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FACULDADE CÁSPER LÍBERO
JÚLIO CÉSAR DEGL’ IESPOSTI
A grande-reportagem na televisão brasileira
Um estudo do Globo Rural
SÃO PAULO – SP
2009
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FACULDADE CÁSPER LÍBERO
JÚLIO CÉSAR DEGL’IESPOSTI
A grande-reportagem na televisão brasileira
Um estudo do Globo Rural
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação da Faculdade Cásper Líbero, como parte dos
requisitos para obtenção do tulo de Mestre em
Comunicação. Área de concentração: Comunicação na
contemporaneidade.
Orientador: professor doutor Dimas A. Künsch
SÃO PAULO – SP
2009
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ATA DA DEFESA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
4
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho não seria possível sem o envolvimento de muitas
pessoas.
Minha gratidão dirige-se a todos aqueles que direta ou indiretamente me
ajudaram a trilhar este percurso, em especial ao Prof. doutor Dimas A.
Künsch, que me acolheu como seu orientando e me mostrou os caminhos
possíveis para ver o Jornalismo como uma atividade mais humana.
À professora Cremilda Medina, pessoalmente empenhada para que este
trabalho sobre as narrativas televisivas desse certo.
Ao jornalista Lucas Battaglin e o pessoal do Globo Rural, pela atenção e
acolhida propiciadas quando da realização das entrevistas sobre o programa.
Ao prof. José Eugênio de O. Menezes, cujo apoio foi imprescindível no
início desta caminhada.
Aos meus pais, que sempre me incentivaram a buscar no conhecimento a
fonte inspiradora de vida.
À minha esposa Tânia, pela compreensão nas horas mais difíceis.
A todas as pessoas que se dispuseram a me contar suas histórias e relatar
suas experiências, na pesquisa complementar sobre o tema, contribuindo para
a melhor compreensão dos acontecimentos.
Aos autores e colaboradores da Associação Brasileira de Jornalismo
Literário (ABJL), que ajudam a tornar cada dia mais viva a produção de não-
ficção no Brasil.
Enfim, aos colegas, professores e amigos que de alguma forma participaram
com sugestões neste estudo, seja discutindo o tema comigo ou servindo de
interlocutores nesta jornada.
5
Título:
A grande-reportagem na televisão brasileira: um estudo do Globo Rural.
Resumo:
Esta dissertação discute os aspectos teóricos e culturais da grande-reportagem na
televisão brasileira sob o olhar do programa Globo Rural, tentando descobrir de que
forma o programa elabora sua produção de sentido em comparação ao jornalismo
convencional, numa época de crise dos velhos paradigmas. Ao lançar luzes sobre o
problema que pode ocorrer a partir dessa transformação sobre o jornalismo
televisivo, a hipótese mais provável é de que a linguagem do Globo Rural favoreça a
construção de narrativas em patamares mais próximos dos instrumentos da
expressão da literatura e dos relatos ficcionais. O trabalho parte de uma análise
prática sobre reportagens exibidas na televisão brasileira, para testar suas
argumentações conceituais. Por isso, é uma pesquisa qualitativa. Respeitando os
limites de atuação do jornalismo, busca interfaces com a linguagem e a semiótica da
cultura. Propõe também que essa questão sirva de base para as pesquisas sobre um
projeto pedagógico da linguagem televisiva e dos processos audiovisuais.
Palavras-chave: Jornalismo. Complexidade. Comunicação não-verbal. Globo
Rural. Histórias de vida. Narrativas
Abstract:
This study discusses the theoretical and cultural aspects of news reports in the
Brazilian TV scenario. Based on Globo Rural trying to discover how theis
production works when compared to regular news reports, in a critical time for old
paradigms. When we focus on what may happen to journalism with these chances,
the most probable is that this kind of language favors narrative standards closer to
literature anda fictional accounts. This report is a practical analysis on news reports
broadcasted on the Brazilian TV in order to test conceptual discussions. For that
reason it is regarded as a quality research that respects journalism boundaries, seeks
for language interfacing and culture semiotics. It also proposes that this matter is
material for research on pedagogical projects about TV language and audiovisual
processes.
Key words: Journalism. Complexity. Non verbal communication. Globo Rural. Life
history. Narrative.
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Sumário
Introdução................................................................................................. 8
Capítulo I – O jornalismo entre a ficção e a realidade............................................ 13
1. Estrada de Ferro Carajás............................................................ 13
1.1 A partida........................................................................................ 18
1.2 Primeira parada............................................................................. 22
1.3 Acontecimentos ampliados........................................................... 25
1.4 Sentido onírico.............................................................................. 34
2. Rio Capibaribe............................................................................ 39
2.1 A nascente.................................................................................... 40
2.2 Ancestralidade............................................................................... 43
2.3 Visão aprofundada........................................................................ 44
2.4 Descrição cena a cena.................................................................. 47
3. O cinema na televisão................................................................. 51
Capítulo II – A reportagem na história....................................................................... 58
1. Narrativas e oralidades............................................................... 58
1.1 Clima de ruptura........................................................................... 61
1.2 Euclides da Cunha e João do Rio.................................................66
1.3 Testemunhos do submundo......................................................... 70
2. Raízes do new journalism.......................................................... 74
2.1 Livro-reportagem........................................................................... 79
7
2.2 Revista Realidade........................................................................ 81
2.3 Um jornal que contava histórias.................................................... 84
3. A aventura da reportagem.......................................................... 86
3.1 “Um olhar de insubordinação”....................................................... 91
3.2 “Jornalismo barato”....................................................................... 95
Capítulo III – Viagem ao território da reportagem televisiva.................................... 98
1. O cenário televisivo..................................................................... 98
2. O desafio da complexidade........................................................103
2.1 Lugar de conhecimento................................................................106
2.2 Arte e jornalismo..........................................................................111
2.3 Sociedade do presente e do passado.........................................116
2.4 Personagem de si mesmo............................................................1 21
3. Construindo o sentido no Globo Rural .......................... ... 124
4. O caso do Globo Rural ........................................................127
4.1 Fazendo história..........................................................................129
4.2 Trabalho autoral...........................................................................133
4.3 Interação com o público...............................................................136
Capítulo IV – Mergulho no passado..........................................................................139
1. Os tropeiros................................................................................139
1.1 Análise dos elementos textuais ..............................................156
1.2 Cenas finais..................................................................................176
Considerações finais.................................................................................................181
Referências bibliográficas........................................................................................185
ANEXOS
8
INTRODUÇÃO
Acordar cedo, com o sol raiando. O canto dos pássaros, o friozinho da serra.
O gado sendo conduzido ao pasto. A tranqüilidade e o clima agradável. Quantas
vezes cenas como essas não foram vistas na sala de milhões de telespectadores, nas
manhãs de domingo, inclusive do meio urbano, por intermédio do Globo Rural?
Programa que a partir de 1980, quando vai ao ar pela primeira vez, mudou os hábitos
de muitas pessoas, que passaram até mesmo a levantar mais cedo para assistir às
suas reportagens.
Com uma temática voltada para o homem do campo, suas reportagens não
deixam de abordar toda a cadeia produtiva, das técnicas de cultivo e os cuidados
com a aplicação de defensivos até a criação de animais, a pesca e a ecologia, entre
outros assuntos. Mas o faz de forma singular: nunca deixando de fora os costumes
dessa gente, em geral muito simples, de falar mais lento, o jeito caipira de ser. Na
edição diária, tornou-se uma referência, com a divulgação de assuntos atuais sobre o
mercado agrícola, tecnologias e tudo o que o agronegócio gera de interesse no setor.
Olhando-se para dentro de casa, dá para perceber a importância do programa.
Família reunida, a mesa pronta. O leite, o trigo do pão, as frutas, a goiabada e, por
que não dizer, até o guardanapo e a mesa, tudo vem do campo. Por isso, o universo
que aborda é praticamente parte da vida da maioria dos brasileiros que, mesmo
morando na cidade grande, pode ter raízes no campo. Lá, muitos deixaram sonhos,
para tentar viver a realidade de outro tempo, mas, ao que tudo indica, sempre
dispostos a retornar.
Com avós naturais da Itália, imigrantes que no final do século XIX
desembarcaram no Brasil atraídos por oportunidades de trabalho na lavoura, o autor
desta dissertação de mestrado tem ainda na memória imagens dos tempos de criança,
quando, em viagem à região de Jaú, no interior paulista, onde a família de seu pai
9
residia, podia sentir o aroma do café colhido e moído na máquina, ainda manual, que
a avó tinha no sítio. Não daria para esquecer. Jaú é uma simpática cidade que fica a
400 km de São Paulo. O percurso era feito já pela Cia. Ferroviária Paulista, passando
por vários municípios, como Campinas, Americana, Limeira, Pederneiras, Brotas,
Dois Córregos, até o desembarque na estação de Jaú, hoje tombada pelo patrimônio
histórico.
Foi dessa cidade, situada bem no centro do Estado, que seu pai, ainda nos
anos 1950, veio morar na capital, a próspera São Paulo, onde criou seus dois filhos.
Ao começar a faculdade de Direito em Bauru, ainda levava a família. O caminho era
sempre o mais fácil, a Estação da Luz, muito charmosa, de onde partia o trem para o
interior. Hoje, a linha está desativada.
Embora tenha se desenvolvido nas últimas décadas em função da indústria de
calçados, ampliando seu parque produtivo, parte da economia da região ainda está na
área rural. Mas as plantações de café (que foram o seu forte no passado) e de
outros grãos foram substituídas pela cana. As grandes usinas que se instalaram
vieram atrás da terra roxa, como se diz no interior, boa para o plantio. As histórias já
não são as mesmas, mas as lembranças desse passado ficaram.
Adolescente ainda, o autor não quis seguir as disciplinas exatas, nem
biológicas, das coisas mais materiais, concretas; preferiu mergulhar no terreno
controvertido da história, literatura, sem falar em teatro e cinema, em que podia
sentir o clima da efervescência dos anos 1960. Mais tarde, optou pelo curso de
jornalismo. E, coincidência ou não, foi trabalhar com reportagem.
Não faz muito tempo, assistindo a um programa do Globo Rural, as imagens
que viu fizeram com que voltasse ao passado. Além de servir de canal entre
agricultores e empresas de pesquisa, como a Emprapa, contava uma história
interessante sobre as crenças e costumes de uma comunidade do interior. Aquela
hospitalidade, as comidas típicas, tudo lembrava a infância deste autor. Embora
atuando em várias empresas de comunicação, não havia se dado conta ainda de que
esse é um programa que conta belas histórias que têm a ver, com muita frequência,
com o passado das famílias, especialmente as que ainda hoje possuem seus parentes
no campo.
10
A motivação para a pesquisa sobre a grande-reportagem amadureceu com o
mestrado, e, por intermédio das disciplinas do curso, acreditou capaz de desvendar
esse campo, um gênero jornalístico de acontecimentos ampliados e de relações com
histórias de vida. Não há dúvida que o tema escolhe seu autor. Era o tempo, também,
de responder às inquietações da vida profissional e pessoal.
Como na vida real, muita coisa nos toca na televisão, incluindo aí as matérias
jornalísticas sobre os mais variados assuntos do cotidiano, com procedimentos de
uma construção narrativo-ficcional. Para este autor, a grande-reportagem dizia
respeito a essa relação, mas vista sob a ótica do programa Globo Rural. A realidade
mostrada através do apelo ficcional. Observando-se a estrutura com que se trabalha,
essa era uma entrada importante no tema, segundo pareceu ao autor. E os
procedimentos aí levantados serviriam às conclusões desse estudo.
Com base na pesquisa qualitativa, multidisciplinar e conceitual, a dissertação
traça um caminho para se compreender essa linguagem jornalística quando
comparada à linguagem dos telejornais e até o jornalismo impresso. Para se
aprofundar esse conhecimento, faltava incluir alguns aspectos: quanto à mediação
do repórter, o que esta criava de novo na reportagem? Em que medida esse repórter é
fundamental para o que se constrói na tela? Como a reportagem sobrepõe aspectos
ficcionais à objetividade jornalística? Ao projetar luzes sobre o problema, a hipótese
mais provável seria a de que sua linguagem favorece a construção de narrativas
diferenciadas, inclusive em patamares mais próximos dos instrumentos da expressão
da literatura e dos relatos ficcionais.
Tal universo foi abordado tendo-se como referencial teórico geral a
linguagem da complexidade de Edgar Morin, o projeto pedagógico desenvolvido por
Cremilda Medina sobre o “signo da relação” e a “arte de tecer o presente”, ambos
voltados à dialogia social, além de estudos de semiótica da cultura desenvolvido por
Norval Baitello.
Subsidiaram ainda esse trabalho a pesquisa prática, baseada na observação de
reportagens da televisão brasileira, a bibliográfica, em que se funda a teoria, e as
entrevistas. As dissertações consultadas serviram de apoio à fundamentação. Os
11
quatro capítulos que a compõem representam um esforço para abarcar todo esse
quadro.
O primeiro abre com duas reportagens. Uma do SBT-Realidade, programa
que evidenciou alguns dos conceitos levantados para a dissertação, como, por
exemplo, a observação participante. É quando o repórter entra na “pele do outro”
para mostrar a realidade, assunto tratado por autores da área de jornalismo, com
suas interfaces com a Antropologia, a Sociologia e outras. A segunda, do Globo
Rural, o que permitiu um leque mais amplo de opções de análise sobre o problema.
Ambas voltadas às histórias de vida, serviram para demonstrar na prática como
constroem seus nexos. O trabalho de imagem também foi levado em conta.
O segundo capítulo mostra a trajetória do jornalismo no século XIX até à
época contemporânea. Numa primeira fase, a narratividade da reportagem
assimilando traços que atendam a demanda deixada pelo gênero ficcional do
folhetim. Pinçaram-se também dois momentos importantes no jornalismo a partir da
segunda metade do século XX, em que se observa essa estreita convivência entre
narrar e fazer reportagem. Um deles, o new journalism, que surge nos jornais norte-
americanos dos anos 1960 como reação à frieza e impessoalidade na forma de
produzir a notícia, e que no Brasil teve como importante seguidor a revista
Realidade. O outro, o Jornal da Tarde, que dá voz aos anônimos, investe nas
narrativas extensas, nas aberturas que não seguem a fórmula do lead e da pirâmide
invertida.
No terceiro, procurou-se discutir os procedimentos da reportagem na
televisão e a linguagem jornalística, também tendo por base o Globo Rural. A
opinião de profissionais do programa da reportagem e de imagem reforça os
argumentos de Medina de que se trata de um programa que faz mediação entre o
Brasil rural e o urbano. Fala sobre as fontes, elaboração de pautas, o trabalho de
pesquisa, a interação com o público.
O último capítulo aprofunda os termos anteriores com base num estudo de
caso, a série Os Tropeiros, exibida ao longo de 2006. Investigam-se alguns dos
procedimentos utilizados pelo Globo Rural, que o marcaram como um programa que
faz largo uso de relatos humanizados, captação de falas regionais, saberes locais,
12
aspectos culturais e históricos por meio de contextualizações e da proximidade do
repórter com a comunidade. A série é constituída de 12 episódios, sendo que desses
foram analisados trechos de As águas da partida, A travessia, Enfrentamentos, Meio
caminho andado e Planalto catarinense, o que se mostrou suficiente para os
objetivos desta dissertação.
A expectativa é de que este trabalho possa provocar a discussão crítica sobre
uma produção jornalística geralmente distante do calor da vida e das emoções dos
cidadãos, dos cenários dos acontecimentos e seus contextos. Que possa trazer uma
abordagem menos preocupada em explicar o mundo que em compreendê-lo. E de
um jornalismo que, baseado nas facilidades da comunicação por meio dos aparatos
eletrônicos e da pressa da vida atual, tem cada vez menos tempo para observar os
diferentes, para pensar e aprofundar os sentidos das coisas.
13
Capítulo I
O JORNALISMO
ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
1. Estrada de Ferro Carajás
A história de passageiros que embarcam num trem para uma viagem de
quase 1000 quilômetros em busca de trabalho, se possível com carteira assinada, na
imensidão da Região Norte, partindo de São Luís do Maranhão até Eldorado do
Carajás no Pará a maior mina de ferro do mundo, na divisa com esse estado é o
ponto de partida ao território da reportagem. Para este autor, é a oportunidade
também de explorar esse universo, em que repórter e personagem estabelecem a
produção de sentido por meio de suas trocas.
O percurso é feito pela Estrada de Ferro Carajás, administrada pela
Companhia Vale do Rio Doce, que passou do controle do Estado para a iniciativa
privada, depois de muitas controvérsias, em 1997. A ferrovia foi tema de reportagem
exibida em julho de 2007, por Realidade, do SBT, programa que vai ao ar todas as
segundas-feiras pela emissora.
14
Em um relato que transcende as fronteiras entre o jornalismo e a arte, a
repórter Ana Paula Padrão traça um panorama da exploração do trabalho escravo
no Brasil, mas por meio do enfoque multiangular e o mergulho na intimidade dos
personagens. Explorados por fazendeiros, políticos, donos de madeireiras, muitos
acabam sem dinheiro e com sonhos desfeitos. A estrutura da narrativa envolve
olhares diferenciados de repórter e personagens. Na sua busca, as pessoas vão muito
além de meros candidatos a um posto de trabalho. Sob a lente da câmera,
extravasam esperanças, sonhos e expectativas, enquanto o trem desliza aos
solavancos. Alguns desembarcam, outros continuam em direção ao grande desejo
que é poder conquistar um lugar ao sol, manter a família, dar uma vida melhor para
os filhos. Aí, o fio condutor da matéria permite ir descobrindo os problemas sociais,
como falta de moradias, trabalho escravo, um pai a quem só restou cuidar dos filhos
depois que a mulher se foi, os crimes contra a floresta por parte de madeireiros.
Tudo vai se desenrolando numa narrativa de imagens fortes, sensíveis, entrelaçadas
à oralidade da voz em off da repórter, ao término de cada bloco ou nos diálogos com
os personagens.
Carajás parece ser uma meta distante, um eldorado perdido no meio da
floresta, cratera de ferro que engole sonhos e ilusões. Nessa mina extrai-se o minério
de ferro. A pobreza da comunidade contrasta com a sofisticação tecnológica da
empresa que explora a jazida, mostrando constrastes da realidade. Um mergulho na
situação social do país...
Diálogos entre repórter e personagens, predominância do estilo
interpretativo, histórias de vida, relato aprofundado da realidade, contextualizações e
descrições em pormenores dos ambientes são alguns dos elementos do jornalismo
que utiliza recursos de expressão mais próximos às estrututuras ficcionais.
Cenas finais: um protagonista, cidadão anônimo, que logo no início dera
seu depoimento à repórter, volta a São Luís sem o que mais queria, o emprego. A
composição segue nos trilhos com outros passageiros que vão tentar a sorte. O
forasteiro diz que nunca perde as esperanças e se despede das câmeras.
Subtemas como ecologia, exploração da miséria, sonhos pessoais, romance,
tudo cabe na trajetória desse trem, pela narrativa criativa. “São três mil histórias para
15
crédito: programa SBT-Realidade
A história de muitos cidadãos que sonham com uma vida melhor começa na plataforma
de embarque: homens e mulheres de variadas idades começam a chegar transportando
bagagens.
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contar”, afirma a repórter, a certa altura, e a reportagem elege algumas, escolhe
uns tantos personagens representativos da saga humana da viagem da esperança, na
ida, e da desilusão, na volta. Nesta reportagem, com imagens e texto impressionista,
vive-se um dos projetos editoriais mais bem-sucedidos do país a publicação da
revista Realidade nos anos 1960, inovadora na linguagem, com raízes num
jornalismo de estruturas ficcionais.
A abertura à polissemia do real amplia a percepção. Inclui de personagens,
suas visões e impressões a narrativas de vida. Quanto à comunicação não-verbal, as
imagens tomadas em ângulos distintos e as microcenas, quando cotejadas ao padrão
convencional, mostram aspectos que as diferenciam.
1
Trechos dessa construção narrativa aproximam-nos da linguagem complexa
de que fala o sociólogo francês Edgar Morin.
2
Para o autor, o conhecimento não se
apenas num sentido, o da razão e da objetividade, mas se constrói a partir do
sentido mais amplo de compreensão humana. Aqui, não se trata de compreender
intelectualmente, mas sim da intersubjetividade... “que abraça junto (o texto e seu
contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno)” (2000:94). Sobre isso, o autor
afirma:
Compreendo hoje que a cultura é a junção do que está
separado, e ouso afirmar que milito pela cultura, quer
dizer, pela comunicação entre o que está fragmentado e
disperso em peças de puzzle, fechado com
compartimentos herméticos, que abro para uma articulação
reintegradora do que está desintegrado. Por outras palavras,
a cultura é policultura (1995:40).
No contexto do “signo da relação”, no dizer de Medina, o conhecimento não
é apenas racional e visual que se pela lógica da transmissão, por meio de
diagnósticos e prognósticos dos especialistas –, mas também é o da lógica
1
Apesar de ser um meio hegemônico e constante alvo de críticas, a televisão, na opinião de Arlindo
Machado, é e será aquilo que nós fizermos dela. Nem ela, nem qualquer outro meio, estão
predestinados a ser qualquer coisa fixa. Ao decidir o que vamos ver ou fazer na televisão, ao eleger as
experiências que vão merecer a nossa atenção e o nosso esforço de interpretação, ao discutir, apoiar
ou rejeitar determinadas políticas de comunicação, estamos, na verdade, contribuindo para a
construção de um conceito e uma prática de televisão” (Machado, 2003:12).
2
A linguagem da complexidade de Edgar Morin vem do termo comprehendere (unir, juntar, abraçar),
que se soma ao sentido de compreensão intelectual, que passa pela inteligibilidade e pela explicação.
17
crédito: programa SBT-Realidade
Na sua busca, as pessoas vão muito além de meros candidatos a um posto de trabalho.
Sob a lente da câmera, extravasam esperanças, sonhos, expectativas...
18
associativa, da sensibilização da emoção, a ação solidária que rompe com as
fórmulas prontas e os lugares-comuns da observação cotidiana:
O despertar de uma outra atitude que emerge da
degenerescência da fragmentação do conhecimento
científico faz reaflorar a relação articuladora. A inter, a
trans e a pós-disciplinaridade reforçam o diálogo entre os
saberes científicos, mas também com o saber cotidiano, o
saber local, o senso comum, o saber mítico, religioso e
artístico. A antropologia tem muito que testemunhar quanto
à redescoberta das diferenças culturais. O despojamento ou
plasticidade da linguagem antropológica, construída ao
longo de um século de árdua reflexão perante a busca
pragmática do saber plural, oferece importantes subsídios
para reavaliar as verdades especializadas em absolutas
(2006:13).
1.1 A partida
A história de muitos cidadãos que sonham com uma vida melhor começa na
plataforma de embarque: homens e mulheres de variadas idades começam a chegar
transportando bagagens. Alguns deixam tudo para trás, até mesmo a família. Denis
Canhende, cerca de 35 anos, é um deles. “Em São Luís, as coisas já estão ruins para
quem tem estudo, e para quem não tem é ainda pior”, explica à repórter, sobre a
decisão de viajar ao Pará. Esposa e filho vão ficar na estação. A emoção não cabe no
rosto de Denis.
Passagem para a voz da repórter, nos estúdios da emissora: “Você vai
embarcar conosco numa viagem de quase mil quilômetros pela Amazônia. Vamos
de trem. O mesmo trem que leva trabalhadores cheios de esperança, que acabam
virando escravos na floresta”. Conforme relata, a história de muitas famílias
mudou para sempre na plataforma dessa estação, mas quase nunca para melhor. O
trabalho escravo, nada incomum no Pará, é um risco para os que se aventuram
em terras cruzadas pela ferrovia. Pensando em alertá-los, a Vale lançou uma
cartilha que é distribuída antes do embarque. As cenas mostram alguns dos avisos.
3
3
A cartilha é editada com figuras populares, com ilustrações em cores cujos traços lembram os
folhetins
19
crédito: programa SBT-Realidade
Na rota do trem, a camaradagem é comum na ferrovia. Uns vão carregados de
expectativas; outros, vêm pesados de desilusões: quem se encontra, quem se despede.
20
“O trabalhador sabe, mas arrisca-se, assim mesmo, pois está escravizado pela
falta de oportunidades no Maranhão”, afirma a repórter. O encarregado da estação,
Rivelino Nascimento, não deixa de dar o seu depoimento: “A maioria das
comunidades onde o trem passa é de pessoas carentes. E o trem de passageiros tem
uma tarifa mais baixa comparativamente ao transporte rodoviário. Mas, é bom
também que o trem transporte sonhos”.
A tarifa, pelo trajeto todo, é de R$ 40,00, de uma ponta a outra, num
percurso que dura 16 horas. As acomodações o bastante confortáveis, mas
ninguém parece dar muita importância a isso. Quanto ao preço que realmente se
paga pela viagem, se descobre no final. Uma seqüência de imagens mostra o
roteiro... povoados e vilarejos miseráveis, a fumaça que vem das siderúrgicas, áreas
desmatadas. O trem vai ecoar seu último suspiro na pequena Parauapebas, cidade
paraense que fica ao lado de um eldorado, onde a riqueza brota do chão.
A maior mina de ferro do mundo, Carajás, provoca uma mistura de sensações
pelas imagens da reportagem. Os tons, avermelhados, com veios profundos nas
cavas, instiga a imaginação.
4
É uma história, segundo Ana Paula Padrão, que se
repete todos os dias, várias vezes por dia...
Nesse trecho, a repórter explica como funciona a ferrovia. A Vale administra
duas linhas férreas para Carajás. Uma segunda só para minério de ferro, ferro-gusa e
manganês que faz o mesmo percurso do trem de passageiros. Em alguns pontos,
passam próximas uma da outra. De fora para dentro dos vagões, vai se abrindo um
panorama de perfis. “Trabalhei aqui cinco anos. Ele era maquinista e a gente se
conheceu aqui, namorou um ano. Eu engravidei e a gente casou”, conta Márcia,
4
Embora não seja o intuito deste autor analisar a cor na mensagem jornalística, ela tem uma função
especial na televisão por suas propriedades imagéticas e poderia, num trabalho de pesquisa mais
amplo e aprofundado, contribuir para se entender a linguagem não-verbal como suporte para a
comunicação humana. Norval Baitello Júnior, no prefácio da obra A cor como informação, de
Luciano Guimarães (2000:1), destaca: “O que antes não passava de um raro e caro objeto de
colecionadores, a profusão cromática passou a fazer parte do cotidiano mais corriqueiro da dia.
Inflacionadas pela sua propagação invasiva, as imagens vão ocupando cada vez mais espaço em
nosso cotidiano, não mais ilustrando os textos, mas se propondo como textos, culminando na
expressão da visualidade e da visibilidade imagética”. Os estudos da semiologia da cultura e da
mídia desenvolvidos por teóricos como Baitello, Ivan Bystrina, Harry Pross, entre outros, servem de
base interdisciplinar para a cor na informação. A imagem cromática se relaciona às estruturas dos
códigos, sejam primários (biofísicos), secundários (linguagem) ou terciários (culturais). O vermelho
está ancorado em uma grande variedade de textos culturais, com significados opostos, como violência
e paixão, guerra e amor, convivendo na mesma cor (Guimarães, 2004:117).
21
crédito: programa SBT-Realidade
As acomodações são bastante confortáveis, mas ninguém parece dar muita importância
a isso.
22
ex-funcionária da ferrovia, que viaja com a filha e o marido Warley. Mas nem
sempre foi assim, revela para a repórter. “Ele passava aqui mexendo comigo, mas eu
não dava bola.” A mudança ocorre quando o supervisor de Márcia na ferrovia decide
fazer a promessa de subir uma escada de uma igreja transportando uma vela na
altura da funcionária se ela se casasse. Hoje, acham graça na própria história que os
uniu.
Dauglas Costa tem uma ocupação não muito comum para uma mulher nessas
bandas do Brasil. Como chefe do trem, ela é quem cuida para que a composição não
atrase e os passageiros viajem em segurança. Segundo ela, a maior parte deles viaja
em busca de parentes ou a trabalho. Na rota do trem, a camaradagem é comum na
ferrovia. Uns vão carregados de expectativas; outros, vêm pesados de desilusões:
quem se encontra, quem se despede. “Por algumas horas eles são todos uma cidade,
que tem que andar na linha. Uma linha que corta e costura dois estados do Brasil”,
afirma a repórter.
1.2 Primeira parada
Estação de Açailândia. Muitos passageiros já aguardam o trem. Embora
tenha a fama de ser a segunda cidade mais próspera do Maranhão, as imagens
desmentem isso. É nesse território que vive a missionária espanhola Carmen
Bascarán, fundadora do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, entidade
que acolhe denúncias contra o trabalho escravo.
Nesse trecho, a repórter intercala fatos sociais com relatos de vida, o que
uma dimensão humana às narrativas, cabendo uma reflexão sobre os fundamentos
do jornalismo com esse perfil. Como afirma Dimas Künsch, “a reportagem é
também, reconhecidamente, o lugar dos anônimos, dos Zés e Marias da Silva,
ninguéns, ou alguéns”. O autor continua:
A ousadia do repórter solidário com sua gente freqüenta
as ruas onde vivem os anti-heróis das sociedades
contemporâneas, rotineiramente despautados por ousadias
outras, cuidadosamente afastados do glamour dos deuses
e deusas socialites. Aqui, no pedaço de caminho onde o
23
crédito: programa SBT-Realidade
Ele passava aqui mexendo comigo, mas eu não dava bola”, comenta Márcia,
passageira do trem
24
repórter, como um artista, perde a vergonha de ‘ir aonde o
povo está’, ou o medo de se desvencilhar dos encantos e
pressões dos poderosos, talvez resida o lado mais produtivo
de uma visão de mundo que não é apenas complexa, mas
também pragmática: une o que está desunido, integra o que
está separado, dá vez e voz a quem não as tem, democratiza
palavras e sentidos, transforma, reconstrói (2000:21).
Bascarán deixou seu país em 1992 determinada a viver onde mais
precisassem dela. E o que não falta é trabalhador lesado em Açailândia. O centro
recebe incontáveis denúncias sobre trabalho escravo, que, depois de registradas, são
encaminhadas para a fiscalização. “Como é possível, uma região, que tem essa
capacidade econômica, que tem essa riqueza, permitir que as pessoas vivam como
vivem aqui?”, pergunta a missionária estrangeira. O centro é a instituição que recebe
o maior número de reclamações desse tipo nos dois estados.
Francisco Marques de Souza encontrou nele algum alento. Durante 11 meses
em uma fazenda, ganhava para pagar a comida. Mas o pior foi ver o filho mais
novo falecer em seus braços, sem nada poder fazer. Genival, o irmão, conta o que se
passou. Enquanto faziam a roça, o caçula foi picado por uma jararaca. Transportado
ainda com vida ao povoado, morreria 12 horas depois. “O fazendeiro estava com sua
caminhonete ali, e não prestou nenhuma ajuda sequer.” A cena, em close do rosto,
agora é do pai... “Morreu nos meus braços... nos meus braços. Tem dias que sonho
com ele e acordo chorando.” Francisco nunca teve a carteira assinada.
Para a maioria, a exploração dos proprietários rurais, madeireiras e carvoarias
é a última saída para não definhar. Numa vendinha de Açailândia, a história de
Gabriel, sujeito simpático, é uma das poucas exceções. Ele criou um pequeno
negócio com anúncios para contratação de mão-de-obra. Com um sistema de
amplificador e um microfone conectado a um alto-falante no alto de um poste, já
inoperante, ele anuncia: “Estamos precisando de 50 pessoas para serviços
braçais, homens e mulheres”. Em outros tempos, lá estavam donos de carvoarias,
serralherias, fazendeiros e até intermediários para arregimentar os candidatos. Ficou
conhecido como “Gabriel da Voz”. Mas, hoje, o alto-falante da vendinha não
pode anunciar a irregularidade. Agora, o aparelho de som está empoeirado. A
fiscalização passou a ser mais rígida. Seu Gabriel, segundo a repórter, “passou a
25
viver da popularidade que angariou ao longo dos anos no microfone e da simpatia
como homem simples agarrado à casa e dedicado aos filhos”. Da esposa, “ninguém
sabe notícia”, afirma Gabriel. seis anos, ela o deixou. Para cuidar dos quatro
filhos, faz o papel de pai e de mãe ao mesmo tempo. Mas se diz feliz em saber que
muitos ganharam com o rigor da fiscalização, embora ele tenha perdido. “Amo meus
amores”, diz, conformado, sobre os filhos, todos menores. Da companheira, não
guarda mágoas. É o modo dela ser.” Mas Gabriel não foi o único em sua vida.
Antes dele houve outros, com quem teve 12 filhos.
1.3 Acontecimentos ampliados
Para reproduzir cenas da vida local, a reportagem trabalha no plano
ampliado. Açailândia é um lugar pobre que mantém a fama de ser exportador de
trabalho escravo para carvoarias e lavouras, e que, da pujança das siderúrgicas,
recebe pó. E o que é mais aterrador: o resíduo expelido pelas chaminés das
siderúrgicas contamina riachos e igarapés, onde se banham crianças. “Nas ruas do
município, não habitação digna nem asfalto. Esgoto é luxo. A água poluída pelo
minério de ferro é a mesma para lavar a louça e matar a sede. Emprego, para quem
vive nessas condições, é pouco e ruim.”
Os aliciadores de mão-de-obra sem carteira assinada se passam por cidadãos
comuns, mas ajudam a complicar ainda mais a situação. Com uma câmera
escondida, a repórter embarca em uma operação arriscada. Encontrar os “gatos”,
como os infratores são chamados. Com a ajuda de Mônica Gugliano, editora do
SBT, que se faz passar por uma fazendeira que procura empregados, eles não
demoram a ser localizados.
Donos de bares e pequenos hotéis que abrigam muitos candidatos, os gatos
garantem à fazendeira que o negócio é seguro. “‘Tou’ falando pra ela que ‘ocês’
três, eu garanto”, fala a um grupo de trabalhadores, que não se importam quanto a
manter o sigilo sobre o contrato sem carteira assinada. E o que daria muito pano para
manga nessa investigação é que um dos fazendeiros que mais utiliza mão-de-obra
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crédito: programa SBT-Realidade
Os aliciadores de mão-de-obra sem carteira assinada se passam por cidadãos
comuns, mas ajudam a complicar ainda mais a situação.
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irregular é o presidente da Câmara de Açailândia, a quem os aliciadores se referem
como “seu Hélio”.
Conforme o procurador do Trabalho, José Pedro dos Reis, muitos políticos
da região são fazendeiros e empresários que acham que submeter as pessoas debaixo
de barracas de lona, sem alimentação adequada, sem equipamento de segurança,
crianças até mesmo, é normal e não constitui trabalho escravo. Mas o próprio Estado
é omisso na questão. “O trabalhador que é resgatado nessas condições muitas vezes
é mandado para casa, mas retorna para a fazenda porque não sabe fazer outra coisa”,
denuncia ele.
Em sua incursão pela vida, Estrada de Ferro Carajás vai além dos trilhos do
jornalismo convencional. Entretece a história em cima dos fundamentos do
jornalismo interpretativo, o que, na expressão de Medina, é quando a grande
reportagem abre o aqui num círculo amplo, reconstitui o antes e depois, deixa os
limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos presente”
(1988:115).
A repórter vai em busca de alternativas dentro desse sistema que escraviza.
Uma delas são as cooperativas. Hoje, cerca de 30 famílias resgatadas nessa situação
fazem parte desse novo modelo. Mas o número deve crescer. Motivadas pela
vontade de ter seu próprio negócio, elas produzem carvão de barro, produto formado
por rejeitos de carvão vegetal das siderúrgicas e mistura de argila e fécula de
mandioca, o que representa uma alternativa à poluição industrial. A invenção é de
João Borges, que comemora os resultados. “Queima, não fumaça, não estala, não dá
cinza, tem um poder calorífico muito maior que o carvão convencional.” Trabalhar
para si mesma elevou a estima de Francimar Souza, uma das cooperadas. Ela viveu
o trauma de passar seis meses longe dos filhos, isolada, numa fazenda da região.
Agora, recuperada, ela conta: “Eu chorava de saudade dos meus filhos e pedia a
Deus para iluminar uma pessoa a entrar na fazenda com um carro e nos levar”.
Como cozinheira, nunca recebeu salário, com exceção do primeiro mês. Hoje, além
de próxima aos filhos, sabe que não voltará mais ao trabalho escravo.
O projeto de cooperativas começa a sair do papel por iniciativa da
missionária Carmen. Segundo a repórter, depois de dez anos conversando e
28
alertando a população, denunciando o trabalho escravo, esperar a fiscalização e ver
os trabalhadores voltarem à escravidão, Carmen cansou da lentidão do Estado
brasileiro e decidiu agir por conta própria. A alegria estampada no rosto de
Francimar é uma prova de que está no caminho certo.
O presidente da Câmara Municipal de Açailândia, Hélio Batista dos Santos,
acusado pelos trabalhadores de não assinar carteira, disse à produção do programa
que as denúncias contra ele têm motivações políticas.
Ainda como aprofundamento do fato nuclear, a repórter vai buscando
histórias paralelas, numa trama complexa de dados que vão explicando as
ramificações do poder político na região e a sujeição do trabalhador. A ameaça,
desta vez, é contra o que resta da floresta Amazônica no Maranhão, mais
exatamente a Reserva do Gurupi, onde os madeireiros desafiam os órgãos
ambientais e gente disposta a preservar a vegetação. Mais uma vez, repórter e
cinegrafista desviam-se da rota do trem para apurar esse problema.
Na carona das viaturas do Ibama, partem ainda de madrugada rumo à
reserva. Amanhece o dia. Alguns quilômetros em estrada de terra, e se podem
avistar caminhões carregados de toras, ao que tudo indica recém-cortadas na
reserva. É madeira nobre, como jatobás e maçarandubas, ceifada pela serra elétrica e
que depois acaba enviada pelas madeireiras clandestinas ao mercado europeu. Nem
o flagrante da câmera inibe os infratores, que sabem que nada lhes acontecerá. “Os
caminhões são apreendidos, mas os trabalhadores que transportam a carga sabem
que o responsável pelo desmatamento vai dar um jeito na situação e que o serviço
vai voltar assim que a fiscalização for embora”, diz Padrão.
Outro problema que facilita a derrubada das árvores é a falta de pessoal para
fiscalizar. Com 345 mil hectares, a Reserva do Gurupi conta com um fiscal do
Ibama, José Nonato Mattos. E o que é uma ironia, por falta de um depósito o Ibama
é obrigado a guardar as toras confiscadas nos pátios das próprias madeireiras
suspeitas de comprar ilegalmente o produto. Quilômetros de estrada adentro, e
novos caminhões de madeira surgem, abarrotados. Mattos leva a repórter à sede do
posto do Ibama na região. Já deixou de funcionar há algum tempo, mas ainda guarda
sinais da ação dos vândalos. A cena fala por si só: caminhões trafegam nesse ponto
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crédito: programa SBT-Realidade
“Eu chorava de saudade dos meus filhos e pedia a Deus para iluminar uma pessoa a
entrar na fazenda com seu carro e nos levar”, conta Francimar Souza.
30
com a certeza da impunidade. A sede nem vigia tem. Mattos sente-se impotente,
mas não esconde a vergonha. Sem armas, apenas com uma prancheta, ele faz
anotações. É tudo o que pode.
Essa complicada rede de comércio clandestino ameaça todo o ecossistema.
Imagens captadas por satélite (e mostradas na reportagem) apontam que 25% da
cobertura vegetal da reserva não existe mais. A madeira nobre, diz a repórter em off,
é retirada primeiro. “O que resta da mata vira carvão para as siderúrgicas locais. E o
comércio que alimenta os altos-fornos nutre uma rede de milhares de pequenas
carvoarias clandestinas.”
Por detrás dessa engenhosa operação está a indústria automotiva, espalhada
pelo mundo, que utiliza o gusa fabricado no Brasil, de melhor qualidade. E para
fazer o gusa é preciso minério de ferro e carvão, que vem de milhares de pequenas
carvoarias clandestinas que queimam a madeira da mata nativa. O serviço rende ao
carvoeiro R$ 45,00 por forno de carvão, sete dias de trabalho. Também com a
exploração de mão-de-obra ilegal. É o jogo do faz-de-conta, segundo a repórter:
O Estado sabe que as siderúrgicas não têm como
explicar o carvão que utilizam. As empresas são autuadas,
mas o valor das multas não chega a fazer cócegas nos
lucros do negócio. Aqui é assim. O fazendeiro finge que
não extrai madeira ilegal, as siderúrgicas juram que não
sabem de onde vem o carvão que move as empresas, o
Estado faz de conta que consegue fiscalizar. Essa ciranda
de cinismo existe porque explora a incrível capacidade
de resistência de um povo que não tem nada, mas que
continua sonhando.
Próximo da última parada, antes de cruzar a fronteira com o Pará, o trem vai
carregado de expectativas sobre a tal vida melhor. Denis Canhende, que partiu de
São Luís, está determinado a chegar ao seu destino. Ana Paula Padrão quer ouvi-lo,
saber como se sente nessa altura, quando chega o cansaço. Ele, como se pode
observar, continua com o mesmo brilho no olhar. “Eu nunca vou desistir, quero dar
ao meu filho o que eu não tive, educação.”
Também apreensivo está JoAgostinho. Cabelos brancos, a visão falha
pelo peso da idade, ele segura nas mãos a carteira de trabalho. Estivador, 62 anos,
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crédito: programa SBT-Realidade
“Os caminhões são apreendidos, mas os trabalhadores que transportam a carga sabem
que o responsável pelo desmatamento vai dar um jeito na situação e que o serviço vai
voltar assim que a fiscalização for embora”, diz a repórter Ana Paula Padrão.
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nunca ganhou bem. Como avulso, tira R$ 30,00 por dia; às vezes, nada, afirma à
repórter. Mas se orgulha da carteira assinada por outras jornadas. Sua vida é
trabalho. “Nunca tive tempo para outra coisa.Agora, está em busca de uma nova
colocação, talvez a última oportunidade de sua vida.
A última parada dentro do estado do Maranhão é um local descampado.
Nada de estação ou plataforma. O que existe são casas à margem da ferrovia. Delas
vêm os quitutes e refeições que matam a forme dos forasteiros que cruzam a região
no trem para o Pará. As “quentinhas”, onde a comida é oferecida, dão a
oportunidade de quem está à procura de trabalho de ajudar os que moram à beira da
linha.
A equipe do SBT desembarca em Marabá, dentro do estado vizinho, e
segue de carro para acompanhar uma operação de fiscais do Ministério do Trabalho
a fazendas da região. Apesar de ser lei no Brasil desde 1932, a carteira de trabalho,
tão valorizada por Agostinho, em boa parte do Pará ainda não existe de fato. Mas
parece que essa não é a única ficção encontrada pela reportagem. Cenas de uma
placa do extinto DNER, num trecho da BR-230, a Transamazônica, rodovia que
nunca saiu do papel. Passando-se a cidade de Marabá, são quilômetros ainda a
percorrer em cima de terra, o que dificulta o deslocamento das viaturas.
Numa propriedade rural, os alojamentos são precários e não oferecem a
mínima estrutura de higiene. Banho, num buraco com água barrenta, a poucos
metros de distância. A água para cozinhar para os trabalhadores parece vir do
mesmo lugar. Para driblar as leis, muitos fazendeiros registram empregados como
empreiteiros, explicam os fiscais. É o caso de Manoel, sem carteira assinada, férias e
13º salário. O dono da fazenda é o presidente da Câmara de Marabá, conhecido
como Miguelito. Em outra propriedade, a informação sobre a operação dos fiscais
chegou antes deles e só havia dois funcionários, com carteira assinada, é óbvio, e até
livro de registro, para cuidar de 1000 cabeças de gado. Os demais possivelmente
foram retirados.
Ao final da operação o saldo foi positivo. Em uma semana, são resgatados 30
trabalhadores em situação de escravos. Como manda a lei, nesses casos eles devem
ser enviados a um hotel. Os empregadores, notificados, terão de pagar os direitos
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crédito: programa SBT-Realidade
Eu antes estava na prisão, e hoje estou na glória”, diz Raimundo Ferreira, ao ser
resgatado na situação de trabalhador escravo.
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trabalhistas, além de multa. “Mas isso infelizmente não repara o mal nem o tempo
de vida que lhes é roubado”, diz a repórter.
As imagens o de Raimundo Ferreira. Ele tem um olhar distante, de
perplexidade. Como o Francisco, o Pedro ou o Manoel, vítimas como tantos outros
da injustiça que impera no campo, ele não sabe o que esperar do amanhã. “Eu antes
estava na prisão, mas hoje estou na glória”, diz ele depois de ser recolhido num
hotelzinho da cidade.
1.4 Sentido onírico
Informação em profundidade, texto com sentido onírico são outros
procedimentos que dão a essa reportagem possibilidade de transitar pelo terreno da
linguagem literária. A autora retrata, na região de Carajás, conhecida como eldorado
de ilusões, as marcas de um triste passado. Homens com bicicletas, crianças com
pés descalços nas ruas de terra, a vendinha que espera por fregueses... Nesse cenário
aparentemente calmo, poucos venceram. “O que sobe do chão e o calor que se
despeja sem tréguas costumam provocar febre nos forasteiros”, narra a repórter,
sobre o lugar.
Muitos chegaram mais de vinte anos, atraídos pela notícia do ouro de
Serra Pelada e continuam nesse lugar, “mas como órfãos dos sonhos de riqueza”.
Outros vieram mais tarde, atraídos por um pedaço de terra que encontraram na
própria sepultura. As cruzes fincadas no terreno trazem à memória aquele dramático
episódio em 17 de abril de 1996. O massacre em que 19 sem-terras
perderam a vida pelos disparos de armas de fogo de policiais militares. As cenas,
gavadas por um cinegrafista naquele dia, ilustram a matéria.
João Batista Afonso, da Pastoral da Terra, acredita que a causa desses
problemas está na falta de oportunidades de trabalho. “Os que aqui vêm são
motivados principalmente por expectativas de encontrar um emprego ou alternativa
melhor que em seus estados de origem”, avalia ele. “Sem essa alternativa acabam
engrossando as filas dos movimentos sem-terra na região.” Para cada um dos 19
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crédito: programa SBT-Realidade
O monumento erguido em Eldorado dos Carajás é tão sombrio quanto a tragédia que o
motivou”, narra a repórter Ana Paula Padrão.
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sem-terras mortos ergue-se um tronco de castanheira do Pará arrancado. “O
monumento erguido em Eldorado dos Carajás é tão sombrio quanto a tragédia que
o motivou”, afirma a repórter.
Uma ponte sustentada por altos pilares representa os últimos metros que
separam os passageiros de Parauapebas, onde a ferrovia termina. É aqui que o
Maranhão e o Pará se encontram e se despedem. O trem bate e volta, e os que
conseguiram serviço irão ficar. Outros voltarão porque não tiveram êxito. Dali em
diante, o trem de carga pode avançar, rasgando a floresta. Muitos maranhenses
desejariam seguir com a composição em busca de seus sonhos. Na frente está a
maior mina de ferro a céu aberto do mundo, um lugar muito diferente daquele onde
homens, mulheres e crianças lutam por uma oportunidade. É onde a riqueza é
realidade. A carteira de trabalho, também.
Desse lado do Pará só progresso. Os vagões de carga transportam 260 mil
toneladas de minério de ferro por dia. Apenas uma das cavas, das cinco exploradas
pela companhia, tem 300 metros de profundidade, e mais 200 ainda a ser
explorados. muito minério. Os caminhões, vistos do alto, parecem de
brinquedos, mas são como monstros em circulação, nas palavras da repórter. Cada
um pesa mais de 200 toneladas e tem capacidade para 250 toneladas de minério. O
custo desses super-veículos é de US$ 2,5 milhões por unidade. Esse é o território da
tão sonhada Carajás, controlada pela Vale do Rio Doce. Aos poucos, vai-se
revelando a sofisticação do lugar, de proporções gigantescas. Todas as operações,
como equipamentos, processos de beneficiamento, cálculo da produção, são
monitoradas por computadores de última geração instalados no Centro de Controle
da empresa. É essa pujança que atraiu Vanessa. Aos 25 anos e há dois trabalhando
na cabine de comando de um dos caminhões gigantes, desfruta uma visão
privilegiada. São 7 metros de altura e 13 degraus de escada até chegar ao volante. Só
o pneu do veículo tem 3 metros de altura.
Cinco mil casas são destinadas aos funcionários, além de uma grande
mansão para hóspedes ilustres cercada por 1,5 milhão de hectares de floresta.
Existe até um minizoológico na área para abrigar animais feridos encontrados na
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crédito: programa SBT-Realidade
“Os caminhões, vistos do alto, parecem de brinquedos, mas são como monstros em
circulação”, nas palavras da repórter.
38
mata. Na fala da repórter, com uma bela trilha sonora e imagens finais do trem, vai
se fechando a história de Carajás...
A exuberância da Amazônia sempre gerou cobiça.
Milhões se lançaram nessa aventura por ouro, madeira,
diamante, minério. Mas não é o sonho da fortuna rápida
que hoje empurra maranhenses em direção ao Pará. E não
são os trilhos que transformam trabalhadores em escravos.
É a própria história de Denis, um brasileiro de um estado
à margem do desenvolvimento que migra em busca de uma
vida melhor.
Quadro 1 Elementos da narrativa ampliada em Estrada de Ferro Carajás
Protagonistas
Lugares
Subtemas Página
Denis/desempregado
Estação do trem Sobrevivência
18
Warley e Márcia/casal
Interior do trem Romance 20
rmen/missionária Centro Defesa da Vida Solidariedade
22
Francisco/trabalhador
Fazenda Trabalho escravo 24
Gabriel/locutor Comunidade/Açailândia
Família 24
Os gatos
Bares da cidade Impunidade 26
Borges/empreendedor Cooperativa de carvão Ecologia
27
José/fiscal do Ibama Reserva do Gurupi Desmatamento 28
Agostinho/estivador Interior do trem Histórias de vida 30
Raimundo/escravo Hotel de trânsito Trabalho escravo 34
Vanessa/funcionária Vale do Rio Doce Empresa 36
Embora o fato nuclear da história seja a viagem pela ferrovia, o quadro
acima demonstra uma variedade de personagens que se aventuram em busca de
trabalho e de uma vida melhor, cada um com seu drama pessoal. Com isso, a
reportagem faz uma contextualização dos acontecimentos, do ponto de vista
39
econômico, social ou humano. Uns vão a trabalho, outros a passeio. Há quem
perdeu a esperança, como os que são vítimas do trabalho escravo. Heróis anônimos,
como Denis Canhede, deixam tudo para trás para tentar a sorte longe de casa. O
romance aparece na relação de Warley e Márcia, que se conheceram na ferrovia e se
casaram. Com José, um fiscal do Ibama que se sente impotente para combater o
crime contra a reserva, aparece o tema do desmatamento nessa região do país.
também lugar para empreendedores, como é o caso de Borges, que acredita num
modelo alternativo de produção de carvão e que, de forma indireta, acaba servindo
de crítica à ação das siderúrgicas. Por meio do relato amplificado, a reportagem
traça um panorama da realidade seguindo pelos trilhos da ferrovia. Lugares como
estação do trem, plataforma de embarque, interior dos vagões, cidades e vilas ao
longo da linha também ajudam a aprofundar a história. O ponto final da composição
de carga é a jazida de Carajás, a maior mina de ferro a céu aberto do mundo. Lá, é
possível encontrar um mundo diferente, onde a riqueza forma o contraste de um
Brasil que, apesar de sua pujança econômica, ainda deixa muitos cidadãos à margem
do desenvolvimento.
2. Rio Capibaribe
Prédios do antigo centro histórico do Recife banhados pelas águas. É aí que o
rio forma o estuário, chegando a se confundir com o próprio oceano, onde
desemboca. A nascente fica no interior, região do agreste, onde o homem luta pela
sobrevivência em meio a uma paisagem rústica e hostil.
O trecho acima são cenas da reportagem Rio Capibaribe, exibida pelo Globo
Rural em janeiro de 2005, e que muitos poderiam jurar tratar-se de uma minissérie e
até de um documentário. Mas é a própria realidade dos sem-terra, da seca, recorte de
um Brasil sem reforma agrária, sem justiça social, sem controle ambiental para o
progresso que vai se instalando ao longo do rio.
Suas imagens nos levam a uma viagem ao longo dos 270 quilômetros desse
manancial, percorrendo dezenas de municípios e vilas. Por meio de situações
40
paralelas, esse episódio compõe o cenário de um Capibaribe onde muitos sertanejos
sequer conheceram o mar um dia. É a história também de homens e mulheres que
venceram as limitações do clima, para plantar nas margens desse grande leito, às
vezes correndo apenas como um fio de água, mas que é fundamental para a
manutenção da vida na região.
A reportagem, que pode ser considerada uma das melhores do Globo Rural
ela foi selecionada entre as melhores reportagens apresentadas na comemoração do
jubileu do programa, em 2005 --, por mostrar essa realidade de forma ampliada, é
um trabalho de liberdade autoral, como é característica do programa, longe dos
engessamentos e lugares-comuns das práticas jornalísticas. Conta a história de um
rio como se fosse a própria vida que traz a esperança para o sertão. Resgata a
questão de um progresso que, embora gere riquezas, também causa grande impacto
ambiental e pode zerar a vida no rio.
Repórter e cinegrafista mergulham nessas águas que levam esperança, criam
sonhos, garantem a agricultura como fonte de renda. Resgatam episódios da crise
das usinas de açúcar no Nordeste nos anos 1990, que deixou centenas de
desempregados. São alguns de seus personagens: Manoel Santana (que espera a
reforma agrária), Maria do Socorro (uma mulher que quer livrar o rio do lixo e
degetos), Jorge Petregul (proprietário de uma das maiores usinas em atividade na
região), cujas histórias ajudam a compreender os contrastes dessa região do País.
2.1 A nascente
Num pequeno lago de águas cinzentas, entre os municípios de Poção e
Jataúba, onde vive uma comunidade, nasce o Capibaribe. É exatamente nesse ponto
que o repórter Vico Iasi encontra o sertanejo Edmílson Alves de Lima. Indagado, ele
diz desconhecer onde o fio de água, que jura ser o rio, vai dar. No da serra, o
pequeno córrego da nascente seca de vez. “O Capibaribe é parecido com a maioria
dos rios nordestinos. O leito seco se confunde com a própria paisagem, vira estrada
de pó, serve de pasto para o gado”, diz Iasi. A explicação para esse fato está no
41
clima, como afirma o agrônomo da Universidade Federal de Pernambuco, Ronaldo
Freire. “Porque é uma região que chove pouco. Chove a cada três meses no ano, e
nove meses são de seca. Quando chove, tem chuva de alta precipitação, muito forte,
gerando volume de água muito grande na saída do rio, que enche rapidamente. Mas,
após a chuva, ele seca rapidamente.”
Mais adiante, outro sertanejo. Ismael Monteiro caminha pelo leito seco desde
menino. E quase não para acreditar, a família dele vive da agricultura, constrói
poções bombeando água do Capibaribe. Cultivam beterrabas, pimentão, e muita
cenoura. “Há um oásis no meio do deserto”, continua Iasi.
Nesse trecho, a reportagem joga com os aspectos lúdicos. No passado, o
alto do Capibaribe era marcado pelos retirantes”, conta Iasi. A realidade foi
retratada na obra Morte e Vida Severina, do poeta João Cabral de Melo Neto, que,
com longa tradição no teatro, gerou também um especial produzido pela Rede
Globo. Severino, interpretado por José Dumont, foge da seca. As cenas são
mostradas na reportagem.
5
A câmera volta a gravar imagens de Ismael Monteiro, cuja família conseguiu
cultivar os legumes numa terra seca. É que o rio corre embaixo da superfície, de
onde a água é bombeada para irrigar a plantação. A família pôde, dessa forma,
prosperar. Cada filho tem uma casa, e os pais conseguiram aposentadoria rural. A
horta deixa lucro: R$ 20 mil por ano. “Antes, havia muitas dificuldades financeiras.
Hoje, temos tevê, geladeira, aparelho de som, tudo isso ‘nós tem’. Hoje temos
conforto”, fala dona Terezinha, reunida com a família na casa do sítio.
Mas, conforme Iasi, o rio recebe em troca veneno. Isso porque a lavoura
exige que o agricultor faça largo uso de agrotóxico. E o mais utilizado é do tipo 1, o
mais perigoso. O problema é que falta assistência técnica. O Estado reconhece que
apenas 15% dos produtores de Pernambuco têm acesso às orientações para
manusear o produto corretamente.
5
O trecho da obra de João Cabral de Melo Neto, a exemplo de outras edições do Globo Rural, é mais
um recurso narrativo para se tentar mergulhar nesse complicado universo do sertanejo, do habitante
que vive as contradições de uma região e onde as abordagens convencionais se mostram insuficientes
para traduzir a realidade.
42
crédito: programa Globo Rural
“No passado, o alto do Capibaribe era marcado pelos retirantes”, conta o repórter
Vico Iasi.
43
2.2 Ancestralidade
A reportagem também desenvolve uma relação muito próxima com o povo
da região, entrando em sua intimidade, no cotidiano das propriedades rurais,
mexendo com a ancestralidade, as memórias da infância. No município de Brejo da
Madre de Deus, ao lado da propriedade do agricultor Tadeu de Souza, uma
região sagrada. Desde criança, ele conviveu com restos mortais e objetos de antigas
civilizações indígenas encontrados nesse sítio. Paredões rochosos, no entorno,
conservam pinturas rupestres de um passado distante. “Quando criança, tinha muito
medo, pois via muitos ossos à mostra.” O local abriga um antigo cemitério. É a pré-
história do lugar. Parte do acervo pode ser visto no museu da cidade.
Nesse trecho cabem algumas observações sobre os procedimentos adotados
pela equipe de reportagem. Iasi, por exemplo, toca na sensibilidade do agricultor ao
indagar sobre esse passado. A narrativa flui. O repórter-cinematográfico Jorge do
Santos, em entrevista a este autor, explica como é o trabalho dele, que começa assim
que chega à propriedade. Ele faz uma seqüência da equipe chegando,
cumprimentando, “vamos até a casa dele, entramos na intimidade, tomamos um café
na cozinha dele, que é um lugar que as pessoas gostam de receber...” E continua:
... Dali ele nos encaminha para a sua lavoura, seu
dia-a-dia. Vamos supor: se ele estiver capinando,
vamos mostrar isso. Se estiver colhendo, vamos
colher. Quer dizer, existe uma elaboração de cinema,
tem um trabalho de luz, um trabalho de áudio.
Enquanto o hardnews não tem essa precisão, essa
necessidade do trabalho de áudio, nós temos essa
preocupação, trabalhamos com microfones
especiais, utilizamos lentes especiais, lentes com
grande abertura. Quanto maior o cenário que nós
propiciarmos para o telespectador, melhor. Já o
hardnews, não, já tem que trabalhar mais fechado,
com planos mais objetivos, com imagens que dêem a
notícia muito rápido, que o telespectador mentalize
aquela cena, receba a informação e fique
guardado. No Globo Rural, a gente consegue dar o
cinema, faz com que as pessoas viagem em nossas
matérias.
44
A história do Capibaribe vai mais além. O leito seco do rio se transforma em
água, e a paisagem também muda. É o município de Poço Fundo. Desse ponto em
diante a água é liberada de pequenas barragens construídas pelos agricultores,
alimentadas pelas chuvas. Em Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, está um dos
maiores pólos de confecção do Brasil.
Ao contar a história de pessoas como João Bertolino vaqueiro, mas que se
meteu no comércio de jeans e comprou uma fazenda –, vai entrando também na
geografia e na economia da região. A família, agora, passa a maior parte do tempo
na cidade. Compra o produto em Minas e São Paulo e o revende para as confecções
do agreste. Mas não deixou de lidar com o gado, o grande prazer.
José Manoel da Silva também acordou para o crescimento do ramo de
confecção. Ele montou uma fabriqueta na casa do sítio em Toritama. O rio passa
dentro da propriedade. Hoje, o negócio mais lucrativo do sítio é a confecção. A
região abriga 12 mil empresas, que integram o pólo. Depois de fabricadas, as
peças alimentam as lavanderias. Nas imagens, as roupas ganham o tom da moda por
meio dos tingimentos. Filho de seu João, o “rei do jeans”, Dílson dirige uma
empresa que fatura R$ 120 mil mensais. No total o negócio de confecções gera 80
mil empregos diretos. Da lavagem, as roupas voltam para os comerciantes, e são
vendidas em feiras.
2.3 Visão aprofundada
Em Rio Capibaribe uma visão aprofundada sobre os fatores que
condicionam a luta pela sobrevivência.
6
Ao lado de um certo otimismo com o
o crescimento provocado pelo comércio de confecção se observam impactos
6
O jornalismo de aprofundamento, como se poderá observar com mais detalhes adiante, trabalha
com narrativa ampliada, podendo se dar tanto horizontalmente (de forma extensiva) ou verticalmente
(sentido intensivo). Significa fornecer ao leitor dados, detalhes e números que ampliam a taxa de
informação do texto.
45
crédito: programa Globo Rural
Um dos maiores problemas é causado pela presença das lavanderias. Conforme
tomadas feitas das águas do rio, sua coloração é azul, cor de jeans, e apresenta
cheiro muito forte.
46
ambientais. As imagens falam por si: centenas de novas moradias, com suas antenas
parabólicas, são avistadas em meio à paisagem. Técnicos e especialistas ouvidos
sobre o problema mostram um outro lado da riqueza que vai se formando
paulatinamente com a morte do rio.
Um dos maiores problemas é causado pela presença das lavanderias.
Conforme tomadas feitas da água do rio, sua coloração é azul, cor de jeans, e
apresenta cheiro muito forte. A sujeira vem dos resíduos industriais que caem direto
no rio, o que aumenta a preocupação do diretor da Agência Estadual de Meio
Ambiente e Recursos Hídricos, Geraldo Miranda. “É uma quantidade bastante
elevada de produtos químicos, bastante tóxica, podendo praticamente zerar a vida no
rio.” Os donos das lavanderias teriam prazo até 2005 para instalar equipamentos
industriais. Até então, apenas uma empresa instalara. O resultado é surpreendente.
Além de devolver água limpa ao rio, permite que parte dela seja reciclada, para uso
na lavanderia, gerando economia sobre esse serviço. O rio agradece.
Passando pelo município de Surubim e a grande barragem, o rio se despede
da paisagem agreste. Na Zona da Mata, em Limoeiro, recebe as águas de afluentes e
chega às terras de colinas redondas e verdes. A cultura da cana se estende por 450
quilômetros em suas margens. Narra o repórter:
Com a chegada dos portugueses, a paisagem foi
mudando. Os velhos engenhos engoliram a mata nativa,
expulsaram os índios, trouxeram escravos da África e
dinheiro para as fazendas e cidades. Moldaram a
sociedade e a economia do Brasil colonial.
Acompanhando a trajetória do rio, a reportagem segue falando de cidadãos
que, quase desconhecidos, ajudaram a desbravar o interior. Mas também da crise no
setor alcooleiro, em 1990, que deixou marcas profundas na região. Jorge Petregul é
um empresário. Ele pertence à nona geração dos Petregul que, em 1721, se
ocupavam com a produção da cana nessas terras. Com o fim dos subsídios do
Proálcool,
7
programa que não sonhava atingir a projeção alcançada hoje, foi
7
O Programa Nacional do Álcool foi criado em 1975, durante o governo de Ernesto Geisel e tinha
por finalidade substituir combustíveis derivados do petróleo, como a gasolina, por uma fonte
47
inevitável. “Chegamos a cortar fundo na carne para tentar sobreviver”, relembra ele
na sala que já foi de antigos donos da Petregul.
O mesmo drama viveram 100 mil trabalhadores que perderam o emprego em
usinas da região. Uma delas, que funcionava desde 1861, a Tiúma, parou as
máquinas, demitindo 3 mil empregados. Manoel Santana recorda de tempos
melhores. Fala na identificação do pai e do avô com a usina que veio fechar as
portas com a crise. Ambos, segundo ele, morreram trabalhando em terras da Tiúma.
Hoje, Manoel é um dos centenas de sem-terra que esperam uma solução do governo.
A esperança está na reforma agrária, por meio de um assentamento. Enquanto ela
não vem, ele vai se virando. fez bico como sapateiro e trabalhou de motorista.
Mas o que quer mesmo é seguir a vocação da família, mexer com a terra. Na época,
o Incra havia cadastrado as famílias, mas o proprietário ganhou na Justiça a
reintegração de posse da área.
2.4 Descrição cena a cena
Numa reconstituição da história desse lugar, imagens mostram documentos,
gravuras e pinturas da época. As cenas são alternadas com passagem do repórter,
nas falas em off. Como no jornalismo que se utiliza de construções da arte literária
– que alguns autores denominam “não-ficção” – as imagens detalham os ambientes,
alternativa e renovável. Dois anos antes, o mundo enfrentava uma grave crise na produção do óleo,
com o preço do barril disparando no mercado internacional. Isso fez com que o governo brasileiro
criasse regras para que, num primeiro momento, o álcool anidro fosse adicionado à gasolina como
forma de diminuir a importação do produto em meio à instabilidade do Oriente Médio. Nos postos, a
gasolina custava cada vez mais caro. A ordem era economizar combustível, uma idéia que demorou
um pouco para ser assimilada pelas pessoas. Até o governo de Figueiredo, o Proálcool não passava
de uma promessa. As medidas iniciais previam a instalação de novas usinas de álcool e a
modernização da infra-estrutura já implantada. Em 1979, ocorre um novo choque do petróleo, mas o
programa já dava sinais de que se tornava um sucesso. Um quarto dos carros vendidos no País em
1981 era movido a álcool. No ano seguinte, o governo federal aprovou a montagem de 292
destilarias. Um dos benefícios do programa foi diminuir a poluição e gerar milhares de postos de
trabalho. A oferta do petróleo no mercado internacional caiu em 1985, e os usineiros, de olho nas
vantagens em se investir no açúcar, também passaram a produzir menos álcool. Esses fatores
trouxeram incertezas ao consumidor. O programa chega aos anos 1990 consumindo mais de 10
bilhões de dólares dos cofres blicos, gastos com subsídios. Disponível em (Veja.com Coleções
Proálcool). Acesso em 20/01/09.
48
crédito: programa Globo Rural
Até aparelhos como televisão e geladeira são descartados no Capibaribe. Com o apoio
do marido, Socorro fundou um movimento ecológico em defesa do rio, cuja sede
funciona no restaurante-barco do casal.
49
com marcas da subjetividade. “Vestígios do passado: igrejas barrocas, chaminés, a
roda d’ água, que movia a moenda, casas em ruínas. Da Mata Atlântica, só sobraram
faixas isoladas. E os engenhos cederam espaço às grandes indústrias.”
Em outro trecho, volta a utilizar elementos da expressão da literatura:
Rosnando, fumegando, a usina Petregul cruzou o século
à beira do Capibaribe. Nós estamos no município de
Carpina, a 60 quilômetros do Recife. Um gigante do
açúcar, 18 mil hectares plantados, 90 milhões de
faturamento por ano e muita tradição.
Nos 30 quilômetros finais que restam até a foz, o Capibaribe continua sua
agonia recebendo esgotos de 1,5 milhão de moradores da zona urbana. Dona Maria
do Socorro tem uma ligação especial com essas águas. Ainda menina, andava
pelo leito de barco. Hoje, a natureza lhe reservou a tarefa de tentar salvar o rio.
Usando uma luva e pequena embarcação, recolhe o lixo da margens. Até aparelhos
como televisão e geladeira são descartados no Capibaribe. Com o apoio do marido,
Socorro fundou um movimento ecológico em defesa do rio, cuja sede funciona no
restaurante-barco do casal.
Assim vão terminando as cenas da reportagem. Edmílson Alves Lima, o
sertanejo que mora na região da nascente, ganhou um presente da equipe do Globo
Rural. Ele foi convidado a viajar até a foz do rio, mas não tem idéia do que vai
encontrar. O que era para seus olhos um fio de água barrenta se avoluma e segue por
um canal, dentro do centro histórico do Recife, até se juntar a uma grande massa
oceânica que se estende em direção ao horizonte. De cima de uma murada, está a
grandeza do mar, algo que nunca tinha visto. Faltam palavras para se expressar. As
imagens falam por ele...
50
crédito: programa Globo Rural
Nos 30 quilômetros finais que restam até a foz, o Capibaribe continua sua agonia
recebendo esgotos de 1,5 milhão de moradores da zona urbana.
51
Quadro 2. Elementos da narrativa ampliada em Rio Capibaribe
Protagonistas Lugares Subtemas Páginas
Edmílson-sertanejo
Nascente do rio
Histórias de vida
40
Ismael-agricultor Leito seco do rio Produção/alimentos
41
Tadeu-morador Sítio arqueológico Pré-história
43
José-empreendedor Indústria/ confecção Economia local
44
Jorge-empresário Usina Petregul História-pioneiros
46
Manoel-sem terra Acampamento Reforma agrária
47
Maria-voluntária Rio poluído Ecologia
49
Como no exemplo anterior, Rio Capibaribe traz uma abordagem
aprofundada da realidade nordestina, com visão multiangular. Fala tanto do homem
do agreste e da luta pela sobrevivência quanto do impacto do progresso sobre sua
paisagem. Embora englobando diversos temas, como produção de alimentos,
poluição, pré-história, indústria de confecção, usina de açúcar, a reportagem
descobre personagens que de alguma forma têm seus destinos ligados ao do
Capibaribe, de cuja água que corre em seu leito depende a vida na região.
3. O cinema na televisão
O trabalho de imagem no território da reportagem ainda é um campo a ser
explorado, que a bibliografia existente está longe de satisfazer. Mas é possível
buscar instrumentos de análise que permitam entender como funciona a televisão, e
o que nela se difere em relação ao propósito da pesquisa. Isso não impediu que, por
meio do que se pode observar nos programas, se façam ilações e inferências. Em
ambas as reportagens, encontrou-se farto material para definir os contornos da
52
crédito: programa Globo Rural
O que era para seus olhos um fio de água barrenta se avoluma e segue por um canal, já
dentro do centro histórico do Recife, até se juntar a uma grande massa oceânica que se
estende em direção ao horizonte.
53
reportagem televisiva, que, não raro, flerta com o cinema. Cabe, inclusive, algumas
considerações sobre a proximidade entre essas linguagens.
Segundo Ana Maria Balogh, o que costumamos chamar de forma imprecisa
na linguagem de TV é, “na realidade, uma mescla de conquistas prévias no campo
da literatura, das artes plásticas, do rádio, do folhetim, do cinema... assimilados de
forma assimétrica” (2002:24). A autora acrescenta que os programas ficcionais de
TV, por mais corriqueiros, trazem “um agenciamento de som e imagens herdados da
montagem cinematográfica à qual se acrescem... os enquadramentos cuja concepção
vem das artes plásticas, da fotografia e do próprio cinema...” (2002:24).
Para Saulo de la Rue, a grande-reportagem é “jornalismo com roteiro,
produto um tanto indefinido, com características cruzadas, de vários campos de
conhecimento” (2006:183). Segundo o autor, a grande-reportagem nasceu do
cinema, mais exatamente do documentário. Embora também se possa falar de sua
relação, meio promíscua, com a arte e a literatura, expressões estéticas por
excelência.
Sobre o documentário, não poucos autores tratam o assunto no contexto do
que se denomina “jornalismo literário”, como é o caso de Edvaldo Pereira Lima, por
utilizar recursos dessa linguagem, contrariando uma outra corrente, que defende
apenas o registro dos fatos. Um exemplo é o trabalho do cineasta Eduardo Coutinho
em uma série de documentários, como Edifício Master (2002), Cabra Marcado
para Morrer (1984) e outros, em que uma linguagem autoral, não apenas
documental, sobre ambientes e pessoas, em que entra em jogo a intersubjetividade,
ou seja, o que diz respeito aos aspectos não visíveis da conduta humana, o lado
psicológico, seus sonhos e mitos.
Levada à discussão da televisão, essa abordagem divide opiniões. Para
alguns teóricos, a TV é um veículo de prestação de serviço, de informações, e não se
presta à construção de uma estética como no cinema. As novelas e séries, embora
pudessem contrariar essa lógica, seriam portadoras de um valor artístico, mas
próprio de sua linguagem. Mesmo assim, estudos nesse sentido demandariam
54
pesquisas complexas sobre audiência para se chegar a essa constatação.
8
No caso do
objeto desta dissertação, a grande-reportagem televisiva, a linguagem se mostra
diferente do telejornal, que opera num ritmo veloz, de forma fragmentada,
interessada apenas no foco principal do acontecimento. O hardnews, na expressão
de profissionais e estudiosos do assunto.
Nas reportagens examinadas no presente capítulo, constatou-se uma
proximidade com o documentário, um trabalho mais autoral e livre, sem estar preso
a uma pauta, mas que visa elaborar a matéria em planos mais estéticos. Fica claro,
nas matérias exibidas de Realidade e Globo Rural, que a imagem tende a
acompanhar o sentido jornalístico interpretativo, aprofundado, que o repórter ao
tema tratado. uma sincronia entre linguagem verbal e não-verbal, como se pode
observar em vários trechos. As imagens se intercalam às falas em off, plasticamente
Tanto na reportagem de Realidade quanto do Globo Rural há cenas que
flertam com a arte, a fotografia, mas isso não impede a reportagem de atingir seu
objetivo que é a comunicação da mensagem, o foco no assunto narrado. Ao
contrário, a valoriza, ilustrando-a de um sentido mais profundo, estético. Em Rio
Capibaribe, Jorge dos Santos trabalha com planos de cinema e jogos de luz. Explora
a beleza dos cenários, como o r-do-sol, tomadas panorâmicas, enquadramentos
que possibilitam uma visão não tão direta do personagem ou dos ambientes. Vai
mais pelo lado interpretativo, dando uma estética às formas cruas.
Ele aproveita a arquitetura de prédios antigos, no centro histórico do Recife,
banhado pelas águas do rio, para trazer a herança cultural deixada nessas
construções. Os sobradões, o estilo colonial... Estrada de Ferro Carajás, do SBT,
mostra imagens do trem em perspectiva, com profundidade. No Globo Rural,
8
Para informações complementares sobre a narrativa ficcional na televisão, consultar o Centro de
Estudos de Telenovela, da ECA-USP. Atualmente, vários projetos são desenvolvidos: o principal
deles é o Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (OBITEL), rede internacional de
pesquisa constituída por representantes de 11 países. Os resultados são publicados em anuários em
três línguas, português, espanhol e inglês. Temas como Ficção e realidade; A construção do cotidiano
na telenovela; Telenovela, internacionalização e interculturalidade; O autor na televisão, entre outros,
constam das publicações. Também na ECA-USP, o Núcleo de Pesquisa de Telenovela, que
mantém o Centro de Informação e Memória da Ficção Televisiva Seriada, desenvolvido pelo
Departamento de Comunicação e Artes da ECA. Destina-se à pesquisa e documentação sobre
telenovela, suas peculiaridades, influências e formas de linguagem. Disponível no site
www.eca.usp.br/cetv. Acesso em 21/01/2009.
55
crédito: programa Globo Rural
Em Rio Capibaribe, Jorge dos Santos trabalha com planos de cinema e jogos de luz.
Explora a beleza dos cenários.
56
explica o cinegrafista, se consegue contar uma história através de cenas. Isso se
torna possível por meio do plano-sequência:
.
O telejornal tem um fator limitante que é o tempo. As
matérias não podem passar de 1,5 minuto a 2. A conta que a
gente faz é de 10 para 1. Gravamos 10 minutos para tirar 1.
Então, o jornalismo diário não possibilita, na imagem, você
desenvolver o plano-sequência, uma continuidade. Claro,
tem que ter uma história. Você precisa contar uma história
com imagem. Mas o jornalismo diário limita a criação de
uma sequência de imagens. Muitas vezes existe uma
receitinha, que é o off, uma entrevista, uma passagem para
o repórter, ou termina com uma entrevista ou com uma
imagem que uma informação final. No Globo Rural, nós
temos a possibilidade de fazer uma sequência, um
documentário. A gente consegue, através de um
personagem, contar uma história de uma região, da
propriedade ou com que ele trabalha.
Ainda como explica o cinegrafista, o telejornal utiliza takes curtos. na
grande-reportagem, explora-se o ritmo mais lento, sendo necessárias às vezes horas
de gravação para se obter uma seqüência ou filmar uma história.
9
Essa modalidade
jornalística também se apropria da técnica do cinema na construção de uma sintaxe.
Nessa arte, a produção de sentido ocorre tanto em função de angulações (as
tomadas laterais, em perspectiva ou no plano vertical) quanto do foco da câmera
(determinando o que deve ser realçado ou omitido numa tomada).
As duas reportagens analisadas chegam a abusar do close. No episódio da
ferrovia, esse recurso pôde captar toda a emoção contida num rosto, ou no detalhe
de mãos. Tais cenas remetem, subliminarmente, a representações simbólicas (por
exemplo, mãos associadas a trabalho). Isso também cabe no Globo Rural, cuja
preocupação da câmera com o personagem é mostrar o que ele possui de mais
verdadeiro, conforme afirma o cinegrafista:
A câmera precisa ir no rosto desse personagem, com
plano fechado. A gente abusa do close, vai para os olhos,
vamos em busca de planos-seqüência do cinema de arte. O
9
Se a mesma cena fosse gravada para a notícia de um telejornal, poderia bastar um plano horizontal
ou o repórter falando, com o cenário do prédio ao fundo.
57
olhar do homem do campo é um olhar puro, honesto,
verdadeiro. Então, não tem por que você esconder esse
olhar. A câmera pode se aproximar dele, e pode se
aproximar muito.
A linguagem cinematográfica trabalha com o flash-back em obras de
profundidade narrativa, geralmente quebrando a sequência linear e remetendo a ação
ao passado. No filme Central do Brasil (1988), de Walter Salles, há um mergulho
dos personagens para dentro de si mesmos, na cena de pessoas diante de espelhos,
nos diálogos interiores, resgatando memórias e oralidades. a grande-reportagem
televisiva se permite a inserção de imagens da vida real ou de novelas e minisséries.
Na matéria do SBT, o massacre de Carajás, fato que chocou o País na época e foi
notícia no mundo, serviu para ilustrar o SBT-Realidade.
Embora não seja a finalidade, evidencia-se uma possível ligação de cenas do
massacre ocorrido em 17 de abril de 1996 com fantasmas, medos, superstições,
rituais e morte, tão presentes na cultura humana. As imagens sombrias de cada um
dos sem-terra mortos no episódio de Eldorado de Carajás (como se pode observar à
página 35), parecem levar o telespectador para esse campo, o que nem sempre é
possível no primeiro plano da cena.
O Globo Rural ainda lança mão de lentes especiais, filtros e microfones
sensíveis para determinados ambientes que, com equipamento convencional, não se
poderiam reproduzir. Isso permite aos repórteres, quando saem a campo, captar
imagens e sons que acham interessantes parte aproveitada nas vinhetas do
programa. Mas nenhuma tecnologia pode fazer tudo, principalmente se a emoção
não estiver presente. Às vezes, como comenta Jorge dos Santos, a câmera tem que
ser os olhos de alguém ou de um ser inanimado. Trabalhar com planos-seqüências,
entrar na vida do personagem para contar uma história.
As duas reportagens analisadas, pode-se afirmar, apresentam muitas
semelhanças em termos de procedimentos, posturas do repórter frente aos
personagens, elementos de captação do real por narrativas diferenciadas. A partir do
próximo capítulo, na exposição da fundamentação teórica, o que se pretende é
montar as bases de uma interpretação que una ainda mais essas duas linguagens.
58
Capítulo II
A REPORTAGEM NA HISTÓRIA
1. Narrativas e oralidades
Alguns procedimentos da grande-reportagem podem se aproximar bastante da
antropologia e outras ciências que lidam com o comportamento. Ao se traçar um
perfil do jornalista que constrói uma história de vida, é possível afirmar que ele
dialoga com os diversos campos do conhecimento. Dessa forma, pode estabelecer
um paralelo entre a reportagem e as narrativas através da história.
Embora essa categoria jornalística seja um produto da cultura de massa,
transporta um sentido que transcende os tempos, pois, no dizer de Medina, “poder
narrar é uma necessidade vital”. Na Antiguidade e bem antes, na Pré-História, por
meio das pinturas rupestres os relatos orais eram percebidos. com o
Renascimento, e o despontar da Era Moderna, com os avanços da astronomia e a
invenção da prensa por Gutemberg, essa cultura ancestral passa a perder validade
como registro histórico. Em seu lugar, surgiam as ciências, o pensamento cartesiano,
moldado dentro do logos científico.
O mundo do cidadão comum quase não importa para a visão oficial. Como
diz Alex Criado em sua tese de doutorado Falares: a oralidade como elemento
59
construtor da grande-reportagem”, “apenas os documentos oficiais passaram a
contar a história do poder, pois somente as classes dominantes produziam tais
documentos considerados válidos” (2006:40). Assim, o mundo entrou num período
em que os povos subjugados tinham que aprender a cultura européia, abandonando
seus mitos, crenças e religiosidade.
Isso iria começar a mudar, segundo Criado, no início do século XX, quando
“um grupo de historiadores questiona a rigidez na noção de documento histórico e
defende a ampliação desse conceito, com a utilização de fontes documentais
alternativas” (2006:40) Os estudos hoje existentes na área da semiologia da cultura,
nas neurociências, na filosofia compartilham a idéia de uma multiplicidade de visões,
oralidades, emoções, que passam a ameaçar cada vez mais o paradigma da
objetividade.
Do ponto de vista do jornalista, significa entrar no campo de conhecimentos
não relatados pela história oficial. Poder relatar o drama, os sonhos, os desejos de
pessoas anônimas, que não são interessantes, em geral, para o sistema. Outros
campos de expressão, como as artes, se encarregaram de expandir o conhecimento a
partir de uma posição menos condicionada pelas práticas sociais da cultura vigente.
O pesquisador, por sua vez, precisa deixar seu gabinete e enveredar pelo
campo em busca de provas reais, experiências de vida. Essas oralidades ou narrativas
trabalham com memórias, emoções e impressões manifestas na cultura de cada grupo
ou comunidade de pessoas. Por elas, se podem perceber as histórias de vida, resgatar
o passado. Mas também possibilitam a inclusão de novos e velhos discursos. É onde
se funda o projeto de construção de uma “dialogia do afeto”, no dizer de Medina.
Numa situação em que o repórter utiliza a técnica da observação participante,
entrando “na pele do outro”, ele contribui para trazer à apreciação elementos fora da
norma vigente da língua, o que enriquece a reportagem em contato com outros
conhecimentos.
Em sua dissertação de mestrado Viver na pele do outro: o uso da
observação participante na realização da reportagem”, Maria Pia Sica Palermo
destaca que o método é conhecido como uma maneira de o pesquisador colher in
loco as informações para seu estudo. “Por isso, no caso do jornalista, muito mais do
60
que responder à formula de perguntas que fazem parte de sua rotina diária, a
técnica serve também para o repórter experimentar o que vai contar” (2001:15).
Isso faz da reportagem uma categoria privilegiada, e provoca a discussão
sobre o papel do jornalismo na contemporaneidade. Em O signo da relação,
Medina trabalha com a idéia de organização e articulação do pensamento em
função da narratividade. “Uma definição simples de narrativa é aquela que a
compreende como uma das respostas humanas diante do caos” (2006:67). Dotado
da capacidade de produzir sentidos, continua a autora, ao narrar o mundo, “o
sapiens organiza o caos em um cosmos”. E acrescenta: “O que se diz da realidade
constitui uma outra realidade, a simbólica”, concluindo que “sem essa produção
cultural – a narrativa – o ser humano não se expressa perante a desorganização e as
inviabilidades da vida” (2006:67).
Assim como as narrativas do cotidiano passam a ser importantes para uma
compreensão dos anônimos, a contextualização sócio-econômica, histórica e
cultural possibilita uma visão de um cosmos social, com suas diferenças, seus
conflitos, suas histórias. Além disso, provoca o debate sobre fatores que intervêm
no processo de um acontecimento ou fato nuclear, resgatando antecedentes da
origem do problema. Faz isso por intermédio de suporte especializado:
documentos, enquetes, entrevistas, opiniões. Mas, sobretudo, traça um panorama
com base num perfil humano. Esse conjunto de fatores tem propiciado visões
inovadoras na abordagem da ação.
No dizer outra vez de Medina, a contemporaneidade, tal qual as percepções
a traduzem em narrativas, “oferece inúmeros desafios não só ao cidadão nela
situado com relativo conforto como, acima de tudo, ao que carrega o fardo da
marginalização de qualquer origem social, étnica, cultural ou religiosa”
(2006:67). Ainda segundo a autora, a narrativa possibilita uma marca de mediação.
Ela continua:
Enunciar um texto que espelhe o dramático presente da
História é, à partida, um exercício doloroso de inserção no
tempo da cidadania e no espaço de construção das
oportunidades democráticas. Ao se dizer, o cidadão se
assina como humano com personalidade; ao desejar contar
61
a história social da atualidade, o jornalista cria uma marca
mediadora que articula as histórias fragmentadas; ao
traçar a poética intimista, que aflora do seu e do
insconsciente dos contemporâneos, o artista conta a
história dos desejos... (2006:67)
Nas ruas se encontram oralidades em profusão. Diferente da rotina das
redações, que se esmeram na captura do furo, a grande-reportagem revela a
realidade em uma abordagem ampliada. Em Maus pensamentos: os mistérios do
mundo e a reportagem jornalística, afirma Künsch:
Nos relatos da oralidade popular (oratura) e na literatura,
o jornalista mediador-produtor de sentidos pode encontrar
fontes privilegiadas de sensibilização e pesquisa,
caminhos de comunhão ou interação social criadora, para
uma melhor compreensão de sua gente, dos desejos
profundos de seu povo, dos mitos que reordenam o caos
(2005:99).
1.1 Um clima de ruptura
Apesar de as ciências proporem uma época de certezas, na passagem do
século XIX para o XX, o clima é de intranqüilidade em todo o mundo. Os últimos
resquícios das antigas crenças caíam por terra. A crescente onda de urbanização e
progresso traz a promessa de prosperidade, mas também inquietações. Há uma
transformação acontecendo no trabalho, na vida religiosa, nos centros de decisão, nas
escolas e também nas ruas. Era preciso entender o fenômeno das massas, seus gostos
e peculiaridades. Mas como dar voz a outros segmentos da população? Os jornais,
principalmente no Brasil, por suas condições periféricas, tardam quanto a obter uma
estrutura mais sólida e profissional, que lhes garantissem autonomia.
não se pode mais ignorar o que de real acontecia na moda e nos costumes.
Com a nova visão de mundo, muita coisa deixava de fazer sentido. As histórias
românticas, de aventuras e suspense, motivo de sucesso dos folhetins, um produto da
62
cultura popular, não convenciam o cidadão. Ele queria mais, saber o que de
verdade acontecia no mundo e à sua volta.
Como diz Marcelo Bulhões, durante décadas, esse tipo de narrativa tinha sido
o “querido das massas, com seus poderes irresistíveis às demandas imaginativas”
(2007:112). O gênero entra em decadência quando a empresa jornalística, voltada
para o lucro, começa a se lançar à procura de um produto essencialmente jornalístico.
O folhetim, então, vai ter sua atenção ofuscada pelo desenvolvimento da
reportagem.
Em situação mais confortável, os Estados Unidos, na década de 1830,
haviam conquistado um patamar mais técnico, voltado exclusivamente à informação.
Isso, segundo explica Bulhões, em função do desenvolvimento da democracia
(2007:29). Lá, principalmente um gênero de reportagem vai ser o adversário mais
direto do folhetim. “Trata-se de uma forma poderosa e estimulante do gosto
popular... uma espécie de painel variado de acontecimentos da vida real com apelo
ao extravagante e ao insólito: o fait divers” (2007:112). Ainda que a passagem de um
processo para o outro não seja tão abrupto no Brasil, a vitória sobre o folhetim,
continua Bulhões, será inevitável, com o “franco teor fantasioso do folhetim
perdendo terreno para produtos jornalísticos de grande impacto” (2007:112). Afirma
o autor:
Vista com o distanciamento que se permite hoje, a
transferência da primazia de um gênero para outro se
realizará com alguma preservação de elementos do
primeiro. A vitória sobre o folhetim se dará com a
reportagem assimilando traços que também atendam às
mesmas necessidades de ficção e fantasia que o gênero
derrotado tão abertamente exibia (2007:112).
Mas com a ressalva de que a reportagem não se apresenta como fantasia
ingênua e mentira imaginativa. Afigura-se como uma reprodução da verdade.
Todavia, sua materialidade textual não vai ser menos cativante e sedutora que o
velho folhetim” (2007:113). E acrescenta. “A reportagem mergulhará, à sua maneira,
no modo vibrante da configuração narrativa tão atrativo às massas” (2007:113).
63
Até que se pensasse de forma contrária, o legado do pensamento positivista
empurrava o jornalismo para a disseminação impactante da informação. Analisando
a proximidade entre jornalismo e literatura, apesar das diferenças que separam esses
campos, no período anterior, Bulhões afirma que, na segunda metade do culo XIX,
apenas uma visão unificava o pensamento na sociedade ocidental. Diz ele:
Mas no século XIX, principalmente em sua segunda metade,
a crença no acesso ao real empírico era o prato do dia.
Trata-se de um momento eloqüente em que a cultura
ocidental afirmava uma crença na ciência e na observação
empíricas como únicas estratégias legítimas de
conhecimento do mundo e instrumentos reformistas das
estruturas sociais; reiterava-se a confiança na razão como
ferramenta de promoção de melhoramentos do homem e da
sociedade. O real palpável expunha-se na mesa da filosofia,
das ciências e da própria arte. As ciências empíricas tiveram
um desenvolvimentio sem precedentes nessa fase,
esforçando-se para jogar por terra o corpo de teorias
puramente especulativas, vistas como falsas e imaginativas.
O mundo ia se desencantando cada vez mais,
desvalorizando o universo de mitos, lendas e da própria
religião (2007:22).
O triunfo da linguagem da objetividade, influenciada pelas ciências
empíricas, havia impregnado outras formas de expressão, se espraiando por todo
pensamento ocidental. O jornalismo, diferente da literatura, seguia a linguagem de
eficiência, mecanizada e impactante da industrialização. Künsch descreve também
os Estados Unidos, no século XIX, como o “berço por excelência do jornalismo
informativo e de uma concepção de informação de atualidade”. Lá, a experiência é
pioneira. “Jornalismo vira notícia, mas acompanhada de um modelo, o how to do, a
notícia na sociedade industrial é um produto à venda” (2000:110).
Apesar de a notícia atender à necessidade social por informações e alimentar
o próprio desenvolvimento das atividades comerciais, outros campos de expressão e
de relações do cotidiano constituíam ainda uma demanda à qual as empresas não
atendiam. O mundo passava por profundas transformações, e não havia um veículo
que permitisse a compreensão do que ocorria no cenário da época.
64
Em Páginas Ampliadas, Lima faz menção a uma pesquisa desenvolvida na
ECA-USP por Paulo Roberto Leandro e Cremilda Medina sobre o assunto, em que
destacam alguns elementos históricos que abriram espaço e motivação para esse
gênero jornalístico. No final da década de 1910, afirma Lima, sobre as conclusões
do estudo, “a imprensa norte-americana enfrenta um dilema. Já existe o telégrafo, as
agências noticiosas estão a pleno vapor, o volume de informações com que o leitor é
brindado pelos jornais é considerável”. Mesmo assim, continua, esse leitor “é
surpreendido com a eclosão da Guerra Mundial”. Descobre-se, então, que a imprensa
“estava muito presa aos fatos, ao relato das ocorrências, mas era incapaz de costurar
uma ligação entre eles” (2004: 19).
Lima entende que a reportagem começa a se esboçar definitivamente no
jornalismo atrelada a dois fatores decisivos para o surgimento dessa prática: um
deles, um novo veículo de comunicação periódica criado nos anos 1920, mais
exatamente a revista semanal de informação; o outro, uma nova categoria de prática
de informação, também originário dessa época, que foi o jornalismo interpretativo,
técnica que adota procedimentos capazes de aprofundar muito mais a notícia, tais
como contextualização, pesquisa com base documental para sustentação dos fatos,
perfis humanos, resgate de antecedentes, entre outros.
Time Magazine, que passou a circular em 1923, lançada por Henry Luce e
Briton Hadden, traz o relato de bastidores e conexões entre os acontecimentos, se
tornando, segundo o autor, um dos mais bem-sucedidos projetos editoriais, cujo
modelo abriu caminho para outras publicações hoje encontradas em várias partes do
mundo: Der Spiegel na Alemanha; Cambio 16 na Espanha; L´Europeu na Itália; Veja
no Brasil (2004:19).
Bulhões, aos fatores citados, acrescenta o convívio do repórter com o
lugar dos acontecimentos, para retratar a oralidade dos personagens, aquilo que eles
tinham a dizer. E, para isso, volta lá atrás, no século XIX:
A irrupção da reportagem na história do jornalismo, ocorrida
no século XIX, se faz com a evidência a um aspecto que a
acompanharia desde então, tornando-se um traço essencial do
gênero: a necessidade do jornalista, o repórter, no palco das
ações dos acontecimentos, trazendo a voz de quem convive
65
atentamente com os fatos. Um marco dessa conquista teria
sido a Guerra de Secessão ou a Guerra Civil dos Estados
Unidos (1861-1865), que mobilizou correspondentes no
palco da batalha, realizando entrevistas, descrevendo
testemunhas e o próprio cenário desolador da guerra. No
Brasil, a presença de Euclides da Cunha, em 1897, no cenário
da Guerra de Canudos como correspondente de O Estado de
S. Paulo pode ser evocada como um bom exemplo dessa
atitude (2007:45).
Para o autor, esse atributo especial de dar voz a testemunhas oculares
permite ao jornalismo “a concessão ao desenvolvimento de uma atitude
individualizada, centrada na figura do eu que reporta, o que insinua a presença de
marcas da pessoalidade na forma expressiva” (2007:45). Isso permite à reportagem
viabilizar um estilo, uma forma verbal que contém marcas da individualidade.
Analisando seus contornos, Bulhões entende que, na expansão do acontecimento
noticioso, a reportagem assume uma atitude descritiva, seja na construção do
personagem ou na coloração de um cenário. “É desse modo que ela ensaia alguma
proximidade com realizações da prosa de ficção ou transporta marcas da própria
literariedade” (2007:45). Com esses horizontes mais largos, a reportagem vai se
permitir, ao longo do século XIX, evoluir para um desenvolvimento textual,
atingindo o que ficará conhecido como a grande-reportagem.
No Rio de Janeiro, a capital do Pais, havia um contexto mais favorável ao
jornalismo, no alvorecer do século XX. É o que descreve Medina, realçando a
demanda por informação:
10
As transformações vividas pelo Rio de Janeiro na virada do
século e, a seguir, o impacto de uma Guerra Mundial e a
invenção do rádio vieram abrir espaço para um novo
conteúdo jornalístico atual, universal e com significação
imediatamente referida a uma massa de informação. A
pressa em ficar sabendo o que ocorre em todo o país, no
10
No Rio de Janeiro, centro de decisões e de movimento econômico, observam-se, segundo a autora,
duas tendências que contribuem para transformar a atividade jornalística em exploração comercial e
industrial. De um lado, jornais como a Gazeta de Notícias e o Jornal do Comércio, tradicionais folhas
que vêm do Império, modernizam-se, adquirem equipamentos e passam a faturar com a venda do
espaço publicitário. De outro, surgem novos órgãos, como o Jornal do Brasil, e em seguida, O
Correio da Manhã, totalmente estruturados como empresa de negócio que visa o lucro (Medina,
1988:47).
66
mundo, começa a tomar corpo e cria um universo de leitores
até então inexistente (1988:52-53).
A notícia, ainda segundo a autora, empurra a opinião de grande parte das
páginas de jornais. A necessidade de a cada dia “conseguir um mar de novidades”,
via telegrama, vai montar “a manifestação-núcleo do jornal-notícia”. Nas salas de
redação, outra mudança fundamental: “do escritor, figura principal de produção
individualizada, passa-se à criação anônima pelo corpo de repórteres” (1988:53).
Lima, baseando-se em análise de Nelson Werneck, entende que a confluência
entre jornalismo e literatura, que acontece no Brasil no final do culo XIX,
repousava no terreno comum da boemia literária. “Mas esta sofre reveses a partir do
instante em que o Rio de Janeiro, Capital Federal, moderniza-se na virada para 1900,
com as obras urbanísticas de Pereira Passos” (2004:177).
Segundo o historiador, a obra de Pereira Passos não tem importância para
explicar o desaparecimento da boemia, mas a generalização de relações capitalistas
com as quais esta era incompatível; é essa mesma causa que começa a exigir
alterações na imprensa. Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas
acentuam-se sempre: a tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo
colunismo, e pouco a pouco, pela reportagem...” (Werneck apud Lima, 2004:177).
1.2 Euclides da Cunha e João do Rio
Nessa época, a narrativa da reportagem ensaia os primeiros passos de sua
independência da literatura. Na sua busca por um caminho próprio, ainda se reveste
de certos tratamentos da criação literária. Embora para alguns autores Os Sertões, de
Euclides da Cunha – obra escrita a partir de sua experiência como correspondente do
jornal O Estado de S. Paulo na cobertura da Guerra de Canudos –, seja mais que
uma ótima reportagem é um trabalho literário profundo, na visão dos que assim
pensam –, o escritor simboliza o profissional, na visão de Lima, “que fica no meio-
termo curioso da ficção e da realidade para construir um relato de profundidade”
(2004:212). Diz ele:
67
Vale-se de um acontecimento ainda do século anterior,
11
mas trabalha com afinco e com tal qualidade que não se
pode deixar de reconhecer, em seu texto, o prenúncio do
potencial futuro reservado à reportagem pura em forma de
livro (2004:212).
Apoiando-se na tese de Carlos Marcos Avighi, apresentada à ECA-USP,
Lima entende que o trabalho de Euclides da Cunha já registra a “impermeabilidade”,
mas o saldo final pende mais em favor da literatura do que do jornalismo. Assim, Os
Sertões, ainda na visão de Lima, seria fruto do trabalho do repórter competente,
mesmo que muitas de suas páginas tivessem sido redigidas como matéria destinada à
imprensa, e depois decantadas do jornal para o trabalho mais de fôlego. Para o
autor, o enviado de O Estado vai cobrir o conflito de Canudos “levando na bagagem
uma qualidade que o diferencia essencialmente dos demais correspondentes: a
habilidade para situar um evento no contexto que o cerca” (2004: 213).
Com visão apurada do que acontece no mundo na época de Canudos,
Euclides da Cunha buscava um conhecimento paralelo sobre os eventos, o que
equivaleria a um jornalismo interpretativo de qualidade. Lima acrescenta que o
trabalho se dintingue na realidade brasileira pela capacidade de buscar as raízes das
forças desencadeadoras de Canudos. Ele faz a imersão nessa realidade, mas, como
diz Lima, “não mede esforços para transformar seus próprios instrumentos de
entendimento do real e rejeitá-los, se a constatação de campo provar-se incompatível
com o arcabouço teórico” (2004:215).
O escritor, que tornaria o Brasil mais conhecido dos brasileiros por meio de
seus relatos sobre Canudos, também fora convidado a participar de outra importante
missão militar e geográfica, como lembra Felipe Pena. Foi nomeado chefe da
comissão brasileira responsável pela delimitação das fronteiras entre o território
brasileiro e o peruano. Afirma o autor: “Essa experiência também não poderia passar
impune ao crivo do jornalista e acabou por render, três anos mais tarde, uma série de
artigos intitulada ‘Peru versus Bolívia’” (2006:108).
11
O século anterior ao qual se refere Lima é o XIX, e não o XX, como poderia ser entendido, que
Páginas Ampliadas foi editado em 2004, no século XXI.
68
Se Euclides da Cunha trouxe uma visão complexa sobre o panorama
brasileiro, João do Rio, seu contemporâneo, também pode ser visto como um
jornalista sensível às mudanças de seu tempo, tendo escrito crônicas e reportagens
sobre o Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX com certa imersão no real.
Ele retratou a nova maneira de vida, o automóvel, o cinema, em livro e reportagem.
Como cronista, se situa em uma cidade em remodelação. Medina entende que João
do Rio apresenta as qualidades para que essa categoria pudesse despontar no
contexto do jornalismo de 1900:
Observação direta e palpitante. Repórter que vai à rua e
constrói sobre o momento a história dos fatos presentes. Da
união destes dois conceitos nasce a definição moderna de
jornalismo. E João do Rio, se não é original na história da
imprensa, pelo menos no Brasil inicia esse processo
(1988:58).
12
Para Medina, se João do Rio pode ser enquadrado como conseqüência da
transição do momento literário e jornalístico, pelo menos na segunda transição ele
deu passos adiante, não foi meramente passivo. “O primeiro deles: não foi apenas
empregado como repórter, tornou-se realmente repórter.” E conclui: “Parece
incrível, para quem examina o problema da década de 70, que João do Rio
desenvolveu uma característica primária do jornalismo moderno buscar
informações na rua” (1988:57). Escritor, jornalista, empresário, João do Rio vive as
impressões do momento provisório. Outras razões justificam ser ele o precursor da
narrativa jornalística no Brasil, ainda nas palavras de Medina:
Faro, traduzido em linguagem técnica do jornalismo
moderno, é a capacidade de antecipar informações pelo
convívio com os fatos em movimento no presente histórico;
e a fidelidade do repórter pode ser traduzida como
observação da realidade e captação de dados objetivos,
exteriores ao observador. As reportagens de João do Rio
demonstram, ainda que de forma incipiente, essas
12
João Paulo Alberto Coelho Barreto (pseudônimo João do Rio) propõe uma nova categoria
profissional e, segundo a autora, levanta a questão até hoje controvertida de saber onde termina o
jornalismo e começa a literatura. Embora muitos críticos o vejam como um literato apressado,
considera-o um cronista de seu tempo, cuja visão transforma a rotina do jornal (Medina, 1988:54).
69
capacidades, assumidas numa época em que ser jornalista
era ter habilidade verbal e falar sobre não importa o que,
movido pela inspiração do momento... (1988:59).
Analisando também a obra de Paulo Barreto (o escritor) foi autor de
Religiões do Rio, Alma Encantadora das Ruas, Vida Vertiginosa, Cinematógrafo e
Os dias Passam , a autora afirma que, no meio de certos artificialismos estilísticos
e imperfeições cnicas, ela oferece o que mais caracteriza o jornalismo moderno
informações. O escritor e o repórter, segundo Medina, representam uma tendência
de humanização, explorada tempos depois pelo jornalismo da indústria cultural; a
descrição de costumes e de situações sociais “inauguram a reportagem de contexto;
de passagem, alguns traços retrospectivos do fato narrado levariam, mais tarde, à
reportagem de reconstituição histórica” (1988:59) .
São características da reportagem de João do Rio, na análise de Medina
(1988:60):
Quanto ao universo da informação jornalística:
a) A observação da realidade.
b) A coleta de informações, por meio da entrevista a fontes
específicas; a fontes anônimas (reportagens/crônicas de
tipos e situações), ou a fontes imprecisamente identificadas
(reportagens como “Religiões do Rio”).
c) A ampliação da informação nuclear em um certo
aprofundamento de contexto, de humanização e de
reconstituição histórica.
Quanto ao tratamento estilístico:
a) Descrição de ambientes e fatos e o repórter como
narrador.
b) O diálogo repórter/fonte.
c) O ritmo narrativo da reportagem.
d) A frase e os recursos literários.
O próprio Nelson Werneck Sodré, em citação de Medina, afirma, sobre o
perfil de Paulo Barreto, que, como jornalista, sua contribuição não foi apenas na
área da linguagem, “mas no uso de métodos que, não sendo novos, foram apurados,
praticados com inteligência, a entrevista e o inquérito e a reportagem em particular”
(1988: 59).
70
1.3 Testemunhos do submundo
Dentro da vertente do jornalismo que se apropria de recursos e apelos
ficcionais para expressar as transformações que vão sendo registradas no início do
século XX, também foi importante a produção de escritores-jornalistas. Segundo
Bulhões, Benjamin Costallat, por exemplo, se destaca nesse cenário, num momento
amplamente favorável à reportagem como forma narrativa dinâmica, que chega a
apelar para a dramatização dos acontecimentos.
Para Bulhões, Costallat foi um dos autores “mais populares em todos os
tempos de nossa história literária. Hoje, seu nome está praticamente esquecido”
(2007:113). Sendo um dos mais lidos escritores no Brasil e na América Latina,
tornou-se um verdadeiro fabricador de best-sellers”. Em 1924, então no auge da
fama, assinou um contrato com o Jornal do Brasil, para lançar uma série de
reportagens, com o título “Mistérios do Rio”. Nela, retrata a aventura do submundo
carioca, mas com uma forma de narrar cheia de suspense, reportando, porém, o real.
Ele penetra os bastidores do crime, do tráfico de entorpecentes, com profundo
interesse na faceta noturna e obscura da cidade. Fala de “vícios”, invade o cabaré
com a curiosidade do repórter, desvastando o silêncio e as luzes diabólicas. Ao
mesmo tempo que revela tons de dramaticidade, não esconde marcas da literatura.
13
Afirma Bulhões:
Os contos-reportagem de Mistérios do Rio se inscrevem nas
tonalidades do sórdido, do degradante, do atemorizante e
do trágico. Ou, como se diria hoje, com marcas
inconfundíveis de sensacionalismo. E seu sentido de
aventura se cruza com o de mistério. Aventura a ser vivida
pelo repórter em sua ação jornalística, mistério desprendido
de temas e situações das várias reportagens (2007:117).
13
Embora o título seja adaptado da matriz do folhetim francês “Os Mistérios de Paris”, de Eugène
Sue, e ambas as narrativas mergulhem no submundo de uma cidade, o próprio Costallat trata de
esclarecer a seu público que não pretende narrar os acontecimentos como no folhetim. Seu objetivo
não era propiciar aos leitores do gênero popular um folhetim interminável, em que os capítulos vão
se sucedendo com aquele clássico “continua no próximo número”. Falar de crimes, de facadas e de
bandidos que fogem por tudo que é janela, telhados, canos d’água e buracos de fechadura não atende,
segundo ele, o gosto do leitor. Está convencido de que o que o público leitor exige é a verdade, seja
nos ambientes, na ação e nos personagens (Bulhões, 2007:113-115).
71
Costallat contempla o público de sua época com um trabalho jornalístico de
variadas vertentes: melodrama, folhetim, prosa naturalista, romance de costumes, o
fait-divers. Continua Bulhões: “Assim, talvez sem perceber, Costallat situa as
reportagens que estará publicando no âmbio da dinâmica do consumo, identificando
o gosto do público como item decisivo a ser levado em conta”. Outra obra
importante do escritor é o romance Mademoiselle Cinema (1924), que não tarda a
alcançar estardalhaço por ser considerada obra obscena. Conforme Bulhões, teria
vendido cerca de 25 mil exemplares em dez meses cifra, segundo o autor, bastante
elevada para seu contexto. Para Bulhões, é importante destacar nessa ficção certa
feição jornalística. “Trata-se de uma espécie de romance-crônica do mundanismo
chic da década de 1920” (2007:115). O livro (que narra as aventuras amorosas de
Rosalina, sensual protagonista do título) apresenta, nas palavras de Bulhões, “um
painel do alto mundanismo social com uma quantidade abundante de referências a
festas, encontros em teatros, boulevards; despontam cenários noturnos de casa de
diversão e cenas em ambientes de suntuosa prostituição” (2007:115). O centro desse
elegante e sórdido ambiente é Paris. Para o autor, ao mesmo tempo em que a obra
oferece sinais de crítica ao comportamento dessa sociedade, apresenta ao leitor um
quadro de requinte e de sedução.
14
Ainda segundo Bulhões, o próprio apelido atribuído à personagem e presente
no título da obra – cinema – é uma referência, no contexto narrativo da obra, à ilusão
fascinadora, símbolo de diversão despretensiosa, sinal dos tempos levianos e
devassos do século XX, que a sétima arte consegue demonstrar, tudo com relação à
protagonista. É dessa concepção de cinema como simulacro, algo falso, que o autor
pretende se afastar na realização das reportagens para o diário carioca. Como
lembra Bulhões, em Mistérios do Rio”, ele quer dar ao público “a verdade”. Mas, a
leitura da série de reportagens irá desmentir a afirmação de seu autor:
14
‘“No bairro da cocaína’ (uma das reportagens da série) o repórter-narrador se passa por um
cocainômano e sai pela noite à procura do como um artifício da busca pela informação. Aqui, o
que se pode chamar de jornalismo investigativo se faz pela revelação dos mecanismos de operação da
rede de distribuição de cocaína pela cidade do Rio. em ‘O túnel do pavor’, os contornos da
reportagem se cruzam com os do conto em uma atmosfera de suspense” (Bulhões, 2007:118).
72
Pois a verdade que se expõe na série para o Jornal do
Brasil é tão espetacular e, algumas vezes, carregadas do
sentido de aventura na exploração do submundo carioca
que pode mesmo rivalizar com as narrativas de “capa e
espada”, sejam as do próprio foletim ou das das matinês
cinematográficas, uma vez que se apresenta como o manejo
de recursos da própria ficção (2007:116).
Ainda assim, segundo Bulhões, “Mistérios do Rio” oferece possibilidades
para se identificar a reportagem de feição narrativa em um período em que o
jornalismo “afirmava – ou procurava afirmar traços que atendessem à função
informativa sem deixar de apelar para componentes de captação do interesse de um
público em expansão” (2007:116).
Outro jornalista-escritor do início do século XX, que a exemplo de Costallat
ficou esquecido, na visão de Bulhões, foi Sylvio Floreal pseudônimo do jornalista
Domingos Alexandre. Um de seus textos mais importantes, publicado em 1925, foi
Ronda da meia-noite, reportagens sobre a cidade de São Paulo. Diz Bulhões:
“Floreal fornece aos leitores atuais a oportunidade de acesso a um registro pouco
comum sobre o Paulo, exatamente porque evita a dicção enaltecedora sobre a
cidade, a grandiloqüência ufanista” (2007:120). Pondera o autor:
Longe disso, os textos de Ronda da meia-noite acentuam
mazelas de nossa organização social e aspectos degradados
da experiência humana. Trata-se de um curiosíssimo
textemunho do cotidiano de bêbados, mendigos, loucos,
detentos e outros “desqualificados” sociais, o que
desfigura, em linhas densas, qualquer versão oficial de uma
cidade acolhedora e próspera. Floreal mergulha no
submundo da São Paulo dos anos 20. Desce aos infernos
(2007:120).
A contribuição de Floreal ao jornalismo deriva de sua capacidade de retratar
lugares blicos: praças, ruas, bares, feiras, presídios, hospitais, hospícios, daí ser
Ronda da meia-noite, como a ela se refere Bulhões, “um precioso documento a
serviço da curiosidade de historiadores e cientistas sociais” (2007:120). E
73
acrescenta: algo de zelo sociológico ou antropológico em Floreal, mas esse zelo
se faz com o modo próprio da experiência jornalística” (2007:120).
Contrariando o legado cientificista, da racionalidade, que se impõe ao século
XX, tendência que se estende ao jornalismo por meio da linguagem técnica e
objetiva, os textos de Floreal estão na encruzilhada de dois gêneros jornalísticos: a
crônica e a reportagem. Ronda da meia-noite, continua o autor, é composta de sete
trípticos, ou seja, sete blocos de três textos, além de apresentação.
15
Outro elemento
importante a destacar no texto de Floreal é que ele, a exemplo do que fariam mais
tarde os escritores de não-ficção, se torna personagem de si mesmo ao narrar uma
história real. “Numa noite, sutilmente tíbia, entrava eu num restaurante, quando ouvi
uma voz, que me chamava pelo nome”, diz um trecho de uma de suas reportagens,
transcrito por Bulhões (2007:122).
Entende Bulhões que a produção de Floreal se mostra completamente
comprometida com elementos de ficção literária. Isso porque, se não bastasse a
configuração da presença de um repórter que assume a narração na primeira pessoa
e é personagem-protagonista de suas ações, as reportagens “dispõem de certo
detalhamento espacial que confere plasticidade à cena e à apresentação dos
personagens, ou tipos, que recebem o tratamento digno de um ser de ficção”
(2007:123). Floreal narra sua própria ação, como em “Os pariás: uma noite no
albergue noturno” reportagem de O Tríptico dos vícios –, que, no dizer de
Bulhões, trata-se de “franca incursão pelo universo do bas-fond, em que o repórter
deixa clara a sua curiosidade pelo universo da degradação e da infâmia” (2007:122):
Antes de abandonar o albergue noturno, quis ver como
aquela coorte dormia. E acompanhado do inspetor, subi ao
andar superior onde se alojam os que não aparecem
embriagados e os que aparecem mais ou menos limpos.
Num vasto salão, todo imerso em penumbra, de camas
dispostas em fileiras como na enfermaria de um hospital,
resfolegavam cansadamente cinqüenta e tantos albergados.
Dormiam pesadamente, alguns o sono dos justos, outros o
15
“Quanto aos trípticos, são: dos vícios; da miséria; das amarguras; dos esplendores;dos costumes
pitorescos; dos pecados; e o sétimo e último, ‘Tríptico tragicômico’. Como se pode notar, a matéria
que se anuncia nos tulos abarca sobretudo ambientes e situações degradadas, entremeadas por um
momento de ‘esplendor’” (Bulhões, 2007:121).
74
sono dos desocupados, e o resto o sono nirvânico dos
vencidos.
Desci vagarosamente a pequena escada; o ruído, porém,
acordou alguém, e um gemido louco, estertorante,
repercutiu tragicamente no salão, dominando todos os
roncos! (Floreal apud Bulhões, 2007:122).
Analisando a contribuição desses escritores-jornalistas, Bulhões entende que
serve de reflexão para o processo midiático da contemporaneidade, pois nem a
televisão nem o jornal deixaram de incluir na hegemonia do padrão discursivo a
fabulação ficcional, o apelo à dramatização e ao sensacionalismo, que reforçam a
estratégia de obter lucro, em contrapartida à notícia despojada, a seco”. Porém, essa
interpretação pode suscitar diferentes visões, que o jornalismo informativo, sem
apelo ao emocional e à sensibilidade do repórter na relação com o entrevistado
acabaria descambando para o reducionismo e a simplificação das abordagens, tão
comum em nossos dias.
2. Raízes do new journalism
Nos anos 1960, as narrativas humanizadas despontam nas redações como
reação a um estilo marcado pela simplificação, a mesmice, o lugar-comum das
coberturas. Denominado new journalism, essa concepção de reportar o real entra
pelos caminhos da literatura, para dizer o que não se ousava na época. O momento
culmina com uma crise de valores na sociedade norte-americana, que ignora o clima
de efervescência existente. Na expressão de Bulhões, essa cnica chega “fazendo
barulho, quebrando vidraças nos gabinetes da imprensa e da própria literatura, e
lançando um legado cujas marcas ainda hoje se reconhecem” (2007: 145).
Tal vertente traz em suas crônicas e relatos um olhar diferenciado sobre o
que acontecia nesse país, e que encontra na Guerra do Vietnã, o movimento hippie e
a contracultura como um todo alguns de seus grandes focos de tensionamento social.
É visível a consonância do new journalism com um contexto libertário, onde
despontam, na música, os Beatles e os Rolling Stones; canções entoadas por Bob
75
Dylan e Jimmy Hendrix; na filosofia, Herbert Marcuse, para não falar, tempo
depois, do movimento estudantil de 1968.
Não é por acaso que essa vertente surja nos Estados Unidos, berço do
jornalismo de eficiência, da prática que impõe mordaças pela estrutura pré-
concebida, a da pirâmide invertida. No dizer de Bulhões, é sintomático que o new
journalism tenha surgido como “atitude de reação” (2007:146). Afinal, em nenhum
país do mundo, continua ele, o jornalismo se mostra tão semelhante a uma linha de
montagem. Mas outras razões havia para que o movimento eclodisse nas redações
dos jornais norte-americanos, logo se projetando também para a literatura.
Nessa época, o paradoxo do romance. Lima explica que, dos anos 1940
até o início da década de 1960, esse gênero de ficção reina como orgulho da criação
literária. “O romance americano seria a obra literária por excelência e o romancista
seria o escritor por excelência.” Além do prestígio com que contam os romancistas,
“prolifera outro mito: o do Grande Sonho americano transformado em bonança
literária” (2004:193). Em busca de fama e fortuna, muitos haviam surgido do nada.
Entre os aspirantes a entrar para o estrelato, havia gente de variadas categorias
profissionais, sobretudo ligada à indústria cultural e à comunidade acadêmica da
literatura (2004:193). que começava o paradoxo: a sociedade norte-americana
estava em transformação e nem o romance nem o jornalismo estavam preparados
para captar esses sinais de mudança.
De acordo com Lima, o new journalism foi um momento inusitado: “A
chance que o jornalismo poderia ter para se igualar, em qualidade narrativa, à
literatura, seria aperfeiçoando meios sem porém jamais perder sua especificidade”
(2004:191). Para isso, essa corrente teve que “sofisticar seu instrumental de
expressão, de um lado, elevar seu potencial de captação do real, de outro” (2004:
192).
Assim como, no século XIX, o realismo social havia se voltado para o
registro do que acontece na vida dos anônimos, o new journalism utiliza uma
narrativa semelhante, que busca ouvir vozes que destoam do sistema, mergulha na
intimidade dos personagens. Essa relação leva a se inferir, segundo vários autores,
que os jornalistas norte-americanos buscaram inspiração nessa fonte.
76
Um trecho de Retratos Londrinos, uma coletânea de crônicas escritas para
jornal, de Charles Dickens (2003:71), parece contribuir para essa possibilidade. Ele
escreve:
O último bêbado, que deveria ter achado o caminho de
casa antes do dia raiar, ainda cambaleia pesadamente,
ecoando com sua voz roufenha, os sons da bebedeira da
noite anterior. O último vadio sem-teto, que a pobreza e a
polícia deixaram pelas ruas, tenta se proteger do vento em
alguma esquina, encolhendo os braços e as pernas, para
sonhar com uma boa comida e uma cama quente. Os
bêbados, os esbanjadores e os desprezados desaparecem. A
parcela mais sóbria e ordeira da população ainda o
acordou para os afazeres diários e a placidez da morte paira
sobre as ruas.
Porém, independente do modelo que assume a iniciativa dos repórteres que o
praticam, pode-se dizer que reportagens como Hiroshima, de John Hersey ela
ocupa um número inteiro da The New Yorker em 1946, e, transcrita em livro, é
considerada ainda hoje a melhor reportagem do século podem ter antecipado o
movimento que eclodiria quase duas décadas depois. Nela, o jornalista descreve a
tragédia da bomba atômica sob o ponto de vista de seis sobreviventes, utilizando
recursos literários para tecer um relato jornalístico que explora as emoções,
apresentando diálogos interiores.
Por quem os sinos drobram, de Ernest Hemingway, um romance que mescla
questões existenciais com o drama sangrento da revolução espanhola, escrito no
final dos anos 1930, é um prenúncio, em alguma medida, do livro-reportagem que
despontaria alguns anos depois. Dentro dessa vertente, O segredo de Joe Gould, de
Joseph Mitchell, que fala de forma épica sobre um mendigo de rua, é mais um
documento importante que reforça essa ligação entre duas gerações de escritores.
Nos Estados Unidos da contracultura, repórteres mergulham na realidade de
seus personagens, passando a viver seu cotidiano, seus medos e frustrações, para
poder revelar ao leitor o que muitos não sabiam. Histórias de prostitutas, soldados
que combatem no Vietnã e retornam mutilados, assassinos, mendigos ganham voz
nas páginas de jornais.
77
Essa ousadia certamente teve um preço. Os jornalistas que atuam nessa
verve são vistos como não tendo nenhuma preocupação com a moral e as grandes
verdades do homem, presentes na literatura clássica a partir da segunda metade do
século XX. Para os críticos, o new journalism busca apenas entretenimento e
excitação. A comunidade acadêmica duvidava, inclusive, da veracidade dos
diálogos e do fluxo de consciência levado ao extremo como captação do real.
Porém, tal julgamento poderia ser simplista diante do que descreve Tom Wolfe, em
Radical Chique e o Novo Jornalismo; Talese, em O reino e o poder; Mailer, sobre
as convenções políticas e a viagem à Lua, todas obras consagradas como crítica
social. Gail Sheehy retrata a luta do Partido do Black Pantheres, cujos militantes
lutavam pela liberação negra, contra a supremacia de brancos e judeus, ainda que
sem uma posição ideológica muito clara na política internacional. Nos primeiros
anos os phantheres eram visto como “marginais”.
Embora admitindo a influência do realismo social, Wolfe argumenta que
nem todos os escritores do passado faziam reportagem, pois não passavam de
autores que escreviam não-ficção mas de maneira incompleta, como autobiografias.
Ele cita como escritores mais próximos a esse gênero além do próprio Dickens
Balzac, gol, ou Henry Mayhew, este último “notável sobretudo pelo fato de
Mayhew ter procurado encontrar pessoas das classes mais baixas do East End de
Londres e pela habilidade com que captou sua linguagem...” (2004:74).
Para Lima, o novo estilo traz para a ação a mesma sensualidade, de
mergulho completo, corpo e mente, na realidade, a exemplo do que acontecia em
outras formas de expressão da contracultura. “Fosse a experiência de Leary, a rotina
do policial que patrulha a Broadway, ou o dia-a-dia dos faxineiros das pontes de
Nova York, o new journalism focalizava-os com calor, vivamente” (2004:
195) .
Para muitos autores, o estilo que mesclava elementos de ficção com a
realidade por meio da técnica jornalística constituía uma ousadia que aproximava,
em diferentes graus, o jornalismo da literatura, mas sem perder a especificidade.
Com recursos técnicos como o ponto de vista autobiográfico em terceira pessoa
78
(monólogos interiores dos personagens e fluxos de consciência)
16
e registro fiel dos
traços do cotidiano, o novo estilo alcançava um status literário próprio. O novo
jornalismo, ainda segundo Lima, foi um gênero generosamente simbólico, atingiu
um nível até então só verificado na melhor literatura de ficção.
Entre outros elementos que o diferenciavam do jornalismo tradicional, a
observação participante, sem dúvida, foi uma das maiores demonstrações de ousadia
de seus autores. Em The New journalism (1973), Wolfe conta que se tratava de uma
safra de jornalistas caras-de-pau, que se metiam em qualquer recinto, até nas
sociedades fechadas, para agarrar-se aos seus personagens ou ao modo de vida
deles. No livro, apresenta o caso do jornalista John Sack, que convenceu o Exército
a deixá-lo integrar uma companhia de infantaria (1ª Brigada de Infantaria Avançada)
como repórter e passar por todo o treinamento para, depois, ir para o Vietnã; de
George Plimpton, que foi treinar, jogar e viver com jogadores de futebol americano,
os Detroit Lions.
Dentro da vertente do “jornalismo Gonzo” versão mais radical do new
jounalism , criado pelo polêmico repórter Hunter Thompson, da revista Rolling
Stone, que se suicidou em fevereiro de 2005, conta-se que ele levou às últimas
conseqüências o seu estilo de reportagem, caracterizado pelo envolvimento pessoal
na ação que estava descrevendo.
17
Ele era tão radical, segundo seus pares, que
16
Conforme Tom Wolfe (2005:54), os jornalistas vinham usando freqüentemente o ponto de vista em
terceira pessoa “Eu estava lá” assim como os autobiógrafos, os memorialistas, os ficcionistas
faziam. Mas isso era irritante para o leitor, além de se tornar insignificante para a matéria. Nessa
técnica, o narrador apresenta cada cena ao leitor através dos olhos de um personagem particular,
dando a sensação de estar dentro da mente do personagem e experimentando a realidade emocional
da cena tal qual ele a experimenta. Porém, pondera o autor, como poderia, um jornalista, escrevendo
não-ficção, penetrar acuradamente a mente de outras pessoas? A estratégia que ele sugere é
entrevistar o personagem junto com seus sentimentos e emoções, junto com o resto.
17
Criador e principal representante dessa modalidade de jornalismo literário, Thompson propôs a
transposição da barreira essencial que separa o jornalismo da ficção: o compromisso com a verdade.
Também chamado jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário, o gênero
inventado por Thompson tem sua força baseada na desobediência de padrões, em desrespeito de
normas estabelecidas, além da insistência em quatro grandes temas: sexo, drogas, esporte e política.
Como explica Felipe Pena (2007:57), o termo “gonzo” surgiu de uma invenção de Thompson. “Em
1971, ele fazia a cobertura da Mint 400, uma corrida de motos no deserto de Nevada, para a revista
Sports Illustrated. Como vivia entrando em roubadas, adotou um pesudônimo, Raoul Duke, e
chamou um advogado para acompanhá-lo na viagem, apelidado por ele de Doutor Gonzo. que o
sujeito era ainda mais maluco que o repórter e também ficou famoso. O artigo acabou não saindo
pela revista esportiva e foi comprado pela Rolling Stone, que o publicou em duas edições. O sucesso
foi tão grande que saiu em livro, sob o título Fear and Loathing in Las Vegas’’ . No Brasil, o livro
foi lançado em 1984 pela editora Anima como Las Vegas na Cabeça.
79
achava que era preciso provocar o entrevistado para que pudesse dar boas matérias.
Com esse objetivo, ele integrou o grupo de motoqueiros Anjos do Inferno por 18
meses, e, como conta Wolfe, eles se encarregaram de escrever o último capítulo da
reportagem para Thompson, ao baterem nele e deixarem-no meio morto, cuspindo
sangue. A matéria ficou excepcional! Thompson foi hospitalizado.
2.1 Livro reportagem
Ao contrário, porém, do que se poderia pensar, o new journalism foi um
gênero que surgiu primeiramente nos jornais Herald Tribune, Daily News, The
New York Times amadurecendo em revistas independentes The New Yorker e
Esquire e depois passou a alcançar o estrelato por meio do livro-reportagem.
Em 1966, Truman Capote lança A Sangue Frio, denominando seu trabalho
“romance de não-ficção”. O jornalista viveu anos entrevistando os assassinos de
uma família rural norte-americana, no Kansas, antes de escrever o relato que
alavancou sua carreira, sendo considerado um marco para a nova vertente
jornalística.
Se a década de 1940 tinha produzido verdadeiras obras de arte no nero
não-ficção como Hiroshima, de John Hersey –, o romance ficcional, então
considerado o orgulho da criação literária norte-americana desde o pós-guerra,
parece estar em decadência. Lima explica que havia uma razão para isso. Nos
primeiros anos da década de 1960 vivia-se “a grande efervescência das
transformações sociais, comportamentais e culturais da contracultura e correntes
paralelas...” (2004:193). O autor continua:
A cidade de Nova York e em particular a Califórnia
transformavam-se nos laboratórios coletivos das
experiências extremadas de ruptura com tudo o que
representasse o stablishment, o status quo de valores e
modos de vida. Era, em linguagem sistêmica, o melhor
exemplo de uma força de interesses ocasionais
despontando no sistema social americano em confrontação
direta com os valores duradouros que tinham tornado os
80
Estados Unidos em uma grande nação, um país altamente
industrializado, uma grande potência (2004:193-194).
Enquanto as gerações passadas tinham tido o orgulho de lutar contra o
nazismo em campos da Europa, ou no embate do Pacífico, jovens rasgavam o
certificado de convocação para Guerra do Vietnã, se negando a lutar, em nome da
paz. O psicodelismo e o LSD eram experiências de alienação, de busca de sonho ou
fuga da realidade. Os roqueiros drogados se tornaram protagonistas, no cinema, de
filmes como Sem destino, estrelado por Peter Fonda, Dennis Hoper e Jack
Nicholson no melhor estilo do anti-herói.
A corrente que se convencionou chamar novo jornalismo também é
lembrada por um certo exagero estilístico, principalmente quanto aos extremismos
de linguagem, com predomínio de diálogos, em alguns casos com uma estrutura
parecida à de um conto, como no trecho da matéria publicada pela revista Esquire
“Joe Louis: Rei na meia-idade”, em 1962, de Gay Talese, reproduzida por Wolfe,
que descreve a vida privada de um herói dos esportes que estava ficando velho e
triste. Em vez do lead tradicional, a matéria abre com um diálogo entre o pugilista e
sua mulher:
“Oi, meu bem!”, Joe Louis disse à sua mulher, ao vê-la
esperando por ele no aeroporto de Los Angeles.
Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos
pés para beijá-lo quando, de repente, parou.
“Joe”, disse ela, “cadê sua gravata?”
“Ah, benzinho”, ele disse, dando de ombros. “Fiquei
acordado a noite inteira em Nova York e não tive tempo
de...”
A noite inteira!”, ela cortou. “Quando está aqui, você
quer saber de dormir, dormir e dormir.”
“Benzinho”, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, “eu
estou velho”.
“É”, concordou ela, “mas quando vai para Nova York,
você tenta ficar moço de novo” (2004: 20) .
Conforme alguns críticos, o movimento se organizou muito mais em
função do instinto do que em torno de uma teoria. Mesmo assim, Wolfe deixou
registrados alguns recursos do novo jornalismo, segundo Lima (2004:197-203):
81
a) Reconstruir a história cena a cena.
b) Registrar diálogos completos
c) Apresentar as cenas pelos pontos de vista de diferentes
personagens, além de seus bitos, roupas, gestos e
representações simbólicas.
d) Registrar os fluxos de consciência
2.2 Revista Realidade
A corrente americana do new journalism teve uma influência marcante no
Brasil, então uma sociedade com novos padrões comportamentais. Nos anos 1960,
surgiam dois projetos editoriais que lograram um grande êxito no mercado
nacional, mas com proposta inovadora. Um deles, a revista Realidade, é a primeira
experiência da Editora Abril na área de revistas de informação geral, que,
justamente por causa do seu diferencial, conquistou um grande mercado. A revista
começou a circular com 251,2 mil exemplares na edição, em abril de 1966, e,
para surpresa da empresa, esgotada em apenas três dias. O número 2 saltou para
uma tiragem de 281,5 exemplares, e também tem tiragem esgotada. O mero 3
atinge a marca de 354 mil exemplares, façança considerada quase impossível. O
quarto ultrapassa os 404 mil exemplares; 470 mil, no quinto; 485,7 mil
exemplares já na edição, de outubro de 1966; 485,7 mil nas três edições
seguintes, batendo o recorde com 505.300 exemplares em sua 11ª edição, publicada
em fevereiro de 1967. São números trazidos por Lima (2004:223).
Para esse autor, em Páginas Ampliadas, a fórmula de Realidade é ambiciosa.
Com periodicidade mensal, traça um novo mapa da sociedade contemporânea, mas
sem preconceito na elaboração da pauta, incluindo desde questões políticas como a
atuação dos deputados e senadores até temas sociais, a arte de vanguarda, os perfis
humanos. Entra em cena num momento de grandes mudanças no mercado de
revistas. Cruzeiro e Manchete, que até então dominavam, enfrentam problemas. O
Brasil passa por profundas mudanças. A classe média urbana em formação, a
recente construção da Capital Federal, a opção da juventude por expressões
artísticas como a bossa nova, o tropicalismo, o cinema novo, no plano interno.
82
fora, o clima de efervescência com a Guerra Fria, a corrida espacial, a rebelião
hippie, as novas propostas de liberação sexual.
Realidade quer saber como se fazem as coisas a telenovela, o jornal diário,
o preparo dos campeões de boxe. Todos os segmentos têm espaço em suas páginas,
do jogador de sinuca ao cardiologista e o cientista. Entra no terreno da moral em
mutação. Entrevista personalidades no exterior, cobre conflitos sangrentos na
América do Norte e no campo de batalha.
José Hamílton Ribeiro foi enviado ao Vietnã, e sua experiência pode ser
considerada a radiografia do modelo de jornalismo praticado pela revista. Na edição
de maio de 1968, num texto de 12 ginas, o repórter narra a aventura e o drama
dos dias que viveu no meio da guerra. Mas a principal foto da capa é do próprio José
Hamilton no momento em que foi socorrido após a explosão de uma mina, que
causou a amputação de sua perna esquerda.
Como lembra Sérgio Vilas Boas,
18
os repórteres do período áureo (1966-
1968) de Realidade eram encorajados a passar dias inteiros com a pessoa que
entrevistavam, semanas em alguns casos. Afirma ele: Era primordial estar no lugar
onde ocorriam cenas dramáticas para captar conversas, gestos, expressões faciais,
detalhes do ambiente etc.; revelar os bastidores da matéria tanto quanto as
impressões do repórter sobre o personagem”.
Uma das edições da revista retrata, por exemplo, o perfil psicológico de um
jovem viciado, durante o momento em que ele se injetava a droga, descrevendo não
o ambiente mas o estado emocional de todos os que presenciavam a cena: uma
fotógrafa, um policial, o casal que cedeu o espaço para a experiência e o próprio
repórter da matéria, Narciso Kalili.
Enquanto nas revistas atuais impera apenas um único estilo, dando a
impressão de um autor, o projeto Realidade apresenta qualidade textual desigual,
prevalecia o estilo próprio do repórter, e também sua maior ou menor habilidade
para lidar com o material de uma determinada reportagem. Como a revista é livre da
pressão da circulação em intervalo estreito, segue os caminhos que os jornalistas
18
Do artigo “A hegemonia da aparência nas revistas”. Disponível em Svilasbo[email protected].br.
Acesso em 12/05/2008
83
norte-americanos haviam aberto desde o início da década de 1960. O tempo de
captação livra o repórter da imposição do cronograma curto, permitindo uma
imersão no universo que cobre, confundindo-se com ele.
O “estilo Realidadeé o de ruptura com o padrão de revista da época. As
reportagens publicadas têm um toque do autor, mas não chegam a atingir o grau de
“experimentalismo ousado” como no new journalism, embora possa se afirmar que
encontrou sua expressão literária própria. Muitas vezes a matéria é narrada em
terceira pessoa. Em outras, em primeira pessoa, presente, participante. Enquanto
alguns preferem enfatizar o movimento, outros gostam de situar o cenário. Há
reportagens que adotam a estrutura do conto, fechando como tal. Realidade
apresenta riqueza ilustrativa, valoriza o ícone, não apenas o símbolo verbal. Estréia
ensaios fotográficos, flagra seus personagens nos momentos cruciais. Texto e foto
de forma concisa, complementar. Como afirma Lima, Realidade “não se prende ao
fato do dia-a-dia, propõe sair da ocorrência para a permanência” (2004:226). O
autor acrescenta:
Seus temas não são os fatos isolados imediatos, mas sim a
situação, o contexto em que esses fatos se dão. Poderíamos
dizer que sua concepção do presente é a de um tempo atual
dilatado em estendida presentificação. Desse modo, o
interesse não é noticiar que o preço dos legumes aumentou
semana passada e por quê, mas mostrar como se
movimenta a máquina de abastecimento da grande cidade
24 horas por dia, mês após mês, não é contar como o juiz
foi vaiado no Maracanã, lotado no clássico de domingo,
mas debulhar, num quadro contextual, as realidades
duradouras da atividade desse profissional (2004:226).
Em dez anos de existência, a revista conquistou oito prêmios Esso. Em 1968,
veio então o temido AI-5, e a partir daí, a sentença de morte de Realidade. Como a
publicação era então uma forte instituição política, sofreu rigorosa censura, sendo
que os assuntos polêmicos que costumava abordar em cada edição foram proibidos.
Com a decadência e a censura controlando as pautas e os textos, os jornalistas foram
se demitindo, até que toda a equipe se desmanchou.
84
Em janeiro de 1976, vai para as bancas “1976, Excepcional”, com uma
tiragem de apenas 120 mil exemplares. Dois meses depois a revista deixaria de
rodar. A Abril tinha se interessado mais pelo seu novo projeto, a revista Veja,
lançada em setembro de 1968.
2.3 Um jornal que contava histórias
Fotos de página inteira, textos com reportagens longas, às vezes divididas
por edições; matérias de perfis humanos, relatos impressionistas, que lembravam
muito as matérias de alguns jornais norte-americanos adeptos do new journalism.
Assim era o Jornal da Tarde, cuja primeira edição foi lançada em 4 de janeiro de
1966, direcionado principalmente ao público jovem. Seu projeto editorial quebrou
regras. A começar pelas aberturas das matérias, que não seguiam o modelo do
jornalismo convencional. Segundo dados que constam do estudo “A Fundação do
Jornal da Tarde – histórias de um jornal que sabia contar histórias”, nada era
obrigatório, a não ser escrever bem. Nele, Carlos Brickman – jornalista que integrou
as primeiras equipes do vespertino conta, em entrevista a Bruna Bondança e
Melissa Marin de Castro, autoras do estudo, por que o lide era desprezível na
redação do JT:
Essa idéia de lide começou na guerra da Secessão, nos EUA.
Na época, você tinha jornais panfletários e uma guerra
acontecendo. Era preciso mobilizar uma quantidade imensa
de repórteres no mundo inteiro para cobrir o conflito, o que
era caro demais. Criaram-se então as agências de notícias
que atendiam a diversos veículos. Nasceram os cinco w´s:
what? who? when? where? why?, que garantiam a
objetividade da notícia. Agora, a guerra faz mais de 140
anos. Não havia por que mantermos essa estrutura
(2006:33).
Em vista dessa liberdade de criação, não havia medida fixa para a abertura,
que ora era de cinco linhas, detalhada, ora apenas um linha, simples. Em vez de
longos trechos, a leitura oferecia frases curtas, na forma direta. Também se
85
dispensava a obrigatoriedade da “pirâmide invertida” hierarquizar as informações
e contar o mais importante logo no início, segundo a proposta adotada pelo jornal,
quebrava a suspense da reportagem.
Como no novo jornalismo, o JT procurava, principalmente na sua editoria
de “Local” ou “Cidades”, mostrar os problemas de São Paulo pelo ponto de vista de
pessoas anônimas: motoristas, transeuntes e comerciantes da cidade da garoa eram
constantemente entrevistados, num cenário em que a maioria dos veículos
privilegiava as fontes institucionais e oficiais na apuração dos fatos. Conforme as
autoras do estudo sobre a fundação do JT, o repórter “tinha liberdade para dar voz a
assassinos, taxistas, pedestres, mães de família e trabalhadores que podiam
apresentar sua versão dos fatos” (2006:33). E mais: não havia a obrigação de
colocar aspas no texto. O que se desejava era que o repórter observasse,
participasse e contasse para os leitores o que havia acontecido, mas sob sua ótica ou
daqueles com os quais conversava.
Ao contrário do Estadão, o mais novo produto do grupo não dava tanto
destaque aos acontecimentos internacionais. Uma das exceções era a Guerra do
Vietnã, notícia constante entre as manchetes. Em março de 1966, o vespertino
publicou uma reportagem de página inteira sob o título “Vietnã, guerra à moda da
casa”, mostrando que o vietcong tem truques que até Deus duvida. A matéria
apresentava, em lugar do texto longo, ilustrações de cada armadilha que vitimavam
os soldados americanos, de acordo com o estudo “A Fundação do Jornal da Tarde”
(2006:37).
Como exigência do JT, os redatores e repórteres tinham que ter bom texto.
Para que isso ocorresse, as discussões sobre os livros de referência, as conversas
sobre os textos, as críticas e os conselhos eram freqüentes. Entre os autores
recomendados estavam Agatha Christie, Gay Talese, Truman Capote e Guimarães
Rosa. Assim, as matérias reconstruíam cenas, reproduziam diálogos e envolviam os
leitores com textos que resgatavam gestos, hábitos, costumes, olhares, poses e
atitudes dos personagens.
O surgimento do jornal, em 1966, culminava com uma rie de
acontecimentos culturais, políticos e sociais que invadiram o mundo e o Brasil. Os
86
textos do vespertino traduziam todo o clima da geração de 1960 com irreverência e
mediante a aproximação com temas de interesse geral. Profissionais que ajudaram a
elaborar o projeto gráfico do jornal, como Ruy Mesquita, Mino Carta e Murilo
Felisberto, entre outros, somaram suas experiências para criar o diário. O JT nascia
sob a influência do vespertino France Soir. Murilo trouxe as técnicas editoriais e
gráficas então utilizadas pelas grandes revistas norte-americanas Esquire e The New
Yorker.
Um dos pontos fortes do vespertino era o caderno de Polícia, que
acompanhava toda a trajetória de um suposto homicídio a partir de sua ação até o
desenrolar das investigações e o julgamento dos culpados. Por isso, muitas
reportagens poderiam durar semanas, sendo divulgadas em capítulos, o que
mantinha o leitor informado. O caderno de Esportes também sempre trazia, ao lado
de um bom texto, impressionista, fotos que davam uma plasticidade especial ao
jornal. A diagramação, geralmente sem fios e com espaços determinados pela
notícia ou reportagem, complementava a riqueza visual.
3. A aventura da reportagem
Reportagens investigativas provocaram até queda de presidentes, como foi o
caso da série publicada no The Washington Post pelos jornalistas Bob Woodward e
Carl Bernstein, no período de 1972-74, sobre a invasão da sede do Partido
Democrata, nos Estados Unidos, no episódio conhecido como Watergate. O
processo de impeachment de Collor também teve, como uma de suas fortes razões,
uma série de matérias publicadas no início dos anos 1990 nas revistas Veja e IstoÉ.
Mas também grandes matérias elaboradas a partir de pequenos dramas
individuais, conforme afirma Ricardo Kotscho: “O resgate de um pequeno fato pode
acabar na primeira gina do jornal, porque é o exemplo mais vivo de uma situação
limite um retrato em branco e preto do país em que ele circula...” (1995: 68).
Geralmente, tais personagens não gozam de espaço nos jornais, que se
especializaram em versões o mais simplificadas possíveis dos acontecimentos.
87
Contrariando essa lógica, na expressão de Kotscho, a reportagem “... rompe todos
os organogramas, todas as regras sagradas da burocracia e por isso mesmo é o
mais fascinante reduto do jornalismo, aquele em que sobrevive o espírito de
aventura, de romantismo, de entrega, de amor pelo ofício” (1995:71).
Dada sua complexidade, a reportagem requer uma compreensão
multiangular, flertando ora com o jornalismo literário, ora com a antropologia. Por
ser um gênero que exige grandes investimentos por parte do repórter e das empresas
cujas estruturas se voltam sempre mais à produção do entretenimento e ao
sensacionalismo da notícia –, a reportagem, apesar desse ciclo positivo, se tornou
mais rara. Para se escrever uma reportagem de profundidade, que revele ângulos
diferenciados da rotina dos jornais, requer-se um grande senso de observação. A
melhor história pode estar numa entrevista com alguém que não se situa exatamente
no centro da notícia ou do acontecimento apurado. Exige que o repórter não se
limite a reproduzir a infomação que chega via fax, nas notas e releases de fontes
oficiais. Ele precisa vivenciar o dia-a-dia nas ruas, e, por meio da técnica da
entrevista, pegar o lado dos coadjuvantes, aqueles que possuem uma visão dos
bastidores da notícia. A boa reportagem não precisa necessariamente ser longa, mas
mostrar um lado diferente, de resgate dos elementos subjacentes à informação
principal. Tecer a trama dos acontecimentos utilizando um relato humanizado.
Afirma Kotscho, sobre a prática da reportagem, numa visão crítica:
Quando estão em outro país, os jornalistas, seja qual for
sua origem, parecem-se muito com diplomatas.
Freqüentam sempre os mesmos círculos, quer dizer, o
poder, esquecendo-se que fora dos gabinetes existe um
povo, absolutamente sempre original, fonte inesgotável
de boas matérias... (1990:79).
O autor defende o princípio de que, por mais importante que seja o assunto,
se não for possível trazer a discussão para o dia-a-dia do homem comum, pouco
interesse vai despertar. “Aprendi a não me preocupar quando tropeço num assunto
muito complicado: se eu não entendo, o leitor também não vai entender e será
melhor buscar um atalho para contar algo de seu interesse” (1990:79).
88
O assunto provoca a discussão sobre o que essa categoria pode contribuir
para o conhecimento. Para Lima, a narrativa ampliada é uma das técnicas que ao
jornalismo condições de superar seus limites. Essa função pode se manifestar em
diferentes níveis e em dois sentidos. Segundo ele, pode se dar horizontalmente (o
que denomina sentido extensivo) e verticalmente (sentido intensivo). “O
aprofundamento é extensivo, ou horizontal, quando o leitor é brindado com dados,
números, informações, detalhes que ampliam quantitativamente sua taxa de
conhecimento do tema.” quando o aprofundamento é intensivo, ou vertical, o
leitor é alimentado com dados e informações que lhe permitem “aumentar
qualitativamente sua taxa de conhecimento. Isso é, uma análise multiangular de
causas e consequências” (2004:40).
Para Medina, o que distingue a notícia da grande reportagem é “...o
tratamento do fato jornalístico, no tempo de ação e no processo de narrar...” (1986:
115). A autora acrescenta:
A matéria que amplia uma simples notícia de poucas linhas
aprofunda o fato no espaço e no tempo, e esse
aprofundamento (conteúdo informativo) se faz numa
interação com a abordagem estilística. A reportagem seria
então “uma narração noticiosa”. (...) Os ritmos narrativos
da estrutura da grande reportagem variam de acordo com a
maior ou menor riqueza de recursos, riqueza essa que
provém da captação do real e do domínio de técnicas
narrativas... (1988:115-117).
Quanto à sua estrutura, a reportagem foge à praticidade da pirâmide
invertida, da disposição lógica do fato pelo seu ordenamento de ação, sujeito, espaço
e tempo. Segundo Medina, a ampliação de blocos de espaço e de tempo “é uma
transição para buscas mais requintadas, do ponto de vista de lógica intencional”
(1988: 105). Afirma a autora:
O romance contemporâneo está cheio de casos que
mostram o interesse de criar saídas narrativas para a
complexidade da textura. Também a reportagem (e aí não
mais a notícia) complica seu ritmo numa angulação
interpretativa, uma edição que intencionalmente
89
reinterpreta a realidade percebida, procurando abrir a
captação em múltiplas opiniões e observações. As matérias
que saem desse investimento consciente de informaçãoo
têm a linearidade de uma pirâmide invertida, a direção
única de uma cronologia, nem se satisfazem com a partição
em blocos... (1988:105).
Para Sodré & Ferrari, a narrativa não é privilégio da arte ficcional. “Quando
o jornal diário noticia um fato qualquer, como um atropelamento, traz aí, em
germe, uma narrativa” (1986:11). Mas, ao contrário da linguagem que se nutre de
aproximações com a literatura, tal procedimento geralmente se faz baseado na
fórmula do lide ntese do que mais importante o fato apresenta, nas primeiras
linhas da matéria –, dentro de uma sequência gica que pretende responder às
principais indações do leitor, segundo o modelo de Lasswell (quem; diz o quê; em
que canal; para quem; com que efeito?). Essa técnica buscou simplificar o ato da
comunicação, por meio da objetividade, desprezando o plano das
intersubjetividades, o que acabou gerando um modelo engessado de se reportar a
realidade.
No entanto, as diferenças entre os dois gêneros não param aí. Enquanto este
último atua dentro de um modelo funcionalista, o primeiro pode contar com a
presença do repórter em uma determinada ação – ou seqüência dela –, o que
implicará maior aproximação com o leitor, fazendo a ponte entre o público e a
informação. Dessa forma, o relato ganha maior verossimilhança com o que acontece
no plano real.
Ainda segundo Sodré & Ferrari, pode se classificar assim os elementos da
reportagem: predominância da forma narrativa; humanização do relato; texto de
natureza impressionista e objetividade dos fatos narrados. Embora essa técnica
possa variar e se mostrar com maior ou menor evidência, dependendo do texto, a
narrativa terá que estar sempre presente na reportagem; caso contrário, não será
reportagem (1986:15).
Do ponto de vista estrutural, notícia é o relato que se atém essencialmente
aos acontecimentos, por meio de uma informação que implica algum tipo de ação.
Conforme esses autores, seria o ato de anunciar determinado fato, com a ressalva de
90
que, independente do número de ações que vierem a acontecer, serão notícia aqueles
fatos que forem “anunciados” (1986:17). a reportagem se caracteriza pela
enunciação.
Para Nílson Lage, mesmo um fato inesperado, como um desabamento, pode
ser melhor explorado na elaboração de uma reportagem nesse caso, a averiguação
das condições precárias da construção e seus antecedentes. Segundo o autor, a
produção desse gênero pode partir de um fato para revelar outros, ocultos, que
configuram uma situação de interesse jornalístico, a exemplo de Watergate. Pode ser
ainda “do tipo interpretação, em que o conjunto de fatos é observado de uma
perspectiva metodológica de uma dada ciência (as interpretações mais freqüentes
são sociológicas ou econômicas)” (1979:83). ainda, segundo o autor, as que
atuam na prática humana não teorizada, buscando “apreender a essência do
fenômeno, aplicando técnicas literárias na construção de situações e episódios
narrados” (1979:83).
Conforme Juarez Bahia, a reportagem, na sua estrutura, não se limita a uma
notícia, mas a várias notícias. Afirma ele:
O salto da notícia para a reportagem se no momento em
que é preciso ir além da notificação em que a notícia
deixa de ser sinônimo de nota – e se situa no detalhamento,
no questionamento de causa e efeito, na interpretação e no
impacto, adquirindo uma nova dimensão narrativa e ética
(1990:49).
Enquanto a notícia é o anúncio de um fato, em uma versão, a reportagem
“é por dever o método da soma de diferentes versões de um mesmo acontecimento”
(1990:50). Continua Bahia:
O jornalismo se revitaliza com reportagem ao mesmo
tempo que projeta em importância a notícia. A reportagem
é uma notícia, mas o é uma qualquer notícia. Ela impõe
ao jornalismo um avanço na medida em que se realiza
com a multiplicidade de versões, de ângulos, de indagações
(1990:50).
91
3.1 Um “olhar de insubordinação”
O que muitos entendem ser uma reação contra as narrativas fragmentadas,
desconectadas de um nexo maior, está em franca expansão neste início do século
XXI. Ainda tímida na televisão, as narrativas do cotidiano, seja em forma de livro-
reportagem ou matérias impressas, voltam a colocar no centro da discussão o
problema de uma comunicação dialógica, sob o “signo da relação”, no dizer de
Medina, ou da ternura, na expressão do psicanalista Luiz Carlos Restrepo.
Esse estilo de fazer reportagem – a que um conjunto de autores dá o nome de
“jornalismo literário”, enquanto outros dão outros nomes, e, ainda outros preferem
chamar apenas de jornalismo
19
que, parece, volta a seduzir editores de jornais e
revistas de várias partes do mundo na busca de alternativas para o jornalismo
pasteurizado, se funda na necessidade de romper com as fórmulas tradicionais do
lide. Mas também, principalmente hoje, na necessidade de se costurar nexos, num
mundo onde a informação de tipo fragmentado é abundante. uma hipertrofia da
informação, provocando uma atrofia da compreensão.
Além disso, de modo muito mais amplo que nos Estados Unidos dos anos
1960, hoje vivemos um tempo de excesso de exposição e visibilidade na mídia por
19
Jornalismo Literário Avançado (JLA), por exemplo, é uma proposta defendida por Lima para
responder às grandes demandas de nosso tempo. Baseado na física quântica, sugere que o universo
está em constante transmutação, gerando impulsos para um jornalismo “holístico”, ou seja, que
compreende a realidade em termos de um todo integrado, cujas propriedades não podem ser
reduzidas às suas unidades. Segundo essa vertente, o próprio planeta estaria sob um processo de ação
e reação, para adaptar-se às mudanças de sua realidade, conforme explica a teoria Gaia, elaborada
por James Lovelock e Lynn Margullis, onde é possível observarem-se diferentes elementos,
compostos de inteligência e com capacidade para interagir uns aos outros. Para essa concepção, tudo
que existe, tudo o que é vivo, possui diante de si um propósito evolutivo, uma teleologia espontânea,
inclusive na sociedade humana. a Teoria Geral dos Sistemas, outra fonte de que se nutre esse
conhecimento, propõe a existência de dois impulsos marcantes: um, o do crescimento, que seria o
caminho da evolução; o outro é o impulso da entropia, a estagnação e o retrocesso. Assim, quando os
MCM enfatizam em demasia os conteúdos de características improdutivas, negativas, como
violência, catástrofes, guerras, desprovidos de um conjunto de sistemas integrados e contextuais, não
estão contribuindo para a conquista da complexidade, mas para sua insuficiência. Uma das
ferramentas do JLA é o “jornalismo de transformação”, que aposta na produção de narrativas como
forma de compreender o outro, as injunções e idiossincrasias do sistema, mas sem rejeição aos
opostos e diferentes, contribuindo, dessa maneira, para uma visão crítica, nem sempre explicável, de
transformação social.
92
conta do que se convencionou chamar “a sociedade do espetáculo”, o espaço
nulodimensional,
20
ou da incomunicação, na expressão de Baitello, sobre a profusão
de imagens. Quanto mais imagens, menos visibilidade, menos propriocepção, o
sentido por excelência do aqui, agora, da corporeidade” (2005:44). Dessa maneira,
geram hipertrofia no processo de comunicação.
Na vida das celebridades e heróis, seja nos campos de futebol, novelas ou
filmes, tudo parece girar em torno dos mitos. A fragmentação da linguagem e os
discursos permeados de conotações de poder parecem se impor como a única gica
possível, a do mercado. Nesse vácuo, impõe-se a necessidade de um olhar de
insubordinação, conforme a expressão utilizada pela jornalista Eliane Brum um
dos expoentes da não-ficção no Brasil – frente à linguagem e aos vícios das
fórmulas predominantes. Segundo essa visão, os fatos incomuns são observados nas
ruas, nas estações de metrô, nos bares e feiras, ambientes freqüentandos por
cidadãos anônimos. É onde rendem boas histórias, relatos contados por um ponto-
de-vista de imersão na realidade. São pessoas comuns que de repente passam a
entrar no cotidiano dos leitores, cansados de ler as mesmas coisas em todos os
jornais, depois de assistir aos telejornais na noite anterior.
muitas coisas que podem ser vistas sob pontos diferenciados, não
exatamente aquele que se impõe sobre os olhares individuais, por força do que
interessa à notícia, segundo Brum. As histórias incomuns são extraordinárias por
serem como são. Elas transgridem a ordem das coisas, se constroem por outros
nexos, negam-se a trilhar o caminho do raciocínio e do que está pré-estabelecido
pela sociedade, como única versão plausível dos fatos. Em A vida que ninguém ,
livro-reportagem que trata do “olhar insubordinado”, a jornalista se propõe a captar
aquilo que as entrelinhas do espaço do jornal não conseguem conter. Assim, fala de
um menino, morador de uma vila, que se encontra discriminado pela sociedade por
20
Conforme Baitello, o espaço nulodimensional pode ser compreendido dentro da classificação
criada pelo cientista político Harry Pross (1972), ao dividir a mídia em três grandes grupos: primária,
representada pelo corpo, gestos, odores; secundária, pelos processos da comunicação verbal e
impressa, e terciária, dos aparatos eletrônicos. O predomínio desta última sobre as duas primeiras,
com aparatos cada vez mais potentes e sofisticados, não trouxe, na mesma proporção, a ampliação do
espaço e do tempo das relações de proximidade. “Pequenas esferas de contato elementar, o bate-
papo, a prática esportiva, a prática lúdica, têm perdido sistematicamente terreno para a diversão
chamada eletrônica...” (2005:39).
93
ser “abilolado” e, de repente, tem sua vida transformada por ver sua imagem
refletida no olhar de uma professora, dentro de uma escola. Diz ela:
O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos.
Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da
importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo
por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata.
Reconhece. Salva. Inclui. Esta é a história de um olhar. Um
olhar que enxerga. E por enxegar, reconhece. E por
reconhecer, salva (2008:22).
Traz ainda personagens, como o negão das bagagens” apesar de trabalhar
num aeroporto, ele nunca voou –, que mostram o lado absurdo da existência, mas
que não conseguimos às vezes enxergar por estarmos preocupados em retratar
apenas o mundo dos doutores, políticos, artistas, deixando de ver a vida como ela é,
também a dos joões e marias que habitam os lugares comuns. Diz a autora, sobre a
saga do carregador de malas: “A menos de uma centena de passos das asas do avião,
jamais conseguiu alcançá-las” (2008:28).
Ainda que tudo isso possa parecer um tanto ficcional, são recortes extraídos
de sua vivência como repórter no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Histórias que
permeiam a área dos sonhos, do psicológico, do extraordinário, numa experiência
que se enriquece pela imersão do repórter na vida do outro. Partindo das cenas, dos
relatos que colhe, busca de pormenores da história, constrói um narrrativa que flui
numa visão mágica aberta ao mistério e ao âmago do ser humano.
21
Flertando com
o romance, o conto, a crônica, a autora não se furta à crítica da sociedade de seu
tempo, mas o faz de maneira presentificada, descrita em cada cena ou detalhe do
texto.
Esse jornalismo também está presente nas páginas do The Washington Post,
nos Estados Unidos; O Público, em Portugal; La República, na Itália, e El Pais, na
21
A série de reportagens sobre a Coluna Prestes, em que a jornalista percorreu 25 mil quilômetros
de chão empoeirado para compreender a importância desse movimento revolucionário da esquerda
no Brasil, conforme assinala Marcelo Rech, editor do jornal Zero Hora, trouxe um enfoque novo
sobre o episódio. Partindo de entrevistas com testemunhas anciãs que viram a passagem da marcha,
que chamou “povo do caminho”, foi possível confirmar que a Coluna não fora um ato que parte
do país considera heróico, 70 anos depois, como também se delineava como uma procissão de roubos
e atrocidades (2008:15).
94
Espanha, entre outros. No Brasil, o estilo tem seguidores, como o jornal Zero Hora,
de Porto Alegre, e as revistas Brasileiros e Piauí, entre outras publicações.
22
Em um artigo produzido pela American Society of Newspaper Editors
entidade que congrega os editores americanos em 1999, ficou demonstrado o
grande interesse manifestado por profissionais no final dessa década no valor da
narrativa. Para Lima, esse interesse era baseado em três pontos: 1) narrativas
despertam o interesse do leitor e ajudam a vender jornais; 2) narrativas possibilitam
contar históricas complicadas, permitindo aos leitores observar o sentido de suas
vidas, e 3) narrativas têm um profundo e positivo efeito sobre a motivação nas
redações. A sociedade que congrega os editores americanos ainda acrescentou
diversos exemplos de bem-sucedidos projetos experimentais de pequenos jornais
norte-americanos sobre a questão.
23
O atual ciclo de recuperação do jornalismo literário nos Estados Unidos
ainda contou com outros dois fatores marcantes neste início de século, segundo
Lima:
O primeiro deles foi a tragédia de 11 de setembro de 2001,
gerando um interesse enorme pelos heróis de carne e osso
daquele fatídico dia: os bombeiros de Nova York, por
exemplo. Cansado do excesso de presença de celebridades
e de suas vulgaridades –, o público manifestou
considerável interesse por narrativas que retratassem o
mundo profissional, familiar e pessoal desses gigantes
anônimos do altruísmo e da coragem. Na carona do
interesse também ganharam espaço pessoas comuns de
todos os quadrantes do tecido social. Logo, percebeu-se, a
escola do JL teria o que contribuir para esse desafio, com
seu princípio da imersão do repórter na realidade e com sua
inegável vocação para retratar também o mundo dos
anônimos... O segundo fator foi a decisão da Universidade
22
Com o objetivo de melhorar suas vendas, o Zero Hora replanejou o espaço reservado às matérias.
Cerca de 30% do que é publicado atualmente é sob a forma de grandes-reportagens. Os dados foram
divulgados durante o Seminário de Jornalismo Literário, realizado em outubro de 2007, em São
Paulo-SP.
23
O The Atlanta Journal recriou em forma de narrativa, numa reportagem de seis matérias em série,
o caso de um acidente de avião, recontada pelos passageiros, e a resposta dos leitores foi
extraordinária. Na mesma linha, o The Sun, de Baltimore, publicou uma série de matérias que durou
16 dias, narrando a luta de uma mulher contra o câncer. No primeiro dia, a venda do jornal em banca
registrou um aumento de 9.500 exemplares, como conta Lima, emNarrativas nos jornais: a
experiência americana, disponível em http//www.edpl@textovivo.com.br. Acesso em 1/05/2008.
95
de Harvard a mais tradicional dos EUA, de elevado
prestígio mundial – em abraçar a causa do JL.
24
3.2 Jornalismo barato”
A grande-reportagem, que resulta de uma visão aprofundada do cotidiano e
da contemporaneidade, compete de forma desigual com uma massa de informações
que pouco acrescentam à compreensão do cidadão. Isso inclui não os meios
impressos, mas, sobretudo, os que envolvem os processos e sistemas em rede. Se de
um lado esse modelo rompe com o paradigma da racionalidade e da linearidade, por
outro gera imagem (e informação) numa quantidade inimaginável e não
totalmente digerível.
Atrelado ao sistema de produção e dos mercados, esse jornalismo, apesar de
ganhar novas ferramentas na abordagem dos fenômenos da sociedade, ainda se
mostra reducionista. As páginas de informações na rede mundial continuam a seguir
o modelo da economia textual, com pouco aprofundamento dos fatos. E o que é
pior, tais sites, blogs ou outros canais virtuais de informação servem de fontes para
o jornalismo impresso. Como resultado, temos um jornal “televisivo” impresso nas
páginas dos diários, com muitas cores, excesso de elementos gráficos e explicativos,
mas ainda como verdadeiros retalhos sobre a história presentificada. A questão é
preocupante, na medida em que para o homem urbano faz sentido o que aparece
na mídia.
A informação que chega às redações de vários jornais do mundo, seja por
meio da internet, releases ou meios eletrônicos, sem a preocupação de checar as
24
No final de 2003, Harvard organizou um congresso especializado em Jornalismo Literário de
grande amplitude. A iniciativa de realizar o evento foi do professor Mark Kramer, sociólogo, repórter
e colaborador da revista The Atlantic Monthlypublicação considerada um dos templos do JL na
América do Norte –, além de autor de livros-reportagens. A presença de uma comunidade de estrelas,
profissionais e amantes de não-ficção deu um clima especial ao encontro. Harvard fica em
Cambridge, Estado de Massachusetts, onde aconteceu um pouco da efervescência da contracultura na
década de 1960, com shows de rock, festivais de cinema underground, pequenas e grandes
revoluções do “paz e amor”, ainda segundo disse, na matéria citada, disponível em
http//www[email protected].br. Acesso em 1/05/ 2008.
96
fontes, é cada vez menos confiável. Isso tem gerado equívocos, erros de
interpretação que prejudicam o papel da imprensa, suprida pelos meios eletrônicos.
Cercadas por um cenário virtual, as redações parecem não ouvir o eco das ruas. As
versões já chegam prontas através das mesmas fontes. O resultado pode ser visto no
dia seguinte: a notícia sendo dada da mesma forma por quase todos os órgãos de
imprensa.
Conforme Caio Túlio Costa, citado por Chauí, “o jornalismo está ficando
cada vez mais rápido, inexato e barato” (2006:13). Tentando conservar um público-
leitor, uma das alternativas tem sido a de se dirigir a públicos especificos, “havendo
assim ascensão do partidarismo, que, no entanto, deixa o leitor ainda mais
desconfiado em relação às notícias...”. Além disso, para assegurar o que se
convencionou chamar de credibilidade e fazer um jornalismo assertivo e barato, o
jornalista “passa a fazer buscas assertivas globais (via internet e consultas a
‘personalidades’) de forma aleatória e automática, e a mesclar informações
confiáveis com informações não confiáveis” (Costa apud Chauí, 2006:13).
Como analisa a autora, com os meios eletrônicos e digitais e a televisão, os
fatos “tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de maneira que a função
noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa é posterior à sua
transmissão pelos meios eletrônicos e a televisão” (2006: 12). Ela afirma:
O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia
é apresentada de forma mínima, rápida e, freqüentemente,
inexata o paradigma é o jornal US Today e o modelo
conhecido como News Letter e, de outro, deu-se a
passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão
de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam
notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece
uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo
investigativo... (2006:12-13).
Como parte de um processo formado por estruturas lingüísticas referenciais,
a imprensa se distancia de uma realidade muitas vezes apreendida e captada no
plano do simbólico da cultura, que se liga à nossa ancestralidade. Utilizando apenas
as armas da objetividade e da razão, deixa de tocar o território do lúdico, de sonhos,
97
dos sentidos humanos. Nossas sensações e emoções deixam de fluir, encobertas por
essa visão fragmentada do jornalismo. Com a velocidade da informação, anula-se a
dimensão temporal e espacial, e o homem fica impedido de observar a realidade, ou
a observa de forma parcial, não como uma totalidade. O que ele vê, na verdade, é o
simulacro dessa realidade. Isso num ambiente em que, como lembra Chauí, “os dez
ou doze conglomerados de alcance global controlam não os meios tradicionais,
mas também os novos meios eletrônicos e digitais” (2006:13).
Essa ênfase na velocidade e instantaneidade da informação, em detrimento
dos conteúdos e das idéias, foi uma das principais armas da mídia eletrônica na
conquista de coração e mentes, como demonstrou a cobertura da Guerra do Golfo,
em 1992, pelas principais emissoras norte-americanas. Fato semelhante, em
proporções ainda mais amplas, dar-se-ia com a guerra contra o Iraque, em 2003. O
espetáculo deu o tom das transmissões. A informação de qualidade dificilmente
sobreviveu ao impacto das luzes das explosões.
25
25
Sobre esse assunto, ver, de Dimas A. Künsch, O eixo da incompreensão: a guerra contra o Iraque
nas revistas semanais brasileiras de informação. Tese de Doutorado, São Paulo: ECA-USP, 2004.
98
Capítulo III
VIAGEM AO TERRITÓRIO
DA REPORTAGEM TELEVISIVA
1. O cenário televisivo
Apesar de ser um veículo que tem suscitado polêmicas quanto à qualidade
da programação – seria, em princípio, mais apropriado a difundir cultura de massa –
o espaço da televisão tem assumido uma importância a cada dia maior junto ao
público receptor como meio de informação e entretenimento. Com a revolução
tecnológica observada em meados dos anos 1990, se tornou também um lugar de
visibilidade para instituições públicas e privadas, que tentam ganhar projeção pela
exposição de sua imagem e produtos como nunca visto em outro período da história.
Entrar nesse campo equivale a se aventurar em território muitas vezes
desconhecido. A televisão se constitui num fluxo de imagens, falas, sons,
oralidades, o que a torna um veículo de gênero híbrido. Mas a maior parte das cenas
e imagens que transmite não raro ganha o próprio sentido de realidade, e não sua
representação. As opiniões sobre essa máquina antropofágica se confrontam. À luz
da Escola de Frankfurt, o veículo banaliza a informação, é resultado de um processo
de produção cultural em escala industrial, seja em se tratando de narrativas seriadas,
telejornais ou propaganda. Já para os que a defendem como hegemonicamente
99
“boa”, seu fluxo fragmentado e aberto é uma qualidade que independe de
conteúdos. Neste caso, a recepção possibilita estimular outros níveis de consciência
e percepção. Ver televisão, por essa ótica, é um processo agregador, que interfere no
ambiente de seus públicos, pois, como dizia o pensador canadense Marchall
McLuhan, “o meio é a mensagem”.
Apesar dessas diferentes visões, sua análise exige uma abordagem
multidisciplinar quanto à programação e suas narrativas. Em vez de sua
compreensão centrada nos conteúdos ou na técnica de televisão, o que se está
tentando observar é a possibilidade de uma metodologia que a leve a ser um espaço
de cultura, do conhecimento complexo da realidade. Deixando de lado as
abordagens convencionais, Arlindo Machado, em A televisão levada a sério,
defende uma nova maneira de analisar o veículo, fora dos esquemas ideológicos e
simplificadores, a partir de um conjunto dos trabalhos audiovisuais – variados,
desiguais, contraditórios –, tarefa a que, dada as suas dificuldades, muitos autores
têm se furtado. Diz ele:
O contexto, a estrutura externa, a base tecnológica também
contam, é claro, mas eles não explicam nada se não
estiverem referidos àquilo que mobiliza tanto produtores
quanto telespectadores: as imagens e os sons que
constituem a “mensagem” televisual (2003:19).
Para Machado, uma série de programas produzidos ao longo da trajetória
televisiva, inovadora em termos de linguagem, a credencia a abrir oportunidades
para o mais amplo leque de experiências diferenciadas o projeto que estuda esses
programas, adotado por estudiosos e críticos de todo o mundo, se denomina
“qualidade em televisão”. Embora reconheça que o termo qualidade está longe de
ser consenso e que de forma geral os críticos de formação mais tradicional resistam
a ver um alcance estético em TV, os defensores desse modelo acham que a demanda
comercial e o contexto industrial não inviabilizam a criação artística.
26
26
“A expressão quality television (televisão de qualidade) aparece pela primeira vez no contexto
intelectual britânico nos anos 80, com a publicação de M.T.M Quality Television. O livro, publicado
pelo prestigioso British Film Institute, tratava da contribuição dada à televisão pela M.T.M.
Enterprises, a companhia que produziu o antológico seriado Hill Street Blues, entre outros programas
de inegável valor estético, força dramatúrgica e penetração crítica” (Machado, 2003:22).
100
Com base nessa abordagem, Machado introduz o conceito de programa, que,
segundo ele, “é qualquer série sintagmática que possa ser tomada com uma
singularidade distintiva, com relação às outras séries sintagmáticas de televisão”
(2003:27). Embora consciente da confusão de gênero que a TV cria, o autor entende
que esse é o meio mais apropriado para se encontrar identidade e coerência nos
produtos culturais televisivos, frente à idéia de caos. “É verdade que a noção de
programa tem sido bastante questionada nas últimas décadas. Razões não faltam
para isso: a televisão costuma borrar os limites entre os programas” (2003:28).
Machado continua:
Apesar disso tudo e mesmo que a singularidade do
programa de televisão continue sendo questionada,
investigações empíricas têm demonstrado que tanto a
produção quanto a recepção televisual continuam se
baseando fortemente em núcleos de significação coerentes,
como os gêneros e os programas. Em outras palavras, os
programas e os gêneros continuam sendo os modos mais
estáveis de referência à televisão como fato cultural. A
bem dizer a verdade, também no jornal existe uma
justaposição sequencial de matérias heterogêneas, também
na literatura é possível encontrar leitores que lêem vários
romances simultaneamente e em nenhum desses casos se
perde a noção de obra ou de matéria jornalística em seus
sentidos singulares... (2003:29).
O comentário do autor fez, no entanto, lembrar que pesquisas sobre o jornal
demonstram que, embora o órgão apresente uma organização rigorosa quanto à
disposição de matérias, em geral não há inter-relação entre as mesmas. Muitos
temas de reportagens não são contextualizados, com pesquisas, comentários e
outros artigos, deixando de mostrar um aprofundamento e análise que eram de se
esperar.
27
Nota-se ainda que o jornalismo impresso, apesar de ser um meio
convencional a que a percepção humana se acostumou, é perpassado pelo fragmento
27
Isso ficou evidente no trabalho comparativo de oito edições de O Estado de S. Paulo e Folha de S.
Paulo sobre meio ambiente e energia, por ocasião de oficinas pedagógicas realizadas durante o I
Fórum de Energia Meio Ambiente e Comunicação Social, promovido pela Faculdade Cásper
Líbero, de 20 a 23 de outubro de 2008.
101
de falas, narrativas, estatísticas, gráficos, processo este que, na visão deste autor,
pode contribuir para tornar a edição ainda mais heterogênea.
Do conjunto de reportagens exibidas pela televisão que Machado considera
experiências relevantes, uma delas propiciou grande mobilização pública contra a
guerra que humilhou os americanos. Ele afirma:
Em 1968, após uma série de derrotas dos norte-americanos
no Vietnã, Walter Cronkite, o mais conhecido âncora da
televisão nos EUA, foi visitar os campos de batalha para
ver pessoalmente o que estava acontecendo. Ao retornar
produziu uma reportagem especial intitulada Report from
Vietnam, que muitos analistas consideraram a responsável
principal pela virada da opinião pública com relação à
Guerra do Vietnã. Cronkite viu pessoalmente a carnificina
em Khe Sahn, viu meia dúzia de vietcongs enfrentarem
durante uma semana as tropas de elite do Ocidente, com
pesadas baixas para o exército mais poderoso do mundo
(2003:118).
Esse modelo de reportagem poderia introduzir, para este autor, a questão da
técnica da observação participante por parte do repórter que cobriu a guerra do
Vietnã. O repórter, para retratar de forma pertinente os horrores que seus olhos
presenciaram, teve de mergulhar na intimidade dos ambientes, sons, movimentos e
cenários com que conseguiu sensibilizar a opinião pública de seu país.
Dadas as especificidades que apresenta, a televisão seria, na opinião de
Machado, um meio muito mais complexo que a simples transmissão de informações
em seus telejornais. Ele rechaça a idéia, bastante difundida, de que a função básica
desse gênero televisional é informar (bem ou mal)” (2003:110). Para o autor, se
assim fosse, isso atenderia a um segmento de telespectadores que em televisão
por letargia:
A maioria do blico “voluntário” vai ao telejornal para
saber o que está acontecendo nas áreas da política, da
economia, da cultura, da ciência, da vida pública, etc. Mas
ao colocar em circulação e em confronto as vozes dos que
“relatam” ou “explicam” um conflito, ao tentar encaixar as
vozes umas “dentro” das outras, o que faz mais exatamente
o telejornal é produzir uma certa desmontagem dos
102
discursos a respeito dos acontecimentos. Num certo
sentido, podemos dizer que o telejornal é uma colagem de
depoimentos e fontes numa sequência sintagmática, mas
essa colagem jamais chega a constituir um discurso
suficientemente unitário, lógico ou organizado a ponto de
poder ser considerado “legível” como alguma coisa
“verdadeira” ou “falsa” (2003:110).
Na visão de Machado, o telejornal seria formado por uma mistura distinta de
fontes de imagem e som, gravações, filmes, material de arquivo, fotografia,
gráficos, mapas, textos, locução, música e ruídos. Mas, fundamentalmente, “o
telejornal consiste de tomadas em primeiro plano enfocando pessoas que falam
diretamente para a câmera (posição stand up), sejam elas jornalistas ou
protagonistas” (2003:104). Ainda de acordo com Machado, outra maneira de jogar
com todos esses elementos “é mostrar, em primeiro plano, o âncora lendo a notícia
no teleprompter, enquanto a imagem correspondente ao que ele anuncia aparece ao
fundo”. O autor acha a descrição banal, “já que é banal também o quadro elementar
de todo e qualquer telejornal” (2003:104). Mas considera, por outro lado,
importante extrair o que resulta dessa função básica, pois, como assegura, “o
telejornal é, antes de mais nada, o lugar onde se dão atos de enunciação a respeito
dos eventos”. Machado explica que, numa notícia ou cobertura de um
acontecimento, sujeitos falantes de variadas fontes se sucedem, se antagonizam,
praticando atos de fala que expressam discursos próprios em relação aos atos
relatados (2003:104). Começa com o âncora no estúdio fazendo a chamada, entra o
repórter em seguida narrando do palco do evento. Vozes de personalidades ligadas a
governos e instituições privadas se fazem ouvir, no ar, ao passo que, em outro
bloco, novos discursos são registrados por meio da participação de entidades
preocupadas com os desdobramentos do problema. Como quer demonstrar o autor,
a televisão serve apenas de mediação para essas questões e manifestações, mas não
está preocupada com a verdade, e sim em retratar as diversas versões de um fato.
Comparando com o trabalho do jornal impresso, Machado considera este mais
centralizador e impessoal que o telejornal, sendo narrado quase sempre na voz
onisciente do repórter. o modelo “polifônico” de telejornal, nesse aspecto, estaria
desenvolvendo uma função pluralista dos conteúdos transmitidos, mas com a
103
ressalva que estão vinculados a um determinado acontecimento, um fato ou situação
nuclear.
Ainda conforme Machado, entre as especificidades técnicas que podem
comprometer ou enaltecer o trabalho televisivo (dependendo de seus usos), está o
problema de linguagem. Enquanto o jornal impresso se apóia basicamente na frase e
no período para a construção de idéias, a comunicação televisiva dispensa, muitas
vezes, o referente. Se funda numa imagem. Mas isso, dentro do que chama de
“televisão de qualidade”, não diminuiu sua importância, pelo contrário, ampliou o
repertório sobre esse fantástico veículo.
2. O desafio da complexidade
Sobre o trabalho do telejornal, Guilherme Jorge de Rezende faz uma
importante abordagem dos mecanismos e instrumentos de que o veículo se utiliza
para sustentar a audiência. Explica Rezende: “A mensagem televisiva
multidimensional e multissensorial tende a atuar com mais intensidade sobre o
receptor, repercutindo quase diretamente em sua afetividade, sem passar pela
mediação do intelecto” (2000:40). Seguindo esse raciocínio, a TV suplantaria os
demais veículos, porque, além dos códigos linguístico e sonoro, se utiliza também
do icônico – imagem que pode ser identificada de pronto no vídeo, como uma
celebridade do cinema ou do esporte, que Rezende chama de “imagem-símbolo” ,
diferentemente da construção de sentido da língua, que, embora forme imagens,
depende do cognitivo para a compreensão da mensagem. Conforme Rezende, isso
vai ao encontro do que foi constatado por pesquisadores ingleses, de que o
conteúdo de uma programação pode ser menos atraente do que as imagens que lhe
servem de suporte.
Para o estudo da grande-reportagem na televisão brasileira, tema deste
trabalho, a imagem foi considerada também como uma forma de conhecimento
complexo, por suas propriedades. De modo geral, o padrão de televisão brasileira,
104
também observado em alguns países do continente, vai em outra direção, porque se
apóia, conforme jargão nas redações, na idéia de que uma boa imagem vale mais do
que mil palavras, o que gera também, na análise de Rezende, polêmica sobre esse
tipo de procedimento. Evidentemente que esse conceito de televisão, levada ao
extremo, cria a idéia de sociedade do espetáculo, e entende o telejornal como algo
impactante para a recepção.
Já quanto ao código verbal, continua Rezende, um papel de excelência no
processo televisivo, pois não se trata apenas de um texto que ajuda a compreender o
significado das cenas e de seu contexto. Acrescenta ele: “A situação do ‘falar com o
outro’ remete ao conceito de oralidade” (2000:54). Nessa oratura estaria uma das
marcas fundamentais da humanidade, que é o diálogo entre os homens. “É pela
linguagem que o homem transcende a sua solidão e descobre o outro” (2000:54).
Nesse encontro, a televisão serve de mediações entre as falas de diversos segmentos
da população, propiciando, no entender deste autor, um novo conhecimento.
Como é possível constatar, em programas como Globo Rural ou Realidade
não uma postura pré-determinada sobre o uso dessas linguagens, que tudo indica
dependem uma da outra e se complementam. Em ambos os casos, há diferenças em
relação aos telejornais, que sobrepõem a imagem a outras formas de expressão.
28
A questão do tempo, no telejornal, é outro fator que o diferencia da
reportagem. Segundo Rezende, a notícia segue um padrão de tempo adotado nos
comerciais em média, 30 segundos , o que leva a uma compactação e
simplificação do que é transmitido.
29
Equivale a colocar na tela tudo o que
acontece no mundo em pouco mais de meia hora, tendo em vista que do tempo da
programação ainda precisam ser descontados os comerciais, as chamadas e as
28
Em jornalismo de televisão ninguém duvida: a imagem é mais forte que a palavra. Toda vez que
num telejornal as falas estão em desacordo com as imagens, produz-se uma espécie de
descarrilamento da comunicação: o trem das palavras vai para um lado e o trilho da imagem, para
outro. Num caso desses, a informação auditiva se perde, mas a mensagem visual sempre chega ao
destino” (Manual de Redação da TV Globo, pág. 71).
29
Tentando driblar o problema do tempo exíguo na televisão, as grandes emissoras têm optado por
reportagens divididas em blocos ao longo da semana. Isso faz com que o telejornal ganhe maior
profundidade, sem comprometer a seqüência e o conteúdo jornalístico, o que sem dúvida representa
um avanço sobre a informação simplificada. Por meio da análise aprofundada, leva-se ao receptor
uma visão mais completa, embora não necessariamente recheada de histórias humanizadas.
105
vinhetas. Um exercício difícil que obriga a informação a entrar numa camisa-de-
força, deixando a subjetividade de lado para narrar apenas o factual.
Ainda sobre o papel da imagem, esta exerce uma importante função, que
chega a adquirir sentido poético. O icônico, a cena de uma reportagem, pode servir
de ponte da tela para o imaginário, complementando o sentido da fala ou do texto
impresso com outras percepções que não cabem no lead. Isso possibilita um efeito
lúdico sobre os elementos visuais. Conforme Artur da Távola, em A liberdade do
ver, “a imagem é ‘surrealistizante’ porque pode ultrapassar as barreiras do
chamado real concreto” (2000:37). Segundo ele, a imagem faz a televisão ter uma
dupla pauta de leitura:
Na TV a palavra escrita seria a pauta de cima, a do
discurso (melodia); e a imagem seria a de baixo
(harmonia), o que permite uma visão que não é patente.
O discurso é patente, objetivo. A imagem está carregada
do latente, ou seja, o que lateja dentro de cada coisa e do
jacente (o jacente é um nível mais profundo e o que jaz
dentro de cada coisa) (2000:37).
Mas essa característica subliminar e sedutora que o imagético representa
também pode se transformar numa armadilha, conforme explica Ciro Marcondes.
Para esse autor, a imagem é uma das coisas mais importantes para o ser humano,
pois desde tempos remotos nos liga ao imaginário a dimensão que existe no
homem paralelamente à dimensão do real. Mas, segundo ele, a televisão é
responsável por uma perda de sentido na história, porque desenvolve uma outra
relação com a imagem: “É a relação extensiva, ou seja, não se tem tempo de parar
sobre uma determinada cena, pois todas elas se movem num ritmo muito mais
rápido; a troca de planos e imagens é ultra-acelerada” (1988:13). Marcondes
acrescenta:
A era eletrônica, na medida em que criou a imagem que
se perde no ar (a televisão), subtraiu-nos esse privilégio
de entrar ou retornar a outros mundos. Esta é a grande
perda da comunicação visual eletrônica. Pela TV as
imagens passam rapidamente e não nos detemos nelas,
não as exploramos completamente. Se temos diante de
106
nós uma foto, podemos parar e olhá-la
minuciosamente. O movimento e as cenas estão
congelados, e por isso podemos nos deter nos detalhes,
nas expressões, no ambiente (1988:13).
2.1 Lugar de conhecimento
Quando se observa a grande-reportagem na televisão brasileira, ao contrário
das rotinas burocráticas, que geralmente levam a atrofias da percepçção, a televisão
pode se tornar um lugar de conhecimento. Mas, para isso, segundo Jean-Jacques
Jespers, é preciso vencer alguns desafios. Um deles é ultrapassar o nível das
emoções primárias da imagem para interpretar os fenômenos pelo seu contexto
político, social e histórico. As emoções primárias, como a elas se refere o autor,
estão ligadas basicamente ao afeto de que as imagens são tributárias. Segundo ele,
uma reportagem sobre um campo de refugiados na Etiópia, ou em outra região
pobre do planeta, onde crianças morrem de fome, “não nos ensina nada em si
mesma sobre as causas da subprodução alimentar no terceiro mundo” (1998:166).
Para não ser uma mera transmissão do fato nuclear, afirma esse autor, é
necessário ampliar esse conhecimento pela dimensão empática e racional, pela
contextualização dos elementos. Na reportagem de atualidade, compara Jespers, o
fato depende muito da imagem como transmissão, e embora essa imagem seja
portadora de muita informação, pode não ser suficiente para expressar
profundidade.
No caso da grande-reportagem que utiliza elementos cênicos, se costuma ir
além das coberturas pontuais, do fato noticioso, fragmentado, superficial. Mas
quando se a compara com o mesmo gênero no jornal e na revista, não fronteiras
muito definidas entre esses diferentes usos, pois utilizam muitas vezes os mesmos
fundamentos que os caracterizam como abordagem complexa ou multiangular da
realidade.
Na grande-reportagem, não regras muito gidas nem uma construção
única, valendo considerar também o aspecto autoral, a utilização de observações
dispersas para traçar diagnósticos e prognósticos da realidade ou fenômenos.
107
Também são importantes a razão e a ação criativas. Mas as narrativas humanizadas,
como nos jornais, podem constituir um dos seus principais eixos. Através delas,
pode haver uma ação solidária, uma “dialogia social”, no dizer de Medina, que
permite a captação de oralidades, a fruição de aspectos lúdicos e reveladores para o
aprofundamento das questões.
Embora a televisão trabalhe com planos superficiais, nada impede, no tecer
da grande-reportagem, a captação de gestos, emoções, olhares que a distinguem do
convencional. Nesse caso, repórter ou âncora falam de frente para as câmeras e
com cenário ao fundo, muito comum nos noticiários. Na reportagem, a
contextualização permite abordar melhor as questões conflituais. A recuperação da
memória em torno dos antecedentes do fato, as correlações e entrevistas para
subsidiar o telespectador são outros procedimentos que permitem fugir ao lugar-
comum, tecendo os nexos do acontecimento. Para Jespers, os elementos da estrutura
da reportagem na televisão permitem uma ampla abordagem. Retratam a situação
de um fenômeno ou um dado acontecimento e suas interfaces. Devem levar em
conta três eixos principais: unidade de tempo, lugar e ação. De preferência, deverá
ser filmada num único lugar, claramente identificável através dos elementos de
cenário; num tempo definido (pode ser uma prisão, uma área rural, um bairro pobre
de uma metrópole). E a volta da ação em torno de um número restrito de
personagens (1998:168).
Embora haja os aspectos técnicos da linguagem televisiva, como som,
imagem e texto, a grande-reportagem nesse veículo também pode se servir dos
conceitos do que Lima denomina Jornalismo Literário (JL), pois conforme esse
autor, o JL se adapta também ao cinema e a outras formas de expressão, se bem
tenha se desenvolvido no jornal impresso e no livro-reportagem. Afirma Lima:
Textos narrativos contêm mais do que palavras sinais
artificiais de um código, a língua, organizada de uma
maneira previamente convencionada para que possamos
nos comunicar e traços gráficos. Contêm cores,
sabores, impressões, dimensões espaciais largura,
altura, profundidade – objetos, volumes, pensamentos.
Emoções. Por isso o fazem vibrar. Por isso sensibilizam
o seu sistema nervoso, estimulam sua mente, tocam suas
108
entranhas. Quando fazem com habilidade, você se
interessa. Você se encanta. Vocé é seduzido. Você aceita
o convite, embarca na viagem. E o texto com prazer.
Até o fim (2008:383).
Lima fala em “um oceano de dados, informações, estímulos visuais,
sonoros, táteis, movimentos – e nós, autores, temos a incumbência de retratar esse
real com o máximo de fidelidade possível” (2008:383). Nesse sentido, o território
da reportagem é mais do que um espaço de sondagem das estruturas lingüísticas.
É também o da dimensão do mundo que não se vê, mas que está presente e muitas
vezes não é captada em função dos condicionamentos da percepção e das rotinas
do jornalista. Para se mergulhar nesse universo oculto-presente-complexo, o
repórter teria que organizar, como afirma Lima, “a história que viu e viveu numa
narrativa consistente, representação simbólica de ações, cenários e personagens
reais. Nas duas pontas de seu trabalho, precisa ser criativo” (2008:384). Evidente
que não importa se essa construção de imagens é feita através da palavra, da
narrativa, ou do plano-seqüência de uma câmera, comandada pelo olhar do
repórter-cinematográfico: todos elementos têm que configurar uma realidade que
é passível de incontáveis combinações. Como diz Lima, “a realidade é como um
caleidoscópio, oferecendo combinações infinitas de cores. Cabe a cada escritor
escolher o ângulo que lhe interessa mais, vislumbrar um portal criativo para contar
sua história” (2008:388). Esses procedimentos dão à grande-reportagem
possibilidades de inovar em termos de linguagem e observação. Dentro dessa
vertente, podem ser abrigadas temáticas do passado, como os cenários de guerra
descritos pelas mãos de hábeis escritores da realidade, grandes embates esportivos
como o final da Copa de 2002 entre Brasil e Alemanha, e até dramas de
personagens anônimos que habitam calçadas e praças. A televisão, mesmo no seu
ímpeto de voracidade, oferece bons exemplos da utilização da linguagem
complexa em algumas coberturas. Um exemplo foram as histórias individuais de
Serra Pelada (geralmente retratada como formigueiro humano), que ganharam
marcas de autoria na reportagem de Ernesto Varela e Fernando Meirelles, em
1984, para a TV Gazeta de São Paulo. Centenas de depoimentos pungentes
colhidos pela reportagem sobre pessoas humildes, que um dia deixaram suas
109
famílias e barracos em busca do ouro prometido, os mostraram na intimidade.
(Cf. Machado, 2003:120).
Bem mais atual, Profissão Repórter, exibido pela Rede Globo nas noites
de terça-feira, é outro exemplo de como a televisão pode utilizar instrumentos da
literatura de realidade, na expressão de Lima, para contar histórias de pessoas
anônimas. Em seus episódios, prostitutas, paramédicos, voluntários são mais que
simples atores sociais. Eles podem ser mostrados como protagonistas das próprias
histórias que ajudam a construir, mesmo sendo meros desconhecidos na noite das
grandes cidades. Todos mostram um pouco de si mesmos, suas aflições e
emoções, mas sem que se perca o foco na questão central, da interligação dos
nexos e da dramaticidade dos fatos sociais.
Com ampla temática, a grande-reportagem abre possibilidades de recortes
na realidade observada. Para se compreender sua estrutura, podem-se utilizar os
conceitos da Teoria Geral dos Sistemas, conforme Lima.
30
Tais princípios são
universais e se aplicam a qualquer campo de estudo. Incluem, quanto ao fato
narrado:
1. A contextualização do fenômeno. Esse aspecto trata do
fenômeno que se está analisando, para detectar as
realidades circundantes, bem como as características
intrínsecas que afetam seu comportamento.
2. 0 mapeamento do fenômeno no tempo. Isso de modo a
definir as particularidades relevantes de seus antecedentes,
e a inferir possíveis desdobramentos no futuro.
3. Identificação de função. Trata de uma análise sobre a
função que o sistema vem desempenhando e poderá vir a
desempenhar (2004:8).
Lima ainda cita outros procedimentos para a construção narrativa, como,
por exemplo, a precisão e a exatidão nos textos. Ao contrário do que se possa
cogitar, o JL prefere não utilizar texto adjetivado, pois se funda numa apuração
criteriosa dos fatos e situações. Lima também lembra “nossa propensão humana a
30
Segundo Edvaldo Pereira Lima, a Teoria Geral dos Sistemas trata de uma proposição que
concebe a realidade constituída por diferentes entidades organizadas, numa superposição de
muitos níveis. Cada nível é dotado de um princípio organizado e o conjunto das diferentes
entidades organizadas forma um todo único, com interligações entre si (Lima, 2004:7-8).
110
contar histórias” (2008:358), como outra característica dessa técnica. E continua:
“Artificialmente, o jornalismo convencional esqueceu-se disso, buscando
estruturar seu discurso de um modo considerado por muito tempo lógico, racional
e objetivo” (2008:358). O autor afirma:
Entre a técnica da pirâmide invertida – que congrega
artificialmente elementos primários de uma informação
no início de um texto ainda presente como principal
recurso organizador de uma matéria em muitos
periódicos, e o estilo narrativo, o leitor aprecia mais o
segundo. Pois o estilo narrativo corresponde a uma
tendência natural humana, milênios, que é contar e
receber (ouvir, ver, ler) histórias (2008:358).
Outra marca distinta que o JL adquire é o sentido de humanização. “Toda
boa narrativa do real se justifica se nela encontramos protagonistas e
personagens humanos tratados com o devido cuidado...” (2008:359). A exemplo
do que se observa em grandes-reportagens ou documentários com essa técnica,
pode-se entrar na intimidade das pessoas, observar suas virtudes e fraquezas, o que
nos habilita a lançar um olhar sobre a natureza humana e identificar nossa própria
condição. Isso permite conhecer melhor nossos semelhantes, sejam celebridades
ou pessoas anônimas. A visão complexa vem complementar os elementos
anteriores, pois se baseia não exatamente na explicação dos fenômenos, mas na
sua dialogia, na convivência entre os antagonismos, gerando assim uma visão mais
abrangente das situações e acontecimentos. Lima afirma: “A explicação adota
geralmente uma visão unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista”
(2008:366). E continua: “Já a compreensão busca exibir o mundo sob perspectivas
diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos
aparentamente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos, perspectivas”
(2008:366). A grande-reportagem e outros gêneros que utilizam elementos do JL
ainda devem apresentar estilo próprio e voz autoral. Significa, na visão de Lima,
olhar o mundo de forma diferenciada, liberta de condições limitadoras. Além
disso, “a singularidade individual do olhar do autor transmite à obra um toque de
exclusividade que a diferencia, valorizando-a” (2008:369).
111
A imersão nos acontecimentos ou situações em que se envolvem os
personagens é outro fator que faz o repórter vivenciar a compreensão da realidade.
Nesse caso, o autor precisa ir a campo. Não basta transmitir o que acontece com
base no relato seco, impessoal, do que observa, mas é preciso também sentir,
cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam os personagens. Um outro
elemento vigoroso no jornalismo literário, como a ele se refere Lima, é o
simbolismo. Conforme o autor, o mundo extrapola o que é concreto e factual. É
também simbólico. E, nesse aspecto, muito o que dizer, principalmente em
relação ao visual. Lima acrescenta: “O simbolismo ajuda a consolidar na mente do
leitor a síntese, a imagem, o sentido de um acontecimento, pois se vale do discurso
poético, do código visual” (2008:379). O autor fala ainda sobre a responsabilidade
ética, que, no caso do JL, é fundamental para responder às demandas sociais. “O
jornalismo literário tem um compromisso com a realidade, e sua credibilidade
depende disso” (2008:389).
2.2 Arte e jornalismo
Em entrevista a este autor,
31
Medina defende a construção da reportagem na
televisão como processo de criação e cumplicidade entre jornalismo e arte. “É
preciso perceber se o texto e a imagem são criativos.” Conforme a autora, a
codificação artística, literatura no caso do texto, ou no cinema, no caso da imagem,
não tem uma fronteira explícita em relação ao jornalismo. A professora da USP
afirma que não para utilizar classificações como “jornalismo literário”, porque
todo jornalismo se vale de códigos e o jornalismo, para ser comunicação social,
precisa de uma codificação-arte, ou seja, ter poder de comunicação. “E a palavra
ou a imagem ou o som que têm ingredientes de criatividade é que são
comunicativos. O resto vira burocracia.” Isso nos leva a observar mais semelhanças
31
Ver anexos.
112
entre a televisão e o jornalismo impresso, sob o ponto de vista da fundamentação
do que vem a ser uma grande-reportagem, do que diferenças. “Então, o jornalismo
é, antes de mais nada, um fenômeno questionado a cada momento para sair de suas
fórmulas burocráticas, para responder criativamente às demandas sociais.”
Apesar das diferenças de suporte entre o impresso e a televisão incluindo
os demais meios eletrônicos –, Medina entende que não é imagem e som que podem
elaborar melhor a reportagem, “é se tem uma história de vida bem contada, se tem
um contexto amplificado”. E continua: “Eu vi um programa, recentemente, sobre o
Globo Rural, no Pontal do Paranapanema, de uma orquestra, o projeto Guri, com os
meninos acampados... que eu não vi na imprensa, na revista”. Segundo a autora, a
reportagem conjugou histórias de vida e protagonismo social. “Eu acho que se você
transita bem na arte, no meio artístico, você também se inspira para a inovação na
linguagem jornalística.”
A técnica, por si só, não seria suficiente para a construção dos relatos
narrativos, num gênero como o da grande-reportagem. Assim, na Universidade de
São Paulo a autora desenvolve, anos, um projeto pedagógico,
32
baseado no que
ela denomina “signo da relação” um trabalho que visa não explicar mas
compreender as motivações, aspirações, sonhos e expressões, como forma de
atender às demandas sociais e conteúdos de que a imprensa, com suas abordagens
reducionistas, não dá conta.
Por meio da polifonia conjunto de oralidades e expressões e da
polissemia a variedade de sentidos e de cultura possibilita ao repórter a
oportunidade de desenvolver uma relação dialógica, baseada na comunhão com
esses personagens, e não na rejeição de opostos, levando à organização diante do
caos. Diferentemente das rotinas discursivas do logos imediato e autoritário em que
se exprimem as condutas dos jornalistas, tal abordagem remete à linguagem da
32
Trata-se de um projeto de livro-reportagem, denominado São Paulo de perfil, que, por meio de
narrativas da contemporaneidade produzida por grupos de alunos interdisciplinares ou alunos da
terceira idade, retrata o universo de personagens anônimos, de diversos segmentos da população. O
projeto, diz a autora, promove a “reconstituição do rosto multifacetado que se constrói no caos
contemporâneo e nas tribos que habitam São Paulo(Medina, 2003: 33). A rie tem até o momento
30 livros publicados. Também com essa finalidade, coordena outro projeto de pesquisa, de caráter
interdisciplinar Projeto Plural que desenvolve dentro da série Novo pacto com a ciência, que
permite a abordagem inter e transdisciplinar entre as diversas correntes do conhecimento: a ciência
conversando com a arte.
113
complexidade de que trata Edgar Morin ou aos estudos que tratam do diálogo entre
os diversos campos do conhecimento.
Medina entende que ao sensibilizar o lado direito do cérebro, estimulando as
nossas emoções, a nossa sensibilidade, as narrativas podem ajudar a estimular a
razão crítica, que não seja apenas sentir, mas formar um juízo de valores sobre o
espaço e o tempo históricos.
Tal vertente se reforça na investigação da neurociência, que nos últimos
anos avançou no terreno da intersecção entre biologia e antropologia cultural, ao
propor uma fundamentação científica para os processos dialógicos. Segundo
estudos desenvolvidos pelo professor português António Damásio
33
, tais pesquisas
dão conta de uma profunda e intensa relação entre o raciocínio, a inteligência plena
e os estímulos sensoriais situados no lado direito do cérebro, especialmente o tato,
por meio da rede neural. Os estudos de neurolinguística permitem afirmar que o
conhecimento se dá de maneira complexa, através das sensações. A função da
reportagem seria penetrar nessa área, alertando para a dimensão de um problema.
Afirma Medina:
A sensibilidade da relação, que é o que chamo de “o
signo da relação”, é o estimulador fundamental de uma
inteligência plena, capaz de não só organizar em forma de
idéias, argumentos, mas também, depois, de intervir para
mudar o estado de coisas na realidade. Esse sentir,
pensar, agir é efetivamente uma tríade complexa que
estamos desbravando a partir de várias contribuições
interdisciplinares, mas a minha experiência em oficinas
narrativas, não na ECA mas também em outras
universidades, mostra que só a partir da sensibilidade
tátil, olfativa, enfim, de todos os nossos sentidos é que nós
conseguiremos sair daquela racionalidade ideológica,
esquemática, reducionista, que nós vemos nos
comentaristas de rádio, televisão e de imprensa, mas
principalmente no rádio.
33
O professor António Damásio é autor de um livro publicado no Brasil, O Erro de Descartes
(1995), em que contesta a concepção cartesiana “penso, logo existo”. Com base em suas
experiências na área da neurociência, ele propõe a inversão para “sinto, logo existo”. É autor,
também, de O sentimento de si (2001) e Ao encontro de Espinosa (2003).
114
Sobre o papel das narrativas na formação de uma consciência crítica, ela
observa que não se trata apenas de uma questão de sensibilização: “A narrativa se
constrói com ética, técnica e estética. Não é uma questão teórica. É uma questão de
prática operacional”. Apesar da restrição de espaço às narrativas de vida, esse
obstáculo não se deve ao fato de a televisão possuir uma linguagem fragmentada.
“Nesse veículo de tudo”, diz ela. “Há reportagens, às vezes, mais aprofundadas
na televisão que na imprensa.”
34
A autora acredita que esse veículo está
amadurecendo a sua linguagem no jornalismo, como amadureceu em outras
vertentes da ficção, por exemplo, a telenovela.
Ela cita o exemplo do Globo Rural como “fórmula de um jornalismo que
se refunda, que se cria”. Para Medina, o Globo Rural desenvolveu uma
aproximação com a linguagem rural, de tal maneira que grande parte de seus
repórteres aprendeu ou teve que aprender a conversar com o homem do campo,
que é cada vez mais urbano, tanto no Brasil como no mundo, mas que mantém
muitos vestígios da ancestralidade rural, principalmente no tempo de expressão. “E
o tempo de expressão urbano é a coisa do pique global, do Jornal Nacional,
enquanto que o homem do campo tem pouco tempo na linguagem para se
expressar. Essa foi uma das grandes virtudes do Globo Rural
. Medina continua:
– A outra vantagem é o fato de ter articulado muito bem
as três ferramentas do jornalismo: serviço informativo,
reportagem (e reportagem com arte e envolvimento mais
profundo) e as opiniões especializadas. Então eu penso
que essas três vertentes do trabalho jornalístico estão
bem representadas nas edições dominicais de uma hora
do Globo Rural... Nesse espaço de uma hora poderia
haver uma tendência hegemônica da opinião, do
34
Em entrevista a Edvaldo Pereira Lima, diz Medina: “O espaço nos meios jornalísticos
impressos e eletrônicos vale muito em relação àquilo que subsidia a informação social, que é o
espaço publicitário. Valendo-se desse argumento, as empresas jornalísticas apertam ao máximo o
espaço da informação social, afunilando-o. Daí, a grande-reportagem, embora tendo grande
possibilidade de êxito de audiência, está cada vez mais atrofiada num espaço que pretende ser o
mais sintético possível, pendendo para a fórmula da notícia. Que é econômica, mas, por outro
lado, é também superficial, não respondendo às necessidades mais profundas da informação
social. Com essa conjuntura, a grande-reportagem está cada vez mais relegada a uma ilha dentro do
jornal diário, e mesmo no jornal semanal, nas revistas... Com isso, a grande-reportagem briga por
espaços nobres na televisão, como no caso do Globo Repórter, como briga por um espaço nobre
até exterior ao jornalismo cotidiano (Lima, 2004:33).
115
comentário. Mas não é bem assim. Primeiro que
dificilmente você tem comentário. Às vezes tem um pouco
de comentário dos âncoras a respeito de uma grande-
reportagem ou a respeito do que foi mostrado numa
certa reportagem. E outra parte muito forte no Globo
Rural, que teve muito êxito em termos de audiência, é
toda informação útil de serviço que se desenvolve no
programa.
Medina entende que, quando se julga uma experiência jornalística
importante, nem sempre essas três características estão presentes. Ela cita o caso
da revista Realidade:
Recentemente eu fui para uma tese de doutorado em
Brasília, que trabalhou com The New Yorker, nos
Estados Unidos... e eu estive novamente em contato,
depois de todo esse tempo, com a experiência da
Realidade. A Realidade, por exemplo, não articulava tão
bem essas três vertentes. A grande-reportagem, o perfil,
tudo isso foi uma marca de Realidade. Mas o Globo
Rural eu acho que é mais completo, mais rico, no sentido
de trazer essa informação de serviço, que é muito
criteriosa, bem trabalhada, e o diagnóstico e o
prognóstico de fontes especializadas. E isso é muito
importante.
Para Medina, uma das características mais importantes no programa é que
ele fez um grande inventário cultural do Brasil, porque os territórios da imprensa
estão em geral muito concentrados nos comportamentos do litoral, desde o Norte e
o Nordeste até o Rio Grande do Sul. “E o Globo Rural conseguiu escavar as
marcas de identidade daquele Brasil, do Darcy Ribeiro, do povo brasileiro.”
Segundo essa autora, um levantamento das reportagens, documentários e
comportamentos referentes ao Brasil do interior – o que também poderá ser
observado no litoral vai poder revelar uma série de matérias antológicas sobre o
cotidiano do homem que vive nessa região do país. “Então, eu comparo essa
vertente muito rica àquilo que Darcy Ribeiro nos mostrou em seu caráter
antropológico, que é o seu trabalho fundante, O povo brasileiro.” E acrescenta:
116
É um programa que pesquisou, desenvolveu e
implantou uma linguagem dialógica do homem urbano
com o homem rural. O jornalista, que é formado e
urbano, ao entrar especificamente na televisão, mas
também na própria imprensa, na rádio, tem uma
tendência a uma linguagem que é padronizada, e
padronizada em função de uma unidade territorial,
basicamente urbana. Urbana, litoral e, se possível,
hegemonicamente do eixo Rio São Paulo. Essa
hegemonia da linguagem muitas vezes impede que haja
dialogia social, tema do meu trabalho constante de
pesquisa.
Para a professora da USP, a narrativa da contemporaneidade, no caso da
imprensa, do cinema ou documentário, traz uma contribuição fundamental à
cidadania. Segundo ela, para compreendermos e para dizermos a que viemos, em
termos de história, a reportagem cumpre uma mediação fundamental, uma
mediação entre a experiência viva de uma sociedade, de um povo, e a amplificação
dessa experiência através dessa narrativa. E continua:
Então, o Globo Rural cumpre exatamente esse papel,
de ser um espaço público de cidadania, porque estabelece
essas mediações entre o homem do interior – homem
como gênero, porque trabalhos lindíssimos do Globo
Rural de relação com a criança, com a criança que ainda
não é um ser maduro de cidadania, mas já é um sujeito de
cidadania na sociedade brasileira. Então, quando falo
homem, eu estou incluindo todos os gêneros e todas as
faixas etárias... desse sujeito social está presente a sua
voz, o seu comportamento, a sua maneira de ser, a sua
visão de mundo, e os repórteres é que fazem essa
mediação...
2.3 Sociedade do presente e do passado
Lucas Battaglin, chefe de reportagem do Globo Rural, disse em entrevista
a este autor
35
que existe uma grande área comum nesse gênero para qualquer
35
Ver anexos.
117
veículo, seja rádio, TV, imprensa, que é a “verticalização em cima de um
assunto”, ou seja, não apenas buscando as várias visões sobre ele, mas também
outras referências, como de história, de contexto, de avaliações diversas sobre
aquele fato e um aprofundamento de perfis, dos personagens envolvidos. “Se você
buscar uma boa grande-reportagem na imprensa escrita, numa revista, num jornal,
numa rádio e na televisão, eu acho que esses elementos, que são fundamentais,
são comuns.” Battaglin entende que a reportagem de televisão pode explorar mais
intensamente os aspectos ligados ao visual, mas um bom texto pode estar
descrevendo, muitas vezes, o meu jeito de estar falando de maneira bastante
envolvente”. Ele acredita que o recurso da imagem, de certa maneira, é um
facilitador na relação com os outros veículos. “Mas eu acho que existem mais
semelhanças entre as grandes reportagens no jornalismo em geral do que
diferenças.” Para Battaglin, existem algumas especificidades na tevê, com as
imagens e as falas, esta última também como característica do rádio, o que ajuda
a ter muito presente a maneira de as pessoas se expressarem e se comunicarem.
Battaglin entende que o jornalismo de televisão, hoje, é feito em grande
parte nos centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e
Porto Alegre, que têm características cosmopolitas, e que, por isso, torna esses
lugares semelhantes a outras metrópoles do mundo. “É um ritmo de vida mais
frenético, remetendo à linguagem visual que é muito próxima dos takes curtos, da
linguagem agitada, da linguagem clipada.”
Segundo o jornalista, pode-se mostrar uma reportagem sobre o trânsito
fazendo-se uma cena de uma avenida congestionada, mas isso muda quando o
foco se aproxima do campo:No mundo rural é muito difícil você ter uma câmera
fechada, você tem que abrir a sua vista porque está lidando com a natureza”.
Como se pode inferir, na análise comparativa entre jornal impresso e
televisão, apesar das semelhanças de linguagem, existem outros procedimentos
que os diferenciam enquanto relação com o tempo dos acontecimentos. O
fechamento das edições do jornal ocorre por volta das 23 horas – exceto em
ocasiões de eventos inesperados, de grande repercussão, o que obriga a atrasos –,
enquanto, na televisão, esse tempo é muito mais flexível e ágil, podendo
118
permanecer “ao vivo”, se preciso, transmitindo do local por tempo indeterminado.
O sujeito pode ficar exposto aos fatos enquanto durar a abertura do foco da
câmera. Mas é certo que ambos, jornal e televisão, constroem suas mensagens a
partir de fragmentos, partes, contextos. No Globo Rural, é preciso entrar na vida
do campo. Afirma Battaglin: “Você tem que lidar também com uma linguagem
onde o ritmo se aproxima mais da natureza e do próprio ritmo de acontecer as
coisas no campo, que é um ritmo um pouco mais descansado, eu diria”. O
jornalista acrescenta:
Se você fizer uma reportagem de colheita mecânica
numa grande lavoura de Mato Grosso vai ter que ser
mais rápido, mesmo porque a agitação das máquinas
muda isso. Mas, no dia-a-dia do campo, para você ser
fiel àquilo que está captando, é necessário uma
linguagem mais pausada, mais demorada, com takes
mais longos, com takes mais lentos, com mais tempo para
as pessoas lerem o que elas estão vendo na tela. Então, é
uma linguagem diferente mesmo e proposital.
Battaglin lembra ainda na entrevista que não se trata de um programa
agrícola e pecuário. “É um programa cujo cenário é o meio rural, cujo protagonista
é o homem do campo. Segundo ele, a matéria pode ser técnica, falar de uma
determinada tecnologia agrícola ou pecuária, ou até mesmo se tratar de uma
reportagem política. Mas o herói é sempre o homem do campo. Suas reportagens
vão além do enfoque técnico. Nelas, o conhecimento é um processo de construção
que não se esgota no manejo, técnicas de cultivo, criação e reprodução animal,
englobando também as raízes e tradições orais e narrativas do campo. O chefe de
reportagem do Globo Rural explica:
Hoje, esse homem escova os dentes com a mesma pasta
de dentes que você e eu. A mulher dele usa o mesmo
batom que o da minha mulher ou da sua. E compra,
muitas vezes, o mesmo tipo de leite, em saquinhos,
porque o homem do campo também é dependente de
consumo e também participa da vida nacional, também
está integrado, através dos meios de comunicação, da
televisão, do rádio, dos jornais, das cooperativas, do seu
tecido social de uma maneira muito intensa. Então,
119
quando falamos do homem do campo, a gente não
precisa falar muito simples. Eles têm o mesmo ensino
básico que o pessoal da cidade...
Ele admite, porém, que o homem do campo tem uma especificidade
cultural, vive num ambiente que não é o de uma metrópole, e essa característica
muito própria aparece no ar. Então, o Globo Rural traz uma contribuição valiosa
para a identidade brasileira, mas não é a única. No programa, segundo ele, se lida
com todo o universo cultural brasileiro, que tem raízes no meio rural. Isso inclui
toda a malha de recursos naturais do Brasil onde quem zela por eles são os que
vivem no meio rural. Segundo o jornalista do Globo Rural, a grande-reportagem
abriu espaço para falar de coisas muito ricas, com personagens que, antes da
chegada do programa à televisão, em 1980, quase não se reconheciam na fala.
“Normalmente, eles olhavam qualquer emissora de televisão no Brasil e viam uma
emissão muito mais voltada para o homem urbano do que para eles. Então, eles
acabam se identificando, sendo protagonistas de um espaço que se tornou relevante
na TV.”
A sincronia entre os processos informacionais e os ritmos da sociedade foi
apontada por estudos desenvolvidos por Baitello, com base nos conceitos do
antropólogo norte-americano Ashley Montagu, e demonstra que tais aspectos são
determinados pelo tempo das atividades, se repetindo em função dos costumes, dos
regimes e jornadas de trabalho etc. Os processos midiáticos também se moldam à
atividade humana, e podem transgredir outros ritmos de tempo, como o de pensar,
orar, dormir.
A origem da dimensão temporal ocorre com o nascimento, quando os seres
vivos ficam sujeitos a uma série de estímulos, como o tato, que lhe permitem
respirar, sentir, observar. No caso do homem, esse processo implica um ser em
constante mutação, empenhado na capacidade de superar-se e renovar-se. A
consciência de sua fragilidade o leva a criar um sistema que lhe permite um
constante recriar-se a si mesmo. É a cultura.
36
Diz Baitello: “A cultura cria valores
36
“Conjunto de artifícios simbólicos, melhor ainda, um sistema simbólico que abriga o homem e a
sua natureza, após seu nascimento, a um tempo moldado e moldador de uma rede interativa de
120
temporais divergentes daqueles oferecidos pelas operações informacionais
presentes na memória dos sistemas vivos” (1999:98-99).
Para o autor, cultura é um processo não capaz de “criar, transmitir e
manter o passado no presente”, como propõe Montagu, mas também de outras
combinações, ou seja, mantendo o passado no presente e no futuro, e o futuro no
presente e no passado. Através do que chama “segunda realidadea capacidade
de o homem transpor o limite físico, criando imaginário, linguagem, ritual, sonho,
gesto e sentimento – que os vetores temporais divergentes atuam. Assim, diz
Baitello, “cada cultura pode definir o seu próprio padrão de tempo” (1999:99). E
acrescenta: “Há culturas voltadas para textos futuros.
37
aqueles que se centram
no presente e seus textos. Também existem culturas que se fundam na memória e
nos textos passados” (1999:99). No caso dos processos informacionais (centrados
no presente), são marcados pelo descarte do sentido da história, “tornada obsoleta
pelas codificações consagradas por um determinado momento” (1999:99). Afirma
ainda Baitello: “As referências históricas, construídas no cadinho das experiências
passadas, se perdem, sonegando com isto o solo fértil para a vida do imaginário”
(1999:99). Nesse caso, continua, as técnicas ditam as normas, a tecnologia se
confunde com o saber. Na sociedade midiática, existem tanto a cultura voltada para
o presente quanto a do tipo que também mantém o passado no presente.
Em relação a programas com aprofundamento de tempos, em que a
ancestralidade é retratada por meio de ritos e tradições rurais, uma sintonia
entre presente e passado, em seus sentidos mítico e histórico, que nem sempre é
alcançada pelo padrão da mídia centrada apenas no presente. Com isso, se permite
entrar na área da segunda realidade, onde estão os sonhos, as emoções humanas
ligadas ao tempo, que é sobretudo cultural, que é o tempo do ritmo no campo:
A sociedade midiática reúne traços preponderantemente
de culturas heróico-míticas e de culturas centradas no
presente. Por um lado apenas descarta a informação
grupos sociais em escala diversa, desde a familiar até a escala planetária. Este sistema simbólico
como todo sistema de símbolos está sujeito às transformações solicitadas pelas necessidades de
seu criador ou usuário” (Baitello: 1999:94).
37
A cultura voltada para o futuro é do tipo messiânico. “Todo o seu passado e seu presente são
redimensionados em função da sociedade ideal que vai acontecer no futuro” (Baitello, 1999:99).
121
apenas passado o seu tempo imediato de veiculação,
instaurando uma memória de tipo ‘curtíssimo tempo’. Por
outro lado, permite, no vácuo criado pela destruição do
passado imediato, o ressurgimento dos fantasmas de
deuses e heróis, figuras que povoam as culturas centradas
no passado. Repare-se bem que as personagens heróicas
presentes na mídia diária como seu principal motor não
representam senão aparições devidamente recicladas
(1999:100).
2.4 Personagem de si mesmo
Em inúmeras edições do Globo Rural, o repórter acaba se transformando
na figura do narrador, aquele que vive a história por sua própria experiência. O
jornalista, nesse caso, se liberta da obrigação de ser eficiente, objetivo, com
citações diretas, para se tornar alguém que se envolve com os aspectos culturais, o
ambiente, os dramas individuais. É observador participante. No caso do programa
analisado, pode-se perceber que há uma relação dialógica do repórter com o
entrevistado.
38
Esse repórter passa a interagir com o homem do campo, auxiliá-lo
em busca de soluções para o problema que encontra em sua propriedade, em sua
plantação. Isso cria um vínculo com a comunidade que extrapola o presente
imediato e expande os laços entre os sujeitos (repórter e personagem) além da
relação de causalidade. Uma das técnicas que possibilita esse aprofundamento é a
observação participante. Também empregada no new journalism, permite ao
repórter viajar pelos aspectos simbólicos e culturais, de ambiente, da vida pessoal
do entrevistado, para sentir na pele como ele vive e assim poder reportar com
emoção.
38
Como afirma Medina, a técnica da entrevista nas suas virtudes dialógicas não significa uma
atitude idealista. As experiências sobre o cotidiano do homem contemporâneo mostram que
espaço para o diálogo possível, a possibilidade de enriquecimento para o repórter e o entrevistado.
“Sua maior ou menor comunicação está diretamente relacionada com a humanização do contato
interativo: quando, em um desses raros momentos, ambos entrevistado e entrevistador saem
‘alterados’ do encontro, a técnica foi ultrapassada pela ‘intimidade’ entre o EU e o TU. Tanto um
como outro se modificaram, alguma coisa aconteceu que os perturbou, fez-se luz em certo conceito
ou comportamento, elucidou-se determinada autocompreensão ou compreensão do mundo. Ou seja,
realizou-se o Diálogo Possílvel” (Medina, 1995:7).
122
Como diz Denise Casatti, em sua dissertação de mestrado “Viagem ao
outro estudo sobre o encontro entre jornalistas e fontes”, quando um jornalista
faz uma pergunta ou afirma algo a uma fonte, muitas vezes evoca uma resposta da
fonte que jamais teria nascido sem aquela pergunta. O processo inverso também
acontece, pois a fonte às vezes leva o jornalista a algo que ele jamais pensaria sem
aquela intervenção. Por isso, diz ela, “a verdadeira matéria nasce quando um Eu se
encontra com um Tu” (2006:90). Nesse imprevisível momento chamado encontro,
acontece o processo de compreensão.
Isso acaba extinguindo possíveis distâncias do narrador com o que é
observado. Battaglin considera que o repórter do Globo Rural pode se transformar
no personagem da própria história que ele cria, “chegando ao cúmulo de ser quase
um personagem de si próprio. Ele acaba sendo um personagem da matéria, e os
nossos repórteres usam isso mais ou menos”.
39
Em reportagens como Rio Capibaribe, objeto de análise no primeiro
capítulo desta dissertação, a temática é amplificada, e pode tanto falar da morte do
rio pela poluição industrial quanto da seca, o drama dos sem-terra. A mensagem
final tem um tom crítico. Mas ainda assim, nada parece escapar à memória dos
personagens, que continuam a se lembrar do programa e da reportagem muito
tempo depois. Isso, segundo Battaglin, demonstra um grau de fixação da
mensagem muito bom, possivelmente resultado do carinho com que o repórter
trata a pauta e desenvolve o tema. Ele explica:
Existe uma coisa muito significativa no Globo Rural
que é a seguinte: você encontra uma pessoa que assiste o
programa, que gosta e tudo, e ela vem conversar com a
gente e fala em detalhes da reportagem. E a gente tem um
índice de fixação muito forte, eu acho. Uma vez, em 1983,
nós pegamos uma família de agricultor que, por algum
39
Para Benjamin, “a narrativa, da maneira como prospera longamente no círculo do trabalho
artesanal – agrícola, marítimo e depois urbano – é ela própria algo parecido a uma forma de
comunicação. Não pretende transmitir o puro ‘em si’ da coisa, como uma informação ou um
relatório. Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela. É assim que
adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro. A
tendência dos narradores é começarem sua história com uma apresentação das circunstâncias em
que eles mesmos tomaram conhecimento daquilo que segue, quando não as dão pura e simplesmente
como experiência pessoal” (1984: 62-63).
123
motivo -- se não me engano foi quando inundou Itaipu –,
saiu do Paraná e foi morar num lote de terra em
Rondônia. E nós acompanhamos esse trajeto de
caminhão até elas se instalarem lá. Em 1993, nós
resolvemos dar um pulo lá e verificar como estava aquele
personagem, e um outro repórter foi e fez a matéria
dos dez anos. E no final da reportagem, ele disse assim:
“Vamos ver, seu Geraldo, se daqui a dez anos a gente
volta para ver como o senhor está”. E não é que, em
2002, nós recebemos uma carta falando assim: “Olha,
vocês prometeram, hein?, o ano que vem vocês têm que
voltar porque vai fazer dez anos”. A gente falava
assim: como é que pode um telespectador guardar isso
por tanto tempo?
Um fator que diferencia a grande-reportagem do telejornal de relatos
simplificados é a marca de autoria do repórter em relação a uma pauta pré-
estabelecida.
40
Enquanto, nos meios convencionais, o profissional fica preso a uma
determinada angulação da matéria, nesse gênero há um trabalho de construção nada
impessoal, mas baseada numa visão de mundo criativa, que pode contribuir com
diagnósticos e prognósticos da situação em foco, a partir de observações de
diversos tipos. No Globo Rural, o método de trabalho é multifuncional, um método
pioneiro na televisão. Para Battaglin, “é o repórter que edita as suas matérias e pode
fazer a pauta. Agora, como a televisão é um trabalho que depende de muita gente,
acaba sendo algo muito permeável em toda a redação”. Conforme explica, o
repórter pode receber uma pauta que não seja a dele, mas toda a construção ele
pode ser absolutamente livre para fazer. A reportagem que é feita para o Globo
Rural de domingo, ainda bruta, passa pelo que se denomina na redação do
programa de “videoshow”, uma pré-audiência, mas que em nada se parece com as
reuniões de chefia, que visam apontar erros e distorções no trabalho do jornalista,
como se verá com mais detalhes à frente. O objetivo é poder alertar, com todo
40
Segundo Célia Ladeira Mota, na estrutura visual, as imagens seguem uma sintaxe própria. Os
planos gerais, médios e closes têm por função contextualizar as narrativas. Mas entende que o
código visual na TV é de natureza convencional. “O cinegrafista ou o diretor de imagem de uma
reportagem televisiva não têm liberdade artística de criar uma frase visual distinta do texto que está
sendo falado. Ele está limitado pela natureza do veículo...”. No caso do telejornalismo da Globo,
pode-se dizer que “o código visual é altamente repetitivo nas diferentes reportagens, marcando um
estilo dessa emissora no uso dessa linguagem...”. Conforme afirma, a fórmula da voz em off,
seguida da passagem para a ação, off novamente e entrevista é marca muito comum nos noticiários
(Mota, 2006:132-133).
124
mundo, sobre problemas de comunicação, de linguagem de imagem, de narrativa,
antes de a reportagem ir para o ar. O repórter leva o material que editou e colhe
sugestões e opiniões dos presentes. Em seguida, volta a sair, mas continua sendo o
autor da matéria. Diz o chefe de reportagem:
Continua sendo responsável, tanto que todos os
repórteres se consideram autores das edições finais que
vão para o ar. Então, a gente reforça esse conceito de
reportagem autoral, embora não seja um autoral que caia
numa visão de autor, de uma visão opinativa da
realidade. É autoral porque a narrativa é do repórter, a
maneira de construir a reportagem é dele, a maneira de
equilibrar os diversos pontos é dele. E se você analisar o
material do Globo Rural (nós temos em atividade, hoje,
por exemplo, sete ou oito repórteres numa mesma
reportagem, num mesmo tipo de assunto), tratado por
cada um deles, é muito diferente, embora não deixe de
contemplar os aspectos essenciais daquela história. Mas
são visões e narrativas diferentes.
3. Construindo o sentido no Globo Rural
Para Battaglin, as perguntas dos repórteres quase não aparecem mais no ar,
porque a televisão está muito texto e uma falinha... então você não tem mais o
diálogo presente no ar, e eu acho que o Globo Rural preserva o diálogo repórter-
entrevistado”. Ele entende que o personagem tem mais a dizer. “Você revela a
relação que ele estabelece com outra pessoa, no caso o repórter.” E acrescenta:
“Mas tem ainda todo um trabalho das câmeras que é fundamental, que é o trabalho
das ilhas de edição.” No caso da redação do Globo Rural, as cenas passam por uma
espécie de lapidação, tendo-se o cuidado de se preservar a qualidade das imagens
do campo.
Segundo o repórter-cinematográfico Jorge dos Santos,
41
não é possível falar
em histórias de vida sem considerar os aspectos narrativos que a linguagem
imagética proporciona. Esse recurso é um dos pontos fortes do programa em
41
Ver anexos.
125
relação a outros de seu segmento. O Globo Repórter, por exemplo, tem uma pauta
mais fixa. Conforme Jorge dos Santos, nesse programa, geralmente, o entrevistado
é levado para um determinado lugar, escolhido pela produção, enquanto, no Globo
Rural, “nós é que vamos no lugar da pessoa. É o inverso”. Sobre a plasticidade das
imagens e o trabalho de autor, ele conta uma história em que a câmera se
transformou nos próprios olhos do objeto filmado. Diz Jorge dos Santos:
Se você for fazer uma matéria sobre árvore, por
exemplo... Lembro-me de uma matéria do jequitibá, que
eu fiz com o Hamilton. Como você faz para o
telespectador se prender numa imagem da árvore, que é
um ser parado que está ali? Você precisa criar situações
com movimento de câmera, com detalhes da árvore... O
cinegrafista do Globo Rural precisa ser muito observador.
Ele tem que estar atento ao que pode chamar a atenção
numa coisa parada que é uma árvore. Então, a gente fica
imaginando o que vamos fazer com essa árvore. Apesar
do tamanho dela, a grossura dela, a explosão que ela é
como ser, como vamos transformar isso em termos de
televisão? Nós vamos ter que buscar alternativas. A
primeira foi construir uma plataforma ao lado dela e
falar: “Nós vamos escalar essa árvore, s vamos entrar
no íntimo da copa dela”. Criamos uma plataforma e
levamos o Zé Hamilton, que é um cara que escreveu muito
sobre jequitibá. Então, quando o Hamilton chegou à
copa da árvore, que eu estava com a câmera em
cima... no meu íntimo, eu falei: “Vai haver uma
explosão emotiva do Zé muito grande, porque ele falou da
árvore durante muito tempo e ele não entrou na
intimidade da árvore. Ele vai entrar agora!”E quando ele
chegou, ele se emocionou, ele chorou.
Mas a história não terminou aí. O cinegrafista conta que ficou uma semana
naquela copa, mostrando o que acontecia ali, e o que se passava em volta da árvore,
o que a árvore estava vendo. “Eu passei a ser a árvore. Então, era um passarinho
com uma cor diferente, era um bando de macacos que vinha de manhã para comer
uma frutinha. Era um cara que passava com uma foice nas costas... e olhava para a
árvore.” Para Jorge dos Santos, a câmera passou a ser a árvore, a ter uma vida, e
puderam transportar o telespectador para essa realidade.
126
Apaixonado por cinema, quando está em São Paulo freqüenta as salas de
exibição em companhia da filha, de 13 anos. Mesmo quando não tem tempo,
durante as viagens, adquire os filmes e os assiste em seu laptop. Admira Copolla,
que, como afirma, abusa dos planos-seqüência, sem edição. “Ele faz jogos de luz e
não precisa de edição, de corte brusco, tem uma seqüência bem agradável, bem
suave.” Essa experiência, em parte, ele traduz para a televisão. “Então, eu sempre
espero um momento bom de luz para algumas imagens.”
Segundo ele, mesmo em relação a uma planta, existem certos conceitos de
que não é possível abrir mão. “O momento ideal para você filmar café, por
exemplo, ou é pela manhã, cedinho, ou à tarde, em que um sombreado bonito,
uma temperatura agradável.” E acrescenta: “Eu tento não interferir muito na vida
da planta. Eu vejo a temperatura de luz, o plano ideal, aquilo que eu estou
sentindo”. Embora com diferenças na maneira de conduzir o assunto, a matéria
técnica recebe o mesmo tratamento visual em uma história humana. Ela precisa ter
começo, meio e fim. Continua Jorge dos Santos:
Na matéria técnica você tem que ser muito mais
objetivo. Por exemplo, é uma visita ao médico. Você tem
que ir lá e falar para o cara: “Olha, a tua planta está com
esse problema, você tem que usar este produto, se não der
certo, vai ter que procurar outro médico, que ver de
perto a doença”. Quer dizer, encerrou. Não tem o que
evoluir na história. Na matéria trabalhada, não. Você
precisa criar toda uma situação, entrar na intimidade do
agricultor, entrar no dia-a-dia da fazenda, dos animais,
das plantas. São duas coisas diferentes, mas recebem o
mesmo tratamento cinematográfico, ou seja, precisa ter
começo, meio e fim, sempre.
Uma característica de imagem do programa é trabalhar sempre com a luz
natural, do dia-a-dia do ambiente. Se possível, até aproveitando um feixe, um raio
de luz que penetra na cozinha ou num outro lugar da casa. Mas, como admite o
cinegrafista, às vezes as pessoas ficam um pouco inibidas com a presença dos
equipamentos, tripés, câmeras, microfones. “A parafernália assusta um pouco, mas,
normalmente, a gente começa entrar num clima de brincadeira que ajuda a
127
descontrair. Passamos às vezes dois ou três dias na propriedade, com muitas horas
de gravação, e isso ajuda o cidadão a se soltar.”
Um diferencial em relação a outros programas, especialmente os telejornais,
é a forma com que a equipe – integrada pelo operador de áudio, o repórter-
cinematográfico, o repórter e um motorista elabora a matéria. Explica Jorge dos
Santos: “A gente se reúne com o Lucas (chefe de reportagem) eu e o repórter, no
caso , ele nos passa a informação, o lugar, e começamos a pensar, a imaginar
como vai ser a matéria”. O primeiro passo é checar se a realidade é mesmo a que se
anuncia. Depois, começam as reuniões entre as pessoas que vão participar das
gravações, e, normalmente, entram as empresas que prestam assistência técnica, os
agrônomos, que seguem até os locais já programados. O roteiro vai sendo elaborado
durante o percurso.
As falas intercaladas com imagem (passagem, no jargão jornalístico), que
dão uma ligação entre as narrativas e constituem importante recurso de construção
textual, na televisão, são discutidas quando o repórter tem a matéria na mão.
Como explica Jorge dos Santos, um fato ocorrido com algum personagem ou um
lugar onde se deu parte da ação podem servir de ligação da história. Já no telejornal,
é o editor, geralmente com visão mais abrangente do assunto, que define
antecipadamente as passagens com o repórter e o cinegrafista.
42
4. O caso do Globo Rural
O programa Globo Rural surgiu em decorrência de uma questão estratégica
de mercado. Os anos 1970 marcam um novo momento de expansão agrícola no
interior do país. O então ministro Delfim Neto, visto como homem forte do
42
Em Rio Capibaribe, repórter e cinegrafista discutiam sobre a matéria e, de repente, se deram
conta de que o havia como finalizar. O rio chegava a Recife depois de cruzar todo o estado de
Pernambuco. E a equipe se perguntava: “O que fazer daí?” Então, a saída foi voltar ao ponto de
partida, na nascente do rio, onde vivia o sertanejo Edmílson. Lá, começava a história. “O máximo
de água que ele conseguia ver era uma minazinha”, conta o cinegrafista. Edmílson aparecia apenas
na primeira ponte, a quilômetros de distância da foz. Por sugestão do próprio Jorge dos Santos,
decidiram levar Edmílson até outra ponte, no Centro Velho, de onde então pôde apreciar pela
primeira vez a imensidão azul do oceano, nas cenas finais.
128
governo, priorizava o setor. Assistia-se à domesticação do cerrado para a moderna
agricultura de grãos e de novos produtos, soja e laranja entravam firme na pauta de
exportações. Nesses tempos, a eletrificação rural também estava em expansão, e o
sinal da televisão ganhava um alcance considerável, como explica o editor do
programa, Humberto Pereira:
O homem do campo entrava no mundo dos
telespectadores, mas não havia na programação das redes
um produto onde ele e sua atividade fossem os
personagens principais. Não havia, nos intervalos
comerciais, anunciantes de insumos, ferramentas,
medicamentos ou prestadores de serviços destinados ao
campo.
43
Para atender a essa demanda, em 6 de janeiro de 1980, um domingo,
entrava no ar o Globo Rural. Um projeto pioneiro da televisão brasileira, hoje perto
de completar três décadas de existência, que veio colaborar para a expansão das
fronteiras agrícolas do País e o gigantesco mercado do agronegócio, que
movimenta cifras milionárias. Sua audiência chega atualmente à casa de 15
milhões de telespectadores aos domingos, entre os quais crianças, empregadas
domésticas, donas de casa, agricultores, pecuaristas e empresários. Gente que
acorda cedinho, que tem raízes no campo ou viveu lá. Talvez isso explique em
parte sua grande penetração mesmo entre os moradores urbanos. O programa chega
a funcionar como um canal dessas famílias com seus antepassados.
Hoje, ele é tanto um programa voltado para a grande-reportagem como
também para as notícias de atualidade, de mercado, de serviços, mas só que no
cenário do meio rural. A partir de outubro de 2000, ganhou a edição diária, que vai
ao ar de segunda a sexta no horário das 6h15. Mas manteve a proposta inicial de
fazer um programa jornalístico não exclusivamente de atualidades, mas onde fosse
possível extrair mais documentos, mais histórias aprofundadas do campo,
prevalecendo uma opção pela grande-reportagem desde o seu começo.
43
Outras informações no site Globo Rural On Line (www.globo.com/globorural). Acesso:
19/12/2006.
129
No início, tinha apenas meia hora de duração, passando para uma hora em
julho daquele ano. Segundo Pereira, as primeiras reportagens tiveram uma
excelente acolhida, e marcaram época. Hoje, o programa mantém a proposta
inicial: ser um produto voltado ao homem do campo, o principal protagonista de
suas histórias. Ao longo de quase três décadas, o Globo Rural percorreu o Brasil do
extremo sul ao território do Amapá, registrando e contando desde a vida do
sertanejo no agreste e o crescimento do agronegócio no Centro-Oeste até as
tradições dos pampas gaúchos e a riqueza da flora e da fauna na Amazônia. Muitas
reportagens foram gravadas no exterior: América do Norte, Ásia, África. Várias
obtiveram prêmios nacionais e internacionais.
44
4.1 Fazendo história
A série de reportagens gravadas em 1986 “China: uma viagem histórica”,
incluída na coletânea do melhor do Globo Rural, lançada em DVD em homenagem
aos 25 anos completados em 2005, não é apenas interessante por ter sido filmada
nesse país comunista, com cultura milenar. Conforme Battaglin, em fala gravada
para esse DVD, o trabalho foi importante por retratar aquele país nos anos 1980,
quando a China dava os primeiros passos para liberalizar sua economia. Conforme
conta, o problema é que era difícil para uma equipe de reportagem conseguir visto
de entrada e autorização para filmar em território chinês. Então, foi preciso criar
uma estratégia para essa missão. A dupla Milionário e José Rico foi convidada
pelo governo chinês na época a fazer uma série de apresentações em teatros
espalhados pela China, e o Globo Rural acabou pegando uma carona com a dupla.
Eles tinham exibido um filme na China que tinha uma
música do mesmo nome, “Estrada da Vida”, que dizia o
seguinte: Nessa longa estrada da vida, vou correndo e
não posso parar, na certeza de ser campeão e conseguir
44
Entre os quais, Prêmio Ciência & Informação, concedido pela Embrapa ao Programa Globo Rural
(1981); Grande Prêmio do Festival Internacional de Vídeo Agrícola, de Santarém, Portugal, pela
reportagem O vale do Jequitinhonha (1987); Prêmio José Reis de Divulgação Científica 1999, na
modalidade “Jornalismo Científico”, concedido pelo CNPQ (Conselho nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ao repórter José Hamílton Ribeiro, pelo conjunto do
seu trabalho de divulgação científica (1999).
130
o primeiro lugar ”. Essa letra tinha muito do que o
governo chinês tentava passar para a população: sair dos
moldes muito rígidos do socialismo e incentivar a
concorrência e a livre iniciativa.
45
Como recorda Battaglin, que a equipe do programa era impedida de
gravar imagens não oficiais, negou-se a filmar o que o governo queria, até
finalmente poder entrar nas fazendas coletivas para saber como funcionava a
agricultura chinesa.
Uma marca importante do programa é a contribuição à agropecuária
nacional através da experiência de outros países. “Amendoim Forrageiro”, de abril
de 2003,
46
demonstrou a técnica do plantio dessa leguminosa, as sementes
cultivadas por pequenos agricultores de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e os
resultados positivos na alimentação do gado. Mas as narrativas, embora centradas
num assunto de interesse rural atual, levam a uma volta no tempo, contando
histórias do homem do campo ou dos segredos nos alimentos que cultiva. “Pêra
Japonesa”, de abril de 2001, incluída na coletânea do jubileu, mostrou
sobreviventes da bomba atômica lançada sobre Nagasaki, em agosto de 1945, e
seus descendentes que vivem no interior de Santa Catarina, onde cultivam a
espécie de pêra trazida de lá. O resultado é uma fruta de excelente qualidade,
graças a uma técnica desenvolvida na propriedade. A colheita celebra a paz entre
os agricultores japoneses, além de ter conquistado o mercado destinado às
exportações.
Como é habitual no Globo Rural, a reportagem sobre determinado lugar
pode acontecer em épocas diferentes, mostrando as transformações que ocorreram.
É o resgate da memória funcionando. Em 4 de novembro de 2007, 15 anos após a
primeira reportagem na Fazenda Barrero, no município de Intambacuri, Nordeste
de Minas, a equipe do Globo Rural foi ver como estava funcionando a Escolinha
45
Para informações complementares, consultar a série “China: uma viagem histórica” (1986),
lançada pela Globo Marcas DVD em 2007.
46
A reportagem conquistou o Prêmio Tortuga de Jornalismo, categoria televisão, concedido a Ivaci
Matias com os repórteres-cinematográficos Ico Coelho e Jorge dos Santos (2004).
131
do Peão, uma experiência pedagógica com meninos de rua, na sede da fazenda.
47
Dona Terezinha e seu Joaquim, responsáveis pelo projeto, continuam a zelar pelos
meninos. Na propriedade, os menores, além de abrigo, aprendem a ser peões,
domadores de cavalos, técnicos agrícolas. Enquanto uns fazem a ordenha das
vacas, cuidam da criação, outros freqüentam uma escola regular instalada na sede.
A experiência conta com o apoio dos órgãos públicos, que encaminham à fazenda
crianças vítimas de maus-tratos, abandono e falta de recursos. De lá, muitos se
formam e vão trabalhar em outros lugares. Outros permanecem como empregados
rurais remunerados. A repórter Ana Dalla Pria foi conferir o que deu daqueles
meninos sonhadores.
Em 1992, Lindomar, então um menino que freqüentava o ensino
fundamental na escola da fazenda, na segunda reportagem, já com 24 anos, havia
mudado sua vida: constituiu família e teve duas filhas do casamento. Mas preferiu
ficar trabalhando na sede. Ganha R$ 500,00 por mês, mas não paga aluguel. No
diálogo com a repórter, ele fala de seus sonhos e planos. “Essa era a vida que você
queria ter?”. Ele responde que esperava um pouquinho mais. “Então o que mais
você queria?”. Ele diz que ainda pretendia trabalhar um dia como enfermeiro e
acreditava que seu sonho poderia ainda ser realizado, porque havia tempo.
A experiência mostra uma das características marcantes do programa, que
é não trazer informações sobre o campo, mas, sobretudo, mostrar o homem
como protagonista. Outra característica é a mesma história poder ser gravada em
diferentes lugares, mas com vários personagens. Um exemplo é a reportagem
sobre o cultivo do feijão, um dos pratos preferidos dos brasileiros, que ganha tons
de um relato de ficção pela técnica da narrativa humanizada.
Em 4 de abril de 2007, um domingo, a reportagem vai ao ar por meio de
um importante trabalho de pesquisa. Nas primeiras cenas, a propriedade rural da
família Ferreira, localizada no município de Capão Bonito, interior de São Paulo.
Todos ao redor de uma mesa onde se faz a escolha do feijão, um costume
incorporado aos hábitos desses agricultores há mais de 75 anos. Mas escolher
47
A iniciativa de mostrar o trabalho social com crianças valeu ao Globo Rural o reconhecimento das
entidades filantrópicas e institucionais, como sendo um programa educativo e preocupado com a
questão do menor.
132
feijão, para os Ferreira, não é algo mecânico. Tem a ver com a vida: separar o que
presta do que não presta. o que é bom vai para a panela! Gesto que simboliza o
que a vida tem de melhor. Seu Joaquim, do alto de sua experiência de cadas
lidando com essa lavoura, acompanhou a evolução do mercado do carioquinha, o
feijão mais consumido no País, e também o que apresenta melhor produtividade por
hectare.
De Capão Bonito, a reportagem segue para Campinas, localizando o
engenheiro agrônomo Luiz de Almeida Dartanhã, que foi encarregado pelo
Instituto Agrícola de Campinas (IAC), de forma pioneira, a realizar os primeiros
testes com esse feijão. Hoje, aposentado, ele conta sobre o início de carreira e como
recebeu essa missão. A esposa, Florinda, se lembra do dia em que cozinhou os
grãos em seu fogão para o marido fazer os testes de viabilidade de comercialização.
O carioquinha demonstrou render o dobro dos outros grãos. Por isso, em 1969, foi
lançada a primeira safra comercial. Pode-se ouvir um antigo jingle de uma
propaganda de rádio lançada pelo governo brasileiro incentivando a população a
consumir o carioquinha.
A reportagem vai à casa de Waldemar Conrado Gutierrez, empresário rural
de Campinas, que em 1962 diz ter encontrado a planta dessa leguminosa em sua
propriedade. Era uma espécie diferente de folha, maior que a tradicional, o que
chamou sua atenção. O empresário diz não saber o que gerou o feijão,
possivelmente um enxerto natural possa ter ocorrido. Mas o grão ajudou a
acumular um grande patrimônio, hoje em atividades diversificadas. As imagens se
voltam para o IAC, no trabalho de testes com novas espécies de feijão. grande
evolução desde os anos 1960. Com o exame de DNA, hoje, é possível, por
exemplo, criar grãos resistentes a ataques de fungos e outras pragas. Mas, nada até
hoje se iguala, segundo os técnicos, à descoberta do feijão carioquinha. A
reportagem segue para os Andes, na Colômbia, para conhecer um feijão parecido
em terras na região de Medellín, onde há centenas de anos os antigos habitantes
cultivavam o alimento, levantando indícios de que essa cultura saiu da cordilheira
para ingressar no Brasil.
133
Essas e outras histórias deram ao Globo Rural, desde 1980, quando foi
lançado, a oportunidade de contar um pouco sobre o desenvolvimento da
agricultura nacional num país continental, responsável por grande parte da oferta
de alimentos mundial, mas sem esquecer a cultura do homem que nele habita.
4.2 Trabalho autoral
O programa que vai ao ar aos domingos, às 8 horas, tem quatro blocos. A
receita básica é um primeiro bloco mais cnico, com matérias que falam sobre
previsão de safra, pragas da agricultura, problemas de estiagem etc. O segundo
bloco contém informações sobre o mercado, destaques para a cotação do boi, café,
soja e outras commodities. O terceiro é dedicado ao atendimento de cartas, e, no
quarto, um espaço destinado às grandes-reportagens. Algumas vezes essa
matéria de encerramento fica muito longa e tem que ocupar dois ou três blocos. As
matérias especiais como as comemorativas dos 25 anos do programa
geralmente são exibidas em quatro blocos. A série “Os tropeiros”, também lançada
em DVD, ocupou o encerramento de 12 programas, no período de 16 de julho a
de outubro de 2006.
Como explica Battaglin, na mesma entrevista a este autor, nas matérias
gravadas em regiões distantes do território nacional, o repórter aproveita a viagem
para desenvolver mais de uma pauta. Se algo acontecendo de importante num
determinado lugar, se escolhe não o que é melhor, mas também o que é possível
fazer. Segundo o chefe de reportagem, existem limitações econômicas e de época.
“Eu estou agora com uma viagem de um repórter para a Bahia, tem que fazer cinco
ou seis coisas lá... e é o que para fazer nessa época. Quer dizer, tem coisa que
não para fazer porque a colheita não é agora.” Conforme afirma, no mês de
março, por exemplo, de vinte coisas que é possível fazer, se escolhem oito como as
melhores, e as outras doze são feitas para viabilizar essas oito.
134
Tais critérios são considerados na hora de marcar as viagens, ou definir as
pautas, mas estão incorporados à rotina diária da redação. A multifuncionalidade
é outra característica do programa. Nele, como se viu, é o repórter que edita suas
matérias, e também pode fazer a pauta. Toda a construção da reportagem depende
dele. Por isso, o Globo Rural tem um aspecto autoral que pode não haver em outros
programas, com pauta mais fixa. Nas matérias de encerramento, cada repórter pode
fazer uma seqüência em lugar diferente. Na série “Os Tropeiros”, os repórteres José
Hamilton Ribeiro, Nélson Araújo, Ana Dalla Pria, Camila Marconato e Ivaci
Matias se revezaram nas gravações dos 12 programas, cada um cumprindo um
trecho da cavalgada que saiu de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, para chegar a
Sorocaba, no interior de São Paulo.
Cada reportagem para a edição de domingo passa por uma pré-audiência
“vídeoshow” –, que tem por objetivo alertar para problemas de comunicação, de
linguagem, de imagem, de narrativa, antes de a reportagem ir para ao ar. Como é
praxe, o repórter leva seu material em que editou a reportagem para uma reunião, e
todos os integrantes da equipe acabam assinalando as qualidades e eventuais
problemas que a matéria apresente. Mas o repórter continua saindo e editando ao
seu jeito, continua sendo responsável pela idéia final que vai ao ar. Os repórteres se
consideram autores. Conforme Lucas Battaglin, o programa reforça o conceito de
reportagem autoral. “É autoral porque a narrativa é do repórter, a maneira de
construir a reportagem é dele, a maneira de equilibrar os diversos pontos é dele.”
Segundo ele, o programa pode ter dois ou mais repórteres trabalhando num mesmo
assunto. Cada um deles imprime um estilo diferente, embora mantendo os aspectos
originais da história.
Como mencionado, o Globo Rural lança mãos de certos artifícios de
linguagem para captar a essência da vida no campo. Trata-se de um ritmo menos
alucinante, não tão trepidante quanto reportagens de atualidade, os viodeoclipes.
Um desses recursos é o plano-seqüência ou seja, filmar praticamente sem cortes,
num plano ou tomada de câmera longa o suficiente para constituir uma seqüência.
Ao contrário dos chamados planos curtos a linguagem fragmentada –, essa
135
permite gravar gestos e atitudes do personagem, se detendo mais em cada detalhe
do ambiente.
Além do plano-seqüência, os cinegrafistas montam também sequências com
os personagens, em diferentes angulações por exemplo, dentro da sede da
fazenda, quando sai para selar o cavalo, aparece na varanda. As cenas são gravadas
como se existissem várias câmaras, quando na verdade existe uma e o trabalho
do repórter cinematográfico.
Battaglin conta que os cinegrafistas do Globo Rural não possuem apenas
formação de câmera, mas também de repórteres cinematográficos e têm uma
participação fundamental na construção da reportagem. Alguns, com mais de 20
anos de profissão. Além de enquadramentos, fotografia, o programa se esmera em
ter uma boa montagem. As edições seguem, muitas vezes, parâmetros do cinema.
Dadas as características do universo rural, há uma facilidade na captação de
paisagens exuberantes, de panorâmicas de muito bom gosto. Embora a mão do
repórter seja o eixo básico da narrativa, os repórteres cinematográficos participam
da reportagem desde a elaboração da pauta.
Fazendo uma retrospectiva do programa, perto de completar 30 anos de
existência, Battaglin afirma que muitas coisas do início permanecem, como, por
exemplo, a opção pela reportagem como forma de atuação e captação da realidade.
“Quer dizer, não é um programa de estúdio, entrevistas ou comentário como
existem muitos na televisão. É um programa de reportagem.” E continua: “Oitenta
por cento do tempo de nosso programa é com câmera na rua, e mesmo os vinte (por
cento) que estão no estúdio, por trás, têm muita reportagem de telefone, de
apuração, etc.” Em relação às mudanças, ele explica:
No número 1 – e aí eu vou ter que falar um pouquinho –
o Brasil era muito diferente da década de 80 do que na
primeira década do século XXI. Era um país mais
autoritário, nós vivíamos um período de ditadura militar...
toda informação era muito mais centralizada e mais,
digamos assim, controlada por alguns organismos do que
é hoje. Então, o que acontecia? Existiam duas coisas que
nos preocupavam muito naquele começo: uma era abrir as
comportas da informação e fazer circular mais as coisas
que estavam acontecendo no campo, e por uma série de
136
motivos políticos, na época, eram tratadas com muita
preocupação por parte do poder. Informação sobre seca
no Nordeste, sobre fome no campo, sobre reforma agrária,
conflito de terra, tudo isso era algo muito complicado.
Nossa idéia era fazer essas informações circularem
porque elas realmente aconteciam. E a outra coisa: s
sentimos que a tecnologia agropecuária estava muito
voltada para o médio e para o grande proprietário de
terra no Brasil. Ela chegava com muita dificuldade e
morosidade e, às vezes, com muita dificuldade para o
pequeno produtor. Dificuldade porque a própria
linguagem da extensão rural no Brasil era bastante
cifrada.
4.3 Interação com o público
Conforme dados fornecidos pelo programa, uma das principais fontes de
informação que alimenta as pautas é a seção de cartas, numa ligação direta com o
telespectador. Todas as cartas são respondidas ou remetidas a fontes de pesquisa.
Muitas reportagens são feitas em cima da sugestão do público – de cada oito ou dez
reportagens exibidas no domingo, pelo menos três ou quatro são baseadas nessas
informações, informa Battaglin.
Além dos releases de órgãos oficiais, não de governos, mas também de
autarquias, fundações, cooperativas, a redação recebe jornais agrícolas de
associações de produtores, ONGS, informações via internet e outras fontes. Para
poder passar informação ao homem do campo com a precisão necessária, os
assuntos polêmicos são pesquisados e debatidos pela equipe de produção. O
repórter, por exemplo, pode ouvir especialistas da Embrapa para se cercar de todo
o conhecimento possível.
Introduzida em outubro de 2000, a edição diária veio suprir algumas
carências da edição semanal. Entre as quais, a prestação de serviços no dia-a-dia.
Descontados os minutos do intervalo, o programa dispõe diariamente de 12 minutos
de conteúdo. No estúdio, fica um único apresentador, atualmente a jornalista
Priscilla Brandão. O telejornal geralmente inclui notícias, cotação de mercado e
137
informações meteorológicas. De acordo com Humberto Pereira, no Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) De mãos dadas com o Globo Rural”, de Maria Carolina
Garcia Lopes Abe, as cotações de mercado já eram divulgadas no domingo, mas isso
não era o suficiente, pois todos os dias sempre alguém querendo vender uma
vaca, mas não tem acesso a informações sobre preço. Ele classifica como
“inestimável” esse serviço para evitar os especuladores (2003:96). as
informações meteorológicas também trouxeram um benefício direto para o produtor
rural, pois, antes, as informações eram passadas na sexta-feira, e ocorria um grande
risco de erro de se apresentar uma previsão, e no final de semana o tempo mudar. O
trabalho de previsão é feito por uma equipe de especialistas da Globo com base nos
dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A produção do programa
entende que o acesso do agricultor ao serviço é um ponto fundamental, pois,
dependendo das condições climáticas, ele pode perder ou ganhar dinheiro.
As notícias factuais cobrem todo o setor rural, indo desde decisões de
órgãos públicos, situação das safras de grãos e hortifrutigranjeiros até conflitos de
terra, descobertas científicas, greves e manifestações de agricultores e índios. Além
disso, incluem ações de fiscalização contra abate clandestino de animais, festas e
receitas típicas de cada região. O Globo Rural recebe diariamente cartazes sobre
eventos, como rodeios, leilões de gado, feiras e exposições que são divulgados no ar.
Algumas matérias são feitas por equipes de emissoras afiliadas, dependendo daquela
que estiver mais perto do evento. Quando chega à redação, em São Paulo, passa por
uma triagem para acertar detalhes de conteúdo e eventualmente cortar dados e
corrigir informações. O programa é transmitido para todo o território nacional,
através de 115 afiliadas, além da Globo Internacional.
Battaglin avalia que, apesar de queda na audiência registrada na Globo,
incluindo Fantástico, Jornal Nacional, novelas, no período de setembro de 2007 a
fevereiro de 2008, o Globo Rural, também com menor Ibope, ainda sustentava bons
resultados.
48
Segundo o jornalista, o programa começou com 8 pontos de audiência
aos domingos na década de 80, galgando pontos até a cada de 90 e, a partir dos
48
Contatado, o Departamento Comercial da emissora informou que, por questão estratégica, se reserva
o direito de não divulgar os dados do Ibope atualizados sobre a audiência do programa.
138
últimos 15 anos, atinguiu a marca de 12, 13 pontos de média. Pegava com 8 ou 9,
marca atingida pelo programa que o antecedia, e entregava com 15, 16 pontos, ao
final de sua edição.
139
CAPÍTULO IV
MERGULHO NO PASSADO
1. Os Tropeiros
A reportagem Os Tropeiros é um trabalho de fôlego, que põe à prova alguns
fundamentos do jornalismo de aprofundamento. Apoiada em uma linguagem que
utiliza recursos ficcionais, ocupa 12 programas do Globo Rural exibidos em 2006. Os
diversos autores, repórteres encarregados de cada trecho da série, resgatam a
formação social e econômica da região Sul contando a história desses heróis.
Quase 50 anos depois de a atividade de tropeiros ser extinta, a reportagem
percorreu 1.760 quilômetros em lombo de mula para desvendar aspectos dessa
influência na vida de famílias, comunidades e cidades do Sul do País. Mas de uma
forma diferente. Busca esse contato através de depoimentos de vaqueiros, antigos
tropeantes, relatos e lendas ainda vivas na antiga rota tropeira. A missão é árdua. O
projeto do Globo Rural é partir de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, para chegar a
Sorocaba, São Paulo, conduzindo muares. É o repórter vivendo essa experiência. Mas
não isso. Nessa aventura por uma das regiões consideradas uma das mais bonitas
do País, a reportagem busca entender o clima político, a economia, os conflitos da
140
época. Para isso, se vale também de pesquisadores do tropeirismo, costumes e
tradições ligadas a essa atividade.
A forma de abordagem do tema provoca o debate conceitual de que fala
Edvaldo Pereira Lima sobre o jornalismo de narrativas ampliadas, com técnicas
literárias, baseada na observação participante, o mergulho no sensório, nas emoções,
nos relatos de perfis, nas histórias de vida. Os integrantes da expedição (os peões
profissionais Toninho Ming, Tertuliano de Oliveira e Antonio Diogo, o médico-
veterinário e comandante da expedição Edison Pagoto, o campeiro Manoel Gaspar,
entre outros), mais os pesquisadores (o historiador Eduardo Venturini e a professora
da Universidade Federal de rdoba Josefina Piani, além do escritor Rossano
Cavalari), quais verdadeiros protagonistas, contribuem para dar mais brilho às
narrativas.
Última fronteira
As origens do tropeirismo vão às últimas fronteiras do extremo sul do
Brasil. Fatores econômicos e estratégicos ligam essa região a Sorocaba, no interior
paulista. No século XVIII, a exploração de ouro e diamantes em Minas Gerais
atraía muitas pessoas, mas faltavam animais de cargas. As mulas passaram a fazer
essa função. Eram trazidas das regiões de fronteira para abastecer esse mercado, na
cidade paulista. No percurso, acabavam gerando riquezas e fundando cidades.
Cenas de Córdoba, a segunda cidade mais importante da Argentina: prédios
suntuosos e trânsito intenso. Devido à sua posição como centro geográfico, a cidade
ficou conhecida como “coração da Argentina”. , quatro séculos atrás, quando o
país era colônia da Espanha, esse coração começou a bater mais forte, narra
Hamílton Ribeiro, sobre o lugar onde a série praticamente começa. “Os padres
jesuítas se estabeleceram na região fundando diversas fazendas, para custear as
despesas com a evangelização dos nativos”, continua ele.
Sentado em uma praça, o historiador Eduardo Venturini analisa a influência
da mula na economia local. As chamadas estâncias jesuíticas que se instalaram
deram tão certo que Córdoba passaria a contar com uma universidade, uma das
141
crédito: programa Globo Rural
“Agora, está fazendo 400 anos que o comércio de mulas ajudou Córdoba a se
transformar em importante centro comercial”, narra o repórter José Hamílton Ribeiro.
142
primeiras da América Latina. Em 1613, os catequizadores fundaram também um
colégio e, para manter a independência financeira, precisaram montar um sistema
que custeasse as atividades da Companhia de Jesus. Chegaram a possuir 1,5 milhão
de hectares com lavouras, plantações de café, criação de gado, tecidos, artigos de
couro, mas, conforme Venturini, não demorou muito para as mulas ocuparem o
primeiro lugar.
Com imagens atuais da cidade, Hamílton afirma: “Agora está fazendo
400 anos que o comércio de mulas ajudou Córdoba a se transformar num importante
centro comercial”. Mas as marcas desse passado podem ser encontradas
principalmente fora da área urbana. Com 2 mil metros de altitude, as serras de
Córdoba são como uma muralha de pedra que protegem a cidade. O clima ameno,
com sol e chuvas bem distribuídas, fizeram dela uma região muito favorável para a
criação do animal. A mula é um híbrido, resultado do cruzamento da égua com o
jumento. A mistura das duas espécies gerou um animal tido como muito forte e de
grande resistência.
Um fato ocorrido no século XVI mudaria todo o panorama econômico da
América, que foi a descoberta das minas de prata de Potosí pela Espanha, território
hoje da Bolívia. A população local saltou para 160 mil pessoas em pouco tempo, o
que superava a de cidades européias como Londres e Paris.
49
“O sistema de
transporte entrou em colapso. A mula foi a salvação”, conta Hamílton.
49
Falar sobre Potosí é algo que mexe com a imaginação. Do século XVI, quando as minas de prata
foram descobertas, até o início do XVIII, já em decadência, a exploração desse metal gerou riquezas
e prosperidade à região onde é hoje a Bolívia. Conforme o jornalista Eduardo Galeano, “até as
ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de Potosí. De prata eram os altares das
igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas
da cidade foram desempredadas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com
barras de prata” (1994:32). Na cidade, a prata levantou templos e palácios, cassinos e mosteiros,
gerou festas e tragédias, incendiou a cobiça e derramou sangue. Em 1573, 28 anos após ter surgido
na região andina, Potosí contava com 120 mil habitantes. Era a mesma população que Londres,
mas superava Sevilha, Madri e Roma ou Paris. Já em 1650, o censo dava a essa cidade uma
população de 160 mil habitantes. Como a Coroa espanhola estava hipotecada devido a altos gastos,
todo o carregamento da prata, que seguia de navio da América para a Europa, era adiantado aos
banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis. O tesouro que vinha do Novo Mundo mal
cobria o déficit, que tinha de ser suprido com impostos. No seu auge, na metade do século XVII, a
sociedade potosina tinha congregado artesãos e pintores, europeus e nacionais, ou mesmo indígenas
que deixaram sua marca na arte americana. Com a ostentação e o desperdício, até mesmo a riqueza
de Potosí se foi, deixando na Bolívia, conforme Galeano, a “vaga memória de seus esplendores, as
ruínas de seus templos e palácios e oito mihões de cadáveres de índios”.
143
crédito: programa Globo Rural
Devido à sua posição como centro geográfico, a cidade ficou conhecida como “coração
da Argentina”.
144
Os criatórios de mulas das estâncias jesuítas alimentavam essa rota, que das
minas de prata seguia para Porto Belo (hoje Panamá), de onde o minério era enviado
para a Espanha de navio. A jornada era cumprida em lombo de mula e não levava
menos de um ano. O repórter narra a história:
Existia uma grande vaivém de mercadorias na rota da
prata. De mulas, minério, mantimentos e artigos de luxo.
Chamada de caminho real”, a rota atravessava as terras
das estâncias jesuíticas e garantia assim um lugar
privilegiado tanto no comércio de mulas quanto nos bens
que elas transportavam. As sedes, que têm em média 350
anos, dão uma idéia de como era o mundo dos religiosos
que vinham fazer a catequese dos índios na América do
Sul.
As instalações, hoje preservadas, lembram o estilo das construções da
América espanhola: paredes em arcos, igrejas com grandes vitrais coloridos e fontes
de água. Hamílton volta ao cenário dos altiplanos de Córdoba. Nessa região, a água
é límpida e os pastos, abundantes. Esses fatores foram responsáveis para tornar
atrativas as estâncias, com vocação pecuarista. Mas as mulas não dominam a
paisagem. É difícil encontrar um desses animais por ali, restritos hoje ao uso para
montarias de pequenos proprietários rurais. Ruperto Garcia, montando uma mula
com 25 anos, não tem dúvida quanto às qualidades desse animal: “É um grande
trabalhador”.
50
Mas não é isso o motivo por que hoje são admirados. José
Hamílton consegue ouvir algo mais precioso do criador. É a mula que primeiro
pressente a presença do puma (a suçuarana brasileira) nos pastos. “A mula percebe
mais rápido os avisos de perigo, porque tem pássaro que grita quando um puma
rondando por aí. É um pássaro gritar, que a mula espeta a orelha”, afirma. O
puma não caça os potrinhos quanto tem mula por perto, explica Ruperto.
O depoimento de pesquisadores sobre as origens e influências do
tropeirismo permite aprofundar a história desse fenômeno. Cenas da estância da
50
Guanacos e lhamas, animais hoje criados nos altiplanos de Córdoba, chegaram a trabalhar nas
minas de prata de Potosí, logo no início da exploração, na metade do século XVI, mas não
agüentaram as longas marchas com carga pesada.
145
crédito: programa Globo Rural
Em 1573, 28 anos após ter surgido na região andina, Potosí contava com 120 mil
habitantes. Era a mesma população que Londres, mas superava Sevilha, Madri e Roma
ou Paris.
146
Candelaria. Suas ruínas são o símbolo da pujança que havia na região. Fundada
pelos jesuítas no final do século XVII, chegou a ter 300 mil hectares, a maior parte
para cria e engorda de mulas. Segundo a professora da Universidade Federal de
Córdoba, Josefina Piani, a estância, ocupando uma posição estratégica, os melhores
pampas, com muita água, pasto verde o ano todo, perto das rotas, era quase o
coração do sistema. “Produzia de seis a sete mil mulas por ano. Cada mula valia o
preço equivalente ao de trinta vacas, para se ter uma idéia da importância econômica
desse animal.”
As instalações da Candelaria seguiam o modelo das estâncias jesuíticas.
Além da igreja, tinha residências para dois padres. Um era responsável pela
produção, o outro, pelos negócios. Havia também as rancherías,
51
como eram
chamados os alojamentos para a mão-de-obra. Mas essa função cabia aos escravos.
As instituições missioneiras tratavam o índio como irmão, mas aceitavam os negros
como escravos. A maioria das estâncias hoje funciona como museus do governo.
Segundo o repórter José Hamílton, na estância Santa Catarina, que por 250 anos
pertenceu a uma mesma família, havia mais de 400 cativos.
O Brasil
Os escravos das estâncias jesuíticas eram trazidos da África pelos
portugueses e contrabandeados para a Argentina em troca de prata. “Foi justamente
o tráfico de escravos que deu a oportunidade para os brasileiros de conhecerem os
criatórios de mulas na Argentina, mulas que depois cruzariam a fronteira para
abastecer nossas tropas”, diz o repórter. Início do século XVIII: as minas de prata de
Potosí entram em decadência e sobram mulas na América espanhola. Enquanto isso,
no Brasil, ocorre a descoberta do ouro. Como não havia criatórios do animal na
colônia portuguesa, o jeito foi importar. Na base do contrabando, milhares de
51
Termo em espanhol, mantido no original, em vista de seu emprego. No caso, aposentos,
acomodações. No português, conforme o Dicionário Aurélio, o termo remete a rancharias, que
significa cidades pobres.
147
crédito: programa Globo Rural
“As sedes (das estâncias), que têm em média 350 anos, dão uma idéia de como era o
mundo dos religiosos que vinham fazer a catequese dos índios na América do Sul”,
conta o repórter José Hamílton.
148
animais foram desviados para o lado brasileiro da fronteira”, conta o repórter do
Globo Rural. O comércio ilegal de mulas contava com um ponto estratégico. Era a
Colônia do Sacramento, fortaleza fundada em 1680 por Portugal na margem
esquerda do Rio da Prata, rota de tráfico de escravos, mulas e prata. Como conta
José Hamílton, a pessoa mais influente da colônia era um fidalgo português, amigo
do rei, que virou tropeiro. Sua casa e aposentos estão preservados. “É difícil se
afirmar que ele foi o primeiro tropeiro. Mas para a primeira tropa alcançar São
Paulo há um certo consenso”, diz o repórter.
Ela saiu da Colônia de Sacramento em 1731. Eram 800 animais, entre
cavalos e mulas, e a viagem se fez sob o comando do português Cristóvão Pereira de
Abreu. Ele foi abrindo caminho e construindo pontes. A viagem demorou quase três
anos. A tropa fez um caminho ousado, contornando o litoral até Viamão (norte da
Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul), seguindo em direção a São Paulo. Pelo
interior, seria um risco cruzar com os índios das missões ou os espanhóis.
52
A influência desses acontecimentos sobre o tropeirismo não foi apenas
geográfica. Como diz José Hamílton, o legado histórico é grande demais para ser
esquecido. Cenas de um almoço, em algum lugar do Rio Grande do Sul...
“Basta um domingo qualquer, a família reunida, e o tipo humano que se formou na
fronteira oeste revela logo as suas origens. O gaúcho das missões é um pouco índio,
um tanto espanhol, outro tanto português, meio caipira, meio campeiro”, narra o
repórter. Ele é mistura de sangues e culturas. “É fruto da influência que chega à
região no lombo de mulas por antigos caminhos tropeiros.”
A partida
52
Do outro lado da fronteira, entrando pelo noroeste do Rio Grande do Sul, as ruínas dos Sete
Povos das Missões. São Borja foi um dos aldeamentos construídos pelos jesuítas para a catequese
dos índios. Eles fizeram parte da mesma história documentada no lado argentino. São Miguel é uma
exceção. Segundo a reportagem, chegaram a viver ali 6 mil índios que, perseguidos, acabaram
dizimados. Os sobreviventes se espalharam pela região. Os guaranis foram massacrados por soldados
portugueses e espanhóis, em função de um acordo entre esses dois países para assumir as terras das
missões. Os índios deixaram para trás cerca de 2 milhões de cabeças de gado. Para escoar a
produção, uma outra rota foi aberta, partindo de São Borja até Viamão, seguindo a já existente para
chegar a São Paulo (Dados extraídos do DVD Os Tropeiros, Globo Rural, vol. I).
149
crédito: programa Globo Rural
O som da ferradura no asfalto abafa o ruído da chuva...”, comenta o repórter
Nélson Araújo.
150
A expedição, em solo brasileiro, começa em Cruz Alta, no Rio Grande do
Sul, com muita chuva. É um momento mágico, para alguns, mas de apreensão. A
tropa recebe homenagens antes da partida, num clima de data vica. O
repórterNélson Araújo, que cobre esse trecho do percurso, faz uma espécie de
exposição do espírito da tropa:
A chuva castiga a manhã da partida insistente.
Lembra aqueles obstáculos que sempre surgem quando o
herói está prestes a começar uma proeza... Não, não
temos nenhum candidato a herói. O que pretendemos é
seguir os passos dos heróis que o Brasil não conhece.
Motivo da reverência que prestamos aqui...
No meio do povo, alguns cidadãos anônimos manifestam emoção pelo
resgate dessa tradição, enquanto os muares, inquietos, iniciam a marcha. Hely
Rodrigues da Silva, ex-tropeiro, quase não se contém, ao ver a mulada. “Enxerguei
Deus, enxerguei Deus!” As bandeiras das associações ligadas ao tropeirismo, do
Estado de São Paulo e do Brasil, abrem caminho para a tropa. Araújo, montando o
animal que simboliza o tropeirismo, continua:
Chuvas e trovoadas, atoleiro de barro, trilha em pedra
escorregadia, muita poeira, picada de cobra, insetos
transmitindo doenças, queda em desfiladeiro, afogamento
em rio bravo, flechada de índio, assaltantes, além das
feras do mato. Essa é uma pequena lista do que os
tropeiros enfrentavam nos idos de mil e setecentos. Como
será que estão agora, trezentos anos depois, os caminhos
que eles percorreram? É o que a gente vai mostrar nesta
tropeada do Globo Rural saindo de Cruz Alta,
considerada o berço do tropeirismo. Desde eu
agradeço seu voto de boa sorte...
Descrição de pequenos detalhes de áudio ou de ambiente valorizam o
cenário por onde passam os tropeiros. “O som da ferradura no asfalto abafa o ruído
da chuva. A caravana ra o comércio de Cruz Alta...” Como explica a repórter
Camila Marconato, que vai ajudar a contar essa história, o problema no
deslocamento não é a cavalgada dos peões, como se pode pensar, mas a tropa
151
crédito: programa Globo Rural
“Enxerguei Deus, enxerguei Deus!”, diz Rodrigues, ao ver a tropeada.
152
solta, um lote de 28 muares que são conduzidos para São Paulo. Os animais,
distribuídos em quadrilhas, seguem encabrestados, amarrados com corda, para
não dispersarem. É a primeira vez que passam por uma área urbana, uma novidade
que pode assustar o animal. Por isso, é preciso cuidado.
Para preparar a tropeada, houve grande mobilização de pessoas, entre
profissionais, peões e consultores, que começou bem antes, no Município de
Sarapuí, interior de São Paulo, no sítio do Sanhaço. Lá, tem início a trajetória para
que o projeto do Globo Rural se tornasse viável. Esse conhecimento foi detalhado,
junto com outros dados da reportagem, na última parte deste capítulo, que trata da
análise textual. Mas a reportagem, em pelo menos dois episódios, fala dessa fase
de forma inusitada, mostrando detalhes técnicos.
Os números são impressionantes. De Cruz Alta a Sorocaba, a meta era
cobrir 1.760 quilômetros no lombo de mula A equipe incluía, além de repórteres,
peões e cinegrafistas, motoristas, técnicos de áudio e iluminação; parafernália de
filmagem, caminhões e viaturas, se deslocando diariamente. pelo menos 50
anos não se fazia uma tropeada, afirma o repórter Nélson Araújo, num trecho de A
travessia um dos 12 episódios da série. “Fazer reportagem, a equipe do Globo
Rural sabe. Mas tocar uma tropa de mulas pelo país afora, vamos confessar, a
gente não sabe.” Esse é um conhecimento que se perdeu no tempo. Continua ele:
Claro, houve muita pesquisa. Ouvimos consultores
para organizar a expedição. Mas não pense que haja
muita fartura de pasto pelo caminho, não. Um caminhão
leva ração e feno. Outro caminhão apóia o esquema de
revezamento. O animal que é montado hoje, amanhã é
embarcado, chega mais cedo ao posto para descansar, se
restabelecer. Na parte jornalística, três viaturas
trabalhando simultaneamente. É uma estação de tevê
ambulante. Nossas operações mobilizam seis, oito
viaturas, todos os dias. Imagine: para dar esse apoio
rodoviário, nossos carros vão rodar mais de 50 mil
quilômetros, mais que uma volta na terra... Por mais que
houvesse planejamento, são inevitáveis os imprevistos.
Altas horas: (cenas de carros parados) as baterias das
filmadoras arriaram. Mas a foto documenta o
desencalhe das viaturas. Nos trancos da viagem, são
muitas as avarias. É um pneu, um pára-choque, a
plataforma do carro de gravação. Contamos com um
153
crédito: programa Globo Rural
Na parte jornalística, há três viaturas trabalhando simultaneamente. É uma estação de
tevê ambulante”, narra o repórter Araújo.
154
bom aparato para atendimento veterinário ambulante
também. Mas as baixas acontecem.. O experiente burro
viajante prendeu a mão no mata-burro, rasgou a canela.
Vai demorar pelo menos um mês para se recuperar.
No interior paulista, o treinamento envolveu também os muares, e se
procurou reproduzir algumas das dificuldades esperadas no caminho: travessia de
rios e udes, principalmente. Nessa fase de preparação, não foi possível evitar
acidentes. A tropa simulava a travessia de um açude. De repente, a mula em que
vinha seu Toninho, um dos peões contratados, se assusta e um coice que acerta
a de trás, transportando Araújo na sela. Ele não tem tempo para evitar o choque de
seu rosto com a cabeça do animal, e quase desmaia no meio da água.
Embora pesquisas indiquem ter sido o tropeirismo extinto por volta de
1959, muitos de seus aspectos culturais não morreram. É o que se pode observar
nas cidades históricas situadas na rota da expedição paulista. Hoje, lugares que
alimentam o imaginário popular. Museus e antigas sedes das fazendas guardam
objetos utilizados por esses viajantes. São tralhas de montarias, espadas, armas,
roupas. Além disso, as lembranças guardadas por seus descendentes mostram toda
a força desse fenômeno na formação social e econômica de sua época.
A expedição vai abrindo caminho por cidades, muitas delas surgidas em
função do tropeirismo: Lagoa Vermelha, São José dos Ausentes, Bom Jesus (RS),
Santa Cecília, Mafra, Lages (SC), Rio Negro, Lapa, Castro (PR), num passeio pela
geografia dessas regiões.
Contos e causos ainda são narrados sobre os costumes desses viajantes.
Eles foram cantados em modas de viola, ao redor de fogueiras. O vaqueiro
Firmino, um personagem dessas histórias, que aparece na reportagem, é a prova
dessa influência. Sujeito atarracado, colete de couro, chapéu panamá, ele monta
uma mula branca. Às vezes, anima a tropa. E como vem, desaparece do nada, na
neblina. Fala como tropeiro, conforme outro trecho da reportagem:
Vou contá pra vós mecê! Se tem uma coisa que não pode
faltar ao tropeiro é coragem. E, modéstia à parte, eu sou
bem entendido nesse assunto. enfrentei tudo no
mundo. Já passei a noite toda com a tocha na mão
155
crédito: programa Globo Rural
“...Ela veio com aquele bocão pra me pegar. Eu falei, quer saber? Pelo menos a língua
dela eu arranco”, conta Firmino a tropeantes.
156
enfrentando as onças que queriam comer as minhas
mulinhas. Agora, tem uma coisa que me faz tremer. É a
travessia do rio Pelotas. Cristóvão de Abreu, o maior
tropeiro do sul, travessou ali com seis mil mulas e não
perdeu nenhumazinha. Eu? Já perdi ali mulas, já perdi até
companheiro. Por isso, eu digo: o Pelotas, vai com fé.
Aquele é o passo do inferno...
Na chegada às propriedades que dão abrigo à tropa, a oportunidade de
uma boa conversa entre repórteres e moradores, e a troca de impressões traz a
convivência solidária. A hospitalidade é tradição e a comida, preparada em tachos
de cobre. O peão que vem da marcha apressada tem um momento para relaxar,
lembrar da família, zombar com o parceiro, aparar a barba, tomar um banho
coisas que ele havia até esquecido e que continuam sendo motivos de prazer.
Mas também é o momento de planejar como serão os próximos dias no lombo da
mula. O feijão tropeiro repõe energias; o assado, preparado pela dona da fazenda,
fica uma delícia. É um segredo que ela herdou dos avós, alguns deles tropeiros, e
assim vão se formando laços solidários.
De manhã, antes do sol raiar, os muares já estão de volta ao caminho que
os levam para serras e campos distantes, onde outrora quase ninguém era visto.
Hoje, as rotas cruzam com rodovias perigosas, caminhões de carga e tratores
circulando, e todo cuidado é pouco para não ocorrerem atropelamentos. Por isso,
dentro do Estado de Santa Catarina, a meio caminho de casa, a tropa acha prudente
não arriscar, embarcando os muares em caminhões num trecho da BR-116,
conhecida como rodovia da morte. Mas, conforme o repórter Ivaci Matias, foi o
único percurso que os peões não fizeram no lombo de mula. Mesmo assim,
ninguém gostou.
1.1 Análise de elementos textuais
O corpus analisado, que, como adiantado na Introdução, incluiu trechos das
reportagens Ás aguas da partida, A travessia, Enfrentamentos, Meio caminho
157
andado e Planalto catarinense,
53
possibilita observar de quais elementos a
reportagem se utiliza para construir seus nexos. O tropeiro Firmino, que aparece
em vários momentos, é um personagem criado pela produção para ajudar a contar
a história. Quem o interpreta é o violeiro e contador de causos Paulo Freire.
Embora sendo uma ficção, o que ele diz, o que ele conta, é calcado na realidade,
com base em pesquisas efetuadas sobre os tropeiros nos séculos XVIII e XIX,
porque no século XXI, conforme a reportagem, ainda existem testemunhas vivas.
Os elementos textuais foram assim classificados:
A) informações e narrativas de contextualização (histórica, econômica,
social).
B) saberes locais;
C) falas e regionalismos; linguagem;
D) cultura: materiais, objetos, espaços de arte, comida, os pratos típicos da
culinária local, costumes;
E) relação do repórter com a comunidade.
História
O combate entre forças legalistas e maragatos, um fato importante na
virada do século XIX, aparece através do relato do presidente da Associação dos
Tropeiros Serranos, João Vicente de Souza.
54
É quando o repórter Nélson Araújo,
acompanhado da tropa, entra no município da Lagoa Vermelha. No alto da imagem
pode se avistar uma coxilha, pequena planície pica das regiões rio-grandenses,
53
A série de reportagens Os tropeiros, de um total de 12 episódios, começa com As mulas da
prata (gravada em solo argentino), As águas da partida (saída de Cruz Alta, o ponto inicial da
tropeada em direção a São Paulo). Seguiram-se Fazendo amigos, Causos e Negócios (que encerram
a primeira parte) A travessia (divisa entre os estados de Rio Grande do Sul e Santa Catarina),
Planalto catarinense, Enfrentamentos, Meio caminho andado (fim da segunda parte), As artes do
tempo, As sinharas das tropas, Falando pelas orelhas e A chegada. Todos os episódios foram
exibidos no programa Globo Rural de domingo, em 2006.
54
A recepção à tropa por parte de grupos tradicionalistas acontecia sempre à chegada a uma nova
cidade ou região. Conhecedores do terreno, faziam a escolta aos peões e repórteres, ajudando no
avanço da expedição por trilhas seguras ( DVD Os Tropeiros, vol. II A Travessia).
158
mais embaixo uma construção onde fica o marco de uma batalha ocorrida naquele
lugar. Aí, em 13 de setembro de 1923, tropas legalistas, apoiadas por chimangos,
enfrentaram os maragatos. “As forças legalistas montaram uma metralhadora no
alto da coxilha e houve um tiro certeiro no operador que entrou por toda a
resistência da revolução”, afirma João Vicente.
55
+ + +
Cruz alta ficou muito para trás. A rota por onde segue a expedição é a
mesma que era utilizada para o comércio ou contrabando de mulas da Argentina
para São Paulo. A reportagem leva os telespectadores aos pequenos povoados. “E
conforme avançamos, vamos encontrando aqui e ali grupos de moradores da
campanha. Nos emociona o carinho da saudação”, diz o repórter, mas encontrando
uma razão maior para isso. É que na região, onde existe uma cultura tropeira
enraizada, já não existem mulas. Ele observa: “Nossa tropa simbólica acorda um
fervor cívico e religioso também”, sobre a presença de uma capela onde acontece
um culto.
A história dos tropeiros vai se contextualizando através de pequenas
lembranças, relatos que ficaram na memória de muitas famílias. Dona Maria
Bernardino dá um depoimento importante. Sua irmã foi lavadeira de Getúlio
Vargas. Entram cenas antigas de Vargas, enquanto o repórter acrescenta: “Vargas,
55
Os maragatos surgiram em apoio à Revolução Federalista e defendiam a resistência ao excessivo
controle exercido pelo governo central sobre os estados. O conflito, que eclodiu no Rio Grande do
Sul, se estendeu por Santa Catarina e Paraná, terminando em 1895, depois de três anos. Mas as
disputas entre maragatos e chimangos, tradicionais adversários políticos, não terminaram com
aquela revolução. O objetivo das forças de oposição era garantir o sistema federativo, a adoção do
sistema parlamentarista de governo. Os maragatos eram identificados por um lenço vermelho.
Chimangos (nome de uma ave de rapina encontrada na Argentina) foi a alcunha dada pelos
revolucionários aos que apoiavam o governo de Júlio de Castilhos, do Partido Republicano
Riograndense (PRR), que defendia o presidencialismo. Usavam um lenço branco.
Disponível no
site http://pt.wikipedia.org/wiki/RevoluçãoFederalista. Acesso em 12/12/2008. Conforme o
historiador Eduardo Bueno, maragatos e chimangos foram a campo enfrentar-se pela primeira vez
em 11 de fevereiro de 1893, no combate do Salsinho, nos arredores de Bagé. Mas o ódio era
mútuo e ancestral, fruto do confronto entre duas tendências políticas que tempos rachava o Rio
Grande. Já houve historiador que tenha se arriscado a dizer que o Estado dividia-se entre ‘uma
Baviera liberal e uma Prússia autoritária’. Embora nem sempre seja fácil saber quem era o que
naquele conflito de caudilhos, a luta entre maragatos e chimangos foi travada entre os partidários de
Gaspar Silveira Martins e os seguidores de Júlio de Castilhos e nada mais era do que um reflexo
do choque entre o antigo regime monarquista e a nova ordem republicana”. Dados extraídos do
artigo publicado no jornal Correio do Povo diário tablóide da Região Metropolitana de Porto
Alegre – em 18/09/2003.
159
antes e depois de ser ditador do Brasil, lidava com muares em suas estâncias”. Mas
Dona Maria, aos 83 anos, e que foi casada com tropeiro, diz que não tem saudade
daqueles tempos, porque tinha medo. O repórter permite que sua memória
continue a fruir. Esse medo tinha uma explicação. “É que uma das rotas que o
marido pegava, nessa em que já estamos, era muito mal afamada.”
A rota ficou conhecida, pelo menos nessa região, como Estrada de
Porongos.
56
Bem em frente a antigos armazéns, à beira da estrada, em 1837,
aconteceu um episódio que justifica essa fama. Narra a repórter Camila
Marconato: “Aqui, onde um armazém de grãos, é um sítio histórico. Foi palco
de um episódio dramático que aconteceu em 1837, o combate de Porongos”. Como
informa a reportagem, era o início de uma das revoluções mais longas do Brasil, a
Revolução Farroupilha, também conhecida por Guerra dos Farrapos. A pesquisa,
através de fontes especializadas, conta o episódio por novos ângulos. Segundo o
escritor e pesquisador Rossano Cavalari, em depoimento à repórter, foi um
combate violento. “Muitos mortos tombaram aqui nesse lugar, que, de fato,
marcou bastante a história do Rio Grande do Sul.” A matéria mostra cenas de uma
minissérie recente da Rede Globo, A Casa das Sete Mulheres, sobre esse conflito.
A guerra começa por causa de carne seca, explica a repórter. “No século XIX, essa
região era grande produtora de charque. O governo aumentou os impostos sobre
carne seca e os estancieiros se revoltaram, proclamando a independência do Rio
Grande do Sul.”
Pelo menos uma dúzia de revoluções teriam ocorrido nessa região.
Comenta-se que, em uma certa época, havia mais cabeças de cadáveres do que
cabaças, porongos, ao longa dessa rota tropeira. “Um dos episódios mais
conhecidos, 370 pessoas foram degoladas ao longo do trajeto pelo temido general
Firmino de Paula. Degolou, inclusive, um primo dele”, diz o pesquisador, sobre
um dos combates do conflito entre chimangos e maragatos.
+ + +
56
Conforme dados da reportagem, porongos, na cultura gaúcha, é o nome que se dá à cabaça, fruta
que depois de seca é utilizada para armazenar alimentos ou como cuia para o chimarrão.
160
Crédito: programa Globo Rural
Cenas de uma minissérie recente da Rede Globo, A Casa das Sete Mulheres.
161
Pinheiro Marcado é mais um pequeno povoado que incita a imaginação do
viajante. Conforme a repórter Camila Marconato, esse era um lugar sossegado e
seguro que servia para o tropeiro guardar o dinheiro da venda dos animais. Os
patacões eram enterrados nos quintais da antiga vila, segundo conta a lenda. Hoje,
os pés de pinheiro quase não existem mais. Um trecho da reportagem explica por
que o lugar ganhou esse nome. “Eles costumavam, à sombra de um grande
pinheiro, ferrar o gado e aproveitavam para deixar na árvores a sua marca.”
Hoje, o lugar não é nem sombra dos momentos de glória que viveu no
passado. Explorando o belo cenário, a repórter comenta que Pinheiro Marcado
teve até estação de trem. Os sinais estão evidentes na placa de sinalização já sem
serventia, na madeira escura dos casarões abandonados e nas lendas que mexem
com a imaginação dos descendentes de tropeiros. Rorio Amado, que vive na
vila, ainda se lembra do relato do avô sobre tesouros que estariam enterrados no
povoado. Quando se deparava com inimigos ou assaltantes na rota, o tropeiro
vinha para Pinheito Machado e enterrava o dinheiro. Mas poderia acontecer de
esquecer do lugar em que o havia guardado. Amado acredita que isso realmente
tenha acontecido.
+ + +
Depois de percorrer mais de 600 quilômetros, 32 dias longe de casa, a
tropa está no território de Santa Catarina. Saindo de Curitibanos, segue em direção
a Santa Cecília ao pé da Serra do Espigão. Nesse cenário, aprofunda-se a versão de
um dos capítulos mais sangrentos da história do Brasil: o massacre de índios de
diversas etnias por imigrantes, fazendeiros e tropeiros.
O repórter Ivaci Matias conta que a região atraiu imigrantes italianos e
alemães no século passado, que utilizavam a rota dos tropeiros para penetrar no
território e trabalhar na extração da madeira. As florestas de araucárias foram
derrubadas, e hoje predomina a de pínus, matéria-prima para celulose. Célio
Faustino, criador de gado, é o novo guia. Neto de tropeiro, presenteou a tropa com
um cincerro que foi de seu avô. O sino viajou várias vezes para São Paulo no
pescoço de éguas-madrinhas. É um dado curioso, já que o objeto, de certa forma,
162
crédito: programa Globo Rural
Tela de Jean Baptiste Debret, de 1816: O aprisionamento de famílias indígenas.
163
tem, entre suas funções, a de orientar a tropa de muares pelo deslocamento da
madrinha, o animal líder do grupo. O guia relata que os tropeiros temiam a região,
por causa de ataques de índios: “Eles se sentiam pressionados e acabavam
atacando as tropas. E cada vez
que passavam aumentava o progresso, vinha mais gente, mais pedidos, e eles se
sentiam encurralados. A tropa que não estivesse bem preparada era atacada”.
A tropeada atravessa as águas do rio Marombas, antigo local de
emboscadas. O reflexo do sol sobre as águas propicia um espetáculo visual. Mas,
naquela época, havia muito medo desse lugar. Com leito raso, os viajantes
ficavam mais vulneráveis às emboscadas. Após a travessia, a tropa ainda tem que
cruzar um trecho de mata nativa, uma das poucas preservadas na região. E o
cerco aos que ousavam passar no território apertava. Um cemitério, cercado por
um muro de taipa, guarda os túmulos dos que tombaram num confronto entre
índios e imigrantes, com muitas vítimas de ambos os lados. A tropa pára diante das
cruzes e ora em homenagem aos mortos. As histórias continuam vivas na memória
de antigos tropeiros.
Seu Dico, de 86 anos, é um deles. Ele diz que viu muitos tropeiros serem
mortos na região. “Eles matavam as mulas também e destripavam... e faziam
aqueles laços das tripas que eram estendidos na beira da estrada. O que era argola,
freio na boca da mula, eles tiravam.” O repórter Ivaci Matias conta que na região
viviam índios das tribos Xoclengue, Caigangue e Guarani. No início da
colonização eram nômades e percorriam um grande território, que ia do litoral do
Rio Grande do Sul até onde hoje é o Estado do Paraná. “Com o avanço da
civilização,
57
eles recuaram para o interior, mas acabaram sendo alcançados pelos
caminhos tropeiros”, afirma o repórter. Fotos da época ajudam a contextualizar o
episódio.
57
Trabalhando com noções de “progresso” e “civilização”, pelo menos nesse trecho a reportagem
perde a oportunidade de trazer uma visão menos dualista, e mais complexa, menos arrogante da
história. É evidente que o índio, mesmo sendo de uma outra cultura, não pode ser visto como o
inimigo, o “não-civilizado”, como querem passar os relatos dos fazendeiros, aqueles que tiveram
do outro lado, mais forte, desse confronto, longe de ser superado. Como o Globo Rural utiliza, em
quase toda a sua ão, a visão complexa dos fenômenos, era de se esperar que nesse episódio
transparecesse também a imersão do repórter nessa realidade, para narrar o conflito por uma visão
totalizante, não fragmentada.
164
crédito: programa Globo Rural
As histórias continuam vivas na memória de antigos tropeiros
165
Para garantir a segurança nas rotas comerciais, segundo a reportagem, o
então príncipe regente D. João VI, em 1808, declarou guerra ao que ele chamou de
“bugres que infestam a região”. Na mesma seqüência, tela do artista Jean Baptiste
Debret, pintada em 1816, mostra o horror dessa guerra: o aprisionamento de
famílias indígenas. O pior foi a mortandade. Numa antiga trilha que passa ao
da Serra do Espigão, houve muitos confrontos. Seu Edvar, fazendeiro na região,
mostra um revólver que pertenceu ao seu avô materno, morto em uma emboscada.
Os índios mataram também seis mulas. Quinze dias depois, seu tio, como
represália, reuniu uma comitiva e os localizou em dois acampamentos. A morte de
seu avô custou a vida de 30 índios. Em um dos piores massacres, 230 índios foram
mortos, a maioria mulheres e crianças. O fato repercutiu na imprensa internacional.
Em Santa Catarina, o jornal Blumenauer Zeitung, editado em alemão, registrou
assim o episódio, em 1904:
Os inimigos não pouparam vida nenhuma. Depois de
terem iniciado sua obra com balas, a finalizaram com
facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das
crianças que estavam agarradas aos corpos das mães!
Tudo massacrado.
A matança, segundo conta o repórter, era praticada por milicianos
recrutados pelo governo de Santa Catarina. Um dos mais famosos foi Martin
Bugreiro. Numa foto de 1932 ele aparece com um pano amarrado no queixo, tendo
aos pés mulheres prisioneiras. Sua crueldade é contada por seu Dico: “Ele era
muito amigo de meu pai e meu avô. Era um homem perigoso. O que tinha de
índio ele matava. Homem, mulher, criança. Esperava os índios dormirem e
matava”. Os milicianos, também conhecidos por “bugreiros”, eram vistos como
heróis, porque havia a noção, segundo Ivaci Matias, de que os índios ameaçavam
os projetos dos brancos. Depois de sucessivos conflitos, os índios que viviam no
Sul foram praticamente dizimados. “Eles eram cerca de 247 mil. Hoje, de acordo
com o último censo do IBGE, não passam de 10 mil”, afirma o repórter.
Formação social
166
Em um local mais adiante do combate entre revolucionários e legalistas,
começa a história de um antigo tropeiro que enriqueceu com a venda de mulas.
Eduardo Nunes de Mello é o presidente da Piquete 35, associação ligada ao
tropeirismo. Trata-se de um biriva de quarta geração, como ele próprio se define.
Biriva, em desuso, do tupi, significa caipira, natural de São Paulo, tropeiro,
como define o Dicionário Aurélio. O então tataravô, pai de Jordão Ribeiro de
Mello, veio de Sorocaba, 200 anos, para negociar mulas no Rio Grande do Sul.
É o que Eduardo conta: “Veio tropeando, e um dia, de passagem por esta região,
conheceu uma descendente de alemã, casou com ela, e aqui se estabeleceu. De
tropeiro, passou a fazendeiro”.
A parada para o almoço da tropa é justamente na casa de uma prima de
Eduardo. Lá, vivem representantes de três gerações de Jordão Ribeiro de Mello.
Assis, o neto, Adriane, bisneta, e Talita, tataraneta. “A sede da fazenda é tropeira,
por dentro, e européia, por fora”, comenta a repórter Camila Marconato à chegada
da tropa, em companhia dos anfitriões. Com imagens externas da casa, vai se
fazendo um mergulho nas origens da família. A arquitetura segue o estilo alemão
dos Hoffmann, um ramo da família. É construída em pedra com esquadrias e
janelas em branco, telhados em ângulo mais raso. As cercas são de taipa, formadas
caprichosamente com pedras empilhadas, uma característica da região.
Para os peões, observar o interior da sede dá o mesmo prazer de quem vai a
um museu, afirma Marconato. Nas paredes, tralhas de montaria, tudo daquele
tempo. A pipa, a quejeira, separador de torresmo, salgadeira de carne são outras
peças que fazem as pessoas voltarem no tempo. Segundo Assis Ribeiro, o tropeiro
que veio de Sorocaba chegou a ter duas manadas de mula e amealhou um
patrimônio de 50 mil hectares de terra. A casa foi construída por um neto.
Os Hoffmann de Mello, também presentes na recepção aos tropeiros,
prepararam um almoço bem típico dos costumes locais. No cardápio, nada de
comida alemã. Em vez disso, uma grande variedade de pratos da comida campeira.
Os animais também recebem sua cota de ração, banho, descanso.
167
Geografia
“O peão Tertuliano, que prefere ser chamado de Gago, seu Toninho e
Diogo, todos viajados, mas no Centro-Sudeste do País, vão abrindo um novo
repertório de paisagem”, diz o repórter. A tropa deixou Cruz Alta, e depois de um
dia de viagem, se depara com campinas onduladas, de topografia “coxilhosa”, no
dizer dos gaúchos, agora recortadas por fazendas produtoras de grãos. A cena
uma idéia de como foi se transformando a paisagem em função do tempo e a vinda
de novas atividades econômicas. “No tempo dos tropeiros, era tudo fazenda de
mulas”.
As terras, que se estendem até onde a vista pode alcançar, parecem um
mar, na descrição dos peões. A colheita dos grãos tomou o lugar dos pastos e
também trouxe um “um mar, como foi dito, que tem como ondas o vaivém dos
caminhões...”
Economia
A partir do trecho de Vacarias, rota da tropeada, são mostradas as
plantações de maçã. Diz o repórter: “No passado, a cidade ganhou esse nome pela
grande quantidade de rebanhos que tinha”. Hoje, é produtora de frutas. “Agora,
para cada cabeça de boi de antes, tem mais de 100 pés de maçã. A fruta passou a
ser o forte da economia na região”, afirma o repórter Nélson Araújo, retomando a
marcha com todo o grupo, em meio a fortes chuvas, enquanto passa por esse
município.
O couro e a carne seca, antes a base da economia local, não competem
com esse novo mercado. Vacarias produz quase 40% da maçã brasileira. Devido às
condições favoráveis ao cultivo de frutas de clima temperado, numa altitude de
1000 metros, a região produz ainda pêra, caqui, framboesa, amora, pinhão e goiaba
da serra. Dá para viajar quilômetros observando apenas pés de macieiras cobertas
pela fruta, um espetáculo que, segundo o repórter, o tropeiro de antigamente
jamais sonhara em desfrutar.
168
A expedição cruza uma ponte e inicia uma longa subida para o alto da
serra. O visual de moldura larga é arrebatador até para cinegrafistas e repórteres.
“Seu Toninho, experiente nas cavalgadas, nunca viu tanta beleza.” Os “Campos de
Cima da Serra”, como se denomina o lugar, é atrativo para os visitantes, e algumas
cidades da região, como São José dos Alcântaras e Bom Jesus, na rota da tropa,
exploram o turismo, outra fonte de renda que impulsiona a economia desses
municípios. A geografia é privilegiada, com despenhadeiros e rios.
Saberes locais
Cruzar a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina
exige um conhecimento com que os tropeiros paulistas não contavam. As águas
do rio Pelotas, também conhecidas como “Passo do Inferno”, diz a história, sempre
foram temidas, e nelas perderam-se vidas de homens e animais na sua travessia. A
expedição que vem do Sul vai ter que cruzar o rio. Na propriedade de Cláudio
Gomes, que dá abrigo à tropa, eles aprendem como enfrentar esse desafio. “Em
primeiro lugar, a gente já não sabe se o rio vai estar cheio ou baixo... é conforme o
tempo. E sempre uma preocupação porque os bichos vão passar a nado. É
perigoso”, diz o fazendeiro à equipe de reportagem. Cláudio tem um dos maiores
rebanhos de mula da região. Ele e a mulher transformaram a propriedade numa
pousada e se dedicam ao turismo rural. Outra ajuda importante vem do seu
Manoel Gaspar, campeiro-serrano experiente, que possui um lote de mulas para
quem quer se aventurar nos desfiladeiros. Sem eles, a travessia se tornaria quase
impraticável.
Os muares que vêm de São Paulo e Minas são levados para a companhia
dos animais da fazenda. Juntos, desenvolvem uma amizade, o que é necessário
para a missão que terão que cumpir mais à frente. No início, os bichos ficam
arredios. O entrosamento não parece fácil. “Os daqui espetam as orelhas,
encrespam o corpo, escapa um coice para cá, outro para lá, mordidas...”, diz o
repórter. Uma mula que chega cansada quer deitar e quase dobra as pernas.
Depois de três horas de convívio, as mulas descem para o pasto com calma, sem
169
estresse. Parece que a idéia funcionou. Logo, os peões cercam o mestre Gaspar.
Porém, a notícia, como observa o repórter, não é nada boa. São dois rios que terão
de ser atravessados para entrar no território catarinense.
A conversa vai para o galpão crioulo, onde os detalhes da operação podem
ser analisados com mais calma. “Traçamos um plano, passo a passo, tanto da
movimentação da tropa quanto do posicionamento da equipes de gravação”,
explica Araújo. Além do repórter, a mesa do galpão, que parece um local de
conferências, reúne Cláudio, dono da fazenda; Gaspar; os peões Toninho e Gago;
o capitão da tropa Edison Pagoto, entre outros.
Os mapas ajudam, mas, para vencer as águas do rio, eles vão precisar
contar com outra ajuda: a dos muares da fazenda de Cláudio e do lote de Gaspar,
que vão servir de guia da tropa. A travessia do rio Touros, o primeiro obstáculo,
parece não reservar muitas surpresas. Segundo Cláudio, esse rio tem águas
tranqüilas. Mas é preciso tomar cuidado com as barrancas.
58
Isso complica um
pouco as coisas, pois, como relata o repórter do Globo Rural, significa “ferradura
nas pedras lisas na chegada e ferradura molhada com pedra molhada na saída”.
Começa a travessia, 21º dia de viagem. A neblina, pela manhã, indica sol
forte no resto do dia. Eles iniciam uma jornada de 12 quilômetros na primeira
etapa, tendo à frente, puxadas na guia, a Fada, madrinha das mulas de São Paulo, e
a Flecha, das mulas do mestre Gaspar. Conforme esse tropeiro, os bichos sabem
distinguir o batido de cada sino, o cheiro de cada madrinha. Dessa forma, cada
uma puxa as mulas de seu grupo. O entrosamento, que começou na serra, deixa
os animais de São Paulo mais tranqüilos. A estratégia é de que os muares locais,
mais experimentados com a região, possam levar os da tropa paulista a uma
travessia mais segura.
Logo surgem os chamados “corredores de taipa do Sul”, grandes muros
feitos em pedra formando uma área protegida ao centro. Esses locais eram
utilizados pelos tropeiros para condução dos animais, e também do gado, no
58
Pelotas, no caso em questão, não se refere à cidade, mais ao sul do estado, à beira da Lagoa dos
Patos, como eventualmente alguns podem pensar. O rio Pelotas fica mais acima no mapa, nasce na
Serra Geral, e depois forma o rio Uruguai. O Pelotas é que faz a divisa do Rio Grande do Sul com
Santa Catarina. As informações são da reportagem do Globo Rural.
170
passado. Os muros impressionam até seu Toninho, peão velho de guerra em São
Paulo e Minas, pela grande extensão – chega a seis quilômetros, só nesse trecho
e conservação. O muro teria sido construído na época dos escravos, e podia tanto
servir de cerca quanto de cercado, ensina Gaspar. Era fechar as pontas que o
piquete estava pronto. Com isso, as tropas que vinham de São Paulo poderiam
descansar, se dirigindo dia seguinte para a travessia do Pelotas.
A tropa leva duas horas por uma descida estreita e chega ao Touros.
“Águas prateadas e rasas, felizmente, não chega ao meio da canela”, descreve o
repórter. Cláudio, que vai à frente, pede cautela: “O leito é de pedra, tem muito
limo, é muito liso. Deixa a mula apalpar, primeiro”. A tropa consegue passar.
Sobe uma trilha de cerca de 1 quilômetro que leva aos campos de cima, para
depois começar a descer outra vez. Mas, para chegar ao Pelotas, ainda
encontrariam outra surpresa: existe uma trilha que leva ao rio, um muro
descendo o barranco, como uma espécie de garganta, onde passa um animal de
cada vez. As autoridades a construíram no tempo do Império. O objetivo era fazer
com que as mulas parassem e pagassem um pedágio.
59
As imagens seguintes são das águas do Pelotas. A partir desse trecho, a
reportagem, em mais um trabalho de pesquisa e contextualização, mostra uma
cena antiga, retratada na gravura do pintor Jean Baptiste Debret, antes de 1820,
sobre a travessia do Pelotas por tropeiros. Para essa operação, era utilizada uma
embarcação improvisada com couro de boi amarrada nas bordas, na qual ia o
tropeiro. A pelota, como se chamava essa embarcação do nome do rio era
puxada por um escravo até a outra margem. As mulas atravessavam a nado.
Por isso, a tropa paulista não hesita quanto a utilizar uma canoa para a
travessia das tralhas de montaria e outros apetrechos. Os homens foram em
seguida, também com o auxílio de uma embarcação, esta cedida pelo corpo de
bombeiros, o que se mostrou prudente, tendo em vista o histórico de acidentes no
local. A despedida acontece na margem gaúcha, cheia de emoção. “Recebam aqui
59
No tempos da Colônia, do Império, a mula era uma mercadoria tão controlada quanto o ouro. O
“registro”, como era chamado a cobrança da taxa, era estipulado pelo imperador ou o rei de
Portugal. Sobre cada animal era cobrado um imposto. depois de pagar, os tropeiros começavam
a desarriar a montaria para passar. O posto na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina é de
1776 . As informações são da reportagem do Globo Rural.
171
um muito obrigado do Globo Rural”, diz o repórter. Cláudio e Gaspar vão ficar.
“A gente passa para o outro lado, mas deixando um monte de amigo do lado de
cá”, acrescenta Pagoto.
A estratégia inicial era de que os muares de Cláudio fossem na frente por
estarem acostumados ao terreno. Mas, na última hora, o veterinário e capitão da
tropa resolve mudar os planos e mandar na frente a égua Fada. A aposta é no
comportamento animal”, diz Araújo. No começo, ela refuga. Novas tentativas são
feitas, e a idéia certo. Ela consegue chegar até a outra margem, ofegante.
uma certa expectativa do que possa acontecer. Mas o instinto animal prevalece. “O
cheiro da madrinha, mesmo de longe, pôs a mulada de prontidão”, narra Araújo.
Em seguida, foi como o estouro de uma boiada. Elas se lançam nas águas do
Pelotas seguindo os passos da madrinha. A profundidade do rio chega a 8 metros, e
os animais, como mostram imagens subaquáticas, têm que nadar, pois não pé.
Mas com muito esforço vão vencendo a ansiedade. Mostrou-se fundamental,
também, a convivência com as mulas gaúchas, o que tranqüilizou as de São Paulo.
Nas palavras do repórter, toda a emoção sentida: “Foi uma tensão, eu estou até
tremendo. É uma explosão, é uma sensação que eu nunca tive”. Com imagens da
tropa se despedindo do território gaúcho, o repórter diz que a sensação não foi a de
cruzar o “Passo do Inferno”, mas o “Passo da Santa Vitória”.
+ + +
Apesar de a mula ter uma boa resistência para marchas e cargas, o
comportamento de cada animal pode fazer a diferença para o êxito da expedição,
segundo mostra a reportagem. Como ensina o capitão da tropa, Edison Pagoto, os
cascos do animal são o principal. “Um animal sem casco é como um carro de
Fórmula 1 sem pneu”, compara. Mas esse não é o único critério que pesa na hora
de selecionar a mula para a viagem. É preciso examinar os dentes, os olhos e
observar o comportamento, se tem índole amistosa, para conviver com outros, de
educação e região diferentes. No sítio, os animais de Minas e São Paulo vão se
misturando. Como observa o repórter Nélson Araújo, como nas relações humanas,
172
crédito: programa Globo Rural
Elas se lançam nas águas do Pelotas, seguindo os passos da madrinha.
173
“alguns animais se impõem sobre aqueles que aceitam a submissão”. As medidas
sanitárias, como vermifugação, e exames de sangue completam os requisitos para
que burros ou éguas tenham condições de realizar a longa marcha.
Os animais selecionados ainda terão que passar por um treinamento de
disciplina, herança da cultura tropeira, ministrado pelo negociante e adestrador de
mulas Álvaro Piaget, o Jijo, contratado pelo Globo Rural para essa missão. A
técnica consiste em fazer os animais ficarem perfilados, em “forma”, como se diz
na linguagem do tropeiro. Isso é feito com a ajuda de uma corda. Mas a idéia é que
os animais, durante a viagem, entrem em forma sem corda. O lote de 28 muares
fica assim composto: uma égua, dois cavalos, 19 burros e 16 mulas.
A condução dos muares pela rota também tem os seus segredos. Não se
pode tocar a tropa encabrestada, exceto nas áreas urbanas, quando necessário.
Falas locais, regionalismos
Devido à influência dos costumes que se formaram ao longo da história
sobre o tropeirismo, algumas palavras da Língua Portuguesa adquiriram um duplo
significado. É o caso de vizinho”. O termo aparece quando os peões o
convidados a uma roda de chimarrão com seu José Passos e dona Marli,
proprietários de uma fazenda que serve de abrigo à tropa ao fim do primeiro dia de
marcha. Dona Marli chama os novos amigos de vizinhos, o que os intriga. A
explicação aparece na fala do repórter, em que dona Marli esclarece que esse é um
costume na região. “Antigamente, no ermo da fronteira, quem vivia aqui
geralmente criando tropa de mula, na hora H se socorria era com o vizinho. Com o
tempo, o vizinho, aquele com quem se poderia contar, virou sinônimo de amigo”,
diz o repórter.
As falas locais podem ser percebidas, por exemplo, na hora da despedida da
tropa que cruzou o Pelotas. Manoel Gaspar, o campeiro serrano que acompanhou
os muares até a margem do rio, junto com o fazendeiro Cláudio, recebe os
agradecimentos da equipe do Globo Rural. “E não há de quê. A gente tá sempre às
ordens, se precisar... Descurpem arguma faia da gente”, responde ele.
174
A tropa descansa dois dias na antiga pousada de tropeiros, que hoje funciona
como hotel-fazenda, no caminho entre Curitibanos e Santa Cecília, no estado de Santa
Catarina. À noite, os causos sempre dão boas histórias. “O sol caiu depressa por trás
das araucárias. A noite chega trazendo frio e a lua minguante, que mal consegue varar
a escuridão. O ambiente é ideal para a aparição do Firmino, o tropeiro imaginário”,
diz o repórter Ivaci Matias. O personagem surge cheio de gestos, encenando uma
história de onça:
... Ela veio com aquele bocão pra me pegar. Eu falei,
quer saber? Pelo menos a língua dela eu arranco. Enfiei a
mão com força, com tanta força, que a onça era fêmea,
então minha mão atravessou do lado de dela. Aí, eu
falei, epa! Vou dar um jeito. Agarrei no rabo do vitelo e
dei um contragolpe, e a onça virou do avesso... aquele
coração dela enchendo, o pulmão também batendo... Ela
tinha acabado de comer um macaco, eu não sei. Os miúdos
dela estavam ali, ligeiro, processando. Eu achei que aquilo
ia sair pra fora, e agora tava saindo pra dentro, não ia
prestar, o. eu agarrei no queixo dela, dei o
contragolpe, e ela virou do avesso do avesso. Quer dizer...
foi o jeito certo? Foi... Ela levantou assim, com medo de
mim, com o rabo abanando, foi no meio da vaca e sumiu.
Cultura local
A caminho de Santa Cecília, a tropeada é recepcionada por Adriano
Drissen, descendente de imigrantes alemães que vieram para Santa Catarina no
início do século XX. A família foi dona de um antiga hospedagem para tropeiros,
hoje transformada em um hotel-fazenda, onde a comida é uma das atrações. Sua
irmã, Andréia Drissen, é quem apresenta as peculiaridades dessa culinária. O tutu
de feijão, com rodelas de ovos cozidos e lingüiça, é um dos pratos dessa cultura. O
cozido, servido em tacho de cobre, leva carne de porco, charque, carne de gado e
verdura, tudo misturado. É acompanhado com arroz branco, a quirela (uma espécie
de omelete de milho) e couve.
Entrevero, que para o resto do País é sinônimo de briga, confusão,
desordem, nome a um dos pratos típicos da serra catarinense. Na fazenda
175
Ferradura, de seu Benjamin Faria, o entrevero é preparado em disco de arado. Leva
lascas de frescal, uma carne levemente salgada, “com apenas dois dias de sol, mais
macia que o charque”, explica a repórter Camila Marconato. Acrescenta lingüiça
campeira, misturado a legumes, principalmente tomate picado, cebola e, por fim, o
pinhão cozido. “Em cinco minutos, está pronto. Apesar da confusão de
ingredientes, os sabores não brigam.”
Um dos costumes mais tradicionais da cultura gaúcha é o chimarrão, o mate
cevado sem açúcar servido na cabaça, conforme se pode observar na fazenda de
seu José Passos, no momento que antecede a partida da tropa paulista. A roda do
chimarrão vai muito além do prazer de tomar o chá, é um ritual entre amigos, um
hábito social.
O churrasco de costela que os peões e a equipe do Globo Rural puderam
experimentar, no almoço de boas-vindas à tropa, é mais um costume da cultura
local. A família abre o galpão crioulo para a ocasião. Espaço típico das fazendas
locais, é construído em tábuas e piso de terra batida, símbolo da hospitalidade
gaúcha.
+ + +
A porta de entrada para o Estado do Paraná é o município de Rio Negro,
antigo pouso de tropeiros. Mas é em Lapa onde as tradições ainda vivem. A tropa
já havia percorrido mais de 1000 quilômetros. Conforme a repórter Ana Dalla Pria,
a vasta extensão de terras onde fica hoje Lapa pertencia a Dario dos Santos
Pacheco, o barão dos Campos Gerais, que fez fortuna em fazendas para a engorda
de mulas e burros que passavam pela região em direção a Sorocaba. No Paraná, a
tropa que vinha pelos terrenos difíceis de Santa Catarina, com muitas pedras,
encontrava uma topografia plana dos campos gerais. Com o tempo, muitos
tropeiros paravam na região, gerando riquezas.
Na cidade, a comitiva do Globo Rural é convidada a conhecer o Solar do
Barão. Mas a grande surpresa é que o lugar não é apenas uma casa antiga. Para os
peões Toninho, Tertuliano e Diogo, a sensação é de estar voltando no tempo. O
interior da construção mantém mobília e decoração da época. O barão, interpretado
176
por rcio, os convida a entrar. Na sala estão a esposa, Dona Ana, e o filho,
vestidos a caráter. A comitiva é recebida com licor aos acordes da valsa Tardes da
Lapa, de Otávio Gomes, um compositor da cidade. Diante da pergunta da repórter,
o barão explica que o título de nobreza lhe foi outorgado por uma série de fatores.
Um deles, que culminaria com a visita de D. Pedro II à sua casa, em 1880, foi
fardar e equipar 150 homens que participariam da Guerra do Paraguai. Da
residência do ilustre personagem, eles seguem em uma carruagem para visitar os
demais prédios históricos. No total, 18 casarios da antiga Rua das Tropas foram
tombados pelo Patrimônio Histórico Nacional. Lapa foi elevada à condição de
cidade em 1872.
1.2 Cenas finais...
A expedição do Globo Rural vai chegando ao seu fim, percorrendo os
últimos trechos da antiga trilha dos tropeiros com destino a Sorocaba. um
misto de alegria e tristeza, nas palavras do repórter Nélson Araújo. Muita coisa vai
deixando saudade, mas, ao mesmo tempo, uma certa ansiedade à medida que a
tropa se aproxima de São Paulo. Ainda tem pela frente outros dois rios. Um deles,
o Paranapanema, um dos mais importantes do estado, mas ainda na região das
cabeceiras. Mais embaixo, a foz engrossa, na divisa com o Paraná. Não demora e
vem outro rio, narra o repórter Nélson Araújo, enquanto os muares cruzam a ponte:
“A travessia do Itapetininga representava para os tropeiros o último pouso antes de
chegar a Sorocaba”.
Realidade e ficção se misturam outra vez. O grupo da frente viaja numa
formação parelha, uma mula ao lado da outra. Os animais, como mostram as
imagens, possuem uma cor avermelhada, que os antigos tropeiros chamavam de
“ruana” (no cavalo era alazão). O nome é originário de uma lenda, a Besta
Ruana”, que gerou uma canção entoada pelos forasteiros no lombo do animal. Com
essa formação, a comitiva do Globo Rural faz uma reverência à lenda, explica
Araújo.
177
Os estudiosos do tropeirismo em Itapetininga contam que, por volta de
1.770, o rei de Portugal pediu a um tropeiro que fundasse uma freguesia numa das
duas sesmarias existentes na região. Araújo conta que, quando o enviado da Coroa
chegou, o dono das terras do planalto lhe deu uma mula ruana para o
reconhecimento do terreno. Tratava-se de um animal bonito, “de andar muito
bom”, diz o cavaleiro Décio Albino de Oliveira, que se juntou à comitiva nos
arredores da cidade. “Tudo indicava que (a freguesia) seria na beira do rio, que era
o último pouso. Mas... ele escolheu o local onde é hoje a Praça da Catedral”.
Com o tempo, Itapetininga deixou de ser apenas uma parada na rota dos
tropeiros, para se tornar um importante centro comercial de mulas. É o que narra o
vaqueiro e contador de causos Firmino, em outro lugar da cidade, a fonte do Largo
dos Amores:
Essa horinha do lusco-fusco era bem assim, para comer a
bóia e vim aqui para fazer o footing na praça. As mulhé
rodava pro um lado, os home girava pelo outro. Olhava
pelo rabo de olho, coxixava. E coisa boa!.. Pena que foi
em cima da desgraça dos outros. É. Até o final do século
XIX a agitação era toda em Sorocaba. Mas bateu uma
epidemia de febre amarela que acabou com as feiras de
mula por lá. Nunca mais teve nada. É... O movimento
veio todo para Itapetininga. Isso aqui fervia de tropeiro:
casado, solteiro, sozinho, acompanhado, tinha de tudo.
Êta Largo dos Amores! E... Itapetininga!
Embora perto de seu destino, os peões ainda se emocionam no percurso.
Um casarão colonial é mais um exemplo da arquitetura preservada na rota dos
tropeiros. Ao lado, se sabe que existiu um posto de registro de tropas, que cobrava
pedágio à passagem das mulas. A sede da Fazenda Pilão Dágua, mais adiante, é
outro ponto de parada. A construção, suntuosa, foi erguida por um engenheiro
francês que chegou na comitiva de D. Joao VI ao Brasil, em 1808. Descendentes
de escravos que trabalhavam na fazenda fundaram uma comunidade quilombola
nas proximidades da sede. A área foi doada pelo proprietário da Pilão a um negro
após o fim da escravidão. Sem falar o português e ter como ganhar a vida, o
tropeirismo se tornou a fonte de subsistência, o que explica a forte presença dos
178
negros nessa atividade ao longo do século XIX. A comunidade dos descendentes
de escravos tem hoje 56 famílias, que tentam preservar suas raízes. Mas enfrentam
problemas de falta de saneamento. Para sobreviver, muitos trabalham em
propriedades agrícolas da região.
Ainda na sede da Pilão, os tropeiros do Globo Rural começam a receber
homenagens. Uma delas é a apresentação de uma orquestra de violas, que tem o
nome de “Caminho das Tropas”. O grupo foi formado para resgatar a cultura
musical tropeira, sendo integrado por idosos, pessoas de meia-idade, moças e
moços e até crianças. A noite cai, e a roda de viola prosssegue no galpão da
fazenda. Estão presentes todos os repórteres e peões que integraram a comitiva do
Globo Rural nos últimos dois meses. Juntos com Roberto Correa, violeiro e
especialista em cultura sertaneja, eles revivem antigas canções tropeiras.
60
+ + +
Sorocaba os espera, ansiosa. Até a praça central da cidade, a expedição terá
completado 1.760 quilômetros, em 66 dias de viagem. Ainda passam pelo
município de Sarapuí, onde a população se aglomera nas ruas para ver a comitiva.
Véspera da chegada. A tropa pára na Universidade do Cavalo, fazenda que fica
bem na divisa entre Salto de Pirapora e Sorocaba. Lá, começam os preparativos
para entrar nesse antigo centro de comércio de mulas, hoje a próspera cidade do
interior paulista. Os animais passam por uma limpeza geral: crinas aparadas,
pelagem lavada, escovação e tosquia. Os peões também têm uma tarefa importante
a fazer. Gago, por exemplo, prometeu aparar a barba ao fim da jornada, o que
agora cumpre. As tralhas de montarias têm que estar reluzindo até o dia seguinte.
O traje é de gala. Os peões se esmeram na limpeza do chapeado do arreio, as
argolas do peitoral, a prata e a alpaca.
60
Lembrando a dialogia social defendida por Medina, que se funda numa relação amistosa, do
sujeito solidário, na experiência da roda de viola uma polissemia e uma polifonia que se revestem
de novos conhecimentos. A busca do passado, por meio das canções tropeiras, faz a comitiva
mergulhar num outro universo, o de sonhos e lendas que povoam o imaginário.
179
Na sede da fazenda, todos se reúnem para assistir a uma pia das
gravações, onde a comitiva pode relembrar tudo o que enfrentou ao longo de mais
de dois meses de tropeada. Desde a partida, em Cruz Alta, com chuva, aos
desfiladeiros e corredeiras dos rios. A Fada, que se lança nas águas perigososas do
Pelotas, é uma personagem de que muitos se recordam com saudade e admiração.
Os peões têm os olhos mareados, vermelhos, a emoção vem à tona, em frente ao
telão. Cada momento da viagem foi uma experiência nova, um lugar diferente. Diz
Araújo: “Os laços se fortaleceram desde a equipe de gravação, que começou como
um grupo técnico e terminou como uma irmandade”. União também para os
animais, continua o repórter, ao lembrar a travessia das corredeiras.
As cenas são agora da tropeada deixando Salto de Pirapora em direção a
Sorocaba, com Jo Hamílton Ribeiro comandando a marcha. Voando no
helicóptero da Globo, Ivaci Matias registra a entrada da tropa nas avenidas de
Sorocaba. A paisagem é povoada de prédios. Conforme Matias, a ponte sobre o rio
Sorocaba, onde passa a comitiva, existia desde o culo XVI, uma das únicas
então construídas no interior de São Paulo, o que facilitava a movimentação dos
comboios para a região. “Naquele tempo, Sorocaba era a última cidade do oeste de
São Paulo, era a boca do sertão, e a cidade parava toda vez que chegavam as
tropas.”
A cada momento a comitiva engrossa mais. Centenas de cavaleiros se
juntam à marcha. Com o colorido dos trajes de gala, as bandeiras hasteadas, a
comitiva ganha aspectos de um cortejo e as ruas do antigo centro comercial
parecem voltar no tempo. José Maurício Franco, por exemplo, viajou 300
quilômetros para participar da chegada. Ele veio de Andradas, Minas Gerais. Sua
mula, a Graciosa, é enfeitada com uma tralha de 160 argolas de prata. A tropa
forma, à chegada, um cordão com 500 cavaleiros. A recepção acontece no Largo
do Divino, onde centenas de pessoas aguardam para ver os peões e os animais.
Mas, não o que falar. Sob os acordes do Hino Nacional, não para conter
tanta emoção. Os muares, perfilados de costa para a igreja, agradecem pela
acolhida, numa performance que simbolizou, ao longo da viagem, a saudação da
tropa pelos lugares por onde passou...
180
crédito: programa Globo Rural
Os muares, perfilados de costa para a igreja, agradecem pela acolhida.
181
Considerações finais
Com este trabalho conclui-se que a reportagem elaborada com recursos da
linguagem da complexidade permite ao jornalista uma visão mais profunda e
humana dos acontecimentos de seu tempo. Permite ainda afirmar que as
impressões do repórter contam de forma significativa para a sensibilização do
leitor, no sentido de levá-lo a uma aproximação com os fatos narrados e suas
intersubjetividades, aquilo que diz respeito ao sensorial, às emoções e que
representam uma forma de conhecimento da realidade.
A construção da grande-reportagem, em que o narrador se transporta para
dentro da condição do outro, convive com suas fontes, observa o cotidiano das
pessoas e compartilha experiências e ambientes de cada personagem, traz uma
grande contribuição ao jornalismo, pois permite captar e registrar experiências com
marcas de autor. É um mergulho nos mistérios do mundo por meio da reportagem.
Tal qual o romance, o conto, o cinema, o jornalismo de aprofundamento também
chamado de Jornalismo Literário ou Jornalismo Avançado, por Lima vai aos
nexos narrativos para contar histórias de vida. Histórias de pessoas que muitas
vezes falam do lado absurdo da existência, do extraordinário, o lado que ninguém
vê. São personagens de carne e osso, que habitam rodoviárias, aeroportos, locais
públicos, muitas vezes quase não percebidos diante da pressa do cidadão comum.
Como se verifica no cotidiano das redações, às vezes falta tempo para se ir
às ruas, saber o que acontece. A correria da vida, que exige procedimentos cada
vez mais padronizados, deixa escapar o diferente, para se apoiar na versão oficial,
aquilo que chega via internet, pelo fax ou telefone. A produção em larga escala de
informações circulando pelo mundo nos torna cegos, incapazes de ver o que
acontece diante de nossos próprios olhos. O jornalista, diante desse cenário, passa a
divulgar o que os leitores cansaram de ouvir dezenas de vezes, sem situá-los no
contexto da informação, fazendo o papel não de mediador, como era de se esperar,
182
mas de simples reprodutor dos discursos de celebridades e autoridades que servem
de fontes aos jornais e telejornais, dentro do que se chama lógica transmissiva.
Ao contrário, quando busca entender o que acontece no mundo, o jornalista
passa a interferir nas rotinas, entrar na pele do outro e a ouvir relatos sobre história
e seus protagonistas, produzindo material enriquecedor. Como afirma Morin, a
abertura às circunstâncias da situação evita que se cometam erros e julgamentos
precipitados, gerando a intolerância. Compreender, ao contrário, é o “modo de
pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio
ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as
condições do comportamento humano” (2000:100).
Embora a grande-reportagem seja o objeto deste trabalho, não é a única
área que se pode valer da complexidade, mas também a história, as ciências sociais
em geral, a política e outros campos do conhecimento que em geral se estruturam
em cima de um logos, em fórmulas que mais explicam do que compreendem.
Afirma Morin: “Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no
caminho da humanização das relações humanas” (2000:100).
Para o jornalista pôr em prática tais conceitos, precisa romper os limites dos
velhos paradigmas de causa e efeito. Expressar subjetividades, mitos e sonhos
exige dele a consciência de que a fórmula da pirâmide invertida, do lide, não
responde às necessidades de um tempo marcado por contradições e conflitos de
toda ordem. É necessário que o profissional, sem abrir o da objetividade e da
racionalidade, se aprofunde no contexto dos assuntos e situações retratadas,
resgatando os acontecimentos e os narrando de forma presentificada.
Conforme ficou demonstrado, esse jornalismo de aprofundamento não é
exclusivo dos meios impressos, como o jornal e a revista. A televisão e o
documentário também podem ser um espaço blico para a discussão dos temas
urgentes, segundo é possível perceber nas reportagens analisadas. Nelas, a imagem
não apenas ilustra a matéria, mas ajuda a narrar, a construir nexos, a passar
emoções. Mas, para isso, tem que haver sincronia entre a linguagem verbal e não-
verbal. Não para tratar acontecimentos complexos, como guerras e conflitos
étnicos, sob o ponto de vista de vencedores, como aconteceu na Guerra do Golfo,
183
em 1992, e, de forma ainda mais alarmante, na guerra contra o Iraque em 2003, em
que o jornalismo humanizado dificilmente apareceu diante das explosões das
bombas lançadas sobre Bagdá, retratadas como um espetáculo pirotécnico. É
preciso não ter vergonha de ir onde estão os “derrotados”, os que não têm voz nem
canais para mostrar o seu drama, passar a viver seu cotidiano, conhecer suas
crenças, religiosidades, costumes. Isso permite traçar um panorama mais fiel, uma
versão o mais próxima possível da “verdade”, dentro de uma ética jornalística.
Diferente do telejornal que privilegia a transmissão em tempo real, ou
trabalha com takes curtos, flashes da realidade, a grande-reportagem pode traduzir
a arte do cinema pelo olhar da mera. Flerta com a poesia, o romance, a
fotografia, e o faz plasticamente, dando um sentido estético à narrativa televisa.
Quando o foco da câmera vai aos olhos do homem do campo, é como se estivesse
relatando não a expressão em si, mas o que vai além dela, a alma, o coração. Por
isso, é tão importante o ritmo mais lento, o plano-seqüência das cenas,
contextualizando o personagem em seu ambiente. Isso contribui para uma relação
de confiança entre fontes e jornalistas.
A iniciativa de jornais como La República, na Itália, Washington Post, nos
Estados Unidos; Zero Hora, no Brasil, em abrir espaço para contar histórias de
vida, sem abdicar de sua função crítica, traz essa preocupação, ou seja, fazer do
jornalismo um canal de mediação com os fenômenos de nosso tempo, ajudando na
construção de uma sociedade mais solidária. É a aposta numa mudança de atitude
frente à mesmisse, o lugar-comum; uma possibilidade de criar uma lógica
associativa, e não fragmentada da informação, que, via de regra, nada acrescenta
ao conhecimento. Também é uma saída para ampliar o número de leitores, hoje
cada vez mais atraídos pelos meios eletrônicos.
Embora o new journalism este de forma quase pioneira e, mais
recentemente, o livro-reportagem atendam importante demanda no mercado
editorial, fazendo jornalismo de aprofundamento, na televisão e na internet as
iniciativas desse porte ainda são tímidas. SBT-Realidade e Globo Rural vêm
desafiar a lógica de quem aposta numa televisão comprometida apenas com o
espetáculo, o hardnews, para conquistar audiência.
184
Como acreditou este autor, na medida em que se explorasse as possíveis
semelhanças e diferenças entre as linguagens do jornal e da televisão, poder-se-ia
compreender que ambas caminham muitos próximas, numa relação de
promiscuidade com a arte. Enfim, a reportagem é uma categoria que pode ser
explorada independentemente da característica técnica de cada veículo, seja jornal,
revista, televisão, rádio e internet.
Não resta dúvida de que a comunicação à distância, baseada nos aparatos
técnicos, é fundamental para a eficiência da informação, num mundo cada vez
mais dela dependente. Por outro lado, outras formas de expressão, como o tato, a
oralidade, os gestos constituem processos corporais que religam o homem à sua
ancestralidade. Narrar é uma prática que remonta aos primórdios da civilização e
não é possível dela abdicar, sob pena de se pagar um alto preço: o sentido da
própria existência. Reportagens como essas poderão ajudar o telespectador a
entender melhor essa realidade.
185
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Paulo, 2004. (Trabalho de Conclusão de Curso) Universidade de São Paulo- São
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Cultura. São Paulo: Hacker Editores, 2005.
_______________________ O animal que parou os relógios. São Paulo:
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BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. São Paulo: Editora Ática, 1990.
BENJAMIN, Walter. “A figura do narrador”. In: Textos escolhidos. (Os
pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1984
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189
Anexos
190
Entrevista I
Cremilda Medina
*
Por que o Globo Rural pode ser considerado um bom programa?
vários fatores que podem informar uma posição. Eu acho que é uma experiência
importante no jornalismo brasileiro, no jornalismo de uma maneira geral e no televisivo de
maneira particular. E por que eu acho? Primeiro porque é uma questão que cruza
diretamente com minha pesquisa. É um programa que pesquisou, desenvolveu e implantou
uma linguagem dialógica do homem urbano com o homem rural. O jornalista, que é
formado e urbano, ao entrar especificamente na televisão, mas também na própria
imprensa, na rádio, tem uma tendência a uma linguagem que é padronizada... padronizada
em função de uma unidade territorial, basicamente urbana; urbana litoral e se possível
hegemonicamente do eixo São Paulo Rio. Essa hegemonia da linguagem muitas vezes
impede que haja uma dialogia social, tema de meu trabalho constante na pesquisa..
O Globo Rural desenvolveu, então, uma aproximação com a linguagem rural, de tal
maneira que grande parte de seus repórteres, praticamente todos, aprendeu ou teve que
aprender a conversar com o homem do campo... o homem do campo, que cada vez mais é
urbano, tanto no Brasil como no mundo, mais de qualquer maneira que mantém muitos
vestígios da ancestralidade rural, principalmente no tempo de expressão. E o tempo de
expressão urbano é a coisa do pique global, do Jornal Nacional, enquanto que o homem
do campo tem pouco tempo na linguagem para se expressar. Essa foi uma das grandes
virtudes do Globo Rural. A outra vantagem é o fato de ter articulado muito bem as três
ferramentas do jornalismo: serviço informativo, reportagem (e reportagem com arte e
envolvimento mais profundo) e as opiniões especializadas. Então eu penso que essas três
vertentes do trabalho jornalístico estão bem representadas na edição dominical de uma
hora do Globo Rural. Eu não posso te falar da edição diária porque essa eu não
acompanho. A que eu sempre acompanho mais foi a edição dominical.
Nesse espaço especial de uma hora poderia haver uma tendência hegemônica da opinião,
do comentário. Mas não é bem assim. Primeiro que dificilmente você tem comentário. Às
vezes tem um pouco de comentário dos âncoras a respeito de uma grande-reportagem ou a
respeito do que foi mostrado numa certa reportagem. E outra parte muito forte no
Globo Rural, que teve muito êxito em termos de audiência, é toda informação útil de
serviço que se desenvolve no programa. Então, eu acho que essa articulação de serviço,
grande-reportagem, reportagem mais aprofundada e ponto de vista especializado dos
técnicos, da ciência, a respeito do mundo agrícola, é uma assinatura do Globo Rural.
Quando se julga uma experiência jornalística importante, nem sempre apesar do nosso
afeto por essas experiências –, nem sempre essas três características estão articuladas. É o
caso da revista Realidade. Recentemente eu fui para uma tese de doutorado em Brasília,
que trabalhou com The New Yorker, nos Estados Unidos... e eu estive novamente em
contato, depois de todo esse tempo, com a experiência da Realidade. A Realidade, por
exemplo, não articulava tão bem essas três vertentes. A grande-reportagem, o perfil, tudo
isso foi uma marca de Realidade. Mas o Globo Rural eu acho que é mais completo, mais
rico, no sentido de trazer essa informação de serviço, que é muito criteriosa, bem
*
Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP). Entrevista realizada em
12/03/2008.
191
trabalhada, e o diagnóstico e o prognóstico de fontes especializadas. E isso é muito
importante.
A terceira característica que me encanta e talvez essa tenha sido a que mais me amarra
ao Globo Rural é que eu tenho para mim que o Globo Rural fez um grande inventário
cultural do Brasil. Esse “brasilsão” do grande ventre para dentro do litoral... porque os
territórios de imprensa estão muito concentrados nos comportamentos do litoral, desde o
Norte e o Nordeste até o Rio Grande do Sul. E o Globo Rural conseguiu escavar as
marcas de identidade daquele Brasil, do Darcy Ribeiro, do povo brasileiro. Se alguém se
dispuser a fazer uma antologia das reportagens, dos documentários, dos comportamentos
culturais, do Brasil-interior, do Brasil que está para dentro, no interior... apesar de que eles
também andam no litoral, não quer dizer que eles descartam o litoral... mas a vantagem é
a gente encontrar uma série de matérias antológicas sobre o comportamento cotidiano do
homem que está dentro do Brasil. Então, eu comparo essa vertente muito rica àquilo que
Darcy Ribeiro nos mostrou em seu caráter antropológico, que é o seu trabalho fundante, O
povo brasileiro.
A questão passa basicamente pela reportagem. Como construção narrativa, das
histórias de vida real, o que pode representar para o conhecimento em relação ao
jornalismo convencional?
Eu concebo a narrativa da contemporaneidade, no caso da imprensa, no caso do cinema,
do documentário, como uma contribuição fundamental para a cidadania. Então, para nós
compreendermos, para dizermos a que viemos, em termos históricos, eu acho que a
reportagem cumpre uma mediação fundamental, uma mediação entre a experiência viva de
uma sociedade, de um povo, e a amplificação dessa experiênia através dessa narrativa.
Então, o Globo Rural cumpre exatamente com esse papel, de ser um espaço público de
cidadania, porque estabelece essas mediações entre o homem do interior homem como
gênero, porque trabalhos lindíssmos do Globo Rural de relação com crianças, com a
criança que ainda não é um ser maduro de cidadania, mas é um sujeito de cidadania na
sociedade brasileira. Então, quando falo homem, eu estou incluindo todos os gêneros e
todas as faixas etárias. Então, desse sujeito social está presente a sua voz, o seu
comportamento, a sua maneira de ser, a sua visão de mundo, e os repórteres que fazem
essa mediação e os editores que fazem o trabalho interno, na redação, expressam numa
linguagem, numa narrativa, que é extremamente comunicativa... comunicativa porque ela
nos fala de alguma coisa que a gente gostaria de conhecer, de entender e de se irmanar, de
comungar com essa situação, com esse momento, com esse comportamento, com essa
pessoa lá isolada, em determinado lugar, na luta pela sobrevivência ou na luta para crescer
no seu universo agrícola ou na luta para atingir um modelo de desenvolvimento do País
que possa competir, como está competindo, hoje, no mundo. Enfim, essa saga brasileira
está muito bem representada e narrada no Globo Rural.
É possível fazer uma analogia entre o Jornalismo Literário e a produção do Globo
Rural?
Eu não gosto do adjetivo literário. Eu acho que todo jornalismo se vale de códigos a
codificação artística, literatura, no caso do texto, ou no cinema, no caso da imagem. A
codificação artística não tem uma fronteira explícita em relação ao jornalismo. O
jornalismo, para ser comunicação social, precisa de uma codificação-arte, ou seja, ter
poder de comunicação. E a palavra ou a imagem ou o som que têm ingredientes de
criatividade é que são comunicativos. O resto vira burocracia. Então um jornalismo
192
contemporâneo enfrenta o desafio de sair da fórmula burocrática para formas criativas.
Então eu penso que a pesquisa do Globo Rural é a fórmula de um jornalismo que se
refunda ou que se cria. E aquelas virtudes que eu acabei de enumerar são provas de que
houve criatividade num laboratório. Então, o jornalismo é, antes de mais nada, um
fenômeno questionado a cada momento para sair de fórmulas burocráticas para responder
criativamente às demandas sociais. É uma questão de substantivo e não de adjetivo. Senão
cairemos naquelas definições de jornalismo investigativo, científico. Não. Ou é jornalismo
ou não é. Todo jornalismo se expressa numa narrativa e o jornalismo não tem fronteira
com a arte. Quanto mais o jornalismo estiver na fronteira com a arte, mais ele vai ficar
inspirado e ser criativo.
Eu tenho no laboratório, seja na gradução ou na pós, uma vizinhança promíscua com a
arte. Eu chamo a arte dentro do nosso aperfeiçoamento de jornalista... eu chamo o “gesto
da arte”. A arte tem um gesto de aproximação com o ser, a sociedade, o povo, a cultura
que nós precisamos no jornalismo. Qualquer aluno meu lê romance ou vê um filme,
fotografia, uma obra de arquitetura, de artes plásticas, de teatro, com proposta de fruição,
pela sua sensibilidade, e depois de fruir, vem a impregnação, que é muito saudável para o
jornalista. Se um jornalista lê um romance e vai ao século XVI nas fundações de América
Latina, como o romance de Willian Ospina, que se chama Ursúa, ele está muito mais
preparado para cobrir os momentos atuais hoje na América Latina. Claro que se ele vai à
história também... mas o romance tem uma força de impregnação que você realmente sai
dele com uma outra visão do que é a América Latina. Então, quando eu pego um romance
como esse e o exponho aos alunos é porque, em primeiro lugar, eu gostaria que eles
fruíssem a arte, sentissem prazer com a arte e depois desse prazer vem aquela vontade de
ser parecido, pelo menos de compreender melhor o seu povo que é o caso do artista ou do
gesto da arte.
Ao sensibilizar o lado direito do cérebro, estimulando as nossas emoções, a nossa
sensibilidade, as narrativas de heróis anônimos, como a elas a sra. se refere em seus
livros, pode ajudar a funcionar a razão crítica, que não seja apenas sentir, mas
formar um juízo de valores sobre o espaço e o tempo históricos?
eu também me valho das conquistas que são muito importantes para nós hoje em dia
que são as neurociências. E eu vou direto, sem escala, para António Damásio,
neurocientista, que expõe a experiência de neurocientística que toca a questão biológica,
o tratamento de doenças mentais, que trabalha então com o laboratório de cirurgias e
tratamento de doenças dessa natureza, e ele expõe essa experiência com uma hipótese
fundamental, que para mim é decisiva: o cérebro, a inteligência humana é
exponencialmente plena, quando o estímulo às idéias e à racionalidade vem do toque. O
toque sensível, na verdade, é o que fornece impulsos à nossa rede neural capaz de
estimular a nossa inteligência a pensar. Então ele tem um livro publicado no Brasil, o Erro
de Descartes, onde ele contesta a concepção cartesiana “penso, logo existo”. Para um
neurocientista que está acompanhando a anatomia do cérebro humano, então, ele inverte
essa proposta, para “sinto, logo penso”.
Para desenvolver uma racionalidade argumentativa, proposta do Habermas, sociólogo
alemão, eu penso que é preciso retomar aquilo que está atrofiado, que é a percepção
sensível das coisas. E elas só se realizam através de nossos cinco sentidos. Então por meio
de nosso radar fino chegar a tocar a realidade e mandar ao cérebro elementos capazes de
formar um diagnóstico, uma idéia, uma teoria sobre a realidade. A sensibilidade da
relação, que é o que eu chamo de “o signo da relação”, é o estimulador fundamental de
193
uma inteligência plena, capaz de não organizar em forma de idéias, argumentos, mas
também depois de intervir para mudar o estado de coisas na realidade. Esse sentir, pensar,
agir, é efetivamente uma tríade complexa que estamos desbravando a partir da várias
contribuições interdisciplinares, mas a minha experiência em oficina de narrativas, não
na ECA mas também em outras universidades, mostra que só a partir da sensibilidade tátil,
olfativa, enfim de todos os nossos sentidos, é que nós conseguimos sair daquela
racionalidade ideológica, esquemática, reducionista, que nós vemos nos comentários de
rádio, televisão, e de imprensa, mas principalmente de rádio. É lamentável, em programas
de rádio, ouvir o sujeito emitindo regras sobre o mundo, diagnóstico, sem a mínima
consistência, textura de argumentos complexos, porque é um sujeito que tem uma
limitação bastante atrofiada de sentir o mundo, de estar presente no mundo e poder extrair
dessa experiência concreta, de corpo presente, uma racionalidade mais sutil.
O psicólogo Dante Moreira Leite afirma que narrativas positivas e narrativas
negativas. Como a sra. vê essa questão?
Como se constrói uma narrativa? A narrativa se constrói com ética, técnica e estética. Não
é uma questão teórica. É uma questão de prática operacional. Os meus alunos trabalham
em laboratório, e os resultados desse laboratório estão numa série, que é “São Paulo de
Perfil”, um livro-reportagem, onde o narrar São Paulo é um narrar que tem uma
componente ética de elo solidário com quem nós somos, em São Paulo... O “quem nós
somos” é um “quem” coletivo e anônimo e não fonte oficial, herói que está aí na Bolsa de
Valores. É a descoberta do coletivo anônimo e ético, é a ética da solidariedade. É técnico
porque é preciso construir uma narrativa com códigos que são motivos de pesquisa, como,
por exemplo, ao fazermos a pesquisa de controle com nossos leitores, sabemos que uma
narrativa que for de números e de gráficos não é comunicativa. É uma descrição
superficial, numérica, do quadro que se quer estabelecer. Então o leitor não quer saber
desse tipo de descrição. Uma narrativa é uma história humana; história humana em um
contexto social com o qual a pessoa se identifica. Em nosso livro, Vozes da Crise (sobre a
crise em São Paulo ), as histórias que aparecem foram levadas para a escola e determinado
policial que fazia o curso noturno do grau, na Zona Sul de São Paulo, chegou ao
professor e disse: “Eu gostei desse livro. E quero saber se a senhora tem mais para me
emprestar, porque eu conheço do meu lado do balcão, mas eu conheci o outro lado do
balcão”. Então, essa identificação com as histórias humanas, com o contexto social, é uma
conquista que tem que se fazer tecnicamente, desenvolver essa ferramenta de narrativa
para poder atender uma demanda social. E a parte estética está atrelada a isso aí. Quer
dizer, se você vai usar aquelas fórmulas de jornalismo que estão disponíveis e que não
dizem nada, como a pirâmide invertida, o lide sumário, os títulos, etc... A estética criativa
a estética é sempre criativa é uma necessidade ética da técnica comunicativa e está
tudo entrelaçado, e só assim que você pode chamar narrativa. O resto é relatório de dados.
Como a sra. a questão da televisão? Não se trata de uma linguagem muito
fragmentada?
Acho que a televisão foi caminhando, descobrindo a sua narrativa, e hoje ela é tão
fragmentada quanto a imprensa. Você pega um jornal e observa que ele está dividido em
inúmeras retrancas, em cadernos...
Mas a mídia impressa não sofre toda uma influência da mídia eletrônica?
194
Eu acho que momentos na televisão, como o do Globo Rural, ou de outros espaços
desse gênero, onde as coisas são amarradas, e não fragmentadas. Acho que a TV está
amadurecendo sua linguagem no jornalismo como amadureceu em outras vertentes de
ficção, a telenovela. Eu não sou crítica ligeira da TV, porque eu me alimento também da
narrativa da TV.
O que há de importante no telejornal?
Bem, se eu ontem queria acompanhar a situação das células-tronco, ou a situação das
eleições nos EUA ou do conflito Equador – Colômbia, eu recorri à TV.
Mas não é um jornalismo muito informativo?
Eu acho que há de tudo. Há reportagem às vezes mais aprofundadas que na imprensa.
Com a imagem e o som ao mesmo tempo, a televisão elabora melhor a reportagem?
Não é imagem e som, é se tem uma história de vida bem contada, se tem um contexto
amplificado. Eu vi um programa, recentemente, sobre o Globo Rural no Pontal de
Paranapanema, de uma orquestra, o projeto Guri, com os meninos acampados e dos
assentados. Reportagem que eu não vi na imprensa, na revista, que se diz mais profunda.
Porque conjugou histórias de vida, protagonismo social, e outros aspectos que eu já
relacionei. Eu acho que se você transita bem na arte, no meio artístico, você também se
inspira para a inovação na linguagem jornalística. Se você tem o propósito de romper com
a rotina estabelecida, você pode inovar em qualquer espaço.
195
Entrevista II
Lucas Battaglin
*
Que significa a construção da reportagem na televisão de modo geral e de que
maneira se diferencia de outros veículos?
Existe uma grande área comum na grande-reportagem para qualquer veículo dio, TV,
imprensa que é a verticalização em cima de um assunto e buscando nesse assunto pegar
não apenas as várias visões sobre ele mas também outras referências... referências de
história, de contexto, de avaliações diversas sobre aquele fato e um aprofundamento de
perfis dos personagens envolvidos. Se você buscar uma boa grande-reportagem na
imprensa escrita, numa revista, num jornal, numa rádio e na televisão, eu acho que esses
elementos que são fundamentais são comuns.
Mas a imagem não cria um diferencial?
Evidentemente que uma reportagem na tevê pode explorar mais intensamente, não digo
exclusivamente, os aspectos ligados ao visual, porque a gente conta com o recurso da
imagem, mas um bom texto pode também estar descrevendo muitas vezes o meu jeito de
estar falando de maneira bastante envolvente. Mas, enfim, a televisão tem o recurso da
imagem que de certa maneira é um facilitador na relação com os outros veículos. Mas eu
acho que existem mais semelhanças entre as grandes-reportagens no jornalismo em geral
que diferenças. Algumas coisas específicas na tevê, como a exploração da imagem, e as
falas, que seriam uma característica do rádio, ajudam a ter muito presente a maneira de as
pessoas falarem, se expressarem e de se comunicar. Mas eu acho que o que existe são mais
semelhanças do que diferenças.
O que diferencia o Globo Rural na reportagem?
Bem, o Globo Rural hoje em dia... Na verdade, quando se fala do programa, está-se
falando mais coisas do que até sete anos. Hoje, ele é tanto um programa de domingo,
que é muito voltado para a grande-reportagem, e também os programas diários, que são
mais voltados para as notícias de atualidade, de mercado, de serviços, mais próximo do
Hardnews que no cenário do meio rural. A grande-reportagem tem espaço nesse Globo
Rural de domingo. Desde a implantação do programa de domingo, houve uma linha que
não faríamos um programa jornalístico voltado exclusivamente a atualidades, mas um
programa para extrair mais documentos, mais histórias aprofundadas do campo. Então,
houve uma opção pela grande-reportagem desde o começo do programa. O Globo Rural
não é um programa de agricultura e pecuária. É um programa onde o nosso cenário de
atuação fundamental é o meio rural e o nosso protagonista é o homem do campo. Mas
tendo isso como mote, podemos fazer matéria de política, de reforma agrária, de educação
e também de tecnologia agrícola e pecuária.
Como é trabalhar com esse universo?
*
Chefe de reportagem do Globo Rural. Entrevista realizada em 17/03/2008.
196
Bem, esse é um mundo rico, porque você lida com todo o universo cultural brasileiro, que
tem muitas raízes no meio rural. A gente lida com toda a malha de recursos naturais do
Brasil, onde quem cuida dos recursos naturais básicos são as pessoas que vivem no meio
rural. Se você fala de problemas ambientais na cidade, a gente até tem uma imagem de que
se houver uma fumaça saindo de uma chaminé bastou você parar a produção que pára de
poluir. No campo, se você destrói a natureza, a reconstrução de uma manancial de água,
de uma floresta é coisa para séculos. Então, realmente, a preservação da natureza de uma
nação, do mundo, está na mão do homem do campo. A grande-reportagem do Globo Rural
nos deu espaço para falar de coisas muito ricas e tendo personagens que até a chegada do
Globo Rural na televisão quase não se reconheciam na tela. Normalmente, eles olhavam
qualquer emissora de televisão no Brasil e viam uma emissão muito mais voltada para o
homem urbano do que para eles. Então, eles acabam se identificando, sendo protagonistas
de um espaço que se tornou relevante na tevê.
Como é possível lidar com todo esse universo, considerando que o formato do
jornal, a pauta, o trabalho de edição podem obstruir a criatividade do autor?
Qualquer expressão criativa tem um formato. Se você pegar desde o cinema de arte, ele
tem que ser gravado numa película, num vídeo, vai ter que ter um certo tempo de duração,
que pode ser de uma hora, pode ser de três, enfim, você lida com limites também nisso.
Você tem que exibi-lo numa sala de espetáculos, você tem todo um ritual, limites de
rituais que você tem que obedecer no modo cinematográfico. Num livro todo um ritual
de distribuição, de impressão, de tipologia que você tem que obedecer. Evidentemente, um
programa de televisão não é livre. Ele tem também quatro segmentos. Esses quatro
segmentos têm que caber em uma hora de duração. Um tempo livre de 47 minutos. Então,
evidentemente, que tem a sua moldura.
Mas nós criamos, dentro do Globo Rural, de uma maneira pioneira, como método de
trabalho, a multifuncionalidade. Dentro do programa, é o repórter que edita as suas
matérias e pode fazer a pauta. Agora, como a televisão é um trabalho que depende de
muita gente, acaba sendo algo muito permeável em toda a redação. O que eu quero dizer
com isso: o repórter pode receber uma pauta que não seja dele, mas toda a construção da
reportagem ele é absolutamente livre para fazer. Cada reportagem que é feita no Globo
Rural de domingo passa por uma espécie do que a gente chama aqui de “videoshow”, que
é uma pré-audiência, mas não é uma pré-audiência de chefia. É uma pré-audiência para
poder sentar com todo mundo e poder alertar para problemas que tenha de comunicação,
de linguagem, de imagem, de narrativa, antes da reportagem ir para o ar. Então o repórter
leva o material em que fez a reportagem, que editou, para essa reunião e todos os
presentes acabam colocando as qualidades e eventuais problemas que tenham essa
reportagem. E o repórter volta a sair e muda do jeito dele. Continua sendo responsável,
tanto que todos os repórteres se consideram autores das edições finais que vão para o ar.
Então, a gente reforça esse conceito de reportagem autoral, embora não seja um autoral
que caia numa visão de autor, de uma visão opinativa da realidade. É autoral porque a
narrativa é do repórter, a maneira de construir a reportagem é dele, a maneira de equilibrar
os diversos pontos é dele. E se você analisar o material do Globo Rura (nós temos em
atividade, hoje, por exemplo, sete ou oito repórteres numa mesma reportagem, num
mesmo tipo de assunto), tratado por cada um deles, é muito diferente, embora não deixe
de contemplar os aspectos essenciais daquela história. Mas são visões e narrativas
diferentes.
197
O personagem, seja ele agricultor, vaqueiro, fazendeiro, sem-teto, é o protagonista
sempre da história, mesmo em matérias técnicas. É isso que acontece?
Sempre. É isso o que eu digo. O Globo Rural não é um programa agrícola e pecuário. É
um programa cujo cenário é o meio rural, cujo protagonista é o homem do campo. Então o
que a gente entende disso? É o que antecipamos no início. A gente pode ter desde uma
matéria técnica, falando de uma tecnologia agrícola ou pecuária ou uma reportagem
política. Mas quem é o herói dessa reportagem? É o homem do campo, o protagonista é
sempre ele.
Sendo assim, é possível que o programa estabeleça uma identidade com o homem do
campo?
Eu acho que, certamente, uma identidade de Brasil acaba aparecendo no ar, que é uma
identidade do homem do campo. Hoje esse homem escova os dentes com a mesma pasta
de dente que você e eu. A mulher dele usa o mesmo batom que o da minha mulher ou da
sua. E compra muitas vezes o mesmo tipo de leite, em saquinhos, porque o homem do
campo também é dependente de consumo e também participa da vida nacional, também
está integrado, através dos meios de comunicação, da televisão, do rádio, dos jornais, das
cooperativas, do seu tecido social de uma maneira muito intensa. Então, quando falamos
do homem do campo, a gente não precisa falar mais simples. Eles têm o mesmo ensino
básico que o pessoal da cidade. Agora, evidentemente, que eles têm mais especificidade
cultural, vivem num ambiente que o é um ambiente de metrópole, de praia, tem
identidade, e essa característica muito própria aparece no ar. Então, eu acho que, com isso
o Globo Rural tem uma contribuição valiosa em revelar uma identidade brasileira, não é a
única. A gente jamais teria essa pretensão.
Para captar todo esse universo cultural é necessário mudar o ritmo de cena, de
imagem?
Sem dúvida. O jornalismo de televisão hoje em dia... seria difícil quantificar... mas ele é
assim em grande parte feito nos grandes centros urbanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, que têm uma característica guardadas as
diferenças regionais –, uma característica própria muito parecida, que são as
características cosmopolitas, e que, de certa forma, assemelha esses lugares em muitas
coisas com outras grandes metrópoles do mundo, e é um ritmo de vida mais frenético...
remetendo, digamos assim, à linguagem visual que é muito mais próxima dos takes curtos,
da linguagem agitada, da linguagem clipada. Pode fazer uma reportagem sobre trânsito
mostrando um take de uma avenida congestionada. No mundo rural é muito difícil você
ter uma câmera fechada; você tem que abrir a sua vista porque está lidando com a
natureza. Quando você abre o ângulo da lente, você automaticamente tem que dar tempo
para as pessoas lerem aquela paisagem, aquelas montanhas... árvores que têm ali, o lago, é
algo muito mais rico de informação.
Da mesma forma quanto aos animais...
...E você tem que lidar também com uma linguagem onde o ritmo se aproxima mais da
natureza e do próprio ritmo de acontecer as coisas do campo, que é um ritmo um pouco
mais descansado, eu diria. Se você fizer uma reportagem de colheita mecânica numa
grande lavoura de Mato Grosso você vai ter que ser mais rápido, mesmo porque a agitação
198
das máquinas muda isso. Mas, no dia-a-dia do campo, para você ser fiel àquilo que está
captando, é necessário uma linguagem mais pausada, mais demorada, com takes mais
longos, com takes mais lentos, com mais tempo para as pessoas lerem o que eles estão
vendo na tela. Então é uma linguagem diferente mesmo e proposital.
Fazer o Globo Rural hoje é diferente de há 27 anos?
Completamente. Existem coisas que permanecem, como, por exemplo, a opção pela
reportagem como forma de atuação e captação da realidade do programa. Quer dizer, não
é um programa de estúdio, não é um programa de entrevistas, não é um programa de
comentário, como existem muitos na televisão. É um programa de reportagem. Oitenta por
cento do tempo de nosso programa é com câmera na rua, e mesmo os vinte (por cento) que
estão no estúdio, por trás, tem muita reportagem de telefone, de apuração, etc... Então, é
um programa de reportagem. Isso já era desde o número 1.
No número 1 e eu vou ter que falar um pouquinho o Brasil era muito diferente na
década de 80 do que na primeira década do século XXI. Era um país mais autoritário, nós
vivíamos ainda um período de ditadura militar... toda informação era muito mais
centralizada e mais, digamos assim, controlada por alguns organismos, do que é hoje.
Então, o que acontecia? Existiam duas coisas que nos preocupavam muito naquele
começo: uma era abrir as comportas da informação e fazer circular mais as coisas que
estavam acontecendo no campo, e por uma série de motivos políticos, na época, eram
tratadas com muita preocupação por parte do poder. Informação sobre seca no Nordeste,
sobre fome no campo, sobre reforma agrária, conflito de terra, tudo isso era algo muito
complicado. Nossa idéia era fazer essas informações circularem porque elas realmente
aconteciam. E a outra coisa: nós sentimos que a tecnologia agropecuária estava muito
voltada para o médio e para o grande proprietário de terra no Brasil. Ela chegava com
muita dificuldade e morosidade e, às vezes, com muita dificuldade para o pequeno
produtor. Dificuldade porque a própria linguagem da extensão rural no Brasil era bastante
cifrada.
E como era...
Quando o Globo Rural começa, existia uma coisa muito proposital nos primeiros cinco,
dez anos, de levar muitas matérias técnicas no ar, no sentido de democratizar a tecnologia
agropecuária no Brasil. E nunca que nós íamos atrás de uma tecnologia que promovesse o
aumento da produtividade do pequeno produtor, do aumento da renda, imaginando que
nós pudéssemos ser o veículo de passar completamente essa tecnologia. Nossa idéia era
mostrar que ela existia, mostrar como ela funcionava e remeter para o órgão público, para
que os produtores pudessem exigir que aquela informação chegasse diretamente a eles. Ou
seja, era muito mais motivar para uma tecnologia do que propriamente ensinar essa
tecnologia. Ensinar nós sempre achamos que era uma tarefa da extensão rural e do órgão
público e não do programa de televisão, que era um programa jornalístico. Então, no
começo, nós tivemos muito essa visão, e isso marcou demais o programa.
Não que isso não exista mais, ainda existe no Globo Rural, mas a mediação disso com os
assuntos culturais, com os assuntos ecológicos, com os perfis humanos acabou tendo um
peso menor que no passado. Então o programa se modificou, porque eu acho que hoje em
dia, por exemplo, para ter acesso a uma melhoria de produtividade no campo, para que o
pequeno produtor, a agricultura familiar tenha acesso a esses caminhos que promovam
uma melhoria de vida, de renda e de produção, as maneiras estão muito mais
199
diversificadas na sociedade. O tecido social se tornou mais democrático e, com isso, ele
pode buscar essas informações na sua associação de produtores, na sua cooperativa, numa
ONG que atua junto a ele; ele tem acesso aos mercados mundiais de uma maneira um
pouco mais facilitada. Então, digamos assim, a urgência, essa necessidade que o Globo
Rural teve de ocupar espaço no começo o se manifesta de maneira tão intensa como
no passado. Deixando claro que isso não é absoluto. Ainda hoje, s vamos atrás de
tecnologia e de novidades no campo, porque nosso público se interessa demais por isso.
O programa, acredita-se, é um fator de mediação entre o homem do campo e os
institutos agronômicos e de pesquisas como a Embrapa. Como fazer com que o
cidadão, o sertanejo, o vaqueiro, entenda os conceitos que são passados na área
técnica ou científica?
Eu acho que, se você faz um programa de medicina na televisão fechada, você pode até
imaginar que seu público é de gente muito interessada naquela área. Agora, na televisão
aberta, você nunca sabe quem está do outro lado... até você sabe que quem está do outro
lado pode ser qualquer um. Então, embora o Globo Rural seja um programa de horário
específico o diário às 6h15 da manhã e o de domingo às 8 horas é um programa que
atinge 15 milhões de pessoas no programa de domingo.
Esses 15 milhões têm desde crianças de quatro, cinco e sete anos, tem empregada
doméstica, tem dona-de-casa, tem agricultores, tem pecuaristas, empresário, gente que vai
correr no parque daqui a pouquinho... enfim, você tem de tudo. Então, eu acho que,
quando a gente se comunica, a gente tem que olhar para o outro lado e saber que você não
pode falar jargão agronomês senão o outro lado não vai entender. Tem gente que tem uma
técnica de trabalho que é a seguinte: ele sempre imagina quando ele faz uma reportagem,
que ele fala no ar – aqui no Globo Rural, que do outro lado está a mãe dele. Que é uma
senhora que saber ler, escrever, que tem instrução e tudo, mas que é uma pessoa muito
simples. Então, se a mãe dele não entender é porque ele não está se comunicando direito.
Ele tem que falar desde a química do feijão e essa pessoa que eu estou citando fez
uma reportagem sobre os elementos químicos do feijão – sabendo que a mãe dele tem que
entender. E, necessariamente, para você entender, você não precisa entender cem por
cento do que está dito, mas você não pode se perder. Às vezes você pode ter até uma coisa
um pouquinho mais específica, mas sempre colocando novas fontes para você não perder
esse público. Isso não é só com o Globo Rural, mas qualquer programa de televisão que
lide com televisão aberta, da Globo, da Record, do SBT. E eu acho que muitas vezes a
televisão se perde e eventualmente o Globo Rural, nós temos isso na cabeça fazendo
matéria em Brasília. Começa a falar tanto que o orçamento que está sendo enviado para o
projeto que vai passar pela comissão tal... e eu não sei se realmente o público tem
repertório para entender uma notícia de Brasília com as suas especificidades. Então,
uma preocupação que não é só do Globo Rural, mas também de todo jornalista. Se a gente
não tiver cuidado, perde o interlocutor.
A gente observa, em Rio Capibaribe, por exemplo, uma temática amplificada, que
fala tando da morte do rio pela poluição industrial quanto a seca, o drama dos sem-
terra. A mensagem final tem um tom crítico, pelos contrastes culturais, de uma
sociedade injusta, econômica e socialmente. Sendo assim, é possível que a televisão vá
além de uma linguagem fragmentada?
200
Eu posso falar porque eu que dirigi a reportagem. Existe uma coisa muito significativa no
Globo Rural que é a seguinte: você encontra uma pessoa que assiste o programa, que
gosta e tudo, e ela vem conversar com a gente e fala em detalhes da reportagem. E a gente
tem um índice de fixação muito forte, eu acho. Uma vez, em 1983, nós pegamos uma
família de agricultor que, por algum motivo – se não me engano foi quando inundou Itaipu
que saiu do Paraná e foi morar num lote de terra em Rondônia. E nós acompanhamos
esse trajeto de caminhão até eles se instalarem lá. Em 1993, nós resolvemos dar um pulo lá
e verificar como estava aquele personagem. E um outro repórter foi lá e fez a matéria dos
dez anos. E, no final da reportagem, ele disse assim: Vamos ver, sr. Geraldo, se daqui a
dez anos a gente volta para ver como o sr. está”. E o é que, em 2002, nós recebemos
uma carta falando assim: Olha, vocês prometeram, hein? O ano que vem vocês têm que
voltar porque vai fazer dez anos”. A gente falava assim: como é que pode um
telespectador guardar isso por tanto tempo?...
Isso se deve à imersão do repórter na realidade?
Eu acho que essa pergunta sua vai suscitar interpretações. Eu poderia apontar algumas,
mas o seu estudo acho que vai poder apresentar melhor do que a gente pensa. Mas acho
que isso tem realmente a ver com o envolvimento que o repórter tem dentro da
reportagem. Isso é fundamental. De certa forma o repórter é um personagem da própria
reportagem que ele cria, chegando ao cúmulo de ser quase um personagem de si próprio.
Ele acaba sendo um dos personagens da matéria e os nossos repórteres usam isso mais ou
menos. Acho que tem a ver com a tranqüilidade, o carinho com que é abordada cada
pauta, o respeito ao personagem.
Uma coisa que a gente vem falando muito que está acontecendo em televisão: as perguntas
dos repórteres quase não aparecem mais no ar, porque a televisão está muito texto e uma
falinha... então você não tem mais o diálogo presente no ar, e eu acho que o Globo Rural
preserva o diálogo repórter-entrevistado no ar... O personagem não tem mais só aquilo que
ele tem a dizer. Você revela a relação que ele estabelece com outra pessoa, no caso o
repórter. E, no fundo, o repórter, o que que ele está fazendo ali? Ele seria o mediador do
que o cara de casa estaria perguntando. Mas tem ainda todo um trabalho por detrás das
câmeras que é fundamental, que é o trabalho nas ilhas de edição, onde as matérias passam
por um processo de lapidação, tendo-se o cuidado de se preservar a qualidade das imagens
do campo.
Como é a participação do repórter-cinematográfico na elaboração das matérias?
Nossos cinegrafistas estão aqui muito tempo, e o único que é novo veio muito bem
preparado para aquilo que a gente queria. Primeiro que a Globo, como um todo, é a única
emissora que ainda preserva em jornalismo, de uma maneira generalizada, o repórter-
cinematográfico que é sempre jornalista. Não é cameraman só. Então, eles participam
da reportagem desde a elaboração da pauta. Na reportagem que você citou, Rio
Capibaribe, a gente tinha uma história muito boa, porque a gente tinha toda uma relação
do ser humano com a tecnologia da aridez, onde o rio nascia. Depois você tinha toda a
ação do homem na destruição do próprio rio, através da poluição. Num terceiro momento,
você tinha todo o conflito agrário que é gerado ao lado de onde tem água, dos mananciais
de água, ou seja, ao lado das grandes propriedades e dos pequenos proprietários. E você
tem no final da grande-reportagem a construção da chegada do rio ao mar. Nessa
reportagem a gente teve todo esse caminho delineado muito claro do que a gente queria
fazer, mas a chegada do rio ao mar era pobre, porque era Recife onde o rio desaguava. E
201
foi o repórter-cinematográfico que deu a chave do encerramento do documentário. Ele
falou então: “Vamos trazer o cara da nascente aqui ver o mar que ele nunca tinha visto”.
Para você ver até que ponto o repórter-cinematográfico chega na construção de uma
história. Não há dúvida, digamos assim, que a mão do repórter é o eixo-mestre da
reportagem ainda, mas acho que, no Globo Rural, o equilíbrio entre repórter e repórter-
cinematográfico é onde atinge o ponto mais próximo do que eu conheço em televisão.
Como é feita a seleção de pautas. Os telespectadores colaboram com sugestões?
Não tem dúvida, pois, nesses 28 anos, o programa conserva a tal da seção de cartas. Hoje
a gente está tendo de se redefinir e está vendo os caminhos para isso. chegamos a
receber 2 mil cartas por mês aqui no Globo Rural. Hoje esse índice caiu muito, caiu para
300, 400, porque subiu o de e-mails. Quer dizer, o brasileiro é um dos que mais estão indo
atrás dessa tecnologia eletrônica acho que nós somos o ou do mundo nesse tipo de
uso. A gente tem a seção de cartas, ou hoje e-mails que, digamos assim, é a coisa direta
com o telespectador. O que eles pedem gera um assunto de televisão. pra você saber,
todas as cartas do programa são respondidas, tudo! A gente remete para um órgão de
pesquisa. que a gente escolhe três ou quatro que a gente julga que melhor
reportagem no ar. Então, você tem a seção de cartas. E tem muita reportagem que é feita
em cima da sugestão do telespectador. Se a gente for pôr em termos de número, de cada
oito ou dez reportagens que são exibidas no domingo, pelo menos de três a quatro são de
telespectador, através das cartas ou de outra coisa.
Outras vias de que a gente recebe matéria, além das vias clássicas, são os releases de
órgãos oficiais, não de governos, mas, enfim, de autarquias, fundações, cooperativas e
tudo, a gente recebe jornais do Brasil inteiro, que a gente acompanha essa parte agrícola,
muita coisa de cooperativa, associação de produtores, hoje em dia muita coisa de ONG,
internet, telefonemas. A gente teria condições de fazer talvez, se aumentasse a equipe, o
triplo de programas. Escolhemos não o que é melhor, mas o que é possível fazer,
porque aí sim você entra nos tais dos limites econômicos. Eu estou agora com uma viagem
de um repórter para a Bahia, tem que fazer cinco ou seis coisas lá... e é o que para
fazer nessa época. Quer dizer, tem coisa que não para fazer porque a colheita não é
agora, enfim, você tem algumas limitações de época. Se você pegar o mês de março, das
20 coisas que a gente vai fazer em março, oito são as que a gente escolhe como as
melhores e as outras 12 são as que dão para fazer para viabilizar essas oito, porque tem
que ter também uma visão econômica. Não quer dizer que são coisas ruins.
Há mudanças previstas no programa?
O Globo Rural tem uma tendência... nós lidamos com um público um pouco mais
tradicional. Um programa como o Fantástico, ele tem uma qualidade que é estar em
renovação constante, o tempo todo está mudando, porque é da natureza dele nunca ser
igual. Então, eu acho que é um pouco da natureza do Globo Rural ser um pouco igual.
Agora, se o programa não mudar nos próximos anos, acho que morre, porque tudo que fica
imutável acho que acaba morrendo.
Eu acho que a grande mudança que o Globo Rural teve na última década foi o diário,
porque o campo começou a ganhar um status no Brasil, o campo era visto com muito
preconceito, como o Jeca Tatu. E hoje, não, as exportações agrícolas chegam a 60 bilhões
202
de dólares. A agricultura brasileira hoje é uma das mais reconhecidas no mundo. Quando
se fala de tecnologia agrícola hoje em dia, se você for citar três países, está o Brasil...
Austrália, Brasil e Estados Unidos. Se você citar cinco, está o Brasil. Talvez se citar um,
seja o Brasil. Hoje não existe mais vergonha da nossa agropecuária. A agricultura ganhou
o Jornal Nacional, ganhou o Jornal da Record. É um tema ao qual estamos mais
habituados. Então, no Globo Rural a gente começou a sentir muito pouco espaço para falar
dessas notícias de agricultura e a grande mudança que nós tivemos foi ter o diário, porque
nos permitiu ter a agilidade que o programa de domingo não tem. O programa de domingo
é um programa mais de fundo, uma revista, digamos assim. E, como continuação dele, a
gente tem um acompanhamento do dia-a-dia do campo hoje que é o melhor
acompanhamento de agricultura que existe. Eu posso ser suspeito para falar. Primeiro que
a gente conta com uma rede de 120 afiliadas. Nós temos equipe em qualquer parte do
Brasil. O que está acontecendo no Brasil hoje nós poderemos colocar no ar, de segunda a
sexta.
E o retorno do Ibope como está?
O de domingo está muito bom. Mas toda a Globo teve uma queda de audiência de
setembro a fevereiro. O Fantástico, o Jornal Nacional, o Globo Rural, as novelas. E
agora, desde o final do horário de verão, houve uma recuperação bastante significativa. O
Globo Rural começou numa média de 8 pontos de audiência aos domingos na década de
80, galgando pontos até a década de 90 e passou nos últimos 15 anos a uma média de 12,
13 pontos de média de programa. O programa pegava com 8 ou 9 e entregava com 15, 16.
203
Entrevista III
Jorge dos Santos
*
Qual a diferença de imagem entre o Globo Rural e os telejornais?
O telejornal tem um fator limitante que é o tempo. As matérias não podem passar de 1,5
minuto a 2. A conta que a gente faz é 10 para 1. Gravamos 10 minutos para tirar 1 minuto.
Então, o jornalismo diário não possibilita, na imagem, você desenvolver o plano-
seqüência, uma continuidade. Claro, tem que ter uma história, você precisa contar uma
história com imagem. Mas o jornalismo diário limita a criação de uma seqüência de
imagens. Muitas vezes já existe uma receitinha, que é o off, uma entrevista, uma passagem
do repórter, ou termina com uma entrevista ou termina com uma imagem que uma
informação final. No Globo Rural nós temos a possibilidade de ter uma seqüência, um
documentário. A gente consegue, através de um personagem, contar uma história de uma
região, da propriedade, ou com que ele trabalha.
Mas como é contar essa história?
Eu começo a reportagem chegando na propriedade, tem uma seqüência da equipe
chegando, cumprimentando, vamos até a casa dele, entramos na intimidade, tomamos uma
café na cozinha dele, que é um lugar que as pessoas gostam de receber... Dali ele nos
encaminha para a sua lavoura, o seu dia-a-dia. Vamos supor: se ele estiver capinando,
vamos mostrar isso. Se estiver colhendo, vamos colher. Quer dizer, existe uma elaboração
de cinema, tem um trabalho de luz, um trabalho de áudio. Enquanto o hardnews não tem
essa precisão, essa necessidade do trabalho de áudio, nós temos essa preocupação,
trabalhamos com microfones especiais, utilizamos lentes especiais, lentes com grande
abertura. Quanto maior o cenário que nós propiciarmos para o telespectador, melhor. o
hardnews, não, já tem que trabalhar mais fechado, com planos mais objetivos, com
imagens que dêem a notícia muito rápida, que o telespectador mentalize aquela cena,
receba a informação e fique guardado. No Globo Rural, a gente conseque dar o cinema,
faz com que a pessoa viaje nas nossas matérias.
É possível se observarem diferenças do Globo Rural com programas de seu segmento,
como o Globo Repórter?
O Globo Rural tem uma linguagem específica. Trabalha muito com o dia-a-dia sem
interferência da produção. o Globo Repórter tem uma pauta mais fixa. Por exemplo,
vamos pegar aquela pessoa e levá-la para um certo lugar, enquanto, no Globo Rural, nós é
que vamos no lugar da pessoa. É o inverso.
Existe uma certa plasticidade na imagem do programa. No momento em que o
cinegrafista flerta com a arte, o documentário. Isso significa uma linguagem
específica?
*
Repórter-cinegrafista do Globo Rural. Entrevista realizada em 20/08/2008.
204
Se você for fazer uma matéria sobre árvore, por exemplo... Lembro-me de uma matéria do
jequitibá, que eu fiz com o Hamilton. Como você faz para o telespectador se prender
numa imagem de árvore, que é um ser parado que está ali? Você precisa criar situações
com movimento de câmera, com detalhes da árvore... O cinegrafista do Globo Rural
precisa ser muito observador. Ele tem que estar atento ao que pode chamar a atenção numa
coisa parada que é uma árvore. Então, a gente fica imaginando o que vamos fazer com
essa árvore. Apesar do tamanho dela, a grossura dela, a explosão que ela é como ser, como
vamos transformar isso em termos de televisão? Nós vamos ter que buscar alternativas. A
primeira foi construir uma plataforma ao lado dela e falar: “Nós vamos escalar essa
árvore, nós vamos entrar no íntimo da copa dela”. Criamos uma plataforma e levamos o
Hamilton, que é um cara que escreveu muito sobre jequitibá. Então, quando o
Hamilton chegou à copa da árvore, que eu já estava com a câmera em cima... Já no meu
íntimo, eu falei: “Vai haver uma explosão emotiva do muito grande, porque ele falou
da árvore com tanta intimidade durante muito tempo e ele não entrou na intimidade da
árvore. Ele vai entrar agora!” E quando ele chegou, ele se emocionou, ele chorou.
Aí, eu fiquei uma semana naquela copa, mostrando o que acontecia ali, e o que se passava
em volta da árvore, o que a árvore estava vendo... Eu passei a ser a árvore. Então, era um
passarinho com uma cor diferente, era um bando de macacos que vinha de manhã para
comer uma frutinha. Era um cara que passava com uma foice nas costas, porque ele ia
cortar uma cana na frente e ele passava e olhava para a árvore. Então, a câmera
passou a ser a árvore, a ter uma vida, e nós transportamos o telespectador para uma
realidade. Então, nossa câmera é muito aberta, muito aberta. Mas, eu volto a dizer, o
Globo Rural é muito rico em personagens.
E como é esse personagem em termos de imagem?
Bem, a câmera precisa ir no rosto desse personagem, com plano fechado. A gente abusa
do close, vai para os olhos, vamos em busca de planos-seqüência do cinema de arte. O
olhar do homem do campo é um olhar puro, honesto, verdadeiro. Então, não tem por que
você esconder esse olhar. A câmera pode se aproximar dele, e pode se aproximar muito.
Mas a câmera não causa uma certa inibição?
O engraçado é que, num primeiro momento, eles ficam meio que ariscos com nossa
presença, não pela câmera mas também pelo microfone, às vezes já desce tripé, a gente
monta luz, outras vezes não precisamos nem de iluminação... A gente evita usar luz,
porque utilizamos muito a luz natural. As câmeras que temos hoje, as beta digitais,
gravando em disco, são muito mais sensíveis. É um equipamento excelente, de última
geração, que utiliza um mínimo de luz. Para nós, do Globo Rural, foi muito bom, porque
trabalhamos com a luz verdadeira, do dia-a-dia da casa. A gente trabalha com aquele feixe
de luz, ali, brilhando, um raio, na cozinha. A gente consegue pegar a luz natural. A
parafernália assusta um pouco, mas, normalmente, a gente começa a entrar num clima de
brincadeira que ajuda a descontrair. Passamos às vezes dois ou três dias na propriedade,
com muitas horas de gravação, e isso ajuda o cidadão a se soltar, entrar no nosso clima.
Em Rio Capibaribe, por exemplo, há variados planos de imagem da arquitetura,
especialmente do centro histórico do Recife. Dá para explicar essa linguagem?
É o cinema. Assisto muitos filmes. Eu viajo muito e vou comprando filmes que assisto em
meu laptop durante minhas viagens. Quando eu estou em São Paulo, eu pego a minha filha
205
de 13 anos, a gente vai muito ao cinema. Eu gosto muito do trabalho do Copolla, um cara
que usa planos-seqüências sem edição. Ele faz jogos de luz e não precisa de edição, de
corte brusco, tem uma seqüência bem agradável, bem suave. Então, eu sempre espero um
momento bom de luz para algumas imagens. O momento ideal para você filmar café, por
exemplo, ou é pela manhã, cedindo, ou à tarde, que você tem um sombreado bonito, uma
temperatura agradável. Eu tento não interferir muito na vida da planta. Eu vejo a
temperatura de luz, o plano ideal, aquilo que eu estou sentindo.
Qual a diferença de filmar uma matéria técnica e uma história humana?
Para nós, elas têm o mesmo tratamento visual. Elas precisam ter um começo, meio e fim.
Na matéria técnica você tem que ser muito mais objetivo. Por exemplo, é uma visita ao
médico. Você tem que ir lá e falar para o cara: “Olha, a tua planta está com esse problema,
você tem que usar este produto, se não der certo, você vai ter que procurar outro médico
que vá ver de perto a doença”. Quer dizer, encerrou. Não tem o que evoluir na história. Na
matéria trabalhada, não. Você precisa criar toda uma situação, entrar na intimidade do
agricultor, entrar no dia-a-dia da fazenda, dos animais, das plantas. São duas coisas
diferentes, mas recebem o mesmo tratamento cinematográfico, ou seja, precisa ter
começo, meio e fim, sempre.
Como o repórter-cinematográfico participa da montagem da matéria?
Isso é uma coisa muito importante. Nao é o repórter-cinematográfico. Eu sempre falo
que o Globo Rural é um trabalho de equipe. Então, nós temos o motorista, o operador de
áudio, o repórter-cinematográfico e o repórter. Os quatro discutem a matéria. A gente se
reúne com o Lucas eu e o repórter, no caso –, ele nos passa a informação, o lugar, e
começamos a pensar, a imaginar como vai ser a matéria. Primeiro vamos ver a realidade
se é realmente essa. Discutimos em grupo. Fazemos uma reunião com as pessoas que vão
participar da reportagem. Aí, normalmente, entram as empresas que prestam assistência
técnica, os agrônomos, as pessoas que vão nos acompanhar nos locais pré-produzidos pelo
Lucas. Neste caminho, paramos e já elaboramos um roteiro de gravação.
A passagem, o repórter começa a discutir quando tem a matéria na mão. Aí ele começa
a discutir com o repórter-cinematográfico e o resto da equipe: “Olha, que tal se a gente
fizer uma passagem assim para ligar aquela história que o cara contou que a mãe dele
estava com a perna quebrada? Que tal se a gente fizer a passagem na frente do hospital,
para dizer que ela foi atendida por tal hospital?” Quer dizer, uma coisa que dê um elo, uma
ligação.Ou então, fazer a passagem na frente da casa dela, onde ela caiu etc...
E no telejornal, você não tem essa possibilidade de discutir a passagem?
Não. No telejornal diário se sai com a matéria discutida, quase que pronta, e o repórter
discute com o editor a passagem, porque o editor pode ter uma outra informação mais
abrangente, uma visão geral. No Globo Rural, nós é que determinamos como vai ser a
passagem da matéria.
O Lucas disse que em Rio Capibaribe a sugestão para que o sertanejo fosse trazido
até Recife, para conhecer o mar, que ele nunca tinha visto, partiu do repórter-
cinematográfico, que por coincidência é você. Como foi isso?
206
É, nós estávamos num bate-papo, numa reunião sobre aquela matéria. E olhamos um para
a cara do outro e perguntamos: “E o fim da matéria? O rio chega no mar e acabou?” Aí eu
comecei a imaginar e, de repente, falei: “Olha, eu gostei muito do homem da primeira
ponte. Vamos trazer a primeira ponte para a última ponte”. Primeiro, porque ele não
conhecia o mar, o cara nunca tinha visto aquele mundo de água. O máximo de água que
ele conseguia ver era uma minazinha. E, na hora, foi aprovada a idéia e decidimos
executar. E deu certo.
Sendo uma imagem de qualidade, as cenas exigem muitas horas de gravação?
Muitas, muitas. A gente dedica muito tempo na produção.
Dá uma idéia...
Olha, eu estou fazendo agora uma matéria de cafés especiais com o Hamilton. Nós
fizemos três viagens de quatro dias cada uma. Então, são 12 dias de gravação, dedicamos,
assim, nove horas por dia de gravação, e eu tenho agora mais quatro dias de gravação e
serão dedicados mais oito horas por dia. O nosso café da manhã começa às 6 horas, todos
os dias, durante as viagens, porque a gente precisa da luz para nosso trabalho. E a gente
consegue ir até o meio-dia sem sofrer também, porque depois dessa hora o sol é muito
quente. Então, a equipe pára uma hora para o almoço e voltamos para o campo e vamos
até as 5 ou 6 horas da tarde, quando não tem coisas à noite.
Essa matéria de cafés especiais, por exemplo, gravamos das 6 da manhã até as 11 horas da
noite, porque tinha uma missa às 8 horas da noite. Como as fazendas ficam longe da
cidade, então não valeria a pena ir até a cidade, tomar banho, jantar e voltar. Ficamos na
fazenda até o horário da missa, terminamos a gravação às 10 horas, voltamos para o hotel
às 11 horas da noite. Já houve caso aí de trabalhar direto 48 horas. Foi uma matéria com o
Nélson sobre a Serra da Canastra. A gente viajou a cavalo, de carro, madrugada adentro, e
começamos a gravar pela manhã, continuando até a noite.
Em algumas cenas do Globo Rural, aparecem fragmentos de imagens de obras
literárias, geralmente adaptadas para minisséries. Vida e morte severina, de João
Cabral de Mello Neto, que gerou um especial da Rede Globo, é um exemplo. O
trecho ilustra o imaginário sobre a luta do homem contra a seca, nas filmagens da foz
do Rio Capibaribe...
Esse já é um trabalho de edição. Como o Lucas foi o diretor dessa matéria, ele já devia ter
isso em mente. Na produção, se pensou em achar um espaço para entrar esse trecho.
Mas é na ilha de edição que se coloca o tempero para ver se dá certo. Nesse caso
específico, casou certinho.
O repórter-cinematográfico participa também da edição?
Algumas vezes eu vou na ilha e dou meus palpites. Normalmente eu vejo aqui no
“videoshow”, todas as quarta-feiras, antes de ir para o ar, e eu sempre falo: “Olha, eu
achava legal trocar essa imagem, colocar essa outra que eu sei que tem, melhorar o som
aqui”. Muitas vezes uma troca de informações. O Globo Rural costuma pegar do nosso
material bruto para a criação de vinhetas, as passagens dos programas. Nós não temos uma
vinheta fixa. Então, a gente usa imagens de matérias gravadas para vinhetas. Então, a
gente traz imagens gravadas para o Globo Rural.
207
Um dos aspectos notáveis do programa é a penetração que ele consegue em diferentes
faixas de público. Como explicar isso?
O que eu acho legal no programa é que, apesar da linguagem do documentário, o
telespectador consegue memorizar o que assiste. Isso se deve ao dia-a-dia dele, pois ele
vive aquilo. As pessoas que moram na cidade, também, têm um passado do campo.
Alguém já foi do campo e contou uma vez uma história. Então ele vê aquilo na televisão e
sempre vai lembrar do avô, do tio e até do pai. Eu mesmo sempre lembro de histórias
contadas por minha mãe. Ela sempre morou em Casabranca, interior de São Paulo, e me
contava coisas, de galinha, por exemplo. Que as galinhas faziam uma sujeira, entravam na
casa. E hoje eu chego no campo e vejo essa realidade, as donas-de-casa empurrando as
galinhas para fora. Se deixar o portãozinho aberto, elas entram na cozinha e vão até comer
as farinhas que estão no saco.
Gravar com o pessoal do campo é diferente de quem vive no mundo urbano?
A realidade do campo é bonita. O pessoal é muito honesto e verdadeiro. No meio urbano,
eles são muito formais, não são verdadeiros.
Conforme apuramos, o Globo Rural sofreu uma transformação, se comparado ao que
era feito em 1980, quando foi a primeira vez para o ar. Como isso se reflete no
trabalho de imagem?
Na época em que começamos, o Globo Rural era filme. A gente trabalhava com filme
16mm. Então, tinha cota de filme. Era um momento em que o repórter não aparecia tanto,
não existia tanta passagem, tinha-se um tempo limitado para gravar, não era possível
elaborar mais. Não havia uma linguagem de cinema. Era mais fechadinho. Hoje, muitas
vezes o personagem fala: “Eu crio gado, mas também sei cortar cabelo. Eu trabalho à tarde
como cabeleireiro”. É um box que abriu na matéria. Então, esse cara vai sair da casa dele,
vai pegar o carro, vai ter uma seqüência... O carro sai, estradinha de terra, asfalto, cidade,
o carro chegou na cidade, fechou no salão de beleza onde ele trabalha. foram
cinco takes. A gente vai vivendo os cenários que permitem tansportar lentamente a pessoa
sem ela levar um choque. O cara fala “eu sou fazendeiro”, e, ao mesmo tempo, “sou
cabeleireiro”. Aí, de repente, você corta pra ele cortando o cabelo de uma pessoa num
lugar. É um choque muito grande. E, no Globo Rural, a gente consegue fazer isso, o que
antigamente não era possível. A gente evita a produção ao máximo possível. Eu tento
mexer o mínimo no cenário, na casa dele, porque uma casa de fazenda já é um cenário. Os
sobrados do Capibaribe são um cenário. O rio é fantástico. Ao olhar aquilo, você
viajou no tempo...
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