas de salão no interior da Ilha de São Luís,
em 1924, no pequeno Município de Paço do Lumiar: “E por isso, o vigário logo depois da ladainha apressada,
chamava os tocadores de harmônica e viola; aparelhava todo o pessoal músico e mandava rasgar as polcas e
puladas sertanejas. No romper da madrugada depois da “francesa” de matar, o baião chorava, quente,
sarapantado, repicado e sassariqueiro, em que a mestiçada barulhenta se eximia com gosto, dando bem o cunho
tradicional e característico da poesia étnica dos nossos antepassados africanos e mamelucos.PINTO, op.cit, p.
298. É evidente que o contexto e circunstâncias em que representam distinção é distinto.
263
Essas expressões ainda conviveram e convivem na minha geração e foram comumente usadas dentro dos
próprios grupos dominados, outras podem ser encontradas em VIEIRA FILHO, Domingos. A linguagem
popular do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1979.
264
Os estigmas formados contra a população de baixa renda e seus segmentos, ou a atribuição de valor por eles
conferida aos dominantes, desde o início do século XX, pode ser lida, por exemplo, na série Memória de
Velhos, com cinco volumes, sendo publicados em 1997. Na introdução ao primeiro volume se pode observar
seus objetivos: O estudo da memória oral é importante, quando se procura reconstruir a visão dos vencidos,
171
Como ressalta a sociologia de Nobert Elias, costumeiramente, os grupos
estabelecidos vêem seu poder superior como um sinal de valor humano mais elevado, já os
que são tratados como estranhos ou são excluídos, quando o diferencial de poder é grande e a
submissão inelutável, vivenciam efetivamente sua inferioridade de poder como um sinal de
inferioridade humana
265
.
Mas, a nova questão na relação entre os grupos se desdobra também agora para não
deixar que entrem os indesejáveis no “circuito civilizado”, como as manifestações do bumba-
meu-boi vindas do interior da ilha, e, nisso, a polícia e sua cavalaria cumpriu um papel
fundamental; seguem diversas leis na década de 20 e de 30 para expulsar do centro atividades
não desejadas, como as casas de culto afro, ou para zonear outras, como o que ocorreu com o
meretrício, que foi parar nas ruas em decadência entre A Praia Grande e o Desterro. Agora, a
ameaça não viria de dentro, a ser expurgada para fora, mas de fora, para ser impedida de
entrar no círculo “mais nobre”.
pois as tradições orais são uma fonte para apreender a história e os modos particulares de construir a realidade
que o colonizador ou certos segmentos dominantes nunca quiseram enxergar, por reunirem o precioso
testemunho construído por narrativas que trilham caminhos transversos em relação á narrativa mestre”
MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura. Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Memória
de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luís:
LITHOGRAF, 1997. v. I-V. v. I, p.25. Entretanto, a visão dos vencidos também trás à tona as formas de
submissão e reforço ao poder a que tiveram que se submeter. Outros autores interessantes nessa rota são:
VIEIRA FILHO, Domingos. A linguagem popular do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1979; NASCIMENTO,
Sandra Maria. Mulher e folia – a participação das mulheres nos bailes de máscaras do Carnaval de São
Luís nos anos de 1950 a 1960. São Luís:SECMA, 1998.
265
ELIAS, Norbert e Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p 28.
172
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICA
ARTIGOS E LIVROS
1. ABEVILLE, Claude d’. Historia da missão dos padres capuchinhos na Ilha do
Maranhão e terras circunvizinhas. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1985.
2. ABRANCHES, Clóvis Dunshee de. A setembrada e a revolução liberal de 1831 em
Maranhão. Jornal do comércio 1933, Rio de janeiro, arquivo nacional.
3. ABRANCHES, Dunshee de. O cativeiro (memórias). São Luís: Alumar, 1992.
4. Album comemorativo do 3º centenário da fundação da cidade de São Luís, capital
do Estado do Maranhão. São Luís: Tip. Teixeira, 1913.
5. ALCÂNTARA, Dora. Azulejos portugueses do Maranhão. Rio de Janeiro: Fontana,
1980.
6. ARAUJO, Eugênio. Não deixa o samba morrer: um estudo histórico e etnográfico
sobre o carnaval de São Luís e a escola Favela do Samba. São Luís: Edições
UFMA/PREXAE/DAC, 2001.
7. ASSUNÇÃO. Matthias Röhrig. A formação da cultura popular maranhense. Algumas
reflexões preliminares. In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 14, agosto
de 1999.
8. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1999.
9. ___________. O mulato. São Paulo: Ática, 1991.
10. BARROSO, Véra Lucia Maciel (org.) Açorianos no Brasil. Porto Alegre: EST Edições,
2002.
173
11. BERREDO, Bernardo Pereira. Anais históricos do Estado do Maranhão. 4.ed. Rio de
Janeiro: Tipo Editor Ltda.,1988.
12. BOUDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva S. A.,
2001.
13. CALDEIRA, José de Ribamar C. O Maranhão na literatura dos viajantes. São Luís:
Edições AML/Sioge, 1991.
14. CALMON, Pedro. História social do Brasil -Espírito da sociedade colonial. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1937.
15. __________. História Social do Brasil - Espírito da sociedade imperial. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympo Editora. 1963.
16. CARITA, Helder e ARAÚJO, Renata (coor). Universo Urbanístico Português 1415-
1822- coletânea de estudos. Lisboa: CNCDP, 1998.
17. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro:
Tecnoprint Gráfica Editora, 1954.
18. CENTRO HISTÓRICO DE SÃO LUÍS – Maranhão: Andrés Luis phelipe de Carvalho
Castro (org.). São Paulo: Audichromo Editora, 1998.
19. CHAGAS JÚNIOR, José de Ribamar de Sousa. Madre Deus de Festejos e Festanças.
Lithograf. São Luís, 2002.
20. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São
Paulo, Cia das Letras, 1996.
21. CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (org.).A história
contada – capítulos de história social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998.
174
22. CHARTIER, Roger. A historia cultural – entre as práticas e as representações.
Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.
23. COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE. Boletim n.º 2 de agosto de 1994.
24. COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE. Tambor de Crioula – ritual e
espetáculo. São Luís: SECMA, 1995.
25. CORRÊA, Rossini. Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia.
São Luís: SIOGE, 1993.
26. CONHECIMENTOSGERAIS.COM.BR. Historia do Brasil. Disponível na internet
http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/primeiro-reinado.html.
Capturado em 15 de janeiro de 2005.
27. CUNHA Maria Clementina P. (ed.) Carnaval e outras f(r)estas: ensaios da historia
social da cultura. Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 2002.
28. ASSEMBLÉIA GERAL DO IMPÉRIO. Lei de organização das câmaras municipais
de 1.º de outubro de 1828. (on line) Disponível na internet em:
www.resenet.com.br/historia2.htm, capturado em 7 de outubro de 2004.
29. DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus – o sistema de castas e suas implicações.São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1992.
30. ESBOÇOS – Revista do Programa de Pós-Graduação em história da UFSC. Chapecó:
UFSC, 2002. nº 9, ISSN 1414-722X.
31. ELIAS, Norbert e Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.
32. ELIAS, Norbert. O processo civilizador – uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990.
175
33. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O carnaval e a modernização do rio de janeiro.
Revista geo-paisagem ( on line ), ano 2, nº 4, 2003, Julho/Dezembro de 2003
,
ISSN Nº
1677-650 X. Disponível em: http://www.feth.ggf.br/Carnaval.htm.
34. FERREIRA, Aurélio Buarque do Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
35. FERRETTI, Mundicarmo. São Luís e Dom Luís em terreiros da capital maranhense.
In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 14 /Agosto 1999.
36. ___________. Tambor-de-mina e diversidade afro-brasileira no Maranhão
Apresentado em Salvador, em 16/07/2001, na 53ª Reunião Anual da SBPC - Simpósio:
Afro-diversidade II. Publicado no Boletim da Comissão maranhense de Folclore n. 20 /
Agosto 2001.
37. FERRETTI, Sérgio. A importância da Casa das Minas no Maranhão.Boletim da
Comissão Maranhense de Folclore, n.º 16, junho de 2000.
38. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Cidades e vilas pombalinas no Brasil do século XVIII.
In Universo Urbanístico Português 1415-1822 – coletânea de estudos. Helder Carita e
Renata Araújo (coor). Lisboa: CNCDP, 1998.
39. FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da fronteira: os casais açorianos
rumo ao Sul do Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000.
40. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar da civilização e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1969. José Octávio de Aguiar Abreu (trad. do inglês).
41. GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio histórico-político dos princípios da
lavoura do Maranhão. Rio de Janeiro: Mundo Inteiro, 1970.
176
42. GAMA, Bernardo José da. Informação sobre a Capitania do Maranhão dada em
1813 ao Chanceler Antônio Rodrigues Velloso. Viena D´austria: Impresa do filho de
Carlos Gerold, 1872.
43. GIFFONI, Amália Corrêa. Danças folclóricas da Europa. São Paulo:
Melhoramentos/Edusp,1974.
44. GONÇALVES, Emílio. Carteira de trabalho e previdência social. 2.a ed. São Paulo :
LTR, 1992.
45. JANEIRO, Maria de Lourdes & FERNANDES, José Manoel. Um percurso da
arquitetura açoriana – do arquipélago ao Brasil. Universidade Federal de Santa
Catarina. Anais da 2º semana de estudos açorianos. Florianópolis: Ed. UFSC, 1989.
46. LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus mitos.
São Luís: Lithograf, 2002.
47. LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900.
São Paulo: EDUSP, 1996.
48. LARA, Silvia Hunold. BLOWIN´ IN THE WIND: E. P. Thompson e a experiência
negra no Brasil. Proj. História, São Paulo, (12), out. 1995.
49. LIBERMAN, Maria. O levante do Maranhão “judeu cabeça do motim”. Manoel
Beckman. São Paulo: Judaica-Brasil. 1983.
50. LIMA, Carlos A. M. Um pai amoroso os espera: sobre mestiçagem e hibridismo nas
Américas Ibéricas. Mimeo, s/d. Lima é professor do Departamento de História da UFPR.
51. LIMA, Carlos de. Antigos carnavais. Comissão Maranhense de Folclore. Boletim 04 de
fev. de 1996.
52. LIMA, Carlos de. História do Maranhão. Brasília: Gráfica do Senado, 1981.
177
53. LISBOA, João Francisco de. – Jornal de Timon. Lisboa: Tipologia Matos Moreira e
Pinheiros, 1901, V.01.
54. LISBOA, João Francisco. A Festa de nossa Senhora dos Remédios. São Luís: Editora
Legenda, 1992.
55. LISBOA, João Francisco. Jornal de Timon – apontamentos, notícias e observações
para servirem à história do maranhão. Tomo II, 2º vol. Brasília-DF: Editora Alhambra,
edição sem data. A edição original é de 1858.
56. Livro Grosso do Maranhão: ANAIS da biblioteca nacional, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 66, 1º parte, 1948.
57. LOPES, Antonio. A presença do romanceiro – versões maranhenses. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1967.
58. _____________. Alcântara: subsídios para a história da cidade. Rio de Janeiro:
MEC/DPHAN, 1957.
59. LOPES, Manuel. Breve histórico do Palácio La Ravardiére. São Luís: SIOGE, 1987.
60. LOPES, Raimundo. Uma Região Tropical. Rio de Janeiro: Cia. Editora Fon-Fon e
Seleta, 1970.
61. MACEDO, Eurico Teles de. O Maranhão e suas riquezas. São Paulo: Siciliano, 2001.
62. MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura. Centro de Cultura Popular Domingos
Vieira Filho. Memória de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à memória oral da
cultura popular maranhense. São Luís: LITHOGRAF, 1997. v. I-V.
63. MARQUES, Astolfo. A nova aurora (novela maranhense). São Luís: TIP. TEIXEIRA,
1913.
178
64. MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. 3.
ed., SUDEMA, São Luís, 1970. Edição original de 1870.
65. MARTINS, Ananias Alves. Barricada no Palácio dos Leões - O golpe de 1922 no
Maranhão. São Luís: SECMA/SIOGE: 1993.
66. _____________. Carnaval de São Luís - diversidade e tradição. São Luís: SANLUIZ,
2000.
67. _____________. Imigrantes esquecidos na Fronteira Norte – açorianos na
colonização e na cultura – Maranhão, século XVII. In: Barroso, Véra Lucia Maciel
(org.) Açorianos no Brasil. Porto Alegre: EST Edições, 2002.
68. _____________. Municípios de São Luís e Alcântara no Maranhão – informes
preliminares de formação e função. In: Atas do II Seminário Internacional – História do
Município no Mundo Português. Funchal: CEHA, 2001.
69. _____________. Os madeirenses na ocupação civil das fronteiras. In: A Madeira e o
Brasil. Funchal: CEHA, 2004.
70. _____________. São Luís e Alcântara na estratégia território-colonial. In: Atas do
Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português 1415-1822. Lisboa: CNCDP,
2001.
71. MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão, 2. ed. São Luís: Fundação Cultural
do Maranhão, 1980.
72. _____________. João de Barros, primeiro donatário do Maranhão. São Luís:
ALUMAR, 1996, p. 70, 79, 80.
73. _____________. Convento das mercês. São Luís: Fundação Memória Republicana,
1991, p. 10.
74. _____________. Dez estudos históricos. São Luís: Alumar, 1994.
179
75. MONTELLO, Josué. Largo do Desterro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
76. MOTA, Antonia da Silva e Mantovani, José Dervil. São Luís do Maranhão no Século
XVIII: a construção do espaço urbano sob Lei das Sesmarias. São Luís: Edições
FUNC. 1998.
77. MOTA, Antonia da Silva; Mantovani, José Dervil; Kelcilene Rose Silva. Cripto
maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano, 2000.
78. NASCIMENTO, João Afonso do. Três séculos de moda (1616-1916). Belém: Tavares
Cardoso, 1923.
79. NASCIMENTO, Sandra Maria. Mulher e folia – a participação das mulheres nos
bailes de máscaras do Carnaval de São Luís nos anos de 1950 a 1960. São
Luís:SECMA, 1998.
80. ORDENAÇÕES FILIPINAS, livro V. Silvia Hunoud Lara (org). São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
81. PACHÊCO, D. Felipe Condurú. História Eclesiástica do Maranhão. São Luís:
S.E.N.E.C. -Departamento de Cultura - MA, 1968.
82. PAVÃO, Jacira . Festa do divino no terreiro das portas verdes. Boletim da Comissão
Maranhense de Folclore, nº 11, Agosto de 1998.
83. PINTO, Fulgêncio. Dr. Bruxelas & Cia. São Luís: Typ. Chaves & CIA, 1924.
84. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.
85. RAMOS, Arthur. O folclore negro no Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, 1954.
86. REAL, Miguel. Portugal – ser e representação. Algés/Pt: DIFEL, 1998.
180
87. REIS JR., J. S. Nos desvãos do Alto Itapecuru. São Luís: SIOGE/ FUNC, 1980.
88. REIS, José de Ribamar. Folclore maranhense - Informes. São Luís: SIOGE, 1986.
89. REIS, José Ribamar de Sousa dos. ZBM: O reino encantado da boêmia. São Luís:
Lithograf, 2002.
90. RIBEIRO, Jalila Ayoub Jorge. A desagregação do sistema escravista no Maranhão.
São Luís: SIOGE, 1990.
91. RIBEIRO, Maria José Bastos. O Maranhão de outrora - Memórias de uma época
(1819-1924). Rio de Janeiro: Rodrigues, 1942.
92. SÁ VALLE. O Maranhão Antigo e Moderno. São Luís: Typ. M. Silva, 1931.
93. SCHWARCZ, Lilian. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das letras, 1993.
94. SILVA F. Olavo Pereira Da. Arquitetura Luso Brasileira no Maranhão. Belo
Horizonte: Formato, 1998.
95. SILVA, Antônio Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa, 1813, 2º vol.
96. SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da. Ritmos da Identidade: mestiçagens e
sincretismo na cultura do Maranhão. São Paulo: 2001, 213p. Tese de doutorado na
PUC.
97. SILVA, Kelcilene Rose. Troca de amores e favores: senhores e escravos no
Maranhão setecentista. [online] Disponível na Internet via
www.nethistória.com/secoes/hb.shtml. Arquivo capturado em 20 de junho de 2003. S
98. SILVA, Antônio Vieira da. História da independência da Província do Maranhão. Rio
de Janeiro: Companhia Editora Americana, ed. Original de 1862. 2.
a
ed. 1972
181
99. SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação Sumária das cousas do Maranhão. São Luís:
UFMA/SIOGE, 1979.
100. SOARES, Osvaldo. Numismática maranhense. São Luís: Revista do Instituto
Histórico e geográfico do Maranhão. Nº 1, nov de 1948.
101. SOUSA, Sandra Maria Nascimento. Mulher e folia: a participação das mulheres
nos bailes de máscaras do carnaval de São Luís, nos anos 1950 e 1960. São Luís:
SECMA/Lithograf, 1998.
102. SOUZA, Pe. José Coelho De. Os Jesuítas no Maranhão. São Luís, 1977.
103. TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.
104. VAZ, Leopoldo Gil Dúcio. "Pernas para o ar que ninguém é de ferro" - As
recreações de São Luís no século XIX. São Luís: mimeo,1992.
105. VIEIRA FILHO, Domingos. A linguagem popular do Maranhão. São Luís: SIOGE,
1979.
106. VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore brasileiro - Maranhão. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1977.
107. VIEIRA, Domingos. Folclore do Maranhão. São Luís: SECMA/SIOGE, 1976.
108. VILHEMA. Maria da Conceição. A viagem do imigrante açoriano para o Brasil em
meados do século XVIII. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA.
Anais da 2º semana de estudos açorianos. Florianópolis: Ed. UFSC, 1989.
109. VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara: seu passado econômico, social e político. São
Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 1977.
110. __________. História do Comércio do Maranhão 1612-1895. São Luís:
LITHOGRAF, 1992, edição fac-similar. 3v.
182
LIVROS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO LUÍS/MA (atualmente no acervo da
Coordenadoria do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultua – Rua da Estrela
S/N – Centro)
111. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livros da Câmara/. Acórdão 1675-1679.
(Transcrição)
112. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Código de posturas de 1866, 1882, 1891.
Transcrição paleográfica do livro de posturas: original. Disponível na Coordenadoria do
Patrimônio Cultural da Secretaria Estadual de Cultura do Maranhão, na Rua da Estrela s/n
– Centro.
113. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro da Câmara – acórdão 1646.
114. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de registro de correspondência, 1877-1881.
115. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Registro de Ofício e Portarias, 1822-1823.
116. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livro de Registros Geral, 1766-1839.
117. SÃO LUÍS. Senado da Câmara. Livros de acórdãos- 1753-1761.
118. SÃO LUÍS: Senado da Câmara. Acórdão 1675-1679
JORNAIS (arquivo de apontamentos do autor sobre a história da cidade de São Luís)
119. A PACOTILHA, 10 de fev. de 1898).
120. DIÁRIO DE SÃO LUIS. Carnaval. 5 de fev. de 1921.
121. O JORNAL, 17 de fev. de 1915.
183
122. O IMPARCIAL, São Luís, 7 de out. de 1944.
123. O JORNAL, 24 de fev. de 1919).
124. O JORNAL, 24 de fev. de 1919.
125. O PAÍS, 16 de novembro de 1876.
ANEXO ÚNICO – Postura elaborada pela Câmara Municipal de São Luís e aprovada
provisoriamente pelo Presidente da Província em 1882, sobre a contratação de criados. Cópia
de transcrição paleográfica. Documento disponível na Coordenadoria do Patrimônio Cultural
da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão, Rua da Estrela, s/n, Centro. São Luís/MA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo