Download PDF
ads:
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação
Programa de Pós-Graduação em História
Rodrigo de Azevedo Weimer
Os nomes da liberdade
Experiências de autonomia e práticas de nomeação
em um município da serra rio-grandense
nas duas últimas décadas do século XIX
São Leopoldo
2007.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação
Programa de Pós-Graduação em História
Rodrigo de Azevedo Weimer
Os nomes da liberdade
Experiências de autonomia e práticas de nomeação
em um município da serra rio-grandense
nas duas últimas décadas do século XIX
Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt
Moreira
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em História,
na área de História da América Latina
São Leopoldo
2007.
ads:
2
Dedicatórias
Dedico este trabalho:
Aos descendentes de Damásios, Elias, Marias Caetanas,
Veríssimos, Evas, Franciscos, Bibianas; Pedrosas e Bentas; Merêncios,
Felisbertas, Calistos, Terezas e Domicianas (dentre tantos outros): com
a esperança de que este trabalho possa contribuir para uma melhor
compreensão sobre o pós-abolição no Rio Grande do Sul e para a
construção de uma sociedade igualitária, na qual os preconceitos – de
quaisquer natureza – não passem de uma lembrança incômoda e
constrangedora. Daquelas que – de tão incômodas – não devam
jamais ser esquecidas.
Ao meu avô Antonio Soares de Azevedo, que tive o infortúnio de
perder enquanto preparava esta dissertação, e à minha oma, Fanny
Weimer, de quem tenho o privilégio e honra de ter sido criado à imagem
e semelhança.
A Cassiana, onde minha história se encontra com aquelas que
conto. Para que sua memória não fique silenciada nem esquecida.
3
Agradecimentos
Esta dissertação, felizmente, não foi uma empreitada individual. Tive todo
tipo de apoio – acadêmico ou não – de indivíduos e instituições que ajudaram a
criar condições para viabilizá-la. É chegado o momento de creditá-los, assumindo o
risco das omissões.
Agradeço aos familiares no Rio Grande de São Pedro: meus pais, Günter e
Tania, pelo suporte emocional, pelo amparo financeiro, por jamais terem perdido a
fé em mim quando tudo parecia perdido, pelas lições de vida e de seriedade
profissional, por infinitas coisas que não me sinto capaz de verbalizar. Minha mãe
pacientemente fez a revisão das citações, corrigiu o português e tabelas. Minha tia
Wally fez das noites de quinta-feira e dos almoços de domingo momentos muito
esperados na semana. Meu mano Ricardo foi meu paciente pronto-socorro
informático, junto com meu primo Terceiro (cá e lá). No vale do Taquari, agradeço
à tia Erna Meyer e seu clã, que sempre torna mais alegre a vida de quem com eles
convive. Na Bahia de Todos os Santos, agradeço à toda azevedagem, mas seria
injusto não mencionar particularmente tia Lua, por tudo.
Agradeço, muito, ao meu orientador Paulo Moreira. Ele é a prova viva de
que mestrado não necessariamente produz traumas. Com um jeito sereno, acessível e
amigável de orientar, o Paulo ajuda a fazer da produção intelectual exatamente
aquilo que ela deve ser: uma atividade agradável e prazerosa. E, muito importante,
sem que o rigor e a seriedade fiquem comprometidos. Com ele não se aprende
apenas sobre a história da escravidão ou do pós-abolição, mas também sobre
meandros do ofício e sobre jeitos de ser, agir e fazer.
Os professores Karl Monsma e Ana Lugão Rios prontamente se dispuseram
a compor a banca. Sou grato pela leitura atenta, críticas e comentários pertinentes
que certamente farão.
Agradeço, na pessoa do coordenador Flávio Heinz e da secretária Janaína
Trescastro (solícitos e acessíveis), ao curso de pós-graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde encontrei um espaço tranqüilo e
produtivo para a elaboração deste trabalho. Pude cursá-lo graças à bolsa
flexibilizada (que me poupou do pagamento de mensalidades) concedida pela
CAPES, à qual também sou grato. Agradeço ao corpo docente da instituição, em
4
especial à Eloísa Capovilla, à Maria Cristina Martins e à Eliane Fleck. Menciono,
ainda, professores d’outrora que foram fundamentais para os caminhos que me
levaram até aqui: Sílvia Petersen, Fábio Kühn, Regina Weber, Helga Piccolo,
Carlos Steil e Claudia Fonseca.
Neste trabalho há um pouco de cada um dos meus ex-orientadores, desde os
tempos de graduação: Gunter Axt, Helen Osório e Daisy Barcellos. A cada um
deles sou devedor. Do Gunter, herdei o interesse pela Revolução Federalista e a
antipatia pelos castilhistas. Com a Helen, aprendi a fazer história. Daisy iniciou-me
na etnografia. Junto com ela aprendi a ter anthropological blues. Dela sou amigo, ex-
aluno, ex-orientando, colega, admirador, discípulo.
Muitos foram os interlocutores em trocas de textos e idéias. Sou grato à Ana
Paula Comin de Carvalho, Luana Teixeira, Tiago Gil, Luís Augusto Farinatti,
Marcelo Mello, Eloísa Capovilla, Vinicius Oliveira e Jonas Vargas. Miguel Duarte
sempre fez tudo que esteve ao seu alcance para facilitar meus esforços, com atenção
e gentileza. Regina Xavier diversas vezes discutiu aspectos do meu trabalho, com
ótimas críticas e sugestões; indicou-me e emprestou excelente bibliografia com
muita solicitude. Agradeço ainda aos meus colegas de turma, em especial ao Caiuá
Al-alam, pelos papos político-historiográficos no Trensurb.
Sou grato à “equipe de Morro Alto”, pela oportunidade de enriquecermos
nossos conhecimentos e nossas vidas no convívio, no trabalho coletivo, na
utilização de nossa diversidade sempre para somar.
Seria absurdo não registrar minha enorme dívida com as comunidades
negras de Morro Alto e Família Silva. Este estudo, diretamente, não é sobre eles,
mas certamente se não os tivesse conhecido, não poderia tê-lo escrito. É impossível
enumerar todas as pessoas que foram receptivas e pacientemente interromperam
suas atividades para dar depoimentos, sorrisos, amizade, café, cachorro quente e
roscas de polvilho. Contudo, sou obrigado a mencionar alguns em particular. Em
nome das comunidades a que pertencem, então, sou enormemente grato por todos
os aprendizados sobre o “tempos dos antigos” e sobre a vida de nossos tempos que
pude ter junto à D. Aurora Inácia Marques, à D. Diva Inácia Marques Terra, à D.
Ângela Reginalda de Souza, ao Seu Ermenegildo Manuel da Silva, Seu Ildo Forte
dos Santos (in memorian), à Maria Elena Couto (amante da história de seu povo),
à Lígia Silva, ao Lorico Silva, à Ângela Silva e à Zuleica Silva. Tivemos a dor de
perder, depois da conclusão da redação deste trabalho figuras magníficas como D.
5
Aurora Conceição da Silveira, Seu Celso Terra e D. Ercília Marques da Rosa. O
mundo fica menos sábio sem sua presença.
Muitas foram as voltas ao mundo realizadas no preparo deste estudo. Em
Salvador, agradeço ao CEAO pela oportunidade de participar do curso Fábrica de
Idéias, onde tive contato com professores excelentes, como Elísio Macamo, Paul
Gilroy e Maria do Rosário de Carvalho (que através de leitura atenta e perspicaz,
fez muitas críticas e sugestões ao meu projeto) e colegas idem (em especial Bárbara
Canedo, Érika Arantes, Carlos Subuhana, Daniela Rosa, Juliana Serzedello,
Cristian Martins e Janaína Damasceno).
Em São Francisco de Paula, fui praticamente adotado no Cartório de
Registro Civil de Pessoas Naturais (onde ganhei chimarrão e doces, documentação
e mesa disponibilizadas prontamente). Então, agradeço à Eoreni de Fátima
Dalzoto Silva, ao Homero Costa da Silva, seus familiares e funcionários, pela
amizade e receptividade. Na biblioteca, Maria Lúcia Teixeira generosamente
franqueou-me acesso ao seu tesouro: o baú com a coleção particular de seu avô.
Em Caxias do Sul, Rômulo Gelatti sempre foi um grande amigo, hospitaleiro e
receptivo: quando subi a serra para pesquisar, ou de “mala e cuia”. Aos colegas de
trabalho no Ministério Público Federal, agradeço por terem me aturado falar tanto
em um assunto (o único de um mestrando na reta final – sua dissertação) que
provavelmente interessava a poucos além de mim. Em Osório, Sherol Santos e sua
família nos abrigaram durante incursões à cidade litorânea. Em São Luís, sou grato
à Kátia Santos Bogéa, por sua compreensão, simpatia e esforço, e em Porto Alegre,
aos funcionários das instituições onde pesquisei, em particular, ao pessoal do
Arquivo Público, que fechou os maços com os laços que eu não sabia fazer.
Carlos Salgado e Tania Costamilan, através de seu trabalho competente,
ajudaram a criar condições para a realização deste trabalho com a maior
tranqüilidade possível. Charles Kiefer me ensinou a escrever melhor e me estimulou
a brincar com a linguagem.
Finalmente, sem meus amigos sou ninguém – e se eu fosse ninguém,
dissertação alguma sairia. Nos momentos em que o século XIX parecia prestes a
me tragar, eles corajosamente jogavam a corda para que eu pudesse agarrar-me e
retornar à contemporaneidade. Novamente, por sentir-me obrigado a mencionar
algumas pessoas em especial, assumo o risco da omissão.
6
Aline Francisco, querida amiga, mostrou-me caminhos diante de dilemas
pessoais e acadêmicos, e juntos aprendemos algumas muitas mesmas coisas sobre a
vida e o mundo. Adriano Miglia, meu irmãozinho, sempre ao meu lado em
momentos de sorrisos e de lágrimas (não dá pra fugir do clichê, pois é isso mesmo),
ajudou a segurar barras reais e imaginárias. E além disso ainda corrigiu minha
dissertação e transformou meu resumo em um abstract! Guilherme Mazzocato, em
relação a quem já parei de computar há quanto tempo eu sou ele e ele é eu, certa
vez me disse que somos cavaleiros em busca do Santo Graal. Os cavaleiros acabam
por se espalhar pelo mundo. Estou encontrando meus cálices sagrados, e
certamente ele é uma das pessoas que (mesmo que não saiba) mais ajudou nesse
intuito. Desejo com toda força que também encontre todos os cálices que merece.
Christian Leite, Elisa Garcia, Juliano Rodrigues, mesmo na diáspora, na distância
ou na ausência, estão ao meu lado. Durante a escrita de cada linha desse texto, por
exemplo.
Com Marcelo Vianna e Letícia Zenga passei por ótimos momentos, que,
como disse, me ajudaram a não me perder no túnel do tempo (a não ser por uns
pulinhos até os anos 1980...). Nas minhas andanças quilombolas, as parceiras
inseparáveis foram a Cíntia Müller e a Mariana Fernandes. Como não poderia
deixar de ser, a elas destino todo meu carinho. Espeto, enforco, afogo!
Gabriel Aladrén realizou uma leitura atenta e criteriosa de alguns capítulos,
fazendo críticas e comentários preciosos. Se a banca fizer os mesmos, a culpa é de
minha teimosia. Ele e Joana d’Avila, camarada de tantos anos de luta, risadas e
brigas (alguminhas) generosamente se prontificaram a me ouvir em momentos
críticos e a resolver pequenas “pendências de pesquisa” quando eu não podia ir a
Porto Alegre em dias úteis. Alessandra “Sana” Gasparotto, Gabriel Berute,
Graciela Garcia, Caroline Zamboni são outros amigos e camaradas cuja história se
confunde com a minha, junto a quem errei pelos caminhos e encontrei saídas.
Cássia Silveira, Tiago Ribeiro, Caroline Heck, Dante Guazzelli e Marcus Vinicius
“Marquito” me contagiam com sua criatividade e presença alegre. Eles estimulam e
generosamente me emprestam um pouco de suas maiores virtudes.
Agradeço às minhas amigas “dálmatas”: Laura Gil, Nicole Reis (pelas
sessões Teixeirinha, às quais devo a conquista do ganha-pão que sustentou os
últimos momentos desta empreitada), e Pilar Uriarte (pelos projetos, lástimas e
semilástimas, catolicismos e protestantismos, pandas, lhamas, pingüins, maravilhas
7
e coisas assim). Desse universo também fazem parte Nati Uriarte, Carlos Machado,
Simone Rolim de Moura e Miriam Vieira. Agradeço à Daniela de Carvalho, pelo
precedente de agradecimentos de quatro laudas e pelos “momentos Abbey Road”
nos congressos da vida.
Agradeço à Patota, cujos integrantes, ao contrário das demais pessoas em
seu meio, nunca me perguntaram “mas porque você vai fazer História?”. Agradeço
à “turma de Guaíba”, em especial a minha dinda Lia Gaertner e à Claudia Mauch.
Se em uma manhã nos anos 80 ela não tivesse tido a paciência de me explicar que
as histórias que eu queria ouvir nada tinham a ver com aquelas que ela estava
estudando, talvez hoje eu não estivesse contando o mesmo tipo de história na qual
se concentrava quando foi interrompida por uma criança curiosa.
O risco de agradecer a tantas pessoas extraordinárias que encontrei em meu
caminho, me acompanharam, me ensinaram e, cada qual à sua maneira,
concorreram para possibilitar este trabalho, está na criação de uma expectativa de
que ele seja tão extraordinário quanto elas, o que é, no entanto, impossível. Ainda
assim, escrevi a dissertação com a esperança de que possa estar à sua altura.
8
(...) os acontecimentos batiam de encontro aos vidros,
ao banco, ele era embalado pela rapidez da sua vida.
Pensava: “Minha vida não me pertence mais, minha
vida é apenas um destino”. Via surgirem um por um
os pesados edifícios sombrios da Rua des Saint-Pères,
olhava sua vida desfilar. “Caso, não caso: não tenho
mais nada com isso. É cara ou coroa”.
O ônibus parou numa brusca brecada. Mathieu
endireitou-se e olhou angustiado as costas do
motorista. Toda a sua liberdade acabava de refluir
sobre ele. Pensou: “Não, não é cara ou coroa. O que
quer que aconteça, é através de mim que há de
acontecer”. (Sartre, 1981 p. 297)
9
Resumo
Este trabalho tem a intenção de investigar as formas pelas quais a vida em
liberdade foi construída pelos indivíduos oriundos do cativeiro, tomando como
locus de observação o município de São Francisco de Paula, no nordeste do Rio
Grande do Sul, durante as duas décadas finais do século XIX. Nesta localidade
serrana, investiguei aspectos como moradia, relacionamento com os antigos
senhores, tutela de menores, trabalho, criminalidade, engajamento militar e os
nomes adotados pelos ex-cativos na vida em liberdade, como algumas vias de
acesso aos complexos caminhos pelos quais se deu sua inserção, em novos
parâmetros, na sociedade em que viviam.
Palavras-chave: liberdade, invisibilidade, pós-abolição, “Revolução
Federalista”, nomeação
10
Abstract
This paper intends to investigate the forms through which free life was built
by former slaves, taking as locus the city of São Francisco de Paula, in the northeast
of Rio Grande do Sul, during the two final decades of the 19
th
century. In this city,
located in the highlands, I investigated subjects such as residence, relationship with
the old masters, child tutelage, work, criminality, military engagement, and the
names adopted by former slaves in free life as some of the means of access to the
complex ways through which their insertion in their society was, under new
parameters, made possible.
Key-words: freedom, invisibility, post-abolition, “Federalist Revolution”, naming
11
Abreviaturas
ACDCS = Arquivo da Cúria Diocesana de Caxias do Sul
AHRS = Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
AM = Autoridades municipais
APERS = Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
CC = Civil e Crime
Cap. = capítulo
CARIRGS = Coleção dos Atos, Regulamentos e instruções expedidas pela
Presidência da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. [Biblioteca
da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul – Solar dos
Câmara]
et. al. = e colaboradores
f. = folha
IBGE = Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGRGS = Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
MCSHJC = Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
org. = organizador
p. = página
PRR = Partido Republicano Rio-grandense
RCSFP = Registro Civil das pessoas naturais de São Francisco de Paula
SIE = Secretaria do Interior e Exterior
v = verso
12
Índice
Dedicatórias
2
Agradecimentos
3
Resumo
9
Abstract
10
Abreviaturas
11
Introdução
16
Capítulo 1: Escravidão e Liberdade em Trânsito
36
Escravidão 37
Trânsitos 52
Liberdade? 75
Capítulo 2: Manual Prático da Vida em Liberdade
86
Onde e com quem morar; como se relacionar com seu ex-senhor 87
Quem fica com as crianças? 100
No que trabalhar 109
Motivos para fazer churrasco 133
Capítulo 3: A Construção da Liberdade nos Anos de Guerra
158
A “Revolução Federalista”: narrativa factual, silêncios e discursos
historiográficos e literários sobre os negros
163
Com vocês, “o negro Adão” e “o bravo Tenente-coronel Adão
Latorre”
179
13
Júlio de Castilhos e os “fetichistas” 192
Liberdades em Guerra 198
Capítulo 4: Os Nomes da Liberdade
207
O sobrenome 217
Os nomes dos nomes 243
O retorno de Bibiana 244
Ser “ex-escravo” no sul do Brasil 252
A imensa família “de tal” 258
Do apelido à alcunha, da alcunha ao apelido 262
O sepultamento da “cor” e a ausência dos africanos 269
Nomeando e construindo ancestralidades 282
Considerações Finais
294
Fontes documentais
300
Bibliografia
305
Anexos
323
14
Listagem de imagens, mapas, gráficos e tabelas
Figuras
1) Verdes campos e araucárias 56
2) A mangueira e o arame 56
3) Vista da cidade em 1901 57
4) A sinuosa serra do Umbu – descida de São Francisco de Paula para
Maquiné
65
5) Panorama do vale do Rio do Pinto, com estrada. 73
6) Túmulo de Candinho Baiano 74
7) Quadro “A Redenção de Cam” de Modesto Brocos 81
8) Oliveiro Antunes da Silva, o “enamorado infeliz” 175
9) Piquete de Aparício Saraiva, comandado pelo Tenente-Coronel Adão 181
10) “Adão Latorre, célebre degollador federalista ejerciendo su terrible
oficio”
187
11) Luciano José da Silva Netto assina “O Conservador” 195
12) Luciano José da Silva Netto assina “A Federação” 195
Mapas
1) Nordeste do Rio Grande do Sul: São Francisco de Paula e municípios
vizinhos
55
2) Caminhos de São Francisco para Três Forquilhas, Maquiné e Taquara 64
3) Foto de satélite da região de São Francisco de Paula 64
4) Mapa de São Francisco de Paula de 1931
(detalhe – nordeste do município, fronteira com Santa Catarina)
71
5) Mapa de São Francisco de Paula de 1925 (detalhe – leste do município) 72
15
Gráficos
1) Gráfico Genealógico – Partilha da Família de Damásio 45
2) Gráfico Genealógico – Partilha da Família de Calisto 47
3) Crescimento populacional de São Francisco de Paula segundo
critérios raciais ou de cor
62
4) Variação (%) da população de São Francisco – 1872-1890 62
5) Gráfico Genealógico – Família de Eva e Caetana 232 e 290
6) Gráfico Genealógico – Família de Manoel Francisco de Brito 273 e 291
Tabelas
1) População de São Francisco de Paula por condição social – 1872 58
2) População de São Francisco de Paula por “cor” – 1890 61
3) Atividades a que se dedicaram forros, ex-escravos e ingênuos 114
4) Registros civis – Mulheres de profissão “serviço doméstico ou “criada”
segundo local de nascimento dos filhos e declarante
129
5) Registros civis efetuados por declarante não familiar do sexo masculino 130
6) Profissões dos escravos na paróquia de São Francisco 131
7) Casos de abigeato em São Francisco de Paula (1879-1894), praticados de
forma individual ou coletiva, com ou sem indícios de participação de negros.
135
8) Registros sem sobrenomes dos pais nos nascimentos de São Francisco 225
9) Pais e mães não identificados nos registros civis 225
10) Processos criminais: denunciados de acordo com a presença de
sobrenome
229
11) Formas de referência ao estatuto social de Bibiana (testemunhas) 246
12) Formas de referência ao estatuto social de Bibiana (peças processuais) 247
13) Presença ou ausência do quesito “cor” nos registros de nascimento e
óbito
270
16
Introdução
O presente trabalho dedica-se a investigar experiências negras nas duas
últimas décadas do século XIX em um município da serra rio-grandense
1
. Partindo
de um projeto inicial no qual buscava respostas para a indagação sobre os destinos
tomados por antigos escravos após a promulgação da Lei Áurea, fez-se necessário
restringir (em termos espaciais) e ampliar (em termos cronológicos e de grupo
pesquisado) os marcos inicialmente planejados. Da preocupação anterior chegou-
se, então, a um estudo diverso, embora enfocando sempre os ex-escravos. Algumas
idéias centrais ajudam a organizar o presente texto, dando-lhe um argumento e eixo
organizador, embora por vezes em uma narrativa bastante livre. Em primeiro lugar,
buscou-se explorar os significados conferidos à liberdade, os conteúdos específicos
associados a ela, seja pelos ex-escravos, seja por seus antigos senhores. Além disso,
foi importante debruçar-me sobre a tensão entre as experiências de autonomia e os
vínculos de pertencimento à “gente” dos antigos senhores. Mas esses temas serão
mais bem desenvolvidos em momento oportuno.
A compreensão de que é impossível aproximar-se do pós-abolição sem
melhor entendimento do escravismo da região serrana me levou a estender a
delimitação cronológica àquelas duas décadas. A rigor, um recuo até antes de 1888
1
Serra, aqui, não é entendida estritamente como um acidente geográfico, mas no mesmo sentido em
que é usado contemporaneamente no Rio Grande do Sul, especificamente o espaço social, político e
econômico compreendido pela região escarpada do nordeste do Estado. Seus principais municípios
na atualidade são, dentre outros, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Gramado, Canela, Nova
Petrópolis, Farroupilha, São Francisco de Paula. Constituem, na economia estadual, importante
pólo industrial e turístico. No sudeste do Rio Grande do Sul existe uma outra região serrana que não
diz respeito, em absoluto, a esta pesquisa.
17
permitiu uma apreciação mais interessante sobre o fim do escravismo na região
serrana. Diante da constatação de que parte significativa dos estudos (com algumas
exceções) toma 1888 ou 1889 como pontos de início ou de término de seus recortes,
superestimando as rupturas que a Abolição e o advento da República podem ter
representado, optei por concentrar-me nas duas décadas em que estão concentrados
os momentos finais da escravidão e o imediato pós-13 de Maio. É evidente que a
validade da maior parte de minhas conclusões se restringe, portanto, a estes
momentos.
Se procurei integrar dois momentos históricos tidos como distintos, de
maneira alguma nego a relevância de 1888 como evento histórico divisor de águas.
Não pela “concessão” ou “generosidade” da herdeira do trono imperial, mas
simplesmente porque a ordem jurídica do país alterou-se radicalmente. Inicialmente
dirigia minha atenção à procura por continuidades, mas a pesquisa empírica e o
aprimoramento teórico me foram exigindo sensibilidade para perceber o que
mudou e o que não mudou. As transformações aqui enfocadas, por sua vez, são
prioritariamente aquelas decorrentes da ação dos ex-escravos.
Fraga Filho assinala que houve uma tentativa, por parte dos primeiros
governos republicanos, de esvaziar os significados dos festejos de 13 de maio.
Segundo ele, “havia motivações políticas para que se buscasse relegar ao
esquecimento aquela data e os acontecimentos que culminaram a abolição”. Dentre
seus intuitos estava a intenção de censurar fato identificado como grande realização
do regime monárquico; mas também consistia em “silenciar conflitos e sepultar
esperanças nascidas no âmbito mesmo das lutas contra a escravidão e pela
cidadania” (2006, p. 356).
A negação categórica da relevância do 13 de maio como momento de
transformação, alegando tratar-se de visão laudatória de Isabel que lhe creditaria
todos méritos pela libertação dos escravos, além de fazer coro ao silenciamento
promovido nos anos iniciais da República, parece esquecer a intensa atividade de
cativos e ex-cativos naquele momento de mudança. Ironicamente, no afã de
combater uma perspectiva paternalista, ao negar 1888, se retorna à perspectiva
vitimizadora que se quer abandonar, já que, encontrando na princesa um bom alvo,
se esquece daqueles que realmente tornaram possível a data negligenciada
2
.
2
Sobre este debate, ver Daibert Junior, Robert (2004).
18
Diversos estudos históricos já desenvolveram a contento a temática da luta
dos escravos para a conquista da libertação, não havendo, portanto, necessidade de
insistir nisso (apenas a título de referência, ver Chalhoub, 1990, Machado, 1994,
Xavier, 1996, Andrews, 1998, Moreira, 2003). Porém, rejeita-se o entendimento de
que a liberdade era um bem, um estatuto legal que contivesse em si uma garantia de
aplicação ou uma formulação intrínseca dos significados nela contidos. Esses
indivíduos não eram sujeitos abstratos em busca de ideais universais de liberdade;
pelo contrário, a esta noção eram impressos significados específicos (Machado,
1994, Mattos, 1998). Compreende-se que, uma vez conquistado, o estatuto de livre
deveria ser objeto de construção pelos ex-escravos, para imprimir-lhe as
características que lhes fossem mais convenientes, fosse em termos de interesses
práticos, fosse em termos de relevância simbólica. Basicamente, a investigação dos
processos de construção dessas liberdades é o objetivo central desta obra.
Inicialmente, pretendia-se contemplar, além do município de São Francisco
de Paula, também Torres e Conceição do Arroio. A intenção era melhor dar conta
das inter-relações entre serra e litoral norte do Rio Grande do Sul. No entanto, o
volume documental superior ao estimado não permitiu abranger tal área e, na
restrição, optou-se pelo município serrano. Mesmo assim, no capítulo 1, dados
sobre o trânsito entre ambas regiões geográficas são apresentados e discutidos. O
grupo social sobre o qual meu olhar inicialmente estava dirigido, por seu turno,
teve que ser ampliado, fosse pela dificuldade de reconhecer se um indivíduo tinha
sido escravo em algum momento de sua vida, ou se ele havia sido remido em
virtude da lei de 13 de maio de 1888. Esses obstáculos, porém, tornaram possível
entender que algumas destas distinções não eram registradas em fontes
documentais porque nem sempre eram tão relevantes. Em suas inter-relações, ao
menos é o que os processos-crimes sugerem, as diversas formas como haviam se
tornado livres não costumavam delimitar fronteiras de maior relevância. Mesmo
pobres brancos (ou não-explicitados como negros) se faziam presentes nos mesmos
circuitos de interação social.
Quando assumo a noção de “experiências negras”, tenho como base o
conceito formulado por Thompson, isto é, um “termo ausente” na teoria marxista,
significando a intervenção humana sobre sua situação determinada, a partir do
processamento cultural de necessidades, interesses e antagonismos com que se
defronta (Thompson, 1981 p. 182). Em outros termos, pode-se dizer que o
19
historiador britânico procurava devolver ao corpo teórico com o qual se identificava
– o marxismo – o protagonismo humano e sua capacidade de agir sobre situações
que, se estavam postas, estavam também sujeitas à ação humana. Nisso, a idéia de
cultura também era incorporada de forma mais rica, na medida em que aparece
como instância mediadora entre o vivido, a experiência social, e as características
“estruturais” com as quais se defrontavam homens e mulheres.
Ao longo desse trabalho, o leitor irá deparar-se com marcos teóricos diversos
que, cada qual à sua maneira, ajudaram-me a interpretar e a construir uma
concepção sobre os problemas com os quais lidei: desfilam por essas páginas
filósofos existencialistas, micro-historiadores italianos, marxistas ingleses,
antropólogos culturalistas, entre outros. Mais do que uma miscelânea teórica, no
entanto, tomo como fio condutor a crença de Thompson na capacidade humana de
interferir sobre determinações exteriores consideradas dadas. Apesar da diversidade
de orientações, esta temática central une os autores nos quais me referencio.
Mesmo os estruturalistas, ao apresentar respostas opostas, preocupam-se com
problemas similares. E, afinal, uma problemática centrada nos espaços e limites da
ação humana não pode ser mais adequada para tentar compreender a última
geração de escravos e suas vivências posteriores a 1888.
Sob este prisma, um embasamento teórico aparentemente frouxo oculta por
trás de si uma linha interpretativa que talvez tenha sido seguida mesmo com
demasiada rigidez. Meu estudo talvez peque por um certo voluntarismo na
interpretação histórica. Isso é plausível: atingir o equilíbrio entre as iniciativas
subjetivas e as determinações e condicionamentos estruturais é uma tarefa difícil no
estudo do social. Todavia, na preocupação de tentar acertar este equilíbrio
delicado, tenho para mim como preferível pecar por uma perspectiva
demasiadamente centrada nos sujeitos, na qual se possa acreditar em sua
capacidade de influenciar em seu destino e auto-construção, do que ceder ao
domínio inexorável de estruturas históricas ou supra-históricas, palpáveis ou
abstratas.
Os debates relativos ao pós-escravidão geralmente estiveram centrados na
herança desestruturadora que o cativeiro teria deixado para aqueles que passaram
por essa experiência. Em diversos autores, especialmente da chamada Escola
Sociológica Paulista, esses efeitos “anômicos” – incapacidade para formação de
famílias estáveis, para inserção no mercado de trabalho, de valorar positivamente a
20
atividade produtiva ou desenvolver laços comunitários – não apenas atingiram a
última geração de escravos, defrontada com os problemas da vida em liberdade,
como são também extensivos aos seus descendentes (Bastide e Fernandes, 1971).
Quase uma marca de Cam (ver capítulo 1). O maior problema dos autores não é
assinalar limitações, mas considerá-las intransponíveis. Fernandes toma uma frase
de Caio Prado Júnior, com a qual manifesta concordância, em que o historiador
paulista afirmava:
no Brasil, o escravo nunca irá além do seu ponto de
partida: o esforço físico constrangido, não educará o indivíduo, não
o preparará para um plano de vida humana mais elevado. (Prado
Junior, apud Bastide e Fernandes, 1971 p. 62, grifo meu)
Em suma, a contrapartida do bem-vindo reconhecimento (sobretudo nas
décadas de 1960 e 1970) da persistência da desigualdade e da sobreposição entre
barreiras raciais e estratificação sócio-econômica, esteve na insistente afirmação da
incapacidade de negros inábeis diante de virtualmente qualquer coisa que um
branco pudesse fazer. À parte o inegável mérito de desconstruir e dar combate à
concepção idílica das relações raciais no Brasil, subjacente à idéia freyriana de
“democracia racial”, sua abordagem guarda inconvenientes. Ao promover a
vitimização dos negros, revela-se incapaz de perceber sua capacidade de reação e
criação diante de situações adversas. Ela carece de fundamentação empírica, já que
hoje está mais do que demonstrada a existência de famílias estáveis e relações
comunitárias não apenas entre ex-escravos, como entre cativos. Ela reproduz
preconceitos de época, mesmo que sob uma abordagem crítica, visto que idéias
como sua recusa do trabalho ou sua desestruturação familiar eram ideologia
senhorial pura. Finalmente, ao remeter as iniqüidades raciais do Brasil para a
herança escravocrata de um remoto século XIX, tende-se à abstração do racismo
contemporâneo, que não pode ser entendido como produto e efeito direto e
necessário da escravidão.
Inegavelmente, porém, qualquer discussão sobre relações sociais no pós-
abolição necessariamente passa por Bastide e Fernandes. A melhor bibliografia
existente sobre o assunto parte desses autores e, uma vez criticando-os, aponta
novos caminhos a ser seguidos. Tomo-os como ponto de partida. Não pretendo
refazer o que já foi (bem) feito, e assim tomo a crítica à Escola Sociológica Paulista
21
como dada, embora ela seja uma interlocutora inevitável. Não cabe aqui exercitar o
“espancamento de cavalos mortos”, o esporte preferido dos historiadores segundo a
conveniente crítica de Costa (1998a)
3
.
Sem pretender ser exaustivo, assinalo alguns autores que contribuíram para
por em xeque a noção de herança da escravidão. Xavier, dentre outros aspectos,
assinalou que as experiências da escravidão não necessariamente foram esquecidas,
mas foram relidas por ex-escravos com vistas à criação de vínculos solidários para a
conquista da liberdade, sobrevivência e organização de suas vidas (1996 e 2000).
Andrews (1998) e Wissenbach (1998), embora menos incisivos, também dirigem
suas críticas a uma noção de “anomia” criadora de uma “dicotomia entre europeus
modernos, progressistas, altamente especializados e muito esforçados, e afro-
brasileiros alienados, irresponsáveis e sociopatas [sic] [que] encontra pouco – se é
que algum – apoio nas evidências disponíveis” (Andrews, 1998, p. 119-120).
Em Leite (1996 p. 47) há uma recusa de perceber o racismo, simplesmente,
como fruto do sistema escravista. Para a autora, é insuficiente explicar as relações
estabelecidas, no presente, somente como “resultado de arcaísmos e tradições”. No
mesmo sentido, Pedro et al. (1996 p. 237) destacam que a introdução de uma lógica
capitalista em Santa Catarina não modificou substancialmente suas relações inter-
étnicas, colocando em questão a longevidade desta “herança”. Deste modo, na
investigação da desigualdade e sua (in)visibilidade, fez-se necessário observar não
apenas a escravidão, mas também a “forma como se processaram a Abolição e a
chegada da República em Santa Catarina”.
Por fim, Rios e Mattos (2005 p.20-21) percebem haver em Florestan
Fernandes o destaque de alguns poucos aspectos conjunturais e psicológicos, como
expectativas frustradas com a liberdade, o desenvolvimento urbano em moldes
capitalistas e competitivos, e ainda a inserção de imigrantes em larga escala. Não
obstante, o fulcro de sua abordagem é mesmo a sobrevivência no pós-emancipação
de uma ordem racial decorrente do escravismo. Assim, “a abolição se apresentaria
quase como um não-fenômeno, incapaz de gerar mudanças”. Em contraposição, as
autoras propõem-se a
3
Ela própria pode ser considerada representante da Escola de Florestan Fernandes, mesmo que,
vivíssima, hoje relativize suas posturas teóricas (ao par que orgulhosamente reafirma todos seus
estudos anteriores), ao indagar-se sobre a relação entre experiência e estrutura, ao propugnar um
caminho alternativo entre o “determinismo econômico” e o “determinismo cultural” (1998a) ou,
ainda, coloque em prática essas preocupações teóricas em um livro sobre uma rebelião de escravos
na Guiana Britânica (1998b).
22
recuperar a historicidade dos diferentes processos de
desestruturação da ordem escravista e seus desdobramentos, seja
no que se refere às relações de trabalho, às condições de acesso aos
novos direitos civis e políticos para as populações libertas, bem
como às formas de racialização das novas relações econômicas,
políticas ou sociais. Ou seja procura-se desnaturalizar a noção de
raça, percebendo as categorias e identidades raciais como
construções sociais, historicamente determinadas (Rios e
Mattos, 2005, p. 29).
Pretendo realizar uma análise em parâmetros similares, embora a
quantidade de aspectos que posso abarcar seja notavelmente inferior. Ao fim desta
introdução, quando explicito a temática de cada capítulo, enumero os fenômenos
cuja história pretendo contemplar.
As abordagens destes historiadores, críticos da Escola Sociológica Paulista,
estão em fina sintonia, quando não são tributárias de trabalhos recentes sobre
escravidão, sobre condições a esta análogas e sobre o pós-abolição nos Estados
Unidos, Caribe, Cuba e África continental. Refiro-me aos estudos de Cooper, Holt
e Scott (2005), reunidos em obra conjunta. Os pesquisadores se indagam quanto às
conexões existentes, afinal, entre este passado escravista e a contemporaneidade,
entendendo o processo de emancipação e anos imediatamente posteriores como
momento chave (pois estava em questão o que significava deixar de ser escravo, e o
que se passava a ser em seguida) para reflexão sobre esta pergunta
4
.
Neste empreendimento coletivo, os autores se indagam sobre o que há além
da escravidão, partindo de situações históricas abrangentes de grande diversidade
espacial e temporal. Rejeitando respostas teleológicas, recusam-se a enxergar em
processos emancipatórios apenas mudanças ou somente permanências. As
desigualdades do presente não são creditadas às heranças da escravidão. Pelo
contrário, os “problemas da liberdade” preocupam-lhes mais. Privilegiando a
agência dos ex-escravos e demais sujeitos envolvidos naquele processo, propõem o
pós-emancipação como uma arena de disputas, e não como uma realidade dada,
decorrente de forma necessária do escravismo.
4
Preocupação semelhante foi a que me levou a evitar 1888 ou 1889 como pontos iniciais ou finais
da pesquisa.
23
Trata-se assim de período repleto de contradições, mas também pleno de
possibilidades e espaços de atuação para a construção (e lutas em torno) de diversos
significados de liberdade. A proclamação legal de novas relações jurídicas e
produtivas certamente não era suficiente para efetivá-las. Se isso dava margem à
persistência de arbitrariedades, também permitia o combate às mesmas e a
afirmação de noções de liberdade mais favoráveis aos interessados, especialmente,
como se verá, em contextos de enfrentamento bélico. Nisso estão contemplados
alguns dos principais aspectos abordados aqui abordados. Nesse processo de
reestruturação social era impossível não haver espaços para intervenção,
manifestação ou imposição de anseios e necessidades da parte dos ex-escravos.
A decisão de apresentar uma contribuição para compreender este “além da
escravidão” decorre em grande parte de duas pesquisas realizadas em equipe junto
a comunidades remanescentes de quilombos, respectivamente, a de Morro Alto,
empreendida em fins de 2001 e todo 2002
5
, e a da Família Silva, em meados de
2004
6
. A participação como historiador em equipes responsáveis pela elaboração de
relatórios técnicos, na ocasião pré-requisito necessário para colocar em prática os
dispositivos do artigo 68 dos Atos das disposições constitucionais transitórias da
Constituição federal de 1988, que trata da titularização das terras quilombolas,
colocou em pauta para mim e para meus colegas alguns desafios, mormente o
imperativo de ultrapassarmos a necessidade acadêmica de especialização. O
trabalho impunha que traçássemos os vínculos sócio-históricos entre as pessoas que
tínhamos em nossa frente, com quem conversávamos e fazíamos amizade e os
velhos documentos que encontrávamos nos arquivos.
Essa experiência foi tão enriquecedora quanto angustiante. Em ambos casos,
fez-se necessário abranger pesquisas de duração mais longa do que aquelas a que
estamos habituados. O passado escravista interessava na medida em que podia
ajudar a elucidar uma série de demandas do presente, ou como lembrança,
esquecimento ou negação. No entanto, havia um longo século entre um extremo e
outro das linhas que se fazia necessário tentar reconstituir.
5
Junto a Daisy Barcellos, Miriam de Fátima Chagas, Paulo Moreira, Cíntia Beatriz Müller,
Marcelo Vianna, Mariana Balen Fernandes e Nina Simone Fujimoto. A comunidade se situa na
divisa entre os municípios de Maquiné e Osório, RS, na BR-101.
6
Com Ana Paula Comin de Carvalho. A terra dos Silva fica no bairro Três Figueiras, zona
norte/leste da capital do Rio Grande do Sul.
24
No esforço de dar conta destes vínculos e na busca por bibliografia
pertinente, percebeu-se ainda a escassez de produção histórica sobre negros no Rio
Grande do Sul que ultrapassasse 1888. Se existem importantes trabalhos referentes
a outras regiões do país (apesar do tema estar longe de receber a atenção merecida,
em especial em um momento em que tanto se debate nacionalmente temas
diretamente ligados a raça e etnicidade – cotas étnico-raciais, regulamentação de
terras quilombolas), no Rio Grande do Sul eles escasseiam ainda mais. À parte
laudos periciais (além de Barcellos et. al, 2004 ver Anjos e Silva, 2004, dentre
outros), os principais estudos acadêmicos sobre o tema referem-se ao meio urbano
porto-alegrense: sobre a “Colônia africana” (Kersting, 1998) e o “Areal da
baronesa” (Mattos, 2000).
Não tenho pretensões que meu trabalho “preencha uma lacuna”. As lacunas
da história, sempre irredutível, costumam ter o hábito de aumentar de tamanho à
medida que as preenchemos. Antes, procuro contribuir para romper um silêncio,
juntando minha voz aos murmúrios sobre o pós-abolição em áreas rurais do Rio
Grande do Sul. O problema da invisibilidade étnica negra no estado sulino foi a
maior motivação e é a principal justificativa para o presente estudo.
Vivo em um estado brasileiro que afirma ser diferente dos demais em
decorrência de um suposto caráter europeu, devido não somente a sua composição
étnica, mas também a características climáticas ou geográficas. Evidentemente,
implícita nesta afirmação está a exclusão do “outro” – americano e africano – que
não se enquadram na almejada “europeidade” e para os quais se nega um lugar nas
representações e identidades sobre o Rio Grande do Sul
7
(Oliven, 1996). Leite
considera as identidades regionais dos estados sulinos, em comparação com a
identidade nacional brasileira, diferentes e excludentes:
(...) enquanto a identidade brasileira é inclusiva, procura
contemplar a diferença étnica, a identidade do sul se constrói pela
negação do negro. É principalmente neste século que a imagem do
negro vai pouco a pouco fazendo parte da identidade nacional em
construção, da idéia de “cultura brasileira”. Nesse mesmo período,
no Sul, ele é sistematicamente retirado da identidade regional.
(Leite, 1996 p. 49. Grifos originais.)
7
Aliás, a historiografia foi um lugar importante onde este velamento se operou. Nada mais justo,
portanto, que apresente sua contribuição para desvelá-lo. Ver Gutfreind (1990)
25
Também Pedro et al. (1996) sublinharam a invisibilidade como um tributo
pago pelas populações de origem africana, em Santa Catarina, à imagem do estado
como uma “bela e loira catarina”, “um pedaço da Europa no sul do Brasil”. O
resultado apontado é a negação da existência e da memória como forma de
discriminação. Souza (1998, capítulo 4), ainda, demonstra como a invisibilidade
extrapola a dimensão simbólica, produzindo efeitos econômicos e sociais, ao
reproduzir relações hierárquicas de raça. Sendo assim, “a analítica do fenômeno
étnico necessita ocorrer em conjunto com as teorias de estratificação social”
(Barcellos, apud Souza, 1998 p. 362).
Além de servir a uma obcecada necessidade de diferenciação, essa “Europa
imaginada” tornou-se mercadoria, na medida em que é explorada como atração
turística. Souza (1998 p. 372-373) apresenta um folheto de divulgação turística do
município de Gramado em que a cidade é caracterizada como “naturalmente
européia”. Talvez por ter sido uma região de colonização alemã e italiana de fato
intensa, e por sua paisagem ser a que mais lembra (mesmo que vagamente) a
européia, no espaço serrano o discurso eurocêntrico e invisibilizador é
especialmente corriqueiro. Essa foi uma das razões pelas quais escolhi estudar São
Francisco de Paula: não como provocação, mas como um esforço por demonstrar
que mesmo na região “naturalmente européia” esse é um argumento falacioso.
Efetivamente, não havia a menor equivalência entre discursos desta natureza
e a experiência empírica que eu estava tendo. São Francisco de Paula é um ponto
de referência realmente significativo para a memória das comunidades quilombolas
que estudei, freqüentemente lembrado em entrevistas, tendo mesmo um papel
identitário: os avós da Família Silva eram de lá originários, e os proprietários de
cativos da Fazenda do Morro Alto eram também fazendeiros em cima da serra,
sendo que muitos escravos transitavam com regularidade entre ambos espaços, a
fim de dar conta da demanda de trabalho de seus senhores. Estudar este município,
portanto, era uma oportunidade ímpar de promover um encontro entre dois estudos
anteriores para iniciar um novo com um ponto de partida mais sólido e com um
conhecimento prévio sobre o local analisado.
No capítulo 1 são discutidas as móveis fronteiras administrativas deste
município; por enquanto basta dizer que ele abarcava parte relevante do espaço
26
serrano
8
. São Francisco de Paula, portanto, é aqui tomada como representativa da
serra (ressalvada uma presença mais discreta de italianos e alemães), seja por sua
dimensão e pelos municípios que dali se desmembraram, seja pela antigüidade da
ocupação lusa dali
9
. Muito antes dos imigrantes do século XIX, os portugueses
fizeram daquele lugar, de localização privilegiada para o pouso de tropas, um dos
mais antigos espaços de ocupação no Rio Grande do Sul.
Por fim, um último motivo para sua eleição como local privilegiado de
análise está em suas diminutas dimensões, não geográficas, mas sem dúvida
alguma, populacionais. Lidar com um município de população mais restrita
permitiu-me uma observação mais próxima e minuciosa daquilo que acontecia no
município, e, assim, densificar meu material de análise. Foi possível – mesmo que o
estudo não tenha propósitos biográficos ou prosopográficos – encontrar os mesmos
sujeitos em situações diversas, e adquirir uma certa intimidade com alguns deles. O
leitor, chegando às últimas páginas, também terá adquirido alguma familiaridade
com Calisto, Damásio, Bibiana, Elias Carneiro Lobo ou o Coronel Felisberto
Baptista de Almeida Soares. Esta escala rasante de observação torna possível
enxergar coisas que não seriam visíveis através desde um olhar macroscópico.
Chegamos, portanto, às questões metodológicas. Como a última frase do
parágrafo prévio sugere, este trabalho se inspira em propostas teóricas da assim
chamada micro-história italiana. A busca por uma redução da escala de
observação, para esses autores, não tem como objetivo efetuar a substituição de
estudos macro-processuais por observações localizadas, com validade por si. Antes,
a análise minuciosa da ação de determinados personagens, de forma relacional com
o ambiente onde atuaram, tornou possível aos micro-historiadores pensar
criticamente tanto a noção de sujeito como de contexto sociais, percebidos como
inseparáveis. Em lugar de sacrificar um em nome do outro, para estes autores
estava em jogo perceber as sutis tensões e estratégias de negociação que prendem os
homens entre si e ao meio onde vivem. (Ginzburg, 1991; Levi, 1992; Revel, 1998).
Desta maneira, e conforme Lima (2006 p.259), a relação entre indivíduo e
contexto era preocupação central dos micro-historiadores. Rejeitando modos de
8
Canela e Gramado (cidades interligadas por uma estrada que acompanha a extensão do belo “vale
do quilombo”) figuram na documentação de São Francisco de Paula. Posteriormente aquelas
localidades foram agregadas a Taquara, e mais tarde emanciparam-se.
9
O próprio fato de “serrano” ser o gentílico de São Francisco de Paula ainda hoje é significativo. A
palavra, em si, aparenta referir-se a uma dimensão geográfica superior. Porém, diz respeito apenas à
localidade mais representativa e antiga, São Francisco de Paula de Cima da Serra.
27
fazer história nos quais “tendo o contexto como dado, o modelo construído, não
havia como não encontrar, depois – nos fatos – aquilo que já se sabia de antemão
encontrar”, a noção de escala foi, assim, uma forma de lidar com este problema:
A saída desse impasse estaria em abordar a relação entre as
situações analisadas e seus contextos de outra forma: a dicotomia
entre o “micro” e o “macro”, pensada usualmente como uma
hierarquia de explicação e relevância (o primeiro como reflexo do
segundo, ou como uma relação entre simples/complexo), poderia
ser compreendida por meio da sua conexão dinâmica e analisada
como um problema de escala (Lima, 2006 p. 259. Grifo
original).
O método de análise proposto, então, está na experimentação com a
variação das escalas de análise, aproximando e distanciando lentes e focos. De
acordo com Jacques Revel, escalas particulares de observação criam efeitos
específicos de conhecimento. Tanto ele quanto Giovanni Levi destacam que a
escala, em si, não constitui um objeto de estudo histórico, mas um procedimento
analítico (Levi, 1992; Revel, 1998). Sendo assim, nos termos colocados por Geertz
(1989a) e retomados por Levi (1992), “o locus do estudo não é o objeto do estudo.
Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles
estudam nas aldeias”. (Geertz, 1989a p. 32). Embora a opção por São Francisco de
Paula, pelos motivos expostos, nada tenha de aleatória, meu interesse não é por
este município em si, mas naquilo em que ele pode me ajudar a elucidar alguns dos
problemas expostos nesta introdução. Os contextos caseiros podem conferir uma
forma doméstica a problemas humanos mais gerais, tais como “Poder, Mudança,
Fé, Opressão, Trabalho, Paixão, Autoridade, Beleza, Violência, Amor, Prestígio”
(Geertz, 1989a p. 31). E Liberdade, eu acrescentaria.
Giovanni Levi destacou, ainda, que a micro-história procura recuperar a
dimensão narrativa dos estudos históricos. Com isso propõe, sobretudo, uma
reflexão sobre as técnicas de exposição e a incorporação, no texto do historiador,
das práticas de pesquisa por ele adotadas, explicitando-as ao longo do relato. O seu
ponto de vista, portanto, vem à tona, rompendo com a apresentação de uma
realidade tida como objetiva (Levi, 1992 p. 150-152).
Natalie Zemon Davis, no prefácio do seu “Retorno de Martin Guerre”
destacou que para os historiadores, quando as fontes revelam-se inadequadas,
28
silenciosas, lacunares ou produzem perplexidade, coloca-se em jogo os “talvez”, os
“pode ser”, as incertezas, a invenção (Davis, 1987 p. 10-11), que são inerentes à
dimensão narrativa da escrita histórica. Essa “imaginação histórica”, todavia, não é
arbitrária ou ficcional, mas controlada por procedimentos e cuidados
metodológicos específicos. Para Carlo Ginzburg, longe de representar um demérito
para o estudioso, essa margem de incertezas implica em um aprofundamento das
investigações. O contexto deixa de ser um cenário estático para tornar-se, então,
um “campo de possibilidades historicamente determinadas” (Ginzburg, 1991 p.
183).
O texto que aqui será lido está repleto de “talvez”, de “é possível que”, do
verbo “poder”, do emprego do futuro do pretérito. Mais do que evasivas, ou
insegurança da parte do autor, através dos mesmos procurei compartilhar com o
leitor aquilo que foi incerto no processo de pesquisa, e também devolver ao texto a
margem de incerteza existente no real, rejeitando a teleologia de acreditar que tudo
que ocorreu só poderia ter acontecido de um jeito único.
Quando as fontes não levam – nunca levam de todo, felizmente – àquilo que
se investiga, ou quando apenas sugerem respostas sem, contudo, permitir
afirmações categóricas, é não apenas possível como desejável a utilização deste tipo
de recurso. Incertezas devidamente registradas podem apontar para possibilidades
interpretativas a serem testadas diante de novas evidências que porventura venham
a surgir. A condição para isso, claro, é que “as margens de incerteza” sejam
explicitadas por palavras que deixem suficientemente claro seu caráter mais
especulativo – aquelas mencionadas por Davis, por exemplo. É importante
delimitar e explicitar ao leitor quando este recurso está sendo utilizado pelo
historiador, a fim de deixar esclarecido seu caráter de possibilidade.
A narrativa histórica, no meu entender, nada tem de ficcional. Diz um
ditado corrente entre escritores, que “a realidade não precisa ser verossímil, mas a
literatura deve”. O texto histórico não apenas não pode abrir mão deste atributo do
qual a realidade está dispensada, como, de forma quixotesca, deve aspirar também
à veracidade prescindível ao discurso ficcional. Talvez seja intangível, mas sempre
está no seu horizonte e define sua especificidade.
Outro aspecto a se discutir está no problema da representatividade.
Ginzburg (1991a) sublinha a diferença entre representatividade estatística e
29
representatividade histórica. Com isso, assinala que a seleção de casos específicos,
isenta de critérios de amostragem, pode trazer à tona documentos que, em sua
excepcionalidade, podem revelar aspectos importantes do funcionamento do social
ocultos por trás de agregados macroscópicos. A dificuldade de atingir critérios
“galilaicos” de cientificidade – uma maior exatidão e expressão numérica de seus
resultados, dentre outros aspectos – levou as ciências humanas a um dilema entre
“assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou
assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância”.
Para o autor, não obstante, esse tipo de rigor é não apenas inatingível como
também indesejável no caso de formas de saber tão ligadas às práticas cotidianas,
nas quais a unicidade e o caráter insubstituível dos dados cumprem papel
determinante (Ginzburg, 1989 p. 178).
Resta ainda a questão da generalização. Apesar dos benefícios trazidos pela
atenção a casos particulares, é forçoso admitir que conclusões formuladas a partir
deles não podem ser estendidas ao conjunto do social sem um necessário controle,
se não estatístico, ao menos numérico-quantitativo que permita perceber, se não
“leis”, “ciclos”, “modelos” rígidos, mas, ao menos, tendências sociais, a fim de não
conceber o “particular” e o “contexto” separados ou hierarquizados, em um
sentido ou outro.
Na maior parte dos casos, minha amostra era realmente reduzida (quer pela
quantidade de documentos, quer pelas opacidades das informações neles presentes,
e que serão debatidas ao longo deste estudo), o que tornava, além de inviável,
ilusória qualquer tentativa de quantificação com pretensões de rigidez. Se a análise
qualitativa é deficitária no que toca ao mapeamento de tendências coletivas (e não é
esse seu objetivo), ela é preciosa e precisa em detectar possibilidades socialmente
dadas ou inventadas pelos sujeitos sociais quando defrontados com problemas de
seu tempo. Deixo claro, portanto, que esse objetivo é para mim prioritário. Isso não
significa esquecer de tendências e trajetórias coletivas, tanto que procurei mapeá-las
por meio de quantificação – consciente da imprecisão dos dados de que disponho
10
– nos casos em que isso foi possível.
10
Tanto entre os processos criminais quanto entre os registros civis, as séries não são homogêneas
em sua distribuição cronológica: há concentração de dados em alguns anos, e outros são muito
lacunares, em especial os dos anos de guerra civil. Como será repetidamente discutido neste
trabalho, os registros de “cor” – os que mais me interessam – encontram-se invisibilizados e
silenciados. Portanto, uma difícil questão a ser pensada é como dar tratamento a essa sub-
30
Os processos criminais, situados no Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul, são o principal corpo documental analisado. Os de São Francisco
de Paula encontram-se distribuídos no cartório civil e criminal deste município,
propriamente dito, e também de Taquara do Mundo Novo. Durante o período
abarcado pelos maços 19-27, há neste último cartório dupla numeração, e a
maneira de identificar a seqüência correta é a partir de suas datas aproximadas. Os
processos criminais lidos e fichados totalizam 94, dos quais 32 nos maços 1-4 de
São Francisco de Paula e 62 nos de Taquara. Esses processos, um pouco mais de ¼
dos 356 autos guardados naqueles 13 maços foram selecionados levando em conta
os seguintes critérios:
a) Foram descartados os processos criminais que não
correspondessem às datas limite de 1880-1900 ou ao território de
São Francisco de Paula (como os processos de Taquara do Mundo
Novo ou Santa Cristina do Pinhal, por exemplo). Eventualmente,
tanto limites cronológicos quanto espaciais foram flexibilizados,
quando o processo-crime se afigurava particularmente interessante.
b) Foram escolhidos aqueles que tratassem de escravos, ex-escravos,
pessoas com qualificações de “cor” ou sujeitos nomeados através
das formas analisadas no capítulo 4.
c) Ao longo da pesquisa, alguns temas acessórios foram se revelando
vitais e umbilicalmente ligados à temática central dessa
dissertação, em especial a “Revolução Federalista” e o roubo de
gado, de modo que todos processos sobre estes assuntos receberam
atenção.
A imensa maioria dos 264 processos que não foram pesquisados foi rejeitada
em virtude do critério (a). Realmente, pesquisei quase todos os autos de São
Francisco de Paula entre 1880 e 1900, já que eram poucos os processos não
contemplados de alguma forma pelos critérios (b) ou (c). Nem todos 94 autos
representação ao quantificar informações. Por fim, a organização documental é insatisfatória, haja
visto, ver adiante, a dupla numeração nos maços de Taquara. Provavelmente decorrente das
sucessivas reestruturações administrativas (capítulo 1), a numeração documental não acompanha
uma seqüência cronológica, sendo quase aleatória sua distribuição entre os maços. Mesmo em
termos espaciais há ambigüidade: não são os autos de um período que estão no Cartório de São
Francisco, e de outro no de Taquara. Não. Há processos concomitantes em ambos cartórios. Se isso
não é impeditivo de uma análise serial, certamente fazê-la exigiria um esforço que me desviaria de
objetivos prioritários.
31
estudados foram discutidos, analisados no corpo do texto – “usados” – mas, tal
como fez Chalhoub (1990), não há dúvidas de que sua leitura familiarizou-me com
a sociedade serrana, seus problemas, o que lhe era característico e típico, etc. Desta
maneira, os casos específicos apresentados ao longo do texto não são aleatórios,
mas partem de um contato preliminar mais amplo com São Francisco de Paula.
A maior riqueza desse tipo documental está em pequenos detalhes e
entrelinhas sutis. A descrição dos crimes pelas autoridades e os depoimentos das
testemunhas e réus permitem acompanhar diferentes versões e estratégias de
acusação ou defesa. Aspectos não registrados em outras fontes, entendidos como
óbvios e naturalizados pelos contemporâneos, vêm à tona na medida em que sua
menção pode ser decisiva para elucidar um caso, apurar responsabilidades, absolver
ou condenar. Discretas informações significativamente reveladoras são
merecedoras uma atenção mais minuciosa, quase etnográfica. Aqueles momentos
em que os relatos divergem são entendidos como esclarecedores, por escapar à
eventual padronização promovida por escrivães e dizer respeito às distintas leituras
feitas pelas partes envolvidas no crime.
Por outro lado, a auto-percepção dos envolvidos nos processos criminais é
de difícil e problemático acesso ao historiador: são muitos os filtros pelos quais
passam as identidades sociais até o momento de seu registro escrito. Geralmente,
quando se fala em tais “filtros”, a primeira coisa que se pensa é na mediação feita
pelo registro do escrivão entre a fala dos interrogados e os autos. Porém, o contexto
de produção das fontes, a realidade de intimidação característica dos inquéritos
policiais e dos processos judiciais também fazem com que seja necessário evitar
confiar neste corpo documental tal como se apresenta (mas isso deve ser feito com
quaisquer fontes documentais). No entanto, diversos historiadores já demonstraram
quão produtiva pode ser uma leitura “a contrapelo” de fontes senhoriais
(Chalhoub, 1990, Fraga Filho, 2006).
Cumpre observar que não é tão comum encontrar um registro, ainda que
mediado, das vozes dos personagens envolvidos, para além do discurso policial,
judicial ou dos peritos, e mesmo nos casos em que elas se fazem presentes, há
dificuldades para perceber seu grau de confiabilidade. Não obstante – é sabido de
todos não existir fonte perfeita – os processos criminais, desde que utilizados de
forma criteriosa, tem muito a oferecer e não seria correto, por hiper-criticismo,
descartar sua utilização como fonte histórica. Esse tema será retomado no capítulo
32
4. Apesar da ênfase na análise de casos individuais, os processos criminais foram
quantificados, principalmente para percepção de réus e testemunhas negras, e tipos
e quantidade de delitos, presença de emboscadas e casos de abigeato.
Os registros civis de nascimento, casamento e óbito foram o outro “grande”
corpo documental analisado. Encontram-se no cartório do Registro Civil de
Pessoas Naturais de São Francisco de Paula. Eles foram utilizados de forma
quantitativa (para perceber registros de “cor” e mulheres de profissão “serviço
doméstico” ou “criadas”) ou qualitativa (acompanhando trajetórias de algumas
famílias exemplares). A crítica desta fonte está feita de forma mais apurada no
capítulo 4. Outros corpos documentais foram compulsados de forma esparsa,
trazendo informações importantes. É o caso de diários e relatos de guerra da
“Revolução Federalista”, censos populacionais, registros paroquiais de batismos,
relatórios governamentais (muito importantes para a entender a percepção da elite
branca sobre libertação e liberdade), alguns inventários (trabalhados de forma
totalmente qualitativa), cartas de alforria, mapas geográficos, dentre outros.
Por fim, tentarei ser breve ao expor alguns conceitos que julgo ser necessário
esclarecer em qual sentido utilizo (“raça” e “ex-escravo”), ou justificar porque evito
empregá-lo (“afro-descendente”). Especialmente o primeiro e o último renderiam
outras dissertações: sendo assim, pela necessidade de concisão, espero que o leitor
seja compreensivo diante de eventual superficialidade.
Raça é um conceito que, por meio da biologização e da naturalização da
diferença, leva à intolerância e à discriminação. É um termo que, apesar de seu
emprego cotidiano, carrega consigo um pesado histórico politicamente abominável,
em suas pretensões à “pureza” e no apelo à hierarquia nele latentes. Não obstante,
a sociedade por mim estudada (especialmente no pós-abolição) pensava as relações
sociais nestes termos. Era racialista. Seria um equívoco evitar esta noção e usar o
termo “etnia” esvaziado de seu conteúdo, tornando-o simplesmente um substitutivo
politicamente correto para uma noção cruel e desagradável. É bem verdade que a
“raça”, segundo alguns autores, nada mais é do que uma “das muitas maneiras de
expressar e vivenciar a etnicidade – uma maneira que coloca ênfase no fenótipo”
(Sansone, 2003 p. 16)
11
. Que seja. O fato é que havia na sociedade brasileira de fins
11
Esse termo não é de forma alguma expurgado do meu texto. É praticamente impossível fugir da
idéia de etnicidade, ao tratar deste tema. Procuro discernir, porém, os contornos raciais por ele
assumidos no caso brasileiro.
33
do século XIX um intenso processo de racialização
12
(Schwarcz, 1993) que não
pode ser simplesmente abstraído. É por isso que falo em raça, esta inusitada e
peculiar variação do étnico. Mas emprego este termo não como um conceito analítico,
mas como uma construção nativa. Falar em “raça” não significa corroborar com esta
noção (Guimarães, 2003) – assim como calar a seu respeito nunca significou dela
discordar, e o problema da “invisibilidade” o prova.
Emprego a idéia de ex-escravo com um duplo sentido, que será retomado
mais adiante, mas que já convém explicitar aqui. Um deles refere-se genericamente
a todo e qualquer indivíduo que tenha sido submetido, em algum momento de sua
vida, ao cativeiro, posteriormente adquirindo a liberdade. No entanto, ao longo do
processo de pesquisa, percebi que, na documentação, este termo aparece com um
sentido mais restrito, específico, particularizando alguns em função da relação
mantida com o antigo senhor. Para diferenciá-los e (tentar) evitar a confusão,
emprego a primeira acepção sem aspas e a segunda com. Seria possível adotar
outros termos, como “forro”, “liberto” ou, ainda, “13 de maio”, para os libertados
pela Lei Áurea. No entanto, talvez os enganos fossem ainda maiores: esses termos,
tão correntes em outros lugares do país, não são usuais na região e no período de
que me ocupo (do terceiro não se encontrou um só registro), por razão que ainda
merece ser investigada
13
.
Finalmente, o termo “afro-descendente” é evitado por ser quase um
consenso na história e nas ciências sociais que, no Brasil, os critérios de negritude
não são pautados pela descendência, mas pelo fenótipo (ver, como exemplo entre
muitos, Sansone, 2003). É possível que estes parâmetros estejam em redefinição,
mas no período que estudo, não estavam. Como se verá, mesmo silenciados, alguns
estigmas definidos pela aparência eram acionados em momentos de tensão. A
leitura dos processos não sugere que, para isso, a ascendência fosse fator de maior
relevância.
***
12
Não unívoco; com resistências. Ver capítulo 1.
13
Há que levar em consideração, ainda, o caráter estigmatizante assumido pela designação “forro” e
“liberto” no pós-abolição. Ver Leite (texto inédito) e Weimer (no prelo).
34
A dissertação está dividida em quatro capítulos. No primeiro deles, em um
esforço por situar o ambiente em que se deu a construção da vida em liberdade, são
recapitulados os anos finais da escravidão na serra, problematizando aspectos como
mobilidade espacial e família, trabalho pecuário e liberdade, laços comunitários e
hierarquia dos cativos entre si. Realizo ainda uma aproximação do espaço
geográfico serrano, procurando perceber em que medida sua configuração
proporcionou melhores condições para experiências de autonomia. A demografia
serrana é contemplada, em uma busca de uma interpretação das acentuadas
modificações em sua composição racial. Finalmente, analiso o discurso das elites
governamentais em relação à aquisição da liberdade, iminente ou recém-
consumada, e a crença no despreparo e incapacidade para seu gozo como
justificativa para perspectivas tutelares.
No capítulo 2, observo alguns aspectos da vida em liberdade no imediato
pós-abolição. Enfoco as condições de moradia, as relações com os antigos senhores
e com outros de condição social semelhante, a tutela sobre os menores, ocupações a
que se dedicaram homens e mulheres, a hesitante construção de um regime de
assalariamento, o envolvimento com atividades ilícitas, a perseguição à vadiagem,
o roubo de gado. A discussão de diversas questões deste capítulo, e uma versão
preliminar de sua parte final já foram apresentadas em Weimer (2005, 2006 e
submetido a apreciação). Ao traçar este panorama, não se pretendeu somente
retratar o cotidiano dos ex-escravos, mas principalmente observar os caminhos de
suas vidas em liberdade.
O capítulo seguinte trata da participação de ex-escravos no intenso
confronto bélico conhecido como “Revolução Federalista”. Para isso, fez-se
necessário estar atento sobre as memórias e discursos construídos sobre o assunto,
em especial a respeito da controvertida figura de Adão Latorre, quer por ter sido
um protagonista negro da guerra civil, quer porque os estigmas criados em torno
dele contribuíram para acentuar a invisibilização. Ao recuperar meandros do
engajamento militar de ex-escravos, vem à tona um jogo mais complexo do que se
poderia supor a partir das imagens correntes na historiografia, que tratam o conflito
como assunto interno e exclusivo das elites. O caráter decisivo da presença dos ex-
escravos e a escolha, com critérios variáveis, entre múltiplas possibilidades de
alinhamento deu-lhes um poder de barganha até então inédito.
35
O quarto e último capítulo tem sua atenção voltada para os nomes
assumidos pelos ex-escravos em sua vida em liberdade. Ele desenvolve reflexões
iniciadas anteriormente (Weimer, 2005a e 2006a). A nomeação aparece como
espaço de disputa, tão importante quanto qualquer enfrentamento físico, para a
definição das características desejáveis na vida em liberdade, ou mesmo para o
estabelecimento de um distanciamento ou aproximação simbólica do cativeiro. A
tensão entre autonomia e dependência, assim como os dilemas colocados pela
invisibilidade e pela estigmatização, uma vez mais se fizeram presentes. São
esmiuçados nomes e sobrenomes, apelidos e categorias classificatórias de diferentes
naturezas, percebendo-se que, longe de haver soluções únicas para a questão da
nomeação e das identidades sociais nela expressas, cada ex-escravo, de forma
performática, encontrou respostas diversas aos problemas da vida em liberdade.
36
1 –Escravidão e liberdade em trânsito
Que vem a ser um homem revoltado? Um homem que diz –
não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que
diz sim, a partir do seu primeiro movimento. Um escravo que
durante toda a sua vida recebeu ordens considera subitamente
inaceitável uma nova ordem. Qual é o conteúdo desse “não”?
(Camus: s/d p. 25)
Neste capítulo apresento algumas dinâmicas sociais de São Francisco de
Paula de Cima da Serra nos anos que precederam a Abolição do sistema escravista.
Enfatizo sobretudo os trânsitos: quer sociais, que aproximavam e distanciavam
livres e escravos, quer geográficos. Para melhor penetrar na lógica de suas relações
sociais, destaco brevemente a importância da produção pecuária na região, e nesta,
a participação de cativos campeiros. Abordo as facilidades para atuação de ladrões
de gado e escravos fugidos, e também os intercâmbios sócio-econômicos com o
litoral norte do Rio Grande do Sul. Por fim, considero importante discutir algumas
expectativas da elite sulina em relação ao final do regime escravocrata.
37
Escravidão
Dizia o Promotor Público – e nisso acreditou o júri – que o escravo
Damásio matara o capataz Calisto
14
no dia 14 de dezembro de 1880, por este ter
pretendido lhe dar algumas chicotadas. Dizia Damásio, pelo contrário, que se
encontrava sozinho no campo, onde fôra ver um cavalo. Retornou à casa onde
habitavam ao escutar um tiro. Encontrando a porteira fechada, chamou Calisto
para que abrisse, mas ele não pôde fazê-lo: estava morto. Afirmava que ladrões de
gado mataram o capataz para melhor agir
15
. Pesou contra o réu o fato de ter, antes,
confessado o crime publicamente, diante de muitas testemunhas.
O caso apresenta um instantâneo da escravidão em São Francisco em seus
últimos anos, permitindo uma aproximação da dinâmica do sistema escravista na
região serrana. Suas características oferecem, assim, um cenário para se pensar o
pós-abolição, mas não um cenário estático, e sim povoado por e composto de
ações, relações e angústias humanas.
A vítima era padrinho do acusado e havia sido colega de cativeiro de sua
mãe
16
. Viviam ambos, o forro e seu afilhado, nos campos de cima da serra
17
a
cuidar do gado de João Antônio Marques, proprietário de Damásio. Os vínculos
sociais e afetivos entre ambos foram considerados pela acusação forte agravante
para o crime, enquanto a defesa – custeada pelo senhor, que não desejava perder
um escravo, além do falecido capataz de confiança – argumentava que eram uma
14
Aparece na documentação tanto como Calisto, como Calistro. Se uniformizou segundo o primeiro
nome, correspondente a sua escrita atual.
15
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, Processo 530 (1880).
A datação dos processos, aqui e doravante, foi registrada conforme sua data de abertura, mais
próxima ao momento em que ocorreram os eventos investigados, e não a conclusão dos autos.
16
Sabe-se que Maria, africana, era mãe de Damásio através de um interrogatório no auto: APERS, I
Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880) f.19, e da
matrícula de Damásio, anexada aos autos (f. 88) Tanto ela quanto Calisto figuram nos inventários
de João Antônio Alves, de 1847, e de Joaquina Maria Marques, de 1872, respectivamente com 22 e
18 anos e 50 e 38 – a discrepância se dá por muitas vezes a idade dos escravos, nestes documentos,
ser registrada de forma pouco rigorosa. APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Conceição do
Arroio, maço 1 Processo 2 (1847); APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Conceição do Arroio,
maço 1 processo 66 (1872).
17
A expressão “cima da serra” costuma ser empregada de duas formas diferentes: 1) como um
espaço político, administrativo e judicial (aquela expressão era utilizada pelos contemporâneos
como um sinônimo ou um complemento ao nome do local) ou ainda como um território geográfico
e sócio-cultural, definido por sua paisagem e em oposição a “em baixo da serra” no qual está inscrita
uma série de significados apresentados ao longo do texto. Na primeira acepção, seu nome foi
grafado com maiúsculas, na segunda, em minúsculas.
38
evidência de não ter sido Damásio o autor do crime: não era concebível que se
quebrasse um parentesco espiritual por meio de homicídio
18
.
Para Lara (1988 p. 166-167), o feitor era “um elemento de mediação da
relação entre senhores e escravos”, muito importante por permitir a organização do
trabalho e o exercício do poder, ao fim e ao cabo uma delegação senhorial,
mantendo, no entanto, o senhor distante da aplicação direta dos excessos do castigo
físico e preservando sua aura paternal e benevolente. A autora, contudo, ressalta
que não bastava a delegação da autoridade senhorial ao feitor, também era
necessário que esta fosse reconhecida pelos cativos (Lara, 1988 p. 170). Uma coisa
é certa. Calisto exercia dupla autoridade sobre o escravo: como feitor e como
padrinho, e ambas se sobrepunham e somavam. Era um capataz com o qual –
esperava-se – o cativo não ousaria enfrentar-se. Em sua confissão, Damásio disse
que cometeu o crime pelo outro ter tentado castigá-lo. Em algum momento,
portanto, essa autoridade se quebrou e as chicotadas revelaram-se inadmissíveis.
Damásio tinha sua noção do que era considerado tolerável ou não; no caso,
apanhar com um cabo de arreador não foi
19
. Lara (1988 p. 57-96) problematiza este
tema por meio da noção de castigo justo. Longe de pretender “justificar” quaisquer
castigos, a autora argumenta que, durante o período colonial, o “direito” senhorial
ao castigo só poderia vigir se fosse legitimado socialmente, e essa legitimidade
exigia que o mesmo fosse tido como pedagógico, justo, moderado, corretivo. Mas
qual era o tênue limite entre o castigo inconteste e o inaceitável?
No caso analisado, antes de mais nada é preciso considerar que, depois da
Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, a legitimidade da instituição
escravista achava-se posta em cheque devido à crescente interferência estatal nas
18
Embora reconhecendo a importância de tal tema, não discuto compadrio nessa dissertação; seria
necessário desviar-me demasiado da proposta de pesquisa deste trabalho para explorá-lo a contento.
Para uma definição provisória e instrumental de como o tema é abordado neste trabalho, entende-se
compadrio como uma relação de reciprocidade que estabelece alianças, não necessariamente
simétricas, entre compadres, por meio da criança batizada; assim como uma relação de
apadrinhamento na qual há expectativa, da parte do padrinho, por respeito e obediência do afilhado
que, por sua vez, espera por proteção e apoio do padrinho.
É o que refere Machado (2004 p. 67) quando assinala, no caso do apadrinhamento de filhos de
peões por fazendeiros: se, para os trabalhadores sertanejos, tratava-se de um meio de proteção às
crianças, pois o padrinho era um segundo pai, espiritual, com obrigações na educação e proteção do
afilhado, sendo tanto melhor quanto mais poderoso. Já o padrinho, por seu turno, ao assumir tais
compromissos recebia em contrapartida a lealdade de afilhado e também compadre.
Remeto a bibliografia específica a respeito do tema, entre escravos: Schwartz, 1988, capítulo 14 e
2001, capítulo 6; e Rocha, 2004.
19
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880)
depoimento de José Soares de Moura f. 30.
39
relações entre cativos e senhores, até então estritamente particulares (Mattos, 1998).
A autoridade moral destes últimos estava em crise, dado que a ideologia de uma
vontade senhorial inviolável não tinha mais sustentação (Chalhoub, 2003). Já não
bastavam aos castigos, para serem legitimados, as características especificadas por
Lara. Pelo contrário, uma opinião pública crescentemente anti-escravista os
colocou em questão, o que culminaria com a proibição da punição com açoites dos
crimes de escravos em 1886. É provável que Damásio tivesse sua percepção sobre
estas mudanças. Até aquele momento, a autoridade tradicional advinda da relação
de apadrinhamento pode ter sido suficiente para mantê-lo sob controle, e a revolta
contra a punição física podia expressar simplesmente a não-aceitação de uma
disciplina de trabalho pouco familiar.
Nos processos criminais, era comum que as testemunhas fossem indagadas
sobre os “precedentes” das partes envolvidas; pois bem, durante a investigação
sobre o espancamento de Patrício da Silva Dutra (por Manoel Telles de Carvalho e
mais duas pessoas, que o atacaram com bolas, facões, pistolas e relhos em
novembro de 1888), a testemunha Antônio Ignácio Dutra afirmou serem ruins seus
precedentes “porquanto já espancou em uma ocasião ao pardo Roldão de menor
idade fazendo-lhe alguns ferimentos e espancou a um outro seu peão cujo nome
não se recorda”
20
. É verdade que estas declarações são posteriores a 1888,
referindo-se a homens livres e a um menor; nada impede, contudo, que as agressões
referidas antecedessem maio. De qualquer forma, o depoimento indica uma menor
aceitação de castigos violentos – os que os praticaram foram considerados de má
índole.
As agressões aparecem nos processos criminais como particularmente
aviltantes caso o relho fosse utilizado como arma. Em outubro de 1881 José Leonel
de Ramos assassinou João Pereira Froz Filho; o motivo para o ato seria uma
vingança, ou defesa, conforme a testemunha, por ele lhe ter dado uma surra de
relho
21
. Algo semelhante aconteceu em 1886, em Santa Cristina do Pinhal, quando
João Antônio Flores feriu João Antônio de Salles com um facão. O mote da briga
20
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, processo 622 (1888) f.
9v.
21
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 20 (1889).
40
foi uma questão relativa a roças, mas o que desencadeou as facadas foi o fato da
vítima ter ameaçado seu agressor com um relho
22
.
No mesmo ano, José Luiz de Moraes investiu com um facão contra
Honorato Francisco Rodrigues, que faleceu. O Promotor Público, na tentativa de
esclarecer o crime e, indiretamente, facilitando a absolvição do réu, ao dar-lhe um
atenuante, indagava às testemunhas se a vitima não havia anteriormente produzido
ferimentos no rosto de Moraes utilizando um cabo de relho
23
.
O que tornava um ferimento causado por relho uma justificativa suficiente
para homicídio ou agressão era, além da lástima física, a ligação simbólica desta
arma com o suplício imposto aos escravos. Ferir alguém com um relho não apenas
machucava, mas também rebaixava socialmente, humilhava ao aproximá-lo do
cativeiro. Assim, em 1886, Lucidário Fabrício foi processado por invadir casa
alheia, em janeiro de 1880, e por punir com um relho um escravo dali. Se
claramente tratava-se de uma intervenção indevida nos direitos de propriedade e
nas prerrogativas senhoriais de outrem, o caso também revela o relho como
símbolo deste poder usurpado. Da mesma forma, em processo de fevereiro de 1881,
o preto Afonso Augusto do Carmo foi vítima do golpe de um cabo de relho
24
.
Damásio, por sua vez, não foi atingido por meio de um relho, e sim de um
arreador
25
. A utilização deste instrumento agravava ainda mais a situação,
comparativamente ao relho, por duas razões. Tratava-se de um instrumento mais
severo em termos de punição física, assemelhando-se a um “bacalhau”. Além disso,
promovia a animalização de sua vítima, na medida em que a equiparava às bestas
22
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 22, processo 594 (1886).
23
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 22, processo 596 (1886).
Poderiam ser citados outros exemplos. Em 1889, Rafael Corrêa de Oliveira e Manoel Severiano
Ribeiro Jobim atacaram-se mutuamente com relhos e arreadores [APERS, I Cartório de Cívil e
Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, processo 632, (1889)]; este instrumento também foi
utilizado quando José Cardoso Christino feriu Leopoldina Maria Rodrigues, em 1890, no Caracol –
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 644, (1890).
24
Respectivamente, APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20,
processo 536 (1886) e APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20,
processo 540 (1881).
25
Arreador é assim definido no Vocabulario Rioplatense de Daniel Granada: “Especie de látigo que
usan los troperos carretilleros, etc. Su cabo es um palo consistente, de media vara a tres cuartas de
largo, en cuya punta tiene un agujero que corresponde con dos laterales, por los cuales pasa una
guasca que queda en forma de ojal. A éste va asida una argolla, y a la argolla una trenza de tiritas de
cuero (tientos), de una vara y media de largo. La trenza termina en una tira de una cuarta o más de
largo, a la qual dan el nombre de sotera”. (Granada: 1957 [1889] p. 75-76).
41
de carga que traziam as carretas, fustigadas pelos tropeiros
26
. Além de reafirmar e
atualizar estigmas, a utilização deste instrumento constituía meio de humilhação, a
qual, especialmente para o caso de um escravo que, ao que tudo indica, estava
habituado ao exercício do poder senhorial principalmente pela imposição de um
consenso, antes do que pela punição física, deve ter definido a fronteira entre o
inconteste e o inaceitável.
Calisto e Damásio eram originários de Morro Alto, fazenda de propriedade
dos Marques em Conceição do Arroio
27
, e estavam em cima da serra, onde seus
(ex)-senhores também possuíam terras. Era um trânsito usual. Depois do tiro e da
descoberta do cadáver, outros cativos pertencentes à mesma família ajudaram a
carregar o corpo: Felipe e Julião, de Manuel Marques; Justino, Roque e Marcelino,
de José Marques da Rosa; e também Damásio
28
. Alguns deles pertenciam a famílias
de Morro Alto apuradas em pesquisa anterior através de fontes escritas e orais.
Segundo relato de um morador de Morro Alto na atualidade, seu avô, que havia
sido escravo dos Marques, tropeava gado entre Conceição do Arroio e São
Francisco
29
. (Barcellos et al, 2004 p. 64-65).
A presença dos mesmos escravos em propriedades de seus senhores na serra
e no litoral estimula uma reflexão a respeito das condições que possibilitavam uma
maior circulação no caso de atividades que a exigiam em maior escala, sobretudo a
pecuária. A presença de escravos campeiros e as relações sociais e de poder que
viabilizavam o acesso a animais sem que necessariamente acontecessem fugas tem
sido enfocado por alguns autores (Osório, 1999 e 2005, Farinatti, 2005 e 2006,
Guazzelli, 2005, Zarth, 2002)
30
. Em São Francisco de Paula, como se verá, o que
não faltava eram possibilidades e oportunidades para isso. Diante de um local com
tantas possibilidades de fuga, “até onde um senhor pode deixar ‘livre’ seu escravo é
26
Para uma análise da desqualificação do estatuto de humanidade dos escravos presente na
sociedade escravocrata, e suas feridas ainda presentes entre seus descendentes, ver Chagas, 2004.
27
Atual Osório.
28
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880),
depoimentos de José Soares de Moura e Manuel Marques da Silveira , f. 8-10.
29
Com certeza, só se sabe que Roque era, ou viria a ser o marido de uma escrava de Rosa Osório
Marques de nome Eufrásia, dando origem a uma das parentelas da região. Porém, Justino,
Marcelino e Damásio são nomes recorrentes na comunidade de Morro Alto, onde estes passam de
geração a geração e tornam-se constituintes de sobrenomes e parentelas (Barcellos et al, 2004).
30
Nos processos criminais estudados, a figura do escravo campeiro é recorrente. Por exemplo, em
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 27 (1890) f. 9, o
escravo Domingos cuidava do gado da família senhorial; em APERS, I Cartório de Cívil e Crime de
São Francisco de Paula, maço 20 processo 319 (1882), o escravo Paulo lidava com vacas antes de
matar seu senhor. A cena foi testemunhada pelo escravo Tibério, que possivelmente também fosse
campeiro, uma vez que se achava no mesmo ambiente de trabalho.
42
um limite construído sobre mecanismos de controle muito sofisticados e falíveis”
(Fernandes, Bustolin e Teixeira, 2006 p. 144).
Não pretendo, e não é possível, dar conta destas complicadas questões a
partir de um exemplo único, porém esse processo-crime demonstra detalhadamente
o jogo de poder existente entre os Marques, seus cativos e ex-escravos. Proponho-
me a analisar um destes sofisticados mecanismos de controle, dentre outros
existentes. Vislumbrar a solução para tal problema adotada por uma família de
proprietários de escravos na serra e no litoral poderá ser útil para uma discussão
historiográfica que vem se desenvolvendo. O arranjo social encontrado pela família
Marques certamente não foi o único em São Francisco, mas também não foi, de
forma alguma, insignificante.
Damásio tinha acesso a cavalos e podia locomover-se de forma ampla e nem
sempre vigiada nos campos de cima da serra
31
. Seus depoimentos em interrogatório
ou, aquilo que as testemunhas afirmavam ter ouvido dele – oscilam entre duas
versões
32
. Em uma, trabalhava no campo acompanhado por Manuel Marques da
Silveira momentos antes de encontrar o cadáver; em outra, este último não foi
mencionado. Seja lá qual for a verdade, é fato que Damásio apresentaria uma
versão que parecesse passível de crédito. Não admitiria a possibilidade de estar
sozinho no campo se isso soasse absurdo aos seus contemporâneos.
Porém, no retorno à casa onde morava com Calisto, não há dúvidas de que
se encontrava sozinho. Marques da Silveira depôs no inquérito e não mencionou
ter visto o acusado na antevéspera, apenas no dia seguinte quando o corpo foi
levado à delegacia
33
. Outra testemunha, indagada sobre a versão de Damásio,
descreveu seu trabalho sem manifestar estranheza: “vindo do campo com animais
31
Para exemplos de experiências de trabalho escravo não-vigiado no meio urbano, cf, dentre
diversos estudos, ver Chalhoub, 1990, Xavier, 1996 e Moreira, 2003. A mobilidade espacial dos
cativos no contexto rural, por sua vez, foi menos investigada. São significativos, sobre o tema,
trabalhos como o de Lara, para quem o retorno dos escravos às fazendas e casas senhoriais se devia
ao fato da dominação senhorial extrapolar sua presença física: além da mediação desempenhada
pelos feitores e agregados, “Todo um universo de relações pessoais encarregava-se de identificar os
cativos e reafirmar sua condição, lembrando-lhes quem era seu senhor e controlando-lhes as
atividades”. (Lara, 1988 p. 235; 245-246). Faria (1998) argumenta pelo papel estabilizador das
famílias de escravas como um contraponto a essa mobilidade; Machado (1994) e Mattos (1998),
inscrevem o deslocamento espacial nos conteúdos concretos para a liberdade atribuídos pelos
cativos, distintos de significados abstratos de liberdade. No caso do Rio Grande do Sul, Oliveira
(2006) também abordou a temática do deslocamento no meio rural.
32
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880),
interrogatório a Damásio, f. 47v.
33
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880),
depoimento de Manuel Marques da Silveira, f. 10.
43
para recolher na mangueira, estando essa fechada o acusado então gritou por
Calisto que o abria a porteira [sic]
34
.
Capataz e escravo, padrinho e afilhado, pardo e preto viviam unidos sob o
mesmo teto na imensidão dos campos de cima da serra, mas cindidos por
hierarquias diversas. É claro que havia senhores, Marques, morando em São
Francisco de Paula, de forma temporária ou permanente, como o mencionado
Manuel Marques da Silveira. Contudo, vítima e réu residiam junto a mais
ninguém, nos campos, cuidando do gado. Damásio sustentava ter encontrado seu
padrinho morto ao retornar para a casa que compartilhavam. Testemunhas,
respondendo a indagação do réu, afirmaram que “moravam juntos há tempo, não
lhe constando de inimizade entre ambos”; “moravam em companhia um do outro
há muito tempo”
35
. Um outro sabia mesmo a duração do convívio – 8 anos – em
companhia mútua, sem inimizades.
Chega-se, aqui, ao ponto que ajuda a entender porque os Marques
aparentavam tanta tranqüilidade com a mobilidade espacial de seus cativos, com a
autonomia de Damásio no seu trabalho e com a solidão de ambos. Porque não
fugiam? A resposta para esta questão não estava em cima da serra, mas embaixo.
Questão, aliás, que só se coloca quando se parte de um pressuposto anacrônico e
limitador – de que a fuga era necessariamente a única alternativa de ação racional e
desejável para um escravo. Mas não era assim
36
.
1872, a data apontada como aquela a partir da qual conviveram em São
Francisco de Paula, coincide com a partilha dos bens de Joaquina Maria
Marques
37
. No seu patrimônio, se encontravam Damásio e, ainda escravo, Calisto.
Tinham, respectivamente, seus 15 e 38 anos. Momentos de divisão de bens têm
sido apontados como particularmente difíceis para as famílias de escravos: embora
não fosse fatal, a separação familiar sempre pairava como um risco iminente.
34
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880),
depoimento de Remualdo Casse, f. 33v.
35
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 530 (1880),
depoimento de Alsino Soares do Amaral, f. 32v e depoimento de Remualdo Casse, f. 33v,
respectivamente.
36
Lima (2005 p. 299) observa que “nas sociedades escravistas do século XIX, ‘liberdade’ e
‘escravidão’ são termos sobretudo jurídicos que se referem à propriedade e não são automaticamente
traduzíveis como ‘trabalho livre’ e ‘trabalho escravo’. Transferir os sentidos que eles carregam desde
um espectro do campo jurídico para outro não pode ser feito sem um exame cuidadoso da
pertinência desse movimento. O perigo da sobreposição das duas ordens de sentido – vale a pena
insistir – acaba por conduzir a interpretações viciadas que se traduzem na leitura das sociedades
escravistas (e da sua transformação e dissolução) em termos insistentemente evolucionistas”.
37
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Conceição do Arroio, maço 1, processo 66 (1872).
44
Trabalhos recentes, porém, tem relativizado estes riscos. Mesmo sem negar
que famílias de escravos fossem postas à prova durante as partilhas de bens, autores
têm colocado em perspectiva quer o interesse senhorial em manter um suposto
papel pacificador das famílias escravas (Florentino e Góes, 1997 p. 115-125), quer a
existência de uma “economia política nas decisões de venda, hipoteca ou partilha
de escravos, que buscavam garantir um mínimo de oposição por parte destes a tais
decisões” (Mattos, 1998 p. 111), quer a capacidade das famílias manterem uma
estabilidade por longo período (Slenes, 1999, p. 93-107), quer a sobrevivência das
famílias ao distanciamento espacial (Laureano, 2000 p. 97-108). Rocha (2004)
apontou que muitas divisões de famílias durante o espólio são meramente formais,
não necessariamente correspondendo a uma separação efetiva. A autora assinala
ser necessária uma abordagem qualitativa e diacrônica para dar conta desses
aspectos: famílias separadas em um inventário podem aparecer unidas novamente
anos após.
Lamentavelmente, os inventários consultados não registraram os laços
familiares entre os cativos, de forma que foi necessário buscá-los nos livros de
batismos
38
e em genealogias levantadas anteriormente (Barcellos et al 2004). No
inventário de 1872, da família identificada para Calisto, apenas este figurava dentre
os bens de Joaquina Maria Marques. A maior parte de seus parentes pertencia a
Maria, filha da inventariada, inclusive sua esposa, Rita, e as filhas Cesária e
Jerônima. Mas naquela divisão de propriedade, Calisto foi herdado por Maria
Joaquina Marques. Sendo assim, considerando apenas o nome do seu proprietário,
neste caso específico o formal de partilha parece ter servido para união, e não para
separação deste núcleo familiar! Na prática, porém, não foi bem assim.
A divisão dos bens não foi tão favorável a Damásio. Além dele, a falecida
era proprietária de sua mãe Maria, de nação, e de seu irmão Leandro. Cada um dos
três foi legado a um filho diferente da inventariada. Maria coube a Maria Joaquina,
Leandro a Manuel Antônio, e Damásio, a João Antônio Marques. Dessa forma, a
família parece estar fragmentada. Nesse momento, Damásio foi separado da mãe e
do irmão.
38
Centro de História da Família / Templo Mórmon – Canoas: livros 1 e 2 de batismos de Conceição
do Arroio. Arquivo da Cúria Diocesana de Osório: livro 3 de batismos de Conceição do Arroio. A
identificação dos escravos foi feita a partir de indícios como nome do senhor e idade.
45
Damásio 15 anos
em 1872; n.1857?
herdado por JAM
Maria de
nação herdada
por MJM
Leandro n. c.
1854 herdado
por MAM
[????] Cesário
pardo n. 1865 não
consta no inventári
o
Gráfico Genealógico 1 – Partilha da Família de Damásio
39
Inventário de Joaquina Maria Marques - 1872
MJM = Maria Joaquina Marques
JAM = João Antônio Marques
MAM = Manuel Antônio Marques
Todavia, a separação não se deveu, em absoluto, ao fato de terem passado a
pertencer a irmãos diferentes. A fazenda do Morro Alto era um empreendimento
familiar, e não individual (Barcellos et al, 2004)
40
. Anos mais tarde, Maria Joaquina
Marques também faleceu, e ao ditar seu testamento, legou boa parte dos cativos
para seu irmão João Antônio, “visto ter sido o dito meu irmão quem criou os
mesmos escravos e por ter me acompanhado com amor e carinho”
41
. João Antônio,
na prática, “criava” e administrava tanto os próprios escravos, como os de sua
irmã. Sendo assim, mais do que a formalidade do nome do dono de cada um, o
importante para as famílias de escravos era onde morariam, trabalhariam, se
poderiam conviver uns com os outros. Ou seja, uma experiência de cativeiro em
comum não decorria, nem dependia, necessariamente, de um mesmo proprietário.
Determinante para a separação de Damásio de sua mãe Maria não foi terem
sido herdados respectivamente por João e Maria Marques, mas deveu-se aos
Marques terem unidades produtivas em municípios diferentes, e de terem decidido
realocá-lo em um local distante naquele momento de redefinição da distribuição
39
As interrogações “?” foram empregadas para assinalar os casos nos quais há informações não
confirmadas totalmente. Assim, se tem que a data de nascimento de Damásio foi inferida do
inventário de 1872, quando tinha 15 anos, já que não foi possível encontrar seu batismo; já Cesário
era filho de Maria, seu batismo foi localizado, no entanto não está presente no mesmo inventário. É
possível que já fosse livre ou que não tenha sobrevivido.
40
Para um caso semelhante no vale do Paraíba paulista, ver Graham (2005).
41
APERS, I Cartório da Provedoria de Conceição do Arroio, maço 1, processo 22 (1876) testamento
de Maria Joaquina Marques f. 4.
46
dos escravos. Com a idade de 15 anos, ele já deveria ser considerado preparado
para o trabalho pastoril e sem a necessidade de ter sua mãe por perto. Calisto
também foi para cima da serra na mesma ocasião. No seu caso, a partilha
representou reunião da família sob uma mesma proprietária, mas, não obstante,
uma separação geográfica. De certo, pareceria mais favorável a permanência em
Morro Alto com proprietários diferentes, do que pertencer à mesma senhora e viver
longe!
Quatro anos depois, contudo, foi Maria Joaquina Marques quem faleceu.
Sem herdeiros diretos, alforriou diversos de seus escravos e legou bens a alguns
deles. Essa prática não era de todo incomum no Brasil escravista. Foi apontada,
dentre outros, por Machado (1994 p. 48-57), Almeida (2002 p. 63), Papali (2003 p.
86-93) e Graham (2005). No Brasil meridional, diversas comunidades
remanescentes de quilombos
42
formaram-se, dentre outros aspectos, a partir de
doações, a exemplo de Casca (Leite, 2002), Paiol de Telha (Hartung, 2004), Morro
Alto (Barcellos et al, 2004) e Invernada dos Negros (Mombelli e Bento, 2006).
Slenes fez um esforço para interpretar o significado das doações de terras,
assinalando que seus beneficiários eram preferencialmente cativos que possuíam
famílias estáveis. A expectativa por ser contemplados por benesses senhoriais era
utilizada como um poderoso instrumento de controle, na medida em que constituía
um estímulo para que os cativos agissem de forma a agradar, ou não desagradar,
seus senhores (Slenes, 1996).
Tais questões vinculam-se a aspectos desenvolvidos por Mattos: na
formação de relações comunitárias e no acesso à terra, as famílias escravas
produziam “uma experiência de liberdade que se construía em oposição à
escravidão” (Mattos, 1998, p. 89; Fraga Filho, 2006 p. 165). Por outro lado, existia
uma estratégia senhorial de fomento de diferenciações internas entre os cativos, na
qual as concessões eram dadas como privilégios a alguns. “Era socialmente
interessante que ‘africanos’ disputassem com ‘crioulos’, que cativos se esforçassem
para se tornarem ‘feitores’ ou terem acesso privilegiado às roças de subsistência”
(Mattos, 1998 p. 131 e 159). Por outro lado, a diferenciação não era tão-somente
42
Para uma discussão conceitual sobre “remanescentes de quilombos” cf. Almeida, 2002. Para o
autor, estas comunidades não devem ser definidas em termos “arqueológicos”, ou por “dualismos
geográficos e de economia formalista (‘civilização’ versus ‘barbárie’, ‘trabalho’ versusvadiagem’,
casas-grandes versus matas distantes)” (p. 58). Assim, acentua que a definição de tais comunidades
étnicas não se dá pelo isolamento nem por ser “remanescente”, “sobrevivência” de algo que
“sobrou”, mas da politização da questão identitária pelo movimento quilombola.
47
um instrumento de domínio senhorial: assumia também, para os cativos, uma
dimensão existencial, pois era um meio de afirmação como pessoa, para além da
“homogeneidade artificialmente construída pela escravidão” (Mattos, 1998 p. 124).
Slenes, em trabalho de 1999, assinalou enfaticamente que o acesso à terra
por famílias de escravos não pode ser reduzido apenas ao controle senhorial.
Discutindo com Jacob Gorender e Ciro Cardoso, afirma ser a existência de uma
economia interna dos escravos aspecto fundamental das lutas sociais sob o
escravismo, e as famílias escravas, um lugar privilegiado de solidariedade,
manutenção e transmissão de heranças africanas (Slenes, 1999). Rocha (2004 p.
49), identificando que a historiografia sobre famílias de escravos oscila entre a
ênfase na conquista de autonomia e no controle social paternalista, sugere que a
vida familiar dos escravos se constituía em um tenso equilíbrio entre estes fatores.
Calisto tornou-se capataz, não se sabe se antes ou após a alforria de 1876.
Parte de sua família foi libertada, mas parte foi mantida sob cativeiro:
Angélica /
Ângela n.1857
herdada por JAM
Inácia de
Nação
Livre
Juliana
n.1842
Livre
Rita n.1844
herdada
por JAM
Angélica n.1849
10 anos de serviço
herdados por JAM
Adão n.1854
herdado por
JAM
Calisto
(c.1829/1834-1880)
Livre
Jerônima n.
1864 herdada
por MJL
Cesária n.1859
herdada por
JAM
Guilherma
n.1861 herdada
por JAM
Maria ? n.
1864 herdada
por JAM
Lúcia
n.1867
Livre
Antônio
n. 1877
Evaristo
n.1879
Gráfico Genealógico 2 – Partilha da Família de Calisto
43
Inventário de Maria Joaquina Marques - 1876
44
MJL = Maria Joaquina de Lima
JAM = João Antônio Marques
43
Foram encontrados batismos de crianças que não constam no inventário, provavelmente devido à
mortalidade infantil, ou por terem nascido depois da realização do arrolamento de bens e da lei do
ventre livre. Foram suprimidos da genealogia, com exceção de Antônio e Evaristo, que evidenciam
que Calisto podia ter netos ao tempo do crime.
44
Há uma leve discrepância quanto à data de nascimento de Maria; segundo o inventário, ela teria
nascido em 1863, mas o seu batismo aponta 1864.
48
Calisto, sua sogra, uma cunhada e uma sobrinha receberam a alforria. Seu
núcleo familiar, contudo, não foi libertado. Cesária e Rita foram herdadas por João
Antônio Marques, o que não deve ter representado grande mudança em relação à
situação anterior – como visto, ele “criava” os escravos da irmã, e de mais a mais a
separação física entre Calisto e as demais já existia desde 1872. Jerônima, contudo,
foi legada a Maria Joaquina de Lima, afilhada da inventariada. Esse caso
representou risco maior de dispersão desta família, já que a nova senhora não
pertencia à mesma família senhorial. O que pode se afirmar, contudo, é que
descendentes de Jerônima ainda se encontram em Morro Alto e lembram de sua
avó (Barcellos et al, 2004), o que aponta para sua permanência ou ao menos
retorno à região de origem. Maria Joaquina Marques determinou ainda que os
escravos deixados para o irmão e para a afilhada ficariam livres com a morte de
seus proprietários, mas Calisto não assistiu isso acontecer: faleceu antes da morte
do senhor João Antônio Marques, em 1882.
Aos quatro escravos alforriados foram doadas 10 braças de terra para cada,
em um lugar chamado “tapera do Fulgêncio”
45
. Certamente a manutenção dos
familiares sob cativeiro obstaculizou o gozo pleno da liberdade
46
: eis que nos
deparamos, em 1880, com Calisto trabalhando como capataz em cima da serra, e
não ocupando as terras que recebeu, enquanto aguardava a liberdade da esposa e
da filha com o falecimento do senhor
47
. Rios, contudo, assinala que para as famílias
mistas de livres e escravos, a presença de integrantes alforriados possibilitava o
acúmulo de um pecúlio para libertação daqueles que ainda eram escravos, além de
lhes possibilitar uma ampliação de seu universo de socialização com livres (Rios,
2005, p. 150 e 163).
Os (ex-)escravos que trabalhavam em cima da serra possuíam vínculos
comunitários, que não se esgotavam no parentesco, com cativos de baixo da serra.
Considerando não só os integrantes da família de Calisto presentes nos inventários,
45
Não foi possível precisar sua localização.
46
O caso em questão já foi previamente abordado em Barcellos et al., 2004 p. 97. Para caso
assemelhado, o da família Pastorino, cf. a mesma obra, p. 98.
47
Creio ser este um exemplo do apontado por Mattos (1998 p. 132) quando destaca que aqueles que
eram encarregados da vigilância sobre os demais também eram prejudicados, por este tempo lhes ser
subtraído do que poderiam dedicar para suas roças, sua família e sua economia autônoma.
49
mas todos localizados em registros de batismo
48
, identificaremos sua esposa e a mãe
desta, um cunhado, duas cunhadas, duas filhas, oito sobrinhas, dois netos e sete
afilhados
49
. Damásio parece ter menos familiares: sua mãe, dois irmãos e, é claro,
seu padrinho. Estima-se, contudo, que em ambos os casos os vínculos familiares
fossem superiores aos assinalados. A fonte adotada possui limitações
incontornáveis, como anos falhados e o não-registro das relações consensuais, o
que inviabiliza a percepção das parentelas patrilaterais e da maior parte dos
casamentos
50
. As relações de parentesco entre escravos estão assim fatalmente sub-
representadas.
O enraizamento de relações comunitárias em uma outra região
obstaculizava as fugas, pois não era tão simples abandonar laços afetivos
duramente construídos, sobretudo quando se considera todos os significados por
eles assumidos. Vê-se aqui, portanto, um exemplo da já destacada relação entre
pecuária e incidência de famílias de escravos (Faria, 1998 p. 326, Osório, 1999 p.
140). Se este foi um dispositivo de controle do escravo Damásio e de manutenção
de Calisto em uma relação de dependência, certamente era uma prática com seus
riscos, na medida em que jogava com seus sentimentos, descontentamentos e
esperanças. O caso em questão é um ótimo exemplo de que a instrumentalização
do parentesco para o domínio senhorial não era sempre eficaz: no momento da
morte, de nada valeu ao capataz ser padrinho de seu executor. Não obstante, a já
mencionada presença de outros escravos originários de Morro Alto em cima da
serra naquele momento demonstra ter sido essa uma prática adotada pelos Marques
de uma forma mais geral, e talvez por outros fazendeiros.
O caso de Calisto se apresenta como exemplo do privilégio de algumas
famílias estáveis como estratégia de controle. Ele foi alforriado antes dos demais,
recebeu terras – das quais nunca pôde usufruir, é verdade – foi promovido à
condição de capataz, encarregado de exercer a vigilância sobre seu afilhado e talvez
48
É provável que os familiares que constam nos batismos mas não nos inventários tenham falecido
prematuramente. Ainda assim decidi mantê-los neste cômputo, pois mesmo os vínculos com
falecidos demonstram relações comunitárias.
49
Entre elas, Angélica, uma irmã de sua esposa Rita, Damásio, escravos de outros Marques e do
Palmital, localidade próxima à fazenda do Morro Alto, separadas pela Lagoa da Pinguela. O
número de familiares aumentaria ainda mais se fossem computados os pais e mães de seus
afilhados, de quem se tornou compadre. Além disso, foram pesquisados apenas os registros
paroquiais correspondentes à família Marques, sendo provável a existência de mais afilhados entre
cativos de outros senhores.
50
O vínculo entre Calisto e Rita, e a paternidade de Cesária e Jerônima puderam ser apreendidos
por meio da oralidade (Barcellos et al, 2004).
50
outros campeiros. Deveria gozar da confiança senhorial, absolutamente necessária
em uma região onde o assédio dos ladrões de gado era constante e o acesso ao
consumo dos animais, bastante fácil. Aquela era assegurada pelo risco de punição:
quer por meio da ameaça de perda de prerrogativas obtidas, quer da manutenção de
esposa e filhas em cativeiro. As concessões senhoriais, assim, estavam sob
permanente ameaça de revogação (Slenes, 1996, p. 95).
Cabe indagar, ainda, porque dentre tantos escravos dos Marques, Calisto
encontrou melhores oportunidades de ocupar um lugar privilegiado. Em outras
palavras, porque Calisto e não Damásio, por exemplo? O primeiro foi identificado
nos processos criminais como mulato ou pardo. O segundo, por seu turno, era tido
como preto. Isso pode ser indicativo – mas de maneira nenhuma necessário – de um
vínculo parental do primeiro com a família senhorial, o que o favoreceria
sobremaneira. Especulações à parte, o que é certo é que naquela sociedade, a “cor”
estabelecia e traduzia hierarquias sociais. Além disso, havia a diferença de idade
entre os dois, o fato de um ser padrinho e outro afilhado, de um conhecer e operar
na lógica daquela família senhorial, de suas relações sociais e produtivas desde
muito antes do outro nascer, e, finalmente, de um ser casado, ter esposa e filhas e
outro não.
Há um interessante debate historiográfico, que discute as razões pelas quais,
entre os escravos, homens mais velhos tinham maiores possibilidades de casar-se do
que rapazes mais novos. Para alguns (Florentino e Góes, 1997 p. 139 e 154), os
homens mais maduros eram culturalmente mais prestigiados, e portanto detinham
o monopólio sobre as mulheres mais novas e férteis, que se tornavam
“matrimonialmente disponíveis tão logo biologicamente possível o fosse”. Para
outros (Slenes, 1999, p. 81-82, e Rocha, 2004, p. 71-72), este argumento é invertido:
as mulheres, minoritárias em termos demográficos e, em comparação com o
continente africano
51
, sofrendo menor controle de pais e tios na determinação ou
intermediação de suas escolhas matrimoniais, tinham melhores condições de optar
pelos parceiros considerados mais prestigiosos. No caso estudado, é impossível
saber se Calisto escolheu Rita, se Rita escolheu Calisto, ou se ambos escolheram-se
mutuamente. O que se pode inferir, porém, é que conforme os critérios que vêm
51
O estudo de Graham sobre uma escrava que rebelou-se contra a imposição, por parte de um tio
dominador, de um parceiro indesejado, relativiza o argumento (os tios interferiam, sim) ao mesmo
tempo que o confirma (elas não necessariamente aceitavam tal interferência). Graham, 2005.
51
sendo delineados pela historiografia, ambos deveriam ser considerados excelentes
“partidos”: ele, mais velho e versado nas coisas da casa grande e nas lides
campeiras, de tez mais clara, ocupando um papel de intermediação entre o mundo
de escravos e livres, com prestígio entre os cativos e muitos afilhados (inclusive a
irmã de Rita); ela, uma escrava jovem e pertencente a uma família que contava
com, no mínimo, cinco integrantes (contando mãe e irmãs), apadrinhadas por
escravos de confiança de familiares de seus senhores, portanto com uma inserção
privilegiada nas redes comunitárias locais (Barcellos et al, 2004 p. 113-115).
Ao mesmo tempo, Calisto não pode ser percebido como mera correia de
transmissão dos arbítrios senhoriais. Percebe-se que o papel por ele desempenhado
representou uma ascensão que beneficiou não apenas a ele, como a seus familiares,
apesar da separação. Além do mais, foi um cativo com boa inserção na
comunidade de escravos, o que se evidencia por seu número de afilhados. Como
em um caso analisado por Rocha (2004 p. 134), “essa proximidade com a casa-
grande não implicou necessariamente um afastamento ou conflito com relação à
senzala”. Na medida em que se escolhia para compadres pessoas de situação social
superior, eram desejáveis, no caso de uma opção interna à comunidade escrava,
“aqueles mais próximos aos senhores e com maiores chances de alcançar a
liberdade e até de receber legados” (Rocha, 2004, p. 135). Entende-se, assim, o
porquê da recorrente escolha de Calisto como padrinho: a proximidade com o
mundo senhorial não se opôs à formação de solidariedades horizontais, antes a
potencializou. Por fim, cumpre notar que, se havia necessidade de complexos
mecanismos visando assegurar o controle sobre ele é porque a confiança de que
gozava não era plena ou incondicional
52
.
Calisto, contudo, não chegou a ver sua família unida. Faleceu antes do
senhor de seus familiares. Damásio, por sua vez, apesar dos esforços da família
52
Rios (2005 p. 174-177) analisou um depoimento oral sobre um escravo que, mesmo contando com
a confiança de seu senhor, não delatou outros escravos, ainda que pertencessem a outro proprietário
e pretendessem matá-lo. Xavier (2002), por seu turno, analisou o caso de Tito de Camargo, cativo
que, se foi favorecido por relações de maior intimidade com seus senhores, não se afastou do mundo
dos escravos, quer participando de irmandades religiosas, quer atuando como barbeiro e curandeiro,
ou mesmo pela participação em revoltas de escravos. “Apesar dessa última [política de domínio
senhorial] acentuar, no próprio acesso à alforria, as diferenças no interior do grupo escravo, não
parecia ter força suficiente para evitar que escravos e ex-escravos construíssem as mais
surpreendentes alianças” (Xavier, 2002 p. 89). Cf. ainda Machado, 1994, p. 92-107.
52
Marques, e de uma tentativa de fuga
53
, foi julgado e condenado em 1882, e não
tenho notícia posterior dele. As experiências de trânsito social e espacial por eles
vividas, contudo, eram compartilhadas por outros escravos, indivíduos que haviam
sido cativos, ou outros que não passaram por esta experiência.
Trânsitos
Não eram somente os campeiros e capatazes dos Marques (em trânsito entre
escravidão e liberdade) que circulavam entre a serra e o litoral. Com efeito, os laços
históricos que vinculavam ambas regiões vêm, há algum tempo, sendo apontados
como relevantes (Barroso, 1992; Possamai, 1992; Ruschel, 1992). Existia um
circuito comercial lícito no qual se trocava o açúcar litorâneo
54
pelo gado serrano; e
outro, ilícito, no qual animais roubados em cima da serra eram charqueados – em
cima ou em baixo – e vendidos nos núcleos coloniais, especialmente Três
Forquilhas (Weimer, 2006 e também capítulo 2).
Teixeira (2006) destacou a prática de senhores serranos
55
mandar escravos e
agregados trabalhar em roças no litoral, retornando mais tarde à labuta nos campos
em cima da serra. Nos processos criminais estudados há um exemplo assemelhado
que, contudo, não se refere a patrões e escravos ou agregados, mas a um produtor
autônomo. No ano de 1881, Balbino José da Silva foi acusado de, juntamente com
Francisco de Moraes, que foi escravo de Maria de Moraes, apagar as marcações de
duas terneiras e colocar as suas respectivas no lugar
56
. Ao longo das investigações
que seguiram, as testemunhas foram apresentando situações que permitem melhor
situar Balbino em termos sócio-econômicos. Ele possuía ou arrendava campos em
cima da serra onde criava gado vacum; marcava as criações durante o verão mas
53
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 30 (1881). Em
março de 1881, um sargento e dois soldados foram acusados de terem permitido a fuga de três
criminosos, dentre os quais “Damásio escravo”. Improvável que mais de um escravo com este
mesmo nome estivesse preso no início daquele ano.
54
No início da década de 1860, único período no qual se dispõe deste tipo de dado, os impostos
sobre engenhos e sobre aguardente equivaleram a entre 41% e 54% da arrecadação da Câmara de
Conceição do Arroio. AHRS, AM, caixa 26, maço 56.
55
“Serrano” é um dos gentílicos – de época e atual – de São Francisco de Paula. É nesse sentido que
o utilizo nessa dissertação, e não para referir-me à serra rio-grandense como um todo.
56
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 541 (1887).
53
passava parte do ano em Torres, de onde era natural, empregando-se como roceiro.
Vivia de lavouras embaixo da serra, mas as testemunhas não sabiam precisar se lhe
pertenciam. Portanto, este movimento pendular não era exclusivo de cativos, mas
extensivo a homens livres.
É provável que Calisto e Damásio também dele participassem e, dessa
maneira, pudessem rever seus familiares. A sazonalidade das lides pastoris em cima
da serra e agrícolas, em baixo, pode ter servido como uma válvula de escape – ou
como uma conquista – diante dos mecanismos de controle que lhes eram impostos.
Sem este alívio, existiria o risco de que o provável descontentamento de Calisto,
livre sem o gozo pleno de liberdade e mantido sob uma condição de dependência,
acarretasse em atos tão ou mais drásticos do que os de Damásio.
Em um processo estudado, uma testemunha – o “ex-escravo Adão” –
afirmou ter sabido dos fatos de seu depoimento (sobre o assassinato de Manoel,
sujeito a cláusula de prestação de serviços) por lhe terem sido contados durante a
subida da serra, em 1887
57
. Em um caso de furto de gado ocorrido em 1890
58
, foi
mencionada por uma testemunha a chegada ao lugar de abrigo dos ladrões de
Inácio, “um homem de baixo da serra”, justamente no momento em que os
acusados convidavam-no para dele participar. Por sua vez, há outro processo no
qual uma testemunha afirmava que os réus passavam “o inverno na roça da
Estância e o verão em cima da serra”
59
. Os caminhos de São Francisco ao litoral
eram espaço de circulação de negros e brancos, livres e escravos
60
, mas também de
notícias sobre o que acontecia em cima e embaixo da serra. Para entender a
dinâmica destes trânsitos, é melhor compreender que lugar era este – São Francisco
de Paula de Cima da Serra.
O município estudado passou por uma série de modificações administrativas
nas últimas décadas do século XIX. Em 1878, a freguesia de São Francisco
adquiriu o estatuto de vila, formulando seu código de posturas em 1883 e criando
57
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 34 (1887).
58
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 645 (1890).
59
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 649 (1880),
depoimento de Narciso Francisco Brandão, f. 8.
60
São Francisco de Paula ocupava lugar de destaque nas “rotas de circulação humana” identificadas
por Oliveira (2006 p. 53), interligando Santo Antônio da Patrulha, o Vale do rio dos Sinos, Porto
Alegre e os campos de cima da serra. Fernandes, Bustolin e Teixeira (2006 p. 151) relacionam o
trânsito entre litoral e serra ao fato daquela região fazer parte do caminho das tropas desde o período
colonial. Gil (2002), em estudo referente ao período entre 1760 e 1810 observa que a região serrana
constituía parte do caminho de ligação entre Viamão e Curitiba, por onde era levado o gado
contrabandeado. Escravos eram co-partícipes dessa atividade econômica.
54
uma comarca própria no ano seguinte. Antes disso, São Francisco foi termo da
comarca de Santo Antônio da Patrulha (1872-1878), do Rio dos Sinos (1878-1880)
e de Santa Cristina do Pinhal (1880-1884), para a qual voltou em 1886,
autonomizando-se novamente em 1889. A comarca foi extinta mais uma vez em
1892, restabelecida e extinta novamente no mesmo ano, quando passou a pertencer
a Taquara.
A divisão administrativa foi instável como a judicial. O município criado em
1878 teve fim em 1889, anexado a Santa Cristina do Pinhal e a Taquara, restaurado
no mesmo ano, e suprimido em 1892. Pertenceu a Taquara do Mundo Novo por
dez anos, depois dos quais se independizou (Fortes e Wagner, 1963). As sucessivas
modificações administrativas demonstram ser impossível delimitar espacialmente a
pesquisa com base nas divisões oficiais. Optei por verificar quais eram, na
documentação pesquisada, os limites recorrentes daquilo que os moradores
consideravam e referiam como “São Francisco”. A divisa norte, com Vacaria, é
sempre identificada como o rio das Antas, e, ao leste e sul, a encosta da serra
separava São Francisco de Santa Catarina, de Torres e de Conceição do Arroio,
bem como de Santo Antônio da Patrulha e de Taquara. O limite ocidental, com
Caxias do Sul, já não era evidente como os demais, pela inexistência de acidentes
naturais nítidos. Mesmo depois da restauração do município, em 1902, houve
diversas redefinições sobre o limite ocidental. Nesse caso, usei as definições
presentes nas fontes
61
.
61
Lugares como Canela e Caracol, mencionados de forma recorrente nos processos serranos foram
aqui considerados como sendo de São Francisco de Paula. Nos últimos anos da década de 1880 e
primeiros da seguinte, com a reestruturação administrativa, Gramado e Canela passaram a pertencer
a Taquara, mas isso se deu em um período em que São Francisco também foi anexada por aquele
município. Ao contrário de São Francisco, que emancipou-se no início do século XX, Canela só se
tornaria município em 1944, e Gramado em 1955 (Fortes e Wagner, 1963). Diante de tão confuso
quadro, foi feita a opção por “escutar” o que parece ser a opinião dos contemporâneos. As crianças
de Canela eram registradas em São Francisco de Paula (RCSFP, livro A-1 de nascimentos). Além de
estas localidades fazerem parte de um mesmo espaço político e social, os processos criminais
sugerem relações econômicas e padrões raciais assemelhados. É o caso do crime cometido por
Bibiana, em Canela, discutido no capítulo seguinte. São Marcos, por seu turno, em região próxima a
Caxias do Sul, tinha um padrão distinto, com a forte presença de imigrantes, o que acarretaria, por
fim, na sua anexação por aquele município. É um caso oposto, no qual o pertencimento político a
São Francisco não acarretou no mesmo tipo de relações sociais.
55
Mapa 1 – Nordeste do Rio Grande do Sul: São Francisco de Paula e municípios vizinhos
Fonte: [AHRS] Revolução Federalista – viagem de ida e volta aos Estados do Sul do Brasil.
(detalhe) - Mapas históricos editados pelo AHRS e IHGRGS.
Móvel 2 Gaveta 5 Envelope 25
Os campos de cima da serra eram privilegiados para a pecuária. O lapso
espacial entre o rio e a serra era – e ainda é, ao menos até quando os eucaliptos o
permitirem
62
– repleto de campos adequados para a criação, então a principal
atividade econômica de São Francisco. A inexistência de arame farpado tornava os
campos indivisos, facilitando a atuação de ladrões de gado; as marcas nos animais
se tornaram de suma importância, ao registrar uma garantia de propriedade.
Havia a presença de mangueiras, isto é, currais de pedra onde diversas lides
pastoris eram realizadas, cujas ruínas ainda podem ser encontradas. Isso nuança
um pouco a idéia de gado solto campo afora sem qualquer tipo de limitação
espacial. A câmara municipal de São Francisco de Paula, assim como as de
municípios vizinhos (Conceição do Arroio, Santo Antônio da Patrulha, Torres),
incluíram nos códigos de posturas a obrigatoriedade de construção de currais e
mangueiras
63
. Essas disposições não tiveram como objetivo promover o cercamento
62
A vegetação da região vem sendo progressivamente substituída pelo plantio de eucaliptos, em
paralelo à crescente perda de importância da pecuária na economia local, e à expansão do corte
madeireiro para fabricação de celulose. No entanto, ecologistas e outros ativistas vêm criticando as
conseqüências desta atividade econômica, em vista do seu impacto sócio-ambiental.
63
São Francisco de Paula: CARIRGS, tomo 36, 1883, artigos 38-40, p. 126-127; Conceição do
Arroio: CARIRGS, tomo 14, parte 2, 1858, artigo 14, p. 51; Santo Antônio da Patrulha: CARIRGS,
56
capitalista dos campos, mas outro mais modesto e muitas vezes malfadado: evitar
conflitos entre produtores pecuários e agrícolas (ocasionados pelos danos
provocados pelos animais de uns nas plantações de outros).
Figura 1 – Verdes campos e araucárias:
em contraste com outras pastagens no Rio Grande do Sul,
a paisagem concilia a vegetação serrana com a campeira. Foto do autor.
Figura 2 – A mangueira e o arame:
A estrutura de pedra da ruína de uma mangueira foi aproveitada nos dias de hoje de forma a,
junto com o arame farpado, estabelecer os limites da propriedade. Foto do autor
tomo 14, parte 2, 1858, artigos 42-45, p. 9-10; Torres: CARIRGS, tomo 36, 1883, artigos 66-68,
p.101-102.
57
Tudo indica que a população de São Francisco fosse majoritariamente
rural
64
. Uma foto da vila em 1901 evidencia suas pequenas dimensões. Entre 1872 e
1890, a população do município, rural e urbana, teve o substancial crescimento de
5526 para 9597
65
. É duvidoso acreditar que a população local fosse tão fértil; é mais
provável considerar a incorporação de novos habitantes durante suas redefinições
de fronteiras. Infelizmente não se pode contar com os dados de 1900, já que
naquele ano foram computados junto aos de Taquara; tampouco os censos
disponíveis especificam distinções entre população rural e urbana, talvez porque
fosse, também, uma relação caracterizada pelo intenso trânsito, ou mesmo porque
então tal diferenciação não fizesse sentido – mais do que se oporem, sede e distritos
pareciam ter uma relação de complementaridade.
Figura 3 – Vista da cidade em 1901
Fonte: Lucena, s/d
Muitos habitantes também eram de origem africana. Com efeito, conforme o
censo de 1872, assim se distribuía a população local:
64
Dentre os 496 registros de nascimento pesquisados (1889-1905), 239 continham a informação
sobre o local de nascimento da criança. Excetuando aqueles que simplesmente registram “São
Francisco de Paula” (o que pode referir-se tanto ao município como à vila) há somente 4 registros
indicando a vila como local de nascimento, e em três deles o pai foi identificado como empregado
público. RCSFP, livro A-1 de nascimentos.
65
Fontes: IBGE – Recenseamento Geral da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul de 1872,
disponibilizado on-line em: http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?id=15
<acessado em
6/10/2006>; IBGE – Diretoria Geral de Estatística – Ministério da Indústria, Viação e Obras
Públicas – República dos Estados Unidos do Brasil. População recenseada em 31 de dezembro de 1890.
Rio de Janeiro: Oficina da Estatística, 1898.
58
Tabela 1 – População de São Francisco de Paula por condição
social - 1872
1872
66
Rio Grande do Sul São Francisco de Paula
Total % Total %
Pretos e pardos
livres
67
82117 18,97 1431 25,9
Escravos 67393 15,57 1070 19,36
Caboclos 25540 5,9 313 5,66
Brancos 257715 59,55 2712 49,08
Total 432765 100 5526 100
Livres ou cativos, o fato é que naquele ano a população negra era, em
termos percentuais, superior à média do conjunto da Província. Mais do que isso,
se são considerados todos “não-brancos”, incluídos caboclos, percebe-se que os
brancos eram um segmento populacional – levemente – minoritário na região.
Finalmente, percebe-se uma maior quantidade de pretos e pardos livres do que
cativos naquela região, o que constata para São Francisco de Paula argumentos
semelhantes aos apresentados por Mattos (1998 p. 33) em relação à região sudeste:
nos anos finais da escravidão existiam mais negros livres do que cativos. Naquele
município, no que toca à condição jurídica, havia mais Calistos do que Damásios.
Se assim era em 1872, no lapso entre este ano e 1888, muitos outros se
fizeram livres. Procurando por cartas de alforria de São Francisco de Paula entre os
livros do Tabelionato deste município e circunvizinhos
68
, só foram encontradas 65
cartas, referentes a 89 escravos. Certamente devem ter existido mais, já que muitas
alforrias caracterizavam-se pela informalidade, nem sempre recebendo registro em
cartório; a documentação relativa a diversas outras pode ter se perdido nas
repetidas mudanças administrativas. Das identificadas, 58 cartas foram lavradas na
década de 1880, totalizando 82 escravos. É impressionante a quantidade dos
libertados por meio de contratos para prestação de serviços: à exceção de duas
alforrias sem ônus ou condição, de uma comprada e de outra em que tal
66
Fonte: Recenseamento Geral da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – 1872, IBGE,
disponibilizado on-line em: http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?pagina=15 <acessado
em 6/10/2006>
67
Calculados a partir (pretos + pardos – escravos).
68
APERS – Tabelionato de Conceição do Arroio, 2º distrito (Registros Diversos, livro I); APERS
Tabelionato de Santo Antônio da Patrulha – Freguesia de São Francisco de Paula de Cima da Serra
(Notas livros 1-2); APERS – Tabelionato de São Francisco de Paula (Notas livros, 4, 6, 7 e 9).
59
informação não constava, uma vez liberados, os 78 restantes deveriam trabalhar
por uma média de 6 anos para seus antigos senhores.
Esse padrão assemelha-se ao de Porto Alegre: Moreira destacou que 54%
das alforrias condicionadas à prestação de serviços daquele município
concentravam-se nos anos entre 1883 e 1887. O autor destaca que tais serviços
eram vistos como um ressarcimento ao senhor pela força de trabalho perdida,
expressos em termos contratuais
69
. Eram estabelecidas como obrigações mútuas “a
continuidade da dependência do ex-cativo e a possibilidade do senhor dispor do
trabalho do contratado como uma mercadoria, ainda que de tipo especial”. O autor
assinala, ainda, que os contratos assinalavam os tênues limites – uma situação
transitória, enfim – entre cativeiro e liberdade naquela agitada década de 1880
(Moreira, 2003, p. 251-257). Fraga Filho, por seu turno, identificou nas alforrias,
condicionais ou não, uma tentativa de manutenção da ascendência sobre os antigos
cativos (2006 p. 109).
Se os escravos não deixavam de transitar pelo espaço serrano, tampouco os
contratados o fizeram. Em uma noite de sexta-feira, dia 11 de novembro de 1887,
Manuel, contratado de D. Maria Trindade Fogaça, saiu da casa da antiga senhora
(em sua narrativa, mediante autorização dela), para ir à casa de D. Senhorinha
Cândida Pimentel, para onde se dirigiu, sozinho, e de onde nunca mais voltou
70
.
Pretendia encontrar-se com sua amásia Ana Maria, filha de Gertrudes, escrava da
dona daquela casa: amásio contratado, amásia livre, de mãe escrava. Percebe-se a
permeabilidade das relações sociais entre grupos populares: três pessoas com
contato e convívio íntimos tinham três estatutos sociais distintos, que não criavam
barreiras rígidas. Na mesma noite, Manuel foi assassinado por meio de tiros, e
“Marcos de tal” e João Fogaça foram acusados de serem os responsáveis
71
. Este
crime será discutido com mais vagar em momento oportuno.
69
29 das 65 libertações de São Francisco localizadas não estavam intituladas como cartas de alforria
ou de libertação, mas apresentadas diretamente como contratos comuns, sob a rubrica de “contrato
de prestação de serviços para liberdade”. APERS – Tabelionato de Conceição do Arroio 2º distrito
(Registros Diversos, livro I); APERS – Tabelionato de Santo Antônio da Patrulha – Freguesia de
São Francisco de Paula de Cima da Serra (Notas livros 1-2); APERS – Tabelionato de São Francisco
de Paula (Notas livros 4, 6, 7 e 9).
70
Analisei anteriormente este caso em Weimer, 2005a.
71
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 34 (1887).
60
É impressionante a pequena quantidade de africanos encontrados ao longo
deste trabalho
72
. Dos 82 escravos cuja carta de alforria localizei, emancipados nos
anos de 1880, apenas dois foram identificados como africanos, sem nenhuma
indicação mais precisa de possíveis lugares de procedência
73
. Isidoro foi alforriado
em 11 de outubro de 1884 pelo senhor Diogo de Araújo Quadros. Conforme a
carta, já tinha a idade de 60 anos e era preto; necessitaria, porém, prestar seus
serviços por mais seis anos
74
. A carta de Serafim ocorreu dois meses após, à véspera
da virada de ano. Tinha 50 anos mas deveria prestar serviços ao ex-senhor, Manuel
Soares de Oliveira, até os 57. Caso desejasse remir-se antes disso, deveria indenizá-
lo no valor de 150 mil-réis por ano de serviço pendente
75
. A elevada idade de ambos
explica-se, claro está, pela interrupção do tráfico negreiro na década de 1850. No
Rio Grande do Sul, o derradeiro desembarque de cativos se deu em 1852, nas
proximidades de Capão da Canoa (Moreira, 2000; Barcellos et al. 2004).
Oliveira, acompanhando a trajetória de Manoel Congo, um africano trazido
neste último desembarque, aponta Conceição do Arroio, Santo Antônio da
Patrulha, Maquiné e cima da serra como os principais destinos tomados pelos
africanos. Manoel foi vendido para este último local, assim como João, africano
congo originário do mesmo desembarque. São Francisco de Paula aparece como
mercado consumidor nos circuitos clandestinos de comércio de africanos. O autor
aponta a necessidade de “redes de recepção apropriadas” ao tráfico negreiro e dá
conta da existência, nos matos de Maquiné, de locais onde uma “multidão de
brancos” os escolhia para aquisição (Oliveira, 2006, p. 34-39). Ao contrário de
Manoel Congo, que fugiu para Santo Antônio da Patrulha, e de Congo João, que
procurou as autoridades policiais e apresentou-se como africano livre (em 1876),
Isidoro e Serafim eram ainda cativos nos anos de 1880 – contudo, também não se
sabe se os dois tinham vindo em um desembarque legal ou ilegal.
A ausência nas alforrias não significa sua inexistência no conjunto da
população
76
, mas era de se esperar que cativos de idade mais avançada não
estivessem sub-representados. Os idosos e doentes foram freqüentemente
“privilegiados” com alforrias por senhores que desejavam livrar-se dos incapazes
72
Teixeira (2006) destaca serem os escravos africanos 14% do total em 1872. Sem a renovação
advinda do tráfico sua tendência era o decréscimo.
73
Sobre o termo “lugares de procedência” cf. Soares, 2000.
74
APERS – Tabelionato de Conceição do Arroio 2º distrito (Registros Diversos, livro 1) f. 39.
75
APERS – Tabelionato de São Francisco de Paula (Notas, livro 6) f. 6.
76
Muitos poderiam estar sub-representados pela irregularidade e clandestinidade de sua situação.
61
para o trabalho produtivo (Moreira, 2003, p. 205-209). É possível refletir sobre
eventual dificuldade de concorrer pelos africanos com centros opulentos, nos anos
finais do tráfico atlântico, ou ainda um desabastecimento em virtude do tráfico
interno. Tais questões, porém, merecem análise específica. Os casos trazidos por
Oliveira, porém, demonstram que São Francisco de Paula foi receptora de africanos
que também recebeu escravos de outros municípios. A questão fica em aberto pela
falta de informações que levem a resultados conclusivos.
O censo de 1890 apresenta o registro por “cores” da população, no entanto
há uma vertiginosa modificação populacional em São Francisco de Paula:
Tabela 2 – População de São Francisco
de Paula por “cor”
1890
77
São Francisco de Paula
Total %
Mestiços 1813 18,89
Pretos 903 9,41
Caboclos 646 6,73
Brancos 6235 64,97
Total 9597 100
É fundamental levar-se em consideração, para compreender as variações
registradas na tabela, a ressignificação das representações sociais referentes à “cor”.
Se até certo limite essa mudança pode expressar uma modificação demográfica –
pelo afluxo cada vez maior de imigrantes europeus, sobretudo italianos
78
– não
menos importantes são as mudanças das concepções sobre o que deve ser entendido
como “ser preto”. Mattos (1997 e 1998) assinala que nos anos finais do Império e
no pós-abolição o termo “preto” foi estigmatizado, dado que imediatamente
associado à condição cativa
79
. Ocorreram mesmo revoltas contrárias à instituição
da categoria “cor” nos recenseamentos imperiais. A luta contra o estigma da cor
expressou-se como um anseio pela ausência da mesma (Mattos, 2005 p. 295).
77
Fonte: Diretoria Geral de Estatística – Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas –
República dos Estados Unidos do Brasil. População recenseada em 31 de dezembro de 1890. Rio de
Janeiro: Oficina da Estatística, 1898.
78
A colônia de São Marcos pertenceu a São Francisco de Paula até 1921, quando solicitou sua
anexação a Caxias do Sul, alegando que a sede não conseguia atender suas demandas. (Possamai e
Rizzon, 1992 p. 68; Teixeira, 2002 p. 24)
79
Faria (1998 p. 135-139) chega a conclusões semelhantes no que toca ao período colonial,
demonstrando dificuldades, que podiam perdurar por gerações, de inserção no mundo
discriminatório dos livres, face à preponderância do estigma de um passado ou ancestralidade
escrava.
62
Estabeleceu-se, assim, uma evitação ou mesmo o silêncio em relação ao uso
de qualificativos de “cor”
80
. Para a autora, “a uma expressiva diminuição da
proporção de crianças negras entre os registros de nascimento e óbito, respondia
um crescimento percentualmente equivalente das crianças pardas, sem que se
alterasse a presença populacional dos brancos nos dois conjuntos analisados”
(Mattos, 1997 p. 382). Processo assemelhado se deu no município estudado; apesar
da crescente presença européia, os gráficos seguintes não deixam dúvidas quanto ao
fato de que, embora a população tenha crescido em geral, este acréscimo foi
inversamente proporcional à pigmentação da pele...
Gráfico 3 – Crescimento populacional segundo critérios raciais ou de “cor”
Crescimento populacional de São Francisco de
Paula segundo critérios raciais ou de cor
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
1872 1890
Anos
População
Total
Brancos
Pretos
Pardos/mestiços
Caboclos
Gráfico 4 – Variação (%) da população de São Francisco – 1872-1890
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
70,00
B
r
a
n
c
o
s
%
P
a
r
d
o
s
/
m
e
s
t
i
ç
o
s
%
C
ab
o
c
l
o
s
%
P
r
e
t
o
s
%
V
ariação (%) da população de São Francisco -
1872-1890
1872
1890
80
Ausentes no recenseamento de 1900. Esse silêncio estabelecia uma igualdade formal: o anseio
igualitário, que exigia que se calassem termos discriminatórios, não dava fim a preconceitos de
“cor”, em si (Mattos, 2005 p. 294-295). Papali (2003 p. 134) apresenta o caso de indivíduos que, em
1917 eram identificados como “filhos de escravos”, evidenciando a longevidade do estigma.
63
A população branca, de pardos e mestiços
81
e de caboclos cresceu em termos
absolutos e relativos, de forma tanto mais acentuada quanto mais clara a tez. Os
pretos, por sua vez, sofreram decréscimo, absoluta e relativamente. Não se tratava
somente de alterações demográficas (imigração, emigração, crescimento endógeno,
óbitos), mas de indivíduos que foram deixando de ser assim classificados.
***
Três principais caminhos ligavam São Francisco ao litoral gaúcho
82
. O
primeiro deles era o da Serra do Pinto, acompanhando o rio de mesmo nome até a
colônia alemã de Três Forquilhas. Ali estava o principal mercado para o charque
produzido com o gado roubado na região serrana. O segundo acompanhava a
descida da serra do Umbu, chegando no núcleo colonial Marquês do Herval (atual
Barra do Ouro) e a Maquiné. O terceiro levava a Taquara do Mundo Novo (de
onde se podia ir para Santo Antônio da Patrulha e o litoral, para a capital
provincial e ainda, à colônia alemã de São Leopoldo).
Havia, é claro, deslocamentos realizados em cima da serra, como no caso de
André Guilherme da Silva e Pedro Felipe, cunhados, presos em Nova Trento
83
no
ano de 1888 pela tentativa de vender três vacas roubadas em São Francisco e uma
novilha apropriada no caminho, que ao momento da prisão já tinha sido
charqueada pelo adquirente
84
. É um caso de venda de gado roubado serrano para
um núcleo colonial. A maior parte, porém, traficava gado para as regiões
litorâneas. Falo agora dos caminhos pelos quais passaram.
81
A categoria “pardo” foi utilizada em 1872 e “mestiço”, 1890. Há um contraste com os resultados
obtidos por Mattos, que identificou o mesmo fenômeno, porém por meio da utilização do termo
“pardo” na década de 1890, e não “mestiço”. Trata-se, antes de tudo, de uma questão de fontes, já
que a autora utilizou registros civis, enquanto aqui me refiro à categoria adotada em um censo
governamental. É difícil avaliar em que medida as categorias raciais empregadas no recenseamento
eram compartilhadas pela população em geral. A utilização de termos raciais em São Francisco de
Paula, assim como a análise de sua presença nos registros civis serão discutidos no capítulo 4. Por
outro lado, é plausível associar a utilização preferencial do termo “mestiço” em lugar de “pardo”, à
crescente difusão do racismo científico no Brasil. Durante a década de 1890, a questão da
mestiçagem, e da possível “degeneração” que a mesma poderia proporcionar entre a população de
uma República de “cidadãos” que se pretendia erigir, preocupava sobremaneira os intelectuais
brasileiros, voltando sua atenção ao discurso racialista (Skidmore, 1976 e Schwarcz, 1987 e 1993).
82
As inter-relações com Santa Catarina não puderam ser abarcadas na presente pesquisa. Sobre o
tema remeto para Teixeira (2006) e Fernandes, Bustolin e Teixeira (2006).
83
Atual Flores da Cunha, ao norte de Caxias do Sul.
84
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 15 (1888).
64
Mapa 2 – Caminhos de São Francisco para Três Forquilhas, Maquiné e Taquara.
Fonte: [AHRS] 1891 Carta Geográfica do Estado Federal do Rio Grande do Sul organizada pelo
Estado Maior de Artilharia João Cândido Jacques Propriedade do editor livreiro Joaquim Alves
Leite, Porto Alegre. E – 1:1.545.925. Móvel 1 – Rolo 26 [Detalhe]
Mapa 3 – Foto de satélite da região de São Francisco de Paula
Fonte: www.maps.google.com
<acesso em 4/10/2006>
Os campos de cima da serra equivalem, grosso modo, à região mais clara do mapa. Percebe-se a
encosta da serra a separar São Francisco de municípios vizinhos, e, ao norte, em linhas escuras, o
Rio das Antas. A cidade é praticamente imperceptível, colada à borda da serra.
1) São Francisco de Paula; 2) Três Forquilhas; 3) Rio das Antas; 4) Maquiné; 5) Colônia Marquês do Herval (Barra do Ouro);
6) Caxias do Sul; 7) Taquara; 8) Torres; 9) Campos de cima da serra
(Localizações aproximadas e ilustrativas) Escala: 3 cm 50 km
Percorrendo, ao longo do processo de pesquisa, os caminhos mencionados,
verifiquei quão inclinados e sinuosos são estes trajetos, como se vê na foto abaixo.
65
Figura 4 – A sinuosa serra do Umbu – descida de São Francisco de Paula para Maquiné
Foto do autor
Essas características dos caminhos faziam com que, embora imprescindíveis
para a economia e para as relações sociais locais, também fossem sumamente
perigosos. As curvas tornavam imprevisível o que podia haver adiante, assim como
os abrigos entre as rochas, e as difíceis condições de visibilidade em dias de neblina.
Tudo isso fazia de qualquer viajante incauto uma presa vulnerável a assaltantes ou
assassinos. Dos 38 processos criminais analisados referentes a homicídios no
intervalo entre 1879 e 1894, 4 foram realizados por meio de emboscadas
85
. Se o
número absoluto não parece ser elevado, pensando em termos de proporção ver-se-
á que mais de 1 em cada 10 assassinatos perpetrados em São Francisco eram por
meio de ataques traiçoeiros, a maioria dos quais nos caminhos desertos. Se
incluídas também as tentativas de homicídio, tem-se que 9 em 48 ataques, bem ou
mal-sucedidos, ocorreram através de emboscada (em termos proporcionais, quase o
dobro do que se ficarmos restritos aos homicídios levados a cabo). Elas podiam ter
motivações políticas, vinganças, ou serem puro e simples latrocínio, mas seu
cenário mais comum sempre era o caminho da serra.
É o caso, por exemplo, de Zezinho, um “preto” que falava um pouco de
alemão
86
que assassinou, no caminho entre Taquara e São Francisco, um
transeunte, não identificado mas supostamente filho do coronel Felisberto Baptista
85
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maços 19-27; APERS, I
Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maços 1-4.
86
Sobre escravos nas colônias alemãs, ver Oliveira, 2006.
66
Soares
87
, que subia a serra. O episódio ocorreu em março de 1883, e o criminoso
levou seu dinheiro e algumas peças de roupas
88
. Já na tentativa, em agosto de 1891,
de matar Manoel João Teixeira, não parece ter sido o roubo a finalidade. Na subida
da serra, desde Três Forquilhas, para chegar em sua casa de residência, no segundo
distrito de São Francisco, a vítima foi surpreendida por tiros que vinham do mato,
de forma a impossibilitar a visão dos agressores, enquanto fazia a travessia de um
passo.
O crime foi atribuído a Jacob Gross e Agostinho Bicudo do Amarante,
residentes em Três Forquilhas onde, afinal, segundo diversas testemunhas,
alardearam publicamente a responsabilidade pelo crime
89
. Ambos estavam
vinculados a Candinho Baiano, liderança de um grupo que viria a atuar junto com
os federalistas durante a “Revolução” de 1893 (Bastos, 1935), e que participava do
contrabando de gado roubado de cima da serra e de seu charqueamento em Três
Forquilhas (Weimer, 2005 e 2006). As condições em que se deu o crime sugerem
um clima de intimidação contra aqueles que de uma forma ou outra estivessem
atrapalhando seus negócios ou vingança contra as mesmas – afirmar publicamente
sua autoria demonstrava uma necessidade de externalizar o feito para que servisse
como aviso para que outros não ousassem descontentar o bando.
Uma tentativa, mal-sucedida, de assassinato por meio de emboscada foi
cometida por Elias Carneiro Lobo, Inácio Borges do Amaral e Mello, José Soares
Borges, vulgo José Vidal, e Manoel Venâncio Pereira, em junho de 1891, contra o
Tenente Coronel Afonso de Oliveira Pinto quando este realizava a travessia do Rio
Camisas. Por trás do ataque achavam-se desavenças pessoais e uma disputa
fundiária, dado que a quadrilha era considerada “inimiga mortal da vítima”, que
por sua vez “protegia” indivíduos que disputavam um pedaço de campo com
“protegidos” de seu cunhado, Francisco Borges
90
. Nesse jogo de antagonismos
entre patrões e dependentes, tendo como pano de fundo o acesso à terra, a morte à
traição se colocou como uma alternativa. Se, aparentemente, os dependentes eram
meramente utilizados pelos dominantes para a resolução de seus mútuos conflitos,
87
Trata-se da principal liderança política do Partido Federalista naquele município; aparecerá
diversas vezes nas páginas dessa dissertação por fazer parte de diversas situações exemplares aqui
discutidas.
88
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, processo 564 (1883).
89
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 2 (1891)
90
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891)
67
em termos práticos eles utilizavam a favor de si a ideologia senhorial, na busca por
um objetivo – o acesso à terra (Chalhoub, 2003).
Se a geografia local oferecia excelentes oportunidades para ver (e atacar) sem
ser percebido, também era pródiga na oferta de esconderijos para abrigar foragidos
ou mesmo para a prática de atividades ilícitas. As fissuras por entre as rochas,
conhecidas como Itaimbés ou Taimbés
91
garantem espaços de refúgio sobretudo por
sua dificuldade de acesso. Isso não impediu, porém, a polícia de encontrar em
setembro de 1890 aparato voltado à salga e secagem de animais roubados em um
Taimbé nas proximidades da casa de Manoel Victorino Pereira
92
, na costa do Rio
das Antas:
Encontraram a cabeça de uma rês com um chifre queimado,
e o outro inteiro com couros queimados, e sem nenhuma carne, e
uns pedaços de couro de pelo vermelho, com um metro de extensão
mais ou menos e cuja cabeça fora encontrada com o mesmo pedaço
de couro na costa do rio das Antas perto da casa de Manoel
Victorino Pereira, que da mesma casa seguiu uma estrada até onde
estava a mencionada cabeça, e couro. Onde se achava ossada ainda
com carne fresca, e muita ossada queimada e diversos ranchos,
varais para secar carne e muitos fogões velhos, isto em um Taimbé
de formas que é um carneador antigo Auto de Corpo de Delito,
f.6
93
Co-partícipe do roubo do gado, conforme as investigações, foi um indivíduo
de nome Tristão, que se achava com Pereira havia 11 dias. Uma testemunha,
indagada se sabia antecedentes criminosos de Tristão, afirmou que desconhecia,
sabendo apenas que ele havia furtado dois cavalos. Em outras palavras, a prática do
abigeato era tão difundida na região, que podia não ser encarada como crime; ao
menos esta testemunha não fez associação direta entre o furto dos eqüinos e a
pergunta que lhe foi formulada. Por vezes, eram procuradas vias para a solução
91
Do tupi-guarani ita-aimbé, pedra afiada, pontiaguda. Bueno: 1998 p. 169. O exemplo mais célebre,
é claro, é o famoso cânion do Itaimbezinho.
92
A participação de um Victorino Pereira, família abastada e influente localmente, nos circuitos do
abigeato demonstra que não se tratava de atividade restrita aos segmentos sociais marginalizados.
Pelo contrário, era uma atividade difundida socialmente ultrapassando fronteiras classistas. Ver
Weimer, 2006.
93
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 38 (1890).
68
não-judicial de impasses relativos a gado alheio apropriado
94
, por meio da cobrança
monetária dos animais furtados. Segundo Félix (1996 p. 57), a partir da segunda
metade do século XIX, as autoridades policiais perderam a capacidade de policiar
roubos de animais. Desta maneira, “os latifúndios passaram a ser cercados com
arame farpado, e o policiamento e o ajuste foram paulatinamente entregues ao
poder privado, caracterizando-se pelo aumento da violência”.
Afinal de contas, embora sua versão não tenha sido levada em conta pelo
júri, Damásio encontrou um argumento bastante verossímil, pois entranhado na
realidade local, ao acusar os ladrões de gado por terem morto seu padrinho.
Os matos, caminhos e serras entre o espaço serrano e regiões vizinhas de
menor altitude, contudo, não se restringiram a abrigo de criminosos ou base de
atuação para emboscadas; também foram um refúgio excelente para cativos
foragidos
95
. Oliveira constatou casos em que, ao fugir, escravos buscavam chegar
em cima da serra, onde certamente encontrariam refúgio com maior facilidade
(Oliveira, 2006, p. 113, ver também Fernandes, Bustolin, Teixeira, 2006 p. 151). O
vale que se estende ao longo do caminho entre Gramado e Canela, então
pertencentes a São Francisco de Paula, em direção a Taquara, sugestivamente
guarda até hoje a toponímia de “vale do quilombo”.
Foi localizado um processo criminal de Santa Cristina do Pinhal sobre
episódio ocorrido neste lugar. Não é um processo relativo a escravos fugitivos, e
evidencia já a presença de uma quantidade elevada de teuto-descendentes, naquele
momento, no vale do quilombo. Tratava-se de um conflito de caráter racial.
Durante um festejo, realizado na casa de Carlos Hinke no dia 24 de outubro de
1887, Francisco Antônio de Freitas, apelidado como Penacho (às vezes indicado
como “pardo” e às vezes como “mulato”) foi assassinado por Antônio e José
Bernardes da Silva, através de facadas. Quando o crime aconteceu, a vítima
dançava com Melina, filha de Pedro Schneider. Embora em nenhum momento tal
aspecto seja explicitado, é provável haver uma forma de ultraje, vingado pelos
94
Tendo José da Silva Ourives sido roubado em uma vaca por Simplício Pedroso de Moraes em
1887, tratou de procurá-lo para cobrar pelo animal [APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara
do Mundo Novo, maço 23, processo 614 (1887)]; em um processo por assassinato ocorrido em 1899,
uma testemunha apontou os maus antecedentes do acusado, identificando-o como “homem de
maus costumes, tanto assim já tem pago reses que tem furtado dele dependente” [APERS – I Cartório de
Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 27, processo 734 (1899)].
95
Sobre matos e serras como espaços positivados como de liberdade para escravos e outros setores
marginalizados na sociedade imperial ver Moreira, 2002 e Barcellos et al. 2004 p. 78-88.
69
assassinos, pelo fato do rapaz estar dançando com uma filha de alemães. Se os
agressores foram identificados como desafetos de Francisco, em momento algum
foi apresentado qualquer fator desencadeante do ataque – parecia tão óbvio que
sequer se preocuparam em investigar. Por outro lado, a maior parte das
testemunhas, ao mencionar a dança, ressaltou a “cor” de Chico Penacho
96
.
Se quilombo ali houve, foi anterior à chegada dos imigrantes ou
concomitante à ocupação territorial por estes últimos. Vem sendo cada vez mais
objeto de questionamento a percepção das colônias alemãs (Tramontini, 2000,
Oliveira, 2006) ou dos quilombos (Almeida, 2002, Gomes, 2005) como
comunidades isoladas. Já há algum tempo (particularmente a partir dos estudos de
Barth, 2000
97
) os estudos sobre relações étnicas tem enfatizado a importância dos
intercâmbios, e não do seu isolamento, na definição desses grupos
98
. Nas trocas,
contatos e conflitos com o outro, se estabelecia quem era quem, os limites e
fronteiras entre os grupos, e quais graus de interação eram admissíveis, bem como
as maneiras como poderiam acontecer. Parece ter sido este o caso aqui colocado.
Aquele momento era uma celebração inter-étnica oferecida por Hinke a todos seus
trabalhadores, em comemoração ao serviço feito
99
.
Fronteiras étnicas são dinâmicas, na medida em que resultam de oscilações
culturais e políticas. O ataque partiu de pessoas com sobrenome luso-brasileiro. Os
agressores devem ter considerado que Francisco ultrapassou esta fronteira durante
o baile. Pode-se pensar mesmo que eles, tampouco germânicos, mas inseridos
naquela sociedade (pois falantes de alemão), desejassem fazer o mesmo que sua
vítima. Antônio e José Bernardes, “diferentes” entre os alemães, consideraram,
pois, ousadia inaceitável que um negro (mais “diferente” ainda entre os teutos)
participasse da dança
100
. Para os alemães - testemunhas de sobrenomes Hinke,
96
APERS – I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 23, processo 606 (1887).
97
Data da edição brasileira. Os principais estudos de Barth datam da década de 1960. No Brasil,
Oliveira (1976 e 1981) foi pioneiro neste enfoque de abordagem das relações étnicas.
98
Para outro exemplo da inter-relação e atuação conjunta, há o caso do bando de Candinho
Bahiano. Alemães e negros, unidos por laços de cunhadio, participaram de atividades de roubo de
gado e também lutaram na Guerra Federalista (Weimer, 2005 e 2006).Segundo Bastos (1935 p. 52-
53), a noiva de Candinho, Maria Menger, era sobrinha de Margarida Menger, noiva de seu irmão
Pedro Bahiano, e de Elisabeth Hoffman, noiva de França Gross.
99
Por outro lado, a interação e a permeabilidade não implicava na inexistência de hierarquias, e
tampouco excluía a possibilidade do orgulho e do ultraje étnicos. APERS – I Cartório de Cívil e
Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 23, processo 606 (1887), depoimento de Joana
Guilhermine Sofia Hinke f. 8.
100
Weber (1999 p. 267-277) e Seyferth (2000 p. 153), através do conceito de “honra étnica”
pretendem dar conta da sensação de pertencimento a uma comunidade étnica. Assentada no
70
Herrman, Schneider, Schell – os juízos a respeito da vítima eram bons e sobre os
acusados, ruins. Isso podia evidenciar alguma inserção favorável de “Francisco
Penacho” na colônia, mas é mais provável que se devesse ao fato dele ter sido
assassinado, portanto vítima, e os outros, seus algozes. É possível que, morto e
vitimizado, Manuel fosse lembrado com maior condescendência do que quando
vivo.
Retornando à encosta da serra, tem-se um exemplo mais seguro de como a
região oferecia abrigo para escravos foragidos e para a formação de comunidades
negras. É o caso do quilombo São Roque. Seus habitantes pleiteiam nos dias de
hoje reconhecimento público e titulação de suas terras. As escarpas da serra, na
divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, forneceram abrigo aos ancestrais
dos moradores do local, que eram escravos fugitivos das famílias serranas dos
Fogaça, Nunes e Monteiro (Fernandes, Bustolin, Teixeira, 2006).
A configuração espacial permitiu um relativo isolamento que, se
obstaculizou a ação de agentes estatais ou particulares repressivos, não impediu
deslocamentos e interação espacial com a parte de cima da serra: havia vínculos
com o Campo dos Pretos, na fazenda Josaphat
101
, mobilidade pelas estâncias de
Tainhas e ainda, o trabalho ocasional na Roça da Estância, localidade em suas
proximidades. O processo de fuga colocava como alternativas o retorno à
propriedade escravista ou a resistência à reescravização. Mesmo que inacessíveis ao
historiador as motivações destas diversas opções, fica claro a existência de
diferentes opções para os que se achavam na situação comum de “estar longe do
domínio de seu senhor”
102
(Fernandes, Bustolin, Teixeira, 2006 p. 153 e 144).
Ao invés de haver contradição, essa mobilidade expressava a luta
comunitária por sobrevivência e liberdade:
Ao recusarem a velha disciplina de trabalho, ao afirmarem
a liberdade de circular à procura de melhor remuneração e de
melhores condições de moradia e, principalmente, rechaçar os
sentimento, e na presunção de origens e tradições comuns, a etnicidade é um terreno delicado, no
qual sempre há risco das interações resultarem em “ultrajes”. Para tensões entre imigrantes e negros
na cidade de São Paulo, cf. Andrews, 1998. Para uma análise da violência inter-étnica no interior de
São Paulo, ver Monsma.(2004 e 2005).
101
Ocasionalmente, encontrei a grafia Josaphaz. Utilizo Josaphat por ser mais recorrente.
102
Para outro exemplo da vivência do quilombo como espaço de liberdade transitório, cf. Barcellos
et al. 2004. Reis e Silva (1989), em importante trabalho para a historiografia sobre a escravidão, já
observavam que nem toda fuga implicava em ruptura.
71
castigos físicos, os ex-escravos buscaram alargar as alternativas de
sobrevivência (Fraga Filho, 2006 p. 256).
A produção autônoma, distante da vigilância senhorial, possibilitava que a
comunidade se tornasse um refúgio e um atrativo
103
para outros evadidos e para a
vivência de espaços de liberdade sem a ruptura definitiva com laços senhoriais
(Leite, 2002, Barcellos et al. 2004, Teixeira, 2006; Fernandes, Bustolin, Teixeira,
2006). As comunidades também se encontravam em trânsito, com seus circuitos de
circulação (Gomes, 2005).
Mapa 4 – Carta de São Francisco de Paula de 1931
(detalhe – nordeste do município, fronteira com Santa Catarina)
Aparecem, de forma detalhada, Josaphat e a Pedra Branca, onde está situada São Roque.
Fonte: Biblioteca Municipal de São Francisco de Paula.
As referências à fazenda Josaphat, um destes principais espaços de
mobilidade, trazem à tona o quão imbricada estava a atuação de cativos em busca
de liberdade com a de criminosos, desertores e outras ameaças
104
. A região aparece
como “sede de operações” para o abigeato, particularmente o grupo de Candinho
Baiano, acusado, em 1890, de roubar o gado dali e de devastar a fazenda de
103
Para outro exemplo, cf. Leite, 2002.
104
Fazendo um paralelo com o período colonial, percebe-se quão antiga era esta situação. Gil (2002)
aponta aquela como uma região de transporte de gado contrabandeado, onde os animais eram
invernados (p. 175) e também como esconderijo de criminosos (p. 148).
72
Ponciano Nunes
105
(família senhorial de cujos escravos descendem os moradores de
São Roque). No ano seguinte, atribuíram ao bando o roubo de reses de Bento
Soares de Oliveira
106
. Para Bastos
107
(1935 p. 80), por volta dessa data França Gross
residia na “Várzea das Contendas”, entre as fazendas dos Marques e dos Nunes.
Candinho era capataz da primeira. Conforme o mapa de São Francisco do ano de
1925, o arroio Contendas nascia no rio Tainhas e corria em direção a Josaphat:
Mapa 5 – Carta de São Francisco de Paula de 1925 (detalhe – leste do município)
O traço azul mais intenso é o Rio Tainhas, e Contendas ali nasce, a nordeste, rumo a Josaphat.
O ponto escuro no canto esquerdo inferior do mapa representa a localização da vila
Fonte: Biblioteca Municipal de São Francisco de Paula.
105
APERS – I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 655
(1890).
106
APERS – I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço2, processo 32 (1891).
Neste último caso não há menção direta ao nome de Candinho Baiano nem ao de seus cunhados
Gross; contudo os indiciados são diversas pessoas que aparecem ao seu lado em outros processos.
107
Manuel Fernandes Bastos foi intendente de Conceição do Arroio durante a República Velha.
Mesmo pertencendo ao Partido Republicano, fato que levou alguns autores a considerar sua análise
tendenciosa (Witt, 2004), é verdade que pertenceu a uma facção dissidente daquela organização. Foi
destituído da direção partidária e da intendência do município na década de 1910, acusado por
inimigos de ter publicamente desejado a morte de Borges de Medeiros (ver as cartas de Conceição
do Arroio no Arquivo Borges de Medeiros, IHGRGS). Por estes motivos, e também por “Noite de
Reis” ter sido escrito apenas em 1935, com distanciamento temporal da Guerra Civil, creio que
deve-se matizar a opinião de que Bastos foi parcial. Ele adota uma postura simpática a Candinho
Baiano, ao relativizar e justificar seus atos sociologicamente ou por suas experiências de vida, ou
ainda atribui-los a terceiros. Mesmo sendo uma narrativa romanceada e ficcional, encontra-se uma
surpreendente coincidência com as informações constantes dos processos criminais. É provável que
Bastos tenha escrito seu livro amparado em fontes primárias (Weimer, 2005). Além de sua atuação
política, Bastos era um intelectual: pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul e publicou um ótimo dicionário histórico e geográfico sobre seu município (Bastos, 1937).
73
Figura 5 - Panorama do vale do rio do Pinto, com estrada.
A elevação central, um pouco à direita, é o Josaphat. Foto do autor.
Tanto a residência de ambos naquele local estratégico, quanto o papel de
capataz na fazenda dos Marques – Candinho ocupava, dez anos após, o mesmo
posto de Calisto – devem ter facilitado muito as atividades do grupo (muito embora
Bastos sustente que naquele momento Candinho Baiano ainda não tivesse nenhum
envolvimento com atividades ilícitas
108
). A região continuava sofrendo ataques de
ladrões de gado, sempre charqueado em Três Forquilhas. Caso Candinho fosse
assassinado, alguém poderia utilizar o argumento convincente empregado por
Damásio: foram os ladrões de gado.
108
O que é plausível, considerando que até o início da década de 1890, Candinho não havia
aparecido em nenhum processo criminal na posição de réu, apenas de testemunha.
74
Figura 6 – Túmulo de Candinho Baiano
Localiza-se em cemitério na RST-453 (Rota do Sol), às margens do rio Três Forquilhas.
Segundo Bastos (1935) e a tradição oral da região, Candinho Baiano foi morto à traição ao abrir a
porta de sua casa para recepcionar o Terno de Reis. Foto do autor.
Não há como inferir uma relação direta entre esta atividade e o quilombo de
São Roque, além, obviamente, de ambos se aproveitarem de vantagens oferecidas
pela geografia local. Nos processos mencionados, porém, há a participação de
descendentes de africanos no abigeato: no primeiro, “Saturnino de tal, conhecido
como crioulo Saturno, ex-escravo de Dona Henriqueta Soares do Amaral”, foi o
principal acusado, junto com, dentre outros, “Francisco Nunes, mulato criado na
casa de Victorino Nunes”
109
. A atuação destes indivíduos preocupou sobremaneira
os governantes da Província, que expressaram em um corpo documental específico
suas inquietações relativas ao gozo da liberdade por aqueles que compunham a
última geração de escravos.
109
Atuando, portanto, contra um familiar daquele que “o criou”. A “criação” será objeto de
discussão posterior.cf. capítulo 2.
75
Liberdade?
Tomando alguns relatórios de presidentes provinciais é possível ter um
contato com as expectativas e medos das elites políticas em relação à liberdade dos
cativos. Apesar de não ser possível estabelecer uma equivalência direta entre as
perspectivas estatais e da classe senhorial
110
, parto do pressuposto de que, neste
caso, as preocupações eram correlatas e coincidiam em muitos aspectos,
especialmente na manutenção da ordem pública e dos ex-escravos sob controle. De
acordo com Fraga Filho, no Recôncavo Baiano,
Na perspectiva dos ex-senhores e de seus representantes, era
preciso promover a conversão dos ex-escravos em livres sem que isso
causasse abalos às hierarquias sociais e raciais montadas ao longo
de mais de três séculos de escravidão (Fraga Filho, 2006 p. 348).
Quanto aos significados da liberdade para aqueles que dela usufruíam, nos
capítulos seguintes poder-se-á ter uma idéia mais rica a partir de uma análise de
algumas de suas experiências e práticas. Por ora, me contentarei com o olhar dos
governantes, através de dois relatórios do Presidente da Província Rodrigo de
Azambuja Vilanova. Eles guardam as vantagens de expressar com clareza opiniões
não explícitas em outras fontes, e de serem muito próximos cronologicamente da
Abolição da escravidão, antes e após. Um deles é datado de outubro de 1887, e
outro é de agosto de 1888
111
.
Vilanova nascera em Taquari, em 1844. Estudou medicina no Rio de
Janeiro, e ao retornar à cidade natal, passou a clinicar. Filiou-se ao partido
110
Sem intenção de me prender a um conceito cuja discussão não é central a este trabalho, explicito
a noção de elites políticas tal como apresentada por Bobbio: se elites, em geral, são segmentos
sociais detentores do poder em detrimento dos demais, majoritários, o poder que detêm pode ser
dividido, dentre outros, entre poder político, poder econômico, poder ideológico. As elites
detentoras do poder político caracterizam-se pela capacidade de “tomar e impor decisões válidas
para todos os membros do grupo, mesmo que tenha que recorrer à força, em última instância”
(Bobbio, 1997 p. 385-391). Para Carvalho (2003), não é válido, para o período imperial, equiparar
elite política e elite econômica.
111
AHRS, Fundo documentação dos governantes, códice A-720: “Relatório apresentado ao Ilm. e
Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça 3
o
vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de
Azembuja Vilanova 2
o
vice-presidente ao passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do
Rio Grande do Sul Em 27 de outubro de 1887.” e “Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Rodrigo de
Azambuja Vilanova passou a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul a S. Ex.
o Snr. Barão de Santa Tecla, 1
o
vice-presidente no dia 9 de agosto de 1888.” Doravante estes
documentos serão citados, meramente, como “Relatório de 1887” e “Relatório de 1888”.
76
conservador, pelo qual foi eleito por diversas ocasiões à Assembléia Provincial.
Apesar de seu partido político, mantinha boas relações com Gaspar Silveira
Martins que, segundo Porto Alegre, foi responsável por sua indicação à presidência
da Província (Porto Alegre, 1976 p. 112-113). Sua filiação partidária ajuda na
compreensão de seu discurso reticente ao fim da escravidão, enfatizando os
“riscos” e “perigos” da liberdade adquirida. Afinal, o Partido Conservador era o
único que, no Rio Grande do Sul, não mantinha nenhum grau de engajamento na
campanha abolicionista. Pelo contrário, era fenômeno relativamente comum (ver
capítulo 3) conservadores engrossarem as fileiras republicanas, desgostosos com os
partidos monárquicos e a progressiva aprovação de leis abolicionistas sob o regime
de Pedro II.
Não foi este, porém, o destino tomado por Vilanova. A aproximação com os
liberais de Silveira Martins pode ter facilitado sua ascensão à presidência
provincial, contudo não significou um abandono de suas convicções escravocratas,
convenientemente omitidas, mas nem por isso abjuradas. Posteriormente, durante o
conturbado período inicial do novo regime, o ex-presidente provincial se manteve
junto aos gasparistas, defrontando-se com o Partido Republicano Rio-Grandense
durante o período em que esteve à frente do Banco Emissor.
De certa forma, pode-se dizer que Rodrigo Vilanova desencadeou a queda
do General Júlio Frota, segundo governante republicano rio-grandense, sucessor do
Visconde de Pelotas (militar ligado ao partido liberal que foi o primeiro governante
republicano no Rio Grande do Sul após a instauração do novo regime). Embora
Frota gozasse de maior confiança e contasse com maior apoio do PRR, seu
governo teve fim com uma crise desencadeada pela imposição pelo Marechal
Deodoro do Banco Emissor, instituição à qual se opunham os membros do PRR.
Além de divergências doutrinárias, a presença de Vilanova à frente do banco, um
nome facilmente associado ao antigo regime e visto como inimigo pelos
republicanos, era um fator que acentuava ainda mais a intolerância e a tensão
(Franco, 1967 p. 72).
As posturas conservadoras de Vilanova, como sua afeição ao sistema
escravista ou, aparentemente, ao antigo regime, não o tornavam menos
representativo da elite local. Tendo estudado no Rio de Janeiro, nele estavam
arraigados os interesses agrários da região central do estado, quer por sua
formação, quer por seu retorno ao local de origem.
77
O Presidente da Província entendia que a última geração de escravos não
estava preparada para o gozo e exercício da liberdade (Relatório de 1887, p. 71);
pelo contrário, acreditava que
A aquisição imediata e repentina de um bem cujo gozo se
lhes afigura isento de deveres ou provações, será para eles uma
embriaquez que os levará a um estado de degradação ao qual só
tarde e dificilmente poderão arrancar-se ou ser
arrancados.[Relatório de 1887, p. 69-70]
Considerando que a degradação, conseqüência de uma liberdade repentina,
levaria à miséria, e que a escravidão era preferível a esta, considerava a libertação
dos escravos uma “desumanidade” [Relatório de 1887, p. 69], afinal, os
transformaria em uma “pobre classe, algoz de si mesma, que de outra sorte terá
ainda de maldizer do benefício da liberdade, que lhe outorgaram sem os requisitos
que a deviam acompanhar” [Relatório de 1887, p. 72]. A liberdade, desta forma,
não foi vista como uma conquista, e sim como uma concessão outorgada por
terceiros; concessão, aliás, indesejável e de efeitos funestos.
O discurso acintosamente escravista impressiona, mas não surpreende.
Vilanova compartilhava a opinião de tantas outras elites: quer no interior do Brasil,
quer em outros países, os dominantes se arrogavam a prerrogativa de decidir quem
poderia e como deveria exercer a liberdade. Todavia, estavam em jogo os distintos
significados atribuídos a essa mesma liberdade pelos atores sociais envolvidos. Os
ex-escravos lutavam pela realização de suas aspirações, muitas vezes expressas em
um “projeto camponês”. Os significados que davam para a liberdade certamente
não coincidiam com aqueles esperados pelos seus antigos senhores. Essa não-
equivalência geralmente foi interpretada como vagabundagem, e propensão ao ócio
e aos vícios
112
.
O Presidente da Província admitia que o modo de ser livre que julgava
adequado aos antigos escravos não era necessariamente por eles compartilhado:
112
Para exemplos brasileiros, cf. Chalhoub (1990), Rios (1990), Mattos (1998), Rios (2005a e 2005b),
dentre outros. Scott analisa antagonismos na redefinição das relações sociais em Cuba (1991) e na
Louisiania (2005). Holt (2005) analisa as conseqüências políticas e sociais da emancipação dos
escravos na Jamaica, e Foner (1988) faz o mesmo em relação ao “velho sul” dos Estados Unidos,
especialmente a Carolina do Sul.
78
(...) indivíduos que pensam que ser livre é poder viver sem o
trabalho e sem obrigações, e para os quais a lei é um fato
desconhecido (...) [Relatório de 1888, p. 5]
Os que são lidos na história da Abolição do cativeiro nos
outros países sabem que o liberto, lançado da escravidão na vida de
completa liberdade, não trabalha, acreditando que ser forro é não
ter obrigações nem deveres, entregando-se de corpo e alma a uma
perversora ociosidade, que os leva afinal a engrossarem o número
dos inquilinos das cadeias, hospitais e asilos de mendicidade.
[Relatório de 1888, p. 69. Grifos meus.]
Mesmo reconhecendo que os antigos escravos atribuíam significados outros
à liberdade, os descrevia em um tom profundamente pejorativo. A constatação da
diferença não significou uma relativização de seu próprio ponto de vista, mas a
reafirmação do mesmo. E, afinal, por qual razão os descendentes de africanos
foram considerados incapazes do exercício da liberdade? Cooper, Holt e Scott
(2005) trabalham com a idéia da existência de uma ideologia de “peculiaridade do
africano”. Ela consistia na atribuição de características pejorativas aos africanos (ou
descendentes), assim como uma concepção de mundo universalista, no qual o
parâmetro de universalidade era, evidentemente, europeu, e no qual não havia
lugar para outras formas de viver e pensar, a não ser patologizando-as ou
vitimizando-as.
Cooper (2005 p. 209) destaca, porém, que é a lógica (ou a ideologia) do
trabalho pautado pela pontualidade, disciplina e obediência que é uma
particularidade da modernidade européia; no entanto, a mesma foi tomada como
padrão universal e acultural, e a não-correspondência a elas, como deplorável
característica dos africanos. A atribuição de “peculiaridades” a grupos humanos era
um poderoso instrumento de dominação, legitimador da escravidão, da tutela ou
do colonialismo, flexível em seus objetivos e em seus argumentos. Cooper
demonstra que em um intervalo de tempo de poucas décadas, os europeus
deixaram de promover e participar do tráfico de escravos para em seguida utilizar a
participação dos africanos neste “bárbaro” circuito de comércio, recém-extinto no
Ocidente, como motivo para justificar o colonialismo como uma missão
civilizadora (Cooper, 2005).
79
Vilanova também postulava a existência de “peculiaridades”. A
incapacidade dos ex-escravos para o exercício da liberdade lhes era intrínseca, e
isso se dava por vontade divina. O texto, contudo, parece demonstrar que a
verdadeira incapacidade era do Presidente da Província de pensar na existência de
outras formas de viver e de agir:
A liberdade não tem a virtude de dar-lhe qualidades que
Deus negou-lhe ou que a sua degradação nativa não lhe
permitiu adquirir: deixar, portanto, o liberto entregue a seu livre
arbítrio, às perigosas seduções de uma liberdade para que não
estava preparado e aos estímulos de suas paixões, tanto mais
desordenadas quanto até a pouco estiveram abafadas por força de
sua condição. [Relatório de 1888, p. 69-72; grifos meus]
Durante muito tempo foram fortíssimas as justificativas religiosas para a
escravidão
113
. O final do século XIX já era um período de grande difusão das teorias
racistas e cientificistas (Schwarcz, 1993; Andrews, no prelo), o que não significa
que sua recepção tenha sido imediata. Não consigo perceber tão claramente nestes
relatórios a vinculação da “raça” identificada por Silveira (2005). Apesar de seu
caráter altamente discriminatório, as hierarquias não estão explicadas por meio da
biologização da diferença; sequer a palavra “raça” é utilizada. Os termos que
encontrei que mais se aproximam, ou tangenciam este conceito são “instintos” e
“paixões”, que parecem referir-se a atos involuntários, neles inatos. Mesmo assim,
essas características intrínsecas parecem não ter origem racial, ao menos como uma
diferença biológica hierarquizada e naturalizada. Apesar de sua formação médica,
Vilanova tende mais ao teológico.
Isso não significa que, na fundamentação da escravidão em Portugal no
século XVII, inexistissem distinções e estigmas fundamentados na ascendência e na
aparência; Mattos as considera “proto-raciais” (Mattos, 2001 p. 148-149). Apesar
113
Marquese (2004), ao analisar textos relativos sobre o controle dos escravos entre os séculos XVII
e XIX, constata a existência de uma “teoria cristã do governo dos escravos”, segundo a qual a
escravidão se legitimaria pela catequese procedida nos africanos, que instituiria deveres recíprocos
entre senhores e escravos. Típica do século XVII, estas idéias manteriam seu vigor nos séculos
seguintes. No século XIX, ao ideal catequizador cristão se sobrepôs a justificativa do tráfico pelo
“resgate” dos africanos “de seus primitivos donos, e pela suposta inferioridade nata da raça
africana” (Marquese, 2004 p. 272). Sobre a evangelização como justificativa da escravidão, ver
Alencastro (2000, capítulo 5), e para uma crítica cf. Mattos (2001), que afirma que, embora
amparada no ideal catequizador, a escravidão não constituiu um “corpo estranho” no império
colonial português: já existia em Portugal e achava-se legitimada em uma sociedade hierárquica,
corporativa e afeita a categorias classificatórias definidas pela noção de “pureza de sangue”.
80
dos primeiros esboços, associados ao contato com outros povos decorrente da
expansão ultramarina, a intensa racialização do Ocidente só se concretizou no
século XIX, com a ressignificação da noção de “raça”, até então empregada no
sentido de linhagens, muitas vezes definidas em termos bíblicos (“a raça de
Abraão”), para assumir o sentido de diferenças físicas inerentes aos indivíduos
(Banton, 1977, em especial capítulo II).
Mesmo no século de afloramento do cientificismo e do racismo científico,
Vilanova, ao manifestar suas preocupações em relação ao destino dos antigos
cativos, o fazia em termos bíblicos assemelhados às justificativas seiscentistas
114
, e
não pelas teorias que lhe eram contemporâneas: por desígnio divino, africanos e
descendentes careciam de “qualidades” necessárias ao exercício da liberdade, e que
nem a própria liberdade seria capaz de lhes conferir. Estavam condenados à
“degradação nativa”
115
. Seyferth (1995 p. 185) aponta que na década de 1890 a
explicação religiosa de hierarquias raciais conservava seu apelo, combinada com
idéias cientificistas: o quadro “Redenção de Cam” representava a ideologia do
branqueamento através de três gerações, nas quais a “mácula” do filho
amaldiçoado de Noé, expressa pela “cor” da pele, era “redimida” pelo fenótipo
ariano do neto de uma negra que havia sido escrava.
114
Em dado momento do Relatório de 1888 [p. 71], Vilanova refere-se ipsis literis a “direitos e
deveres recíprocos dos ex-senhores e dos escravos”, justamente a característica principal da “teoria
cristã do governo dos escravos” de Marquese (2004).
115
À parte o fundo religioso, note-se as similaridades entre essa percepção e as idéias de Florestan
Fernandes discutidas no capítulo 1.
81
Figura 7 – A redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895)
116
:
O sucesso deste quadro, representando o “branqueamento” populacional no intervalo de três
gerações, evidencia não somente preocupações e expectativas de intelectuais brasileiros no fim do
século XIX, mas também a continuidade do apelo de explicações religiosas, combinadas com as
científicas, na explicação da diferença racial.
Não há nenhuma menção a respeito, porém a idéia de degradação parece
remeter ao mesmo episódio bíblico. Cam, condenado a servir a seus irmãos Jafé e
Sem (Bíblia Sagrada, 1993 Gn 9.20-27), tinha esta maldição extendida a sua
descendência. Mignolo assinala que a cristandade formulou uma correspondência
entre estes personagens bíblicos e uma divisão tripartite do mundo: Jafé/Europa,
Sem/Ásia, Cam/África (Mignolo, 2003 p. 50-56). As peculiaridades destes últimos,
portanto, achavam-se registradas nas Sagradas Escrituras, e foi principalmente este
tipo de especificidade acionada por Vilanova.
Se havia “instintos” e “paixões” intrínsecos aos africanos e seus
descendentes, a única maneira de mantê-los sob controle, conforme o ponto de
vista do Presidente da Província, era através do “temor do castigo corporal”
[Relatório de 1888 p. 5]. Ou seja, aquilo de que a classe senhorial não podia mais
legalmente dispor e que se achava menos aceito socialmente. Há um tom de
preocupação, nos relatórios, em relação à capacidade de manter o controle sobre os
ex-escravos sem os instrumentos de que antes dispunham. Apesar da evidente
116
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/images/ch%20on-line/especial/genarq/genarq5a.jpg
<acessado em 4/1/2007>
82
nostalgia em relação ao tempo anterior à Abolição, aí não se esgotavam as
concepções de Vilanova. Ele também tinha suas prescrições para a novas formas de
dominação ou de atualização das anteriores.
O Presidente Provincial interpretava como ingratidão a não-equivalência
entre suas expectativas em relação ao pós-abolição e as ações dos ex-escravos (os
mais temidos eram vagabundagem e abigeato – temas que receberão atenção
específica no capítulo seguinte), a exemplo do que aconteceu em outras regiões ou
países no pós-emancipação. Se parte significativa do poder moral dos senhores
consistia na obtenção da gratidão dos subalternos, a inviolabilidade da vontade
senhorial esvaziou-se a partir de 1871, diante da crescente intervenção estatal em
relações até então consideradas de foro particular (Chalhoub, 1990 e 2003; Mattos,
1998).
Durante a década de 1880 intensificou-se a concessão de cartas de alforria,
como uma estratégia senhorial para adiantar-se ao Estado e assim manter tais
dividendos de gratidão nas mãos dos senhores (Mattos, 1998, cap. 11). Se o
objetivo desta política era, por meio das libertações, projetar relações de
dependência e de submissão para depois do cativeiro, ela cruzava-se com os
interesses dos ex-escravos em manterem-se ou não junto aos antigos proprietários
(Moreira, 2003 p. 199). Fraga Filho (2006 p. 118) argumentou que as tentativas de
prender os ex-escravos por meio de “dívidas de gratidão” eram crescentemente mal-
sucedidas nos anos finais do escravismo. Nos casos em que não houve permanência
junto aos antigos proprietários, prevaleceu o discurso da ingratidão: esvaziados do
poder de produção de “gratidão”, restou aos senhores reclamar dos “ingratos”
117
.
Vilanova recomendava, é claro, que estes permanecessem “nos municípios
de sua residência, onde, sendo já conhecidos, encontrarão mais pronta
colocação”
118
, assim como na casa de “seus antigos benfeitores”, afinal, segundo
ele “no Rio Grande do Sul a escravidão foi sempre uma instituição familiar,
participando o escravo de todas as vantagens dos senhores, aos quais devem estar
hoje presos pelos laços da gratidão.” O interessante é que mesmo essa prescrição foi
entendida como concessão, afinal, seriam os senhores que generosamente
permitiriam que tal acontecesse e os ofertariam a possibilidade de com eles
117
Na Bahia o discurso da “ingratidão” foi bastante vigoroso. Cf. Fraga Filho, 2006.
118
Interessante notar o paralelo entre a tentativa de controle por meio da fixação geográfica em um
lugar onde já eram conhecidos, com estratégias similares existentes no período colonial, constatadas
por Lara, (1988 p. 235; 245-246)
83
viverem, já que se consideravam indispensáveis aos ex-cativos: “Pelo trabalho em si
mesmo ou por meio de acordos livremente celebrados poderão os libertos ficar em
casa de seus antigos benfeitores, de cuja inteligência e experiência não podem
prescindir” [Relatório de 1888 p. 69-72]
119
.
Apesar do seu enorme etnocentrismo, e ao contrário do pai de Brás Cubas,
de Machado de Assis, analisado por Chalhoub (2003 p. 101), Vilanova conseguia
enxergar um pouco além de seu nariz. O Presidente da Província, ao menos,
constatou as limitações de suas expectativas em relação aos antigos escravos, já que
lhe haviam ficado claras as “constantes infidelidades” feitas por aqueles que
abandonavam “precipitadamente a casa de seus benfeitores tão depressa estiveram
de posse da carta de alforria” (Relatório de 1888 p. 71)
120
. A atuação autônoma dos
dependentes foi facilmente interpretada como ato de traição, tal como no caso do
“Dom Casmurro” interpretado por Chalhoub (2003 p. 83-91). E, assim sendo,
traçou um plano tutelar alternativo.
Vilanova iniciava a exposição de suas propostas de ação tutelar no Rio
Grande do Sul indagando-se “Onde devem trabalhar os libertos?”. Emprestava um
caráter temporário e urgente às providências propostas, “enquanto medidas
legislativas não regularem este assunto de vital importância”, já que estabelecer
intervenções desta natureza não era de sua alçada. Embora sucintas – ocupando
apenas duas páginas e meia, sendo difícil mesmo utilizar a palavra “projeto” para
caracterizá-las – dirigia-se a questões centrais. Propôs a criação de “colônias com
regime especial” onde lhes fosse dado trabalho [Relatório de 1888 p. 70]. Vilanova,
todavia, não trouxe maiores esclarecimentos sobre seu funcionamento, o regime de
trabalho, quem ficaria com os dividendos do que ali fosse produzido.
Aparentemente, foi apenas uma idéia esboçada no relatório, sem nunca assumir a
forma mais elaborada e muito menos ter sido posta em prática.
Ele ainda dispunha sobre a tutela dos ingênuos e se preocupava com a
transformação do escravo em proletário livre, disciplinado em termos da ética do
119
É curioso notar que no mesmo relatório, o Presidente citava uma circular do Ministro da
Agricultura, datada de 13 de maio, que estabelecia que a partir da Abolição cessavam as obrigações
de serviços contraídas por ex-escravos – tais como as liberdades condicionadas à prestação de
serviços ou as disposições sobre ingênuos livres filhos de mãe escrava. Se não era mais possível
alegar a força da lei para defender sua permanência junto aos antigos senhores, o Presidente da
Província apelava para a retórica da gratidão e do caráter “familiar” do escravismo.
120
Para o abandono, por parte dos contratados, das casas dos antigos senhores, ver Moreira, 1993 p.
187-188
84
trabalho ocidental, ou ainda em sua transformação em proprietário regrado por
uma ética de acumulação capitalista. Uma contradição vem à tona quando se pensa
que não se pode ser simultaneamente proletarizado e erigido à condição de
proprietário. Vilanova sugeria aos donos de grandes áreas de terra inculta que as
parcelassem e cedessem através de venda, arrendamento ou doação “sob certas
condições” a antigos cativos [Relatório de 1888, p. 70]. Se esse projeto fazia sentido
para os governantes, colidia com planos de particulares, que não desejavam a
imobilização desta parcela da mão-de-obra
121
. Essa contradição não aflora no
relatório de Vilanova porque tratou-se de projeto nunca colocado em prática
institucionalmente, mas ali estava implícita.
O relatório nada diz a respeito dos compromissos dos “benfeitores” em
relação aos seus antigos escravos. Além da “gratidão”, o motivo da defesa de sua
continuidade junto aos ex-senhores não era a suposta necessidade de aprender o
gozo da liberdade? Essa omissão parece contrária à idéia de obrigações recíprocas;
talvez isso se deva ao contraponto entre a justificativa de uma suposta “preparação”
para a vida em liberdade e, na prática, a utilização de sua mão-de-obra. Ou, talvez,
este “preparo” se resumisse ao “aprendizado” de hábitos de trabalho desejáveis
122
.
As vidas dos ex-escravos em São Francisco de Paula eram diversas e plurais.
Como será discutido no capítulo seguinte, houve os que efetivamente
corresponderam à descrição que ele faz: seguiram seus próprios rumos, escolheram
outros caminhos e deixaram o mundo senhorial para trás. Outros tantos, porém,
efetivamente permaneceram próximos aos antigos proprietários. Talvez seu medo e
etnocentrismo o tenha levado a hiper-dimensionar os “ingratos” e a subestimar os
“gratos”. E seria um problema de gratidão? O discurso senhorial afirmava que sim.
É evidente que os interessados tinham motivos próprios para resolver permanecer
ou partir, e os sentimentos em relação aos antigos senhores realmente não eram os
fatores mais importantes a pautar suas decisões. Como todos sabem, a vida escrava
121
Em outras sociedades em processo de emancipação ou pós-emancipação, questões similares se
fizeram presentes. Para as contradições entre ex-escravos como mão-de-obra e sua transformação
em proprietários, e entre Estado e particulares, bem como os problemas do liberalismo no caso
jamaicano, cf Holt, 2005. Para o caso cubano, e o sistema de patronato, isto é, de tutela particular
sobre os libertos, assim como seu fracasso cf. Scott, 1991.
122
Colocar as coisas em termos de “aprendizado” ignorava o fato de que não era um problema de
“saber”. Os ex-cativos trabalharam duramente durante o escravismo. Sendo assim, havia outras
questões, que não o “saber” que impediam que trabalhassem conforme esperado pelos antigos
senhores.
85
não se reduzia nem à negociação, nem ao conflito (Reis e Silva, 1989)
123
. A vida
dos seus descendentes livres também não. Certamente ninguém agiu movido apenas
pela gratidão, ou da falta dela – isso seria assumir o discurso de Vilanova – mas eu
não ousaria afirmar que não houve gratidão: afinal, houve mesmo quem ficou grato
ao Imperador e à Princesa, e não foram poucos
124
. Como Maria Caetana, Bibiana,
Elias, Saturnino, André e muitos outros irão demonstrar, não faz sentido acreditar
que os “ingratos” seriam “resistentes” e os “gratos” seriam acomodados: suas vidas
eram muito mais complexas e interessantes. Então melhor conhecê-las, em lugar de
divagar sobre dicotomias. Que venha o segundo capítulo!
123
Já é clássico, na historiografia brasileira, o debate sobre a oposição entre “negociação” e
“conflito”. Em fins da década de 1980, foi intensa a polêmica entre historiadores que, a exemplo de
Gorender (1990), apresentaram o enfrentamento direto ao senhor, anti-sistêmico, como única forma
válida de resistência, e aqueles que, como os mencionados, admitiram a existência de uma dialética
entre conflito e negociação por melhores condições de vida. Creio não haver necessidade de retomar
tal debate, longamente discutido pela historiografia desde então. No entanto, sublinho que parte da
bibliografia sobre a escravidão e o pós-abolição no Rio Grande do Sul compartilham alguns
parâmetros da abordagem de Gorender. É o caso, por exemplo, de Maestri Filho (1984, 1993, 2001,
2002a), Lima (1997), Assumpção (1985) e Gutierrez (1993 e 1999). Apesar da importante
contribuição desta bibliografia e de seu comprometimento em evidenciar a importância do negro na
formação social sulina, denunciando o silenciamento quanto ao seu legado, é forçoso admitir que
nenhum dos autores citados centrou seu foco no processo de dissolução do sistema escravista e
tampouco no pós-abolição. Em um texto de nomeDa escravidão ao trabalho livre na fazenda
pastoril sulina”, Maestri (2002b), ao contrário do que o nome do artigo sugere, faz um paralelo entre
trabalho cativo e livre durante a vigência do escravismo, em lugar de propor uma interpretação
diacrônica da transformação de ambos regimes de trabalho após 1888.
Importantes exceções são Amaro (2002), que no entanto o faz destacando os “fatalismos históricos”
que, a partir da escravidão, marcaram as trajetórias em liberdade dos ex-escravos, e Dalla Vecchia
(2001), cuja contribuição será melhor discutida em momento oportuno.
124
Chalhoub (1990) identificou o apelo popular da monarquia nos anos finais do Império e iniciais
de uma República excludente. cf. também Daibert Junior (2004) e Andrews (no prelo, capítulo 3).
Moritz (1939 p. 19) apresenta um testemunho contemporâneo.Gomes (2005a p. 12-27), por seu
turno, mesmo admitindo que a maior parte da população negra do Rio de Janeiro era favorável ao
regime monárquico, sublinha que tal adesão não deve ser creditada meramente a “dádivas”,
“manipulação” e “gratidão”, afinal essa percepção da memória histórica, enfatizada
contemporâneamente e pela historiografia tendia a enquadrar os ex-escravos como mera massa de
manobra de demagogos, olvidando-se, porém, do “emaranhado de lutas, projetos e expectativas”.
86
2 – Manual prático da vida em liberdade
Mas por mais reduzido que seja, o campo dos possíveis
sempre existe e não devemos imaginá-lo como uma zona de
indeterminação, mas ao contrário, como uma região fortemente
estruturada, que depende da História inteira e que envolve suas
próprias contradições. É superando o dado em direção ao campo
dos possíveis e realizando uma possibilidade entre todas que o
indivíduo se objetiva e contribui para fazer a História: seu projeto
toma então uma realidade que o agente talvez ignore e que, pelos
conflitos que ela manifesta e que engendra, influencia o curso dos
acontecimentos. (Sartre, 1989 p. 79-80)
Uma vez apresentado, em linhas gerais, o dinâmico cenário de São
Francisco de Paula às vésperas da Abolição, com suas rotas, caminhos, silêncios,
emboscadas e trânsitos, parte-se aqui para uma tentativa de compreender as
experiências sociais do pós-abolição, e para isto nada melhor do que um “Manual
prático da vida em liberdade”. Prático, não no sentido de instruir a ação dos ex-
escravos (até porque nenhum deles o lerá) mas em sentido oposto: por partir de
suas práticas, de suas vidas, de suas existências. Uma questão metodológica que se
coloca é a dificuldade de saber se determinado indivíduo passou ou não pela
experiência do cativeiro. Pensando estritamente nos remidos pela lei de 13 de maio
87
de 1888, percebe-se que eram poucos os ainda cativos ao tempo da lei, conforme as
informações sobre população escrava e livre apresentadas no capítulo anterior.
Dentro do possível, procura-se identificar os antigos escravos dentre tantos
que apresentam, nos processos-criminais, indícios mais ou menos sólidos de tê-lo
sido. O êxito deste intuito é variável; em muitos casos, trata-se de informação
inacessível. Ainda assim, traçar tal distinção de forma rígida seria falsear o fato de
que as vidas de escravos, ex-escravos, foragidos, homens livres pobres, de “cor”
explicitada ou omitida, estavam profundamente imbricadas. Utilizar o corpo
documental disponível, no qual tais distinções nem sempre estão claras, não é
apenas, então, uma forma de abstrair limitações documentais a fim de viabilizar a
pesquisa histórica, mas sobretudo uma abordagem mais realista de uma sociedade
efetivamente fluida.
Entende-se aqui, portanto, que a relevância da Lei Áurea não esteve no
número de libertados, mas por formalizar o fim de uma instituição que até então,
foi definidora de relações sociais no Brasil. Preocupo-me, portanto, mais com as
experiências sociais pós-emancipatórias do que com a identificação de vínculos
genéticos com o cativeiro. O escravismo foi uma instituição relevante não apenas
para escravos ou senhores, mas para todos que com eles se relacionaram, e essas
relações mais amplas persistiram no pós-emancipação. Foram considerados os
casos de libertos antes da Abolição, quando suficientemente eloqüentes. O 13 de
maio foi aqui tomado como um ponto de referência, não como uma barreira,
especialmente nos casos em que há similaridades entre as experiências de ex-
escravos no período anterior e posterior
125
.
Onde e com quem morar; como se relacionar com seu ex-senhor
Imagino Maria Caetana cuidando da roça e das criações – galinhas – que
tinha nos fundos da casinha, próxima aos pessegueiros, onde morava com o
125
Fraga Filho faz a importante observação de que uma ruptura tão radical representada pelo 13 de
maio correspondeu, antes de mais nada, a uma construção senhorial. Segundo ele, a “idéia de
ruptura servia como importante argumento para mostrar quanto a classe senhorial havia sido
abandonada e injustiçada pela decisão do governo imperial de abolir a escravidão” (2006 p. 139).
88
rapazinho Veríssimo naquele verão de 1890. Historiadores imaginam? Creio que
não devem imaginar disparates. Se a imaginação for controlada, coerente e
verossímil, não há problema em imaginar: pobre do conhecimento histórico sem a
imaginação. E não há nada mais verossímil do que a horta e os animais que
enxergo. Quanto a Maria Caetana, Veríssimo e à casinha, todos podem respirar
com alívio: há evidências documentais de que os três “realmente existiram”
126
. Se
assim não fosse, quem alimentaria as galinhas? Mas no dia 22 de fevereiro de 1890,
as aves – que insisto em enxergar – amanheceram com fome. Nem sua dona, nem
seu dono, estavam vivos para delas cuidar.
Tão prejudicado quanto as galinhas deve ter se sentido o coronel Olivério da
Silva Esteves. Ela morava nos fundos de suas terras e, de forma concomitante com
o trabalho na roça, devia prestar serviços para fora (no último depoimento, um dos
acusados afirmou que ali fora para buscar roupas suas que ali se achavam
127
).
Provavelmente fazia o mesmo para a casa e a fazenda dos Esteves: era um arranjo
relativamente comum
128
. Houve grande empenho do coronel e sua família para que
as investigações se procedessem de forma rápida e eficiente. Era inadmissível
semelhante ato de barbaridade no interior de sua propriedade, sobretudo contra
alguém que era tida como “trabalhadora morigerada”
129
e que, além disso, deixava-
lhe a par dos fatos do mundo do crime de São Francisco de Paula. Conforme
Antônio Bento da Silva confessou à polícia no dia seguinte ao crime, ele e José
Ignácio dos Santos – José Baiano – esfacelaram o crânio de Maria Caetana, a
degolaram e produziram outros ferimentos. Quanto ao infante que residia com a
desafortunada delatora, foi morto por ter testemunhado o crime, vítima das
mesmas violências que Maria Caetana sofreu e, além de tudo, foi enforcado
130
.
Não se sabe se Maria Caetana havia sido escrava do coronel. Sustento a tese
que sim, ao menos residia com um ingênuo nascido em 1/10/1876 naquela
fazenda. Veríssimo tinha a “cor” preta e era filho natural de Eufrásia, escrava de
126
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890).
127
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890),
interrogatório a Antônio Bento da Silva f.8. Aqui, novamente pode-se pensar que, mesmo que não
seja verdadeiro, o réu somente acionaria em seu favor um argumento que fizesse sentido
socialmente.
128
No Recôncavo Baiano, por exemplo, foram muitos os casos de ex-escravos que permaneceram
vivendo nas mesmas propriedades muitos anos após a abolição (Fraga Filho, 2006 p. 245). Para um
exemplo no Rio Grande do Sul, cf. Barcellos et al. 2004.
129
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890),
depoimento de Olivério Esteves de Oliveira e Silva, f. 28.
130
A fonte não informa como foi possível o enforcamento e a degola.
89
Olivério da Silva Esteves (então ainda Capitão). Seus padrinhos eram Bento Soares
de Oliveira e Zulmira Soares de Oliveira Esteves (provavelmente, genro e filha do
proprietário da cativa)
131
. Os autos do processo não trazem referência alguma à mãe
do assassinado. É difícil saber por qual motivo: se partira, se falecera ou fora
mandada para alguma outra propriedade dos Esteves. O fato é que seu filho estava
sendo criado por Maria Caetana, certamente uma pessoa de sua confiança – uma
irmã mais velha do próprio Veríssimo ou de Eufrásia ou mesmo uma comadre
desta, embora o vínculo não tenha se explicitado no processo
132
. Se não se tratava
de um arranjo familiar no sentido ocidental do termo, mas certamente funcionava
como uma pequena família matrifocal
133
. Apesar das prováveis relações de
dependência e obrigações diante dos Esteves, em troca do acesso à terra e à
possibilidade de ter sua casa, tinham um teto próprio e a possibilidade de produzir
alimentos – o que não era pouco.
Foi Horácio Esteves de Oliveira e Silva – filho do coronel Olivério – quem
encontrou os corpos; em seu depoimento de 22/2/1890, justificava a ida à casa das
vítimas por pretender buscar cinzas de pinheiro; no início de abril do mesmo ano,
contudo, acrescentou que para lá se dirigiu também para abrigar-se da chuva e
também porque pretendia mandar Veríssimo buscar as cinzas para ele enquanto a
testemunha apanharia pêssegos. Irmão de sua madrinha e filho do antigo senhor da
sua mãe, Horácio sentiu-se à vontade para dar ordens ao rapaz e para entrar na
casa “sem dar sinal algum em vista das relações de amizade que tinha com aqueles
que ali moravam”
134
. Certamente esta intimidade não era bilateral: apesar das
“relações de amizade”, é duvidoso que algum daqueles dois pudesse entrar na casa
dos Esteves sem anúncio e permissão.
131
ACDCS, Livro 3 de batismos de São Francisco de Paula, f. 40.
132
No auto de corpo de delito de Veríssimo há uma frase de redação dúbia, que dá margem quer à
compreensão de que Maria Caetana, quer o analisado fossem de “cor” preta: Veríssimo “achava-se
deitado de bruço sobre a janela da casa da assassinada Maria Caetana cujo cadáver é de “cor”
preta”. [APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890),
auto de corpo de delito f. 20] A quem se refere este “cujo”? O processo não se refere em momento
algum à cor de nenhum dos dois; ele é mencionado como “menor”, “criança” ou por “crioulo” ou
“crioulinho” e ela pelo nome próprio. Deixo em aberto a questão, embora considere que ambos
fossem “pretos”.
133
Diante da definição de grupo matrifocal como aquele encabeçado por uma mulher e seus rebentos
(Florentino e Góes, 1997 p. 140), pode parecer estranha a idéia de um grupo matrifocal sem mãe.
No entanto, aqui não se está entendendo o parentesco como realidade biológica e sim social. Nesse
sentido, diante da ausência de Eufrásia, Maria Caetana assumiu o seu papel.
134
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890),
depoimento de Horácio Esteves de Oliveira e Silva f. 4v (1890)
90
A manutenção de uma certa de autoridade – recorrente, mas não necessária,
dos fazendeiros sobre “crioulos” – não era exclusiva dos Esteves sobre Maria
Caetana e Veríssimo: mais tarde, quando um dos suspeitos foi capturado, Horácio
Esteves de Oliveira e Silva o levou à casa de Joaquim Pedro Cidade, que por sua
vez “mandou” um “crioulo de nome Ezequiel ajudar Horácio na condução do
acusado à casa do coronel Olivério Esteves
135
. O caso demonstra não apenas que
Cidade manteve uma relação de autoridade sobre Ezequiel como inclusive pôde
delegá-la a um vizinho, em um momento crítico no qual aquele auxílio se fez
necessário. Depois, o fato foi avisado ao genro do coronel por “um próprio rapaz
da casa do mesmo coronel Olivério”. Uma vez informado, saiu em companhia do
“menor de nome Fortunato” e do “peão de nome Paulo” rumo ao local de nome
rincão.
Bem antes de tudo isso, Horácio Esteves havia entrado na casa daqueles
com quem tinha “amizade” e, conforme seu depoimento, ao se deparar com os
corpos acreditou que Maria Caetana e o menino achavam-se adormecidos.
Somente depois de ver o sangue entendeu que o sono era definitivo. Dirigiu-se
incontinenti à casa de seu cunhado José Soares de Moura e à de seu pai para avisar
sobre o sucedido. É possível que a urgência com que deu o aviso não se devesse,
apenas, ao gravíssimo episódio ocorrido no interior de sua propriedade, mas
também porque, sob o olhar senhorial, as vidas daquelas vítimas lhes dissesse
respeito.
Tanto é assim, que no caminho encontrou um indivíduo que trazia consigo
um cavalo pertencente à assassinada, assim como demais objetos a ela
pertencentes: dois lençóis, uma calça de casimira preta, um colete da mesma
fazenda e botões. Como já se sabe, a partir de então ele levou o suspeito à casa do
vizinho Joaquim Pedro Cidade a fim de obter ajuda para não deixá-lo fugir.
Baratos, os itens roubados, mas em termos relativos não: para o capturado
Antônio Bento da Silva valeu a pena carregá-los consigo. Se estes eram os bens que
Maria Caetana tinha para ser roubados, havia quem se interessasse por fazê-lo. Em
relação a estes, ter um teto, um cavalo – talvez galinhas – objetos e uma situação
estável na fazenda a colocava em situação superior. Os pertences de Maria Caetana
foram reconhecidos por Pedro José de Moura. Evidencia-se a relação entre as
135
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890),
depoimento de Joaquim Pedro Cidade f. 6v.
91
vítimas e o depoente, qualificado como “peão”, pois ele disse ter pleno
conhecimento dos itens por “ser vizinho e dar-se muito na casa”. Decerto, a relação
de vizinhança se dava por ele ser “peão” do genro do coronel Olivério, João Soares
de Moura
136
.
Pedro José de Moura
137
, contudo, apresentou no depoimento elementos que
ajudam a complexificar a situação. Maria Caetana e Veríssimo mantinham uma
casa, um cavalo, etc, condições que os beneficiavam diante dos demais e os
colocava em relação de dependência com a antiga família senhorial, mas a
autoridade sobre eles não era monopólio dos Esteves. Por meio da força física, e
não da condição de ex-senhores ou do poderio econômico, os acusados também
aparecem, em vários depoimentos, exercendo poder sobre Maria Caetana e
Veríssimo antes do crime. Segundo o peão, no dia do crime ele viu o rapazinho
lidar com gado junto a um dos réus.
Que gado era este com o qual lidavam? Dificilmente Antônio Bento da Silva
(desertor “residindo incertos lugares por andar foragido e fugindo da ação da
justiça”) teria reses. Os assassinos, talvez, se empregassem temporariamente na
fazenda dos Esteves. Embora tenha se declarado “jornaleiro” em um dos
interrogatórios, na ocasião do crime o seu lugar incerto era “no mato”, onde vivia
arranchado com seu cúmplice José Baiano e com Chico Meia-Língua
138
. É
plausível, ainda, que ela fosse uma intermediária entre dois mundos, o dos ladrões
136
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890);
depoimento de Pedro José de Moura f. 8
137
Sobre a utilização do mesmo sobrenome, ver capítulo 4.
138
Meia-Língua era um célebre criminoso em São Francisco de Paula; além da deserção e do
assassinato, os acusados foram também indiciados por ter auxiliado em sua fuga. Havia três meses
viviam os três arranchados no mato onde “viviam da caça, carneando nessa ocasião também uma
rês do Capitão Bento Soares de Oliveira e que quem carneara a dita rês fora Chico Meia-língua
dizendo-lhes que tinha o consentimento de Bento Soares”. APERS, I Cartório de Cívil e Crime de
São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890), interrogatórios a Antônio Bento da Silva fs. 8 e
46v. É provável que Meia-língua não estivesse mentindo quando disse ter autorização para carnear a
rês: quer porque, tempos depois, se engajaria ao lado de Bento Soares durante a guerra civil, quer
porque em um processo de cinco anos antes – APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do
Mundo Novo, maço 22, processo 583 (1885) – Meia-Língua foi acusado de invadir a festa do Divino
Espírito Santo na vila, dando tiros, levando “a dor, o pânico, e o terror” “à família católica” e
assassinando João Fagundes da Silva. Se Meia-Língua foi processado como executor, Bento Soares
de Oliveira (então juiz municipal suplente), foi considerado cúmplice do crime ao abrigá-lo em sua
casa e, depois, percorrerem as ruas juntos. Segundo duas testemunhas (Manuel Pires Padilha, f. 18v
e Lucas Moreira França, f. 20v) já naquela ocasião Meia-Língua era “peão”, “capataz” e “capanga”
de Soares de Oliveira. Com um histórico de colaboração, que perduraria, é improvável que Bento
fosse deixá-lo desassistido em seu refúgio no mato. Ironicamente, o patrono de Meia-língua era
padrinho da vítima de seus comparsas. Os réus afirmaram que eles não o informaram sobre a morte
de Maria Caetana e Veríssimo; decerto temiam que Meia-língua considerasse que o ato os expunha
à captura, mas também seu desagrado devido aos laços com Soares de Oliveira.
92
de gado e o dos fazendeiros. Sendo assim, enquanto mantinha Esteves informado,
podia também ajudar nas atividades ilícitas, o que, talvez, explique o grau de
violência do crime: não apenas para roubá-la ou pela delação, mas também por esta
ter se tratado de uma traição. Segundo o autor do crime:
Respondeu que assim procedeu ele acusado por ter José
Baiano ponderado-lhe que sempre que iam à casa de Maria
Caetana esta denunciava-os a diversas pessoas e que se
assassinassem Maria Caetana ele acusado se apoderaria do cavalo
de propriedade dela e de mais objetos com que ele foi encontrado e
José Baiano ficaria com o dinheiro que encontrassem, o que tudo
fizeram. Interrogatório a Antônio Bento da Silva f. 8
O depoimento do capturado evidencia, ainda, que não foi o assassinato de uma
desconhecida, mas de alguém com quem mantinham contatos regulares: ali
estiveram diversas vezes, e ali lhes foi oferecida comida. No fatídico dia,
inicialmente trataram de retirar o menino da casa; para isso “ordenou [sic] ao
menor Veríssimo que fosse apanhar uns pêssegos”
139
. Estavam armados com
intimidadoras facas e facões e o rapaz, é claro, obedeceu
140
. Talvez tenha obedecido
não somente pelo medo das armas, mas porque receber aquela ordem não fosse
algo tão excepcional: afinal, em lugar de fugir, ele retornou com os pêssegos. Sequer
teve tempo para entrar em casa. Antes, foi pego por José Baiano e assassinado.
Esse último nunca foi levado ao banco dos réus; Antônio Bento, contudo, foi
condenado à pena capital.
Não é possível perceber na história de Maria Caetana, Veríssimo e seu triste
fim apenas a continuidade de uma relação de dominação; antes, percebe-se um
esforço pela conservação de laços (ainda que adotivos) de parentesco e do acesso à
terra (tal como Rios, 1990, verificou em Paraíba do Sul); para isso, eles
necessitaram de conscientemente interagir e jogar com os atores sociais ao seu
redor – e estes não eram apenas os antigos senhores, mas também os “bandidos”
que transitavam por São Francisco. Se uma posição intermediária lhes trouxe
benefícios, também os encaminhou a um fim trágico.
139
Aparentemente, a tendência a dar ordens a Veríssimo relativas a pêssegos era uma característica
compartilhada pelo “senhorial” Horácio Esteves de Oliveira e Silva e pelo desertor Antônio Bento
da Silva. Havia dívidas de obrigações devidas aos vínculos sociais pretéritos ou à intimidação.
140
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, processo 70 (1890);
interrogatório a Antônio Bento da Silva f. 8
93
Como Maria Caetana, Elias Carneiro Lobo transitava em dois mundos, mas
de forma diferente. Ele não estava entre antigos senhores e “bandidos”; ele residia
com a antiga senhora mas era um de tais “bandidos”. Seu caso ajuda a colocar em
questão qualquer associação mecânica entre coabitação e laços de subserviência,
algo já esboçado pelo caso de Maria Caetana quando se pensa que seus laços de
dependência tampouco eram absolutos – ela recebeu quem quis em sua casa,
inclusive indivíduos tidos como perigosos, tinha atividades econômicas próprias,
dispunha de um cavalo para sua locomoção.
No caso de Elias, a autoridade da antiga senhora não apenas foi colocada à
prova: ela foi esvaziada, ignorada, tornou-se inócua. Há uma tentativa, da parte
dela, de conservar sobre o antigo escravo alguma autoridade, mas ele a afrontava e
desobedecia diretamente, amparado no poder da intimidação, da força física, e
mesmo do temor despertado por sua condição de “bandido perigoso”. No dia 9 de
abril de 1891, no passo do rio Camisas, o Tenente coronel Afonso de Oliveira Pinto
foi surpreendido por uma emboscada. Não estava sozinho, aliás: encontrava-se
acompanhado por “um crioulinho de nome Estevam”. O rapazinho que o escoltava
era filho da ex-escrava Fausta
141
. Ele declarou-se campeiro, no seu depoimento, e
foi apontado como seu “peãozinho” pelo patrão. Tinha 13 anos na ocasião e pouco
pôde fazer por Oliveira Pinto, a não ser avisá-lo da presença de duas pessoas na
direção de origem do tiro. As investigações, após um período de atemorizados
depoimentos não muito eloqüentes, foram tomando vulto cada vez maior, de
maneira que, da acusação inicial vieram à tona conflitos de terra entre os Pinto e os
Borges
142
, divergências políticas e eleitorais, ameaças a testemunhas ou mesmo
àqueles que estavam à procura dos acusados. Ao fim das atribuladas diligências, em
5 de junho daquele ano, Elias Carneiro Lobo, Inácio Borges do Amaral e Mello,
José Soares Borges (vulgo José Vidal) e Manuel Venâncio Pereira foram
denunciados pelo crime
143
.
141
Segundo seu registro de batismo, lavrado no dia 31 de maio de 1879, Estevam (no processo; no
batistério consta Estevo) nasceu a 2 de setembro de 1887, filho natural de Fausta, então escrava de
Antônio de Oliveira Pinto. Seus padrinhos foram Fausto e Felicidade, ambos escravos. Desconheço
a relação entre Antônio e Afonso mas aparentam tratar-se da mesma família. ACDCS Livro 3 de
batismos de São Francisco de Paula, f. 48.
142
Eram então, vésperas da guerra de 1893, e estas desavenças familiares aflorariam com vigor ainda
maior.
143
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891).
94
Não tenho interesse – apesar de ser caso interessantíssimo – em esmiuçar em
detalhes; por ora o leitor deverá se conformar em saber que os acusados foram
absolvidos graças à intervenção da família Borges. Francisco e Inácio Borges do
Amaral e Mello interpuseram um processo de justificação no qual procuraram
demonstrar que na noite do crime o acusado, “seu peão” de nome Elias Alves dos
Santos, achava-se na casa de residência – na fazenda do Lobo – pertencente aos
justificantes. Prefiro me centrar em dois aspectos específicos: no método de
intimidação utilizado por Elias para assustar as testemunhas e em uma cena
descrita por diversos depoentes, ocorrida na cozinha de Dona Maria Carneiro de
Córdova
144
.
Conceição Antunes de Oliveira e sua filha Maria, ambas trabalhadoras no
serviço doméstico, relataram terem sido ameaçadas pelo acusado, que portava o
rosto tinto de carvão. Também Manuel Victorino Pereira (aquele que charqueava
gado em um Taimbé, no capítulo anterior) foi atacado por uma escolta da qual
participava Elias, junto a outras pessoas com a cara pintada de carvão. Apesar de
Leandro Joaquim da Silva ter dito que ele assim o fizera com o intuito de não ser
reconhecido
145
, foi uma intenção mal sucedida, quando muito porque, apenas nas
ameaças e formas de destratar as vítimas, ficavam claras suas motivações,
necessariamente o denunciando. Creio haver um simbolismo no uso do carvão
como máscara. Não o compreendo de todo, mas é provável uma ligação com o fato
de que as testemunhas perseguidas foram exatamente aquelas que citaram de forma
direta ou indireta a condição de Elias como cativo e/ou os vínculos que conservava
com a antiga proprietária. Se a explicitação de tais aspectos era socialmente
desconfortável, e se, como leva a crer o processo, Elias se empenhava em mantê-los
silenciados
146
, faz sentido pensar que a dramatização de uma pele escura exagerada
144
No processo, são referidas “Dona Clarinda”, “Maria Carneiro de Córdova” e “Maria Cardoso”
como a senhora de Elias Carneiro Lobo. É possível que se trate de diversas pessoas da mesma
família, mas mais provável é que fosse alguém com diversos nomes – o que era comum naquela
sociedade. Ver capítulo 4.
145
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891),
depoimentos de Conceição Antunes de Oliveira (f. 46v), Maria Antunes de Oliveira (f. 47v), Manuel
Victorino Pereira (f. 53) e Leandro Joaquim da Silva (f. 56).
146
É um aspecto que só veio à tona, no registro dos autos, no dia 28 de maio de 1891, à folha 47v do
processo. Isso foi mais de um mês após a abertura do inquérito policial. Essa situação torna-se
surpreendente para o pesquisador, para quem, depois da leitura da maior parte do processo, de uma
hora a outra, surge o passado escravo de um dos principais envolvidos, até aquele momento sem
qualquer indício de tal fato. Quantos outros Elias terão passado por minhas mãos sem esse
momento de epifania, sem Conceições, Marias, Vicências, Leandros ou Manoéis a facilitar meu
trabalho?
95
por sua hiper-visibilidade poderia representar mais do que uma simples ameaça. A
forma irônica tomada por ela tornava-a mais assustadora na medida em que estava
embebida dos estigmas raciais evidenciados pelas testemunhas.
À parte tentativas – sempre fugidias, mas ainda assim necessárias – de
interpretar estes significados, o que se tem como certo é que as pessoas que se
sentiram à vontade para falar sobre a condição pretérita de Elias como escravo
foram aquelas que compartilhavam de uma situação sócio-econômica assemelhada
à sua: Conceição e Maria Antunes de Oliveira, que se referiram a Elias como
alguém que estivera sujeito a uma senhora, trabalhavam no serviço doméstico. É o
caso, também, de Vicência Luciana de Jesus, que falou sobre a relação dele com
Dona Clarinda, mas não afirmou que ele havia sido cativo. Leandro Joaquim da
Silva, por sua vez, residia sob o mesmo teto que Elias e sua ex-senhora e disso deu
conta à polícia. Os quatro, de forma mais ou menos direta, falaram de suas relações
com a antiga senhora.
Já Manoel Victorino Pereira – pertencente a uma família de fazendeiros –
também remete aos laços com Clarinda Carneiro de Córdova, mas os encobria com
eufemismos – “a dona da casa” em lugar de “sua ex-senhora”, a “moradia de
Elias” em lugar da “moradia de sua ex-senhora” etc. Fica claro que Pereira sabia
que Elias havia sido escravo, mas teve pudores, medo, ou constrangimento de
explicitar essa condição. Falar de uma condição estigmatizante talvez representasse
um ultraje menor se feito de um ponto de vista horizontal do que vertical (sobre o
mesmo caso ver Weimer, 2005a)
147
.
Elias Carneiro Lobo era, simultaneamente, ex-escravo de Dona Clarinda e
peão dos Borges. Como isso ocorria? Ele residia junto àquela e trabalhava junto a
estes. Na noite do crime, as testemunhas mencionadas, com pequenas variações,
afirmaram que Elias chegou à casa onde residia, pertencente à antiga proprietária, e
disse a sua irmã, que se achava na cozinha, que lhe fizesse café, pois iria para
colher pinhões. O álibi não pareceu muito convincente, já que “a dona da casa foi
147
Sheriff (2001), estudando as terminologias raciais, atualmente, em um morro do Rio de Janeiro,
observou que as categorias utilizadas eram adjetivas, isto é, “não transmitem intencionalmente uma
noção concreta de identidade racial, e sim uma descrição provisória de aparência”. Segundo seus
informantes, determinada palavra poderia ser tomada como ofensiva, ou não, dependendo do “jeito
de falar”. A autora assinala a familiaridade como um dos principais critérios definidores de se
determinadas categorias poderão ser utilizadas com ou sem ultraje. No caso da utilização de
determinados discursos raciais interna a um grupo social, a brincadeira, a dimensão jocosa, assume
grande importância.
96
perguntado aonde Elias queria ir àquelas horas da noite, ao que Elias disse que era
para ir juntar mais pinhões, pedindo mais Elias que se alguma pessoa o procurasse,
dissessem que não sabiam para onde tinham ido”
148
. Não apenas não se importou
com os questionamentos quanto a seu horário, como também se sentiu à vontade
para determinar que sua irmã faria um café para ele e que elas – ex-senhora inclusa
– deveriam afirmar ignorar seu destino e dizer isto para quem por ele procurasse.
Apenas indagar a Elias sobre seus horários – sequer estabelecer limites – já foi
suficiente para D. Clarinda ver-se desmoralizada em suas pretensões senhoriais. Ele
chegou e partiu na hora em que quis, praticamente deu uma ordem à ex-senhora,
assim como desempenhou as atividades que lhe agradaram na companhia de quem
bem entendeu.
Segundo testemunho de Vicência
149
, ele perseguiu a depoente por tê-lo
denunciado. Ao encontrá-la em casa de Dona Carlinda, dissera a esta que com ela
nada tinha, apenas com Vicência, que havia dito que ele era o responsável pelo
assassinato. É possível perceber, talvez, neste “com ela nada tinha” um resquício de
respeito ou ao menos reconhecimento em relação a alguém que tinha sido
hierarquicamente superior. Contudo, tais hierarquias, para Elias, não mais
existiam, e é claro que D. Clarinda Carneiro de Córdova, naquele contexto de
intimidação, dependeu da opinião e da boa-vontade de Elias para que ele decidisse
se ela era ou não alguém dentre aqueles com quem ele “tinha alguma coisa”. Se
poupou a ex-senhora de suas reservas, a explicitação tal fato deixa claro que era a
ele que cabia a prerrogativa de incluí-la ou não na perseguição promovida contra
Vicência.
Pelo contrário, Bibiana “tinha alguma coisa”, em relação a sua sinhá, Dona
Castorina da Silva Dutra; se assim não fosse, dificilmente a teria matado de forma
tão violenta: por meio de marteladas, golpes de canivete, e colocando-a no fogo.
Esse caso, por mim analisado em artigo (Weimer, submetido a apreciação), ocorreu
em 1885, poucos anos antes da Abolição da escravidão, e evidencia de novo que
coabitação de uma ex-escrava não necessariamente implicava em uma relação de
submissão. Pelo contrário, a história de Bibiana demonstra uma intrincada cadeia
148
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891),
depoimento de Manuel Victorino Pereira f. 53. Temos aqui, no “dona da casa” um ótimo exemplo
dos eufemismos de Pereira para remeter à condição de D. Clarinda como sua antiga senhora sem,
contudo, dizê-lo de forma explícita.
149
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891),
depoimento de Vicência Luciana de Jesus (f. 49)
(1891).
97
de afetos e ressentimentos, envolvendo senhores e ex-escravos. O assassinato
ocorreu no dia 25 de julho de 1885, em Canela, em um momento em que Bibiana
se encontrava sozinha na fazenda de José Inácio Dutra com sua ex-senhora. Tem-
se notícia de minúcias do ocorrido porque, enquanto era queimada, a vítima
conseguiu despertar, sair do fogo e, agarrando-se às paredes, dirigir-se a seu quarto.
Entrementes, Bibiana encaminhava-se à casa dos vizinhos para avisar ao pai e ao
marido da vítima que a antiga proprietária caíra no fogo e falecera. Castorina não
sobreviveu, mas antes de expirar, na noite do dia 26 para o dia 27, pôde dar um
depoimento no qual pôde detalhar o ataque sofrido
150
.
O exame de corpo de delito constatou ferimentos no corpo e na cabeça,
queimaduras de segundo e terceiro graus, cortes nos temporais, falanges e testa
feitos com instrumento perfurante. Os examinadores consideraram uma agressão
mortal, com mutilação, inabilitação para serviço, deformidades e danos de valor
inestimável
151
. Conforme a ofendida, os ferimentos se deveram ao fato de ter sido
atingida por marteladas na cabeça. Depois de muitas pancadas, caiu, desacordada,
no chão. Voltando a si, encontrou Bibiana na varanda, que indagou se a ex-senhora
estava tonta ou sentia dores. Castorina respondeu positivamente. A ex-escrava se
ofereceu, então, para limpar sua cabeça com água e aguardente e vesti-la com trajes
limpos. Após banhá-la e trocar as vestimentas, Bibiana atingiu sua cabeça e rosto
com um canivete. A vítima conseguiu desarmá-la, mas a atacante continuou a
golpear, pegando novamente o martelo. Castorina, desacordada, foi arrastada até a
cozinha e arremessada no fogo aceso. A vítima, desperta de novo, fez esforços para
fugir das chamas, mas a agressora exercia pressão para impedir sua saída
152
.
A permanência de Bibiana entre os Dutra, depois de sua alforria, não foi
gratuita, já que vínculos afetivos e sociais a atrelavam – ou prendiam – àquela
família: sua mãe, Tomásia, seguia escrava de José Inácio Dutra
153
. Assim, tem-se o
mesmo tipo de restrição ao exercício da liberdade verificado no caso, analisado no
primeiro capítulo, de Calisto e seus familiares, mas também a possibilidade de que
as economias guardadas pela liberta pudessem ajudar a remir a mãe. Além disso,
150
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, processo 576 (1885).
151
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, processo 576 (1885).
Auto de corpo de delito, f. 4.
152
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, processo 576 (1885),
depoimento de Castorina da Silva Dutra, f. 5.
153
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, processo 576 (1885).
Auto de qualificação da ré, f. 43v.
98
ao longo das investigações, vieram à tona relações amorosas entre Bibiana e seu ex-
senhor, Juvêncio Ribeiro, de quem se encontrava grávida. José Inácio Dutra
ingressou com um processo contra seu genro acusando-o de mandante e cúmplice
do assassinato de Castorina
154
. Este exemplo demonstra que eram diversas e
complexas as variáveis para definição da permanência ou não junto ao antigo
senhor.
O assassinato da antiga senhora não implicava necessariamente em um ato
de resistência contra o contrato de prestação de serviços a que estava submetida
155
.
A rigor, e aparentemente, tratava-se somente de um crime passional. Contudo, a
simulação daquelas que eram suas tarefas cotidianas – domésticas – durante o
assassinato (banhar-lhe, trocar-lhe as roupas), ritualizadas de uma forma macabra,
evidencia que aspectos “sociais” eram centrais: percebendo-se “ex-escrava”, ainda
via-se submetida aos arbítrios de um “senhor” e uma “senhora”
156
. De uma só vez
ser escrava e não sê-lo, gozar e não gozar da liberdade, configurou um cenário
explosivo, que se resolveu pela eliminação física de Castorina. Bibiana, na condição
de escrava, estava distante do modelo do Pai João – o tipo ideal do escravo passivo
e submisso – e (como Elias ou Maria Caetana) – também do de Zumbi
157
. Os
meandros da existência de pessoas reais revelam-se um tanto mais complexos do
que dicotomias; a construção da vida no pós-abolição envolveu enfrentamento,
acomodação e arranjos das mais diversas naturezas
158
.
Se nem todos mataram a antiga proprietária, transitaram por sua casa sem
lhe dar satisfação, ou conseguiram acumular uma quantidade, mínima que fosse, de
bens, essas soluções para as tensões sociais da vida em liberdade existiram como
possibilidades, concretizadas nos casos analisados. Tratava-se, na feliz expressão de
Fraga Filho, de “testar os limites da liberdade” ( O poder de intimidação de um
Elias era compartilhado por poucos, mas sua história realça que mesmo ele
154
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 43 (1891).
155
Bibiana foi libertada no dia 25 de novembro de 1885, e submetida à obrigação de prestar serviços
aos Dutra por sete anos desde então. APERS, APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do
Mundo Novo o, maço 21, processo 576 (1885). Certidão da carta de alforria de Bibiana, f. 41.
156
Bibiana, se referiu a Dona Castorina da Silva Dutra e Juvêncio Ribeiro em seus depoimentos
utilizando estas palavras. APERS, APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo
Novo, maço 21, processo 576 (1885), depoimentos de Bibiana, f. 44 e 72v.
157
Ao longo do processo, em diversos momentos Bibiana colocou-se como “ex-escrava”
(construindo, mesmo que estrategicamente em um processo criminal, sua identificação pessoal por
meio dos vínculos com o cativeiro) e referiu-se à vítima e ao cúmplice como “sinhô” e “sinhá”, sem
que isso representasse subserviência. Cf. Weimer, submetido a apreciação, e capítulo 4.
158
Reis e Silva, 1989.
99
procurou aproveitar-se de benefícios – um teto – decorrentes de uma existência
cativa pregressa
159
. Este local de moradia pode ter sido percebido, ainda, como um
direito legítimo herdado do cativeiro.
Para, contudo, deixar claro como estas margens de independência eram
variáveis, pode se pensar em outro exemplo. Em um processo contra Paulo José
Pereira, acusado de praticar uma emboscada contra Inácio Borges de Araújo em
1889, o “preto” Vicente da Silva, jornaleiro, foi chamado a depor no processo. O
depoente socorreu a vítima em obediência a Maria Rita Soares, que assim lhe
dissera para fazer; ao testemunhar, esta última corroborou sua versão: chamara
Vicente, este fora ao encontro dela, e acudiu Borges de Araújo conforme suas
ordens
160
. Não se trata de assinalar casos opostos, da ausência ou não
funcionamento do domínio senhorial, e do seu pleno exercício. Não há correlação
direta e necessária entre uma explicitação da condição de antigo senhor e seu
exercício da autoridade. Ao contrário de Elias, em nenhum momento é
especificado o fato de Vicente ter sido escravo, e de quem, apenas sua “cor”. O
mando de Maria Rita Soares sobre ele não necessitou da menção de laços desse
tipo.
As histórias dos personagens anteriormente estudados podem ser pensadas
por meio do oxímoro proposto por Edoardo Grendi de “excepcional normal”, nas
diversas acepções que lhe foram dadas pelos micro-historiadores: uma
excepcionalidade que reside no revelar de uma realidade que, de tão normal
permanece calada
161
(Grendi, 1998 p. 257); uma excepcionalidade presente em um
documento de caráter incomum em termos estatísticos, mas por isso mesmo mais
revelador do que uma fonte estereotipada, que distorce a realidade social das classes
subalternas
162
(Ginzburg e Poni, 1991 p. 177); a percepção nos fatos
“insignificantes” e individuais de fenômenos e tendências mais gerais
163
(Levi, 1992
p. 158).
159
A opção pela continuidade da moradia junto à ex-senhora podia se dever também a um esforço
por permanecer perto de sua irmã Manuela, ao mesmo tempo em que a mantinha resguardada do
mundo de violência onde circulava.
160
APERS, I Cartório do Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, processo 633
(1889).
161
Uma articulação mais complexa dos interesses daqueles que pertenceram à última geração de
escravos e descendentes, e seus antigos senhores.
162
Tendencialmente tendo o espaço social dos ex-escravos definidos quer pela submissão, quer pela
rebeldia absoluta.
163
A incongruência entre submissão e coabitação, por exemplo.
100
Os personagens estudados não equivalem a uma suposta “normalidade” –
mas qual exemplo singular o faz, se é nisso que reside sua singularidade? Porém,
como assinala Ginzburg, mesmo figuras “diferentes” dos demais só o são dentro de
um certo limite: “da cultura do próprio tempo não se sai a não ser para entrar no
delírio e na ausência de comunicação” (Ginzburg, 1987 p. 27). Espero ter deixado
claro que Maria Caetana, Elias e Bibiana eram qualquer coisa, menos
desconectados do mundo ao seu redor, e suas atividades foram reconhecidas sem
estranhamento por aqueles que deles falaram.
Quem fica com as crianças?
Se Veríssimo pôde ser criado com Maria Caetana na ausência de sua mãe,
outros casos demonstram que uma solução tão simples não foi tão freqüente.
Mesmo antes da Abolição, a tutela sobre os filhos livres de mães escravas
164
foi assunto
problemático, e assim persistiu depois do fim da instituição escravista. Anos antes,
em 1880, Francisco Januário Salerno, italiano, foi processado por desobediência,
por ter se recusado a entregar o menor Fructuoso a um oficial de justiça que foi
buscá-lo a fim de encaminhá-lo a um tutor, no dia 6 de dezembro. Diversas
testemunhas, inclusive vizinhos que estavam dentro de suas casas – o que sugere
que a altercação se tenha dado em alto volume – ouviram, com pequenas variações,
o acusado bradar que “nem que venha Pedro Segundo não entrego o negro”
165
.
Certamente, com sua afirmativa, o italiano não objetivava alegrar os historiadores
do porvir com uma demonstração de como foi reconhecida e vivida a interferência
estatal pós-1871 sobre um poder moral até então particularizado; porém é o que ele
fez ao esbravejar com tanto vigor contra a ação invasiva do Estado brasileiro – na
pessoa de Sua Majestade Imperial – por achar-se lesado quanto a direitos de posse
que julgava ter adquirido sobre o menor Fructuoso
166
.
164
Para uma análise dos debates despertos pela denominação que as crianças nascidas sob a lei do
ventre livre deveriam assumir – “libertos”, “ingênuos”, “livres” cf. Chalhoub, 2003.
165
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880).
166
Certamente aqui também se entrecruzam outros aspectos como pertencimento, identidade
nacional e xenofobia; não irei me deter neles, deixando contudo assinalados.
101
Bem entendido, Fructuoso não era ingênuo, e tampouco seu provável irmão
Prudêncio: mesmo que ainda menores, não eram “filhos livres de mãe escrava”;
eram rebentos de mãe cativa nascidos antes de 1871. Mas a liberdade de Fructuoso
também se devia a uma disposição da lei de 28 de setembro de 1871: não pelo
artigo 1º, que decretava a condição de liberdade dos filhos de escravas nascidos a
partir de então, mas por seu artigo 8º, que definia a obrigatoriedade do registro dos
escravos do Império em uma matrícula, e a libertação dos que assim não o
fossem
167
. Foi o que aconteceu com ele que, não tendo sido matriculado, alforriou-
se mediante decisão judicial
168
. Mesmo que não se devesse ao ventre, sua libertação
advinha da mesma lei e de uma clara interferência estatal, quer pela legislação, quer
pela atuação do jurídico. Finalmente, no foco do processo criminal em questão está
o exercício da tutela sobre um menor, em moldes similares ao que poderia
envolver, por exemplo, um ingênuo.
Para Salerno, o direito que julgava ter sobre o jovem, e que considerava
invadido pelo monarca, advinha do fato de que sua amásia, Maria Carlota da Costa
Torres, o tinha em seu poder desde que se tornara livre. Como se deu a aquisição,
por ela, da tutoria sobre Fructuoso, que foi referido ao longo do processo como
“negrinho” ou “mulatinho”, filho de uma escrava que havia pertencido ao falecido
Antônio Pacheco, é fato desconhecido. Outra questão que não fica suficientemente
esclarecida é quem era o outro menor, já que o tempo todo há referência a dois
rapazes naquela situação. É muito provável que se tratasse de Prudêncio, menor
que também estava tutelado por Salerno e Torres. Acredito que fossem irmãos:
ambos foram descritos como “dois menores filhos da escrava que foi do finado
Antônio Pacheco”
169
. Ainda assim, fica por esclarecer a razão pela qual um
167
Biblioteca da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (Solar dos Câmara).
Coleção das leis Império do Brasil de 1871.Tomo XXXI. Parte 1.Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1871. p. 147-151
168
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880).
Apelação de Francisco Januário Salerno em 21/12/1880 – f. 47-50.
169
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880).
Auto de desobediência (f. 3v). Procurei pelo registro de batismo de Fructuoso e de Prudêncio.
Investigando o 1º livro de batismos de São Francisco de Paula, que abrange o período entre 1856 e
1870, equivalente àquele em que devem ter nascido e sido batizados, não foi localizado nenhum
Prudêncio. Identifiquei o registro de um Fructuoso, batizado em 26/12/1870 com a idade de 3 anos,
filho de Maria, escrava de [Porcida?] Maria Antunes dos Santos (ACDCS, 1º livro de batismos, f.
108v). No entanto, julgo improvável tratar-se da mesma pessoa, quer porque em 1880 teria 16, e não
13 anos, quer porque o senhor de sua mãe não é Pacheco. Não é de descartar a idéia de que sua mãe
tenha sido vendida ou herdada em um possível parentesco entre Antunes dos Santos e Pacheco.
Todavia, parece mais provável que Prudêncio e Fructuoso tenham nascido em Santo Antônio da
Patrulha, onde habitava a senhora que assumiu sua tutela.
102
despertou tamanha contenda, a ponto de, em um caso, o nome do Imperador ser
invocado, e em outro não.
O que é certo é que, na tentativa de continuar usufruindo do trabalho de
Fructuoso, e se contrapondo à acusação de desobediência do poder público, o réu
jogou com a ambigüidade do estatuto social do liberto, durante o período
escravista. Por exemplo, ao responder a um mandado de busca do dia 13/10/1880,
ele respondeu que estava ciente do mesmo, porém “o dito menor não lhe pertence, e
que por essa razão deixava de nos [sic] entregar e que o dito menor pertence a Senhora
Dona Maria Carlota
170
. Isso não impediu que, na apelação apresentada dois meses e
uma semana depois, Salerno argumentasse que era impraticável a realização de
apreensão sobre Fructuoso, por ser ele “pessoa liberta”, quando “esta só se faz em
africanos ou objetos furtados, o que não se dava relativamente ao crioulo
Fructuoso”
171
. De acordo com as conveniências processuais, o menor em disputa
ora “pertencia” a alguém – não ele – ora não era “africano ou objeto” passível de
apreensão.
A relação de Fructuoso e Prudêncio com Francisco Januário Salerno e
Maria Carlota da Costa Torres guardava aspectos semi-servis. Eles eram mão-de-
obra daqueles a quem “pertenciam”. Uma testemunha de acusação, Maurício
Nunes de Almeida, era vizinho de Salerno e presenciara os desentendimentos entre
o acusado e o oficial de justiça. Em seu depoimento, de 13/12/1880, lhe foi
indagado que destino seu vizinho dera “ao negrinho”, ao que respondeu que
naquele mesmo dia o vira carpindo no quintal. Outro dia o vira capinando, fato que
era comum, ou lidando com um animal. Tais aspectos, por si só, podem apenas
lembrar o trabalho familiar camponês, voltado ao auto-consumo. Outros
momentos, porém, evidenciavam tratar-se de relações compulsórias. A maneira
como o réu refere-se ao tutelado (“o negro”, “o crioulo”) indica uma assimetria
maior do que a existente entre pai e filho em um núcleo campesino. Almeida
relatava, ainda, ocasião em que Fructuoso e Prudêncio tinham ido a sua casa, e ele
lhes indagou “por curiosidade” o que faziam. Prudêncio respondeu que “tinham
licença de seu senhor, para darem um passeio até as oito horas, e de fato às oito
170
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880),
certidões de mandados emitidos – mandado de 13/10/1880 – f. 39-4. Grifos meus.
171
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880),
apelação de Francisco Januário Salerno em 21/12/1880 – f. 47-50.
103
horas tornando a passar para a casa de seu senhor e tutor de Fructuoso”
172
. A
autoridade exercida parece exceder, assim, aquela própria de um tutor. É realmente
difícil avaliar o que há de veracidade nesse depoimento, já que posteriormente a
testemunha foi justificada como inimigo do réu; mas o depoimento foi aceito nos
autos processuais. Era uma argumentação que fazia sentido.
Se Fructuoso e Prudêncio se achavam em uma situação de domínio e
exploração, mesmo assim não eram expectadores passivos dos atos de Salerno,
Maria Carlota e das decisões judiciais. Depois de diversas intimações, o réu
entregou espontaneamente o rapaz ao juiz, que o repassou ao seu novo tutor João
Antônio Martins, definido pela justiça; todavia, o rapaz não durou sequer 24 horas
em sua casa. Fugiu no mesmo dia para Santo Antônio da Patrulha, mais
precisamente Miraguaia, onde residia D. Maria Carlota. Provavelmente
permaneceu pouco tempo ali, pois foi visto por seu vizinho, tempos após a fuga, na
casa de Salerno, a capinar
173
.
Essa seqüência de deslocamentos para retornar ao tutor anterior poderia ser
percebida como resultante de alguma forma de pressão daquele, o que não está
descartado (sobretudo considerando a permanência de Prudêncio consigo);
contudo, claro está que neste caso, entre as determinações senhoriais de Salerno, e
imperiais de Pedro Segundo, ao menos do ponto de vista das ações e opções do
rapaz, o primeiro foi mais bem-sucedido. Juridicamente também assim aconteceu,
pois o italiano foi absolvido da acusação de desobediência que lhe era direcionada,
após provar que as testemunhas que depuseram contra ele eram seus inimigos.
Embora provavelmente tenha tido que entregar Fructuoso novamente à Justiça, os
autos, uma vez concluídos, não permitem avaliar desdobramentos posteriores nem
eventuais novas fugas do rapaz.
Embora possa causar estranhamento, a constatação de opções de ingênuos
pelo retorno a senhores e tutores não é inédita na historiografia. Após demonstrar
como as famílias da última geração de escravos procuraram interferir no seu
próprio destino e influenciar para sua manutenção diante da dissolução de vínculos
sociais durante o período de transição 1871-1895, Alaniz procura propor novas
interpretações para o vínculo tutelar. Ao procurarem antigos senhores e propondo a
172
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880),
depoimento de Maurício Nunes d’Almeida – f. 19v.
173
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 19, processo 532 (1880),
depoimento de Maurício Nunes d’Almeida – f. 19v.
104
tutela sobre seus filhos, estava em jogo para muitas mães a reivindicação por
direitos adquiridos após anos de escravidão, além da sobrevivência e quiçá um bom
futuro para as crianças (Alaniz, 1997 p. 81).
A interpretação da autora, da qual compartilho, é oposta à de Dalla Vecchia
(2001), para quem a realidade dos “filhos de criação” seria reveladora da debilidade
e da desestruturação das famílias negras no pós-abolição. Certamente, “dar” seu
filho para criação por outrem é um recurso extremo diante das adversidades.
Contudo, essa interpretação traz consigo três problemas. O primeiro é perceber as
famílias de ex-cativos unicamente em função da carência, da ausência, da falta, da
incompletude, sem conseguir indagar-se sobre as características que lhes eram
intrínsecas, e não pelas que lhes faltavam. Outro é a omissão de que, além da
dificuldade, havia também “uma estruturação que revela a criatividade advinda da
necessidade” (Alaniz, 1997 p. 81). Sendo assim, além das fraquezas com as quais se
defrontavam as famílias de ex-escravos, há também que evidenciar as forças
encontradas para lidar com estas dificuldades. O apadrinhamento e a criação não
necessariamente representavam a dissolução dos vínculos familiares, mas uma
tentativa criativa de garantir a sobrevivência de entes queridos. De forma alguma
acarretava, necessariamente, em um afastamento físico do rebento.
Além disso, no esquema interpretativo proposto por Dalla Vecchia, não há
lugar para compreender o caso de Fructuoso. Porque, diante de duas alternativas de
tutoria, ele optou por aquela que lhe era familiar, mesmo que ali fosse explorado,
diante de outra desconhecida, usando da fuga como recurso para tal? Deve ter
pesado para isso a expectativa por permanecer junto a Prudêncio, provavelmente,
seu irmão. Mesmo que assim não o fosse, cresceu junto com ele, e naquele
momento era a única família que os documentos consultados permitem perceber.
Um esforço, pois, para preservar laços, antes de um resultado da sua desagregação.
Para Alaniz (1997, especialmente p.62, 73, 82), os ex-escravos procuravam intervir
na definição dos tutores, a fim de manter seus familiares perto de si; para preservar
tradicionais obrigações senhoriais – moradia, alimentação, vestuário, entendidas
como direitos, diante de uma libertação que não lhes garantiu a sobrevivência; ou
visando a garantia de obrigações decorrentes do compadrio. Papali (2003 p. 183)
encontrou evidências da manutenção do contato entre pais e seus filhos tutelados.
105
Retornando para Fructuoso, ele lutava para manter os vínculos com o
mundo que lhe era conhecido, fosse através de Prudêncio, de Salerno, ou de D.
Maria Carlota.
Nesse contexto, o vínculo tutelar pode ter constituído uma
relação sólida, que auxiliasse os libertos e seus ex-senhores a
adaptarem-se à nova ordem estabelecida. Se, por um lado, os
senhores garantiam uma parcela da sua mão-de-obra, por outro
lado, alguns libertos asseguravam, assim, uma possibilidade de
sobrevivência para suas famílias. Uma de entre várias alternativas,
uma vez que nem todos aceitaram essa situação passivamente,
alguns preferindo trilhar seus próprios caminhos. (Alaniz, 1997 p.
82)
O exercício da tutela sobre as crianças nascidas sob o efeito da lei do Ventre
Livre, foi uma questão que despertou polêmicas e disputas sociais. É o que
demonstram os estudos citados de Alaniz (1997) e Papali (2003), referentes,
respectivamente a Campinas e Taubaté. Ambas autoras destacam os anos de 1888 e
1889 como os de maior incidência das ações de tutela de órfãos, em uma clara
perspectiva de manutenção de um contingente de dependentes por parte dos
escravistas. Deve-se sublinhar que no caso, “órfão” é um eufemismo, utilizado em
muitos casos para designar não crianças que tenham perdido seus familiares, mas
filhos de mães que o poder público taxava como inadequadas para o cuidado dos
menores
174
. Há casos em que os vínculos tutelares foram utilizados como
mecanismos de ascensão, de sobrevivência, de adaptação à vida em liberdade,
considerando que esta envolvia o choque com novos tipos de relações sociais –
capitalistas – desconhecidas e com regras não escolhidas por eles (Alaniz, 1997 p.
82).
Embora não tenha estudado as ações judiciais de tutela de órfãos, é possível
perceber a importância deste debate no Rio Grande do Sul, por meio da fala dos
governantes. É óbvio que trata-se de uma visão exterior à dos sujeitos envolvidos, e
com bem menos detalhes ou sutilezas; no entanto, “é possível captar, nas
entrelinhas do discurso senhorial, evidências que ajudam a entender de que
174
O eufemismo beira o paradoxo quando se encontra em um processo explicitamente reconhecido:
“a mãe da dita órfã”. APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20,
processo 550 (1881), denúncia, 8/2/1881.
106
maneira os ex-escravos tiraram suas próprias conclusões em relação ao momento
em que viviam” (Fraga Filho, 2006 p. 140). Vale a pena observar como as práticas
tutelares foram pensadas e caracterizadas, quer nos últimos anos de governo
monárquico, quer nos primeiros da República. Retornando às elocubrações de
Rodrigo de Azambuja Vilanova sobre como deveria ser a vida pós-1888, percebe-se
que, ao contrário dos adultos, preconizava aos menores uma tutela estatal e não
particular. A separação familiar é implícita no projeto, já que uns necessitariam
“aprender a ser livres” junto a agentes públicos e outros em instâncias privadas. O
presidente da província recomendava, assim, a construção de “colônias
orfanológicas, asilos e escolas de ofícios” [Relatório de 1888 p. 69-72].
Até que as mesmas ficassem prontas, contudo, recomendava que as crianças
permanecessem sob a tutela dos proprietários [sic], para que não se entregassem à
ociosidade e aos vícios, que, como visto, o autor do relatório considerava
característicos de seus pais. Portanto, embora em termos retóricos Vilanova
considerasse desejável a tutela estatal, em termos práticos reafirmava o domínio
particular dos antigos senhores, considerados agentes favoráveis à sua inserção na
vida em liberdade: “sendo de toda conveniência que permaneçam nas casas onde
nasceram e se criaram, sob a tutela benéfica dos proprietários, até ulterior destino”
[Relatório de 1888 p. 69-72]. Não há notícia, contudo, da chegada deste futuro
planejado. Desconheço evidências da construção destas colônias, asilos e escolas.
Um relatório da secretaria de Estado dos negócios do interior e exterior, de
1895, evidencia que as instituições projetadas anteriormente não haviam saído do
planejamento, mas também que as intenções de edificá-las persistiam. O fracasso
da política tutelar estatal deu margem à continuidade da dominação privada sobre
os ingênuos
175
, embora o regime republicano tenha mantido o mesmo objetivo.
Para o secretário João Abbott, dirigindo-se ao Presidente do Estado Júlio de
Castilhos:
Não menos urgente é a necessidade da criação de uma
escola correcional, onde possam ter abrigo, ensino e educação os
menores vadios, vagabundos e desvalidos. Não preciso apontar-vos
as vantagens de um estabelecimento dessa ordem, porque elas
ressaltam do seu enunciado. Basta dizer-vos que tal medida
175
O mesmo ocorreu em Taubaté, ver Papali, 2003 p. 128.
107
estancaria desde logo o inqualificável abuso das escravidões
disfarçadas em tutorias, tão comumente observadas entre nós e
de que são vítimas tantas crianças que têm direito à proteção da
sociedade. Educá-las e instrui-las é prevenir males futuros, é
preparar o cidadão de amanhã. É dever de todos os governos
amparar a sociedade, procurando sempre e com cuidado melhorar
as condições do meio.
176
As contradições entre Estado e particulares quanto à tutela sobre os
ingênuos, latentes nos relatórios de Vilanova mas amenizadas por uma perspectiva
harmoniosa da relação dos ex-senhores com seus tutelados, afloram neste texto de
Abbott. A vantagem da escola correcional – tomada como auto-evidente – seria a
“proteção social” a crianças mantidas sob o regime de “escravidões disfarçadas”.
Havia um comprometimento ideológico com a erradicação de continuidades do
sistema escravista
177
. Por trás da idéia de “proteção social”, contudo, não se
cogitava a possibilidade de que as mães ou as famílias daquelas crianças poderiam
com elas permanecer. Se construía uma visão de que quem não estivesse sob a
guarda de antigos senhores ou abrigado nos braços “protetores” do Estado, seriam
vadios, vagabundos, desvalidos – abandonados.
Alaniz (1997 p. 73) e Papali (2003 p. 156-157) destacaram que acusações de
maus costumes, vícios, mesmo a falta de recursos ou a “incapacidade de educar
seus filhos” foram utilizadas pelos juízes de órfãos para proferir sentenças que
subtraíam as crianças de suas famílias (Papali, 2003: p. 156-157 e Alaniz, 1997: p.
73). Tanto o Presidente Vilanova (é claro) quanto o Secretário Abbott
compartilhavam desta perspectiva. O primeiro, no relatório de 1888 referia-se a
“Menores, filhas de escravos que estavam no seio das famílias, ao abrigo das
seduções, foram entregues às suas mães, muitas de uma perversão moral sem nome
e pela influência do meio para onde foram transportadas, pelos maus exemplos que
diariamente tinham à vista, foram arrojadas à vida da devassidão” [Relatório de
176
AHRS, Fundo Secretaria do Interior e Exterior, Códice SIE.3-003 – Relatório apresentado ao Sr.
Dr. Júlio Prates de Castilhos, Presidente do Rio Grande do Sul pelo Dr. João Abbott, Secretário de
Estado dos Negócios do Interior e Exterior. Em 15 de Agosto de 1895. Porto Alegre: Oficinas a
vapor da Livraria Americana, 1895. Grifos meus.
177
Não se pode olvidar o fato de que após 1893 o poder no Rio Grande do Sul foi tomado por um
partido republicano radicalmente anti-monarquista e comprometido com a perspectiva de erradicar,
a ferro e fogo, quaisquer supostos vestígios monárquicos, dentre os quais certamente estava o
sistema escravista. A relação entre o Partido Republicano Rio-Grandense e o regime escravista será
melhor discutida no capítulo seguinte.
108
1888, p. 6]. Se as mães eram consideradas uma “má-influência” sobre suas filhas, a
“boa-influência” só poderia ser a tutela, quer estatal, quer privada. Ironicamente,
ele concebia as famílias senhoriais como “abrigo de seduções” e as mães como
pervertidas. Embora Abbott em 1895 não explicitasse o mesmo ponto de vista,
entendia a tutela estatal como única alternativa à degradação da vida autônoma e a
exploração da tutela particular.
Apesar do importante fato de que, a partir de 1871, não mais nasceram
escravos, o fato é que os menores encontravam-se em uma situação de maior
fragilidade frente aos adultos, de forma que o destino deles, especificamente,
tornava-se um problema tão importante quanto o dos ex-escravos em geral:
Tal pendência refere-se à fragilidade social na qual se
encontrava o ingênuo, transformado em órfão, criança abandonada
ou simplesmente “menor” com o findar do mundo escravista. Ao
lado da indagação nunca formulada, mas sempre implícita nos
discursos e jornais da época: “o que fazer com o liberto?”
encontrava-se outro questionamento similar, que dizia o seguinte:
“o que fazer com o ingênuo?” (Papali, 2003 p. 33)
Essa fragilidade lhes conferia um campo de possibilidades, no sentido dado
por Sartre na epígrafe deste capítulo, tendencialmente inferior ao dos adultos, ao
menos conforme as informações obtidas na documentação compulsada: Fructuoso
pôde fugir, mas não se recusou a seguir as determinações de Salerno (embora tenha
feito o mesmo com seu tutor), como tampouco Veríssimo
178
desobedeceu aos
Esteves, a Moura e mesmo a seus executores. Uma figura como Elias
179
era
plausível naquela sociedade, mas nem todos podiam ser Elias. Muito menos
quando inexperientes e frágeis fisicamente. Essas possibilidades mais restritas, de
certa forma, se contrapunham ao fato de que, graças à lei do Ventre Livre, os
menores nunca foram escravos. Mas a liberdade conferida pela lei não
necessariamente garantiu melhores condições de vida pós-1888, em especial
comparativamente aos adultos. Porém, possibilidades mais limitadas não
significam ausência de alternativas. “La acción social, igual que la acción
individual, comporta siempre una elección optativa en el ámbito de alternativas
178
Trata-se do menino que morava com Maria Caetana, no caso discutido no início deste capítulo.
179
Aquele caso, analisado no início do presente capítulo, do ex-escravo que gozava de um grau de
autonomia inusualmente elevado, ao mesmo tempo em que mantinha relações continuadas com a
sociedade dos ex-senhores
109
limitadas, elecciones que constituyen ‘la fábrica de la realidad social y psicológica’”
(Grendi, 2003 p. 276)
180
. Dentro de um espectro mais ou menos limitado de opções,
os menores cujas histórias aqui se acompanhou se movimentaram: quer pela fuga
de Fructuoso e a insistência em permanecer junto ao tutor anterior, quer pela
‘obediência’ de Veríssimo. Afinal, não movimentar-se em um leque restrito é,
também, uma opção. Ao fazê-la o rapaz participava da estratégia – que
posteriormente revelou-se arriscada – de negociação com os antigos proprietários
de sua mãe e com os “bandidos”, assumida por Maria Caetana.
No que trabalhar
Já que se fala em “campos de possibilidades”, convém mapear algumas
possíveis atividades desempenhadas pela última geração de cativos e seus filhos.
Refiro-me a “atividades” e não a “profissões” porque era freqüente, em diferentes
momentos de um processo, o mesmo indivíduo definir suas atividades de maneiras
diferentes. Temos, assim, aqueles que se dedicaram tanto à agricultura quanto à
pecuária, lavradores e jornaleiros, tropeiros e jornaleiros
181
, e assim por diante. É
claro que “jornaleiro” expressa mais uma forma de trabalho e de remuneração –
por jornadas – do que propriamente uma ocupação. Assim mesmo, os processos
sugerem uma diversidade de atividades e uma dinâmica diante das quais a noção
de profissão – que sugere maior especialização e fixidez – não pode dar conta. A
pluralidade de tarefas exercidas por uma mesma pessoa pode relacionar-se ao
caráter periférico de uma economia local na qual um maior grau de especialização
era difícil, especialmente para os ex-escravos.
180
Henrique Espada Lima, em mini-curso ministrado na UFRGS em 2006, fez alguns paralelos
entre preocupações dos micro-historiadores e da filosofia existencialista francesa. Não se trata de
vínculos genéticos, mas problemas em comum.
181
Respectivamente, Elias Carneiro Lobo, que definiu-se como peão e lavrador, mesmo que se
saiba, também de seu envolvimento com atividades ilícitas [APERS, I Cartório de Civil e Crime de
São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891)], Vicente da Silva, jornaleiro e lavrador
[APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara, maço 24, processo 633 (1888)] e Simplício
Pedroso de Moraes, que tocava gado e se definiu como jornaleiro [APERS, I Cartório de Civil e
Crime de Taquara, maço 23, processo 614 (1887)].
110
No entanto, é verdade que no mundo rural os mesmos trabalhadores sempre
se dedicavam concomitantemente a um número de atividades superior ao de seus
colegas urbanos. Isso se dava quer pela coexistência da agricultura e da pecuária
nas mesmas unidades produtivas, quer pela diversificação de tarefas no trabalho
campeiro, sendo poucos para desempenhá-las. Nos anos dificultosos
imediatamente posteriores à aquisição da liberdade, parecem ter sido poucos os que
conseguiram obter seu sustento dedicando-se exclusivamente a uma atividade.
Maria Caetana, além do trabalho próprio ao qual suponho que ela se dedicasse,
devia fazer tarefas para a família senhorial e com certeza lavava roupas para fora.
Quanto aos jornaleiros, representam aqueles que, por excelência, assumiam os
trabalhos disponíveis.
A percepção de suas ocupações por meio de processos criminais exige a
realização de algumas considerações de ordem metodológica. Antes de mais nada,
os processos-crime captam um momento específico da vida de um sujeito, sem um
acompanhamento mais sistemático de suas trajetórias. Sendo assim, se a fonte
utilizada eventualmente evidencia a duplicidade de atividades dos diversos
personagens envolvidos, esta sobreposição deveria ser ainda maior. Procurei
privilegiar, na identificação das ocupações de réus, testemunhas, vítimas ou
terceiros mencionados nos processos, os trabalhos que eles declaravam
desempenhar e com os quais se identificavam perante a Justiça. É claro que quem
se dedicava a atividades ilícitas não iria denunciar-se, e por isso afirmava ter outras
consideradas honestas.
Essa distorção, porém, contrabalança outro problema intrínseco à fonte
analisada: pela ênfase em momentos de conflito
182
, os homens jovens estão super-
representados, particularmente aqueles que se dedicavam às lides do campo, à
função de capangas ou ao crime. Estes estavam mais expostos ao tipo de situação
retratada em processos criminais; mas mesmo corrigida esta super-representação, se
fosse possível, provavelmente seguiriam numerosos, principalmente pelas
atividades econômicas do município. As mulheres, por seu turno, estavam muito
182
Para Machado (1987 p. 23), embora os processos criminais permitam abordar os mais diversos
“aspectos sociais da vida das classes dominadas”, a elucidação de fatos criminosos era o objetivo e
linha mestra dos autos.
111
sub-representadas em relação à sua verdadeira proporção: em um total de 56 ex-
escravos
identificados nos processos-crime, somente 13 eram do sexo feminino
183
.
Essa menor presença no mercado de trabalho pode corresponder ao
fenômeno constatado em São Paulo por Wissenbach (1998, p. 145-148 e 259). As
mulheres, libertadas do jugo escravista, não pretendiam permanecer submissas à
autoridade de seus maridos. Para estes, por sua vez, a condição de mantenedores
do lar era uma questão de honra, e à mulher cabia a fidelidade e a reclusão. A
tensão entre a afirmação e a negação destes papéis pode ter servido para afastar as
mulheres do mercado de trabalho, sobretudo em um meio, como em São Francisco
de Paula de Cima da Serra, onde havia maior demanda por trabalho masculino. No
ambiente urbano de São Paulo, por sua vez, deu-se o contrário: maior
disponibilidade de empregos para as mulheres (os serviços domésticos eram um
setor em que a competição com os imigrantes era mais equitativa), tornando-as
arrimo de suas comunidades (Andrews, 1998 p. 115-117), frustraram as pretensões
patriarcais de seus maridos.
Além de tudo, os processos estabelecem uma associação estigmatizante
entre criminalidade e escravidão, diante da qual é necessário ter cuidado.
Wissenbach (1998), analisando a cidade de São Paulo entre 1850 e 1880 observa
que escravos, forros e negros livres eram percebidos como desordeiros,
indisciplinados e potencialmente perigosos, em uma intenção de branqueamento
social. Fraga Filho, por seu turno, observou que “o passado de escravidão podia ser
utilizado como forma de condenação de condutas, ou para tentar inferiorizar
socialmente indivíduos envolvidos em crimes” (2006, p. 303). Este problema levou
a diversas reflexões por autores que estudaram períodos diferentes.
Pires (2003) estudou escravos e forros no sertão baiano entre 1830 e 1888. A
autora argumenta pela existência, nos processos criminais analisados, de uma
“criminalização das ações de escravos e forros”, representada pela sua percepção
como “classe perigosa” e de seus depoimentos como passíveis de suspeição. Eram
entendidos como grupo social a ser vigiado, pelo medo por eles desperto
184
. Pires
183
Uma fonte que poderia fornecer um levantamento mais global e menos seletivo (ao menos
comparativamente), quer em termos de atividades, quer de gênero dos ex-escravos, são os registros
civis, contudo eles nem sempre apresentam o registro da profissão e muito menos se os envolvidos
haviam sido escravos. Tal como os processos criminais, podem dar indícios, mas mais frágeis. Ver
capítulo 4.
184
Cf. Azevedo, 1987, sobre o problema do medo. Para uma boa discussão sobre a noção de “classes
perigosas” ver Chalhoub, 1996 cap. 1.
112
(2003 p. 97) afirma que esta situação – decorrente da noção adotada pela autora de
“sangue negro” – perdurou depois da lei de 1888. A autora argumenta que o fim da
escravidão levou a uma “permanência da “cor”. No caso que analiso, a questão é
diferente. O problema da invisibilidade, mais intenso do que nunca nos anos
imediatamente subseqüentes à Abolição, evidencia que, talvez, não tenha sido a
“cor” que tenha permanecido, e sim os estigmas a ela vinculados, e aquela, apenas
de forma implícita
185
.
Existe necessidade de reflexão sobre em que medida a abordagem dos ex-
escravos por meio dos processos criminais pode contribuir para o reforço do
estigma latente nas fontes. É evidente que, pelas características documentais, o
número dos envolvidos em atividades ilícitas necessariamente estará super-
representado, mesmo que tais atividades fossem, de fato, exercidas.
Ribeiro (1995), por fim, estudou as três primeiras décadas do século XX,
indagando-se de que formas os processos judiciais cariocas julgavam não apenas
crimes, mas sobretudo “tipos de indivíduo”. O autor constata que, ao longo dos
processos, as representações dos envolvidos nos autos estavam geralmente coladas
nos tipos raciais que lhes eram atribuídos. A idéia, predominante na sociedade
brasileira de inícios do século XX, de que pretos e pardos eram indivíduos
inferiores, levava a julgamentos discriminatórios. Chama atenção como, nos autos,
os indivíduos se encontravam distribuídos mediante “grupos raciais”, e não mais
“cores”, e os mesmos não eram mais silenciados. Essa visibilidade deve ser
creditada a um maior distanciamento cronológico do período escravista, à
racialização das relações sociais, e ao crescente sucesso do racismo científico no
Brasil (Skidmore, 1976, Schwarcz, 1993, Andrews, no prelo, capítulo 4).
Aqui não há pretensão de quantificar, visando contemplar padrões macro-
sociais, a última geração de cativos e familiares em São Francisco de Paula a partir
dos ex-escravos identificados nos processos. Pelo contrário, elenco alguns possíveis
caminhos por eles percorridos. Quando tabulo estes dados em termos numéricos é
apenas para facilitar a leitura do texto, expressando, no máximo, tendências
aproximadas. A incidência daqueles que seguiram uma ou outra trajetória é algo
que a fonte discutida não pode oferecer, quer pelas distorções listadas, quer pelo
fato da amostra obtida ser reduzida. Uma quantidade de 56 antigos escravos não
185
Ver Mattos, 1998 e, no âmbito local, capítulo 4.
113
deve ser transformada em percentuais sob a pena de criar uma falsa impressão de
precisão estatística. Além de tudo, devido ao estigma associado à condição de ex-
escravo, eram poucos aqueles explicitados como tal nos processos: 13 antes da lei
Áurea, e 9 após. Pessoas alforriadas antes desta lei foram incluídas no cômputo,
quer por semelhanças entre suas experiências sociais, quer pela razão pragmática de
ampliar um universo de pesquisados sub-representados nos processos posteriores a
1888. Contudo, devido às diferenças entre ambos momentos históricos, esses casos
não foram misturados, mantendo a identificação de seu período. Finalmente,
completando a amostra, foram considerados, em separado, aqueles que, embora
não estejam referidos explicitamente como ex-escravos, apresentam diversos
indícios [como a presença dos qualificativos “negro” ou “preto”, associados à
escravidão
186
, o tipo de relação perante ex-senhores explicitado nos documentos, as
relações de parentesco estabelecidas com outros participantes dos autos judiciais,
injúrias que lhes eram direcionadas, etc
187
], suficientes para que possa ser
considerada significativa sua probabilidade de terem passado pela experiência do
cativeiro. Tais dados, evidentemente, são inexatos e aproximativos. O contingente
populacional destes que foram presumidos ex-escravos era, então, de 34 indivíduos,
dentre os quais 8 anteriores a 1888 e 26 depois deste ano. Para conferir as listas
completas, ver anexos 1 e 2.
186
“Mulatos” e “pardos” não foram considerados, por expressarem experiências sociais que não
necessariamente passavam pelo cativeiro. Da mesma forma, a expressão “de tal” também não foi
considerada – se o fosse, a amostra se elevaria enormemente. Como argumento no capítulo 4, ao
contrário de muitas outras formas de nomear, esta não tinha conotação racial.
187
Por vezes cumulativos.
114
Tabela 3 – Atividades a que se dedicaram forros, ex-escravos e ingênuos
Tipo de
atividade
Atividades Forros ou
ingênuos
(antes de
1888)
Ex-escravos
ou ingênuos
(depois de
1888)
Indícios
relevantes
de ter sido
ex-escravo
(antes de
1888)
Indícios
relevantes
de ter sido
ex-escravo
(depois de
1888)
Total
Ignorada (homens) 2 3 5
Pecuárias Campeiros e
peões
1 1 2 6 + n
188
10 + n
Lavradores e
peões
2 1 1 4
Capatazes e
caseiros
2 1 1 4
Peões e
capangas
2 1 3
Total:
24 + n
Tropeiro /
jornaleiro
1 1 2
“Criador” 1 1
Trabalho
feminino
“Serviços
domésticos”
para outrem
2 1 2 4 9
“Serviços
domésticos”
para si
1 1
Total:
13
Agregada 1 1
Ignoradas 2 2
Implicados em atividades
delituosas
1 2 5 8
Agrícolas Lavrador /
jornaleiro
1 3 4
Total: 5 Agregado 1 1
Cabo de polícia 1 1
Total 13 9 8 26+n 56+n
Total 22 34 + n 56+n
Fonte: Processos criminais dos maços 1 a 4 do I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de
Paula e dos maços 19 a 27 do I Cartório de Civil e Crime de Taquara (APERS). A presente tabela
não tem pretensão de representar estatisticamente os ex-escravos de São Francisco de Paula, pelos
motivos mencionados e pela inevitável subjetividade decorrente dos ex-escravos “presumidos”. Ela
somente tem uma intenção ilustrativa de facilitar a leitura deste capítulo.
Por mais inexato que possa ser o rol daqueles por mim “presumidos”, e
apesar dos eventuais ou inevitáveis erros de identificação, que assumo, dá o que
pensar o fato de que o número dos ex-escravos “presumidos” é mais de 50%
superior à quantidade de “explicitados”. Por meio de uma maior flexibilização dos
critérios para admissão na amostra, esta discrepância seria ainda maior. Além
disso, o número de “explicitados” foi reduzido em aproximadamente 30% depois
de 1888, enquanto o de “presumidos” mais que triplicou no mesmo ínterim. Se a
188
Grupo descrito no plural “campeiros da casa”, sem numeração exata. Ver abaixo.
115
Abolição da escravidão desencadeou um aumento da presença de ex-cativos na
fonte criminal (pela aquisição da liberdade por aqueles que ainda não a tinham
conseguido realizar), ela também os tornou mais invisíveis.
As atividades larga e inequivocamente predominantes encontradas para o
conjunto selecionado eram as vinculadas ao trabalho na pecuária: sobretudo
campeiros ou peões
189
, mas também tropeiros e capatazes
190
. É o caso, por exemplo,
de um processo de roubo de gado cujo inquérito foi aberto em 4 de junho de 1888,
menos de mês após a Abolição, portanto. Uma testemunha, Gesuíno Antônio de
Oliveira, dirigiu-se à casa de um dos acusados, Manoel Adolfo Pacheco, pois
pretendia falar com os “campeiros da casa”, não os encontrando por terem ido ao
campo fazia horas
191
. O fato de não haver referência à presença de ex-escravos
dentre estes “campeiros”, anônimos e de número indefinido, não significa sua
ausência, mas as dificuldades para nomeá-los e numerá-los naquele muito imediato
pós-abolição. Há que destacar que eles foram identificados como pertencentes à
“casa”, embora vínculos desta natureza não sejam exclusivos de antigos escravos,
mas também de outras formas de clientelas e agregados.
No entanto, não há necessidade alguma de, para exemplificar a presença de
ex-escravos campeiros, nos determos sobre casos que possam dar margem a
dúvidas, quando há exemplos inequívocos. Um deles é o de Justino, que, em dia
ignoto, foi assassinado enquanto trabalhava em campos pertencentes a Manoel
Jacinto Fogaça. O promotor público Jerônimo de Oliveira Neves ofereceu denúncia
contra Leopoldino de Oliveira Conceição no dia 8 de fevereiro de 1891
192
. Segundo
a testemunha Manoel Joaquim da Silva, “antes de ser peão de Manoel Jacinto
Fogaça esteve com o denunciado morando junto e trabalhando conjuntamente
como peão do referido denunciado”
193
. É possível que o assassinato tenha sido um
ajuste de contas entre Leopoldino e seu ex-peão por alguma questão, possivelmente
salarial, que tenha ficado pendente entre ambos desde o tempo em que trabalharam
189
Ambos qualificativos figuram nas fontes documentais, e parecem intercambiáveis.
190
Farinatti (2003) sublinha a diversidade de atividades pecuárias agregadas sob a rubrica “peões
livres”, em meados do século XIX na região central do estado.
191
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, processo 623 (1888),
depoimento de Gesuíno Antônio de Oliveira, f. 9
192
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
denúncia do Promotor Público Jerônimo de Oliveira Neves f. 2.
193
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
depoimento de Manoel Joaquim da Silva, 17/3/1891, f.19.
116
juntos, ou talvez uma espécie de vingança por deixá-lo em um momento em que a
escassez de braços pairava como temor ou risco.
Contudo, Leopoldino não era fazendeiro. Parecia ser ele também
subordinado a Fogaça, ao menos é o que se depreende do depoimento deste último.
Relatava ele que na ocasião, ambos se achavam trabalhando juntos, já que ele
ordenara a Justino que trabalhasse em companhia do denunciado, que se achava
fazendo taipas para ele. O próprio réu reconhecia que havia sido empregado de
Fogaça
194
. Trabalharam juntos até que o taipeiro teve, então, uma oportunidade
para executar um crime contra seu ex-peão. Na noite fatídica, Justino “retirou-se
para fora de casa sem que dissesse a ele testemunha” (desta observação se
depreende que havia, da parte de Fogaça, uma expectativa de satisfações por parte
de seu peão Justino quanto a seu paradeiro), não retornando mais
195
.
O documento traz a informação de que a vítima era ex-escravo da família
Dutra. A seguinte argumentação foi apresentada para justificar a suspeição sobre o
denunciado: “a circunstância de ter o denunciado ocultado sua retirada, não
havendo para tal procedimento um motivo justo, pois entre ele e Fogaça não existia
a mínima desinteligência, fez desde logo suspeitar um crime”. Trocando em
miúdos, a mobilidade espacial os tornava suspeitos, enquanto a estabilidade em um
trabalho os tornaria mais confiáveis
196
. Foi perguntado a uma testemunha se antes
de Leopoldino ir embora ele havia ajustado contas com seu patrão Manoel Jacinto
Fogaça
197
. Aparentemente, há uma tentativa de fixar a mão-de-obra por meio da
retenção de pagamentos pendentes; ir embora sem recebê-las é um sinal claro de
suspeição
198
. Além disso, o processo reforça a idéia de que os antigos senhores
(Dutra) não eram, necessariamente, aqueles a quem se prestava serviços
(Leopoldino de Oliveira Conceição e Manoel Jacinto Fogaça)
199
. Justino obteve
194
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
interrogatório a Leopoldino de Oliveira Conceição, 18/5/1897, f. 78.
195
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
depoimento de Manoel Jacinto Fogaça, 17/3/1891, f. 21v.
196
Na Louisiania pós-libertação dos escravos deu-se o mesmo entre trabalhadores negros; conforme
Scott (2005 p. 164), os mesmos eram “concebidos como ameaça à ordem social caso deixassem seu
local de trabalho e, se armados, como potenciais agressores”. Conforme desenvolvido no capítulo
anterior e no presente, era esse o discurso de Rodrigo de Azambuja Vilanova sobre os ex-escravos.
197
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
depoimento de Victorino Nunes de Oliveira, 28/4/1891. f. 29.
198
Barcelos et al. (2004 p. 136) apresentam um caso, em Morro Alto, no qual as dívidas por anos de
serviços prestados só foram pagas em inventário post-mortem, e em terras.
199
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1891),
denúncia do Promotor Público Jerônimo de Oliveira Neves f. 2.
117
posições diversas no mercado de trabalho pós-abolição. Elas não estavam restritas a
indivíduos de famílias ilustres e proprietárias de grandes extensões de terras; este
caso e o de Afonso Augusto do Carmo, logo abaixo, demonstram que o
qualificativo “peão” era mais amplo: também podia ser um qualificativo
empregado para quem prestava serviços para pessoas com menos recursos.
Se o trabalho pastoril ofereceu serviço para um número maior de pessoas, o
fez com certa diversidade. As atividades pecuárias eram tão presentes no ambiente
dos campos de cima da serra que sua prática era quase padrão: a maior parte as
dominava, quer se dedicassem a isso, quer não. Um exemplo é o já mencionado
caso de Veríssimo que, embora o processo não sugira em nenhum ponto que
pudesse obter seu sustento como peão, é encontrado, na fonte, lidando com
animais, conduzindo cavalos, etc. Em um total de 26 pessoas vinculadas a
trabalhos pecuários (quase metade daquele conjunto de 56), 2 se dedicavam a
atividades como a condução de tropas; 9 e mais a quantidade indeterminada de
“campeiros da casa” de Pacheco, descrita supra, eram campeiros ou peões,
simplesmente; havia 5 capatazes; 6 indivíduos se dedicavam tanto a atividades
agrícolas quanto pecuárias; ao menos 3 peões também eram capangas de seus
antigos senhores; havia também um “criador”.
É um tanto óbvia a presença de antigos cativos desempenhando estas
atividades: afinal, apenas davam continuidade a trabalhos já praticados desde o
tempo da escravidão
200
. Menos óbvia, porém, é a situação dos que se voltaram
tanto à pecuária, quanto à agricultura (três deles já são conhecidos dos leitores
deste texto: Fructuoso, Prudêncio e Elias, que declarou-se “lavrador” e “peão” em
diferentes depoimentos). Seria tentador observar nestas práticas uma tentativa de
diversificar a forma de sustento a fim de fazer frente às dificuldades imediatamente
posteriores à aquisição da liberdade, quer plantando e cuidando de animais para si,
quer fazendo o mesmo para outrem. Certamente, essa interpretação tem um fundo
de verdade. Todavia, Osório (1999) demonstrou a importância de unidades
produtivas mistas no Rio Grande do Sul desde o período colonial. É plausível supor
a existência do mesmo fenômeno em São Francisco de Paula em fins do século
200
Trabalhos como os de Osório (1999) e Zarth (2002) apresentam a diversidade dos trabalhos
desempenhados pelos escravos no meio rural, idênticos aos constatados na tabela. Mais interessante
é o estudo de De Bortolli (2003), por debruçar-se sobre uma região em muitos aspectos assemelhada
a São Francisco de Paula – os municípios de Cruz Alta e Palmeira das Missões, no planalto médio,
eram regiões serranas onde a criação de gado era uma das principais atividades econômicas (ainda
que a extração de erva-mate disputasse essa condição). A autora verificou as mesmas atividades.
118
XIX, o que só pode ser confirmado, é claro, por uma pesquisa de história agrária
201
.
De qualquer forma, observando sob este ponto de vista, estes casos revelam-se
menos surpreendentes.
Considerando os que se dedicavam à agricultura (ou aparecem na
documentação desta forma), encontram-se nos processos 5 pessoas, das quais 3
foram consideradas “lavradores” e 2 “agregados”. Dos três primeiros casos, não há
muito a dizer: tratam-se de dois réus e uma testemunha que, perante a justiça,
afirmaram ser este seu modo de vida. Contudo, é realmente difícil saber quais
significados específicos esta qualificação assumia, já que ela não foi descrita nos
autos, sendo apenas um rótulo. Quanto aos “agregados”, Maria Caetana e
Veríssimo assim foram considerados, a partir da leitura dos autos. Já que foram
discutidos nas primeiras páginas deste capítulo, não serão analisados de novo.
Há um outro “agregado”, mas aparentemente este era, desde sempre, um
homem livre. Trata-se de Afonso Augusto do Carmo, réu em um processo por
agressão de 1881, resultante de uma tentativa dele raptar a menor Escolástica Rita
da Conceição, filha de Damásia de tal; perseguido por Desidério Ignácio da Costa e
Manoel Ignacio do Sul, respectivamente irmão e cunhado da mesma, neles
produziu ferimentos diversos
202
. No próprio documento, e como um discurso
policial (e não uma auto-identificação), o réu foi caracterizado como “preto” e
apontado como “agregado do senhor Serafim Rodrigues da Silva”. Cumpre notar
que a relação com este último passa por sua designação como “senhor”. Natural da
província de São Paulo (apesar da constante insistência, nos processos, de
considerá-lo “baiano”), veio para o Rio Grande do Sul junto com o exército, e,
uma vez aqui, desertou. Dirigiu-se a São Francisco de Paula, onde vivia há 9 anos e
foi recrutado por Bernardino Velho
203
,
onde tem vivido desde a morte de Bernardino Velho, já
falecido, e que sua deserção foi feita em Porto Alegre com tenção de
201
Um crime acontecido em 1890 demonstra a concomitância entre práticas agrícolas e pecuárias
(bem como dificuldades decorrentes) em São Francisco de Paula. Ocorreu um assassinato resultante
de uma briga na qual uma das partes jogou seus cachorros contra reses pertencentes a um vizinho. O
motivo pelo qual fez isso foi que os animais ultrapassavam as divisas das propriedades, pisoteando e
estragando campos e capoeiras que estavam sendo preparados para o plantio de feijão. [APERS, I
Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 652 (1890)] Ver no
capítulo 1 as disposições dos códigos de posturas municipais quanto à separação por cercas, currais
e mangueiras entre atividades agrícolas e pecuárias
202
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891).
203
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
interrogatório a Afonso Augusto do Carmo, 21/12/1881, f. 39v.
119
recolher-se a sua Província porém nesse município em sua passagem
o referido finado Bernardino que então era vivo o aconselhou para
parar em sua fazenda onde poderia empregar-se em trabalho com
vantagem visto parecer-lhe ser homem laborioso e por isso se
conservava nesse município no segundo distrito até o dia que foi
preso.
204
Seu processo ajuda a refletir sobre as limitações do sistema de trabalho
assalariado, naquele município, em um momento de redefinição de relações sociais.
Apesar da testemunha Francisco Mariano da Costa ter afirmado que o réu era
amasiado com Damásia, mãe da seqüestrada, João Antônio Martins alegava, pelo
contrário, que o réu era amásio de Escolástica
205
. Afonso também o confessava, em
seu depoimento, dizendo que a raptada era menor de idade, “sendo que desde
muito tempo já se acha amasiado com a mesma, que quando a conheceu já era
prostituída e que nunca raptou tal mulher e sim a convidou para viverem juntos, o
que ela aceitou livremente”
206
. Outras testemunhas também utilizaram da palavra
prostituição, contudo é mais provável que ela expressasse um comportamento
sexual divergente da norma vigente do que propriamente uma atividade
profissional. O fato é que esse relacionamento prévio entre seqüestrador e vítima
pode ajudar a entender porque Escolástica Rita, em seu depoimento, contou que
solicitara ao irmão e ao cunhado para que prendessem, mas não matassem
Afonso
207
. O réu entretinha relações, portanto, tanto com a vítima, quanto com sua
mãe; Roberto Fiel da Rosa, outra testemunha, afirmou de forma categórica que
ambas coisas ocorriam
208
. Assim sendo, quando Desidério e Marcos foram ao
encalço de Afonso a “mandado”
209
de Damásia de tal, é plausível supor que
houvesse, somados ao zelo materno, o ciúmes e a indignação do abandono.
204
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
auto de perguntas a Afonso Augusto do Carmo – 13/2/1881, f. 17.
205
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
depoimentos de Francisco Mariano da Costa – 15/8/1881, f. 27v e de João Antônio Martins –
28/12/1881, f. 35v.
206
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
interrogatório a Afonso Augusto do Carmo, 21/12/1881, f. 39v. Grifos meus.
207
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
depoimento de Escolástica Rita da Conceição – 14/2/1881, f. 8v.
208
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
depoimento de Roberto Fiel da Rosa – 28/12/1881, f. 37v.
209
A expressão consta da denúncia do Promotor Público Antônio José de Abreu, em 6 de fevereiro
de 1881. APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540
(1891), f. 2.
120
Recupero tais histórias não pelo melodrama, mas para melhor situar o clima
das divergências entre Afonso Augusto e seu “cunhado”/“enteado” e seu
“concunhado”/“genro”; e também, para melhor compreender algumas pistas sobre
a relação entre o réu e Serafim Rodrigues da Silva, de quem era agregado. Embora
se declarasse seu agregado, houve quem afirmasse que ele vivia sob o mesmo teto
de Damásia de tal
210
. Seria esta, sua filha, filho e genro, enfim, a família com quem
Afonso Augusto do Carmo se envolvera de forma talvez um tanto quanto
desastrada, também agregada de Serafim? É provável. Chamado a depor,
Rodrigues da Silva declarou que, na manhã do dia 7 de fevereiro de 1881, enquanto
achava-se no mato “melando”
211
, encontrou Marcos; esse encontro matutino pode
sugerir uma proximidade geográfica das casas de residência.
Seu depoimento não assume uma postura favorável a nenhum dos dois.
Embora tenha declarado que viu um ferimento do lado direito de Marcos e que fora
Afonso quem o fizera, ele não assume uma postura de enfática defesa de uma das
partes ou faz acusações a outra, como seria o mais provável em se tratando de um
indivíduo de sua clientela e outro não. Isso leva a crer que se tratava de conflito
entre subordinados, com o qual não pretendia envolver-se ou preferia responder em
âmbito privado.
As relações de trabalho no interior deste núcleo de agregados chama
atenção. Em seu depoimento, o réu alegou, argumentando por sua inocência, que
havia trabalhado, em algum momento do passado, para Desidério Ignácio da Costa
e Manoel Ignacio do Sul. Não recebera vencimentos salariais. Em dado momento,
porém,
os ditos Desidério e Manoel o mandaram chamar por
continuar a trabalhar, ao que ele respondente declarou que não ia,
pois que não era seu escravo
212
Desde então, tornaram-se inimigos mortais. Segundo seu relato, a acusação
era um embuste para persegui-lo, na medida em que vivia amasiado com a moça
havia tempo, que a levara com seu consentimento, e que não se responsabilizava
pela retirada de sua virgindade.
210
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
depoimento de Francisco Mariano da Costa, 15/8/1881, f. 27v.
211
Melar significa “Procurar e apanhar, no mato, o mel silvestre” (Bossle, 2003)
212
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 540 (1891),
interrogatório a Afonso Augusto do Carmo, 21/12/1881 f. 39v.
121
O documento evidencia a sobreposição de formas diferentes de organização
do trabalho: o assalariamento, a produção familiar e a escravidão. No momento de
decadência desta última, parece ter havido um curto-circuito, no qual o
assalariamento não era plenamente aceito e utilizado como forma preferencial de
remuneração. Lima (2005 p. 309-312) sublinha que os contratos de trabalho
colocavam em confronto expectativas distintas, em um momento em que ex-
escravos se empenhavam na construção de vínculos sociais e garantias para lidar
com a incerteza de maneira a minimizar a precariedade. Afonso Augusto julgava-se
merecedor de pagamento monetário por seu trabalho; é quase certo que esta fosse
uma forma de afirmar-se como “livre” em uma sociedade na qual ser “preto”
carregava conotações que remetiam ao cativeiro. Exatamente por este motivo, a
recusa dos demais em remunerá-lo e a resposta que ele deu a esta negação foram
suficientes para transformá-los em “inimigos mortais”. Por outro lado, é plausível
supor que Desidério e Manuel se recusassem a pagar o salário do acusado
justamente por sua inserção – dupla! – naquele núcleo parental. Sob o ponto de
vista da produção familiar, ao amasiar-se com mãe e filha, trabalhar pelo sustento
coletivo não era mais do que sua obrigação.
Rios (2005b p. 243-248) afirma que os salários eram a forma menos
importante, embora mais bem documentada, dos contratos de trabalho no mundo
rural, ao menos até a ascensão de Vargas. A definição das formas de acesso à terra,
da divisão quantitativa e qualitativa da produção entre o fazendeiro e o agregado,
dentre outros, possuíam relevância superior. Por serem firmados de forma oral e na
informalidade, foram acessíveis à autora por meio da realização de entrevistas. Sem
este recurso metodológico, que não foi aqui utilizado, é temerário propor qualquer
reflexão a respeito. O que se sabe, contudo, é que não foi de Serafim Rodrigues da
Silva que Afonso Augusto do Carmo cobrou o salário que acreditava merecer, e
sim de Desidério Ignácio da Costa e Manoel Ignacio do Sul. Naquela situação
ambígua das relações salariais, o acesso à terra parecia ser o mais importante, e a
exigência por uma remuneração pecuniária foi tida como uma provocação passível
de acirrar ânimos. Lima (2005 p. 295) assinalou que a implantação de um mercado
de trabalho livre esteve longe de ter se dado de forma homogênea e inconteste. Pelo
contrário, compreendeu uma “miríade de arranjos de trabalho que recombinavam
graus diversos de ‘liberdade’ e compensação financeira pelo trabalho”.
122
Outro processo criminal compulsado também demonstra estas ambigüidades
no estabelecimento das responsabilidades pelo pagamento de salários.
Encontramos, novamente, Manoel Ignacio da Costa (vulgo Manoel do Sul), mas
agora na condição de réu, por ter morto Antônio Silvério. Ele dirigiu-se à vítima
para cobrar uma dívida, e ouviu a seguinte resposta “tinha a encontrar o serviço de
um seu peão, que tinha trabalhado em uma roça de Boaventura José Velho, e que
quem tinha de pagar-lhe esse serviço era o mesmo denunciado; e não Boaventura
Velho”
213
. Essas imprecisões e discrepâncias na definição de quem era credor e
quem era devedor foram resolvidas através de diversas facadas desfechadas por
nosso conhecido. O processo não vai adiante, sendo interrompido à altura do libelo
acusatório. Todavia, a denúncia basta para perceber resistências em remunerar o
trabalho de um peão, e as dificuldades de definição de quem devia a quem.
Efetivamente, quanto aos peões, a documentação compulsada não permite
propor assertivas mais precisas a respeito de suas formas de pagamento. Farinatti
(2003) observa que até o terceiro quartel do século XIX era restrita a oferta de mão
de obra barata na região por ele estudada (Alegrete), devido à agricultura e à
criação em pequena escala; modificou-se aquela situação com a desagregação do
regime escravista, a instalação de imigrantes e a modernização pecuária. Talvez
ainda mais do que os agregados, as relações de trabalho dos peões permanecessem
na informalidade
214
. O acesso à utilização de parte do campo era, provavelmente,
uma das principais condições destes contratos informais (ver Rios, 2005b), o que
demonstraria haver continuidade, e não uma fronteira rígida entre “peões” e
“agregados”. É lícito supor que houvesse necessidade de complementar a dieta e a
subsistência de outras formas, considerando a significativa incidência de furto de
gado entre este grupo social. Tais acordos informais não necessariamente
implicavam em uma remuneração menor, mas certamente mais sujeita a conflitos
em momentos de divergência, e mais instável e sujeita às flutuações dos bons e
maus momentos, inclusive em termos militares.
Tal como nas atividades agrícolas, o qualificativo “peão” era formal e
genérico, já que são poucas as referências descritivas do trabalho por eles
desempenhado. Ao longo do texto estão citadas as poucas que obtive. Por outro
213
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 33 (1880),
denúncia, 22/12/1880 f. 3.
214
É bem verdade que aqui não foram pesquisados inventários, onde, nas dívidas passivas dos
inventariantes, podem constar suas contas.
123
lado, é possível recorrer à bibliografia para ter uma noção mais exata de em que
consistia seu trabalho. Machado (2004) estudou uma região diferente, mas próxima
de São Francisco de Paula – o planalto catarinense, em especial os campos de
Lages. Apesar de seu foco não ser a questão étnica, reconhece que boa parte
daqueles que eram qualificados como caboclos eram mestiços, e freqüentemente,
negros (p. 48). Sem pretender exibir um quadro em que os peões aparecessem
totalmente submetidos ao domínio dos fazendeiros, realiza uma descrição de suas
principais atividades no século XIX, que é de grande valia apresentar aqui, já que
assemelhadas àquelas dos peões serranos:
O peão era, normalmente, um morador agregado à fazenda
que possuía um pedaço de terra “de favor”. Ali, com sua família,
construía uma choupana de rachões de pinheiro e teto de palha,
mantinha uma pequena lavoura de subsistência, protegida do gado
por muros de pedra encaixada, cultivando feijão, milho, abóboras e
criando pequenos animais. O peão deveria dar conta de toda a lida
rotineira do campo: levar o gado para diferentes pastagens, capturar
as reses fugitivas, castrar os novilhos, construir açudes, dar sal,
curar bicheiras, construir currais e galpões, queimar as pastagens
secas no final do inverno, fazer marcação com ferro quente,
construir muros de taipa, caçar onças e pumas que rondavam as
proximidades da fazenda, domar cavalos e mulas, tosquiar ovelhas,
e, muito freqüentemente, tropear os animais até os locais de venda
ou abate. Como homem de confiança de seu patrão, o peão também
era um leal soldado à disposição das iniciativas políticas e militares
de seu chefe e, com razoável empenho, muitas vezes dava sua vida
nas revoluções e nas lutas contra desafetos locais de seu
comandante. (Machado, 2004 p. 67)
O engajamento de ex-escravos como contingente militar, capangas, etc, de
seus antigos senhores estava longe de ser uma novidade histórica: tal fato constituía
tradição no Brasil desde o período colonial. Conforme Lara (1988 p. 193-207), os
escravos compunham “milícias particulares” dos (ex-)senhores, constituindo-se no
seu “braço armado” entre meados dos século XVIII e início do oitocentos. A
utilização do trabalho cativo como capangas permaneceu durante o século XIX, e
mesmo após 13 de maio de 1888. Esses serão retomados no capítulo seguinte.
124
Nos processos criminais analisados nos quais os salários foram pivô de
conflitos, não esteve em questão o seu valor, mas se seriam pagos ou não. O
pagamento não necessariamente era mensal, podendo ser por jornada ou por
empreitada. No ano de 1877, mês de outubro, ocorreu uma batalha de faca e foice
entre Martinho Lemos Cavalheiro e Procópio José de Jesus. Este último dissera ao
primeiro que ele era “ladrão, mas ladrão de suor alheio”, desencadeando o ataque
daquele, que sentiu-se ofendido. Procópio, por sua vez, ofendeu Cavalheiro por ter
ele se recusado a pagar-lhe uma conta de 10$000 réis. O diálogo entre ambos é
descrito de formas diferentes por cada testemunha. É recorrente, porém, o relato de
que Cavalheiro recusou-se a pagar afirmando não ter dinheiro, ao que o réu
replicou que para apostas ele tinha; o contratante de seu trabalho, portanto, lhe
dissera para “falar com atenção” “quando falasse com homens”
215
.
O processo, iniciado ainda na década de 1870, evidencia, antes de mais
nada, uma percepção hierárquica da relação entre Cavalheiro e seus trabalhadores.
Procópio José de Jesus, homem livre, trabalhava junto a Manuel José e ao Crioulo
Inácio. Certamente tal situação levou Lemos Cavalheiro a não admitir posturas que
não admitiria entre cativos, equiparando-o a aqueles. A ideologia senhorial admite,
exclusivamente, a soberania da vontade do senhor como determinante das relações
sociais, definidas por concessões por ele concedidas. No entanto, tal lógica perdera
qualquer substrato real, correspondendo, antes a uma ficção ideológica (Chalhoub,
2003). A tentativa de Procópio reivindicar aquilo que entendia como um direito foi
interpretado como afronta pelo denunciante. Isso fica claramente expresso no apelo
para que “falasse com atenção”. Procópio “faltou com a atenção” ao pedir o
pagamento de algo que lhe era devido, ao colocar em questão a destinação e a
forma de administração que Cavalheiro dava a seu dinheiro, e, finalmente,
insultando-o de ladrão. Na impossibilidade de puni-lo pela insolência aplicando
castigos exclusivos dos escravos, atacou-o como homem livre, utilizando uma faca
e ficando, de saldo, com dois cortes de faca de três dedos de largura e mais quatro
ferimentos leves na mão esquerda.
Todos processos encontrados referentes a conflitos envolvendo questões
salariais antecedem a abolição da escravidão (depois de 1888, o assalariamento
215
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 28 (1877).
Iniciei a leitura deste processo porque ele foi concluído em 1888. Depois percebi sua data de início;
ainda assim decidi mantê-lo no universo de processos criminais pesquisados devido a sua riqueza.
125
deveria ser um pressuposto) e nenhum envolveu alguém explicitado como ex-
escravo. Talvez antes do fim desta instituição o trabalho livre existisse como um
problema que despertava a atenção dos contemporâneos, adquirindo maior
visibilidade. Sua remuneração, por seu turno, tal como a “cor”, deveria ser um
tabu.
No entanto, é óbvio que conflitos salariais perpassaram o pós-1888. Talvez
não tenham adquirido expressão documental tão clara quanto antes, em São
Francisco de Paula, por uma omissão: tal como se pressupunha a “questão racial”
como resolvida, talvez acontecesse o mesmo com o problema salarial. É um
problema a ser investigado. Certo mesmo, porém, é que nem todos os
“Cavalheiros” da serra gaúcha abandonaram suas concepções hierárquicas na
aurora do dia 14 de maio de 1888.
Ainda assim, novas perspectivas começavam a se delinear, a partir de uma
legitimação social do trabalho livre. Não pagar o salário de empregados começava
a aparecer, no imediato pós-abolição, como indicativo de suspeição sobre alguém.
O leitor haverá de lembrar de Leopoldino de Oliveira Conceição, acusado de matar
Justino, ex-escravo dos Dutra, que trabalhava com Manoel Jacinto Fogaça. Tendo
sido julgado culpado e tido uma sentença de condenação assinada em 12 de junho
de 1891, o réu recorreu da decisão. Novo julgamento foi realizado em maio de
1897. Seis anos após, Leopoldino invertia e direcionava contra Fogaça o argumento
que foi utilizado. Para ele, a ausência de ajuste entre as contas não pesava contra si
e sim contra seu acusador, pois este ter-se ia recusado ao pagamento: “o qual
depois de negar o pagamento de seus salários fê-lo prender apresentando como
autor da morte que se lhe atribui”
216
. O argumento não foi muito eficaz, pois o réu
recebeu uma condenação a 30 anos de prisão; contudo, o caso evidencia que, ao
menos de sua parte, aquele era uma alegação que poderia e deveria ser acatada pelo
júri; esta era ao menos sua expectativa.
Antônio Rodrigues Pedroso tentou empregar argumentação similar.
Segundo denúncia da Promotoria pública, “seduzido por promessas de
recompensas por parte dos denunciados” Oliveiro de Souza Rabello e Antônio de
216
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 659 (1892),
interrogatório a Leopoldino de Oliveira Conceição, 18/5/1897, f. 78.
126
Souza Rabello, teria matado José Machado Schülltz
217
. Pedroso não negava a
realização do crime, contudo demonstrava frustração, pois “depois dele
respondente ter cometido o mencionado crime não recebeu de Oliveiro de Souza
Rabello e seu filho Antônio de Souza Rabello proteção alguma e nem dinheiro e até
mesmo nem pagaram os serviços que ele respondente prestou como peão ao
referido Rabello e seu filho Antônio”. O réu mais se preocupou com o pagamento
do que lhe era devido do que com a garantia de sua absolvição.
O processo associa diretamente as funções de capanga e peão
desempenhadas pelo réu, já que o mesmo aproveitou-se do momento em que
acusações eram dirigidas a ele devido a uma destas atividades, para cobrar créditos
que detinha em virtude de outra. Definitivamente, em fins do século XIX não havia
a separação entre esses empregos que contemporaneamente se poderia esperar.
Os autos demonstram que diversas testemunhas davam razão a Antônio
Pedroso, reconhecendo a legitimidade tanto da remuneração pela execução (que
não pode ser considerada, exatamente, um pagamento salarial) quanto pelos
trabalhos de peonagem. É o caso de Antônio da Cunha Cazuny e de Ledorino de
Oliveira Pindo
218
, que corroboram as informações trazidas por Pedroso. Ledorino,
aliás, também havia sido peão dos Rabello e por essa razão sabia que eram de
“maus costumes” e “amigos do alheio”, tendo roubado porcos do depoente. Ao fim
das contas, Oliveiro e seu filho foram absolvidos (quando muito, porque eram
processados por serem mandantes de um crime, e não por não honrarem as dívidas
contraídas com os executores). Quanto a Pedroso, seu destino foi registrado em
outro processo criminal, não localizado. Absolvido ou condenado, o fato é que se
construía, sutil e muito lentamente, uma idéia de que os patrões deveriam pagar
seus empregados, noção esta fundamental para a implantação de um regime de
trabalho livre. Essa noção era construída também através de tribunais, mesmo se
nem sempre levada em conta por júris e juízes.
Quanto ao trabalho feminino, pode-se destacar que ele podia ser quase
sempre encaixado na rubrica “serviços domésticos”. Dentre as 13 mulheres
identificadas na tabela apresentada, 9 dedicam-se a tal labuta. Deduzindo uma
217
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 27, processo 734 (1899),
denúncia, 6/2/1901, f. 1.
218
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 27, processo 734 (1899),
depoimentos de Antônio da Cunha Cazuny (11/3/1901, f. 17v) e Ledorino de Oliveira Pindo
(11/3/1901, f. 18v.).
127
agregada (Maria Caetana) e uma viúva que aparentemente se dedicava aos
cuidados de seu lar, e não do de outrem – uma dona de casa, Teodora Moreira da
Silva, viúva bastante idosa
219
, restam duas de profissões desconhecidas.
Sob o rótulo genérico que acompanhava as demais, encontram-se mulheres
que lavavam roupas, cozinhavam, cuidavam da higiene da casa e pessoal das ex-
senhoras – impossível não lembrar-se de Bibiana banhando e trocando os trajes da
patroa durante seu ritual de assassinato – costuravam e serviam como “pau-para-
toda-obra” para trabalhos domésticos de toda ordem. É claro que o caso de
Teodora Moreira da Silva deixa claro o caráter ambíguo da “profissão”, nunca
ficando claro quando os serviços realizados eram para si ou para outrem. Mas, em
se tratando de um apanhado de ex-escravas, comprovadas ou prováveis, o mais
certo é que as demais trabalhassem para outras pessoas.
Os registros civis de São Francisco de Paula são uma boa fonte para a
percepção de outros aspectos de suas vidas. Em 15 registros a profissão da mãe é
identificada como “serviço doméstico” e em mais um como “criada”. É uma
quantidade ínfima, considerando que foram pesquisados um total de 496 registros
entre 1893 e 1903
220
. A profissão da mãe raramente era apontada; além desses 16
casos apenas D. Maria José Soares de Moura, criadora, tal como seu marido João
Soares de Moura, teve tal registro realizado. É claro que não há nada nos registros
civis que permita afirmar tratarem-se de antigas escravas; no entanto, é possível
perceber com tranqüilidade que eram moças pobres que trabalhavam na casa de
outrem. É possível que ao menos algumas delas tivessem passado pela experiência
do cativeiro individualmente, ou tivessem vínculos por meio da vivência de seus
pais.
Quatro sequer tinham sobrenome; em apenas quatro casos as crianças
registradas eram legítimas. Destas, apenas dois nasceram na casa de seus pais, e
foram estas mesmas as únicas que foram registradas pessoalmente pelos mesmos.
As duas outras legítimas foram registradas pelas respectivas mães, em cujas casas
nasceram. As doze demais, filhos naturais, vieram ao mundo: uma menina na casa
de sua avó (sendo registrada por um tio-avô), três crianças em casas de suas mães
219
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 550 (1881).
220
RCSFP – livro A-1 (1893-1903). Entre os matrimônios, há uma maior quantidade de registros de
profissões de mulheres. Independente de indícios quanto a ser ex-escrava ou não, 183 noivas (em
um total de 233) tem sua profissão registrada, e a de todas elas é “serviços domésticos”. RCSFP –
livro B-1 (1891-1905).
128
(duas registradas pelas respectivas e mais um por Marcelino Lourenço Netto, um
“terceiro”) e oito na casa de terceiros, dos quais dois foram registrados por suas
mães e os demais por tais “terceiros”.
É impossível creditar ao acaso, por exemplo, a baixa taxa de legitimidade,
ou a alta incidência de crianças nascendo sob o teto de pessoas sem nenhum
vínculo explícito com suas mães, especialmente se compararmos com o conjunto
dos registros onde há um esmagador predomínio de nascimentos legítimos nas
casas dos pais das crianças. Por outro lado, o filho natural não era,
necessariamente, uma criança sem um pai que o reconhecesse (Mattos, 1998 p.
303). As uniões consensuais, ainda que legítimas do ponto de vista dos envolvidos,
continuaram a não ser reconhecidas pelo Estado, tal como não eram pela Igreja. Os
pais destas crianças podiam ser os homens que as registravam, patrões ou não de
suas mães.
Não é muito difícil deduzir que vários dos proprietários das casas onde
aconteciam os nascimentos eram os patrões daquelas mães, diversos dos quais
antigos senhores das mesmas. A prática de efetuar o registro de seus filhos poderia
representar, por um lado, a afirmação do pertencimento da criança à sua clientela,
da mesma forma como eram registrados os menores por seus senhores durante o
período escravista; podia decorrer do desinteresse por parte das mães em realizar
um registro que pouca diferença faria em suas vidas; e podia significar, ainda, uma
obrigação tácita, mas jamais assumida, decorrente de ser pai dos menores.
É comum, nos registros em que os filhos de uma mulher solteira são
registrados por homens, a anotação da informação de que os mesmos eram idôneos.
Parece uma tentativa de, antecipadamente, abster-se da responsabilidade quanto à
paternidade da criança. Se era necessário precaver-se da suspeita, era porque havia
margem a acusações desta natureza, por ser prática socialmente difundida.
Selecionando no conjunto de registros civis as mães de profissão “criada” ou
“serviço doméstico”, constata-se uma boa proporção de crianças cujo nascimento
foi declarado por terceiros (boa parte das quais nascidas em suas casas).
129
Tabela 4 – Registros civis – Mulheres de profissão “serviço doméstico“ ou “criada”
conforme declarante e local de nascimento dos filhos.
Proprietários
da casa de
nascimento das
crianças
Declarante no registro
Pais
Mães
Tio-avô
Terceiros
Total
Pais 2* 2
Mães 2* + 2 1 5
Avó 1 1
Terceiros 2 6 8
Total 2 6 1 7 16
* Legítimos
Relações de parentesco definidas em relação à criança. Fonte: RCSFP – livro A-1 (1893-1903)
Selecionando conforme critério diferente, e obtendo uma amostra superior,
percebe-se um padrão similar entre os nascimentos escolhidos em função de
declarantes que não fossem apontados como familiares do sexo masculino (pais,
avôs, irmãos, tios e tios-avôs). Isso foi feito para excluir do conjunto aquelas
crianças que tivessem algum referencial masculino que as conferisse
legitimidade.Fica claro o elevado número de crianças nascidas em casas não
pertencentes aos seus familiares, em uma proporção superior à do conjunto dos
assentos
221
. Ou seja, há uma correlação positiva, portanto, entre crianças que não
fossem dessa maneira legitimadas e o nascimento na casa de outras pessoas, o que
pode ser indicativo de trabalho doméstico ou vínculos de dependência.
221
Em 421 (84,8%) de um total de 496 registros o declarante é o pai do recém-nascidos. 412 (83%)
crianças nasceram em casa de seus pais. RCSFP – livro A-1 (1893-1903)
130
Tabela 5 – Registros civis efetuados por declarante não familiar do sexo masculino
(conjunto dos registros)
Proprietários
da casa de
nascimento
das crianças
Declarante no registro
Avó materna
Terceiros
Mãe
Vizinho
Total
Avó materna 1 1
Terceiros 20 4 24
Mãe 12 3*+23 38
Pais 2 2
Ignorado 1 1 1
Total 1 32 32 1 66
* Legítimos
Relações de parentesco definidas em relação à criança. Fonte: RCSFP – livro A-1 (1893-1903)
Considerando um grupo definido em função de não ser o pai ou sua família
quem registrava o rebento, há pequenas modificações em relação ao grupo definido
a partir da profissão “serviços domésticos” ou “criada”. O índice de legitimidade
ainda é baixo, o que é conseqüência direta dos critérios de seleção. O equilíbrio
entre mães e terceiros, ao realizar o registro, se mantém, mas ao contrário de antes,
há mais crianças nascendo em casa de suas mães do que na de outrem. Certamente
esta amostra dá conta de universo superior ao das serviçais domésticas: ao envolver
aquelas crianças cujos pais não foram registrá-las, engloba dramas familiares que
não necessariamente tem a ver com as atividades de trabalho aqui colocadas. No
entanto, algumas sutilezas da fonte apontam para relações sociais como as
delineadas anteriormente. Novamente, os envolvidos nos processos insistiam em
deixar clara sua idoneidade e afirmar serem solteiros.
No dia 16/6/1900, Antônio Ferreira de Castilhos dirigiu-se ao cartório para
o registro de uma criança a que Maria Francisca Leite dera a luz. Cumpria mera
formalidade, pois a menina nasceu morta na casa de sua mãe e nem chegou a ser
nomeada. O escrivão José Christino Ramos assinou a rogo do declarante, e, ao
registrar sua história cometeu um ato falho, que no entanto pode ter resultado da
própria narrativa de Castilhos: "declarou que em casa de Francisca Maria Leite, no
dia dois do dito mês e ano sua, digo, a mesma senhora deu à luz"
222
. Que Ramos
222
RCSFP – livro A-1. Registro 307, f. 124v.16/6/1900. Grifo meu.
131
iniciou a apontar um vínculo entre o declarante e a mãe, é evidente. Mas, sua o
que, afinal? Serviçal? Ex-escrava? Agregada? Isso tudo é plausível. Era “sua”
alguma coisa. No entanto, se fosse apenas isso, haveria necessidade do escrivão
interromper a seqüência da escrita? Poderia ser também uma amásia, o que
justificaria que Ramos se detivesse a tempo de voltar atrás. São questões
impossíveis de serem respondidas, mas a inviabilidade não impede sua formulação.
Outras vezes se estabelecia uma relação de apadrinhamento entre o
declarante e a criança batizada. Foi o que fez, por exemplo, Pedro Vasem que,
além de registrar a pequena Georgina em 20/1/1903, filha de Lourença dos Reis,
tornou-se também seu padrinho, sendo sua esposa madrinha da criança; ou Acilino
José dos Reis, que registrou seu afilhado Francelino, nascido em sua casa em
dezembro de 1901, filho de Eva da Silva, sua criada, mulata
223
. Tal procedimento
podia dar expressão a uma relação de parentesco que não podia vir a público
enquanto tal, ampliar ou reiterar clientelas, perpetuar em relação ao filho uma
situação de dependência vivida com a mãe, ser uma tentativa de criação de uma
dívida de gratidão, dar vazão a alguma afetividade ou recompensa à mãe, ou ainda,
algo de intermédio entre tudo isso.
Retornando ao censo de 1872, percebe-se que eram as seguintes profissões
existentes entre os escravos da paróquia de São Francisco:
Tabela 6 – Profissões dos escravos na paróquia de
São Francisco
Homens Mulheres
Costureiras 8
Operários em Madeira 6
Operários em Edificações 16
Lavradores 241 69
Criados e Jornaleiros 123
Serviço Doméstico 44 354
Sem Profissão 115 103
Total 545 534
Fonte: Fernandes, Bustolin e Teixeira (2006 p. 145)
Apesar dos autores destacarem que o censo não deixa claro se os encarregados das
atividades agrícolas eram também responsáveis pelo trato do gado, percebe-se uma
223
RCSFP – livro A-1. Registro 453, f. 181v. 20/1/1903.
132
inegável continuidade entre o tipo de atividade não-especializada que os escravos
desempenhavam em inícios dos anos de 1870 e aquelas em que encontrei alguns
deles, não mais cativos, nos processos criminais, anteriores e posteriores a 1888.
Todavia, não é possível afirmar que inexistissem margens para diferenciação social.
Este é o caso de Francisco de Moraes, ex- escravo de Maria de Moraes,
acusado em 1880 de, junto com Balbino José da Silva, tentar apropriar-se de gado
de João e Manuel da Silva Córdova
224
. O primeiro réu era filho de Hilária Maria
Francisca, tinha a idade de 38 anos, afirmava ser lavrador, nascido na Capela de
São Jorge; seu curador o qualificava como alguém “miserável”
225
. Este seria apenas
mais um dentre tantos homens ligados ao cativeiro de alguma forma, por seu
passado, que apropriaram-se de gado de outrem. Todavia, o que diferencia este
processo dos demais é a maneira através da qual os acusados praticaram aquilo de
que eram acusados: por meio da adulteração das marcas dos proprietários para os
sinais de Francisco e Balbino
226
. É difícil saber se essa marca era somente um
expediente para dar o golpe, ou se Moraes efetivamente tinha gado em quantidade
suficiente que justificasse ter uma marca própria.
O fato de parte relevante das testemunhas ter reconhecido o novo sinal,
distinguível por não estar cicatrizado, como aquele deFrancisco José de Morais
aponta para a segunda alternativa: sua marca era conhecida pelos vizinhos, e não
uma invenção imediata. Admitindo que este tivesse um pequeno rebanho, é
possível pensar que ele tenha sido alimentado pelo roubo, mas em parte, também,
por aquisição pessoal e criação
227
. Ao fim do processo, Francisco foi absolvido ao
argumentar que não participara do crime, tendo apenas adquirido de Balbino um
animal roubado. Verdadeira ou não sua afirmativa, a idéia de um ex-escravo
comprando um animal não pareceu disparatada ao júri, e permitiu sua absolvição.
Resta pensar, ainda, em que terreno mantinha “seus” animais.
Considerando que Balbino José da Silva vendera para a amásia de Francisco uma
terneira com a marca deste último
228
, e que eles estavam sendo processados por um
224
Sua história já foi abordada no capítulo 1.
225
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara, maço 20, processo 541 (1881), auto de
qualificação do réu – f. 117
226
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 541 (1881).
227
A capacidade de acumulação deste grupo social pode ser melhor entendida quando se pensa, por
exemplo, nas alforrias adquiridas mediante economia própria ou por meio da colaboração familiar e
comunitária (Moreira, 2003, p. 271-291).
228
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 541 (1881),
depoimento de João Custódio de Souza, 20/1/1881, f. 24v.
133
ato comum contra os Córdova, era lícito imaginar uma espécie de sociedade ou
colaboração entre ambos (supondo, é claro, que o júri tenha se enganado quanto a
sua inocência). Se tal hipótese for verdadeira, porém, deveria tratar-se de uma
relação horizontal, e não hierárquica: o gado roubado, ao menos, recebia as marcas
quer de um quer de outro, e não apenas de Balbino. Assim sendo, é provável que o
gado ficasse em campos de Silva; ele era dono de “campo de sua propriedade, ou
arrendado, visto ser criador de gado vacum”
229
.
É impossível, e não é de meu interesse, avaliar a inocência ou culpabilidade
de Francisco. O processo criminal lança questões instigantes e deixa muitas outras
não respondidas. De qualquer maneira, inocente ou não, sócio de Balbino ou não,
deixando seus animais em seu campo ou não, criador de gado ou não, Francisco
era um antigo escravo que tinha sua marca, e ela era conhecida em uma dimensão
razoavelmente ampla. O que isso quer dizer?
O caso de Francisco de Moraes evidentemente é excepcional – mas não me
arrisco a afirmar em que sentido: pode tratar-se de um processo criminal sui generis
pelo réu apresentar uma característica não compartilhada pelos ex-escravos em seu
conjunto (marcar o gado com um sinal próprio) ou, pelo contrário, por evidenciar
uma característica que, de tão óbvia, não recebeu registro escrito até então (neste
caso, outros marcavam o gado, embora essa trivialidade só tenha se tornado digna
de nota quando foi pivô de uma contenda jurídica).
Judicializado ou não, o abigeato tornou-se parte da vida em liberdade em
São Francisco de Paula, como de resto também era da vida dos escravos e homens
livres, do mais humilde ao mais abastado.
Motivos para fazer churrasco
O roubo de gado foi um fenômeno comum em sociedades pós-abolição;
registrado nas Carolinas (do sul e do norte) e na Luisiana por Foner (1988 p. 100-
101), em Cuba por Scott (2005 p. 169) e no Recôncavo Baiano por Fraga Filho
(2006). Esta recorrência se deve à possibilidade que esta prática oferecia de
229
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, processo 541 (1881),
depoimento de Rafael José Pereira, 20/1/1881, f. 23.
134
ampliação da autonomia frente aos antigos proprietários, ao proporcionar fontes
alternativas de alimentação. Para o último autor, tais práticas representavam, para
os senhores, perigo e desordem, mas para os ex-escravos, uma ampliação das
alternativas de sobrevivência (Fraga Filho, 2006 p. 207); por outro lado, também
podiam representar uma festiva “morte simbólica” do ex-senhor e do regime
escravista (Fraga Filho, 2006 p. 197). Há fartos exemplos do mesmo fenômeno,
considerando que o imediato pós-abolição, no Rio Grande do Sul, deu-se de forma
concomitante à conflagração da guerra civil federalista.
Excetuando os homicídios, o abigeato foi o crime mais praticado, ou
denunciado, no município de São Francisco de Paula. Considerando, porém, as
tentativas não-jurídicas, pacíficas ou não, para resolução desses conflitos, é de fazer
crer que suas dimensões fossem superiores. Em diversos processos em que há
denúncia de outras coisas além do roubo de gado, o mesmo aparece em suas
páginas, quer como uma justificativa para atos de outra ordem, quer para qualificar
os antecedentes de algum envolvido, quer, ainda, por menção ocasional de alguma
testemunha. Por exemplo, em 1889 ocorreu um assassinato, realizado por
encomenda pelos executores. O crime foi pago com gado roubado
230
. Estes casos
também foram considerados, embora separados dos crimes “principais” sob a
rubrica de crimes “secundários”. O que os diferencia é se o abigeato era o foco
central da investigação. Quando o objeto central de uma contenda judicial era um
crime de abigeato, desencadeante das investigações e motivo de denúncia, o crime
foi considerado “principal”. Pelo contrário, nos casos nos quais estes delitos
apareceram nos autos de forma acessória e/ou passageira, foram qualificados como
“secundários”.
230
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 649 (1889).
135
Tabela 7 – Casos de abigeato em São Francisco de Paula (1879-1894), praticados
de forma individual ou coletiva, com ou sem indícios de participação de negros
Casos de abigeato nos processos criminais de São Francisco de Paula: 1879-1894
1879-1884 1885-1889 1890-1894
CP* CS* CP CS CP CS
8 1 5 3 11 8
Total 9 8 19
Casos de abigeato praticados de forma individual ou coletiva
1879-1884 1885-1889 1890-1894
CP CS CP CS CP CS
Individuais 5 1 3 3 3 4
Coletivos 3 0 2 0 8 4
Total individuais 6 6 7
Total coletivas 3 2 12
Casos de abigeato (individuais ou coletivos) com indícios quanto à participação de negros
1879-1884
1885-1889 1890-1894
CP CS
CP
CP CS
CP
Com indícios 1 0
3
2 8
5
Sem indícios 7 1
2
1 3
3
Total com indícios 1
5 13
Total sem indícios 8
3 6
* CP = crimes principais e CS = crimes secundários
Fonte: APERS – Processos-crime de São Francisco de Paula maços 1-4 e de Taquara, maços 19-27.
Após o fim do sistema escravista, o número de casos de roubo de gado
registrados em processos crime, quer em seu total, quer os de denúncias específicas
a respeito, mais do que dobra. Seria tentador atribuir este aumento apenas à
libertação da última geração de escravos, mas está vinculado, também, à guerra
civil. As interfaces entre este imediato pós-abolição e a Federalista são exploradas
com mais vagar no capítulo 3. Por enquanto, basta observar que não há somente
um crescimento numérico, mas também uma mudança qualitativa. Entre a segunda
metade dos anos de 1880 e a primeira metade dos 1890, os roubos de gado se
coletivizaram e cresceram os indícios da participação de negros nos mesmos, o que
é intrigante. O furto do gado “enegrece” enquanto tudo mais ao seu redor silencia
diante do quesito “cor”. Percebe-se, porém, a “cor” vindo à tona associada a
atividades enfaticamente condenáveis para a sociedade branca.
136
A atuação dessas “quadrilhas” não se restringiu ao abigeato; pelo contrário,
há longos inquéritos policiais, em cujas páginas aparecem investigações sobre
emboscadas e atentados, ameaças e espancamento de moradores. Existiram dois
tipos distintos de roubo de gado. Em alguns casos, o abate e o consumo do animal
seguem-se de forma imediata ao seu roubo, por vezes no mesmo lugar. Essas
situações geralmente eram individualizadas, mas também podiam ser realizadas
por pequenos grupos. Eram um meio de subsistência de fácil disponibilidade,
considerando que os campos não se achavam cercados e a dificuldade de vigilância
sobre a imensa extensão dos campos serranos. Há um curioso processo em que se
tentou apurar as responsabilidades por uma novilha carneada, jogada em um
arroio, com uma marca conhecida. Foi realizado um auto de corpo de delito e,
cumprida a formalidade de reconhecer que a rês, de fato, havia sido morta,
explicou-se assim o falecimento do animal: “a causa imediata é ou foi o hábito de
furtarem nos campos de pastagens e carnearem no campo”
231
. A investigação da
causa mortis da vaca (geralmente expressa segundo causas biológicas), foi explicada
em termos sociais. De certa forma, o abigeato foi considerado um mal social que
estava acometendo as reses indefesas.
Contudo, não se pode considerar o roubo de gado por meio da visão
chamada por Thompson de “espasmódica”. Com isso o autor queria criticar as
visões segundo as quais a ação social dos grupos populares tinha como lógica a
simples satisfação de demandas estomacais. Rejeitando a idéia de que os sujeitos
sociais fossem inertes vetores da fome sofrida, o autor buscou construir abordagens
mais complexas do comportamento dos camponeses ingleses do século XVIII,
levando em consideração sua cultura, a percepção sobre o que era e o que não era
considerado legítimo em termos econômicos; em suma, as maneiras como
culturalmente se lidava com a escassez de recursos (Thompson, 1998).
Segundo Foner (1988 p. 100-101) (ex-)escravos consideravam legítimos tais
furtos. A instauração da mão de obra livre implicou também na criminalização de
diversas práticas consensuais durante o período escravista. Sendo assim, o roubo de
comida do senhor para consumo próprio gozou de uma certa tolerância durante os
anos da escravidão. Afinal, era comida do senhor alimentando escravos a eles
pertencentes. Quanto tornaram-se livres, essa tolerância acabou, mas isso não
231
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 641 (1890).
137
significou que os furtos tenham cessado: haviam sido incorporados pelos escravos
não como uma indevida apropriação do alheio e sim como a continuidade da
utilização de algo a eles pertencente.
A argumentação de Foner, compartilhada por Fraga Filho (2006, p. 191-
193), para quem, também, tratava-se de um caso de acesso costumeiro a recursos,
parece bastante elucidativa. Todavia, só posso inferi-la aqui em termos
especulativos, já que, ao contrário daquele autor, não tenho nenhuma fonte
documental na qual se apresente a perspectiva dos ex-escravos acerca do significado
do roubo de gado. Em uma sociedade de economia baseada na pecuária, essa
transigência não deveria ser a mesma dos estados algodoeiros e açucareiros do sul
dos Estados Unidos. No entanto, alguns casos já discutidos apontam quer para a
possibilidade de solução não-judicial para casos menores de abigeato, quer para um
“consentimento tácito” para consumo dos animais. Relembrando Calisto e
Damásio, em sua solidão serrana discutida no capítulo primeiro, dificilmente
alguém descobriria se eles eventualmente consumissem algum animal. O mais
provável é que houvesse um consentimento tácito para o consumo, desde que não-
abusivo, do gado ali criado, simplesmente por estar ele fora do controle pleno pelos
Marques. Mais do que uma “acomodação” das tensões inerentes ao escravismo, o
que estava em jogo era a incapacidade dos senhores tudo ver e vigiar. Mesmo que
descobrissem eventual falta, ela poderia ser creditada aos ladrões de gado.
Por outro lado, alguns aspectos percebidos nas fontes documentais, se não
permitem acessar a “economia moral” dos ex-cativos em relação ao gado, ao
menos contribuem para a desconstrução da percepção “espasmódica” de seu
consumo. Diversos destes pequenos ladrões de gado roubaram cavalos, que
certamente não eram animais destinados à alimentação. É o caso de João
Marcelino de Freitas, reincidente, que roubou três cavalos entre 1888 e 1889, e de
Manoel Joaquim Padeiro, que roubou uma égua em 1890
232
. Além disso, é
improvável que sua dieta se resumisse a proteínas.
Em alguns processos de abigeato, os animais costumavam ser consumidos in
locu, e não nas casas ou ranchos. A discrição e a rapidez para concluir a refeição
não é uma explicação convincente: a fumaça e o cheiro de churrasco em um campo
aberto deveriam chamar a atenção. Há um contraste entre seu caso e o daqueles
232
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 646 (1888);
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 651 (1890).
138
que roubavam gado com intuitos comerciais; estes levavam os animais para casa e
ali preparavam charque e couros. O motivo é evidente: tais empreendimentos
exigiam maior tempo, perícia e equipamentos para aproveitar todas as partes do
animal, seus subprodutos, salgar, secar, etc. Mas nos casos em que pequenos
grupos se organizavam para a captura do gado e consumo local, é fácil associar o
churrasco, preparado sobre o fogo de chão, a um ambiente de sociabilidade,
sobretudo por se tratar de prática tradicional e duradoura. A carne apropriada
furtivamente costumava ser dividida e distribuída coletivamente (Fraga Filho, 2006
p. 198). O gado roubado era alimento não apenas para o estômago, mas na costura
de relações sociais entre os homens.
As propostas de Foner para os Estados Unidos levam a refletir sobre o
constatado e acentuado aumento de registros de abigeato: boa parte deveria existir
antes, sendo porém resolvidos na informalidade e na relação privada senhor-
escravo. Se houve um crescimento nos casos de abigeato judicializados, ocorreu
também muito alarde, por conta do temor da escassez de mão de obra na Província
e dos atos dos ex-escravos. Seu maior porta-voz foi Rodrigo de Azambuja
Vilanova. Para ele, a não equivalência dos antigos escravos à disciplina de trabalho
considerada correta pelos governantes era interpretada como “ingratidão”, e em
sua conseqüência advinha uma extensa lista de calamidades:
Mais de duas terças partes dos contratados daquele tempo
233
andam vagando pela cidade maltrapilhos, sem abrigo e sem pão,
freqüentemente hóspedes da cadeia e do hospital.
Na campanha a situação não é diferente; os libertos vivem
em correrias, vagando durante o dia pelas estradas e tabernas e
repartindo a noite entre o deboche e a rapina
234
.
Apesar da falta de braços não se encontra hoje um
jornaleiro que se sujeite ao trabalho por algum tempo, devido
aos hábitos de ociosidade que estão neles arraigados.
Assim, ao passo que escasseiam os braços para os trabalhos
de criação e lavoura, o serviço doméstico acha-se também
completamente desorganizado; a vadiagem progride
desenfreadamente; o abuso da aguardente marcha a par com a
233
Refere-se aos libertados mediante contrato de prestação de serviços de 1884.
234
Esta expressão inspirou o título da dissertação de mestrado de Paulo Moreira (Moreira, 1993),
sobre a criminalidade popular em Porto Alegre.
139
degradação moral; a prostituição toma proporções inquietadoras e o
pauperismo aumenta com esse grande número de indivíduos que,
lançados de chofre em um meio muito diferente daquele em que
viviam e cercado de novas e urgentes necessidades, estragam-se pela
maior parte na orgia vegetando em lastimável miséria, onde
fatalmente perecerão, arrastando a sua descendência. [Relatório
de 1887, p.71] Grifo meu.
As soluções prescritas para o cenário caótico pintado por Vilanova não eram
sutis: basicamente, repressão pura e simples. A ineficácia da legislação vigente para
castigar os desonestos tornava mais difícil sua punição
235
. Não fica claro como ele
julgava que deveria ser a lei, mas apostava em seu endurecimento. Reconhecia que
alguns dias na prisão não criavam hábitos de trabalho nos “vadios”. Ponderava ,
porém, que “na falta de outros meios de repressão”, esse não poderia ser
desprezado. Também era importante uma constante vigilância policial sobre os
“vagabundos” [Relatório de 1888 p. 5 e 71].
O Presidente da Província apostava em uma forma de repressão que
reconhecia ineficaz; ao mesmo tempo observava a inexistência de outros meios.
Não havia alternativa: a prisão não os transformaria em trabalhadores, mas não
havia outra prática repressiva plausível. Assim sendo, se infere que ele considerava
os “vagabundos” irrecuperáveis, devendo ser punidos, e não “preparados para viver
em liberdade”.
Não apenas o roubo de gado era uma característica comum às sociedades
pós-escravistas, mas também a preocupação com os “vagabundos” e com formas de
coagi-los ao trabalho. No sudeste cafeicultor também ocorreu, entre fins do império
e primeira década republicana, uma sobreposição entre os termos “vadio” e
“liberto”, de forma que a repressão aos primeiros geralmente acarretou no
cerceamento da liberdade dos segundos; tal ambivalência despertou denúncias em
relação aos “excessos”, isso tudo em meio a desavenças entre poder público e
privado. Os particulares não desejavam ver antigos escravos equiparados aos
homens livres anteriores a 1888, mas a manutenção de sua distinção como libertos
(Mattos, 1998, capítulo 10).
235
No relatório de 1887 [p. 15-16], criticava “Leis que em detrimento das classes pacíficas e
laboriosas deram carta branca ao banditismo com inteiro desprestígio da autoridade completamente
tolhida em seus meios de ação, especialmente os policiais”.
140
Em Campinas, contratos de trabalho durante os cinco anos posteriores à
libertação foram utilizados como arma para combate ao “ócio” e à “indisciplina”
dos ex-escravos, entendidos como fonte dos males sociais. A Câmara Municipal
aprovou leis para compeli-los ao trabalho, já que se considerava que os braços
escasseavam (Xavier, 1996 p. 100).
Para Azevedo, essa “escassez de braços” era uma afirmativa desprovida de
fundamentos quantitativos; sendo uma afirmação genérica utilizada como
justificativa para a necessidade de imigrantes. Um número crescente destes
certamente aumentaria a oferta de mão de obra disponível, barateando seus custos.
As acusações por vadiagem encobriam três questões fundamentais: o nacional
pobre resistia a submeter-se a um tempo de trabalho burguês, “externo às suas
necessidades de sobrevivência”; os entraves representados pelo domínio estatal (por
meio, por exemplo, dos recrutamentos) a esse processo de internalização; e o valor
dos salários exigidos pelos trabalhadores, sempre considerados altos
236
(Azevedo,
1987 p. 133-139).
Andrews associa a “ideologia da vadiagem” à recusa dos antigos cativos em
trabalharem nos moldes esperados pelos antigos proprietários
237
. Também os
homens livres pobres rejeitavam tais condições de trabalho, sendo coletivamente
taxados de “vadios, imprestáveis e vagabundos”. Desta maneira, só a força física
ou a coerção estatal seriam capazes de impeli-los ao trabalho (Andrews, 1998 p.
85). Mauch (2004) associa a criação da polícia no Rio Grande do Sul, na década de
1890, entre outras coisas, à necessidade de impor alguma forma de controle
institucional a indivíduos dele isentos, identificados com a desordem e com o
atraso.
Fraga Filho, por seu turno, identificou, na Bahia, uma tendência a associar
as camadas livres pobres a práticas ilícitas ou formas ociosas de sobrevivência.
Eram consideradas inclinadas para tal. Na segunda metade do século XIX houve o
reforço do estigma de ex-escravos como vadios e ociosos. Se essas questões já
preocupavam durante o Império
238
, depois de 13 de maio de 1888, houve uma
236
Fraga Filho (2006 p. 227) observa que o “roubo” fazia parte de um processo de imposição de uma
remuneração justa.
237
Os projetos e significados de liberdade para os ex-escravos eram definidos pelo contraponto às
características do trabalho no eito, em especial na plantation (Machado, 1994 e Mattos, 1998).
238
Andrews (1998 p. 86) destaca que a Lei Rio Branco já procurava evitar a vadiagem entre os
libertos; mesmo o código de posturas de São Francisco de Paula almejava um controle sobre as
atividades de mendicância, fosse exigindo autorizão policial para exercê-las (sob pena de prisão) e
141
escalada do controle policial sobre eles, acompanhando a tensão entre as
alternativas de subsistência fora dos engenhos e as pretensões senhoriais de torná-
los dependentes. O autor analisa com riqueza tanto a legislação anti-vadiagem,
quanto os conflitos no Recôncavo para compelir os ex-cativos ao trabalho nos
engenhos. Considerados insubordinados por estar perturbando o trabalho agrícola
ao abandonar as lavouras, os libertos não eram bem-vindos nos centros urbanos
para onde se dirigiam (Fraga Filho, 1996 e 2006).
Estudando a Jamaica, Holt constatou que, em contraposição às concepções
próprias dos jamaicanos sobre a vida em liberdade –ligada à conquista de uma
autonomia em relação ao modo de vida ocidental e burguês, retirando-se para as
colinas no interior do país e cultivando glebas próprias em bases familiares –
construiu-se o estereótipo do quashee, isto é, a estigmatização da ética do
trabalho
239
, da vida familiar e da sexualidade do jamaicano. Se não podia ser
mercado consumidor, mão-de-obra ou aburguesado, só restava ser enquadrado
como “preguiçoso, moralmente degenerado, licencioso e sem preocupações com o
futuro”. A partir da década de 1840, diante do crescimento numérico de pequenos
produtores negros na área rural, e do risco de desabastecimento do mercado de
trabalho “livre”, foi-lhes obstaculizado o acesso à terra. Havia, portanto, uma
contradição entre a imposição de um sistema liberal e a negação do mesmo quando
poderia favorecer os negros (Holt, 1992 e 2005).
Em Cuba, a noção de vadiagem era antiga mas vaga, adquirindo sentido
mais preciso na década de 1880, quando se acreditava que a emancipação dos
escravos poderia nela acarretar. Colocaram-se as mais diversas opiniões em pauta:
houve quem defendesse a internação dos ociosos, mas também foram propostas
soluções mais moderadas para o problema, quer pela dúvida quanto à eficácia de
determinando a devolução de esmolas obtidas para alforrias, caso estas não acontecessem. São
Francisco de Paula: CARIRGS, tomo 36, 1883, artigos 77-78, p.136.
239
Segundo a percepção dos contemporâneos, “the freed people had apparently moved into the
Jamaican hills, beyond the reach of civilizing forces, and reverted to an African barbarism. (…)
Thus, many of Taylor’s contemporaries formulated the problem as one of ‘cultural regression’, or
what one might call (invoking the contemporary stereotype) the “Quashee” sindrome. (…) ex-slaves
were culturally endowed with relatively simple aspirations that could easily be satisfied in a tropical
environment and worked just enough to gratify immediate desires” (Holt, 1992 p. 146-147).
[os libertos aparentemente deslocaram-se para os morros jamaicanos, além do alcance das forças
civilizatórias, e retornaram a um barbarismo africano. Então, muitos dos contemporâneos de
Taylor formularam o problema como uma regressão cultural, ou o que se poderia chamar
(invocando o estereótipo contemporâneo) de síndrome “Quashee”. (...) os ex-escravos contentavam-
se com aspirações relativamente simples, que podiam facilmente ser satisfeitas em um ambiente
tropical, e trabalhavam apenas o suficiente para satisfazer desejos imediatos]
142
penas draconianas, quer pelo temor da possibilidade de que os vadios, na estadia
prisional, se tornassem incorrigíveis. O problema voltou à ordem do dia com a
atuação de bandidos na ilha. No entanto, no combate ao banditismo também
pequenos proprietários eram pressionados a tornar-se assalariados e homens jovens,
coagidos a fixar residência. O banditismo tornou-se um ótimo argumento para uma
série de intervenções no meio rural. As relações entre este contingente populacional
e os fazendeiros, ainda que assimétricas, sempre envolveram algum grau de
reciprocidade: os ex-escravos lidaram com as poucas alternativas econômicas que
lhes foram deixadas pelos plantadores, assim como com a dominação política
destes; as estratégias de produção e de controle do trabalho, por seu turno, tiveram
que ser adequadas ao comportamento dos trabalhadores. (Scott, 1991 p. 222-229).
Foner (1988, capítulo II) observa que, no Sul dos Estados Unidos antes da
guerra da secessão, os campos eram indivisos, e o acesso à terra, regido de forma
consuetudinária. Tal como no município que analiso, a ausência de cercas
facilitava com que o gado circulasse e pastasse em terras que não necessariamente
pertenciam ao seu dono, mas também levava a conflitos por danos feitos por
animais em terras alheias e facilitava o roubo de bichos, tal como em São Francisco
de Paula.
No imediato pós-guerra, os negros e os republicanos brancos, seus aliados,
tomaram controle sobre as cortes locais, magistraturas de paz e delegacias; isso
levou a recorrentes queixas quanto à negligência do poder público diante de
assuntos como a disciplina dos antigos cativos, combate aos vagabundos e
repressão a invasões de terras. Havia uma exigência, por parte dos novos livres, por
lotes de terra como direitos adquiridos sob o cativeiro. A retomada do poder pelo
partido democrata, dominado pelos escravistas, em inícios da década de 1870,
frustrou estas expectativas e levou ao recuo em diversas conquistas.
O Estado tomou parte ativa no processo de definição do cercamento dos
campos, obstaculizando o acesso dos trabalhadores a recursos econômicos que até
então estiveram disponíveis. Trata-se do oposto do período anterior, quando a
distribuição de terras para os ex-escravos chegou a fazer parte da pauta de
discussões. Foner (1988) adota a perspectiva marxista segundo a qual, ao tornar-se
“livre” o trabalhador “livra-se”, também, do acesso aos meios de produção. As
medidas repressivas à vagabundagem tornavam-se necessárias quando somente a
necessidade econômica não era suficiente como meio de controle da mão de obra –
143
isto é, quando ele podia obter formas autônomas de subsistência – e a coerção
direta colocava-se como política de domínio.
A presença de uma fronteira aberta aumentava em muito a chance do
estabelecimento dessa existência autônoma, por meio da ocupação das terras
disponíveis (fossem terras arrendadas por algum fazendeiro incapacitado de ocupá-
las ou terras públicas baldias). Foi o que aconteceu na Colômbia, onde camponeses
negros ali desenvolveram roças próprias (Andrews, no prelo, capítulo 3).
A análise de Marx (1992 [1867] cap. XXIV) que inspirou Foner refere-se a
um caso de libertação não de mão-de-obra escrava, mas àquilo que considerava a
transformação do “modo de produção feudal” em “modo de produção capitalista”.
O autor preocupa-se em encontrar as origens históricas do capitalismo, mais
precisamente sua “acumulação primitiva”, associada diretamente à expropriação
da população rural – desde séculos XIV e XV composta por camponeses livres –
fazendo um levantamento de leis e práticas que, entre os séculos XVI e XVIII,
retiraram o acesso a suas terras. Em seguida, faz um apanhado da legislação
concomitante de repressão aos “vagabundos” (identificados especialmente com
aquele excedente que a manufatura não foi capaz de absorver), relacionando-a ao
controle destes expropriados. A “libertação” da mão de obra colocava também
como questão a criação de medidas de contenção e repressão aos novos homens
livres.
Essa viagem sul-norte, com direito à travessia do Atlântico (e de alguns
séculos) – Brasil, Colômbia, Jamaica, Cuba, Estados Unidos, Inglaterra – foi feita
porque o exemplo de outras sociedades pós-emancipação de escravos (ou mesmo
de servos), pode ser inspiradora, ao colocar problemas e questões a se pensar. Não
tenho notícia de campos cercados em São Francisco de Paula no período por mim
estudado; mas o fato é que ainda assim havia um contingente populacional que se
queria manter sob controle, e preocupações com a manutenção de um mercado de
trabalho favorável aos fazendeiros. Em diversos exemplos históricos, quando não
foi possível o constrangimento ao trabalho por vias somente econômicas, o Estado,
em podendo, apelou e interviu diretamente, quer por meio da legislação, por meio
da repressão ou mesmo através do mercado de terras.
Em São Francisco de Paula, por outro lado, havia dificuldades para o
Estado conseguir impor sua autoridade. O município teve dificuldades para se
estruturar, e quando o fez, foi de forma muito precária (ver, no capítulo 1, as
144
sucessivas reestruturações administrativas). Em contrapartida, se os ex-escravos
tinham diversas alternativas de vida e de abrigos proporcionados pela geografia
peculiar da região, foi necessário aos fazendeiros negociar com seus antigos
escravos, cativá-los ou compeli-los de alguma outra maneira, e foi o que fizeram.
Anos após, a guerra civil federalista levaria os ex-senhores a uma certa
dependência dos antigos escravos como contingente militar. Na medida em que as
tensões políticas estaduais foram se intensificando, foi crescendo também o número
de “quadrilhas” nas quais diversos “vagabundos” – não necessariamente ex-
escravos – atuavam, assim como os esforços dos proprietários para cooptá-las para
si. Mas, antes de conhecermos o cenário da guerra, é necessário observar aqueles
que roubavam gado de forma profissional.
Francisco Nunes, junto com muitos outros, roubava gados no segundo
distrito; dentre estes estavam os animais pertencentes aos Nunes, família junto à
qual “se criara”. A este bando também pertencia o “crioulo” Saturnino (às vezes
também chamado de Saturno). Sua atuação ensejou a abertura de um inquérito
policial específico para investigar o furto de gado por ele cometido
240
. Durante as
investigações, uma testemunha fez uma correlação direta entre sua situação social e
o crime de que era acusado:
Saturnino de tal, ex-escravo de Dona Henriqueta Soares do
Amaral, depois que saiu da companhia de sua ex-senhora, vive
exclusivamente do furto de gado das fazendas de criação e campos
de pastagens deste município; que desde aquele tempo que mudou-se
para Três Forquilhas e lá convive com Francisco Gross, Cândido de
tal, conhecido como Candinho Baiano, Miguel Gralha, Ascêncio
Bicudo, Manoel Salvador, Demétrio de tal, com quem costuma sair
a este município, d’onde levam pontas de gado de vinte reses e
mais
241
.
O trecho selecionado apresenta uma interpretação senhorial sobre as causas
do furto de gado, associadas ao fato dos ex-cativos não mais estarem “em
companhia” (sob controle) dos ex-senhores. Por outro lado, alguns processos da
época do escravismo apresentam cativos que roubavam justamente por obediência
240
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 655 (1890).
241
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 26, processo 655 (1890),
depoimento de Victorino Nunes de Oliveira – 27/9/1890, f. 11.
145
a ordens e determinações de terceiros
242
. De qualquer maneira, seu depoimento traz
à tona outros aspectos que aqui se pretende discutir: a atuação inter-étnica na
prática dos delitos
243
e a venda deste gado roubado para a região litorânea.
Esses dois últimos aspectos estavam muito ligados, já que a existência de
circuitos comerciais ligando núcleos coloniais e serranos estimulava a atuação
conjunta de negros, imigrantes alemães e “nacionais” brancos. No mesmo trecho
selecionado do processo de Saturnino, em que é mencionada sua ida para Três
Forquilhas, destaca-se entre diversos integrantes, alguns de nomes alemães, fato
que acontece também em outros depoimentos.
Tramontini demonstrou que a realidade das colônias européias no Rio
Grande do Sul durante o século XIX não era de isolamento, como geralmente se
quer acreditar. O autor enfatizou a “tensa, mas real e concreta, relação com o
mundo social, econômico e jurídico brasileiro” (Tramontini, 2000 p. 141). Mesmo
que se refira a período anterior (1824-1850) e centre-se em São Leopoldo, o
problema da inter-relação entre imigrantes e “nacionais” é comum a outros
períodos e núcleos coloniais. As regiões de imigração alemã e italiana, na serra ou
no litoral, foram as principais consumidoras do gado roubado em São Francisco de
Paula. Para ser exato, foram os únicos mercados mencionados nos processos
estudados.
Em 13/7/1888, chegaram à colônia de Nova Trento, 5
o
distrito de São
Sebastião do Caí, André Guilherme da Silva e Pedro Felipe. Traziam consigo três
vacas, que pretendiam vender por 10$000 cada uma. Além de exemplificar a venda
de gado serrano em área de colonização italiana, o processo evidencia que uma
modalidade mais comercial de roubo e comércio de gado não era praticada
somente por grandes grupos. Para simular serem, de fato, vendedores de gado legal,
eles encenaram relações hierárquicas entre si. Um desempenhou o papel do patrão
e outro “fez” o peão. Os colonos rapidamente desconfiaram tratar-se de animais
242
Por exemplo: durante as investigações sobre roubos praticados por Euzébio de Moraes, este
afirmou que aprendeu a roubar com “seu senhor moço” Diogo Pedroso de Moraes, que o mandava
furtar gado de Olivério Pedroso de Moraes e Felisberto Soares de Oliveira. [APERS, I Cartório de
Cívil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 25, processo 636 (1890)].
243
Monsma, Truzzi e Conceição (2003), estudaram uma quadrilha de calabreses em São Carlos, na
mesma época, percebendo que a etnicidade foi elemento importante para recrutar e manter coeso o
grupo. Em São Francisco de Paula, pelo contrário, ao menos de acordo com os dados levantados,
predomina um padrão mais permeável.
146
roubados. O preço muito barato os denunciara. No dia seguinte, Silva foi capturado
pelos habitantes dali, enquanto Pedro Felipe fugiu
244
.
Para ser bem-sucedidas, portanto, as vendas de couros, de carne, charque e
de animais necessitavam de receptadores confiáveis em seu destino. Os envolvidos
não estavam enganados: as colônias alemãs e italianas eram o destino principal
daquelas mercadorias. Porém, seu erro foi ofertar gado muito barato de porta em
porta de forma indiscreta.
Também o bando de Chico do Ranchinho vendia o fruto do roubo de
animais para aquelas colônias, é o que levam a crer alguns depoimentos de abril de
1888:
o comércio daquela quadrilha para as colônias vizinhas a
este distrito é público e notório e que o chefe da mesma Antônio
Joaquim Pedroso serve de intermediário para dispor dos furtos.
O comércio de animais cavalares e vacuns feito pelo chefe da
quadrilha Antônio Joaquim Pedroso para as colônias vizinhas do
distrito é geralmente conhecido e notório.
245
Outra testemunha, Jerônimo Pauleta da Silva Lessa, chegou a afirmar que o raio de
atuação da trupe se estendia até São Leopoldo
246
. Essa venda de animais roubados
em outras localidades certamente era favorecida pela menor probabilidade da
marca do dono, e conseqüentemente, da origem ilícita do gado, ser reconhecida.
Bastos, em sua narrativa da vida de Candinho Baiano
247
, descreveu
minuciosamente de que maneira os irmãos Gross, compadres e tios de sua esposa,
se estabeleceram no vale do rio Pinto, um dos afluentes do Três Forquilhas, no
caminho entre a serra e a colônia. Ganhavam a vida roubando gado em cima da
serra, charqueando em suas residências, e vendendo para os alemães. Bastos, em
determinado momento, insinua que os colonos teriam feito vistas grossas para a
origem ilegal da carne, já que ela possibilitava um sustento mais barato (Bastos,
1935, p. 90-95). Parte daquilo que o autor relata é corroborado pelos documentos
judiciais consultados. De fato, existia um fluxo de animais que corria naquele
244
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 15 (1888).
245
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 26 (1888),
depoimentos de José Joaquim Rodrigues e Florêncio Rodrigues da Silva, f. 10 e 12.
246
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 23 (1888),
depoimento de Jerônimo Pauleta da Silva Lessa, f. 13v.
247
Alguns aspectos de sua atuação já foram objeto de discussão no capítulo anterior.
147
trajeto. Em 1891, no processo de Felippe Bürg e seu bando, em 1891, testemunhas
disseram que os animais por eles roubados “foram conduzidos ao longo do rio do
Pinto”
248
. O objetivo da abertura do inquérito policial foi apurar as atividades de
indivíduos “os quais vivem exclusivamente do furto de gado e animais calares,
digo, animais cavalares de campos de pastagens dos criadores deste município; cujo
gado conduzem para a serra baixa, onde vendem e xarqueiam”
249
. Diversas outras
testemunhas apontaram “em baixo da serra” como o destino preferencial do gado
furtado, e imigrantes ou descendentes aparecem como ladrões ou receptores neste
comércio.
São freqüentes os nomes alemães entre os participantes das “quadrilhas”.
Além dos Gross, também foram indiciados indivíduos que atendiam, por exemplo,
por Bürg, Hoffman, Schwartz e Horn
250
. Alguns tinham uma situação razoável para
a sociedade de então. Preso em junho de 1891 por atuar em uma “quadrilha” (com
envolvidos alemães e presumíveis negros ou mulatos), Felippe Bürg requereu, dois
dias após, sua libertação mediante fiança. Os bens apresentados por João
Hoffman
251
como garantia (uma parte de campo com casa de madeira, um potreiro
de taipa de pedras, tudo no primeiro distrito da vila) foram apreciados e avaliados
em 1:850$000. A fiança saiu por 1:620$000
252
. Geraldino Alves da Silveira, preso
na mesma ocasião, foi libertado por uma fiança no mesmo valor, para a qual
apresentou como garantia seu prédio de morada, estimado em 4:000$000
253
.
Alguns estudos sobre o fenômeno do banditismo assinalaram os vínculos
com fazendeiros locais que “fornecem proteção, facilitam fugas e colaboram na
venda de propriedade roubada” (Monsma, Truzzi, Conceição, 2003) Retornando a
São Francisco de Paula, nem todos tinham condições de pagar fianças ou mesmo
construir suas defesas com base à assistência de um advogado. Nos processos,
percebe-se claramente a atuação conjunta de indivíduos de extratos sociais e grupos
raciais diferentes; mas isso não implicava na ausência de hierarquias entre eles, e
248
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 32 (1891),
depoimento de Antônio Ignário Dutra Filho, f. 5v.
249
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 32 (1891) f. 3.
250
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processos 32 e 33 (1882)
251
João Hoffman não foi indiciado judicialmente, mas duas pessoas com o mesmo sobrenome
Felippe e Henrique – foram citadas e encontravam-se foragidas.
252
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 32 (1891),
requerimento de fiança e auto de avaliação de bens oferecidos em fiança. f. 31-39; AHRS – Polícia
maço 33 - Inquérito Policial.
253
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 32 (1891),
requerimento de fiança e auto de avaliação de bens oferecidos em fiança. f. 45-52.
148
nem na utilização das mesmas estratégias perante a justiça. Segundo Barth, o
contato não leva à dissolução de grupos étnicos mas, pelo contrário, à afirmação e
constante negociação e renegociação das fronteiras entre os mesmos (Barth, 2000).
Os integrantes das “quadrilhas” locais conheciam o território onde atuavam
e contavam com redes de apoio. Na paisagem natural serrana, eram muitos os
esconderijos a se utilizar em caso de necessidade. Eram raras as prisões. Nos
processos analisados, eles quase sempre permaneciam foragidos e eram julgados à
revelia (o que pode indicar, também, contatos com autoridades policiais e judiciais
influentes). A última hipótese é reforçada pela constatação de que houve várias
absolvições, mesmo em crimes que aterrorizaram a população local ou com réus
ausentes.
A “arraia-miúda” da criminalidade local foi particularmente eficaz em evitar
a ação policial. Para os ladrões de gado com maiores recursos (mas aqui havia
também um recorte racial, e não apenas econômico), se a prisão era um grande
inconveniente, ao menos podiam apelar à fiança ou à defesa por advogados. Não
foi este o caso dos demais, que permaneceram foragidos. Para eles, fazia mais
sentido permanecer à margem da legalidade (vida na qual já estavam). Poderiam
ser absolvidos, pela atuação dos advogados de seus cúmplices. Mas, mesmo
condenados, era difícil sua captura na imensidão dos campos de cima da serra
254
.
Um importante aspecto das quadrilhas está na relação de proteção dos
integrantes dos grupos entre si, como depôs em 10/4/1888 José Joaquim Rodrigues
para o Inquérito Policial relativo ao grupo de “Chico do Ranchinho”:
A quadrilha é ligada pelos seus maus feitos de toda
qualidade, a que procedem parte unidos parte separados sempre
porém uns em contato com os outros e todos eles reunidos para
mutuamente se defenderem e levar a efeito os atos de vandalismo
dos quais tem sido teatro ultimamente nosso distrito.
255
254
É claro que ser condenado ou foragido era um inconveniente, mas é possível relativizar sua
gravidade; em especial quando se considera as alianças costuradas com a elite local e também que,
ao menos os reincidentes já se encontravam em situação de marginalidade perante uma justiça
previamente disposta a defini-los como “propensos ao vício do furto”. O assunto será retomado no
capítulo 4.
255
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 23 (1890),
depoimento de José Joaquim Rodrigues, f. 10.
149
As “quadrilhas” ficavam caracterizadas, então, como sociedades de defesa mútua,
mesmo no caso de crimes praticados individualmente, articulando solidariedades
necessárias à sobrevivência à margem da legalidade.
O furto de gado era um crime de fácil percepção, devido às marcas deixadas
pelos proprietários no couro dos animais. Era comum testemunhas afirmarem ter
reconhecido a marcação de algum proprietário nos bois levados pelos réus. Foi esse
o caso, por exemplo, de Guilherme Vasen Filho, que, interrogado em um processo
de 1890, afirmou ter visto Francisco Mariano Pimentel, Manoel Joaquim de
Araújo, Cipriano Pereira Pinto, Maximiano José Francisco com uma vaca que,
graças ao sinal, reconheceu ser pertencente a Marcelino José de Souza
256
. Anos
antes, em 1879, foi Miguel Hoffman quem reconheceu o sinal de Eliziário Antônio
de Vargas e Felisberto Paim de Andrade em 23 animais levados por José Cardoso,
Manoel Gross e Pedro Schwartz Filho
257
.
Era desejável, assim, livrar-se o quanto antes dos animais. Para isso, havia a
possibilidade de carneá-los, e se possível, produzir charque. Foi essa a idéia dos
mencionados no processo de 1890, supracitado. Depois de reconhecer o gado, a
testemunha dirigiu-se ao Delegado de Polícia, Alferes Antônio Carlos Pereira.
Juntos foram à procura dos ladrões, que foram encontrados carneando a rês. Todos
foram presos em flagrante, menos Maximiano José Pinto, que se evadiu (desde
então, Maximiano de tal)
258
. Percebe-se uma especialização nos trabalhos de roubo e
de carnear os animais: é o que deu a entender, por exemplo, Antônio Inácio Dutra
Filho, em um inquérito policial aberto em 26/5/1891. Dizia ele que Felippe Bürg
roubava os animais, “não só para si como para conduzirem para outra parte tanto
que Geraldino Alves da Silveira que outrora fez parte dessa quadrilha
constantemente vai aonde mora seu cúmplices e aí carneia e conduz para esta vila
carne de gado furtado”
259
.
Uma dificuldade adicional era o destino a dar aos couros. Também neles
estava registrada a marca do proprietário do animal. Em alguns processos, esse foi
um fator incriminador para os réus. Durante as investigações das atividades do
256
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 12 (1890),
depoimento de Guilherme Vasen Filho, f. 4v.
257
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 33 (1879),
depoimento de Miguel Hoffman f. 5.
258
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 12 (1890).
259
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processso 32 (1890).
150
grupo liderado por “Chico do Ranchinho” uma diligência policial na casa do líder
da trupe localizou couros danificados, tornando impossível identificar sua marca.
Disse mais ela testemunha que de forma alguma pessoas
como Chico do Ranchinho deixariam de aproveitar bem os couros
dos gados que carneiam se estes fossem de propriedade deles; só
ladrão é capaz de desperdiçar da maneira como achou-se o couro da
aludida novilha de dois anos.
260
O esbanjamento, a utilização não-produtiva do couro só podia denotar o
desinteresse por algo que não lhe pertencia. Isto, bem como a conveniência do
ocultamento das marcas, acusava a origem desonesta dos mesmos.
Uma alternativa para quem não conseguisse carnear ou charquear os
animais era livrar-se deles, mesmo que vendendo por um preço baixo, caso
encontrasse interessados. No processo de Gross, Cardoso e Schwartz Filho, no dia
27 de outubro de 1879, os irmãos Hoffman, testemunhas, relataram que viram os
três a caminho de Três Forquilhas, conduzindo a tropa roubada em cima da serra.
Além de lhes contar que o gado era originário do furto, o trio ofertou cada rês por
4$000 ou todas 23 por 25$000
261
. A generosidade da oferta evidencia o interesse em
desfazer-se dos semoventes, o que podia ser arriscado: como visto, em caso de gado
muito barato, as desconfianças quanto a sua origem ilícita eram maiores. No caso,
porém, a origem dos animais foi narrada pelos vendedores, que poderiam não ver
problema na condição ilegal das reses.
O roubo de gado era, porém, mais do que um ato econômico, sem dúvida
alguma uma prática política. Ninguém praticava abigeato nas criações de aliados,
mas nos campos de inimigos reais ou potenciais
262
. É verdade que existiam
exceções. Alguns indivíduos eram mesmo criticados por aproveitar-se da guerra
para roubar gado, de forma indiscriminada: podiam tratar-se de inimigos ou de
aliados. Em seu diário, no dia 5 de julho de 1895, Francisco da Silva Tavares
direcionava pesadas críticas a “revolucionários” que, não contentes em predar o
260
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 23 (1891),
depoimento de José Joaquim Rodrigues f. 10.
261
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 33 (1879),
depoimentos de João e Miguel Hoffman, f. 6 e 14v.
262
O que complicava os processos: afinal, os réus sempre podiam – e costumavam fazê-lo – alegar
que as testemunhas eram suas inimigas.
151
gado alheio, chegaram ao desplante de atacar a cavalhada do General Joca
Tavares. (Tavares, 2004 p. 211).
Se este episódio ajuda a nuançar o caráter político do abigeato, não o nega:
pelo contrário, os indivíduos que assim procederam foram alvo de duras críticas
não pelo roubo em si, mas justamente pelas vítimas serem aliados. O fato é que em
um período de guerra, havia uma necessidade muito grande de gado cavalar (ver
Dourado, 1977 [1896] p. 77), e ele era decisivo em termos militares (Tavares, 2004a
p. 252); era cada vez mais escasso, porém (ver Tavares, 2004a). Em alguns casos,
apontam certas fontes, havia tentativas de realizar a aquisição dos animais
(Tavares, 2004 p. 279; Dourado, 1977 [1896] p. 141; Franco, 1967 p.159). Estas,
geralmente, não eram bem-sucedidas e, assim, a apropriação de gado alheio se
colocava como alternativa tolerada, prescrita, ou diante da qual se lavava as mãos,
desde que restringida aos adversários
263
.
Um Inquérito Policial aberto em 14 de fevereiro de 1893 ajuda a entender
melhor o jogo político no qual estava envolvida a definição de um episódio como
“roubo” ou como “legítimo”
264
. Naquela antevéspera da “Revolução Federalista”,
os ânimos já encontravam-se acirrados em São Francisco de Paula
265
. Dona
Bernardina Baptista de Almeida Soares, esposa de Felisberto Baptista de Almeida
Soares
266
, requereu a abertura do inquérito diretamente à diretoria de polícia em
Porto Alegre. Segundo ela, partidários do governo lhe vinham realizando
constantes furtos de gado. O Chefe de Polícia Antunes Ribas determinou a
realização de investigações, pois eram queixas que, vindas de adversários políticos,
causavam “péssima impressão”.
De acordo com Dona Bernardina, os indivíduos de nomes José Pacheco
Horn, Boaventura Soares de Oliveira, Manoel Marques Negrinho e João Jardim
tinham ido a sua propriedade (Fazenda Mangueira da Ilha) e tentado levar 130
263
São tantas referências a episódios deste tipo nos diários e relatos de guerra, que realmente não
vale a pena especificá-los e mencioná-los um a um. É algo que está naturalizado, nos diários dos
Tavares, nas denúncias de Moura, Cabeda e Souza. Apenas a título de exemplo, temos uma carta de
9 de dezembro de 1894, na qual Luís Felipe Saldanha da Gama recomendava ao General Joca
Tavares uma série de ações que considerava necessárias para a vitória da “revolução”; dentre elas
algumas para serem executadas em Santa Isabel e Arroio Grande, referentes a “levantar cavalhada
ao inimigo”. Este é um assunto que aparece como algo usual nas vezes em que se faz presente.
264
AHRS – Polícia maço 33 - Inquérito Policial.
265
Maiores detalhes no capítulo seguinte.
266
Felisberto Baptista de Almeida Soares foi um dos principais líderes políticos federalistas em São
Francisco de Paula. Político atuante nos tempos do Império, foi Vereador na Câmara Municipal,
além de seu presidente em algumas ocasiões. (AHRS-AM maço 238 caixa 127).
152
reses, sendo impedidos por “gente sua”. Além disso, em ocasião anterior “foi
consumido grande número de gado de sua Fazenda, tendo quase todos os
moradores desta vila carneado desse gado”. Destes últimos, Manoel Vicente
Ferreira e Virgílio Moreira teriam adquirido 50 couros
267
. No inquérito, as
testemunhas apontadas por Dona Bernardina (dentre as quais Francisco Moreira
dos Santos, um ex-escravo da queixosa, e que naquele momento administrava sua
fazenda na condição de capataz), sustentaram a versão de Dona Bernardina, mas
afirmaram que tudo de que sabiam era por ter ouvido ela falar.
Além disso, foi indagado à demandante e às testemunhas quem eram os
encarregados do serviço da guarda da mesma, e vieram à tona nomes como
Candinho Bahiano, Chico Moisés, Hilário Caroço, João Pereira de Mello
conhecido como João Freitas, Felisberto Vicente Ferreira, “o mulato Chico que
serve de capataz”, João Soares conhecido por Cachiche, Agostinho Bicudo do
Amarante, José Ferreira, Felisberto Vicente Ferreira, João Pereira de Mello,
conhecido por João Freitas, e um tal Nicolau. Ao seu capataz, foi indagado quem
era a gente que Dona Bernardina dizia sua, e ele “Respondeu que é Candinho
Baiano, Chico Moisés e Hilário Caroço.” (f.8)
268
Dona Bernardina rapidamente passou de demandante para suspeita. Afinal,
as testemunhas só sabiam dos furtos por ouvir dizer da proprietária queixosa; os
demais interrogados ou desconheciam os furtos, ou deles sabiam através de
rumores. Duas testemunhas, no entanto, passaram a incriminar os sujeitos
abrigados na fazenda dos Baptista, invertendo o pólo das acusações que levaram à
abertura do inquérito:
Sabia sobre furtos de cavalos dos moradores do termo e
quem seriam os autores dos furtos? Tem ouvido dizer, e ele
testemunha sofreu um furto de um cavalo. São apontados como
autores desses furtos os indivíduos que se asilam na Fazenda da
Mangueira da Ilha dos quais tem visto um indivíduo que
denominam Caroço – outro – Chico Moisés e um negro que não
sabe por que nome é conhecido
269
.
267
AHRS – Polícia maço 33 - Inquérito Policial. f. 6
268
Sobre “gente sua” cf. capítulo 4
269
Evidencia-se, aqui, o contexto pejorativo no qual referências raciais eram acionadas, bem como a
“ausência de nome”. É possível supor que se tratasse de Candinho Baiano, pois, junto com os dois
153
Se sabia de furtos de muitos cavalos dos vizinhos do coronel
Baptista e Dona Bernardina? Quem eram os responsáveis por estes
furtos? De Pedro Alemão roubaram 4, de Abel Pacheco 4 por
segunda vez, de Ernesto Pinto alguns por diversas vezes e outros.
Dele testemunha arrombaram o potreiro e tiraram 7 cavalos e mais
duas vezes roubaram cavalos e sabe que os autores desses furtos são
esses indivíduos que se asilam em casa do tenente coronel Baptista.
por terem sido vistos esses animais no potreiro de Bento Soares de
Oliveira, genro do tenente coronel Baptista, onde se achava nessa
ocasião. Estes animais foram reclamados por Maximiano à dona
da casa e esta recusou-se a entregá-los; e ainda, quando, por
ocasião, de irem prender os criminosos que acoitam-se na casa de
Baptista, foi arrecadado um dos cavalos dele testemunha que estava
no quintal pertencente à casa.
270
Se o abigeato era uma prática socialmente disseminada, em um contexto
bélico quem dominasse o aparato de Estado – os republicanos – tinha condições de
dar uma aparência de legalidade à apropriação de gado de outrem por eles
realizada. Ao longo dos inquéritos, as testemunhas respondiam não só se sabiam de
roubos de gado ocorridos em terras vizinhas às de Bernardina, mas também se, por
ocasião da “revolução”, “havendo as autoridades reunido gente para manter a
ordem e a paz das famílias, mandaram as mesmas autoridades buscar reses na
Fazenda Mangueira da Ilha (...) para manter as ditas forças reunidas, e isso com o
propósito de pagar o justo valor aos proprietários”.
Serafim Pires Padilha, Virgílio Moreira, Felisberto Baptista Ferreira, Roque
Silva e Manoel Vicente Ferreira responderam afirmativamente: através de seus
depoimentos, sabe-se que “com propósito de posterior indenização”, os animais
serviram para alimentação dos presentes em uma reunião governista, para
“municio das forças reunidas para manter a ordem e oporem-se às claras e
manifestas intenções dos inimigos do governo que o querem, a toda [forma]
alterar”.
Era uma provocação mútua. Com tantos proprietários em São Francisco,
optaram por apropriar-se justamente do gado de uma inimiga política para carnear
mencionados, era um dos principais abrigados na Fazenda dos Baptista. Contudo, também podia se
tratar do “mulato Chico”, capataz e ex-escravo.
270
AHRS – Polícia maço 33 - Inquérito Policial. Depoimentos de João José da Costa Vianna e do
coronel Henrique Lopes da Fonseca – 22/2/1893 f. 10-19
154
em uma manifestação pública castilhista ou para servir como munício para suas
tropas. Além de afronta, era uma ação que visava o desabastecimento dos
oposicionistas (Escobar, 1983 [1919])
271
. Dona Bernardina, por sua vez, tinha
consciência disso, e ao denunciar o que estava ocorrendo como roubo de gado, não
apenas estava respondendo à provocação dos governantes, como expressando seu
próprio ponto de vista, dando às coisas o nome que considerava mais adequado.
Ao mesmo tempo, a atuação dos seus “acoutados” foi assim caracterizada: “nessa
Fazenda moram esses criminosos, consentidos pelos proprietários, os quais
criminosos são apontados pela opinião como o terror do município”
272
. O inquérito
foi considerado improcedente pelo delegado, já que para ele, só quem reclamava os
furtos e alegava tê-los sofrido era Dona Bernardina. Na conclusão dos autos, o
delegado considerava as queixas como “invencionice” e parte da “desabrida guerra
que [o ten. cor. Felisberto, líder do Partido Federal] move contra a ordem pública”.
Segundo o delegado, era esse o motivo por que Baptista recolhia em sua fazenda
tantos malfeitores:
Destes autos evidencia-se que para tal fim tem em suas
fazendas acoutados número considerável de criminosos, verdadeiros
bandidos que trazem em constante sobressalto os moradores deste
termo. Desses bandidos são alguns já condenados por roubo de
gado. Ora, se prejuízos ou desfalques tem sofrido nos gados das suas
fazendas, são indubitavelmente ocasionados por esses indivíduos
que outra ocupação não tem a não ser a mais abjeta de todas – a de
capangas. Capangas sem salário fixo e presumível que lucupletam-
se nas vacas gordas de seu patrão
273
.
Os vínculos com os “patrões”, portanto, não se dariam por meio de
assalariamento – o que seria um índice a mais de ocupação desonesta – mas,
através do papel de capangas. A sua não-remuneração, além disso, foi tomada
como explicativa da necessidade de roubar gado. É claro que existiam “capangas”
entre as forças castilhistas, bem como roubo de gado. Quem era identificado com
estes termos, porém, dependia do lugar de enunciação.
271
O líder federalista Antônio Ferreira Prestes Guimarães acusava o republicano Santos Filho de,
“para cortar recursos ao inimigo, ou por pilhagem”, ter mandado “arrebanhar mais 8 mil cabeças de
gado vacum do município” (Guimarães, 1987 [1892-1895])
272
AHRS – Polícia maço 33 – Inquérito Policial. Depoimento do Tenente Marçal Ferreira Baptista.
– 22/2/1893 (f. 10-19)
273
AHRS – Polícia maço 33 – Inquérito Policial – Conclusão do inquérito f. 19.
155
Mesmo a noção de propriedade privada era, naquele contexto, relativizada.
Moura (2000 [1892] p. 149), ao denunciar um episódio de apropriação de gado
pelos governantes durante o “governicho”, insistia de forma veemente que se
tratava de roubo. Isso sugere que era um conceito flexibilizado e nebuloso naqueles
anos, de tal maneira que havia necessidade de enfatizá-lo e afirmar o significado
esperado. Se, quando estavam afastados do poder, os castilhistas acusavam de
roubo os seus adversários, no período de seu domínio político no Estado, estes
encontraram maneiras de legitimar o gado tomado aos federalistas, que lhes
dirigiam as mesmas acusações
274
. Qualquer que fosse a agremiação política no
poder, eram constantes as queixas sobre ataques governamentais à propriedade
privada
275
. O que estava em jogo, ao fim das contas, era o poder de nomear o que
era roubo e o que não era. Quem podia definir e decidir esta questão?
***
Retomando a epígrafe que deu origem a este capítulo, pretendo ter
conseguido retomar algumas das possibilidades – “testando os limites da liberdade”
(Fraga Filho, 2006 p. 239) – criadas pela última geração de escravos e seus
descendentes no momento do pós-abolição. Rios (2005a) apresentou alguns
caminhos principais que, segundo constatou, foram adotados depois do 13 de maio
de 1888: o do campesinato itinerante – ou seja, aqueles que apesar de pretensões
campesinas, tiveram grandes dificuldades para fixar-se; o pacto paternalista, por
meio do qual alguns pretenderam manter o acesso à terra por meio da negociação
com fazendeiros; e, finalmente, as terras de pretos, comunidades que lograram
sobreviver e perdurar mediante um relativo afastamento espacial.
As distinções assinaladas pela autora conformam, também, um campo de
possibilidades, que, se não podem ser mecanicamente transplantadas para outras
regiões do Brasil, são boas para pensar. Afinal, casos concretos podem ou
274
Em 1902, Cabeda e Costa diriam o mesmo em um folheto anti-castilhista; afirmavam que os
governantes “(...) inventaram roubar legalmente, saquear em nome da lei os adversários que não sabem
curvar a cerviz (...)” [Grifos originais] Cabeda e Costa, 2002, p. 141.
275
Da parte dos federalistas, percebe-se estas reclamações em diários particulares (Tavares, 2004
[1892-1895] p. 119) e em narrativas escritas a posteriori, com maior ou menor distanciamento
temporal (Dourado, 1977 [1896] p. 70 e Cabeda e Costa, 2002 [1902] p. 77); entre os republicanos a
obra que expressou esta denúncia de forma mais contundente foi a de Moura (2000 [1892] p. 146,
149, 166, 177, 179, 213)
156
apresentar nuances, ou misturar diversos daqueles destinos identificados pela
autora. Maria Caetana, como mencionado aqui, parece ter mantido seu acesso à
terra mediante negociações e cessão diante do poder paternalista do antigo senhor;
isso não a impediu – mesmo que a relação fosse tensa a ponto de ter tido um final
fatal – de interagir com indivíduos pertencentes a um universo diferente e oposto ao
senhorial. Houve “terras de preto” nascidas da itinerância: uma vez consumado o
deslocamento para a cidade, ocorreu a fixação em áreas relativamente isoladas,
então periféricas e rurais de Porto Alegre (Carvalho e Weimer, 2004); ou ainda, a
permanência de “terras de preto” em São Francisco, como é o caso de São Roque
(Fernandes, Bustolin e Teixeira, 2006; Teixeira, 2006).
Foram muitos os itinerantes em São Francisco de Paula, embora geralmente
as fontes documentais não demonstrem suas famílias e sim indivíduos isolados, do
sexo masculino. Rios destaca também a presença, na região sudeste, de uma
população masculina itinerante, celibatária ou afastada de suas famílias (Rios,
2005a, p. 203-204). É lógico acreditar nisso, considerando que o acesso à terra
geralmente estava relacionado a ter uma família; o registro escrito de tais questões,
contudo, é raro (Scott, 2005 p. 178-179). Boa parte dos resultados obtidos por Rios
se deve ao uso de fontes orais.
Em alguns momentos, especialmente conjunturas bélicas, a itinerância deve
ter sido uma opção, e não a falta dela. Da mesma forma como no período
escravista vários solitários Calistos de cima da serra tinham familiares em baixo, é
provável que diversos dos homens envolvidos nos fatos tão insistentemente
investigados pelo Estado também os tivessem. Foi, não há dúvidas, o caso de
Candinho Baiano, cujos familiares às vezes conseguiram viver junto com ele, às
vezes não; às vezes em São Francisco, às vezes em Três Forquilhas (Bastos, 1935).
Claro que este era um líder, e certamente esta posição o colocava em uma situação
privilegiada no “mercado matrimonial” diante de outros partícipes das
“quadrilhas”.
São possíveis alguns paralelos com o Rio da Prata colonial, em que eram
constantes as queixas dos governantes quanto à atuação dos gauchos – indivíduos
que oscilavam entre vínculos com fazendeiros, que deles dependiam como
suprimento de mão-de-obra, peões e agregados, e um modo de vida mais livre,
marginal à grande estância. Tais aspectos não eram excludentes. “La producción en
tierras realengas o como agregado en tierras ajenas y el abigeato podían producir lo
157
suficiente para vivir sin trabajar para otros por um salario, es decir, como
productores independientes”. (Amaral, 1987. Grifo meu. cf. também Fucé, 2004).
Em outra região, mais de século antes, colocava-se a mesma questão que
preocuparia os governantes do Rio Grande de São Pedro em fins do século XIX:
diante da existência de formas de vida alternativas, como fazer dos gauchos
trabalhadores sob controle? Naquele momento, a historiografia argentina colocava
em questão o mito do gaúcho, enfatizando a falsidade da oposição entre gauchos e
campesinos (Garavaglia, 1987; Gelman, 1998). É provável que no Brasil este aspecto
do trabalho livre não fosse tão diferente, mesmo tanto tempo após. Assim mesmo,
apenas aponto a questão, por não contar com dados suficientes para dar maiores
respostas; fica registrada como assunto merecedor de mais pesquisas. Realmente o
tema do acesso à terra, e da família destes homens itinerantes são fugidios; ficando
para novas investigações.
A guerra civil federalista se ensaiou como temática para discussão em
diversos momentos deste capítulo e do anterior. Por ser tema merecedor de análise
específica, foi necessário relegar para depois os assuntos de maragatos e pica-paus.
Raivosos, eles aguardam para degladiar-se e degolar-se nas linhas do terceiro
capítulo. A espera é tão tensa como entre meados de 1892 e inícios de 1893,
quando as agressões entre as facções eram crescentes, e a iminência da invasão do
território do Rio Grande do Sul pelas forças federalistas era fato consumado,
aguardado por todos. Já é chegado fevereiro: foi distribuída a proclamação na qual
o General Joca Tavares conclamava o povo rio-grandense a sublevar-se contra os
castilhistas, e as forças de Gumercindo Saraiva finalmente ultrapassaram a fronteira
uruguaia, rumando de Aceguá a Bagé. Passo, então, a falar do episódio que ficou
historicamente conhecido como “Revolução Federalista” e sobre a participação, na
mesma, de indivíduos que haviam sido cativos.
158
3 – A Construção da Liberdade nos anos de guerra
Eu também sorrio. Sorriam, sorriam. Os que não sorriem
são fuzilados. Fuzilado esta manhã, de madrugada, sem sorrir.
Contingências da História: mas quem decide que eu continue a
sorrir ou que deixe de fazê-lo? (Beauvoir: s/d p. 249)
Não será a abolição do cativeiro a causa da queda do regime
agrícola do país, pelo desaparecimento dos trabalhadores. Os
teoristas da escravidão declaram os negros inaptos para todo gênero
de atividade e refratários a todo progresso. Ninguém, porém,
contestará seriamente que aos africanos e aos seus descendentes tem
incumbido a tarefa de firmar a riqueza material do país, a cuja
existência econômica eles continuam a prover. (Castilhos, 1982
[1887] p. 179-180)
Não há dúvidas de que a “Revolução Federalista” é um dos temas da
história do sul do país que receberam maior atenção, dentro e fora dos Institutos
Históricos e Universidades
276
. No que toca ao Rio Grande do Sul, talvez este
276
Para um levantamento bibliográfico exaustivo sobre o assunto, ver Cabeda, 2003.
159
assunto só seja superado em popularidade pela “Revolução Farroupilha”
277
. No
entanto, ao contrário desta, não é lembrada como um feito heróico fundador, e
tampouco é celebrada como ícone de identidade regional. No seu caso, há um jogo
ambíguo entre uma memória sempre presente e o encobrimento da mesma. A
guerra adquire cores sinistras quando é rememorada em função da violência
empregada em um curto espaço de tempo, e pelos massacres de Rio Negro e Boi
Preto (ver adiante), perpetrados respectivamente por maragatos e pica-paus
278
contra seus adversários. A brutalidade realmente foi assumida como principal
identificador da revolta (ou mesmo tida como sua única característica relevante)
dado que foi nomeada como “Revolução da Degola”.
Para Pesavento, esta “designação sinistra” decorre do fato de 1893 ser uma
“herança pesada” para os gaúchos. A guerra civil choca pela particular truculência
ocorrida naqueles idos (Pesavento, 1993 p. 16). Contrastada com a “Revolução
Farroupilha”, que contribuiu para a formação de uma identidade regional (com
episódios de bravura, romantismo, momentos inusitados ou pitorescos, afirmando
valores sociais de um grupo privilegiado, em especial a coesão grupal, e os
generalizando ao conjunto da sociedade)
279
, a Federalista estigmatizou-se como luta
fratricida, de contornos particularmente vis
280
. Enquanto a guerra civil teria
mantido o Rio Grande dividido, a Farroupilha, ao menos segundo o discurso
regionalista, teria unido os gaúchos frente ao Brasil. O fato de que muitas cidades e
indivíduos permaneceram leais ao Império, inclusive a “leal e valerosa” cidade de
Porto Alegre, é convenientemente escamoteado (Pesavento, 1993 p. 19).
A escassez de armas de fogo, pólvora e munições durante a guerra de 1893
(ver Guazzelli, 2004) tornou corrente o uso de armas brancas na execução de
adversários. A dificuldade de abastecimento de material bélico, porém, é
277
O termo “Revolução” foi empregado entre aspas para expressar a maneira como tais episódios se
difundiram. Na época, os federalistas acreditavam estar fazendo uma “Revolução”, sendo portanto
um conceito êmico antes do que um termo analítico. No entanto, compartilho da percepção
existente em parte da bibliografia de que “guerra civil” é um conceito mais adequado, por não ter
estado a ordem social fundamentalmente ameaçada e por não ter havido risco de substituição da
classe social no poder.
278
Alcunhas utilizadas para referir-se aos federalistas e aos republicanos, respectivamente.
279
Um dos principais papéis desempenhados pela memória é o de traçar fronteiras de pertencimento
e exclusão, enfim, a coesão grupal. Graças ao caráter seletivo da memória, episódios desconfortáveis,
vergonhosos, indizíveis, por seu turno, são relegados ao espaço do “não-dito”, o que não é sinônimo
de “esquecido”. (Halbwachs, 1990; Pollak, 1989, Pollak 1992).
280
Embora “maragatos” e “pica-paus” se tenham colocado como diametralmente opostos, e se
tenham enfrentado de forma particularmente hostil, a bipolarização da política rio-grandense não foi
uma particularidade dos últimos anos do século XIX, sendo, pelo contrário, recorrente (Pesavento,
1993 p. 17)
160
insuficiente para explicar o fenômeno da degola, que também se relacionava ao
anseio por impor humilhações aos adversários. Isso fica claro em Cabeda e Costa,
2002 [1902]. Para Guazzellli (2004 p. 52):
Diferentemente da guerra ou do duelo, dos combates
individuais ou coletivos, onde há homens de parte a parte , a degola
é o ato de execução que faz do adversário um animal de pouco
valor, a ovelha, que é o único abatido pela degola, e que sequer bale
ao ser esgorjada. São justamente os cordeiros que invariavelmente
aparecem representados nos sacrifícios do Antigo e do Novo
testamento, como se a imolação fizesse parte de suas naturezas.
Assim, pela degola, um homem se degrada como vítima sacrifical,
como a mais inerme das criaturas, e esta morte desonrosa tem
pouco a ver com a dignidade apregoada para aquela que pode
suceder nos campos de batalha aos verdadeiros guerreiros.
Em um ditado muito utilizado no Rio Grande do Sul
281
, quando algo não se
justifica, por seu pouco valor, não vale à pena, diz-se que “não se gasta pólvora em
chimango”. Chimango foi a maneira como, a partir de 1915, passaram a ser
chamados os partidários de Borges de Medeiros, sucessor de Castilhos. Na origem
do dito popular, portanto, está a idéia de que a vida do inimigo tinha valor inferior
à pólvora utilizada em sua execução (Pesavento, 1993 p. 16). Este é um índice da
banalização da vida humana e vulgarização da violência nesse confronto.
Entre 1893 e 1895 a degola foi, assim, o meio predileto de execução. O
escritor Lessa traz uma descrição pormenorizada, e célebre, das maneiras como era
procedida. Após investigar se o prisioneiro era falante do espanhol (obrigando-o a
dizer palavras com as letras J ou Z; no combate de Rio Negro havia a notícia de
grande número de mercenários orientais
282
entre os pica-paus), situação na qual era
executado incontinenti:
Os dois tipos de degola eram eficientes, rápidos e,
principalmente, silenciosos. Maneado, com as mãos às costas, o
prisioneiro era forçado a ajoelhar-se; então o degolador vinha por
trás, montava em seus ombros, com a mão esquerda puxava-lhe o
cabelo para cima e, com a mão direita, levava-lhe a adaga ao
281
Ainda hoje (felizmente tendo perdido seu contexto e referentes originais) bastante popular.
282
Originários do Estado Oriental, isto é, do Uruguai.
161
pescoço, seccionando com dois cortes as carótidas. Ou o condenado,
também com as mãos amarradas às costas, era deitado no chão; o
carrasco sentava sobre suas coxas, calcando-lhe o queixo com o taco
da bota; assim, o queixo ficava bem levantado e era mais fácil correr
o fio da adaga “à moda crioula”, isto é, de uma orelha a outra
orelha (Lessa, 1978).
Algumas obras se colocam em uma tentativa de entender o que tornou
possível conflito tão sangrento, buscando responsabilizar uma facção ou outra.
Estes últimos trabalhos costumam colocar-se como libelos mais ou menos enfáticos
anti-gasparistas ou anti-castilhistas. Ferreira Filho (1956), por exemplo, mesmo sem
um tom panfletário exacerbado, assume posturas claramente favoráveis aos
republicanos, não hesitando em apontar o governo de Castilhos como “legítimo”, e
a retomada do poder por ele como “restauração da legalidade”, após um período de
“ameaças e atos de violência” (como se não tivesse acontecido exatamente a
mesma coisa durante governos republicanos). Escobar, por seu turno, foi federalista,
o que explica o porque de seus “Apontamentos para a História da Revolução Rio-
grandense de 1893” (1983 [1919]), sejam, embora fonte bastante rica em
informações, muito preocupados com a responsabilização dos republicanos pela
guerra civil e com a denúncia de atrocidades por eles cometidas.
As denominações “maragatos” e “pica-paus” e as cores dos lenços utilizadas
por cada facção – vermelha e branca – são os principais aspectos da guerra civil de
1893 ainda lembrados no imaginário popular e no movimento tradicionalista.
Quando isso se dá, porém, é comum ocorrer uma miscelânea: os nomes dos grupos
em contenda e suas cores freqüentemente são associados a 1835, e não a 1893. Há
uma “opção”
283
pela valorização de um passado considerado honroso e por
escamotear outro associado a valores socialmente condenados. Os aspectos da
Federalista que sobrevivem a este filtro não carregam a mesma carga negativa e
soem ser associados à Farroupilha, um episódio visto como mais benéfico e
fundamental à formação do Rio Grande do Sul.
283
A palavra encontra-se entre aspas para destacar o fato de não tratar-se de uma “opção” tomada
de forma consciente, mas antes uma tendência assumida pela memória coletiva por enfatizar
episódios (considerados) mais ou menos favoráveis. Na medida em que a memória traça fronteiras
de pertencimento grupal, é claro que estas não podem ser erigidas a partir do que é considerado
vergonhoso, daquilo que nos deprecia perante os “outros”, mas sim de valores compartilhados
considerados positivos que unifiquem um grupo (Halbwachs, 1990; Pollak, 1989, Pollak 1992).
162
Mas a guerra entre castilhistas e gasparistas não consegue ser esquecida, haja
visto a quantidade de papel e tinta dedicada ao assunto. Neste capítulo, também
gastarei papel, tinta e disquetes para deter-me sobre o tema, porém sem o objetivo
de “reabilitar” a Federalista ou de colocar em questão (embora seja um problema
pertinente) a polarização entre uma guerra dos Farrapos heróica e edificante e uma
guerra civil de 1893 diante da qual só há atrocidades de que se falar. Talvez
farroupilhas, imperiais, maragatos e pica-paus não tenham sido, uns e outros, nem
tão heróicos, nem tão terríveis. Estudar a Federalista implica, assim, em imbricar-se
em tema imerso em delicadas questões políticas e identitárias. Félix (1996 p. 69)
alerta para o fato de que a insistência no grau de violência da Federalista é abordar
o óbvio, sendo que isso já foi constatado, tanto em relatos contemporâneos quanto
em estudos subseqüentes.
Meu papel, minha tinta e meus disquetes dirigem-se, antes, a uma
apreciação da presença e participação de negros, particularmente ex-escravos, neste
episódio
284
. Para abordar o tema a contento, foi necessário ampliar o marco
espacial do estudo. Quer por causa de fontes disponíveis para outros lugares, mas
não para São Francisco de Paula (como diários e narrativas de guerra), quer pelo
principal personagem negro (Adão Latorre, por sua ação naquele momento e pela
memória construída em torno dele) ter atuado em região totalmente distinta do
recorte geográfico adotado, optou-se por avaliar, mesmo que de forma inicial, as
experiências negras de guerra no Rio Grande do Sul como um todo.
Evidentemente, o município serrano escolhido segue como foco de análise;
contudo, nesse momento fez-se necessário jogar com escalas.
Não obstante a proximidade cronológica do fim do sistema escravista no
Brasil, a fartura de bibliografia e a constante referência a negros nas fontes coevas
(mesmo que raramente com protagonismo, “negros”, “mulatos” etc. são
mencionados com freqüência, embora de maneira lacônica), a investigação das
inter-relações entre a abolição da escravidão e a guerra civil foi inversamente
proporcional à obviedade do tema. Em boa medida, isso se deve à mencionada
invisibilização dos negros no sul do Brasil. Mesmo da parte dos movimentos sociais
que buscam sua inscrição em um discurso histórico de ruptura com a invisibilidade,
284
A guerra civil não fazia parte das minhas intenções iniciais de pesquisa. Contudo, sua recorrência
na documentação revelou tratar-se de tema do qual não se pode fugir ao lidar com as experiências
negras no Rio Grande do Sul no pós-1888.
163
há um interesse maior pela guerra dos Farrapos do que pela Federalista. Não há
nada, para visibilizá-los na guerra civil, comparável ao esforço realizado pelo
movimento social por trazer a tona o episódio do massacre de Porongos
285
(Carvalho e Oliveira, 2006). Se 1835 traz imenso apelo aos gaúchos em geral, não
seria diferente com negros gaúchos, que buscam conquistar seu lugar na história e
na identidade regional através de episódio central da mesma – com uma dose maior
de heroísmo, decorrente do martírio dos lanceiros.
Sem pretensão de realizar uma análise crítica de tão vasta bibliografia – o
que foge totalmente aos objetivos do presente estudo – é necessário observar
algumas obras que trataram do tema, a fim de ao menos delinear as principais
tendências interpretativas e tentar entender seus silêncios e laconismos. Além disso,
é importante apreciar as obras literárias que se referiram à guerra federalista, pois
estas últimas calaram muito menos do que as históricas quanto à presença negra no
conflito; pelo contrário, ajudaram a conformar uma visão a respeito
286
.
A “Revolução Federalista”:
Narrativa factual, silêncios e discursos historiográficos
e literários sobre os negros.
Embora formalmente datada entre 1893-1895, Cabeda e Costa (2002)
demonstram que a guerra civil teve desdobramentos pelo menos até 1899.
Encontrei um processo criminal no qual diversos indivíduos foram acusados de, em
8 de maio de 1898, terem imposto “morte bárbara” – a degola – ao comerciante
José Victorino Pereira e a Joaquim de Oliveira Ramos, deixando seus corpos ao
285
Atribui-se a David Canabarro a escrita de uma carta que se comprovaria a intencionalidade no
desarmamento das milícias negras, às quais havia sido prometida a liberdade pelo engajamento no
conflito. No episódio conhecido como massacre de Porongos os “lanceiros negros” foram deixados
sem armas no momento de um iminente ataque imperial. Há posições polarizadas entre uma
vertente que nega categoricamente a autenticidade da carta e, conseqüentemente, a veracidade do
massacre – Canabarro teria sido pego de surpresa, e outra diametralmente oposta, que defende a
ocorrência de traição. Para uma revisão historiográfica, ver Carvalho e Oliveita (2006).
286
Para dar conta das representações sobre a presença negra no conflito farroupilha, Carvalho e
Oliveira (2006) também necessitaram contemplar o discurso literário.
164
relento, nos campos. Testemunhas afirmaram ainda que os assassinos disseram que
os mataram por serem “empregados do governo republicano”
287
. Sendo assim, a
sucessão de delitos de motivação política não cessou com a formalização de um
tratado de pacificação em 1895. Atravessou, aliás, gerações: um dos autores do
crime era Henrique, filho de Cândido Alves da Silveira, ou Candinho Bahiano, já
conhecido dos leitores deste texto. Seu pai, morto à traição no fim dos anos de 1890
em uma festa de Reis, foi um dos principais líderes federalistas no litoral norte do
Rio Grande do Sul (Bastos, 1935).
A queda do grupo político hegemônico até a Proclamação da República – o
Partido Liberal – e a ascensão de outro, naquele momento, menor, mas bastante
organizado politicamente – o Partido Republicano – levou a acentuada
instabilidade política. Entre o 15 de novembro de 1889 e o início formal da guerra
civil – 3 anos e 4 meses – o Rio Grande do Sul possuiu 13 governantes e 17
governos
288
. Ver, no anexo 3, listagem de governantes e partidos políticos no Rio
Grande do Sul na República Velha até o término da guerra civil. O mais longo, de
Cândido Costa, durou pouco menos de dez meses; o mais breve, da junta
governativa, não passou de cinco dias. Em junho de 1892, houve dois governos
concomitantes, em Bagé (federalista) e Porto Alegre (republicano).
O PRR pretendia deter o monopólio das idéias republicanas e julgava
aglutinar os únicos dignos de participação no governo. Franco aponta como os
principais responsáveis pelo fomento da guerra civil (Franco, 1962, 1967 e 1995): o
impacto sobre a máquina burocrática decorrentes da súbita substituição de quadros
nos órgãos públicos, o ressentimento dos liberais hegemônicos e despojados e o
exclusivismo dos republicanos triunfais. Esta postura sectária dos castilhistas não
apenas impediu a aproximação, como também afugentou diversos aliados (a esse
respeito, ver também Félix, 1996 p. 64).
Para Franco (1962 p. 195), houve três momentos de grandes rupturas de
dissidentes do PRR. Em fevereiro de 1890, o Visconde de Pelotas, ao fim de seu
governo, aglutinou republicanos históricos em suas divergências com Castilhos. O
287
APERS – I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 9 (1899).
288
Não há coincidência entre o número de governantes e o número de governos por duas razões: 1)
entre 12 e 17 de novembro de 1891 o Rio Grande do Sul foi governado por um triunvirato,
composto por Joaquim Francisco de Assis Brasil, General Domingos Alves Barreto Leite e General
Manuel Luís da Rocha Osório; 2) alguns ocuparam o governo por mais de uma vez neste lapso de
tempo: Júlio de Castilhos e Gal. Domingos Alves Barreto Leite (3 vezes cada), Visconde de Pelotas
e Fernando Abbott (2 vezes cada).
165
tenso final do governo de Francisco da Silva Tavares, em maio do mesmo ano,
levou esta família de ex-conservadores adesista do PRR à oposição. Finalmente,
divergências internas aos republicanos, relativas ao apoio à candidatura à
presidência de Deodoro da Fonseca, levaram à saída, entre setembro e outubro de
1890, do grupo de Barros Cassal e Demétrio Ribeiro. Por incompatibilidade
ideológica, estes últimos não aderiram ao Partido Federalista, formando uma
terceira força política, positivista e anti-castilhista.
Há alguns momentos significativos anteriores à guerra civil. Entre 1889 e
1891, ocorreram governos provisórios encabeçados por militares, escolhidos através
de nomes de pretenso consenso. Na prática, Júlio de Castilhos tentou manipular e
controlar os governantes desde os bastidores, sendo razoavelmente bem-sucedido
(Marechal Júlio Frota e General Cândido da Costa) ou malfadado (Marechal
Visconde de Pelotas
289
), neste intuito. Nesse ínterim, Francisco da Silva Tavares
assumiu o governo como vice-presidente de Costa. Temerosos diante do convite
para participação no governo de diversos quadros do antigo partido conservador, os
republicanos o depuseram, sob o pretexto de ter reprimido uma manifestação
comemorativa do 13 de maio, em que se feriu Barros Cassal (então, ainda membro
do PRR).
Júlio de Castilhos tomou o poder em 14 de julho de 1891, eleito
indiretamente pela Assembléia Constituinte, que na mesma data promulgou a
Constituição Estadual. A oposição não conseguiu votação suficiente para participar
da elaboração do documento, em uma eleição repleta de acusações de fraude. Com
mínimas alterações, aprovou-se um projeto de Constituição de autoria de
Castilhos
290
. A Carta Magna foi objeto de questionamentos durante toda a
República Velha, em relação a sua legitimidade e sua legalidade. Muitos a
consideraram não-condizente com a Constituição Federal, especialmente em
trechos autoritários, como a restrição das funções da Assembléia Legislativa a um
papel orçamentário, e de seu funcionamento a poucos meses durante o ano.
289
O primeiro governante republicano do Rio Grande do Sul foi escolhido por ter tido, apesar de
anterior pertencimento ao Partido Liberal, importância decisiva na chamada “questão militar”,
sendo um nome com potencial – não verificado na prática – para harmonizar castilhistas e
gasparistas.
290
Embora se tenha formado uma comissão encarregada pela elaboração da Carta Magna, integrada
também por Ramiro Barcellos e Assis Brasil, estes últimos não assumiram responsabilidade e
negaram autoria sobre o texto encaminhado à Assembléia.
166
O líder do PRR, contudo, não permaneceu muito tempo no poder: ao apoiar
(ou ser acusado de apoiar) o golpe tentado por Deodoro da Fonseca, foi
constrangido a retirar-se do governo, novembro de 1891. Não ascenderam, porém,
os federalistas, mas os dissidentes do Partido Republicano, em um período
pejorativamente chamado de “governicho”. Ocorreu uma escalada crescente de
provocações mútuas, desordens e confrontos (exemplarmente retratados na obra de
Moura, 2000 [1892]). Para Franco, já se desenhava uma solução armada para o
impasse político em que se viu o Rio Grande do Sul a partir de 1889. Outros
episódios assinalados pelo autor como “prólogos” do que estava por vir ocorreram
meses antes (as escaramuças que acompanharam o fim do governo de Tavares) ou
depois (a queda do “governicho” e o retorno do PRR ao poder em junho de 1892)
da deposição de Júlio de Castilhos.
À medida, porém, em que se revelava a debilidade do grupo de Barros
Cassal e Demétrio Ribeiro, estes foram cedendo poder e influência aos gasparistas.
O “governicho” não foi capaz de estabelecer uma alternativa estável ao PRR. A
Constituição proposta era de autoria de políticos tão influenciados por Comte
quanto Júlio de Castilhos: sob alguns aspectos se assemelhava àquela de 14 de
julho. Entre novembro de 1891 e junho de 1892, houve grande instabilidade
política no Rio Grande do Sul: nada menos que 5 mandatos, e 5 governantes em
pouco mais de sete meses.
Nos seus momentos finais, de maior influência federalista (em junho de
1892 Barreto Leite cedeu o comando dos negócios estaduais ao Visconde de
Pelotas, reconduzido ao poder durante nove dias), o “governicho” enfrentou uma
oposição republicana particularmente ferrenha. Isto aconteceu em parte pelo ódio
votado pelos integrantes do PRR contra os partidários de Gaspar Silveira Martins,
em parte porque o retorno deste último ao Brasil, em fevereiro de 1892, aproximou
Castilhos do Marechal Floriano Peixoto, sucessor de Deodoro. O novo Presidente,
ícone do jacobinismo
291
, era particularmente reticente em relação às propostas
291
Queiroz (1986) assinala o jacobinismo como fenômeno típico do período imediatamente
posterior à proclamação da República, quando a coalizão de forças unidas para a derrubada da
Monarquia se dispersou. Apesar da presença de grupos populares urbanos, intelectuais,
parlamentares e elites regionais, descontentes com a influência dos paulistas sobre a República em
formação, foram preponderantes entre os jacobinos as camadas militares. A autora observa no
movimento uma retórica fortemente nacionalista, moralista, reformadora, sectária, autoritária. A
ideologia destes republicanos radicais, portanto, tinha muito mais afinidade com o pensamento
castilhista do que com o liberalismo de Silveira Martins ou dos cafeicultores paulistas.
167
parlamentaristas defendidas por Martins. A aliança com o governo federal,
portanto, fortaleceu os republicanos e deu novo ânimo para a derrubada do
“governicho”. Segundo Franco (1993 p. 36), “isto seria apenas o prólogo de uma
estreita e ativa colaboração entre o governo federal e o Partido Republicano Rio-
grandense”. Floriano efetivamente prestou apoio ativo a Castilhos durante toda
guerra civil.
O retorno dos republicanos ao governo (através de uma revolta perante a
qual a presidência da República lavou suas mãos), preparou o cenário para a
guerra, na medida em que acarretou em dois governos paralelos no Rio Grande do
Sul. Deposto em 17 de junho de 1892 por revolta de populares e militares que
reempossaram Castilhos
292
, o Visconde de Pelotas repassou, via telégrafo, o
governo para Silva Tavares, em Bagé. No entanto, o governo paralelo não subsistiu
mais de um mês. A partir de novembro de 1892 se agudizaram os atritos entre
facções, tanto ou mais do que durante o “governicho”. Ocorreram preparativos
diversos para um confronto militar que se sabia iminente; ele eclodiu em fevereiro
de 1893, tendo, como estopim, nova eleição e posse de Castilhos no governo
estadual, em 25 de janeiro de 1893. Enquanto isso, boa parte dos chefes federalistas
ultrapassava a fronteira. Reunidos no Uruguai e na Argentina, acumulavam forças,
gente e munição para preparar a “invasão” – seu retorno ao Rio Grande do Sul.
Em alguns momentos os federalistas estiveram próximos de vitórias que
poderiam tê-los levado ao triunfo, mas que, ao fim das contas, foram frustradas. A
principal foi a batalha de Inhanduí, em maio de 1893. Apesar de grande
contingente numérico, os revoltosos foram levados a uma retirada, até hoje
discutida por historiadores militares se necessária ou equivocada. Disso decorreu
nova emigração das forças federalistas para território estrangeiro, em busca de
apoio
293
.
Castilhos deu a guerra como ganha, mas em julho do mesmo ano ocorreu
uma segunda “invasão”. Diante da eclosão, no Rio de Janeiro, da também
292
Em seguida repassou o governo para Vitorino Monteiro; como este estava às vésperas de assumir
sua cadeira no Senado Federal, deixou Fernando Abbott como seu sucessor.
293
A obtenção desta ajuda longe estava de ser automática ou fácil. Em carta transcrita no diário de
guerra do general Joca Tavares (2004a p. 30), Gaspar Silveira Martins assinalava o caráter
internacional do conflito no qual estava envolvido. Diante das dificuldades impostas para o
abastecimento de armas, os governos das repúblicas platinas vizinhas aparecem, também, como
adversários: “Aqueles que falam, são uns idiotas que não conhecem que estamos lutando contra
quatro governos: argentino, oriental, brasileiro e o sub-governo do Julio de Castilhos)”.
168
antiflorianista revolta da Armada, os grupos insurgentes se aliaram. Em setembro
teve início uma grande marcha rumo aos estados de Santa Catarina e Paraná. No
primeiro deles havia ocorrido uma sublevação contra Floriano, estabelecendo-se
um governo revolucionário na ilha de Santa Catarina. “Desterro viu-se, por força
das contingências, durante alguns meses, no epicentro da oposição florianista”
(Cherem, 2001 p. 316) Chegando a Curitiba, os federalistas sequer necessitaram
lutar para estabelecer seu domínio sobre a capital paranaense: diante da sua
aproximação, evadiram-se governador e vice-governador. Cabe observar a
importância estratégica deste estado, que une ou separa os demais do sul do Brasil
do restante do país (Sega, 2003). Os objetivos da “grande marcha”, sob a liderança
dos generais Salgado e Gumercindo Saraiva, renderam muitas discussões.
Especula-se que pretendiam ultrapassar as fronteiras dos três estados meridionais e,
atravessando São Paulo e Rio de Janeiro, depor Floriano Peixoto. Teria-se
cogitado, mesmo, a secessão dos estados sulinos, caso isso não fosse possível.
No entanto, esta empreitada revelou-se um esforço de guerra
desproporcional para as tropas federalistas, que vinham sendo perseguidas de forma
incessante pela “Divisão do Norte”, sob o comando de Pinheiro Machado. Se a
conquista do Paraná foi o auge do avanço federalista, a partir do retorno ao
território gaúcho e da morte de seu líder Gumercindo Saraiva – cuja cabeça, em
outro episódio tétrico e mitológico da guerra civil de 1893, teria sido levada como
presente ao Presidente do Estado que, ao que consta, não gostou da macabra
oferta
294
– assinalou-se o declínio do poder dos revoltosos.
Com a posse de Prudente de Moraes, em 15 de novembro de 1894, tiveram
início as negociações para a pacificação do Rio Grande do Sul. Essas se estenderam
ao longo de 1895. Castilhos se opunha fortemente à intervenção federal, sobretudo
pelas mãos do novo presidente, para harmonizar uma situação que, ao menos no
294
Para um levantamento de diversas narrativas sobre “a cabeça de Gumercindo Saraiva” ver Bones
e Ruas (1997 p. 148-149) e Reverbel (1985 p. 72). Meyer (apud Reverbel, 1985 p. 72) atribuía
poderes mágicos, nefastos, à cabeça de Gumercindo. Todos que com ela tiveram algum
envolvimento, “desandaram na vida”. Até a morte de Castilhos na mesa de operações resultou de
sua exposição ao corpo profanado de seu adversário.
O grau de exaltação dos antagonismos políticos naquele momento pode ser medido pelo epitáfio
publicado n’A Federação (17/8/1894). Como Love observa, em lugar de se reconhecer um inimigo
valoroso, se direcionou “venenosa maldição”: “Pesada, como os Andes, te seja a terra que o teu
cadáver maldito profanou (...) Caiam sobre essa cova asquerosa todas as mágoas concentradas das
mães que tu sacrificaste, das esposas que ofendeste, das virgens que poluíste, besta-fera do Sul,
carrasco do Rio Grande”. (Love, 1975).
169
discurso do PRR, já se encontrava pacificada
295
. Afinal, ao negar a continuidade da
existência do conflito, os republicanos pretendiam sentir-se livres para conduzir a
situação ao seu arbítrio, sem qualquer tipo de mediação ou intervenção de uma
presidência que não era de sua confiança. Queiroz (1986) destaca a postura reticente e
mesmo hostil de florianistas e jacobinos em geral em relação a um presidente civil
oriundo da oligarquia cafeicultora paulista. Ora, um dos principais pomos de
discórdia entre jacobinos e partidários de Prudente era, exatamente, a pacificação
da revolta no sul do país:
A concessão da anistia aos rebeldes federalistas e da Armada
gerou outro foco de tensão. (...) interessava à presidência o
encerramento da fase revolucionária: a instabilidade política
dificultava o crédito no Exterior, a situação financeira era má, o
Rio Grande um sorvedouro das rendas federais...
Mas as tentativas de fixar a paz são vistas pelos jacobinos
como traição. Para eles, Floriano praticamente vencera os rebeldes,
e a eles cabia receber a punição devida. Além dos motivos políticos e
ideológicos, os militares revoltosos, demitidos de seus postos,
haviam cedido lugar aos legalistas que, rapidamente, subiram na
hierarquia militar. A estes, àqueles que temiam os restauradores,
aos políticos florianistas, a proposta de Prudente traía os
“verdadeiros defensores da República”. (Queiroz, 1986 p. 33)
Traídos ou não, a pacificação ocorreu independente da vontade de Castilhos
e dos florianistas. Ela só foi realizada mediante a rendição dos sediciosos, que
capitularam mesmo tendo se revelado politicamente inexeqüível sua principal
exigência para assinar a paz – a anulação da Constituição de 1891. Ao menos
houve um espaço de negociação e uma diminuição do poder do PRR, não mais
livre para encontrar uma solução para o confronto ao seu bel-prazer –
provavelmente, esmagar a oposição. Houve um compromisso formal com a anistia
dos envolvidos no conflito.
Um trabalho importante para a ruptura com a historiografia que buscava
atribuir culpas e responsabilidades das facções da guerra civil foi o de Franco
(1962). O autor procurou enfrentar o “desafio” de propor uma interpretação para a
Federalista, além da descrição de seus episódios. Mesmo que soe teleológica, a
295
Ver A Federação, abril de 1895. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
170
busca pelo “sentido histórico” do conflito por ele proposta desloca o olhar das
denúncias mútuas entre republicanos e federalistas, e das obras de tom panfletário
para uma análise de suas proporções macro-sociais ou políticas. Para Axt (2001), a
obra do autor foi responsável pela introdução no Rio Grande do Sul daquilo que
chamou de “historiografia de matiz mecanicista”. Com isto, refere-se àquela que
incorporou categorias conceituais caras ao marxismo, em especial a preocupação
com a interação entre classes sociais e grupos no poder. Através da obra de Franco
(1962 e 1967) e do brasilianista Love (1975), o “mecanicismo” adquiriu grande
influência na bibliografia acadêmica.
A produção universitária sobre o assunto é tributária dos autores
mencionados em pelo menos dois pontos principais. O primeiro é a insistência em
uma fissura geográfica da classe dominante rio-grandense, opondo pecuaristas da
região fronteiriça aos proprietários do planalto e da serra do Rio Grande do Sul.
Acreditava-se que entre os primeiros havia maior adesão ao partido liberal /
federalista, pois seus interesses teriam sido melhor contemplados durante o regime
imperial (em especial pelo poder do tribuno Gaspar Martins). Os demais viriam de
regiões de economia menos opulenta e com menores canais de participação
política, encontrando, assim, maiores possibilidades de atuação ao integrar-se ao
PRR. O problema, porém, é que partidários de um grupo ou outro, e combates
entre eles, existiram por todos os lugares do estado, não se sustentando, por si só,
uma delimitação espacial. São Francisco de Paula, por exemplo, tinha um Partido
Federalista muito forte, que se mobilizou e conduziu uma frente de batalha de
forma independente das colunas federalistas mais famosas. Não obstante, está na
área esquematicamente tida como região de poder do PRR.
Na interpretação de Félix (1996), a guerra deveu-se sobretudo a uma reação
de coronéis, do poder local, diante da simbiose do poder carismático de Castilhos,
do poder partidário do PRR e do Executivo estadual. Segundo a autora:
A subida do grupo republicano ao poder (contrário a
qualquer tipo de privilégio) determinou a execução de seu projeto
político que consistia em ferir pontos chaves do pacto imperial (que
privilegiava os estancieiros, os coronéis da fronteira sul) gerando,
com isso, a necessidade de redefinição de relações sócio-políticas.
(Félix, 1996 p. 64-65)
171
Para a autora, portanto, a principal questão em jogo era a autonomia do
poder local frente à ação do Estado, o que certamente não pode ser explicado tão
somente por cisões geográficas.
O segundo ponto no qual os “mecanicistas” influenciaram a
bibliografia acadêmica esteve nas tentativas de explicar as diferenças entre
republicanos e federalistas através de projetos sociais distintos, o que talvez decorra
das dificuldades de encontrar explicações sociológicas para suas divergências. A
explicação da radicalidade do enfrentamento entre 1893-1895 aparece em muitas
obras como resultante da incompatibilidade entre a ideologia “positivista” do PRR
e as perspectivas “liberais” dos federalistas. Axt (2001) assinala, porém que apesar
da influência do “mecanicismo”, há uma inversão do modelo proposto por Marx:
aqui as idéias aparecem como explicativas das fissuras sociais, e não o contrário.
Além disso, o autor destacou a pouca atenção dada para o lapso existente entre
discurso e prática política
296
. Nem o PRR tinha práticas necessariamente tão
“positivistas”, nem os federalistas eram assim tão “liberais”. Félix (1996 p. 67)
também é crítica de divisões mecanicistas entre conservadores liberais e
conservadores autoritários, afirmando ser fundamental não enfocar essa clivagem
ideológica como fator primordial de luta.
Diversos autores acadêmicos – qualificados por Axt de “pseudo-
funcionalistas”, e não mais “mecanicistas”– percebem o conflito que assolou o Rio
Grande do Sul em fins do século XIX, como um assunto interno à classe
dominante, e às suas frações em oposição. Isso se expressa em Trindade (1979 e
1980). O autor insiste na polarização entre uma “classe política dirigente”, não
coincidente com uma “classe dominante hegemônica”. Esse descompasso entre o
político e o econômico caracterizaria os primeiros como “conservadores-
autoritários” enquanto os demais, oligarquia agro-pecuária, como “conservadores-
liberais”. Pesavento (1983), por sua vez, apresenta o confronto em termos da
oposição entre “frações de classe” “autoritárias” e “liberais”. Já Pinto (1986),
afirmando que federalistas e republicanos não pertenciam ao mesmo grupo social e
tampouco compartilhavam da mesma ideologia, conclui que os últimos não
detinham poder sobre as redes de relações coronelísticas
297
e portanto necessitaram
296
Embora Axt dedique sua análise à política castilhista-borgista, a observação também é válida para
os federalistas.
297
Esta assertiva foi convincentemente negada por Félix (1996).
172
buscar bases de apoio não-oligárquicas. Para a autora, se o PRR não construiu um
discurso popular, ao menos foi “intrinsecamente não-oligárquico”: sua
preocupação com a implementação de políticas públicas para toda sociedade seria
demonstrativa deste caráter (p. 24).
É possível concordar com parte
298
das afirmações dos autores mencionados.
É indubitável que a guerra civil de 1893 foi um conflito entre parcelas de grupos
dominantes em busca de interesses divergentes – exatamente por isso as reservas
em relação à utilização do termo “Revolução”. Contudo, o argumento pode se
tornar teleológico, quando se pensa que o rumo tomado pela Federalista não era
necessário nem inevitável. Boa parte das “Revoluções” classicamente
caracterizadas como tal teve início com conflitos internos entre elites econômicas
e/ou políticas, adquirindo contornos sociais mais amplos apenas depois. Se isso
não aconteceu na guerra de 1893, não significa que grupos subalternos devam ser
desconsiderados, reduzidos à condição de “forças de apoio” totalmente sob o
controle dos dominantes ou que não estivessem em busca de interesses próprios.
No entanto, é o que acontece quando a análise se restringe à constatação do
caráter intra-elite do confronto. Isso acontece apesar de diários de guerra como o de
Dourado (1977 [1896]) e dos Tavares (2004 e 2004a) serem pródigos em
demonstrações de que os comandantes tiveram de lidar permanentemente com as
pressões dos “seus” homens, da “gente”, de combatentes indóceis diante da fome,
da sede, da precariedade das condições, da escassez de armas. Sendo assim, as
pressões dos subalternos sobre seus líderes foram no mínimo fatores relevantes –
bastante relevantes, a julgar pelos diários – a serem levados em consideração pelos
comandantes na definição de suas estratégias de guerra. Para estas serem bem-
sucedidas eles tiveram de negociar, ceder e levar em consideração os anseios de sua
“gente”.
O maior problema de restringir a análise do conflito pica-paus X maragatos
a um confronto interno à classe dominante – uma verdade, mas incompleta – é
fechar os olhos para a participação popular no confronto, com interesses, objetivos
e experiências próprias. É o que acontece com Pinto: sua abordagem do PRR como
defensor dos interesses das classes produtoras e da população do Estado (em
virtude do seu caráter não-oligárquico) guarda o inconveniente de apresentar estes
298
Para uma crítica detalhada a suas abordagens, ver Axt, 2001.
173
últimos como passivos expectadores da ação providencial do Estado, e não como
agentes ativos de pressão. Da mesma forma, entende Pesavento:
Mas também as crises podem desenvolver-se no interior do
sistema hegemônico mesmo, pondo frente a frente a classe
fundamental e seus grupos auxiliares, ou então frações da classe
fundamental entre si. Numa crise assim, as classes subalternas
permanecem excluídas ou são somente as forças de apoio das
frações em conflito.
Quer parecer que, na transição da Monarquia para a
República, no Brasil, manifestou-se uma crise deste segundo tipo.
(Pesavento, 1983, p. 10-11, grifos meus).
Portanto, conforme esta perspectiva, realmente o estudo da atuação dos
subalternos na guerra não parece ser muito promissor. Autores com uma
perspectiva diferente podem ter a seguinte compreensão:
(...) o estágio atual das pesquisas não nos permite
caracterizar os revolucionários de 1893 como agentes de uma reação
conservadora ao suposto progressismo burguês e desenvolvimentista
do castilhismo, assim como não é mais possível reduzir esta
reação à região da Campanha ou explicá-la tão-somente como
expressão de um conflito intra-oligárquico (Axt e Cabeda, 2004
p. 54, grifo meu) (...)
No entanto, não dão a devida atenção à participação negra na guerra, apesar
da relevância histórica de uma instituição recente como o escravismo. Os autores
observaram a presença de “bugres, posseiros e ervateiros” serranos na coluna de
Gumercindo Saraiva. Relacionando a Federalista com o movimento do
Contestado, propuseram uma interpretação segundo a qual a adesão a estes
movimentos seria uma resposta de populações marginalizadas à expulsão sofrida –
em virtude da colonização do oeste, construção de linhas férreas, chegada de
imigrantes e formação de latifúndios (Axt e Cabeda, 2004, p. 54-55). Quanto aos
egressos do cativeiro, porém, instituição extinta poucos anos antes da eclosão da
guerra, continua-se sem nada a dizer.
O mesmo pode-se dizer do estudo de Félix (1996 p. 50): ao descrever as
massas que compunham os séquitos dos caudilhos, contempla os peões da
pecuária, com sua sujeição ao dono ou capataz; e também uma população menos
174
disciplinada: mão-de-obra livre, agricultores (donos, intrusos ou arrendatários) e
pequenos pecuaristas. Mesmo que a autora vá adiante na percepção das feições
destes grupos populares em guerra, o caráter étnico-racial e a experiência do
cativeiro não são variáveis consideradas. Isso se justifica pelo fato de que a autora
assume a presença da mão-de-obra escrava nas estâncias, mas continua tributária
da percepção de que a mesma era minoritária
299
. A partir disso, chega-se à
percepção equivocada de que os “grandes proprietários gaúchos não haviam sido
atingidos em cheio pela abolição” (Félix, 1996 p. 63-64).
Zorilla (apud Félix, 1996 p. 50), por sua vez, afirma que, mesmo que as
classes populares não tivessem parte no poder, intervinham na luta de forma
decisiva. Contudo, insiste em afirmar que isso não significava que pudessem ser
mais que agentes de apoio às decisões dos caudilhos, sobre as quais não tinham
participação ou exercer algum controle. Retorna-se, assim, à idéia de passividade
dos populares partícipes do conflito.
Arend (1993) analisa a correspondência privada de Oliveiro Antunes da
Silva com Maria Luiza Vasseur, sua namorada, para perceber a visão da guerra
vivida por um popular, em lugar de lhe imputar passividade. O rapaz lutava no
primeiro batalhão da Guarda Nacional, dando combate aos federalistas no inverno
de 1895. A documentação foi apensada a um processo-crime como prova de que
havia cometido “atos de libidinagem”, pelos quais respondia judicialmente.
Embora não enfoque sua história a partir da etnicidade, e sim da categoria popular,
através de uma fotografia a autora destaca que o rapaz era mulato. Seu texto não se
centra em uma abordagem de história política factual ou em uma análise macro-
econômica das motivações da guerra. Sob influência da história social, recupera
“uma pequena parte da história desse conflito através da visão de populares porto-
alegrenses que participaram direta ou indiretamente do mesmo” (Arend, 1993). A
proposta metodológica da autora é atual, e seria muito fértil se utilizada em novos
textos sobre a temática.
299
O que outras pesquisas colocaram em xeque, como Osório (1999) e Zarth (2002).
175
Figura 8 – Oliveiro Antunes da Silva, o “enamorado infeliz”.
Fonte: Arend (1993 p. 89)
Seria equivocado negar a existência de obras que estabelecem vínculos entre
a abolição da escravidão e a “Revolução Federalista”. Em uma passagem tão
instigante quanto breve, Wissenbach procurou relacionar as migrações internas do
país no pós-Abolição às guerras de Canudos e do Contestado, assim como à
Federalista no sul do Brasil. A resistência aos recrutamentos forçados e o usufruto
de uma liberdade de movimento até então vedada aos escravos faziam parte destes
momentos de aguda tensão. A autora lança um convite para a reflexão sobre o
conflito de 1893 sob o prisma da mobilidade espacial dos ex-escravos, que, como
visto, era um grande problema a atormentar as autoridades de outrora
(Wissenbach, 1998a, p. 57-59)
300
.
A análise de Machado (2004) lhe é convergente, ao menos no que toca à
preocupação com a sua inter-relação com os conflitos que agitaram o Brasil durante
a República Velha. Relacionando a guerra do Contestado à Federalista, o autor
identificou diversas lideranças negras que, fugidas da ditadura castilhista-borgista
no Rio Grande do Sul, acabaram por, anos mais tarde, engajar-se no confronto
ocorrido em Santa Catarina. O autor assinala, portanto, um vínculo entre a
300
A autora identifica neste discurso (típico daqueles que, como Vilanova, eram incapazes de
perceber padrões de organização social e subsistência distintos dos preconizados pelas classes
dominantes) um obstáculo para a interpretação da singularidade de suas trajetórias sociais,
“vivenciadas estas nos limites do que era possível, mas com base em escolhas e valores próprios”, já
que reduzidas à pecha de vagabundagem e ociosidade, de desorganização social e moral
(Wissenbach, 1998a, p. 52).
176
Federalista e o Contestado
301
, estabelecido por estas lideranças. Machado não
discute – e tampouco se propõe a tal (Machado, 2004 p. 48) – o Contestado sob o
viés da etnicidade, e, tal como Wissenbach, suas referências à guerra civil de 1893
são breves – afinal, periféricos aos temas centrais, distintos, estudados pelos
autores. Ainda assim, considero suas obras importantes para a questão aqui
proposta, ao estabelecerem algumas diretrizes em um campo ainda lacunar.
No entendimento de Wissenbach, a mobilidade também estava relacionada
às lides pecuárias da planície, – ou aos campos de cima da serra, poder-se-ia
acrescentar – às atividades de “vaqueiros, tangedores, domadores de cavalos”, e
via-se intensificada pelo monopólio da propriedade da terra pelos grandes
latifúndios, que relegavam aos homens livres um “viver à margem” (Wissenbach,
1998a, p. 56-57). Argumento que a conjuntura de guerra trouxe, ao menos
temporariamente, condições mais favoráveis para que ao menos parcela dos
egressos do cativeiro obtivessem acesso à terra, sob diversas vias, o que não
minimiza, é claro, a marginalidade da vida da maior parte dos homens que recém
haviam adquirido a liberdade. Machado (2004 p. 250), por sua vez, ao apresentar
um personagem como Olegário Rodrigues da Rosa – negro gaúcho, antigo
maragato, envolvido no Contestado – leva à seguinte indagação: se foi possível
verificar com facilidade a presença de ex-federalistas negros entre os evadidos para
Santa Catarina, porque não seria viável identificá-los entre o conjunto dos
combatentes rio-grandenses?
Ex-federalistas (ou pica-paus) negros e seus descendentes fazem-se presentes
com maior freqüência em narrativas literárias, e com uma complexidade e
densidade superiores do que no discurso historiográfico. Sem qualquer pretensão de
debater as características específicas de cada um desses campos de conhecimento, o
fato é que os textos literários não precisaram demorar até as décadas de 1990 e 2000
para estampar em suas páginas, com uma atenção maior, partícipes negros do
conflito de 1893. Talvez a necessidade de construir enredos microscópicos, a fim de
contar uma “boa história”, tenha levado à construção de personagens de todos
estratos sociais, conforme a necessidade da narrativa. Por outro lado, conformou-se
uma leitura estereotipada dos mesmos: há a tradicional oposição entre sujeitos
301
A “Revolução Federalista” marcou de forma profundamente negativa a memória da região
analisada pelo autor: seja pela resistência ao regime republicano, seja pelas práticas da degola e do
furto de gado, cujo “ensino” foi atribuído aos maragatos (Machado, 2004 p. 90, 214)
177
totalmente submissos e outros que, se não necessariamente encarnam a total
hostilidade em relação ao dominador branco, ao menos expressam uma
belicosidade ausente naqueles.
Isso aparece com muita clareza n’ “O Sobrado” (a parte d’ “O Tempo e o
Vento” ambientada durante a “Revolução Federalista”). Sobrepondo aquela
oposição à de gênero, Érico Veríssimo construiu personagens femininos – a
“mulata Laurinda” e uma anônima “negra velha e suja” – que dedicavam-se
apenas ao auxílio nos partos, nos cuidados com as crianças e no preparo da
alimentação. É indubitável que eram tarefas inerentes ao serviço doméstico. O que
está em questão, porém, é que no texto estas atividades parecem conter toda a vida
daquelas mulheres. O lugar ocupado na narrativa é exatamente o mesmo que a
sociedade pós-escravista lhes pretendia prescrever. Laurinda, ainda, aparece
acatando e assumindo valores morais cristãos, ao lamentar o sepultamento sem
batismo de uma criança (o que lhe valeu a adjetivação de “crédula”) e ao recusar-se
a falar de “bandalheiras” (Veríssimo, 1956).
Entre aqueles que a convidaram para falar deste constrangedor assunto
estava João Batista, negro que havia sido escravo de Licurgo Cambará e que junto
a ele lutara no conflito de 1893. Esse personagem contrapunha-se ao de Laurinda:
ela era mulher, ele era homem; ela resignava-se às lides domésticas, e ele não
suportava mais o cerco, afirmando não ter nascido para viver fechado e estar
desejoso de poder cavalgar no lombo de um cavalo; ela com uma ascendência
escrava apenas sugerida de forma sutil por sua designação como “mulata”, ele
explicitamente identificado com o antigo regime de trabalho, tendo a identidade do
ex-senhor assinalada; ela ninava as crianças, que se encantavam com seu cheiro de
“suor, banha e cebola”, enquanto ele, fanfarrão, afirmava preferir combates com
armas brancas, por serem mais “divertidos” do que os de fogo. Essas oposições
certamente criam um jogo de contrastes interessante do ponto de vista da criação
literária; no entanto não se pode negar que elas consolidam estereótipos que se
repetem em outras obras. Ora, pelo menos desde o livro de Reis e Silva (1989) se
sabe que a vida dos escravos (e, porque não, ex-cativos?) era bastante mais
complexa do que a antinomia acomodação X resistência ou hostilidade.
No entanto, nos textos literários abundam personagens valentões, brutais,
vingativos e, freqüentemente, degoladores. Agindo por conta própria ou a mando
de algum grande proprietário – no mais das vezes para realizar algum acerto de
178
contas – as atividades bélicas, ou a revanche delas, parecem subsumir as vidas dos
“Joões Batistas” da mesma maneira como as domésticas faziam com as
“Laurindas”. Da mesma maneira, um enredo comum é o do sujeito que deseja
vingar-se do degolador de algum parente próximo, executado em 1893-1895
302
. Os
personagens negros são, às vezes, vingadores, às vezes carrascos.
No conto “Chiru”, de Fontoura (1993), o personagem-título degolou “de
orelha a orelha” o “caboclo Ireno”, responsável pela morte de seu pai durante a
guerra civil, após revelar de quem era filho. Este valentão era temido por todos, a
não ser por um seu amigo, Juca Santos, considerado “pardo da mesma laia”.
Mesmo quando não eram da “mesma laia”, porém, os personagens negros
envolvidos na guerra de 1893 ou seus desdobramentos aparecem comumente
caracterizados como traiçoeiros, dissimulados, rancorosos.
No texto “Os devaneios do general”, de Veríssimo (1993), o mulato
Petronilho apresentava-se na casa do General Chicuta Campolargo, oferecendo
seus serviços apenas por casa, comida e roupa – vale dizer, aceitando condições de
trabalho muito assemelhadas às da escravidão – pelo único prazer de assistir a
agonia do velho que havia ordenado o assassinato de seu pai. Aproveitava-se da
oportunidade de “gozar, provocar, desrespeitar”, em sua condição de enfermeiro,
do idoso que havia sido a “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”.
O discurso literário e a ideologia social que o informa podem ser ainda mais
discriminatórios, na associação de personagens negros com caracteres negativos.
Um conto de Rillo (1993), “Bicho Tutu” constitui-se de uma longa confissão de um
antigo “valentão” que havia praticado degolas. A personagem pretendia
demonstrar sua bondade, e, mesmo apesar de sua má-fama, argumentar que era um
homem de coração mole. Entre outros exemplos, menciona a degola de uma
criança, que realizou para impedir que “Azulão” o fizesse. Este personagem,
“negro”, foi considerado pouco hábil: sua degola, por imperícia, impunha maior
sofrimento à vítima. Então o narrador assumiu para si o trabalho: sua habilidade no
302
N’ “O Sobrado” há um episódio semelhante: durante o cerco ao sobrado dos Cambará, um dos
homens que lutava em sua defesa, Antero Moura, aproveitou-se para impor humilhações a Tinoco,
assassino de seu irmão que também participava da defesa do casarão. Estava machucado e suas
feridas apodreciam no porão, de modo que não era possível reagir. A punição não se deu por meio
de assassinato e sim de tortura psicológica, acusando-o pelos crimes cometidos, lhe ofendendo e
submetendo a humilhações (como cuspir em seu rosto). A vingança não é conseqüência da guerra
civil, mas esta é a ocasião para consumá-la. Não há qualquer indicação de Antero ser negro. No
entanto, é bom assinalar o caso para observar que é uma narrativa bastante presente na literatura
(Veríssimo, 1956).
179
manejo da adaga minimizava o sofrimento da vítima. Nesta macabra anedota
cumpre destacar que se conferem características triplamente negativas a “Azulão”:
ele é ruim por realizar degolas, é ruim porque suas degolas não são realizadas da
maneira adequada, e novamente ruim por fazer suas vítimas sofrer mais.
É evidente que “Juca Santos”, o executor do crime ordenado por “Chicuta
Campolargo” e o “Azulão” foram maneiras encontradas por escritores rio-
grandenses para falar das degolas, da participação de negros nestas, e em especial,
de Adão Latorre. Este indivíduo, de existência não ficcional, foi tomado ao mesmo
tempo como emblema desta prática e como depositário das culpas por sua
realização. Sendo assim, é importante nos determos sobre sua história, a fim de
entender como um único indivíduo tornou-se bode expiatório de um banho de
sangue que inundou o Rio Grande do Sul como um todo.
Com vocês, “o negro Adão” e “o bravo Tenente-coronel Adão
Latorre”
Nos transportemos à região limítrofe entre Uruguai e Brasil, em fins do
século XIX. Com sorte, iremos nos deparar com uma espécie de “Calisto
fronteiriço”, isto é, aquele antigo escravo que, gozando da confiança senhorial,
tornou-se capataz depois de remido da condição servil. Com um pouco mais de
imaginação, encontraremos um filho para nosso hipotético personagem, que
assumiu a mesma profissão de seu pai. Este poderá, talvez, ter sido Adão Latorre.
Capataz, filho de escravos, este indivíduo trabalhou toda vida para os proprietários
de seus pais, e com eles lutou. A poderosa família Tavares era um clã
anteriormente adepto do partido conservador, agora engajado na guerra civil ao
lado dos federalistas (Bones e Ruas, 1997 p. 134; 157-158).
Reverbel (1985 p. 55) apresenta a região fronteiriça não apenas como o
território geográfico da vida de Latorre, como também o universo cultural do qual
fazia parte. Assim sendo,
180
Se não dispunha de dupla nacionalidade como outros
exemplares dessa mesma cultura, pouco lhe interessava, pois vivia e
transitava entre a linha divisória como se estivesse pisando o único e
mesmo chão. Seu idioma era uma mescla encastiçada de português
e espanhol, pendendo mais para a língua de Martin Fierro, cuja
filosofia campeira talvez seguisse.
Ao inferir uma informação como a sonoridade da fala de Latorre, o autor
talvez cometa algum exagero. A correspondência por ele dirigida ao General Joca
Tavares (2004 a, p. 97-98), ao menos, não apenas foi redigida em língua
portuguesa, como escrita com perfeição, sem vestígios de espanholismos
303
. Ainda
assim, a tentativa de caracterizar Adão como personagem de um mundo fronteiriço
(como, de resto, todos ao seu redor
304
) não é despropositada. Cumpre observar
mesmo a sonoridade castelhana de seu sobrenome. Segundo Guazzelli, (2004 p.
54), havia nascido em Rivera, o lado uruguaio da cidade fronteiriça cujo lado
brasileiro é Livramento
305
.
Como tantos outros, Adão Latorre engajou-se nos esforços de guerra
acompanhando a antiga família senhorial; com a peculiaridade, porém, de seus
antigos senhores ocuparem um lugar de grande destaque na hierarquia política dos
maragatos. Isso facilitou sua ascensão nas forças rebeldes. Enquanto Gaspar
Silveira Martins era o líder civil dos “revolucionários” de 1893, Joca Tavares era
seu comandante militar, enquanto seu irmão Zeca liderava uma brigada –aquela
em que Latorre se encontrava – por ocasião do combate de Rio Negro. Integrou
também o piquete de Aparício Saraiva, e sua liderança foi apreendida por registro
fotográfico.
303
É possível, contudo, que o documento tenha sido ditado, transcrito e corrigido.
304
A exemplo dos líderes federalistas Gumercindo e Aparício Saraiva / Saravia. Conforme Bones e
Ruas (1997, p. 117), ambos lideravam colunas de combatentes federalistas que trajavam lenços
vermelhos, mas eles mesmos não abandonavam os lenços brancos (mesma cor de seus adversários
no Brasil), representativos do Partido Nacional, sua agremiação política no Uruguai. Preferiram
assumir a cor de seus inimigos brasileiros do que trajar-se como seus adversários orientais.
305
Mais precisos, Bones e Ruas (1997 p. 157) apontam o distrito de Cerro Chato, interior de Rivera,
como local de nascimento.
181
Figura 9 – Piquete de Aparício Saraiva, comandado pelo tenente-coronel Adão.
Fonte: Reverbel, 1985 p. 103
O combate de Rio Negro é tido como um dos maiores episódios de barbárie
da Federalista, comparado apenas ao de Boi Preto. No primeiro, estima-se que
trezentos pica-paus foram degolados pelos maragatos, enquanto no segundo
combate ocorreu a revanche daquelas mortes, na mesma escala. Trata-se do tipo de
coisa no qual é muito difícil separar o que há de “verdadeiro” e o que há de
“mítico”. Como quantificar retrospectivamente o número de vítimas de um
massacre? Todavia, a própria “lenda” criada em torno deste episódio presta-se a
uma reflexão. A tradição oral e historiográfica costuma atribuir todas as trezentas
mortes do primeiro combate a Adão Latorre. Construiu-se, assim, no imaginário
rio-grandense uma associação automática entre este personagem e a prática da
degola (ver Reverbel, 1985 p. 57 e Bones e Ruas, 1997 p. 158)
306
.
Certamente este vínculo direto tem ligação com o problema das relações
raciais no Rio Grande do Sul. Parece haver uma atualização do “pecado de Cam”:
com todo Estado envolvido em uma guerra sangrenta, apenas os crimes realizados
por um descendente de escravos, “maculado” por aquela origem, ficaram
guardados na memória. Latorre simboliza e torna-se responsável por lembranças
que os gaúchos não querem ter para si. Esta sensação coletivamente compartilhada
306
Ao longo da elaboração deste trabalho, foi freqüente, em conversas com outras pessoas, colegas
ou não, sobre o tema do meu trabalho, sobre meu interesse por Adão Latorre, a seguinte pergunta:
“ah, o degolador?” ou o comentário “não é o degolador aquele?”. Portanto, a associação imediata e
automática foi então produzida de forma eficaz e adquiriu longevidade.
182
adquire mesmo expressão escrita: “Mas, até hoje, quando se fala nele, não se lhe
atribui outra dimensão que não seja a de maior degolador do Rio Grande do Sul”
(Reverbel, 1985 p. 57). Sua existência, e até que se realize um estudo consistente a
seu respeito, foi reduzida à condição de carrasco exemplar.
A literatura alimentou-se da legenda em torno de Adão Latorre, mas ao
fazê-lo contribuiu para fomentá-la. Temos, por exemplo, no conto “Caminhos do
Sul” de Martins (1993, p. 64-65), o “negro Remígio”. O personagem integrara as
forças federalistas, deixara fama, pois além de ser “homem macho” à disposição
para realizar para Joca Tavares o serviço que fosse, também era “ladino”, capaz de
cruzar as linhas governistas e atingir os acampamentos de outros chefes
“revolucionários”. Estivera em Rio Negro, “mas não degolou”; afinal, “quem fez
serviço grande foi o negro Adão e o Ribeirinho”. A passagem mais conhecida,
porém, que lhe confere exclusividade nas execuções pode ser encontrada em Lessa
(1978, p. 137-138). Em “Noventa e três”, apresenta diálogo entre carrasco e vítima,
no qual esta pedia uma clemência que lhe foi negada:
Um dos raros que chegou a dialogar com o carrasco Adão Latorre
foi o estancieiro Maneco Pedroso, de Piratini:
- Adão, quanto vale a vida de um homem valente e de bem?
- Valente, eu sei que é, mas pelo que já andou assassinando, duvido
que seja homem de bem. E a tua vida já não vale nada, porque está
no fio da minha adaga e não há dinheiro que pague.
Pedroso jogou a própria cabeça para trás, mostrando o pescoço, e
gritou:
- Então degola de uma vez, negro filho da puta”.
Lessa, então, inicia uma verdadeira contagem das gargantas cortadas por
Adão. Enumera algarismos, de dez a trezentos, para dar a dimensão do massacre,
apresentado como resultado espontâneo e voluntário da vontade de Latorre. Há
alguns aspectos a se ressaltar desta narrativa. Em primeiro lugar, o negro degolador
aparece como um homem implacável e impiedoso
307
, enquanto sua vítima, um
homem branco, permanece valente até o fim. Vendo rejeitado seu pedido por
clemência, ainda teve coragem para proferir desaforos contra seu antagonista. Cabe
acentuar, ainda, que se trata de uma injúria em que o componente racial tem
307
Características, é claro, necessárias para tal atividade.
183
grande importância. A associação entre a condição de “negro”, então considerada
depreciativa, e adjetivações bastante desabonadoras, demonstra que esta não era
uma variável alheia ou fortuita à construção feita para “resolver” o problema das
responsabilidades pela degola.
Este diálogo adquiriu o estatuto de verdade. O brasilianista Joseph Love
(1975 p. 72) toma como expressão da realidade o texto desta conversa entre vítima
e executor, reforçando a idéia de que Adão operou sozinho a morte de trezentas
pessoas em um só dia. Reverbel, por seu turno, também registra o pedido de
clemência de Pedroso, a negativa de Latorre, e os insultos proferidos por aquele,
ipsis litteris. É improvável que alguém estivesse por perto apontando o que cada um
dizia naquele momento dramático, mas o autor procurou situar a difusão do
diálogo na tradição oral dos homens do pampa: “Travou-se então este pequeno
diálogo, repetido durante muitos anos pelos homens rudes daqueles pagos”
(Reverbel, 1985 p. 53). Ele ainda preocupou-se em registrar breves dados
biográficos de Adão Latorre, alertando para o óbvio: questionou-se quanto à
exeqüibilidade de uma mesma pessoa assassinar trezentas em lapso de tempo
inferior a 24 horas: “Talvez o brazilianist [Love] tenha tropeçado, como tantos
outros, ao afirmar que o negro Adão executou sozinho o serviço. Não é fácil degolar
num dia mais de 300 prisioneiros sem o concurso de outras facas” (Reverbel, 1985
p. 55).
O registro mais antigo que encontrei, porém, do mencionado diálogo,
encontra-se na História de Bagé de Salis (1955)
308
. As palavras trocadas entre Latorre
e Pedroso são as mesmas que Lessa utilizou em seu conto (com uma organização
gráfica um pouco diferente). Salis indicou as fontes de sua narrativa. Eram
declarações orais:
O Cel. Manoel Pedroso, homem “guapo” a valer, vendo que
o “colored”
309
Adão Latorre afiava a clássica faca usada pelo
homem habituado às lides do campo desta zona sul do país,
assentando-lhe o fio em boa chiara, previu seu próximo fim e sem
esperança, mas com calma se dirigiu ao mesmo, mantendo o
308
Ele pode ser uma origem comum do registro de Lessa, Reverbel e Love, mas também pode,
através de algumas destas obras, ter influenciado as demais. É difícil saber pois, à exceção de Love,
os autores citados não registravam as fontes que utilizavam.
309
Aparentemente, durante a década de 1950, a palavra “negro” permanecia desconfortável. A
alternativa encontrada pelo autor foi a utilização deste anglicismo.
184
diálogo seguinte – conforme declaração do Dr. João Maria
Colares: [segue o mesmo diálogo registrado por Lessa em
seu conto] (...) Assistiu a esta cena entre outros, o Sr. Pedro
Luis Lacerda que diz ainda haver ouvido o pedido de Pedroso a
Adão que entregasse um anel de seu uso a uma filha residente na
cidade de Pelotas. (Salis, 1955 p. 277-278 grifos meus)
Longe de mim está questionar a validade da utilização de fontes orais na
pesquisa histórica
310
; há muito tempo a história oral tem seu lugar garantido e não
há mais necessidade de argumentar por afirmá-la e legitimá-la. Está demonstrada
sua importância e riqueza para a compreensão de processos históricos, de
experiências individuais e coletivas e identidades sociais. Definitivamente, meu
problema não é este, e sequer entro no mérito da viabilidade de alguém
testemunhar uma execução e transcrever de forma tão nítida e clara as palavras
trocadas entre carrasco e condenado durante o ato, dando-lhe um aspecto tão
realista. O ponto que quero sublinhar é que o texto atravessou décadas tendo
perdido a referência original de seu caráter oral. Esta é uma informação
fundamental, e, assim, os autores discutidos (mesmo Love, que citou a fonte
original mas assumiu como verdadeira a versão de que Adão foi agente de todas
execuções realizadas em Rio Negro) cristalizaram e descontextualizaram o texto, que
tornou-se, assim, expressão de verdade auto-evidente, pretensamente comprobatório das
execuções (de exeqüibilidade discutível) realizadas por Latorre. A utilização
acrítica do texto (à exceção de Reverbel, que o lê a partir de diversos
questionamentos) não permite perceber que ele se refere a apenas uma de muitas
verdades sobre Adão Latorre.
Quando um texto histórico perde seu referente original, existe, portanto, o
risco da solidificação de uma abordagem, que pode, assim, tornar-se estereotipada e
ser tomada como absoluta. Com a reificação do documento, torna-se impossível a
crítica e o debate. Em alguma medida, isto é inevitável, já que os historiadores não
são os únicos que pensam, concebem, e constroem conhecimento histórico (e isso é
bom)
311
, e tampouco têm qualquer controle sobre a apropriação ou as leituras
310
Pelo contrário, lamento não ter tido tempo nem oportunidade de me enveredar nesta vertente, a
fim de enriquecer aquilo que as fontes escritas podem fornecer, investigar aquilo que elas não
podem, acessar versões daqueles que não tiveram oportunidade de legar à posteridade registros
escritos, refletir sobre a produção e atualização dos relatos e confrontar diversas versões.
311
E os não-historiadores, a propósito, também não são os únicos que cristalizam versões.
185
daquilo que escrevem. No entanto, preocupantes são os casos em que o mau uso
das fontes leva à reprodução de estigmas. Isso não acontece apenas com
depoimentos orais, mas também com textos literários. Em um suplemento do
jornal Zero Hora (citado em Bones e Ruas, 1997 p. 159), há uma narrativa (depois
da sempiterna conversa entre Pedroso e Latorre) de mais uma vítima da faca de
Adão que pediu uma clemência que lhe foi negada:
- Por la leche que bebió de su madre, no me mate!
- Fui criado guacho, hijo de puta – dice en español el implacable
Latorre, como su jefe máximo también uruguayo.
Talvez tenha sido com o “Bicho Tutu” (aquela personagem de Rillo que
praticava degolas humanitárias) que o implacável Latorre aprendeu a justificar a
negação de pedidos de clemência alegando não ter sido amamentado durante a
infância. Com a diferença, é claro de que este era mais cortês, pois pretendia
demonstrar sua bondade:
- Pelo leite que o senhor mamou nos peitos de sua mãezinha, não
me mate, mocinho!
- Aí eu disse – Que pena, meu filhinho, eu fui criado guaxo...
E era verdade. Nunca mamei leite de peito materno: minha
mãe morreu quando eu nasci. Sei que tem gente que diz que ela
morreu de desgosto, por ter adivinhado o bandido que havia parido.
Quanta maldade neste mundo, mãe de Deus! (Rillo, 1993 p. 71)
À parte as considerações do “Bicho Tutu” sobre sua mãe, são similares o
discurso deste personagem e o atribuído a Adão Latorre, com a diferença, porém,
de que o deste último era mais agressivo. É possível que a atribuição deste episódio
ao líder federalista e seu aproveitamento por parte do contista se originem de uma
fonte comum – como alguma anedota popular na região fronteiriça – mas parece
possível supor que, por alguma metamorfose desconhecida, o “Bicho Tutu” saiu
das páginas dos livros para dirigir-se às do jornal, transformando-se em Adão
Latorre. Para isso, precisou abandonar seu discurso irônico e assumir um bastante
agressivo – como todos esperam, enfim, que um bom Adão Latorre faça.
Criou-se uma polêmica, um tanto estéril, a respeito de se e quantos Latorre
teria matado (para Bones e Ruas, 1997 p. 134, ele não teria cometido os
assassinatos sozinho, mas os teria comandado; Guazzelli, 2004, assinala que a ele foi
186
atribuído tal feito, sem preocupar-se em verificar – caso isso fosse possível – se
realmente o fez). Efetivamente, acredito que esta última posição é a mais prudente.
A mim, importa mais entender os mecanismos ideológicos através dos quais ele
tornou-se o “suspeito número um” para a realização de atrocidades, quais
preconceitos estão vinculados a essa desconfiança e condenação e em que, afinal,
tais problemas podem obstaculizar a tentativa de escrever a história do negro na
guerra civil de 1893. A sombra que paira sobre a memória de Adão Latorre
impediu de perceber a participação de ex-escravos na guerra civil sob outras formas
que não aquelas tradicionalmente imputadas a ele.
É necessário levar em conta algumas observações de Franco (1993 p. 52-53).
Para o autor, embora Rio Negro e Boi Preto se tenham convertido em “marcos
simbólicos do total menosprezo da condição humana” e “para o povo rio-
grandense, de um modo geral, falar em 93 é falar naqueles dois combates”, foram
raros os massacres de grande escala, as operações de grande vulto. Aqueles dois
combates tornaram-se marcantes justamente por terem sido exceção, não regra. Ele
argumenta que degolas deliberadamente premeditadas pelos líderes militares não
eram comuns. Estes formalmente condenavam em escritos como diários atos de
crueldade em geral
312
– o que, em absoluto, representa uma equivalência na prática
deste discurso. Ainda assim, opiniões expressas de forma particular parecem menos
interessadas em causar uma boa impressão. Diversas execuções foram realizadas
por pequenos grupos, quer sob mando de “caudilhetes” (“especialmente na zona
serrana e missioneira”), quer pelos combatentes, de forma espontânea, no calor da
luta. Isso de maneira alguma diminui o caráter violento da Federalista, mas leva a
um dimensionamento de em quais situações ocorriam os maiores atos de
arbitrariedade
313
. Os episódios de violência narrados em Moura (2000 [1892]) e
Cabeda e Costa (2000 [1902]) raramente envolvem grupos de grandes dimensões. A
degola era no mais das vezes um ato espontâneo em momentos de grande tensão.
Assim sendo, chega mesmo às raias da ingenuidade atribuir a um único sujeito uma
312
O que efetivamente encontra sustentação em Tavares 2004a.
313
Pelo contrário, creio que a constatação de que as hostilidades eram realizadas por pequenos
agrupamentos acentua, e não suaviza a violência intrínseca à guerra, pois o estado de exceção era
trazido para o cotidiano. O perigo da chegada do inimigo era sempre um risco iminente. Tal aspecto
não escapou à literatura. No conto “A travessia”, Guimarães (1993) narra uma história de terror na
qual um grupo estava encarregado de fazer a travessia do rio Ibicuí antes do sol nascer. No
desenrolar da operação, os soldados, que já temiam a chegada do inimigo, constataram o
desaparecimento de um homem, instalando-se o pânico.
187
realidade mais complexa. As degolas espraiaram-se pelo Rio Grande do Sul e Adão
Latorre era apenas uma pequena – importante, não em si, mas pela maneira como
veio a ser rememorado – peça na engrenagem.
Figura 10 – “Adão Latorre, célebre degollador federalista ejerciendo su terrible oficio.
El segundo a su izquierda es Cizério Saraiva”.
Fonte: Bones e Ruas, 1997 p. 133.
Latorre parece estar submetendo um prisioneiro à “gravata colorada” na foto apresentada pelos
autores. Na legenda esta atividade adquire foros de profissão e não de uma prática bélica dentre
outras generalizadas na “Revolução Federalista”.
Sua identidade social foi reduzida a esta atividade.
Não se trata, aqui, de “reabilitar” Adão Latorre. É certo que praticou
degolas em pessoas, como a foto acima demonstra. O que sustento é que esta
prática era típica, e muitos outros assim agiram. A degola foi usual nos confrontos
de 1893-1895, quando muito por causa dos obstáculos destacados por Guazzelli
(2004) para acesso às armas de fogo, bem como por outros fatores já arrolados.
Houve uma seleção social da memória diante da qual o ônus desta lembrança
incômoda recaiu sobre ele. Isso se deu não apenas por ser negro – nascido em
território uruguaio, portanto estrangeiro – mas particularmente por ter sido um negro
que atingiu uma patente elevada. Deduzem Bones e Ruas que Latorre teria sido o
líder da chacina de Rio Negro pelo fato de ter terminado “la guerra com el grado de
coronel, algo extraño en la época para gente de piel negra” (Bones e Ruas, 1997 p.
134). “si Adão Latorre era un criminal sanguinario, negro y analfabeto, ¿por qué
ricibió el grado de coronel con el que murió en otra revolución treinta años
después?” Considero esta formulação do problema inadmissível e creio que ela
188
deva ser invertida. O estigma é a premissa desta argumentação, cabendo indagar
sobre a construção do mesmo.
Faz sentido supor que Adão Latorre ascendeu a patentes superiores
enfrentando dificuldades maiores do que seus pares de tez mais clara. É provável,
mesmo, que para atingir tal grau tenha que ter assumido tarefas mais
desagradáveis. Não se pode esquecer, porém, de seus vínculos diretos com a família
Tavares. Esse acesso ao comando militar federalista, não era possível para a maior
parte dos brancos pobres; ao menos sob este aspecto estava em uma situação mais
favorável. Não obstante, se galgou hierarquias militares mais elevadas praticando
degolas, certamente outros também o fizeram. A pergunta que se coloca é porque a
ascensão de Adão deveria ser explicada pelas gargantas que cortou e dos demais,
não.
Supor que alguém seria, de forma deliberada, beneficiado socialmente por
envolvimento em um massacre implica em uma visão simplista e conspiratória
deste confronto militar complexo. Nem só de “gravatas coloradas” viviam
maragatos e pica-paus – as mesmas parecem ter ficado mistificadas de tal forma que
parece que só se fez isso no Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895 – e um líder de
uma guerra civil, para defender sua causa, tinha que fazer muito mais do que cortar
gargantas alheias: traçar estratégias, liderar combates, guardar posições.
O diário de Joca Tavares traz algumas surpreendentes (para quem está
acostumado à ‘lenda’ em torno do personagem) dimensões de Adão Latorre
maiores do que “a de maior degolador do Rio Grande do Sul”. Há a transcrição de
algumas cartas que referem seu nome, e uma por ele escrita. Em carta do General
Marcelino Piva para Tavares, em 4 de junho de 1894, Adão era mencionado como
major (Tavares, 2004 a, p. 97). Em quatro meses, sua patente se modificara: no dia
4 de outubro, Zeca Tavares escreveu carta para seu irmão, na qual Latorre aparecia
como tenente-coronel (Tavares, 2004 a, p. 110-111). Essa promoção não tinha
relação nenhuma com a batalha de Rio Negro, ocorrida em novembro do ano
anterior. Pelo contrário, naqueles meses ele encontrava-se operando na defesa de
posições militares em Cachoeira e Camaquã. Sua ascensão, na ocasião, se deveu à
atuação como líder militar e não ao papel de carrasco a ele associado.
A leitura dos diários dos Tavares é enriquecedora por nos revelar um outro
Adão Latorre: não o bárbaro assassino do discurso oficial republicano, e que nos
chegou aos dias de hoje, mas um militar corajoso, disciplinado e eficaz. Para uns, o
189
“negro Adão”, mas para outros, “o bravo tenente-coronel Adão Latorre”. E para
ele próprio, quem seria? Na carta que dirigiu a Joca Tavares, assinou, simplesmente
“Adão Latorre” (Tavares, 2004 a p. 98). Sem classificações tidas como ofensivas,
mas também sem a patente militar considerada tão importante por Bones e Ruas.
Ao contrário do que parece indicar sua argumentação, realmente o título a ostentar
não parecia ser a maior das preocupações de Latorre. Portanto, ao contrário do que
querem os referidos autores (1997 p. 134), o fato de ter ascendido socialmente
apesar de ser negro não evidencia ter encabeçado o massacre; pelo contrário,
acredito que é o fato de ter atingido patentes militares elevadas que o tornou
particularmente vulnerável a acusações neste sentido, e um “bode expiatório”
adequado.
No entanto, ao menos em um aspecto tanto os pica-paus do “negro Adão”
quanto os maragatos do “bravo Tenente-coronel” coincidiam: a carga semântica
negativa da palavra “negro”. Quando a ele se referiam com intuitos ofensivos,
Latorre era um sujeito racializado. Quando, pelo contrário, se pretendia destacar
suas virtudes, ele era esvaziado de quaisquer atributos de conteúdo étnico-racial. Se
algum desavisado lesse o diário de Joca Tavares sem a menor idéia de quem foi
Adão Latorre, jamais seria capaz de imaginar que era negro, ou a existência de tão
pesados estigmas em torno de seu nome. Quantos outros também não estão
presentes na documentação, em situação semelhante à deste líder federalista,
invisíveis? Foi uma singular combinação entre sua condição racial, o fato de não ser
brasileiro e o estigma social do carrasco que o perpetuou no papel a ele associado,
mas também o tornou visível. Os preconceitos contra indivíduos negros no pós-
abolição criaram um terreno fértil para a construção da “legenda”.
Durante um dos sítios de Bagé
314
foi escrito um poema de nome “O Negro
Adão”, de autoria – incerta – de um tal Chico Claro – o próprio cognome assumido
pelo poeta que cantaria o “negro Adão” é já provocativa – posteriormente
recolhido por Simões Lopes Neto (Lopes Neto, 1960, p. 256-257)
315
. Ele consta do
314
O primeiro deu-se em março de 1893 e o segundo entre novembro de 1893 e janeiro de 1894. O
poema provavelmente foi escrito durante o segundo cerco que, cumpre observar, coincide em seu
início com o combate / massacre de Rio Negro.
315
Simões Lopes Neto recolheu neste livro quadras, poemas, trovas, poesias satíricas diversas.
Dentre as “modernas”, de caráter político, há textos favoráveis e contrários a republicanos e seus
opositores. Há poemas que louvam Júlio de Castilhos, e críticas a ele e Floriano. Um poema deseja
“maus agouros” para políticos de todas as facções: federalistas, castilhistas, dissidentes - a Joca
Tavares, a Silveira Martins, a Júlio de Castilhos e a Barros Cassal. Outros lamentam a morte de
190
anexo 4 deste estudo. Seu conteúdo, ofensivo a Adão Latorre, o demoniza de fato.
É evidente que, na sua leitura, deve ser levado em conta tanto o momento tenso em
que foi produzido – poucas coisas podem ser mais dramáticas do que um cerco de
mais de dois meses – como a proximidade, se não coincidência cronológica, com
Rio Negro. O problema racial se faz presente, quando o texto explora os
significados de “negro”. O personagem de que o poema trata é originário do
inferno e isto encontra-se associado à sua “cor”:
Saiu do fogo do inferno
Embraseado, um tição,
O Diabo cuspiu em cima
Ficou feito o negro Adão.
A condição de “negro” de Adão, portanto, assim como o seu agir – parece-
me que o texto utiliza duplamente o significado de “negro”
316
– decorriam de sua
origem “infernal”.
Saiu do fogo do inferno
Embraseado, um tição
Dali saíra para “morder” pelas costas – o que sugere a idéia de
comportamento impiedoso e traiçoeiro, e provavelmente este ataque traseiro era
uma alusão à degola – e o poeta, portanto, recomendava:
Não te vá doer a mão
Ao pegar, sem precaução,
Este, de que tanto gostas,
Embraseado, um tição.
As características negativas de Latorre aparecem, assim, como contagiosas,
já que aquele que “sem precaução” nele se encostasse deveria estar atento para não
tisnar-se, isto é, enegrecer-se :
Se é – Claro – pra que t’encostas
Na tisna do negro Adão?
Gumercindo Saraiva, assim como as tragédias de Rio Negro. Critica-se o “todo borrado” Pinheiro
Machado, se ameaça Saldanha da Gama.
316
Ele seria “negro” racialmente, mas também pelas condutas maléficas nele criticadas. É evidente
que ao colar ambos significados, o autor do poema realiza uma associação muito ofensiva. Houaiss
e Villar (2001 p. 2006) registram (o que é diferente de corroborar) o uso da palavra “negro” como
sinonímia de “malvado” e “sujo”.
191
Homens de pele negra poderiam ter características positivas, conforme o
poeta, tal como a valentia – distinta da de Adão, que “mordia pelas costas”. Estas,
porém, não lhes eram típicas: resultavam de um “branco proceder”:
Se negra a pele do homem,
É branco seu proceder:
E nunca o há de perder,
Com temor que outros o tomem,
Pois muitos há que se somem
Quando é hora do perigo..
Se a “legenda” especifica em um único sujeito uma prática social
vergonhosa, porém disseminada, ela também não é de todo arbitrária. Sua
construção só foi possível porque existiu um terreno fértil para tanto: a) a
negatividade associada às categorias de “cor” naquele momento, de tal maneira que
só eram mencionadas em contextos de particular tensão; b) o fato de que Adão, ao
menos parcialmente, correspondia às características que lhe eram imputadas,
embora, como indivíduo, fosse muito mais do que os estigmas em torno dele; c) a
necessidade de direcionar para algum responsável – e este responsável foi um
negro
317
– a explicação para a barbárie da guerra se fez sentir já contemporaneamente,
durante o cerco de Bagé, não se reduzindo apenas a uma leitura a posteriori. É
verdade que as décadas seguintes adubaram em muito este terreno fértil. Oxalá
doravante se possa ter interpretações mais responsáveis e complexas da “Revolução
Federalista” rio-grandense, abdicando de explicações simplistas, preconceituosas e
racialistas do fenômeno da degola. Talvez um bom princípio seja melhor entender
o papel desempenhado pelos descendentes de escravos na guerra: afinal, nem todos
eram Adão Latorre. E Adão Latorre não era tudo isso que dele se pensa.
317
Se não fosse para ele, seria para alguém mais. A verdade é que foi muito mais fácil à população
rio-grandense culpar alguém individualmente do que assumir responsabilidades coletivas pelos feitos
de 1893-1895.
192
Júlio de Castilhos e os “fetichistas”
318
Nos estudos mais recentes sobre a temática, se tem destacado bastante a
cautela dos partidos republicanos perante o fim do sistema escravista. Quer pelo
esforço por atrair às suas fileiras escravocratas descontentes com as posturas da
monarquia diante da questão servil ou, ao menos, para com eles não se indispor,
quer porque muitos republicanos possuíssem cativos, é fato que os partidários do
PRR agiram com hábil ambigüidade diante do problema da abolição, sem assumi-
lo de forma mais explícita. Em contrapartida, diversos líderes abolicionistas
seguiram fiéis à Coroa.
Já não gozam de credibilidade as teses que viam no movimento republicano
paulista um suposto pensamento progressista, em contraste com o dos fazendeiros
das áreas cafeeiras mais velhas
319
. O movimento republicano no Rio Grande do Sul,
contudo, é tido como exceção nesse sentido. Talvez por seu caráter sectário e
minoritário, o PRR manteve um discurso explicitamente anti-escravista durante a
segunda metade da década de 1880. Sendo um partido de formação geralmente
reconhecida como tardia (Pinto, 1986), e que ao surgir se defrontava com a ampla
hegemonia dos liberais (Franco 1962), suas atividades iniciais não foram muito
além da propaganda, o que, de certa forma, lhes permitiu ser mais puristas em
relação à política adotada.
Mesmo assim, Love (1975 p. 30) destacou que na “convenção de 1882, os
rio-grandenses adotaram a prática paulista de evitar a questão, declarando que cada
Província devia resolver o assunto à sua própria maneira; a partir de 1884, porém,
os gaúchos conservaram-se inteiramente consistentes na condenação da escravidão
em sua Província”. Desta maneira, se é idealismo acreditar que o pensamento
positivista era definidor ou explicativo da atuação dos republicanos (quando eles não
se sentiram politicamente à vontade para manifestar-se em relação a esse assunto,
antes de 1884, facilmente abandonaram maiores ortodoxias ideológicas) é certo que
318
O título desse sub-capítulo foi inspirado pelo nome da dissertação de mestrado de Paulo Pezat
(1997), intitulada “Auguste Comte e os fetichistas: estudo sobre as relações entre a Igreja Positivista
do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista na República Velha”.
319
Esta perspectiva, comum a diversos autores, encontra-se na argumentação de Costa (1998 e
1999). Para leituras que destacam as hesitações ou mesmo reticências dos republicanos paulistas, ver
Schwarcz (1987), Andrews (1998) e Carvalho (2003).
193
ele informou sua ação, fornecendo ferramentas conceituais para que, ao menos em
um plano discursivo, eles mantivessem corpo doutrinário mais consistente (quando,
é claro, fosse politicamente conveniente – por exemplo, quando a questão da
liberdade já estava sendo resolvida pelos próprios cativos – ver Moreira, 2003).
O texto de Castilhos utilizado como epígrafe neste capítulo foi escrito às
vésperas da abolição da escravidão e parece confirmar esta peculiaridade dos
republicanos gaúchos. O patriarca do PRR empenhava-se por desconstruir o
discurso segundo o qual a extinção do regime escravocrata representaria o colapso
da economia nacional, e também lembrava dos descendentes dos “fetichistas
africanos” como provedores da fortuna material brasileira. Com isso, Castilhos
visava apontar um lugar para os mesmos na vindoura sociedade republicana
“Associaram-se também à constituição e à fundação da nova pátria, de cujo
destino, aliás, nunca se separaram” (Castilhos, 1982 [1887] p. 182). Entretanto, o
lugar a eles predestinado na “nova pátria” era hierarquizado nos moldes
positivistas. A exemplo das mulheres, lhes cabia não um lugar ativo e produtivo
intelectualmente (exclusivo dos homens brancos burgueses), mas de moralização e
pacificação social por meio de seu apego, “veneração” e afeto
320
. Essa postura
passiva, no seu entender, teria tornado passível a paz durante o escravismo.
Demais, os elevados instintos que caracterizam os
descendentes do fetichista africano dão-lhe notável preponderância
sobre as outras raças cultivadoras do nosso solo. Tem sido este
apego, esta veneração profunda que o escravo vota à família do
senhor a mais sólida garantia da paz nas propriedades rurais,
durante o largo período da escravidão, que constitui um verdadeiro
regime de violência. (Castilhos, 1982 [1887] p. 182)
Com um discurso anti-escravocrata, e com a prescrição de um lugar – ainda
que subalterno – aos negros no pós-abolição, seria de esperar uma adesão
majoritária dos ex-cativos às hordas dos pica-paus. No entanto, isso não aconteceu:
havia antigos cativos entre federalistas e entre republicanos, combatendo junto aos
ex-senhores ou contra os mesmos. Dois problemas se colocavam: como se definir
em uma oposição partidária e em outra de ordem pessoal (apoio, oposição ou
indiferença em relação ao antigo proprietário).
320
Ver Leal (1996). Sobre a política do PRR de “proteção” a outros “fetichistas” – os índios – ver
Pezat (1997)
194
O confronto entre o discurso de Castilhos, porém, e a prática política
adotada em seu partido demonstra que não eram poucas as contradições. O
imperativo de administrar programas partidários e conveniências políticas se fez
presente como em qualquer outra agremiação. No Rio Grande do Sul, por trás da
retórica inflamada, havia arranjos nem sempre visíveis, mas nem por isso
inexistentes. Os manifestos anti-escravistas permaneciam, impávidos, estampando
as capas d’“A Federação”, ao mesmo tempo em que senhores de escravos
descontentes afluíam para o PRR, da mesma maneira como aconteceu no Partido
Republicano Paulista ou outro qualquer. O reconhecimento do afluxo de ex-
conservadores descontentes rumo ao PRR não é inédito. Silva Tavares, antes de
aliar-se aos gasparistas, esteve próximo de Castilhos. Piccolo (1974) observou:
E quando a monarquia concretizou a abolição da
escravatura – sem indenizar os proprietários – ela propiciou a que
muitos de seus tradicionais defensores – os conservadores rio-
grandenses – lhe retirassem o apoio. E esse apoio vai passar aos
republicanos que recebiam assim o apoio do latifúndio e de sua
influência política, ou seja, “o combustível representado pelo
coronelismo municipal”. (Piccolo, 1974 p. 118)
Ramos (1990) demonstrou que a cooptação de integrantes do Partido
Conservador pelo PRR se deu também no litoral norte, região vizinha à aqui
analisada. Aconteceram até adesões de liberais, quando eram grandes ou médios
proprietários de escravos desgostosos das políticas emancipacionistas. Foi o caso de
Antônio Marques da Rosa. Proprietário de terras no Morro Alto e em São
Francisco de Paula (e primo dos ex-senhores de Calisto, Damásio e seus
familiares
321
), foi chefe do partido liberal durante o Império (ver Stenzel Filho, 1980
[1924] e Barcellos et al., 2004). No período inicial da República, porém, mudou de
agremiação, aderiu ao PRR e tornou-se líder castilhista.
Durante a pesquisa, me deparei com dois documentos que dão um
instantâneo do fenômeno de migração política de fins dos anos de 1880 e inícios
dos de 1890. Em 13 de agosto de 1887, Luciano José da Silva Netto renovava a
assinatura do jornal O Conservador por um ano, fato documentado por recibo
guardado por familiares. Embora não ostentasse o sobrenome, sua família, Valim
321
Ver capítulo 1.
195
de Azevedo, possuía escravos em cima da serra em uma escala não desprezível
(Carvalho e Weimer, 2004).
Figura 11 – Luciano José da Silva Netto assina “O Conservador”
Fonte: Acervo Privado de Maria Lúcia Teixeira
No início da década de 1890, contudo, o mesmo havia optado pel’
“A Federação”, jornal do Partido Republicano. É improvável que esta mudança
tenha sido alheia ao fim do regime escravista.
Figura 12 – Luciano José da Silva Netto assina “A Federação”
Fonte: Acervo Privado de Maria Lúcia Teixeira
196
Sendo assim, apesar do discurso intransigentemente abolicionista dos
republicanos – não tão diferente assim daquele dos liberais, também engajados na
campanha pela emancipação dos escravos, diga-se de passagem – não havia nada
que diferenciasse particularmente um partido do outro, no sentido de torná-lo
especialmente atrativo para o recrutamento militar dos egressos do cativeiro.
Como conseqüência dos recrutamentos forçados, ocorreram também
deserções constantes. Na ausência de uma polarização ideológica em relação à
questão da Abolição, os arranjos e constrangimentos sobre os antigos escravos na
definição por lutar junto a um ou outro grupo obedeciam antes a orientações
microscópicas do que ao alinhamento automático com uma das facções em
confronto.
Comparações históricas sempre são arriscadas, pelo perigo de comparar o
incomparável. Assumindo o risco, creio que o exemplo da guerra da secessão norte-
americana pode ajudar a pensar melhor o comportamento militar e o engajamento
dos ex-escravos em 1893, no Rio Grande do Sul. Apesar de todas diferenças, a
confrontação pode ser frutífera. A guerra civil norte-americana ocorreu trinta anos
antes da rio-grandense; era uma guerra de escala nacional, e não regional; o
problema da extinção do regime escravista estava em disputa durante aquela
guerra, mas no Brasil havia sido definida anos antes; os grupos beligerantes tinham
posições opostas quanto à instituição escravista, enquanto no Rio Grande do Sul,
ao menos formalmente, os principais partidos que deram origem aos grupos em luta
haviam defendido a abolição.
O contraste, contudo, também pode contribuir para a compreensão da
situação dos ex-escravos no sul do Brasil. A guerra nos Estados Unidos teve uma
definição ideológica mais nítida, sendo possível esperar, mais do que aqui (em
relação aos castilhistas), um alinhamento massivo dos escravos em armas junto à
União. A despeito, porém, do combate movido por esta contra os escravagistas, lá
como cá houve escravos ou ex-escravos lutando ao lado de ambas facções em guerra.
Para Berlin et al., (1992), é claro que muitos se dirigiram ao Norte e pegaram em
armas em luta pela liberdade. Também é verdade, porém, que os nortistas eram
brancos, e como tal inspiravam desconfiança entre os escravos, ao passo que os
sulistas, ao menos, lhes eram familiares. Diante da incerteza quanto ao desfecho da
guerra,
197
Perhaps they hoped that loyalty would earn them new
privileges or feared that disloyalty would bring harsh retribution,
especially if the Confederacy triumphed. (Berlin et al. 1992 p.
12)
322
Alguns não apenas não fugiram para juntar-se à União, como ainda lutaram
junto aos seus senhores. Ao ir para a frente de batalha, bem ou mal afastavam-se
temporariamente de uma posição de precariedade na sociedade sulista. Outros,
ainda, os escravos domésticos e de confiança – cozinheiros, empregados – ficaram
encarregados de permanecer na casa senhorial enquanto seus amos iam para a
guerra. Muitos não foram encontrados quando estes retornaram.
A guerra colocava em cheque, abalava bastante a difícil e desigual balança
de poder entre senhores e escravos sobre a qual estava assentada a escravidão nos
Estados Unidos (Berlin et. al., 1992, p. 10). A rede de compromissos na qual se
calcava o sistema escravista apresentava rupturas, sendo, então, passível de
redefinições ou transformações violentas. Os autores constataram o predomínio de
estratégias individuais em lugar de adesões de conjunto no jogo da guerra. A
heterogeneidade do cativeiro tornava difíceis posições universais, pois levava a que
cada um tomasse uma postura conforme convicções e necessidades díspares.
Porém, algo era comum a todos naquele momento de transformação: lutando ao
lado dos yankees ou dos sulistas, cuidando das propriedades de seus senhores em
sua ausência, como capatazes e administradores ou usufruindo de um controle até
então inexistente sobre o próprio cotidiano,
With divisions among white americans erupting into open
warfare, slaves watched and waited, alert for ways to turn the
military conflict to their own advantage, stubbornly refusing to
leave its outcomes to the two belligerents. (Berlin et al., 1992 p.
4)
323
Com quem quer que fosse que se aliassem, os autores sublinham que os
escravos buscavam objetivos próprios, mesmo que discordassem entre si quanto à
melhor forma de fazê-lo. Os sujeitos sociais, na definição de suas estratégias de
322
[Talvez eles tivessem a esperança de que sua lealdade poderia trazer novos privilégios ou temer
que a deslealdade poderia trazer severa retribuição, especialmente se a Confederação triunfasse].
323
[Com as divisões entre os Americanos brancos vindo à tona através de guerra aberta, os escravos
olharam e esperaram, alertas a maneiras de virar o conflito a seu favor, resolutamente recusando-se
a deixar seus resultados aos dois beligerantes].
198
ação desconhecem o devir e, assim, adequam seus objetivos àquilo que consideram
ser mais correto e favorável no cenário futuro que lhes parecesse mais plausível
324
.
Os nortistas (ou pica-paus) foram triunfantes nas guerras de que participaram, mas
seria incorreto desconsiderar que muitos definiram suas ações baseados na
convicção ou aposta de que o desfecho seria outro.
Se assim aconteceu em uma guerra civil polarizada fortemente diante da
questão da escravidão, como teria acontecido no caso de uma guerra em que tal
questão não mais estava colocada? As diferenças ideológicas que separavam os
brancos entre si – presidencialismo X parlamentarismo, positivismo X liberalismo,
República (reivindicada) X Monarquia (acusada) – provavelmente faziam pouco
sentido e não despertavam interesse maior entre os ex-escravos (e mesmo entre boa
parte dos brancos pobres) que se envolveram no conflito. Como seus pares norte-
americanos de 30 anos atrás, estavam em busca de objetivos próprios, dentre os
quais, diferentes maneiras de ser livre.
Na guerra, lutou-se pela liberdade, mas esse modos também viram-se
confrontados.
Liberdades em guerra.
Em fevereiro de 1893, o principal líder federalista em São Francisco de
Paula, Coronel Felisberto Baptista de Almeida Soares, achava-se foragido.
Temendo por sua vida, abandonou sua fazenda, deixando-a sob a administração de
sua esposa, Dona Bernardina Soares de Oliveira. A partir de suas queixas teve
início um inquérito policial, previamente discutido, que objetivava investigar o
roubo de gado de suas terras. Naquele cenário ameaçador – o ofício que instaurou
o inquérito, de 14 de fevereiro de 1893, datava da véspera do início formal da
guerra civil, com a “invasão” do território rio-grandense pelos federalistas – o líder
maragato não foi temerário a ponto de deixá-la sozinha, à mercê de ataques
324
Levi (2000, p. 46) afirma que o fato dos homens disporem de uma quantidade limitada de
informações não os impede de agir. Seus comportamentos, então, obedecem a uma racionalidade
seletiva e limitada, e suas decisões são tomadas em situações de incerteza.
199
inimigos. Pelo contrário, a elite de “seus” homens – Candinho Baiano, Chico
Moisés, Hilário Caroço, dentre outros – permaneceu à guarda da fazenda
“Mangueira da Ilha”. Dentre eles estava também o “mulato Chico que serve de
capataz”
325
, que testemunhou na investigação realizada.
Através de seu depoimento, descobre-se que “Chico” chamava-se Francisco
Moreira dos Santos, tinha 45 anos
326
, e tinha como profissão “administrador da
Fazenda Mangueira da Ilha, de Felisberto Baptista de Almeida Soares”.
Considerando que o mesmo referiu Dona Bernardina como sua ex-senhora,
percebe-se tratar-se de alguém saído do cativeiro em situação similar à de Calisto:
do regime servil a uma situação de autoridade perante seus antigos pares, com o
status social e as contradições decorrentes.
O confronto entre federalistas e republicanos em São Francisco de Paula, a
exemplo de diversos outros lugares no Rio Grande do Sul, teve início antes de
fevereiro. Mesmo que a guerra ainda não tivesse sido formalizada, sabia-se
iminente, e escaramuças pipocavam aqui e ali. Wenceslau Escobar situa o início
das hostilidades em São Francisco de Paula em 1892, com a nomeação do delegado
Afonso Marques de Oliveira Velho em setembro – portanto, após a queda do
“governicho” e o retorno dos castilhistas ao poder. Teriam se iniciado, então,
perseguições diversas aos federalistas, em particular ao principal chefe
oposicionista. (Escobar, 1983 [1919] p. 301).
No dia 2 de janeiro do ano seguinte, as forças policiais dirigiram-se à casa de
Bento Soares, genro do coronel Baptista, líder maragato, com o objetivo de prender
“criminosos célebres” ali acoutados, dentre os quais “Candinho Baiano, Chico
Meia-língua e Felisberto Vicente Ferreira, vulgo Prateado”. Naquela casa também
se encontravam o Tenente Coronel Felisberto Baptista de Almeida Soares, “Chico
Moysés”, “o negro Cachiche”, “André, ex-escravo de Baptista”, e outros. Os
republicanos foram recebidos a tiros. Dentre entes, houve um morto e dois feridos.
Dentre os sitiados, ficaram lastimados o Tenente Coronel Baptista, seu genro e
Chico Moysés. Testemunhas relataram que os “bandidos” ali se encontravam para
proteger a vida do Tenente Coronel, pela qual temiam
327
.
325
AHRS Polícia, maço 33 Inquérito policial – Depoimento de D. Bernardina Baptista de
Almeida Soares, f. 6
326
Lamentavelmente, não foi possível localizar seu registro de batismo, já que os primeiros
disponíveis de São Francisco de Paula datam de meados da década de 1850.
327
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 41 (1893).
200
Dentre todos os envolvidos naquela troca de tiros, quem realmente me
interessa é André, o ex-escravo de Baptista. Lamentavelmente, o processo criminal
é lacônico a seu respeito. Diante daquela irritante mania da documentação primária
de calar diante daquilo que mais interessa ao pesquisador, me conformo com as
informações de que André foi escravo do líder federalista, que durante o confronto
lutou ao seu lado e que, por vezes, foi chamado de André Soares Bergundes. Dados
escassos, mas que já são alguma coisa quando se pensa que as narrativas históricas
sobre a guerra civil costumam silenciar sobre a cor
328
. Além de André, tem-se no
mesmo processo a presença do “mulato Pio”, do “negro Cachiche”, e ainda, de
Candinho Baiano, cuja “cor” nunca é explicitada, mas se torna óbvia através dos
eufemismos empregados por Bastos (1935) num esforço para ocultá-la
329
. Para
computar apenas os “homens” de Felisberto Baptista de Almeida Soares, excetuei o
Coronel e Bento Soares de Oliveira, chegando a um total de 12 réus, dos quais
entre 1/4 e 1/3 descendiam de cativos. Esta proporção não é pequena, em se
tratando de um confronto militar na qual a presença negra não recebeu a devida
atenção, reduzida que foi aos atos de Adão Latorre.
André e Francisco ingressaram na guerra ao lado de seus antigos senhores.
Talvez seja desconfortável perceber este engajamento. O comportamento
automaticamente esperado por um contemporâneo, assalariado, diante do
escravismo, seria vê-los lutando contra seus antigos (ou presentes) opressores. Isso
de fato foi feito por outros ex-cativos, mas seria um reducionismo anacrônico
esperar que todos assim agissem. O mesmo processo menciona um Adão (sobre o
qual a fonte primária cala ainda mais), ex-escravo de Bento Soares que se recusou a
ir a uma reunião convocada pelos federalistas para organizarem a resistência no
município, justamente porque estava disposto a acompanhar o governo
330
. O caso
de Adão sugere que o recrutamento de ex-escravos não esteve restrito à coação, já
que foi bem-sucedido na recusa por participar da reunião convocada pelos antigos
senhores. Para isso, esteve cercado pelo apoio de republicanos.
328
Não é que inexistam referências a personagens negros na guerra. Elas são mesmo abundantes; no
entanto, o que ocorre é que as mesmas geralmente são fragmentárias e lacônicas. Há ainda os casos
de indivíduos negros cuja “cor” é silenciada.
329
Como em uma passagem romântica, na qual o autor descreve os predicados de Candinho que
“prenderam o seu [de sua futura esposa, Maria Witt] coração de mulher”: “O bronzeado de sua tez,
as suas atitudes de homem forte, a agilidade com que sabia montar, a pronta resolução de todos os
seus atos, tudo concorreu para que se deixasse dominar completamente”. (Bastos, 1935 p. 50)
330
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, processo 41 (1893),
depoimento de João Machado Sobrinho, em 16/1/1893, f. 42.
201
Como entender, assim, as motivações, objetivos e anseios que povoavam a
mente dos ex-escravos naquele momento em que era decisivo aderir aos
republicanos ou aos maragatos, aos seus antigos senhores ou seus inimigos?
Indagação parecida se fazia, no texto selecionado para epígrafe, uma personagem
de Simone de Beauvoir (s/d, p. 249), que durante a segunda grande guerra queria
entender o que motivava alguém a sorrir –sorriso que representa a colaboração –
para os oficiais nazistas, ou negar-se a fazê-lo e correr o risco do fuzilamento, ou
tentar permanecer à margem do confronto. Qual o sentido de opções como estas?
Sem pretensões de comparar cafés parisienses com nazistas à porta com campos de
criação de gado em cima da serra do sul do Brasil, ou mesmo nazistas, maragatos e
pica-paus (o que certamente extrapolaria em muito o que se poderia esperar como
razoável de uma história comparada), a epígrafe realça que em grande medida o
engajamento resulta de uma opção – por maragatos ou pica-paus, por sorrir ou não
sorrir – mesmo quando não se tratam de alternativas livres de constrangimentos.
Uma hipótese tentadora, mas carente de maiores evidências que a
comprovem, é a idéia de que “Calistos”, isto é, ex-escravos que de alguma maneira
foram beneficiados por vínculos de confiança com a classe senhorial,
tendencialmente procuraram manter e ampliar tais laços por meio de uma
demonstração de fidelidade aos mesmos. Estes eram os que tinham mais a ganhar,
apoiando seus antigos proprietários, e mais a perder caso não o fizessem. Por seu
turno, “Damásios”, ou seja, ex-escravos que jamais foram agraciados por tais
privilégios, dificilmente teriam motivos para demonstrar qualquer gratidão em
relação a seus antigos proprietários. Pelo contrário, os mais subalternos e
vilipendiados deveriam ter desenvolvido ressentimentos ou sede de vingança em
relação ao antigo senhor e seus pares. Estas tendências, entretanto, devem ser
pensadas com muito cuidado. A historiografia sobre escravidão durante o Império
demonstrou ser freqüente a liderança, em revoltas e rebeliões, de escravos que
gozavam de alguns “privilégios” (Machado, 1994 e Xavier, 2002). Pode-se lembrar
também dos escravos “de confiança” que abandonaram seus senhores durante a
guerra civil nos Estados Unidos. Além de tudo, pode-se pensar que a precariedade
da situação dos ex-escravos mais carentes pode ter tido efeito contrário, ao deixá-
los mais frágeis e vulneráveis ao assédio paternalista senhorial.
202
O fato é que alguns sorriram
331
para seus antigos senhores, e outros para os
inimigos dos mesmos. Por trás deve ter havido a expectativa por uma vida melhor.
Este fator deve ter sido definidor da colaboração com uma facção ou outra. Para os
ex-senhores, contar com este contingente bélico era de fundamental importância, já
que era deles que se alimentavam suas milícias. Mesmo para Castilhos, que contava
com soldados profissionais, eles não bastavam, porque as milícias do meio rural
contavam com habilidades ausentes no Exército e na Brigada Militar:
Sabían muy bien que no podían contar sólo con el Ejército y
la Brigada para combatir a los alzados. Sabían que el ejército
enemigo estaba compuesto por voluntarios, por hombres venidos del
campo, por peones diestros en las cabalgadas y endurecidos en la
vida de la estancia. En su maioría eran seres miserables y sin
esperanza que luchaban por lealtad al patrón y por la carne segura.
Para enfrentarlos necesitaban de un cuerpo de combate semejante
(...) (Bones e Ruas, 1997 p. 119)
Seriam portanto voluntários: mesmo que compelidos pela fome e pela
lealdade ao patrão, o ato voluntário sempre depende em alguma medida de uma
decisão.
Durante as guerras de independência dos países latino-americanos,
conforme destaca Andrews (no prelo), ocorreu um realinhamento de forças no
qual, para contar com a participação da população negra, as elites crioulas
necessitaram realizar concessões em prol de um programa emancipacionista e de
abolição das distinções de castas. Como essa participação podia ser decisiva na
definição do desfecho das guerras, mesmo os monarquistas procuraram cativá-los
para seu lado, contra os rebeldes. Em suma, o período de independência e
construção dos Estados-nação representa, para o autor, um período ímpar para as
comunidades negras latino-americanas, por lhes colocar em excepcionais condições
de negociação e luta por uma vida melhor.
A comparação do Rio Grande do Sul de 1893-1895 com o restante do sub-
continente latino-americano de inícios do século possui, é claro, limitações
diversas. Não era contingente populacional sob seu comando o que realmente
faltava para as partes beligerantes, e sim armamentos e cavalhada. Os exércitos
331
No sentido de Beauvoir (s/d p. 249)
203
estavam cheios de gente desarmada. A falta de acesso às armas, por sua vez,
também limitava o reequilíbrio de poder que uma conjuntura guerreira poderia
trazer para os ex-escravos.
Isso não significa, contudo, que ter mais gente ao seu lado fosse irrelevante:
se não para o aumento do poderio do próprio exército, ao menos para diminuição
do do adversário. A presença de um indivíduo nas tropas assegurava sua ausência
entre os inimigos. É provável que esta situação estivesse relacionada com as
“degolas”. O assassinato do prisioneiro que não aderia ao exército de seus captores
garantia que não retornaria às fileiras de origem, engrossando forças adversárias.
Lessa (1978, p. 138-139), ao descrever o massacre de Boi Preto, apresenta esta
situação: os trezentos e vinte e dois executados teriam sido justamente os que se
recusaram a bandear-se para o lado dos pica-paus
332
.
Houve quem não “sorrisse” para ninguém, ao menos não para alguma das
facções envolvidas. Ao retornar para o Rio Grande do Sul da “grande marcha”,
Ângelo Dourado (1977 [1896] p. 234) registrou um encontro com um grupo
indígena, aldeado nas proximidades de Passo Fundo, mas que desde o início da
“Revolução” se havia tornado “nômade”
333
. Após algumas notas descritivas dos
hábitos dos índios, o autor apontava que “alguns soldados desertores, todos negros,
vivem no meio deles” (grifos meus). Perguntou ao cacique de quem se tratava – e é
interessante observar que ele não se dirigiu aos negros, e sim àqueles que os
abrigavam – e este respondeu que eram brasileiros. Interpretou o médico que o
contato com os “civilizados” seria definidor desta condição, lamentando assim que
com “mais dois ou três governadores como o [sic] Srs. Floriano e Júlio de
Castilhos” os que restarem da “família brasileira” andarão pela selva e chamarão
de “brasileiros” os filhos de alemães e italianos.
Em suas elocubrações sobre a responsabilidade de seus inimigos na
desvalorização do gentílico nacional, porém, Dourado nada afirma sobre estes
desertores negros, apenas reconhece sua presença. Quem e quantos eram, se eram
homens solitários ou famílias, como ali tinham ido parar, desde quando ali
estavam, como se organizavam e que tipo de relação estabeleceram com os
332
Os que aceitaram “virar a casaca” ficaram conhecidos como “melancias” – vermelhos
(maragatos) por dentro e verdes (pica-paus) por fora. O lenço verde equivalia ao branco. (Lessa,
1978 p. 139).
333
Talvez para Dourado “nômade” significasse simplesmente não habitar em aldeamentos.
204
indígenas são algumas incógnitas
334
. Mesmo assim, a informação trazida por
Dourado é preciosa, ao demonstrar um tipo de interação étnica complexa (na qual
o contato de índios com negros é tão relevante como o de qualquer um deles com
os brancos) durante o contexto de guerra. Abrigados entre os índios, os negros
procuraram estabelecer um modo de vida distinto daquele imposto pelas
contingências de guerra ou pelo trabalho para os brancos.
A busca por autonomia persistia, e a confusão intrínseca a um conflito
militar criava possibilidades de evasão, mesmo com o risco de serem recrutados
novamente (Dourado não esclarece se os “negros” puderam permanecer entre os
indígenas ou se a coluna federalista os arrastou consigo). Sua narrativa sugere que
não era apenas a região serrana que tinha uma configuração geográfica propícia
para a fuga, com seus matos e “Taimbés”, mas também em maior ou menor grau,
diversas outras regiões.
Não afirmo que fugir fosse algo simples e fácil, pois não era. Para Franco
(1993 p. 55), as pessoas “não tinham sequer o direito de escolher bandeira”. Ao
menos em São Francisco de Paula, caso analisado aqui, o recrutamento não foi tão
obrigatório, já que as pessoas foram “convidadas” para uma reunião de
alistamento. É verdade que isso aconteceu durante os momentos iniciais da guerra,
e não nos mais dramáticos. Mas o autor é o primeiro a reconhecer que, exatamente
por este motivo, as deserções eram constantes. É possível trazer alguém à força para
um exército, mas é mais difícil mantê-lo no mesmo através dos mesmos expedientes.
A documentação apresenta exemplos do tratamento rigoroso imposto aos
desertores. Em seu diário, Tavares registra uma ordem de guerra que estabelecia
punições para eles. A maior parte delas não foi codificada, estando submetidaao
arbítrio da decisão do conselho. O único caso explicitado foi quando o foragido
levava consigo armas da “Revolução”, caso no qual deveria ser sumariamente
fuzilado (Tavares, 2004 a p. 257). Na escassez de armamento, levá-lo caracterizaria
334
Souza (1998) problematiza a relação entre autoctonia e a presença africana, apresentando dados
etnográticos demonstrativos de relações entre índios e negros no Rio Grande do Sul. Em Monte
Caseros, vive um cafuzo filho de mãe Kaingang e pai negro incorporado à comunidade indígena.
Sua pele é negra mas fala quase exclusivamente o idioma materno. Já junto ao território indígena da
Borboleta existem remanescentes de quilombo nas vizinhanças. Os grupos mantém relações inter-
comunitárias e padrões de assentamento e transformação da natureza muito similares. Sendo assim,
“o montante de estranhamento, entre esse negro ‘nativizado’ e um ‘índio’, seu interlocutor, pode
não ser tão acentuada quanto o estranhamento da diferença entre um Kaingang e outro ‘índio’
Guarani, por exemplo”. (Souza, 1998 p. 358). Coincidência ou não, os exemplos mencionados
ocorrem no mesmo planalto médio percorrido por Dourado.
205
ou a intenção de comercializá-las ou a traição de fornecê-las ao inimigo. É claro
que quando se encontrava ou se era procurado por um desertor do exército
adversário, a condição do mesmo era heroicizada:
Esse rapaz, Leovegildo de Mello, é um desertor de 5
o
regimento de cavalaria. Desertor! Desertor do bem estar, de todas as
regalias na luta, do futuro da família se ele morrer, do futuro
brilhante se viver, para vir libar a taça da amargura com seus
irmãos que escravizam e matam, a quem oprimem e amordaçam,
que sofrem fome e misérias e eles insultam! Desertor para a
dignidade humana, é o que ele é. (Dourado, 1977 [1896])
Mesmo com as dificuldades, naquele espaço geográfico, em uma conjuntura
de guerra, com permanente movimentação de tropas e confusão, os esforços de
vigilância ficavam direcionados para o inimigo, configurando-se uma condição
ímpar para a fuga, em que esta tornava-se um pouco menos árdua.
Se se admite que a guerra de 1893-1895 trouxe melhores condições para
barganha, negociação e conquista de melhores condições de vida, é necessário
sublinhar que esta melhoria foi seletiva, limitada, temporária, e desigual. Seletiva
porque os principais favorecidos foram homens adultos. A condição de mulheres e
crianças continuava precária, pelo pouco reconhecimento do que tinham a oferecer
em uma situação de guerra. Limitada, porque homens, mulheres e crianças estavam
em relação. Como aprendeu Calisto, e visto no capítulo primeiro, manter esposa e
filhos em situação de dependência (fosse por meio do estatuto jurídico de escravo
ou pelas condições precárias do “serviço doméstico”) também aprisionava maridos
e pais. Temporária porque, mesmo demorando alguns anos, as rupturas na
correlação de forças no tecido social foram cicatrizando, de maneira a
progressivamente ir fechando algumas portas que se haviam aberto aos negros.
Finalmente, desigual porque não estava disponível para todos, já que nem todos
tinham um perfil interessante para os líderes brancos, de lenços brancos ou
vermelhos.
Estas restrições não anulam o fato de que diversas comunidades
puderam usufruir melhores condições oferecidas pelos anos de guerra ou
imediatamente posteriores, com a desvalorização de terras devastadas e
pauperização de antigos proprietários. O acesso à terra foi facilitado por esta
206
situação. Foi o que ocorreu em Morro Alto, onde uma comunidade de ex-escravos
consolidou sua ocupação territorial a partir de aquisições, do usufruto de terras
legadas em um testamento e da ocupação de terras não mais valorizadas pela antiga
família senhorial (Barcellos et al., 2004), ou em São Miguel e Rincão dos
Martimianos, onde diversos ex-escravos realizaram aquisições de lotes de terra em
1897 (Anjos e Silva, 2004), apenas dois anos após a pacificação. Isso se deu no
atual município de Restinga Seca, na região de Cachoeira do Sul, onde as
manobras de guerra ocorreram com intensidade. Esta correlação é assunto
merecedor de abordagens mais aprofundadas e pormenorizadas, e pode fazer parte
do processo de formação de outras comunidades remanescentes de quilombos.
A guerra civil ampliou as possibilidades de acesso a melhores condições de
vida para os ex-escravos. Mesmo que fossem seletivas, limitadas, temporárias,
desiguais, através de sua luta, de suas barganhas, de suas negociações, diversos ex-
escravos ou descendentes conseguiram aproveitá-las. No entanto, os campos de
batalha física não foram os únicos terrenos a partir do qual se lutou pela construção
da liberdade. Isso ocorreu também no plano do simbólico, e as disputas quanto aos
nomes assumidos pelos ex-escravos na sociedade pós-cativeiro certamente foram
centrais nessas definições. É disso que trato no próximo capítulo.
207
4 – Os nomes da liberdade
Como, talvez, dissesse Marx (1978), temas de pesquisa não surgem como
um raio em um céu azul. No mais das vezes, eles estão vinculados a uma trajetória
de pesquisa, amadurecida por experiências de vida mais ou menos intensas. No
meu caso, o interesse pelas utilizações dos nomes em comunidades negras rurais
335
é algo desenvolvido desde 2001, quando teve início a pesquisa que deu origem a um
relatório histórico-antropológico de reconhecimento da comunidade de Morro Alto
como remanescente de quilombos, estudo entregue aos órgãos públicos
competentes em 2002 e publicado em 2004 (Barcellos et. al., 2004).
Constatamos, então, que os nomes próprios de escravos e seus descendentes
eram objeto de transmissão inter-geracional, especialmente aqueles dos pais, avós e
padrinhos, mas também tios e tias. Percebeu-se ainda que era usual a
transformação desses prenomes em sobrenomes, isto é, a criança adquirir um nome
composto por um prenome emprestado a algum familiar, padrinho ou madrinha e
um sobrenome indicativo de sua pertença ao grupo familiar de seu pai, avô, avó ou
outros ancestrais ilustres (Barcellos et. al., 2004). O formato e os objetivos
intrínsecos a um relatório de reconhecimento comunitário de quilombolas
certamente não permitiram maiores reflexões teóricas; no entanto, a questão seguiu
em aberto, apontando a necessidade de novas investigações.
335
Agradeço à amiga Cíntia Beatriz Müller por ter estimulado este interesse, pelas conversas sobre
nomeação e pela bibliografia antropológica a respeito da temática.
208
Cumpre notar que essa configuração específica do nomear – o prenome que
vira sobrenome – está muito próxima ao entendimento de Lévi-Strauss (1970 p.
224) e de Zonabend (1980 p. 11; 1995 p. 257
336
) do nome paterno (ou, no caso, de
outros familiares também) como um classificador de linhagens, ao inscrever o
indivíduo desde o nascimento em uma filiação. Assim, tem-se, em Morro Alto
(Barcellos et al. 2004), por exemplo, nas designações “Manuel Chico Teresa” ou
“Manuel do Alípio” a localização dos sujeitos sociais em relação a,
respectivamente, seu pai e sua avó ou somente ao seu pai. Mesmo a incorporação
da esposa à família do marido pode ser demarcada por uma renomeação que
indique esta pertença, como é o caso de “Teresa do Fumaça”, a quem se agregou
ao prenome o apelido do cônjuge
337
. Esses casos, contudo, são mais raros. O nome
também situa um lugar social para o sujeito, na medida em que assinala o prestígio
de que gozam as famílias nele referidas. Adotou-se, então, o entendimento de que a
herança do nome pessoal seria uma forma de reconstrução de laços de
ancestralidade no Novo Mundo (Barcellos et al. 2004 p. 111). Para Marcel Mauss
(2003 p. 384), em algumas sociedades o nome expressa um legado dos
antepassados
338
. Já Rios (1990), ao estudar famílias descendentes de escravos em
Paraíba do Sul, assinalou que:
A maneira de nomear as crianças mostra que o parentesco
entre os escravos foi ampliado e atravessou gerações. A importância
atribuída a essas relações ao que tudo indica não foi isolado ou
restrito a determinadas regiões escravistas. Com algumas
modificações, os nomes dos escravos foram maneiras de exprimir,
nas mais diversas regiões escravistas, um referencial importante de
suas vidas: a família (Rios, 1990 p. 49. Ver também os textos
reunidos em Rios e Mattos, 2005).
Em posterior estudo sobre a comunidade “Família Silva” (Carvalho e
Weimer, 2004), constatamos estar presente – embora nunca de forma
estruturalmente estereotipada, pois a variedade de possíveis combinações de nomes
336
O texto de 1980 é uma versão mais sintética e didática do texto publicado em 1995 (escrito,
contudo, na década de 1970)
337
Antonio Candido destaca, entre os “caipiras” paulistas, o emprego do genitivo “de” na formação
do patronímico (Mello e Souza, 1977).
338
O saber etnológico é mais farto em exemplos que estabelecem essa equiparação entre gerações
mais afastadas, já que gerações mais próximas necessitam de diferenciações para o convívio e
interação. Sendo assim, Geertz constatou, por exemplo, que apenas bisavô e bisneto são
equiparados, em Bali (Geertz, 1989).
209
ancestrais e a distribuição na composição do nome pessoal são infinitas – também
entre escravos e ex-escravos de São Francisco de Paula, posteriormente evadidos
para Porto Alegre, a herança do prenome convertido em sobrenome. É, no mínimo,
instigante constatar que o mesmo modelo
339
se dê no litoral norte e na serra gaúcha
e, possivelmente, no restante do Estado, no sul do país e em todo Brasil. O papel
desta prática na produção e reprodução cultural e no estabelecimento de fronteiras
identitárias entre as comunidades negras ainda está por ser mais bem estudado já
que, evidentemente, laudos históricos e antropológicos devem lidar com respostas
mais imediatas e práticas às demandas comunitárias em processo de
reconhecimento e regularização.
Recentemente, tive contato com a tese de doutorado de Martha Daisson
Hameister (2006). Informada por Barcellos et al. (2002), a autora interessou-se pelo
estudo da nomeação, e pela conversão dos homônimos de obstáculo em problema
de pesquisa (tal como fez Mattos, 1998, em relação à questão da “cor”).
Analisando a população de Rio Grande no período entre 1737 e 1763,
particularmente lusitanos, a autora constatou ser também a herança nominal uma
característica da sociedade colonial lusa. Este fenômeno está presente em diversas
sociedades, tendo merecido diversas teorias explicativas (Zonabend, 1980, p.8).
Contudo, as formas culturais específicas assumidas por esta prática configuram
formatos muito diversos (ver Mauss, 2003). Deve-se destacar pelo menos duas
características marcantes de diferenciação entre os nomes legados pelos
riograndinos oitocentistas e as comunidades negras gaúchas dos séculos XIX e XX:
- A autora está preocupada (ou é isso que a documentação lhe
aponta) com os homônimos repetidos de pai para filho, padrinhos
ou outros familiares. Como, entre ex-escravos ou descendentes, o
prenome vira sobrenome, costumava haver um intercâmbio
geracional na composição do nome, isto é, uma variação na
ordenação dos elementos que o compunham – prenomes e
sobrenomes advindos de familiares diversos (pais, avós, etc). Esta
ordenação não obedecia a padrões estruturais rígidos; antes, eram
performáticos, mas mesmo assim de fácil reconhecimento.
339
Utilizo palavras como “modelo” e “padrão” na falta de outras melhores. No entanto, não há
qualquer pretensão de emprestar qualquer uniformidade a essa forma de expressão cultural que,
como afirmo, estava longe de ser estereotipada.
210
Formavam-se nomes muito parecidos, mas era raríssimo serem
idênticos. Manuel Francisco Antônio, de Morro Alto, é filho de
Francisco Manuel Antônio e neto de Manuel Antônio Joaquim.
São nomes muito similares, mas não são homônimos, assinalando
antes os laços, o pertencimento familiar, do que uma identificação
pessoal com o ancestral.
- A autora trabalha com a idéia de que o homônimo entre pai e filho
conferiria uma fusão, ou uma expectativa por isso, de suas personas
sociais. Pouco conheço de Rio Grande, mas nos estudos realizados
para as mencionadas comunidades quilombolas e para a presente
dissertação de mestrado jamais encontrei qualquer indício,
etnográfico ou documental, de que o mesmo ocorresse entre os
negros. A identidade afirmada na nomeação era coletiva,
conferindo um senso dinâmico de pertencimento grupal, antes do
que a identificação inter-individual e trans-geracional.
Enfim, as sociedades humanas são plurais e não será produtivo meramente
constatar a existência de diferenças. Contudo, destaco uma questão metodológica
importante. A autora trata nomes como bens, na medida em que sua utilização
permitia ou negava o acesso a recursos. Para mim, porém, essa abordagem não
parece a mais adequada, pelo tom utilitarista que o termo bem assume. Por
utilitarismo, entenda-se aqui a visão segundo a qual
a cultura deriva da atividade racional dos indivíduos na
perseguição dos seus melhores interesses. Este é o “utilitarismo”
propriamente dito; sua lógica é a maximização das relações meios-
fins. As teorias da utilidade objetiva são naturalistas ou ecológicas.
Para elas, o saber material determinante substancializado na forma
cultural é a sobrevivência da população humana ou da ordem social
dada. (Sahlins, 1979 p. 7)
Para evitar o perigo dessa redução, procuro enfatizar a dimensão simbólica
das práticas de nomeação – sem esquecer, claro, de seus aspectos políticos e
econômicos. Admitindo que, de fato, ser nomeado de determinada forma poderia
211
proporcionar condições mais ou menos favoráveis para apropriação de bens
340
;
parece, contudo, mais problemático afirmar que os nomes são bens.
A não ser que se trate, é claro, de bens simbólicos, estes sim acessíveis a
quaisquer seres humanos em interação com seus pares ou com outros. A própria
autora chega a concluir sobre o caráter imaterial dos “bens” de que trata
(Hameister, 2006, p.102). Ainda assim, os problemas intrínsecos à sua concepção
dos nomes como “bens” permanecem: a lógica de maximização meios-fins
continua presente, intacta. Opto, diferentemente, pela utilização de um termo
consagrado pela etnologia, básico em seu corpo conceitual. Refiro-me à noção de
“classificadores sociais”. Quando falo em “classificadores” ou “classificação”,
penso em noções desenvolvidas por Durkheim e Mauss. Segundo esses autores:
Para nós, com efeito, classificar coisas, é ordená-las em
grupos distintos entre si, separados por linhas de demarcação
nitidamente determinadas. (Durkheim e Mauss, 1981 [1903] p.
400).
Portanto, quando se sublinha o caráter classificatório dos nomes, não se
pretende nada mais que destacar que eles agrupam os homens e mulheres nas mais
diversas categorias dentro das quais os seres humanos podem dividir-se (ou a
sociedade pode dividi-los). Não são os únicos elementos classificadores, mas
certamente são muito poderosos. Chartier, retomando aqueles autores, observa que
sistemas classificatórios são construtores do mundo social, e só têm existência
efetiva quando comandam atos (1991, p. 183).
Para Lévi-Strauss (1970 p. 200), em um sistema de classificação social, o
nome ocupa “o último nível classificatório”, isto é, o de individualização dos
sujeitos dispostos em uma mesma classe.
A categoria de “pessoa”, e a diferenciação de outros seres do mundo por ela
operada não é dada. Pelo contrário, Brandão (1986), amparado em Marcel Mauss,
sustenta que se trata de uma noção socialmente produzida, culturalmente variável,
na qual a nomeação cumpre um papel central. Mauss, em um empreendimento de
pesquisa que enquadrou na “história social”, destacou que, em diversas sociedades
humanas, os nomes, secretos e públicos, variam conforme a idade, a função social
desempenhada pelo nomeado e mesmo as estações do ano. Ele procura analisar,
340
Outros fatores, como a “cor”, também o faziam.
212
por fim, de que maneiras diversas sociedades transformaram nomes em indivíduos,
com base no entendimento de que tal equiparação não apenas não é automática,
como também resulta de configurações culturais diversas (Mauss, 2003).
Durkheim e Mauss não são ingênuos a ponto de acreditar que essas
“classes”, “categorias classificatórias”, sejam isentas de valorações, que se limitem
a atribuir qualidades neutras aos grupos que designam. Pelo contrário, observam o
caráter hierárquico e sistêmico das relações estabelecidas entre os mesmos:
Em primeiro lugar, exatamente como as classificações dos
cientistas, são sistemas de noções hierarquizadas. As coisas não são
dispostas simplesmente sob a forma de grupos isolados uns dos
outros, mas tais grupos mantêm entre si relações definidas e seu
conjunto forma um só e mesmo todo (Durkheim e Mauss, 1981
[1903] p. 450).
Sendo assim, estando as categorias classificatórias sempre tecendo uma
trama relacional e desigual, o conceito de “classificação” costuma ser empregado
quer os indivíduos se “qualifiquem” através dela, quer se “desqualifiquem”. Em
trabalho anterior, argumentei que a nomeação dos ex-escravos no pós-abolição
tinha um claro papel classificatório, ao aproximá-los ou distanciá-los do cativeiro.
Isso se dava quando seus nomes os estampavam de formas mais ou menos
favoráveis: diferenciando-os ou não da condição cativa; afirmando ou não seu
estatuto livre. Essas categorias classificatórias podiam lhes trazer resultados mais ou
menos favoráveis (Weimer, 2005a). Sigo sustentando essa argumentação e pretendo
aprofundá-la neste capítulo.
Sendo assim, houve um deslocamento do meu interesse da morfologia dos
nomes – isto é, a posição ocupada por nomes maternos, paternos, dos avós, etc, na
construção nominal das famílias descendentes da última geração de escravos – para
a retórica dos mesmos – isto é, seus usos, significados e transformações. A
concepção dos nomes como categorias classificatórias é um elemento fundamental
para sua discussão, mas só ela não basta. Os estruturalistas reconhecem nos nomes
um papel triplo – significar, classificar e identificar (Lévi-Strauss, 1970; Zonabend,
1980), mas autores de outras vertentes teóricas levaram mais longe o estudo sobre a
maneira como essas três “funções” dos nomes se inter-relacionam.
213
Para dar conta da variação dos nomes que um indivíduo pode assumir, é
necessário desprender-se um pouco da preocupação com a morfologia, com a
composição estrutural dos nomes, já que esse último empreendimento, para tornar-
se exeqüível, necessita imprimir maior fixidez ao nome. No entanto, as formas de
nomeação e as identidades sociais por elas indicadas são mais maleáveis: não são
invariáveis, mas seus significados só podem ser percebidos desde que devidamente
contextualizados. Modificam-se conforme sua situacionalidade e sua relatividade, isto
é, de acordo com as situações em que são empregados e as relações existentes entre
os sujeitos envolvidos. Alguns fatores desta variabilidade são enumerados no
excerto abaixo, de autoria de Zonabend (1995 p. 268). A autora preocupa-se com a
utilização feita dos nomes, mas apenas de uma forma limitada, pois seu pano de
fundo teórico é ainda o estruturalismo. Ela assinala:
Tout comme les apellations de parenté ou les dénominations
statutaires varient selon le locuteur, la circonstance, la situation, la
variabilité des prénoms renvoie aux différents positions de la
personne au sein de son groupe, et son idéntité est faite, entre autres,
de la somme de tous ces points de réference (Zonabend, 1980 p.
16)
341
.
Sendo assim, há um reconhecimento da pluralidade dos nomes, de seu
emprego conforme as situações e relações estabelecidas em determinado contexto, e
também das “múltiplas facetas” da personalidade (Zonabend, 1995 p. 268-272). No
entanto, ao fim e ao cabo elas se compõem como identidade única por meio de um
somatório. Outras perspectivas, todavia, vão além, centrando sua concepção de
identidade na negociação e na disputa pela definição e redefinição de variáveis
critérios de diferenciação cultural perante o outro (Barth, 2000; Cuche, 2002). Deste
ponto de vista, a multiplicidade nominal jamais se somaria, de forma a gerar uma
identidade, mas está envolvida em um complexo e permanente jogo de composição
e decomposição, combinação, negociação e recomposição identitária
342
.
341
[Tudo, como as apelações de parentesco ou as denominações estatutárias, varia segundo o
locutor, a circunstância, a situação, a variabilidade de prenomes remete às diferentes posições da
pessoa no seio de seu grupo, e sua identidade é feita, entre outras, da soma de todos esses pontos de
referência].
342
Longe de mim afirmar que a identidade seja arbitrária ou aleatória. Conforme Cunha (1987 p.
100-101), “existe uma bagagem cultural, mas ela deve ser sucinta: não se levam para a diáspora
todos os seus pertences. Manda-se buscar o que é operativo para servir ao contraste”. Assim, longe
dessa tradição cultural “definir” de forma última os sujeitos sociais em questão, ela melhor pode ser
214
Xavier (2002, p. 3-5) realiza uma interessante reflexão acerca da relação
entre nome próprio e identidade individual. Dialogando com Bourdieu (1998), para
quem o pesquisador deve estar particularmente atento à ilusão de linearidade que a
constância do nome próprio confere a uma trajetória biográfica, a autora coloca em
questão essa mesma constância, sublinhando que os sujeitos sociais assumem
nomes distintos em diversos momentos
343
. Sendo assim, a proposta de Ginzburg
(1991) de rastrear trajetórias e estratégias individuais, familiares ou grupais através
de intensos levantamentos documentais em busca do nome próprio, entendido
como a mais relevante marca de singularização de um ser humano, certamente não
se vê inviabilizada, mas sim muito complexificada diante de nomes inconstantes.
Isso porque eles não podem mais ser vistos apenas como fios condutores. Neles estão
inscritos diversos “significados sociais, políticos e culturais” (Xavier, 2002 p. 5) que
não podem ser ignorados.
Lévi-Strauss (1970, p. 266) reconhece a existência de “uma espécie de
antipatia profunda entre a história e os sistemas de classificação”. Para romper com
esta tola aversão é necessário reconhecer que os sistemas classificatórios são
historicamente construídos. Eles não apenas formatam os sujeitos, mas também são
por eles formatados. As categorias que deles fazem parte são manipuladas e
transformadas pelos atores sociais à medida do seu manejo. Passa-se, assim, sem
abrir mão da idéia de que existem categorias estruturais que definem a existência
em sociedade, à compreensão de que os seres humanos possuem, eles também,
influência transformadora sobre a estrutura, agindo de uma forma performática e
não mecânica e prescritiva (Sahlins, 1990)
Foi Crapanzano (2001) quem, embora preocupado basicamente com as
noções de raça e etnicidade, chamou a atenção para o fato de que categorias sociais
são utilizadas retoricamente, e não simplesmente de forma semântica; devendo, pois,
assim ser interpretadas. Desta maneira, não basta tentar investigar o significado de
determinados termos – como é tão comum em estudos sobre categorias de
classificação racial – sem uma equivalente atenção à
entendida como um “‘porão’, [de] reservatório onde se irão buscar, à medida das necessidades do
novo meio, traços culturais isolados do todo, que servirão essencialmente como sinais diacríticos para
uma identificação étnica. A tradição cultural seria, assim, manipulada para novos fins, e não uma
instância determinante” (Cunha, 1987 p. 88).
343
Seu biografado, durante o período em que foi escravo, foi nomeado apenas pelo prenome Tito.
Ao adquirir personalidade jurídica, tornando-se livre, assumiu o nome de seu senhor e tornou-se
Tito de Camargo Andrade.
215
sua dimensão pragmática: à maneira como as categorias
suscitam, proclamam e até criam seu contexto de relevância,
incluindo o próprio sistema classificatório. (...) Todo sistema
classificatório não apenas divide o mundo em unidades semânticas
que já têm, elas mesmas, efeito pragmático, mas também “declara”
a maneira como essas unidades possam ser manipuladas e
avaliadas. (Crapanzano, 2001 p. 444)
Sendo assim, as categorias classificatórias são produto de um sistema de
classificação, mas também do seu próprio emprego. Através desta vigorosa crítica
ao estruturalismo, que se aplica a outras categorias sociais que não as de raça, pode-
se entender, então, porque apesar de tantas abordagens esclarecedoras, certos
autores não conseguem perceber as modificações criadas pelos homens, através de
sua utilização, dos sentidos que os nomes podem vir a ter. Não ter um sobrenome
era bastante prejudicial em termos de classificação social; mas aqueles que não o
tinham construíam e encontravam vantagens de sua condição. Este segundo termo
da questão não é contemplado pelos intérpretes desta vertente.
Por estes motivos, sem negar que a antropologia estrutural foi de
fundamental importância para a construção da nomeação como problema e sem
nos desfazermos de suas melhores contribuições, a ela não nos podemos restringir.
A orientação teórica de outros autores permite ir além. Proponho-me a, neste
capítulo, seguir a metodologia posta em prática por Geertz em um célebre estudo
sobre Bali. O autor, atento à pluralidade das formas de nomear, “decompôs” os
nomes dos balineses em seus diversos elementos, analisando cada um em seu
contexto de utilização, de forma a reconhecer a existência de seis tipos de rótulos
que podiam ser aplicados a uma pessoa “a fim de identificá-la como indivíduo
único” (Geertz, 1989 p. 233).
Os rótulos empregados na sociedade rio-grandense de fins do século XIX
não possuíam uma formalização rígida como aquela apresentada pelo autor; sequer
é possível determinar o número de “tipos de rótulo” existente. O esforço aqui
realizado foi por, ao menos, contemplar os mais comuns e importantes, já que a
interpretação dos mesmos em seus contextos de significação é informativa sobre a
individualização, ou ausência dela, das pessoas. Alguns destes aspectos foram
intuídos por Zonabend (1980): partindo de considerações lévi-straussianas sobre os
mitos, a autora aproxima-se de uma abordagem geertziana quando afirma que
216
qualquer apelativo sobre um indivíduo traz em si uma mensagem que deve ser
decodificada e só pode ser percebida se restituída ao seu contexto (Zonabend, 1980
p. 16-18).
Chega-se, por fim, ao velho problema que assola os historiadores que se
sentem atraídos por aquilo que os antropólogos fazem: as fontes! Como agir se a
documentação não consegue oferecer elementos sequer aproximados àqueles que a
etnografia costuma fornecer? Etnografar o passado não é uma tarefa fácil. Mas é
necessário! Não proponho nada além do já consagrado em diversos trabalhos
históricos como, se não uma solução, ao menos um paliativo para a
impossibilidade da observação direta. Refiro-me à utilização de fontes ligadas à
repressão como uma maneira de aproximar-se com uma sensibilidade etnográfica
de aspectos de outra forma não visíveis na documentação. Na perseguição aos
desviantes, costumam receber registro aspectos que só interessariam a policiais,
inquisidores, promotores, réus, hereges, historiadores e antropólogos. Esta
perspectiva, inspirada em obras de Ginzburg (1987, 1989a, 1991b, 2007), obteve
bons resultados em diversos estudos a respeito do Brasil ou, mais particularmente,
sobre o Rio Grande do Sul (Mello e Souza, 1993; Vainfas, 1997; Mattos, 1998;
Chalhoub, 2001; Moreira, 2003; Oliveira, 2006; dentre muitos outros).
Os processos criminais foram adotados como fonte principal de consulta.
Através das peças processuais, como audiências, julgamentos, etc, pode-se ter uma
noção mais realista do emprego dos nomes, já que não temos um registro frio,
impessoal e estático do nome de alguém, mas contextualizado em uma situação
específica de uso. Mesmo assim, muitas vezes essas situações permanecem
obscuras ou dúbias. Contudo, sigo acreditando que as fontes policiais e judiciais
são as mais ricas para dar conta do emprego, da retórica, da utilização dos nomes
(ver Weimer, 2006a).
Em um estudo clássico e fundador das ciências sociais no Brasil
344
, a respeito
das transformações da sociedade “caipira” tradicional perante a “civilização
urbana” Antonio Candido destaca a utilização simultânea de diversos nomes pelos
caipiras, conforme a situação vivida: os nomes tradicionais, caracterizados pela
continuidade do emprego do patronímico, e os nomes “de papel”, utilizados
perante as autoridades em situações formais (Mello e Souza, 1977 p. 240-243).
344
O autor o considera “tridimensional”, a um só tempo sociológico, antropológico e histórico
(Mello e Souza, 1977 p. 17-21).
217
Barcellos et al. (2004) assinalaram, também, a existência ainda nos anos 90 e 2000
(embora com predomínio nas gerações mais antigas) desta prática no quilombo de
Morro Alto, com a sutil diferença de que os nomes “de papel” são aqui
denominados “de assinatura”. É muito provável que esta prática tenha tido, ou
ainda tenha, grande difusão no Brasil rural.
Mesmo que registros civis e paroquiais eventualmente deixem transparecer
informações preciosas sobre as práticas tradicionais de nomeação (motivo pelo qual
os pesquisei, também), no mais das vezes informam sobre um ritual bastante
formal, sem muito dizer quanto ao contexto de nomeação, restringindo-se ao nome
“oficial”, ao “de assinatura”.
O sobrenome
(...) lembrou-se de conversas que tivera sobre o menino.
Com Obafemi:
- Que nome vai ter?
- Adeniran
- Nem sempre botar coroa no nome de um menino faz com que ele
vire rei.
(Olinto, 1980 p. 183-184)
Em 17 de julho de 1883, Apolinário Baptista Ferreira ingressou com uma
apelação civil, através da qual pretendia ver-se incluído, na condição de filho, na
partilha dos bens de João Baptista Ferreira. Sua representação zelava, também,
pelos interesses de sua sobrinha Maria. Escolástica, sua irmã já falecida, também
estava sendo lesada, motivo pelo qual deveria ser representada por sua sucessora na
herança reclamada. O patrimônio do finado estava sendo dividido por Alexandrina
Ferreira, a viúva, e mais quatro filhos e filhas. Ele não deixou escravos, sendo
218
praticamente toda sua fortuna composta por bens de raiz (quase nove contos) e
semoventes (quatro contos e meio)
345
.
Apolinário apresentava como documentação comprobatória dos vínculos
com aquela família os registros de batismo dele e de Maria. Estes documentos, por
si só, eram pouco esclarecedores, já que não estabeleciam, efetivamente, nenhum
laço de parentesco com João Baptista Ferreira. Embora inicialmente houvesse a
possibilidade de que fossem “filhos de criação”, negros ou mulatos, biologicamente
aparentados com seus “pais”, ela rapidamente se esvaiu, quando a documentação
deixou transparecer um pouco mais os dramas daquela família. O apelante
apresentou outro documento, este sim convincente. Trata-se de uma certidão de um
“Livro de justificações de batizados, casamentos e óbitos em exercício nesta
paróquia”, através da qual Apolinário documentava o reconhecimento eclesiástico
dele e de sua irmã como filhos legítimos do finado e da viúva Alexandrina. Mesmo
tendo nascido antes do seu casamento, o matrimônio subseqüente de seus pais os
legitimava tacitamente para fins legais. Apolinário, na defesa dos seus interesses e
da sobrinha, antagonizava a própria mãe e irmãos, que por sua vez, negavam ao
filho e irmão, à neta e sobrinha, o acesso a seu quinhão na legítima paterna (ou de
avô).
A exclusão do apelante e de sua irmã do formal de partilha nada tinha de
racial, ao que tudo indica. Antes, resultava dos preconceitos que separavam os
filhos nascidos sob o matrimônio daqueles, bastardos, filhos de pais solteiros,
mesmo que, como neste caso, os pais fossem os mesmos! Ainda assim, o processo
ajuda a entender o que representavam os sobrenomes de antigos escravos naquela
sociedade escravista em dissolução. Os Baptista Ferreira jogaram em diversos
momentos com medos socialmente compartilhados em relação a quem poderia e
quem não poderia ostentar determinado sobrenome e, por isso mesmo, seu
significado tem uma “magnitude” muito superior aos seus dramas pessoais.
Seguiu-se árdua batalha jurídica, na qual esteve em discussão se o
casamento entre os pais era suficiente ou não para a legitimação de filhos
ilegítimos. A defesa alegava que João Baptista nunca considerou aqueles filhos
como seus, pondo em dúvida, assim, a relação de paternidade. Por fim,
argumentavam que, sendo o finado tio de sua esposa Alexandrina, aqueles filhos
345
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884).
219
não poderiam ser legitimados, já que fruto do incesto (o que parece ter passado
despercebido é que este argumento servia tanto para os filhos ilegítimos quanto
para os legítimos). Em contraposição às considerações da defesa, Apolinário se
apoiava em sentença da justiça eclesiástica que dizia:
(...) considerando que os pais depois do ato da enjeição
consumado, mais tarde por um sentimento de arrependimento
desmancharam aquele ato vexatório e desumano chamando a si os
enjeitados, a fim de educar; efetuando em seguida o matrimônio
que sancionava como legítimos os filhos espúrios espúrios (sic)
anteriormente nascidos do próprio casal como provam as
declarações das testemunhas julgo-os legítimos pela lei eclesiástica
(...)
346
Não deixavam, portanto, de ser “filhos de criação” do finado, mas que
tiveram a oportunidade de demonstrar judicialmente também seus vínculos de
parentesco. Apesar das reiteradas tentativas da viúva de contra-arrazoar os
argumentos de seu filho Apolinário, e de embargar a partilha, o fato é que em
setembro de 1883 o juiz determinou a divisão da parte da fortuna que cabia aos
filhos – descontada a metade pertencente à viúva – em seis quinhões, e não mais
quatro. A viúva Alexandrina, ainda assim, insistiu em usar todas as armas jurídicas
à sua disposição para protelar ou impedir que a partilha se consumasse. É provável
que sua obstinação em excluir filhos, que insistia serem de pais incógnitos, antes
atrapalhasse seus objetivos do que a ajudasse, já que, como na sentença do juízo
eclesiástico, passou a ser vista como uma mãe com a vergonhosa postura de enjeitar
seus filhos, afastando-os da herança paterna, repetindo atitude que tivera quando
eram pequenos.
No mesmo mês da sentença favorável a Apolinário, sua mãe tanto fez que
conseguiu com que um seu agravo tivesse provimento. O juiz de Santa Cristina do
Pinhal (Pedro de Alcântara Peixoto de Magalhães Veras) que assim o decidiu,
levou muito em consideração o fato de, ao menos pelos registros paroquiais, não
haver “prova” de vínculos genealógicos entre o apelante, sua irmã e sobrinha com a
viúva e o inventariado. Mas, além disso, ele também se demonstrou preocupado
346
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884) f. 27.
220
com a “magnitude” do caso. Esta deveria indicar para a aceitação do agravo, e não
sua negação. Mas o que será que o Meritíssimo Juiz quis dizer com essa palavra?
Foi um caso polêmico, já que diferentes autoridades judiciárias
manifestaram entendimentos díspares sobre a questão, entrando em conflito de
competências. O juiz de órfãos, Antônio Gomes do Valle Quaresma, alegando
tanto argumentos técnicos – de Direito Processual (quanto à possibilidade de
aceitação do agravo) – quanto especificamente os direitos de Apolinário e Maria,
apresentava, em outubro de 1883, considerandos que reafirmavam a sentença
favorável a uma divisão eqüitativa da fortuna de João Baptista Ferreira. Na prática,
porém, ele desconstruía um a um os argumentos de Alcântara, enfrentando-se com
autoridade superior. Este lhe deu um “chega-pra-lá”, argumentando, no mesmo
mês, que “a ele só cumpre dar cumprimento às sentenças e despachos dos juízes
superiores”. Acusava-o de ter interesses no caso em questão, o que explicaria sua
parcialidade e o fato de ter contestado ao invés de cumprir ordens superiores
347
.
Decidiu-se, então, pelo ganho de causa pela viúva e seus filhos. Apolinário, não
desistindo, apresentou um requerimento e novas razões de apelação por meio das
quais tentou reverter o resultado do processo. Tudo em vão.
As razões de apelação permitem entender um pouco melhor qual era, afinal,
a “magnitude” do caso que levou o juiz Alcântara a atrito tão ácido com seu colega
Quaresma. Se este é um caso peculiar no qual “filhos de criação” conseguiram
demonstrar legalmente seus laços biológicos com aqueles que os criaram,
Alexandrina e os seus generalizaram esta situação judicial ao conjunto daqueles
que tomavam o sobrenome de outrem, a fim de criar alarde. Era evidentemente
inexeqüível que, de um momento para outro, a Justiça passasse a dar ganho de
causa a todos que, devido a um nome em comum, reivindicassem seu
reconhecimento como herdeiros. Este não era um perigo real. Mas era um perigo
virtual, uma possibilidade que, mesmo sendo muito improvável, existia em
potencial, e com a qual a família Baptista Ferreira soube jogar de forma eficiente,
de modo a deixar de lado Apolinário e Maria. Ao persistir negando os vínculos
genealógicos, eles lhes equiparavam àqueles que, não tendo sobrenome, adotavam
o de alguém. Embora jamais esteja dito, mas sempre subentendido, referiam-se
347
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884) f. 70.
221
principalmente aos ex-escravos
348
, em número crescente naquela década de 1880 e
que necessitavam, a partir de uma nova condição social, assumir um sobrenome.
Apolinário Baptista Ferreira e sua irmã Escolástica Baptista
Ferreira, esta já falecida e hoje representada por sua filha Maria,
como pretensa neta do inventariado João Baptista Ferreira
provavelmente julgam-se filhos do finado pela igualdade de
nome de família, o que muitas vezes se dá sem que haja
parentesco algum, e muitas vezes pelo hábito que tem certas
pessoas de quando batizam algum enjeitado, ou dão-lhes o seu
nome de família, ou de alguma outra; caso em que estão os
apelantes”.
349
Ao apelar para a idéia de que o caso abriria um precedente para que outros
se postulassem como herdeiros de quem bem entendessem, tentavam criar a
imagem de que, caso a apelação de Apolinário fosse provida, haveria um grave
problema que se abateria não sobre a família Baptista Ferreira, mas sobre a
sociedade rio-grandense de uma forma mais ampla.
Seria abrir-se as portas ao roubo se tal se desse, e se passasse
em julgado e sem reparo o despacho do juiz que na avaliação da
partilha mandou admitir os apelantes a ela, por terem provado com
testemunhas que eram filhos do inventariado, a despeito da certidão
de batismo dos apelantes nos dizer serem eles filhos de pais
incógnitos.
Deste modo não haveria quem não se tornasse herdeiro
de um finado abastado que deixasse boa fortuna, e não
haveria melhor meio de vida para se enriquecer logo.
350
A preocupação aqui expressa era, antes de tudo, uma estratégia de
argumentação jurídica, antes de um temor real para aquela família; não acredito
que realmente temessem que este quadro catastrófico (para eles) se concretizasse.
348
Seria abusivo pretender que todos aqueles que não tinham sobrenome eram ex-escravos. No
entanto, sabe-se que parte significativa deles eram, de fato, negros. Rios (1990 p. 92) destacou que
em Paraíba do Sul a maior parte daqueles que eram sepultados sem um nome era formada por
negros.
349
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884) f. 117. (grifos meus)
350
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884) f. 117v.
222
Contudo, se estas palavras foram escutadas, é porque encontraram ouvidos
dispostos a fazê-lo – como aqueles do juiz Magalhães Veras. Em suma, as
ladainhas dos Baptista Ferreira, na defesa do que consideravam ser seu direito
naquele inventário, só adquiriram sentido porque se amparavam a problemas vitais
para seus contemporâneos: Que destinos tomariam os ex-cativos? Tornar-se-iam
cidadãos? Que tipo de cidadania lhes seria acessível? Como cidadãos, necessitariam
de nomes? De onde os tirariam? E, principalmente, quais prerrogativas a adoção
destes nomes lhes garantiriam?
Se as razões de apelação enfatizam os bens materiais como algo que não se
queria que estivesse acessível para qualquer um, não era apenas isso que estava em
jogo:
O que aí não quer é que ninguém seja obrigado a ser pai, mas os apelantes
querem à força constituírem-se filhos do finado João Baptista Ferreira, e herdarem
com os filhos legítimos e [ilegível].
351
O excerto demonstra que também estava em questão o “poder de nomear”,
descrito por Bourdieu (1990 p.162). Considerando que “as palavras, os nomes [que]
constroem a realidade social tanto quanto a exprimem”, o autor entende que a
“nominação oficial, isto é, o ato pelo qual se outorga a alguém um título, uma
qualificação socialmente reconhecida” era fruto do monopólio, pelo Estado, da
violência simbólica legítima (p. 164). Os litigantes, contudo, entendiam esse
reconhecimento não como um direito individual, nem como uma atribuição do
poder público, mas como uma prerrogativa familiar na qual uma interferência
estatal seria considerada abusiva e indesejável.
Antes de qualquer distinção que a utilização de um sobrenome ou outro possa
estabelecer, está aquela existente entre os que o possuem ou não. Zonabend (1980 p.
18) é enfática quando afirma que a negação do nome de alguém é algo tão grave
que chega a colocar em questão sua admissão na comunidade humana. Em
passagem menos incisiva, a autora observa a existência em Minot (a localidade por
ela estudada) de uma população flutuante, instável e marginal, da qual não se
conhece o lugar de origem, não possuindo, pois, um patronímico. Os significados
impressos na ausência de sobrenome os classificava como os estratos sociais mais
desfavoráveis, e dificultavam sua identificação, que, assim, só era possível por meio
351
APERS, I Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco de Paula, maço 1,
auto1 (1884) f. 117v.
223
de prenomes ou apelidos (Zonabend, 1995 p. 261). Em um processo criminal
estudado, uma testemunha arrolou alguns dos indivíduos participantes da
“quadrilha” que estava sendo investigada. No entanto, de boa parte não sabia o
nome, associando este desconhecimento ao fato de se tratarem deoutros
vagabundos que ela testemunha declara não conhecer de nome nem de que lugar
vieram”
352
. A vagabundagem, diretamente associada à ausência de nome, como
visto, era alvo de legislação repressiva, particularmente em um momento de amplas
transformações das relações sociais.
São grandes as semelhanças com aqueles escravos ou descendentes que não
adquiriram um sobrenome. É assim descrito o estatuto social inferior de que
padeciam:
Pour les gens du village, ces individus sont loin d’avoir tous
la même valeur sociale et si on leur demandait de les situer selon
une ordre hiérarchique, ils mettraient d’un bout les mendiants qui
remplacent aujourd’hui des familles des gitains. (Zonabend, 1995
p. 262)
353
Assim sendo, se a ausência de sobrenome os hierarquizava em relação
àqueles que os possuíam, isso não implica na inexistência de uma escala valorativa
dos mesmos entre si. Creio, por outro lado, que afirmar que aqueles que “não têm
nome” estão fora da comunidade humana significa assumir o ponto de vista
daqueles que “tem nome” e arrogam para si o poder de definição do que é humano
e do que não é. É evidente que em uma sociedade em que a cidadania passava,
entre outras coisas, por possuir este sobrenome, tê-lo era uma esperança – não uma
garantia – por gozá-la. No entanto, aqueles que não o tinham referiam-se entre si de
outras maneiras, de forma que seu estatuto humano não estava ameaçado. A
experiência humana é mais diversa do que a dos homens brancos brasileiros ou a
dos aldeões de Minot.
Mattos (1998 p. 280-281) afirma que os significados da liberdade e da
cidadania, nos anos imediatamente posteriores à abolição, achavam-se em disputa.
Se para os antigos senhores os libertos não deveriam sequer tornar-se cidadãos de
352
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 23 (1890) ,
depoimento de Florêncio Rodrigues da Silva, 10/4/1888, f. 12.
353
[Para a gente da vila, estes indivíduos estão longe de ter todos o mesmo valor social e se lhes
solicitássemos que os situassem segundo uma ordem hierárquica, eles colocariam ao fim os
mendigos, que substituem nos dias de hoje as famílias de ciganos].
224
segunda classe, mantendo fundamentalmente a mesma condição anterior, os ex-
escravos pleiteavam para si uma cidadania civil antes que uma cidadania política
354
.
Com isso, a autora sublinha que, para estes, o mais importante era emancipar-se de
uma legislação de exceção a que vinham sendo submetidos, especialmente em
relação a contratos de trabalho. Se direitos liberais clássicos – de ir e vir, à família e
à propriedade – foram construídos em oposição à experiência do cativeiro, pode-se
observar que a aquisição de um sobrenome era análoga à negação da condição de
“negro” ou “preto”, ou seja, em ambos os casos, o abandono de signos distintivos
do não-cidadão, do segregado, do marginal. Em outros termos, a luta por direitos
civis não se restringia à busca pelos benefícios práticos que podiam advir da
progressiva anulação de leis segregacionistas, mas, sobretudo, por uma
reclassificação social que abolisse as distinções que os particularizavam, e que
postulasse uma sociedade mais igualitária.
Mesmo que nos primeiros anos posteriores à abolição muitos tenham
seguido utilizando somente os nomes próprios, a utilização de um sobrenome era
cada vez mais necessária em transações por escrito ou na interação com o Estado.
Não exatamente porque fosse uma exigência, mas pelo efeito simbólico que o
mesmo tinha. Ele tinha o poder de significação que diferenciava o sujeito daqueles
que não o possuíam e, conseqüentemente, eram considerados marginais e
desenraizados, em suma, inferiores. Daí, possivelmente, os nomes “de papel” ou de
“assinatura”. Em trabalho anterior (Weimer, 2005a) argumentei que a utilização
dos sobrenomes conferia aos ex-escravos, em contextos de investigações judiciais,
mais respeito e credibilidade em seus depoimentos, o que poderia ser decisivo em
suas vidas, caso fossem os réus.
Reconhecer ou negar um sobrenome ao ex-cativo possuía um significado
político: é como se o antigo senhor, representado através de seu nome, conferisse
um aval para a validação do testemunho do ex-escravo. Para Wissenbach, em
muitos casos a
menção dos ex-senhores, transformados com a alforria em
patronos, mostrava-se socialmente significativa, pois os retirava do
grupo dos que eram vistos como destutelados e contra os quais se
354
A autora observa que ao fim e ao cabo uma cidadania política era inacessível não somente para
ex-escravos, mas para a maior parte da população, quer no Império, quer na República Velha.
225
manifestavam os rigores do controle social. (Wissenbach, 1998 p.
53)
Isso não significa, porém, que não fossem utilizadas outras formas de
nomeação no dia-a-dia. As tabelas abaixo demonstram a ínfima presença de pais e
mães sem registro de sobrenome em São Francisco de Paula nos anos posteriores à
abolição.
Tabela 8 – Registros sem sobrenomes dos pais nos nascimentos de São Francisco
Ano
Registros
com
sobrenome
de ambos
pais
Registros
sem o
sobrenome
do pai
Registros
sem o
sobrenome
da mãe
% de
Registros
sem
sobrenome
Total
1889 2 0 2
1891 3 0 3
1892 2 0 2
1893 8 0 8
1894 16 0 16
1895 19 0 19
1896 49 1 2 50
1897 74 3 3,9 77
1898 52 2 3,7 54
1899 55 3 5,2 58
1900 43 1 2,3 44
1901 52 0 52
1902 47 1 2 48
1903 50 0 50
Fonte: RCSFP – livro A-1 (1893-1903)
Tabela 9 - Pais e mães não
identificados nos registros civis
Pais não
identificados
Mães não
identificadas
1889
1891
1892
1893
1894
1895
1896 6
1897 16 1
1898 10
1899 7 1
1900 8
1901 4 1
1902 8
1903 5 2
Fonte: RCSFP – livro A-1 (1893-1903)
226
Apenas durante a segunda metade da década de 1890 a população de São
Francisco de Paula habituou-se a registrar no civil as crianças que nasciam. Nos
anos iniciais, parece haver uma continuidade com o período imperial, quando os
batismos eram considerados suficientes para efeitos legais. A idéia de que agora não
bastavam mais ritos de nomeação perante Deus, mas que eram necessários também
diante do Estado não foi aceita de imediato. Além disso, durante os anos de guerra
o registro dos filhos não era prioritário. Rios (1990, p. 108) afirma que os sub-
registros evidenciam não ser a sua realização uma prática universal. Parece ter
acontecido o mesmo na localidade estudada, onde o registro civil demorou alguns
anos para ser adotado pela população
355
.
Há ainda um grande predomínio feminino entre aqueles que não possuíam
sobrenomes, e o mais comum era uma associação do registro de suas crianças com
aqueles nos quais o pai está ausente. Como já foi analisado no capítulo 2, elas
felizmente tiveram a sorte de ser acompanhadas por homens idôneos que realizaram
o registro das crianças ou as acompanharam nesse intuito.
É ínfima a proporção daqueles pais e mães que não tinham um sobrenome
para apresentar, e dar aos seus filhos no momento de registrá-los em cartório,
ultrapassando somente em um ano a casa dos 5%. Disso deve-se concluir que a
imensa maioria dos ex-escravos adotou sobrenomes e passou a dirigir-se ao cartório
civil para realizar o registro de seus filhos, invisibilizando-se para todo sempre em
agregados massivos de pessoas com sobrenomes, indiscerníveis conforme sua
“cor”
356
? Pouco provável: uma explicação assim não leva em consideração a
mencionada sub-representação. É verdadeiro que a adoção de sobrenomes pelos
antigos cativos foi um fenômeno típico do pós-abolição; os nomes de muitos estão,
talvez inacessíveis, indiscerníveis entre outros de diferente condição, manuscritos
nos grandes livros do Cartório do Registro Civil de São Francisco de Paula.
No entanto, boa parte deles não adquiriu um sobrenome e tampouco o
repassou para seus rebentos perante o Estado republicano. São aqueles que
Wissenbach (1998, p. 53) entendeu como “destutelados e contra os quais se
manifestavam os rigores do controle social”. Mas assim fizeram por ignorância,
desconhecimento, omissão em exercer seus direitos de cidadania, repulsa a adotar o
355
O primeiro livro de óbitos teve início somente em 1896; já dos 223 registros do primeiro livro de
casamentos, 23,3% do total antecedem a guerra, enquanto os demais são apenas de 1896 em diante.
Fonte: RCSFP, livros B-1 e C-1 (respectivamente, 1891-1905 e 1896-1905).
356
O registro de cor praticamente desapareceu naqueles anos. Ver adiante.
227
nome senhorial? Tudo isto é possível, mas, levando em consideração que indivíduos
de quem não se tem indícios de terem sido cativos também não se apresentaram para
realizar registros em cartório, sustento que havia mais alguma coisa. Se muitos
tinham a percepção de que adotar um nome era um passo rumo à cidadania, outros
adotaram estratégias de vida diferentes. Com isso, quero dizer que não adotar um
sobrenome e assumir o estigma por isso causado pode ter sido, em alguns casos, uma
opção. Não existia solução unívoca para os problemas colocados pelo fim do
cativeiro.
Mas afinal, de que maneira assumir uma forma estigmatizante de nomeação
poderia ser vantajoso? Acontece que um sobrenome era desejável apenas para quem
quisesse integrar-se naquela sociedade. Para aqueles que quisessem apartar-se dela,
construir espaços próprios de autonomia (como aqueles que foram viver entre os
índios, durante a guerra civil) um sobrenome talvez não fosse tão necessário assim.
Pelo contrário, se à ausência de sobrenome eram dados significados pejorativos, e
se ela os classificava como grupo depreciado, também dificultava sua identificação,
e isto era ótimo para quem não queria ser identificado.
Ginzburg (1989 p. 171-172) enfatiza a diversidade das maneiras encontradas
pelos homens para distinguir entre si os componentes dos grupos a que pertencem.
O nome é visto como uma das principais maneiras através das quais isso acontece.
Contudo, o autor percebe o caráter de controle social subjacente à nomeação,
afirmando que, quanto mais complexa uma sociedade, maiores as possibilidades de
esquivar-se deste domínio, já que “fazer desaparecer os próprios rastros e reaparecer
com uma outra identidade era uma brincadeira de criança”. Não sei se
“desaparecer” era “brincadeira de criança” para os indivíduos de que trato, mas
com certeza o terreno para tal lhes era propício. Sobretudo entre aqueles que se
envolveram em atividades ilícitas, a ausência de sobrenomes lhes favorecia no
sentido de escapar das garras da justiça (Weimer, 2006). Não ter sobrenome não
era, bem entendido, garantia de nada, mas indubitavelmente, era mais fácil para
um oficial de justiça intimar, ou à força policial prender, digamos, um “Faustino
Moreira Borges” do que um “Narciso de tal”.
Wissenbach (1998a, p. 211) sublinha que, em casos como estes, a polícia foi
obrigada a reconhecer formas alternativas de nomeação, tais como características
físicas, profissionais, apelidos, nações, províncias de origem. Isso se dava para
228
tentar individualizar o réu e não correr o risco de não reconhecê-lo ou de confundi-
lo com outras pessoas. A autora sustenta que em fins do século XIX São Paulo era
uma pequena cidade provinciana, onde todos se conheciam, o que facilitaria esta
identificação (p. 209). Se era assim em São Paulo, o que dizer de São Francisco de
Paula? Contudo, a dispersão espacial e o relativo isolamento de suas áreas rurais
tornaram a polícia bastante mal-sucedida em suas tentativas de identificação e
prisão.
Mesmo quando o réu apresentava sobrenome, podiam ocorrer confusões,
como prender o sujeito errado, seja por causa de sobrenomes comuns, ou da prática
corrente de ser chamado por diversos nomes compostos de diferentes formas. João
Antônio Ferreira, da cadeia, encaminhou no dia 28 de abril de 1888 um abaixo-
assinado no qual os signatários comprovavam sua identidade. O verdadeiro nome
do réu era João Ferreira da Silva. Ele não foi solto. Era mesmo uma confusão
(tinha “olhos pretos, cabelos pretos, cor morena”, o que pode ter ajudado a mantê-
lo sob suspeição) ou era um golpe do preso, em uma sociedade tão cheia de Silvas e
Antônios? Mesmo na segunda alternativa, se o acusado resolveu intentar a fraude,
era porque uma sociedade com nomes tão ambíguos e passíveis de confusão dava
margem a isso. Ao menos para ele, era algo que valia a pena ser tentado. Seu
requerimento não foi aceito: manteve-se pronunciado, mas no fim das contas foi
libertado
357
.
Na tabela abaixo, apresento alguns processos criminais levantados para o
presente estudo (não incluo na lista inquéritos policiais inconclusos), tendo como
critério a presença, dentre os denunciados, tanto de indivíduos que tivessem
sobrenome como de quem não o possuísse. É claro que nem todos dessa última
categoria haviam passado pela experiência do cativeiro, mas compartilhavam a
situação de párias por estes vivida. A fim de diferenciar quais foram levados a
julgamento e quais foram julgados à revelia, destaco com negrito os nomes dos
últimos.
357
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 19.
229
Tabela 10 – Processos criminais: Denunciados de acordo com a presença de sobrenome
Cartório Maço
Auto Denunciados
CC SFP
358
1 12 Francisco Mariano Pimentel, Manoel Joaquim de Araújo, Cipriano
Pereira Pinto, Maximiano José Francisco
CC SFP 1 15
André Guilherme da Silva, Pedro Felipe
CC SFP 1 23
Antônio Joaquim Pedroso, Francisco Euzébio de Brito, Manoel
Raimundo Vidal, Elisiário Lourenço do Espírito Santo, Manoel
Leite, Antônio Bernardo, José Macário dos Santos, Manoel
Domingos, Adriano de tal, e um indivíduo conhecido por Didi, cujo
estado, naturalidade e residência é desconhecido.
CC SFP 2 27
Joaquim Gabriel Filho e Antônio Nunes.
CC SFP 2 32
Felippe Burg, Geraldino Alves da Silveira, Francisco de tal, por
alcunha Chico Mulato, Felippe Hoffman, André Hoffman, João de
tal (João Gaiteiro) Christiano Manga, Jacinto de tal, conhecido por
Jacinto do Manoel José, Domingos de tal, conhecido por Domingos
do Manoel José e Francisco Alves da Silveira, por alcunha Chico
Veado.
CC SFP 2 34
Marcos de tal
359
e João Fogaça
CC SFP 2 37
Francisco Moisés, Antônio José de Oliveira, Vicente Manuel
Ferreira, Manuel Soares de Oliveira, Clemente (taipeiro), Antônio
(filho de Dona Aurora)
CC Taq 23 618
Faustino Moreira Borges, Marcílio de tal, Narciso de tal, o indivíduo
conhecido por Baldu
CC Taq 25 642 Francisco Euzébio de Brito, Manoel Raymundo Vidal, José Macário
dos Santos, Antônio Bernardo Didi, Júlio Feliciano dos Santos,
Adriano de tal, Marcílio da Venda.
CC Taq 25 649
Maria Rosa do Espírito Santo, vulgo Maria Pituba, Ascenso Bicudo
do Amarante, Floriana Teixeira da Silva, José Alves da Silveira,
Manoel Salvador, Domiciano de tal
CC Taq 26 655 Saturnino Joaquim da Rosa, Cristiano Hoffman Sobrinho, Ascêncio
Bicudo do Amarante, Francisco Gross, Candinho Baiano, Miguel
Gralha, Manoel Salvador, Detrio de tal, Pedro Chuates [sic]
Filho, Jacob Gross, Olivério de tal, João Cabeleira, Rafael de tal
(italiano), Francisco Braz, João Adriano, Francisco Alves da
Silveira.
Fonte: APERS. CC SFP = Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula
CC Taq = Cartório de Civil e Crime de Taquara
Não se pode (nem se pretende) estabelecer uma correlação mecânica, mas é
inegável haver uma forte tendência daqueles que não possuíam um sobrenome para
responder à revelia. Alguns que assim o fizeram tinham sobrenome, mas, à exceção
de Joaquim Gabriel Filho, nenhum dos que não o tinham foi levado a julgamento
presencial. Uma objeção que se poderia colocar, e eu concordaria com sua
358
CC = Cartório de Civil e Crime; SFP = São Francisco de Paula; Taq = Taquara.
359
Sequer houve preocupação de julgá-lo.
230
pertinência, é: que vantagem poderia haver em tornar-se fora-da-lei (já que julgados
à revelia não costumam ser absolvidos)? Minha resposta é: não sei; desconfio,
porém, que seu maior objetivo era preservar a liberdade. As forças policiais de
antanho tinham dificuldade de exercer sua vigilância sobre os campos de cima da
serra. Ao longo dos processos criminais investigados, foi raro encontrar um
indivíduo sem sobrenome preso. Por outro lado, se comparecessem às seções do
júri (na eventualidade de que se conseguisse intimá-los), dificilmente retornariam –
ou ao menos assim acreditavam
360
.
Se a ausência de um sobrenome servia para impedir sua identificação por
“outros”, é inegável que entre si se identificavam. O oficial de justiça talvez não
soubesse quem eram Baldu ou Didi, mas é quase certo que Didi e Baldu soubessem
um do outro. A ausência de sobrenome, portanto, era a ausência de algo muito
importante aos olhos da sociedade ao seu redor; não necessariamente aos seus
olhos. E, se necessário, como lembrava Ginzburg, talvez não fosse tão difícil a
invenção de um. Ser chamado apenas por apelidos ou prenomes podia estigmatizá-
los naquela sociedade, mas não os podava do estatuto de humanidade. Pelo
contrário, enfrentando (ou suportando) o fardo do estigma, construíam um modelo
próprio de existência humana, distinto daqueles que lhes queriam impor. Este
modelo, se fora depreciado pelo Presidente provincial Rodrigo Vilanova, poucos
anos após foi fundamental para que seus inimigos pica-paus e seus co-partidários
maragatos reforçassem suas milícias.
***
Em data incerta e não sabida, nasceu Emília, filha de Eva Caetana dos Reis
e neta de Caetana. O fato aconteceu na casa de Leopoldo Jovem dos Reis. Seu
nascimento foi declarado, em cartório, por Manoel Antônio da Silva, natural de
Santo Antônio da Patrulha, lavrador e solteiro, no dia 10 de janeiro de 1897
361
. Ao
entardecer de um dia de abril, em 1898, Emília ganhou um irmão. Jovelino dos
Reis, filho natural de Eva e neto de Caetana Gil, veio ao mundo na mesma casa
360
Nunca é demais lembrar que a mobilidade espacial tinha uma importância central na definição
dos significados da liberdade entre ex-escravos. Ver Mattos, 1998 e Fraga Filho, 2006.
361
RCSFP – livro A-1 f. 20v.
231
onde a primogênita nascera. Transcorridos mais de dois meses, o mesmo Silva
declarou em cartório seu nascimento. Declarou-se, uma vez mais, solteiro
362
.
Mais de um ano após, Emília e Jovelino passaram a dividir a atenção de sua
mãe com mais uma criança: veio ao mundo Manoel. Amanhecia, naquele frio de
um agosto serrano. O parto se sucedeu em casa de João Baptista da Silva, distante
uma légua do cartório. Dessa vez, apenas quatro dias transcorreram entre o
nascimento (21/8/1899) e seu registro (25/8/1899). O declarante foi o proprietário
da casa onde o menino nasceu. Também ele declarou-se solteiro, e afirmou que sua
profissão era criador. O mais interessante, porém é que tanto a mãe (Eva Caetana)
quanto a avó (Maria Caetana dos Reis) tinham mudado de nome
363
.
Na aurora de 23 de dezembro de 1901, quase véspera de Natal, crescia a
prole de Eva, agora da Silva, com o nascimento de Francelino, até onde se saiba, o
caçula. Talvez fosse o preferido da avó, que agora também se chamava Silva. O
registro traz algumas informações adicionais sobre a vida da mãe. Foi considerada,
no momento do registro, mulata, e, como a imensa maioria das mulheres em
situação similar à sua, era criada. Vivia agora em lugar mais afastado: a casa do
declarante, onde nascera o benjamim, ficava no Muniz, lugar que distava sete
léguas o cartório. Curioso observar que se na época em que mãe e avó se
chamavam Reis, os declarantes eram Silva, agora que se chamavam Silva o
declarante era Acilino José dos Reis. Junto com Maria Cândida de Castilhos,
apadrinhou o menino
364
.
Ignácio nasceu em 21 de janeiro de 1900. Um pouco mais novo que Manoel,
um pouco mais velho que Francelino. Mas não era seu irmão; era seu tio. Agora foi
a vez de Eva ganhar um irmão. Caetana, novamente Gil, deu à luz em sua própria
casa, e foi ela mesma quem se dirigiu ao cartório para fazer o registro do recém-
nascido, no dia 7 de fevereiro. A distância que percorreu para ali chegar foi de uma
légua. Descobre-se então que a mãe de Caetana, não se sabe se ainda viva ou já
falecida, chamava-se Narcisa Gil
365
.
Através destes cinco registros de nascimento, toma-se contato com
informações fragmentárias sobre a vida dessas mulheres e seus filhos. O parentesco
existente entre as mesmas está esboçado em uma árvore genealógica. Suas
362
RCSFP – livro A-1 f. 71.
363
RCSFP – livro A-1 f. 103v.
364
RCSFP – livro A-1 f. 160v.
365
RCSFP – livro A-1, f. 118.
232
flutuações nominais demonstram o quanto no pós-abolição os nomes não tinham,
sequer de longe, a fixidez que hoje se pretende atribuir. Além disso, seu caso mostra
não haver uma separação rígida entre quem “tinha sobrenome” e “quem não
tinha”. Era possível em uma hora tê-lo, em outra não. Sem querer classificá-las de
uma forma estigmatizante, sinto-me obrigado a denominá-las apenas pelo prenome,
já que foram muitas as maneiras pelas quais estas mulheres se apresentaram:
Gráfico Genealógico 5 – Família de Eva e Caetana
Narcisa?
Caetana?
Eva?
Emília
n.
1897?
Jovelino
n.1898
Manoel
n. 1899
Francelino
n. 1901
Ignácio
n.
1900
Fonte: RCSFP – livro A-1
Chama atenção, no gráfico genealógico reconstituído, que todos os
indivíduos do sexo masculino identificados são crianças, nunca pais ou avôs, o que
é coerente com a afirmação anterior de que nos nascimentos dos filhos de mulheres
que não tinham registro de sobrenome, os pais não costumavam estar indicados.
Essa tendência é comum com freguesias de Campos estudadas por Mattos (1998 p.
314-315), onde os avôs paternos e maternos e avós paternas estavam sub-
representados. Sequer é possível saber se aquelas crianças eram filhas dos mesmos
pais.
É crível, mas não está demonstrado, que ao menos alguns daqueles homens
assinalados com uma (?) fossem os proprietários das casas onde nasceram os
233
meninos e/ou aqueles que foram registrá-los. Sob qual motivação efetuavam o
registro? Sentiam-se responsáveis pelas crianças? Assim sendo, essa
responsabilidade só pode ser explicada por uma postura paternalista ou por um
senso de obrigação de, sendo seus pais, mesmo não reconhecendo as crianças nem
lhes dando seus nomes, ao menos prestar alguma assistência à mãe. É possível,
ainda, tratar-se da manutenção de algum sentimento de posse sobre Eva. Ou,
talvez, duas dessas coisas. Ou todas.
Elas tomaram seus nomes, Silva e Reis, por empréstimo. É provável que
algum vínculo as ligasse a essas famílias desde o cativeiro, sobretudo quando se
leva em conta que, em um registro raríssimo para São Francisco de Paula, acor
de Eva foi assinalada, e que, como criada, tomou o mesmo destino de muitas ex-
escravas
366
. Por outro lado, não necessariamente essa preponderância feminina nas
genealogias significava que as crianças fossem filhas de ex-senhores. É também
possível haver relações consensuais de Eva e Caetana com homens de sua mesma
condição social, sem registro por não terem recebido formalização perante a Igreja
ou o Estado
367
.
Eva estabeleceu-se em diversas casas no breve intervalo entre 1897 e 1901. O
nascimento de uma criança em determinada casa não significava, bem entendido,
que sua mãe ali residisse ou trabalhasse; mas, no caso em questão, era o mais
provável, especialmente levando em consideração que em diversos casos os
proprietários das casas assumiram a responsabilidade pelo registro dos filhos de sua
criada ou, talvez, deles mesmos ou de alguém de sua família. Além disso,
considerando as localizações afastadas, não era muito comum que uma mulher
grávida estivesse à hora do parto em local distinto de sua moradia. Apesar de haver
uma certa instabilidade quanto ao seu destino, seu caso não é comparável ao
daqueles “camponeses itinerantes” analisados por Rios (2005a), isto é, aqueles que
embora tivessem pretensões de estabelecimento autônomo campesino, encontraram
imensas dificuldades para fixar-se em um local. Mesmo tendo, no início do século,
afastado-se ou sido afastada em algumas léguas, Eva Caetana, ao menos, tinha uma
366
Em 22/12/1901, data do registro de Francelino, Eva foi classificada como “mulata”. Ver adiante.
RCSFP – livro A-1 folha 160v (nascimento n. 400)
367
Em Barcellos et al. (2004 p.113), são apresentados diversos casos em que nomes de linhagens
masculinas foram utilizados na nomeação de crianças e, ainda, um casamento religioso corooando
uma relação consensual já de muitos anos, inclusive com filhos adultos.
234
trajetória um pouco mais definida, já que transitava no circuito mais restrito de
duas famílias.
É importante destacar a inobservância de uma relação mecânica entre o
nome do declarante e o nome da mãe e da avó. É muito possível que “Silva” e
“Reis” fossem dois sobrenomes utilizados por uma mesma família. Não foi
possível, contudo, realizar este levantamento. De qualquer forma, os sobrenomes
de antigos senhores ou de patrões não se refletiam de forma imediata no de seus
subordinados. Ao menos nesse caso, abasteciam um stock
368
diante do qual, de uma
forma situacional, Eva e Caetana acionavam diversos nomes. Fraga Filho
sublinhou que, no Recôncavo Baiano na década de 1890 já havia certa liberdade
para adoção de outros nomes que não o senhorial (Fraga Filho, 2006 p. 296). Os
critérios desta escolha geralmente nos fogem. Seria tentador, diante da constatação
de que no mais das vezes, diante dos Silva elas eram Reis, e diante dos Reis eram
Silva, supor que as mesmas não pretendessem confundir-se com aqueles de onde
abasteciam seu stock nominal; ou, ainda, que os declarantes, em cartório, atribuíssem
a elas nomes diferentes dos seus com o objetivo de isentar-se de qualquer
responsabilidade por crianças e mães. No entanto, é o tipo de questão diante da
qual só se pode formular hipóteses de difícil comprovação.
O que realmente não está no terreno da especulação é o caso de Caetana. Ao
contrário da filha, ela conseguiu estabelecer uma casa própria, e foi ela mesma
quem registrou em cartório o nascimento de Ignácio. Difícil saber se passou a
residir por conta própria apenas a partir de 1900 ou se, pelo contrário, desde o
nascimento dos primeiros netos já se encontrava estabelecida. Ignora-se, ainda, até
que ponto essa casa era “sua”, se a ocupava livre de constrangimentos ou se, pelo
contrário, era arrendatária ou agregada. A “casa” era apenas uma estrutura
arquitetônica ou implicava em maior auto-suficiência em sua ocupação espacial? É
certo que gozava de maior autonomia – mas também de maior abandono, haja
visto que encarregou-se por si só de efetuar o registro do pequeno, apenas duas
semanas após o parto.
Chama atenção que, naquele momento em que se via por si, usufruindo de
sua independência, já não era Reis e tampouco Silva. Seu sobrenome agora era
368
Ver Zonabend, 1995 p. 258. A autora quer, com este termo, expressar um conjunto de nomes
socialmente “disponíveis”, que não é estático, sendo objeto de constante renovação.
235
Gil
369
, o mesmo de sua mãe. Não se sabe de onde Narcisa tirara tal nome. Seria de
um padrinho, patrão, ex-senhor? Talvez. De uma maneira ou de outra, o nome se
achava perpetuado em seu neto, a partir do momento em que Caetana gozou de
maior autonomia para abandonar o “Reis” e o “Silva”. Evidentemente, não era um
abandono definitivo: caso necessário, certamente seriam acionados uma vez mais.
Os sobrenomes mais comumente adotados (como evidenciaram Eva e
Caetana, e também os Baptista Ferreira na tentativa de equiparar a situação de seus
“filhos de criação” com a dos antigos escravos) eram os dos antigos proprietários.
O mesmo se verifica nos processos criminais analisados. Observando o Anexo 1,
percebe-se que, daqueles ex-escravos cujo sobrenome foi explicitado nos autos e
cujo senhor foi identificado (7), apenas dois (Francisco Moreira dos Santos e
Saturnino Joaquim da Rosa) não possuíam pelo menos um sobrenome em comum
com seus antigos senhores.
Este é um fenômeno amplamente conhecido, tendo sido objeto de diferentes
interpretações. Desperta estranhamento por contrapor-se às tão comuns
expectativas de que os (ex)-escravos deveriam dedicar sua vida em liberdade a
entreter implacáveis guerras contra seus opressores, o que, em última instância, não
deixaria de ser, com sinais trocados, uma continuidade da vida em função
daqueles. Isso, porém, não aconteceu: no pós-abolição os ex-cativos lutaram para
viver para si, sendo seu grau de enfrentamento com os ex-senhores o estritamente
necessário. E a colaboração também. E, se lhes fosse favorável, a utilização de seus
nomes.
Fraga Filho toma a adoção do sobrenome senhorial como um “sinal claro”
do passado escravo (2006 p. 248, 269 e 301). Diversos autores ressaltaram nesta
prática a manutenção de laços de dependência, já que, com a ligação nominal aos
antigos senhores, expressariam seu pertencimento à sua clientela, à sua “gente”. É
a leitura, por exemplo, de Wissenbach, (1998, p. 253), para quem a manutenção do
sobrenome senhorial representava a continuidade de uma prática paternalista. Lara
(1988) desenvolve visão semelhante, em seu estudo sobre a região de Campos no
período colonial. Para a autora, o sobrenome senhorial impresso sobre o escravo,
funcionando como sobrenome, era significativo ao sobrepor a singularidade do
senhor à pluralidade das nações dos escravos. Funcionaria, portanto, como um
369
Este era um sobrenome razoavelmente comum na região serrana; me deparei com ele de forma
constante na documentação compulsada.
236
modo de dominação e exercício de poder (p. 165). Vale lembrar que isso não se
restringia aos escravos, mas era extensivo aos forros, funcionando como uma
marca do escravismo tal qual os sinais corporais e o estigma da “cor” (p. 268).
Se na visão das duas autoras existe uma leitura, não desprovida de sentido,
de que a adoção do sobrenome dos ex-senhores indicava a manutenção de relações
de domínio e a formação de clientelas, em nenhum momento elas sugerem que
aqueles que assim o fizeram “perderam” por tal motivo, sua identidade. É o que
faz, no entanto, Dalla Vecchia (2001) que, ao descrever a situação dos antigos
escravos que adotaram o sobrenome de outrem, adota um discurso similar ao da
Escola Sociológica Paulista, ao reduzi-los à anomia. Perderam tudo, inclusive sua
identidade, o que se expressaria no nome adotado:
A falta de um sobrenome próprio e a utilização do
sobrenome dos antigos senhores, dos patrões ou do pai de criação é
indicativo da falta de identidade provocada pela escravidão e
pelas relações de semi-servidão. É expressão externa da falta de
identificação cultural, econômica, política, devido à situação de
marginalização. Aparentemente tão simples, a identificação do
sobrenome indica mais que um parentesco. Indica uma relação de
propriedade, exploração, dominação, conseqüência do escravismo e
da semi escravidão (Dalla Vecchia, 2001 p. 361 Grifo meu).
Não pretendo polemizar com Dalla Vecchia e concordo que os sobrenomes
expressam relações sociais, que podem ser de dominação, podem ser de parentesco
e podem ser de outros tipos também. Tampouco se pretende negar, o que é óbvio, a
permanência de relações de dependência e a exploração econômica. A sociedade é
assimétrica. No entanto, é necessário fazer algumas indagações. A primeira é:
como se “perde” identidade? Isso é algo que falte ou sobre? E mesmo que assim
seja, o que fazer para constatar fenômeno tão peculiar?
Não existe ser humano neste mundo que não atribua uma identidade a si
próprio, e certamente passará toda sua vida a transformando e reparando em sua
interação com os outros. Quem “perder” uma identidade, se isso possível for, em
breve constituirá outra. Se a identidade dos sujeitos estudados, porém, não coincide
com a expectativa do pesquisador em relação a ela, o problema é de outra natureza.
Talvez não tenha ocorrido a Dalla Vecchia que a identidade não é fenômeno
monolítico. Além de mudarem diacronicamente, diferentes identidades são
237
acionadas (verbo muito melhor do que “ter”) em contextos sincrônicos diversos.
Nas entrevistas por ele apresentadas, os sujeitos em questão falaram sobre isso, o
que não quer dizer que não houvesse outros assuntos diante dos quais poderiam
assumir outras formas de nomeação. É duvidoso que, entre si, se chamassem
apenas como Caetano, Pereira, Campolino, Soares
370
. Considerar como única a
designação através dos nomes das famílias senhoriais é assumir o discurso do
dominador. Afinal de contas se, digamos, internamente aqueles ex-escravos se
apelassem de maneiras bem africanas, será que aí sim se compensaria a falta e
voltariam a ter mais identidade? Não sei. Quem tiver o “identitômetro” por perto
que o diga.
Outros autores apresentaram interpretações diferentes, nas quais se enfatiza
não a política senhorial de dominação, mas sim a importância de um sobrenome
para a vida em liberdade. É o caso de Rebecca Scott, para quemA second
component of freedom was a new form of legal personhood for those who had been
slaves, and thus a new set of relations to other legal persons and to the legal
process”
371
(Scott, 1988 p. 11-12). Inspirado na autora, propus, em um texto
(Weimer, 2005a), que os nomes estão paralelos às “cores”, ao tentarem estabelecer
a “igualdade formal em uma sociedade hierárquica” de que fala Mattos (2005 p.
298-299). Se ter um sobrenome não iria abolir distinções resultantes de outros tipos
de classificação social em uma sociedade hierárquica, ao menos ampliava suas
possibilidades de ação civil.
Mesmo assim, nessa equação há um termo ausente: o acesso à justiça
naquela sociedade era ínfimo, e a quantidade de ex-escravos que, com esse
objetivo, necessitaria adotar um sobrenome também era reduzido. Portanto, apenas
isso não basta para explicar o problema. Talvez adotar um sobrenome represente
um anseio igualitário, sobre o qual já se falou, para além da obtenção de benefícios
práticos frente ao sistema judiciário. Mas para isso qualquer sobrenome basta.
Porque o do antigo senhor? Certamente era o sobrenome mais próximo e familiar.
Mas seria apenas isso?
Outros estudiosos destacaram benefícios que podiam ser conquistados pelos
(ex-)escravos na adoção do sobrenome senhorial. Em estudo sobre comunidades
370
Trata-se das famílias senhoriais ressaltadas pelo autor.
371
[Um segundo componente da liberdade era uma nova forma de personalidade legal para aqueles
que tinham sido escravos, e desta maneira, um novo conjunto de relações com outras pessoas
jurídicas e com o processo legal].
238
negras em Caxambu, Slenes (1996 p. 62) enumera diversas possíveis explicações
para antigos escravos passarem a chamar-se da mesma maneira que seus ex-
senhores. O sobrenome indicava o pertencimento daqueles à mesma parentela; uma
eventual relação de parentesco entre si; e no caso de eventual retribuição a uma
“doação de terras”, ocupava o lugar de homenagem. Esses argumentos foram
utilizados também por outros autores.
O que fazer se parte da bibliografia afirma que ter um sobrenome senhorial
prejudicava os ex-escravos quando se sabe, contudo, que não ter um sobrenome
também lhes era desfavorável? Estariam todos fadados ao fracasso e ao estigma?
Em contraposição a uma leitura tão fatalista, sustento que não havia padrão
definidor do papel de um sobrenome senhorial. Apenas através de casos específicos
se pode entender a relevância que poderia adquirir ou não, quando ele poderia
representar dominação, quando poderia representar cidadania, ou as duas coisas, e
quem seria beneficiário ou prejudicado em situações diversas. Alguns trabalhos
demonstram que os significados da adoção de um sobrenome não eram únicos nem
unilaterais; pelo contrário, envolviam muitas nuances entre interesses negociados e
forçados entre ex-escravos e senhores. Uma apreciação mais apurada da realidade
(historiadores têm, ainda, o direito de acreditar que ela existe) aponta que antigos
cativos, a um só tempo, colhiam benefícios e prejuízos do fato de carregar consigo
o nome dos antigos senhores. Da mesma forma, tampouco para estes últimos era
unívoco o significado de tal prática.
Moreira (2003 p. 292) e Barcellos et al. (2004 p. 121) observam que a
inserção na vida em liberdade não era tranqüila. Já foram vistos todos os estigmas
que os cercavam, exemplarmente perceptíveis no discurso do Presidente da
Província. O sobrenome senhorial lhes permitia ser reconhecidos como
pertencentes a comunidades e diferenciar-se dos “vadios”. Além do mais, se tinham
relações comunitárias e familiares enraizadas em determinado lugar, era provável
que ali quisessem permanecer. Nesses casos, relações cordiais com os ex-senhores
eram valiosas. Por outro lado, sua mobilidade ficava muito mais restrita, já que
vinculada ao acompanhamento dos antigos senhores. Outra contrapartida
importante para os eventuais benefícios que podiam acompanhar a utilização do
nome senhorial era a exigência pela participação, mesmo que encenada, em rituais
239
cotidianos de submissão, tais como bênção ou louvado (Barcellos et al. 2004 p.
123).
Moreira (2003 p. 293-294) observa ainda que se a assunção do sobrenome
dos antigos proprietários podia implicar na execução de serviços ou eventualmente
na posição de clientela, isso não significa, contudo, que “os pretos forros não
estivessem sempre preocupados em não serem confundidos com os escravos,
manifestando com suas ações tentativas de diferenciação da vida em cativeiro”
372
.
Desta maneira, o papel do sobrenome é dual: se podia ser demarcador de uma
relação de submissão, também representava uma forma de forçar o reconhecimento
de sua condição de livre.
Schwartz (1988 p. 327) destaca a presença de sobrenomes como signo
demarcador do estatuto de livre, com a ressalva, porém, de que alguns poucos
escravos também os possuíam. Os significados destes sobrenomes atribuídos,
porém eram plurais. Havia senhores que se sentiram homenageados, com uma
“lisonja gratificante ao seu orgulho e senso de paternalismo”, enquanto outros não
ficaram tão à vontade com essa associação. Da casa-grande, assim, também havia
ambigüidade em relação a esta prática social. No entanto, as resistências eram
minoritárias. Ao menos no século XIX, segundo Alencastro (1997 p. 57), era
tolerada a adoção dos nomes dos barões do Império pelos seus libertos.
Xavier (1996 p. 114-116) aponta para o mesmo ponto observado por Slenes
(1996). Como ele, a autora chama a atenção para o fato de que, com a herança de
sobrenomes, os ex-escravos não estavam apenas assinalando seus vínculos com os
ex-senhores, mas também entre si. Ao deslocar, assim, o foco de observação, tem-se
uma noção mais aproximada de quais significados um nome em comum poderia
assumir para quem o compartilhasse. Nesse sentido, o nome senhorial pode ser
estratégico: era algo compartilhado por todos oriundos da mesma senzala. Por
vezes, essas práticas eram estimuladas pelos antigos proprietários. Como através da
concessão de legados, assim se tentava manter os ex-escravos sob controle.
Mas para estes, junto com as relações de vizinhança, se estabeleciam laços
que, mesmo que reelaborados, não se romperiam. O fim do cativeiro era um
fenômeno diante do qual não se podia passar incólume, mesmo com continuidades
372
No mesmo sentido, Fraga Filho observou que as “vivências no cativeiro serviram de parâmetros
para os libertos definirem o que era ‘justo’ e aceitável na relação com os antigos senhores, incluindo
estabelecer condições de trabalho que julgavam compatíveis com a nova condição” (2006, p. 214).
240
em relação ao período escravocrata. Também nesse caso, a situação assumia
significados distintos para uns e outros: controle e solidariedade grupal. A autora,
além disso, assinala o caso de uma africana que possuía dois nomes. Um continha
sua origem étnica, e outro, senhorial, expressava sua sujeição ao branco
373
. Ambas
identidades eram acionadas em contextos diversos (Xavier, 1996 p. 72). Mais um
exemplo, portanto, da pluralidade que os nomes podiam assumir. Sendo assim, a
adoção concomitante de nomes diversos remetia às diferentes identidades que um
indivíduo podia assumir (Xavier, 2000).
Os nomes assumidos por dois ex-escravos já conhecidos dos leitores desta
dissertação ajudam a demonstrar que na composição do sobrenome pode haver
referência a mais de um vínculo de pertencimento, além dos laços com os antigos
senhores. Dois nomes podem sobrepor-se, indicando identidades diversas. O
primeiro é o exemplo de André Soares Bergundes, que pertencera ao coronel
Felisberto Baptista de Almeida Soares, e lutara ao lado dos maragatos na guerra
374
.
Embora a adoção de “Soares” aponte para uma filiação ao antigo senhor – de cujo
braço armado, afinal, fazia parte – isso não quer dizer que através de seu nome não
tenham sido assinaladas, também, outras formas de pertencimento.
Em paralelo ao nome senhorial, adotou “Bergundes”. É um nome cujo
significado não foi possível descobrir; no entanto, é certo que não remete de forma
alguma ao stock nominal empregado pelos Soares. O sufixo –es costuma ser
utilizado na formação de gentílicos (Houaiss e Villar, 2001 p. 1195). Não há,
todavia, dados suficientemente seguros que permitam avaliar se este é o caso do
segundo sobrenome de André, e, caso seja, o que “Bergund-” pode querer dizer. De
forma assemelhada ao caso de André, através da tabela no Anexo 1 pode-se
perceber que nenhum dos ex-escravos adotou o sobrenome senhorial de forma
idêntica. Pelo contrário, eles assumiram para si um dos termos do sobrenome, e
apenas ele, ou o adicionaram a outros cujas origens, nos casos analisados, não
foram identificadas. Uma réplica totalmente idêntica ao sobrenome do antigo
senhor não foi verificada. Fraga Filho (2006 p. 320) também apontou a prática de
substituição do sobrenome senhorial por outro.
373
Discordo que o uso de nomes africanos necessariamente significasse autonomia. Tampouco creio
que o uso de um nome senhorial necessariamente expresse submissão; sempre pode ser uma
estratégia de sobrevivência. Ver subitem nomes.
374
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 41 (1893)
241
Ao menos em um exemplo foi possível interpretar o significado do segundo
sobrenome assumido. O leitor certamente lembrará de Elias Carneiro Lobo, o que
saía à noite para recolher pinhões, tal como narrado no segundo capítulo
375
. É
significativo que, mesmo que a ex-senhora Maria Carneiro de Córdova tenha
perdido qualquer autoridade sobre ele, e dependesse de sua boa-vontade, ele
decidiu manter o nome “Carneiro”. Isso deveria se dar antes pelo prestígio
conferido pela utilização desse nome do que por algum benefício prático mais
imediato. Por submissão ao antigo proprietário certamente não era. Elias, depois de
ter sido escravo da senhora Carneiro de Córdova, se associara à família Borges.
Tornando-se seu peão, desempenhou diferentes atividades (legais ou ilegais).
O processo fala em diversos momentos de sua presença na Fazenda dos
Lobos, pertencente àquela família. Elias, em raras ocasiões mencionado também
como “Alves dos Santos”, ali trabalhava como peão. Pode-se dizer então que,
apesar da utilização do nome de Dona Clarinda Carneiro, ele também assumiu,
não o sobrenome da nova família a que se vinculava, mas o topônimo da fazenda
onde se achava seu novo trabalho, e onde se encontrava em boa parte do tempo
376
.
Embora por vias indiretas o nome remeta, de fato, aos Borges, de forma mais
imediata aponta apenas para um pertencimento territorial àquela unidade de
produção.
Na epígrafe acima apresentada, diz uma personagem do romance “O Rei de
Keto” que “nem sempre botar coroa no nome de um menino faz com que ele vire
rei” (Olinto, 1980 p. 183-184). Parafraseando, pode-se dizer que a adoção do nome
senhorial não tinha o condão de transformar o ex-escravo em um senhor; mas
também não fazia dele uma marionete inerte em suas mãos. Talvez algo
intermediário.
Por fim, falta dizer que a adoção de um sobrenome não trazia em si, de forma
alguma, qualquer garantia de seu reconhecimento pelos demais. Indivíduos que
possuíam um sobrenome podiam, assim mesmo, ser lembrados por meio de
apelidos e prenomes. Parece, nesse caso, haver por parte dos demais uma tentativa
de adequar suas formas de nomeação ao conceito que socialmente se tinha deles.
De nada adiantava ter um sobrenome se as pessoas com quem convivia não o
empregavam, desconheciam ou simplesmente achavam incompatíveis designação e
375
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 17 (1891).
376
A relação entre nomeação e emprego de topônimos é analisada por Zonabend (1995 p.276-279)
242
designado. Isso aconteceu com Francisco Antônio de Freitas. O leitor, como os
contemporâneos de Francisco, dificilmente lembrará seu nome, mas o apelido é
inesquecível: Chico Penacho
377
.
Ao olvidar-se de seu nome, as testemunhas arroladas em inquérito policial
reafirmaram sua condição marginal. Era um raro pardo/mulato na Picada do
Quilombo, sozinho entre muitos alemães e poucos lusos. A identificação por meio
do apelido reafirmava sua condição de minoria e o classificava como ser inferior, já
que era desprovido de sobrenome, ou melhor, tivera seu sobrenome omitido
378
.
Dentre tantas famílias “de origem”
379
ele sequer era identificado como pertencente
a uma família. Não tinha “classificador de linhagens”. Ou tinha, mas de pouco
servia se não era reconhecido.
Na denúncia foi chamado de “pardo Francisco, por antonomásia Penacho”.
Dentre as 7 testemunhas arroladas para o inquérito policial, para 5 era “Francisco”
ou “mulato de nome Francisco”, para 2 era “Francisco de alcunha Penacho”. Já
entre os que depuseram judicialmente, por 3 foi chamado de “Francisco Penacho”,
por um, simplesmente, “Penacho”, por outro “Chico Penacho” e, por 2,
finalmente, “Francisco Antônio de Freitas, vulgo Chico Penacho”. Não adiantava.
Aquela comunidade decidira que se chamava Penacho, e mesmo os dois únicos que
conheciam seu sobrenome só o utilizaram junto ao apelido. No seu caso, o apelido
não era um atributo acessório e secundário, ajudando na rememoração do nome.
Pelo contrário, no caso, era o nome que adjetivava o apelido.
Se o principal motivo para a recusa em empregar o sobrenome de Francisco
Antônio de Freitas era sua situação minoritária em termos raciais, o problema
enfrentado por Simplício Moreira dos Santos e por André Soares Bergundes
provavelmente se referia a um estigma relativo à sua profissão. Eles eram capangas,
encarados como homens truculentos e à margem da lei. Não podiam ter
sobrenomes. Por isso, quase todos os conheciam como “mulato Pio” e “André (de
tal), ex-escravo de Baptista”. Ambos estavam presentes na defesa da casa de
377
Francisco foi assassinado por pessoas de sobrenome luso-brasileiro durante baile organizado por
descendentes de alemães na linha do quilombo, por ter dançado com a filha do dono da casa. Ver
capítulo primeiro.
378
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 23 auto 606 (1887).
379
Utiliza-se, ainda hoje, em diversas cidades do Rio Grande do Sul esta expressão, em referência a
descendentes de italianos, alemães, poloneses ou outras nações européias que colonizaram a região.
Subjacente está a idéia, transbordante de etnocentrismo, do não-reconhecimento de que os demais
também possuem uma “origem”.
243
Felisberto Baptista de Almeida Soares durante o ataque dos republicanos, como
visto no capítulo 3. Esse caso ensejou imenso processo, no qual depuseram 26
testemunhas
380
. Delas, apenas uma sabia o prenome de Simplício (acompanhado da
alcunha) e dois, nome e sobrenome (também, acompanhados pelo apelido). Para os
demais, Pio. Negro ou mulato Pio, ao gosto do locutor. Quanto a André, foi por
todos reconhecido como antigo escravo, à exceção de dois indivíduos, que sabiam
seu nome completo. Os mesmos, aliás, que sabiam dizer o sobrenome de Pio.
Mas ninguém sabia melhor do que Bibiana o que era ver ignorado um
estatuto social duramente conquistado.
Os nomes dos nomes
- Você precisa tirar esse uniforme e trocar de nome. Vou
providenciar documentos falsos para você.
- Por que mudar de nome?
- Por quê? Martin Bormann agora é um nome nada aconselhável.
(Lebert e Lebert, 2004 p. 76).
A epígrafe deste capítulo expressa o diálogo do filho de um nazista célebre,
homônimo de seu pai, que imediatamente após a guerra findar viu seu nome
transformar-se em pesadíssimo estigma. Não era para menos: Martin Bormann, seu
pai, estava foragido e era homem procurado por serviços secretos mundo afora. Seu
filho foi submetido a diversos interrogatórios. O Reichsleiter era considerado o
segundo homem mais poderoso no Reich e, portanto, co-responsável pelos crimes
hitlerianos. Assim que, a partir de então, não era mais “aconselhável” chamar-se
Martin Bormann.
Em épocas diferentes, dramas individuais ou coletivos foram vividos em
conseqüência de estigmas decorrentes de um sobrenome ou da ausência dele. Pode-
se dizer que, após o fim do regime escravocrata, para a maior parte dos ex-escravos
380
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 41 (1893).
244
era cada vez menos “aconselhável” não possuir um sobrenome. “Ex-escravo” e
“Martin Bormann” certamente são termos sem parâmetros de comparação.
Todavia, como na frase de Simone de Beauvoir, com o mesmo risco de
anacronismo e os mesmos nazistas, pode-se enxergar vagas semelhanças, não
históricas, mas de experiências e sensibilidades humanas.
Transformações sociais mais ou menos abruptas tornaram indesejáveis
determinados nomes ou práticas de nomeação, ao alterar o seu contexto de
significação. A seguir, analiso a utilização de algumas palavras definidoras de
estatuto social, como apelidos e alcunhas, e as categorias “ex-escravo”, “gente de”
e “de tal”. Mais do que constatar quando estes termos não eram recomendáveis,
porém, tenho como preocupação compreender de que maneira foram manipulados
aproximando-os ou distanciando-os de uma condição “livre”.
O retorno de Bibiana
Deve ter sido em virtude do caráter violento de seu crime que Bibiana –
aquela que matou a antiga senhora Dona Castorina da Silva Dutra a marteladas,
golpes de canivete e arremessando-a no fogo, episódio detalhadamente relatado no
capítulo segundo – notabilizou-se. Seu ato adquiriu certa repercussão. Anualmente,
nos relatórios dos Presidentes Provinciais, havia uma relação de “crimes e fatos
notáveis”. Na fala proferida em março de 1886 pelo Desembargador Henrique
Pereira de Lucena, então governante provincial, o fato ocorrido em Canela não
apenas constava neste rol, como também assumiu lugar de destaque. Certamente
foi descrito em um grau de detalhamento bastante superior ao de qualquer outro
episódio arrolado no mesmo espaço
381
. Talvez essa atenção tenha a ver com os
temores que um crime desta natureza poderia despertar naquele momento histórico
– até que ponto poderia chegar, afinal, o ressentimento de um ex-escravo em
relação ao antigo senhor, uma vez livre. Por outro lado, este caso extremo
evidenciava as limitações dos contratos de prestação de serviços e da concessão de
uma liberdade incompleta e parcial. Como isso poderia ser usado como argumento
381
Fala apresentada a Assembléia Legislativa Provincial do Rio Grande do Sul pelo Presidente da
Província o Exc. Sr. Desembarg. Henrique Pereira de Lucena, ao instalar-se a 2
a
sessão da 21
a
legislatura em 7 de março de 1886. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas do Conservador, 1887. p.
109.
245
pelos escravistas, “A Federação” e “A Reforma”, jornais envolvidos na campanha
abolicionista, silenciaram a respeito
382
.
O crime de Bibiana atingia pontos nevrálgicos da sociedade escravista em
dissolução: a autoridade do antigo proprietário sobre aqueles que tinham sido seus
escravos, e a capacidade e perigo de resistência e até, como neste caso, revide
destes. Dessa maneira, nos permite também visualizar de que maneira foram
manipuladas, no embate judicial, determinadas categorias que foram utilizadas
para definir o estatuto social de Bibiana
383
. Refiro-me a qualificativos de estatuto
social.
Em termos estritamente morfológicos (como soma de prenome e nome
familiar) estas categorias não poderiam ser consideradas nomes. Tampouco, na
maior parte dos casos, incorporavam-se a eles. Mas estas palavras cumpriam as
mesmas funções que um nome possui, como anteriormente se discutiu, e por esse
motivo serão considerados enquanto tal: com determinados fins, se procurava
identificar, emprestar significados, e classificar a ré. Categorizá-la como
“contratada”, “ex-escrava”, “livre”, “escrava”, “liberta”, ou omitir seu estatuto
social era uma maneira de afastá-la ou aproximá-la do cativeiro e da liberdade e de
construir concepções de sua identidade pessoal mais ou menos favoráveis à sua
defesa ou sua acusação. A retórica da utilização dos nomes, assim, incidia com
clareza sobre a vida da nomeada.
O caso de Bibiana é exemplar para o estudo da maneira como qualificativos
apodados aos nomes cumprem um papel fundamental na construção da nomeação,
por permitir avaliar em quais momentos certas categorias lhe eram atribuídas e
mesmo quando ela própria as acionava no contexto de um processo judicial. É
evidente, tratava-se de um contexto de intimidação e pressão. Contudo, não há um
núcleo substantivo de identidade oculto sob os contextos em que ela é construída,
assim como inexiste ambiente social livre de constrangimentos. Em qualquer
situação as identidades sociais se constroem no confronto e trocas com os “outros”.
Nesses contextos sempre estão presentes coerções e coações mais ou menos
intensas (Weimer, 2006a).
382
MCSHJC – A Federação (consultada até 20 dias após o crime); IHGRGS – A Reforma
(consultada até 20 dias após o crime)
383
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, auto 576 (1885)
246
Por meio dos processos criminais procuro investigar como os nomes, e
particularmente essas categorias que afirmo estar os adjetivando, foram acionados
em uma disputa jurídica na qual a liberdade estava em jogo. Não pretendo, nem
posso, através dessa fonte (e desconfio que de qualquer fonte) dar respostas últimas
sobre quem era Bibiana. A confissão dessa impotência, no entanto, não inviabiliza a
execução nem nega a validade do empreendimento de pesquisa. Em importante
debate, ocorrido na década de 1980, discutindo a utilização de processos criminais,
Sidney Chalhoub observou que o hipercriticismo daqueles que negavam as
possibilidades de veracidade deste tipo documental trazia implícita uma visão de
que “os fatos da história são coisas sólidas, duras e facilmente discerníveis”
(Chalhoub, 2001, p. 39), e que só poderiam ser reconhecidos como válidos aqueles
que correspondessem a tais requisitos. Este grau de exigência, porém, inviabiliza a
possibilidade do conhecimento histórico, simplesmente porque os “fatos da
história” (identidades sociais, sobretudo) jamais apresentam aquelas características.
Não podemos saber “o que realmente se passou”, mas isso não deve significar a
renúncia pela busca por algo que se passou, ou que se possa ter passado.
Bibiana certamente estava mais preocupada com seu julgamento, que
veio a acontecer em 16 de maio de 1887, do que com considerações
epistemológicas. Nele, a ré fundamentou sua defesa afirmando ter agido sob a
ameaça de assassinato por parte do marido da vítima. Ela, na ambígua situação de
contratada (ver Moreira, 2003), foi denominada das mais variáveis formas durante
os testemunhos do inquérito policial e do processo judicial que desencadearam
aquele julgamento:
Tabela 11 – Formas de referência ao estatuto social de Bibiana (testemunhas)
“escrava”
não há referência
“ex-escrava” total
Inquérito policial 1 2 0 3
Processo Judicial 4 3 0 7
Total 5 5 0 10
Diante da ambígua situação dos contratados – não eram mais escravos, mas
não podiam dispor livremente de seu trabalho, tendo ocorrido mesmo debates
quanto à condição jurídica deles e de seus filhos (Xavier, 1996, Chalhoub, 1999,
247
Moreira, 2003), era livre, mas não foi reconhecida como tal. Em um momento em
que as fronteiras entre liberdade e cativeiro achavam-se embaçadas, não é de se
estranhar que, ao longo do processo, houvesse diversos equívocos a respeito do
status jurídico de Bibiana.
Não se trata, portanto, de mera recusa de encarar sua condição de escrava
como algo pertencente ao passado; os equívocos ocorriam pela dificuldade de se
perceber a imprecisa fronteira entre cativeiro e liberdade, cada vez mais tênue
naqueles anos. Antes incapacidade e desinteresse em perceber algumas distinções
do que má-fé, propriamente dita. Em metade dos depoimentos constantes dos
autos, a ré foi identificada de maneira a enfatizar seu caráter servil. Embora não
pareçam ser confusões deliberadas, depositar sobre ela o estigma de cativa a
prejudicava em termos processuais: posteriormente, chegou-se a alegar que o
desrespeito à autoridade senhorial havia sido um agravante para seu ato.
As dificuldades para se entender que Bibiana era uma mulher livre são
perceptíveis também entre autoridades governamentais. Seu estatuto jurídico foi
assinalado sob diversas maneiras em diferentes peças processuais:
Tabela 12 – Formas de referência ao estatuto social de Bibiana
(peças processuais)
Peça processual Data Forma de
identificação
Abertura do inquérito policial
26/7/1885 ex-escrava
Auto de prisão
30/7/1885 (ex)-escrava
Libelo crime
17/12/1886 Escrava
Júri – quesitos (1
o
julgamento)
16/5/1887 contratada
Sentença (1
o
julgamento)
16/5/1887 não menciona
Interrogatório – pergunta aos
jurados (2
o
julgamento)
24/12/1888 ex-escrava
Júri – quesitos (2
o
julgamento)
24/12/1888 ex-escrava
Sentença (2
o
julgamento)
24/12/1888 ex-escrava
Em seu auto de prisão originalmente estava escrito que a detida era uma
“escrava de José Inácio Dutra”. Depois, o papel foi rasurado, a fim incluir o prefixo
“ex” antes da primeira palavra. Essa correção é significativa, ao demonstrar que
para o escrivão que redigiu aquele documento, uma pessoa presa naquelas
condições era, à primeira vista, associada à escravidão. Este era o estigma, este era
o lugar-comum. Apenas através de um conhecimento mais detalhado de Bibiana e
248
de sua história é que se podia adquirir a consciência de que não era mais cativa. É
possível que isto explique porque há um número maior de casos em que ela foi
considerada “escrava” nos depoimentos do que nas manifestações governamentais:
aqueles eram mais espontâneos. Além do mais, ao contrário da escrita, a fala não
pode ser rasurada.
No libelo-crime de 17 de dezembro de 1886, Bibiana foi identificada como
escrava, e isso foi tomado como um agravante de seus atos. O promotor afirmava
que ela havia faltado com o respeito devido à sua senhora. A gravidade de seu
crime não residia apenas em um assassinato realizado de forma cruel, mas ainda na
quebra de hierarquia. Nos quesitos do dia 24/12/1888, porém, admitiu-se sua
condição de ex-escrava, havendo, contudo, um esforço para adaptar e manter o
argumento anterior. Coube ao júri avaliar sea ré faltou ao respeito que, como
criada, devia à paciente, de quem fora escrava”. Apresentava-se, desta maneira,
frase formalmente semelhante à apresentada no libelo
384
e idêntica em termos de
conteúdo.
As categorias de “escrava” e “criada” aparecem, aqui, como
intercambiáveis. Explicitamente no que tange ao respeito devido, e de forma
implícita em relação a outros aspectos, aos ex-senhores era desejável que sua vida
agora fosse uma continuidade do cativeiro. Em outro momento, ainda, acionou-se
a idéia da transgressão de um respeito devido a alguém em condições superiores, a
“contratante de seus serviços” (quesitos no julgamento de 16/5/1887).
Bibiana, porém, identificou-se como “ex-escrava” tanto nos interrogatórios e
autos de qualificação a que foi submetida, como em requerimentos por ela dirigidos
ao Juiz de Direito de Taquara (já após a abolição e depois de sua condenação).
Assim sendo, é necessário refletir sobre o motivo pelo qual ela acionava esta
identidade. Entende-se que a designação “ex-escravo” possui significados ambíguos
e relativos. É positiva em contraste com “escravo”; no entanto, em relação a
“livre”, é estigmatizante, já que define socialmente o indivíduo em função do
estatuto social pretérito. Mas então por qual razão, nas vezes em que foi inquirida,
encontramos com freqüência, a confiar em um registro mais ou menos fidedigno da
parte do escrivão, mencionada junto ao seu nome não apenas esta condição como
384
É esta: “Provará que o crime foi cometido pela escrava contra sua senhora, faltando assim o
respeito devido à mesma senhora”.
249
também o nome do antigo senhor? Um exemplo é seu auto de qualificação, em
fevereiro de 1886:
- Qual seu nome?
- Respondeu chamar-se Bibiana, ex-escrava de José Inácio Dutra
385
Temos outro no interrogatório realizado durante o júri de 1888:
- Perguntado qual seu nome, naturalidade, idade, estado e
residência?
- Respondeu chamar-se Bibiana, natural, digo, ex-escrava de José
Inácio Dutra, natural desta Província, com dezenove anos, solteira,
neste termo.
386
Respondendo à pergunta sobre seu nome, não se sabe se foi Bibiana quem se
corrigiu e retornou para acrescentar a informação sobre o antigo senhor, que ficara
faltando, ou se isso foi feito pelo escrivão, ao perceber a relevância de registrar de
quem ela havia sido escrava. De uma forma ou de outra seu nome, sua identidade
pessoal mais particular, pareceram ficar incompletos sem aquele registro, que fazia
as vezes do sobrenome senhorial. Desta maneira, o termo “ex-escravo”,
acompanhado da identificação do antigo proprietário, cumpria um papel muito
similar à adoção do seu sobrenome, com a diferença, porém, de deixar mais
evidente o tipo de relação existente entre quem o emprestara e quem o assumira.
Tal como naquele caso, era denominação utilizada em proveito próprio por aqueles
a quem designava.
Apesar da fúria de seu ataque à ex-senhora, uma tenaz e inflexível resistência diante
do universo senhorial, não encontramos nos depoimentos de Bibiana uma tenaz e
inflexível resistência diante do universo senhorial. Não contente em identificar-se
como “ex-escrava”, ela mencionou a vítima como “sua sinhá moça Castorina”
387
e
Juvêncio Ribeiro, seu marido, como “seu senhor” (Interrogatório de 16/2/1886,
f.44). Da mesma forma, em 16/5/1887 (f. 72v), àquela se referiu como “sua
senhora moça Castorina”. No entanto, não se pode, a partir de momentos
específicos, pressupor que Bibiana tivesse incorporado a uma identidade
385
APERS, I Cartório Civil e Criminal de Taquara do Mundo Novo. maço 21, auto 576 (1885).
Auto de qualificação de Bibiana, (16/2/1886). f. 43v
386
APERS, I Cartório Civil e Criminal de Taquara do Mundo Novo, maço 21, auto 576 (1885).
Interrogatório à ré Bibiana, (24/12/1888). f. 112
387
E, aqui, há nova rasura: sobre “sinhá” foi escrito “senhora”. Provavelmente a palavra substituída,
ainda que mais fiel à fala da depoente, era considerada menos elegante que a substituta, e demasiado
coloquial para figurar nos autos.
250
substantiva sua condição tal como definida pela sociedade na qual estava inserida.
Pensando em identidades como produto das situações em que são produzidas, é
forçoso admitir, como característica dos processos criminais, que os réus fossem
caracterizados como perigosos. Como estratégia de defesa, alguns procuraram
apresentar-se como pacíficos e não representativos de risco, aparentemente
acatando cânones e valores impostos pelos dominantes, como a obediência.
Sua identificação como “ex-escrava” também foi utilizada nos
requerimentos por ela dirigidos, por meio dos quais procurou abrandar sua pena.
Certamente alguém os redigiu para ela, dado ser analfabeta. É possível que, quer no
processo, quer agora, a categoria “ex-escrava” tenha sido imputada por quem quer
que estivesse realizando o registro para ela. É o tipo de questão de impossível
averiguação. Desconfio, no entanto, que era mais provável que este termo tenha
sido efetivamente empregado por Bibiana, quer pela recorrência com que aparece
na documentação, mesmo com pessoas diferentes registrando seu discurso, quer
por aparecer empregado em contextos diversos, desde a anotação imediata de sua
fala até o preparo minucioso de uma peça jurídica que poderia levar à sua
libertação.
Bibiana foi condenada à pena capital em sentença proferida em maio de
1887
388
. Seu crime atingia um ponto delicado da sociedade escravista em
dissolução: o papel desempenhado pelos negros e o eventual perigo por eles
representado
389
. Crime exemplar, castigo idem: ao puni-la com todo o rigor, as
autoridades não apenas buscavam tranqüilizar os senhores escravistas, como
também demonstrar que delitos de tal natureza não seriam tolerados.
Ao longo do processo movido contra ela, foram diversas vezes utilizadas
expressões que objetivavam dar ênfase ao “perigo” representado por Bibiana. Sua
vítima tinha sido “barbaramente ferida e mutilada” (abertura do inquérito policial,
26/7/1885, f. 3); na denúncia movida pelo Promotor Público, ela teria atacado
“repentina e traiçoeiramente” (26/9/1885, f. 18); o crime cometido seria “bárbaro”,
uma “nefanda obra” (libelo crime, 17/12/1886, f. 52). Esses termos a classificavam
como criminosa de periculosidade notável. Desde o início, o crime fora encarado
como um caso particular, merecedor de atenção especial e punição exemplar. Na
388
APERS, I Cartório Civil e Criminal de Taquara do Mundo Novo, maço 21, auto 576 (1885).
Sentença, 16/5/1887 f. 80.
389
Os medos senhoriais em relação a estes problemas foram objeto de discussão em Azevedo, 1987.
251
denúncia de 26/9/1885, o promotor afirmava tratar-se de um crime “daquele que
merece particular atenção das autoridades processantes, e para a qual seria
criminosa qualquer indulgência” (f. 18v).
Nos casos de pena final, a legislação de então previa alguns cuidados para
evitar injustiças incorrigíveis. Os julgamentos que decidiam pela execução do réu
eram submetidos à apreciação de um tribunal encarregado de procurar por
eventuais irregularidades. Abria-se, assim, uma remota possibilidade para que se
escapasse à execução. Um acórdão datado de 4 de setembro de 1887, determinou a
nulidade do julgamento, por não se ter perguntado ao júri de sentença quanto à
existência de outras provas além de sua confissão. A ré novamente seria julgada
(parecer e acórdão, f. 88v-90). Na nova sessão do júri reconheceu-se no fato dela ser
menor de idade por ocasião do crime uma condição atenuante. Não podia mais,
portanto, ser condenada à pena máxima. Assim, sofreria prisão perpétua “com
trabalho análogo ao seu sexo”, em lugar da capital (sentença, julgamento de
24/12/1888 f. 120).
No dia 27 de maio de 1893, Bibiana encaminhou ao Juiz de Direito da
Comarca de Taquara uma petição, na qual se dizia “ex-escrava de José Inácio
Dutra, presa pobre”. Certamente o documento não foi formulado somente por ela,
uma vez que era analfabeta. O teor da petição evidencia um saber técnico jurídico
específico e uma argumentação bem construída, o que sugere que havia alguém que
dominava estes códigos a quem ela podia apelar.
Solicitava a adequação de sua pena, definida de acordo com o código
criminal imperial, para as determinações do republicano, menos severo. Bibiana
argumentava que a condenação à prisão perpétua, na legislação antiga, era
equivalente a uma prisão por 21 anos no código vigente. Afirmava que tinha 17
anos no momento em que assassinara Dona Castorina Dutra; por ser menor de
idade, deveria gozar de uma redução de 1/3 em sua pena. Considerando esses
fatores, sua punição não poderia exceder 14 anos. Mas – completava – já havia
permanecido durante 7 anos e 10 meses na cadeia, faltando, portanto, 6 anos e 2
meses. (Petição de Bibiana e anexos, 27/5/1893 f. 128-133). A petição teve
eficácia: apesar de ter se beneficiado duas vezes do fato de ser menor, tal fato
aparentemente passou despercebido, pois recebeu um parecer favorável pelo
promotor público de Taquara, em 26 de junho de 1893, e foi deferida pelo Juiz José
Manuel de Araújo.
252
Atendida sua petição, acabam-se as referências a Bibiana (f. 137v-139). Não
localizei outros documentos em que se fizesse presente, e por isso é necessário
saciar a curiosidade com especulações. Supõe-se que em meados de 1899 tenha
saído do cárcere. Deveria ter seus 31 anos, e seu filho, uns 14. Não se sabe até
quando foi cuidado pela mãe na prisão, nem quem o criou depois – provavelmente
sua avó. Onde tentaram viver? Em São Francisco de Paula (convivendo com as
sombras de um passado vergonhoso)? Migrando pelo interior do Rio Grande do
Sul, trabalhando em fazendas, procurando estabelecer-se de forma autônoma?
Partindo para Porto Alegre? Não se sabe, mas eram alternativas dificultosas,
disponíveis não só para antigos escravos saídos da prisão, mas para ex-cativos em
geral (Rios, 2005a).
Ser “ex-escravo” no sul do Brasil
No supracitado processo criminal de Bibiana, joga-se constantemente com a
noção de “ex-escravo”. Já teve início a discussão sobre seu caráter ambíguo. Aqui,
pretendo dar continuidade, procurando refletir, afinal, sobre o que significava ser
“ex-escravo” ou ainda, categoria um pouco menos utilizada mas também
importante, “gente de”. Com esse objetivo, tenho como método a localização
desses termos nos processos-crime, sua leitura e interpretação dos sentidos que
assumem.
A dualidade da categoria reside justamente no fato de, por um lado,
explicitar que o cativeiro era algo que havia ficado para trás; que fazia parte de uma
condição anterior não mais existente. Estabelecia, desta maneira, uma distinção
não só perante aqueles que ainda eram cativos, como em relação ao próprio
passado do nomeado, ao incorporar ao seu nome a fronteira entre dois tempos. Se
sua separação não necessariamente era tão grande em termos práticos, certamente
era imaginada em termos simbólicos.
No entanto, esta é a contradição deste termo: ao mesmo tempo em que
demarcava o limite entre dois momentos claramente definidos na vida de um
indivíduo, assinalava as continuidades entre eles. Se a descrição de alguém como
escravo implicava em “ser propriedade de alguém” como aspecto de definição de sua
identidade, assinalá-lo como ex-escravo deslocava para “ter sido propriedade de alguém
a mesma restrição identitária. Ora, se o pós-abolição era um campo de novas
253
possibilidades para antigos escravos, relegá-los à condição de “ex” e defini-los em
função daquele passado, não deixava de ser uma maneira de pretender mantê-los,
na prática, presos a ele. Qual é o futuro reservado àqueles que são o que não há
mais?
Nos processos criminais, esta categoria aparece freqüentemente associada a
uma condição de dependência ou de continuidade de relações com os antigos
senhores, embora nem sempre. Os nomes dos indivíduos identificados por meio
deste termo foram tabulados em um quadro apresentado no Anexo 5, no qual foi
contemplada, além do nome do ex-escravo e da presença da identificação de seu
antigo senhor, a existência de indícios, no processo criminal, de continuidade de
relações de dependência e de trabalho junto ao antigo proprietário. Através dele,
fica evidente a existência de um perfil constante: nem todos que haviam passado
pela experiência do cativeiro foram mencionados nas fontes como “ex-escravos”.
Junto aos seus nomes, sempre veio a identificação de seu ex-senhor. Essa
uniformidade sugere que, apesar de sua especificidade dentre todos os egressos do
cativeiro, “ex-escravos” não constituíam um agrupamento social específico, ou um tipo
diferenciado de pessoa. Os “ex-escravos” inexistiam em abstrato, mas o faziam na
relação com seus antigos senhores. A explicitação desta condição manifestava sua
vinculação de uma maneira mais clara do que os sobrenomes poderiam fazer. Em
suma, a categoria representa antes uma relação inter-pessoal e hierárquica, do que a
expressão de uma solidariedade horizontal. Isso se deu mesmo nos casos em que os
“ex-escravos” não se submeteram a esta hierarquia, isto é, dos (poucos) que não
permaneceram trabalhando ou dependentes dos antigos senhores. O uso desta
categoria para designá-los significava antes a existência de uma expectativa social,
não necessariamente correspondida por todos, do que uma condição real.
Embora as informações tabuladas sobre dependência e trabalho não sejam
uniformes, a tabela indica para uma proporção superior de ex-escravos que
mantiveram vínculos de dependência e trabalho com os antigos senhores, o que é
coerente com o fato de que a maneira como eram designados aponta sobretudo
para as relações com estes. Se considerarmos que a condição de diversos é
desconhecida, e que um dos que não possuíam tais relações não podia fazê-lo por
achar-se na cadeia, tem-se uma nada desprezível proporção de entre 2/3 e 1/2.
254
Talvez tenha sido este o motivo por que indivíduos como Francisco de
Moraes e Elias Carneiro Lobo
390
jamais tenham sido designados nos processos
como “ex-escravos”. Foi possível, através do processo, detectar seu passado escravo
e identificar o nome de seus antigos senhores. Seus contemporâneos, porém,
evitaram associá-los a essa condição; no caso de Elias houve mesmo represálias
àqueles que o fizeram, como visto. Como visto, a autoridade da ex-senhora sobre
Elias Carneiro Lobo era ínfima; além disso, é muito significativo que ele tenha
atacado e ameaçado as testemunhas que, ao depor contra ele, trouxeram à tona seu
passado como cativo
391
. Francisco de Moraes, por sua vez, teve sua ex-senhora
identificada, mas não foi considerado “ex-escravo”. Gozava de boa margem de
autonomia em relação a ela. Foi processado por roubo de gado, e tinha uma marca
própria que substituía a dos proprietários originais, o que denota maior sofisticação
e especialização em um delito que, por si só, era relativamente comum
392
. Não
obstante, um olhar retrospectivo possibilita a percepção do fato de terem passado
pela experiência do cativeiro.
Polissêmica é a categoria “gente de”. Tem difusão mais ampla do que “ex-
escravo”: não apenas quem viveu a experiência do cativeiro podia ser “gente de”
alguém. No entanto, para antigos escravos essa designação podia ser
particularmente marcante, ao reforçar outras formas de identificação e estigmas que
já lhes eram próprios naquela sociedade. O termo designava clientelas
393
em geral e,
390
Ambos são ex-escravos que usufruíam de um grau de autonomia bastante superior ao dos demais.
Já foram analisados nessa dissertação: Elias, no capítulo segundo e Francisco de Moraes, que
possuís seu sinal para marcação do gado apropriado, nos capítulos primeiro e segundo.
391
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891)
392
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, auto 541 (1881)
393
Sem pretensão de aprofundar-me na discussão conceitual sobre clientelismo, convém esclarecer
em que sentido esta palavra está sendo aqui utilizada. Parto da diferenciação feita por Carvalho
(1998) entre mandonismo, clientelismo e coronelismo. O primeiro é uma característica da política
tradicional, caracterizado pelo poder local pessoal e arbitrário. Tem uma tendência histórica
decrescente. O segundo descreve um tipo de relação política, historicamente recorrente, na qual a
relação entre atores políticos é mediada por favores e benefícios públicos, trocados por apoio
político, especialmente através de votos. O terceiro, ao contrário dos anteriores, diz respeito a um
fenômeno histórico datado, característico da República Velha. Sendo assim, sua tendência é de
ascensão e queda entre 1889 e 1930. É claro que o sistema político coronelista possuía características
de mandonismo e de clientelismo: ele marca o momento em que a decadência dos “mandões” criou
uma nova correlação, com o fortalecimento do poder estatal diante do coronel que, assim, via-se
compelido a barganhar com aquele. Deste modo, quando menciono “clientelas”, sempre as imagino
como parte de um sistema coronelista mais amplo. Félix (1996) argumentou, em contraposição a
determinada historiografia que negava sua existência no estado brasileiro mais meridional, que o
mesmo rearranjo de forças ocorreu entre os gaúchos, caracterizando portanto, a existência de
coronelismo no Rio Grande do Sul. No entanto, raras obras dedicam-se a refletir sobre o lugar dos
ex-escravos em sistemas políticos coronelistas. Uma exceção é a de Rios (2005a), que situa, através
255
antes de mais nada, denotava uma relação de pertencimento. No entanto, essa
palavra também guarda um duplo sentido: pode referir-se a uma coletividade, com
a pertença então significando o fazer ou sentir-se parte dela, ou ainda, inter-
individual, apontando, neste caso, se não para posse sobre outro alguém, ao menos
para uma elevada autoridade. Essa divisão, no entanto, é esquemática. Através de
alguns exemplos empíricos, percebe-se que tanto agrupamentos militares quanto
domésticos (principais situações em que se utilizava “gente de alguém”) eram
fortemente hierarquizados. Assim, os vínculos com uma coletividade em certa
medida passavam pelos laços com o líder da mesma. Afinal o “de” sempre se
referia a um indivíduo, nunca a um grupo.
Explico melhor. Em diversos processos, existem referências à “gente” do
Coronel federalista Felisberto Baptista de Almeida Soares, dentre os quais havia
antigos escravos. Após o cerco dos pica-paus debateu-se judicialmente qual dos
lados em contenda havia inicialmente aberto fogo contra o adversário. Gente foi o
termo empregado; ao promover reunião de gente entendia-se que Baptista tinha
como objetivo a deposição do delegado, juntando tantos braços ao seu lado; uma
testemunha chegou a afirmar que o Coronel achava-se desejoso de desencadear
aquele confronto, a fim de pôr à prova o valor de sua gente
394
.
Essas afirmativas enfatizam o caráter fortemente militar que este termo
podia assumir; além disso, demonstram o caráter ambíguo do pertencimento
apontado pela categoria em questão
395
. É duvidoso que estes homens que agiram
juntos desde antes da guerra (embora jamais de maneira uniforme, é corrente a
presença dos indivíduos indiciados pelos mesmos crimes aparecerem juntos nos
processos criminais, em geral sob a proteção de Baptista) não tenham desenvolvido
algum tipo de solidariedade grupal. Todavia, ao encontrar expressão identitária, ela
se manifestou por meio do fato de serem “gente do” coronel. Outro caso indica
também o caráter militar deste termo.
Ao exigir a punição do cabo Jordão Pedroso de Moraes, que em um dia de
eleições (25/1/1888) atritou-se com um “seu” eleitor, Felisberto Baptista de
da idéia de um “pacto paternalista”, a relação com os proprietários daqueles (ex-)escravos e
descendentes que foram bem-sucedidos em tentativas de fixar-se na terra de forma mais estável.
394
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 41 (1893).
395
Fraga Filho (2006 p. 252 e 265) dá um sentido muito mais laboral – referente a trabalhadores
residentes, agregados, e domésticos – a este termo. Creio que esses sentidos se complementam, antes
de se opor. Trata-se de uma diferença de ênfase decorrente das fontes e do contexto local. Mais
adiante, desenvolvo brevemente a noção de “gente da casa”.
256
Almeida Soares desencadeou confronto armado entre sua gente e as forças policiais,
uma vez que o cabo refugiou-se na delegacia. A facção do coronel exigia que o
cabo lhes fosse entregue, o que não ocorreu. Mais do que uma divergência pessoal
entre dois agrupamentos distintos, havia também uma sobreposição entre
atribuições públicas e prerrogativas privadas. Diversas testemunhas afirmaram que
Baptista justificava o fato de ter apelado à sua “gente”, sua milícia particular, pelo
fato da polícia estar se recusando a dar a punição necessária para alguém que
julgava merecedor de castigo. Conforme testemunhas, Baptista teria gritado que “se
esse comandante desmoralizado não tem gente para prender esse negro aço eu
tenho gente” ou, variação, “se o comandante não tem força para pegar aquele
negrinho, eu aqui tenho gente às ordens”
396
. Sim, aquele a quem o coronel queria
capturar era negro, e isso foi observado em um momento de tensão. No entanto,
isso será discutido um pouco adiante de maneira a não interromper uma linha de
raciocínio.
O coronel assinalou a inoperância das forças policiais – ao menos em
relação aos fins por ele desejados – e colocou à disposição do poder público – de
boa vontade ou não – a sua gente, o seu exército particular.
Porém, gente não tinha apenas um sentido bélico, definidor de partes em
contenda. Pelo contrário, é provável que este primeiro significado seja decorrência
do que se passa a desenvolver agora, ou seja, gente apontando para o fazer parte de
um clã, uma casa, uma família. Nesse sentido, lutar militarmente ao lado de sua
gente é na maior parte dos casos antes uma decorrência desta situação do que algo
que tenha motivações pura e simplesmente autônomas. Bem entendido, como
discutido no capítulo anterior, não existe relação de causa e efeito entre ter sido
escravo de alguém e vir a compor sua “gente” ou suas forças particulares.
No processo criminal que envolveu Bibiana, depois que Dona Castorina
Dutra faleceu, os familiares da vítima acharam por bem incendiar as roupas da
agressora, talvez em uma tentativa de compensação simbólica pela perda sofrida:
utilizaram, para destruir suas vestes, do mesmo meio por ela utilizado para tirar-lhe
a vida. O viúvo levou novas roupas para Bibiana na prisão, o que confirma a
acusação de que estivesse mantendo alguma relação com esta. O que cabe observar,
contudo, é que mesmo nesse momento de absoluta ruptura, foi à “gente dela ex-
396
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, processo 619.(1888)
257
escrava” que se atribuiu a queima das vestimentas
397
. Uma testemunha afirmou que
ela teria empregado este termo que, assim, no início dos anos de 1890 não estava
em desuso, o que é coerente com os diversos requerimentos nos quais, até meados
da década, assinou como ex-escrava. Da parte dos Dutra, contudo, a situação era
diferente, pois desde o início procuraram desvincular-se dela o máximo possível,
jurídica e simbolicamente (Weimer, submetido a apreciação).
Uma testemunha no processo de Elias Carneiro Lobo
398
, por seu turno,
deixou bastante clara a idéia de pertencimento subjacente à noção de gente. Em seu
caso, não a autoridade de um líder militar sobre sua “gente”, seus milicianos, ou de
um antigo senhor sobre seus ex-escravos, mas sim de um pai sobre sua filha.
Segundo Manoel Vitorino Pereira, ele sabia dos fatos ocorridos na casa da ex-
senhora de Elias porque, quando soube que ali ele chegava, “ela testemunha
mandou gente de sua pertença, que era sua filha Maria”. Sua filha não apenas lhe
“pertencia”, fazendo parte de “sua gente”, como também não foi considerada apta
para depor em juízo, tendo o poder paterno como seu porta-voz mesmo tendo sido
ela quem testemunhou o ocorrido
399
.
As casas tinham suas gentes – e isso se dava tanto nas mais humildes como
nas privilegiadas. Na casa de Dona Clarinda de Córdova, quando Elias Carneiro
Lobo foi pegar pinhões e disse à ex-senhora e à irmã que não informassem a
ninguém sobre seu paradeiro, dirigiu-se à gente da casa, segundo os termos
utilizados por diversas testemunhas
400
. Quando o ex-escravo Adão, conforme seu
depoimento, encontrou-se com o ex-escravo Tristão “indo da roça para o
campo”
401
, indagou a ele sobre como ia “sua gente”. Certamente o depoente
deveria estar se referindo à família ou unidade doméstica de Tristão. Isso indica
que, embora o termo “gente” tenha conotações hierárquicas, ao estabelecer limite
claro entre quem era “gente” e “de quem” essa “gente era”, ela não era exclusiva
dos dominantes: pelo contrário, os subalternos o conheciam e utilizavam.
Conheciam as hierarquias, também.
O exemplo de Maria Caetana é ótimo para perceber como tais aspectos
eram multifatoriais, e como havia relações humanas complexas por trás destes
397
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 43 (1891).
398
Discutido no capítulo segundo.
399
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 17 (1891).
400
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 17 (1891).
401
Ambos eram testemunhas no processo criminal que em breve será objeto de análise (sobre o
assassinato do contratado Manuel).
258
rótulos. Segundo seu relato, o filho do coronel Olivério da Silva Esteves encontrou
seu corpo e o de Veríssimo quando se dirigiu à sua casa, por desejar que o garoto
coletasse cinzas enquanto ele colhia pêssegos. Sobre este ponto de vista, Maria
Caetana e Veríssimo claramente poderiam ser considerados “gente” dos Olivério
Esteves, o que pode ser justificado por argumentos anteriormente discutidos.
Contudo afirmou que, quando não obteve resposta para seus chamados, ali entrou
para despertar a “gente da casa” que julgava dormir. Deparou-se com os corpos.
Parece-me, então, haver um reconhecimento tácito de que, ao menos naquele
ambiente doméstico, constituíam eles uma “gente”. Mesmo que sujeitos à presença
invasiva do ex-senhor, a testemunha sentiu necessidade de justificá-lo
402
.
Em suma, o termo “ex-escravo” guarda sentidos mais restritos do que os
amplos significados que “gente de” pode atingir, este último tranqüilamente
utilizado em referência a homens que jamais passaram pela experiência do
cativeiro. Em relação aos que o fizeram, os significados demarcados por tais formas
de denominação apontam claramente para relações de dependência. Contudo, isso
jamais é absoluto: alguns conseguiram encontrar sentidos alternativos e construir
noções diferenciadas dos termos com que se pretendeu enquadrá-los.
A imensa família “de tal”
Em um processo criminal
403
que será melhor esmiuçado adiante, se
investigava a morte de um ex-escravo “contratado” de nome Manuel. As
diligências foram desencadeadas por petições de sua ex-senhora, Maria Fogaça, e
por sua irmã, Sebastiana Maria do Nascimento. Manuel achava-se, no momento do
crime, na casa de Senhorinha Cândida Pimentel, ao visitar sua amásia Ana Maria.
Criou-se, assim, uma situação de desconforto entre D. Senhorinha, por um lado, e
D. Maria Fogaça e Sebastiana, por outro: afinal, “seu” contratado e “seu” irmão
achavam-se sob o teto daquela no momento do homicídio. Aquela, por seu turno,
queria eximir-se daquela responsabilidade. Criou-se uma polarização que em
seguida será devidamente analisada. Por ora, interessa dizer que, em sua petição,
Maria Fogaça referia-se à proprietária da casa onde morrera Manuel como
“Senhorinha de tal”. Em contraposição, nenhuma das testemunhas favoráveis a
402
APERS – I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 3, auto 70 (1890).
403
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 34 (1887).
259
Maria Fogaça chamou a irmã de Manuel pelo nome completo: era sempre
“Sebastiana de tal”.
Não há a menor dúvida de que a partícula “de tal” era empregada de forma
a desqualificar aquele a quem se referia. A rigor, era utilizada quando o sobrenome
de alguém não era conhecido. Contudo, sua carga semântica extrapolava isso em
muito, tendo em vista todos estigmas sociais – de desenraizamento, vagabundagem,
etc – que poderiam acompanhar aqueles que possuíam apenas seu prenome.
Parece que a categoria “ex-escravo” estava para o emprego do sobrenome
senhorial assim como a categoria “de tal” estava para a ausência do mesmo.
Explicando melhor: ser denominado de “ex-escravo” de alguém era levar a
conseqüências extremas e explícitas vínculos sutilmente sugeridos ao designar
alguém com o sobrenome do ex-senhor; igualmente, ser “de tal” era uma forma
reforçada de expressar os estigmas delimitados por não ter um sobrenome. A
situação dos que não o possuíam era assinalada pela ausência de um elemento
morfológico do nome. O termo “de tal”, por seu turno, indicava uma condição
vulgar ou infame de forma visível. Se aqueles não eram ninguém, estes eram
alguém que não é ninguém. Ou em outros termos, uns eram “ninguéns” por não
serem “alguém”, outros eram “ninguéns” porque assim foram definidos: eram “de
tal”.
Todavia, não basta simplesmente afirmar que a partícula “de tal” quase
sempre era usada de modo a reforçar estigmas. Tão importante quanto este fato é
tentar investigar quais eram os significados que ela assumia, e de que maneira
imputava categorias sociais. Para Papali (2003, p. 159), no caso de mulheres
pauperizadas que constituíam parte em ações de tutela, o emprego da categoria de
“tal”, a eventual condição de ex-escravas, a menção à “cor”, e, principalmente, a
ausência de recursos, eram ferramentas retóricas utilizadas como instrumentos para
caracterizá-las como inabilitadas para ficar com suas crianças. Desta maneira, seria
antes de qualquer coisa a pobreza o que os uniria.
Embora a autora demonstre que o termo em questão fosse utilizado na
caracterização daquela situação social, é necessário ponderar que a dimensão
política da designação “de tal” extrapola a dimensão sociológica: tinha importantes
contornos políticos. Sebastiana, em sendo irmã de Manuel, provavelmente era
pobre, descendente de escravos, “negra”, “preta”, “parda” ou “mulata” (mesmo
que em momento algum se refiram a ela utilizando categorias de “cor”,
260
provavelmente por ser livre). Seu caso corresponde ao perfil traçado por Papali, a
não ser pelo fato de não estar se empenhando para permanecer junto a uma
criança. Mas eram inúmeras as pessoas “de tal” do sexo masculino, sem contar
indivíduos de situação econômica e social distinta, como Senhorinha. Ex-
proprietária de escravos, certamente tinha condições mais abastadas. Ainda assim,
para sua adversária em uma disputa jurídica, era “de tal” e pronto.
Provavelmente também era branca, o que sugere que esta forma de
estigmatização tinha um caráter supra-étnico-racial. Estava acima desta clivagem,
embora não fosse a ela alheia. Nomear alguém desta maneira era, sobretudo, uma
maneira de depreciá-lo. O termo “de tal” alimentou ou reforçou estigmas raciais,
mas de maneira alguma se confundiam ou implicavam
404
necessariamente um no
outro. Senhorinha era “de tal”. Havia alemães de tal e italianos de tal
405
, por
exemplo. A “imensa família de tal” era grande e inclusiva.
Goffman (1988), ao discutir o conceito de estigma
406
, estabelece a distinção
entre sujeitos “desacreditados” e “desacreditáveis”. Em alguns seu estigma está
visível, perceptível e em outros, latente, secreto. No primeiro caso, trata-se, para o
indivíduo, de lidar com seu estigma e com a convivência com os não-
estigmatizados; no segundo, de manipular as informações que possam revelar aos
demais para manter, ouo, em invisibilidade seu estigma. Ser “de tal” não é uma
característica intrínseca aos sujeitos sociais, que possa em um primeiro momento
ser manipulada, ocultada ou acionada por eles, mas uma imputação exterior.
Assim mesmo, imaginar a existência de sujeitos “desacreditados” ou
“desacreditáveis” pode ajudar a compreender porque alguns eram sempre ou quase
sempre “de tal”
407
, e em outros essa designação se fazia presente apenas em
momentos críticos.
404
Carlota de tal. APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 2
(1891).
405
Domingos e Pedro de tal. APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1
processo 23 (1890).
406
Uma marca social profundamente depreciativa que cria uma discrepância entre uma identidade
social “virtual” e outra “real”; respectivamente, os atributos que lhe são socialmente exigidos e
aqueles que o indivíduo, de fato, possui.
407
O melhor exemplo que encontrei para ilustrar o caso de indivíduos que eram “de tal” em virtude
de serem desacreditados é o de Venceslada de tal. Nos únicos momentos em que foi nomeada de
forma diferente, foi chamada de a mulher Venceslada ou apenas pelo prenome. Diversos indícios no
processo sugerem que se tratava de uma prostituta, embora tal fato não seja mencionado
diretamente. Foi denunciada porque no dia 23/2/1889 “ia a denunciada em companhia do Cabo
d’Esquadra Porfírio Lopes de Oliveira, com quem era amancebada, da casa de Luciana de tal, na
extremidade da rua principal da Vila de São Francisco de Paula de Cima da Serra, em direção à
261
Peço ao leitor um pouco de paciência por retornar uma vez mais à história
de Elias Carneiro Lobo
408
. Não posso evitá-lo, porque seu caso permite abordar
pelo menos dois aspectos aqui postulados. O primeiro refere-se ao momento em
que, de forma inesperada, nosso personagem viu seu passado escravo – um estigma
até então mantido em silêncio – vir à tona. De um momento para outro, ele passou
de indivíduo desacreditável para desacreditado. Os responsáveis por isso sofreram
perseguições da parte dele. Segundo, parece ter havido por parte da maioria das
testemunhas um constrangimento em explicitar sua condição social anterior. No
entanto, algumas, ao evitá-lo, o chamaram de “Elias de tal”, forma de designação
também depreciativa, mas que no caso estava sendo utilizada como meio de
ocultamento de estigma ainda maior. Para ser mais exato, este termo desagradaria
Elias muito menos do que aquele que o levou a perseguir testemunhas.
Havia indivíduos “de tal” que, como ele, foram assim caracterizados em
virtude de crimes a eles atribuídos ou praticados, antes do que por uma situação de
pauperização, simplesmente
409
. Aos olhos dos demais, a presença em seus nomes
da partícula “de tal” e de eventuais alcunhas nos títulos de réus poderia causar
ojeriza. Entre eles, porém, os “de tais” poderiam ter sido perfeitamente
naturalizados, ignorados ou mesmo positivados (possibilidades admitidas por
Goffman).
Papali, por seu turno, ao fazer uma associação tão direta entre uma forma de
nomear e determinada condição sócio-econômica, privilegia o aspecto
classificatório da nomeação, olvidando-se, contudo, das significações negativas que
ela pode impor. No caso da “imensa família de tal”, ainda, percebe-se um efeito
identificador às avessas: ao fazer vala comum de todos assim designados, as
possibilidades de visualizar com nitidez individualidades ficam embaçadas.
Obviamente, isso realimentava significações e classificações negativas, mas
facilitava, para os que não pretendiam ser encontrados, evitar que isso acontecesse.
outra extremidade, e pelo caminho dirigia os maiores impropérios contra o mesmo cabo que tudo
fazia para contê-la em tão indecente procedimento e a empurrou para seguir para casa, quando ela,
puxando de uma navalha, lhe fez, de surpresa, entre outros, o ferimento mortal constante do auto de
corpo de delito a fls. 4.” APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1
auto 24 (1889), Denúncia apresentada pelo promotor público Antônio Nunes Jesus Pereira, f. 2.
408
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891).
409
Não nego, que fique claro, a óbvia ligação social entre uma situação social de carência e
designações pejorativas, mas indago sobre outros aspectos pelos quais o emprego do termo “de tal”
remetia no imaginário social de antanho. A criminalidade muitas vezes estava ligada à
pauperização, mas não eram decorrências necessárias uma da outra.
262
Como esse aspecto já foi analisado, não cabe ser repetitivo. Conheçamos, portanto,
os apelidos e alcunhas.
Do apelido à alcunha, da alcunha ao apelido.
Retomando a história de Manuel, na noite do dia 11 de novembro de 1887,
ele dirigiu-se à casa de Senhorinha Cândida Pimentel. Ia encontrar-se com sua
amásia Ana Maria, filha de Joana, escrava daquela. Como ele não retornou mais,
sua irmã, Sebastiana Maria do Nascimento, para lá se dirigiu à sua procura.
Chegando ali, descobriu que Manuel tinha sido atacado, recebendo tiros de dois
homens. Dona Maria Trindade Fogaça talvez se sentisse lesada em direitos de
propriedade (dos quais não mais gozava), solicitando assim à polícia investigações
para esclarecer se ele havia sido, de fato, assassinado, e por quem
410
. Parecia
inconformada com a idéia de seu falecimento, ou mesmo de haver suspeita de sua
sobrevivência.
O episódio foi testemunhado pela amásia da vítima e por Gertrudes, criada
de Senhorinha Cândida Pimentel. Ambas relataram terem presenciado dois
indivíduos invadirem a cozinha da casa de Dona Senhorinha dando tiros à queima-
roupa em Manoel. Ana Maria confirmou estar amasiada com a vítima e afirmou
que ele se encontrava de pouso ali. No dia 17 de novembro, em depoimento para
inquérito policial, foram ouvidos também “Adão Alves de Araújo, ex-escravo do
finado Capitão Demétrio Alves de Araújo”, e por Antônio José de Cândido, e
Leonel Gomes de Morais.
Com a judicialização da causa, em janeiro de 1888, ocorreram novas oitivas
de testemunhas. Além dos já mencionados, também foram interrogados Tristão
Fogaça, liberto, e Joana, mãe de Ana Maria. Entre um momento e outro,
aconteceram variações nas maneiras como as testemunhas referiram-se umas às
outras (que podem ser acompanhadas por meio do quadro no anexo 6). É isso que
se pretende sublinhar ao contar esta breve história. Quais critérios presidiram tais
modificações?
Verifica-se que, nos registros oficiais, há uma série de mudanças nas formas
como foram oficialmente referidas algumas testemunhas. Ana Maria, por exemplo,
ao tempo do inquérito policial era “filha da escrava Joana” e, dois meses após, era
410
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2 auto 34 (1887).
263
classificada simplesmente como “livre”. Embora não exista uma transformação em
seus estatuto legal – livre era e livre permaneceu – ao menos ele via-se melhor
reconhecido, já que a maneira de nomeá-la passou a aproximá-la mais de um futuro
livre do que de um passado escravo. É verdade que a amásia de Manuel foi
considerada, apesar de livre, “filha da ex-escrava Joana de Dona Senhorinha”. Em
suma, a “mancha” do cativeiro se insinuava novamente sobre seu nome – com
direito a identificação da ex-senhora – mesmo quando sua condição de “livre” foi
reconhecida de forma direta e explícita pelo aparato jurídico imperial.
Não obstante, a maneira como a filha e sua mãe Joana foram nomeadas
indica, agora sim, ganhos práticos e não apenas simbólicos. Antes, aquela era “filha
da escrava”; depois sua mãe era “ex-escrava” ou mesmo livre. Sempre constava, no
entanto, a ressalva de que pertencera a D. Senhorinha, demarcando o caráter
recente de sua libertação (entre novembro e janeiro). Ao contrário de sua filha, a
modificação do nome de Joana não implicou tão somente em ganhos simbólicos,
mas está envolvida também com a conquista de sua liberdade. Se as cartas de
alforria estavam cercadas de simbolismo, é evidente que as mesmas implicavam,
ainda em uma transformação no seu estatuto legal e social.
Não apenas a nomeação e estatuto jurídico destas testemunhas tiveram
modificações de um momento a outro. Isso aconteceu também com seus
depoimentos. O testemunho de Ana Maria foi o que se alterou de forma mais
radical entre um momento e outro. Inicialmente, ela afirmou ter visto os indiciados
(Marcos de tal e João Fogaça, conhecido como Jango) matarem a vítima. Relatou
também que foi ameaçada de ser surrada e degolada caso contasse para alguém. Já
no momento do processo penal, não apenas negou ter visto tiros, como afirmou
desconhecer se Manuel realmente estava morto. Indagada sobre o motivo pelo qual
acusara Marcos e Jango, afirmou que sofreu pressões nesse sentido por parte de
Dona Trindade, ex-senhora de seu amásio, e de Sebastiana, irmã do mesmo. A
testemunha não apenas negou as ameaças anteriormente relatadas como também
previamente eximiu-se de responsabilidade por qualquer outra acusação que
porventura pudesse ter feito:
Disse que de nada mais sabe a respeito do fato denunciado e
se mais alguma coisa disse perante o sub-delegado que
264
comprometesse aos denunciados, foi como disse obrigada pelas
ameaças de Dona Trindade e Sebastiana.
411
As escusas da testemunha despertam estranhamento e suspeita, já que
negavam qualquer outra coisa que pudesse ter dito ao delegado passível de
prejudicar os acusados, mesmo que não soubesse de que se tratava, ou tentasse
fazer crer não saber. Parecem, digamos assim, esclarecimentos por precaução, o
tipo de desculpas que se tornam suspeitas na mesma medida em que são
desnecessárias.
Sua mãe Joana, por sua vez, depôs apenas judicialmente, corroborando a
versão da filha. Gertrudes (cuja nomeação não sofreu alterações) trabalhava na casa
de Senhorinha Pimentel junto com Joana. Durante o inquérito apresentou o
mesmo relato de Ana Maria, apenas afirmando não ter reconhecido os agressores.
Posteriormente, afirmava que só dera aquele depoimento porque Sebastiana lhe
teria ameaçado fazê-la contar à força para a polícia. Por fim, Antônio José de
Cândido, outro depoente, também mudou de um testemunho no qual acusava
Marcos e Jango para outro no qual dizia que a única pessoa que atribuía o crime
aos denunciados era a irmã da vítima.
Nesta mudança generalizada de depoimentos certamente houve alguma
forma de pressão, sendo impossível, porém, definir se as ameaças verdadeiras
foram as atribuídas a Sebastiana e Dona Trindade, as imputadas a Marcos e João
Fogaça, ou ambas. O que é indubitável é que a partir de determinado ponto as
testemunhas em geral mudaram suas afirmativas a respeito do crime, não mais
corroborando a versão da irmã do denunciado, que caíra em descrédito. É
perceptível, ainda, que nessas redefinições de versões houve uma modificação das
representações adotadas a respeito dos envolvidos e, particularmente, da própria
vítima, cujo apelido, em curto intervalo de tempo, viu-se transformado em
alcunha
412
.
411
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 34 (1887),
depoimento de Ana Maria, f. 26v.
412
Adoto a distinção empregada por Magalhães Jr (1974, capítulo 12), no qual o termo apelido
remete a formas de referência familiar e afetiva, enquanto alcunha possui um caráter mais
contundente e ofensivo. Esta distinção permite discriminar rótulos positivos e negativos, e o termo
alcunha efetivamente, na documentação compulsada, tende a destacar palavras de carga semântica
negativa. O Dicionário de Antônio de Moraes Silva, de 1813, assim definia:
Alcunha – “Apelido, sobrenome. [...] Hoje diz-se de algum apelido injurioso alusivo a algum defeito
da pessoa. Antigamente era indiferente.” SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua
Portuguesa. Tomo 2.
265
Manuel foi denominado no inquérito policial por meio de critérios e termos
que evidenciavam relações neutras ou mesmo com algum grau de afetividade e
familiaridade. Antagonismos e solidariedades inter e intra-grupais implicam em
formas diferentes de nomear um sujeito (Weimer, 2005). Nos termos de Zonabend
(1980, p. 16), como visto, as formas de nomeação variam em função do contexto de
locução.
Aqueles que possuíam extrato social mais próximo a Dona Maria Trindade
Fogaça, para quem prestava serviços (como Antônio José de Cândido ou
Senhorinha Cândida Pimentel), limitaram-se a designá-lo como “contratado
Manuel”. Para estes, pertencentes aos grupos sociais dominantes, ou deles
próximos, os vínculos contratuais que o prendiam à antiga senhora bastavam para
sua individualização. Por seu turno, seu apelido – Mandori
413
– foi lembrado
apenas por testemunhas de extrato social similar ao dele (sua amásia Ana Maria,
Gertrudes, Joana, Adão Alves de Araújo). Alguns se referiram a ele pela
composição deste com seu nome e a condição de contratado, eventualmente
lembrada. Para duas testemunhas do inquérito policial, Adão Alves de Araújo e
Gertrudes, seu apelido foi suficiente.
Essa diferença leva a crer que entre os últimos havia uma maior intimidade
com Manuel – o suficiente para o conhecimento e para a utilização do apelido ser
compartilhada pelo grupo social
414
. Esta relação não era necessariamente de estima:
Joana, mãe de sua amásia, o descreveu em seu depoimento de 17/1/1888 como
um homem “malcriado, ladrão e desrespeitador de famílias”. O pertencimento a
um grupo implicava no compartilhamento de determinados códigos e uma situação
econômica, social e cultural em comum ou semelhante. Não acarretava
necessariamente em fraternidade, e muito menos excluía a existência de
animosidades
415
.
Durante o processo, porém, ele recebeu apodos depreciativos, tais como
“homem de muitos inimigos”, “dado ao vício do furto”, “malquisto por ser muito
413
Também grafado Manduri, Mandory ou Mandorim.
414
Zonabend destaca que os apelidos costumam ser de conhecimento de um grupo, constituindo um
código desconhecido pelos estrangeiros. (Zonabend, 1995 p. 269)
415
Os apelidos podiam funcionar, ainda, não em função do reconhecimento grupal mas, através da
auto-atribuição, como uma máscara, de forma a evitar este reconhecimento. Moreira (1993 p. 92,
101-102) identifica que, entre prostitutas (graças ao prestígio da profissão) a adoção de pseudônimos
era comum. Da mesma maneira, entre marinheiros, o uso de apelidos fazia mais difícil seu
reconhecimento pela polícia.
266
malcriado, ladrão e desrespeitador de famílias”. Que fique claro que ele continuou
a ser denominado da mesma maneira de antes – pelo apelido, pelo nome e pela
condição de contratado. No entanto – abstraindo o fato da maior parte dos ultrajes
lhe terem sido dirigidos por sua sogra, e de ser sabido de todos que freqüentemente
as relações entre sogra e genro não são harmoniosas – esses nomes não mantinham
o mesmo conteúdo.
Agora, embebidos de adjetivações tão radicalmente distintas, o termo
Mandori mantinha seu papel de identificador daquele indivíduo, mas lhe atribuía
novos significados, classificando-o, por conseguinte, de forma diferenciada. Tem-
se, assim, que as redefinições positivas nas maneiras de nomear as testemunhas, à
medida que mudavam seus depoimentos, era inversamente proporcional às
mudanças ocorridas na denominação de Manoel – cujo próprio caráter de vítima
foi posto sob suspeição, quando se afirma que ele “se diz assassinado”.
Realmente desconheço o porquê desta correlação, quais foram os motivos e
constrangimentos que levaram a essas alterações de narrativas e representações.
Tampouco cabe, aqui, a solução de um crime de há mais de século; mas sim
assinalar alguns meandros inerentes à percepção de identidades sociais por meio de
processos-crime. As formas de identificação e nomeação estavam sujeitas às
flutuações das relações de poder e à – nem sempre acessível – micropolítica dos
processos criminais.
A análise realizada não permite – infelizmente – saber o que Ana Maria – e
muito menos Manuel – pensavam sobre si (ou um sobre o outro), mas nos leva a
tentar entender os motivos pelos quais em um contexto ela foi considerada “filha da
escrava” e em outro ela era “livre”
416
. Ou ainda, quando Manuel era, simplesmente,
Manuel Mandori, e quando era, por exemplo, “ladrão”. Busca-se “tentar
compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os diversos
agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso” (Chalhoub, 2001 p. 40)
417
.
Sendo assim, o mais produtivo não é indagar “quais são” as identidades, e sim
“como elas funcionam”.
***
416
O próprio fato desta condição estar assim destacada já significa alguma coisa, porque a maioria
dos homens livres não necessitava apresentar-se como tal.
417
O autor assinala a influência de Geertz, e suas “interpretações de interpretações” ao formular tal
proposta. Cf. Geertz, 1989.
267
Outro processo permite entrever facetas diferentes questão. Como discutido
no capítulo anterior, a casa de Bento Soares, genro do coronel federalista Felisberto
Baptista de Almeida Soares foi atacada pela polícia republicana. Como
combateram a investida, abriu-se um processo criminal, no qual foram denunciados
por resistência à prisão. Os policiais justificaram sua investida argumentando que
desejavam capturar “criminosos célebres” que ali se encontravam
418
. Esses eram
pródigos em alcunhas: dentre 14 indiciados, metade foi nomeada assim (Candinho
Bahiano, Chico Moisés, Hilário Caroço, Chico Meia-Língua, mulato [às vezes
negro] Pio, negro Cachiche, Joaquim Macacão). Além disso, um certo “Manuel
Espoleta” e outro chamado de “Joaquim de tal, conhecido por Quinquim” foram
eventualmente citados como participantes da resistência ao cerco, embora não
tenham sido indiciados. Certamente, as maneiras como foram identificados eram
constituintes de sua “celebridade”. Eles foram mencionados de forma quase
invariável nos depoimentos, provavelmente por terem uma atuação notória na
região, popularizando seus apelidos. O único explicitado como ex-escravo era
André; como visto no capítulo anterior, outros mais se envolveram de diferentes
formas nos conflitos que assolaram o Rio Grande do Sul na década de 1890.
Uma personagem que obteve formas variadas de referência foi o “mulato
Pio”. Mencionado 18 vezes, foi assim designado em 11 ocasiões. Duas
testemunhas, Cristóvão Pereira Soares e Adão Fortunato Soares, sabiam seu nome
completo, “Simplício Moreira dos Santos”. Outra testemunha, Florêncio Correa de
Mattos, a ele referiu-se como “Simplício de tal”, “conhecido por negro Pio”. Era
um jornaleiro, e fora recrutado para a reunião em casa de Baptista. A proximidade
social deveria facilitar, a ele, conhecer seu prenome: a elevada difusão do apelido
ocultava o prenome, que assim, era conhecido somente pelos mais chegados. Ao
contrário de Manuel Mandori, porém, cujo epíteto representava uma forma de
reconhecimento e proximidade dentro de um grupo, no caso em questão as
alcunhas eram ao mesmo tempo um estigma
419
– de criminosos, desenraizados,
desprovidos de vínculo – e um veículo de notoriedade.
É uma boa oportunidade para dialogar com Zonabend: a autora lembra que
aqueles desprovidos de nomes eram classificados como inferiores hierarquicamente,
418
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 41 (1893).
419
Sobre a discussão conceitual e teórica sobre estigma, ver Goffman (1988).
268
reconhecidos pelas mesmas marcas negativas e pela condição marginal. Na
ausência de um patronímico, eram conhecidos por meio de prenomes ou sobriquets
(apelidos) (Zonabend, 1995, p. 261). Contudo, os casos analisados sugerem que
talvez não esteja em jogo ter ou não ter um nome próprio, ou um sobrenome, mas
sim a capacidade de fazê-lo reconhecer pelos demais. Além de tudo, é necessário
fazer uma observação adicional às ponderações de Zonabend: ao centrar-se na
percepção dos aldeões sobre os indivíduos “marginais”, a autora esquece que os
critérios de validação e positivação de uma maneira de nomear eram variáveis.
Obedeciam a critérios políticos e sociais.
Isto é destacado também por Goffman (1988 p. 56), que observou a
possibilidade da existência de signos portadores de informação social, e o nome
nada mais é do que um, “cujo significado varie de um grupo para outro, ou seja,
que a mesma categoria seja diferentemente caracterizada”. O exemplo utilizado
pelo autor não deixa de ser análogo ao dos apelidos empregados pelos “bandidos”;
refere-se a ombreiras utilizadas para identificar, em uma prisão, aqueles em que se
reconhecia tendência à fuga: elas tinham um significado negativo para os guardas,
ao mesmo tempo em que, para seu portador, eram um sinal de orgulho diante dos
demais prisioneiros.
Se para os republicanos “Chico Meia-Língua” e o “mulato Pio” eram
bandidos perigosos, cuja própria menção nominal bastava para provocar temor,
entre os federalistas eles podiam ser importantes aliados no combate ao inimigo.
Para famílias de proprietários de terra e gado, seus nomes talvez estivessem
associados a degolas, roubo de gado, assassinatos e outros atos ilícitos; para aqueles
que desejavam seguir seu modo de vida, sua autonomia, sua valentia, seus nomes
deveriam inspirar admiração e entusiasmo.
Enquanto a maioria considerava Pio “mulato”, cinco testemunhas
referiram-se a ele como “negro”. O mesmo aconteceu com André, ainda que
apenas uma vez. Essa diferença de percepção das “cores” é social, e não
epidérmica. Mattos sustenta que elas conformavam lugares sociais; contudo, desde
meados do século XIX e de forma acentuada no fim da escravidão, instituiu-se uma
“ética do silêncio” na qual delas não se falava, em prol de uma igualdade formal
(Mattos, 1997 e 1998; Mattos e Rios, 2005). O termo “negro” carregava uma série
de estigmas, já que associado à escravidão (Mattos, 1998; Wissenbach, 1998;
269
Moreira, 2003)
420
. É nesse sentido que se deve interpretar a qualificação de alguns
indivíduos através dessa palavra, quando a maioria das outras testemunhas não o
faz. A “cor” desaparece progressivamente, mas ela também retorna em momentos
de tensão mais intensa, como pretendo demonstrar.
A testemunha que utilizou a palavra “negro” para designar André também o
fez com Pio. Trata-se do cabo da Brigada Militar Pedro Pereira dos Santos: alguém
comprometido com a repressão aos federalistas. Manoel Maria Lins também era
brigadiano, e, assim, também em situação de antagonismo. Aurélio Bianchi,
lavrador, se referiu desta maneira a Pio, e era participante do cerco. Dos cinco que
qualificaram Simplício através de uma palavra então considerada ofensiva pela
carga semântica que a remetia ao cativeiro, três eram adversários políticos em um
momento grave de enfrentamento militar. A “cor” era rapidamente “sepultada”,
mas qualquer conflito mais agudo podia ser suficiente para sua ressureição.
O sepultamento da “cor” e a ausência dos africanos
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora
saiu da sala a providenciar a arrumação das meninas, Negrinha
esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura
de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, nem ânimo
de pegá-la.
As meninas se admiraram daquilo.
- Nunca viu boneca?
- Boneca? – repetiu Negrinha. – Chama-se boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
- Como é boba! – disseram – E você como se chama?
- Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso. (Lobato, in
www.releituras.com/mlobato_menu.asp
) <acessado em
19/3/2007>
420
Recentemente, a partir da ação política do movimento negro, esta palavra assumiu um caráter de
positividade, no lugar das anteriores significações pejorativas.
270
No 1
o
livro de nascimentos do registro civil de São Francisco de Paula
421
foram anotados 496 nascimentos, abrangendo a década entre 1893 e 1903. Dentre
estes, havia uma menina (de nome Eraci Monteiro, nascida em 23/3/1902 e
registrada em 1
o
/4 do mesmo ano, filha natural ) de “cor” parda, e mais 495
crianças cujo registro de “cor” não se julgou relevante realizar. Aliás, de Adelina
Maria da Conceição, mãe de Eraci, esta informação não está disponível, e
tampouco de nenhum dos pais de todas aquelas crianças. Duas mães foram
referidas como mulatas: nossa já conhecida Eva da Silva
422
, por ocasião do registro
de Francelino (22/12/1901, nascido em 23/12/1901 – sic); e Domingas Maria,
mãe de Manoel José, registrado em 15/11/1902. Em período similar, (1896-1905),
foram assentados 110 falecimentos no 1
o
livro de óbitos do registro civil de São
Francisco de Paula
423
. Destes, 72 finados não tiveram mencionadas suas “cores”.
Os demais se dividiam em 29 brancos, 3 mulatos, 2 pardos, 4 pretos. Quanto aos
matrimônios, sequer incluí o campo “cor” dos noivos no banco de dados que
montei e cadastrei. E, de fato, ele não foi necessário em nenhum momento.
Tabela 13 – Presença ou ausência do quesito “cor” nos registros de nascimento e óbito
Total Sem registro de
“cor”
% Com registro de
“cor”
%
Nascimentos 496 495 99,79 1 0,2
Pardos - 1 0,2
Óbitos 110 72 65,45 38 34,54
Brancos – 29
Mulatos – 3
Pardos – 2
Pretos – 4
Não-brancos
424
-9
26,36
2,72
1,81
3,63
8,18
Fonte: RCSFP, livros A-1 (1893-1903) e C-1 (1896-1905)
421
RCSFP – livro A-1 (1893-1903).
422
Referida na parte inicial deste capítulo. Aqui, me detive sobre os nascimentos de meninos e
meninas em sua família. Ver supra.
423
RCSFP – livro C-1 (1896-1905).
424
Tenho consciência de que mulatos, pardos e pretos não se pensavam como pertencentes ao
mesmo grupo e que eram hierarquizados entre si. Não definiam, unidos, sua identidade em
contraposição ao branco. Adoto estas palavras como termo analítico com a finalidade de avaliar seu
peso numérico nos registros. Como termo êmico, “não-branco” realmente não tem valor algum.
271
Rios (1990) e Mattos (1998) identificaram nos registros civis fontes nas quais
as “cores” foram registradas de forma mais sistemática naquele período de
silenciamento desta informação. Mas, ao contrário do meio rural fluminense, em
São Francisco de Paula as “cores” não foram registradas, como a tabela acima
demonstra. Apesar da decepção de ver que, assim, seguiam limitadas as
possibilidades de apreciação mais detalhada do emprego de categorias de “cor”, o
material que eu tinha em mãos era precioso para a compreensão de mecanismos de
construção da invisibilidade étnica na serra gaúcha.
Alguns problemas se colocaram: a) esta peculiaridade dos registros civis em
São Francisco de Paula implicou em um silenciamento das “cores” mais rápido e
brusco do que em outros lugares do país? se sim, porque isso aconteceu? b) porque
os registros de “cores” são ínfimos? c) porque os registros de “cores” de mulatos,
pardos e pretos o são ainda mais? Creio que, em termos práticos, não
necessariamente a invisibilidade da “cor” tenha sido mais célere, mas certamente o
registro escrito deste fenômeno o foi, e isso pode ter a ver com uma tendência
demográfica, mas também com uma padronização dos critérios para (não) apontar
as “cores”.
Também em outras regiões do país as fontes civis evidenciam variações
inter-geracionais quanto à “cor” registrada. Mattos sustenta que havia uma
tendência a, no pós-abolição, filhos e netos de “negros” serem registrados como
“pardos”; ela interpreta esta transformação não como um esforço de
branqueamento, mas de apagamento da lembrança do cativeiro à qual aquele termo
estava associado. Mais para o fim do século XIX, percebe-se o termo “negro”
ressignificado, relacionado não mais (explicitamente) à escravidão, mas aos
nascidos livres sem evidências de miscigenação (Mattos, 1998 p. 299).
Já em São Francisco, o termo “negro” sequer aparece nos registros civis; fez-
se tabula rasa ao transformar quase todos em indivíduos sem qualificação de “cor”.
Como veremos, porém, o silêncio e a invisibilidade a esse respeito não implicavam
no desaparecimento de estigmas que vinham à tona em momentos críticos. Em
mais de um trabalho, a autora argumentou que o silenciamento a respeito da
própria “cor” não era, naquele contexto, simplesmente uma imposição da
sociedade imperial ou republicana. Muito pelo contrário, manifestar-se contra a
explicitação de um signo discriminatório era uma estratégia de luta pela igualdade,
por vezes bastante politizada, (Mattos, 2000 e 2005). A busca por eqüidade, assim,
272
passava pelo silêncio em relação à “cor”, com tudo que ela representava como
símbolo de desigualdade
425
.
A escassez de registros de “cor”, então, operou como mecanismo de
ocultamento da mesma. Mesmo que tanto os índices de natalidade quanto os de
mortalidade fossem baixos
426
, em São Francisco de Paula a população negra estava
morrendo mas não nascendo. A título de exemplo, é possível mencionar o caso de
Manuel Francisco de Brito. No dia 11 de agosto de 1899 veio ao mundo João
Manoel de Brito, filho legítimo deste e de sua esposa Jerônima Pacheco de
Oliveira. Dois anos depois, em 10 de dezembro de 1901, nasceu uma segunda
criança: a pequena Maria Joaquina
427
. O pai declarou ser criador, e viviam em sua
casa no lugar chamado “Pai Bitu”, em Boa Vista.
O registro de sua família estava relativamente completo, já que haviam sido
listados os nomes da avó paterna, Maria Ignácia de Brito, e dos avôs maternos,
Garibaldi Pacheco de Oliveira e Pulcina Cândida Pacheco. Tal fato não era o mais
comum: se a identificação das avós maternas era usual, a presença de avôs
maternos e ascendentes da linhagem paterna indicava famílias com índices de
legitimidade mais elevada (Mattos, 1998 p. 302). Esta costumava ser inversamente
proporcional à “cor” da pele: em famílias mais claras havia uma tendência a
registros genealógicos mais completos.
425
Um paralelo instigante pode ser feito com a situação das comunidades indígenas do Rio Grande
do Sul estudadas por Souza (1998, especialmente subcapítulo 2.1.6). Como entre os negros no pós-
abolição, o autor percebeu que a invisibilidade étnica freqüentemente era resultado coletivo de auto-
velamentos ou camuflamentos individuais, que continham respostas à estigmatização e ao
rebaixamento na hierarquia social.
426
Não obstante 8,18% dos óbitos registrados fossem de mulatos, pardos e pretos, e essa proporção
fosse baixa em relação ao conjunto dos habitantes de São Francisco, ainda assim ela era 40, 9 vezes
superior à quantidade de 0,2% de nascimento de pardos, praticamente insignificante em termos
estatísticos.
427
RCSFP – livro A-1 folha 102 (nascimento n. 251) e folha 159v (nascimento n. 398).
273
Grafico Genealógico 6 – Família de Manoel Francisco de Brito
Manoel
Francisco
de Brito
D. Jerônima
Pacheco de
Oliveira
João Manoel
de Brito (n.
11/8/1899)
Maria
Joaquina (n.
10/12/1901)
? Maria
Ignácia
de Brito
Garibaldi
Pacheco
de Oliveira
Pulcina
Cândida
Pacheco
Manoel
Ignácio
de Brito
? ?
Fonte: RCSFP livro A-1.
Três anos depois, João Manoel e Maria Joaquina ficaram órfãos: no dia 15
de dezembro de 1904 seu pai, aos 42 anos, faleceu devido a um desastre provocado
por um burro
428
. No registro do fato, ele foi mencionado como pardo, fato que não
havia acontecido ao registrar seus filhos. Nas duas vezes em que tornou-se pai, e
em sendo um indivíduo produtivo, um criador, essa situação foi escamoteada ou
tratada como se fosse irrelevante. Diante da inexorável morte, contudo, não mais
havia necessidade de assim agir: o risco de ultraje atingiria, no máximo, a seus
familiares, não ao morto propriamente dito. O óbito foi registrado por Manuel
Ignácio de Brito, seu tio. O sobrenome leva a crer que seja irmão da mãe do finado
(mesmo porque seu pai é desconhecido). A seqüência dos nomes transmitidos por
esta família será discutida em seguida.
Uma leitura acrítica dos registros estatais oficiais e sem uma maior minúcia,
poderia levar a crer na inexistência da reprodução desta população, mas é claro que
essa “morte sem nascimento” não se referia a um extermínio físico
429
. Antes, trata-
428
RCSFP – livro C-1 folha 32v (óbito 91).
429
O que não quer dizer que não houvessem taxas elevadas de mortalidade infantil, a par de
inúmeras outras dificuldades. Porém, o que aqui se ressalta é que essa proporção ínfima nos
registros civis devia-se antes ao encobrimento étnico, não caracterizando um genocídio.
274
se de metáfora do fenômeno de invisibilização étnica. Eles sugerem que, entre uma
geração e outra, uma proporção cada vez maior de indivíduos deixaram de ser
classificados como pretos, pardos ou mulatos. A perpetuação biológica da família
de Manuel Francisco se deu na presença de seus filhos João Manoel e Maria
Joaquina; no entanto, a continuidade de sua existência como pardos, ou como não-
brancos achava-se ameaçada. Mas a quem será que, naquele momento histórico
específico, interessava manter tais rótulos?
Em determinados contextos, porém, eles reemergiram, e isso ocorreu com
relativa freqüência em processos criminais. Mattos reconhece no silêncio sobre a
“cor” uma ética de regulação das interações em situações de igualdade formal, o
que em absoluto correspondia ao conjunto das circunstâncias do dia-a-dia. O texto
em epígrafe, originário de um conto de Monteiro Lobato, é bastante feliz ao
destacar a ridicularização e humilhação sociais que a agregação de um qualificativo
de cor ao nome (ou mesmo sua redução àquele) poderia representar. Se existiam
constrangimentos sociais que impunham limites à publicização desse tipo de
discriminação, as crianças, sempre mais espontâneas, não os levavam a efeito. Mas
em momentos de antagonismo, também entre os adultos esse silêncio protocolar
podia ser quebrado, e a igualdade formal ceder lugar a hierarquias raciais (Mattos,
2005 p. 295). O ocultamento do estigma não livrava um indivíduo do mesmo. Nos
termos de Goffman (1988), alguém que era “desacreditado” e conseguira tornar-se
“desacreditável” estava sempre na iminência de ver seu estigma revelado e, assim,
retornar à situação anterior
430
.
Foi o que aconteceu com o cabo de polícia Jordão Pedroso de Moraes,
quando este entrou em rota de colisão com o Tenente-Coronel Felisberto Baptista
de Almeida Soares, chefe do Partido Federalista local. O fato se deu em uma
eleição no dia 25 de janeiro de 1888: ele tentara desarmar Sebastião José dos
Santos, eleitor de Baptista, que portava uma faca. O mesmo não apenas recusou-se
a entregar a arma, como se refugiou entre demais eleitores do partido liberal e
dirigiu provocações às forças policiais. Tentaram encarcerá-lo, mas como não
obedecesse à voz de prisão, foi levado a pranchaços para a cadeia municipal. O
coronel Joaquim Pedro Salgado interveio por sua libertação, e Santos realmente
430
Fraga Filho assinala que, embora ex-escravos e descendentes rechaçassem qualificativos que
evocassem a condição escrava pretérita, sempre havia momentos em que este sigilo era quebrado,
principalmente por idosos que sabiam dos fatos ocorridos na sociedade (2006 p. 338-340).
275
pôde sair dali. Contudo, já era tarde: seus correligionários, liderados por Baptista,
dirigiram-se ao quartel de polícia com a intenção de “fazer punir o ultraje sofrido
por seu companheiro”. Exigiam que lhes fosse entregue, de qualquer maneira, o
cabo Jordão.
Sebastião Santos apresentou um requerimento pela prisão de seu agressor, e
contava com o respaldo de Baptista. A exigência, segundo as autoridades policiais,
foi atendida, mas ainda assim o Tenente-Coronel desconfiou, pretendendo invadir
o quartel para constatar pessoalmente se, de fato, o “cachorro baio e negro aço”
[grifos originais] tinha sido preso. Conforme testemunhas, Baptista pretendia
efetuar uma prisão que o comandante não fizera por ser “desmoralizado”. Isto é,
tomar para si prerrogativas que a rigor eram estatais: como o comportamento
daquele não correspondia a suas expectativas, queria ele assumir suas tarefas. Ele,
por seu turno, foi acusado de trazer consigo pessoas armadas, incluindo indivíduos
não-eleitores e de má reputação.
Como sublinhado anteriormente, a oposição e as injúrias trocadas entre
polícia e partidários de Baptista foram crescentes. Felisberto Soares de Oliveira,
cunhado, amigo e correligionário de seu xará, tentou intermediar, em vão, uma
pacificação entre os grupos, procurando dissuadi-lo de entrar na cadeia. Em
seguida, teve início uma batalha campal, com tiros direcionados ao quartel e, de lá,
contra os homens de Baptista; e ainda enfrentamentos com armas brancas contra os
praças de polícia
431
. Houve mesmo testemunhas que disseram que o Tenente-
Coronel pretendia tirar o cabo Jordão do cárcere para matá-lo e arrastá-lo na cola
de um cavalo
432
.
A mesma situação desencadeou a abertura de diversos inquéritos policiais,
todos anexados aos autos. Na versão do coronel Felisberto Baptista, o delegado
estava se recusando a prender o cabo. Além disso, enquanto o “povo” se achava
próximo ao quartel para exigir a prisão do mesmo, teria sido insultado pelos
policiais. Argumentava, ainda, que a prisão de Sebastião havia sido simples
pretexto para tentar desencadear uma situação de embate físico. Segundo uma
testemunha, o juiz municipal teria recomendado aos soldados que “bebessem
431
Um dos atingidos pelo grupo do Tenente-Coronel foi o comandante da polícia rural Afonso
Marques de Oliveira. Anos mais tarde, ele se tornaria delegado de São Francisco de Paula e
comandaria o cerco à casa de Felisberto Baptista de Almeida Soares. É um bom exemplo, portanto,
de como a violência da “Revolução Federalista” era tributária de inimizades e divergências
anteriores.
432
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 24, auto 619 (1888).
276
sangue liberal”. Outros, porém, apresentaram argumento oposto, acusando
Baptista de desencadear a situação com o único objetivo de “arrasar a polícia”.
Nessa guerra de versões, participantes de ambas facções acabaram por ser
denunciados, principalmente por lesões corporais.
São inúmeros os relatos das ofensas verbais dirigidas ao cabo Jordão.
Conforme as testemunhas eram favoráveis ou contrárias a Baptista, negavam ou
destacavam tê-lo ouvido chamar o cabo de “cachorro baio e negro aço”
433
ou
“neguinho aço”. Provavelmente, a acusação de ultrajar representantes do poder
público era um agravante a mais na já complicada situação de Felisberto Baptista
de Almeida Soares. Este aspecto, se os denunciados tiveram a intenção de
“ofender” o cabo Jordão Pedroso de Moraes e a força policial ao dirigir-se a eles
nestes termos, efetivamente foi arrolado entre os quesitos para avaliação pelo júri.
Ao acionar epítetos raciais, ele quebrava o protocolo de calar sobre a cor e o caráter
ofensivo da mesma.
Ao depor, o cabo Jordão Pedroso Moraes não relatou de imediato todas
ofensas que lhe foram dirigidas. Tudo indica que se tratava de uma situação
humilhante, isto é, reprodução de ultrajes raciais que lhe foram dirigidos. Ao relatar
um insulto por vez, o depoente parecia querer evitar o impacto e o peso que
poderiam decorrer da utilização de todos eles juntos. Inicialmente, falou apenas do
xingamento de “cachorro baio”, sem menção ao “negro aço”. Teria ele preferido
falar dessas ofensas nesta ordem porque a primeira foi por ele considerada menos
dolorida? Ou porque a associação entre ambas maximizasse seu caráter agressivo?
O que se sabe é que apenas depois ele mencionou ter sido chamado de “negrinho
aço”. É possível que a utilização do diminutivo seja uma maneira de suavizar a
carga semântica negativa do termo “negro”, que ele não pretendia ver associado a
si.
O trecho mais significativo de seu depoimento, porém, é a última frase
registrada: “disse mais que o negrinho a quem referia-se o Tenente-Coronel era o
cabo Jordão”. Em suma, Pedroso, ao relatar as agressões verbais que lhe foram
dirigidas, parece não se ter reconhecido nelas, a ponto de acreditar ser necessário
esclarecer quem era o “negrinho” em questão. Ele acreditava, ou queria acreditar,
que ninguém o associaria àquele rótulo racial sem necessários esclarecimentos. A
433
Cf. capítulo 1, sobre o papel da animalização do outro na violência simbólica.
277
referência na terceira pessoa do singular ao “cabo Jordão” é inusual: o mais comum
seria registrar que “o negrinho a quem referia-se o Tenente-Coronel” era o
depoente. Pode tratar-se de confusão do escrivão durante a transformação do
discurso direto em indireto. Mas pode ser, também, um esforço da parte do cabo
Jordão para afastar-se deste que foi chamado de “negrinho aço”, ao mencionar a si
mesmo na terceira pessoa do singular.
A favor ou contra sua vontade, diversos indivíduos tiveram designações de
“cor” incorporadas à sua designação, sempre associadas a estereótipos negativos.
Adão Latorre e Simplício Moreira dos Santos, respectivamente, eram conhecidos
como “negro Adão” e “mulato Pio” por seus adversários, e os qualificativos de
“cor” foram incorporados à sua nomeação. Acusado de ser cúmplice e mandante
do crime de Bibiana, Juvêncio Ribeiro, ex-senhor daquela e marido de sua vítima,
procurou, em seus depoimentos, desqualificar a acusada e colocá-la sob suspeição,
de modo a eximir-se de co-responsabilidade
434
. Para isso, utilizou o sentido então
fortemente negativo do termo “preta” (Weimer, submetido a apreciação). Bibiana
nunca apareceu como “preta”
435
, a não ser no depoimento de seu ex-amásio.
Outros “pretos” encontrados ao longo da pesquisa também se achavam associados
a situações de criminalidade, como o “preto de nome Pietro”, que, em agosto de
1888, estava sendo perseguido por furto
436
. É claro que, em uma fonte como
processos criminais, não deve ser surpreendente que fossem encontrados entre os
crimes. Contudo, a idéia de estigma e a carga semântica negativa deste termo são
sugeridas também pelos registros civis, e as fontes criminais somente o comprovam.
Não terá sido à toa que uma geração inteira passou a abandonar – ao menos
oficialmente – os rótulos dessa natureza.
***
Um rapaz, que se desconfiava ser filho do Coronel Felisberto Baptista de
Almeida Soares, subia a serra no dia 13 de março de 1883. Na casa de negócios de
Pedro José Jung parou, e confessou ao vendeiro estar temeroso: lhe haviam dito
que na região havia muita bexiga. Tinha sede, mas também tinha medo de beber
434
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 43 (1891).
435
Como “parda” e “mulata” sim.
436
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 37 (1888).
278
água. O comerciante ofereceu-lhe aguardente e ele aceitou. Pouco depois, chegou
um homem, “de cor acaboclado para mais preto”, nos dizeres de Jung. Sabendo
que o rapaz subia a serra, ofereceu-se para ir junto. Mais tarde, se saberia que seu
nome era “Zezinho”. Sua companhia foi aceita e, assim, seguiram viagem.
O cadáver do rapaz foi encontrado nas proximidades da colônia de Nicolau
Engelman. Com diversos cortes e nu, não foi muito difícil identificar o autor do
assassinato: Zezinho deixara junto ao corpo seu chapéu e seu poncho, que foram
reconhecidos pelo dono da estalagem por onde passaram. Diante da nudez da
vítima, é provável que o assassino tenha substituído suas vestes pelas do rapaz, de
melhor qualidade segundo afirmava Jung. Além disso, Zezinho rapidamente gastou
parte do dinheiro que roubara. O comerciante Castor Henrique Jürgensen relatou
que no mesmo dia um “preto” chegou em sua loja e comprara diversas chitas. Ele
custosamente aceitava as peças ofertadas, por exigir sempre melhores e mais caras,
sem nunca pedir abatimento. Diante do estranhamento do negociante, que não quis
acreditar que ele pudesse ter tanto dinheiro, ele asseverou que possuía o suficiente
para pagar. Para o negociante, o fato de um “preto”
437
possuir tanto dinheiro, o
fazia suspeito, assim como seu “desassossego” e algumas marcas de sangue
438
.
Outras testemunhas também o qualificaram como “preto”; uma revelou que ele
falava alemão e houve mesmo quem dissesse que ele era um “preto não bem
preto”.
Temos, portanto, um acaboclado puxando para mais preto mas não bem
preto (embora sete vezes preto), que falava alemão. Ainda por cima, ele não tinha
sequer um nome próprio, e sim o diminutivo do apelido de um. Zezinho realmente
parece uma personagem misteriosa. Ele foi assassinado (talvez pela família de sua
vítima) antes de prestar depoimento, razão pela qual os autos foram concluídos.
Assim, não se conta também com sua versão, menos ainda com uma possível auto-
identificação para entender se ele se reconhecia em alguma dessas desencontradas
categorias identitárias.
É possível, porém, e necessário, formular uma interpretação. Em pelo menos
dois casos, há uma polarização entre uma tez mais escura (“preto”) e outra menos
(“acaboclado”, ou “não bem preto”). Até a insistência de Jürgensen em tanto
437
Essa palavra foi repetida 7 vezes ao longo do depoimento, em uma insistência que jamais vi em
qualquer outro testemunho. Parece haver uma fixação de Jürgensen no fato de Zezinho ser preto,
talvez porque o visse como perigoso e suspeito e necessitasse sublinhar tal característica.
438
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 21, auto 564 (1883).
279
afirmar que o sujeito era “preto” pode apontar para esta dualidade: se era
necessário um esforço tão obstinado para enquadrá-lo como tal, talvez existissem
sinais que matizassem a condição que o comerciante lhe queria imputar. Acredito
haver aqui uma contradição, e mesmo conflito, entre uma definição cromática e
epidérmica de “cor” diante de outra social. Sua definição como “preto” está
associada a um estigma ao qual correspondia com exatidão, mesmo que a sua
epiderme pudesse sugerir tratar-se de alguém “acaboclado” ou “não bem preto”.
No entanto, a “cor” expressava antes de tudo significados sociais, e foram estes que
prevaleceram
439
.
***
Estudos referentes a outros lugares do Brasil indicam ser prática
relativamente comum a adoção de epítetos africanos como sobrenomes – fossem
“nações”, “etnias” ou “grupos de procedência”. A adoção de “Benguela”,
“Congo”, “Angola” e afins como modo de auto-nomeação seria, dessa maneira,
uma identificação alternativa que afirmava uma identidade étnica, em contraponto
a um sobrenome expressivo da sujeição ao senhor (Xavier, 1996 p. 72)
440
. No
mesmo sentido vem a observação de Farias e Gomes (2005 p. 109), que destacam o
nome como forte signo de identificação social e étnica. Os autores sustentam que,
uma vez escravizados, os nomes adquiridos na chegada ao Brasil simbolizavam a
passagem à condição escrava e só eram utilizados no contato com os brancos. Entre
si, os nomes “trazidos de suas terras” mantinham relevância e significação. Os
nomes pessoais iorubas, por exemplo, detinham grande força simbólica.
Entre os iorubas, ao se nomear um filho vários significados
podiam ser levados em conta: as condições físicas de seu
nascimento, as circunstâncias do parto, as dificuldades ou a
prosperidade de uma família. Ojô, por exemplo, é o nome dado a
uma pessoa nascida com o cordão umbilical enrolado no pescoço.
Agaju, por sua vez, é atribuído à criança nascida com o rosto para
439
Eis a definição de cor empregada por Mattos: “Tento demonstrar que a noção de ‘cor’, herdada
do período colonial não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes
de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam
indissociavelmente ligadas” (Mattos, 1998 p. 98).
440
Procurei relativizar, porém, a idéia de que a adoção do sobrenome senhorial implicasse
necessariamente em uma relação de sujeição.
280
baixo. Ajadi, àquele que ganhou o espólio de uma luta. Os iorubas
carregavam seu nome de nascimento (amuntoruwa), o de batismo
(ábiso) e o nome afetivo (oriki). Os iniciados na religião dos orixás
podiam ainda anexar seu nome iniciático, muitas vezes por preceito
não revelado, ou só enunciado em cerimônias rituais bem
específicas (Farias e Gomes, 2005 p. 109)
Diante dessas indicações da bibliografia pertinente, foi bastante
surpreendente não encontrar praticamente nenhuma referência africana em São
Francisco de Paula: nem no que se refere à utilização, nas nomeações assumidas,
das “nações” atribuídas aos africanos; nem no que toca a prenomes que pudessem
ser associados às línguas maternas. Porém, esse estranhamento se esvaiu à medida
que pude perceber e discutir a baixa presença de africanos entre os alforriados
locais, como analisado no capítulo 1, onde se procurou relacionar tal fato ao tráfico
interno de cativos e à concentração de escravos na região sudeste na segunda
metade do século XIX. Nos registros civis também estão completamente ausentes
estas maneiras de nomear.
Sempre é possível que, tal como as cores, os africanos (ou sua condição)
estivessem sub-representados ou não tenham tido registro adequado de seus nomes,
quer no registro das cartas de alforria, quer nas fontes civis. Isso vem ao encontro
da proposição de Farias e Gomes, de que nomes cristãos eram usados somente no
contato com os brancos (do qual provêm as fontes disponíveis). Ora, invisibilidade
não implica em inexistência – no caso, a fala em uma língua desconhecida para
outros podia representar um poderoso demarcador de fronteiras étnicas.
Porém, por mais interessantes que sejam as possibilidades abertas pela
perspectivas dos autores, as fontes que pesquisei não me permitem enveredar por
este caminho: mesmo nos processos criminais, nos quais, como visto, havia menor
controle sobre a invisibilidade da cor e esta eventualmente reemergia com uma
certa força, a presença de africanos também é nula. Deixo a questão em aberto,
embora me sinta inclinado a acreditar que, no pós-abolição, muito tempo já se
havia passado desde a chegada dos últimos cativos d’além-mar, e há muito os
efeitos do comércio interprovincial de escravos se fazia sentir. Tudo isso, junto ao
fato de São Francisco de Paula não ser tão opulento quanto outros municípios rio-
grandenses, aponta para uma presença demográfica baixa de africanos.
281
Por fim, cumpre destacar que as ditas “nações” não correspondiam a formas
de auto-identificação dos escravos africanos trazidos para o Brasil. Pelo contrário,
segundo Soares (2000), eram categorias classificatórias impostas pelo colonizador,
que correspondiam antes aos portos onde eram embarcados do que aos grupos
étnicos aos quais pertenciam. Sendo assim, a autora afirma que tais qualificativos
referiam-se, antes de mais nada, a “grupos de procedência”. Em sendo exógenos
aos nomeados, a expectativa de que eles automaticamente os assumissem e
internalizassem não é a melhor abordagem para esse tema.
Oliveira (2006 p. 119-124) traz um bom exemplo quando analisa o caso de
um africano livre que assumiu o nome daquele para quem aceitara trabalhar.
Vinculado ao Capitão José Joaquim de Paula por um contrato de prestação de
serviços, Manoel Congo tinha uma rotina de trabalho bastante similar à de um
escravo; contudo, tinha convicção de sua condição livre. Ele foi apreendido pelas
autoridades de São Leopoldo e remetido à Santa Casa, em Porto Alegre, enquanto
o Capitão foi processado judicialmente por redução ilegal do africano a situação de
cativeiro. Meses depois, já não mais se chamava Manoel Congo. Agora era Manoel
de Paula:
Cerca de sete meses após ser remetido para Porto Alegre, o
africano aparece identificado não mais como “Manoel Congo”, mas
como “Manoel de Paula”. Havia substituído a designação étnica
que recebera como elemento de identificação pelo sobrenome de seu
antigo senhor de São Leopoldo, o Capitão José Joaquim de Paula.
Manoel construía, assim, uma nova identidade para a vida em
liberdade, uma identificação que o afastava do estigma do cativeiro
e remetia à sua nova condição jurídica de “africano livre”.
Devemos considerar que a designação “Congo”, provavelmente
recebida após o comércio atlântico de almas, possivelmente fosse
uma identidade inventada e atribuída pelo mundo colonial,
carecendo de significado para o africano. Essa constatação talvez
nos ajude a entender o porquê de Manoel assumir o sobrenome
“Paula” e dimensionar a importância do momento em que o
conquistava a liberdade e visualizava a possibilidade de escolher, ele
mesmo, o seu sobrenome. (Oliveira, 2006 p. 123-124. Grifos
meus.)
282
Fazia bem, Manuel de Paula. Ele realmente não tinha motivo algum para
preferir “Congo” ao sobrenome adotado: ambos lhe eram igualmente exteriores.
Mas “de Paula” era menos estigmatizante. Foi, naquele momento e naquelas
relações sociais, a opção que tomou. Se, e com quem, em quais situações
permaneceu empregando “Congo” ou mesmo seu nome em sua língua natal, é algo
que não nos é possível conhecer.
Nomeando e construindo ancestralidades
- Meu nome é Ainá.
- Como, mamãe?
- Ainá. Sempre me chamei Ainá. No Brasil é que trocaram meu
nome, fiquei sendo Catarina, mas tenho nome: meu nome é Ainá.
(...) Devia ser proibido trocar os nomes das pessoas. Meu nome é
Ainá. (...) Nome é coisa sagrada, não deve ser dito demais nem à
toa e só as pessoas da família deviam saber o nome da gente. Para
os de fora um apelido serve. (Olinto s/d p. 88)
- É menina.
- Vai ter o nome da vovó.
- Catarina?
- Não, Ainá.
- Catarina é melhor, é mais brasileiro.
- Não, mamãe, o nome dela vai ser africano.
(...)
- Ainá.
- Vovó teria preferido Ainá a Catarina.
(Olinto, s/d, p. 116)
283
Diversas reflexões vêm sendo feitas a respeito dos prenomes assumidos pelos
escravos e seus descendentes. Há trabalhos que enfaticamente destacam a violência
simbólica representada pela aquisição de um nome cristão no Novo Mundo (por
exemplo, Ascencio, 1984 e Castro, 1994), e outros que sublinham a afirmação de
laços familiares e/ou construção de vínculos de ancestralidade por meio da adoção
dos prenomes de familiares (por exemplo, Rios, 1990 e Barcellos et al, 2004).
Creio que ambos aspectos são indubitáveis, mas a maneira como vêm sendo
formulados elide a distinção fundamental entre africanos e crioulos.
Evidentemente, só o recém-chegado poderia sentir-se violentado pela assunção de
um nome que lhe era completamente alheio. Quem nascia no Brasil, trazia consigo
um nome cristão que não lhe era estranho, desde sua infância. Isso não significa,
contudo, que estes últimos eram “aculturados”, ou que perderam referências
africanas. Seus pais de lá vinham. Trataram de construir laços de ancestralidade no
Novo Mundo por meio da herança de nomes de geração a geração. Esta prática,
porém, longe está de ser expressão de características de uma África pura, autêntica,
estática e reificada. É uma reinvenção crioula. Aqueles que, obcecados pela
imagem de uma África idílica, recusam-se a reconhecer aquilo que seus
descendentes criaram no Novo Mundo, fatalmente só serão capazes de perceber,
também, “falta” de identidade.
Intelectuais negros como Appiah (1997) e Gilroy (2001) – respectivamente
ganês e britânico – apresentaram vigorosas críticas ao afrocentrismo. Sublinham,
sobretudo, o caráter não homogêneo das culturas daquele continente: “as
identidades são complexas e múltiplas, e brotam de uma história de respostas
mutáveis às forças econômicas, políticas e culturais” (Appiah, 1997 p. 248). Elas
não cabem em uma abordagem uniformizadora de um continente:
nada é mais impressionante, para alguém isento de
preconcepções, do que a extraordinária diversidade dos povos da
África e suas culturas. Ainda me lembro claramente do esmagador
sentimento de diferença que vivenciei ao viajar pela primeira vez do
Oeste para o Sul da África. Dirigindo do interior semi-árido de
Botsuana até sua capital, Gaborone, a apenas um dia de distância,
por avião, da vegetação tropical de Achanti, todos os homens
vestiam camisas e calças, a maioria das mulheres trajava saias e
blusas, e quase todas essas roupas eram sem padronagens, de modo
284
que faltava às ruas o colorido dos delicados “tecidos” achantis; e os
estilos dos entalhes da tecelagem, da cerâmica e da dança eram-me
totalmente desconhecidos. Nesse cenário, fiquei a me perguntar o
que, em Botsuana, supostamente decorreria de eu ser africano.
(Appiah, 1997 p. 48. Grifos meus)
A formação de uma identidade “africana” é fenômeno inconcluso e muito
recente em termos históricos, certamente vinculado aos processos de
independência. Desta maneira, assim, o afrocentrismo tende fundamentar sua
solidariedade metafísica em uma África abstrata na “confiança absoluta e perversa
em um modelo do sujeito racial pensante e inteligente”. Para Gilroy, ironicamente
se retorna a uma abordagem racialista e que, sob um verniz africano, pode-se
perceber a presença de perspectivas cartesianas européias (Gilroy, 2001 p. 353).
Esse caráter racialista – a pressuposição de características raciais intrínsecas
a um continente – por seu turno, leva necessariamente a uma visão das experiências
negras no Novo Mundo como “decorrente da natureza do negro e, desse modo,
projetada nos negros da África” (Appiah, 1997 p. 46). Gilroy se insurge contra a
subestimação das experiências negras no Novo Mundo (ou no continente europeu,
como é o caso do próprio autor) quando se propõe a pensar a negritude em sua
dimensão atlântica, levando em igual consideração roots and routes – jogo de
palavras por meio do qual quer contemplar raízes africanas e rotas e caminhos pelo
mundo.
Aqui, adoto as percepções destes dois autores como diretrizes. Mesmo
reconhecendo a importância de tradições de povos do continente africano, centro
minhas atenções nas “rotas”, nos caminhos percorridos pelos crioulos ao
construírem suas experiências americanas (especificamente no que toca às práticas
de nomeação), entendendo que não se trata de mera reprodução de práticas de seu
continente de origem, e tampouco de invenção arbitrária.
O romance “A casa da água”, do qual extraí as epígrafes utilizadas neste
capítulo, narra a saga de uma família de brasileiros “retornados” ao continente
africano. O texto de Antônio Olinto é particularmente instigante para se pensar as
diferentes percepções sobre os nomes entre os africanos e brasileiros. Estabelecidos
em Lagos, a matriarca Catarina revela a todos – que o desconheciam – seu
verdadeiro nome, Ainá, e solicita que doravante só a chamassem assim. Em suma,
se a chegada ao Novo Mundo representou uma cristianização do nome, para Ainá
285
o retorno à Nigéria foi a oportunidade para retomar a denominação que deixara
naquele continente
441
.
Em contraposição, sua filha Epifânia, nascida no Brasil, sentia-se desterrada
no novo lar adotado pela família: “não mudou nada, não há diferença muito
grande entre isso aqui e a Bahia, a diferença que há é para pior, lá a gente era da
terra, aqui somos estrangeiros para os ingleses e somos estrangeiros para os
africanos” (Olinto, s/d p. 87). Quando informada por sua filha Mariana de que a
menina que esperava ganharia o nome da avó, manifestou-se por “Catarina”,
“melhor”, “mais brasileiro”. A gestante, porém, optou pelo nome africano.
Mariana tinha 13 anos durante a travessia do Atlântico e, assim, tinha menos
nostalgias brasileiras do que sua mãe, e uma parcela mais relevante de sua vida era
composta por experiências africanas.
Com isso, procuro alertar para o fato de que, se a imposição de nomes
ocidentais representou uma modalidade de violência simbólica, é necessário estar
atento para variações inter-geracionais na relevância dada aos nomes africanos. É
claro que experiências de escravização, tráfico, venda, renomeação, estranhamento
radical com um mundo novo, precariedade e experiências de trabalho violentas
eram traumáticas e deixavam seqüelas. De maneira alguma, porém, é possível
absolutizar e generalizar para todos um “esvaziamento de tradições culturais de
seus antepassados” que Castro (1994 p. 105) pretende ver no “poder daquele que
confere o nome sobre aquele que o porta”. Mesmo admitindo que um nome possa
ter poder alienante tão elevado
442
, esse corte se dava apenas na primeira geração.
Pretendo demonstrar que nas gerações subseqüentes novos vínculos foram
441
Cunha (1986 p. 87) informa que os iorubanos retornados preferiram identificar-se como uma
comunidade de “brasileiros”, e entre os caracteres diacríticos adotados estavam “o uso de nomes
portugueses, a construção de sobrados no estilo baiano, a celebração de festas típicas, como a
‘burrinha’, o ‘boi’ e o ‘Bonfim’, a preservação de uma cozinha considerada tipicamente brasileira (e
no Brasil é tida por africana), com seu feijão de leite, seu mugunzá, sua canjica, grude, tapioca e
pirão; o uso da língua portuguesa, ensinadas nas escolas católicas de Lagos até 1879, mas
conservada até muito mais tarde; enfim a fidelidade ostensiva à religião católica”.
No caso, a perspectiva de Olinto não é condizente com os dados etnográficos. Todavia, ao utilizar
fontes literárias, não a entendo como retrato límpido do real (tampouco a documentação primária
ou o registro etnográfico o são). Antes, considero a sensibilidade do romancista exemplar e
inspiradora para interpretar a nomeação entre crioulos e africanos. Longe de tomá-lo como relato
fidedigno, adoto seu relato como ilustrativo da diferente relação com o continente africano
estabelecida por aqueles que lá nasceram e por seus filhos brasileiros.
442
Se eu não acreditasse que as formas de nomear tivessem algum poder sobre o social, não me
dedicaria a estudá-las. Jamais, porém, a ponto de tornar alguém “vazio de representações culturais
de seus antepassados”. Um nome identifica, significa e simboliza, mas não é a única coisa que
identifica, significa e simboliza.
286
construídos. Quando este poder de construção de novas identidades é subestimado,
o entendimento da questão se reduz à noção de perda. Para que possa ser entendida
como um “bem” passível de perda, a identidade necessariamente passa por um
processo de reificação em sua interpretação, ao se lhes atribuir caracteres culturais
estáticos e substancializados.
O nome atribuído, ao africano cativo, terá um novo
conteúdo. Diferente daquele que portava na África, o novo nome
estará destituído dos momentos históricos, das representações sócio-
culturais que, de certa forma, o ligava ao passado. Admitindo-se
que os portadores do mesmo sobrenome compartilhassem ancestrais
comuns, partiam-se, com a negação do nome original, fatores
fundamentais de identidade. O nome cristão-hebraico-português,
impregnado da ideologia do dominador, será mais um fator de
ajustamento, porque sedimenta a perda da identidade africana.
(Castro, 1994 p. 91)
Ascencio (1984) apresenta uma perspectiva similar à de Castro, embora com
maior elaboração e sofisticação teórica. Seu esforço por construir um “código de
nomeação”, em moldes estruturalistas (com regras, oposições, relações sistêmicas),
levou a resultados decepcionantes. No esforço por traçar a morfologia dos diversos
elementos dispostos no nome do escravo (prenome castelhano, circunstância de
nascimento, componente racial, gentílico africano ou americano, etc) e codificá-la,
secundarizou a interpretação do seu significado. Além disso, por ser sincrônico, o
“código” impede uma avaliação de heranças nominais inter-geracionais.
Todavia, a autora nuança sua perspectiva quando reconhece que se centra
somente nos nomes fixados pela administração colonial, sendo possíveis formas
alternativas de nomear e mesmo a utilização de nomes próprios africanos entre si,
sobretudo nas primeiras gerações. Eles são concebidos, porém, através da noção de
“dupla consciência”, o que reforça uma polarização dicotômica entre identidades
africanas e do Novo Mundo. A utilização de nomes próprios nos parâmetros dos
escravos só é possível, neste esquema interpretativo, atribuindo-lhes uma cisão em
sua “consciência”. Por outro lado, é inconcebível que a mesma “consciência”
pudesse acionar em diversos contextos identidades plurais, ou mesmo, como
identificaram Farias e Gomes (2005), nomes mistos, cristãos e iorubas. Ascencio
também percebe interesses próprios dos escravos na aquisição do nome espanhol –
287
qual seja, o ascenso na escala social e inserção na comunidade crioula
443
. Ela
entende as modificações de nomes como ritos de ruptura, nos quais personalidades
se redefinem, ao mesmo tempo em que expressam uma nova imagem social
daquele indivíduo.
Não obstante estas relativizações, a autora não consegue fugir ao modelo
estruturalista: mesmo com nuances, ao fim das contas o nome do escravo não
passava de um nome para seu amo, uma marca que o coisifica. O nome tornava-se
um estigma, por lhe recordar o lugar fatalmente destinado a ele na sociedade
(Ascencio, 1984 p. 63). No entanto, as dificuldades para compreender o significado
do nome do escravo para si podem estar no olhar do pesquisador. Existe, é claro,
um problema de fontes, tanto mais grave quando se trata de buscar percepções
“êmicas”, porém uma abordagem teórica inadequada torna ainda superiores os
obstáculos.
O texto da autora, apesar de seus méritos, tende a uma perspectiva de
vitimização, e a uma sincronia demasiadamente acentuada. Considerando que se
trata de texto anterior a 1984, essas deficiências encontram-se plenamente
justificadas, mas nem por isso as críticas devem deixar de ser feitas. Eis os pontos,
para mim, mais problemáticos: ela freqüentemente estende aos crioulos conclusões
relativas aos africanos; além disso, em Ascencio raramente a explicação para os
processos de modificação é conferida à ação dos escravos. Em fins do século XVIII
e início do século XIX, por exemplo, os registros de cativos passaram a restringir-se
ao primeiro nome castelhano, levando abaixo todo elaborado “código de
nomeação”. A autora explica tal fato pela preocupação com idéias
independentistas, o que teria levado a uma menor necessidade de identificar e
classificar os escravos
444
. Mas nenhuma dinâmica endógena aos escravos teria
influenciado nesta modificação?
A comunidade negra de São Francisco de Paula, ao menos durante os anos
em que a estudei, era majoritariamente crioula. Era provável que entre os que não
apresentavam referências “étnicas” houvesse africanos invisibilizados. Dificilmente,
porém, tal aspecto ocorreria na escala de um fenômeno social como o
desaparecimento de registros de cor, por exemplo. A indagação de quais eram as
443
Ainda que esses interesses sejam definidos apenas em função do branco e sua sociedade, e da
ambição de nela se inserir.
444
Novamente não entendo o argumento. Creio que em situações de exceção este esforço se fizesse
ainda mais importante.
288
práticas de nomeação adotadas por descendentes de escravos, nascidos no Brasil,
bem como os significados das mesmas, envolve uma pergunta prévia: quem
escolhia os nomes assumidos pelos cativos? A pergunta se coloca porque parte da
bibliografia existente insiste em afirmar que, mesmo entre crioulos, a escolha do
prenome era uma prerrogativa senhorial. Para Castro, este parece ser um
pressuposto que sequer é objeto de maior atenção; Ascencio, contudo, o afirma de
forma categórica, destacando que, fossem crioulos ou “boçais”
445
seu primeiro
nome lhes era dado (grifos originais) a partir do santoral católico.
É conhecido o papel ritual do ato de batismo católico na instituição de
africanos como escravos, sendo assim uma prerrogativa e uma imposição externa.
Entre os crioulos, já nascidos sob o jugo do cativeiro (ou ex-escravos, a ele não
mais submetidos), porém, essa questão envolve aspectos mais complexos. A
tendência para a repetição dos mesmos nomes de geração em geração coloca em
dúvida a ingerência senhorial sobre aspecto tão íntimo na vida do cativo. Que
interesse teria o senhor em uma coisa dessas? Na eleição do nome das crianças,
suas relações familiares e sociais ganhavam expressão, eram celebradas e
reafirmadas. Dificilmente o senhor poderia ter um maior poder de interferência
sobre isso, e mesmo que tivesse, não teria motivo algum para optar por nomes que
desempenhassem este papel
446
.
Quaisquer que sejam as conclusões relativas aos escravos, é verdade que
entre aqueles que não mais viviam sob o jugo do cativeiro essas práticas eram
comuns. Os gráficos genealógicos anteriormente apresentados foram construídos a
partir dos registros civis. Embora pouco possam dizer do contexto em que seus
nomes foram escritos, eles guardam a imensa vantagem de, ao contrário dos
processos criminais, permitir visualizar relações de familiares e de sociabilidade das
famílias que formalizavam aquele rito: fosse através do registro do nome de
familiares, declarantes, mais raramente de padrinhos.
Além disso, através da busca nominal na série documental, ou mesmo a
partir das informações constantes em um registro mais rico, é possível visualizar a
445
No seu texto, “boçal” é empregado como sinônimo de “africano”, isto é, o estrangeiro, e não
apenas o estrangeiro ainda não versado na língua, hábitos e costumes locais. O termo sempre está
em contraposição aos “crioulos”, e não se faz presente a categoria “ladino”.
446
Barcellos et. al. (2004 p. 114-115) identificaram um caso em que mesmo a aquisição de um nome
cristão por uma africana implicou no estabelecimento de laços de solidariedade com crioulos, já que
o nome Inácia foi tomado de empréstimo à madrinha, escrava já nascida no Brasil. Os laços entre
essas famílias perduraram por mais de uma geração.
289
nomeação de forma diacrônica, e perceber quando as gerações anteriores legaram
seus nomes a seus descendentes. Mesmo que de forma fragmentária, dada a
pequena quantidade de informações constantes nos registros civis de São Francisco
de Paula, facilmente se verifica que, se o stock de sobrenomes majoritariamente
provinha dos ex-senhores, os prenomes eram abastecidos em suas próprias famílias.
O primeiro gráfico dá conta da família de Eva e Caetana
447
. Os registros civis
permitem perceber como nenhuma outra fonte a fluidez das formas de
identificação, nos casos em que há repetição de mais de um registro envolvendo o
mesmo indivíduo. A primeira aparece ora como simplesmente “Eva”, ora como
“Eva Caetana”, sendo, assim, o nome materno um elemento de identificação e, ao
mesmo tempo, símbolo de pertencimento familiar. Caetana, por sua vez, em um
registro constava como “Maria Caetana”. Resta a dúvida se “Maria” também foi
um nome adotado em homenagem a alguma familiar; se era uma manifestação
(extremamente comum) de devoção religiosa; ou ainda, seu verdadeiro nome,
enquanto “Caetana” era, também, um nome adotado a partir de gerações anteriores
por Caetana e por sua filha. Diante da incompletude da filiação genealógica que os
registros civis podem oferecer, é difícil averiguar tais recorrências de forma mais
exaustiva, embora seja provável que, em casos de sub-representação, existam outros
nomes emprestados. Muitos parentes, padrinhos e madrinhas ficam desconhecidos
para o pesquisador. Não se sabe como Eva escolheu os nomes de Emília, Jovelino,
Manoel e Francelino, e tampouco os critérios de Caetana para nomear seus filhos
como Eva e Ignácio
448
. A origem do nome dos meninos é particularmente difícil de
identificar, dado que os nomes de pais e avôs são omitidos com maior facilidade.
Uma dificuldade adicional está nos limites geracionais alcançados pelos registros.
Não se sabe de gerações anteriores à de Narcisa, e tampouco se ela era africana.
447
No início deste capítulo já se acompanhou um pouco da trajetória de sua família. Cf. acima.
448
De maneira alguma sugiro que todos os nomes fossem necessariamente herdados de algum
familiar. Relações sociais de outra natureza e devoção religiosa eram prováveis “fontes” de nomes,
sem contar a simples preferência pessoal. Nada disso, porém, é contraditório com a sucessão
nominal aqui analisada e tampouco com a importância que lhe confiro.
290
Grafico Genealógico 5 – Família de Eva e Caetana
Narcisa?
Caetana?
Eva?
Emília
n.
1897?
Jovelino
n.1898
Manoel
n. 1899
Francelino
n. 1901
Ignácio
n.
1900
Fonte: RCSFP – livro A-1
449
Outros estudos sobre a mesma temática defrontaram-se com dificuldades
semelhantes. Barcellos et al. (2004) procuraram suprir ao menos parte destas
carências através de depoimentos orais. Rios (1990) constatou a herança do
sobrenome de avós e bisavós como um padrão relevante, observando, contudo, que
a elevada mortalidade impede a identificação dos nomes daqueles que já haviam
falecido.
O caso do “pardo” Manoel Francisco de Brito
450
, por ter constituído uma
família legítima diante do Estado, permite avaliar também a sucessão de nomes em
linha masculina. É perceptível uma linhagem de “Manoéis”. Manoel Francisco
adquiriu seu nome do tio materno. Considerando o anonimato de seu pai, e
aventando a possível ausência do mesmo, Manoel Ignácio poderia ter
desempenhado um papel importante em sua vida. Novamente, o tipo de fonte não
dá conta do tipo de relação estabelecida entre cedente e receptor de um nome.
Contudo, é significativo que o tio tenha providenciado a declaração de seu óbito,
mesmo que a idade do finado fosse 42 e contasse com família constituída. Isso
indica responsabilidades dos padrinhos em relação a seus afilhados, e mesmo
assistência a viúvas em caso de falecimento.
449
O gráfico, já apresentado anteriormente, foi aqui repetido para facilitar o acompanhamento do
fluxo do texto.
450
Sua família já foi enfocada neste estudo. Ver acima, neste mesmo capítulo.
291
Especulações à parte, percebe-se ainda que Manoel Francisco legou seu
nome (e de seu tio) a seu filho João Manoel, nos mesmos moldes em que Eva
tornou-se Eva Caetana. A menina, por sua vez, recebeu o prenome Maria, de sua
avó paterna, nos mesmos moldes percebidos por Rios. Cabe destacar que diversos
nomes compostos indicam a mesma composição de um prenome próprio e o de um
eventual familiar ou conviva que o tenha legado. Desconhece-se a origem dos
nomes Francisco ou Joaquina, mas há chances de pertencerem a familiares que os
repassaram a Manoel Francisco e a Maria Joaquina (talvez, respectivamente, seu
pai ou avô e avó materna ou paterna). No caso do nome Ignácio é mais provável
fazer parte de um stock nominal paterno, já que era compartilhado pelos irmãos
Manoel e Maria Ignácia.
Gráfico Genealógico 6 – Família de Manoel Francisco de Brito
Manoel
Francisco
de Brito
D. Jenima
Pacheco de
Oliveira
João Manoel
de Brito (n.
11/8/1899)
Maria
Joaquina (n.
10/12/1901)
? Maria
Ignácia
de Brito
Garibaldi
Pacheco
de Oliveira
Pulcina
ndida
Pacheco
Manoel
Ignácio
de Brito
? ?
Fonte: RCSFP livro A-1
451
.
A designação por meio do parentesco não apenas simbolizava
pertencimento familiar ou significava uma negação do desenraizamento tantas
vezes imputado aos ex-escravos. Funcionava como identificador, na medida em
que os vínculos familiares podiam facilitar na individualização. Em três dos
processos criminais estudados, existem exemplos. Em 1888, diversos indivíduos
foram indiciados por preparar armadilha a um homem que levava um recado para
Manoel Marques da Silveira; chegando a seu destino, foi chamado ao pátio, onde
451
Gráfico repetido, para facilitar o fluxo de leitura.
292
diversos homens o esperavam, e, sem troca de palavras, recebeu tiro de Francisco
Moisés
452
. Dentre os acompanhantes do atirador, encontrava-se Antônio, e de
Antônio a única coisa que se sabia é que era filho de D. Aurora.
Algo semelhante ocorreu em 1888, quando os integrantes da quadrilha de
“Chico do Ranchinho” foram acusados de diversos crimes, dentre os quais o de
roubo e agressões físicas
453
. Dentre os indiciados, encontrava-se José Macário. Uma
das únicas informações disponíveis a seu respeito, para a polícia, era de que era
“filho do preto Michico”. O local de moradia de seu pai, a Enchovia, também foi
informado.
Já em 1891, Jacinto e Domingos, dentre diversos outros, responderam a
processo pelo crime de roubo de gado
454
. Na denúncia contra eles oferecida, foram
chamados de “Jacinto do Manoel José” e “Domingos do Manoel José”. A rigor,
não é compatível afirmar categoricamente que se trate de uma forma de
identificação de parentesco. Como, porém, o “do Manoel José” foi utilizado para
apontar aqueles dois indiciados, acredito que se trate de irmãos envolvidos na
mesma atividade, e Manoel José, seu pai. A utilização da preposição “do”,
denotando posse e pertencimento, aparenta cumprir papel similar ao “gente de”,
que tinha entre os seus significados a participação em agrupamentos domésticos. É
possível que nomes compostos – como “Manuel José” – fossem originários da
elipse de palavras indicativas de pertencimento: “do”, “filho de”, “da família”, “da
gente”, etc. É uma idéia plausível, mesmo que não conte com comprovação. Sendo
originário deles ou não, não há dúvidas de que estes termos de parentesco estão
implícitos nos nomes compostos por patronímicos.
As palavras descritivas de relações familiares, mesmo quando não se
encontravam incorporadas à nomeação formal, foram adotados pela polícia e
agregados ao seu nome, como elemento de investigação e identificação, no caso
daqueles cujo sobrenome, apelido, ou outros meios de identificação não estivessem
disponíveis. Como já dito, situações assim levavam ao reconhecimento de formas
de referência diferenciadas, já que era premente a localização dos envolvidos
455
.
452
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 37 (1888).
453
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, auto 23 (1890).
454
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 32 (1891).
455
Mesmo assim, não parece ter sido a forma de localização mais eficaz: dos quatro indiciados
listados, três foram julgados à revelia. José Macário dos Santos, “filho do preto Michico” foi o único
que foi levado ao júri. Coincidentemente ou não, era o mesmo de que se possuía referências
geográficas para localização de seu pai.
293
Foram raras as mães de filhos naturais com registros de não serem brancas,
ou mesmo que tivessem “serviços domésticos” como profissão – alguns indícios de
possíveis passados escravos – que registraram no civil os seus bebês da forma
sistemática como as famílias mencionadas nas páginas anteriores o fizeram. Essa
podia ser uma maneira de busca por liberdade, no desejo de permanecer à margem
do controle estatal.
***
Eram muitos os significados de ser livre, e variadas as maneiras de viver esta
condição. Espero ter conseguido demonstrar que os ex-escravos intervinham, das
formas que lhes eram possíveis, para interferir nas categorias utilizadas para
classificá-los. Utilizá-las para afastar-se prática e simbolicamente do cativeiro era
decisivo. A adoção de um sobrenome senhorial não necessariamente representava
submissão, da mesma maneira que assumir um nome cristão podia afirmar vínculos
de ancestralidade tão ou mais sólidos do que nomeações africanas. Este
provavelmente se referia a experiências e laços de pertencimento muito mais
próximos do que o continente distante onde se encontravam suas raízes. Foram
muitas as maneiras, por vezes opostas, encontradas pelos negros para o exercício da
liberdade conquistada: integrar-se na sociedade em que passavam a viver, apartar-se
dela ou fazer um pouco de ambas coisas. Da maneira que fosse, nunca deixaram de
ser pronunciados os nomes da liberdade.
294
Considerações finais
Existem riscos decorrentes de lidar com um tema no qual, se não há
pioneirismo, há carência por pesquisas novas, para fazer face ao silêncio e à
invisibilidade. Muitos problemas do pós-abolição no Rio Grande do Sul precisam
ser objeto de investigação mais apurada. Diante deste quadro, para algumas
questões colocadas não foi possível dar respostas mais satisfatórias, diante da
imensa demanda represada por elas.
Frente à escassez bibliográfica, alguns temas se colocam ao pesquisador e
que, mesmo alheios aos planos iniciais de pesquisa, se impõem como
indispensáveis para compreensão dos processos históricos estudados. Foi o caso,
por exemplo, da presença negra na “Revolução Federalista”: ausente na concepção
inicial do trabalho, revelou-se aspecto inelutável para o entendimento dos processos
de construção de liberdade. É necessário “ouvir” o que a documentação primária –
ou melhor, aqueles que a escreveram – têm a dizer, e é, também, gratificante.
Por estes motivos, é possível que eu tenha tentado abrir janelas que não
foram descerradas totalmente. Em todo caso, diante da penumbra, algumas frestas
sempre são bem-vindas, e podem facilitar sua abertura posterior. No entanto, creio
ter obtido, também, resultados de valia. Se essa dissertação puder servir para
colocar em questão e estimular a reflexão, em um estado que se imagina
“europeu”, sobre as vidas dos ex-escravos – estes “esquecidos” – sobre os
significados das maneiras como eram chamados ou se identificavam, ou sobre as
295
relações sociais no pós-abolição em uma área rural da serra gaúcha, já me darei por
satisfeito.
Alguns problemas estavam colocados na sociedade pós-abolição,
reaparecendo em variáveis contextos (estando em jogo bois ou casas, autoridade ou
pinhões, pêssegos ou morte, nomes ou anonimatos, cores silenciadas ou
demonstradas, lenços brancos ou vermelhos). Esses temas eram a autonomia e o
paternalismo; a mobilidade e a dependência; o estigma e a invisibilidade. Não se
tratava, no entanto, nem de oposições polares, nem de um continuum linear: eram
aspectos em permanente tensão. Vinham à tona nas lutas diárias, nas opções
cotidianas e em negociações constantes.
A construção da liberdade deu-se através deste jogo, ou da recusa em dele
participar. As construções das liberdades, dizendo melhor, pois as respostas para
“os problemas da liberdade” (decorrentes, sim, de “heranças do cativeiro”, mas de
outras vivências mais) eram muitas. No limite, eram tantas quantos os ex-escravos
que passaram pela serra gaúcha naqueles anos. Cada qual combinava de formas
diferentes aqueles elementos, os acionando em momentos diversos. Para não
reduzir, porém, suas experiências ao individualismo, é forçoso admitir, e é isso que
a documentação demonstra, que as liberdades foram construídas na maior parte do
tempo de forma coletiva (como entre as “quadrilhas”) ou familiares (famílias de
todos os tipos). Infelizmente, os processos estudados não demonstraram relações
comunitárias que não aquelas vinculadas à ilicitude (conseqüência óbvia do tipo de
fonte utilizada), mas sua existência é provável.
Viu-se que havia, por parte de ex-senhores e também governantes, um
anseio pelo controle da mobilidade espacial dos antigos escravos. Fosse por causa
do trânsito garantido pelas atividades pecuárias e pelo tráfego serra-litoral,
intrínsecos à economia regional, fosse em virtude das oportunidades
particularmente favoráveis para fugas e esconderijos na região, ou ainda pela
associação de sua autonomia ao ócio, à degradação, à vagabundagem, houve um
esforço por conservá-los sob dependência. Durante a vigência do escravismo, houve
senhores que procuraram fazer com que a manutenção de familiares sob o jugo do
cativeiro servisse a este propósito. Já depois de 1888, a debilidade dos mecanismos
governamentais para controle e tutela dos ex-escravos revelou-se proporcional à sua
insistência nos inconvenientes e incapacidade de exercício da liberdade por aqueles.
É verdade que o presidente Rodrigo Vilanova preconizava sua manutenção junto
296
aos antigos senhores, e é provável que isso de fato tenha acontecido com alguns,
visto que tal tema foi objeto de queixa, anos após, dos republicanos no poder. Isso,
porém, procurei argumentar, de forma alguma deve ser tomado como indício de
uma relação de passividade.
Discutiu-se, também, que na vida pós-abolição, mesmo aqueles que
firmaram algum tipo de pacto paternalista com famílias senhoriais, com perceptível
continuidade de laços de autoridade em troca da manutenção da ocupação de
terras, tinham vínculos sociais com relações de mando paralelas ou concorrentes
com as dos ex-senhores. Isso sugere um poder senhorial em erosão, já que o
comando, agora, necessitava ser muito mais negociado do que durante o período
escravista. Em casos limite, os ex-senhores estavam realmente desmoralizados
diante dos antigos escravos. Isso não impedia alguns desses, contudo, de tentar
conservar alguns benefícios, provavelmente interpretados como direitos ou
privilégios, decorrentes da condição pregressa.
Constatou-se a continuidade das mesmas ocupações desempenhadas
durante o período escravista – as principais são campeiros, peões, capatazes,
serviço doméstico, capangas, lavradores. Não havia uma delimitação precisa entre
essas categorias, sendo comum atividades paralelas. Entende-se que essa
imobilidade deve-se não à incapacidade de ascensão social decorrente da “herança
da escravidão”, e sim à estagnação econômica da região, especialmente durante o
período bélico. Por outro lado, procurei uma aproximação com a formação e o
desenvolvimento de relações de assalariamento, tema este que segue merecedor de
abordagem mais aprofundada. Durante o pós-abolição, houve uma tendência de
crescimento das atividades de roubo de gado, quer pela facilidade aberta pela
desorganização produtiva, quer porque, extinto o cativeiro, apropriações informais
anteriormente resolvidas em âmbito privado tornaram-se visíveis.
Outra contribuição deste trabalho está em uma observação minuciosa nas
atividades daqueles assim designados “bandidos”, bem como a presença e
participação de ex-escravos em suas “quadrilhas”. Constatou-se que o mundo do
ilícito, longe de ser uniforme, estava cheio de clivagens e interesses divergentes.
Acredito que uma abordagem uniformizadora dificulte uma apreciação mais
adequada deste fenômeno social.
O período da “Revolução Federalista” foi interpretado como um momento
no qual os ex-escravos obtiveram oportunidades ímpares para barganhar com os
297
antigos senhores, em virtude da importância de seu engajamento militar. Este não
obedecia a um alinhamento automático à facção a que seu ex-senhor pertencia, e
nem à de seus adversários. Antes, dependia de um jogo de lealdades, negociações e
concessão de vantagens. Estava em jogo, para os ex-senhores, a captura de
lealdades anteriormente dadas ou mesmo sua ampliação. Já os ex-escravos, ao
menos alguns deles lograram, neste momento, aproveitar oportunidades seletivas,
limitadas, temporárias e desiguais.
Aqueles anos ofereceram, também, a alguns desertores a oportunidade de
encontrar modos de vida autônomos e alternativos. Propus, ainda, uma
desconstrução dos atributos geralmente associados a Adão Latorre, ao constatar
que sua estigmatização foi operada por inimigos políticos, sendo diversa sua
avaliação por aliados. A participação dos negros na “Revolução Federalista”
costuma ser reduzida a esse personagem, obscurecendo uma melhor apreciação de
sua presença no confronto.
Os problemas da autonomia e da dependência, ou do estigma e da
invisibilidade, foram um pano de fundo para as práticas de nomeação. A rejeição a
adotar um sobrenome às vezes estava ligada a um afastamento da sociedade na
qual ele podia ter relevância. Isso conferia a vantagem de dificultar sua
identificação, mas também fazia com que se arcasse com o pesado ônus do estigma
de “desenraizados” e “sem origens”. Se aquelas questões sempre estavam
colocadas, não é possível realizar associações mecânicas como, por exemplo, entre
a adoção do nome senhorial e a dependência. Se este costumava conter um “aval
simbólico” do ex-senhor, geralmente era utilizado aspirando à conquista de maiores
espaços de cidadania, acesso à justiça, ou expectativas por equiparação. Além
disso, quem o empregava podia ter, em paralelo, outras formas de referência: a
nomeação, naquela sociedade, era plural e os indivíduos acionavam suas
denominações em função da situação em que se encontravam e a quem se dirigiam.
Todavia, o emprego de um nome não implicava em seu reconhecimento necessário
por outrem.
Os nomes, assim como termos como “ex-escravo”, “de tal”, alcunhas e
apelidos, dentre outros, foram percebidos como categorias de classificação social,
nos termos da teoria antropológica francesa: atributivos de classes diversas,
hierarquicamente dispostas, e situando os indivíduos nas mesmas. As cores, muitas
vezes participando da composição do nome, ao adjetivar o indivíduo, sofreram
298
progressivo desaparecimento nos corpos documentais analisados. Contudo, elas
retornaram de forma vigorosa em situações de aguda tensão social. Por fim,
discutiu-se a construção de vínculos de ancestralidade no Brasil. Rejeitando uma
perspectiva afrocêntrica, procurei observar estes laços, costurados por cadeias
nominais, como uma criação crioula, e não apenas a reprodução de um modo de
ser daqueles que realizaram a travessia. As designações por meio do parentesco,
por fim, podiam funcionar como elemento identificador.
Os nomes da liberdade, assim, foram diversos; para alguns, representaram
assumir para si um sobrenome que lhes amparasse melhor em sua inserção na
sociedade pós-abolição. Freqüentemente, este foi o nome do antigo senhor, que
oferecia algum respaldo nesse intuito. Em outro extremo, houve os que se
apartaram daquela sociedade ou positivaram nomes que inicialmente os
estigmatizavam. O anonimato ou desindividualização que lhes eram impostos
foram empregados para viver sua liberdade em termos próprios, e para dificultar
sua captura e identificação.
Entre estes dois extremos, de “invisíveis ou estigmatizados” houve uma
infinidade de homens e mulheres que, sem apartar-se de maneira tão radical do
mundo ao seu redor, não tomaram para si o nome dos antigos senhores, ou o
fizeram de forma parcial, manipulando, assim, identidades que não eram nem de
todo invisíveis, nem de todo objeto de estigma e que, ao mesmo tempo, padeciam
de ambos aspectos.
***
Meu estudo, restrito que está ao século XIX, só permitiu perceber a
construção da vida em liberdade nos anos imediatamente subseqüentes à abolição
da escravidão. Para ir além das dimensões conjunturais intrínsecas ao lapso de
tempo adotado, adequado aos meus objetivos em uma dissertação de mestrado,
percebe-se a necessidade de contemplar o século XX, a fim de perceber a
persistência, ou não, das características analisadas, bem como reavaliar sua
relevância colocando-as em uma perspectiva temporal mais larga.
299
Considero, como as contribuições mais relevantes deste estudo, a
tentativa de relacionar pecuária e família escrava, tema que certamente não é novo,
mas que, “observado com uma lupa”, através de um crime e duas famílias, adquire
características mais específicas em seu funcionamento. Ressalto, ainda, o
descolamento das idéias de dependência e coabitação de ex-escravos, e o
reconhecimento da importância do roubo de gado. A proposta de inscrever a
população negra na história da “Revolução Federalista” e relacioná-la com a
abolição da escravidão através da desconstrução dos estigmas em torno de Adão
Latorre também foi importante. Por fim, ressalto o esforço de problematização da
nomeação no momento específico da abolição da escravidão, através de uma
metodologia interpretativa dos nomes, seus significados, elementos que o compõem
e contextos de utilização.
Desejo que este estudo seja apenas uma retomada, seguida por
muitos mais, no estudo de período tão crucial na história do Rio Grande do Sul (e
do Brasil).
300
Fontes documentais
Fontes impressas
CABEDA, Rafael; COSTA, Rodolpho. Os crimes da ditadura. A história contada pelo dragão.
CABEDA, Coralio B. P.; AXT, Gunter; SEELIG, Ricardo V. Porto Alegre:
Procuradoria-Geral de Justiça, Memorial, 2002. [1902]
CASTILHOS, Júlio. “Contra a escravidão” [11-4-1887] In CARNEIRO, Paulo. Idéias
políticas de Júlio de Castilhos. Brasília: Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1982.
DOURADO, Ângelo. Voluntários do Martírio. Narrativa da Revolução de 1893. Porto Alegre:
Martins Livreiro, 1977 [1896].
GRANADA, Daniel. Vocabulario Rio-platense razonado. Montevideo: Biblioteca Artigas /
Ministerio de Instrucción Pública y previsión social, 1957 [1889]
GUIMARÃES, Antônio F. P. A Revolução Federalista em Cima da Serra. 1892-1895. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1987.
MORITZ, Gustavo. Acontecimentos políticos do R. G. do Sul – 89, 90, 91. Porto Alegre:
Tipografia Thurmann, 1939.
MOURA, Euclydes B. O vandalismo no Rio Grande do Sul – Antecedentes da Revolução de 1893.
Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. [1892]
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2. Lisboa:
Tipografia Lacerdina, 1813.
TAVARES, Francisco da Silva. “Diário da Revolução Rio-grandense” In CABEDA,
Coralio B. P.; AXT, Gunter; SEELIG, Ricardo V. (orgs) Diários da Revolução de
1893. (tomo I). Porto Alegre: Memorial do Ministério Público Estadual, 2004.
TAVARES, General Joca. “Diário da Revolução Rio-grandense” In CABEDA, Coralio B.
P.; AXT, Gunter; SEELIG, Ricardo V. (orgs) Diários da Revolução de 1893. (tomo
II). Porto Alegre: Memorial do Ministério Público Estadual, 2004 a.
301
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Fundo Secretaria do Interior e Exterior, Códice SIE.3-003
Relatório apresentado ao Sr. Dr. Júlio Prates de Castilhos, Presidente do Rio
Grande do Sul pelo Dr. João Abbott, Secretário de Estado dos Negócios do Interior e
Exterior. Em 15 de Agosto de 1895. Porto Alegre: Oficinas a vapor da Livraria Americana,
1895.
Fundo documentação dos governantes, códice A-720:
Fala apresentada a Assembléia Legislativa Provincial do Rio Grande do Sul pelo
Presidente da Província o Exc. Sr. Desembarg. Henrique Pereira de Lucena, ao instalar-se
a 2
a
sessão da 21
a
legislatura em 7 de março de 1886. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas
do Conservador, 1887.
Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça 3
o
vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de Azembuja Vilanova 2
o
vice-presidente ao
passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul Em 27 de
outubro de 1887.
Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Vilanova passou a
administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul a S. Ex. o Snr. Barão
de Santa Tecla, 1
o
vice-presidente no dia 9 de agosto de 1888.
Biblioteca da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
(Solar dos Câmara)
Coleção das leis Império do Brasil de 1871.Tomo XXXI. Parte 1.Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1871. p. 147-151
Coleção dos Atos, Regulamentos e instruções expedidas pela Presidência da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. – tomo 14, parte 2, 1858 (Códigos de
Posturas de Conceição do Arroio e Santo Antônio da Patrulha); tomo 36, 1883 (Código de
Posturas de São Francisco de Paula e Torres)
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Diretoria Geral de Estatística – Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas –
República dos Estados Unidos do Brasil. População recenseada em 31 de dezembro de 1890. Rio
de Janeiro: Oficina da Estatística, 1898.
302
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
Jornal “A Reforma” – julho e agosto de 1885
Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
Jornal “A Federação” – julho e agosto de 1885; 1893-1895
Fontes manuscritas
Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul
- Livros 1 e 3 de batismos de São Francisco de Paula
Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Osório
- Livro 3 de batismos de Conceição do Arroio
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Fundo Polícia – maço 33 – Inquérito Policial (1893)
Fundo Autoridades Municipais, caixa 127, maço 238, e caixa 26 e maço 56.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
- Processos Criminais – I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula
(maços 1-4)
- Processos Criminais – I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo
(maços 19-27)
- Processo Criminal – I Cartório de Cívil e Crime de Conceição do Arroio, maço
1, processo 66 (1872).
- Inventário – Cartório de Órfãos e Ausentes (Vara de Família) de São Francisco
de Paula, maço 1, processo 1
- Inventário de João Antônio Alves – I Cartório de Cívil e Crime de Conceição
do Arroio, maço 1 processo 2 (1847).
- Inventário de Joaquina Maria Marques – I Cartório de Cívil e Crime de
Conceição do Arroio, maço 1 processo 66 (1872).
- Inventário - I Cartório da Provedoria de Conceição do Arroio, maço 1,
processo 22 (1876) testamento de Maria Joaquina Marques
303
- Alforrias – Livros:
- 1
o
Tabelionato de Conceição do Arroio – Registros Diversos (livros 1 e
2)
- 1
o
Tabelionato de Conceição do Arroio – Registros Gerais (livros 2 e
2b)
- Livro do Tabelionato de Conceição do Arroio – 2
o
distrito – Registros
Diversos (livro 1)
- Livro do Tabelionato de Conceição do Arroio – Freguesia de São
Domingos das Torres (livro 1)
- Livro do Tabelionato de Santo Antônio da Patrulha – Freguesia de São
Francisco de Paula – Notas (livro 2)
- Livro do 1
o
Tabelionato de Santo Antônio da Patrulha – Registros
Diversos
- Livro do Tabelionato de São Francisco de Paula – Notas (livro 1, 4, 6, 7
e 9)
- Livro do 1
o
Tabelionato de Torres – Registros Gerais (livro 1)
Biblioteca Municipal de São Francisco de Paula
- Acervo particular de Maria Lúcia Teixeira.
Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais de São Francisco de
Paula
- Livro A-1 (nascimentos) – 1893-1903
- Livro B-1 (casamentos) – 1891-1905
- Livro C-1 (óbitos) – 1896-1905
Centro de História da Família / Templo Mórmon – Canoas
:
- livros 1 e 2 de batismos de Conceição do Arroio.
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
- Arquivo Borges de Medeiros: Correspondência Passiva de Borges de Medeiros
(Conceição do Arroio)
304
Fontes on-line
Recenseamento Geral da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul de 1872,
disponibilizado on-line em http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?id=15
<acessado em 6/10/2006>
Foto de satélite: http://www.maps.google.com
<acessado em 4/10/2006>
Quadro “A Redenção de Cam”:
http://cienciahoje.uol.com.br/images/ch%20on-line/especial/genarq/genarq5a.jpg
<acessado em 4/1/2007>
Mapas
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Revolução Federalista – viagem de ida e volta aos Estados do Sul do Brasil - Mapas
históricos editados pelo AHRS e IHGRGS. Móvel 2 Gaveta 5 Envelope 25
1891 - Carta Geográfica do Estado Federal do Rio Grande do Sul organizada pelo
Estado Maior de Artilharia João Cândido Jacques. Propriedade do editor livreiro Joaquim
Alves Leite, Porto Alegre. Escala – 1:1.545.925. Móvel 1 – Rolo 26.
Biblioteca Municipal de São Francisco de Paula
Mapa de São Francisco de Paula (1925)
Mapa de São Francisco de Paula (1931)
305
Bibliografia
ALANIZ, Anna Gicelle G. Ingênuos e Libertos: Estratégias de sobrevivência familiar em
épocas de transição 1871-1895. Campinas: Centro de Memória Unicamp, 1997.
ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Vida privada e ordem privada no Império” In ________.
História da vida privada no Brasil – 2 – Império. A corte e a modernidade nacional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
________. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. “Os quilombos e as novas etnias”. In O’DWYER, Eliane
Cantarino (org) Quilombos – Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro:
Editora FGV e ABA, 2002.
AMARAL, Samuel. “Trabajo y trabajadores rurales en Buenos Aires a fines del siglo
XVIII”. In Anuario IEHS. Universidad Nacional del Centro de la Provincia de
Buenos Aires, 2, 1987.
AMARO, Luiz Carlos. “Negros: de escravos a trabalhadores livres” In PEREIRA, Lúcia
Regina et al. Negras histórias do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: FAPERGS/GT
Negros – ANPUH/RS, 2002.
ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo: 1888-1988. Bauru: Edusc, 1998.
________. América Afro-latina. 1800-2000. (no prelo)
ANJOS, José Carlos dos e SILVA, Sérgio B. da (orgs.) São Miguel e Rincão dos
Martimianos. Ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2004.
APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
306
AREND, Silvia M. F. “Um popular vai à guerra” In POSSAMAI, Zita. Revolução de
1893. Cadernos Porto e Vírgula, n. 3. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, 1993.
ASCENCIO, Michaelle. Del nombre de los esclavos y otros ensayos afroamericanos.
Caracas: Fondo Editorial de Humanidade y Educación, 1984.
ASSUMPÇÃO, José Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas: 1780-1888. Dissertação
(Mestrado) – PUCRS, Porto Alegre, 1985.
AXT, Gunter. Gênese do estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1929).
São Paulo: tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação do
departamento de História, USP, 2001.
________. e CABEDA, Coralio. “Introdução” In TAVARES, Francisco da Silva. “Diário
da Revolução Rio-grandense” In CABEDA, Coralio B. P.; AXT, Gunter;
SEELIG, Ricardo V. (orgs) Diários da Revolução de 1893. (tomo I). Porto Alegre:
Memorial do Ministério Público Estadual, 2004.
AZEVEDO, Célia Maria M. Onda Negra, Medro Branco. O negro no imaginário das
elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BANTON, Michael. A idéia de raça. Lisboa: Edições 70, 1977.
BARCELLOS, Daisy M. et al. Comunidade Negra de Morro Alto. Historicidade,
Identidade e Direitos Constitucionais. Relatório Técnico apresentado à Secretaria
do Trabalho, Cidadania e Assistência Social do Governo do Estado do Rio Grande
do Sul e à Fundação Cultural Palmares. Porto Alegre: 2002.
________.Comunidade Negra de Morro Alto. Historicidade, Identidade e Direitos
Constitucionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
BARROSO, Véra Lucia M. “As relações entre o distrito de São Francisco de Paula e a Vila
de Santo Antônio da Patrulha”. In BARROSO, Véra L. M. (org). Raízes de Santo
Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Tramandaí. Porto Alegre: EST,
1992.
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Fredrik Barth. Rio
de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. [LASK, Tomke (org.)]
BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1971. [Coleção Brasiliana, vol. 305]
BASTOS, Manuel F. Noite de Reis. Porto Alegre: Globo, 1935.
________. ‘Pequeno dicionário histórico e geográfico do município de Osório (antigo
Conceição do Arroio)’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul. III Trimestre ano XVII. Porto Alegre: Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul, 1937.
BEAUVOIR, Simone. O sangue dos outros. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
307
BERLIN, Ira et al. Slaves no more: three essays on emancipation and the civil war.
Cambridge: Cambridge University Press 1992.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 1997.
BONES, Elmar e RUAS, Tabajara. La cabeza de Gumersindo Saravia. Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1997.
BOSSLE, Batista. Dicionário Gaúcho Brasileiro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2003.
BOURDIEU, Pierre. “Espaço social e poder simbólico” In ________. Coisas Ditas. São
Paulo: Brasiliense, 1990.
________. “A ilusão biográfica” In AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de M. Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
BRANDÃO, Carlos R. Identidade e etnia. Construção da pessoa e resistência cultural. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
BUENO, Francisco S. Vocabulário Tupi-Guarani Português. São Paulo: Éfeta,1998.
CABEDA, Coralio B. P. “Contribuição para uma bibliografia da Revolução Federalista”
In Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul 2003. Porto
Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2003.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
CARVALHO, Ana Paula C. e WEIMER, Rodrigo de A. Família Silva: Resistência Negra
no bairro Três Figueiras. Laudo antropológico e histórico de reconhecimento da
comunidade remanescente de quilombo Família Silva para cumprimento ao art.
68/ADCT. Relatório entregue à Fundação Cultural Palmares e à Prefeitura
Municipal de Porto Alegre em 2004 – não publicado. Porto Alegre: FCP / PMPA,
2004.
CARVALHO, Daniela V. e OLIVEIRA, Vinícius P. “A apropriação política do discurso: a
quem pertence a memória / história dos Lanceiros Negros?” In Anais do III
Simpósio de História Cultural. Florianópolis: GT Nacional de História cultural
ANPUH, 2006a
CARVALHO, José Murilo. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual” In Pontos e bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.
________. A construção da ordem / Teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
CASTRO, Carmen Lúcia S. Ferro de brasa, tacho de cobre, puxados úmidos: cotidiano das
mulheres escravizadas em Porto Alegre (século XIX). Porto Alegre: Curso de pós-
graduação em História – PUCRS, dissertação de mestrado inédita, 1994.
308
CHAGAS, Miriam. “Um direito a ser conquistado: remanescentes de comunidades de
quilombos”. In BARCELLOS et al. Comunidade Negra de Morro Alto.
Historicidade, Identidade e Direitos Constitucionais. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2004.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
________. Cidade febril. Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
________. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
________. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In Estudos Avançados 11(5), 1991
CHEREM, Rosângela M. “Do sonho ao despertar: expectativas sociais e políticas no início
republicano na capital de Santa Catarina” In BRANCHER, Ana; AREND, Sílvia
M. F. História de Santa Catarina no século XIX. Florianópolis: Editora da UFSC,
2001.
COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da Escravidão.
Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
_______. “Condições análogas à escravidão – Imperialismo e ideologia da mão-de-obra
livre na África” In COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca.
Além da Escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades
pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
COSTA, Emília V. Da senzala à colônia. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
________. “Novos públicos, novas políticas, novas histórias: do reducionismo econômico
ao reducionismo cultural: em busca da dialética”. In: Anos 90. Revista do
Programa de Pós-graduação em História / UFRGS. Porto Alegre: n. 10, dezembro
de 1998 (a).
________. Coroas de glória, Lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em
1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998b.
________. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editora da Unesp,
1999.
CRAPANZANO, Vincent. “Estilos de interpretação e a retórica de categorias sociais” In
MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Claudia B. Raça como retórica – a construção
da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CUCHE, Denys. La noción de la cultura en las ciencias sociales. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2002.
309
CUNHA, Manuela C. Antropologia do Brasil. mito, história e etnicidade. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
DAIBERT JUNIOR, Robert. Isabel, a “Redentora” dos escravos. Bauru: Edusc, 2004.
DALLA VECCHIA, Agostinho Mario As noites e os dias. Elementos para uma economia
política da Forma de produção semi-servil Filhos de criação. Pelotas: Editora
Ufpel, 2001.
DAVIS, Natalie Z. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
DE BORTOLLI, Cristiane de Q. Vestígios do passado. A escravidão no Planalto Médio
gaúcho. Passo Fundo: Editora UPF, 2003.
DURKHEIM, Émile e MAUSS, Marcel. “Algumas formas primitivas de classificação” In
MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
ESCOBAR, Wenceslau. Apontamentos para a História da Revolução Rio-grandense de
1893. Brasília: Editora da UnB, 1983 [1919]
FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FARIAS, Juliana B. e GOMES, Flávio dos S. “Descobrindo mapas dos minas: alforrias,
trabalho urbano e identidades, 1800-1915”. In ________; ________; SOARES,
Carlos Eugênio L. No labirinto das Nações. Africanos e identidades no Rio de
Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
FARINATTI, Luís Augusto E. Sobre as cinzas da Mata Virgem. Lavradores Nacionais na
Província do Rio Grande do Sul. (Santa Maria, 1845-1880). Porto Alegre: 1999
(Dissertação de mestrado. Curso de pós-graduação em História – Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
________. “Um campo de possibilidades: notas sobre as formas de mão-de-obra na
pecuária (Rio Grande do Sul, século XIX)” In História – Unisinos. N. 08, V. 07,
Julho/Dezembro de 2003. São Leopoldo, 2003.
________.“Nos rodeios, nas roças e em tudo mais: trabalhadores escravos na Campanha
Rio-grandense” In Anais do II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional. Porto Alegre: ANPUH, 2005 (CD-Rom).
________. “Escravos do pastoreio: Pecuária e escravidão na fronteira meridional do Brasil
(Alegrete, 1831-1850). In Ciência e Ambiente – UFSM, n. 33, jul-dez 2006.
FÉLIX, Loiva O. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1996.
FERNANDES, Ricardo C. BUSTOLIN, Cindia, TEIXEIRA, Luana. “São Roque” In
Quilombos no Sul do Brasil. Perícias antropológicas. Boletim informativo do
NUER, vol. 3 n. 3. Florianópolis: NUER / UFSC, 2006.
310
FERREIRA FILHO, Arthur. “A revolução federalista” In BECKER, Klaus (org).
Enciclopédia Rio-grandense: Rio Grande Antigo. Volume 1. Canoas: Editora
Regional Ltda: 1956.
FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas. Famílias escravas e
tráfico atlântico, c. 1790- c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
FONER, Eric. Nada além da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988.
FONTOURA, João. “Chiru” In MOREIRA, Maria Eunice e BAUMGARTEN, Carlos
Alexandre (orgs.) Literatura e Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1993.
FORTES, Amyr B. e WAGNER, J. B. Santiago. História Administrativa, Judiciária e
Eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Secretaria da Agricultura do Rio
Grande do Sul; Editora Globo: 1963.
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São
Paulo: HUCITEC / Salvador: EDUFBA, 1996.
________. Encruzilhadas da liberdade. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.
FRANCO, Sérgio da C. “O sentido histórico da Revolução de 1893” In BARRETO,
Abeillard et al. Fundamentos da Cultura Rio-grandense. Quinta série. Porto
Alegre: Faculdade de Filosofia, Universidade do Rui Grande do Sul, 1962.
________. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: Editora Globo, 1967.
________. A Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1993.
________. “Panorama Geral da Revolução Federalista” In Rambo, Arthur e Félix, Loiva
O. A Revolução Federalista e os Teuto-brasileiros. Porto Alegre: Editora da
Universidade; São Leopoldo: Editora Unisinos, 1995.
FUCÉ, Pablo. “Transgressión y Control Social. Gauchos y vecinos en Colonia del
Sacramento a fines del siglo XVIII”. Tiempos modernos. 11, 2004.
GARAVAGLIA, Juan Carlos. “Existieron los gauchos?” In Anuario IEHS. Universidad
Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, 2, 1987.
GEERTZ, Clifford. “Pessoa, tempo e conduta em Bali” In ________. A interpretação das
Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
________. “Por uma teoria interpretativa da cultura” In ________. A interpretação das
Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989a.
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Buenos Aires: Editorial los libros del Riel,
1998.
GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810).
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
311
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, 2001.
GINZBURG, Carlo O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
________. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In ________. Mitos, emblemas e
sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
________. “Feitiçaria e piedade popular: notas sobre um processo modenense de 1519” In
________. Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989a.
________. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand
Brasil/DIFEL, 1991.
________. “Provas e possibilidades à margem de 'Il Ritorno de Martin Guerre' de Natalie
Zemon Davis” In _______. A Micro-história e outros ensaios. Rio de
Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil/DIFEL, 1991a.
________. “O historiador como antropólogo: uma analogia e suas implicações” In
_______. A Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand
Brasil/DIFEL, 1991b.
________. e PONI, Carlo. “O nome e o comoIn ________. A micro-história e outros
ensaios. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil/DIFEL, 1991 p. 169-178.
________. Os andarilhos do bem. Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio
de Janeiro: LTC, 1988.
GOMES, Flávio dos S. A hidra e os pântanos – mocambos, quilombos e comunidades de
fugitivos no Brasil (séculos XVII – XIX). São Paulo: Editora UNESP e Ed. Polis,
2005.
_______. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005a.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
GRAHAM, Sandra L. Caetana diz não. Histórias de mulheres da sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
GRENDI, Edoardo. “Repensar a micro-história?” In REVEL, Jacques. Jogos de escalas
a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
________. “Paradojas de la historia contemporánea” In Relaciones – Revista de El colegio
de Michoacán. vol. 24, número 95 Colegio de Michoacán, Zamora, México: 2003
p. 267-278.
GUAZZELLI, César Augusto B. “Fronteiras de sangue no espaço platino: Recrutamentos,
duelos, degolas e outras barbaridades – ‘Pois então degola’: representações da
312
barbárie sobre campeiros e milicianos no século XIX”. In História em Revista,
Pelotas, volume 10, 49-59, dezembro/2004.
________.“Libertos e liberdade: os soldados negros da República rio-grandense” In Anais
do II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre:
ANPUH, 2005 (CD-Rom).
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia”. In
Educação e Pesquisa. São Paulo: v. 29 n. 1, 2003.
GUIMARÃES, Josué. “A Travessia”. In MOREIRA, Maria Eunice e BAUMGARTEN,
Carlos Alexandre (orgs.) Literatura e Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 1993.
GUTFREIND, Ieda. “O Negro no Rio Grande do Sul: o vazio historiográfico”. In Estudos
Ibero-Americanos. PUCRS, V. XVI, nos. 1 e 2, 1990.
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, Charqueadas & Olarias. Um estudo sobre o espaço
pelotense. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História.
Cópia xerográfica. Porto Alegre: PPGH / PUCRS, 1993.
________. Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas. (1777-1888).
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História. Porto Alegre: PPGH
/ PUCRS, 1999.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos
Tribunais, 1990.
HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais
e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763).
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – curso de
Doutorado em História Social. Rio de Janeiro: 2006.
HARTUNG, Miriam F. O sangue e o espírito dos ancestrais. Escravidão, herança e
expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha – PR. Florianópolis: NUER
/ UFSC, 2004.
HOLT, Thomas C. The problem of freedom. Race, labor, and politics in Jamaica and
Britain, 1832-1938. Baltimore / London: The Johns Hopkins University Press,
1992
________.“A essência do contrato – A articulação entre raça, gênero sexual e economia
política no programa britânico de emancipação, 1838-1866” In. COOPER,
Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da Escravidão.
Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
313
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KERSTING, Eduardo Henrique de O. Negros e a modernidade urbana em Porto Alegre:
A Colônia Africana (1890-1920). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História. Cópia xerográfica. Porto Alegre: PPGH / UFRGS, 1998.
LARA, Silvia H. Campos da Violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
LAUREANO, Marisa A. A última vontade. Um estudo sobre os laços de parentesco entre
os escravos na Capitania do Rio Grande de São Pedro. 1767-1809. Porto Alegre,
Dissertação de Mestrado, PUCRS: 2000.
LEAL, Elisabete da C. O Positivismo, o Partido Republicano Rio-Grandense, a Moral e a
Mulher. Dissertação de mestrado apresentada como requisito parcial à obtenção do
grau de Mestre, sob orientação da Prof. Dra. Sílvia Regina Ferraz Petersen. Porto
Alegre:2006.
LEBERT, Norbert e LEBERT, Stephan. Tu carregas meu nome. A herança dos filhos de
nazistas notórios. Rio de Janeiro: Record, 2004.
LEITE, Ilka B. “Descendentes de africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica e
segregação” In ________. (org) Negros no sul do Brasil – invisibilidade e
territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.
_______. O legado do testamento. A comunidade de Casca em perícia. Florianópolis: NUER /
UFSC, 2002
_______. “Humanidades Insurgentes: conflitos e criminalização dos quilombos”.
Florianópolis: NUER / UFSC / Projeto Dossiê dos Conflitos, 2007 (cópia
xerográfica – texto inédito).
LESSA, Luís Carlos B. “Noventa e três” In ________. Rodeio dos ventos. Porto Alegre:
Editora Globo, 1978.
LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história” In BURKE, Peter A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
________. A Herança Imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1970.
LIMA, Henrique E. “Sob o domínio da precariedade: escravidão e significados da
liberdade de trabalho no século XIX”. In Topoi, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005 pp 289-
325.
________. A micro-história italiana. Escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
314
LIMA, Solimar Oliveira. Triste pampa. Resistência e punição de escravos em fontes
judiciárias no RS – 1818-1833. Porto Alegre: IEL / Editora da PUCRS, 1997.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. In www.releituras.com/mlobato_menu.asp
LOPES NETO, J. Simões. Cancioneiro Guasca. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.
LOVE, Joseph. O Regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975.
LUCENA, Plínio. São Francisco de Paula por Plínio Lucena. S/local s/ data. [consultado
na Biblioteca Pública Municipal de São Francisco de Paula].
MACHADO, Maria Helena Crime e escravidão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
________. O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, EDUSP, 1994.
MACHADO, Paulo P. Lideranças do Contestado. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. A Charqueada e a gênese do
escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1984.
________. O escravo gaúcho. Resistência e trabalho. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1993.
________. O sobrado e o cativo. A arquitetura urbana erudita no Brasil escravista – o caso
gaúcho. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2001.
________. Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande
do Sul. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2002a.
________. “Gaúcho Negro: da escravidão ao trabalho livre na fazenda pastoril sulina” In
PEREIRA, Lúcia Regina et al. Negras histórias do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: FAPERGS/GT Negros – ANPUH/RS, 2002b.
MAGALHÃES JR., R. Como você se chama? Um estudo sócio-psicológico de prenomes e
cognomes. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1974.
MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e
o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
MARTINS, Ivan Pedro. “Caminhos do Sul” In MOREIRA, Maria Eunice e
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre (orgs.) Literatura e Guerra Civil de 1893.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993.
MARX, Karl. “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” In ________. Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
________. “La llamada acumulación originaria”. In ________. El capital. Libro primero –
El proceso de producción del capital. Vol. 3. México: Siglo XXI, 1992 [1867]
MATTOS, Hebe Maria. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.) História da vida privada no Brasil 2.
315
Império: a corte e a modernidade nacional. Coleção dirigida por Fernando Novais.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
________. Das Cores do Silêncio. Significados da Liberdade no Sudeste Escravista. Brasil,
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
________. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2000.
________. “A escravidão moderna nos quadros do Império Português: o Antigo Regime
em perspectiva atlântica”. In FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda e
GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.) O antigo regime nos trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
________. “Novos quilombos: re-significações da memória do cativeiro entre descendentes
da última geração de escravos”. In RIOS, Ana L. e ________. Memórias do
Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira: 2005.
MATTOS, Jane R. “Que arraial que nada, aquilo lá é um areal” O Areal da Baronesa:
imaginário e história (1879-1921) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História. Cópia xerográfica. Porto Alegre: PPGH / PUCRS, 2000.
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade. Imprensa e policiamento urbano em
Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edunisc / ANPUH, 2004.
MAUSS, Marcel. “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’” In
________. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.
MELLO E SOUZA, Antonio Candido. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas
Cidades, 1977.
MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / Projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos
e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MOMBELLI, Raquel e BENTO, José. “Invernada dos Negros” In Quilombos no Sul do
Brasil. Perícias antropológicas. Boletim informativo do NUER, vol. 3 n. 3.
Florianópolis: NUER / UFSC, 2006.
MONSMA, Karl, TRUZZI, Oswaldo e CONCEIÇÃO, Silvano. “Solidariedade étnica,
poder local e banditismo: uma quadrilha calabresa no Oeste Paulista, 1895-1898”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18, 53, p. 71-96, 2003.
________. Conflito simbólico e violência interétnica: europeus e negros no oeste paulista,
1888-1914. Trabalho preparado para apresentação na mesa redonda “Relações
316
interétnicas e reconfiguração das identidades no Brasil republicano”, VII Encontro
Estadual de História, Pelotas, julho de 2004.
________. Histórias de violência: inquéritos policiais e processos criminais como fontes
para o estudo de relações interétnicas. In: DEMARTINI, Zeila de B. F.; TRUZZI,
Oswaldo. (Org.). Estudos migratórios - perspectivas metodológicas. São Carlos:
EDUFSCar, 2005
MOREIRA, Paulo Roberto S. Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da
criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX.
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de História
da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 1993.
________.“Boçais e malungos em terras de brancos – o último desembarque de escravos
nos arredores de Santo Antônio da Patrulha: 1852” In BEMFICA, Coralia; et al
(org.) Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: EST, 2000.
________. O mato como positividade: percepções de uma comunidade quilombola. In VI
Encontro Estadual de História – Anais. Passo Fundo: ANPUH/RS, 2002. CD-
ROM
________. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto
Alegre: EST, 2003.
OLINTO, Antônio. A Casa da Água. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
________. O Rei de Keto. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1980.
OLIVEIRA, Roberto C. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.
________. O índio e o mundo dos brancos. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Pioneira,
1981.
OLIVEIRA, Vinicius P. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Um africano ladino em
terras meridionais. Porto Alegre: EST Edições, 2006.
OLIVEN, Ruben G. “A invisibilidade social e simbólica do negro no Rio Grande do Sul”
In LEITE, Ilka B. Negros no sul do Brasil. Invisibilidade e Territorialidade.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da
Estremadura Portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822.
Niterói: 1999 (Tese de doutorado – PPG – História UFF).
________. “Campeiros e domadores: escravos da pecuária sulista, séc. XVIII” In Anais do
II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: ANPUH,
2005 (CD-Rom).
PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos. A construção da liberdade em
Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume, FAPESP, 2003.
317
PEDRO, Joana Maria et al. “Escravidão e Preconceito em Santa Catarina: História e
Historiografia”. In LEITE, Ilka B. Negros no sul do Brasil: invisibilidade e
territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.
PESAVENTO, Sandra J. A Revolução Federalista. São Paulo: Brasiliense, 1983.
________. “Revolução Federalista: a memória revisitada” In POSSAMAI, Zita. Revolução
de 1893. Cadernos Porto e Vírgula, n. 3. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de
Porto Alegre, 1993.
PEZAT, Paulo. Auguste Comte e os fetichistas: estudo sobre as relações entre a Igreja
Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista
na República Velha. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da UFRGS como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre, sob
a orientação da Prof. Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: 1997
PICCOLO, Helga I. L. A política rio-grandense no II Império (1868-1882). Porto Alegre:
Gabinete de Pesquisa de História do Rio Grande do Sul – IFCH – UFRGS, 1974.
PINTO, Celi R. Positivismo: um projeto político alternativo. RS – 1889-1930. Porto
Alegre: L&PM, 1986.
PIRES, Maria de Fátima N. O Crime na cor. Escravos e forros no alto sertão da Bahia
(1830-1888). São Paulo: Annablume / FAPESP, 2003.
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio.” In Estudos Históricos – 1989/3.
Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1989.
________. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5 n.
10, 1992.
PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens Ilustres do RS. Porto Alegre: ERUS, 1976.
POSSAMAI, Osmar. “As relações entre São Francisco de Paula e os povoados do
município de Santo Antônio da Patrulha”. In BARROSO, Véra L. M. (org). Raízes
de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Tramandaí. Porto Alegre:
EST, 1992.
________. RIZZON, Luiz Antônio. “São Francisco de Paula de Cima da Serra”. In
BARROSO, Véra L. M. (org). Raízes de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco
de Paula e Tramandaí. Porto Alegre: EST, 1992.
QUEIROZ, Suely R. R. Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
RAMOS, Eloísa Helena Capovilla da L. O Partido Republicano Rio-grandense e o poder
local no litoral norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Dissertação de Mestrado, 1990.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
318
REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social” In. _________. (org) Jogos de
escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1998.
REVERBEL, Carlos. Maragatos e pica-paus. Guerra civil e degola no Rio Grande. Porto
Alegre: L&PM, 1985.
RIBEIRO, Carlos Antonio C. Cor e criminalidade. Estudo e análise da Justiça no Rio de
Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
RILLO, Apparicio S.Bicho Tutu. In MOREIRA, Maria Eunice e BAUMGARTEN,
Carlos Alexandre (orgs.) Literatura e Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 1993.
RIOS, Ana L. Família e Transição (famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920).
Dissertação apresentada ao curso de mestrado em História da Universidade
Federal Fluminense. Niterói: UFF, 1990.
________.“A preparação ética e política para a liberdade: a última geração de escravos e
senhores no Vale do Paraíba”. In RIOS, Ana L. e MATTOS, Hebe Maria.
Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira: 2005.
________.“Filhos e netos da última geração de escravos e as diferentes trajetórias do
campesinato negro”. In RIOS, Ana L. e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do
Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira: 2005a.
________. “Conflito e acordo: a lógica dos contratos no meio rural”. In RIOS, Ana L. e
MATTOS, Hebe Maria. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no
Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2005b.
RIOS, Ana L. e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e
Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2005.
ROCHA, Cristiany M. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP,
2004
RUSCHEL, Ruy R. “A ocupação do litoral e suas relações com a serra”. In BARROSO,
Véra L. M. (org.) Raízes de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e
Tramandaí. Porto Alegre: EST, 1992.
SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
________. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1990.
SALIS, Eurico Jacinto. História de Bagé: ama sua terra quem bem a conhece. Porto
Alegre: Livraria do Globo, 1955.
SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: Pallas,
2003.
319
SARTRE, Jean Paul. A Idade da Razão. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
________.Questão de método. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989.
SCHWARCZ, Lília M. Retrato em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos em São
Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
________. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
________. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001.
SCOTT, Rebecca. (org.) The abolition of slavery and the aftermath of Emancipation in
Brazil. Duke: Duke University Press, 1988.
________.Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre 1860-1899. Rio
de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1991.
_______. “Fronteiras móveis, “linhas de cor” e divisões partidárias. Raça, trabalho e ação
coletiva em Louisiania e Cuba, 1862-1912”. In COOPER, Frederick; HOLT,
Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da Escravidão. Investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
SEGA, Rafael Augustus. A Revolução Federalista no Paraná e a rearticulação da vida
político-administrativa do Estado (1889-1907). Porto Alegre: Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Tese de
doutorado inédita, 2003.
SEYFERTH, Giralda. “A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos” In
Anuário Antropológico / 93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
________. “As identidades dos imigrantes e o melting pot nacional”. In Horizontes
Antropológicos ano 6, n. 14. Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social / UFRGS, 2000.
SHERIFF, Robin. “Como os senhores chamavam os escravos: discursos sobre cor, raça e
racismo em um morro carioca” In MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Claudia
Barcellos. Raça como retórica – a construção da diferença. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
SILVEIRA, Éder. A Cura da Raça. Eugenia e higienismo no discurso médico sul-rio-
grandense nas primeiras décadas do século XX. Passo Fundo: Editora da
Universidade de Passo Fundo, 2005.
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
320
SLENES, Robert W. “Histórias do Cafundó” In VOGT, Carlos e FRY, Peter. Cafundó: a
África no Brasil. Linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
________. Na Senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava
- Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SOARES, Mariza de C. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no
Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
SOUZA, José Otávio Catafesto. Aos fantasmas das brenhas: Etnografia, invisibilidade e
etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). Tese
apresentada ao programa de pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
STENZEL FILHO, Antônio. A Vila da Serra (Conceição do Arroio). Sua descrição física e
histórica. Usos e costumes até 1872. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro;
Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1980.
TEIXEIRA, Luana “Outras fronteiras: o quilombo de São Roque construindo a história
dos quilombos no Rio Grande do Sul e Santa Catarina a partir da experiência dos
remanescentes quilombolas”. In Anais do I Encontro do GT História Agrária.
História Social e Econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ANPUH /
Editora Unijuí, 2006 (CD-Rom).
TEIXEIRA, Maria Lucia da S. São Francisco de Paula, nossa terra, nossa gente. Porto
Alegre: Evangraf, 2002.
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1981.
________. ‘A economia moral da multidão inglesa no século XVIII’ In Costumes em
comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
TRAMONTINI, Marcos J. A organização social dos imigrantes. A colônia de São
Leopoldo na fase pioneira 1824-1850. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.
TRINDADE, Hélgio. “Aspectos políticos do sistema partidário republicano rio-grandense
(1882-1937)”. In DACANAL, José H. e GONZAGA, Sergius. RS: Economia e
política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979.
________. Poder Legislativo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul 1891-1937. Porto
Alegre: Sulina, 1980.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento. I – O Continente. Porto Alegre: Editora Globo,
1956.
321
_________. “Os Devaneios do General” In MOREIRA, Maria Eunice e BAUMGARTEN,
Carlos Alexandre (orgs.) Literatura e Guerra Civil de 1893. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 1993.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Volume 1. Brasília: Editora UnB, 1999.
WEIMER, Rodrigo de A. “Entre “bandidos” e coronéis: Candinho Baiano, um líder
federalista no litoral norte na década de 1890”. Comunicação apresentada no VII
Corredor das Idéias do Cone Sul. São Leopoldo: Unisinos, 2005 (prelo).
________. “Nominação e Identificação de ex-escravos através de processos criminais. São
Francisco de Paula, RS, 1880-1900.” In Anais do II Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: ANPUH, 2005a (CD-Rom)
________. “Observações sobre furto de gado e circuitos comerciais clandestinos no
nordeste do Rio Grande do Sul em fins do século XIX”. In Anais do I Encontro do
GT História Agrária. História Social e Econômica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: ANPUH / Editora Unijuí, 2006 (CD-Rom).
________. “O nome por trás do auto: identidades e práticas de nominação na serra rio-
grandense no pós-emancipação” In Anais do III Simpósio de História Cultural.
Florianópolis: GT Nacional de História cultural – ANPUH, 2006a
________. “O dia em que a ex-escrava Bibiana matou Dona Castorina da Silva Dutra a
marteladas, golpes de canivete, e arremessando-a no fogo”. (submetido a
apreciação).
________. “Cidadanias e liberdades no sul do Brasil nas décadas finais do século XIX” (no
prelo).
WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros
em São Paulo (1850-1880). São Paulo: HUCITEC, 1998.
________. “Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível”. In
SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil 3. República: da Belle
Époque ao Estado Novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a.
WITT, Marcos. “Colonização Alemã no Rio Grande do Sul: a Colônia Alemã de Três
Forquilhas” apud _________; ELY, Nilza Huyer; MEDEIROS, Oly Alves de.
“Cantando Noite de Reis: o 'ressurgir' do Baiano Candinho na obra de Fernandes
Bastos” In SCHOLL, Marly; KLEIN, Ana Inez; BARROSO, Véra Lucia Maciel.
Raízes de Osório. Porto Alegre: EST, 2004.
XAVIER, Regina Célia L. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda
metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória UNICAMP, 1996.
________. “Biografando outros sujeitos, valorizando outra História: Estudos sobre a
experiência dos escravos”. In SCHMIDT, Benito Bisso. O biográfico: perspectivas
interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.
322
________. Tito de Camargo Andrade: Religião, escravidão e liberdade na sociedade
campineira oitocentista. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Campinas: Unicamp, 2002.
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século
XIX. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.
ZONABEND, Françoise. “Le nom de personne” In L’Homme, oct.-déc. 1980, XX (4), pp.
7-23.
________. “Pourquoi nommer?” In BENOIST, Jean-Marie et al. L’Identité. Séminaire
interdisciplinaire dirigé par Claude Lévi-Strauss, professeur au Collège de France,
1974-1975. Paris: Quadrige / PUF, 1995 [1974-1975].
323
Anexo 1
Ex-escravos ou ingênuos
Antes de 1888
N
ome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Manoel
“Manduri”
Ignorada Maria Trindade Fogaça
34 2 1887 CC SFP vítima homicídio
Manoel
(preto)
Ignorada José Joaquim Pereira
8 1 1887 CC SFP terceiro homicídio
Paulo
Campeiro /
peão
João Machado Ramos
555 20 1882 CC Taquara réu homicídio
Fructuoso Lavrador /
peão
“negrinho de Antônio
Pacheco” 532 19 1880 CC Taquara terceiro desobediência
Prudêncio Lavrador /
peão
“negrinho de Antônio
Pacheco” 532 19 1880 CC Taquara terceiro desobediência
Calisto
Capataz /
caseiro
João Antônio Marques
530 19 1880 CC Taquara vítima homicídio
Adão Alves
de Araújo
Capataz /
caseiro
Capitão Demétrio de
Araújo 34 2 1887 CC SFP testemunha homicídio
Tristão
Fogaça
Tropeiro /
jornaleiro
João Fogaça de Oliveira
34 2 1887 CC SFP testemunha homicídio
Francisco
José de
Moraes
“Criador”
(tinha marca
própria)
Maria de Moraes
541 20 1881 CC Taquara réu
abigeato
(adulteração
de marcas)
Bibiana
Serviços
domésticos
José Inácio Dutra
576 21 1885 CC Taquara réu homicídio
Joana
Serviços
domésticos
D. Senhorinha Cândida
Pimentel
34
2 1887
CC SFP
testemunha
homicídio
Ezequiel Atividades
delituosas
Bento Soares de Oliveira
37 2 1888 CC SFP terceiro homicídio
João
Lavrador /
jornaleiro
Padre Mônaco
614 23 1887 CC Taq testemunha abigeato
324
Depois de 1888
N
ome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Justino
Campeiro /
peão
Família
Dutra 659 26 1892 CC Taquara vítima homicídio
Elias
Carneiro
Lobo
Lavrador /
peão
Maria
Carneiro de
Córdova 17 1 1891 CC SFP réu
tentativa de
homicídio /
emboscada
Francisco
Moreira dos
Santos
Capataz /
caseiro
D.
Bernardina
Soares de
Oliveira
IP (AHRS –
Polícia) 33 1893 CC SFP testemunha abigeato
André Soares
Bergundes
Peão /
capanga
Felisberto
Baptista de
Almeida
Soares 41 2 1893 CC SFP u
resistência a
prisão
Adão
Peão /
capanga
Bento Soares
de Oliveira 41 2 1893 CC SFP réu
resistência a
prisão
Manuela
(irmã de Elias
Carneiro
Lobo)
Serviços
domésticos
Maria
Carneiro de
Córdova
17 1 1891 CC SFP u
tentativa de
homicídio /
emboscada
Euzébio Atividades
delituosas
Diogo
Pedroso de
Moraes 636 25 1890 CC Taquara réu abigeato
Saturnino
Joaquim da
Rosa
Atividades
delituosas
Dona
Henriqueta
Soares do
Amaral 655 26 1890 CC Taquara u abigeato
Veríssimo Agregado Olivério da
Silva Esteves
70 3 1890 CC SFP vítima homicídio
325
Anexo 2
Indivíduos com elementos relevantes para inferir tratar-se de ex-escravos
Antes de 1888
N
ome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Motivo de presunção
Zezinho ou
Josézinho Peão
Jorge Fleck
(?) 564 21 1883 CC Taq réu homicídio
A cor descrita, preto, é
indício de estigma de
passado escravo
“um
mulatinho”
“cuidava do
gado”
Júlio
Morrisson
de Jüssau ?
561 21 1883 CC Taq terceiro abigeato
Identificado como “um
mulatinho”. A forma como
é referido no processo
sugere tratar-se de um
ingênuo.
Simplício
Pedroso de
Moraes /
Simplício
Pedro
Tropeiro
“levava
gado”para
um
comerciante
Miguel
Pedroso de
Moraes 614 23 1887 CC Taq réu abigeato
Usava o sobrenome do ex-
senhor; não tinha residência
certa; filho de “Felisberto e
Rita de Tal”.
Gertrude de
Tal
Serviços
domésticos ? 34 2 1887 CC SFP testemunha
Homicídio
Nome e trabalho junto com
Ana Maria e sua mãe.
Ana Maria
Serviços
domésticos
Dona
Senhorinha
Cândida
Pimentel 34 2 1887 CC SFP testemunha
Homicídio
Filha de escrava.
Teodora
Moreira da
Silva
“Serviços
domésticos”
“para si” ? 550 20 1881 CC Taq vítima
Injúria
Mãe de Maria Luciana.
Maria
Luciana Ignorada ? 550 20 1881 CC Taq vítima
Injúria
In
j
uriada como “negra”.
Sebastiana
Maria do
Nascimento
Ignorada D. Maria
Trindade
Fogaça 34 2 1887 CC SFP terceira homicídio
Irmã de Manuel Manduri
326
Depois de 1888
Nome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Motivo de presunção
Leandro
Joaquim da
Silva
Ignorada Maria
Carneiro
de
Córdova
17
1
1891
CC SFP testemunha
tentativa
de
homicídio
/
emboscada
Tinha uma situação social,
de trabalho e moradia
semelhantes e horizontais
às de Elias Carneiro Lobo.
Michico Ignorada ?
23 1 1890 CC SFP terceiro
abigeato
dentre
outros
Mencionado como “preto
Michico”, cor que remetia a
um passado escravo.
Ezequiel
Ignorada Joaquim
Pedro
Cidade
70 3 1890 CC SFP tima homicídio
O processo leva a crer na
existência de continuidade
de uma relação de
dominação preexistente.
Ezequiel era crioulo.
Patrício da
Silva Dutra
Peão /
campeiro
Família
Dutra 622 24 1888 CC Taq vítima agressão
Assumiu o sobrenome
senhorial.
Estevam
Peão /
campeiro
Afonso de
Oliveira
Pinto
17 1 1891 CC SFP testemunha
tentativa
de
homicídio
/
emboscada
Sua descrição
nos autos
e
seu depoimento, apontam
tratar-se de um ingênuo.
Referido como “crioulinho”
de Oliveira Pinto.
Pedro José
de Moura
Peão /
campeiro
João
Soares de
Moura
70 3 1890 CC SFP terceiro homicídio
Além da utilização do
sobrenome do ex-senhor, o
processo sugere a
continuidade de uma prévia
relação de dominação.
Paulo Peão /
campeiro
José Soares
de Moura
70 3 1890 CC SFP terceiro homicídio
O processo sugere a
continuidade de uma prévia
relação de dominação.
327
Nome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Motivo de presunção
Roldão
Peão /
campeiro
Manoel
Telles de
Carvalho 622 24 1888 CC Taq terceiro agressão
Ausência de sobrenome;
descrito como “pardo” e
sofria castigos físicos.
Um outro
peão
Peão /
campeiro
Manoel
Telles de
Carvalho 622 24 1888 CC Taq terceiro agressão
Além do anonimato,
padecia de castigos físicos,
apesar de livre.
Campeiros
Campeiros Manoel
Adolfo de
Pacheco 623 24 1888 CC Taq terceiros abigeato
Referidos abstratamente e
no plural, possuíam o
qualificativo “da casa”.
Fortunato Lavrador /
peão
José Soares
de Moura
70 3 1890 CC SFP terceiro homicídio
O processo sugere tratar-se
de um ingênuo; trabalhava
em lides agrícolas e
pecuárias.
Maurício
Caseiro Liberato
Henrique
Teixeira
654 26 1890 CC Taq terceiro abigeato
N
ão
foi mencionado com
um sobrenome, mas estava
encarregado de cuidar das
criações de Teixeira e tinha
a responsabilidade de
denunciar furtos.
Um preto
Peão /
capanga
Felisberto
Baptista de
Almeida
Soares
619
24
1888
CC Ta
q
terceiro
desordem
O qualificativo “preto”
remete à escravidão, o
anonimato também.
Vicência
Serviços
domésticos
Manoel
Rodrigues
de Ataíde 665 26 1892 CC Taq terceira agressão
Sua cor, “preta”, indicava
de passado cativo.
Conceição
Antunes de
Oliveira
Serviços
domésticos
?
17 1 1891 CC SFP testemunha
tentativa
de
homicídio
/
emboscada
Tinha uma situação social,
de trabalho e moradia
semelhantes e horizontais
às de Elias Carneiro Lobo.
328
Nome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Motivo de presunção
Maria
Antunes de
Oliveira
Serviços
domésticos
?
17 1 1891 CC SFP testemunha
tentativa
de
homicídio
emboscada
Tinha uma situação social,
de trabalho e moradia
semelhantes e horizontais
às de Elias Carneiro Lobo.
Vicência
Luciana de
Jesus
Serviços
domésticos
Dona
Clarinda
17 1 1891 CC SFP testemunha
tentativa
de
homicídio
emboscada
Tinha uma situação social,
de trabalho e moradia
semelhantes e horizontais
às de Elias Carneiro Lobo.
Maria
Caetana
Agregada Olivério da
Silva
Esteves 70 3 1890 CC SFP vítima Homicídio
Ver capítulo 2.
Francisco de
Tal
Atividades
delituosas
Victorino
Nunes 655 26 1890 CC Taq réu Abigeato
Era mulato e foi “criado”
na casa de Victorino Nunes
João
“Sinhá”,
vulgo
“amendoim”
Atividades
delituosas
?
9 1 1899 CC SFP réu
homicídio
e saque
O apelido “Sinhá” pode ser
uma referência irônica a
antigos senhores, bem como
“amendoim” pode remeter
à cor da pele.
Pietro
Atividades
delituosas
?
37 2 1888 CC SFP terceiro Homicídio
Referido como “preto
Pietro”, com todos os
estigmas associados a esta
cor.
Cachiche
Atividades
delituosas
?
41 2 1893 CC SFP réu
resistência
a prisão
Sempre apontado como
“negro Cachiche”..
Joaquim
Atividades
delituosas
?
41 2 1893 CC SFP réu
resistência
a prisão
Conhecido como Joaquim
Macacão; o apelido pode
estar vinculado aos
preconceitos relativos à cor
da pele.
329
Nome
Atividade
Ex-senhor
Processo
Maço
Ano
Cartório
Situação no
processo
Crime
Motivo de presunção
Vicente da
Silva
Lavrador /
jornaleiro
Paulo José
Pereira ou
Maria Rita
Soares 633 24 1888 CC Taq terceiro
tentativa
de
homicídio
Mencionado como “preto
Vicente”
José
Macário dos
Santos
Lavrador /
jornaleiro
?
23 1 1890 CC SFP réu
abigeato
dentre
outros
Filho do “Pedro Michico”.
Manuel
Joaquim
Padeiro
Lavrador ?
651 25 1890 CC Taq réu abigeato
Descrito como “preto”, era
filho de “Rita de tal”
João
Pedroso de
Moraes
Cabo de
polícia
?
619 24 1888 CC Taq terceiro desordem
As “injúrias”que lhe foram
dirigidas referiam-se ao fato
de ser “negro”.
330
Anexo 3
Governadores (presidentes) do Rio Grande do Sul na República Velha
(até o término da Guerra Civil Federalista)
Início do governo
15/11/1889 Marechal Visconde de Pelotas (José Antônio Correia da
Câmara)
11/2/1890 Marechal Julio Frota
6/5/1890 Francisco da Silva Tavares (vice-presidente)
13/5/1890 General Carlos Machado de Bittencourt
24/4/1890 General Cândido da Costa
16/3/1891 Fernando Abbott (vice-presidente)
15/7/1891 Júlio de Castilhos (presidente eleito indiretamente pela
Assembléia Constituinte)
12/11/1891 Junta governativa (Joaquim Francisco de Assis Brasil,
General Domingos Alves Barreto Leite, General Manuel
Luís da Rocha Osório – assumiu Assis Brasil)
17/11/1891 General Domingos Alves Barreto Leite
8/3/1892 João de Barros Cassal
19/4/1892 General Domingos Alves Barreto Leite
8/6/1892 Marechal Visconde de Pelotas (José Antônio Correia da
Câmara)
17/6/1892 João Nunes da Silva Tavares (em Bagé)
17/6/1892 Júlio de Castilhos (em Porto Alegre)
17/6/1892 Vitorino Monteiro (vice-presidente)
27/9/1892 Fernando Abbott (Secretário do Interior e Exterior)
25/1/1893 Júlio de Castilhos
1893-1895 Guerra Civil Federalista
Partidos políticos no Rio Grande do Sul na República Velha
(até a Guerra Civil Federalista)
1882 Partido Republicano Rio-Grandense
1889/1890 União Republicana (frente política defensora da República)
8/6/1890 União Nacional (coligação dos antigos partidos
monárquicos – Liberal e Conservador – e dissidentes do
PRR e da União Nacional)
23/4/1891 Partido Republicano Federal (junção de grupos dissidentes
históricos – União Republicana com União Nacional)
31/3/1892 Partido Federalista do Rio Grande do Sul (gasparistas)
9/11/1895 Partido Republicano Liberal (dissidentes republicanos)
Fonte: material didático de autoria da Prof. Dra. Helga Iracema Landgraf Piccolo.
331
Anexo 4
O NEGRO ADÃO (Canto popular)
Simões Lopes Neto, 1960 (p. 256-257)
Saiu do fogo do inferno
Embraseado, um tição,
O Diabo cuspiu em cima
Ficou feito o negro Adão.
Primeiro chiou três vezes
Antes de tomar feição,
Pouco a pouco foi-se vendo
A cara do negro Adão
A fumaça deu os olhos
Pra clarear a feição,
E a ponta do pau de fogo
O queixo do negro Adão.
A boca saiu da racha
Que mostra todo o carvão,
A cinza deu os ouvidos
Pra cara do negro Adão.
O nariz saiu dum nó
Que tinha o pau do tição
A cara do negro Adão.
(Bagé, durante o sítio de 189... Chico Claro? [sic])
332
O NEGRO ADÃO
(Resposta)
Saiu do fogo do inferno
Embraseado, um tição
GLOSA
Se negra a pele do homem,
E branco seu proceder:
E nunca o há de perder,
Com temor que outros o tomem;
Pois muitos há, que se somem,
Quando é hora do perigo...
Do negro Adão o castigo,
– Pior que o gelo do inverno –
Seria se o tal amigo,
Saiu do fogo do inferno.
Para morder pelas costas,
O camoatim eu conheço,
Que até vira pelo avesso
O barro duro e as botas...
Se és – Claro – pra que t’encostas
Na tisna do negro Adão?...
Não te vá doer a mão
Ao pegar, sem precaução,
Este, de que tanto gostas,
Embraseado, um tição.
333
Anexo 5
Apontados como “ex-escravos” em processos criminais
Ex-escravo
Cartório Maço Processo
N
ome do
ex-senhor?
Indícios de dependência do ex-
senhor?
Relações de trabalho com o ex-
senhor?
Manoel
CCSFP 1
8
sim
?
sim
Adão CCSFP 2 34 sim ? ?
Manoel CCSFP 2 34 sim sim sim
Joana CCSFP 2 34 sim
sim (no momento em que torna-
se ex-escrava), posteriormente
desconhecida provavelmente sim
Tristão
CCSFP 2
34
sim
?
?
Ezequiel
CCSFP 2
37
sim
não
não
André
CCSFP 2
41
sim
sim
sim
Bibiana
CCSFP 2
43
sim
sim
sim
Paulo CCTaq 20 555 sim não (achava-se preso)
456
não (achava-se preso)
Bibiana CCTaq 21 576 sim sim sim
João CCTaq 23 614 sim não não
Saturnino CCTaq 26 655 sim não não
Justino CCTaq 26 659 sim sim não
Francisco
Polícia -
AHRS 33 sim sim sim
456
Antes da prisão mantinha as relações aqui investigadas, mas não pode ser considerado porque ainda era cativo.
334
Anexo 6
Formas de menção de réus e testemunhas no inquérito policial e processo judicial do assassinato de Manoel
457
Nome da testemunha segundo registro oficial
458
Nome da testemunha conforme referência de
outra testemunha
Nome da vítima conforme referência da
testemunha
Inquérito policial Processo judicial
Inquérito policial
Processo judicial
Inquérito policial
Processo judicial
D. Senhorinha Cândida
Pimentel
Senhorinha de tal
(Petição de D. Maria
Trindade Fogaça)
D. Senhorinha
(segundo Adão Alves
de Araújo)
Senhorinha (para Ana
Maria)
D. Senhorinha (para
Gertrudes)
Contratado de nome
Manoel
Gertrudes Maria Gertrudes
Sua criada menor
(segundo D.
Senhorinha)
Gertrudes (para Ana
Maria)
Sua afilhada Gertrudes
(para Joana)
Contratado conhecido
por Mandory
Manoel Mandorim
457
APERS, I Cartório de Civil e Crime de São Francisco de Paula, maço 2, auto 34.
458
Conforme registrado oficialmente no cabeçalho do depoimento.
335
Nome da testemunha segundo registro oficial Nome da testemunha conforme referência de
outra testemunha
Nome da vítima conforme referência da
testemunha
Inquérito policial Processo judicial Inquérito policial Processo judicial Inquérito policial Processo judicial
Adão Alves de Araújo
Ex-escravo do finado
capitão Demétrio Alves
de Araújo
Adão, ex-escravo de
Demétrio Alves
Adão (segundo Tristão
Fogaça)
Mandory Manoel Mandorim
Tristão
Tristão Fogaça, liberto
Escravo de nome
Tristão (conforme Adão
Araújo)
Tristão, ex-escravo
(conforme Adão
Araújo)
Manoel, contratado de
Dona Trindade
Ana Maria, filha da
escrava de nome Joana
de Dona Senhorinha
Ana Maria, livre, filha
da ex-escrava Joana de
dona Senhorinha
Ana Maria (para
Gertrudes)
Ana Maria (para
Sua filha Ana Maria
(para Joana)
O contratado de nome
Manoel
Manoel
Cândida Pimentel
Antônio José de
Cândido)
Maria, filha de sua
escrava (segundo D.
Senhorinha)
Antônio José de
Cândido
Antônio José de
Cândido
O contratado de nome
Manuel
Manoel de tal,
contratado de Dona
Trindade
336
Nome da testemunha segundo registro oficial Nome da testemunha conforme referência de
outra testemunha
Nome da vítima conforme referência da
testemunha
Inquérito policial Processo judicial Inquérito policial Processo judicial Inquérito policial Processo judicial
Leonel Gomes de
Moraes
Joana, livre,
pertencente que foi a
Dona Senhorinha
Ex-escrava Joana de
Dona Senhorinha
Manoel Mandorim
Formas de menção de indivíduos ligados ao episódio que não foram chamados a depor
Inquérito Policial
Processo Judicial
Sebastiana Maria do Nascimento Sebastiana de Tal, irmã de Manoel; Sebastiana (Antônio José
de Cândido), Sebastiana de Tal ; Sebastiana (Ana Maria),
Sebastiana de Tal (Maria Gertrudes)
D. Maria Trindade Fogaça Dona Trindade (Antônio José de Cândido), Dona Trindade
(Ana Maria); Dona Trindade (Tristão Fogaça), Dona Trindade
(Joana)
337
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo