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Talvez tenha sido este o motivo por que indivíduos como Francisco de
Moraes e Elias Carneiro Lobo
390
jamais tenham sido designados nos processos
como “ex-escravos”. Foi possível, através do processo, detectar seu passado escravo
e identificar o nome de seus antigos senhores. Seus contemporâneos, porém,
evitaram associá-los a essa condição; no caso de Elias houve mesmo represálias
àqueles que o fizeram, como visto. Como visto, a autoridade da ex-senhora sobre
Elias Carneiro Lobo era ínfima; além disso, é muito significativo que ele tenha
atacado e ameaçado as testemunhas que, ao depor contra ele, trouxeram à tona seu
passado como cativo
391
. Francisco de Moraes, por sua vez, teve sua ex-senhora
identificada, mas não foi considerado “ex-escravo”. Gozava de boa margem de
autonomia em relação a ela. Foi processado por roubo de gado, e tinha uma marca
própria que substituía a dos proprietários originais, o que denota maior sofisticação
e especialização em um delito que, por si só, era relativamente comum
392
. Não
obstante, um olhar retrospectivo possibilita a percepção do fato de terem passado
pela experiência do cativeiro.
Polissêmica é a categoria “gente de”. Tem difusão mais ampla do que “ex-
escravo”: não apenas quem viveu a experiência do cativeiro podia ser “gente de”
alguém. No entanto, para antigos escravos essa designação podia ser
particularmente marcante, ao reforçar outras formas de identificação e estigmas que
já lhes eram próprios naquela sociedade. O termo designava clientelas
393
em geral e,
390
Ambos são ex-escravos que usufruíam de um grau de autonomia bastante superior ao dos demais.
Já foram analisados nessa dissertação: Elias, no capítulo segundo e Francisco de Moraes, que
possuís seu sinal para marcação do gado apropriado, nos capítulos primeiro e segundo.
391
APERS, I Cartório de Cívil e Crime de São Francisco de Paula, maço 1, processo 17 (1891)
392
APERS, I Cartório de Civil e Crime de Taquara do Mundo Novo, maço 20, auto 541 (1881)
393
Sem pretensão de aprofundar-me na discussão conceitual sobre clientelismo, convém esclarecer
em que sentido esta palavra está sendo aqui utilizada. Parto da diferenciação feita por Carvalho
(1998) entre mandonismo, clientelismo e coronelismo. O primeiro é uma característica da política
tradicional, caracterizado pelo poder local pessoal e arbitrário. Tem uma tendência histórica
decrescente. O segundo descreve um tipo de relação política, historicamente recorrente, na qual a
relação entre atores políticos é mediada por favores e benefícios públicos, trocados por apoio
político, especialmente através de votos. O terceiro, ao contrário dos anteriores, diz respeito a um
fenômeno histórico datado, característico da República Velha. Sendo assim, sua tendência é de
ascensão e queda entre 1889 e 1930. É claro que o sistema político coronelista possuía características
de mandonismo e de clientelismo: ele marca o momento em que a decadência dos “mandões” criou
uma nova correlação, com o fortalecimento do poder estatal diante do coronel que, assim, via-se
compelido a barganhar com aquele. Deste modo, quando menciono “clientelas”, sempre as imagino
como parte de um sistema coronelista mais amplo. Félix (1996) argumentou, em contraposição a
determinada historiografia que negava sua existência no estado brasileiro mais meridional, que o
mesmo rearranjo de forças ocorreu entre os gaúchos, caracterizando portanto, a existência de
coronelismo no Rio Grande do Sul. No entanto, raras obras dedicam-se a refletir sobre o lugar dos
ex-escravos em sistemas políticos coronelistas. Uma exceção é a de Rios (2005a), que situa, através