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IPOJUCAN DIAS CAMPOS
PARA ALÉM DA TRADIÇÃO: CASAMENTOS, FAMÍLIAS E RELAÇÕES
CONJUGAIS EM BELÉM NAS DÉCADAS INICIAIS DO SÉCULO XX (1916 /
1940)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC / SP
Fevereiro de 2009
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IPOJUCAN DIAS CAMPOS
PARA ALÉM DA TRADIÇÃO: CASAMENTOS, FAMÍLIAS E RELAÇÕES
CONJUGAIS EM BELÉM NAS DÉCADAS INICIAIS DO SÉCULO XX (1916 /
1940)
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC / SP, como exigência parcial para a
obtenção do título de DOUTOR em História
Social, sob a orientação da professora doutora
Estefânia Knotz Canguçu Fraga.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC / SP
Fevereiro de 2009
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BANCA EXAMINADORA
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Este texto é inteiramente dedicado a minha
mãe, Maria do Socorro Dias da Silva, que foi
levada pela desgraça da morte.
Muita Saudade.
AGRADECIMENTOS
Eis, finalmente, as últimas páginas deste trabalho e quer-se deixar claro que as
pessoas citadas a seguir contribuíram ativamente na sua elaboração. Aliás, durante os
quatro longos anos de sua escrita o autor apenas cresceu com as inúmeras observações,
críticas e incentivos recebidos.
A ordem e o apoio familiar foram essenciais:
Em primeiro lugar, sinto em demasia não ter agradecido como deveria a Maria
do Socorro Dias da Silva, minha querida mãe Deta, antes de sua morte absolutamente
inesperada, por sua capacidade de ver as coisas, pelo carinho e confiança que sempre
depositou em mim. A saudade que deixou em todos nós será eterna.
Ao meu pai, Domingos Campos da Silva, as palavras são insuficientes para
explicar a sua forma de ser e o suporte que sempre me ofereceu, mas de uma coisa estou
certo: sem o seu apoio não teria chegado até aqui.
A amável sobrinha Ana Lídia Amorim foi fundamental neste texto, pois ela
consegue exemplarmente controlar a pequena Anna Luíza e oferecer-me o tempo
necessário para escrever, por exemplo, estes agradecimentos. Muito obrigado, querida
Lídia. Agradeço também a Maria Lindalva da Silva Borges por realizar com muita alegria
e dedicação as tarefas que possibilitam o aumento da qualidade de vida da minha filha;
sem sua presença as coisas ficariam irrealizáveis.
Exatamente no meio cronológico desta tese, em 13 de novembro de 2006,
nasceu a filha, Anna Luíza Amorim Dias Campos, um ser iluminado, o que se torna
facilmente visível ao espectador porque em tudo a sua presença na vida dos Amorim Dias
Campos é absolutamente fundamental.
Se a filha nasceu no meio desta tese, Fernando Arthur Amorim Dias Campos,
meu segundo filho, está a caminho. Este camarada virá em um momento de infinitos
desencontros, de idas a lugares codificados com simbologias que não sei interpretar,
indefinidos. Em momento de objeções em torno da vida e da morte, ele desempenha
papel providencial.
Este será o maior parágrafo, em que reafirmo a dívida acumulada no decorrer
de 11 anos com Érika Amorim, minha mulher. O que foi dito, censurado e louvado faz
parte das relações familiares e possibilitou a seus membros experimentarem condições
afetivas e efetivas de existência. Não estou dizendo que todos os discursos produzidos por
ela são iguais e muito menos que derivaram de uma mesma matriz e sim que todos têm o
objetivo e o mérito de nos unir e fortalecer porquanto, no decorrer da última década,
conseguiu elaborar reordenamentos, enunciados, interpretar novos modos de vida e
nomear, exemplarmente, aspirações difusas bem como articulá-las coerentemente. Estas
posturas lograram à família reconhecer em seu interior novos papéis e significados.
Desse modo, ela consegue suavemente mostrar sua forte presença com a mão no ombro,
abraço apaixonado ou mesmo estando apenas ali, quietinha, sem nada falar. Em todos os
momentos se fez presente: quando choramos profundamente a perda da minha mãe e
quando eu desejei também ir para aquele lugar (não se sabe ao certo qual) tão bom que
dezenas de pessoas me asseguraram exaustivamente que existe e que agora é onde está
dona Deta. Nestes momentos Érika me salvou, pois agrega um conjunto de qualidades:
elogios infinitos, críticas e sinceridade fabulosas, bem como orientações de imenso valor.
Enfim, é a rocha dos Amorim Dias Campos, tanto que compreendeu muito bem quando
estive inteiramente contaminado pelo vírus da tese.
Agradeço a Estefânia Knotz Canguçu Fraga, a orientadora desta tese, que
acompanha minha trajetória acadêmica nos últimos seis anos, com a qual contraí uma
dívida não apenas universitária, mas também afetiva de enorme valor. Desde 2002,
Estefânia tem sido um belo exemplo de intelectual, crítica elegante e apoio no âmbito
familiar.
Devo igualmente grande gratidão às professoras que compuseram a banca de
exame de qualificação, Maria Odila Leite da Silva Dias e Esmeralda Blanco Bolsonaro de
Moura, que demonstraram a existência de outros caminhos históricos a serem entendidos e
percorridos.
A todos os professores da querida Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, especialmente a Maria Antonieta Antonacci e Antônio Pedro Tota que cederam
informações pessoais sigilosas para que conseguisse ser inquilino, em 2003, de um
apartamento na Rua Caiubi, em Perdizes. Muito obrigado, amáveis mestres.
Agradeço ao CNPQ e à CAPES por terem financiado esta pesquisa. Sem o
apoio destas instituições o presente trabalho seria impossível.
Aos amigos do apartamento da Rua Caiubi: Allan Pinheiro, Mayara Silva
Mendes e a amável cearense Ana Karine Martins Garcia, que tornaram minha longa estadia
em São Paulo mais suave, agradável e alegre. Por exemplo, sou eternamente grato ao Allan
pelas nossas idas e vindas ao supermercado Sonda, Barra Funda, para a compra de
inúmeros gêneros, inclusive o pão francês que era, à época, mais barato e a todos pelas
andanças incansáveis pelos incríveis sebos da Paulicéia, locais bastante visitados por todos
nós.
Ao insubstituível casal Lacy Ramalho e Angeliza Silva que me deram todo
apoio necessário em São Paulo, como no período da entrega do apartamento e no momento
do exame de qualificação em que gentilmente me receberam na própria residência.
Agradeço imensamente a Maria Tereza Pinto da Silva de Ribeiro de Faria
corretora incansável dos inumeráveis escorregões gramaticais, pelas sugestões que
ajudaram a refinar o texto final, mas principalmente pelo apoio que ultrapassou o da
relação aluno x professora e isso ficou bem claro nos meses mais instáveis da minha vida.
Ao amigo e bolsista, João Nazareno Pereira Corrêa, por ter ajudado a abrir
milhares de maços, procurar e coligir dezenas de processos e matérias jornalísticas do
início do século XX, presentes nas páginas seguintes. O seu apoio foi fundamental não
somente enquanto dedicado bolsista, mas também como pessoa próxima, por exemplo, no
momento em que todos os Cartórios em que pesquisávamos no Arquivo do Tribunal de
Justiça do Estado do Pará foram doados à Universidade Federal do Pará e que, após esta
transferência, ficou diversos meses fechado ao acesso “público”.
Agradeço às minhas alunas Marcelle de Paula Souza Oliveira e Maria Aucilene
Conde de Morais, organizadoras de um encontro de História, em junho de 2006, na cidade
de Bragança/PA, por terem me dado a oportunidade de testar as primeiras suposições deste
trabalho.
Agradeço a todos vocês, queridos amigos, por me ajudarem das formas mais
diversas a encontrar o tão desejado ponto de equilíbrio para que desse conta deste
trabalho que se estende tanto tempo. Afirma-se que ninguém é insubstituível neste
mundo, mas existem as exceções, como todos vocês.
Abraços afetuosos e até à próxima empreitada!
LISTA DAS TABELAS
TABELA 1: Razões para se solicitar separação de corpos e bens ................................38
TABELA 2: Dados dos autos de desquite .......................................................................94
TABELA 3: Dados das separações sem o conhecimento do judiciário ......................115
TABELA 4: Dados dos autos de investigação de paternidade ....................................213
TABELA 5: Endereços e valores das casas para alugar ..............................................267
TABELA 6: Determinados gêneros alimentícios no início do século XX, 1920 .........293
TABELA 7: Determinados gêneros alimentícios no início do século XX, 1930 .........294
MAPA
Mapa 1: Belém em 1968 ..................................................................................................268
IMAGENS
IMAGEM 1: Corpo de Manoel Tavares Gouvêa, 1938 ...............................................137
IMAGEM 2: Joana Pinheiro do Vale e sua prole em 1940 .........................................243
IMAGEM 3: Rua dos Cearenses ....................................................................................245
RESUMO
A tese localiza-se na cidade de Belém entre 1916 e 1940 e trata essencialmente
dos significados em torno do casamento, amasiamento, família e separação em um
momento em que se debatiam “outros” sentidos para família a legalmente constituída.
Porém, como se fará sentir, as análises não estão localizadas apenas na organização
familiar dita higiênica (a constituída pelo casamento), elas estenderam-se e procuraram
estabelecer uma “circularidade” com a formada a partir do amasiamento; assim sendo, no
bojo de seu eixo central [casamento, amasiamento, família e separação] tornou-se
imprescindível a compreensão de um mundo adjutório como bens, provisões, custo de vida
no início do século XX, vizinhança, investigação de paternidade, temáticas que ajudaram a
dar sentido ao que se procurou categorizar como “Territorialidade dos sentimentos e das
junções políticas familiares”, ou seja, a de que o mundo do lar é repleto de intrigas,
tensões e interesses e que por isso não se pode entendê-lo no singular, porquanto procura
unir um conjunto de pessoas extremamente diferentes entre si. De tal sorte, o trabalho
agrega a percepção de que o social familiar, surgido pelo casamento ou amasiamento, não
trata de modelos de discursos neutros, mas que produz recorrentemente práticas e
estratagemas que tendem a impor-se com uma autoridade tal que busca envolver todos os
que se encontram próximos na tentativa de chegar a um projeto sólido de escolhas e
condutas familiares. Por isso esta investigação coloca-se nos domínios das relações de
poder elaboradas pelas pessoas que ajudavam a constituir as lutas sociais, econômicas e
culturais que os grupos impunham ou tentavam impor diante das formas de se ordenar e
reordenar os membros de uma família. Então os conflitos, afrontamentos e delimitações
que envolveram os indivíduos julgaram-se como tônicas possíveis a compreender-se a
construção do mundo social de pessoas como a senhora Joana Pinheiro do Vale e seu
marido, Edgar dos Santos Vale, estas e tantas outras que demarcam os esquemas que
permitem concluir ser a ordem familiar completamente postulada na multiplicidade
elaborada por aqueles que a constituem.
PALAVRAS-CHAVE: Belém, Casamento, Amasiamento, Ordem Familiar,
Separação, Bens, Paternidade, Provisões, e Custo de Vida.
ABSTRACT
The theory is located in the city of Belém between 1916 and 1940 and he/she
treats essentially of the meanings around the marriage, amasiamento, family and separation
in one moment in that you/they struggled "other" senses for family the legally constituted.
However, as she will make to feel, the analyses are not located just in the family
organization dictated hygienic (constituted her/it by the marriage), they extended and they
tried to establish a "circularidade" with formed her/it starting from the amasiamento; like
this being, in the salience of his/her central axis [marriage, amasiamento, family and
separation] he/she became indispensable the understanding of a world adjutoct et goods,
provisions, cost of living in the beginning of the century XX, neighborhood, investigation
of paternity, themes that you/they helped to give sense to the that she tried to classify like
"Territorialidade of the feelings and of the family" political junctions, in other words, the
that the world of the home is replete of intrigues, tensions and interests and that for that
one cannot understand him/it in the singular, since it tries to unite a group of extremely
different people amongst themselves. Of such a luck, the work joins the perception that the
social family, appeared by the marriage or amasiamento, he/she doesn't treat of models of
neutral speeches, but that produces practical recorrentecment and stratagems that tend to
impose with a such authority that looks for to involve all the ones that meet close in the
attempt of arriving to a solid project of choices and family conducts. Therefore this
investigation is put in the domains of the relationships of power elaborated by the people
that helped to constitute the fights social, economical and cultural that the groups imposed
or they tried to impose before the forms of to order and to reordain the members of a
family. Then the conflicts, confrontations and delimitations that involved the individuals
felt as possible tonics to understand the construction of the people's social world as you
Joana Pinheiro of the valley and his/her husband, Edgar from Santos is Worth, these and so
many another that demarcate the outlines that allow to conclude to be the family order
completely postulated in the multiplicity elaborated by those that constitute her.
WORD-KEY: Belém, Marriage, Amasiamento, Family Order, Separation, Goods,
Paternity, Provisions, and Cost of living.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................14
CAPÍTULO 1
CASAMENTO E SEPARAÇÃO CONJUGAL
1. Tensões entre Estado e Igreja .......................................................................................37
2. Significados do casamento civil e da família ...............................................................54
3. Representações sociais do desquite e do divórcio .......................................................75
CAPÍTULO 2
RUPTURA DA NORMA DESEJADA: CASAMENTO, AMASIAMENTO E
FAMÍLIA
1. Duração e durabilidade do casamento ......................................................................108
2. Vivências e separações amásias ..................................................................................128
3. Amasiamento, casamento e relações extraconjugais ................................................146
CAPÍTULO 3
JUDICIÁRIO, COTIDIANO E CONFLITOS FAMILIARES
1. Pensamento jurídico paraense ...................................................................................163
2. Sedução e defloramento no cotidiano belenense .......................................................175
3. Conflitos e investigação de paternidade ....................................................................200
4. Pensão alimentícia: fugas e prisões ............................................................................225
CAPÍTULO 4
CIDADE, ECONOMIA E VIVÊNCIAS CONJUGAIS
1. Partilha de bens, pobreza e riqueza ...........................................................................240
2. Moradia: pais, sogros e amigos ..................................................................................261
3. Função social da vizinhança .......................................................................................277
4. Cidade, custo de vida e família ...................................................................................288
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................309
DOCUMENTOS E BIBLIOGRAFIA ...........................................................................322
14
INTRODUÇÃO
15
“A familia em minha humilde concepção, não necessariamente,
surge do matrimonio. O que se deve observar é como as pessoas se
sentem melhor e não como a sociedade se possa sentir melhor.
Destarte, não compreendo ser uma aberração ou desonra ter filhos
e familia fora do casamento “legalmente” constituido, aliás o
termo legalmente constituído não passa de uma falacia de uma
sociedade (a belenense) que deseja mostrar-se fiel a principios que
apenas funcionam ou desejam que funcionam sobre as mulheres.
Para que a familia e o casamento funcionem de forma harmonica
apenas um elemento faz-se necessário: a forma das negociações
que o grupo familiar realiza”.
(Diário de dona Laura Soares de Souza, página 481. Belém, 12 de
agosto de 1939).
A epígrafe foi retirada do diário
1
de dona Laura Soares de Souza, página 481,
escrita em 12 de agosto de 1939. A autora o redigiu espaçadamente, sendo a primeira
referência de 10 de fevereiro de 1931 e a última de 15 de maio de 1940. Escreveu o
primeiro texto aos 21 anos e o último aos 40; então, neste tempo, fez notas muito
pertinentes sobre divórcio, desquite, casamento civil, ruptura conjugal (da sua vida e da
dos vizinhos), estado financeiro da cidade de Belém, dentre outros apontamentos. A sua
primeira observação versou sobre o que entendia acerca do amasiamento e a última a
respeito das interpretações que fazia do processo de provimentos que impetrava contra o
marido Manoel Felício de Souza, em 1940. Mas quem era Laura, mulher que escreveu
memórias que juntamente com outros documentos sustentaram as inúmeras partes do
trabalho que segue? Laura nasceu na Vila do Mosqueiro, Estado do Pará, no dia 30 de
agosto de 1910; contraiu matrimônio civil em 07 de junho de 1932, na Vila do Pinheiro.
No auto de petição de alimentos confirma que ao casar era dedicada a serviços domésticos,
branca, miserável no sentido da lei, sabia ler e escrever. Ao tempo do consórcio achava-se
em “adiantado estado de gravidez” sendo mãe de um menino, Wilson Soares, no mesmo
ano do ato solene. Seus próprios escritos informam que em 1931 namorava e mantinha
relações “carnaes” com o futuro marido que veio posteriormente a processar. Logo depois
do nascimento de Wilson, o marido abandonou a família para viver com outra mulher,
muito embora continuasse a concorrer, por algum tempo, com a sua manutenção. O
primeiro contato mantido com esta autora foi por meio da localização, no Arquivo do
Tribunal de Justiça do Estado do Pará (ATJEP), do processo de provisão que impetrou,
em 1940, contra o marido Manoel.
2
Em outro momento, no mesmo arquivo, surgiu entre
1
O termo diário é mantido em algumas passagens do texto por ser deste modo que sua autora se lhe refere.
Contudo sabe-se que os escritos de Laura mais caracterizam um livro de memórias do que um diário.
2
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Laura Soares de Souza contra Manoel Felicio de Souza,
1940.
16
maços de documentos, poeira e traças um conjunto de textos devidamente encadernado em
volume único, que sua autora afirmava ser um diário e onde anotou em quinhentas e
oitenta laudas as suas impressões a respeito de temáticas como casamento, separação,
amasiamento, filhos, bens, modo de agir da vizinhança, catolicismo e protestantismo.
Quando os manuscritos da autora foram descobertos, boa parte dos eixos da
tese se encontrava definidos, mas as centenas de páginas convergiam aos assuntos que
eram levantados; então os textos escritos mais de oitenta anos passaram a constituir-se
base das interpretações que seguem, juntamente com um grupo documental: autos de
desquite, pensão alimentícia, paternidade, jornais, legislação. Desse modo, diversos
posicionamentos sociais, culturais, ideológicos e políticos da senhora Laura foram
explorados com as questões que primeiramente surgiram a partir do contato mantido com
os documentos acima listados. Nos capítulos vindouros, procurou-se [recorrentemente]
entrecruzar diálogos, experiências, dúvidas, sentimentos, desejos, perspectivas entre os que
apareciam nas interpretações que se realizavam. Por exemplo é constante, no bojo dos
capítulos, a concepção assinalada por dona Laura na epígrafe, de que a família – às
margens do casamento “legal” não era aberração ou desonra, mas apenas mais uma
maneira de se constituírem formas familiares, pois o que legitimaria a instituição seriam os
movimentos que o casal tomaria em sociedade.
O rico conjunto de textos escritos por Laura Soares de Souza, que passava
por densas descrições do cotidiano conjugal, pelos católicos e protestantes, chegando a
receitas culinárias foi extremamente útil ao ideário desta tese. Ao tempo da promulgação
do primeiro Código Civil Brasileiro de 1916 e do Código Penal de 1940, ou seja, as balizas
cronológicas da pesquisa, a autora do “diário” passava por fases bem distintas de sua vida.
Melhor dito, em relação ao primeiro era apenas uma criança de 06 anos, mas sobre o
segundo era uma mulher casada, mãe de um filho e separada por conta própria, sem a
presença do judiciário. No entanto, o fato de ser impúbere no momento das tensas
discussões frente ao Código Civil, não significou que os debates acerca da lei lhe tenham
sido estranhos, pois sua mãe, Maria Ray Soares, lhe descreveu as lutas existentes entre
protestantes e católicos em torno do casamento laico e do divórcio na cidade de Belém.
Assim, algumas memórias de Ray Soares foram registradas no ano de 1937 e
claramente essas noções influenciaram o modo de agir da filha. Por exemplo, as duas
dispensavam forte oposição aos protestantes que comemoraram a reafirmação da
17
secularização do casamento.
3
Enfim, Laura escreveu dezenas de páginas sobre que
ambientes históricos? Pelo menos três são possíveis de notar: a grande crise financeira por
que passava a cidade, porquanto Belém estava agora economicamente distante da tão
propalada Belle-Époque ocorrida em parte dos séculos XIX e XX, seus posicionamentos
diante do Código Civil, em que expunha assuntos polêmicos causadores de muita tensão
política e social a segmentos como os católicos, protestantes, cônjuges, juízes,
testemunhas, oficiais de justiça, escrivães e os momentos conturbados de sua própria vida:
gravidez fora do casamento, abandono realizado pelo marido, separação sem a presença
da justiça e processo impetrado contra o consorte.
Então a tese “Para além da tradição: casamentos, famílias e relações
conjugais em Belém nas décadas iniciais do século XX (1916 / 1940)” consta de
interpretações dedicadas às experiências cotidianas no interior do casamento e da família.
Abordando o problema com maior profundidade: dedica-se às tramas do matrimônio e da
família “legal”, mas também às que giravam em torno das uniões e das famílias “espúrias”,
ou seja, as que não passaram necessariamente pelo consórcio idealizado pela Igreja,
protestantes e Estado. É óbvio que se encontrarão contrastes entre as várias constituições
familiares, mas deve ser realçado que diversas vozes sociais se levantaram contra as
tentativas de discursos hegemônicos, normativos e higienizadores relacionados ao tema.
4
Boa parte da tese destina-se a identificar as diversas leituras, olhares e estereótipos
elaborados diante da dualidade casamento/família, pois entende-se que organizar uma
leitura crítica é tarefa que se impõe aos que desejam mais que entender o conúbio “legal”,
a família “legal”, as uniões e as famílias “espúrias”, uma vez que nas primeiras décadas do
século XX, casamento e família eram termos usados – com raríssimas exceções no
3
A secularização do casamento e da separação conjugal foi formalizada pelo decreto 181 de 24 de janeiro de
1890 e reafirmada pelo primeiro Código Civil Brasileiro de 1916. Consultem-se: Decreto do governo
provisório da República dos Estados Unidos dos Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31 de janeiro de 1890. Rio
de Janeiro: Typ. da Imprensa Nacional, 1890. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. também a se observar que a República não secularizou somente o
casamento e a forma de separação conjugal e de bens, foram igualmente secularizados os cemitérios. A este
respeito veja-se: SILVA, Érika Amorim. O cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios em Belém na
segunda metade do século XIX. Dissertação apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC / SP). São Paulo: Mimeo, 2005.
4
Para uma interpretação crítica acerca dessas temáticas, consultem-se: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos
pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. AZZI, Riolando.
“Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930 / 1964)”. In: MARCÍLIO, Maria Luiza. (Org.).
Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 101 / 134. AZZI,
Riolando. A vida religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: CERIS, 1969.
18
singular e que do primeiro necessariamente deveria resultar a segunda, para impedir a
indesejada desordem. Outro momento consiste em oferecer uma análise que busca fazer
compreender que em muito a ordem matrimônio e filhos provinha de uma idealização dos
setores conservadores Igreja Católica e Estado, por exemplo
5
e que a chamada família
honrada e salubre bem como a duração da união nem sempre obedeciam à celebração do
consórcio civil ou religioso.
Desta maneira, “Para além da tradição” concentra esforços na compreensão
dos significados das uniões e da família na cidade de Belém entre 1916 e 1940, na
experiência das mulheres e homens que se movimentavam em sociedade, na maneira como
viam e entendiam as tramas do casamento e família nos processos de separação-
paternidade-provimentos, nos jornais, obras de época e na legislação. Interpreta-se que
mulheres como Laura, Luiza Ramos, Jacyntha, Antonia que enfrentaram separações dos
seus companheiros em muito se marcaram pela força das circunstâncias históricas e que
cada grupo social agia percebendo e regrando-se pela presença dos demais; de tal sorte o
que foi exposto encerra-se em um convite à multiplicidade de valores e costumes que
compõe os capítulos desse trabalho.
As análises seguintes estão, pois, localizadas nas experiências cotidianas das
uniões e das famílias na Belém de 1916, estendendo-se até 1940. Esta proposta de trabalho
iniciou em 1998, quando o autor realizava pesquisas para a elaboração da monografia de
conclusão do curso de graduação que, posteriormente, se desdobrou em dissertação de
mestrado intitulada Casamento, divórcio e meretrício em Belém no final do século XIX
(1890 / 1900)”, defendida em 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nas
longínquas pesquisas iniciais encontravam-se amiúde variadas ações de desquite; em
relação a elas, desconhecia-se o que significavam ou o que pudessem representar.
Percebeu-se, contudo, que estes documentos extrapolavam os limites do século XIX
[cronologia dedicada ao texto dissertativo], pois boa parte deles localizava-se nas primeiras
décadas do XX, por isso preferiu-se deixá-los para posterior utilização. Outra questão que
fez postergar as fontes foi a inconveniência frente à nomenclatura divórcio e desquite
assim como diante da legislação cabível, que era diferente entre si. Nesse caso faz-se
5
Muito embora, se por um lado, em boa parte do texto [principalmente no primeiro capítulo] a expressão
“setores conservadores” tenha sido utilizada para se referir ao Estado e à Igreja Católica quando estes
pensavam o casamento, a família e a separação, por outro se tem consciência de que existiam outras
instituições como os protestantes e a legislação, bem como pessoas: jurisconsultos [Clovis Bevilaqua e
Lafayette Rodrigues Pereira], consortes, testemunhas, e advogados que demonstravam posicionamentos
inflexíveis a estes assuntos.
19
necessário um esclarecimento: os termos divórcio, utilizado da Colônia às primeiras
décadas do século XX, e desquite, empregado entre 1917 e 1977, dissolviam apenas a
sociedade conjugal e não promoviam a ruptura dos vínculos matrimoniais. Para que se
evitem confusões esclarece-se ainda que dissolução matrimonial e da sociedade conjugal
são categorias de análises diferentes; a primeira somente ocorre perante o divórcio
perpétuo, isto é, quando se dissolve o casamento possibilitando aos divorciados a
contratação de segundas núpcias. Por seu turno, solubilidade da sociedade conjugal
expressa o que será interpretado neste trabalho: uma ruptura de corpos e bens, não sendo
possível aos desquitados contraírem novas núpcias em vida de um dos cônjuges. Isso
acontecia porque o casamento era indissolúvel tendo o seu término apenas com a morte de
um dos consortes. No Brasil, a separação com possibilidades de novas núpcias somente
surgiria com a lei 6515 de 26 de dezembro de 1977, após longos debates entre divorcistas e
antidivorcistas.
6
Das semelhanças e diferenças entre dissertação e tese, pode-se afirmar que na
primeira concentraram-se esforços em torno dos significados do divórcio na sociedade
belenense, o trabalho era entender imagens da ruptura conjugal e não discorrer sobre a
história do divórcio. Já na segunda, as problemáticas e metodologias são bastante
diferentes; a tese dedica-se a esquadrinhar experiências, valores, desejos, hábitos e
costumes que cercavam não apenas o “casamento legal”, mas também as relações
chamadas à época, espúrias: os amasiamentos. Analisou-se de onde provinham os
domínios das uniões e das famílias belenenses como campos híbridos, sobretudo quando se
pensa esta instituição na experiência cotidiana dos seus constituidores. Atesta-se assim
como a imagem idealizada de família não se mantém coesa, encerrando-se em convite às
diversidades de valor, de desejos, de interesses, de necessidades, aspectos que possuem
inadvertidamente interpretações opostas quando comparadas às ações de determinadas
pessoas como a senhora Maria Jacyntha Felix
7
com as da Igreja, protestantes e Estado
Republicano e determinados profissionais do direito como o jurisconsulto Clovis
Bevilaqua.
6
Com a lei 6.515 de 26 de dezembro de 1977 foi instaurado o divórcio a vínculo no Brasil. Mas a nova lei
afirmava que o brasileiro poderia se divorciar por apenas uma vez durante a vida. Sobre este assunto,
consultem-se: CAMPOS, Antônio Macedo de. Teoria e prática do divórcio: lei 6.515 de 26 / 12 / 1977.
Bauru: Jalovi, 1978.
7
Maria Jacyntha Felix impetrou auto civil de investigação de paternidade contra Vicente Pereira Leal em
1921.
20
Com isso os capítulos seguintes buscaram investigar tangenciamentos das
escalas de valor e relações de poder no seio da sociedade belenense das primeiras décadas
novecentistas, isto é, significados das vivências conjugais no viés do que era pensado como
ideal e seu oposto, pois o cotidiano em casal, ao mais leve movimentar de tensões,
colocava em xeque pretensões sólidas tanto de casamento e de amasiamento quanto de
família. Indaga-se então: como cônjuges, amásios, advogados, testemunhas, vizinhos,
amigos, jornalistas, e Instituições como a Igreja Católica, os protestantes e o Estado
Republicano pensavam determinações contidas no viver a dois? Quais teriam sido suas
expectativas para a vida em comum sob o mesmo teto? Que ideais tecidos para a vida de
casal resultavam em problemas aos cônjuges, a ponto da solução ser a separação com e
sem a presença do judiciário? Expostas estas questões, constata-se a presença de vários
desdobramentos, nesse caso buscou-se a interpretação de práticas, domínios e significados
dos ideais de vida conjugal a partir de diversos agentes sociais. a acentuar que estas
noções passavam pelos referenciais de matrimônio perfeito, mas também pelos das
relações formadas fora dessas instâncias. Existiam concepções divergentes que se teceram
sobre teias que, ordenadas, reordenadas e reelaboradas por vários ângulos, tenderam a
dissimetria; também estas as buscas do trabalho em questão.
Vale lembrar mais uma vez que a dissertação preocupou-se com reflexões que
versavam sobre os significados que o direito dava ao divórcio e à família legal, assim como
com os sentidos das experiências dos cônjuges ao tempo da separação; o que segue
inscreve-se nos domínios do que foi categorizado como “Territorialidade dos sentimentos
e das junções políticas familiares”, isto é, a união (casamento e amasiamento) longa ou
curta dependia das necessidades inerentes dos envolvidos, dos sentimentos, desejos e
aspirações que se localizavam nos recônditos dos interesses e conveniências individuais,
ou melhor dito, procura-se interpretar os ardis elaborados para se manter uma vida a dois,
assim como as estratégias urdidas para se livrar de um companheiro (a).
Enfim, o que se quer dizer é que entre os consortes, concubinos e amásios
necessidades a obter, vantagens, proveitos, melhoramentos e benfeitorias da vida em
comum, as quais pudessem dar lógicas e sustentabilidade mínima à continuidade do
relacionamento; assim sendo, a união quer matrimonial, quer amásia, quer concubina,
sustentava-se até o momento em que os envolvidos continuavam a compreender que os
proveitos desejados vinham (ou não) sendo alcançados. Tal categoria emanou das
experiências e significados dados pelos: maridos e esposas, concubinos e concubinas,
21
amásios e amásias, jornalistas e vizinhos, Estado, protestantismo e Igreja Católica acerca
das escalas de poder e tensões que se formavam na vida sob o mesmo teto a partir do
contato direto com os documentos pesquisados.
Temas como matrimônio, uniões “espúrias”, família, separação matrimonial e
amásia e moralidade foram alguns tangenciamentos articulados constantemente nas
páginas seguintes. Para tanto utilizou-se variada documentação, entendida como razoável
numericamente: jornais e revistas de diversas tendências políticas e ideológicas, autos de
desquite, pensão alimentícia, investigação de paternidade, legislação vigente do início do
século XX (Constituições de 1934 e 1937, Códigos Civil e Penal), diário de Laura,
obras coevas. Para se formarem elos à pesquisa buscou-se lê-los no sentido de entrecruzá-
los por meio de posicionamentos semelhantes ou dessemelhantes aos eixos que compõem
estas reflexões: casamentos, amasiamentos, separações e famílias. Desta maneira, as
pesquisas concentraram-se em variados arquivos da capital paraense entre os anos de 1998
e 2008, em busca de fontes que abrissem caminho a temas ainda pouco explorados no
interior da academia paraense.
A cronologia da tese, 1916 a 1940, justifica-se pelo fato de nos anos iniciais do
século XX, em 1916, ter sido promulgado o primeiro Código Civil Brasileiro, o qual
incursionava por diversos domínios da vida conjugal: matrimônio, desquite, filhos,
paternidade, provisões e bens. Por seu turno, o limite, 1940, foi escolhido por ter entrado
em vigor um novo Código Penal, que também entendia o adultério como indesejável; este
tratou-o como crime, aquele como causa grave para se impetrar processo de desquite. O
limite cronológico embasa-se também em decorrência de o Código Penal compreender que
as práticas extraconjugais constituíam-se em ofensas contra a honra da família e contra os
costumes públicos e privados e porque deu por terminada juridicamente a noção de que o
adultério feminino envolvia maior gravidade que o masculino. Outra razão que justifica o
ano de 1940 é que o Código instaurado versava sobre a família, isto é, os artigos 244 e 247
impuseram penalidades contra os consortes que praticavam o abandono material e moral da
esposa e prole.
8
8
Vejam-se: Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1940. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.
HUNGRIA, Nelson. Commentarios ao Código Penal. (Decreto-lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940). Rio
de Janeiro: Forense, 1941.
22
As reflexões que seguem foram inspiradas em trabalhos como os de Alan
Macfarlane, Philippe Ariès, Jacques Donzelot
9
e tantos outros que se dedicaram a analisar
os significados da família, do casamento e da separação conjugal em recortes diferentes
dos que são estudados aqui. Inspirou-se, ainda, em referências teórico-metodológicas como
nas de Michel Foucault, Carlo Ginzburg e Roger Chartier
10
que interpretaram de maneira
distinta a categoria “relações de poder”. Este trabalho também tem dívidas e foi inspirado
em historiadores brasileiros que durante anos se preocuparam com os significados do
casamento, família e separação. Dentre alguns destacam-se: Eni de Mesquita Samara e
Rosa Maria Barboza de Araújo.
11
Tomando por base estas e outros autores, nota-se que se
fez um texto essencialmente aberto teoricamente, não ortodoxo, sem inflexibilidades ou
cristalizações, que não se quis prender a qualquer teoria da história e nem mesmo separou
divergências teóricas, tanto que foram utilizados o citado Michel Foucault e Marshall
Berman com suas concepções diferentes de poder.
12
Todavia esta decisão não se embasou
em terreno vazio ou sequer pode ser compreendida como metodologia aventureira ou
evasiva; tal preferência partiu das indicações dos documentos utilizados para sustentar as
diversas categorias acerca das temáticas que compõem o texto. Com o objetivo de logo aos
primeiros contatos torná-los funcionais, foram organizados em quatro grandes blocos. A
metodologia justifica-se para mais acuradamente se refletirem as argumentações propostas.
9
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: GRAAL, 1986. MACFARLANE, Alan.
História do casamento e do amor: Inglaterra, 1300 / 1840. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
10
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003. FOUCAULT, Michel.
História da sexualidade: a vontade de saber. Vol. I. Rio de Janeiro: GRAAL, 2003. FOUCAULT, Michel.
História da sexualidade: o uso dos prazeres. Vol. II. Rio de Janeiro: GRAAL, 2003. FOUCAULT, Michel.
História da sexualidade: o cuidado de si. Vol. III. Rio de Janeiro: GRAAL, 2003. FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: GRAAL, 2004. CHARTIER, Roger. “Diferenças entre os sexos e
dominação simbólica”. In: Fazendo história das mulheres. Cadernos Pagu nº 4. Campinas: Núcleo de
Estudos de nero, 1995, pp. 37 / 47. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel, 1990. CHARTIER, Roger. “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica”.
In: Fazendo história das mulheres. Cadernos Pagu 4. Campinas: Núcleo de Estudos de nero, 1995, pp.
37 / 47. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
11
SAMARA, Eni de Mesquita. “Mistérios da “fragilidade humana”: o adultério feminino no Brasil, séculos
XVIII e XIX”. In: Representações. Revista Brasileira de História / ANPUH 29. São Paulo: Contexto,
1995, pp. 57 / 71. SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São
Paulo: Marco Zero, 1989. SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SAMARA, Eni de Mesquita. “Família, divórcio e partilha de bens em São Paulo no século XIX”. In: Revista
de Estudos Econômicos nº 13. São Paulo: IPE, 1983, pp. 787 / 797.
12
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
23
O conjunto documental foi imprescindível assim como o bibliográfico que, conjugados,
[crê-se] possibilitaram o desenvolvimento das razões que balizam os eixos da tese. As
fontes mostraram-se suficientes ao desenvolvimento das inquietações a que se pretendeu
dar vazão no tempo indicado embora, em relação a ele, algumas vezes tenha sido
necessário ultrapassá-lo, fazendo-se incursões anteriores ou posteriores por meio de
documentos e referências bibliográficas na busca por determinados esclarecimentos.
No Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará foram consultados, no
Cartório Sarmento, os processos (desquite, pensão alimentícia e investigação de
paternidade).
13
Sobre os de desquite, coligiram-se 38. Do total, 31 são contenciosos e 7
amigáveis. Tal número não representa todas as ações existentes, mas trabalhar-se-á apenas
com estas porque foram as localizadas em um arquivo absolutamente sem nenhum tipo de
catalogação sistemática havendo tão somente a indicação dos Cartórios e inexistindo o seu
tipo ou ano; assim as referidas fontes surgiram em maços que continham toda sorte de
documento (processos de despejo, alforrias, proclamas, acidentes de trabalho). Desta
maneira, pelas condições inadequadas em que se encontravam, foi impossível a sua
consulta em outros Cartórios como o “Pepes”, onde certamente se encontram diversas
ações desta natureza. Em relação aos processos de separação todos são civis e de desquite,
não foi localizado nenhum auto de anulação de casamento.
14
Também no decorrer da tese,
13
Apenas o auto civil de alimentos impetrado por Albina Sant`Anna de Azevedo Diniz contra Galdino
Antonio Diniz, 1927, foi compilado no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).
14
As razões para se anular um casamento, segundo o Código Civil Brasileiro de 1916, provinham da
comprovação de ser o matrimônio entre “os ascendentes com os descentes, seja o parentesco legítimo ou
ilegítimo, natural ou civil; os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo; o adotante com o
cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante; os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou
não, e os colaterais, legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau inclusive; o adotado com o filho
superveniente ao pai ou mãe adotiva; as pessoas casadas; o njuge adúltero com o seu co-réu, por tal
condenado; o cônjuge sobrevivente com o condenado como delinqüente no homicídio, ou tentativa de
homicídio, contra o seu consorte; as pessoas por qualquer motivo coatas e incapazes de consentir, ou
manifestar, de modo inequívoco, o consentimento; o raptor com a raptada, enquanto esta não se ache fora do
seu poder em lugar seguro; os sujeitos ao pátrio poder, tutela, ou curatela, enquanto não obtiverem, ou não
lhes for suprido o consentimento do pai, tutor, ou curador; as mulheres menores de dezesseis anos e os
homens menores de dezoito; o viúvo ou a viúva, que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer
inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; a viúva ou a mulher, cujo casamento se desfez por
ser nulo ou ter sido anulado até dez meses depois do começo da viuvez ou da dissolução da sociedade
conjugal salvo se, antes de findo esse prazo, der à luz algum filho; o tutor ou curador, e os seus descendentes,
ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, e não estiverem saldadas
as respectivas contas, salvo permissão paterna ou materna, manifestada em escrito autêntico ou em
testamento; o juiz ou escrivão e seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com órfãos
ou viúva da circunscrição territorial onde um ou outro tiver exercício, salvo licença especial da autoridade
jurídica superior”. Sobre estes motivos consulte-se: artigo 183 do digo Civil dos Estados Unidos do Brasil.
Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
24
em momento algum se trabalhará com ações eclesiásticas, porque apesar das dificuldades
enfrentadas no que diz respeito ao estado e organização, o acesso aos autos de desquite
mostrou-se mais viável, enquanto os pedidos de nulidade eclesiásticos não foram
localizados no Arquivo da Cúria Metropolitana de Belém, bem como nos das mais antigas
igrejas da capital como a Catedral da Sé.
15
Sobre os processos de investigação de
paternidade e alimentos encontraram-se um total de 38 ões. Estas eram fontes peculiares
porque muitas foram impetradas conjuntamente, ou seja, mulheres amásias executaram
ações de paternidade cumulada com a de alimentos, inexistindo para esta pesquisa uma
mulher casada como autora de investigação de paternidade, mas houve esposas exeqüentes
de processos de desquite conjugado com o de provisão.
O pesquisador, diante destes documentos, optou por transcrever as razões em
que os autores se balizavam legalmente bem como a nacionalidade, naturalidade, idade,
profissão e endereço dos impetrantes e testemunhas; número de filhos; nos casos de
desquite, o regime de casamento, local, idade dos cônjuges quando se casaram e ao tempo
da separação: duração do casamento e do amasiamento; partilha de bens; os depoimentos
das diversas testemunhas envolvidas; réplicas e tréplicas dos advogados; sentenças, assim
como todos os anexos como cartas e recortes de jornal. Por se desejar compreender os
significados do casamento, família, ruptura conjugal e amásia, na Belém das primeiras
décadas novecentistas, decidiu-se por não realizar a divisão por segmentos (populares e
elite), pois a interpretação concentrou-se na visão social, cultural e política dos autos
coligidos, possibilitando uma primeira noção dos eixos acima citados. As fontes indicam
de modo latente as preocupações dos juízes, cônjuges, parentes, testemunhas em relação ao
casamento e à família dita legal e espúria, o que viabilizou a interpretação das tentativas de
controle, vigilância e imposição de padrões e regras muito preestabelecidas nas esferas
da vida dos envolvidos nos processos.
Mesmo com os inúmeros problemas de ordem organizacional do referido
arquivo, as informações constantes na amostra analisada foram suficientes para os
objetivos centrais deste estudo. Elas possibilitaram perceber várias escalas sociais: tensões
e relações de força que se estabeleceram no interior da vida conjugal e amásia, os
sentimentos (amor e paixão) dos consortes e amásios quando se percebia que o idealizado
15
As normas canônicas para a invalidação do matrimônio eram: o autorização da Igreja da dispensa dos
laços de parentesco, a não consumação sexual do matrimônio, coação e bigamia. Consulte-se a este respeito
o Código Canônico de 1917, revisto apenas em meados da década de 80 do século XX, 1983.
25
à vida em comum estava frustrado, filhos e bens. Destarte, na consulta destes papéis,
esteve-se atento aos sobressaltos que surgiam no interior da vida sob o mesmo teto,
expectativas para a vida conjugal, crises e decepções quando se saía da convivência a dois.
Com efeito, os motivos que justificaram o trabalho com estes autos encerram-se na
compreensão de como mulheres e homens procuravam articular imagens negativas dos
parceiros para a sociedade e ao poder judicial, mas ao mesmo tempo buscavam formular
concepções favoráveis de si mesmos, tornando possível perceberem-se frustrações, afetos e
sentimentos. Naturalmente, inexistiu posicionamento inocente diante dos dados, pois tem-
se o horizonte de que as narrativas passaram pelo filtro dos profissionais do direito, dos
escrivães e das testemunhas, esta questão tornou-se clara quando se notou a reprodução
quase integral de trechos de processos diferentes e de instâncias distintas do direito,
16
ou
seja, descrições repetidas não apenas em seu sentido, mas principalmente nas suas
gramática e ortografia foram encontradas entre autos de investigação de paternidade,
desquite e provisões de pessoas e de décadas variadas, por exemplo, termos técnicos
surgiram em depoimentos de homens e mulheres de pouca instrução analfabetos tais
como “fui abandonada nos arrabaldes da cidade”, “ele não concorre com absolutamente
nada para a provisão dos rebentos”, “toda essa ascendência é dele”. Um dentre vários
exemplos a este respeito é a ação de desquite litigiosa impetrada por Francisca Gomes
Nunes contra Frederico Andrades Silva;
17
a exeqüente deixava inteligível sua insatisfação
ao juiz Manoel Maroja Netto quando foi perguntada sobre as razões da separação:
afirmava que, ao prestar depoimento, dizia uma coisa acerca das atitudes de seu marido e o
escrivão, Genesio Fagundes Telles, anotava outra totalmente diferente, dando a entender
que este “aliviava o lado verdadeiramente culpado”. Maroja Netto determinou nulas as
primeiras declarações e ordenou que a autora desse outro testemunho a respeito das crises
conjugais, também ordenou que se abrisse investigação para se apurar responsabilidades.
Mesmo compreendendo que os profissionais do direito introduziam nos depoimentos
termos e noções que as testemunhas, réus, rés, autores e autoras jamais utilizariam em seu
cotidiano, essa constatação não inviabilizou inúmeras análises sobre as uniões, famílias e
separações, ou seja, foi possível encontrar indícios do que se categorizou como
“Territorialidade dos sentimentos e das junções políticas familiares”. Mas o interesse
16
Ao serem lidos alguns processos-crime da década de 1930 percebeu-se que diversos discursos tanto de
defesa quanto de acusação dos advogados, juízes e testemunhas se aproximavam bastante das narrativas
contidas nos autos civis de desquite, investigação de paternidade e provisões.
17
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisca Gomes Nunes contra Frederico Andrades Silva,
1917.
26
tanto nestas quanto em outras fontes não foi o de se buscar inocentes e culpados; o que
importou compreender foram aspectos culturais, sociais e políticos que compuseram teias
da vivência conjugal (amor; paixão; frustrações; tristezas; alegrias; sofrimento;
sentimentos dos cônjuges e amásios) enfim, elementos que estendiam e limitavam vínculos
da vida em casal.
também a se avisar que em virtude da riqueza histórica de determinados
autos como o de prestação de alimentos impetrado, em 1940, por dona Medina Iraty
Albuquerque da Costa contra Pedro Vieira da Costa,
18
o desquite litigioso promovido, em
1936, por José Chagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira
19
e
também o auto de desquite litigioso promovido, em 1946, por dona Etelvina Lopes
Bandeira Dias contra Djalma de Albuquerque Dias,
20
estes irão repetir-se no decorrer das
diversas partes da tese, frente a outras problematizações.
Os periódicos mostraram-se igualmente essenciais e trabalhou-se com três de
circulação diária: “A Província do Pará”, “Folha do Norte” e “O Estado do Pará”. Um
semanalmente, “A Semana”. Dois bissemanais, “A Palavra” e “Revista Quero” (publicação
católica leiga feminina) e também foi utilizada uma brochura intitulada “Da Liga da Bôa
Imprensa”. Nenhum destes periódicos é protestante, aliás no recorte cronológico da
pesquisa circulou apenas o jornal Metodista, “O Apologista Cristão Brasileiro”, mas
infelizmente restou nos arquivos da cidade somente um exemplar que data de outubro de
1925. Contudo tal dado não inviabilizou a interpretação de como os protestantes viram o
casamento civil e o divórcio, porquanto buscaram-se informações através de outras fontes,
como alguns processos de desquite e o diário de Laura Soares. Com exceção da referida
brochura que faz parte do acervo particular do autor, e do jornal “A Palavra” e da “Revista
Quero” pesquisados no Arquivo da Cúria Metropolitana de Belém, todos os outros foram
consultados na Biblioteca Pública do Estado do Pará (CENTUR), onde está arquivada boa
parte dos jornais aqui publicados entre os séculos XIX e XXI. A decisão de se trabalhar
com estas folhas justifica-se porque foram as que circularam na Belém do recorte
18
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Medina Iraty Albuquerque da Costa contra Pedro
Vieira da Costa, 1940.
19
Auto civil de desquite litigioso promovido por JoChagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição
Salgado de Oliveira, 1936.
20
Auto civil de desquite litigioso promovido por dona Etelvina Lopes Bandeira Dias contra Djalma de
Albuquerque Dias, 1946.
27
cronológico da pesquisa, 1916 a 1940, e puderam ser consultadas em suas linhas editoriais
divergentes; por exemplo, se por um lado “A Palavra” e a “Revista Quero”, periódicos que
serviam a Igreja Católica, colocavam-se contrários ao divórcio a vínculo e ao casamento
civil, por outro “A Semana”, em determinados editoriais, defendeu a necessidade do
divórcio perpétuo e “O Estado do Pará”, em algumas matérias, mostrou idéias favoráveis
ao casamento civil. Em virtude desta miscelânea, tomaram-se precauções ao trabalhar com
os sentidos da imprensa de Belém; mostrou-se vital pensá-la nos espaços sócio-culturais da
época como metodologia fundamental embora escorregadia, pois deve-se lembrar que os
variados jornais, com interesses políticos opostos, movimentavam-se na cidade conforme
as conveniências de cada um.
21
A imprensa proporcionou formulação de tramas como a compreensão das
campanhas da Igreja Católica em torno do Código Civil de 1916 e também como o
catolicismo se posicionava diante das transformações de hábitos e costumes por que
passava a cidade de Belém nas décadas iniciais do século XX. Através dela, foi crível
discutir as diretrizes político-sociais e mesmo como os articulistas e os leitores criavam
imagens frente a temas como desquite, divórcio, casamento, família, separação e mudanças
na escala de costumes e hábitos. Esses documentos foram pensados como fundamentais ao
desenvolvimento metodológico proposto, já que ajudaram a tecer suposições sobre as
relações de força e poder no interior da sociedade belenense da época.
22
Também se
mostraram importantes porque permitiram sentir os mais diversos discursos como os sobre
o cotidiano citadino belenense e seus moradores. Com fontes dessa natureza foi possível a
interpretação de narrativas que se diferenciavam da linguagem pesada e demasiadamente
técnica do judiciário. Não se descartaram diálogos entre estas e outras catalogações, pois
procurou-se estabelecer interfaces entre os vários redatores e articulistas com
documentações jurídicas.
Em meio às variadas informações que versavam sobre as intrigas, tensões e
brigas conjugais, as escolas voltadas às mulheres, anúncios como venda de casas e de
terrenos, desordens citadinas, notícias sobre as Guerras, receitas culinárias, cotidiano da
cidade, os periódicos publicados ocupavam-se de modo sensível sobre os temas a que se
desejou dar vazão. A respeito destas fontes acentuou-se um pouco atrás que se tomaram
21
Jornais paraoaras: catálogo. Belém: Secretaria de Estado e cultura, 1985.
22
Para se pensar estas tensões formuladas no bojo da imprensa, vejam-se: CRUZ, Heloisa de Faria. São
Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana 1890 / 1915. São Paulo: EDUC, 2000. SILVA, Eduardo.
As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
28
precauções com as suas linhas editoriais divergentes, no entanto, quando o assunto
localizava-se sobre a constituição da família, todos entendiam que o ideal deveria iniciar-se
com o casamento monogâmico.
As obras de época foram documentos indispensáveis. Por se constituírem em
trabalhos publicados no final do século XIX e primeira metade do XX, estão todas
esgotadas, fato que forçou consultá-las em diversas bibliotecas como a da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
Biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Arquivo Público do Estado do Pará,
além de que algumas delas foram adquiridas pelo autor nos diversos sebos da cidade de
São Paulo. Sua importância encontra-se nas impressões, imagens e vislumbres que os
profissionais do direito deixaram acerca da família, dos bens, do desquite, da separação.
Sobre um dos eixos da tese, lembra Oliveira e Silva,
23
que o espírito do direito canônico
permaneceu fiel no “Legislador de 1916”, mantendo a indissolubilidade dos vínculos
matrimoniais e não possibilitando segundas núpcias em vida do outro cônjuge. O autor
criticava o Estado, pois afirmava que, mesmo “separado” da Igreja, protegia o casamento
como sendo de natureza sacramental. Referências como “Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil” (1952) de Clovis Bevilaqua, Comentários ao Código Penal (1941) de Nelson
Hungria, Da capacidade civil da mulher casada” (1922) de Vicente Ráo, Os delitos
contra a honra da mulher (1932) de Francisco José Viveiros de Castro, “Divórcio ou
casamento indissolúvel?” (1946) de Paulo Sá, “Do desquite” (1923) de Tito Fulgencio,
“Desquite e anulação de casamento” (1958) de Wilson Bussada, possibilitaram a
compreensão de como juristas entenderam algumas das tendências históricas que serão
tratadas a seguir. Também se decidiu trabalhar com estas obras porque algumas
apareceram citadas em diversos processos de desquite, alimentos e paternidade como a de
Clovis Bevilaqua, Vicente Ráo, Tito Fulgencio e o uso de outras justifica-se por se sentir a
necessidade de compreender a legislação que vigia em parte do século XX, como em
Wilson Bussada e Francisco José Viveiros de Castro.
A Igreja, vendo contestados seus valores e costumes, passou a propagandear
literaturas que versavam contra as aspirações dos que pretendiam maior flexibilidade dos
23
OLIVEIRA E SILVA. Desquite e divórcio: doutrina, legislação e jurisprudência. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1953.
29
sexos no interior da sociedade. Nesta linha de idéias destaca-se a obra “O divórcio”,
24
referência de cunho jurídico-social que tinha por objetivo “a defesa da dignidade e do
futuro da família brasileira”. O livro caracterizou-se como literatura contrária a toda
possibilidade de quebra dos laços matrimoniais e também a tudo o que a Igreja
compreendia ameaçador à sua doutrina, ou seja, às ordens moral e social que séculos a
Instituição defendia. Em suas reflexões, Leonel Franca contemplou temas como as funções
e o ideal de matrimônio e de vida no interior da sociedade. Assim sendo,
tangenciamentos em sua interpretação como o de que o amor e a paixão apenas poderiam
constituir-se no seio do casamento. Sobre as reflexões de Leonel Franca, Maria de Fátima
Salum Moreira ajuda sensivelmente por meio do trabalho “Fronteiras do desejo”.
25
As
preocupações sobre as mudanças sociais ocorridas nas primeiras décadas do século XX em
relação ao comportamento da mulher em decorrência das “novas concepções de
liberdade” em termos de circularidades sociais e de atitudes foram analisadas pela Igreja
Católica como perigosas, pois poderiam facilitar encontros “inoportunos”. A Igreja
acentuou seus posicionamentos pedagogizantes nas décadas iniciais do século XX, quer
dizer, os discursos católicos voltavam-se claramente, segundo a historiadora, para
“solucionar” o definido como problemas à vida conjugal. Enfim, o Clero desejava impor-
se tanto nas dimensões do casamento como nos interstícios da vida social.
A legislação do período, Constituições de 1934 e 1937 e Códigos Civil e Penal,
foram analisados no Arquivo Público do Estado do Pará, na Biblioteca do Tribunal de
Justiça do Estado do Pará, na Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e compõe o quarto e último bloco
documental. Proporcionaram dinamizações às questões expostas, uma vez que trouxeram
as noções dos jurisconsultos que articulavam as leis que vigoravam na sociedade brasileira
da época. Os Códigos foram úteis na reflexão de eixos como matrimônio, desquite,
divórcio, família, bens, sexualidade, assim como para perceber que as idéias do direito são
porosas e que civilistas e penalistas não atuavam separados.
26
Em relação ao adultério, o
24
FRANCA, Leonel. O divorcio. Rio de Janeiro: Agir, 1946.
25
MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Fronteiras do desejo: amor e laço conjugal nas décadas iniciais do
século XX. Tese apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH / USP). São
Paulo: Mimeo, 1999.
26
Para se debater as questões jurídicas apreendem-se fundamental utilizar as reflexões de: FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. FOUCAULT, Michel. A
30
Código Penal de 1940, por exemplo, estabelecia-o como crime contra o casamento; as
ordens sociais, morais e familiares, para os penalistas, eram conspurcadas com práticas
extraconjugais. Esta codificação afirmava, no artigo 240, para quem cometesse adultério,
reclusão “de quinze dias a seis meses”.
27
Já o Código Civil, no artigo 317, § 1º, alocava-o
como uma das principais razões para se impetrar ação de desquite. Sobre este conjunto de
leis, Susan Besse
28
discorreu que nas primeiras décadas do século XX houve mudanças nas
relações sociais entre homens e mulheres, isto é, apresentavam-se aos sexos outros papéis
como a paulatina inserção da mulher no mercado de trabalho e também as novas funções
do casamento, do ser esposa e mãe. Estas transformações devem ser compreendidas por
meio de movimentos sociais dos interessados nas mudanças, isto é, segundo a
pesquisadora, os Códigos Civil e Penal não corroboraram às transformações operadas, ao
contrário, atuaram no lo oposto porquanto procuraram emoldurar papéis bem definidos
entre os sexos no interior da sociedade: as mulheres no recesso do lar e os homens como
cabeça de casal. Assim sendo, as modificações provieram mais das lutas individuais e
coletivas das pessoas do que do poder judiciário. Tal aspecto, porém, vinha-se
questionando em decorrência das estruturações que se efetuavam por volta das últimas
décadas do século XIX e começo do XX. Revistas e jornais publicizavam a desmoralização
do casamento realizado por conveniência, e conseqüentemente preocupavam-se com a
estabilidade familiar. Com efeito, segundo a historiadora, assuntos como o casamento e a
família levantaram debates no seio da sociedade brasileira das cadas iniciais do século
XX, que se formaram em decorrência de questionamentos dos papéis masculino e feminino
estabelecidos havia muito e pelo surgimento de leis que buscavam diferentes arranjos às
transformações que se operavam.
Este, então, é o conjunto documental dito razoável numericamente, onde não se
esqueceram as singularidades que cada um desempenhou no interior das teias culturais,
sociais e políticas do casamento, do amasiamento, da família e da separação. A
verdade e as formas jurídicas. Op, cit. ARNAUD-DUC, Nicole. “As contradições do Direito”. In: DUBY,
Georges. & PERROT, Michelle. (Orgs.). História das mulheres no Ocidente. Vol. IV. Porto: Afrontamento,
1991, pp. 97 / 137. ZENHA, Celeste. “As práticas da justiça no cotidiano da pobreza”. In: Produções e
transgressões. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH 10. São Paulo: Marco Zero, 1985, pp.
123 / 146.
27
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1940. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.
28
BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 1914 /
1940. São Paulo: EDUSP, 1999.
31
interlocução entre as fontes coligidas com uma bibliografia que versa sobre os problemas
expostos entende-se indispensável ao desenvolvimento da presente proposta de estudo. O
uso de diversos documentos justifica-se por ser objetivo apreender determinados discursos
contidos no interior das questões que se expôs; assim, por tudo o que foi explicado, o
intuito e o ponto de partida da análise documental foi o de encontrar e entrecruzar lutas,
incoerências e contradições nas inúmeras vertentes das tramas que seguem. Para tal
objetivo, a documentação não foi utilizada como se apresentava, ou seja, não foram usados
de modo inocente, pois entende-se que existem distâncias consideráveis quando se
compara aquilo que foi escrito e o efetivamente realizado; assim, o coletado são imagens
das práticas dos que os escreveram. É neste sentido que o volume documental também é
explicado, pois objetivou-se igualmente compreender as condições em que foram
elaborados.
29
A metodologia que propõe inúmeros recuos no dialogar com diversos
manuscritos e referências bibliográficas justifica-se pelo desejo de adquirir e desenvolver
tramas em curso no início do século XX, em Belém. Cruzar as variadas percepções sociais
diferentes em relação às temáticas propostas foi de grande valia aos desdobramentos das
situações apresentadas. Neste sentido, emanados dos indivíduos que dinamizaram os
discursos do trabalho, inevitavelmente se encontraram idéias dessemelhantes como as de
alguns intelectuais; desse modo foi propósito não se tecer imagem monossilábica frente às
questões e sim recorrer a diálogos que favorecessem e reforçassem a percepção das teias
que compunham os jogos de poder entre as pessoas. Deste modo reitera-se que a
metodologia adotada foi a da análise de uma série de documentos: judiciais, periódicos,
literatura escrita por ministros da Igreja Católica, destacando-se a obra O divórcio” do
padre Leonel Franca, diário, obras coevas, legislação do início do século XX, além de um
conjunto bibliográfico que, conjugados, dinamizaram com maior acuidade problemáticas,
justificativas e objetivos ora delineados. Com o referido procedimento pretendeu-se
dialogar de forma ampla com as versões apresentadas, para que assim se pudessem
aproveitar as razões que se buscava alcançar. Assim o uso de um número elevado de fontes
justifica-se por se desejar interpretar os diversos discursos elaborados diante das temáticas
29
Parte deste parágrafo procedeu de CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações.
Lisboa: Difel, 1990.
32
que sustentam as bases deste trabalho. Com isso, as páginas seguintes concentram-se no
princípio de que os documentos não apreendem a realidade e sim são constitutivos dela.
30
Por tudo que foi exposto, o título – “Para além da tradição” – pode ser
explicado da maneira seguinte: desejou-se expressar problemas no bojo do casamento dito
“legal”, mas também que relações sob o mesmo teto encontravam-se muito além deste
ideal. Entenda-se que homens e mulheres uniam-se e conviviam sob uma mesma habitação
conforme as necessidades que o tempo histórico exigia, amasiando-se e livrando-se dos
amásios / amásias conforme as conveniências surgidas. Por seu turno, o sub-título
“Casamentos, famílias e relações conjugais encontra-se no plural porque se quis
expressar as multiplicidades explicitadas no título, ou melhor, entender a falta de
homogeneidade ou de que Belém fosse proprietária de um único modelo de casamento,
família e separação conjugal. Negar esta afirmativa seria afastar a potencialidade dos
envolvidos nos espaços históricos quer econômicos, sociais, culturais ou políticos.
Então, para se contemplar o exposto, a tese foi dividida em quatro capítulos, a
saber: o primeiro, intitulado “Casamento e separação conjugal”, dedicou atenção a
entender o conjunto de significados de como as tensões se estabeleceram entre o Estado, a
Igreja Católica e os protestantes em torno dos sentidos da família, ou melhor dito, esta
parte trata da interpretação de qual Instituição celebraria com maior força o matrimônio
autor da família dita “legal”. Também se preocupou em analisar como o casamento civil [e
a família dele constituída] conseguiu, paulatinamente, espaço em uma sociedade que
séculos via somente o consórcio religioso como o formador de uma unidade familiar sólida
e honrada. Concentra-se também nas interpretações de como cônjuges, testemunhas,
advogados, juízes, jornalistas compreendiam o desquite e o divórcio. O capítulo localiza-se
na idéia de que o casamento, a família e a forma de ruptura conjugal assuntos
exaustivamente debatidos no início do século XX passavam necessariamente pela
imagem do aperfeiçoamento da nação proporcionando assim um constante campo de
proximidade x distanciamento e de força x poder entre Estado e Igreja Católica nas
primeiras décadas dos novecentos. Em outras palavras, o Código Civil de 1916, as
Constituições de 1934 e 1937 e o Código Penal Brasileiro de 1940 eram legislações que
30
LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: História e memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996.
33
discutiam os significados do casamento, da família e da separação nas décadas iniciais do
último século e nestes diálogos existiam pelo menos duas forças: primeira a do Estado que
se auto-proclamava protetora da família, do seu desenvolvimento, da sua honra, da sua
segurança e conseqüentemente guardiã de uma nação forte; segunda a da Igreja que via seu
casamento como ato solene capaz de formar um país consistente e por isso apto a combater
o enlace civil bem como as idéias liberais divorcistas propostas nos anos iniciais do século
XX. As temáticas deste capítulo surgiram a partir das pesquisas em um volume de
documentos bastante expressivo como os textos de jornais, processos de desquite,
legislação e obras de época e para tal empreitada tomaram-se como apoio referências
bibliográficas como a de Riolando Azzi,
31
autor que buscou interpretar [no Brasil] as
mudanças da mulher, da família e da Igreja Católica em uma sociedade não estática, mas
que gradativamente se transformava.
O segundo capítulo, intitulado “Ruptura da norma desejada: casamento,
amasiamento e família” pôs-se ao serviço de lidar com as experiências cotidianas dos
casais (por meio dos significados do casamento e da família), mas também analisar os
sentidos das uniões e separações entre amásios na sociedade belenense. Em conformidade
com isso, parte do referido capítulo interpreta que o “separar-se” não era mais ou menos
doloroso no casamento ou no amasiamento, ou seja, esses relacionamentos sofriam
complexidades igualmente confusas e tensas. O capítulo também buscou elaborar
interpretações acerca dos sentidos das uniões extraconjugais no seio do casamento e
amasiamento. Assim, para além do corpo documental, processos de desquite e jornais, as
temáticas foram dinamizadas por meio de referências bibliográficas como a tese de
doutorado de Cristina Donza Cancela
32
que analisou, do prisma da economia da borracha,
algumas estratégias matrimoniais e familiares quais sejam a manutenção dos bens e as
relações conjugais na cidade de Belém das últimas décadas do século XIX e início do XX.
“Judiciário, cotidiano e conflitos familiares” é o título do terceiro capítulo que
foi dedicado a examinar diferentes campos do cotidiano no pensamento jurídico paraense
31
AZZI. “Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930 / 1964)”. Op, cit.
32
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém 1870 /
1920). Tese apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH / USP). São Paulo:
Mimeo, 2006.
34
nas primeiras décadas novecentistas, relações de sedução (casamento na Chefatura de
Polícia), conflitos em torno da investigação de paternidade, prisões por se eximir a pagar
pensão alimentícia e fugas às vésperas do casamento. Temas distintos entre si, mas que
convergem a um campo comum: o do casamento monogâmico e o da família legítima
como pretensos moralizadores da ordem social higiênica. Como em outros itens e
capítulos da tese, este também possui como documentos-base os que emanaram do poder
jurídico (processos de investigação de paternidade e de provisões), mas também diversos
periódicos que circularam na cidade de Belém nos primeiros anos do século XX, (“A
Província do Pará, “A Palavra”, Folha do Norte”, “O Estado do Pará”) e as
importantes anotações contidas no diário da senhora Laura Soares. Neste, assim como em
todos os outros capítulos do texto, tomou-se como metodologia o entrecruzamento [quando
possível] das diversas fontes coligidas e a utilização de algumas referências bibliográficas.
De tal sorte tem como eixo de análise entender os que transitavam no interior do poder
judiciário quando acionado: mulheres abandonadas, homens traídos, sedutores que
defloraram mulheres menores de idade, isto é, dedica-se a compreender como se
construíam imagens pessoais diante do corpo jurídico tomando como ponto de partida as
representações do cotidiano.
O quarto capítulo intitula-se “Cidade, economia e vivências conjugais”, e
versa sobre temáticas como a da função social dos bens, filhos, vizinhança, amigos,
agregados, pais, sogros na vida em casal e custo para se sustentar uma família na cidade de
Belém. Interpretou de que modo pessoas que apenas aparentemente não participavam de
forma direta das tensões que se estabeleciam no bojo do casamento e dos amasiamentos se
imiscuíam neles. Desta maneira, o referido capítulo dedica-se a compreender como se
davam a ler as intrincadas tramas elaboradas no interior do casamento e também quando
este instituto estava em crise. Em conformidade com isso houve um esforço recorrente
em se debater os significados dos bens, ou seja, como dinheiro e propriedades conduziam e
acentuavam instabilidades entre os casais e assim a função da moradia e das relações de
solidariedade entre amigos e parentes foi um campo de análise do capítulo. Também se
demonstrou como a economia da cidade de Belém estava nas primeiras décadas
novecentistas, para justamente sentir como as pessoas se comportavam quando se
percebiam em condição financeira adversa.
35
Descritas a natureza dos documentos e a capitulação do texto, convém agora
enfatizar seus objetivos centrais: casamento, família, amasiamento e separação serão
interpretados como portadores de linguagens em permanente transformação por pessoas
como Laura Soares, Francisca Nunes, Felizmunda Gomes, Etelvina Bandeira, Katarina de
Fátima, Francisco Conde, Galdino Nunes, Antonio de Pinho e tantos outros que
desempenhavam experiências próprias no interior de suas vivências sob o mesmo teto.
Assim sendo, trata-se de interpretar as famílias, uniões e separações como processos
multifacetados e por isso o objetivo central presente nos capítulos seguintes é o de entender
como o casamento, amasiamento, família e ruptura se organizavam em condições
específicas na cidade do período em estudo (1916 / 1940). No bojo dessa questão foi de
suma importância notar as escalas de luta existentes entre o Estado com as diversas leis
que giravam em torno do casamento, família e separação bem como os posicionamentos
do Clero diante das “normas” que aquele vinha estabelecendo. Mesmo observando-se em
diversos momentos que tanto o Estado quanto a Igreja tinham a mesma noção de
casamento e família higiênicos, este padrão jamais conseguiu envolver a todos na cidade
de Belém ou mesmo no Brasil, como salutarmente demonstra a bibliografia
especializada.
33
Localizar algumas tensões entre Estado e Igreja foi importante aos
propósitos do texto que segue, mas igualmente essencial foi a concepção de que as duas
Instituições em diversos debates se aproximavam como na permanência da
indissolubilidade do matrimônio que continuou nas duas Constituições: na de 1934 e 1937.
Definia-se como família legal aquela formada pelo casamento indissolúvel, o qual
permaneceria até a aprovação da lei do divórcio a vínculo, em 1977. Tal condição
expressava muito bem a força da Igreja e do laicado católico durante boa parte do século
XX no bojo da sociedade brasileira.
Enfim, deseja-se afirmar que nunca se pretendeu realizar qualquer revelação
tonitruante que transformasse o modo de ver as temáticas que envolvem esta tese;
33
Importantes paralelos de proximidade e distanciamento entre Igreja e Estado, bem como a elaboração de
padrões próprios realizados pelas pessoas, encontram-se em: SCHWARTZMAN, Simon. “A Igreja e o
Estado Novo: o estatuto da família”. In: Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, nº 37. Rio de
Janeiro: Fundação Carlos Chagas, 1981, pp. 07 / 71. É também de suma importância consultar: PRANDI,
José Reginaldo. “Catolicismo e família: transformação de uma ideologia”. São Paulo: CADERNOS
CEBRAP, 1975, pp. 29 / 35. DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete
monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916 / 1964. São Paulo: CADERNOS CEBRAP, 1975,
pp. 05 / 52.
36
assim o que segue representa interpretações passageiras e por isso parciais, não
conclusivas; e certamente isso seja o que torne a História o que ela é, quer dizer, não
sustém um limite de conhecimento acerca de um determinado assunto e assim nunca se
torna passível de única interpretação; outros virão com formas dessemelhantes e
métodos mais refinados e fornecerão diferentes interpretações ao nível da crítica
acadêmica.
37
CAPÍTULO 1
CASAMENTO E SEPARAÇÃO CONJUGAL
38
1. TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA
“Creando a familia legitima, o casamento legitima os filhos
communs, antes delles nascidos ou concebidos”.
(Artigo 229, Dos effeitos juridicos do casamento. In:
Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1917)
“O acto civil foi, originalmente, uma laicisação do
sacramento. Era natural que, atheisados a escola, o jury, os
hospitaes, as constituições, fosse Deus expulso do
casamento. Basta considerarmos que o contracto legal
surgiu de revoluções ou demagogias em que da Egreja se
separava do Estado (...)”.
(Perigos do civil. In: “A Palavra”. Belém, 29 de novembro
de 1923, p. 01)
Em relação ao casamento e à separação conjugal em finais do século XIX e nas
primeiras décadas do XX, observou-se que a recém instaurada República imprimia
mudanças que envolviam diretamente interesses da Igreja Católica. O decreto 181 de 24
de janeiro de 1890 que impôs a secularização do casamento e sua ruptura pelo Estado é um
exemplo, pois nele podem-se ver incursões sobre a família, o casamento, os filhos, as
relações conjugais, o separar-se. A respeito do enlace civil afirma ser o único que
legitimava a família e os filhos anteriormente nascidos de um dos contraentes com o outro
e que a sua quebra era igualmente de responsabilidade do Estado republicano.
34
Mas diante
da interrupção dos laços conjugais as leis, no decorrer do tempo, permaneciam com os
mesmos ideais, como se observa na tabela seguinte:
TABELA 1
34
O decreto 181 de 24 de janeiro de 1890 secularizou, no início da República, o casamento e o divórcio que
estavam desde a Colônia sob o domínio da Igreja Católica. Sobre a separação conjugal, consultar: “Capítulo
VII: dos efeitos do casamento”. In: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do
Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31 de janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. Sobre a
secularização do casamento veja-se: SOARES, Oscar de Macedo. Casamento civil: decreto 181 de 24 de
janeiro de 1890 / comentado e anotado. Rio de Janeiro: Garnier, 1895.
39
RAZÕES PARA SE SOLICITAR SEPARAÇÃO DE CORPOS E BENS
COLÔNIA: CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA
1. Adulterio; 2. Apostasia e heresia; 3. Sevicias.
IMPÉRIO
Divórcio temporário: 1. Suggestões criminosas de um conjuge ao outro; 2. Sevicias
graves incididas contra a vida.
Divórcio perpétuo: 1. Adultério commetido por um dos conjuges.
REPÚBLICA: DECRETO 181 DE 24 DE JANEIRO DE 1890
1. Adulterio; 2. Sevicias ou injuria grave; 3. Abandono voluntario do domicilio conjugal e
prolongado por dous annos continuos; 4. Mutuo consentimento dos conjuges se fôrem
casados ha mais de dous annos
REPÚBLICA: CÓDIGO CIVIL DE 1916
1. Adultério; 2. Tentativa de morte; 3. Sevicia ou injuria grave; 4. Abanbono voluntario
do lar conjugal, durante dois annos contínuos, 5. Mutuo consentimento dos conjuges, se
forem casados por mais de dois annos.
A tabela foi elaborada a partir dos seguintes documentos: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
feitas, e ordenadas pelo illustrissimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito
Arcebispado, e do Conselho de sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo Diocesano, que o dito senhor
celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro, 1853. PEREIRA, Lafayette Rodrigues.
Direito de familia. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889. Decretos do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31 de janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890.
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
Tomando-a como base, desde a Colônia as razões da separação conjugal
permaneciam inalteradas ocorrendo somente sutis acréscimos e supressões quando se
compara um período com o outro, por exemplo, a apostasia e heresia
35
presentes no
período colonial deixaram de ser motivo no Império; na República foram introduzidos
abandono voluntário do lar conjugal se prolongado por dois anos consecutivos, mas
também se nota que o adultério e sevícias permaneceram no decorrer do tempo. O mútuo
consentimento, segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, não é contemporâneo da República
– surgiu no início do século XIX – e para a autora os divorciantes passaram a preferi-lo em
virtude de ser mais barato e rápido processualmente.
36
Como devidamente explicado na
35
Significavam a entrada de um dos consortes para outra religião ou blasfêmia contra os sacramentos da
Igreja Católica. Veja-se: Livro I, Título XXII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e
ordenadas pelo illustrissimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito
Arcebispado, e do Conselho de sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo Diocesano, que o dito
senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro, 1853.
36
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “O divórcio na capitania de São Paulo”. In: BRUSCHINI, Maria Cristina
& ROSEMBERG, Fúlvia. (Orgs.). Vivência: história, sexualidade e imagens femininas. São Paulo:
Brasiliense, 1980, pp. 151 / 194. Ao contrário das pesquisas realizadas por Nizza da Silva para a São Paulo
colonial, as ações por mútuo consentimento não foram as preferidas pelos desquitantes na cidade de Belém
40
introdução, divórcio e desquite promoviam somente o fim da sociedade conjugal; o
casamento, como vínculo perpétuo, dissolvia-se apenas com a morte de um dos cônjuges.
Desta maneira, como disse Lafayette Rodrigues Pereira,
37
o divórcio admitido pela Igreja
Católica impossibilitava segundas núpcias em vida de um ou outro consorte. Jurisconsulto
e Igreja compreendiam a família na forma de um núcleo que deveria ser amparado em
todas as circunstâncias.
Matrimônio e separação conjugal permaneceram pois inalterados, ou seja, com
a secularização continuaram os ideais de família católicos. De tal sorte, eles com o
Estado separado da Igreja indiferenciavam-se da legislação anterior [sob o domínio da
Igreja], isto é, os vínculos permaneciam indissolúveis e sem nenhuma chance de segundo
casamento. Nas primeiras décadas do século XX, com a aprovação do Código Civil
Brasileiro, em 1916, os sentidos do casamento e separação permaneceram imóveis, pois a
nova legislação afirmava, no artigo 229, que o matrimônio criava a família legítima e no
315, assegurava que as núpcias, quando celebradas, somente se dissolviam pela morte de
um dos cônjuges.
38
Se as leis republicanas “conseguiram” secularizar o casamento e a
ruptura da convivência a dois, é de suma importância não generalizar o fato. Em outras
palavras, a secularização realizada pelo Estado conseguiu apenas retirar das mãos da Igreja
o poder exclusivo sobre a união e o desligamento ou não dos vínculos conjugais. Então o
Código Civil guardou a tradição da lei anterior impossibilitando ainda o divórcio e
consequentemente as segundas núpcias. No entanto a considerar que os movimentos
para a implementação deste novo ideário desenvolveram-se ao longo do tempo em
diferentes lugares da rede social, escreveu Keila Grinberg.
39
Por entender o casamento como perpétuo e indissolúvel, a Igreja Católica
conseguiu que o divórcio não constasse tanto na legislação de 1890 quanto nas seguintes
Código Civil de 1916 e em duas Constituições, as de 1934 e 1937 com o argumento de
que impossibilitava a vida em comum, sendo fonte de perturbações e causa permanente de
escândalos; tolerava apenas o desquite, que promovia a separação de corpos e bens
entre 1916 e 1940. Assim, dado importante a ser dito é que, mesmo menos burocráticas e mais baratas,
localizaram-se apenas sete processos desta natureza no Cartório Sarmento do Arquivo do Tribunal de Justiça
do Estado do Pará.
37
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito de familia. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889.
38
Sobre os sentidos legais do casamento a partir de 1916, vejam-se os artigos 229 e 315. In: Código Civil dos
Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
39
GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
41
conservando os vínculos matrimoniais.
40
De tal sorte dois princípios, a Igreja e os setores
conservadores da sociedade brasileira, conseguiram que permanecessem nas leis da
República: a indissolubilidade matrimonial e consequentemente a inexistência do divórcio
perpétuo, o que significava que o Clero – como se verá nas páginas seguintes – não se dava
por vencido e atacava de maneira sistemática a secularização da ruptura conjugal bem
como o casamento civil. Este, por exemplo, era taxado de mero contrato entre os homens,
que terminava ao sabor dos ventos e não tinha a misericórdia de Deus.
41
Como indicado
acima, no início do século XX um conjunto de leis promulgadas pela República versava
ante a formação da família dita legal e a este respeito a Igreja Católica jamais ficou alheia,
isto é, de todos os modos possíveis buscou envolver-se nos nevrálgicos assuntos, seja
influenciando diretamente as legislações, seja publicando matérias opositoras ao divórcio,
união civil e mesmo ao Estado, autor das novas regras do direito de família. Em 1923,
interpretava que o governo não podia intervir no caráter da família e o acusava de estar
colocando “o carro adeante dos bois”, uma vez que os lares eram instituições anteriores ao
Estado. Para o Clero, a intervenção neste assunto fazia enfraquecer a idéia de nação, pois
esta nascia de um conglomerado de lares os quais de época imemorial foram de
responsabilidade de Deus, logo da Igreja.
42
A estratégia católica era bastante sagaz,
porquanto articulava e expunha a público a concepção de que quanto mais o Estado se
envolvia com a família mais conseguia debilitar o país. Todas as artimanhas eram
utilizadas: a função de Deus, a da família, a da nação e a do casamento.
Como o fortalecimento da nação era assunto de extrema importância para o
Estado, a Igreja buscava formar cadeias sociais argumentativas a este respeito. Ainda em
1923, a Instituição colocava-se frente-a-frente à República mesmo quando tentava inverter
as acusações, pois afirmava que os defensores da lei do país acusavam “o Clero de chamar
o acto civil casamento do diabo, matrimonio da Maçonaria, consorcio do tinhoso”, mas o
que acontecia, segundo a sua leitura, era que os católicos estavam cansados de ouvir os
bacharéis e doutores, escrivães e juízes “gritarem contra a união sacramental, que dizem
extincta desde a Republica, despida de qualquer utilidade em caso de heranças, e mantida
pela ganancia dos padres”.
43
Segundo o Clero, tais lutas em torno do conúbio tinham como
40
“A Palavra”. Belém, 01 de janeiro de 1917, p. 02.
41
“A Palavra”. Belém, 29 de novembro de 1923, p. 01.
42
Idem.
43
“A Palavra”. Belém, 20 de dezembro de 1923, p. 02.
42
única razão desalentar a já frágil idéia de nação e a disputa não levaria a nenhum lugar que
não fosse a ruína do povo brasileiro. A Igreja se reorganizava e reagia como podia às
investidas do Estado, quer dizer combatia vigorosamente a situação provisória em que a
laicização esforçava-se em lançá-la. Assim, contra as tentativas de caracterizá-la enquanto
Instituição de menor importância, o Clero escreveu diversas pastorais, aumentou o número
de dioceses, buscou melhorar a qualidade do ensino e da própria formação do corpo
eclesiástico, criou algumas associações religiosas (Apostolado da Oração e Filhas de
Maria) e fundou inúmeros jornais; em Belém, por exemplo, circularam entre 1890 e 1930:
“Semana Religiosa do Pará” (1889 / 1890), “A Palavra” (1910 / 1941) e “Revista Feminina
Laica Quero” (1939 / 1942). Eis algumas articulações realizadas pela Igreja que visavam a
preservação dos valores morais da família, aliás esta questão foi uma das suas metas
prioritárias para conter o que compreendia ser a elevação do “sentimento da desordem em
marcha no país”. Estes movimentos devem ser compreendidos como um conjunto de
medidas que visava o avanço da influência do catolicismo; desta maneira, mesmo não
negando a existência de dificuldades enfrentadas pela Igreja no período citado, os
argumentos desta sessão em nada se alinham à tese da “acomodação católica”. Enfim, o
interregno da Proclamação da República até ao início do governo de Getúlio Vargas foi
importante para o catolicismo que conseguiu fortalecer-se política e socialmente, graças a
atitude da hierarquia católica no que diz respeito à sua posição enquanto articuladora de
poder. Na década de 1920, para a cidade do Rio de Janeiro, Ralph Della Cava observou
como o apostolado laico foi importante contra as idéias divorcistas, o anti-clericalismo e o
ateísmo e que o objetivo não era o de dominar o Estado, mas sim o de nele intervir por
meio dos seus fiéis.
44
Para a cidade de Belém entre 1939 e 1947, Liliane do Socorro
Cavalcante Goudinho, interpretou o movimentar do laicato feminino católico em um
44
DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o
catolicismo brasileiro, 1916 / 1964. São Paulo: CADERNOS CEBRAP, 1975, pp. 05 / 52. Consultem-se
também: BEOZZO, José Oscar. Cristãos na universidade e na política. Petrópolis: Vozes, 1979. LUSTOSA,
Oscar de Figueiredo. Igreja e política no Brasil: do Partido Católico à LEC. (1874 / 1945). São Paulo:
Loyola, 1983. Veja-se também: VILHENA, Cynthia. Família, mulher e prole: a doutrina social da Igreja e a
política do Estado Novo. Tese apresentada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São
Paulo: Mimeo, 1988. Para aqueles que queiram manter contato com uma longa análise sobre as teias
políticas, sociais e ideológicas tramadas pela Igreja Católica na política brasileira, não devem deixar de
consultar: MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916 / 1985). São Paulo:
Brasiliense, 2004. também a se acentuar que uma longa bibliografia especializada vem se esforçando no
argumento de que se por um lado a Igreja Católica mantinha-se conservadora diante de alguns pressupostos
como o do divórcio perpétuo, por outro ela via com bons olhos a participação laica feminina na defesa dos
seus pressupostos como o do casamento enquanto sacramento.
43
momento em que a Igreja procurava reafirmar a sua importância política e ideológica no
cenário nacional.
45
Isso acontecia em virtude das autoridades seculares compreenderem ser a
família por elas formada a pilastra central da nação porque produzia a honestidade, a moral
e a disciplina; a Igreja também atuava no seio da sociedade e fazia questão de deixar claro
que sem a força moralizadora do seu rito matrimonial ocorreriam indelevelmente a
dissolução da família e da nação, uma vez que o núcleo familiar católico sempre elaborou
as bases do povo brasileiro. Assim, tanto o Estado quanto a Igreja percebiam as intenções
um do outro no bojo da sociedade e por isso apressavam-se em oferecer-lhe conjuntos de
códigos (mesmo em vários pontos convergentes) que fossem compreendidos coerentes ou
ditos à época, morais. As duas Instituições dialogavam o que lhes convinha, contudo não
se pode esquecer que elas se encontravam entre os valores idealizados e os
comportamentos dos indivíduos e, se por um lado as suas normas sociais poderiam
influenciar um enorme número de pessoas, por outro seria arriscado descartar a
potencialidade dos que transgrediam tanto os digos eclesiásticos quanto os do Estado.
Dessa maneira em diversos momentos elas utilizaram ferramentas similares quando o
assunto tratava da ordem familiar, mas a observar que, mesmo com as aproximações e
distanciamentos, o que se revelaram foram disputas amplas e tensas pelo poder de quem
iria definir o futuro moral e político da família brasileira, logo da nação.
A respeito do não isolamento da Igreja nas primeiras décadas novecentistas,
bom exemplo concentrou-se nas discussões frente ao casamento como contrato e
sacramento. Em pastoral coletiva publicada em 1915, afirmava-se que “(...) o contrato civil
é uma simples formalidade que, sem nada acrescentar ao valor do sacramento do
Matrimônio, nem enfraquecer-lhe o vínculo ou atingir-lhe a essência, vem apenas garantir
os direitos temporais da família já constituída, ou a constituir-se pròximamente de acôrdo
com a legislação divina e eclesiástica (...)”.
46
Reforça-se aqui a argumentação de que,
mesmo separada do Estado, a Igreja mantinha relações de força e influenciava a sociedade.
Participava também dos jogos políticos e atuava por meio da imprensa e de pastorais nos
debates sobre o Código Civil Brasileiro, no sentido de que preservasse seus ideais de vida
45
GOUDINHO, Liliane do Socorro Cavalcante. Mulheres em ação ... (católica): Belém (1939 / 1947).
Dissertação apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São Paulo: Mimeo,
2005.
46
Pastoral Collectiva das Provincias Eclesiasticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo,
Cuyaba e Porto Alegre. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araujo, 1915, p. 126.
44
conjugal percebidos como coerentes. Mesmo digladiando-se, as Instituições compreendiam
as alianças como fundamentais à nação, daí a importância em fazê-las indissolúveis. Estas
concepções eram reforçadas por juristas como Tito Fulgencio que afirmava: “fazendo que
um cônjuge seja a carne e o osso do outro, dahi a sua forma monogamica, unica, conforme
a natureza moral e o destino do homem, que satisfaz a felicidade e ao fim social do
casamento perpetuidade da especie. Estes caracteres indeleveis do casamento, que são o
apanagio do homem entre os seres animados, communicam forçosamente ao casamento a
perpetuidade e por tanto a indissolubilidade. O divorcio gera a polygamia, condemnada e
repellida”.
47
O jurisconsulto católico ajudou a que permanecesse no Código Civil a
indissolubilidade matrimonial. Clovis Bevilaqua, outro representante da Igreja nas leis do
país, afirmava que em decorrência das pressões políticas feitas pelos representantes do
Clero na Câmara dos Deputados a proposta de imposição de segundas núpcias na vida civil
brasileira não foi aprovada para figurar no Código de 1916.
48
Ainda segundo Bevilaqua,
em 1901, quando se discutia o projeto do Código Civil na Câmara dos Deputados, pela
preferência entre desquite e divórcio, antidivorcistas M. F. Correia, Alencar Araripe,
Andrade Figueira, Coelho Rodrigues, Gabriel Ferreira, Guedelha Mourão e Lima
Drummond e divorcistas Anísio de Abreu, Fausto Cardoso, Adolpho Gordo, Carlos
Perdigão, Vergne de Abreu, Sá Peixoto – enfrentaram-se arduamente.
Com o Código Civil de 1916 nenhuma transformação expressiva ocorreu no
âmbito da prática matrimonial. A República não promoveu modificações profundas na
família, aliás apenas algumas terminologias mudaram, o que reforça a conjectura de que se
pretendia a reafirmação do ideal conjugal que séculos a Igreja difundia. Então a questão
que se impõem é a de que, se diante de relações de força a República conseguiu tomar para
si [secularizar] o matrimônio, por que as mudanças localizaram-se somente nesse ponto?
Por que não avançaram no interior dos significados práticos do casar-se?
Tem-se assim que a idealização católica de casamento e família permanecia
nas leis civis, entretanto a exclusividade da celebração do matrimônio não mais lhe
pertencia. Com o decreto-lei 181 de 24 de janeiro de 1890, quem desejasse constituir
família legal teria necessariamente de passar pelas leis republicanas. A Igreja Católica
perdia parte da força que há muito tinha diante da constituição do ideal de família legítima,
47
FULGENCIO, Tito. Do desquite: theoria legal documentada – processo jurisprudencia nacional. São
Paulo: Saraiva & Companhia, 1923.
48
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1952, p. 267.
45
higiênica e indissolúvel,
49
pois as legislações seculares buscaram “neutralizar” seu
expressivo poder no interior da sociedade que ameaçava o Estado como força hegemônica.
Em busca de dirimir esta representatividade, um dos primeiros movimentos do regime
republicano foi o de promover a secularização do casamento, repita-se.
Mas no início do século XX, o que era exigido para casar diante das autoridades
civis e católicas? A habilitação às núpcias apresentava-se se contempladas todas as fases
um rito prolongado, o que exigia dos nubentes grande parcela de paciência. O percurso
das formalidades civis iniciava-se por meio da apresentação de documentos ao oficial de
registro. O direito de família exigia: certidões de nascimento ou de batismo para provar a
maioridade; em caso de menoridade os tutores ou responsáveis teriam de assinar
documento autorizando o casamento; a apresentação da “declaração de estado”, a qual
detalhava a vida civil dos noivos, se eram solteiros ou viúvos, maiores ou menores,
filiação legítima ou natural, se tinham filhos e se foram casados e, finalmente, o
depoimento de duas testemunhas que confirmassem conhecê-los e declarassem não existir
impedimento de espécie alguma como a proximidade parental ao casamento; essas
testemunhas poderiam ser parentes ou quaisquer estranhos. Com os documentos
apresentados pelos pretendentes a marido e mulher, o oficial de registro dava
prosseguimento ao rito com os proclamas de casamento mediante edital público que seria
fixado em lugar ostensivo e publicado na imprensa, onde a houvesse. Se decorrido prazo
de 15 dias e sujeito algum se opusesse ao consórcio, os pretendidos cônjuges eram
informados pelo oficial de registro de que estavam habilitados ao casamento no tempo
determinado de três meses imediatos.
50
A solenidade realizar-se-ia na casa das audiências
ou, se consentido pelo juiz, em lugar público ou particular, mas considerando toda
publicidade necessária e portas abertas com a presença de no mínimo duas testemunhas.
No início do ato os nubentes eram novamente consultados se permaneciam com o mesmo
propósito no plano da livre e espontânea vontade. Em caso de resposta positiva o enlace
seria consumado nos seguintes termos: “de accordo com a vontade, que ambos acabaes de
49
Crê-se ter esclarecido na apresentação desta tese, que se trabalharia com o casamento legalmente
constituído, por conseguinte com a família legal, mas também com interpretações das famílias ditas ilegais.
Consulte-se: SAMARA, Eni de Mesquita. “Estratégias matrimoniais no Brasil do século XIX”. In: Sociedade
e cultura. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH 15. São Paulo: Marco Zero, 1987, pp. 91 /
105.
50
Este parágrafo procedeu das leituras do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
46
affirmar, perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos
declaro casados”.
51
Se os ritos civis apresentavam exigências documentais, sociais e morais aos
pretendentes à vida conjugal, a consumação da cerimônia religiosa católica não menos
reclamava. A Câmara Eclesiástica requeria para encaminhar o ato solene: proclamas;
documento que comprovasse a maioridade (nascimento ou batismo); caso fosse menor de
19 anos requeria-se autorização expressa dos pais, tutores ou responsáveis; certidão de
batismo e no mínimo duas testemunhas que deporiam confirmando, por exemplo, que em
tempo algum os noivos foram casados com outrem; que havia viuvez de um dos
pretendentes; que os candidatos à vida sob mesmo teto eram solteiros e desimpedidos. Em
1907 o jornal “Folha do Norte” sob título “O arcebispado paraense” pormenorizava o
campo das exigências documentais: “proclamas, certidões de baptismo de ambos os
contrahentes; para os oriundos de outras dioceses, justificação do estado livre e
desempedido perante o parocho por autorisação diocesana; para os extrangeiros
justificação na camara eclesiastica, instruida com o respectivo passaporte e em falta deste,
justificação perante o respectivo consulado; certidão de obito ou justificação do mesmo
perante o parocho por autorização diocesana, quando um dos contrahentes fôr viuvo;
dispensa pela camara ecclesiastica, havendo impedimentos; licença pela camara
ecclesiastica quando o casamento tenha por motivo justo, de ser celebrado fora do lugar,
tempo e hora legaes”.
52
Os pretendentes à vida em comum compareciam à paróquia e
confirmavam sobre os Santos Evangelhos, diante do padre, informações para além das
prestadas pelas testemunhas: se era (m) filho (s) natural (is) ou legítimo (s) e as filiações
paterna e materna. Realizados estes necessários trâmites, os depoimentos das testemunhas
e dos justificantes chegavam aos representantes da Igreja – cônegos, padres, párocos – para
serem finalmente julgados, pois em instância anterior [habilitação documental]
considerava-se que “os depoimentos de fls. são contestes e estão de pleno accordo com as
declarações dos justificantes e as alegações da petição inicial sou de parecer que os
presentes autos sejam afinal julgados”.
53
Em conformidade com todas as habilitações
51
Consulte-se, artigo 194 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1917.
52
“Folha do Norte”. Belém, 16 de setembro de 1907, p. 01. Também foi consultado o Código Canônico de
1917.
53
Autos de justificação de batismo e estado de solteiro de Guilhermino Augusto Fernandes e Aurora
Rodrigues de Azevedo, 1913.
47
documentais, a Igreja autorizava a legitimação da vindoura família. Diga-se legitimidade
em sentido desejado estrito, porquanto desde logo se insistia que o matrimônio não seria
temporário, mas até que a morte os separasse.
54
Neste momento, os cônjuges estavam mais
do que orientados acerca dos códigos, parâmetros e normas sociais a serem cumpridas
diante de Deus e da sociedade. Observa-se assim, que as escalas de força não devem ser
apreendidas como diálogos que objetivassem transformações nos padrões matrimonial e
familiar, e sim que elas localizavam-se diante da mudança de paradigma do local do
próprio poder, isto é, quem dominaria os institutos.
Os ritos do Estado e da Igreja eram, ideologicamente, os que formavam –
segundo o Código Civil e os mandamentos da Igreja Católica a família dita moralmente
legal. Não havia outro meio regular para compô-la. Então, os candidatos a constituírem o
ato estavam impelidos a tais possibilidades. Entre 1890 e 1940 inúmeras leis seculares que
discutiram a ordem familiar fizeram-se presentes bem como várias ações católicas; desta
maneira tanto o Estado quanto o Clero buscavam fortalecer a tutela que exerciam perante a
sociedade justamente para ver quem melhor dominaria a ordem familiar dita higiênica. É
claro que ambos os planejamentos sociais utilizaram a prática do convencimento, mas o
se deve ignorar que também tiveram elementos coercitivos: por um lado o Estado, durante
certo período de 1890 a 1934 –,
55
afirmava ser apenas o casamento civil que formava a
família legal, por outro a Igreja, que propagandeou durante bom tempo ser o civil
casamento temporário, apenas um contrato que ignorava a presença de Deus; ato em que o
fim era o desquite, coisa do tinhoso. Até por volta da década de 1930, quando aconteceu
uma reaproximação entre Estado e Igreja, inquestionavelmente as duas Instituições se
enfrentaram incisivamente diante dos significados bem como de quem dominaria a vida
conjugal dita legal; diante desses confrontos, o Clero encaminhava sua atuação política
tomando como pilastra um evidente alinhamento com os seus fiéis, ou seja, mobilizar os
católicos contra os posicionamentos das leis seculares [de casamento civil e separação]
passou a ser uma das bases de sua política para se contrapor aos anseios do Estado. As
implicações desse posicionamento podem ser notadas na mudança de sentido das matérias
publicadas no periódico “A Palavra”; dito de outro modo, na medida em que o Estado
avançava ou buscava avançar em assuntos antes de competência católica, como o
54
Bíblia Sagrada de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
55
A Constituição de 1934 também passou a reconhecer as núpcias religiosas como a que formava a família
legal.
48
casamento e a separação, a Igreja valia-se do referido jornal para questionar, por exemplo,
a validade das núpcias civis e conseqüentemente a legitimidade da família formada a partir
deste enlace.
Enfatize-se que até à Constituição de 1934 (legislação que também reconheceu
o casamento religioso como válido), a República estabelecia que o consórcio perante a
autoridade cartorial seria o único apto a promover a legalidade da família e é neste sentido
que as referidas leis seculares corroboram com o argumento de que o ideal de família
monogâmica que há séculos era propagandeado pelo Clero permanecia no interior da
legislação republicana. De tal modo, mesmo com a secularização do casamento e
separação de corpos e bens, os ideais de conjugalidade mantiveram-se, pois a Igreja
conseguiu medir forças com o Estado em relação à família e às ações práticas que
afetavam o seio das tramas cotidianas. Tem-se nesse caso a tríade que aparece nos
discursos de modo inseparável [Estado, Igreja, família] sobre os sentidos do assunto, uma
vez que se precisava formar idealizações, condutas e limites capazes de conferir um
conjunto de significados que fossem apreendidos específicos à sociedade.
Em inícios do último século, vê-se que o regime republicano buscava ainda
ganhar a simpatia da população brasileira e neste sentido a aprovação do primeiro Código
Civil, em 1916, trouxe certa instabilidade ao regime, uma vez que as relações de força
frente à temáticas como casamento, família, divórcio e desquite, novamente vieram à tona
e envolveram necessariamente segmentos da sociedade como a Igreja Católica. O
matrimônio permanecia, desde a Colônia, como ato para toda vida, isto é, dissolvia-se
apenas por meio da “morte de um dos conjuges”.
56
O Código de 1916 trouxe leves e
inexpressivas mudanças, como sejam a troca da terminologia divórcio por desquite,
permanecendo a indissolubilidade matrimonial como antes. Mudavam-se nomenclaturas,
sem que houvesse transformações substanciais no sentido prático do casar-se e separar-se.
O que estava acontecendo era uma luta entre Estado e Igreja na busca de conseguir maior
influência e dinâmica no interior das leis que se formavam, porquanto o direito de família
trazia disposições que envolviam tensões múltiplas, e onde interesses de um e outro grupo
social promoviam disputas acirradas que se localizavam na atuação dos jogos de poder e
envolviam aspectos da vida familiar que predominariam até o próximo direito de família.
Assim, o ideal de a família constituir-se em legítima e higiênica apenas a partir do
56
Artigo 315, inciso . In: Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1917.
49
casamento válido era forte, tanto que as articulações contrárias ao divórcio mantinham
como principais argumentos a desagregação familiar e a da moral pública e privada.
Itere-se que o ideal de ser o lar ambiente moralizado era desejo das duas
Instâncias de poder, porquanto as defesas da unidade familiar e doméstica, da moralidade
pública e privada e da monogamia, eram princípios basilares observados nas obras de
diversos juristas da época. Assim sendo, seria interessante confirmar a argumentação de
que as escalas de poder entre a República e a Igreja Católica eram grandes, ainda que o
ideal de casamento convergisse para razões comuns: o monogâmico-indissolúvel. As lutas
estabelecidas localizavam-se em qual poder seria o responsável em constituir a família
legal. O matrimônio era o centro nevrálgico disputado tanto pela República quanto pelo
Clero. Este, com a perda do monopólio da celebração indissolúvel / monogâmica / legal,
não se sentia confortável frente às solenidades cartoriais; por isso instava em que a única
contribuição que o consórcio civil trouxe à sociedade foi o exacerbamento da
imoralidade.
57
A idéia de que o ato solene religioso católico deveria ser mantido como o
formador da família não era rara e as estratégias e argumentos para dar-lhe importância
apresentavam-se solidamente arraigadas na sociedade. A este respeito, afirmava o jurista
Clovis Bevilaqua: “(...) Sob o ponto de vista social, da organização da vida humana sob a
direção da ethica, é, realmente, este o objectivo que tem a lei, regulando a união dos sexos,
depurando os sentimentos, reprimindo as paixões, providenciando sobre o futuro da prole,
cercando de respeito a familia, sobre a qual repousa a sociedade civil. É a intervenção do
direito, na sua funcção organica e santificadora, que differencia a familia legitima, da
familia natural, e de quaesquer agrupamentos inconsistentes ou ephemeros, que as mesmas
necessidades physiologicas reunem e dissolvem”.
58
Iterava-se a importância do matrimônio
na sociedade. Importância que sempre retorna a um eixo: a moralidade e a ordem social.
Tanto no entender da Igreja quanto no do Estado, o conúbio procurava ditar regras de
convivência e norma e assim era compreendido como necessidade moral, pois nele se
vislumbrava a longevidade e conseqüente prevenção frente às separações conjugais;
contudo não é difícil conseguir exemplos [como será analisado nas sessões seguintes] de
que esta desejada premissa não conseguia circunscrever a todos, visto que liberdades e
desejos sempre se faziam sentir no cotidiano, ou melhor dito, as imagens de família,
57
Sobre estes assuntos consultar: “Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A
Palavra, 1915.
58
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1952, p. 103.
50
casamento, homem e mulher balizadas em referenciais cristalizados, como se queria impor,
encontraram resistências por quem não entendia como coerentes estas dimensões às suas
vidas.
No interior das tensões em curso, a revista “Quero” publicou sob o título, “A
família Cristã,” em abril de 1940, alguns posicionamentos que versavam a respeito do
assunto. Afirmava que “A família cristã, isto é, a família que têm como base a
indissolubilidade matrimonial e é vivificada pela prática das virtudes cristãs, é, ao mesmo
tempo, a verdadeira célula do organismo social e do lar providencial, onde se prepara o
verdadeiro cidadão (...)”.
59
Neste momento é coerente considerar que se existiam tensões
entre Igreja e Estado, viam-se também diversas proximidades entre os seus discursos, por
exemplo, os que discorriam quanto a indissolubilidade do matrimônio como espaço da
moralidade. A Igreja Católica ajudava a dar significado ao poder, porque mesmo perdendo
a hegemonia continuava formando ideais concernentes a ordem conjugal: poder e ordem
faziam par perfeito para os representantes do Clero novecentista. Segundo a revista, pode-
se ler que as leis republicanas caminhavam próximas às aspirações da Igreja; instigante
exemplo neste sentido é quando afirma ser a família cristã a que possuía a base da
indissolubilidade matrimonial, em nada diferente do que trazia o Código Civil que
considerava dissolvido o matrimônio somente quando um dos consortes morresse.
60
Consegue-se penetrar, por meio de documentação da época, em complexas escalas sociais
por onde se revelava o funcionamento do poder que se encontrava não apenas no direito,
mas também na imprensa católica e no cotidiano.
Como se vem demonstrando, Estado e Igreja tinham um mesmo ideal de união
bem como de família, desta maneira qual era exatamente a briga travada pelas duas
Instituições? A disputa era em torno de quem dominaria esses institutos. Assim sendo,
compreende-se que o significado do matrimônio e da família deveria ser indissolúvel pois
se organizava como portador da tão desejada moralidade. A aliança entre um homem e
uma mulher foi política e estrategicamente pensada por elas justamente para procurar
marginalizar todas as outras representações possíveis de convivência. A pretensão era a de
fortalecer a imagem exclusiva e legitimadora de que o casamento era o único a serviço da
constituição de uma família perene; de um lar providencial às relações sociais; enfim, de
59
“Revista Quero”. Belém, 20 de abril de 1940, p. 05.
60
Veja-se artigo 315. In: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1917.
51
lugar “onde se prepara o verdadeiro cidadão”. A Igreja, percebendo as mudanças que se
operavam no Brasil da época, preferiu manter seus princípios doutrinários e buscar
sustentar a permanência de seus ideais ante as núpcias, por exemplo. O sacramento do
matrimônio permaneceu impávido diante das propostas de mudança compreendidas como
desordens morais e sociais, porquanto se entendia que se colocava em xeque a família. O
divórcio perpétuo e o consórcio civil eram interpretados como transgressões que tinham
como objetivo mudar esses valores o que não era desejado pela Igreja, uma vez que havia a
pretensão de se construir uma sociedade homogênea que sempre caminhasse na presença
dos pressupostos entendidos [por ela] como salubres; eis por que negava as mudanças
promovidas pela laicização, permanecendo com uma postura de inegociabilidade em
relação aos temas que há séculos combatia.
61
A se considerar que por curto período a República “modificou” por duas vezes
as formas de separação conjugal e estes debates envolveram necessariamente a ordem
familiar, a Igreja Católica apresentava-se como força política expressiva; esta
expressividade se fez quando ela notou a existência da possibilidade da introdução do
divórcio a vínculo no Código de 1916, o que a fez iniciar campanhas contrárias por tomar a
incursão como transgressora e desviante. Em 1915, o Clero esforçava-se em combater o
divórcio afirmando que era “illicito ainda quando o casamento seja meramente civil. Estas
palavras, escriptas como glosa a um dispositivo do projecto, ainda em estudo, do Codigo
Civil Brasileiro, que enumera um vago erro essencial entre as causas annulatorias do
chamado casamento civil, resumem em parte quanto me cabe esplanar, tratando do
casamento como contrato, e concluir que, ainda isento de qualquer interferencia religiosa o
divorcio é illicito, por corromper e arruinar o próprio vinculo conjugal, indestructivel por
natureza”.
62
Apreende-se que a Instituição sempre fez questão de acompanhar de modo
muito próximo os desdobramentos das discussões que envolviam o casamento civil e a
forma de ruptura da união conjugal que a República procurava impor. Este cuidado
acontecia pela razão de a Igreja saber que o Estado buscava espaço na sociedade, e por
considerar contraditórios os sentidos que se desejava impor à vida civil brasileira; então
colocava-se a todo momento na condição de defensora do que compreendia como os
interesses morais e sociais da sociedade de tal sorte que não era raro encontrá-la tecendo
61
AZZI, Riolando. “Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930 / 1964)”. In: MARCÍLIO, Maria
Luiza. (Org.). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 101 /
134.
62
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.
52
comentários contrários a respeito do consórcio civil, do desquite e do divórcio. Melhor dito
era seu próprio trabalho, pois não se pode esquecer que o tempo [primeiras décadas do
século XX] exigia elaborar estratégias que melhor influenciassem o cotidiano desse
momento histórico.
As tensões entre a Igreja e o Estado avolumavam-se. Em 1915, eram acirradas
as discussões relativas aos artigos e incisos do Código Civil Brasileiro, e o periódico
católico “A Palavra” publicou uma brochura intitulada “O divórcio”, onde comentava as
possíveis novas diretrizes que se buscavam construir sobre as possibilidades da separação
conjugal, isto é, como o documento deixa entrever, a Igreja Católica colocava-se
publicamente em sentido oposto a determinadas incursões que a República pretendia impor
à vida civil.
63
Percebe-se que os representantes do Clero novecentista influenciaram pontos
que vinham balizar as relações conjugais colocando-se, por exemplo, contrários ao fim do
sacramento matrimonial. Desde os mais tenros debates, era imprescindível dar significados
ao poder mesmo que fosse preciso utilizar estratégias antigas como a da indissolubilidade
das núpcias.
64
Neste sentido, os jogos de poder não podem ser reduzidos e circunscritos ao
âmbito das leis republicanas pois que, com a tática política de procurar oferecer
legitimidade aos discursos, a Igreja Católica o se encontrava afastada nem desatenta aos
fatos.
Concernente ao assunto da ruptura dos vínculos conjugais, a catolicidade
compreendia ser inconveniente permitir generalizações. Desta maneira dirigia-se ao
divórcio de forma direta: “é uma infecção purulenta. Que importa que este mal necessario
venha por contrapeso ao desafogo dos casamentos malsinados, a apagar o risco, já de si tão
gasto, entre as uniões civis e a prostituição, que outra cousa não é o casamento temporário,
o casamento por sessões, o casamento successivo, casamento provisorio, o casamento
intermittente, que em gestação a lei do divórcio encampa e autorisa? Que importa que
agindo como uma infecção purulenta o divorcio facilite, no dizer de Clovis Bevilacqua, o
63
uma boa bibliografia especializada acerca da separação conjugal anterior ao século XX, por exemplo, a
historiadora Marilda Silva ao estudar a Minas Gerais colonial rastreou as razões alegadas pelos cônjuges que
desejavam se separar bem como os critérios estabelecidos pela Igreja Católica a este respeito, veja-se:
SILVA, Marilda Santana. Dignidade e transgressão: mulheres no tribunal eclesiástico em Minas Gerais
(1748 / 1830). Campinas: Editora da UNICAMP, 2001. Já para a cidade de São Paulo colonial, Beatriz Nizza
da Silva realizou analises pioneiras neste campo, onde notou que o divórcio consensual foi incorporado na
legislação do início do século XIX, consulte-se: SILVA. “O divórcio na capitania de São Paulo”. Op.cit.
64
Em 24 de janeiro de 1890 a República recém instalada secularizou o casamento e o divórcio por meio do
decreto número 181. Este, durante 26 anos entre 1890 e 1916 –, legislou sobre o direito de família. O
referido decreto foi substituído quando entrou em vigor o Código Civil de 1916, em janeiro de 1917.
53
incremento das paixões animaes, enfraqueça os laços da familia, e essa fraqueza repercuta
desastrosamente na organização social?”.
65
A publicação revela em seu título oposições
precisas quanto à ruptura conjugal e ao mesmo tempo defesa das relações familiares.
Lastros da tradição encontram-se presentes nas narrativas, visto que os sentidos dos
vínculos sócio-conjugais eram o alvo dos debates. Com efeito faziam-se jogos dos dois
lados os quais, por apenas transformar a luta em discurso, não se mostravam suficientes em
enfrentar as ações que emanavam do cotidiano. Precisava-se montar circunstâncias práticas
que viessem atuar decisivamente na vida em casal. As respostas deveriam ser rápidas e
coerentes àqueles que desejavam construir flexibilizações nas vivências familiares,
porquanto as táticas de política eram bem disputadas; por isso a relevância da disputa
localizava-se nas perspectivas que seriam inauguradas, isto é, trabalhava-se em universo
amplo e diverso, o qual exigia acurado senso de negociação. A família era como campo
minado que requeria cuidados especiais quando nele se entrava, ou seja, não eram bem
vistas e não se queriam permitir brechas a generalizações que pudessem colocar em xeque
a normatização e a moral familiar.
Rigorosamente a Igreja empreendia propaganda contrária às separações; desta
maneira, categorizar o divórcio como “infecção purulenta” era adjetivo primoroso contido
em seus contra-ataques. Esboçava-se de forma inteligível que para além da publicização de
um projeto que fazia incursões às relações conjugais, a matéria propalava os perigos que o
Código Civil representava à sociedade. As argumentações da Igreja estabeleciam diretas e
eficazes oposições aos campos que lhe causavam sobressaltos e nota-se que nas críticas,
predicações e adjetivações direcionadas às uniões civis, o Clero soube articular-se de modo
coerente como demonstram os posicionamentos do jurista Clovis Bevilaqua, que dão força
aos pensamentos da Instituição, por exemplo, os de que o divórcio sacrificava os filhos,
pois seriam órfãos de pais vivos.
66
Tratava-se, pois, de questões tensas que conduziam a
dimensões profundas e aceitá-las ou negá-las era dar um conjunto de sentidos e de
tangenciamentos não necessariamente convergentes. Desta maneira urdiam-se intrincadas
tramas, as quais deviam ser compreendidas como mais vastas do que à primeira vista se
pudesse supor. Casar-se e separar-se significava vicejar posturas e significados, tanto para
a Igreja quanto para o Estado. Reafirme-se que o catolicismo possuía o desejo de construir
65
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.
66
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1952.
54
argumentos capazes de fazer com que o maior número possível de relações continuasse a
orbitar diante do seu modelo e lutava por valores que legitimassem e regulamentassem
normas e papéis familiares que ora eram colocados em debate.
Pode-se observar aqui a grandeza desses jogos de força e que a Igreja Católica
os enfrentava com bastante desconforto. A separação conjugal, desde as primeiras
discussões do Código Civil, mostrou-se assunto controvertido, que discorria ante
aspectos do casamento e da família. Mesmo o ato dissolvendo apenas a sociedade conjugal
e deixando intactos os vínculos matrimoniais, a luta perante em quais bases o desquite se
assentaria foram intensas. Por meio da Câmara dos Deputados, a Igreja Católica atuou
contra a possibilidade da separação a vínculo, não conseguindo porém deter uma parte do
“mal”, embora por ela – considerado menor: o desquite. No entanto, é necessário
enfatizar que o matrimônio e a família [no sentido legal] permaneciam inatacáveis no
início do século XX: o primeiro formava legalmente a segunda e era percebido como
indissolúvel. Neste sentido, havendo separação, outra união mesmo balizada em
princípios afetivos – traria as marcas da ilegitimidade a pairar eternamente sobre os
membros deste novo núcleo familiar. Isto acontecia porque as alianças não poderiam
mostrar-se dissolutas ao conjunto da sociedade, uma vez que os laços sociais queriam-se
bem apertados para que não dessem lugar a interpretações dúbias.
Em suma, a legislação republicana o conseguiu romper determinações
seculares em relação ao casamento e à separação conjugal. De tal sorte, interpreta-se que
os desacertos entre Igreja e Estado foram-se avolumando e, ao mesmo tempo em que
disputavam o gerenciamento formal da família, convergiam às suas bases: monogâmica e
higiênica. As divergências a respeito destas temáticas davam-se no campo de como seria
formado o suporte da família monogâmica e do casamento indissolúvel, se na presença das
bases religiosas ou sobre as do poder secular republicano.
Os códigos que prevaleciam naquele momento frente as núpcias e à separação
não eram diferentes para o Estado e a Igreja. Entretanto alerta-se que matrimônio e
rompimento da união não podem ser interpretados como espaço monolítico, onde
imperavam de modo absoluto as concepções da Igreja Católica ou as do Estado, como se as
suas aspirações fossem ouvidas e ecoadas de modo equânime no conjunto da sociedade.
55
Versões diferentes foram dadas tanto ao casamento quanto à ruptura dos
vínculos conjugais e nelas foi possível perceber outras concepções que serão tratadas no
decorrer do trabalho.
2. SIGNIFICADOS DO CASAMENTO CIVIL E DA FAMÍLIA
“Se não foi então que o Salvador elevou ao grau de
sacramento as nupcias pelo menos n` aquella hora, pela vez
primeira, Jesus falou do connubio catholico, alteando-o mui
acima de ritos obsoletos. Pena é que, na mesma occasião,
não se lembrasse de impôr a união civil! não se pode pensar
em tudo!”
(“A Palavra”. Belém, 04 de outubro de 1923, p.01.)
Considerando a data da epígrafe, por sete anos a República havia reafirmado os
significados e a importância do casamento civil, mas a Igreja Católica não se dava por
vencida e ironizava estas núpcias. O matrimônio religioso era interpretado como
celebração solene, pois Jesus o havia elevado à condição de sacramento; por seu turno, o
civil representava um contrato qualquer, tão inexpressivo que o Salvador em momento
algum lhe fez referência. A Igreja comparava as duas alianças e buscava adentrar na
mentalidade das pessoas da época na tentativa de conseguir adeptos ao seu consórcio. Para
tal empreitada estabelecia confrontos entre um e outro com o objetivo de suprimir a
influência que se vinha dando ao enlace civil.
Em outra matéria do mesmo periódico, esta conjectura é reforçada, pois referia-
se aos que se casavam apenas religiosamente: “Perante a lei civil do Brasil não é
reconhecido como casado, mas Deus reconhece-o como tal, e por isso ai d`elle se se
imagina solteiro. Não, não é, e por isso trate de casar também civilmente com aquella que
recebeu junto ao altar, e emquanto o não faz, respeite-a como sua esposa. Esta não tem a
seu lado a força das leis humanas, mas ninguem o duvide, Deus está prompto a defendel-a.
Todo o poder do Omnipotente”.
67
Para a cidade de Belém, os significados do casamento
civil e do religioso passavam pelas concepções da Igreja Católica aliás, em relação a este, a
Instituição buscava estabelecer ligações entre a mentalidade religiosa e a importância do
seu modelo matrimonial; assim sendo tornava-se premente considerar as articulações [da
Igreja] como discursos que tinham por fim conter a expansão e a autoridade do matrimônio
civil, bem como mostrar que a família tinha sucesso apenas quando formada sob os
67
“A Palavra”. Belém, 22 de abril de 1917, p. 02.
56
auspícios do consórcio católico. Aquando da promulgação do primeiro Código Civil
Brasileiro as tensões não arrefeceram, ao contrário aumentaram como é possível notar
no documento acima. Mesmo considerando o conúbio civil ímpio, vexatório e imoral, o
Clero reconhecia que apenas o religioso era insuficiente para as leis civis brasileiras,
embora o fosse diante de Deus. Com efeito os casados exclusivamente no religioso não
poderiam considerar-se solteiros, uma vez que pressões sociais, religiosas e morais
deixavam os nubentes em situação delicada. Se optassem somente pelo religioso, jamais
seriam legalmente reconhecidos como cônjuges; por outro lado, se apenas se casassem no
civil, em nada satisfariam as leis divinas.
68
Contudo, é necessário compreender que as
preocupações e interesses que recaíam aos modelos matrimoniais da época não foram
apenas religiosos, mas também econômicos, políticos e estratégicos, porquanto envolviam
o poder de inserção do Estado e da Igreja na vida privada cotidiana de Belém. De tal sorte
a Igreja, considerando este referencial como importante, passou a lançar mão de exercícios
de mentalidade, ou seja, na imprensa utilizava com freqüência a concepção de que o ato
católico era um sacramento e quem o celebrasse estava agradando a Deus; por outro lado, o
civil era um contrato realizado apenas entre os homens.
Com referência a cotidianidade dos fiéis de Belém, a Igreja Católica buscava
em relação ao casamento oferecer significados bastante claros, isto é, trabalhava no
sentido de impedir que o poder republicano bem como os protestantes secundarizassem a
prática do casamento religioso. É evidente que a Igreja lia em detalhes a lei do casamento,
pois afirmava e reconhecia que apenas o católico não tinha a validade desejada; entretanto
fazia uso da força da mentalidade para lançar em segundo plano o enlace civil e privilegiar
o seu. A rigor, as lutas e escalas de poder que se constituíram em torno dos sentidos do
matrimônio laico nunca se mostravam temporárias, por exemplo, insistia-se em tensões
quando se afirmava: “Não tenho dinheiro: Assim respondem não poucos amasiados, ou
casados civilmente, quando os convidam a regular a sua situação por meio do
casamento religioso. Não tem dinheiro, dizem. Mas não falta para os divertimentos”.
69
Desta forma, a Igreja, ao seu modo, buscava dar sentido aos dois modelos matrimoniais,
sendo que estes significados passavam necessariamente por trabalhos no campo da
68
O Estado republicano, para evitar qualquer manobra da Igreja, exigia que primeiro fosse celebrado o
casamento civil para depois ser celebrado o religioso. Sobre o assunto consulte-se: CAMPOS, Ipojucan Dias.
Casamento, divórcio e meretrício em Belém no final do século XIX (1890 / 1900). Dissertação apresentada na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São Paulo: Mimeo, 2004.
69
“A Palavra”. Belém, 08 de novembro de 1917, p. 03.
57
mentalidade, isto é, o Clero utilizava-se de mecanismos que priorizavam a estratégia da
conquista do indivíduo através da tentativa de apropriação de seus ideais diante da
sociedade. O periódico “A Palavra” expressava bem as limitações de sentido das núpcias
civis. No entanto, jamais se perca de vista que o jornal era uma das referências católicas na
imprensa paraense; nada mais natural, portanto, que se mostrasse contrário não apenas ao
enlace civil, mas também ao divórcio. As discussões referentes ao tema expunham muitas
polêmicas na imprensa; os articulistas desta folha deixavam inteligível que existiam
concepções diversas de casamento: o católico tinha o sentido de sacramento, sendo que o
outro, o civil, encerrava-se como um simples concubinato que feria os sagrados direitos
da Igreja e da sociedade.
Todavia, o consórcio civil era o válido e a República fazia questão de tornar
este domínio bastante evidente. O jornal “O Estado do Pará”, publicou matéria de Augusto
Meira com o título: “A propósito do casamento, consulta e resposta”, as análises versavam
diante das dúvidas de um leitor que perguntava sobre se o enlace da filha fosse realizado
apenas no religioso, os efeitos seriam legais perante a sociedade e a prole. O articulista,
após longa argüição, afirmava no final que: “o casamento religioso nenhum effeito juridico
tem entre nós, nem entre os povos cultos. É uma instituição meramente moral e
veneravelmente religiosa”.
70
Percebe-se que a resposta ao duvidoso pai confirmava a
necessidade do consórcio civil, visto que a secularização do casamento e a necessidade de
torná-lo importante era empreendimento que vinha se realizando havia alguns anos e o
poder republicano, aos poucos, impunha a sua necessidade por meio do decreto 181 de 24
de janeiro de 1890 e do Código Civil de 1916, isto é, estas leis reafirmaram como legal tão
somente as núpcias laicas.
71
Porém as pressões da Igreja Católica eram notáveis: nas
Constituições de 1934 e 1937 conseguiu reafirmar a impossibilidade do divórcio a vínculo,
sendo que a de 1934 também reconheceu o sacramento religioso como formador da família
legítima. Durante o governo de Getúlio Vargas houve, inquestionavelmente, proximidades
entre Igreja e Estado, no entanto isso não quer dizer que o poder secular tenha desistido de
ser o formador do casamento e da família considerados legais. O Estado permanecia
interessado e promulgava projetos que pretendiam protegê-los, porquanto mesmo com o
70
“O Estado do Pará”. Belém, 02 de maio de 1938, p. 02.
71
Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31
de janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1935.
58
avançar do poder da Igreja entendia-se que a ordem familiar estava colocada sob auspícios
da nação fazendo, assim, cumprir o fortalecimento deste ante a constituição doméstica, isto
é, desejava-se elaborar “condições favoráveis à formação do desenvolvimento, da
segurança e do prestígio da família”. Preocupações com a nação provinham de todos os
lados. Em 01 de janeiro de 1939, “O Estado do Pará”, sob título “O imposto: sobre
solteiros e casais sem filhos”, afirmava que o governo federal vinha tomando várias
medidas, por meio de decretos, contra os homens e mulheres celibatários e casais sem
filhos, desta maneira leiam-se o excerto: “Os impostos sobre os solteiros homens ou
mulheres, serão fixados em 20 $ 000 annuaes para os celibatarios de 23 a 34 annos; 30 $
000, para os de 35 a 44 annos; 40 $ 000, para os de 45 a 54 annos e 20 $ 000 para os de 55
a 60 annos”.
72
O casamento era visto como instituto higienizador, todavia para que
desempenhasse integralmente esse papel os consortes deveriam necessariamente constituir
numerosa prole, caso contrário “pela nova lei o marido mau terá que se haver com a
policia”. Os solteiros e casais sem filhos, segundo o Estado, pouco contemplavam o anseio
de desenvolvimento e proteção da nação e por isso deveriam ser exemplarmente punidos.
Os diferentes significados que a Igreja Católica de Belém, os protestantes e o
Estado republicano desejavam oferecer, embora instigantes, não eram os únicos a tornarem
públicas as suas aspirações diante do consórcio. Para as particularidades deste estudo, as
polêmicas envolviam diferentes pessoas da sociedade local por exemplo, nos autos de
desquite, advogados, juízes, cônjuges e testemunhas expunham suas apreensões referentes
ao assunto. No processo de desquite impetrado, em 1920, por Joanna Cavalcante
Albuquerque, 23 anos, paraense, prendas domésticas, sabia ler e escrever, contra Octavio
Anancio Albuquerque, 40 anos, paraense, funcionário público, o juiz Mauricio Cordovil
Pinto – que arbitrava as tensões conjugais, posicionava-se em relação às núpcias da
maneira seguinte: “não se pode possuir como referencial ser facil arbitrar, digo, acabar
com os vinculos conjugais por meio do desquite apenas por que se trata do casamento civil.
O civil é importante para a sociedade, para a moral, para os bons costumes, tanto que ele é
o unico reconhecido diante de nossa legislação que forma a familia legal. O casamento
civil forma a familia legal, nada nele ha de expurio e por isso não é facil dissolver os
vinculos que ele forma”.
73
Com uma leitura precipitada, o historiador poderia pensar estar
72
“O Estado do Pará”. Belém, 01 de janeiro de 1939, p. 03.
73
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Joanna Cavalcante Albuquerque contra Octavio Anancio
Albuquerque em 1920.
59
o juiz em dúvida acerca da promulgação ou não da separação de corpos e bens, mas o que
queria na sentença de desquite, antes de tudo, era invalidar e desqualificar a defesa
apresentada pelo marido de Joanna e do seu advogado, Rangel Borborema. Cordovil,
buscando elaborar sentença que retirasse as “qualidades do réu”, um pouco mais adiante
afirmava surpreendentemente que “em Belém os protestantes fazem verdadeiras festas pela
victoria do casamento civil e ao contrário dos catholicos, não compreendem este consórcio
como mancebia”. Conseguir perceber como este representante das leis republicanas
interpretava o consórcio civil é de suma importância, visto que dos 38 processos de
desquite localizados, arbitrou 22 deles. O auto causa admiração porque era incomum nestas
situações jurisconsultos exporem posicionamentos pessoais e mais difícil ainda
caminharem pelo terreno movediço religioso, mas Cordovil rompeu com esta barreira e em
poucas palavras deixou sensível idéia de como a cidade quatro anos depois da aprovação
do Código Civil se encontrava no campo religioso em relação ao casamento cartorial.
Mesmo não sendo palavras de um protestante, pois o referido juiz era católico, é
perfeitamente possível notar que mais uma vez religiosos se digladiavam frente às núpcias
republicanas,
74
por exemplo, o juiz notícias da existência de “verdadeiras festas”
promovidas pelos protestantes. Neste auto de separação de corpos e bens, Cordovil o
sentenciou favorável.
Com este pensar, é necessário ler que as reiteradas leis republicanas
concernentes ao casamento civil foram sérias, e nunca se deve desprezar a sua importância
para a mudança da mentalidade das pessoas, isto é, desde o final do século XIX novos
ventos sopravam sobre o consórcio civil e vinham-se operando no âmbito da legislação
bem como na mentalidade, como será analisado a seguir. Tomando como base o ponto de
vista do juiz, tudo indica que, ao contrário do desconforto dos católicos, os protestantes
ampliaram pausadamente sua influência e o enlace civil em virtude das escalas de poder
jamais significou para eles modelo desprezível. Do item anterior pode-se inferir que as
ações da Igreja Católica influenciavam as pessoas; mas nenhuma força é suficientemente
vigorosa para envolver a todos e, diante do civil, é evidente a existência de
posicionamentos diferentes, como os dos protestantes. O Clero [por exemplo] buscava
representá-lo tomando como base os seus interesses, mas quando o assunto era dar termo
às relações conjugais o juiz se recusava a utilizar as mesmas argumentações da Igreja, aliás
empregava estratégias que se posicionavam na contramão das da Instituição como a que
74
CAMPOS. Op, cit.
60
afirmava ser o civil ato sóbrio moralmente, onde nada existia de espúrio. Desta forma,
como bem mostra Vera Lúcia Lamanno, o tipo de casamento evidenciava a capacidade dos
indivíduos de então de conjugar” valores que poderiam manifestar-se em diversos níveis
sociais.
75
No mesmo processo em que Cordovil era o responsável em oferecer veredicto,
o juiz não foi o único a dar opiniões acerca na natureza deste modelo de núpcias: a
consorte impetrante [Joanna Cavalcante Albuquerque] também fez observações em uma
missiva enviada à irmã, Maria Cavalcante Campos, onde buscava justificar o ato que
decidira tomar. Leia-se, assim, o excerto seguinte: “Minha querida irmã, saude é que
desejo a ti, aos meus sobrinhos e ao meu tão querido cunhado. És bem sabedora da decisão
que decidi realisar depois de alguns annos de sofrimento que tive com o senhor Octavio; ao
decidir romper o casamento civil por meio de um processo desta natureza, não pense
minha querida irmã que o faço sem receios, pois o casamento que consumei diante das
autoridades civis consolida a familia, os filhos, os bens, a honra diante da sociedade, a
moral, os bons costumes tão recomendados por nossos pais. O casamento civil possui esta
autoridade e por isso foi tão dificil tomar a decisão da separação. Espero que entendas e
que minha familia me dê o apoio que o ato exige”.
76
Envolviam-se muitos referenciais,
como satisfações e solicitações de apoio a uma parte da família, pois o ato da ruptura
conjugal era entendido como assunto sensível e digno da maior importância. Também se
percebe que significados do consórcio consumado estavam contidos na mentalidade da
consorte, ou seja, dona Joanna reconhecia a força que o matrimônio possuía e o
considerava como vínculo que dava base à ordem social e por isso avaliava ser delicado
tomar a decisão de desquitar-se. Nas informações que a desquitanda oferecia à sua irmã, o
civil em nenhum momento é percebido separado das concepções de família, dos bons
costumes, da honra, da moral, isto é, percebe-se o enlace como o consolidador da ordem e
legitimidade da família. Mas isso seria tudo o que se perceberia diante de uma leitura
apressada das argüições, tanto do juiz quanto da senhora Joanna, tangencia-se assim outra
importante interpretação: a força que as idéias republicanas ganhavam no seio da
sociedade belenense, porquanto em nenhum momento os envolvidos buscavam lançar o
consórcio em segundo plano, ao contrário, sempre se mostravam preocupados em localizá-
75
LAMANNO, Vera Lúcia. “Casamento e divórcio: um estado mental”. In: In: PORCHAT, Ieda. (Org.).
Amor, casamento, separação: a falência de um mito. São Paulo: Brasiliense, 1992, pp. 145 / 166.
76
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Joanna Cavalcante Albuquerque contra Octavio Anancio
Albuquerque em 1920.
61
lo em lugar privilegiado; compreende-se assim que as leis republicanas no início do século
XX ganhavam, paulatinamente, espaço respeitoso na sociedade. Nas tramas que
envolveram Joanna e Octavio percebe-se muito bem que é na experiência cotidiana que as
pessoas são produzidas, que elas se constroem individual e coletivamente, e as condições e
situações sociais em que se encontram são as norteadoras de suas ações.
Diante dos sentidos do casamento civil, variados são os exemplos que podem
sustentar esta argumentação. As idéias de Mauricio Cordovil são úteis aqui porque
afirmam que o jurisconsulto, no tempo de sua “mocidade” no direito, “por volta de 1900”,
sempre o compreendeu como “ato importante, mas não o definia com precisão, mesmo
vivenciando as transformações que a republica operou queiram me perdoar os crentes
catholicos mas decadas depois penso a mesma cousa, apenas melhor a defino”.
77
Na
segunda década do século XX bastante experiente, com cerca de 54 anos, o respeitado
jurista fazia comparações entre sua maneira de pensar de um tempo passado com as
dificuldades que encontrava para oferecer veredicto a um processo de desquite impetrado
em 1923, por compreender o casamento civil como instituição que formava
adequadamente a família. Sendo contemporâneo ao Código Civil que buscava reafirmar a
necessidade bem como o sentido desta forma de consórcio, o representante do direito fazia
reservas às atitudes dos católicos e reafirmava a importância do enlace cartorial.
Novamente em outro processo, o juiz de maneira incisiva estabelecia comparações entre os
religiosos de Belém, pois assegurava ser melhor aos católicos e protestantes ater-se à
condução dos seus rebanhos, o que por si era muita responsabilidade e deixarem de
lado as brigas. Se assim procedessem não estaria julgando tantas rupturas conjugais e um
pouco mais à frente ainda dizia: “os protestantes tripudiam dia-a-dia sobre os catholicos”.
78
A lei republicana do Código Civil produziu tensões na cidade de Belém, pois foi
depositária de polêmica entre religiosos, assim como se afirmou na introdução deste
trabalho; se na pesquisa realizada não se encontrou nenhuma narrativa onde o seu autor se
autoproclamasse protestante, ao se ler a maneira de pensar e agir do jurisconsulto em
análise é perfeitamente possível notar qual o sentimento protestante diante dos católicos,
fato que não invalida a noção de que os acatólicos faziam-se incisivamente presentes
nestas polêmicas discussões.
77
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Conceição da Cruz Almeida contra José Maria Almeida,
1923.
78
Idem.
62
A senhora Laura Soares de Souza, brasileira, 30 anos, casada, doméstica, pobre
no sentido da lei, deixou em suas anotações pessoais fartas informações que discorriam
sobre os casamentos civil e religioso, a família, modelos de rupturas, ensinamentos da mãe
e pressões familiares. Assim sendo, em seu longo “diário”, que continha 580 laudas, a
autora dispensou algumas dezenas delas aos significados do ato civil e à sua influência em
relação à família, sendo que quanto a estas instituições considerava em certa altura:
“percebo o casamento civil como instituto essencial, nada deve ao religioso, forma
tranquilamente a familia, a moral, a sociedade, a pessoa, e o outro perdeu o espaço que
tinha de tempos immemoriais, mas também percebo se um ou outro casamento não estiver
bem não vejo problemas em romper com este laço que todos sabem que na pratica não é
inquebrantavel”.
79
Dona Laura posicionava-se livremente em suas memórias e, em relação
ao casamento civil, via-o como fundamental a todos os âmbitos da sociedade. É importante
notar as concepções que possuía acerca deste enlace, porquanto assinalava que formava
amplamente a família e isso fez com que o matrimônio religioso perdesse espaço, ou seja,
apreendia que o glorioso” tempo de domínio da Igreja frente à celebração havia acabado.
Em suma, se por um lado o Clero empregava a estratégia da mentalidade para não deixar
escapar a influência do ato religioso, por outro deve-se perceber que ela mudava no
decorrer do tempo, isto é, algumas pessoas passaram a “nenhuma” distinção fazer entre os
casamentos e consideravam que o civil construía tranquilamente todas as necessidades da
família moral e honrada. Em outros termos, depois de algumas décadas da secularização do
casamento, acontecia o que a Igreja temia: a valorização do consórcio civil.
Na mesma página de seu diário, a 299, a autora lembrava os comentários
realizados pela sua mãe quando o casamento civil foi secularizado pela República e o
momento da aprovação do Código Civil; dona Laura escreveu as lembranças da forma
seguinte: “no inicio por volta de 1895 mamãe relembrava que a sociedade de Belém, com
exceção dos protestantes, não acreditava no casamento civil, ela mesma conversou dizendo
variadas vezes que não tinha sentido aquela forma de casamento”.
80
Desconhece-se a data
em que a senhora Maria Ray Soares, genitora de Laura, fez esta narrativa, mas é possível
afirmar que foi escrita em 1937 e o importante a ser considerado é que houve
transformações nas mentalidades no decorrer do tempo, pois se não se acreditava que o
consórcio civil pudesse dar certo ou mesmo equiparar-se ao religioso, algumas décadas
79
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 29 de agosto de 1937.
80
Idem.
63
depois Laura afirmava ser o civil o ato que construía legalmente a família e a ordem social,
ou seja, que nada deixava a desejar quando comparado ao religioso. Inquestionavelmente
aquele ganhara, ao longo do tempo, o seu espaço na mentalidade das pessoas e inexistia
qualquer dúvida de que se tratava de instituto que estabelecia relações de força e poder em
Belém. Atinente ao mesmo assunto, no entanto para o ano de 1916, sua mãe lhe teria
assegurado: “os protestantes infelizmente ficaram mais felizes, o casamento das leis
continua a legitimar a familia, elles pisam em nós catholicos e no catholicismo”.
81
Se as
descrições partiam de católicas, tal dado não anula a interpretação de que os protestantes
fizeram-se presentes nas tramas que envolveram o Código Civil bem como da existência
de intrigas entre os religiosos católicos e protestantes, mas estas descrições são repletas de
sinuosidades, por exemplo, a reafirmação do rompimento nos mecanismos de controle
social que giravam em torno do casamento bem como ao defenderem a tese da
achincalhação católica, Laura e sua mãe estavam cumprindo o seu papel, o de tentar
“produzir” ambientes favoráveis ao catolicismo. As notas de Laura, escritas em 29 de
agosto de 1937, relativas ao casamento civil possuem duas vertentes importantes a serem
citadas: se por um lado, colocavam-se amplamente favoráveis ao conúbio civil, ato
repudiado pela Igreja Católica; por outro, concentravam-se indiscutivelmente contrárias às
tripudiações e enfretamentos que os protestantes faziam aos católicos quando aqueles o
utilizava para atacarem o Clero. Desta maneira, a autora defendia ao mesmo tempo e com
argumentos distintos tanto o consórcio civil quanto o catolicismo.
Dona Immaculada Braga Costa, 20 anos, casada, paraense, prendas domésticas,
testemunha do processo de desquite impetrado em 1928 pela senhora Gertrudes Maria
Gomes contra Mariano Gonçalves Gomes, deu duas versões totalmente antagônicas acerca
do enlace civil. Em um primeiro momento, quando contava com cerca de 15 anos, dizia:
“eu percebia o matrimonio face ás autoridades civis um atentado ás normas morais do
individuo”, um pouco mais à frente acentuava que com o passar do tempo “e com a
convivencia com outras pessoas”, passou a compreender que o enlace era sério tanto que
presenciou inúmeras vezes a senhora Gertrudes fazer cobranças ao senhor seu esposo para
que o mesmo provesse convenientemente o lar conjugal e concluía afirmando que “em si o
casamento civil e o religioso tratam-se de formalidades, ninguem esta livre de um processo
de separação, eu, por exemplo que sou casada face a igreja catholica certamente irei me
81
Idem.
64
separar, porque é impossivel sustentar fantasias dos outros”.
82
Seu depoimento data de 12
de maio de 1928 e quando o prestou à justiça paraense notava que o próprio matrimônio
não teria vida longa, tanto que seis meses depois [em novembro de 1928] entrava com
representação contra o esposo e em linhas gerais reafirmava o que havia dito na condição
de testemunha.
83
Na segunda década do século XX, a mentalidade acerca do casamento
civil havia conseguido algum espaço no seio da sociedade e pelas informações contidas
nos processos de desquite nada indica que inexistissem separações conjugais na celebração
religiosa. Enfatize-se assim tratar-se de discursos da Igreja Católica.
Diante dos significados do casamento verifica-se que se elaboravam
ajustamentos; homens e mulheres o reinterpretavam conforme as necessidades que o tempo
exigia. Em outras palavras, se em dado momento havia apenas noções dos significados do
consórcio, em outro a acepção aparecia com maior intensidade. Assim, parafraseando
Michel Vovelle, a mudança localiza-se nas condições objetivas da vida, as quais ajudam a
modificar a natureza do pensamento.
84
Considerando o modo como Laura, o jurista
Cordovil e a testemunha, Immaculada Costa, fizeram suas observações, reforça-se a
interpretação de que os significados das alianças variaram no decorrer do tempo e das
conveniências pessoais.
Procuravam-se oferecer sentidos ao conúbio, por exemplo, a Igreja perdia a
exclusividade da celebração matrimonial, mas jamais os ideais que queria oferecer-lhe.
Desta maneira, quando a República reafirmou a importância do consórcio secular por meio
do Código Civil, a Igreja Católica de Belém para as particularidades deste estudo nem
um pouco se fez de rogada e passou a atacá-lo. A folha, “A Palavra”, publicava: “Já que o
padre me pede tanto dinheiro para me casar no religioso, vou me casar só no civil”.
85
Construíam-se pressões morais e religiosas sobre os nubentes que assim decidissem, pois
que casar somente no civil representava o início de vida licenciosa e repleta de embaraços.
A Igreja, na mesma matéria, continuava pressionando: “pensas que assim te livras de
embaraços? Pobre de ti! ... Que ganhas com te casar só no civil? Ganhas viver em peccado
mortal, porque assim vive quem se casa civilmente. Não sabias? Pois fica-o sabendo.
82
O processo referido trata-se do impetrado por Gertrudes Maria Gomes contra Mariano Gonçalves Gomes,
1928.
83
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Imaculada Braga Costa contra Macimiliano João da Costa,
1928.
84
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 2004.
85
“A Palavra”. Belém, 23 de agosto de 1917, p. 03.
65
Perante Deus o casamento civil se for desacompanhado do religioso o vale nada. Quem
está amancebado e morre n`esse estado, vae para o inferno: Pois tambem vae para o
inferno quem está casado civilmente”.
86
Para se discutirem os sentidos do casamento
investia-se nos efeitos que o assunto provocava nas mentalidades, desse modo buscava-se
lançar uma angústia global que se desejava ver fragmentada em medos bastante nomeados;
ao usar termos como mancebia, concubinato, ausência de Deus, estar em constante pecado
e inferno, a Igreja buscava, por meio da tática da mentalidade, atemorizar aqueles que
celebravam somente o matrimônio civil. Utilizava-se a mentalidade religiosa para procurar
distanciar os casais do consórcio cartorial, porquanto a Igreja sabia que a importância deste
não se circunscrevia somente pela imposição do Estado republicano, mas por meio de
transformações na sua aceitabilidade, pois a mentalidade dos indivíduos mudava em
relação ao ato solene, como bem deixam notar as palavras de Immaculada Costa quando se
encontrava na condição de testemunha e é reafirmado ao tempo de a mesma ser impetrante
num processo de desquite. Em documento escrito de próprio punho, considerava: “a egreja
fantasia contra o cartorial, mas todos sabem de sua importancia, ele não é apenas a unica
forma possivel para se formar a familia legal, elle tambem fortalece o intimo do ser (...) os
protestantes sabem muito bem disso e o estão usando muito bem contra os catholicos e
favoravel a si”.
87
Transformava-se em realidade um dos medos que os setores
conservadores belenense cultivavam frente ao casamento civil: o desenvolvimento de sua
aceitabilidade no bojo da sociedade. Embora seja demasiadamente arriscado deixar de
lado as influências dos conservadores, transformações sociais favoráveis ao enlace civil
aconteciam, visto que se passava a expor ser o consórcio não somente a celebração que
legalizava a família honradamente, mas também a que promovia o fortalecimento moral do
“ser”. A Igreja tinha rios motivos para preocupações, pois os laços apertavam-se ao
passo que os protestantes passavam habilmente a usar as decisões promovidas pela
República, ou seja, aproximarem-se das leis para se contraporem ao catolicismo.
Todavia, estas mudanças não se operariam tranquilamente; nas escalas de força
e poder, uma das metodologias da Igreja era evidente: a de provocar a consciência de que
havia um desacordo nas ações praticadas pelas pessoas, isto é, a tática era a de provocar
no “eu” o sentimento de culpa quando se celebrasse apenas o casamento laico. Com esta
86
Idem.
87
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Imaculada Braga Costa contra Macimiliano João da Costa,
1928.
66
prática, a Igreja Católica buscava projetar socialmente a construção de imagens
desfavoráveis ao “eu” daqueles que decidissem apenas pelo civil. Note-se que os
exercícios do uso de mentalidade destacavam um conjunto de atitudes que articulavam
profundamente a força da religiosidade com aspectos do cotidiano de então. Desse modo a
Instituição desempenhou papel essencial nos diálogos que giravam em torno do “melhor”
modelo para se construir uma família honrada e moralizada e esta maneira de agir explica-
se em virtude de seu esforço para reagir contra a expansão da secularização utilizando com
destreza a mentalidade religiosa ao afirmar que havia um acentuado desprezo pelo
sacramento do matrimônio e uma priorização do casamento civil: o Clero refugiava-se nos
efeitos e na força da mentalidade religiosa para enfrentar as leis republicanas.
Observa-se que o enlace civil conduzia a muita polêmica. Se por um lado a
República buscava impor a sua importância, por outro a Igreja Católica desejava
demonstrar que se tratava de união ilegítima e pouco duradoura, isto é, capaz de
fragmentar-se conforme as necessidades dos consortes. O catolicismo estava atento aos
movimentos do consórcio civil na cidade, visto que em matéria publicada em 1919 notava
que inúmeros nubentes se dirigiam à localidade de Icoaraci para consumar núpcias, porque
neste lugar as formalidades saíam mais em conta aos noivos. A este respeito, o Clero
posicionava-se da seguinte maneira: “Raro é o casal que santifica perante o altar a sua
união. Estão de facto esses dois individuos casados segundo as leis nacionais, não se
lembram, porém, de que não o estão aos olhos de Deus. Esquece-lhes que o matrimonio é
para nós catholicos mais do que um contracto, é um sacramento. Não lhes occorre, pobres
namorados tão cheios de illusões, – a felicidade outra cousa é senão a illusão de ser feliz
não lhes occorre que as obrigações a que Deus não preside e abençôa não podem ter a
duração das cousas duradoiras. Casamento sem sacramento do matrimonio é mero
contracto ...”
88
Ao realizar uma versão linear das núpcias republicanas e do seu, a Igreja
Católica executava papel próprio que era o de enaltecer a função do casamento diante dos
seus ministros, sendo que para este propósito a Instituição utilizava a tática do medo, pois
afirmava que os modelos influenciavam na durabilidade da vida sob o mesmo teto. A
propósito de tais argumentos, incomodava-se com as ações dos nubentes que recorriam ao
enlace civil e adiavam o religioso.
Construíam-se significados entendidos mais convenientes diante do conúbio
civil. Entretanto, quer estivessem mais preocupados em criticar o enlace tratando-o como
88
“A Palavra”. Belém, 25 de dezembro de 1919, p. 01.
67
tirânico, pouco duradouro, inexistente em virtude da ausência do sacramento, responsável
pela degeneração da moral e dos bons costumes, quer defendendo-o como único que
legalizava a família, todos possuíam um eixo comum: preocupações [com a família] e com
os bons costumes da sociedade, isto é, nenhuma atitude mostrava-se contrária às
necessidades familiares. Em conformidade com isso, desnecessário é enfatizar os
significados múltiplos do enlace civil e qualquer que seja a leitura que se faça a respeito. O
Código de 1916 afirmava no artigo 231 que, celebrado o casamento civil, tornava-se dever
dos cônjuges a mútua assistência e sustento, guarda e educação dos filhos.
89
Estas noções
eram cobradas e incorporadas e diversas tramas podem ser retiradas e analisadas dos
processos de desquite. Por exemplo, em carta anexada à ação impetrada por Conceição da
Cruz Almeida contra José Maria Almeida em 1923, a autora declarava à irque sabia do
“poder” da lei do consórcio civil, pois qualquer juiz que arbitrasse o seu caso condenaria o
esposo a prover a família que abandonou ao relento e à miséria.
90
Do exposto depreende-se
que não havia como colocar a união laica em lugar cristalizado como desejava a Igreja.
Esta forma de enlace deverá ser interpretada através da gradação de significados, isto é,
passageira ou amasiamento, para uns, mas honrosa e duradoura para outros. Assim sendo,
o modo de agir e pensar dos protestantes [até onde é possível interpretá-los] indica a defesa
da segunda proposição; aliás para eles inexistia qualquer razão que os levasse a ponderar
contra as leis republicanas, o que houve foi a imoderada aprovação diante das investidas do
poder secular neste assunto.
Outra trama na busca da compreensão deste modelo é a carta anexada ao auto
de desquite impetrado, em 1925, por Maria Guilhermina Silva, 20 anos, paraense, prendas
domésticas, sabia ler e escrever, contra João de Jesus Silva, 30 anos, paraense, estivador.
Em parte da missiva, a exeqüente afirmava: “querida madre, saude é que te desejo. Sabes
das altercações que ha alguns annos existem em meu casamento. Não é por se tratar de
somente nupcias civis (como bem a senhora me ensinou) que é sem importancia ao
contrario é muito importante pois a familia está em jogo. É com muito pezar minha santa
mãe que tenho que sacrificar os laços formados pelo casamento civil, mas é preferivel
89
Ver: incisos III e IV do artigo 231. In: digo Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
90
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Conceição da Cruz Almeida contra José Maria Almeida,
1923.
68
enfrentar toda a sociedade do que continuar sob as garras malvadas de João”.
91
A narrativa
possui significativa força histórica como a informação de que pelo menos duas gerações [a
genitora e a impetrante] consideravam o civil ato necessário e importante à sociedade e à
família, porquanto a autora afirmava que a mãe lhe havia ensinado não ser devido ao
matrimônio cartorial que se tratava de núpcias secundárias, pois estavam em jogo
interesses familiares. A separação conjugal ocorreu em 1925 e o casamento em 1920 então
possivelmente, entre 1910 e 1920, a mãe da impetrante já lhe recomendava tal modelo; isso
significava que, em menos de 30 anos de secularização, este casamento era visto como
necessário não apenas pela força da lei, mas também por determinadas pessoas da cidade
de Belém. Exemplo neste sentido é quando a desquitanda afirma que sua mãe a havia
orientado acerca do relevo da celebração.
As escalas de poder e força mais e mais aumentavam quando este significado se
ampliava, pois os setores conservadores da sociedade belenense digladiavam-se por isso. A
Igreja, sentia esta expansão e lançava mão da mentalidade religiosa para enfrentá-la, isto é,
tratava-se de executar posturas coerentes, uma vez que não lhe bastava possuir a convicção
da necessidade de seu modelo matrimonial, mas precisava elaborar táticas sociais que
viessem a prolongar, no campo da mentalidade, a importância do rito religioso. Em todas
as esferas de ação possíveis, a Instituição procurava imiscuir-se e a mentalidade era a
estratégia predileta tanto que a ela recorreu variadas vezes, assim como a aprofundou ao
tentar mostrar que aqueles que preferissem o ato civil estavam trilhando o caminho do
inferno.
92
No entanto, exposições anteriores demonstram ser esta prática a maneira de se
tentar manter nas mãos das paróquias a necessidade e a importância da celebração do
casamento, isto é, tratava-se de discursos que tinham como objetivo impedir que a
sociedade deixasse de crer no casamento religioso como pilastra da família. Nesse caso,
ao perceber a perda de espaço de influência, inevitavelmente utilizou-se a tática entendida
mais própria para impressionar e foram empregados argumentos que se pensava serem
capazes de reforçar a autoridade do casamento religioso ao mesmo tempo em que
tornavam verossímil a mentalidade de culpa aos que celebrassem somente o consórcio
civil. Com isso, era comum à Igreja Católica belenense do início do século XX, edificar
sentidos de medo ao casamento republicano e mostrá-lo como estigma às famílias que
91
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria Guilhermina da Silva contra João de Jesus da Silva,
1925.
92
“A Palavra”. Belém, 22 de janeiro de 1917, p. 02.
69
apenas a ele recorressem; em suma, os métodos justificavam-se na concepção da
necessidade de guardar a presença de Deus no bojo do matrimônio.
Considerando que poucos anos a República havia secularizado o instituto, o
regime já tinha o que comemorar no que dizia respeito à importância que se lhe atribuía,
visto que as mudanças ocorriam na mentalidade e não somente em virtude da imposição
das leis. Desta maneira, a laicização do casamento, para as particularidades deste estudo,
conseguia conquistar parte da sociedade, ou seja, paulatinamente, o status de legítimo e de
formador da ordem familiar se afirmava. Que não se entenda nesse caso que a força da
Igreja tornou-se secundária, pois os códigos e as cobranças em torno do matrimônio
católico permaneciam bem vivos na Belém da época como é possível perceber no excerto:
“dez mezes de casado e de feliz, uma filha que o chegou a conhecer a mãe e de que é,
cada dia mais, o mais fiel retrato, physico e moral. Nem sequer tive tempo de sacramentar
a minha união conjugal! Casei-me no civil, deixando para depois realizar o acto religioso,
sempre adiado ora por isso, ora por aquilo, até que veio a morte subita de minha Elisa sem
dar tempo e o fazer”.
93
É notório que o discurso do periódico católico baseava-se na
“retórica”, o articulista escolhe muito bem seus argumentos para obter o convencimento
por meio do medo aos seus fiéis. O documento expressa nitidamente que aqueles que
realizassem somente o ato civil corriam vários riscos, por exemplo o da morte repentina de
um dos consortes, como aconteceu com “Elisa”.
No entanto, ao se tomar como base a data da narrativa, aproximadamente 30
anos a Igreja tinha perdido a exclusividade da celebração. Essencial neste sentido mostrou-
se o processo de desquite impetrado em 1920 pela senhora Raymundinha Gonçalves Silva,
22 anos, paraense, dedicada a prendas domésticas contra Leão Campos Silva, 42 anos,
paraense, embarcadiço. No auto de desquite foi anexada uma carta escrita pela autora aos
pais, onde o conteúdo dizia respeito à natureza do casamento civil, família e separação. Ao
deixar suas impressões acerca desta tríade assegurava que o Clero havia dominado por
muitos séculos a celebração do ato, mas que a situação nas primeiras décadas novecentistas
era diferente, porquanto o Estado agora celebrava o enlace legal e ele em absolutamente
nada perdia quando comparado ao católico e ao protestante. Mais à frente garantia que
apenas o consórcio em qualquer um dos cultos mostrava-se secundário, porque não
formavam núcleo familiar legal e concluía “(...) os protestantes ficam regozijantes (...) os
protestantes entendendo bem este recado das autoridades civis, comemoram o fato de a
93
“A Palavra”. Belém, 25 de dezembro de 1919, p. 01.
70
legislação localizar em um segundo plano de importancia o ato catholico e o seu”.
94
Inquestionavelmente as palavras dirigidas aos pais dão notícias da presença de tensões
religiosas em um dado tempo [início do século XX], pois descrevem a “perda” paulatina de
influência do catolicismo e o “regozijar dos protestantes”. No entanto que se tome cuidado
porque, além de se tratar de palavras direcionadas ao convencimento dos pais para se obter
apoio à decisão de desquitar-se, notam-se também exageros na afirmativa de que os
protestantes entendiam o seu culto como inferior ao civil, visto que houve certamente
satisfação por parte destes com a reafirmação do casamento laico com o Código de 1916,
mas nunca a concepção de que comungassem com a inferioridade do seu ato solene quando
comparado ao da lei nacional.
O significado do casamento civil no interior da sociedade era agora equiparado
no campo moral ao do religioso e mesmo colocado acima. Interpretava-se o matrimônio
religioso como “secundário diante do civil”, além de ser este o que tornava a família legal.
Contra estes argumentos, a Igreja passou a utilizar táticas de frenagem à expansão do
consócio civil; por exemplo, era habitual fazer comparações entre os modelos
matrimoniais, onde se envolviam estratégias como a de dizer que o católico era um
sacramento enquanto o civil, mero contrato entre duas pessoas. Mesmo com os contra-
ataques sofridos, sua realização avançava e os documentos indicam pelo menos duas
razões que explicam esse crescimento: as pressões que as leis republicanas faziam
afirmando que as núpcias válidas no país eram as celebradas pelas autoridades
republicanas e as mudanças na mentalidade de pelo menos parte da população. Estas
conjecturas tomaram força quando se entrou em contato com fontes que expressavam:
“ninguém em consciencia negaria a importancia da força do estado republicano na vida
brasileira, mas por outro lado é premente que se existe sucesso nas transformações
operadas não se pode dal-a tão somente á republica, os moradores da cidade morena
95
vem
contribuindo para estas transformações, como é perceptivel em relação ao casamento civil
e ao desquite, existindo mesmo em nossa imprensa debates favoraveis ao divorcio a
vinculo (...) o casamento civil não é mais visto enquanto expurio á ordem familiar, os
belemitas recorrem com frequencia a ele”.
96
O fragmento foi escrito pelo juiz Mauricio
94
Carta anexada ao auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundinha Gonçalves Silva contra Leão
Campos Silva, 1920.
95
O termo quando utilizado refere-se a cidade de Belém.
96
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria Guilhermina da Silva contra João de Jesus da Silva,
1925.
71
Cordovil Pinto e trata-se de parte do veredicto favorável ao processo de desquite impetrado
pela senhora Maria Guilhermina da Silva. Nota-se que as transformações a que o
jurisconsulto se refere recaíam sobre a secularização do casamento e da separação
conjugal; no excerto também são observados os passos que o matrimônio civil deu para
conseguir posição respeitosa diante da sociedade belenense, mas que tal mudança não
deveria ser localizada apenas como virtude da República, pois o regime nada conseguiria
se a população negasse a importância de tal cerimônia para a família, para a moralidade,
para os bons costumes.
São instigantes os significados que se procurava destinar ao enlace: mesmo que
os argumentos a ele favoráveis pouco se distanciassem da legislação republicana, também
não se deixava de analisar a função que a população teve frente ao assunto. Se grupos da
sociedade ignorassem a viabilidade de se constituir família por meio deste modelo
matrimonial, o regime republicano não lograria atingir suas propostas. Nota-se que as
pessoas eram lançadas como responsáveis pela construção moral e social do casamento
civil e jamais unicamente a República, visto que se publicizavam os nubentes como
constituidores da história e que mesmo pressionadas pela legislação, mudanças
substanciosas vinham ocorrendo no campo da mentalidade religiosa e moral dos habitantes
da cidade. Variados documentos sinalizam a importância da lei, os custos mais baixos do
conúbio civil se comparado ao religioso e a dispensa de formalidades,
97
porém não deixam
de enfatizar o papel desempenhado pelos nubentes nas mudanças em curso. Partia-se de
diversos eixos sociais para se dar significado ao enlace; enfim, o Estado iniciou as
alterações, no entanto a sua aceitabilidade e igualmente as transformações na mentalidade
foram essenciais às modificações que se operavam.
É inquestionável que se recorria com freqüência ao civil, e as leis da República
ajudaram nas mudanças do cotidiano; a própria Igreja Católica, em seus diversos contra-
ataques, observava este fato ao afirmar que os nubentes celebravam o matrimônio civil,
mas esqueciam das alianças religiosas, e assim sendo não poderiam considerar-se casados,
mas amasiados.
98
Na cidade de Belém, mesmo a Igreja lutando para não deixar avançar
esta forma de consórcio, avultava uma realidade presente e bastante incômoda para ela,
pois a população recorria a ele regularmente.
97
Consultem-se: “Folha do Norte”. Belém, 16 de setembro de 1907, p. 01. “A Província do Pará”. Belém, 21
de dezembro de 1922, p. 02. “O Estado do Pará”. Belém, 23 de janeiro de 1938, p. 02.
98
“A Palavra”. Belém, 23 de fevereiro de 1920, p. 02.
72
Além das imposições republicanas contidas no Código Civil e da paulatina
aceitação de parte da população, o que corroborava ainda para o avançar do modelo
matrimonial republicano?
Casar-se no civil representava gastos bem menores quando comparados às
formalidades da Igreja. O preço daquele variava conforme as necessidades e os interesses
dos nubentes. Por exemplo, houve casos em que a mulher por força de doença não podia
sair e por isso o futuro esposo entrava com pedido para que o matrimônio “fosse realizado
em casa de residência” ou ainda casos em que um dos cônjuges não era brasileiro sendo
indispensável pagar traslado documental; estas peculiaridades oneravam as núpcias;
contudo, com este modelo matrimonial, a média de gastos com documentos era de
dezenove mil e quatrocentos réis (19 $ 400).
99
em relação ao casamento religioso, os
custos também dependiam de maneira absoluta dos nubentes o que fazia o consórcio variar
entre trinta e cinco mil réis (35 $ 000) a cinqüenta mil réis (50 $ 000). O primeiro valor
pagavam aqueles que desejassem a cerimônia em suas paróquias; o segundo, destinava-se
aos casos excepcionais, isto é, aos consórcios celebrados na casa dos nubentes.
100
Considerando todas as oscilações, para mais ou para menos, era mais barata a
aliança civil. Tomando como base de análise o menor valor para se efetuar o casamento
religioso, trinta e cinco mil réis (35 $ 000), sendo este representado em percentagem era
55,45% mais elevado do que o maior custo do enlace civil, dezenove mil e quatrocentos
réis (19 $ 400), segundo documentos localizados no Arquivo do Tribunal de Justiça do
Pará para o ano de 1917. A representação destas estimativas muda por completo se
considerado o custo do enlace religioso para 1917: cinqüenta mil réis (50 $ 000). Assim,
ficava em torno de 64,73% mais oneroso do que o civilmente celebrado. Desta maneira,
em Belém, os significados atribuídos ao civil também passavam pelos valores das núpcias.
A Igreja não escondia este fato, ao contrário, denunciava-o como demonstra o excerto
seguinte: “Ao trem que desce, aos sabbados á noitinha, do Pinheiro para a cidade, bem
poder-se-ia chamar o comboio dos noivos. Raro é o sabbado, disse-nos um destes dias
um chefe-de-trem, que não traga para a cidade um novo casal (...) Muitos pares alli se
constituem segundo as leis civis, fugindo aos enormes dispendios das nupcias na
99
Este valor foi retirado do casamento de Djalma de Albuquerque Dias e Etelvina Lopes Bandeira, que se
matrimoniaram em 1917.
100
“A Palavra”. Belém, 06 de janeiro de 1916, p. 04.
73
capital”.
101
Como se vem analisando buscava-se dar significados ao casamento cartorial
utilizando diversas estratégias; no documento é exemplar o ataque que se fazia sobre os
preços matrimoniais, isto é, pela razão das taxas não serem as mesmas em todos os
cartórios da cidade, nubentes deslocavam-se para onde as núpcias eram celebradas de
forma mais em conta.
Ao que é possível perceber, outra razão do crescimento do civil foi o fim de
formalidades como a da autorização do pai para a celebração de casamento entre menores;
este fato causou mal-estar o somente na Igreja Católica, mas também entre as
autoridades civis. Mais uma ausência de formalidades denunciada foi a excessiva dispensa
de proclamas em algumas varas cíveis, o que provocava excesso de uniões em
determinadas localidades como na Vila do Pinheiro. Por esta razão, o juiz Joaquim
Augusto da Rocha Freire Barata, ao perceber a irregularidade, determinou que os escrivães
publicassem editais pela imprensa, avisando aos que desejassem contrair núpcias que
organizassem os documentos com antecedência para que desse tempo de expor os
proclamas em local público.
102
De posse desses dados, a Igreja representava o matrimônio
cartorial como uma irregularidade diante de Deus bem como frente à própria legislação
civil; assim construíam-se sentidos como o de caracterizá-lo como brincadeira, enlace
inválido, mancebia, em suma, nunca se poupavam expressões que viessem a desqualificá-
lo.
Percebe-se dessa forma que os significados do casamento civil provocavam
preocupações heterogêneas tanto por parte do Estado quanto da Igreja, pois entendia-se
que o que estava em jogo era a concepção de quem atuaria para manter a ordem familiar
dita legal. Assim, nestas escalas de poder e jogos políticos, cada um é atingido de alguma
maneira, haja vista que os filhos nascidos do casamento civil eram tidos pelo Clero como
espúrios, pois haviam sido concebidos fora do sacramento.
103
Com referência aos nubentes,
se casassem segundo as leis republicanas, seriam tidos como ilegalmente matrimoniados
para a Igreja e vice versa; em suma, as escalas de poder organizavam-se em geografia
bastante multifacetada e heterogênea para o Estado, a Igreja e os protestantes. Um exemplo
entre diversos é o depoimento que fez, em 1922, Gregorio Leocadio Gomes, 35 anos,
101
“A Palavra”. Belém, 25 de dezembro de 1919, p. 01. A Vila do Pinheiro hoje chama-se Icoaraci. Do início
do século XX até os dias atuais esta localidade distante cerca de 20 quilômetros do centro da capital, é
administrada pela prefeitura de Belém.
102
“A Folha do Norte”. Belém, 20 de fevereiro de 1915, p. 01.
103
“A Palavra”. Belém, 17 de janeiro de 1917, p. 02.
74
paraense, empregado público à sua companheira Maria Conceição Alves, 25 anos,
paraense, prendas domésticas: “(...) sempre pensei que o casamento civil envolvia a muita
gente, filhos, parentes, pais, mães, assim como muita responsabilidade em relação a estas
pessoas. Sempre vi o casamento civil com muito respeito, mas por envolver muitos nunca
o quiz (...)”.
104
Representava-se o ato como instituto que exigia responsabilidade e envolvia
diversas pessoas [filhos, pais, mães, enfim, parentes] e por isso o réu dos processos jamais
desejou celebrá-lo com Maria; mas, por outro lado, o inquirido afirmava ser instituto que
merecia muito respeito. O jurisconsulto do caso, Manoel Maroja Netto, julgou procedentes
as ações considerando que os filhos do casal marital, Manoel Alves, João Alves e Edith
Alves, fossem reconhecidos pelo pai bem como pagar à família abandonada pensão de cem
mil réis (100 $ 000) mensalmente. Mesmo não desconsiderando a força da Igreja Católica
é inquestionável que os parâmetros de casamento, de família e de moralidade nem sempre
se organizavam como queria a Instituição, uma vez que o senhor Gregório, por exemplo,
reconhecia os espaços e os efeitos práticos que o enlace matrimonial civil possuía.
Percebe-se também que o impetrado do processo compreendia “o casamento civil com
muito respeito”, o que direciona a interpretação de que as núpcias ganhavam, no decorrer
do tempo, o seu espaço. Desta maneira davam-se significados nobres ao consórcio e, como
em diversos outros discursos, o eixo das argumentações era o da família. É necessário
notar que o réu entendia ser importante o civil e que o mesmo protegia os indivíduos e a
organização familiar.
Construíam sistemas de valores ao ato civil, o que fazia o consórcio ora recuar
ora ganhar espaço nas mentalidades da época. Desejado ou não, como sugerem os
documentos, o casamento deve sempre ser pensado como múltiplo, uma vez que jamais se
pode esquecer a existência de discussões e disputas frente aos seus significados, como por
exemplo, se se tratava de contrato entre duas pessoas ou se constituía família legal. Enfim,
as polêmicas estabeleciam-se sobre o instituto, mas é necessário compreendê-lo como ato
representado conforme as conveniências e interesses daqueles que teciam os comentários
depreciativos ou valorativos.
104
Auto civil de investigação de paternidade cumulada com prestação de alimentos impetrados por Maria
Conceição Alves contra Gregorio Leocadio Gomes, 1920.
75
Todavia, na cidade de Belém, as preocupações com as normas matrimonial e
familiar não se limitaram e nem tampouco se exauriram com os sentidos que se desejava
oferecer ao enlace. Volte-se à problemática, no entanto diante de outras questões.
3. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO DESQUITE E DO DIVÓRCIO
“Do patamar civil a escada, sempre descendente, leva ao
andar divorcista. Onde vigora o consorcio catholico, o
divorcio não forma. Com o contracto civil, o divorcio
prepara a entrada em scena. Os seus partidarios quebraram
diversas lanças em seu favor, no parlamento brasileiro. Em
sendo votado, como em tantos paizes, passa a lei humana,
como o acto civil de que se torna mano, estando ambos
faixados nos cueiros da legalidade”.
(“A Palavra”. Belém, 29 de novembro de 1923, p. 01)
Para o Clero existiam proximidades diretas entre separações conjugais e
casamento civil, isto é, o ímpio desquite apenas ocorria nas uniões celebradas conforme as
leis seculares, inexistindo então separações de corpos e bens entre os que se casavam no
religioso. Com efeito, para a Igreja, o percurso realizado era claro: com a secularização do
casamento houve, paralelamente, uma aliança com as propostas divorcistas. A Instituição
dificilmente esqueceria as perdas que lhe foram impostas com a secularização matrimonial
e a da ruptura conjugal, assim colocava em dúvida a validade do consórcio civil não
desistindo de atacá-lo com estratégias diversas como a de articular com a maior
possibilidade de separação de corpos. Pouco esforço demanda a conjetura que leva a
entender que a razão desta estratégia firmava-se na ausência do sacramento católico, “pois
Deus não estava “presente” nas leis do casamento republicano”. De tal sorte, para se evitar
as quebras da vivência a dois, o mínimo que os nubentes deveriam fazer era casar diante de
Deus e das autoridades seculares.
Mas nem assim se conseguia impedir o avanço do conúbio civil porquanto,
como se analisou na sessão anterior, as leis republicanas e as mudanças na mentalidade
ajudaram a que o enlace tomasse força na sociedade. A Igreja neste caso precisou mudar de
estratégia, ou seja, passou a construir o argumento de que este matrimônio conduzia
facilmente ao desquite se não fosse acompanhado do enlace religioso, o que deve ser
compreendido como um dentre rios ardis elaborados pela Igreja Católica contra o
consórcio civil e as separações conjugais, isto é, tratava-se de discurso que deveria entrar
na mentalidade das pessoas para forçá-las a celebrar núpcias religiosas. Naturalmente, a
força do casamento religioso era insuficiente para conter o desejo de desquitar-se, o que
76
ocorria quando as propostas para a vida em comum não tinham mais qualquer
possibilidade de sucesso; processos de separação de corpos e bens iniciavam segundo o
que foi possível interpretar dos autos catalogados quando o idealizado sob o mesmo teto
mostrava-se insatisfatório aos cônjuges ou a um deles.
No entanto como se organizava juridicamente uma ação de desquite? O
primeiro passo para quem desejasse entrar com processo de desquite contencioso era
dirigir-se com documento intitulado autoamento (elaborado pelo escrivão) à autoridade
competente, Excelentíssimo Senhor Doutor de Direito, onde se expunham os pontos em
que o exeqüente pretendia balizar o auto, mas como se indicou na introdução deste
trabalho e também interpretado a seguir, em muitas tramas os motivos alegados para o
desquite não correspondiam às lutas existentes no bojo do cotidiano, quer dizer, em
inúmeras ações nota-se perfeitamente que o enfraquecimento da convivência conjugal foi a
briga em torno dos bens do casal, mas por inexistir como razão de separação a acusação de
dilapidação do patrimônio, aquele que desejasse [a separação] usava uma das
possibilidades contidas no Código Civil: adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúrias
graves, abandono voluntário do lar conjugal e mútuo consentimento dos cônjuges se
fossem casados a mais de dois anos.
105
Na petição inicial também se publicizavam alguns
dados dos consortes como a idade, local de residência, profissão, data do casamento,
afirmava-se de antemão que se contestava todo gênero de provas contrárias e solicitava-se
à justiça que o culpado pagasse as custas do processo que de 1916 a 1940 variava entre
oitocentos mil (800 $ 000) e dois contos de réis (2 : 000 # 000); esta diferença explica-se
em decorrência do tempo gasto em litígio. Os trâmites da ação seguiam com o Oficial de
Justiça dirigindo-se à residência do réu ou para que o acusado ou acusada tomasse
ciência do processo; anexava-se o registro de casamento, pagamento de custos processuais
como juntadas, assentadas, selos do tesouro do Estado, os quais custavam entre $ 100 e $
300 réis por documento exigido.
Realizados tais procedimentos, o próximo passo seria constituir testemunhas de
defesa e acusação (que variavam de duas a oito) e em seguida, na data e horário marcados
pelo juiz, ouviam-se as versões na sala da audiência, onde se faziam presentes advogados
de acusação e defesa, juiz responsável em oferecer sentença, representante do Ministério
Público, Juiz de Órfãos (quando se brigava pela guarda dos filhos); neste momento os
105
Consultem-se artigos 317 e 318 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
77
depoentes arrolados poderiam ser indagados pelos advogados de acusação e defesa. As
testemunhas eram dadas como pessoas idôneas e essenciais no transcurso do processo e ao
veredicto, porquanto era por meio das suas narrativas, comparando-as à “veracidade” de
informações, que os jurisconsultos elaboravam as sentenças. Houve diversos casos em que
se juntaram, aos autos, outros tipos de provas como por exemplo cartas escritas, nas quais
o conteúdo era diverso (ameaças de morte, confissões de adultério, promessas de amor
eterno). Missivas foram corriqueiramente interpretadas pelo direito paraense como
confissões cabais de culpa, pois colocavam os seus autores em posição moral e jurídica
bastante delicada. Grosso modo, este era o caminhar de uma ação litigiosa na justiça
paraense, mas ainda se deve acentuar que a ruptura de corpos e bens variava bastante entre
si, por exemplo, em determinados casos foi necessário o depósito da mulher em uma
residência respeitável, realizar traslados documentais de um Estado para o outro, diversos
pedidos de vistas dos autos bem como dificuldades em se chegar a um acordo acerca dos
bens e filhos. Estas eram algumas variações que os desquites litigiosos apresentavam, o
que torna impossível elaborar narrativa linear sobre os mesmos.
Os processos amigáveis eram mais simples processualmente. Os consortes na
petição inicial declaravam idade, bens quando era o caso, com quem ficariam os filhos,
data do casamento e principalmente afirmavam existir a impossibilidade de convivência
sob o mesmo teto em virtude de “total incompatibilidade de gênios” e que por isso tinham
chegado diante do Excelentíssimo Senhor Doutor de Direito para solicitarem “mui
respeitosamente” a sua separação de corpos e bens. Realizado este primeiro procedimento,
o juiz estipulava um prazo de 30 dias para que os consortes pensassem a respeito do ato
que estavam por praticar; terminado este tempo voltariam em juízo para ratificarem ou não
o desejo da ruptura; nesta ocasião os requerentes eram ouvidos separadamente.
Dispensavam-se testemunhas, réplicas e tréplicas e em todos os casos os desquitandos
chegaram em juízo com a divisão de bens (mesmo algumas claramente matreiras e
desiguais), com quem ficariam os filhos impúberes e se o marido pagaria ou não pensão
alimentícia, definidas. Outra “facilidade” era o custo da ação: enquanto a litigiosa girava
entre oitocentos mil e dois contos de réis, a amigável mais onerosa encontrada no Arquivo
do Tribunal de Justiça foi de trezentos mil is. No entanto deve-se observar em relação a
este modelo que apenas a maneira processual era intitulada amigável bem como mais
simples, assim dizer que se separou amigavelmente não representava a inexistência de
intrigas e problemas entre os consortes, jamais se pode pensar que o desquite por mútuo
78
consentimento significasse vida cotidiana tranqüila entre um e outro separando, porquanto
em determinados processos desta natureza é evidente que o móvel da separação localizava-
se em intensas dificuldades ante o que era boa gerência dos bens do casal.
Do exposto apreende-se que autos de desquite estavam ligados às insatisfações
e às instabilidades do lar, tais como embriaguez do (s) consorte (s), sevícias e injúrias, ser
mau provedor, adultero (a), má administração dos bens, enfim, nada diretamente ligado aos
argumentos da Igreja. Suas afirmações, enfatize-se, resumiam-se a discursos, inexistindo
relações que sustentassem a ausência de rupturas entre os casados religiosamente. A este
respeito, dos 38 processos contenciosos e amigáveis coligidos no Arquivo do Tribunal de
Justiça do Estado do Pará, em 20 deles leu-se clara referência de se terem celebrado
núpcias católicas [não foi encontrada nenhuma anotação acerca de desquite entre
protestantes], diante disto, representando estes dados em percentagem, em 51,28 % das
ações de desquite os separandos haviam contraído casamento diante dos ministros
católicos. Veja-se desta maneira que, em determinados autos, afirmava o seu autor ser
também casado no religioso, mas argumentava o desejo de regularizar sua condição diante
das autoridades civis, pois “Deus entenderia as razões da separação”.
106
Maria de Jesus dos
Santos, 25 anos, paraense, branca, sabia ler e escrever, prendas domésticas, e Marcílio dos
Santos, 38 anos, cearense, branco, analfabeto, funcionário do estaleiro da Marinha,
casaram-se civilmente em 20 de janeiro de 1920, cinco dias depois celebraram as núpcias
religiosas. Após quatro anos Maria afirmava: “querido pai, gostaria que tudo que ensinaste
juntamente com minha saudosa mãe com referencia aos casamentos fosse verdade, tal
como que o civil e principalmente o religioso firmavam em bases solidas a familia e a
moralidade privada e da sociedade”. Mais à frente prosseguia: “Casei como o exigido, com
tudo tais celebrações em nada me ajudaram na constituição de uma familia honrada, em si
a questão da firmeza da familia não esta no casamento, mas com quem se casa!” A
impetrante, ao construir críticas direcionadas ao matrimônio contraído, voltou-se contra o
esposo e contra quem o escolheu para ela: “deveria ter escolhido melhor o marido, ou
terem me deixado escolher, ou se queriam escolher que tivesse feito de forma mais
competente, Marcilio é bruto todos os dias me ataca com palavras chulas e a pauladas, é
impossivel um mesmo teto com ele”. Nota-se, neste caso, que sentimentos são experiências
vivenciadas que devem ser entendidas como um conjunto de “significados e valores”
106
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria de Jesus dos Santos contra Marcílio Conceição dos
Santos, 1924.
79
vividos e sentidos ativamente, mas de modo diferente, pelos consortes. As intensidades
práticas das convivências elaboram-se conforme as personalidades pessoais, uma vez que
são determinadas por diversos aspectos: o dos interesses que estão sendo pensados para
um determinado momento histórico às experiências antes vivenciadas.
107
Era nesta teia que
Maria e Marcílio se encontravam e o sentir-se casado entendia-se de modo diverso,
segundo os sentimentos com que cada consorte construía suas visões de mundo, e
conseqüentemente as de família e as de casamento variavam conforme as exigências que se
estabeleciam no dia-a-dia. Se para alguns as ordens familiar e matrimonial deveriam
confundir-se para formar apenas um corpo o da moralidade – para outros, como a
queixosa Maria de Jesus dos Santos, as imagens e representações morais e sociais tanto do
casamento quanto da família eram mais amplas, não se resumindo a uma organização
rigidamente homogênea ou cristalizada como o desejavam a Igreja e autoridades civis.
Em relação a estes modelos havia assim modos de agir contrários, ou melhor
dito, uma comunidade mais vasta, tensa, complexa e repleta de buracos que permitiam que
necessidades e interesses entrassem quando seus membros esposa e esposo
compreendessem conveniente. Há no interior destas tensões, a preservação de lógicas
internas, porquanto os objetivos de vida, as pretensões sociais, os desejos enfim eram
portadores de viveres e de interesses que englobavam projetos individuais, os quais nem
sempre convergiam simultaneamente nos cônjuges. Nestas circunstâncias, decidir o
essencial e o que não mais assim se constituía, apresentava-se como jornada difícil e
complexa, onde os atos de sentimentos mudavam cotidianamente e com certeza os
cônjuges envolver-se-iam em litígios domésticos diários. A demandante, Maria de Jesus,
concluía com salutar força: “O que o messias falou – o que Deus uniu o homem não separa
e tal estoria multiplicada ao longo do tempo pela egreja catholica so pode ser uma
metafora que não consigo entender, pois com toda certeza papai Deus não quer que
permaneça sob as garras deste homem, mas é pena de que no Brazil aja somente o
desquite”.
108
É inquestionável que Maria articulava muito bem as palavras e que conhecia,
minimamente, a legislação que regia a vida conjugal. Percebem-se muitas explicações e
esclarecimentos à família, como a existência de injúrias e sevícias, mas também algumas
107
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1979.
108
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria de Jesus dos Santos contra Marcílio Conceição dos
Santos, 1924.
80
lembranças e cobranças como a escolha do par conjugal. No entanto o que chama a atenção
são suas noções sobre a natureza dos casamentos celebrados. Por exemplo, lembrava ao pai
que existia muitas vezes grande distância entre os discursos realizados e a vivência sob o
mesmo teto, ou seja, a autora do processo entendia que no cotidiano nenhuma das
celebrações, por si só, tinha força suficiente de organizar a família de forma sólida, pois o
que realmente contava era como os cônjuges organizavam a vida em comum. O que Deus
une o homem não separa, parte bíblica bastante explorada pela Igreja Católica contra os
projetos divorcistas,
109
da qual a impetrante oferecia aos parentes versão diversa: metáfora
que não conseguia compreender. Argumentos amplos e bem centrados no sentido de
explicar sua decisão à família estavam presentes; exemplar é quando articula as sevícias e
injúrias – acusação que levantava sobre o esposo – como um não querer do próprio Deus, o
que então justificaria a decisão de separar-se. Demonstrava que o desejo era o do divórcio
a vínculo e não somente o da separação de corpos e bens, visto que Maria compreendia
ser lamentável que no Brasil houvesse somente o desquite. No início do século em análise,
as discussões atinentes aos sentidos do desquite e do divórcio estavam presentes nos
diversos jornais que circulavam na cidade e talvez tenha sido por meio de leituras dos
periódicos que a autora entrasse em contato com a teoria do direito da época, mas isso
pouco importa o certo é que possuía bom conhecimento da legislação referente ao fim da
vivência sob o mesmo teto. Por exemplo sabia que, ao se celebrar o casamento, apenas a
morte de um dos cônjuges o terminava.
Quando se analisam os enfrentamentos diários formados na vida conjugal, as
argumentações que a Igreja mostrava não tinham a nima possibilidade de, na prática,
concretizar-se, pois efetivamente tratava-se apenas de discursos. Outro drama contrário à
Igreja foi o processo de desquite impetrado, em 1922, por Maria de Lourdes Conceição, 29
anos, paraense, prendas domésticas, contra Felício Gama Conceição, 45 anos, paraense
funcionário público. Uma das testemunhas da autora, Fatima Gonzalo, 25 anos, paraense,
prendas domésticas, afirmou em juízo que Maria de Lourdes por vezes repetidas lhe
afirmou que se casou civilmente e “face a Igreja Catholica”, mas que nada disso
importava; o que queria era se livrar da embriaguez, das sevícias e das injúrias que lhe
impunha Felício, além das sucessivas aventuras extraconjugais do marido.
110
Atitudes
109
Bíblia Sagrada de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
110
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria de Lourdes Conceição contra Felício Gama
Conceição, 1922.
81
como a da testemunha recomendam não pensar como homogêneas as idéias da Igreja
Católica, pois que se fazia a leitura de que o importante se localizava em se ver livre de
um esposo que não representava o ideal de vida em comum. Assim, os inúmeros
significados do conúbio religioso e civil colocavam-se de “lado” e priorizava-se o fim das
relações conjugais e do regime de bens. Nas tramas em pauta, as celebrações (civil e
religiosa) não se mostraram fortes o suficiente para vencer problemas que surgiam no
cotidiano de Maria dos Santos x Marcílio e Maria de Lourdes x Felício, porquanto o desejo
das esposas concentrava-se em livrarem-se da embriaguez, das injúrias e sevícias dos seus
respectivos maridos.
Não eram apenas os cônjuges, advogados, testemunhas, juízes e Igreja Católica
que expunham opiniões acerca do desquite, do divórcio, dos casamentos civil e religioso;
profissionais das letras jornalísticas reforçavam igualmente as polêmicas. Por exemplo
Eustachio de Azevedo, literato paraense do início do século XX, estabeleceu debates na
sociedade belenense acerca da natureza do desquite e do divórcio. Por conhecer o direito
da época, Azevedo o utilizava para atacar a Igreja Católica e propagandear a necessidade
do divórcio a vínculo no Brasil, defendendo-o como égide da moral e não propagandeador
da imoralidade.
111
No cotidiano da cidade debatiam-se as funções do desquite e do divórcio,
porém como os sentidos do separar-se eram interpretados entre os belenenses que se
envolveram no assunto? Enquanto na sessão anterior se argumentou sobre os sentidos do
casamento civil nesta, que procura compreender os significados da separação conjugal, a
família apresentou-se como foco premente entre os que se dedicaram a esse debate.
Localizar a família enquanto preocupação central fazia parte de jogos políticos; tratava-se
de um mundo social onde a intenção era a de que se mostrasse fechado e hierarquizado de
modo que precauções e prudências tornavam-se essenciais para que estratégias eventuais
ou não de indivíduos ou de grupos viessem à tona. Para se pensar as ações tensas que se
construíram, toma-se emprestada a tese de Maurice Aymard; para o autor, grupos e
indivíduos sociais, para conseguirem sobreviver no interior das tensões e intrigas formadas
111
A Semana. Belém, 30 de janeiro de 1932, nº 637.
82
em sociedade, precisam de antemão jogar bem o jogo das relações políticas, sociais e
culturais “por si e pelos seus”.
112
Com efeito estas estratégias são observadas em Belém pois que, ao discutirem-
se planos que envolviam a família, ter prudência apresentava-se como qualidade
necessária. Por exemplo, o juiz Maroja Netto, que arbitrava o processo de desquite
amigável requerido, em 1937, por João Coêlho de Miranda Fonseca, 55 anos, cearense,
funcionário público e Iracy Moreira de Miranda Fonseca, 24 anos, acreana, moradora na
Avenida Gentil Bittencourt, 269 dava a sua versão às cenas cotidianas que um veredicto
favorável ao pedido poderiam promover em sociedade: “o juiz, ouvindo separadamente os
proprios conjuges sobre os motivos do desquite, os advertia sobre as grandes
consequencias do ato que se propõem a realizar, [ilegível] se persistem livremente e
tentando, se ainda é possivel, a reconciliação”.
113
Um auto desta natureza provocava muito
mal-estar para os cônjuges, os filhos e a sociedade; daí o conselho de tentar a reconciliação
ser freqüentemente usado como caminho salutar a ser percorrido, conforme o jurista.
Percebe-se que preocupações diante da família estavam em pauta, pois um mundo social
bastante complexo e amplo era debatido e decidido: o casamento, a separação conjugal, os
filhos, os bens, enfim, dimensões da família. Um dos problemas contidos localizava-se em
delimitar, de modo preciso, possíveis liberdades e isolamentos do mundo conjugal, uma
vez que se desejava não se lhe dar margem a manobras e nem que parecesse socialmente
flexível a ponto dos envolvidos lograrem manejá-lo a seu bel-prazer; com efeito, o
desejado era que se dessem pontos bem dados socialmente, sem margem a duplas
interpretações.
Esta intenção foi perseguida pelo juiz Maroja Neto, que em outra parte do
processo revogava a homologação do desquite amigável dos cônjuges assegurando que “o
juiz deve, provado o impedimento, se transportar ao logar onde se encontra o conjuge para
ali effectuar a diligencia, pois o seu dever ate a ultima hora é tentar a reconciliação dos
conjuges, evitando o desquite, o que lhe obriga de certo modo a se interessar pelas
deliberações por elles tratadas, das quaes por isso ouvirá novamente”.
114
As representações
112
AYMARD, Maurice. “A comunidade, o Estado e a família. Trajetórias e tensões: amizade e
convivialidade”. In: ARIÈS, Philippe. & CHARTIER, Roger. (Orgs.). História da vida privada: da
Renascença ao Século das Luzes. Vol. III. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 455 / 499.
113
Auto civil de desquite amigável requerido por João Coêlho de Miranda Fonseca e Iracy Moreira de
Miranda Fonseca, 1937.
114
Idem.
83
que Maroja Netto fazia do desquite mostravam-se bastante inteligíveis: quando julgava,
qualquer deslize nos trâmites legais era razão para veredicto contrário, juntando-se a
isso o desejo de conseguir a reconciliação dos consortes. Essa religação do ato conjugal
partia do paradigma de que um veredicto favorável trazia “grandes conseqüências” àqueles
que se propunham realizar a ruptura bem como aos filhos, aos parentes e à sociedade.
Tomando como base a decisão de Iracy e João, é inegável que o modelo de casamento,
família e relação conjugal estático existia somente como imagem do ideal de alguns
juristas [como Maroja Netto], da Igreja Católica e do Estado. A organização social da
família constituía-se de forma muito diferente e diversificada quando se pensa a moldura
que se desejava criar. O que se percebe, no período em estudo, são exemplos diversos de
comportamentos familiares e de opiniões relativas ao fim da vida sob o mesmo teto, os
quais muitas vezes distanciavam-se do modelo cristalizado pretendido pelas elites locais.
Assim sendo, entende-se que o núcleo familiar no caso em questão era organizado
conforme as conveniências que o momento exigia. Para melhor entender as tramas
cotidianas dos indivíduos a se observar que mulheres e homens nem sempre estão de
acordo com as determinações e as prescrições exigidas pela sociedade de que fazem parte.
Desta maneira, a separação conjugal deve ser vislumbrada e relacionada a partir das tramas
e representações em que se assentava a vida conjugal, como se organizava historicamente o
dia-a-dia daqueles que desejavam e optavam pelo fim da vida em comum.
115
Multiplicidades em relação às experiências da separação ofereciam o tom
dessas querelas. Modos de agir variados existiram quando o assunto era esse. Eustachio de
Azevedo, escreveu e publicou, em 1932, na revista “A Semana”, sob o título “Sou pelo
divórcio “a vinculo” posicionamentos que divergiam dos ideais de parte do judiciário
115
Uma extensa bibliografia especializada que se dedicou a compreender como homens e mulheres se
elaboram em sociedade encontra-se disponível, por exemplo, a este respeito interpretações instigantes podem
ser realizadas a partir da consulta de GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de
Janeiro: Editora da FGV, 2003. Também para uma discussão onde se note a presença das mulheres e homens
enquanto formadores de suas próprias experiências sociais, culturais e políticas, consulte-se: SCOTT, Joan.
“El género: uma categoría útil para el análisis histórico”. In: AMELANG, James. & NASH, Mary. (Orgs.).
Historia y género: las mujeres en la Europa Moderna y Contemporánea. Madri: Edicions Alfons el
Magnànim, 1990, pp. 23 / 56. Concernente aos domínios da “crise” conjugal, paralelos interessantes podem
ser observados em diferentes pesquisas como na de Jeni Vaitsman que interpretou minuciosamente o
comportamento das pessoas no bojo do casamento e da família quando estes institutos se encontravam em
franca “crise”, isto é, no tempo em que um dos cônjuges propunha como saída a separação, conferir:
VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e plurais: identidades, casamento e família em circunstâncias s-modernas.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Em importante interpretação acerca do casamento, família e separação na
cidade do Rio de Janeiro, veja-se: ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a
família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. Sobre a família desde o período colonial
recomenda-se: Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP,
1994.
84
paraense e da Igreja Católica. Essas opiniões diferentes conduziam a conflitos que
descortinavam à cidade de Belém discussões de relevância acerca dos limites e dos
significados que a separação conjugal poderia proporcionar. Mas como é possível perceber
as lutas de interesse no interior da sociedade? O documento seguinte é longo, porém
necessário e importante à compreensão dos sentidos da ruptura da vida em comum.
“Sou pelo divorcio “a vinculo”, era o título da matéria e iniciava da forma
seguinte: De todas as opiniões que ultimamente têm surgido pela FOLHA DO NORTE
sobre o divorcio, as mais sensatas, bem ponderadas, e, sobretudo imparciais e francas,
são, a meu ver, as dos dr. Eladio Lima, Jorge Hurley, Xavier de Carvalho, Amazonas de
Figueiredo e Eustachio Pereira, todas contrarias ao desquite e a favor do divorcio “a
vinculo”. As outras são opiniões sectarias, de distinctos, ilustres e respeitaveis
representantes do catholicismo, que preferem o casamento civil, dado pelo juiz, o
casamento catholico, ministrado pelo padre da igreja romana, tido como um “sacramento”
e, como tal, indissoluvel. Até ali, muito bem. Mas para o governo de uma Republica, como
a nossa, que separou a Igreja do Estado, que tem como legal, de direito e de facto, o
casamento civil, que não é um “sacramento” e, sim, um legitimo contracto, esse
contracto pode ter o seu distracto, tambem legal que é “o divorcio” a vinculo, (como disse
Eustachio Perreira) admitindo em todos os paizes do velho mundo, com excepção da
Hespanha (1º) clerical, das confrarias e conventos, e da Italia papal, onde tambem pontifica
São Mussolini .... Para o Codigo Civil brasileiro o casamento catholico não tem força de
lei, porque os legisladores nacionais reconheceram, e muito bem, os males que delle
advinham. Resta agora completar-se o Brasil a obra regenerada iniciada em 1890, seguindo
o exemplo das nações adiantadas e cultas. A indissolubilidade do casamento, tão acariciada
pelos catholicos, à outrace, é um mal social, que deve ser expurgado da civilização
brasileira. Esse mal possue o seu remedio efficaz, e por isso mesmo, util, na lei do divorcio
“a vinculo” que actualmente se discute. O biblico Moysés, no seu tempo, era a favor do
divorcio; e Pascal, vulto proeminente do catholicismo referindo-se ao mosaismo, disse que
isso religião “é divina, na sua moral, a sua conduta, a sua doutrina e nos seus effeitos!”.
Logo, o divorcio admittido pelo mosaismo, é moral, e até divino. Dizem,
sobrepicitadamente, que os que condemnam o divorcio que esta instituição é polygamia
legal ... Como? Então repudiar a mulher que nos atraiçôa, que é a nossa vergonha, que nos
deshonra, e nos torna amarga a vida; repudial-a pelo divorcio legal; e tomarmos outra que
nos faça a vida tranqüila e a paz no lar, isto é polygamia ! ?. Não, meus senhores; isto é um
85
homem querer uma mulher, a monogamia perfeita, retratada, em acção legal. Depois, a
lei do divorcio “a vinculo” não é o resultado de um capricho; não se obtem facilmente,
como querem fazer suppôr os seus detractores. Ora leiam o que transcrevo de Alberto
Bramão: “O divorcio se concede por meio de uma acção judicial demorada,
escrupulosa, seriamente estudada. O cônjuge que requer o divorcio tem de provar que o seu
consorte praticou actos graves, que a lei condemna. Não se apresenta uma simples
allegação graciosa; é necessário apresentar provas decisivas, reais. Não se divorcia quem
quer: “Divorcia-se quem tem e allega razões judiciais para isso”. Cáe, assim por terra,
logicamente, a dos que affirmam ser o divorcio “a vinculo”, uma “impudicicia, a
sagração do amôr livre, a confirmação do adulterio, uma ímmoralidade” (Virgem Nossa
Senhora!) e outras afirmações que reserve de igual jaez. com provas criminais seguras
de um dos conjuges contra o outro, a lei permittirá o divorcio. Esta instituição é, como
disse um publicista notavel, “sentinella vigilante á porta do casamento”, um espantalho,
efficaz à prevaricação conjugal. Concluindo: O divorcio “a vinculo” é a voz forte do dever
a bradar aos esposos: “Se açoitares o teu consorte elle, ti abandonara, porque eu lhe
garanto a possivel felicidade em outro lar, dentro da lei, do decôro e da honra social.”
(Alberto Bramão) “casamento e divorcio”, (Pags. II) Eu penso assim. J. Eustachio de
Azevedo”.
116
Como interpretar estes pontos de vista que, de certa forma, colocavam
reticências às causas católicas da capital paraense? Neste campo não se deve ignorar que o
tempo era de se firmar jurisprudência; esta noção apresentava-se evidente quando o
articulista da matéria estabelecia comentários e aproximações entre a secularização do
matrimônio, ocorrida em 1890 e a sua reafirmação com o Código Civil de 1916. Daí a
ênfase em deixar claro que debates tensos se localizavam sobre o assunto, do ponto de
vista sacramental, da relação, da separação, da família, porquanto se afirmava que das
diversas opiniões aparecidas no periódico, Folha do Norte”, que versavam a respeito da
temática do divórcio, “(...) as mais sensatas, bem ponderadas, e sobretudo imparciais e
francas (...)” eram as de “(...) Eladio Lima, Jorge Hurley, Xavier de Carvalho, Amazonas
de Figueiredo e Eustachio Pereira (...)”. Estes intelectuais mostravam-se contrários ao
desquite e favoráveis ao divórcio a vínculo o que proporcionava discussões
demasiadamente amplas e incômodas a segmentos da justiça e à Igreja Católica, visto que
se debatia a geografia do desquite, assim como a necessidade de se estabelecer o divórcio
116
A Semana. Belém, 30 de janeiro de 1932, nº 637.
86
perpétuo. Apreende-se, deste modo, que periódicos, letrados e judiciário estavam abertos
aos debates que giravam em torno de temáticas polêmicas como as advindas do fim das
convivências conjugais e matrimoniais.
Outros Estados brasileiros também não fugiram aos debates que buscavam
formar jurisprudência; por exemplo, ao analisar a cidade de São Paulo, Luzia Margareth
Rago observou que segmentos operários como os anarquistas colocavam-se como
defensores do divórcio a vínculo, pois argumentavam ser a separação definitiva necessária
em uma sociedade “que não sabe amarcondenando, assim, o casamento indissolúvel.
117
Interpretava-se a indissolubilidade matrimonial como violação legítima da felicidade,
como empecilho à realização conjugal com novo parceiro.
Na cidade de Belém, aos favoráveis a novo casamento em vida do outro
consorte, a indissolubilidade matrimonial funcionava como um mal social que deveria ser
expurgado, mas segundo o articulista, para este mal existia um remédio eficaz: “(...) a lei
do divorcio “a vinculo” que actualmente se discute”. A matéria retrucava da forma
seguinte, àqueles que afirmavam serem as segundas núpcias espaço de poligamia: “(...)
repudiar a mulher que nos atraiçôa, que é a nossa vergonha, que nos deshonra, e nos torna
amarga à vida; repudial-a pelo divorcio legal; e tomarmos outra que nos faça a vida
tranquila e a paz no lar, isto é polygamia ! ?”. Argumentava-se que o divórcio perpétuo não
funcionaria como corruptor da moralidade e que o casamento não perderia o caráter
educador e ético, como supunham os seus detratores. Para se contrapor a esta divagação, o
autor da matéria, afirmava: “O divorcio se concede por meio de uma acção judicial
demorada, escrupulosa, seriamente estudada. O cônjuge que requer o divorcio tem de
provar que o seu consorte praticou actos graves, que a lei condemna. Não se apresenta uma
simples allegação graciosa; é necessário apresentar provas decisivas, reais”. O literato
complementava que caía por terra a propaganda dos que afirmavam ser o divórcio “a
sagração do amôr livre, a confirmação do adulterio, uma ímmoralidade” (Virgem Nossa
Senhora!) e outras afirmações que reserve de igual jaez”.
118
Havia a compreensão de que o divórcio era moral e higiênico, porque um
homem e uma mulher poderiam constituir outra família legal enquanto que o desquite os
impossibilitava e não conseguia impedir a formação de núcleos familiares ditos “espúrios”.
117
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890 / 1930. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1997.
118
“A Semana”. Belém, 30 de janeiro de 1932, nº 637.
87
Havia empenho em se repensar a função da separação e do matrimônio na sociedade
brasileira, isto é, procurava-se argumentar que a presença do divórcio a vínculo era
essencial à moralização do casamento e conseqüentemente da própria sociedade, pois a
ruptura que existia no Brasil, naquele momento, era compreendida como incentivo à
formação de uniões e filhos “ilegítimos” enquanto que, se as segundas núpcias se
tornassem viáveis, inexistiriam as conhecidas pechas sobre estas pessoas. A
indissolubilidade matrimonial tornava-se segundo alguns intelectuais de Belém uma
humilhação aos que compreendiam ser impossível a convivência sob o mesmo teto, por
isso o desquite interpretava-se como a maneira obsoleta de “resolver” querelas conjugais,
que muitas vezes representaram a escalada da formação de lares domésticos ditos “ilegais”.
Em conformidade com esta análise o caminho era, então, o do divórcio, porquanto este se
mostrava capaz – para alguns segmentos – de legitimar e moralizar tanto a família quanto o
casamento. Desejava-se mostrar que tal instituto possuía qualidades, como válvula de
escape necessária aos que se encontravam em uma vida conjugal desastrosa, pois
ninguém deveria ser obrigado a conviver com quem não mais se tinha qualquer afinidade;
consolidaria as alianças no princípio do livre-arbítrio e principalmente possibilitaria a
elaboração de nova ordem familiar reconhecidamente legal.
O ardil concentrava-se em tentar fazer com que a separação conjugal deixasse
de ser vista como instituto embaraçoso à família e que ao mesmo tempo ela [a família] não
deixasse de ter êxito no campo social. A razão disso é relativamente simples de se
entender: tratava-se de lutas de interesse que se tramavam entre os diversos grupos sociais
existentes na cidade. Era argumento central da matéria procurar convencer a sociedade de
que o divórcio em nada corrompia a unidade familiar porquanto a cisão ocorreria se o
cônjuge requerente pudesse provar que o consorte havia praticado atos graves, que a lei
condenava. O fim da convivência sob o mesmo teto não se determinaria com qualquer
alegação; seria necessário, pois, apresentarem-se provas decisivas e reais, alegarem-se
fortes razões a provar que o outro havia prevaricado de forma condenável. Contrapunha-se
aos que afirmavam ser o divórcio a vínculo uma impudicícia, a consagração do amor livre
ou a liberalização do adultério. Todavia, como se afirmou no início deste item e na
introdução deste trabalho, para a consolidação da proposta de segundas núpcias em vida do
outro, o Brasil apenas a desfrutaria com a lei 6515 de 26 de dezembro de 1977, assim
seriam enfrentados mais 61 anos – tomando como base 1916 de intensa luta entre
divorcistas x antidivorcistas; Igreja x Estado.
88
Observa-se deste modo que, nas primeiras décadas do século XX, os campos
em disputa estavam abertos. Mesmo o divórcio a nculo ainda não constando da
legislação brasileira, valores, costumes e hábitos pensados como ideais pela Igreja Católica
e pelo Estado colocavam-se em xeque. Exemplo neste sentido era o outro significado que
se buscava dar ao divórcio, isto é, o de desagregador das vivências familiares. Note-se que
agora buscava-se imprimir a idéia de que o mesmo se constituía em sentinela vigilante à
porta do casamento, espantalho eficaz à prevaricação conjugal. Procurava-se inverter
relações pretéritas que versavam sobre o matrimônio, a família e o divórcio. Argüia-se que
não mais se corrompia a ordem familiar, ao contrário, ajudava-se a mantê-la, pois
legalmente manifestava-se a possibilidade da felicidade conjugal em outro lar. Havia pelo
menos uma parte da sociedade percebendo o divórcio como vigilante das núpcias e
também como “espantalho” ativo das aventuras extraconjugais dos consortes, isto é, no
espaço citadino [de Belém], outras razões, características e interpretações foram oferecidas
e construídas à ruptura da convivência sob o mesmo teto, como os posicionamentos da
senhora Maria de Jesus e de dona Laura que claramente indicavam ser melhor à sua vida se
existisse separação perpétua no Brasil e não apenas o desquite. A este respeito Laura
argumentava que o ideal era a presença do divórcio entre os brasileiros, visto tratar-se o
desquite de um engodo e de um paradoxo “porque separava e não separava”, isto é, ela
sabia que havia o princípio da indissolubilidade matrimonial e por isso o desquite
promovia apenas uma ruptura de corpos e bens, continuando os cônjuges legalmente
casados. Laura acrescentava a este respeito, que os “indecorosos protestantes” aceitavam
de bom grado não somente o desquite, mas também eram simpáticos ao divórcio a vínculo,
uma vez que para isso existia base bíblica. Nota-se aqui claramente a presença de uma
retórica moralista contrária aos protestantes que mal acoberta a influência católica na vida
da autora. Muito embora não sejam palavras de um protestante, este fato não invalida a
interpretação de como os acatólicos se posicionavam a respeito do desquite e divórcio.
Quando Laura assegura em seus escritos que os protestantes possuíam “fortes razões
bíblicas” para se posicionarem favoráveis ao divórcio, a autora fez lembrar [muito embora
para um tempo anterior, 1890] do Pastor Metodista Justus Nelson
119
que em seu cotidiano
enfrentamento com a Igreja Católica garantia que Jesus havia permitido o divórcio, visto
que este afirmou: Moysés, pela dureza dos vossos corações vos permittiu repudiar á vossas
119
Justus Nelson foi o redator de um jornal protestante chamado “Apologista Cristão Brasileiro”, publicado
semanalmente em Belém entre 1890 e dezembro de 1910, ano em que suspendeu a sua publicação, voltando
a ser reimpresso apenas em outubro de 1925.
89
mulheres; mas ao principio não foi assim. Eu vos declaro que todo aquelle que repudiar a
sua mulher, se não é por causa de fornicação, e casar com outra comette adulterio; e o que
se casar com a que outro repudiou, commette adulterio. (Matt. XIX. 8,9)”.
120
Tomando
como referência as narrativas da autora e o modo de agir de Nelson, inquestionavelmente
os protestantes atuavam, fazendo-se perceber nas discussões das formas de separação. De
tal modo, é enganoso pensar os católicos como força hegemônica no seio da cidade,
porquanto abriram-se brechas que possibilitaram lançar diversas e variadas polêmicas
diante das núpcias, família e separação dos matrimoniados.
Entretanto, o que proporcionavam estas teias e visões sociais? As leis
republicanas, influência dos protestantes, mudança paulatina na mentalidade, propagandas
e matérias dos jornais que expressavam a liberdade seja a da mulher, seja a de pensamento
e um maior acesso à educação compreendem-se algumas das temporalidades que
possibilitaram a introdução de novas concepções, as quais versavam ante a liberdade e
construíam novos papéis nas existências de casal.
121
Em virtude do Código Civil de 1916, das Constituições de 1934 e 1937 e de
alguns decretos federais, as décadas iniciais do século XX foram momentos de polêmicas e
diálogos intensos em torno das temáticas casamento, família, desquite, divórcio, separação.
Acerca do divórcio perpétuo, em 1923, a Igreja Católica reconhecia que existiam forças
sociais significativas colocando-se favoráveis a ele e a este respeito o catolicismo
comentava no periódico “A Palavra” a existência de pessoas que acreditavam ser a
indissolubilidade uma monstruosidade, porquanto sujeitava casais discordes a viverem
eternamente como casados o que os impingia a procurar em uma relação ilícita
[concubinato], afetos e carinhos que inexistiam no seio do lar doméstico com a esposa e
isso enfraquecia a imagem da nação. A Igreja, com a sua lógica, via no divórcio a grande
razão de enfraquecimento do país e por isso realizava a defesa do “sagrado vínculo
matrimonial”, por considerar a lei do divórcio – que se discutia – funesta e que jamais seria
admissível sacrificar o todo para satisfazer o desejo impulsivo ou mesmo a necessidade de
120
“O Apologista Cristão Brasileiro”. Belém, 01 de março de 1890, p. 02. A base bíblica que Justus Nelson
buscou foi a do Novo Testamento, Mateus capítulo 5: 31,32. Para este assunto, veja-se: Bíblia Sagrada de
Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
121
Sobre os debates que envolviam estas questões, consultem-se: “O Estado do Pará”. Belém, 10 de janeiro
de 1938, p. 02. ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. Saias, laços e ligas: construindo imagens e lutas (um
estudo sobre as formas da participação política e partidária das mulheres paraenses 1910 / 1937). Dissertação
apresentada na Universidade Federal do Pa / Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (UFPA / NAEA).
Belém: Mimeo, 1990.
90
uma nima parte do todo. Neste caso, para o Clero paraense e de outros Estados, o
divórcio que vinha à tona na década de 1920 representava uma infinidade de crimes que
seriam difíceis de se remediar.
122
Eis aí mais um resumo dos dignos argumentos dos
favoráveis e contrários ao fim dos vínculos matrimoniais, sendo que diante do assunto
todos mostravam as seqüelas tenazes da ausência do divórcio, bem como as da sua
presença; de tal sorte, as razões apresentadas pelos divorcistas e anti-divorcistas, por mais
penosas que pudessem parecer às família, não eram a única preocupação dos defensores e
detratores do instituto, quer-se dizer, desta maneira, que boa parte dos setores lutavam para
ver quem dominaria os jogos de poder que giravam frente à permanência de somente um
casamento ou da possibilidade de se casar pela segunda vez no país. A Igreja sentia que os
diálogos quanto à ruptura dos vínculos matrimoniais não arrefeciam havia tempo e por isso
mostrava-se preocupada e atenta aos movimentos políticos, sociais e culturais realizados
por parte da população belenense. Segundo os anti-divorcistas, os favoráveis à ruptura do
matrimônio eram libertinos que corroboravam, com suas idéias, à ruína da nação. Se por
um lado os posicionamentos favoráveis à separação a vínculo advinham de vários lugares
sociais, por outro também existiam sérias objeções a esses discursos os quais procuravam
limitar a noção de que o divórcio era salutar por impedir a constituição de casais e famílias
“espúrias” e com isso fortalecer o país e a sociedade.
Acerca desta questão, no início do século XX, um conjunto de leis discutia a
função do casamento, da família, do divórcio, do desquite no bojo da sociedade brasileira.
Se por um lado os divorcistas pensavam que a separação a vínculo moralizava a família e
por isso o instituto fosse essencial ao progresso e à civilização do país, por outro os
contrários a ele argumentavam ser a presença da ruptura matrimonial uma celeuma que, se
aprovada em qualquer das leis em debate, traria tão somente a fragmentação da honra
familiar, da civilização e da nação brasileira. Em 1920, a Igreja Católica expressava muito
bem estas concepções ao afirmar que o divórcio desamparava membros essenciais da
constituição de uma nação forte: as crianças.
123
Tomando como base os diversos
argumentos do Clero belenense, apreende-se que o mesmo tinha como propósito específico
a manutenção da ordem social e atuava simetricamente contra aqueles que
propagandeavam idéias liberais contra a família, a moral e a ordem. Enfim, os discursos da
122
Estas reflexões procederam da matéria intitulada “Matrimonio Christão” publicada pela folha “A Palavra”
em 08 de novembro de 1923, p. 01.
123
“A Palavra”. Belém, 22 de janeiro de 1920, p. 01.
91
Igreja e do laicato davam ênfase à preservação dos valores e costumes tradicionais da
honra e ética familiares. O Clero e aqueles que abraçavam a sua causa movimentavam-se
no sentido de sufocar qualquer tentativa do que compreendiam ser uma inversão dos
sagrados valores nacionais. De tal modo, ao se entrecruzar inúmeros documentos como
periódicos, pastorais, literatura escrita por padres católicos como Leonel Franca, e a
influência que a Instituição exerceu nas legislações de 1916, 1934, 1937 e 1940, pode-se
assegurar que durante toda a primeira metade do século XX ela colocou-se contrária a
mudanças profundas da ordem familiar.
É evidente que a Igreja Católica não concordava com as propostas divorcistas e
contra-atacava como podia: “Ha em todas as leis do divorcio um effeito que não é nulo: é o
favor prestado ao crime, por quanto sendo o motivo mais aceitavel o adulterio, o conjuge
aborrecido ou mal avindo que pretende libertar-se intenta com essa injuria infamar a parte
innocente que instintivamente se indigna e protesta, surge então e vae crescendo a
discordia, na qual se pretexta incompatibilidade de caracter (...)”.
124
A ruptura conjugal
deve ser compreendida entre os discursos e lutas sociais que provocavam dissidências e
fricções, mesmo que o Clero insistisse em um modelo de casamento e de família estático,
daí colocar-se avessa a qualquer proposta de separação conjugal. Para a Instituição, era
necessário conter os deslocamentos característicos do mundo social, ou melhor dito,
buscava-se anular a possibilidade de a vida privada ser dotada de independência, porquanto
compreendia-se que nenhuma instabilidade entre consortes poderia ser portadora de força
suficiente para resultar em ruptura da vida em comum, ato que envolvia os cônjuges bem
como os filhos, pais, enfim, os parentes em geral.
Todavia, nem todos assim pensavam. Por exemplo, Laura, em reflexões
intituladas “notas sobre a separação conjugal”, escritas em 1932, afirmava que “no Brazil
existe apenas o desquite, mas o que a sociedade preciza é do divorcio que possibilita
segundas núpcias, pois o primeiro nada resolve a vida daqueles que querem realmente se
ver livres do consorte que embaraça a vida”.
125
A interpretação que oferecia era a da
insuficiência do desquite, porque este mantinha firmes os vínculos matrimoniais, ou seja,
no dizer da senhora Laura, os “conjuges se separavam, mas não se separavam”, o que
poderia efetivamente resolver a vida daqueles que desejavam construir legalmente outra
família seria apenas o divórcio perpétuo. São extremamente consistentes os
124
“A Palavra”. Belém, 30 de maio de 1918, p. 01.
125
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 02 de janeiro de 1932.
92
posicionamentos da autora em relação ao mundo conjugal; ela sabia que o desquite
mostrava-se bastante limitado; no entanto, lançando-o em domínios secundários, observava
que pelos meios jurídicos inexistia aos casados outro caminho.
Nota-se, desta maneira, que a separação entre consortes apresentava-se como
assunto que trazia muitos debates. O articulista Alcides Gentil, mesmo considerando-se
contrário ao divórcio, afirma que o ideal era pensar no casal.
126
O autor analisou algumas
dimensões da vida civil como o casamento, a família, o desquite e o divórcio a vínculo, e
afirmava que, ao saber da separação de um casal, sentia-se individualmente ferido,
porque sua postura concentrava-se na oposição à ruptura desse contrato. Entretanto,
utilizava argumentos variados como o de que a lei do divórcio a vínculo poderia funcionar
para o bem da sociedade, uma vez que atuaria como instrumento moralizador porquanto,
com a possibilidade de segundas núpcias, os filhos havidos com outro parceiro poderiam
ser legitimados diante da lei e da sociedade. Tal razão detinha certa força, assim como a de
que, mesmo permitindo o divórcio, a lei não obrigaria ninguém a se divorciar. A argüição
de que promover autos [de divórcio] jamais se constituiria em brincadeira entre os
cônjuges, mas sim em ato solene ao qual apenas se recorreria quando a vida em comum se
mostrasse insustentável, além de afirmar que ninguém estaria obrigado a conviver em lar
conjugal tenso e instável, eram argumentos utilizados por Alcides Gentil em defesa de sua
tese. O articulista considerava “os que pódem viver, sem conflitos eternamente casados,
vivam. Aquelles que estão impossibilitados de se aturarem um ao outro, divorciem-se”.
127
Comentava-se a extensão da separação percebendo-se as necessidades do casal, que não
deveria conviver em meio a tensões irremediáveis, que o desestabilizavam bem como a
parentes e prole. Assim sendo, existiam os que, mesmo com ações contrárias ao divórcio,
conseguiam pensar no bem-estar do casal e não apenas na pretensa moralidade ancorada à
indissolubilidade do casamento.
Entretanto é preciso assinalar que para bem entender-se o binômio casamento /
separação necessário se faz perceber que existiam cadeias de interdependências entre os
envolvidos no assunto, ou seja, nunca se encontravam isoladamente decidindo estes
aspectos da [sua] vida. Destarte, se as decisões estavam ligadas a outros indivíduos, pensar
qualquer ângulo ou geografia da vida em casal força interpretar que as pessoas estão
“limitadas” ao que lhes é possível executar e produzir. Nesta ordem de análise, afirmou
126
“Folha do Norte”. Belém, 03 de janeiro de 1930, p. 02.
127
Idem.
93
Lucien Febvre, que na dimensão social “o indivíduo é sempre o que lhe permitam que ele
seja, tanto a sua época, quanto em seu meio social”.
128
Entenda-se que mesmo notando o
separar-se como decisão última dos envolvidos diretamente, é impossível vislumbrá-lo
enquanto instituto circunscrito aos cônjuges, pois o espaço social a quem o desquite
interessava apresentava-se amplo em demasia para que as decisões pudessem ser tomadas
de forma exclusivamente monossilábica. Sabe-se, naturalmente, que a posição a prevalecer
depois de todas as outras era a dos consortes, mas até este momento multiplicavam-se
opiniões, palpites, orientações, que se realizavam de forma incisiva e invasiva. Neste
sentido são coerentes os posicionamentos de Alcides Gentil, articulista atrás analisado, que
afirmava sobre à separação: “estão em jogo os interesses, assim do casal, como dos
parentes, que entram, desde logo, em conflicto”.
129
Enfatize-se que o divórcio a vínculo à época inexistia no Brasil, mas que
também fique claro que campanhas ou posicionamentos favoráveis à separação com
possibilidade de segundas núpcias faziam-se presentes. Separação perpétua inexistia, mas
os que se sentiam insatisfeitos em seus relacionamentos articulavam-se politicamente com
o que tinham em mãos: o desquite.
TABELA 2
DADOS DOS AUTOS DE DESQUITE
DESQUITES LITIGIOSOS
CÔNJUGES EM
LITÍGIO
ANO
RAZÕES
ALEGADAS
JUIZ VEREDICTO
Francisco Conde contra
Maria Christina Mavignier
de Castro
1917
Adultério Manoel Maroja Netto Favorável
Francisca Gomes Nunes
contra Frederico Andrades
Silva
1917
Sevícia ou injúria
grave
Manoel Maroja Netto Favorável
Galdino Luiz Nunes contra
Olindina Amelia Collares
1917
Abandono do lar Luiz Ribeiro Guterres
Processo
incompleto
Antonio Tavares de Pinho
contra Maria Rodrigues
Machado
1918
Adultério (?)
Processo
incompleto
Felizmunda Santana
Gomes contra Dimas da
Annunciação Gomes
1918
Sevícia ou injúria
grave
Manoel Maroja Netto Favorável
Anna Zanetti de Moura
Torres contra João de
Moura Torres
1919
Abandono do lar
Francisco Dantas de
Araújo Cavalcante
Processo
incompleto
128
FEBVRE, Lucien. História. São Paulo: Ática, 1978.
129
“Folha do Norte”. Belém, 03 de janeiro de 1930, p. 02.
94
Joanna Cavalcante
Albuquerque contra
Octavio Anancio
Albuquerque
1920
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Raymundinha Gonçalves
Silva contra Leão Campos
Silva
1920
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Marinor Santiago Boiúna
contra Jaime do Amaral
Boiúna
1920
Sevícia ou injúria
grave
Maurício Cordovil Pinto
Favorável
Raymundo Nonnato de
Siqueira contra Estellita
Mônica de Assis
1921
Adultério Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Joanna de Azevedo Soares
contra Nicolau Antonio
Pereira
1921
Tentativa de morte e
Sevícia ou injúria
grave
Francisco Dantas de
Araújo Cavalcante
Favorável
Maria de Lourdes
Conceição contra Felício
Gama Conceição
1922
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Bellida Ohayon contra
Moysés Ohayon
1922
Sevícia ou injúria
grave
José Augusto de Pinho
Processo
incompleto
Conceição da Cruz
Almeida contra José Maria
Almeida
1923
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Maria de Jesus dos Santos
contra Marcílio Conceição
dos Santos
1924
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Maria Guilhermina da
Silva contra João de Jesus
da Silva
1925
Tentativa de morte Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Maria Angélica Pereira
contra Santiago Dantas
Pereira
1926
Abandono do lar Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Georgina Tavares Mendes
contra Cordopio Santos
Mendes
1926
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Lindolpho Dantas Oliveira
contra Francisquinha
Lemos Oliveira
1927
Adultério Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Gertrudes Maria Gomes
contra Mariano Gonçalves
Gomes
1928
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Immaculada Braga Costa
contra Macimiliano João
da Costa
1928
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Antonio Nascimento contra
Izabel Pinto do
Nascimento
1930
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Diogo Santiago contra
Edith Santiago
1931
Adultério Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Francisco Silva e Silva
contra Felizbela Alacide
Silva
1934
Adultério Raul da Costa Braga Favorável
95
José Chagas de Oliveira
contra Felicidade da
Conceição Salgado de
Oliveira
1936
Sevícia ou injúria
grave
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Mário Pereira de Carvalho
contra Maria de Jesus
Castro de Carvalho
1938
Adultério Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
Carlos Pereira contra
Elvira da Costa Pereira
1940
Abandono voluntário
do lar conjugal
Mauricio Cordovil Pinto
Julgado
improcedente
Nacielza da Gama Andrade
contra Americo Mendes de
Andrade
1940
1940 (?) (?)
Geraldina Braga de Aguiar
Angelim contra Manoel
Andrade de Angelim
1941
Injúria grave e
abandono do lar
Raul da Costa Braga Não há veredicto
Desquite litigioso, pensão
alimentícia e partilha de
bens impetrados por
Celeste Figueiredo de
Medeiros contra Arnaldo
Barbosa de Medeiros
1941
Sevícia ou injúria
grave
Augusto Rangel de
Borborema
Favorável
Etelvina Lopes Bandeira
Dias contra Djalma de
Albuquerque Dias
1946
Abandono do lar Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
DESQUITES AMIGÁVEIS
Marinor Alcântara Favacho
e Cornélio Silva Favacho
1919
Incompatibilidade de
gênios / Mútuo
consentimento dos
cônjuges
Manoel Maroja Netto Favorável
José Marques Zagury e
Rachel Lifschitz
1921
(???) Pedro dos Santos Torres (???)
Paulo Xisto da Cunha
Pereira e Anna de França
Pereira
1926
(???)
Ignacio Carvalho
Guimarães de Oliveira
Favorável
Herculano Augusto Coelho
de Carvalho e Maria da
Cruz Carvalho
1927
Incompatibilidade de
gênios/Mútuo
consentimento dos
cônjuges
Manoel Maroja Netto Favorável
Joaquim Oliveira e
Cypriana de Souza Gaia de
Oliveira
1937
Incompatibilidade de
gênios / Mútuo
consentimento dos
cônjuges
Mauricio Cordovil Pinto
Sem veredicto
João Coêlho de Miranda
Fonseca e Iracy Moreira de
Miranda Fonseca
1937
Incompatibilidade de
gênios / Mútuo
consentimento dos
cônjuges
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
João Furtado de Souza e
Raymunda Barbosa Corrêa
de Souza
1939
Incompatibilidade de
gênios / Mútuo
consentimento dos
cônjuges
Mauricio Cordovil Pinto
Favorável
A tabela foi elaborada a partir dos autos de desquite localizados no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, cartório Sarmento.
Recentemente boa parte dos documentos deste arquivo foi doada ao Centro de Memória da Universidade Federal do Pará (UFPA).
96
Michelle Perrot
130
tendeu a mostrar que as rupturas conjugais, ao contrário do
que certos grupos sociais desejavam, sempre se caracterizaram por ser instituto dominado
pelas mulheres em todas as épocas. Conforme a historiadora, elas apresentaram-se, em
períodos distintos, como as maiores solicitantes das ações de separação de corpos e bens.
Autora que se encontra em uma mesma linha da de Perrot é Arlette Lebigre,
131
que bem
informa sobre a concentração de autos nas mãos das mulheres pois, ao analisá-lo a partir
da lei Naquet –,
132
percebeu que os processos não deixaram de crescer e que no final do
século XIX a percentagem de mulheres francesas exeqüentes era de 60 %, bem mais do
que a dos homens. No Brasil, diversas pesquisas indicam que desde a Colônia e chegando
ao século XX, as mulheres, também se apresentaram com maior freqüência nos corredores
do judiciário como requerentes seja de divórcio, seja de desquite.
133
Os resultados das pesquisas nos mais diversos Estados convergem às análises
que se realizam neste trabalho: quando o assunto eram processos de desquite as mulheres
percorreram com mais freqüência os corredores do judiciário paraense. Os dados são os
seguintes. Dos 38 processos localizados; 31 foram contenciosos. Do montante de
contenciosos, 11 foram impetrados por homens o que perfaz, em percentagem, 34,37 %.
Das 20 ações restantes, as mulheres foram as queixosas, o que representa 64,51 %. Dos 07
processos que sobram, a separação conjugal foi feita por meio do mútuo consentimento, o
130
PERROT, Michelle. (Org.). “Os atores: dramas e conflitos familiares”. In: História da vida privada: da
Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 263 / 285.
Também para uma análise que reflete as mulheres como personagens predominantes no judiciário quando o
assunto era processo de divórcio, consulte-se: PROST, Antoine. “Fronteiras e espaços do privado: a família e
o indivíduo”. In: ARIÈS, Philippe. & DUBY, Georges. (Orgs.). História da vida privada: da Primeira Guerra
aos nossos dias. Vol. V. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 61 / 114.
131
LEBIGRE, Arlette. “A longa marcha do divórcio”. In: Amor e sexualidade no Ocidente. Porto Alegre: L
& PM, 1992, pp. 212 / 217.
132
Instaurou o divórcio com possibilidades de segundas núpcias na França. A respeito remete-se a uma
especialista no assunto: ADLER, Laure. Segredos de alcova: história do casal (1850 / 1930). Lisboa:
Terramar, 1983.
133
Diversos estudos sobre conflitos e separações conjugais chegaram a considerações similares: as mulheres,
quando se sentiam pressionadas por razões inumeráveis tais como injúrias, sevícias, tentativas de morte,
abandono do lar do companheiro, dilapidação dos bens realizada pelo marido, recorriam à justiça
questionando condições adversas, espoliativas, dificuldades econômicas como sustentar a prole e pagar
aluguel, a respeito desses assuntos consultem-se: SILVA. “O divórcio na capitania de São Paulo”. Op, cit.
COSTA, Raquel Rumblesperger Lopes Domingues da. Divórcio e anulação do matrimônio em São Paulo
colonial. Dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH / USP). São Paulo: Mimeo, 1986. SILVA. Dignidade e transgressão. Op, cit. SAMARA, Eni de
Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. LOPES, Cristiane Fernandes. Quod Deus
conjuxit homo non separet: um estudo de nero, família e trabalho através das ações de divórcio e desquite
no Tribunal de Justiça de Campinas (1890 / 1934). Dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH / USP). São Paulo: Mimeo, 2002. CAMPOS. Op, cit.
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que representa em percentagem, do total de 38, 18,42 %. Todavia, como é possível
interpretar estes números? Como foi explicado na introdução, mesmo não tendo sido
possível coligir todos os autos de desquite arquivados no Tribunal de Justiça do Estado do
Pará em virtude da péssima organização [foi consultado apenas o Cartório Sarmento] a
quantidade encontrada viabilizou diversas análises como a de que o casamento foi bastante
questionado e mesmo posto em xeque por homens e principalmente por mulheres. A
quantidade de ações em que elas se constituíram em queixosas ultrapassa todas as outras
percentagens acima apresentadas e o que imediatamente salta aos olhos é o vigor que
tiveram em pôr fim à vida em casal, desestruturando-se a concepção de as mulheres serem
vítimas das relações conjugais, ou melhor dito, se em algum momento foram apreendidas
como “vítimas” no sistema do casamento, em outros tornaram-se intolerantes a
determinados posicionamentos masculinos como o de sevícias e injúrias, o de adultério e o
de serem eles maus provedores. Dessa maneira, é de suma importância entender que os
autos demandados pelas mulheres afetavam e reforçavam seus papéis em sociedade, pois
era necessário construir outros vínculos e táticas de sobrevivência. Busca-se argumentar
que foram as mulheres detentoras de escalas de poder, seja político, seja moral, seja
econômico, seja sexual. Desta maneira, jogos conjugais, sexuais [com o esposo] somente
se faziam até o momento em que lhes convinha, pois eximiam-se de desvantagens nas
vivências sociais. Nota-se que se fazia da vida no seio do casal uma partilha de poder
bastante delicada e os sentidos, os desejos, as pretensões da Igreja Católica de Belém
perante o casamento e a família nem sempre convergiam com as experiências dos cônjuges
sob o mesmo teto.
Reitera-se que também a interpretar-se que na quebra dos vínculos conjugais
existiam distâncias entre o que estava nos artigos do Código de 1916 e as tensões e dramas
havidos no dia-a-dia dos consortes. Por exemplo, na referida lei inexistia como razão de
ruptura de convivência sob o mesmo teto a dilapidação de bens, assim o consorte que se
sentisse prejudicado tornava-se exeqüente alegando uma das possibilidades presentes na
legislação. Em 1926, este foi o caso de Maria Angélica Pereira, 23 anos, paraense,
costureira, contra Santiago Dantas Pereira, 39 anos, paraense, comerciante, que legalmente
expôs em juízo ser o motivo do desquite abandono voluntário do lar”, mas no
desenvolvimento da ação percebe-se claramente que o móvel central dos desentendimentos
entre os cônjuges girava em torno da péssima administração dos bens do casal, visto que
Maria Angélica acusava Santiago de “dilapidar o patrimônio do casal em farras com
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prostitutas, nos botequins e tavernas”. Em outra parte do libelo dava a versão de que o
marido “já vendera para sustentar sua boemia imoderada três modestas mas valorosas
barracas” e mais adiante dizia que estava vendo “todos os bens trazidos por mim para o
casamento acabarem-se indiscriminadamente”.
134
Convém acentuar que para os consortes
havia um leque de motivações que extrapolavam as contidas no Código Civil; nota-se
dessa maneira a presença de evidentes contraposições entre os discursos legais e a
experiência existente no dia-a-dia dos envolvidos. Cônjuges e advogados reelaboravam
aspectos cotidianos da vida conjugal às exigências da codificação. Veja-se o mundo da
conjugalidade em certos autos emanar tão distintamente rupturas que estas começaram
contenciosas e terminaram amigáveis, movimentos que revelam a enorme multiplicidade
da vida a dois. Exemplo neste sentido foi o desquite entre o senhor José Chagas de
Oliveira, 37 anos, cearense, militar ao casar, entretanto comerciante ao tempo do desquite
contra Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira, 33 anos, paraense, prendas
domésticas.
135
Os nubentes receberam-se em matrimônio em 07 de setembro de 1923,
porém em 1929 não mais residiam sob o mesmo teto. Neste caso, o que importa é
apreender como as experiências cotidianas foram utilizadas no judiciário paraense, ou
melhor, palmilhar o dia-a-dia das tensões matrimoniais que conduziram à ruptura do casal.
Em 05 de novembro de 1936, o senhor José com o seu advogado, Ernesto Chaves Netto,
localizavam Felicidade em universo bastante extenso, que “a partir do anno de 1930 a
esposa do Supte, sem que para isso houvesse motivo, começou a dar-se ao vicio da
embriaguez e a maltratar o Supte, pronunciando-lhe uma vida de verdadeiros dissabores,
injuriando gravemente o Supte com expressões immoraes. Alem disto por duas vezes a
Supda seviciou o Supte, produzindo-lhe echimoses ate mesmo na face, aproveitando para
isso de momentos em que o mesmo se encontrava dormindo”.
136
Caminhar do cotidiano conjugal do suplicante ao judiciário do caso conduzindo
a acusação de que havia sofrido agressões físicas da esposa constituía-se em geografia
desonrosa ao homem, entretanto no caso em pauta ao que tudo indica –, o urgente era
134
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria Angélica Pereira contra Santiago Dantas Pereira,
1926.
135
Este processo inicia-se litigioso e termina amigável. Auto civil de desquite litigioso impetrado por José
Chagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira, 1936.
136
Idem.
99
livrar-se da consorte.
137
O casamento estava esgotado, sem possibilidade alguma de
sucesso ou mesmo de reelaboração. Assim sendo, o tempo agora era de separação e exigia
outras ordens de preocupação como a de enfrentar e conseguir apoio diante dos parentes,
amigos e vizinhos. Para chegar a ponto de afirmar que a esposa o seviciava e que lhe foram
produzidos ferimentos até mesmo na face, pensa-se logo que o casamento não mais
significava o ato gerador da paz social; desta maneira sua ruptura urgia, uma vez que
estava em jogo a virtude do casar-se. Os sentidos deste desligamento são intrigantes, pois
se construiu a concepção de que por algum tempo o marido havia suportado aventuras
boemias e imorais da esposa. O significado das rias e incomuns acusações resultaram na
separação imediata e irrestrita dos consortes, uma vez que não existia ao que tudo sugere
desejos e expectativas de reconciliação, porquanto se tinha chegado ao limite de uma
acusação: a publicização da privacidade dos fatos ocorridos no lar conjugal.
No início do século XX, o senhor José Chagas de Oliveira não foi o único que
acusou a esposa diante do judiciário, de ter sofrido sevícias por mãos femininas. Em 1930,
o Tenente Coronel do Batalhão de Caça da Força Pública do Estado, senhor Antônio
Nascimento, entrava igualmente com desquite litigioso contra Izabel Pinto do Nascimento,
alegando sofrer sevícias corriqueiras da companheira.
138
Tratava-se da acusação central do
impetrante, ou seja, Antônio e o seu advogado, Gama e Silva, concentravam esforços em
convencer o juiz Dantas Cavalcante de que as práticas da autora mostravam-se
demasiadamente ofensivas à honra do esposo assim como à normatização da sociedade.
Nos dois casos onde se acusavam as mulheres de exercício de sevícias, o importante
concentrava-se em se livrar o mais rápido possível da esposa, porquanto inexistia qualquer
possibilidade de vida conjugal tranqüila e estável. Em conformidade com isso, entende-se
que as imagens de moralidade eram inúmeras, sendo uma delas a de lar doméstico
contemporâneo, onde o chefe deveria ser o marido, visão nem sempre existente no âmbito
prático da vida cotidiana.
Um outro desejo de moralidade era a propaganda realizada pela Igreja de que
nenhuma razão se mostrava suficientemente forte à separação de corpos e bens, porém as
137
Em trabalho anterior, entretanto situado nas últimas décadas do século XIX, afirmou-se não se ter
localizado nenhum processo em que uma mulher figurasse como autora de violências ao esposo, pois se
levantou a possibilidade de que seria demasiadamente desonroso chegar ao judiciário como vítima de
espancamentos infligidos pela esposa. CAMPOS. Op, cit.
138
O título da matéria era “desquite judicial: Marido que confessa ser espancado pela esposa”. In: “Folha do
Norte”. Belém, 04 de janeiro de 1930, p. 31.
100
relações orquestradas na prática não se organizavam ao modo que a Instituição mandava,
porquanto processos de ruptura conjugal foram recorrentes e para os impetrar “bastava”
aos cônjuges ou a um deles perceber que nada mais havia de proveitoso no enlace
matrimonial. Em 1917, por exemplo, a desquitanda Francisca Gomes Nunes escrevia a
irmã: “(...) Minha querida irmã é bem compreendido que fomos formadas na christã
catholica e que esta repudia de todas as formas qualquer tipo de separação conjugal. Fui
casada em face da igreja e do civil, mas em decorrencia das instabilidades que no decorrer
dos annos se formaram entre eu e Silva a vida em comum se transformou impossivel, os
tempos são outros se compararmos quando e como nos casamos para os atuais dias, assim
a decisão de separar-me – é irrevogável. O desquite para mim é dificil, mas é mais dificil a
convivencia com quem não tem noção de vida conjugal (...)”.
139
Houve casamento diante
de Deus, mas também separação entre os cônjuges. Destarte, deseja-se afirmar mais uma
vez que os argumentos da Igreja Católica mostravam-se demasiadamente frágeis diante de
um consórcio que apresentava longas crises não remediadas, isto é, o seu modelo
matrimonial jamais teve o poder de impedir o desejo da separação conjugal, pois esta
acontecia quando os cônjuges ou um deles ignorava qualquer expectativa agradável na vida
em comum. Nessas circunstâncias o desquite era a condição social que surgia e em muitas
ocasiões compreendia-se ser mais conveniente lançar mão dele a permanecer com o
companheiro; assim pensava a queixosa – Francisca – pois desejava assumir os riscos deste
jogo social, isto é, os desconfortos e as inconveniências que a demanda lhe pudesse trazer.
A tabela atrás impressa traz algumas razões que promoveram separação de
corpos e de bens, mas o que se alegava em juízo era apenas a acusação formal: a exigida
pela legislação. Esclarece-se que juntamente com aquela os cônjuges, advogados e
testemunhas conjugavam outras para que tivessem maior chance de vitória; por exemplo,
em todos os processos onde a acusação era a de sevícias e injúrias esta foi conjugada à de
embriaguez, de o marido ser mau provedor, adúltero e de dilapidar os bens da família.
Quando a acusação central mostrava-se de adultério, imputações tangenciais foram
igualmente utilizadas pois este conjugou-se com o vício da embriaguez, o de a esposa não
ser boa mãe e a de haver dilapidação de bens.
140
Quando se alegava mútuo consentimento
dos cônjuges, o argumento da incompatibilidade de gênios era a exposição central, mas
139
Parte de uma carta que foi enviada por Francisca Gomes Nunes a sua irmã Gertrudes. Ação de desquite
litigioso impetrada por Francisca Gomes Nunes contra Frederico Andrades Silva, 1917.
140
Diante do judiciário os homens recorriam com maior freqüência à acusação de adultério de suas esposas;
por seu turno, as mulheres alegavam abandono do lar conjugal ou sevícias e injúrias.
101
note-se que tal justificativa jurídica escondia tensões e multiplicidades cotidianas
desagradáveis de publicizar. Assim sendo, em todos os autos impetrados existiam razões,
além das alegações formais, importantes. É necessário lembrar e considerar duas questões:
primeira, tratava-se de ações que rompiam o lar conjugal e segunda, ninguém propunha
desquite sem considerar que o motivo não fosse sério o suficiente.
Em conformidade com isso, as passagens do estar casado às do desquite eram
complexas e reafirmavam que no cotidiano as separações nem sempre se coadunavam com
as definições lançadas no Código Civil, mas muito além delas. Desquites impetravam-se
por “ligeiras” indisposições cotidianas [como conversas com vizinhos na soleira da
porta]
141
a acusações de adultério,
142
passando também por surras e sevícias variadas.
143
No
entanto, nem sempre as dissimetrias cotidianas da vida conjugal convergiam ao que se
expunha nas contendas jurídicas, visto que havia distância por vezes considerável entre as
experiências diárias e as alegações havidas nos corredores do judiciário. Como se afirmou
um pouco atrás, a separação de corpos e bens de José e Felicidade iniciou de forma
litigiosa e transformou-se, curiosamente, em amigável, sendo que no pedido os cônjuges
por meio de seu advogado, afirmavam: “(...) em beneficio dos mesmos e da filha do casal,
ultimarem o seu desquite amigavelmente, o que fazem neste acto e occasião nos termos
dos arts. 504 e segs. do dec. 1380 de 22 de Junho de 1905” e um pouco mais à frente
consideravam que a razão em que pautavam o fim da convivência a dois era a de
“incompatibilidade absoluta de genios”. Migrava-se de sevícia ou injúria grave ao mútuo
consentimento dos cônjuges ou à incompatibilidade total de gênios, justificativas que em
si mostravam-se evasivas, não possuindo inteligivelmente significado concreto. De
acusações sérias, o caso transformou-se assim em amigável, ou seja, o impetrante passou
da denúncia de surras, impropérios e embriaguez praticadas pela esposa à de
incompatibilidade total de gênios. Com efeito, processos amigáveis buscavam esconder e
preservar tensas teias do campo social, pois que se desejava evitar o “escândalo” e
preservarem-se os filhos, a família, os parentes, os vizinhos e a si mesmo.
141
Auto civil de desquite amigável impetrado por Herculano Augusto Coelho de Carvalho e Maria da Cruz
Carvalho, 1927.
142
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina Mavignier de
Castro, 1917.
143
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Joanna Cavalcante Albuquerque contra Octavio Anancio
Albuquerque em 1920.
102
Passavam-se a distinguir posturas diferentes [do idealizado às realidades
impostas pelo desquite] dos acontecimentos que se localizavam entre o desejado /
idealizado e o que foi possível na vida conjugal. De tal sorte, quando consumado o
desquite, distinguiam-se fatos e reelaborações das redes sociais a que os separados
passavam a pertencer, na atividade premente de buscar reconstituir fios que os ligassem a
outras relações. Desta maneira, um dos efeitos do desquite mostrava ser o de executar a
mudança de pertencimento nos elos cotidianos, ou seja, o estado de desquitado exigia
necessariamente transformações consigo mesmo e com os demais membros do ciclo social.
Porém tal condição possuía diferentes enfoques para o homem e a mulher; as exigências
sempre seriam bem maiores às esposas, diz Carmen Silva.
144
De tal sorte, se por um lado o casamento buscava contemplar fabulações e
amainar ânimos, por outro na separação também é possível apreender estes aspectos, ou
seja, quando se inviabilizavam submissões domésticas, os separados continuavam a buscar
distante do seu par conjugal a tão propalada estabilidade afetiva. A rigor, o estudo
minucioso das quebras conjugais na cidade de Belém revela que este desejado fim fazia
parte das necessidades e interesses individuais e que, por conseguinte, o matrimônio
monogâmico não era a sua condição sine qua non. Desta forma, o desligamento implicava
em muito mais do que enfrentar a sociedade ou colocar “fim” à família; significava, antes
de tudo, estabelecer novos vínculos de liberdade ao indivíduo; de tal modo, os envolvidos
ofereciam sentidos às suas vidas, separando-se conforme as necessidades e conveniências
que o momento histórico exigia. Enfim o companheiro ou companheira interessavam até
quando as suas ações, hábitos, intenções, atitudes, palavras permaneciam na geografia de
algum significado construtivo ao enlace. Caso contrário ocorriam rupturas dos vínculos
conjugais, como deixa entrever Francisca Gomes Nunes, em 1917: “não á mais sentido a
minha convivencia com Silva, elle nada me oferece: casa, honra pessoal, honra diante da
sociedade, comida, tranqüilidade, nunca me proporcionou”, um pouco mais à frente
considerava que o “desquite é a melhor saida para a fantasia que foi o meu casamento,
afinal ser desquitada é melhor do que continuar com este infame”.
145
Nota-se que a decisão
de enfrentar uma ação de desquite surgiria após muitas lutas em contrário; no entanto
defende-se o argumento de que a mesma se tornava viável a partir do momento em que se
144
SILVA, Carmen da. O homem e a mulher no mundo moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1968.
145
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisca Gomes Nunes contra Frederico Andrades Silva,
1917.
103
percebia a ausência de trocas múltiplas em seus consórcios. Não havendo sentido em se
sustentar um casamento que pouco convergia às necessidades básicas de sobrevivência, o
melhor a se fazer era entrar com processo de desquite ou assumir a separação por conta
própria, ou seja, sem o aval do judiciário, como mais adiante se verá. Os autos de desquite
coligidos, paternidade e alimentos, mas também matérias dos jornais proporcionam este
campo de análise. Separavam-se conforme as conveniências, quando o desquite fazia-se
imperioso, “pouco” importando a presença de filhos, pressões familiares ou sociais. As
conseqüências da separação e seus variados significados eram “desprezadas” pelo casal,
mas pelo menos uma delas os desquitados tinham que sofrer: construir outras e novas
relações, assim como a necessidade de enfrentar a grupelhos sociais que desconsideravam
qualquer razão para o desquite.
Argumentam-se serem amplos e múltiplos os sentimentos da separação. A
perda e o vazio, embora próprios, não se constituíam em únicos núcleos dos aspectos
emocionais dos consortes. Amor, culpa, ódio, tristeza, rancores, medo, solidão, sensação
de abandono e fracasso faziam parte das tramas e dramas dos desligamentos conjugais.
Como diante disto entender os múltiplos significados do desquite? Provavelmente existiam
sentimentos de alívio naqueles que se livravam de um esposo ou esposa adúltera, de
sevícias e injúrias. Contudo, mesmo com a concepção de se estar saindo de um vínculo
instável, a separação revivia o passado e o presente dos consortes e desta maneira ela
intercalava sentimentos, lembranças e ações que um dia se localizaram nas experiências e
nos cotidianos dos agora estranhos. Esta noção explica bem o que vem a ser
“Territorialidade dos sentimentos e das junções políticas familiares”.
Entenda-se pois a impossibilidade de se dicotomizar as análises familiares dos
significados das separações conjugais, porque o domínios inseparáveis. Os sentidos de
família ressoavam sobre os desquitandos e desquitados, porquanto as ões forçavam esta
dinâmica, tornavam público o poder contido no cotidiano conjugal. A este respeito, leia-se
o excerto: “(...) scientificada de que seu marido pretendia embarcar com seus filhos para o
sul, reclamou ao dr. Abel Chaves, então juiz da 1ª vara no sentido de impedir a viagem dos
ditos menores. Esse magistrado indeferiu o requerimento, em virtude de ter que deixar no
mesmo dia o exercicio daquella vara e assumir o da 2ª, por força do rodizio. A senhora
Luiza Bittencourt, não se conformando com essa decisão, dirigiu-se ao Tribunal de
Apellação, hontem, requerendo providencia urgente “para evitar que o despacho do sr. juiz
“a quo possa permittir o embarque dos seus filhos. O presidente do Tribunal,
104
desembargador Buarque de Lima, pediu informações ao juiz da 1ª vara, já exercida pelo dr.
Flavio de Guamá, e determinou fosse sustado o embarque dos menores até solução final do
caso”.
146
É neste sentido que inexiste a mínima plausibilidade em se procurar entender a
separação como uma indisposição a envolver estritamente os cônjuges. As rupturas
conduziam a um estado mental que reverberava de forma diversa entre os cônjuges e os
“externos” da conjugalidade [pais, filhos, parentes, vizinhança]. Seria um equívoco
considerá-la como inter-jogo essencialmente do casal, porquanto mais pessoas sofriam
com a separação. Quando a sobrecarga de responsabilidade estava insuportável, alguns
tomavam a decisão de reconhecer que algo idealizado não estava bem, que havia qualquer
coisa de errado com as expectativas que um dia foram tramadas como ideais e então
recorriam ao desquite.
Estes posicionamentos indicam que as forças dos que se colocavam contrários a
qualquer forma de ruptura conjugal era limitada e nunca conseguiria convencer o conjunto
da sociedade. Ao nível dos comportamentos, sublinham-se importantes ações que
buscavam romper com o paradigma da indissolubilidade matrimonial [como as
significativas práticas da senhora Maria de Jesus], mas estas encontraram uma rede de
comportamentos tradicionais enraizados e reproduzidos em uma sociedade que mesmo
vivendo um mundo de “laicização” ainda lembrava os posicionamentos tradicionais. Os
sentidos do desquite variavam segundo os meios e os lugares, pois coexistiam atitudes
tradicionais e atitudes novas no interior da temática, o que acontecia por haver mediações
do saber e do poder nos espaços do convencimento social que impunham um conjunto de
medidas a se delinearam conforme os argumentos apresentados: favoráveis ou contrários à
separação.
Nesse caso, se existiam pluralidades, é fácil entender que processos de
separação conjugal fossem recorrentes e suas razões diversas: para se livrar de um esposo
violento, de um mau provedor, ou quando inexistiam afinidades amorosas; mas também
para se livrar de uma esposa adúltera, como pretexto para deixá-la e viabilizar outra
relação amorosa. Estas foram algumas das estratégias utilizadas quando o casamento
apresentava-se inconveniente; por palavras mais vívidas, conjugavam-se pretextos e
acusações como forma de procurar mostrar e provar que os impetrados secundarizaram em
146
“O Estado do Pará”. Belém, 04 de Janeiro de 1938, p. 03.
105
algum momento o sentido da vida conjugal. Se por um lado existiam forças sociais que
possuíam o objetivo de formar do matrimônio e da família em espaços homogêneos e para
isso se posicionavam contrários à dissolubilidade e às segundas núpcias, por outro deve-se
perceber que os dois institutos eram colocados constantemente em litígio, visto que neles
se notam flexibilizações e fragilidades. Em suma, no cotidiano, muitas vezes tanto o
casamento quanto a família apresentavam aspectos frágeis, fissuras e rupturas impossíveis
de reparação.
Levando em conta os argumentos e todas as diferenças que se assinalavam de
um sujeito para outro e mesmo de um tempo para outro, o importante a notar é o quanto
Laura, Maria de Jesus, Maria de Lourdes, Francisca, João Coelho e tantos outros estavam
empenhados (as) em suas propostas. Todavia, impetrar processo de desquite jamais foi a
única possibilidade de separação, assim perseguem-se outras formas de ruptura na
continuação da tese.
106
CAPÍTULO 2
RUPTURA DA NORMA DESEJADA: CASAMENTO,
AMASIAMENTO E FAMÍLIA
107
1. DURAÇÃO E DURABILIDADE DO CASAMENTO
“Há de se ter muita paciencia quando o assunto é vivencia e
convivencia sob o mesmo teto, por exemplo:
proporcionalmente a possibilidade de o casamento civil e de
o religioso darem certo são exatamente as mesmas, pois
estou cansada em affirmar que não é o matrimônio em si
que sustenta a vida em commum, mas sim com quem se
casa e consequentemente as relações que se são construidas.
Tambem é preciso affirmar que quando estes casamentos
não dão mais certo é muito melhor realizar uma separação
sem a presença do judiciário, pois com este o problema
torna-se mais complicado e embaraçoso”.
(Diário de dona Laura Soares de Souza, página 15. Belém,
10 de fevereiro de 1931)
Em 1931, dona Laura Soares de Souza, demonstrando expressiva consciência
em torno do sentido dos casamentos, colocava-se contrária aos posicionamentos da Igreja
Católica ao afirmar que as chances de durabilidade do enlace civil eram as mesmas quando
comparadas ao sacramento católico. A autora afirmava que não se tratava da forma de
núpcias que determinaria o tempo sob o mesmo teto e sim as dinâmicas que os consortes
realizavam no dia-a-dia. Também recomendava que, quando um ou outro matrimônio não
desse certo, o mais coerente seria o “divórcio” por conta própria, ou seja, sem a presença
do poder jurídico.
Em 1919, por outro lado, debatiam-se em longa matéria intitulada “Salada de
fruta” publicada no periódico “A Palavra”, os significados do casamento civil na cidade de
Belém. Dentre diversas observações como a dos custos mais baixos e a da ausência de
alianças religiosas, católicas é claro, uma chamou atenção: a durabilidade do enlace civil
articulada com um maior número de separações por conta própria, onde se afirmava que
“não lhes ocorre que as obrigações a que Deus não preside e abençôa não podem ter a
duração das cousas duradoiras. Casamento sem sacramento do matrimonio é mero
contracto ... e os homens faltam tanto á fé jurada nos pactos que celebram ...”
147
Era
precisamente 16 de outubro de 1919, data em que se responsabilizava o ato civil pela
pouca duração do casamento e de excessivas rupturas sem o conhecimento do judiciário.
Afirmava-se que apenas o casamento civil não sustentaria a unidade familiar; o religioso,
assim, mostrava-se essencial nesse sentido. Desta maneira, a união entre duas pessoas não
se poderia entender singular mas pluralizada em virtude das multiplicidades que
emanavam do enlace.
147
“A Palavra”. Belém, 16 de outubro de 1919, p. 02.
108
Então perseguem-se inicialmente as seguintes indagações: como é possível
compreender as separações conjugais que não passavam necessariamente pelas instâncias
do poder judiciário? Se não se registravam legalmente, como vieram à tona?
Existe nesse contexto um paradigma a ser esclarecido e que, ao mesmo tempo,
constitui-se na problemática em pauta: o tempo de casado sem a presença do desquite
não significava que os cônjuges vivessem sob o mesmo teto, ou seja, conjugalmente em
uma mesma habitação, onde em comum ofereciam-se conselhos, educavam-se e criavam-
se os filhos, assim é necessário afirmar que no seio da separação de corpos o desquite não
foi o único caminho a que diversos consortes recorreram. Frequentemente – para se verem
livres dos cônjuges o desligamento por conta própria foi a saída. Deste modo, se as
exigências para a solenidade do casamento apresentavam-se variadas, também o eram no
ato da separação; rupturas dos vínculos conjugais não ocorriam apenas por meio do
desquite; casais punham fim às suas convivências sem a presença da jurisprudência
mantendo vida paralela ao enlace. Homens e mulheres formavam vínculos concubinários,
constituíam outras famílias, criavam e educavam outros filhos enfim, entravam em um
jogo – dito à época – espúrio. A historiografia dedica-se ao assunto já há alguns anos senão
vejam-se as reflexões de Sidney Chalhoub
148
que analisou dezenas de processos para
construir parte do cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro. Na obra “Trabalho, lar e
botequim”, o autor considera que o fim da relação conjugal ou das entre amásios não
significava o cerceamento da vida amorosa, pois se elaboravam vivências no sentido que
construir outros lares em bases familiares.
Entretanto, algumas rupturas informais de longa data e outras nem tanto
chegavam ao conhecimento do jurídico, vinham à tona quando um dos consortes percebia
ter sido prejudicado na divisão de bens sem formalidade, quando não se concordava com o
término da convivência, quando se impetravam autos de provimento, quando se desejava
explicar alguma querela havida na relação amásia, tirar algum proveito do casamento ou do
concubinato como, por exemplo, conseguir pensão alimentícia que viabilizasse a melhoria
da vida. De acordo com o exposto, os sentidos das separações variavam no tempo e no
espaço e assim os significados das rupturas de corpos são representações constituídas por
homens e mulheres em movimentos sociais que se faziam e refaziam no cotidiano da vida,
nas experiências e na constante construção da consciência do que seria ser separado.
148
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle-Époque. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2001.
109
Um dentre diversos exemplos que se pode dar é o processo de prestação de
alimentos impetrado, em 1917, por Katarina Mariana de Fátima, casada, 25 anos, prendas
domésticas contra Marcellino Gonçalves Dias, casado, 35 anos, alto funcionário público.
149
Dona Katarina afirmava que havia rompido relações de convivência com o marido
muitos anos, vivia separada há mais “de cinco longos annos” e, ao ser interrogada pelo juiz
[Maroja Netto] porque nunca havia se preocupado em impetrar auto de desquite, sua
resposta continha grande consciência de si e das exigências impostas pelo mundo que a
circundava, pois expressava que nada poderia mudar a sua condição diante da sociedade,
ou melhor dito, “tanto na condição de desquitada quanto na de separada por conta propria a
minha vida, a de meus filhos, e até mesmo a de Marcellino não mudaria substancialmente,
mesmo sabendo que este era detentor de algum benefício”.
150
Ao estabelecer comparações
entre as vantagens no seio do dia-a-dia quando ocorriam rupturas de qualquer natureza,
Katarina entendia com muita clareza as exigências e posicionamentos que a sociedade
impunha às mulheres e aos homens, notava que na prática o consorte era portador de
regalias como a de formar outro núcleo familiar, é claro espúrio, mas com poucas
importunações sociais; mais à frente e de modo enfático, afirmava: “emquanto eu
meritissimo nunca teria esta oportunidade”.
151
A oportunidade anotada pela impetrante
dizia respeito a ser vista com certa tolerância pela sociedade de que fazia parte e não
necessariamente de uma impossibilidade generalizada de formar outro núcleo familiar,
porquanto se sabe que via de regra outras bases familiares se constituíam mesmo
expondo-se a graves riscos referentes às opiniões sociais.
Concernente a sua relação, Katarina avaliava o valer a pena submeter-se às
irresponsabilidades de um companheiro que não oferecia qualquer esperança de melhoria
de vida; assim, para “não gastar dinheiro e me indispor com todo o judiciario preferi
realizar a separação sem a presença deste, mesmo não sendo a opinião de meu esposo, pois
este queria não o desquite, mas a permanencia de seus absurdos conjugais”, dizia a senhora
Katarina em 1917. As rupturas na ausência do judiciário não eram mais simples do que as
promovidas por meio do desquite e nem sempre se operavam consensualmente entre os
149
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Katarina Mariana de Fátima contra Marcelino
Gonçalves Dias, 1917.
150
Idem.
151
Idem.
110
cônjuges, porque muitas delas organizavam-se como “verdadeiros desquites litigiosos”.
152
Note-se que as pessoas arranjavam-se conforme as suas experiências no seio do cotidiano,
de modo que diversas delas como dona Katarina percebiam que não existia distinção
entre as concepções de ser legalmente separada e a de consumar o desligamento sem a
presença do judiciário. Em outras palavras, por não existir divórcio a vínculo como
analisado no capítulo 1 nas duas condições de ruptura as personagens não poderiam
contrair segundas núpcias ou fazer com que os filhos não fossem vistos como de pais
desquitados, ou seja, a posição social de desquitada (o) ou a da separação de cama e mesa
por conta própria, em nada mudaria o status social de quem se imiscuía nestes domínios.
Eis a razão da impetrante do processo ter bastante claro o horizonte de que os filhos e ela
não teriam qualquer concessão da sociedade e por isso tanto fazia o modelo do fim da
convivência; não havia sentido o auto de desquite, pois existia o “risco de perder a ação e
ter que pagar as custas, nunca se sabe ao certo o que vocês pensam”, afirmava a autora, em
1917, quando questionada pelo juiz Maroja Netto.
É preciso pois compreender que, ao se preterir formalmente o processo de
desquite, os envolvidos executavam os seus próprios “divórcios”, levantando assim um
universo que continha todo tipo de conflito, porquanto a consciência de que o desquite ou o
término da vida a dois por conta própria de igual forma seriam cobrados por setores da
sociedade. De tal sorte, atuava-se conscientemente em um mundo exigente aos que
promoviam qualquer circunstância de separação de corpos e bens, por exemplo, a autora da
ação via os perigos contidos nos autos, mas também em qualquer outro modelo de ruptura,
e recomendava surpreendentemente que “todas as mulheres que pretendam se separar de
seus maridos que o façam sem a presença do poder judiciario, por que tudo conspira contra
nós, tanto em meu caso e em tantos outros os homens são mais bem contemplados em
qualquer uma das formas”.
153
Sentir-se atuante é patente nas argumentações da autora,
visto que percebia bem que a sociedade de um modo ou de outro oferecia maior liberdade
aos homens do que às mulheres, dona Katarina notava que “mesmo o meu marido estando
152
A expressão “verdadeiros desquites litigiosos” está sendo aplicada às separações que nunca precisaram do
judiciário, porque elas são, em complexidade bastante tensas e múltiplas, nada deixando a desejar em relação
às separações promovidas diante do judiciário.
153
Todavia há a considerar que, quando o assunto era a separação conjugal por meio do desquite, os
veredictos eram amplamente favoráveis às mulheres; desta maneira uma observação fez-se necessária: no
primeiro capítulo analisou-se que foram as mulheres quem mais impetravam processos de desquite e em
todas as ações impetradas conseguiram veredicto favorável.
111
em uma “mesma” condição a de separado –, a sociedade não o taxaria pejorativamente
de desquitado ou de separado livremente, ao contrário de mim e de meus filhos”.
Nestas condições o privado facilmente transformava-se em público, pois tanto
para defender quando para acusar adentrava-se na vida que deveria concentrar-se em
recônditos que se desejaria privados.
154
Mantinham-se dessa forma de sobreaviso estas
categorias, pois quando era necessário rompê-las, os casais sabiam que usar todas as armas
possíveis diante do judiciário constituía-se em tarefa premente e imprescindível.
Foi por meio de acusações mútuas, onde se lançava mão de movimentos
íntimos que vieram à tona partes do cotidiano dos namorados e depois consortes Hugolina
da Graça Paraense, miserável no sentido da lei, 26 anos, casada, doméstica, paraense,
residente na Rua dos Tamoios, 468 e Wladimir Lobato Paraense, 31 anos, médico
quando casou era estudante de medicina e, ao tempo em que iniciou o processo, morou
em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belém.
155
Dona Hugolina e seu advogado, Emilio
Uchoa Lopes Martins, estavam bem atentos às notícias publicadas nos periódicos da
cidade, pois anexaram à petição a sessão fixa “Aeronavegação” do jornal “Folha do Norte”
de 09 de julho de 1940, onde se comentava a chegada de passageiros [a Belém], sendo um
deles o senhor Lobato Paraense. O jovem médico retornou à cidade pelo “Clipper”
internacional em 08 de julho de 1940, passando a residir na casa de seus pais na Vila
Fiúza, 18, não procurando a companhia da esposa com quem casara em 30 de maio de
1935, porém em 16 de junho do mesmo ano, isto é, “16 dias após o seu casamento” não
mais moravam sob o mesmo teto. Observa-se que o auto de pensão alimentícia teve início
em 07 de junho de 1940, mas já havia 05 anos de separação sem a presença de desquite, ou
seja, extra-judiciário.
Ao palmilhar o cotidiano e os argumentos apresentados pelos litigantes
consegue-se esclarecer o que provocou tão curta vida conjugal. A impetrante, em
depoimento ao juiz Maurício Cordovil Pinto, afirmava que antes do casamento “já vivia
amaziada” com seu futuro esposo. É necessário entender não no campo jurídico, mas na
experiência pessoal o que significava amasiar-se nas primeiras décadas do século XX,
categoria que dependia da conveniência e interesse que se desejava oferecer. Para a
154
Consulte-se: SENNETT, Richard. O declínio do homem blico: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
155
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Hugolina da Graça Paraense e Wladimir Lobato
Paraense, 1940.
112
senhora Paraense, amasiar-se significava manter constantes cópulas com Wladimir, pois
perguntava “o que mais forte prova um amasiamento do que repetidos atos sexuais?”
também a se considerar que esta era a posição de quem se encontrava como impetrante,
onde se tinha a necessidade de acusar, como também a de se defender consistentemente.
Por seu turno, o réu não entendia que a convivência mantida antes do casamento se
constituísse em amasiamento, porquanto se afirmava que “em Agosto de mil novecentos e
trinta quatro o declarante deflorou a autora, continuando a ter com a mesma relações
sexuais, sem entretanto, viver com ela sob o mesmo teto”. De tal sorte, para o réu, amasiar-
se significava ato para além do sexual, ou seja, precisava-se morar sob um mesmo teto.
Entre os envolvidos são latentes interpretações discrepantes frente ao significado do que
seria manter uma convivência amásia, contudo como se argumentou acima, não é possível
desconsiderar que estavam diante do judiciário e precisavam, de alguma forma, acusar e
defender-se.
Constituindo-se ou não a relação em amasiamento, volte-se à problematização
central. Quais tramas do cotidiano promoveram tão curta vivência entre os cônjuges? Nota-
se que o réu nega a existência de amasiamento, mas não os atos sexuais; como o próprio
impetrado esclarece em depoimento onde afirma que ao tempo do defloramento e das
seguidas relações sexuais morava na casa de seu primo Raimundo Horminio Paraense, que
considerava como pai adotivo. Este, ao saber do ocorrido, insistiu na idéia do casamento
“afim de reparar aquela falta”. Em virtude das pressões matrimoniais, as tensões familiares
tornaram-se insustentáveis, o que veio a precipitar a mudança de residência do réu: da casa
do primo para a da irmã localizada na Travessa Tito Franco. Mas forçar o consórcio não
partia somente dos parentes do senhor Paraense; o pai da autora o procurou para insistir na
tese matrimonial “sob pena de mata-lo”. Diante desta séria ameaça, o réu assegurou que
não se casaria com a deflorada por esta ser maior de idade, Wladimir argumentava que,
além de ser adulta, Hugolina não foi seduzida ou iludida em sua para manter relações
carnais fê-lo sabendo das possíveis conseqüências por isso jamais se casaria com ela.
Martha de Abreu Esteves
156
destaca, por meio da interpretação de centenas de processos,
que os homens do Rio de Janeiro do início do século XX, para se livrarem da acusação de
defloramento, utilizavam-se de diversas estratégias como por exemplo a de afirmar que a
acusação não procedia porque ao manter cópula com a pretensa ofendida foi constatado
156
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle-Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
113
não ser a mesma mais “donzela” e também a que foi utilizada pelo estudante de medicina
da cidade de Belém: a deflorada ter mais de vinte e um anos. Sobre o caso em pauta, tudo
sugere não ser importante ao réu constituir matrimônio naquela altura da vida, mas diante
de pressões da família, da polícia e de particulares como as do pai de Hugolina, o jovem
estudante de medicina resolveu casar em 30 de maio de 1935, sendo que no “quarto dia
depois do seu casamento, em virtude de atritos que constantemente havia entre o
declarante, e seus tutores, o declarante resolveu sahir de casa onde morava, para ir residir
com sua irmã, á travessa Tito Franco”. Na condição de cônjuges, viveram sob o mesmo
teto por apenas três dias, na residência de Raimundo Horminio Paraense, e separaram-se
sem a presença do judiciário. Os dados que indicam a durabilidade da vida a dois são
contraditórios, no entanto o certo é que giraram entre quatro e seis dias. No caso em
análise, a exígua durabilidade conjugal é explicada em virtude do consórcio ter sido
forçado, mas também não se deve secundarizar o fato de que [o casamento] formava
situação totalmente extemporânea ao impetrado, porquanto não convergia com suas
imediatas representações de vida, comprometendo a conclusão do curso de medicina, pois
assumir a mantença de uma família exigia, na Belém novecentista, significativos esforços
financeiros, dimensão que o réu achava impossível como mero acadêmico de medicina que
era. A este respeito, na Inglaterra do século XX, Alan Macfarlane em substanciosa obra
afirmou que “o casamento de um estudante não formado ainda era visto como tolice e
imprudência nas universidades britânicas na década de 1950”.
157
Então o problema ora em pauta encontra-se intimamente ligado ao de se
compreender de que maneira se operavam as mensagens dos que se separavam na ausência
do judiciário, sendo que as razões dos consortes eram sempre localizadas de maneira
diferente, porém em condições históricas concretas. Assim, veja-se a tabela.
157
MACFARLANE, Alan. História do casamento e do amor: Inglaterra, 1300 / 1840. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990, p. 223.
114
TABELA 3
DADOS DAS SEPARAÇÕES SEM O CONHECIMENTO DO JUDICIÁRIO
Cônjuges: dia,
mês e ano do
matrimônio
Dia, mês e
ano da
separação
Convivência
sob mesmo
teto
Duração da
separação
Razão da
separação
Tipo de
documento
Gervezia
Cavalcante
Favacho e
Leopoldo Santos
Favacho,
01/02/1900
01/08/1902
02 anos e 06
meses
Cerca de 15
anos
Infidelidade do
marido,
abandonou o lar
para viver com
outra mulher
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1917
Anna Maria da
Annunciação e
Evangelista
Gonçalves da
Annunciação,
22/03/1902
22/06/1902 03 meses
Cerca de 15
anos
Infidelidade do
marido,
abandonou o lar
para viver com
outra mulher
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1917
Maria Seixas
Napoleão e João
Pedro Napoleão,
20/01/1908
23/09/1910
02 anos e 08
meses
Cerca de 10
anos
Infidelidade do
marido,
abandonou o lar
para viver com
outra mulher
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1920
Raymunda
Consuelo Martins
e Jairo Coutinho
Martins,
29/01/1920
30/02/1922
02 anos e 01
mês
Cerca de 04
anos
O marido foi
obrigado a
casar/abandonou
o lar
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1926
Mariana Bentes
Gonçalves e
Marioswaldo
Silva Gonçalves,
18/05/1925
30/07/1925
02 meses e 12
dias
Cerca de 05
anos
O marido foi
obrigado a
casar/abandonou
o lar
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1930
Hugolina da
Graça Paraense e
Wladimir Lobato
Paraense, 30 / 05 /
1935
16/06/1935 De 4 a 6 dias
05 anos e 08
dias
O marido foi
obrigado a
casar/abandonou
o lar
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1940
Laura Soares de
Souza e Manoel
Felicio de Souza,
07 / 06 / 1932
Há somente
o ano, 1932
Por volta do
início de 1933
estavam
separados
Pela data do
início dos autos,
30/09/1940,
cerca de 08 anos
Infidelidade do
marido,
abandonou o lar
para viver com
outra mulher
Autos civis de
prestação de
alimentos, 1940
Mário Pereira
Alves e Maria
Luiza Alves, sem
informação
06/04/1938
Sem
informação
Sem informação
Incompatibilidade
de gênios
O Estado do Pará,
07/04/1938
Geraldo José da
Silva e Josina
Castro e Silva,
sem informação
21/03/1938
Sem
informação
Sem informação
Adultério
O Estado do Pará,
29/03/1938
A tabela foi elaborada a partir dos dados de alguns autos de prestação de alimentos e do periódico “O Estado do Pará”.
115
Na tabela encontram-se jogos de circulação das razões, questionamentos,
interesses e desejos que em determinado tempo [o da separação informal de cama e mesa]
não era interessante dar ao judiciário, mas que em outro momento, por se terem mudado as
aspirações, traziam à tona todo um conjunto de argumentos a expressar os interesses da
vida cotidiana como um constante movimentar de afetos, perspectivas, mudanças de planos
e responsabilidades. Na cidade de Belém, determinados matrimônios com suas dimensões
históricas organizadas na experiência chegavam a momentos não negociáveis,
proporcionando rupturas de conveniência das que um dia foram pensadas como ideais.
Como acertadamente afirmou Edward Thompson “não é preciso explicar que casamentos
entram em crise e que alguma forma de divórcio é uma conveniência”,
158
contudo tanto
para a Inglaterra do tempo a que o autor se refere quanto para Belém, não existia a
possibilidade de divórcio, embora na capital paraense houvesse a do desquite e a da
separação por conta própria.
Entretanto, voltando-se à matéria pretérita por razões enfáticas, existindo a
possibilidade do desquite, porque não se recorria imediatamente a tal alternativa?
Os movimentos existentes nos autos civis de ação ordinária de prestação de
alimentos impetrada por dona Laura Soares de Souza contra Manoel Felicio de Souza
podem ajudar nesta interrogação.
159
Laura, brasileira, 30 anos, casada, doméstica, pobre no
sentido da lei, domiciliada na Vila do Pinheiro, patrocinada pela assistência judiciária; seu
esposo, Manoel, brasileiro, 36 anos, motorneiro da companhia de eletricidade, residente na
Praça General Magalhães 166, Vila do Pinheiro é um caso dentre vários que pode
ilustrar o argumento que se deseja sustentar. As tensões foram publicizadas, como bem
mostra a tabela atrás impressa, no ano de 1940; no entanto iniciaram bem antes, porquanto
o esposo era acusado, pouco tempo depois do nascimento do filho do casal, Wilson Soares,
em 1932, de ter abandonado a esposa “sem motivo algum, passando a viver com uma outra
mulher, não deixando, entretanto de, na medida de suas posses, dar-lhes alguma
importância para sua manutenção e de seu filho”. Inequívoco é o fato de que a troca de
companheira não tenha dado lugar a tensões, mas até por volta de 1940 os problemas
mostravam-se amainados em virtude do esposo não se recusar em oferecer algum valor em
dinheiro.
158
THOMPSON, Edward. “A venda de esposas”. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 305 / 352.
159
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Laura Soares de Souza contra Manoel Felicio de
Souza, 1940.
116
Contudo, na sessão dos autos, lê-se: “acontece, porém, que o seu marido ha
algum tempo vem se recusando a lhes prestar os alimentos que vinha efetuando”. No
processo impetrado contra Manoel é inteligível que as problematizações acentuaram-se em
virtude do esposo ter se eximido da responsabilidade de mantenedor familiar; aspecto
curioso é que, mesmo anos separados de cama e mesa, sem o conhecimento do
judiciário, o senhor Manoel assistia a família por ele abandonada. A este respeito dona
Laura se expressava na página 480 de suas anotações, da forma seguinte: “mulheres são
bastante prejudicadas em qualquer forma de separação, mas em linhas gerais são
contempladas quando o assunto é pensão do esposo, pois não apenas a legislação exige que
sejam provedores como também a sociedade, por isso exigirei pensão”.
160
Variados
aspectos históricos são importantes nestas passagens: em primeiro lugar, a concepção de
que as mulheres eram prejudicadas [nos campos moral e social], mas favorecidas nos
julgamentos de pensão alimentícia. Não se sabe como as conseguiu, mas a autora tinha
informações precisas do que acontecia no poder jurídico; a título de esclarecimento, leia-se
que dos 18 processos de provisão localizados no arquivo do tribunal de justiça, em apenas
um a mulher não conseguiu veredicto favorável, o que foi promovido por Maria Luiza
Alves contra Mario Pereira Alves, em 1940.
161
Reforça-se nessa ocasião o fato de que,
além de articular muito bem este domínio, a personagem entendia quais as exigências e
responsabilidades que recaíam sobre os homens [provisão familiar] tanto no interior da
legislação quanto no cotidiano. Em segundo lugar, ao compreender que cabia aos homens
responsabilizar-se pelo sustento familiar e consequentemente a justiça nesse ponto oferecer
em quase todos os casos veredicto favorável às mulheres, a senhora Laura possuía
expressiva consciência de si ao escrever em momento em que se encontrava separada
por conta própria que exigiria do seu esposo o pagamento de pensão alimentícia; enfim,
em todos os parágrafos de seus manuscritos mostrava-se ciente de suas ações.
Demonstrava de maneira inteligível como era possível entrar e sair das estruturas em que o
direito e a própria sociedade lançavam as mulheres; no entanto, fazia questão de
demonstrar, por exemplo, que conhecia o perigoso terreno da separação de corpos e bens,
mas também como sobre a ruptura seria possível conseguir algum ganho. Tomando como
base as tramas em análise, nenhum dos consortes, no interior dos autos de provimento,
propunha a possibilidade de desquite. Dentre outras razões, os custos compreendem-se
160
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 12 de agosto de 1939.
161
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Luiza Alves contra Mario Pereira Alves contra,
1940.
117
como importantes para que decidissem viver às margens dos entendimentos judiciais.
Além dos expressivos custos, a condição de desquitada (o) em nada mudava o seu status
quo. Argumenta-se com isso que ambos nunca mais poderiam constituir família legalmente
reconhecida, não poderiam contrair segundas núpcias em vida do consorte e eram
estigmatizados por parte da sociedade.
A requerente Laura observava em seu diário: não ha sentido logico entrar com
processo de desquite no Brasil, é caro allem do cansaço da briga nada absolutamente se
ganha, pois os filhos serão expurios, não poderei formar outra familia e nem tam pouco
cazar novamente, assim se nada muda foi melhor pra mim me separar por minha conta e
conseguir um aucilio allimentar sem a presença da justiça”.
162
As pessoas em análise liam
detalhadamente as exigências impostas pela sociedade de que faziam parte e assim sendo
os argumentos que procuravam explicar por que preferiam formas próprias de “divórcio” a
recorrer à única possibilidade legal existente [o desquite], sempre argumentavam em cima
de um mesmo eixo: a inexistência de mudanças sociais e morais para si e sua família.
Quando o assunto tratava de separação conjugal procurava-se medir os ganhos e as perdas
então, se nada mudaria com o desquite além de se gastar mais, diversas pessoas preferiram
fazer a ruptura a seu modo.
Os que articulavam os seus “divórcios” davam ainda uma outra dimensão à
escolha da ruptura reforçando o argumento de que cada um provocava mudanças, arranjos
e rearranjos em uma velocidade que dependia das necessidades e particularidades pessoais.
Indispensável para aqueles que promoviam separações [ao seu modo] era reorganizar a
vida, isto é, construir meios de sobrevivência que não se distanciavam dos que decidissem
pelo desligamento com o aval do Estado. Dessa forma, as margens de negociação tinham
de surgir ou ser promovidas, porquanto era premente trilhar caminhos novos e apropriados
ao jogo da sobrevivência sem a presença do par conjugal. Laura anotava que “há de se ter
força e coragem para fazer o que vou fazer”,
163
ou seja, referia-se ao poder que os
separados tinham de conquistar para conseguir enfrentar as representações que recaíam
sobre eles e que muito se encontravam traçadas. Desta maneira compreendia, de modo
inteligível, como deveria enfrentar as críticas que a sociedade lhe faria, assim como
estabelecer continuadas reelaborações em seu modo de vida; de tal sorte, era de suma
importância enfrentar um cotidiano que setores conservadores desejavam imutável.
162
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 29 de agosto de 1935.
163
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 05 de janeiro de 1935.
118
Em inúmeras partes de suas anotações, a autora afirmava que o Estado e a
Igreja tinham o desquite como forma de manter o controle ante a sociedade, sendo que
“incontaveis de minhas conterraneas não sabem os effeitos e o que de fato representa um
processo de desquite reccorrem a este modelo generico de separação, não sabem as pobres
coitadas que nada mudará, não regularizará a situação, não normatizará, a moral e nem a
honra social é apenas uma forma que a egreja e o estado encontraram para não nos deixar
livres”.
164
A consciência de si e a do complexo mundo que a circundava é tão notória que a
impetrante sabia diferenciar e criticar as mulheres que se desgastavam com autos de
desquite, pois afirmava que a sua situação pouco mudaria, isto é, compreendia que a
condição de desquitada não regularizava a situação moral ou social de nenhuma delas e
todas as belenenses deveriam interpretá-lo como “a permanência e a consolidação da
illegalidade do ser em sociedade”. Entendendo que as pessoas se forjam nos espaços da
experiência é útil reafirmar a noção de que a senhora Laura tinha de maneira nítida que
qualquer forma de desligamento a colocaria, tal como aos filhos, em situação ilegal. Com
isso, de muitos casamentos constituídos religiosa e civilmente, os cônjuges ou um deles
recorriam à alternativa da ruptura por conta própria para evitar embaraços emanados do
judiciário, mas também por nada mudar em um ou outro. Para melhor entender em quais
bases e razões se elaboravam as tramas sem a presença do desquite a se levar em conta
que se avaliava detalhadamente as perdas e os ganhos nos domínios dos valores morais,
sociais e econômicos, mas também nos das afetividades e desejos.
Por exemplo, nos dois casos atrás analisados o prementes as preocupações
frente à subsistência e menores as da falta do companheiro. Dessa maneira, sobreviver em
certos casos era mais importante do que sustentar um sobrenome. Desta maneira, tem
lugar a concepção de que não seria o desquite ou o divórcio em si que dariam fim às
relações conjugais como queria impor o pensamento positivista do Clero belenense, que
através de uma brochura intitulada “O divórcio”, publicada em 1915, expunha o seu dogma
a respeito do instituto; o tulo era “A certeza de que o vinculo é indissoluvel amaina
muitas tempestades”, onde se expressava: “Poderiamos entrar em analyse do que é o
noivado entre nós, em que as duas creaturas que se destinam á vida em commum, não
abrem os corações um para o outro e que, a bem dizer, se vão conhecer depois de casados,
começando, então, muitas vezes, por tempestades, suffocadas na intimidade do lar, a
verdadeira união das almas. (...) Se os segredos da vida domestica viessem a publico,
164
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 29 de agosto de 1935.
119
quantos exemplos, milhares delles, poderiam ser invocados contra o divorcio, apontando-
se familias venturosas que realizaram seu fim na vida, mas que, com certeza, se teriam
desfeito numa hora de irritação, se a porta do divorcio estivesse aberta para isto”.
165
Representa-se uma imagem de casamento perfeito que não seria desestruturado em
hipótese alguma, isto é, o matrimônio tinha o poder de amainar as intempéries surgidas no
bojo do dia-a-dia, pois que “se os segredos da vida doméstica” vissem a público as razões
contrárias ao divórcio seriam inúmeras. Mesmo não se desejando afirmar que em diversos
casos o consórcio não tivesse tido esta serventia, generalizar é que parece falho, porquanto
o articulista da brochura se “esqueceu” de considerar que expressivos segredos da vida
doméstica também vieram à tona para explicar a razão da separação de cama e mesa, como
também as do desquite.
O interesse básico do documento em estudo reside em expressar o conúbio
enquanto ato indissolúvel. Vislumbrava-se que, mesmo com o desquite, os nculos
matrimoniais permaneciam o que privava os desligados de diversos movimentos em
sociedade dinúmeros separandos realizarem “seus próprios divórcios”. Na página 53 do
diário de dona Laura, a autora expressava as lições impostas aos desquitados: “1º não pode
constituir outra familia legal, pois não pode cazar novamente; não pode se expor na
sociedade; 3º não pode expor os filhos na sociedade; 4º não pode expor os parentes; 5º não
pode expor conhecidos; 6º é preciso se afastar dos parentes, dos conhecidos e dos amigos e
qualquer coisa que possam revoguesse agora”.
166
A autora desse registro não desejava
transformar-se em simples coadjuvante de um mundo [o dos desquitados (as)] que tolhia
de forma rigorosa quem nele se encontrava; ao contrário, o que se percebe aqui é
indiscutivelmente a presença de uma mulher que possuía interpretações claras do que
representava a ruptura de corpos e bens, notava que o mundo social para uma desquitada
teria de ser reelaborado, pois cobranças duras lhe seriam realizadas cotidianamente.
É neste sentido que convém dialogar com Purificacion Barcia Gomes. A autora
explica que se fosse possível tomar da instituição do casamento e da separação uma
amostra e colocá-la sob uma lente, à semelhança de um fragmento de tecido humano visto
ao microscópio, aquilo que antes parecia homogêneo revelar-se-ia como um conjunto de
165
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.
166
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 29 de agosto de 1935.
120
estratos superpostos de origens, funções e espessuras diferentes.
167
Ao ser executado um
corte transversal nos domínios do matrimônio, observa-se como a metáfora utilizada por
Gomes é bem aplicada ao pensar-se o instituto em Belém. Nos casos em pauta, o consórcio
não era lugar privilegiado à realização de uma série de ideais como os de segurança,
afetivos, morais, sociais; assim, se por um lado ninguém está autorizado a afirmar que a
ruptura na ausência do judiciário não vertia angústias e insatisfações, por outro o
argumento centra-se na concepção de que, ao sentirem-se os sinais de desinteresse ou de
inviabilidade de uma convivência e assistência mútuas, as pessoas buscassem segurança
para si de alguma maneira como exemplo, com outros parceiros – por meio de processos
de desquite, mas também promovendo separações a seu modo.
Se se vem argumentando que determinados indivíduos preferiam o “divórcio”
por conta própria à separação jurídica, quais seriam as atitudes desses dois grupos em
sociedade? Dona Laura anotava em seu diário com o título “lições aos que não se
desquitam legalmente” as orientações seguintes: “1º não pode constituir outra familia legal,
pois não pode cazar novamente; não pode se expor na sociedade; não pode expor os
filhos na sociedade; não pode expor os parentes; não pode expor conhecidos; é
preciso se afastar dos parentes, dos conhecidos e dos amigos e qualquer coisa que
possam revoguesse agora”.
168
Em relação às formas de separação nota-se uma precisa
destinação social, uma vez que ela não distinguia absolutamente nada em vantagens ou
vitórias entre um e outro modelo como anotava na mesma página 132: “no futuro para que
quem ler estas páginas tenha melhor noção do que penso do desquite e a separação
aleatória apenas irei transcrever o que escrevi na página 99, em 29 de agosto de 1935”.
Mais conveniente seria o separar-se sem a presença da justiça. Percebe-se que dona Laura
alocava em um mesmo patamar social de imposições os desquitados e aqueles que
promoviam rupturas na ausência do judiciário, por isso acentuava mais à frente que sua
vida conjugal mostrava-se bastante conturbada e que decidiria, em tempo oportuno, pela
separação sem a presença do judiciário.
Embora os itens sejam incisivos, o fato a ser considerado é que foram escritos
por duas vezes em dias e páginas distintas e certamente sua autora tinha por objetivo
enfatizar como se igualavam as duas naturezas de separação. Não se deve deixar de notar
167
GOMES, Purificacion Barcia. “Separação contigencia do casamento?”. In: PORCHAT, Ieda. (Org.).
Amor, casamento, separação: a falência de um mito. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 127.
168
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 21 de fevereiro de 1936.
121
as palavras taxativas que buscavam o convencimento e por isso é importante ter-se cuidado
ao lê-las; ainda que o item um expresse, efetivamente, uma impossibilidade às segundas
núpcias e conseqüentemente à constituição de uma família legal, nota-se que nos demais
certo exagero no uso do presente do indicativo do verbo poder porque, diante dos
parentes, amigos e conhecidos ao contrário do que sugere a senhora Laura eram os
principais portos onde desquitados e separados por conta própria se refugiavam aquando da
ruptura conjugal, enfim, pais, irmãos, tutores, filhos, utilizavam-se nos momentos de
instabilidades emocionais oriundas do fim de um consórcio. Daí ressalve-se que apesar do
respeito pala acuidade de percepção é mister não generalizar os posicionamentos da autora;
aliás, tornar comum sua opinião é passar por cima das contradições e multiplicidades que
afloram das experiências cotidianas dos envolvidos. Cada um possui códigos alternativos,
mas os mesmos apenas são perceptíveis em suas sensibilidades, na interpretação dos
discursos elaborados por quem se acha nas histórias que se apresentam. Nota-se que o uso
enfático do presente do indicativo do verbo poder era exagero ou jogo de palavras, assim
a autora desses registros expressava de modo muito coerente os domínios que deveriam
organizar a sua vida. A exeqüente do processo de provisões pensava previamente o modo
de agir em relação ao seu matrimônio pois escrevia, em 21 de fevereiro de 1936 na página
132, que em “tempo certo” decidiria pela separação de corpos e bens, mas sem a presença
do judiciário. No entanto, ela veio a acontecer apenas no ano de 1938, segundo dados da
ação de alimentos. De qualquer forma, tratava-se de alguém que sabia decidir e diferenciar
os passos necessários que deveriam ser dados quando o assunto era a quebra dos laços
conjugais.
Quanto ao uso de parentes e amigos, bom exemplo há nas tramas de Hugolina e
Wladimir, o tutor deste, Raimundo, forçou o casamento e ao se separar por conta própria, o
esposo residiu durante 15 dias na casa de sua irmã; nas de Laura e Manoel o filho, Wilson
Soares, produto do matrimônio, foi exemplarmente utilizado para se conseguir pensão
alimentícia, pois afirmava-se em juízo que sendo a suplicante miserável no sentido da lei
não tinha como “viver com seu filhinho sem a ajuda de seu esposo, e como ele se recusa
obstinadamente a fornecer-lhes o necessario, vem contra ele propor a presente ação de
alimentos e em virtude da qual deverá ser condenado a lhe dar a prestação alimenticia que
Va. Excia. fixar, na base de seus salarios”.
169
169
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Laura Soares de Souza contra Manoel Felicio de
Souza, 1940.
122
Laura ao ser cobrada sobre o porquê não impetrava processo de desquite, pois
facilmente o ganharia se alegasse ser o esposo mau provedor, a resposta revela a grande
força que a autora possuía: “não tenho interesse no desquite, pois elle nada mudará a minha
condição”; Laura compreendia que uma melhor situação era a de conseguir sobreviver com
o filho, ou seja, ter minimamente como se alimentar. Nesse caso considerava que o
desquitar-se lhe oferecia a mesma coisa que a “mera” separação, mas ambas seriam
incapazes de lhe dar “a dignidade perdida”. Percebe-se e reforça-se o argumento de que
diversos casais não faziam distinção entre o estado de desquitado e o de separado por conta
própria, o que interessava era medir pormenorizadamente as vantagens e desvantagens de
uma e outra forma de ruptura. A senhora Laura percebia muito bem esta condição social
imposta, uma vez que perguntava: “que vantagem o desquite legal pode me offerecer?”
Avaliava em detalhes que benefícios lhe adviriam socialmente na posição de desquitada e a
resposta era taxativa: “nenhuns”. Assim sendo, se nenhuma vantagem seria possível, não
havia sentido enfrentar um auto desta natureza, porque “o meu filho será tachado filho de
uma desquitada, ou filho de uma puta, não mais conseguirei uma familia que seja vista
como honrada, não conseguirei cazar novamente”. Dessa forma, a destinação social era
uma preocupação premente, porquanto envolvia interesses de família que expunham filhos,
parentes e honra.
Com certeza membros da família encontravam-se envolvidos nas separações de
cama e mesa sem a presença do judiciário, aliás, eram os que ofereciam segurança em
momentos conflituosos, mas também se apresentavam como capazes de elaborar e acentuar
tensões, como o pai de Hugolina que prometeu tirar a vida do estudante de medicina,
Wladimir Lobato Paraense. Não estando livres de outras formas de pressão, casais
“divorciavam-se” a seu modo; no entanto a família não se eximia das pretensões,
responsabilidades, irresponsabilidades, desejos, interesses e posicionamentos dos cônjuges
envolvidos. Dessa maneira, pelo que os documentos possibilitam interpretar, familiares
desempenhavam papel de julgadores ou, como se queira, o de fiscalizadores de seus
membros em conflito. De acordo com as observações de Jacques Donzelot,
170
estabelecia-
se com a família momentos de confidência, de confiança, de observação atenciosa de um
para com o outro, sendo que estes desdobramentos lhes seriam devidamente cobrados
conforme suas ações em sociedade. As reflexões do autor mostram-se coerentes, no
entanto é necessário afirmar que a vigilância familiar nem sempre se fazia eficaz no
170
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: GRAAL, 1986.
123
sentido desejado; as múltiplas precauções não asseguravam que quaisquer de seus
membros realizassem o esperado por seus pares.
Laura mais uma vez denunciava, em seu diário, a existência de pressões
familiares como as de suas tias que a orientavam “a viver em paz com o marido”; no
entanto questionava em notas datadas de 30 de março de 1936: “minhas tão queridas tias
filhas de meu pai não sabem o quanto a vida é dura com o senhor Manoel Felicio de Souza
é dificil viver com alguem que não lhe offerece nenhum horizonte de melhora, minha
separação já esta consumada ellas é que não sabem e nem o Felicio e será por minha conta
propria.”
171
Em qualquer forma de ruptura a família estará envolvida de alguma maneira,
dando conselhos aos que desejavam romper com os vínculos conjugais ou mesmo sendo
alvo de preocupação aos que desejavam terminar uma convivência que não mais fazia
sentido. De tal sorte, nas tramas em pauta nota-se a existência de deslocamentos constantes
de interesses sociais, ou seja, ao sofrer pressões [dois anos antes da separação] Laura
alocava com precisão seu desejo de viver separada do esposo e reforçava que não iria
indispor-se ou cansar-se nos corredores do judiciário paraense com processo de desquite.
Outro exemplo de separação sem a presença do judiciário e que envolveu a
família foi a ocorrida em 06 de abril de 1938, publicizada um dia depois pelo periódico “O
Estado do Pará”. A matéria intitulada “Parece definitivamente separado da esposa, por
incompatibilidade de gênios”, tratava das tensões que envolveram os cônjuges Mario
Pereira Alves, motorneiro 349 e Maria Luiza Alves que tinham do consórcio dois filhos
menores e residiam na Travessa da Vileta nº 1126. As tensões que impossibilitaram a vida
sob o mesmo teto iniciaram quando a esposa deu-se a alçar vôos nos arrabaldes dos limites
conjugais ou pelo menos quando passou a ter amizade com uma professora normalista [sua
vizinha] começando a freqüentar, na companhia desta, as salas de cinema da cidade
principalmente a do cine “Independência”.
172
No primeiro desligamento, “uma cunhada de
Maria fez a reconciliação do casal”, assim, na ruptura sem a presença do judiciário, a
família interveio e promoveu a união dos consortes. Contudo as dificuldades não foram
amainadas e novas incompatibilidades vieram à tona como, por exemplo, a que sucedeu ao
abandono do lar conjugal realizado por dona Maria, deixando para trás casa, marido e
filhos. Após esta separação, Mario foi agredido moral e fisicamente pela esposa, pela
professora normalista e por José Ramos Parente, paraense, casado, 25 anos, carpinteiro,
171
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 30 de março de 1936.
172
“O Estado do Pará”. Belém, 06 de abril de 1938, p. 03.
124
cunhado da normalista. Ao pararem na Central de Polícia para resolver a rusga, o senhor
Mario afirmou ao comissário de permanência “que não queria viver mais com a esposa,
esta lhe devolveu roupas e documentos que lhe pertenciam e separaram-se mais uma vez,
que talvez seja a ultima”.
173
Não se sabe quantas vezes os consortes se deixaram, o certo é que foi mais de
uma e todas sem a presença do poder jurídico, sendo a última bastante longa como
demonstra o processo de alimentos impetrado pela mulher em março de 1940.
174
As
documentações possibilitam afirmar, acertadamente, duas rupturas e todas nem mesmo
citam o desejo e muito menos a presença do desquite. Mas, mesmo importante, não é ao
fato da quantidade de separações e sim aos significados sociais que provocaram que aqui
se fará reparo. Em todos os desligamentos localizados [deste par] deu-se por justificativa
incompatibilidade de gênios à razão da separação por conta própria, porém tanto no campo
jurídico quanto no cotidiano este argumento é demasiadamente fugidio, podendo dar a
entender variadas possibilidades. Ao perscrutarem-se os significados do cotidiano do casal
Mario e Maria fica inteligível que a justificativa incompatibilidade de gênios” emanou de
posturas conflituosas em torno do que seria um casamento normativo; assim sendo é
latente que o esposo negava-se a compreender como naturais as saídas da mulher à noite às
salas de cinema retornando ao lar conjugal somente pela madrugada no “bonde
cognominado de Christo”. Por seu turno, a esposa buscava conduzir o matrimônio mais ao
lado da amiga de película do que da família, tanto que não pestanejou em abandonar o
esposo, a casa e os filhos. Paradigma trivial nas separações na ausência do judiciário como
também naquelas em que este se fez presente é a concepção de que os consortes viram
brechas no consórcio e apossaram-se delas; de algum modo percebeu-se que as ações dos
companheiros, os sentimentos, os movimentos encontravam-se em descompasso do
investimento de um e outro. Davam-se brechas, mas também estas eram forjadas. A
senhora Maria, por exemplo, lançou mão da ausência do esposo à noite para se divertir.
Como afirmou Michelle Perrot, as mulheres souberam muito bem utilizar os espaços que
lhes foram “deixados ou confiados” para exercitarem suas influências nos domínios de
poder.
175
173
Idem.
174
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Luiza Alves contra Mario Pereira Alves, 1940.
175
PERROT, Michelle. Sair”. In: As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005, pp. 279 /
326.
125
Estes vôos para além do que era desejado como norma foram certamente uma
das razões do fim da convivência desse casal sem a presença do poder jurídico. Tanto que
na condição de réu de processo de prestação de alimentos, o senhor Mario Pereira Alves,
juntamente com o seu advogado, consideravam não acreditar ser possível que um juiz
desse veredicto favorável à esposa, pois foi “ella quem adulterou o lar conjugal e para
dentro do santo lar conduziu instabilidades”.
176
Ao ser perguntado pelo juiz porque não
regularizou sua condição por meio de um processo de desquite, o impetrado mostrava-se
taxativo ao considerar que “uma acção desta natureza vale apenas para se cansar, não
regularizando em nada a vida, pois a condição de desquitado e a em que me encontro nada
muda a minha sorte dentro da sociedade”.
177
Um pouco mais à frente, acentuava que “meu
desejo era o de formar uma familia moral, salubre, honrada, respeitada, mas isso não me
foi proporcionado por minha mulher e nem tão pouco o será na condição de desquitado ou
de separado por mim mesmo”.
178
Mais um que não fazia distinções entre o que o poder
jurídico considerava normatização [o desquite] e a separação por conta própria. De forma
evidente, mais uma vez se denota que em uma ou outra ruptura, muitos decidiam por
elaborar, ao seu modo, os próprios “divórcios”.
Assim, a formação das pessoas está diretamente interligada ao social e ao
cultural, pois surgem de ações que apenas podem ser compreendidas se for analisada a sua
operacionalização no cotidiano. Uma vez assumido isso, enfatize-se que os indivíduos
possuíam visão ampla das tramas que procuravam dar às suas vidas e ao mesmo tempo
elaboravam a consciência do que era ser desquitado ou separado de cama e mesa sem a
presença da lei. Em suma, ao não concordarem com os códigos da separação ditos à época
legais, passaram a defender-se por meio da construção de símbolos próprios, [a por conta
própria], que não se encontravam escritos em nenhum lugar, mas que funcionavam de
forma eficiente quando colocados em prática. Não se pense, no entanto, que as estratégias
limitaram-se a este domínio; a experiência dos sujeitos demonstra outras formas de agir
contidas apenas na prática cotidiana, como os diversos estratagemas para se provar
paternidade. Em conformidade com isso, os indivíduos elaboravam práticas, códigos e
símbolos que tinham como propósito construir caminhos alternativos aos que se negavam a
submeter-se às leis da época.
176
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Luiza Alves contra Mario Pereira Alves, 1940.
177
Idem.
178
Idem.
126
Havia, no entanto os que possuíam sistemas de valores próximos aos da Igreja e
do Estado: a proteção da família, a moral e os bons costumes, um casamento hígido, mas
que deles se distanciavam, pois não estavam dispostos a manter a unidade familiar a
qualquer preço. Não se deseja aqui afirmar que as preocupações referentes à prole, por
exemplo, arrefeciam ou tornavam-se secundárias quando se optava pela separação de
“cama e mesa” na ausência do poder jurídico. Reafirma-se que em boa parte das
preocupações, nesta forma de ruptura dos vínculos conjugais, a família era alvo de
preocupação, mas igualmente avaliava-se que não compensava manter uma falsa unidade
familiar no bojo de um casamento falido. Desta maneira, se a família ficaria cerceada com
o desquite ou com qualquer outra forma de término da convivência, não havia sentido
lógico, como afirmava o senhor Mario Pereira, em: “gastar dinheiro com processo de
desquite”.
179
Esta forma de pensar impunha um conjunto de medidas que foram
delineadas em páginas passadas como a indispensável proteção de si e da família diante
dos ataques da sociedade; [enfatize-se], quer se recorresse à ruptura jurídica quer à
separação por conta própria, os separandos teriam obrigatoriamente que reelaborar e
enfrentar as mesmas dinâmicas no dia-a-dia.
Dessa forma, os que se negavam a impetrar processo de desquite por julgarem
que nada mudaria em suas vidas cotidianas precisavam fazer mediações na dialética de
suas existências; como ressaltou Michel Vovelle é importante o historiador saber perceber
as “condições objetivas da vida dos homens e a maneira como eles narram e mesmo a
vivem”.
180
Tomando como base a tese do autor e conjugando-a aos dramas em pauta, nota-
se que a decisão por uma separação sem a presença do judiciário estava repleta de sistemas
de valores que atuavam no sentido de melhor forjar a sobrevivência em sociedade, isto é,
ao decidirem por não recorrer ao poder jurídico, as pessoas tinham as suas razões as quais
se mostravam suficientemente fortes para enfrentar os empecilhos que a sociedade lhes
pudesse impor. É lógico, como se vem argumentando, que a objeção ao desquite era
complexa, mas os que a seguiam tinham fortes motivos para fazê-lo.
Nesse caso retorna-se a uma das perguntas iniciais: porque diversos consortes
separavam-se sem o conhecimento do judiciário? Procurou-se argumentar que as razões
179
Idem.
180
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 2004.
127
eram variadas. Quando as rupturas vinham à tona e as que partiam dos homens, o adultério
feminino era publicizado como a principal razão, visto que nestes momentos nevrálgicos
fazia-se necessário dar respostas pertinentes e imediatas aos vizinhos, aos amigos, aos
parentes, aos agregados; por isso recorrer ao desquite mostrava-se um modo lento demais
às respostas prementes que se desejava oferecer a quem as cobrava. Quando a separação na
ausência do poder jurídico partia das mulheres, a principal razão era a acusação de o
marido ser mau provedor. Também se defende a tese de que um processo de desquite
como analisado no capítulo anterior era oneroso a muitos consortes, além de (como
reiterado) não diferenciar status social e moral dos que se separavam formalmente.
Nada mais se dirá. Quis-se tão somente ressaltar os significados social, cultural,
moral e político que emanavam das separações das quais o poder jurídico não tomava
conhecimento.
2. VIVÊNCIAS E SEPARAÇÕES AMÁSIAS
“A grande verdade é que desejam nos lançar em um lodo
que nós amaziados não nos sentimos lançados ou melhor
não nos lançamos e nem nos deixamos lançar: estou falando
da immoralidade, da desonra, do desprestigio familiar, da
inferioridade moral do lar. Os nossos lares ao contrario do
que querem alguns tem tudo isso invertido.
O lar do amasiado não deve nada ao do casado no papel.
Nós nos unimos e nos separamos na mesma proporção dos
consorciados no papel, isso prova que papel não elabora e
nem consolida a união entre duas pessoas”.
(Estas análises foram realizadas em 1916 pela senhora
Maria Jacyntha Felix e anexadas em 1921 ao processo de
investigação de paternidade impetrado pela autora contra
Vicente Pereira Leal, 1921).
Na cidade de Belém de 1916 a 1940, era comum encontrar discursos que
generalizavam a vivência amásia. Narrativas que a taxavam como disseminadora da
prostituição, dos maus costumes e de pouco durar, eram algumas delas. Mas o desejado
aqui é que as observações acima demonstrem que houve desafios ao modelo familiar ideal,
pois a senhora Maria Jacyntha deixou outras impressões acerca da união senão de seu
grupo social, pelo menos sobre as proximidades que mantinha com o seu companheiro,
porquanto procurava demonstrar que entre amasiados havia técnicas e táticas de
convivência, além de funções, normas e valores a serem seguidos. Por isso, a autora das
128
reflexões considerava que um domínio era o que buscava atirar as convivências amásias na
lama, e outro totalmente diferente era o dos amasiados se sentirem ou mesmo lançarem-se
nela; contra esta forma de pensar dona Jacyntha argumentava que o lar de amantes
continha tudo o que se exigia para o bom caminhar da honra e prestígio da família, em
suma, como afirmava a própria “amásia”: “o lar do amasiado não deve nada ao do casado
no papel” e a seguir, em relação às uniões e separações, afirmava: “nós nos unimos e nos
separamos na mesma proporção dos consorciados no papel, isso prova que papel não
elabora e nem consolida a união entre duas pessoas”.
Desafiava-se o modelo higiênico desejado de casamento. Em outros termos,
equiparava-se o amasiamento ao matrimônio de papel passado; aliás criticava-se este ao se
afirmar que a assinatura de um “papel” não tornava sólida a vivência entre duas pessoas.
Nota-se que as palavras provinham de pessoa detentora de expressiva consciência do que
era ser amasiada ou casada. Destarte, não se deve ter como único modelo a família oriunda
do matrimônio civil ou religioso, uma vez que pelo menos na vivência de Jacyntha a
relação equiparava-se àquele desejado paradigma. Afinal de contas, nem sempre o
casamento era o fim social de um homem e de uma mulher que aspiravam viver sob o
mesmo teto, porquanto se pode observar – por meio de variadas leituras documentais – que
diversas convivências [amásias] duravam e se rompiam tanto quanto os matrimônios ditos
à época legais.
Entretanto, uma observação é de suma importância para que se evitem
generalizações: a vivência e a separação amásia era passiva de gradação, ou seja, seria
um erro infantil e grosseiro, além de se inverter o preconceito, se esta forma de
constituição familiar fosse localizada em espaço cristalizado e imutável, tanto que a autora
do documento que serve como epígrafe reconhecia nelas um constante movimentar ao
afirmar que os casais amásios se deixavam e se uniam na mesma proporção daqueles que
haviam optado pelo consórcio; desta forma, também não se pode tomar o vínculo de dona
Maria Jacyntha com o senhor Raymundo como modelo dos casais que não consumavam
relações pelo sacramento do matrimônio ou pelas núpcias civis. O que se quer afirmar é
que ser amasiado é uma circunstância tanto social quanto cultural que exigia bom poder e
conjunto de argüições para conseguir defender-se no interior de um mundo que não
percebia aquele estado como legal. Em suma, os que desejassem viver juntos, porém sem a
presença das alianças, teriam de estar adequadamente municiados para enfrentar uma
sociedade exigente.
129
Na cidade de Belém, existiam discursos [como os da Igreja Católica] que
buscavam mostrar que a vivência considerada ilegal formava-se e desestruturava-se sem
inconvenientes, sem problemas ou qualquer tensão, isto é, que as uniões faziam-se e
desfaziam-se conforme o sabor dos ventos, pois a inexistência do casamento facilitava
tanto o início quanto o final destes laços afetivos. Por não formarem família legítima, os
amantes eram secundarizados pelos discursos conservadores como os publicados no jornal
“A Palavra”, onde se perguntava: “A uma amasia pode-se chamar esposa?A resposta foi:
“De modo nenhum. Assim como ninguém que tenha juizo chama oiro ao latão, apezar de
se parecer com elle, assimum desatinado é que dará o doce nome de esposa áquella que
não passa de uma réles amasia. A esposa tem direitos sagrados, direitos que lhe são
reconhecidos por todas as leis divinas e humanas. Agora a amasia que direitos possue?”.
181
A Instituição deixava bastante claro que o ser amásia ou esposa distinguia-se
profundamente e em todos os sentidos que se pudessem pensar. Pode-se considerar que o
raciocínio da Igreja Católica mostrava-se coerente e expressivo no bojo da sociedade.
Como analisado em páginas passadas, ela elaborava bem os jogos de mentalidade na ânsia
de não deixar o princípio do sacramento marginalizado; no que diz respeito aos vínculos de
amasiamento, valia-se do mesmo pensamento, isto é, ao afirmar que a esposa era detentora
de “direitos sagrados”, a Igreja articulava-se com as táticas de mentalidade contra as
amantes, pois colocava-as em posição secundária. Em outras palavras, a prática de
amedrontar os indivíduos que não caminhassem conforme os seus princípios como o do
sacramento mostrava-se recorrente, pois o principal objetivo da Igreja era o de fazer crer
que o inimigo concentrava-se no “eu”, isto é, tratava-se de convencer a todos que as ações
pessoais conspiravam de modo contrário às da sociedade; a estratégia passava pela
argumentação de que nada havia de mais difícil de se conquistar do que o domínio sobre as
vontades individuais tanto que, no seio desse mesmo espírito, a Igreja observava: “não
sabemos porque pessoas insistem em amasiar-se se a egreja offerece a legalidade diante de
Deus e da sociedade, esclarecemos que estão caminhando para o inferno”.
182
Enfim, as
práticas da mentalidade expandiam-se em variados ângulos, por exemplo, as vivências
balizadas fora dos princípios do sacramento católico casamento civil e amasiamento
eram caracterizadas como ímpias e que se fragmentavam facilmente porque não tinham a
“presença de Deus”.
181
“A Palavra”. Belém, 07 de janeiro de 1917, p. 03.
182
“A Palavra”. Belém, 20 de janeiro de 1917, p. 02.
130
Mais um caso, dentre diversos, que pode reforçar o posicionamento desejado
pelo discurso do referido periódico foi publicado em 14 de maio de 1916, sob o título “Um
amasiado poderá chamar-se bom homem?” O conteúdo discorria: “De modo nenhum. Se
elle está continuamente em lucta com a norma de todo o bem que é a Lei Divina, como se
pode chamar bom homem? Case-se segundo os preceitos da Religião, e depois poderá
ter direito a qualificativo tão honorifico”.
183
Observa-se novamente a utilização da
mentalidade, pois o amasiamento era interpretado pela Igreja Católica como uma luta da
desordem contra a ordem do casamento, de tal sorte que as opiniões que recaíam sobre as
práticas e as vivências das relações amásias mostram-se repletas de significados como o de
que formavam família considerada espúria. Para esses recomendava-se o casamento
religioso, visto que esta seria a única forma de celebração que legitimaria uma união que
iniciou corrompendo valores e normas sociais. Veja-se que, se por um lado a Igreja a
compreendia como enfrentamento às leis divinas, por outro o Estado afirmava que suas leis
não incorporaram a família amásia como unidade moralmente correta o que tornava
qualquer conjunto de pessoas formado sem a celebração do casamento civil um ato
espúrio.
184
Do analisado na sessão 3 do capítulo 1, o desquite significava apenas a
separação de corpos e bens de um grupo: o dos casados legalmente. Se os matrimoniados
possuíam meios legais para se separarem, como esta cartografia se organizaria entre os
ditos amasiados? Não se podem perceber estas rupturas como mais fáceis ou menos
dolorosas ou que os não casados formalmente não exigissem posturas similares às dos
matrimoniados, como a da fidelidade recíproca, conforme será analisado a seguir. Se o fim
da convivência sob o mesmo teto [entre os casados] gerava pressões inequívocas, estas
também se faziam sentir entre os amasiados; nesse caso será ilusório lançar a convivência
[amásia] nos recônditos da insignificância. Oficiais de justiça, jurisconsultos, advogados,
testemunhas constituídas, enfim, o judiciário e o cotidiano conheciam muito bem as
complexidades que envolviam as ações de pensão alimentícia e de investigação de
paternidade onde mulheres reclamavam auxílios, alimentos e partilhas de bens; por outro
lado, seus companheiros defendiam-se negando, mas também confirmando suas “relações
maritais” e os direitos das companheiras a bens móveis e imóveis, como seanalisado no
capítulo seguinte.
183
“A Palavra”. Belém, 14 de maio de 1916, p. 03.
184
“O Estado do Pará”. Belém, 21 de janeiro de 1917, p. 04.
131
É absolutamente enganoso considerar que os amasiamentos possuíam menor
complexidade ao tempo da vivência sob o mesmo teto ou que estas uniões e separações se
organizavam de forma aleatória, enfim, não era em virtude da falta do casamento que as
uniões se firmavam em simples, uma vez que problemas com filhos, parentes, amigos e
divisão dos bens também existiam nas rupturas entre amásios. A este respeito processo que
trouxe expressivas compreensões relativas à divisão de bens foi a investigação de
paternidade impetrada por Maria Conceição Alves contra Gregorio Leocadio Gomes.
185
Em 1920, a relação entre os amásios durava 10 anos, tempo que proporcionou, à custa de
muito trabalho, a acumulação de bens e a formação de uma pequena família, isto é, além
dos pais, dois filhos. O que chamou atenção neste auto foi o latente descontentamento da
amásia diante aos bens acumulados no decorrer de uma década de união, pois afirmava em
juízo não concordar com a divisão realizada por seu companheiro, porquanto havia “sido
claramente lezada na partilha”, isto é, a impetrante argumentava que se haviam
conseguido por meio de trabalho conjunto duas “modestas barracas”, então porque uma
delas não seria sua? – Nestes casos em particular é importante insistir que ações de
investigação de paternidade não se concentravam na justeza da divisão de bens, mas sim
no julgamento da naturalidade dos filhos, todavia era comum as mulheres que se sentiam
prejudicadas na partilha mencionarem de alguma forma este descontentamento. Dessa
forma Maria Conceição buscava conseguir algum ganho, mas não se deve desprezar a
estratégia usada: a de mostrar ao judiciário que a relação havia sido duradoura e que por
isso os filhos eram certamente de Gregorio.
Diversos casais amásios altercaram-se em processos de pensão alimentícia em
que as lutas se travavam sobre os bens constituídos: casas, mobílias, carros, dinheiro.
186
A
vida sob o mesmo teto mostrava-se complexa e nos documentos pesquisados
187
não é raro
encontrar ciúmes e vínculos paralelos com outros indivíduos, mas também casos de
alcoolismo, acusações de os homens serem péssimos provedores, injúrias e sevícias foram
alguns dos aspectos que permeavam o universo dos amasiados;
188
de tal sorte, nada de
185
Auto civil de investigação de paternidade cumulada com prestação de alimentos impetrado por Maria
Conceição Alves contra Gregorio Leocadio Gomes, 1920.
186
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Joana Pinheiro do Vale contra Edgar dos Santos Vale,
1940.
187
Referem-se aos diversos processos de desquite, pensão alimentícia, investigação de paternidade e jornais.
188
Auto civil de investigação de paternidade cumulada com prestação de alimentos impetrado por Maria
Conceição Alves contra Gregorio Leocadio Gomes, 1920.
132
diferente havia quando se comparava esta com as querelas que envolviam os legalmente
casados. O que levava alguns a pensar em diferenças entre as duas formas de constituição e
de fragmentação familiar? As influências da tradição, as da Igreja Católica, assim como
determinações do direito devem ser levadas em conta, ou seja, a Igreja e alguns
jurisconsultos julgavam que o casamento em si era suficientemente forte para conduzir e
superar qualquer problema surgido na vida conjugal; de tal modo, reduziam o matrimônio
a formas fixas não o percebendo como relação com determinações culturais e sociais
móveis. Não obstante, os segmentos que pensavam desta maneira cometiam um erro
básico: o de procurar circunscrever o sócio-cultural em espaços imutáveis. Ao se
considerar que Joana, Edgar, Maria e Gregório fazem história, então é premente não perder
o horizonte de que grupos dinamizavam linguagens diferenciadas diante da união, da
família e do amasiamento.
Inúmeras vozes que negavam ser as alianças as norteadoras de durabilidade sob
o mesmo teto são encontradas na cidade de Belém das primeiras décadas do século XX,
assim como a concepção de que a ruptura entre amásios não deveria ser interpretada como
singela ou que não vertesse intrigas, sofrimentos e ressentimentos. Dona Laura, em 1932,
escrevia em seu diário que “se enganam os que pensam ser o casamento a segurança de
uma vida estavel, o que torna uma vida “sem percalços” são as negociações e os
compromissos que os pares firmam entre si. Esta qualidade é bastante presente na cidade
de Belém, isto é, casais de amásios que vivem 10, 15, 20 anos, este tempo não é
duradoiro? Depois deste tempo se separam pela morte, ou por que naturalmente o
compromisso tenha terminado, mas não pensem que as razões do termino não sejam
dolorozos”.
189
Seria pueril querer enumerar, em sua infinita variedade, os determinantes
que levaram a senhora Laura Soares de Souza a realizar tais observações, mas pelo menos
estas precisam ser consideradas: em primeiro lugar, a valorização de que a estabilidade
dependia de estratégias de negociações e de compromissos bem arranjados entre os casais
e não da consumação de laços matrimoniais e em segundo lugar, a idéia de que o término
da vida amásia era igualmente complexa e dolorosa. Para sustentar tais argumentos, Laura
anotava ser comum “encontrar na cidade” pares amasiados por um longo período e quando
a separação ocorria o motivo pautava-se na morte de um dos parceiros ou fim de
compromissos firmados assim, nada de “diferente quando se compara com o limite das
relações entre os matrimoniados”.
189
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 10 de fevereiro de 1932.
133
A observação do cotidiano e leituras dos diversos jornais que circulavam na
cidade podem explicar como a senhora Laura conseguiu estas informações. Por exemplo,
“O Estado do Pará”, em 1938, publicou tensões havidas entre João Baptista da Costa e
Raymundo da Cunha pela posse de uma mulher, Carmelina de Oliveira Pantoja, amásia do
primeiro, com o qual vivia 13 anos.
190
Nota-se que existiam relevantes proximidades
entre as anotações de dona Laura e as notícias publicadas nos jornais da cidade; desta
maneira não se pode generalizar que as vivências entre casais amásios fossem sempre
passageiras ou que nelas não existissem códigos de conduta como a da fidelidade e as
estratégias de negociação para se manter a vida a dois. Martha de Abreu Esteves, em sua
pesquisa sobre o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle-Époque, percebeu que a
justiça dispunha de somente três parâmetros de estado civil (solteiro, casado ou viúvo),
desta maneira desprezava o estado de amasiado, postura que provocava um distanciamento
entre a lei e a experiência dos indivíduos que formavam complexas dinâmicas sob o
mesmo teto.
191
Esta dimensão encontrava-se presente em Belém, embora, como no Rio de
Janeiro, nada indique que a vivência e a separação entre casais maritais fosse prática
passageira que não exigisse vultosos campos de negociação.
Uniões de vários anos e outras nem tanto, terminavam conforme as
necessidades, interesses e desejos dos envolvidos. Tensões entre amásios formavam-se por
razões diversas como a existência de amantes, partilha de bens, criação dos filhos; assim,
logicamente, o sentir-se traído, ter a honra manchada ou qualquer dos outros problemas
não estava contido somente entre os casados de forma legal, pois a fidelidade não se
circunscrevia apenas aos unidos pelo matrimônio; dessa forma é coerente pensar que os
amásios exigiam, entre si, o rigor da monogamia, não tolerando aventuras amorosas fora
dos circuitos desejados. Rupturas sentimentais entre amásios constituíam-se não menos
duras e complexas se comparadas às dos casados legalmente, porquanto as tensões,
pressões e disputas eram igualmente intrigantes e, quando a separação entrava em
funcionamento, fundamental seria vislumbrá-la no universo de cada um e não no que cada
um poderia querer a partir do fim da relação.
Os dramas de Estella Pereira de Souza com Clodoaldo Vieira, publicizados pelo
periódico O Estado do Pará”, chamam atenção. Ela, descrita como de feições simpáticas,
paraense, cor morena, com 20 anos, contraiu casamento com Edgar Pereira de Souza que a
190
“O Estado do Pará”. Belém, 05 de junho de 1938, pp. 01 e 04.
191
ESTEVES. Op, cit.
134
abandonou no segundo ano de casamento. Os “erros” observados em seu matrimônio não
significaram o fim de experiências sentimentais, uma vez que se amasiou com Clodoaldo e
passou a morar na casa 703, da travessa Caldeira Castelo Branco. Entretanto, referente à
conduta da amásia produziu desconfianças. Anna Oliveira Tenório, uma amiga de Estella e
que residia com o casal, passou a declarar para “Clodoaldo que não depositasse confiança
em sua amante, porque esta não seria fiel para com elle, pois, a vira com outro rapaz,
varias vezes”.
192
Nota-se que comentários, intrigas, murmúrios, denúncias que
desabonavam a honra de homens, de mulheres e da família eram colocados em xeque e
tinham o poder de fragilizar a mais estável vivência amásia. O jornal os via como amásios.
Após dois anos de vida em comum, sobre a cabeça de Clodoaldo, magarefe do mercado de
São Brás, passaram a voejar sentimentos de ter sido traído, assim “enciumado não pôde se
conter e, hontem ás 3 horas da tarde, quando chegou na residencia da mesma, onde ia
almoçar, travou com Estella forte discussão, entrando a espancal-a brutalmente,
produzindo-lhe varias ecchymoses”. Esta foi a versão dos fatos oferecida por Estella,
porém considerando que o viver amásio trata de relações complexas, o senhor Clodoaldo
procurou o mesmo periódico para retificar a maneira de como os fatos foram expostos pela
amante, desejando apresentar a sua versão. Afirmava que Estella Pereira de Souza postava-
se como autora de escândalos inclusive, no dia anterior, teria lançado mão de uma corda
tentando o suicídio; informava também que a referida mulher não era tão firme nos seus
amores como quis fazer crer à reportagem do jornal.
São versões diferentes da convivência sob o mesmo teto, convivência que se
deteriorou com certa rapidez a partir de intrigas e murmúrios formulados e promovidos por
Anna Oliveira Tenório; a partir das informações desta, Clodoaldo expunha à reportagem
policial que nunca havia depositado confiança na mulher que dizia ser sua companheira. A
afirmação sugere certa convivência com Estella, sendo que a seguir argumentava “apenas
quando ella a procurava, dava-lhe o dinheiro para a despesa diaria, sem assumir, no
entanto, compromisso em mantel-a” e que se dirigia “a residencia da mesma, como tem
certeza que iam outros rapazes”.
193
Por meio do ouvir dizer, o possível traído construía
explicação absolutamente dessemelhante da oferecida pela possível amásia: negava, por
exemplo, a existência de dois anos de vida em comum, assegurando que a visitava de
modo acidental e que suas companhias não se resumiam a ele. Entretanto observa-se que,
192
“O Estado do Pará”. Belém, 08 de janeiro de 1938, p. 02.
193
“O Estado do Pará”. Belém, 09 de janeiro de 1938, p. 03.
135
em suas refutações, confirma corroborar com as despesas diárias o que indica uma
proximidade nem tão esporádica como queria fazer crer. O senhor Clodoaldo confirmava a
presença de fortuitas afinidades amorosas e que a possível presença de outros homens
constituía um plano insuportável. Desta maneira, reafirme-se que as exigências de
fidelidade não se faziam sentir apenas em meio aos matrimoniados, o que será
pormenorizado no item seguinte. Assim, os que não legitimavam religiosa ou civilmente o
ato do casamento também exigiam a responsabilidade do ser fiel, e intolerâncias à
“extraconjugalidade” faziam-se igualmente presentes entre casais como Estella e
Clodoaldo; aliás, quando este tomou conhecimento de possíveis adultérios e buscou
satisfações com a amásia, esta explicou ser inverídica a acusação lançada por Anna
Oliveira Tenório. A rigor, existiam significados e formações diversas de famílias na cidade
e também o mínimo possível a se supor é que as uniões constituídas fora da legitimidade
religiosa e civil o eram interpretadas como espúrias por aqueles que as formavam; desta
maneira é necessário apreendê-las como legítimas, legais e oficiais aos constituintes. É
neste sentido que se explica como a infidelidade tanto de consortes quanto de amásios
mostrava-se tão grave e portadora de força suficiente para conduzir a cenas várias e tensas,
tais como tentativas de suicídio, ciúmes e separações, crimes e lesões corporais.
Pode-se tomar outro exemplo: as tramas publicadas em 12 e 13 de abril de
1938, pela folha “O Estado do Pará”. Nestes dias o jornal dava vazão aos problemas entre
Philippe Andrade, cognominado Americano, branco, 38 anos, chauffeur, viúvo, nascido
em Cambridge, morador de uma casa de cômodos na General Gurjão, Manoel Tavares
Gouvêa, branco, 37 anos, solteiro, português, também chauffeur, tendo um filho legitimado
há pouco, residente nos altos da farmácia Cruz, na esquina das Ruas General Gurjão com a
Praça da República e Iacy Lopes, alagoana, solteira, 28 anos, moradora em um
apartamento da casa 141, da Rua General Gurjão.
194
Nas tramas em que se envolveram é importante perceber a organização dos
limites da vida entre amásios e também a intolerância quando terceiros procuravam
imiscuir-se na vida em casal. Iacy era amásia de Gouvêa porém antes desta convivência
esteve amasiada com dois comerciantes que a deixaram pelo mesmo motivo: “se revelára
voluvel, dando-se a orgias e desejando conhecer muitos amantes”. Gouvêa e Philippe
mostravam-se grandes amigos, tanto que aquele conseguiu para este um emprego de
“chauffeur” na mesma empresa em que trabalhava: “garage moderna”. Gouvêa
194
“O Estado do Pará”. Belém, 12 e 13 de abril de 1938, p. 02 e 02.
136
apresentou sua amásia a Americano e este se afeiçoou a Iacy que o repeliu. Philippe
procurou-os “embriagado”, encontrando-os no quarto de Iacy. Ao bater à porta, disse que
havia chegado o momento de decidir a posse da mulher. Segundo a matéria, Gouvêa e
Philippe apresentavam-se como grandes amigos, até o dia em que Americano se insinuou
na vida do casal; desta maneira, ao que se pode supor, pouco interessava a Gouvêa a vida
pregressa da amásia, o importante naquele momento era manter contemporanizada a
relação com Philippe, mas não até ao limite de perder a companheira para o amigo.
Americano não entendia as coisas deste modo e, ao entrar no quarto de
cômodos onde estavam os amásios, “desferiu em Gouvêa a primeira facada, que o attingiu
na região do hombro”, o amante de Iacy mesmo gravemente ferido “empunhou um
revolver calibre 38, carga dupla, detonando-o uma vez. A bala foi attingir a Philippe
levemente”, este vibrou mais uma facada mortal no outro na altura do umbigo. Philippe
assassina o amigo que lhe conseguira trabalho.
O corpo estendido no cômodo.
(Manoel Tavares Gouvêa, a victima, momentos após ter caído morto, mostrando as settas os logares onde as facadas foram vibradas.
Photo Carvalho. O Estado do Pará. Belém, 12 de abril de 1938, p. 05).
Na imagem, alguns detalhes do quarto de Iacy. Neste, certamente, realizavam-
se encontros amorosos com Manoel Tavares Gouvêa, quiçá com outros homens. Adiante
uma cama com cobertor não muito arrumado, onde Gouvêa “momentos antes estivera
deitado”. No canto inferior esquerdo, uma mesa provavelmente utilizada para refeições e
para pousar objetos pessoais. Gouvêa estendido no chão com manchas de sangue que
137
também podem ser vistas nas tábuas do quarto. Aos pés da vítima, no canto inferior direito,
uma peça de roupa. Entre as duas mobílias visíveis, o corpo de Gouvêa, com as setas
indicando as regiões atingidas pelos golpes. Como se vem expondo, Iacy e Gouvêa não
eram casados mas amásios, entretanto o fato não desvalorizava o sentido da fidelidade e
tampouco diminuía o significado que Gouvêa atribuía à companheira. É notório que, ao se
vincular sentimentalmente a Iacy, Americano não conseguia lidar com as territoriedades
cotidianas de sua paixão, pois suas crises sentimentais estavam diretamente ligadas ao
inconformismo da rejeição, de ter sido preterido. O problema é a derrota sentimental, pois
o assassino reconhecia ser absurdo supor e considerar que Iacy pudesse decidir-se pelo
amigo e que desejasse construir vida própria em sua companhia.
Em curto, contudo envolvente texto que versa sobre a dominação masculina,
Suely Rolnik
195
observa que é mau para o homem que insiste em formas de linguagem
incompatíveis com os desejos do próprio eu” desta maneira, sem a desejada
compatibilidade com as experiências almejadas pelo corpo tende sistematicamente a
frustrar-se. A rejeição fez isso a Americano. Tomando como base de análise processos de
desquite, investigações de paternidade e pensão alimentícia, considera-se que as defesas
das uniões [leiam-se do amasiamento e do casamento] faziam-se com força desde que
houvesse interesse pelos envolvidos. Desta forma as tensões envolvidas no assassinato de
Gouvêa em nada são menores do que as havidas entre Maria de Jesus Castro de Carvalho e
Mário Pereira de Carvalho ou Maria Christina Mavignier de Castro e Francisco Conde
ligados pelo “sacramento indissolúvel”.
196
Tentar seduzir um (a) amante ou esposa (o)
significava opróbrio à honra do ofendido, uma vez que espaços eram delimitados,
esquadrinhados e tomados a sério entre os que constituíam família de qualquer natureza.
Dialogar com Anthony Giddens é importante.
197
O autor inicia o livro, A
transformação da intimidade, estabelecendo considerações em torno de cenas de uma
novela intitulada “Before She Met Me”, de Julian Barnes, narrando um romance ocorrido
entre “um certo Graham Hendrick, historiador acadêmico” de 40 anos que deixou o filho e
195
ROLNIK, Suely. “Machos & fêmeas”. In: A dominação masculina revisitada. Campinas: Papirus, 1998,
pp. 69 / 71.
196
Estes personagens serão analisados na próxima sessão e são cônjuges que, em certa altura da vida
matrimonial, descobriram ações adulterinas de suas mulheres. O primeiro caso foi localizado no periódico “O
Estado do Pará” de 09 de fevereiro de 1938 e o segundo tratava-se de um processo de desquite litigioso
promovido pelo senhor Francisco Conde contra Maria Christina Mavignier de Castro, 1917.
197
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Editora da UNESP, 1993, pp. 15 / 16.
138
a esposa, Bárbara, com quem estava casado havia 15 anos, para iniciar relação amorosa
com Ann, ex-atriz de filmes medíocres, tornando-se, depois, “compradora de modas”.
Após o divórcio, os amantes casaram-se. A partir de então, Graham, começa a investigar
detalhadamente a vida sexual da companheira antes de conhecê-la, passando a descobrir os
seus amantes, menos uma relação que manteve com Jack, o melhor amigo de Graham. No
entanto quando descobre a amizade pregressa, assassina Jack no apartamento deste; Ann,
ao supor o pior, dirige-se à residência do ex-amante encontrando-o morto; a seguir o
esposo suicida-se e Ann também aparece morta.
Giddens, inadvertidamente, expressa tratar-se de acontecimento
“definitivamente contemporâneo”, cena que “não poderia ser situada, digamos assim,
um século atrás”. Considera o autor ser o fato de significativa “igualdade sexual”
argumentando que um século essas cenas não seriam possíveis, pois como inviável
uma mulher possuir vários amantes antes, durante e depois de um relacionamento dito
“sério”. À primeira vista, tal leitura pode revelar-se conveniente mas pouco orienta do
ponto de vista histórico. Deseja-se, desse modo, emitir opinião contrária à de Giddens que
parece deixar escapar paradigmas essenciais do cotidiano, cuja interpretação se tenta neste
trabalho, os de: que as experiências do matar e do morrer desenvolviam-se em qualquer
tempo histórico, quando se percebia que os interesses de um estavam sendo lançados
contra as prioridades do outro. De tal sorte, o problema das ricas e instigantes análises de
Anthony Giddens está na ausência, por parte dele, em conseguir localizar em um tempo
histórico pregresso os movimentos de Graham, Ann e Jack. Naturalmente, o referido autor
engana-se ao considerar que os fatos ocorridos seriam impensáveis um século. Giddens
não nota os passos, as relações, as tramas daqueles que são capazes de elaborar e
reelaborar as trilhas sociais, ou seja, não percebe a análise que localize os homens e as
mulheres como construtores de suas próprias experiências.
Voltando às relações amásias e ao oportuno manuscrito de Dª Laura, aqui
sobejamente citado, nota-se em certa altura de seu diário, página 150, que a senhora
observava que pessoas e instituições devem ter atitudes respeitosas diante dos vínculos
amásios, pois que diversas eram balizados nos domínios da afetividade, “tanto que por
volta do anno de 1925, mais ou menos, lembro de um casal que absolutamente nada devia
ao mundo dos casados, que estava em condição illegal, porem legal para mim havia 10
annos e em certo dia a mulher por nome Meridiana descobriu o adulterio daquelle que
considerava ser seu esposo, o senhor João: o resultado foram dois tiros que a esposa traida
139
dera na amante e no marido. Felizmente, ninguém morreu, mas foi um aviso ao
companheiro adultero”.
198
No Brasil, variadas pesquisas vêm interpretando que diversas
obrigações se atribuíam às vivências e separações amásias. Enfocando um ou outro aspecto
da vida cotidiana [amásia], boa parte dos trabalhos argumenta que a vida entre os que não
celebravam núpcias civis ou religiosas deve ser apreendida nos espaços da
multiplicidade.
199
Rachel Soihet observou de forma bastante pertinente, que as
convivências entre amásios devem ser interpretadas a partir da maneira como são
vivenciadas pelos segmentos sociais, ou seja, que o viver amasiado mostrava-se
impregnado de gradações e mudava conforme as táticas realizadas entre os envolvidos.
200
Para a cidade de Belém, nota-se que as experiências entre aqueles que “viviam
maritalmente” também devem ser analisadas no interior de gradações seja de conflitos
cotidianos, seja amorosas, seja na exigência da fidelidade. Em conformidade com isso,
devem ser entendidas em um espaço bastante amplo. Laura, por exemplo, ao lembrar do
episódio que envolveu o casal amásio [Meridiana e João] assegurava que sua vivência em
nada devia “ao mundo dos casados”, tanto que realizava verdadeiras relações comparativas
entre o estado de casado e o de amasiado, tal como o de atribuir ao senhor João a condição
de esposo e a Meridiana a de esposa, além de dizer que o amásio adulterou laços sólidos ao
constituir uma amante; nesse caso, dona Laura utilizava-se de categorias que a rigor [no
direito brasileiro] apenas existiam entre os legalmente casados.
Outro exemplo dentre inúmeros que pode representar tensões nas
separações entre amásios é o auto de investigação de paternidade cumulado com o de
prestação de alimentos promovido por Conceição Silva Santos contra seu amante Oswaldo
Dantas Nunes, em 1922.
201
Conceição, paraense, branca, solteira, 26 anos, serviços
domésticos, sabia ler e escrever. Oswaldo identificava-se como chauffeur, não se
publicizou idade ou outros dados. Os amásios viviam na Travessa Vileta, 35 e eram
198
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 08 de maio de 1934.
199
CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Dissertação de mestrado apresentada na
UNICAMP. Campinas: Mimeo, 1997. CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: GRAAL, 1983.
ESTEVES. Op, cit. VAINFAS, Ronaldo. (Org.). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: GRAAL,
1986. CHALHOUB. Op, cit.
200
SOIHET, Rachel. “Mulheres ousadas e apaixonadas em processos criminais cariocas (1890 / 1930)”. In:
REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH 18: A mulher e o espaço público. São Paulo: Marco
Zero, 1989, pp. 199 / 216.
201
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Conceição
Silva Santos contra Oswaldo Dantas Nunes, 1922.
140
decorridos 02 anos de vida sob o mesmo teto. Acompanhava os amásios uma menor,
Lindalva, filha de Conceição, procurava-se provar que o pai era o acusado. A autora
grávida, havia perdido poucos dias o filho em decorrência de uma queda de rede;
hospitalizada por três dias na Santa Casa, voltou julgando “que podia tratar-se em sua
casa”. Porém antes do aborto, certa de que daria à luz, pediu a uma amiga e comadre,
Givanilda Gonçalves e a seu esposo, Angelo Antonio Inácio, residentes na Travessa São
Matheus, 351, que a acompanhassem nos dias de resguardo mudando-se para sua casa. O
convite foi aceito pelo casal. Durante os três dias que passou no hospital, surgiram ou
acentuaram-se intrigas e comentários que desabonavam a honra de Conceição e a de seu
amante. Seus vizinhos, moradores da Travessa Vileta, 37, Mario João Santos Silva,
paraense, pardo, casado, 52 anos, marítimo, sabia ler e escrever, juntamente com sua
mulher, Alvina Cavalcante Silva, afirmaram ao companheiro de Conceição que esta “tinha
mal procedido” e que “lhe tinha sido falsa em uma ocasião em que ele Oswaldo estivera
uns dias para Irituia”;
202
estes vizinhos aconselharam-no “a abandonar Conceição dizendo
que esta não prestava”. Percebe-se a importância da vizinhança, porquanto estava atenta
aos movimentos sociais de seus pares, tanto que a historiadora Michelle Perrot
203
considerou que [a vizinhança] é simetricamente cúmplice e hostil, ou seja, desempenha a
função de vigia, proporcionando ameaças, constrangimentos e perigos ao privado. Se em
diversos momentos convém valer-se de seus serviços, entretanto também é de suma
importância “desconfiar deles”.
Em Belém, as relações de vizinhança imiscuíam-se também na vida privada,
onde se ofereciam sugestões e conselhos, orientações e direções. Não obstante, o amigo
Angelo Antonio Inácio, paraense, pardo, casado, 26 anos, auxiliar no comércio, sabia ler e
escrever, aconselhou Oswaldo a “não acreditar nessas coisas que podiam ser intrigas pois
que a muito tempo conhece Conceição e nunca soube que a mesma tivesse esse
procedimento”. Estas palavras, contudo, não foram suficientes para convencer o amante a
tirar da cabeça dúvidas e acusações que recaíam sobre a amásia; assim, afirmativas,
intrigas e acusações recorrentes e diárias, chegaram a ponto dos referidos vizinhos
procurarem o motorista em sua residência, na presença de Conceição, para acentuarem as
imputações de infidelidade da companheira. As dúvidas do amásio eram terríveis. Oswaldo
202
Irituia é uma cidade do interior do Pará, distante cerca de 300 quilômetros da capital.
203
PERROT, Michelle. (Org.). “Os atores: figuras e papéis”. In: História da vida privada: da Revolução
Francesa à Primeira Guerra. Vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 121 / 192.
141
Dantas Nunes preferiu desconfiar de sua amante e amigos para dar crédito às acusações
dos vizinhos. Conceição estava tão somente “com nove dias de parto” porém, diante dos
sérios avisos o companheiro não se sentiu capaz de esperar o período de resguardo da
mulher. “Ignorando o seu estado, passou a espancá-la”, disse Angelo ao judiciário, em
de março de 1922. Afirmava em juízo que, 9 dias depois do parto, presenciou Oswaldo,
indignado, segurando “Conceição pela cintura e jogou-a de encontro a parede, que
Conceição levantando Oswaldo deu-lhe um socco jogando-a ao chão onde ainda deu-lhe
um pontapé na barriga deixando-a prostrada”, a testemunha, ao prestar socorro à tima,
ouviu dela “que estava com o utero para fora, da pisada que amásio lhe dera”. Nos dramas
em pauta verifica-se que no cotidiano da vida a dois, as conversas, murmúrios e
comentários sobre a conduta de uma mulher apresentavam-se suficientemente fortes à
transformação do modo de agir do amásio diante da companheira, todavia nota-se
igualmente que os murmúrios emanavam das fronteiras da vizinhança e tais adjacências,
no bojo do cotidiano, não se estabeleciam de modo preciso, uma vez que com freqüência o
casal Silva chamava Oswaldo a sua casa ou refestelava-se à janela para manter colóquios
que versavam em torno da conduta de Conceição. Pairavam assim preocupações relativas
ao juízo que os vizinhos tinham dele e de sua amásia, isto é, o que estes poderiam pensar
importava muito ao chauffeur. O juiz desta trama, Pedro dos Santos Torres,
responsabilizou o réu a reconhecer a paternidade dos filhos havidos do amasiamento
[Edwirges Santos, Mathilde Santos, Arimateia Santos], prestar alimentos à família
abandonada e a dividir os bens conseguidos no decorrer dos dez anos de vida em comum.
Desta maneira, o que se quer também afirmar é que a infidelidade ou sua suspeição rompia
a dimensão do que poderia significar o privado, ou seja, as ões “extraconjugais” não se
resumiam ou ficavam no campo de interesse do casal e da família, pois vizinhos, parentes,
amigos julgavam e chamavam à responsabilidade os envolvidos. No drama em questão, a
suspeição ou a própria infidelidade não se poderia resolver por meio de uma ação jurídica,
porém os amantes buscavam outras lógicas de justiça e entendimento, como uma separação
amistosa, brigas, desentendimentos e agressões. Na ausência ou presença de cônjuges e
amásios ambos conferem-se atribuições, responsabilidades, convenções cotidianas.
Como os domínios da interpretação social são variados, não existe mensagem
irrefutável. Destarte, o significado de família homogênea e cristalizada que se pretendia
questionava-se e colocava-se à prova, como se pode constatar no processo de investigação
de paternidade e alimentos, impetrado em 08 de março de 1933 por Judith Costa de
142
Oliveira contra Cornélio Filho Gonçalves. Descrevia-se a impetrante da maneira seguinte:
cearense, parda, tinha à época 23 anos, casada, serviços domésticos, analfabeta, residente à
Doca de Souza Franco. O que a levou a denunciar o amásio foram maus-tratos que
chegaram a estágios insuportáveis, obrigando-a a abandoná-lo no começo de 1933.
204
O
auto promovido pela queixosa afirmava que a mesma era casada, porém não com o
denunciado, pois havia se separado há dois anos, passando a viver maritalmente com
Cornélio, ajudante de pedreiro, residente à Doca de Souza Franco, 12. a enfatizar-se
que viver maritalmente não significava residir em um lar conjugal em companhia de um
esposo ou esposa, isto é, poder-se-ia viver desta maneira e não necessariamente ser casado
como desejava a Igreja Católica. Nos autos, o primeiro companheiro da denunciante [seu
marido] chamava-se João Batista de Souza de quem estava separada pelo menos dois
anos; dele não se tem muitas informações, como idade e profissão e não se sabem as razões
da separação conjugal ou se foi ou não por meio de processo de desquite ou por conta
própria.
O importante é perceber que dona Judith não deu por terminada sua vida
amorosa, visto que o fim de um casamento legalmente constituído não representou para ela
o cerceamento de desejos. Fora do leito matrimonial, dinamizavam-se estratégias de
convivência sob outro teto e assim tais ações possibilitam perceber novas experiências
acerca do viver junto. Como se analisou não muito atrás, a constituição familiar, as
admoestações realizadas pela Igreja sobre os lares formados fora dos paradigmas católico-
legais, não ecoavam na sociedade em conjunto. As estratégias de separação tanto no
consórcio formado legalmente quanto no amasiamento não eram fortuitas, ao contrário,
davam-se de forma regular, terminavam-se relacionamentos onde os ideais de
conjugalidade não mais apresentavam bases que pudessem oferecer estabilidade a dois,
onde certo número de incumbências e funções sociais mostravam-se impossíveis de ser
cumpridas.
A queixosa havia pois se separado de Cornélio no dia 05 de novembro de 1932,
sendo que as querelas entre as partes ainda não estavam resolvidas. Existiam
ressentimentos e mágoas a serem acertadas. Os dramas foram tensos e diversos, uma vez
que romperam com referenciais tidos como basilares da moralidade de uma família
constituída “honradamente”. Com o abandono do lar doméstico, segundo a queixosa, as
204
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Judith
Costa de Oliveira contra Cornélio Filho Gonçalves, 1933.
143
perseguições de seu ex-companheiro acentuaram-se chegando a agressões físicas, assim
narradas ao delegado: (...) Judith estava passando o dia em casa de uma amiga a Doca de
Souza Franco nº 558, n`esta cidade quando lhe apareceu o denunciado cerca de 20:00 horas
da noite e depois de insultal-a agrediu-a com uma faca produzindo-lhe ferimentos (...)”. A
referida amiga chamava-se Maria Santana. Apreende-se portanto a existência de teias de
solidariedade certamente com uma vizinha, pois quando a impetrante vivia com o acusado
o endereço era o da Doca de Souza Franco 12: mesma rua em que dona Judith foi
supostamente agredida. Tratava-se de momentos de instabilidade emocional que exigiam a
proximidade de vizinhos, amigos e parentes onde se buscava apoio para retomar a vida
cotidiana. O juiz Mauricio Cordovil Pinto condenou o réu a reconhecer todos os filhos do
casal [Carlos Oliveira, Ewandro Oliveira e Procopio Oliveira], prestar alimentos e dividir
os bens. Em conformidade com isso, não se pode entender casamento, amasiamento e
família como questões abstratas em si e indiferenciadas a todos os segmentos sociais.
Houve concepções diversas de lar, matrimônio, família. As idéias, aspirações, concepções
variavam conforme as imagens que os grupos possuíam. Então, o fato de um sujeito dirigir
denúncias ao outro determina, pelo menos em alguma medida, a forma como se convivia
com o parceiro nos recônditos do lar. Tensões nas vivências amásias revelavam-se a partir
do mais leve movimentar de rusgas que se formavam no seio das relações; desta forma,
enfatize-se, a compreensão de unidade familiar era movediça e não algo indiferenciado,
como demonstram os diversos casos que se vem analisando.
No bojo das tensões sob o mesmo teto, as famílias constituídas de forma ilegal
no conceito religioso ou civil tinham exigências similares às daquelas que preferiram os
atos ditos legais. A infidelidade ou sua suspeita, em qualquer lógica de constituição
familiar, era tratada como detestável, espúria e deletéria às razões da união e as famílias na
cidade de Belém mostravam expressões que caminhavam de coação em coação e de
liberdade em liberdade, uma vez que, a partir do momento em que se realizassem
proibições, as liberdades apareciam e estabeleciam-se simetricamente. A rigor, as ameaças
que se faziam pesar ou mesmo que pairavam sobre qualquer forma de vida familiar
laboravam-se no sentido de serem rechaçadas por quem se sentisse ameaçado. Todavia
também de se considerar que a elaboração familiar não era estagnada, pois que ao mesmo
tempo em que se percebe na formação em casal exigências articuladas por teias e por
tramas que possibilitavam a continuidade da convivência, por outro as separações ocorriam
na mesma proporção das necessidades estabelecidas pelas exigências do tempo histórico.
144
A honra mostrava-se campo importante e a ela atribuíam-se aspectos,
significados e desejos diversos. Não se representava apenas na infidelidade da consorte,
mas também na força que os homens tinham em prover a família. No entanto, quando se
restringia à primeira, o “castigo” da infidelidade era diverso e manipulável, ou melhor dito,
aos casados restava o caminho das leis, como preferiram Francisco Conde e Raymundo
Nonnato de Siqueira que instauraram autos de desquite contra as suas companheiras
“adúlteras”.
205
Todavia este caminho dado à honra não era regra geral, porque
matrimoniados nem sempre recorriam a ele. Mário Pereira de Carvalho escolheu resolver a
infidelidade da esposa por meio de um afiado punhal com o qual agrediu o ofensor.
Se por um lado aos amasiados inexistia a possibilidade de se recorrer ao
judiciário quando o assunto era separação, por outro lançava-se mão, assim como os
matrimoniados, de leis e de lógicas próprias, as quais buscavam resolver o problema [da
infidelidade] através de conversas, acordos, entendimentos, mas também por meio de
assassinatos, brigas, ofensas, agressões. Formava-se assim, na experiência, um amplo
sistema de imagens e lógicas que devem ser atentamente levadas em consideração, visto
que nas vivências não podem ser analisadas como de menor importância.
Em suma, as famílias ao se constituírem curtas ou duradouras, dependiam das
conveniências inerentes ao tempo histórico dos indivíduos. Tal como com os casados, os
amasiados buscavam benfeitorias, melhoramentos para a vida, os quais pudessem oferecer
vantagens à sua continuidade. Com efeito, qualquer união apenas se tornava possível
quando os envolvidos compreendiam que proveitos mútuos vinham sendo alcançados.
3. AMASIAMENTO, CASAMENTO E RELAÇÕES EXTRACONJUGAIS
Accumulações ...
Domingo ultimo soube que és casada. Com tal nova inda zune o
meu ouvido, lembrando-me de um tiro, uma facada em mim
vibrada pelo teu marido. E por que nunca me disseste nada?
Jamais desculpo teres me mentido, enganando-me alegre e
descuidada, fazendo-me feliz e convencido ...
205
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina Mavignier de
Castro, 1917. Auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundo Nonnato de Siqueira contra Estellita
Monica de Assis, 1921.
145
Sabendo disto nem olhar-te eu ouso. Ao teu amor me tornei
esquivo, pois quero que ames só ao teu esposo. Gostar de dois a
incommodos te expões, visto que infringes o dispositivo da nova
lei das accumulações!”
Jacques Flores.
(O Estado do Pará. Belém, 08 de janeiro de 1938, p. 01).
O espaço citadino belenense era múltiplo e diversas dimensões como se vem
argumentando colocavam em xeque pretensões moralizantes pensadas à sociedade.
Homens casados envolviam-se em relações extraconjugais sendo o oposto também
verificável: homens amasiados trocando de companheiras e mulheres amasiadas trocando
de amásios. Como deixa sugerir a epígrafe, galanteios e seduções de homens a mulheres e
vice-versa constituíam-se campos comuns na cidade. Jacques Flores expunha galanteios de
um homem a uma mulher casada sugerindo que esta correspondia às insinuações, mas
quando o conquistador descobre que ela é casada resigna-se a abandonar a conquista
respeitando o matrimônio, a família e o esposo. Mesmo admitindo esta possibilidade no
cotidiano de Belém, as lógicas sentimentais apresentadas pelos jornais, processos desquite,
pensão alimentícia e investigação de paternidade não sugerem renúncias e preterições tão
fortes ao adultério a ponto de o casamento e a família formatarem-se sem queixas, intrigas,
histórias controvertidas, conversas ou murmúrios. Solteiras (os), casadas (os), amasiadas
(os), viúvas (os) orquestravam e prolongavam “aventuras” sentimentais conforme
necessidades, interesses e conveniências que o tempo em que estavam exigia.
A epígrafe indica que o movimentar do adultério na cidade acontecia na
ausência, mas também na presença de esposos e amásios, sugerindo que vivências
extraconjugais aconteciam conforme as convenções sociais dos autores. “Medrosa”, por
exemplo, foi o título de uma crônica onde se expunham o agir de uma mulher casada
quando o marido se ausentava por razões de trabalho. Desamparada, a mulher não
conseguia à noite conciliar o sono. Vendo-se em situação desfavorável, sozinha em casa,
começou a urdir estratégias de sobrevivência: “de dia, tudo ia bem. Más á tardinha, quando
a cozinheira sahia, começava a odysséa do pavôr. Mme., então, por precaução, fechava
todas as portas e ficava na sala da frente, com a luz accêsa. De vez em quando, vinha a
janella. Estava por alli, a disfarçar, até ás dez horas, quando se recolhia, assustada, de
phantasmas imaginários”.
206
Trancafiar, cerrar prudentemente portas e janelas, deixar luzes
acesas, tudo isso não se mostrava suficiente para conter o medo do viver solitário; nesse
206
“A Semana”. Belém, 03 de março de 1934, p. 02.
146
caso era necessário recorrer a outros meios. Veio assim à tona o desvelo de um vizinho
fronteiro que se prontificou a ajudá-la em sua cruzada noturna. O solidário homem
observava de seu quarto os passos da senhora e lhe adivinhava o temor, prontificando-se a
fazer-lhe companhia. No entanto, quanto à cordialidade, a mulher retrucou: “– Oh! Sr.,
grande incomodo!”, o vizinho interessado, afirmou: “Absolutamente!....” Desses galanteios
havidos na área comercial da cidade de Belém resta apenas a fama de mal-assombrada à
casa da madame: “hoje, quem passa na 15 de novêmbro, não mais o clarão do andar
da casa mal assombrada. Ao contrario. Cêdo já esta toda cerrada e ás escuras. Mme., já não
tem mais medo”.
207
Preocupada com os intrincados ângulos das relações familiares, Cristina Donza
Cancela
208
analisou representações da bigamia e do adultério na cidade de Belém; em
relação à primeira, as estratégias eram variadas, isto é, um homem unia-se a outra mulher
distante de conhecidos e familiares, trocando de nome e buscando essas mulheres fora da
vivência cotidiana. Por seu turno, o adultério podia justificar atos violentos, porquanto a
prática enveredava pelo campo da mácula da honra. Como se analisou atrás, a honra
manchada não se aquartelava somente na geografia matrimonial, pois que exigências de
fidelidade também eram feitas pelos amasiados.
A este respeito, em 1921, Maria Jacyntha Felix fez curiosa narrativa: “de
maneira alguma tolerei relações extraconjugais de meu fallecido amasio e tão pouco elle
faria o mesmo em relação a mim, isso se explica porque levavamos vida inteiramente
regular e não nos rebaixavamos aos matrimoniados, alias eramos matrimoniados porque
seguiamos todos os padrões da fidelidade: não saiamos um desacompanhado do outro, não
mantinhamos relações sexuais com outrem, não olhavamos com segundas intenções para
outrem, não pensavamos em outrem”.
209
Esta narrativa é uma parte de extensas notas
escritas pela senhora Jacyntha e que foram anexadas ao processo que movia na justiça
paraense; embora tais interpretações tenham sido escritas em 1916, isto é, anos antes da
207
Idem.
208
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém 1870 /
1920). Tese apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH / USP). São Paulo:
Mimeo, 2006.
209
Como se verá no capítulo III desta tese, o amásio de dona Maria Jacyntha chama-se Raymundo Pereira de
Souza, falecido em acidente ferroviário na cidade do Rio de Janeiro. O processo que movia era contra o pai
deste, Vicente Pereira Leal, e desejava provar que da vida marital nasceram três filhos: Raymundo Fiderina
de Souza, nascida em 24 de abril de 1913; Manoel Beda de Souza, nascido em 27 de maio de 1915 e Maria
de Lourdes de Souza, nascida em 24 de janeiro de 1920. Ver: Auto civil de investigação de paternidade
impetrado por Maria Jacyntha Felix contra Vicente Pereira Leal, 1921.
147
morte do amásio, o se pode esquecer que elas devem ser interpretadas como estratégias
que tinham por objetivo conseguir veredicto favorável na ação que promovia.
Das observações acima, dois desdobramentos são notórios: em primeiro lugar,
uma paridade da vivência amásia com o ato do matrimônio e em segundo posicionamentos
inteligíveis acerca da manutenção da fidelidade na intimidade amásia. Não obstante, a
“amásia” compreendia que a infidelidade não se resumia aos atos sexuais fora dos
domínios do lar, mas também olhar e pensar, com segundas intenções, em outra pessoa
eram movimentos interpretadas como desrespeitosos. O “par marital” dava significados e
sentidos próprios ao que entendia ser um caso “extraconjugal”, ou seja, tomava-se como
base a experiência cotidiana para construir códigos de conduta nos interstícios da vida em
comum; assim sendo, estudando-se não apenas os depoimentos da senhora Jacyntha, mas
também os de Laura é de bom tom considerar que eram os diferentes grupos sociais que
organizavam seus mbolos, seus códigos e os aplicavam às normatizações conforme o
conjunto de interesses que o tempo histórico exigia. De tal sorte, é com uma maquinaria
bastante diversificada que os olhares sobre institutos [como o do casamento e o da
fidelidade] e acerca das pessoas são transformados cotidianamente. Os amasiados
construíam teias de duplo objetivo: o de serem respeitados e o de servirem para enfrentar
a exigente sociedade belenense.
Acentua-se que as práticas, os símbolos e suas aplicações eram elaborados pelo
próprio grupo, pois que a rigor [no campo da legislação, leiam-se Códigos Civil e Penal]
adultério ou “infidelidade” não existiam entre amasiados, isto é, tratava-se de uma
categoria específica aos casados. Por exemplo, o Código Penal de 1940 reservou
importância expressiva ao adultério; os penalistas interpretavam que as práticas
extraconjugais constituíam-se em crime contra o casamento e por isso eram passíveis de
pena de quinze dias a seis meses de prisão.
210
As aventuras amorosas fora das uniões
legalmente constituídas o casamento monogâmico eram percebidas pela legislação
como ofensa “de ordem privada e de ordem social”. Destarte, vêm à tona discursos
semelhantes entre os Códigos Civil e Penal, pois o primeiro admitia como motivo para
ação de desquite, o adultério de um dos cônjuges. Por seu turno, o Penal sustentava-o como
crime.
210
Veja-se art. 240 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1940. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1941.
148
Outro drama, publicado no jornal “O Estado do Pará”, que ajuda a dar sentido
às convivências extraconjugais é o de Maria de Jesus Castro de Carvalho e seu esposo
Mário Pereira de Carvalho. Os cônjuges eram descritos da seguinte maneira: Maria com 37
anos, branca, paraense e Mário, 31 anos, branco, paraense, funcionário público da
prefeitura de Gurupá. O lar conjugal localizava-se na Rua Antônio Barreto 472, onde
residiam além dos consortes, os filhos: Elvira, de 19 annos; José Ribamar, de 17 annos;
Carlos, de 15, e Thereza, de 8”, a família vivia na mais plena harmonia conjugal e familiar
havia 20 anos.
211
Todavia, ao que tudo indica, o estado de casada, mãe e aparente
tranqüilidade da vida em casal, não se mostravam razões suficientes à esposa para manter-
se distante de outros amantes. Desta feita, a consorte manteve relações extraconjugais com
Luiz da Costa Cunha, 31 anos, casado, barbeiro do Salão Nazareth, residente na Avenida
Conselheiro Furtado, 1012. Este foi descrito pelo periódico como dado a conquistas
amorosas e várias vezes esteve envolvido na polícia em casos de honra e desrespeito a
senhoras e senhoritas que “lhe passavam ao alcance dos galanteios”. Certo dia, ao chegar
do trabalho, Mário foi informado por intermédio de amigos e vizinhos que sua
companheira era dada a “aventuras” extraconjugais. O marido não ficou satisfeito e passou
a questionar Maria de Jesus, conseguindo a confirmação de que esta era amante de Luiz
Cunha. O golpe sofrido foi profundo, chegando Mário a procurar o doutor “João Botelho
com a intenção de tratar de um desquite amigavel”. Tudo parecia caminhar guardadas as
devidas proporções com certa tranqüilidade, contudo as intenções do traído mudaram
quando soube do local das práticas sexuais: sua própria residência. Os ódios
desencadearam-se. Mário retirou-se de casa e passou a visitar “alguns botequins, onde
bebeu muito”. Depois de vaguear por diversos desses estabelecimentos o homem, que
sentia a honra manchada, partiu à procura de quem a ultrajou encontrando-o em seu local
de trabalho: o Salão Nazareth”. Armado com revólver e punhal desceu “ás primeiras
horas da tarde” de um bonde da linha Circular na Praça Justo Chermont, dirigindo-se ao
referido local onde encontrou o desafeto abrindo as portas do estabelecimento e, “sem
trocar palavra alguma, feriu Luiz no hemithorax esquerdo attingindo o pulmão”. Após ao
ato, Mário foge em “desabalada carreira”, sendo perseguido e alcançado por alguns
populares e entregue à polícia, onde declarou “tudo ignorar. Sabe que andou bebendo
muito em alguns botequins e quando se recolhia á casa, saltando de um bonde de linha
211
“O Estado do Pará”. Belém, 09 de fevereiro de 1938, p. 03.
149
“Circular” (...) foi preso (...) accusado de ter assassinado um homem a quem nem
conhece”.
Luiz, quando medicado na Assistência Pública, foi interrogado pela polícia e
declarou “ter conhecido, acerca de trez mezes, a mulher de nome Maria de Jesus Castro de
Carvalho (...) que por varias vezes o procurou na barbearia onde trabalha, convidando-o
para a pratica de actos sexuaes, ao que elle se esquivou por sabel-a casada”. Nota-se que as
construções de defesa nas instâncias da justiça eram diferentes, pois as traduções do caso
buscavam logicamente, inocentar quem se envolvia em campos comprometedores; assim
as versões dirigiam a culpabilidade à esposa, pois vizinhos e o conquistador proferiam
responsabilidades da infidelidade sobre ela. Por outro lado, aquele que a ajudou a violar a
fidelidade conjugal buscava construir espaços favoráveis a si, porquanto dizia que foi
Maria quem o procurou em seu local de trabalho “convidando-o para a pratica de actos
sexuaes”, convite que sempre teria evitado por sabê-la casada. A atitude de Luiz era as de
um amante matreiro sempre com o coração em outras paragens, pois o seu nome foi
encontrado em diversas matérias as quais publicizavam envolvimentos dele com outras
mulheres. Por exemplo, em janeiro de 1935 o jornal “Folha do Norte” afirmava:
“novamente somos obrigados a publicar as aventuras do d. Juan, Luiz da Costa Cunha,
casado, barbeiro do Salão Nazareth que foi alvo da furia em plena via publica de um
esposo que teve sua honra manchada pelo insistente sedutor”.
212
As informações
apresentadas caracterizavam-no pois como alguém “dado a conquistas amorosas” com
várias passagens pela polícia. No entanto com referência ao caso da senhora Maria de
Jesus o sedutor oferecia outra versão, como se vê acima.
Tomando por base as afirmativas dos jornais é difícil crer que o sedutor tenha
evitado os encontros íntimos. a acentuar que o “D. Juan” era casado e assim não
figuravam em suas pretensões dramas, complicações, dificuldades, embaraços ou
obstáculos mais expressivos à sua vida. Nota-se que à mínima desconfiança do marido,
Luiz lançou toda a responsabilidade em cima da esposa do traído. O conquistador desejava
tão somente aventuras extraconjugais, sendo que ao fim de cada uma delas voltaria aos
recônditos da “segurança” do casamento e da família, como afirmava outra matéria do
jornal “O Estado do Pará”.
213
Desse modo, as ações dos envolvidos devem ter feito verter
212
“Folha do Norte”. Belém, 20 de janeiro de 1935, p. 03.
213
“O Estado do Pará”. Belém, 22 de março de 1939, p. 02.
150
muitas intrigas, grimas e ódios, porquanto ficaram coletivizadas as falhas conjugais que
mostravam a fragilidade de um matrimônio que se prolongava havia 20 anos.
Mário, ao responder ao processo de “ferimentos graves” foi absolvido, pois a
justiça paraense entendeu que havia “legitimamente” defendido a sua honra.
214
Com este
veredicto enfrentou bastante fortalecido um outro processo [o de desquite], tanto que em
argumentos escritos de próprio punho e anexados aos autos, afirmava serem públicas e
notórias as aventuras adúlteras da mulher que por vinte longos anos considerou sua
legítima esposa, e por isso qualquer juiz a quem coubesse o veredicto não teria dificuldade
em condenar a adúltera que “me lançou no lodo da desonra”.
215
A segurança em relação à
condenação da esposa era tanta que mais à frente afirmava que o judiciário não poderia ter
dúvidas porque lhe havia dado “em outro processo” veredicto favorável, sendo assim
incoerente “ser condenado a viver eternamente com a mulher que me ultrajou”. O senhor
Mário concluía os seus argumentos ponderando que todos os advogados que havia
consultado lhe afirmaram não existir outra decisão que não a que lhe desse ganho de causa,
pois que “o adulterio feminino macula a honra masculina, a da família e os bons
costumes”. Ao analisar os argumentos apresentados, o jurisconsulto Mauricio Cordovil
Pinto decretou o desquite entre os cônjuges.
Contrapondo-se aos argumentos do senhor Mário, dona Maria Jacyntha
afirmava, em suas anotações datadas de 1916, que “o adulterio é grave em qualquer
circunstancia, seja o cometido pelo homem seja pela mulher, mas a sociedade não pensa
desse jeito, ás mulheres sempre recai pesos maiores, mas entre eu e o Raymundo temos a
norma de que o adulterio de qualquer um de nós é razão para a separação”.
216
Acentuou-se
em páginas não muito distantes que a legislação brasileira não abrigava as práticas de
infidelidade amásia, isto é, ao que a senhora Jacyntha dizia ser infidelidade conjugal. Aliás,
ao que tudo indica, ela não fazia distinção entre adultério e relação com outros parceiros no
mundo dos amásios; compreendia que as ações fora dos recônditos do seu lar eram
adúlteras. Neste caso não se distinguiam categorias porque possivelmente existia a imagem
do sentir-se casado, assim como um conjunto de responsabilidades que exigia correção de
procedimento de ambos os companheiros tanto que, em certa altura das notas, a “amásia”
214
“O Estado do Pará”. Belém, 30 de junho de 1938, p. 02.
215
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Mário Pereira de Carvalho contra Maria de Jesus Castro de
Carvalho, 1938.
216
Estas observações foram escritas em 1916 pela senhora Maria Jacyntha Felix e anexadas em 1921 ao
processo de investigação de paternidade por ela impetrado contra Vicente Pereira Leal, 1921.
151
afirmava que em seu relacionamento existiam preceitos, regras e normas que deveriam ser
seguidas, sendo a principal uma generalizada intolerância ao que chamava “adultério”.
Tais sensibilidades expostas é a “Territorialidade dos sentimentos e das junções políticas
familiares”.
Michelle Perrot escreveu que existe entre os indivíduos a construção de práticas
que devem ser seguidas para que as convivências interpessoais não se fragmentem.
217
Assim sendo, o que se quer enfatizar [assenhoreando-se da tese da historiadora] é que o
mundo dos amasiados funcionava por meio de normas reguladoras e estruturas próprias,
aliás era por esta natureza peculiar que os setores conservadores da sociedade se
digladiavam, porquanto entendiam que os custos sociais dos atos desse grupo mostravam-
se onerosos à moralidade, à normatização e à ordem. Desta maneira, interpretavam-se os
amásios como portadores e construtores do social, de tal sorte que estas “simples”
constatações os transformavam em grupo assustador aos que advogavam a necessidade de
uma moralidade estática.
Ao se tomar como base a interpretação de parte das legislações e da
mentalidade predominante à época, acusações sérias recaíam sobre as mulheres, adjuvantes
importantes para se entender campos matrimoniais e familiares existentes em Belém. O
casamento, como uma maquinaria direcionada à finalidade da procriação monogâmica,
tinha de enfrentar perigos e ultrapassar vários obstáculos. A possibilidade de os cônjuges e
amásios durante a vida em comum constituírem amantes era premente, visto que qualquer
forma de elaboração familiar sofria espasmos constantes, onde se contestava sua
estabilidade social. Ao funcionamento do corpo conjugal desejado moral, as tramas em
análise apresentavam-se no mínimo desagradáveis, porque atos ou possíveis atos ocorridos
entre a esposa e o amante desmoralizavam e colocavam em perigo a regulamentação
moral, assim como todos os sentidos desejados ao matrimônio, expondo fragilidades da
vida em comum como a sexual, a autoridade do marido diante da esposa e filhos, a força
do homem diante da sociedade.
Advindos dessa premissa, diversos problemas que envolveram questões em
torno da fidelidade feminina foram resolvidos por meio de autos de separação conjugal e
divisão de bens, isto é, teias do cotidiano familiar e da fragilidade da vida em casal também
são percebidas por meio de processos levados ao judiciário como o desquite litigioso
217
PERROT, Michelle. (Org.). “Os atores: figuras e papéis”. Op, cit.
152
ocorrido, em 1917, entre Francisco Conde e Maria Christina Mavignier de Castro. O
esposo promoveu aão e alegava repetidos adultérios da mulher. A família contava, além
dos cônjuges, com quatro filhos, a saber, “Maria Augusta, de 8 annos de idade; Hellade, de
6 annos; Francisco, de 5 annos; e Armenia, de 4 annos” todos impúberes, nota-se. O
marido tinha, quando alegou ser a esposa adulterina, 37 anos, era comerciante no início do
litígio, embora no final tenha aparecido como advogado. Casou aos 26 anos. A esposa,
com 29 anos à época do processo, casara aos 18. Os nubentes matrimoniaram-se na cidade
de Maranguape, Estado do Ceará, em 21 de outubro de 1906. Entretanto o esposo, ao ter
conhecimento “da mais dolorosa verdade”, por volta de 19 de dezembro de 1915 decidiu
não mais coabitar com a mulher considerando-se separado desde a referida data. Desse
modo igual aos dramas atrás problematizados, os repetidos adultérios ocorriam na casa de
residência dos consortes; em outros termos, acusava-se Mavignier de ter cometido graves
faltas no “tocante aos seus deveres de esposa e fidelidade conjugal” e por todas as
testemunhas constituídas pelo autor, recaía nela a acusação de dormir com seu amante
Doutor Alipio Balthar em uma casa que ha nos fundos do quintal da casa de residencia, e
que depois passou a dormir com o amante na propria casa de residencia”. Alipio Balthar
era delegado de polícia de Fortaleza e descrito como o “amante preferido” de dona
Mavignier.
218
As construções dos discursos jurídicos relativas às esposas [em caso de
processos de separação de corpos e bens] não seguiam um padrão, mas apresentavam-se
bastante similares. Elas não poderiam prevaricar, pois ao mais leve erro ou suspeição de
falha em domínios morais, sua reputação tendia a ficar bastante comprometida. Ao se
trilharem os campos da vida conjugal cotidiana do casal Francisco e Mavignier notam-se,
nitidamente, estas lógicas. Descrevia-se a esposa como dada ao adultério, assim como ao
“vicio do jogo pelos clubs de Fortaleza onde perdia avultadas quantias que lhe remettia o
justificante, abandonando para isso os filhos que ficavam entregues a uma creada e a
cunhada da testemunha,” dizia João Christiano de Vries, 36 anos, casado, leiteiro,
brasileiro naturalizado, natural de Paramaribo.
Por outro lado, apresentava-se o esposo como homem que sempre preservou,
diante da família, a honra dele exigida, responsabilizando-se pela manutenção familiar,
porquanto seu advogado, Manoel Carlos de Mello Cezar, e testemunhas afirmavam
218
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina Mavignier de
Castro, 1917.
153
simetricamente que Francisco “desde que se casou tem amparado sempre a sua esposa e
bem assim a seus filhos com todos os cuidados e recursos necessarios cumprindo sempre
as suas obrigações e deveres de esposo e pae”. Pretendia-se expor de modo inteligível as
expressões do direito, isto é, o senhor Conde descrevia-se como sujeito que não
representava perigo à ordem social e familiar. Por seu turno, à senhora Mavignier
atribuíam-se adjetivos desfavoráveis. Neste caso a honra masculina tinha pois dois
aspectos assimétricos de defesa: o que afirmava ser o esposo previdente e mantenedor da
família, nada lhe deixando faltar e o que a mostrava ultrajada, isto é, atacada pelo vício
do jogo e “aventuras” extraconjugais da esposa. Desta forma, as honras masculina e
feminina estavam em risco quando as más companhias se aproximavam, assim como a
boemia e o álcool.
Mas como se formava o cotidiano dessa família? Como chegou a ponto de ser
desintegrada por meio de reiteradas acusações de adultérios cometidos pela esposa?
Durante o processo, a profissão de Francisco Conde oscilava entre a de comerciante [no
início da ação] denominação bastante vaga e que poderia ser tomando por base os seus
bens a de seringalista, e a de advogado, no final do auto. Considerando os bens do casal,
não se pode afirmar que tinham dificuldades financeiras, porquanto os mesmos foram
avaliados em seis contos de réis (6 : 000 $ 000), quantia sem dúvida considerável.
219
Também consta que ao casar, aos 26 anos, em 21 de outubro de 1906, o senhor Conde
morava no Acre e era comerciante, viajando à cidade de Maranguape para consumar
núpcias com a senhora Mavignier. Os consortes viajaram à cidade de Xapury [no Acre],
onde o esposo tinha negócios, daí considerarem-se esses negócios possivelmente no campo
da extração da borracha.
Dois anos depois, em 1908, nasceria a primeira filha, Maria Augusta. Houve
vida marital regularmente até meados de 1914 e tudo indica que foi a partir das
necessidades de ultimar os seus negócios no Acre que a sorte do casal começou a
desencontrar-se, visto que Francisco foi obrigado a fazer constantes viagens no itinerário
Xapury–Ceará–Xapury–Belém ficando o grupo familiar sem a sua companhia. Dessa
maneira, no início de 1914, o requerente saiu com sua família da cidade de Xapury para o
Ceará, e em junho do mesmo ano o esposo retornava ao Acre deixando-a no Ceará. Conde
219
Afirma-se não ser desprezível porque oito anos depois, em 1927, Mario Cobas comprava um automóvel
Chevrolet, tipo 1925, reformado, cujo motor tinha o nº 1 . 630 . 621 e chassis nº K 65878, por (6 : 338 $ 000)
seis contos trezentos e trinta e oito réis. Auto de restituição de posse impetrado por Salvador Souza e Cia
contra Mario Cobas, 1927.
154
somente retornaria à companhia da família 14 meses depois, em setembro de 1915, sendo
que em dezembro do mesmo ano retornou a Xapury e desta cidade chegou a Belém, em
1916, onde obteve informações que desabonavam sua honra e dignidade de “esposo
esmerado” que sempre teria sido. Para cidade e séculos diferentes dos deste trabalho, Eni
de Mesquita Samara observou que “apesar da rigidez dos costumes que vigorava na época
e do aparente isolamento em que viviam” várias mulheres imiscuíram-se em tramas
adulterinas, colocando em xeque o desejado controle masculino, assim como as normas
sociais.
220
O processo de desquite em análise foi pautado única e exclusivamente sobre a
acusação de adultério perpetrado com o senhor Alipio Balthar e com outros amantes na
ausência do marido. Todavia, em quais circunstâncias o senhor Conde veio a saber do
possível comportamento da esposa? Comentários surgiram através de alguns conhecidos
seus que decidiram fixar residência em Belém ou que passavam em direção ao Acre e por
alguns dias paravam na capital paraense. Francisco teve a confirmação desses fatos “não só
por cartas que recebeu d`aquelle Estado, mas tambem verbalmente por pessôas que d`alli
vinham a esta cidade, mas com intenção de aqui fixarem residencia e outros de passagem
para o Acre”, dizia, em 1917, a testemunha Tiburcio José da Silva, 44 anos, casado,
agricultor, residente no Estado do Ceará.
Em uma das viagens que a referida testemunha fez do Estado do Ceará para o
Acre trouxe na bagagem uma carta enviada pela irmã do impetrante, onde dava notícias de
toda a família Conde inclusive sobre o proceder da ré. Dona Mariana Conde afirmava ao
irmão que todos no Ceará se encontravam muito bem, com saúde, porém extremamente
apreensivos e tristes com o procedimento da senhora Mavignier; aliás, informar o marido a
respeito dos procedimentos da esposa era a razão central da missiva onde, em certa parte
comentava: “meu querido irmão não é de hoje que a sua esposa não vem tendo bom
procedimento diante de nossa pequena mas exigente sociedade, todos aqui sabem inclusive
você ai no norte por meio de comentarios que a senhora sua mulher vem promovendo
repetidos adulterios no interior de sua propria residencia, por isso todos da familia
220
A autora analisou a temática do adultério feminino para a cidade de São Paulo entre os séculos XVIII e
XIX. Veja-se: SAMARA, Eni de Mesquita. “Mistérios da “fragilidade humana”: o adultério feminino no
Brasil, séculos XVIII e XIX”. In: Representações. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH
29. São Paulo: Contexto, 1995, pp. 57 / 71.
155
supplicam a ti que tomes uma decisão urgente para que o estrago não seja maior”.
221
Muitas pessoas acusavam a de práticas que rompiam com os ideais de norma exigidos
pela sociedade assim, refletindo em cima da acusação que se fazia, o judiciário interpretava
o adultério feminino como ato absolutamente grave não apenas por representar uma
mácula à honra masculina, mas também por compreender que o proceder buscava abrir
caminhos à desestruturação do conjunto da sociedade.
Manoel Maroja Netto, juiz responsável em oferecer o veredicto do caso, definia
que poucas razões tinham força de sustentar a separação de corpos e bens, isto é, o jurista
compreendia que o direito não poderia “vêr e interpretar” qualquer alegação realizada
pelos cônjuges como um motivo em potencial para se promoverem rupturas dos vínculos
conjugais e lhe cabia decidir a quebra de união tão importante. O representante do direito
fazia apelos aos colegas para que não se deixassem enganar por qualquer mal-estar
conjugal, embora acentuasse que os atos adulterinos e os de sevícia e injúria fossem,
conforme exposto, “insupportaveis em qualquer relação matrimonial, desse modo quando
provadas estas praticas não tenho outra alternativa que não seja a do desquite, assim por
estarem sufficientemente provados os repetidos adulterios da senhora Maria Christina
Mavignier de Castro, decreto a sua separação”.
222
Em variadas partes de seu veredicto
ficava inteligível que o convívio de uma mulher casada com outro homem representava a
corrupção não apenas da honra do esposo, porquanto o problema não “é em si o homem
traído, mas o mau exemplo que o fato oferece á sociedade”
223
e ainda afirma ser necessário
“pensar nos impactos nefastos perante a vizinhança, os amigos, os parentes, e
desconhecidos que viessem a saber da tão ingloria ação, enfim, faz-se premente pensar na
sociedade”.
224
Curiosamente o juiz não se motivava, ou ao menos não deixava
transparecer, por qualquer preocupação em relação ao traído, mas sim sobre os efeitos que
o adultério feminino poderia provocar no conjunto social.
Cartas, murmúrios e informações de amigos e vizinhos mostraram-se
suficientes para que Conde se transformasse em requerente da separação de corpos e bens
contra a esposa. As aventuras” extraconjugais da consorte eram publicizadas e
221
Carta escrita por dona Mariana Conde ao irmão Francisco Conde. O documento foi anexado ao processo
de desquite impetrado pelo senhor Conde.
222
Parte da sentença do auto de desquite litigioso impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina
Mavignier de Castro, 1917.
223
Idem.
224
Idem.
156
apresentadas pelos informantes como de domínio público na cidade de Maranguape;
percebe-se que as notícias circulavam com bastante rapidez em um ambiente onde
comentários e conversas maldosas certamente apresentavam-se indispensáveis, isto é,
notas no mínimo desagradáveis de práticas adulterinas viajavam diariamente pelo
Atlântico, nos vapores do trajeto Ceará-Belém. Assim, certamente, cônjuges e amantes
foram alvo de tripudiações e galhofas, tanto que a testemunha Tiburcio José da Silva
observava que: “o facto narrado é conhecido e commentado não em Fortaleza como
tambem em Maranguape onde ela tem parentes”. Os prováveis movimentos da esposa
teriam se tornado domínio público, visto que seus supostos atos de adultério proliferavam;
as posturas da descrita como incapaz de “resistir a paixão dominante que sentia pelo
referido doutor Balthar” tinham trânsito livre entre a capital cearense, a cidade de
Maranguape e Belém.
Com estas declarações não se quer afirmar nem mesmo sugerir que na ausência
dos esposos ou amásios as mulheres tendessem ao adultério. O assunto o é probante e a
rigor ninguém está autorizado a concluir isso. Os amantes constituídos, tanto quanto os
houve, não se condicionavam ao sentido da ausência de um ou de outro, porquanto se
argumenta que os vôos extraconjugais realizavam-se em virtude de conveniências, de
necessidades, de desejos que foram articulados na ausência, mas também na presença dos
companheiros. Ocorriam onde a ocasião se lhes proporcionava. Enfim, outras teias sociais
se montavam quando as relações amásias ou matrimoniais deixavam brechas. No entanto, é
no nimo curioso notar que tanto no caso de Mário Pereira de Carvalho quanto no de
Francisco Conde, as tramas extraconjugais de suas esposas desenrolaram-se na ausência
deles: o primeiro fazia constantes viagens à cidade de Gurupá ficando em Belém, a
mulher; o segundo encontrava-se na cidade de Xapury, enquanto a consorte morava no
Ceará.
Entretanto, em Belém, a ausência dos maridos ou amásios não era razão para
jogos e táticas de sedução iniciarem, visto que amantes se constituíam conforme
conveniências e relações de reciprocidade entre um indivíduo e outro não sendo preciso,
deste modo, a distância; quando se estava próximo também se faziam esses laços, assim
como havia comentários e murmúrios. Mas como escreveu Alain Corbin,
225
as ausências
225
CORBIN, Alain. “Bastidores: gritos e cochichos”. In: PERROT, Michelle. (Org.). História da vida
privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 563
/ 611.
157
ou negligências conferem a cada um novos campos de responsabilidades e possíveis juras
de amor, de fidelidade eterna, de cumplicidade e de proteção da prole ignoravam-se em
momentos de instabilidade emocional. Veja-se assim que, quando a convivência não mais
se mostrava interessante, a menor das dificuldades da vida em comum era portadora de
força social capaz de lançar por terra as tentativas de se construir quer o amasiamento, quer
o casamento, quer a família, enfim, fazer das convivências conjugais um porto seguro.
Estes domínios mostraram-se frágeis na Belém novecentista quando se confrontavam com
projetos individuais de vida.
De intrigas ou efetivamente de uma vida extraconjugal, a esposa do senhor
Raymundo Nonnato de Siqueira, senhora Estellita Monica de Assis, foi oficialmente alvo,
em 1921, quando seu esposo apresentou ao judiciário processo de separação de corpos e
bens. Afirma-se oficialmente porque desde 1913 comentários de parentes, vizinhos e
amigos indicavam ao marido práticas extraconjugais de sua mulher. Raymundo era
estivador e aos 32 anos iniciou o desquite. Por seu turno, a esposa contava 28 anos e
dedicava-se às prendas domésticas. O casamento ocorreu na cidade de Belém em 18 de
dezembro de 1909 e a ação iniciou-se em 02 de setembro de 1921; isto quer dizer que da
realização do matrimônio ao autuamento passaram-se 12 anos; no entanto, segundo os
autos, os querelantes mantiveram vida em comum apenas até 1913, o que representou 04
anos de vida sob o mesmo teto.
226
Todavia, dos 48 meses de convivência somente por 24 o
casal teria vivido em paz. Da vida juntos houve tempo de lançar ao mundo dois filhos,
Pedro Lucio de Siqueira, 11 anos e Edith Amelia de Siqueira, 9 anos.
227
Como e quais intrigas, histórias e comentários recaíam sobre a conduta de
Estellita que conviveu – até quando possível – ao lado do esposo?
Imputava-se-lhe a acusação de adultério, que teria sido cometido logo após o
nascimento do segundo filho, ou seja, a mulher era acusada pelo marido de ter sido
seduzida e de ter cedido aos encantos de um indivíduo conhecido por João Bernardo de
Oliveira. Com este teria deixado o lar, entregando-se “a uma vida toda irregular”. Quando
Oliveira a deixou, amasiou-se com “um bombeiro municipal” e em seguida partiu para
“Manaus, continuando a viver vida inteiramente irregular e sempre adultera”. Infelizmente
226
Em sessão anterior foi debatida a concepção de que o tempo de casamento não significava tempo de vida
sob mesmo teto.
227
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundo Nonnato de Siqueira contra Estellita Monica de
Assis, 1921.
158
no processo não há datas da mudança dos prováveis amantes, mas ao voltar de Manaus a ré
passou a morar na Travessa 9 de Janeiro nº 79, onde se amasiou novamente “com um outro
individuo, com quem está vivendo concubinada”.
228
Esta ação correu à revelia. Nenhuma
palavra foi proposta em juízo pela acusada. Dando significados aos anos de 1913 e 1921,
os mesmos representam, respectivamente, o possível primeiro amante e o início do
desquite. Entende-se que, por cerca de 08 anos, a esposa teria constituído 03 amantes, além
dos de Manaus. A vida amorosa dos consortes foi bastante curta, assim como as que se
forjaram com os prováveis amantes ou seja, em média a cada 02 anos e seis meses a esposa
de Raymundo trocava de concubino. Com esta documentação, conjectura-se que a senhora
Estellita Monica de Assis e os seus companheiros não se faziam de rogados em iniciar e
terminar relações conforme as necessidades exigidas pelo tempo em que se vivia, mas
novamente lança-se o questionamento: como e quais intrigas, histórias e comentários
formaram-se contra a conduta de Estellita, os quais ajudaram a conduzir ao fim a vida
conjugal?
Este é sem dúvida um questionamento confuso que envereda pelo cotidiano
destas pessoas. Confuso porque o fim efetivo das teias conjugais, ao que tudo indica, não
aconteceu em 24 de novembro de 1921 quando o juiz Maurício Cordovil Pinto julgou
procedente a ação decretando “o desquite pedido em inicial”, mas sim por volta de 1913
quando ecoaram os primeiros comentários jocosos, murmúrios, certezas ou suspeitas do
adultério da esposa. O questionamento também é complicado de responder porque autos de
desquite são documentos técnicos e por isso eram utilizadas estratégias próprias do direito
nas quais, ao mesmo tempo em que se procurava argumentar incisivamente contra o
cônjuge que se desejava culpar, buscava-se também não lançar em ridículo diante da
sociedade aquele que acusava. De tudo isso, ao menos algo gico pode-se depreender:
considerando o matrimônio como a busca da paz seja a amorosa, a financeira ou outra
qualquer, este referencial teria começado a se fragmentar com o envolvimento que a
senhora Estellita manteve com o senhor João Bernardo de Oliveira, ou seja, a partir de
uma relação extraconjugal. Todavia, diversos campos do cotidiano são impossíveis de
perceber, como as razões que a levaram a tal prática.
Dos casos em pauta, o judiciário não interpretava como delírios, conversas,
murmúrios inconsistentes de vizinhos, amigos, parentes e testemunhas as acusações de
adultério feminino, tanto que decidiu pela separação em todos os processos onde a
228
Idem.
159
acusação era essa, pois afirmava em geral que o abandono voluntário do lar e o adultério
ficavam bem provados, indicando assim a culpabilidade das acusadas.
229
Essa imputação
contra uma esposa era considerada grave em qualquer instância, tanto no judiciário quanto
na cotidianidade da vizinhança e amigos, porquanto o ato era interpretado como violação
consumada da conjugal por um ou outro dos cônjuges, acentuava Tito Fulgencio.
230
Desta forma, o poder jurídico tomava a acusação de envolvimento com outro parceiro
amoroso como “verdadeira”, e a gica do direito favorecia aqueles que acusavam suas
esposas de práticas adúlteras.
Interpretou-se em páginas próximas desse capítulo que o judiciário não
intervinha no movimentar de casais amásios quando o assunto era “relações extra lar”;
231
no entanto, tanto na sessão anterior quanto nesta, argumentou-se que, se por um lado esse
segmento social [os amásios] não realizava práticas a dois vistas como higiênicas, por
outro fazia exigências que o aproximavam desses discursos, tais como o da cobrança de
fidelidade mútua e pedidos insistentes de provimento familiar que recaíam sobre os
homens.
Visto isso, somente mais uma observação reafirmadora se faz necessária em
que pesem as relações de amásios: tratava-se de segmento social que constituía forma
familiar à época tida como ilegítima pelos setores conservadores da sociedade, mas que
na vivência cotidiana punha em prática movimentos que semelhavam as recomendações
ditas higiênicas.
229
Em geral estas concepções foram encontradas nos seguintes autos: Auto civil de desquite litigioso
impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina Mavignier de Castro, 1917. Auto civil de desquite
litigioso impetrado por Raymundo Nonnato de Siqueira contra Estellita Monica de Assis, 1921. Auto civil de
desquite litigioso impetrado por José Chagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira,
1936. Auto civil de desquite litigioso impetrado por Mário Pereira de Carvalho contra Maria de Jesus Castro
de Carvalho, 1938.
230
FULGENCIO, Tito. Do desquite: theoria legal documentada processo jurisprudencia nacional. São
Paulo: Saraiva & Companhia, 1923.
231
O termo pertence à senhora Jacyntha e foi retirado do auto civil de investigação de paternidade que
impetrou contra Vicente Pereira Leal, 1921.
160
CAPÍTULO 3
JUDICIÁRIO, COTIDIANO E CONFLITOS FAMILIARES
161
1. PENSAMENTO JURÍDICO PARAENSE
O judiciário paraense decidiu largamente por veredictos equiparados quando
mulheres amásias ou esposas impetravam processos de provisão alegando pobreza
insolvente e necessidade familiar. Isso porque, em qualquer forma de ruptura [seja a do
casamento dito legal, seja a do amasiamento], os filhos sempre figuraram como razão de
preocupação para a família, para os que se separavam, para a sociedade e para a justiça.
Conforme esse pensamento, as sentenças que amparavam estas autoras usavam a
argumentação de que se fazia premente a preservação das necessidades básicas da prole
[mas principalmente as da sociedade]. Tomando como ponto de partida as diversas
decisões consultadas que versavam não apenas sobre ações de alimentos, mas também nas
de investigação de paternidade, notou-se a grande freqüência com que contemplavam as
reivindicações das que as impetravam, sendo que algumas vezes tanto as decisões quanto
as razões usadas pelos juristas do Pará giravam em torno da sedução
232
que essas mulheres
teriam sofrido “ingenuamente” no início da relação conjugal ou marital.
Em relação a esses documentos, ainda a esclarecer algumas questões.
Mesmo as mulheres constituindo-se as maiores impetrantes dos autos de investigação de
paternidade e alimentos, os filhos “ilegítimos”
233
maiores poderiam por si mesmos iniciar
essa ação [de investigação de paternidade] que, deve-se afirmar, era prerrogativa sua.
Assim as mães que apareciam como impetrantes representavam legalmente os direitos de
seus filhos menores. Enquanto os mais reputados jurisconsultos brasileiros, imprensa e
público em geral discutiam fervorosamente em quais bases deveria concentrar-se a
investigação de paternidade, pois tal processo também era visto como moralizador da
sociedade, os homens da lei conseguiram proibir que os descendentes ilegítimos
processassem uma mulher casada para que esta os reconhecesse, isto é, proibia-se a
investigação de maternidade. A este respeito o próprio redator do Código Civil, Clovis
232
O Código Penal Brasileiro de 1890 no artigo 267 afirmava ser crime “deflorar mulher de menor edade,
empregando sedução, engano ou fraude”. A pena era de 01 a 04 anos de prisão. Consultar: Código Penal dos
Estados Unidos do Brasil de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. O Código Penal de 1890
eliminou a lei que punia a sedução de mulheres adultas ditas honestas. no Código Penal Brasileiro de 1940
a prática da sedução era crime nos seguintes casos: “seduzir mulher virgem menor de dezoito annos e maior
de quatorze e ter com ella conjunção carnal aproveitando de sua inexperiencia ou justificavel confiança”. A
pena para esse delito era de “02 a 04 annnos”. Veja-se: Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1940.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.
233
Consultem-se os artigos 389 & 398 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
162
Bevilaqua, ao comentar o artigo 364 explicava que, em virtude de ser a maternidade uma
certeza normal, tornavam-se raras as intervenções judiciais com o objetivo de comprová-la.
No bojo desses diálogos chamava atenção o argumento de que a legislação não desejava
perturbar a “paz de uma família” com um escândalo sem proporções, ao atribuir um filho
ilegítimo a mulher legalmente casada. Para melhor explicar o que expressava o referido
artigo, Bevilaqua deu o seguinte exemplo: “imagine-se que uma senhora, quando moça,
teve um filho natural, fructo do abuso de um seductor. Esse filho occulto das vistas de
todos foi creado por alguem de confiança dos avós. Mais tarde, a senhora casa-se, tem um
procedimento digno, é respeitada pela sociedade, estimada pelo marido e adorada pelos
filhos legitimos. Esse primeiro filho é illegitimo, mas não adulterino. O Codigo não lhe dá,
entretanto, acção para investigar a sua maternidade”.
234
A julgar pelas observações do
proeminente jurisconsulto, nas condições acima descritas o ato sexual fora do casamento
seria tolerável, porquanto havia acentuada preocupação em se defender a ordem familiar
brasileira. O exemplo escrito por Bevilaqua também faz lembrar uma vasta bibliografia
que analisou a prática sócio-cultural de ocultar os descendentes ilegítimos justamente para
proteger a honra das mulheres e da sua família.
235
Com referência aos alimentos, boa parte das tramas seguintes são de impúberes
representados por um parente adulto, quase sempre a genitora.
236
Era possível os pais
impetrarem auto de provisões contra o filho; com esta combinação encontrou-se um
processo onde a mãe, Maria Ferreira de Jesus, 72 anos, viúva, doméstica, miserável no
234
Consultem-se os comentários de Clovis Bevilaqua sobre o artigo 364 do Código Civil Brasileiro.
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1952.
235
Ronaldo Vainfas e outros historiadores têm demonstrado que esse argumento é especialmente válido para
a Colônia. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997. Para o mesmo período, vejam-se também: FARIA, Sheila de Castro. A
Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A Queiroz /
EDUSP, 1984. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Condição feminina nos
conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil 1750 / 1822. Brasília: EDUNB, 1993. TORRES-
LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo: Loiola,
1999. TORRES-LONDOÑO, Fernando. “El concubinato y la Iglesia em el Brasil colonial”. São Paulo:
Estudos CEDHAL, USP, 1988.
236
Para esta sessão é de suma importância compreender o que seriam filhos legítimos e ilegítimos. Os
primeiros devem ser entendidos como todos aqueles que surgiam de pais legalmente casados, mas também se
poderia legitimar uma criança por meio do casamento posterior ao nascimento. Os ilegítimos dividiam-se em
naturais e espúrios, sendo que estes se subdividiam em incestuosos e adulterinos; os primeiros eram os que
nasciam de pais parentes em grau em que o casamento tornava-se proibido (ver art. 183 do Código Civil) e os
adulterinos os que procediam de relação adúltera. Os naturais, por seu turno, eram os que procediam de
pessoas que não possuíam nenhum impedimento ao casamento, mas que por alguma razão não o celebraram.
Consulte-se: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
163
sentido da lei impetrou contra o filho, Melchiades José das Neves, Cabo do Regimento de
Cavalaria da Polícia Militar do Estado, casado (porém separado de sua mulher).
237
O artigo
397 do Código Civil discorria que a prestação de alimentos era recíproca entre pais e filhos
e extensiva a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau;
238
foi
este dispositivo da lei que Maria e Vicente Portugal Junior, seu advogado, utilizaram
contra o Cabo da Polícia Militar. Argumentava-se em juízo ser a peticionária sozinha, ter
uma idade que a impedia de trabalhar, estar completa e desumanamente abandonada pelo
filho e que “negra” miséria batia à soleira de sua porta. Em um auto bastante curto (iniciou
em 14 de novembro de 1940 e terminou em 20 de janeiro de 1941) e que correu à revelia
do u, o juiz Mauricio Cordovil Pinto o sentenciava favorável à peticionária, condenando
o senhor Melchiades a prestar alimentos provisionais a sua genitora no valor de sessenta
mil réis (60 $ 000) mensalmente. Os homens casados e amasiados poderiam iniciar
ação de investigação de paternidade [mas não a de alimentos], muito embora nenhuma
fonte tenha sido localizada em que eles figurassem como impetrantes, apenas amásios
contestando essas acusações das ex-companheiras. Sequer foram encontrados autos onde
uma mulher casada tenha requerido investigação de paternidade. Nesse caso, 100 % dos
processos coligidos iniciaram-se por mulheres amásias que desejavam reconhecer os filhos
para depois solicitar provisões e herança; desta maneira, fato também importante que
emana destes documentos é que parte dos casos vinha acumulado, isto é, as requerentes
solicitavam investigação de paternidade e de alimentos conjuntamente; em alguns deles,
mulheres casadas entravam com ação de alimentos e em outros impetravam autos de
desquite cumulados com os de provisão e partilha de bens.
Desta maneira, diante da multiplicidade dos textos documentais, a questão que
se lança é a de compreender como o poder jurídico paraense acolhia igualmente as
argumentações apresentadas por mulheres (casadas e amásias) se o próprio judiciário bem
como a sociedade insistiam em taxá-las como diferentes entre si. Se diversos processos se
promoveram por agentes consideradas à época espúrias, nesse caso quais as razões de o
poder jurídico de Belém ter-se colocado variadas vezes favorável a estas personagens tão
combatidas pela pretensa “boa moralidade higiênica”?
237
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Ferreira de Jesus contra Melchiades José das
Neves, 1940.
238
Consulte-se o artigo 397 do Código Civil Brasileiro. BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados
Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.
164
Note-se que tais fatos podem ser observados nos próprios veredictos dos juízes,
por exemplo nas ações que a senhora Alzira Gonçalves Galeão, 32 anos, brasileira,
doméstica, miserável no sentido da lei, solteira, promoveu contra os herdeiros de Demetrio
Moreira Pereira Lima, também de 32 anos, solteiro, branco, funcionário municipal,
paraense, falecido no Hospital dos Alienados em 14 de maio de 1932. Da vivência vieram
ao mundo três filhos: Eduardo, nascido em 21 de fevereiro de 1927; Leonardo, nascido em
10 de novembro de 1928 e Eunice, em 11 de abril de 1930. Em 1940, certamente muito
bem orientada pelo advogado Vicente Portugal Junior, dona Alzira anexou aos autos dos
processos que movia o registro de batismo do filho Leonardo, onde o senhor Demetrio
figurava como pai, pois o havia registrado. Como adiante se verá, o inciso terceiro do
artigo 363 do Código Civil Brasileiro afirmava ser prova cabal de paternidade a existência
de escritos em que esta fosse reconhecida. Tratava-se de declaração voluntária que o pai de
Leonardo fizera, desse modo a tática no bojo do judiciário era de, por meio do registro do
referido filho, inferir e reforçar o argumento de que o falecido seria igualmente o
progenitor dos [seus] irmãos. O jurisconsulto paraense Mauricio Cordovil Pinto, ao
analisar o caso, considerava injusto, depois de uma convivência duradoura, a “amasia não
sahir com bens suficientes que pudessem viabilizar a sua vida depois da morte do
amasio”.
239
Em caso similar, o jurista Manoel Maroja Netto julgou os dramas entre Maria
Jacyntha Felix, 32 anos, solteira, serviços domésticos, brasileira e Raymundo Pereira de
Souza, que morreu em acidente ferroviário no Rio de Janeiro, embarcadiço, solteiro.
240
Da
vida sob o mesmo teto, o casal marital teve três filhos: Raymunda Fiderina de Souza,
Manoel Beda de Souza e Maria de Lourdes de Souza. O juiz, ao estudar as tramas e
dramas, considerou que após alguns anos de vida em comum nada mais “coerente a amasia
ter onde morar”.
241
Considera-se que estas e diversas outras sentenças dos juízes paraenses
concentravam-se na vida cotidiana amásia, uma vez que os casos julgados pelos juízes
Mauricio Cordovil e pelo o seu colega Manoel Maroja Netto envolviam proles que
surgiram dessas relações. Assim era tática recorrente dos jurisconsultos paraenses procurar
conjugar vínculos entre o dia-a-dia e os sentidos legais que o poder jurídico possibilitava.
239
Auto civil de investigação de paternidade e petição de herança impetrado por Alzira Gonçalves Galeão
contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima, 1940.
240
A investigação de paternidade impetrada foi contra Vicente Pereira Leal, pai do amásio falecido.
241
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Maria Jacyntha Felix contra Vicente Pereira Leal,
1921.
165
Ao se considerar esta conjectura é de suma importância pensá-la como portadora de
intensos preceitos reguladores que tinham como objetivo central os direitos ditos à época
“imemoriais” da sociedade, e isso quer dizer que a preocupação com os principais
envolvidos na querela apresentava-se secundária.
Como se verá a seguir, existiam limites entre os posicionamentos ditos legais
[as exigências do direito] e o dia-a-dia para se comprovar paternidade, isto é, quando estes
processos e os de alimentos, por exemplo, mostravam-se confusos de ser julgados “apenas”
por meio dos parágrafos e incisos do Código Civil, havia a necessidade de se recorrer ao
social, ao cultural, ao político, ao econômico da vida privada dos envolvidos. O juiz
Alcebíades Marques Buarque de Lima, em 1931, quando arbitrava a ação de investigação
de paternidade promovida por Balbuciana Gomes Silva contra o ex-amásio Valentino
Soares Carneiro, afirmava que: as leis para este caso, não possibilitam interpretação
inteligivel do caso, por isso tenho que conhecer melhor a vida da impetrante e do
impetrado. Tudo isso é importante para que a sociedade, a moral, os bons costumes, a
família não sejam lançados no pantano do indecoroso, visto que se comprovou ser esta
relação amasia iniciada por meio da sedução e do defloramento, assim esta mulher tudo
indica já ter sido vitima em outra oportunidade de seu amasio”.
242
É inegável que os filhos são constantemente lembrados nas tramas desta
natureza, mas somente após a idéia de que as primeiras preocupações concentravam-se na
salubridade social que poderia advir do caso. Em alguns dramas de sedução, como se verá
na sessão seguinte, os jurisconsultos paraenses também se aproximavam dos argumentos
que se estão construindo para os envolvidos em autos de paternidade e alimentos. Em
outras palavras, na sedução seguida de defloramento, existia claro intuito em se preservar a
moralidade social, ou seja, com tal arranjo buscava-se forçar o matrimônio para que se
mantivesse uma “pretensa moralidade higiênica” da família, visto ser “melhor” um
casamento forçado na Chefatura de Polícia à deflorada ficar sem casar. Desta forma,
igualmente, a inquietude partia do bem-estar da sociedade para depois chegar às
defloradas.
Os posicionamentos dos jurisconsultos indicam as conseqüências do que os
veredictos poderiam provocar no viver citadino, visto que estavam em jogo interesses
nobres e nevrálgicos como os da moralidade. A rigor, para os juristas, um deslize, uma
242
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Balbuciana Gomes Silva contra Valentino Soares
Carneiro, 1931.
166
sentença arbitrária tinha o poder de impor a desordem e o anti-higiênico sobre Belém. Em
1917, Maroja Netto afirmava que “uma investigação de paternidade é processo tenue assim
depende de mim ter muita habilidade para que não transforme uma criança totalmente
desclassificada em legitimada, isso seria terrivel para mim, mas principalmente á
sociedade, ao homem a quem condenaria para “sempre”, á familia, á moralidade, aos bons
costumes”.
243
A opinião do jurista paraense é detentora de expressiva força histórica, por
exemplo, o que desejava afirmar quando se preocupava em não querer transformar uma
criança que dizia ser “totalmente desclassificada em legitimada”? Inegavelmente refletia
acerca dos filhos adulterinos e incestuosos, uma vez que estes em momento algum
poderiam ser transformados em legítimos. Reforça-se desta forma o argumento de que
existiam alguns preceitos reguladores das decisões tomadas pelos juízes, os quais ficavam
evidentes em sua preocupação, pois partiam das dinâmicas impostas pela experiência dos
sujeitos envolvidos. Muito embora em pesquisa feita para a cidade de Campinas Mariza
Correa
244
percebeu que o mundo do direito é formado em função de um amplo sistema de
significações constatação que é recorrente para a Belém desta tese. Desta maneira, para o
jurisconsulto em questão, as representações sociais, culturais e morais da família eram o
que eram em virtude dos sentidos que delas emanavam mediata ou imediatamente, direta
ou indiretamente, ou seja, Maroja Netto notava que julgar investigação de paternidade
apresentava-se difícil por envolver um conjunto complexo de mútuos interesses e assim
preferia ambientar suas preocupações em espaços onde a dinâmica com a realidade
funcionasse através de um mundo de significações que provinham de horizontes sociais.
Destarte acusava-se, defendia-se e julgava-se pensando não necessariamente no
crime cometido, mas na conduta do impetrado e do impetrante, isto é, estava em questão o
que o não reconhecimento de um filho bem como a recusa em se prestar alimentos poderia
provocar no bojo da sociedade em que se estava inserido. Nota-se que os juristas paraenses
demonstravam rigor ao procurar localizar nas tramas que julgavam as imagens do
“padrão” e do “desvio”.
245
Desta forma, em um processo em que uma mulher [esposa ou
243
O estivador e amásio de dona Doroteia havia morrido no porto da cidade de Belém. Auto civil de
investigação de paternidade impetrado por Doroteia Nascimento Gonçalves contra os herdeiros de Aloizio
Vasconcellos Gomes, 1917.
244
CORREA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: GRAAL,
1983.
245
Para uma excelente análise acerca do padrão e do desvio, consultar: VELHO, Gilberto. “O estudo do
comportamento desviante: a contribuição da Antropologia Social”. In: VELHO, Gilberto. (Org.). Desvio e
divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999, pp. 11 / 28.
167
amásia] argumentasse necessidade de alimentos em virtude de “ser miserável no sentido da
lei”, como foi o caso de Balbuciana contra Valentino, os advogados logo utilizavam a
tática jurídica de que havia um “desvio” no comportamento, pois o amásio deixou os filhos
jogados à miséria, bem como se lançava mão da existência do “padrão” moral, visto que o
representante do direito afirmava ser, em qualquer circunstância, obrigação dos pais
proverem a subsistência dos filhos, o que o amásio não vinha cumprindo.
Há taxativa diferença quando se transita entre a experiência e a legislação, veja-
se que o artigo 363 e seus respectivos incisos, 1º, e 3º, do Código Civil, afirmava a
respeito dos rebentos ilegítimos: “os filhos illegitimos de pessôas, que não caibam no art.
183, ns. I a VI, têm acção contra os paes, ou seus herdeiros, para demandar o
reconhecimento da filiação: I. Se, ao tempo da concepção, a mãe estava concubinada com
o pretendido pae. II. Se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo
supposto pae, ou suas relações sexuaes com ella. III. Se existir escripto daquelle, a quem se
attribue a paternidade, reconhecendo-a, expressivamente”.
246
Esclarece-se que a prole
ilegítima natural poderia ser reconhecida em qualquer tempo por meio de acordos
amigáveis diante da justiça ou através de processos de paternidade, porém a espúria [os
adulterinos e os incestuosos] em hipótese alguma se poderia reconhecer, embora não se lhe
negasse o direito à pensão, quando impúbere. Exemplo importante neste sentido é o auto
de investigação de paternidade cumulado com o de alimentos impetrado, em 1919, por
Judith Almeida da Paz, 22 anos, dedicada a servidos domésticos, paraense contra
Alvarengo Conceição Duarte, 25 anos, paraense, pedreiro; este era legalmente casado com
outra mulher e ao que tudo indica os amantes tiveram uma filha, Beatriz Almeida da
Paz.
247
No decorrer do processo ficou provado, para a justiça paraense, que a menor era
espúria/adulterina, logo o reconhecimento tornava-se impossível e por isso, em sentença,
Manoel Maroja Netto julgava improcedente a ação de investigação de paternidade
proposta. Por outro lado, ditou procedente a de prestação de alimentos. Para o Código era
adulterino, portanto, o filho de pessoas casadas e desquitadas mesmo se o parceiro fosse
solteiro; isto ocorria porque o desquite [como se analisou no capítulo 1] dissolvia tão
somente a vida conjugal e não os vínculos matrimoniais. Desta maneira, impunham-se aos
cônjuges os mesmos deveres de fidelidade a que eram obrigados na vigência da sociedade
246
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
247
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Judith
Almeida da Paz contra Alvarengo Conceição Duarte, 1919.
168
conjugal. Por seu turno, os incestuosos eram os nascidos de parentes próximos, como entre
irmãos. Enfim, o Código Civil Brasileiro afirmava que, nestas circunstâncias, os filhos
seriam espúrios e que em nenhum tempo seria possível reconhecê-los, muito embora
tivessem direito a pensão.
Em conformidade com a lei, o reconhecimento de filhos adulterinos seria
impossível, porém quando as interpretações passam para o cotidiano nada impedia um
homem que vivia na condição de concubino com uma mulher legalmente casada mas
separada sem a presença da justiça ou mesmo por meio dela fosse a um cartório e
reconhecesse um filho provindo desta relação reconhecidamente adulterina. Em 1918, este
ajuste familiar sob o mesmo teto aconteceu na cidade de Belém. A combinação foi
localizada nos autos de anulação de registro civil impetrados por Josepha de Jesus
Guedelha, brasileira, domiciliada na Vila do Pinheiro contra Maria Francisca da
Conceição
248
e as tramas buscavam confirmar que a exeqüente era irmã do falecido
Francisco da Costa Guedelha, paraense, branco, 29 anos, que este inquestionavelmente
viveu concubinado com Maria Francisca da Conceição, 30 anos, paraibana, casada com
Manoel Alexandre de Soares e que de seu marido teve os filhos José da Luz, 16 anos mais
ou menos, empregado no comércio e uma menina chamada Belém e finalmente que entre o
irmão da autora e a nasceu em 05 de outubro de 1914 um filho que passou a se chamar
Benedicto Cantidio de Nazareth Guedelha, isto é, pelo sobrenome e registro de nascimento
confirmava-se que o pai deste era Francisco da Costa Guedelha; a infração à lei foi
possível porque o genitor se dirigiu por conta própria a um cartório e o registrou em seu
nome. Do movimento apreendem-se diversas nuances, por exemplo, o evidente cuidado e
preocupação que o senhor Francisco dispensava ao filho mesmo sabendo que era
espúrio/adulterino, o desvelo e sensibilidade em sua criação tanto que procurou deixá-lo
amparado com bens e ganhos do Montepio. Entretanto, como se vem analisando, esta ação
social era irrealizável segundo a jurisprudência. Reforça-se assim a idéia de que a força do
direito tinha limites o que torna imprudente tomá-la como imoderada no seio da sociedade.
No entanto quais as intenções da impetrante em iniciar auto tão delicado, que
haveria de expor claramente as fragilidades da legislação? Com toda certeza não era o
cumprimento da moralidade estrita da lei, visto que as querelas da anulação do registro de
Benedicto giravam diante dos bens [não se sabe quais] deixados pelo seu falecido pai,
248
Auto civil de ação ordinária para anulação de registro civil impetrado por Josepha de Jesus Guedelha
contra Maria Francisca da Conceição, 1918.
169
assim como sobre o fim da pensão que o menor vinha recebendo do Montepio. Conforme
os que compuseram as tramas, o que se questionava era a herança deixada pelo falecido a
um filho adulterino, sequer se argumentava em juízo que Benedicto não se constituísse em
filho do irmão da impetrante. Como será analisado no decorrer deste capítulo e no seguinte
os bens sempre verteram grandes apreensões e igualmente tiveram o poder de trazer à tona
sensíveis problemáticas de foro privado das famílias como no caso em pauta, o
reconhecimento de um filho adulterino.
Esclareça-se que ações de paternidade aproximavam-se às de pensão
alimentícia, pois várias vezes vieram conjugadas e também é de suma importância lembrar
que elas se articulavam recorrentemente com o argumento da sedução. Concernente aos
filhos legítimos e ilegítimos, o Código Civil afirmava que quando menores de idade, teriam
a sua mantença e bem-estar de responsabilidade dos pais; morrendo um deles, a
obrigatoriedade ficava com o sobrevivo. Assim a lei garantia amparo em relação aos
alimentos imoderado em qualquer circunstância. Foi com esta idéia que advogados e
mulheres como dona Balbuciana, atrás analisada, e Joana Pinheiro do Vale
249
se armaram
para enfrentar o poder jurídico paraense.
Ao se analisarem as representações dos processos de paternidade cumulados
com os de alimentos bem como a legislação da época, nota-se claramente que os juízes
paraenses inquietavam-se com a noção do direito à moralidade higiênica, ou seja, com o
que se categoriza aqui de preceito regulador da pretensa homogeneidade social e moral
estável. A este respeito, Mauricio Cordovil Pinto, no caso de pensão alimentícia que
Marinalva Conceição Alves, 22 anos, operária, paraense impetrou contra o ex-amásio
Evandro Nunes Soares, 34 anos, também operário, paraense,
250
afirmava que: “a vida
marital vinha muitos anos, 10 anos, por isso é injusto que a amasia não seja
recompensada com bens e boa” pensão que possa viver e educar os seus filhos
convenientemente. Caso eu não proceda assim o que será da sociedade belenense?” Um
pouco mais à frente o jurisconsulto considerava: “amasia e filhos podem se transformar em
problemas maiores para á sociedade como por exemplo ampliar as margens da prostituição
e da gatunagem” e em seguida anotava que “trata-se de mulher sofrida, visto ter iniciado
sua relação de forma desastrosa: sendo seduzida e depois deflorada, por isso condeno o réu
249
Esta agente social será analisada no capítulo seguinte. Auto civil de prestação de alimentos impetrado por
Joana Pinheiro do Vale contra Edgar dos Santos Vale, 1940.
250
Auto civil de pensão alimentícia impetrado por Marinalva Conceição Alves contra Evandro Nunes Soares,
1920.
170
a pagar o valor de cento e cinqüenta mil réis (150 # 000) mensais a Marinalva Conceição
Alves”. Novamente levava-se em conta o tempo de convivência amásia, bem como se
reconhecia ser justo a companheira e os filhos saírem com bens e pensão suficientes para
que pudessem manter-se.
Mais uma vez, para se oferecer veredicto nos processos provisionais, o direito
paraense procurava a existência de possíveis táticas de sedução. Então unir esta aos de
alimentos e paternidade era estratégia portadora de significados importantes, isto é,
desejava-se provar a vitimização das mulheres e daí possibilitar-lhes veredicto favorável.
Esta pretensão é inteligível nas sentenças dos casos em que o poder jurídico paraense
mostrava-se responsável, pois como afirmou Cordovil: amásias e filhos poderiam
transformar-se em problemas maiores à capital paraense.
Muito embora o Código estabelecesse quatro classes que se acionadas poderiam
prestar alimentos, em expressivo número dos casos analisados a dívida alimentícia foi
impetrada por mulheres que representavam em juízo os seus filhos e somente em uma
trama atrás analisada uma mãe impetrou ação contra o filho. Para além desses, os que
poderiam requerê-la eram: “os paes e os filhos; na falta destes, os ascendentes, na ordem
da proximidade; os descendentes, na ordem da successão e os irmãos assim germanos
como unilateraes. Considera as duas ultimas classes: os descendentes e os irmãos. Não vae
além da divida allimentar. Nem attinge aos collacteraes além do segundo gráo, nem aos
affins.”
251
Quando alguém passava a prestar alimentos, o seu valor era arbitrado conforme
as faculdades econômicas do fornecedor, assim como as necessidades do alimentário. Se
porventura o alimentante viesse a enfrentar “considerável depressão econômica” que o
impossibilitasse de honrar a obrigação poderia “ser della dispensado”, porém se os seus
bens somente diminuíssem, a pensão anteriormente arbitrada deveria ser
proporcionalmente reduzida, e nestes casos cabia ao juiz decidir pelo decréscimo ou pela
dispensa do direito. Se por outro lado, o credor se transformasse em próspero, o juiz
poderia arbitrar igualmente pela cessação do pagamento; também o alimentário tinha o
direito de pedir aumento de pagamento se sua penúria crescesse e os bens do alimentante
prosperassem.
252
A obrigatoriedade de prestar alimentos terminava se ocorresse a morte do
251
Consultem-se os artigos 389 & 398 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
252
Consultem-se os artigos 400 & 401 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1917.
171
alimentante, bem como a do alimentando; quando os beneficiados deixassem o estado de
necessitado e em virtude de empobrecimento dos que alimentavam.
As defesas e acusações jurídicas retinham-se, antes de tudo, nas ditas margens
da ordem, da moral e da honra, isto é, apresentava-se como obrigação de quem acusava
convencer o judiciário de que os movimentos do impetrado ameaçavam e corroíam
constantemente a norma dos bons costumes. Assim, para julgar, o direito via-se diante de
elaborações de imagens, de teias sociais complexas que envolviam o controle da moral
familiar a qual se articulava em campos de luta de diferentes dimensões, como o bem-estar
da prole. O exercício de julgar era uma elaboração social e para transformar uma pessoa
em penalizável buscava-se atacar as mais tênues “infrações” que a conduta moralizante
exigia. A noção de que o ato de julgar e os penalizáveis eram construídos é aspecto que
deve ser entendido como essencial diante do poder jurídico das primeiras décadas do
século XX paraense, isto é, por terem clientes a defender, os advogados construíram
narrativas no seio do que se entendia como civilizador e moralizante. É necessário
considerar que os espaços são complexos e múltiplos, pois tratava-se da formulação de
diversas versões acerca das qualidades ou não dos indivíduos; deste modo os adjetivos e
predicados valorativos foram essenciais à produção de veredictos que indicassem à
condenação ou à absolvição dos acusados nos autos de pensão alimentícia, paternidade e
desquite. Na construção dos discursos e julgamentos cruzavam-se valores, experiências,
vivências que, ao serem narradas e esmiuçadas, formavam paulatinamente padrões do que
se desejava como moral e honesto aos comportamentos. Do mesmo modo os juízes
paraenses como Maurício Cordovil Pinto possuíam um ritual de julgamento, onde
interpunham e intercalavam informações, caminhavam por um e outro setor do direito para
impor dúvidas e mesmo eliminá-las, enfim, a torto e a direito tornava-se indispensável o
uso do filtro jurídico. Isto acontecia porque, ao julgarem processos de desquite, pensão
alimentícia ou investigação de paternidade, os juízes compreendiam que um dos princípios
basilares do direito é o da norma social. Dada a sentença de maneira imperativa, os
representantes [do direito] cumpriam o seu papel, porquanto tratava-se de alguém com
autoridade sancionada e adequada para determinar um sistema desejado preciso de
coerções e punições. Na experiência cotidiana este dado representava que o sistema
jurídico movia um conjunto variado de posicionamentos e movimentos de pessoas que
tinham escalas de comportamento absolutamente distintas, todavia o direito interpretava
que todos deveriam ser inseridos em único padrão de códigos morais, sociais e culturais,
172
como por exemplo o de ser um bom provedor. Os padrões jurídicos ignoravam a noção de
que as fronteiras do comportamento dos homens e mulheres nas diversas situações
oscilavam repetidamente, ou seja, desconsideravam que a mentalidade é uma estrutura
difícil de ser modificada em virtude de uma forte rede de interesses e sentimentos que os
indivíduos elaboram. De tal modo, o judiciário compreendia possuir um modelo oficial de
investigar e sentenciar. Jamais examinava convenientemente a noção de que cada grupo e
pessoa possui seu próprio sistema de expressão. A este respeito belo exemplo deu Marc
Bloch quando afirma que “o escrivão, quase espontaneamente, organiza, esclarece,
restabelece a sintaxe, poda as palavras julgadas demasiado vulgares”.
253
O autor afirma
com propriedade que entre o fato e o que se disse e se escreveu referente ao fato há grande
distância, ou seja, os articuladores do direito impõem sensíveis filtros onde se tolhem,
acrescentam-se palavras, maneiras de pensar e agir, como já analisado. Evite-se a polêmica
que esta incisiva intervenção impossibilita a compreensão da vida cotidiana de pessoas
como Joana Pinheiro do Vale x Edgar dos Santos Vale, Marinalva Conceição Alves x
Evandro Nunes Soares, uma vez que, como se vem argumentando, elas deixaram traços de
suas experiências de vida tanto nos processos que impetraram quanto em documentos
como cartas, matérias jornalísticas e diários. Seja nas fontes emanadas do poder jurídico,
seja nos acima citados é possível notar os indivíduos nomeando as suas condições de vida.
Enfim, ao estudar e conjugar leis e experiências do cotidiano, o direito no Pará
e possivelmente o de outros Estados
254
construíram um ritual de julgamento no ato da
promulgação do veredicto que buscava articular fatos longínquos com os do presente: se
houve sedução no início da vivência marital, se mães e filhos representavam perigos à
sociedade, as “reais” necessidades dos impetrantes, o tempo de vida sob o mesmo teto.
253
O exemplo está precisamente no capítulo “A análise histórica: julgar ou compreender”. In: BLOCH,
Marc. Apologia da história ou ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 141.
254
A existência de rituais no ato de julgar é prática recorrente nos inúmeros tipos de processos jurídicos, por
exemplo na pesquisa em que analisou os significados dos crimes passionais para a cidade de São Paulo,
Andréa Borelli constatou diversos rituais até se chegar ao veredicto. Ver: BORELLI, Andréa. Matei por
amor: representações do masculino e do feminino nos crimes passionais São Paulo nos anos 20 e 30.
Dissertação de mestrado apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São
Paulo: Mimeo, 1997. Rituais para se comprovar defloramento também foram observados nas pesquisas
realizadas por Caulfield no Estado do Rio de Janeiro, veja-se: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra:
moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918 / 1940). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2000.
Para o Estado de Minas Gerais, consulte-se: SOUSA, Vera Lúcia Puga de. Paixão, sedução e violência: 1960
/ 1980. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH /
USP). São Paulo: Mimeo, 1998.
173
Aos juristas das primeiras décadas novecentistas, o tempo da vida marital e as possíveis
práticas sedutoras parecem ter sido referências importantes para se tomar decisões frente as
ações de paternidade e alimentos. Em suma, o que se pretendeu enfatizar foi o caminho do
ritual usado para chegar-se a um veredicto: em primeiro lugar os jurisconsultos
mostravam-se preocupados em não ferir qualquer convenção dita moral ou higiênica da
sociedade e apenas em um segundo plano o cuidado voltava-se aos que impetravam os
processos. Com isso não se afirma de modo algum que os cônjuges, os amásios e os filhos
ilegítimos e legítimos inexistissem como parte da sociedade, mas sim que, no momento do
julgamento, havia clara separação entre estes e os interesses ditos maiores do conjunto
social. Em conformidade com isso, fica inteligível o sentido de o poder jurídico acolher as
argumentações apresentadas pelas mulheres matrimoniadas e amasiadas, isto é, se se
“apenas” impetrar processo era visto como problema em potencial, o embaraço poderia
ampliar-se caso as mulheres e os filhos se transformassem respectivamente em meretrizes e
vagabundos.
Nos próximos itens serão melhor interpretadas as tensões que envolveram autos
de paternidade, alimentos e desquite.
2. SEDUÇÃO E DEFLORAMENTO NO COTIDIANO BELENENSE
“Os paes são muitas vezes culpados.
Da infelicidade dos filhos na vida matrimonial, os paes são muitas
vezes os culpados. Ou não os vigiam, ou então deixam-os namorar
com quem não devem, ou ao menos com tanta liberdade e até
desenvoltura que para evitar um escandalo tem de se apressar o
casamento.
- Paes, vigiae vossos filhos e filhas e não vos fies da fraqueza
humana. Não deixais namorar as filhas onde vós não as vejaes, e
muito menos haveis de permittir que vão passear sosinhas com os
seus noivos. Não imagineis que vossas filhas são incapazes de
cahir no abysmo. Se julgaes que ellas hão de resistir á seducção
enganae-vos. Não sabeis que fraco é o coração das mulheres
sobretudo na edade do casamento”.
(“A Palavra”. Belém, 07 de janeiro de 1923, p. 02)
A Igreja Católica compreendia a necessidade sistemática de vigilância sobre os
filhos, incumbência esta que recaía normalmente nos pais. A Santa Sé orientava, pois, os
genitores no sentido de não deixar namorados desacompanhados por longos períodos, quer
em passeios, quer em casa. Estes deveriam ser então constantemente vigiados para se
174
evitarem práticas de sedução e posteriormente possíveis alianças urgentes na Chefatura de
Polícia. A Instituição compreendia ser o enlace matrimonial ato solene que deveria
realizar-se em momento oportuno e de forma conveniente, isto é, sem atropelos, seguindo
as fases ditas “normais”: namoro comedido, noivado pouco demorado e a celebração do
consórcio, sendo assim indesejável sua realização por meio da força policial, jurídica ou
de parentes. A liberdade dos filhos, acreditava a Igreja, era uma das causas de tantos
casamentos apressados sem base econômica, sem residência, sem amor; desse modo o
Clero passava a orientar os pais para que vigiassem seus filhos e filhas, uma vez que a
fragilidade humana crescia quando o assunto se detinha na proximidade física entre um
homem e uma mulher. Para procurar deter o “mal” da sedução, e conseqüentemente os
matrimônios apressados dava-se aos genitores a incumbência de vigiar os casais para
poupá-los da “fraqueza da carne”, não deixá-los namorar escondido e em nenhuma
hipótese permitir que passeassem a sós.
Estes desejos eram corriqueiramente abandonados em virtude da conveniência,
ou seja, em alguns casos, quando a sedução seguida de defloramento ocorria, o caminho
dito higiênico encurtava-se. Exemplo neste sentido foram as tramas que envolveram
Djalma d` Albuquerque Dias e Etelvina Lopes Bandeira que, em 17 de junho de 1917 em
momento inoportuno, segundo as referências da Igreja Católica, matrimoniaram-se na
cidade de Belém. O contraente, natural do Estado do Pará, 19 anos, empregado público,
domiciliado e residente em companhia de sua genitora, Josephina de Albuquerque Dias, à
Avenida Nazareth, nº 91. Seu pai, Joaquim Alves Dias, havia falecido em 29 de setembro
de 1905. A contraente também paraense, 19 anos, prendas domésticas, domiciliada e
residente em companhia de seus pais, João Paulo Bandeira e Evangelina Lopes Bandeira, à
Avenida Gentil Bittencourt, nº 146. Djalma e Etelvina asseveravam perante o judiciário
que pretendiam contratar núpcias e queriam que tivessem “(...) logar com a maior
brevidade para evitar o grande damno que a demora lhe pode causar visto achar-se
deflorada a nubente e ter o seu pae de embarcar para o Açu”.
255
Desejava-se apressar
[como aconteceu] o matrimônio, porém é necessário entender essa urgência mais em
virtude do defloramento e menos em decorrência da viagem do pai da noiva; julgava-se ser
este razão suficiente à pressa matrimonial, tanto que em tais momentos dispensavam-se os
255
Auto de desquite litigioso impetrado por dona Etelvina Lopes Bandeira Dias contra Djalma de
Albuquerque Dias, 1946.
175
proclamas. Para o direito de família, a dar crédito a Clovis Bevilaqua,
256
a causa de
omissão dos documentos de praxe poderia provir de grave moléstia que colocasse em
perigo a vida de um dos nubentes, e por necessidade de ausência em razão de trabalho
público. O jurisconsulto evocava estes motivos para dispensar proclamas e certamente não
esqueceu, apenas preferiu calar, que o rapto seguido de defloramento apreendia-se
igualmente como argumento utilizado na desobrigação [dos papéis].
O senhor Djalma, por força de pressão dos parentes da deflorada, da justiça, por
“sua livre e expontanea vontade” ou por essas forças conjugadas, desejava “reparar o mal
cometido”, dizia Manoel Carlos de Mello Cezar, natural do Ceará, 50 anos, advogado.
257
Além da referida testemunha foram constituídas outras duas: Antonio Teixeira Lemos,
advogado, 26 anos e Francisco Chagas de Araújo, empregado no comércio, 22 anos. Eles
confirmavam as mesmas informações como a de que conheciam de longa data os nubentes,
que sabiam não serem estes parentes e que entre eles inexistia qualquer impedimento
conhecido. Entretanto uma declaração prevalecia: a de “que o nubente tem urgencia de
effectuar o seu casamento porque havendo deflorado a nubente deseja de sua livre e
expontanea vontade reparar o mal feito o mais breve possível”. No bojo das construções
destes discursos é importante notar as profissões de duas das três testemunhas: advogado.
Conjectura-se que o noivo se via diante de possíveis pressões e ameaças para casar, isto é,
provavelmente lhe foi lembrado que o “mal cometido” facultava entendimento com a
justiça criminal.
258
Há a enfatizar, nas narrativas das testemunhas, o modo como
compreendiam o defloramento, a força moral que a virgindade mantinha nas leis
republicanas, destarte chegava-se a ponto de os juristas entenderem ser esse ato resolvido
apenas por uma de duas formas: matrimônio ou instaurar processo-crime. O sedutor-
deflorador, como se verá a seguir, poderia ser pressionado pelo poder jurídico, pelos
parentes ou vizinhos, sendo que estes “representantes” da “moralidade” buscavam
resolver o embaraço causado por meio do estabelecimento de vínculos conjugais. Quando
256
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1952, p. 11.
257
Testemunha do auto de casamento em que são contraentes Djalma de Albuquerque Dias e Etelvina Lopes
Bandeira, 1917.
258
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle-Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Sobre as tramas de Djalma e Etelvina, veja-se: CAMPOS,
Ipojucan Dias. “Cotidiano conjugal e discursos jurídicos em Belém nas primeiras décadas do século XX
(1916 / 1940)”. In: PROJETO HISTÓRIA 33: História e direitos. Revista do Programa de Estudos Pós-
Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: EDUC, 2006, pp. 329 /
341.
176
tal caminho era impossível, um processo-crime teria lugar ou mesmo a “lavagem” da honra
com sangue.
Ainda de acordo com a fonte, encontrou-se que, na formação do jovem casal
familiar, foram gastos alguns mil réis para colocar em ordem os documentos exigidos pela
lei civil. O registro de nascimento do noivo custou seiscentos réis ($ 600); o da noiva,
trezentos réis ($ 300); emolumentos, seis mil e quinhentos réis (6 $ 500) e as diligências do
casamento, dez mil réis (10 $ 000). As despesas organizaram-se na ordem de dezessete mil
e quatrocentos réis (17 $ 400), soma certamente não desprezível para um empregado
público de 19 anos que vivia, em 1917, na cidade de Belém. Sobre família e custos recorre-
se a dona Laura, pessoa bem conhecida nesta tese, que ao lembrar das orientações dadas
por sua mãe e escritas em seu diário, em 1931, afirmava: “minha querida mãe me alertava
que para um bom casamento era essencial o amor e pôder sustentar convenientemente a
familia. Diante dessa questão ella contava uma historia de um casal Xavier e Francisquinha
que consumou matrimonio por volta de 1917, sendo que o noivo não tinha qualquer
condição de suprir as necessidades basicas de uma prole, pois era funcionario publico da
intendencia e ganhava cento e cinqüenta mil reis mensalmente” e mais à frente afirmava
que “para se celebrar o casamento civil na cidade de Belém gastava-se por volta de vinte
mil reis, 20 $ 000, mesmo sendo bem mais em conta se comparado com o religioso,
ninguem pode dizer que fosse um valor baixo a um funcionario da intendencia”.
259
Comparando os dados seriam gastos, apenas com a organização dos papéis das núpcias,
13,33 % do total dos vencimentos do noivo.
Laura, ao reelaborar os ensinamentos de sua mãe, lembrava que o início do
século XX era momento difícil para constituir e prover convenientemente um lar. Ao
recordar os posicionamentos da genitora, rememorava que o jovem casal Xavier e
Francisquinha consumou núpcias “por volta de 1917”, sendo que os vencimentos da
nascente família eram de cento e cinqüenta mil réis mensalmente. Deste modo mãe e filha
consideravam montante insuficiente para a celebração das alianças, assim como à
mantença da ordem doméstica. Em relação aos dramas do senhor Djalma e Etelvina,
desconhecem-se os salários do noivo, apenas ser ele funcionário público, como o era
Xavier. Porém, mesmo não descartando existirem gradações nas remunerações entre os
funcionários, ao se tomar por base os números oferecidos por Laura de que os ganhos
mensais conseguidos por Xavier eram de cento e cinqüenta mil réis e as despesas de seu
259
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 10 de fevereiro de 1931.
177
casamento giravam sobre vinte mil réis, assim sendo nada muito distante das
possibilidades financeiras de Djalma para o mesmo ano e a mesma intenção: casar-se.
Nas tramas de Djalma e Etelvina a legitimação religiosa inexiste, ato que, se
fosse somado ao civil, tornaria o enlace ainda mais oneroso. Além das observações
realizadas por Laura e comparando-as ao casamento em análise, há outros indicativos de
que a quantia de dezessete mil e quatrocentos réis (17 $ 400) gastos na celebração
matrimonial [de Djalma e Etelvina] apresentava-se alta, assim como o custo de vida. A
título de comparação, estabelecimentos comerciais da capital paraense como o “Bazar
Americano” propagandeavam ser possível a uma família composta de 08 pessoas passar
diariamente com dois mil e novecentos réis (2 $ 900), isto é, com este dinheiro comprava-
se: “1 Kg 1 / 2 de carne de viração, 1 $ 650 mil réis; café, $ 200 réis; farinha Kg, $ 250
réis; pão, $ 400 réis; feijão Kg, $ 400 réis; total 2 $ 900 mil réis”.
260
Nota-se que ao escrever suas impressões relativas ao casamento, família e
possibilidades concretas de sustentá-la adequadamente, Laura estabelecia vínculos diretos
entre o tempo histórico vivido e o passado narrado por sua mãe.
261
Desse modo, é de suma
necessidade atenção, porquanto cada agente social busca imprimir em suas narrativas seus
próprios enquadramentos. Subjacente a esta análise, a narrativa acima trata de memórias
reelaboradas a partir de leituras feitas pela mãe e em conseqüência disso, quando o assunto
é a mediação entre presente e passado, entenda-se que a memória depende das
circunstâncias sócio-culturais de quem a realiza, bem como do que consegue lembrar no
momento da escrita.
262
A questão que se impõe com a narrativa desse e de outros casos de
defloramento seguidos de casamento é notar como se tramavam os sentidos da sedução e
defesa, assim como os discursos para e pelo judiciário sobre as questões defloramento e
matrimônio. O necessário para parte da sociedade (família e Igreja) era a urgente reparação
do “mal”, pouco importando se o deflorador e a deflorada fossem maiores ou menores de
idade e se pudessem ou não sustentar uma família; mas havia sentido nesta aparente
260
A Província do Pará. Belém, 30 de julho de 1922, p. 03.
261
Para uma análise consistente sobre as dinâmicas que se organizam entre passado e presente, remete-se a
dois autores especialistas no assunto: LE GOFF, Jacques. “Passado/presente”. In: História e memória. São
Paulo: Editora da UNICAMP, 1996, pp. 203 / 231. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra
história: imaginando o imaginário”. In: REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH 29:
Representações. São Paulo: Contexto, 1995, pp. 09 / 27.
262
LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: História e memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996, pp. 423
/ 483.
178
incongruência: procurar formar elos de aproximação entre defloramento e necessidade
urgente de consórcio, pois era primordial resguardar a ordem familiar.
O desvirginamento seguido por casamento era o indesejado, porém resolvia em
algum sentido o problema; na cotidianidade, impunha-se equação mais ampla e passível de
variadas combinações. Por exemplo, os jogos de sedução ou acusação podem ser
encontrados no auto de investigação de paternidade cumulado com o de alimentos a que
respondeu Mardomiro Sanches da Anunciação, 29 anos, solteiro, paraense, pardo,
marítimo, sabia ler e escrever, morador da casa nº 424 da Travessa Timbó que era acusado
de ter deflorado a menor Jeronima Vivalda Tostão, 18 anos, paraense; o réu não desejava
casar.
263
Vejam-se os sentidos da sedução e da defesa que a autora e o acusado utilizavam
em juízo. O senhor Chefe de Polícia afirmava que para o réu conseguir o seu intento [a
sedução] “comprou moveis e utensilios para a formação do novo lar e assim aproveitando
das circunstancias e da fraqueza de Jeronima com esta teve relações carnais no dia 13 de
janeiro desse mesmo anno em casa de Gorgiana Santana deflorando-a”.
264
Sanches fazia a
Jeronima reiteradas promessas matrimoniais. A compra do mobiliário expressava
significativa simbologia em torno das efetivas pretensões do namorado. A estratégia
certamente centrava-se em invadir e cercar de certezas a namorada, uma vez que, além das
promessas de enlace, presenciava a compra de objetos que formariam os recônditos do seu
lar.
Na epígrafe, documento escrito pela Igreja Católica em 1923, afirmava o
quanto era fraco “o coração das mulheres sobretudo na edade do casamento”, mais de dez
anos depois, em 1934, o Chefe de Polícia, ao argumentar as razões que fizeram com que
Jeronima cedesse aos jogos do namorado, recorria igualmente à fraqueza da mulher
quando se aproximava a idade matrimonial.
265
Dessa maneira aqueles que se vestiam com
as máscaras da ordem e da moral lançavam mão basicamente dos mesmos argumentos para
defender, mas também acusar as mulheres. Se por um lado não se questiona neste trabalho
a participação efetiva destas nas tramas de sedução, por outro, no início do século XX, para
muitos, elas eram frágeis diante das estratégias de sedução dos homens. Destarte, das
tramas em pauta e em diversas outras, interpretava-se a mulher como incapaz de ser
263
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Jeronima
Vivalda Tostão contra Mardomiro Sanches da Anunciação, 1934.
264
Idem.
265
Para uma análise sobre o que seria boa idade para o matrimônio, veja-se: CAMPOS, Ipojucan Dias. Idade
matrimonial em Belém nas primeiras décadas novecentistas. Mimeo, 2008.
179
detentora de ardis de defesa aptos a se contraporem às investidas dos homens, mas
“sempre” como pessoas que necessitavam da defesa dos irmãos, pais, parentes enfim, por
uma idealizada moralidade. A testemunha Tertuliana Moreira da Rocha, 20 anos, casada,
paraense, doméstica, branca, sabia ler e escrever, afirmava que Jeronima foi sua empregada
e era recorrente o assunto casamento entre deflorada e deflorador e que depois do fato
consumado “se desempregou da casa da respondente e foi morar na casa da família de
Mardomiro de onde a mesma foi posta na rua a uns meses atrás juntamente com
Mardomiro pois os pais deste segundo a respondente ouvio dizer haviam descoberto que
Mardomiro deflorou Jeronima”. Nos limites da cotidianidade tudo conspirava contra o
sedutor/deflorador e também contra a deflorada, visto que os pais daquele se colocaram
desfavoráveis às ações do casal chegando a ponto de expulsá-los da residência.
A conquista de um corpo virgem se apresenta ao conquistador como um
momento e acontecimento únicos e nada se apresenta mais desejável do que o que jamais
foi possuído por ninguém, pois “o frescor das nascentes secretas, o aveludado matinal de
uma corola fechada, o tom da pérola que o sol não acariciou ainda” são sensações que
atraem os sedutores.
266
Estas imagens eram desejadas por Mardomiro Sanches da
Anunciação, uma vez que o fim do desejo “é a consumação do objeto desejado”; assim
sendo as armas interpostas organizavam-se de forma bem variada por aqueles que se
lançavam às empreitadas conquistadoras, e o lançar múltiplos significados às artimanhas
utilizadas constituía-se trivial ao sucesso da causa, tanto que promessas de casamento,
objetos (mobiliário) e cartas fizeram parte das experiências cotidianas forjadas pelo réu.
Compromissos, obrigações, endividamentos morais, ao que tudo indica, foram assumidos e
sobrecarregavam Jeronima de planos e de esperanças, porquanto funcionavam
simbolicamente com vistas a uma convivência duradoura. Não obstante, vêm
freqüentemente à luz vestígios de elevada mobilidade de convencimento e de confiança
entre os que, tanto quanto se pode saber, movimentavam-se entre si com bastante
intimidade, notada em missiva enviada pelo réu a impetrante.
Leia-se a carta:
“Minha inesquecida Jeronima do coração.
Receba mil beijos deste que te ama.
Prezada Jerô estas mal traçadas linhas que acabo de escrever-te
estão representando o verdadeiro simbolo desse nosso torturado
amor.
266
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 196.
180
Minha filhinha já que é a aventura não concede-me passar mais os
antigos deliciosos estantes que outrora passei ao carinhoso lado
peço-te pelo amor que me tens a tua extremosa mãe que não fiques
mais ai na casa desta maldita vibora olha vou trabalhar este resto
de semana para ter dinheiro para tua passagem e para levareis para
tua mãe tambem comprarei tua meia Sabado. Domingo te espero
no canto da Segunda para nós ir na casa do teu tio sim meu amor!
Tenho muitas coisas a te contar mas so te fallando pessoalmente
tambem quero que me deixes como recordação do nosso amor o
travesseiro onde repousa o teu famoso rosto que so nelle repousara
ardente paixão que fica no meu pobre coração que te ama e adora
por toda a vida. Quero que tambem deixe teu endereço por escrito.
O resto do papel é para escreveres para mim tudo o que desejais de
mim ate a tua volta. Belém (ilegível), sem mais peço-te perdão
pelo sofrimento que já passaste por mim e que está (ilegível) ou
ate o dia de tua partida”.
267
É possível perceber na carta que o senhor Sanches atuava nas tramas da
sedução, ou seja, inquestionavelmente o “sedutor” mostrava-se ativo nos jogos da
conquista. Acentua-se o fato de que o namorado enunciava a pretensão de construir um
relacionamento duradouro e para tal empreendimento entendia ser de suma importância
elaborar um plano que proporcionasse segurança à sua pretendente; então, em seu jogo,
lançava mão de promessas e palavras suaves (inesquecível, amor, coração, beijos,
recordação), justamente para mostrar envolvimento profundo com a autora. Com efeito,
atente-se para o fato essencial de que este projetava sobre si um caráter que deveria
mostrar-se próprio e consistente: um sério envolvimento; e esta projeção de caráter era boa
estratégia nos interstícios da sedução não somente para convencer a amada, mas para
colocar-se em condições favoráveis diante da família dela e da sociedade. Agia-se tanto no
intermediar convencimentos em relação ao alvo a ser conquistado, como em vencer
batalhas contra aqueles que o circundavam. Nas estratégias de sedução havia um segundo
princípio, diretamente ligado ao argumento anterior: quando Sanches lançava uma
definição precisa de suas intenções pretendia, implícita ou explicitamente, caracterizar-se
de determinada forma e automaticamente exercer exigência moral diante das pessoas que
protegiam Jeronima, o que as obrigaria” a valorizá-lo e a tratá-lo da maneira como as
pessoas “de seu tipo” têm o direito de esperar ser tratadas.
Dez anos antes, em 1924, igualmente por meio de uma missiva o sedutor
Bertolino Alves de Amorim se complicava diante da polícia e da família de Minerva
Ferreira de 14 anos, ao escrever:
267
Carta anexada ao auto de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Jeronima Vivalda Tostão contra Mardomiro Sanches da Anunciação, 1934.
181
“Minha adoradissima creatura. Eu, este pobre moregador de
sentimentos, não pensei, ou melhor, nunca acreditei que a gente
pudesse morrer de amor. Mas, agora, que vi os teus olhos, admirei
o teu penteado “a lá garçonne”, extaziei-me enxergando todo o teu
corpo divino corpo em bamboleios apalhaçados, já não posso mais
fugir das garras desse tigre de bengala que se chama amor. E na
Africa selvagem dos meus instinctos barbaros revolucionam-se as
tribus antropophagas do meu desejo. Se tu, por um fortuito acaso,
me negares o teu affecto de mulher moderna, eu te juro pelos
santos que fizeram milagre na terra, que no estoirar medonho de
um legitimo “Colt” encontrarei a delicia suprema desta vida”.
268
Minerva respondeu ao amado da seguinte maneira:
“S’ eu te posso feliz fazer, meu bem, S’ eu te posso dar vida, dar
alento, à minha casa pobre á noite vem, tão freco e tão ligeiro
como o vento, um segredo de amor quero dizer-te ... Não falha,
pois, a confidencia, não !! Si de facto me queres, quero ver-te
junto a mim me apertanto o coração, na suprema delicia de quem
ama, que tudo nesta vida vence e inflamma”.
269
Cheirando a “extrato paysandú” Bertolino foi para o lugar marcado,
conversaram “trocaram idéias e idéias profundas”. O sedutor acusado de defloramento foi
preso e chamado às responsabilidades pelo Desembargador Chefe de Polícia. Este e
diversos outros casos de sedução devem ser percebidos como um conjunto de cenas
realizado em movimento, isto é, sons, gestos, suspiros e promessas efetivadas que partiam
de “códigos culturalmente prescritos”.
270
Bertolino x Minerva e Sanches x Jeronima sabiam
desta condição, tanto que estavam dispostos a entrar em um jogo que tinha suas
demarcações cio-culturais, como os significados das promessas amorosas e das palavras
utilizadas no ato da conquista. A partir das publicizações de sentimentos é possível traçar
variadas grades de análise em relação aos envolvidos nos projetos de sedução. Cartas
expunham acentuadas questões com os outros e também articulações de desejos, assim
como a intertextualidade íntima com um grau de sedução que permite observar assimetrias
ou discrepâncias entre o proposto e o realizável; conforme observou Jurandir Freire Costa,
“todo amor é desejo”, mas o oposto nem sempre se verifica.
271
Missivas enviadas
revelavam planos, esperanças, trocas, promessas de compromisso e de afinidades íntimas e
constituíam-se em provas cabais não somente nos defloramento, mas em outros espaços do
268
“A Província do Pará”. Belém, 23 de dezembro de 1924, p. 02.
269
Idem.
270
SEED, Patrícia. “Narrativas de Don Juan: a linguagem da sedução na literatura e na sociedade espanhola
do século dezessete”. In: CADERNOS PAGU: Sedução, tradição e transgressão, 2. Núcleo de Estudos de
Gênero / UNICAMP. Campinas: Publicações Pagu, 1994, pp. 07 / 45.
271
COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
182
poder jurídico como nos autos de paternidade, alimentos e desquite. Elas tinham a
faculdade de prova conduzindo os réus a posição bastante incômoda diante da justiça;
desta forma, o que melhor caracteriza a importância das cartas é o seu valor de confissão.
Os jogos de sedução estavam presentes entre Jeronima e Sanches bem como entre
Bertolino e Minerva, porquanto existiam proximidades intensas e íntimas entre os casais. O
escrito, por exemplo, não deixa dúvidas neste sentido e, se em dado tempo histórico,
promessas de amor eterno e de matrimônio caracterizavam-se como possibilidade de uma
nova vida, em outro estas inverteram-se em acusações de sedução, uma vez que a escrita
sempre foi uma forma de linguagem de forte significado sócio/cultural e aqui culpava
irreversivelmente o autor. a se considerar que o documento [escrito] exige a exposição
do outro no campo social e geográfico e ao mesmo tempo, com um mesmo poder de
comprometimento penetra aquele que escreve. Nesse caso enviar cartas em qualquer
tempo constitui-se em iminente perigo aos remetentes e destinatários, porque nelas
publicizavam seu íntimo, o privado das experiências vividas, da relação a dois.
A este perigoso domínio o senhor Sanches, com as suas “mal traçadas linhas”, expôs-se.
Apresentava-se como portador e “verdadeiro símbolo” de um “torturado amor” quando
por exemplo ditava seus propósitos” para Jeronima; assim, à medida em que articulava a
escrita, abria a todos sua vida com a namorada. Em certa parte da missiva, afirmava desejar
de sua “futura mulher” como recordação do amor existente entre eles “o travesseiro
onde repousa o teu formoso rosto que so nelle repousara a ardente paixão que fica no meu
pobre coração que te ama e adora por toda a vida”. Que aqui se apreenda que não há desejo
sem objetivo em si mesmo; o impetrado buscava o fim de seus interesses por meio de
promessas, objetos e palavras; em outro momento da carta, os compromissos eram
materiais, quando afirmava que compraria algumas meias à sua amada. Dessa forma, juras
de amor articulando-se com o material também apareceram por outros ângulos: utensílios
para formar o lar conjugal. As adjetivações realizadas pelo réu seriam cobradas em juízo
por aquela que se sentia ofendida em sua honra, pois quem lhe delegara amor eterno
recusava agora o casamento com o argumento de não se constituir em seu deflorador, o que
a impetrante negava. As acusações contra Mardomiro Sanches foram julgadas procedentes,
sendo condenado a pagar pensão no valor de cento e cinqüenta réis (150 $ 000) e a
reconhecer os filhos: Paulo Tostão e Marianinha Tostão. No decorrer dos jogos de
sedução podem-se ver muitos juramentos onde a conquista é o objetivo a ser conseguido;
desenvolver a amizade dos parentes, e principalmente a de quem se deseja seduzir
183
autorizava o valer-se de anseios “nefastos” à obtenção do desejo. Com isso a sedução era
bem elaborada, porquanto significava estabelecer com o outro o ato da conquista e
exercitarem-se projetos e programas previamente ordenados que fizessem as amadas cair
nos braços dos sedutores.
As estratégias contidas nos jogos de sedução e defesa impressionavam. As palavras,
declarações, objetos e sentimentos utilizados na conquista, enterneciam. Como se vem
analisando sobejamente, os jogadores dirigiam-se de forma diversa na empreitada e a
sedução passava necessariamente [do “sedutor” ao “seduzido”] pelo campo inevitável da
moral e da honra, isto é, era um domínio onde se tornavam, com freqüência, credor e
devedor. Ela avivava e trazia à tona objetivos e desejos, mas também esperanças e projetos
de uma vida a dois “estável”. Quem se propunha a seduzir, deveria praticar bem esta arte e
jogar argutamente no campo do convencimento que não se resumia apenas ao espaço da
conquistada, mas acentuadamente também ao de seus familiares: pais, irmãos, parentes.
Estes eram da mesma forma alvos e deveriam ser persuadidos em relação às intenções do
“D. Juan”. Conquistar espaços na família mostravam-se táticas imprescindíveis para que os
laços de confiança se estabelecessem minimamente e possibilitassem passeios pelas ruas e
parques da cidade, idas ao cinema enfim, fugas a dois sem a vigilância direta dos parentes,
amigos e vizinhos; a arte da conquista, como repetidamente se afirma, era múltipla e
complexa entre as partes envolvidas e podia também ser categorizada como uma
maquinaria de avanços e recuos no espaço ganho entre os parentes da família da “vítima”.
Basicamente, o que a sedução deixa entrever é uma contínua e relativa flutuação em seus
códigos, visto que inexistiam modelos pré-estabelecidos e o seu forjar é difuso por
envolver usos mundanos, o poder da palavra, a busca da confiabilidade sentimental, a
liberdade construindo uma espécie de fervilhamento que simetricamente é criador e
destruidor de sonhos. A rigor, seduzir colocava em evidência o trabalho das advertências e
das liberdades o que expunha regras explícitas e implícitas das vivências e das ligações
sociais; assim sendo o seu sentido pode ser a disponibilidade e transitividade que envolvia
diferentes redes de circunstâncias entre os amantes, e também entre amigos, pais, parentes,
vizinhos da conquistada e do conquistador. Em suma, estabelecer práticas sedutoras com o
outro não significava apenas aproximar-se intimamente do “alvo”, mas exercitar e lançar
movimentos cautelosos sobre um mundo nevrálgico que compunha os seus campos, como
o da família.
184
Existiam caminhos a ser percorridos; logo, pergunta-se: quais se trilhavam até as relações
íntimas se realizarem entre duas pessoas? Ou, como e quais meios se interpunham à sua
consumação? Atinente a estas questões a folha “A Província do Pará” pode ajudar, pois
buscava representar premissas ao publicizar diálogos dos namorados Marcionillo
Raymundo de Farias Borges e Geralda Maria de Farias: “– tu não póde avaliá quanto eu
gosto de tú, Ge! ... (...) Ora ... o que é o amô ! ? ... uma pedra jogada dentro dagua ...
faz ondas que depois desapparecem ... Mas o meu é de verdade ! ... si eu visse, e
experimentassi ! ... Queres? Vamos só! E os dois sahiram para um recanto pittoresco.
E conversaram até tarde sobre amores, carinhos, felicidades ... Quando voltaram para casa,
a Geralda levava na cabeça um ceu inteiro de promessas ...”.
272
A manobra do
convencimento por meio da conversa novamente se empregava, para persuadir Geralda
localizavam-se forças no argumento de que o amor prometido constituía-se verdadeiro e
que não representava “uma pedra jogada dentro dagua”. Os jogos amorosos e
conseqüentemente os de sedução possuíam espaços privilegiados: os recantos pitorescos,
as palavras, as conversas, os presentes (como será analisado), as promessas que se faziam
acerca das possibilidades de uma vida em comum foram movimentos cotidianamente
urdidos para se conquistar domínios sexuais na cidade de Belém.
O cotidiano e o judiciário procuravam definir fronteiras entre os que se envolviam em
constituições familiares pouco recomendáveis. Relativo ao poder jurídico, por exemplo,
deve-se ter cuidado ao acatar de forma ingênua suas aspirações diante da família visto que
é de suma importância compreender o imaginário das instâncias como marcadamente
atravessado por um discurso de neutralidade do julgador. Porém, efetivamente, a lei
articulada com as atitudes da sociedade [a saber: Igreja, testemunhas de defesa e de
acusação] estipulava padrões de conduta que considerava relevantes ou não-relevantes à
própria sociedade. Se se pensar o judiciário e a família desse modo, as questões que os
aproximam são bem mais complexas, em virtude de os discursos se engendrarem
impreterivelmente no que vem a ser ordem moral desejada. Diante disso sequer será
temerário afirmar que a pretensa neutralidade do julgamento de causas familiares encontra-
se na dependência da retórica das testemunhas utilizadas para chamar atenção de todos os
envolvidos na querela jurídica.
O casal Consuelo Aragão Baia, paraense, branca, serviços domésticos, sabia ler e escrever
e residia na Travessa da Estrela entre Vinte e Cinco de Setembro e Duque de Caxias s/n, e
272
“A Província do Pará”. Belém, 15 de novembro de 1924, p. 02.
185
Jairo Duarte Oliveira, português, branco, solteiro, 22 anos, comerciante, sabia ler e
escrever e residia na Vinte e Cinco de Setembro, canto da Travessa Estrela,
273
iniciou
convivência amorosa e neste caso estratégias de sedução também foram empregadas, como
a utilização de objetos (presentes), passeios e promessas de casamento, foram alguns ardis
que permeavam a geografia de ataque e defesa dos namorados. Desencontros
possibilitavam a publicização de foros íntimos dos envolvidos como a época em que o
defloramento teria acontecido, “15 anos incompletos”. Reforça-se a questão: como e quais
tramas eram empregadas nos jogos de sedução? Em juízo, Consuelo afirmava que desde
1928 entabulara namoro com o acusado e, por ser Oliveira comerciante, recebia dele
constantemente presentes como “mercadorias e outros como uma sombrinha e pares de
meias que ate hoje conserva em seu poder (...) e que com estes presentes Jairo Oliveira
sempre falava a respondente em casar-se com esta, que o namoro com Jairo Oliveira foi
sempre observado pela vizinhança de ambos não quanto aos presentes mandados e
recebidos como pelos passeios que ambos faziam sendo que a noite em companhia da
familia da respondente e algumas vezes durante o dia os dois apenas, que muitas vezes
Jairo Oliveira de noite levou a respondente e a familia desta aos cinemas (...)”. Presentes,
passeios e promessas de casamento são alguns dos eixos da cartografia da sedução na
cidade; estes argumentos eram recorrentes e inteligíveis, ou seja, serviam quer para se
defender quer para se acusar. Assim sendo, as mulheres aqui não podem ser peças
secundárias de um jogo maior orquestrado pelos homens: elas atuavam nas táticas de
sedução tornando-se, desse modo, boas jogadoras. Mesmo considerando a existência de
interesses divergentes, entende-se que o casal buscava [cada um a seu modo] interesses
individuais: conquista, namoro, defloramento, casamento.
Mas diante dos discursos de um e de outro, devem ser apreendidos como sistemas sociais e
redes táticas de escalas de poder que tinham por finalidade a conquista daquele que
julgava; desta forma as elocuções procuravam apreender domínios valorativos e
depreciativos, conforme os interesses que o momento exigia, porquanto o direito e o
cotidiano representavam conforme as aspirações e as conveniências históricas. Notável
neste sentido é perceber as manobras empregadas por Jairo Oliveira, permeadas de
construções de discursos, as quais, quando bem fundamentadas, eram tomadas como
verdadeiras e coerentes. Pedro dos Santos Torres, juiz do caso, foi favorável aos
273
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Consuelo
Aragão Baia contra Jairo Duarte Oliveira, 1930.
186
argumentos da autora e condenou o suplicado a reconhecer os filhos do casal, Jairo Baia e
Elizabeth Baia, e a pagar pensão no valor de cento e cinqüenta mil réis (150 $ 000)
mensalmente. Em 1932, dona Laura acentuava que “os argumentos e possiveis objetos
utilizados no ato da sedução, pelos advogados, tratavam-se de boas estrategias para se
provar as praticas de sedução”,
274
ao pensar sobre os campos sedutores a agente social
entendia ser necessário construírem-se projeções em torno da teia jurídica do acusar e do
defender, de modo amplo considerava que provar ou repelir possíveis práticas de sedução
dependia sensivelmente dos “argumentos apresentados por um e outro em juízo”.
Embora nas primeiras décadas do século XX, o casamento, o sexo, os filhos, a família
formavam-se na disciplina cronológica desejada por parte da sociedade e pelo judiciário,
como se salientou nos capítulos passados, naturalmente tratava-se do ideário de um sonho
que, se não predominante, era impetuoso. Matrimônio e em seguida ato sexual seria a
imagem almejada, mas como se vem demonstrando, nem sempre seguida nesta seqüência
pelos que constituíam diversas faces das tramas conjugais da cidade. Muitas relações
sexuais aconteciam sem necessariamente resultarem em núpcias e das quais surgiam
famílias duradouras e outras nem tanto, como se interpretou no capítulo 2. Quebravam-se,
em quaisquer das dimensões as aspirações de ordem moral, e a rigor quem oferecia
significados para si sempre foram os que se envolviam em raptos, defloramentos, uniões na
Chefatura de Polícia ou aqueles que se entendiam sem a necessidade da presença policial
ou judiciária. Todavia note-se que, por variadas vezes, quando o desvirginamento se
apresentava sem possibilidade de acordo entre as partes, era comum o caso ser
transformado em processo-crime, como aconteceu com o “réu João Castro da Gama, vulgo
“João Bandalheira”, apresentado pelo periódico “A Província do Pará” como o deflorador
de Jorgita Pereira de Almeida. Com referência ao episódio amoroso que envolveu os
amantes nada caminhava conforme o que se entendia por boa ordem social e familiar, aliás
as ações romperam com a chamada concretização da moralidade.
275
Nota-se que a sedução provocava intrusões na vida privada de muitos, isto é, parentes,
vizinhos e amigos recorriam com freqüência à polícia no afã de tentar minimizar o “mal”
cometido. A folha “A Palavra”, em 23 de março de 1919, situava críticas às ações daqueles
que se compraziam com alianças na polícia: “vergonhoso o que se passa em certas cidades.
Alguns moços e moças em vez de casarem com o decoro que deve acompanhar um acto
274
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 03 de janeiro de 1932.
275
“A Província do Pará”. Belém, 25 de outubro de 1922, p. 02.
187
tão importante da vida, casam-se por imposição das autoridades policiaes. Ora digam-me
se taes moços e moças tem vergonha na cara! Se a tivessem não procederiam de um modo
tão indigno ? !!”
276
Inexistia oposição ao consórcio, mas como e onde as núpcias se
realizavam: diante das autoridades policiais. O jornal católico, “A Palavra”, insistia em
que o ato de casar deveria ser respeitável e solene e o enlace diante dos representantes da
lei apreendia-se pois como ruptura de valores que deveriam fazer-se presentes em
celebrações desejadas nobres. Enfatize-se que a Igreja mostrava-se sempre a favor do
matrimônio, mas contra a combinação que resultava em sua realização: sedução,
defloramento, Chefatura de Polícia e união. Deste modo, sedução e desvirginamento
representavam um dos campos da inversão de valores; a ordem desejada não era o ato
sexual/casamento e sim o oposto: casamento e domínio sexual.
Mas nem a premissa jurídica ou a de qualquer instância social seriam capazes de
concretizar uma única forma de moralidade conjugal. Os sujeitos tramavam, traçavam e
conheciam variados ângulos de encontro a dois, encontros que provavelmente foram
interpretados como coerentes e necessários à urdidura de suas vidas; assim, repita-se,
seduções, defloramentos e raptos de namoradas que terminavam em acordos matrimoniais
na Chefatura de Polícia eram freqüentes para que o “mal” não terminasse em processo-
crime como o que passou a responder, em outubro de 1922, o senhor “João Bandalheira”.
Muito embora estas estratégias tenham sido observadas, pesquisas no Pará e em outros
Estados indicam que diversos casos terminavam sem a presença do judiciário ou com
veredictos contrários às mulheres defloradas: sem as núpcias ditas higiênicas.
277
Reparar o defloramento por meio da aliança apresentava-se como forma de evitar que o
caso se estendesse pelo campo criminal do direito. Foi o que certamente pensou João
Martins do Nascimento, vulgo “Marapuanea”, que “cahiu na graça da menor Nevia Costa,
de 17 annos de edade”. Segundo a narrativa publicada pelo periódico “A Província do
Pará”, intitulada “Raptou a namorada”, o sedutor vivia na mesma casa da amada em lugar
chamado “Alto do Bóde”, localizado na Avenida São Jerônimo, e conseguiu iludi-la “com
promessas de melhores dias na vida futura e afinal logrando a confiança da velha mãe de
276
“A Palavra”. Belém, 23 de março de 1919, p. 02.
277
A quem possam interessar estas temáticas, consultem-se: CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e
dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas populares na Belém do final do século XIX e
início do XX. Dissertação de mestrado apresentada na UNICAMP. Campinas: Mimeo, 1997. NEVES,
Fernando Arthur de Freitas. Amor, sedução e violência. Mimeo, 2000. Neste artigo, ainda não publicado, o
historiador Fernando Arthur Freitas Neves fez importante estudo sobre defloramento e sedução no interior do
Estado do Pará, cidade de Vigia. ESTEVES. Op, cit.
188
sua victima”. O senhor “Marapuanea” era descrito como homem cheio de “qualidades”:
bom sedutor e disposto a tudo para pôr “em pratica os seus planos indignos” contra a
vítima. Em suas pretensões amorosas consegue a confiança da mãe, e “no dia 28 do mez
passado, elle sahiu em passeio com Nevia, o mais voltando ao lar onde ella era querida,
raptando-a, conduzindo-a a logar ignorado”.
278
A mãe da menor, Olympia Costa,
apresentou queixa à polícia. Dois dias depois o mesmo periódico publicou matéria
intitulada: “Vae casar”. Esta dava notícia que haviam encontrado o sedutor e a seduzida e
que “no posto de S. Braz o raptor escovado declarou que offendera a sua amada,
desvirginando-a, querendo, todavia, reparar o mal consorciando-se com a offendida”;
279
explica-se assim por que a Igreja tanto se preocupava com os passeios dos namorados. As
táticas sedutoras eram variadas e localizavam-se de presentes a promessas matrimoniais,
mas é preciso entender a lógica desta argumentação no campo da conquista: a coerência na
sedução justificava-se porque o matrimônio era pensado como o regime mais “favorável”
para se realizar a família, uma vez que consolidava a moralidade dita homogênea.
Observa Michele Perrot
280
que o casamento sempre foi portador de significados, desejos e
garantias morais lançados à sociedade; exigia-se pois sua realização para se formar uma
família legal. Desta forma os sedutores, na cidade de Belém, lançavam mão da exigência,
embora buscando inverter a ordem desejada: “primeiro os desejos lascivos, depois
possivelmente o enlace”.
Títulos como “Raptou a namorada” e “Vai casar” foram comuns nas matérias dos
periódicos. Alguns dias depois do caso de João Martins do Nascimento com Nevia Costa,
“A Província do Pará”, em 19 de julho de 1924, publicava que Antonio Baptista Senna,
“operário da fábrica de cordas”, preto, solteiro, 20 anos, residente à Praça Hermes da
Fonseca, tempos namorava a portuguesa Glacinda da Conceição, 16 anos, moradora na
mesma via pública do raptor, 06. No dia seguinte, 20 de julho, o mesmo periódico
afirmava que “Antonio Baptista, que em a noite de ante-hontem raptou a sua namorada
Glacinda Gonçalves e attentou contra o seu pudor, foi preso hontem, e, uma vez na Central
e na voz de grade prontificou-se a reparar o mal que fizera, e isto no mais breve tempo
278
“A Província do Pará”. Belém, 06 de julho de 1924, p. 02.
279
“A Província do Pará”. Belém, 08 de julho de 1924, p. 02.
280
PERROT, Michelle. (Org.). “Os atores: funções da família”. In: História da vida privada: da Revolução
Francesa à Primeira Guerra. Vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 105 / 119.
189
possivel”.
281
É lógico que não se podem tomar estas afirmações como certeza de que as
alianças seriam realizadas pois é difícil acreditar que as palavras de Antonio fossem
verossímeis, ou apenas fizessem parte de jogos de defesa de quem se encontrava em
condições comprometedoras diante das autoridades policiais. Em outras palavras, é mister
perceber-se que nestas circunstâncias desfavoráveis, acertar consórcio diante das
autoridades representava uma forma de resolver, parcialmente, o embaraço. Como a Igreja
Católica publicava, famílias também se constituíam a partir dessas pressões e se tinham
início de forma indesejável, apresentavam-se mais aceitáveis do que a ofendida ficar sem
casar. O casamento tinha o poder [como se dizia à época] de reparar o “mal” cometido.
Preferi-lo nestas condições a enfrentar processo-crime constituía-se em estratégia para se
livrar da posição de réu no judiciário, muito embora raptos também se constituíssem em
práticas dos amantes para apressar as núpcias, no caso dos parentes serem contrários ao
enlace. Este campo de decisão representa ações próprias dos envolvidos, e ao mesmo
tempo revela o quanto se corria perigo; apresentava-se a deflorada à sociedade com termos
no diminutivo como “pobrezinha” ou por meio de comentários como “foi deflorada
porque se mostrava inclinada a corresponder ao namoro”. Com efeito, o exercício do
jogo de sedução atuava e neste sentido a ordem jurídica [por meio da edificação de
discursos das testemunhas e dos advogados] era a responsável pela formulação de culpados
e inocentes tanto nos processos de desquite quanto nas queixas de defloramento, além de
autos conjugados de paternidade e provisões. É imperativo, então, expor as interpretações
de Celeste Zenha.
282
Para a historiadora, a justiça produz em seu cotidiano o crime, assim
como o criminoso; desta maneira, os julgamentos que se faziam convergem às
considerações da autora, uma vez que o jogo de poder realizado no judiciário da cidade de
Belém do início do século XX era constante na construção de imagens de verdade diante
dos impetrantes e impetrados.
Lançar-se pois em uma “aventura” dessas proporções requeria propósito e finalidade
intensa, aliás, representava correr grande risco, conforme paragrafado antes, numa
sociedade em que se exigia a ordem moral. Com efeito, obrigar a união legal [para forçar
um enlace ou ter cedido em virtude de promessas matrimoniais] mostrava-se temerário à
noiva uma vez que foi estratégia comum dos acusados negar diante do judiciário possíveis
281
“A Província do Pará”. Belém, 19 de julho de 1924, p. 02 e “A Província do Pará”. Belém, 20 de julho de
1924, p. 02.
282
ZENHA, Celeste. “As práticas da justiça no cotidiano da pobreza”. In: Produção e transgressão.
REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA / ANPUH 10. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, pp. 123 / 146.
190
promessas matrimoniais realizadas e mesmo fugir depois de marcado o casamento na
Chefatura de Polícia. Um exemplo neste sentido foi o caso intitulado “Um “D. Juan” que
foge e com elle sua promessa”, publicado na “A Província do Pará”, 25 de outubro de
1924. A narrativa envolveu o chauffeur José Fernandes de Lima “que a bem pouco tempo
trabalhava no auto do dr. Oswaldo Barboza”; segundo o jornal, “atentou contra o pudor da
menor Maria do Rosario de Oliveira, residente á travessa Humaythá, s/n”.
283
O fato chegou
ao conhecimento das autoridades policiais do Posto do Marco que conseguiram prender o
ofensor, que confessou o crime. Em vistas disso, os homens da lei intermediaram
entendimentos entre o deflorador e a parte ultrajada, isto é, “o escrivão Malcher ficou
encarregado de tratar dos papeis para o consorcio, os quaes, uma vez terminados, foram
enviados ao escrivão da Vara, para os devidos effeitos”; no entanto, o referido D. Juan
Chauffeur” tinha outros planos para a sua vida sentimental, e nenhum passava pelo
consórcio. Todos os higiênicos planejamentos que enveredavam pelo campo matrimonial
foram interrompidos, visto ter o noivo fugido “desta capital, deixando a sua victima jogada
ao lôdo da deshonra (...) Ha tres dias atraz, quando já estava marcado o dia de se apresentar
no Palacete azul para o acto solenne, o José Fernandes desappareceu desta capital,
abandonando emprego e tudo mais, havendo provaveis suspeitas de que fugiu a bordo do
“Bahia”. Nota-se que os representantes da lei deliberaram pela aliança para “reparar a falta
commettida”, mas a dimensão que se vislumbra, neste caso, é que o direito não intervinha
nas tramas cotidianas de forma imoderada, porquanto as pessoas tinham poder de sair e
entrar de dramas amorosos driblando as malhas da vida e do judiciário.
Enfatize-se que o jogo das relações a dois precisava ser bem jogado; desta maneira,
padrões que se desejavam sólidos e de longa duração mostravam-se, em numerosos casos,
particularmente frágeis. Colóquios, palestras, convencimentos seguidos de promessas de
casamento e defloramento construíam boa parte da geografia das estratégias, mas também
se deve apreender que se tratava de experiências que buscavam equacionar e reequacionar
sentimentos. Entretanto, nos domínios do reelaborar, como no caso de José Fernandes e
Maria do Rosario de Oliveira, a chancela matrimonial apresentava-se útil e amplamente
empregada, ou seja, envolviam-se sem longos constrangimentos promessas de enlace nos
jogos de sedução e nos de defesa, embora na prática o “sacramento” fosse utilizado
conforme as conveniências e necessidades dos envolvidos. Com pretensões sérias ou nem
tanto, o que se deduz é que, preludiando casamento, as pessoas na experiência
283
“A Província do Pará”. Belém, 25 de outubro de 1924, p. 02.
191
reinventavam os seus sentimentos lançando mão da promessa de núpcias – nem sempre de
modo sério. As fugas após promessas de casamento seguidas de desvirginamento também
faziam parte das táticas de sedução e foram empregadas na cidade de Belém para escapar
de compromissos previamente acordados; assim nota-se que, se em certos meios recusar
desenvolturas sexuais era praxe, em outros este pré-requisito da pretendida moralidade,
inexistia. Entretanto, para os sedutores e amásios, ações sexuais fora do conúbio legítimo
“não representavam imoralidades”, pois é necessário ver estes espaços como portadores de
significado próprio conforme o desejado ao momento de sedução.
Em 09 de junho de 1938, o jornal “O Estado do Pará” publicou matéria intitulada “Afinal
de contas casa ou não?” O drama envolvia Benedicto Carlos da Rosa e Gonçala Avelina de
Lima, ambos operários da “Fábrica Perseverança” e por conta do fim do expediente todos
os dias saíam juntos até que “no dia 30 de maio desvirginou-a promettendo-lhe
casamento”.
284
A respeito das promessas matrimoniais, se se constituíam em principal ou
secundária ferramenta de sedução é pouco importante; no entanto o fato é que, em boa
parte dos documentos pesquisados, a estratégia da promessa do compromisso foi bastante
utilizada. No bojo dos acontecimentos, entende-se que a ofendida percebeu a demora de
seu ofensor em movimentar os papéis para o consórcio e assim cumprir as promessas
realizadas quando saíam do trabalho; desta forma, Gonçala tomou a atitude de pressioná-
lo, comunicando o sucedido à tia, Maria de Lourdes Souza, e as duas dirigiram-se à
Terceira Delegacia. Com tal proceder “apromptaram-se os papeis para o casorio que seria
hontem, ás 3 horas da tarde. Mas até ás 4 horas não havia o noivo apparecido para o
“conjugo vobis”. Segundo o jornal, o ofensor encontrava-se atrasado uma hora, sendo
necessário a Chefatura mandar “um policial buscar o noivo, na fabrica, elle negou-se a
casar, razão porque foi guardado na cadeia de São José até que ás cousas melhorarem e elle
resolva novamente a casar”. Prisões aconteciam por razões variadas: o não pagamento de
pensões alimentícias [como será analisado a seguir], brigas entre amásios e consortes e,
como é o caso em pauta, por defloramentos seguidos de recusa matrimonial. Pressões ante
os defloradores apresentavam-se constantes, bem assim as resistências, como a que
pronunciou o u, Augusto Vale Vivenda, em 1932: “eu vou me casar porque me pegaram
para casar”.
285
Reforça-se o argumento de que, para a Igreja Católica, o casamento nestas
284
“O Estado do Pará”. Belém, 09 de junho de 1938, p. 05.
285
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Marthilde Gevesia Bulhões contra Augusto Vale
Vivenda, 1932.
192
circunstâncias nascia com estigmas sociais, pois provocava dissabores, constrangimentos,
embaraços, desordens. Ao realizar pesquisas entre 1945 e 1964, Carla Beozzo
Bassanezi,
286
analisou que o matrimônio possuía códigos desejados como definidos e
triviais à estabilidade da sociedade; o namoro, por exemplo, tomava-se como parte de um
compromisso mais sério, o consórcio, e naturalmente, relações sexuais neste estágio eram
indesejadas. Aliás, ao tempo do namoro era preciso fugir de comentários frívolos da
sociedade.
Estratégias íntimas dos meandros de sedução ou defesa que envolviam
complexos entendimentos de sua cartografia, também se apresentavam em autos civis de
investigação de paternidade, onde se expunham assuntos acentuadamente particulares que
um dia pertenceram ao foro da vida marital.
287
Estes pressupostos, dona Mathilde da Silva
Teixeira foi obrigada a romper, porquanto revelou aos filhos Antonio da Silva Borges,
Rosa da Silva Borges, Maria da Silva Borges e Anna da Silva Borges – segredos tais como
partes de sua vida sexual com o amásio, Antonio Rodrigues Borges, aspectos que essas
pessoas os filhos tiveram de revelar ao judiciário, para se contraporem à senhora
Preciosa Rodrigues Borges que apareceu como única herdeira de Antonio.
288
Como se ,
espaços privados transmutavam-se em públicos exatamente por força das necessidades
impostas. Foram os supostos filhos do falecido Antonio que entraram com ação de
paternidade contra Preciosa. No entanto os descendentes sentiram os desconfortos e
inconveniências em publicizar a vida privada da mãe. Mathilde e Antonio iniciaram
“relações de conhecimento” em 1898, e ele, depois de muito insistir com “reiteradas
promessas de casamento”, teria conseguido enredar sua pretendente “levando-a para sua
casa” localizada na Rua Santo Amaro. Novamente promessas matrimoniais se encontram
nos jogos de sedução, e não as únicas. Nas teias em pauta, os autores e o advogado
286
BASSANEZI, Carla Beozzo. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações
homem – mulher (1945 / 1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
287
Sobre esta categoria, recorrer a Georges Duby é trivial. entretanto no interior das relações, segundo o
autor, conjuntos de sentimentos e de sensibilidades que representam desejos, alegrias, intrigas e tristezas, os
quais se formam no interior da vida amorosa. Estas representações da cotidianidade encontram-se no âmbito
do público, do privado e do secreto. Os campos do privado e do secreto são de difícil acesso. O primeiro é
espaço fechado ao exterior, porém localizado-conhecido e diante de algumas circunstâncias, acessível a
estranhos. O secreto é categorizado como o escondido; o protegido pelo silêncio; o não-dito; como aquilo que
se revelado será destruído; enfim, é o compreendido como se não existisse. DUBY, Georges. “Prefácio à
história da vida privada”. In: VEYNE, Paul. (Org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano
mil. Vol. I. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 09 / 11.
288
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonio da Silva Borges e outros contra Preciosa
Rodrigues Borges, 1931.
193
Henrique Infante Pinto de Castro afirmavam no libelo que foram empregados vários
“meios de sedução” os quais passavam das reiteradas promessas de enlace a belas palavras
sedutoras. No item três da acusação afirmavam filhos e advogado “que Antonio Rodrigues
Borges, com as suas fascinações, e com as suas repetidas promessas de casamento que,
constantemente, fazia a Mathilde, conseguiu alcançar as relações sexuais” almejadas com
ala. Representavam-se tanto Mathilde quanto o início da vida marital como um
deslumbramento, encanto, enlevo, fascínio, e deve-se observar ainda que, se promessas
existiram ou se se tratavam de jogos de defesa, o fato é que as mesmas não foram
cumpridas, isto é, a e dos impetrantes permaneceu em amasiamento durante longo
tempo, cerca de 15 anos, como afirma a sentença que lhe foi favorável contida nos autos de
investigação de paternidade.
Os jogos de sedução apresentavam-se enquanto categorias nos jornais da
cidade. A “Folha do Norte”, 01 de agosto de 1940, publicava matéria assinada pelo
“repórter amador” intitulada “A débâcle da mulher”. Nela, ao procurar demonstrar que o
juiz Raul Braga confundira-se ao impronunciar um deflorador, Hildemar, o autor
publicizava sua opinião sobre as estratégias de sedução, e de tal sorte questionava: “Mas o
que significa, no fim de contas, sedução? Seduzir é infiltrar no espirito, sempre incauto, da
mulher, pubere ou impubere, o germem nocivo e fecundo que a desorientará e virá a
perdel-a”.
289
Para o articulista, o sedutor possuía várias estratégias como passeios, pagar
mingaus e outras guloseimas aos acompanhantes de seu alvo, conseguir paulatinamente um
beijo, “um contacto furtivo em zonas erogenas, uma liberdade sensual de que pede logo
perdão e jura não repetir” e, logicamente, a principal, a “palavra que descerra os labios do
conquistador de mulheres é a promessa de casamento velho truc, raramente fallivel”.
Muito embora estas táticas fossem empregadas, algumas críticas devem-lhes ser feitas,
pois a conquistada é apreendida como de alvo e espírito ingênuos o que nem sempre
acontecia. A mulher era provida de malícia, porquanto, se se considera a sedução interface
de um jogo, não se recomenda vislumbrá-la unitária, isto é, elas também jogavam tanto
quanto os seus pretendentes e exemplar nesse sentido é notar que mesmo no matrimônio
inconsumado, as chamadas de “espírito ingênuo”, “fracas”, “que se iludem facilmente”,
negociavam as promessas até o momento de se sentirem suficientemente seguras à
efetivação dos vínculos carnais. Argumenta-se neste âmbito que o ato da conquista
corrobora simetricamente aos jogos e táticas de defesa; quer-se dizer que, em variados
289
“Folha do Norte”. Belém, 01 de agosto de 1940, p. s/i.
194
casos e ao tempo do esquecimento das promessas realizadas, recorria-se à justiça para ver
o “mal” reparado, constituíam-se advogados e testemunhas na busca de elaborar uma
versão aceitável dos fatos.
Entenda-se assim que o mapa da sedução era bastante espaçoso. Ela,
juntamente com os seus jogos, aparecia de forma diversa e múltipla tanto nas ões de
investigação de paternidade quanto nos periódicos. Porém no cotidiano, como esses
domínios eram interpretados? Em 09 de julho de 1924, “A Província do Pará” publicou
caso de defloramento que envolveu Anna Guida de Souza, 18 anos e o cozinheiro do vapor
“Walter”, Leandro Ayres Barboza que escalava os cinqüenta anos. A folha caracterizava a
sedução ocorrida entre essas pessoas como “fofoquinhas” que partiam de longos colóquios
desaprovados pela vizinhança. Os jogos funcionavam como disfarce, fingimento e
manifestação criminosa que se destinava a iludir uma mulher valendo-se de sua
inexperiência e da justificável conquista da confiança para manter o intento desejado: “a
conjunção carnal.
290
Como visto, saber atuar no campo da sedução significava em boa medida,
construírem-se outras aparências para o ato da conquista, ou seja, temporariamente
renunciar-se a traços considerados próprios. O sedutor dizia-se solteiro quando era
casado, prometia casamento quando este domínio não possuía a mínima possibilidade de
acontecer; estas eram algumas das máscaras e das facetas sociais da sedução. Para
sobreviver às múltiplas e tensas teias, revertiam-se constantemente por meio de
estratagemas que tinham por fim ocultar suas intenções imediatas. Disfarçar e remover
barreiras que pudessem dificultar a arte da conquista era desejável e assim mostrar-se
integralmente sequer fazia parte das estratégias dos conquistadores, embora suas intenções
devessem apresentar-se como tão verdadeiras quanto subjetivas diante de quem se queria
conquistar. É neste sentido que o sedutor fazia uso de toda sorte de disfarces para ser bem
entendido e aceito. A conquista, portanto, firmava-se um nero misto de posologias e
prescrições que acompanhavam o ideal a ser construído, ou seja, o de uma idealização de
ambas as partes; por isso possuía caráter híbrido quando se pensava o lugar em que o
sedutor e a seduzida ocupavam no instante da conquista. Por exemplo, ele permanecia
temporariamente às margens do seu “verdadeiro eu” para que obtivesse o mínimo de
sucesso. Nestes meandros de circulação, sedutores deveriam pois estar vigilantes sobre si
mesmos, porquanto erros e deslizes mostravam-se intoleráveis. Em caso contrário,
290
“A Província do Pará”. Belém, 09 de julho de 1924, p. 02.
195
quebravam-se encantos da circularidade das tramas urdidas, assim como laços de simpatia
visíveis/invisíveis e planos para uma vida em comum. A considerar que o ato da sedução
[mas nem tanto as suas estratégias] está na esfera pública, as expressões naturais daqueles
que se envolviam em conquistas faziam-se ausentes, posto que suas ações entendam-se
interesses e desejos – pertenciam ao âmbito privado.
291
A sedução, além de símbolos e ritos, também fazia parte do desejo, da
subjetividade e da mentalidade dos praticantes, isto é, incorporava o mundo do outro
atendendo e confirmando os seus ideais. Estas facetas envolviam cartografias
despolarizadas que representavam possibilidades de vida conjugal duradoura. Ela liga-se a
outras ordens de preocupação: símbolos, signos, subjetividades estão sempre em diálogo
com os conquistadores e aquelas a serem conquistadas. Laborava-se a sedução por meio
de ações, gestos, convites, entrecruzamento de olhares, expressões que se encontravam na
experiência social e que davam a entrever os anseios às promessas sugeridas e às
literalmente ditas ao outro. O desejo é um momento de “estado de perturbação provocado
pela imaginação delirante” e este é justamente o motivo que impulsiona o desafio nestes
campos obscuros.
292
Faz do dissimulado e do ausente parte a descobrir na empreitada da
sedução e deve ser entendido como interesse pessoal do movimentar das condutas da
conquista. É neste sentido que o desejo como parte constituinte da sedução deve ser
visto como racional. Marilena Chauí
293
também ambientou suas análises acerca do assunto
afirmando que a categoria estende-se da plenitude do amor ou de sua busca aos aspectos do
ódio; forma-se no campo das relações intersubjetivas, tanto nos espaços de um quanto nos
do outro. Categoriza-o como a forma originária de posse do desejado, pois o que se quer na
propriedade é o sujeito ser objeto [de desejo], ou seja, deseja-se ser desejado ou “o desejo é
desejo do desejo do outro”. Na busca de se entenderem esses laços e os esforços
concentrados diante da sedução, é necessário perceber que se as mulheres eram tidas como
“enganáveis facilmente” e “frágeis”, a justiça teria de se fazer presente forçando o
casamento na Chefatura de Polícia ou julgando auto-crime.
291
Sobre os múltiplos significados do desejo veja-se: O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
292
NOVAES, Adauto. “O fogo escondido”. In: O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 11 /
18.
293
CHAUÍ, Marilena. “Laços do desejo”. In: O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 19 / 66.
196
Mesmo que esta tese fuja à de Maria Ângela D`Incao, utilizá-la aqui é
importante.
294
Ao analisar relações de sedução na Amazônia da década de 1990, tomando
por base as reflexões de Antony Giddens, autor já citado em páginas passadas,
295
a
pesquisadora compreendeu que as práticas sedutoras perderam força e sentido em virtude
da liberação feminina. Discorda-se, até certo ponto, da ambígua afirmativa dos autores
D`Incao e Giddens e pensa-se que a problemática deve ser exposta sob outros ângulos.
Defende-se a este respeito que estratégias e jogos sedutores são reelaborados no decorrer
do tempo e espaço, sem depender da liberalidade dos movimentos femininos ou, como
asseverou D`Incao: no quadro das relações de seduzir, as mulheres agora se fazem
presentes ou “em outras palavras, não mais a necessidade da “batalha” da sedução
uma vez que a mulher nem sempre se opõe agora como objeto de conquista”.
296
Sem
reforçar esta argüição, o que se sustenta é o fato de que elas jamais estiveram às margens
desses jogos de poder. O que se chamou de liberação” de práticas e costumes não
enfraqueceu a sedução, porque “liberdades” existiram, ao seu modo, em qualquer tempo
histórico e efetivamente desejos de conquistar e ser conquistado existiram constantemente
de ambos os lados.
Mesmo a Igreja Católica e os diversos articulistas com o adjetivo frágil
desejarem expor as mulheres em condição desfavorável diante da sedução, sobram indícios
de que elas mantinham constantemente escalas de poder com os seus namorados e noivos.
Por exemplo, em seu diário, Laura afirmava que: “em nenhuma instancia da vida se
pode pensar a mulher como secundaria, enfraquecida, fragil, ignobil. Quanto a seducção
não se deve entrar nos discursos conservadores da Egreja, do Estado e de boa parte da
sociedade belenense. Nós não somos idiotas como querem impor esses sectores, pois que a
seducção praticada por homens e mulheres occorre depois de determinadas provas de
confiança de um a outro, isto é, nós atuamos frequentemente saindo das conversas
masculinas ou entrando de espontanea vontade, isto se trata de estrategias de
sedução”.
297
Com expressiva concepção de tempo histórico, Laura confirmava a
294
D`INCAO, Maria Ângela. “Sobre o amor na fronteira”. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. &
D`INCAO, Maria Ângela. (Orgs.). A mulher existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e nero na
Amazônia. Belém: GEPEM, 1995, pp. 175 / 198.
295
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
296
D`INCAO. Op, cit.
297
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 11 de fevereiro de 1932.
197
necessidade de ver as mulheres como atuantes nos meandros da sedução. Um pouco mais à
frente discursa a autora que, pelo simples fato de se dispor a ouvir as “conversas
masculinas”, as mulheres atuavam com suas táticas neste jogo. Assim, longe de
pretender aqui um discurso monossilábico em relação a estas tramas, vêem-se as mulheres
no jogo e de forma ativa no tecer e desmanchar das teias da sedução. Jamais será possível
entendê-la [a sedução] divorciada da feminilidade, pois são inelutáveis como a própria
dimensão de poder entre os sexos.
298
O autor entende tudo isso como o forjar de táticas
amorosas e assim considerado, os cúmplices, arriscam-se, expõem-se nos espaços da
experiência social, o que significa saber lidar ativamente com a conquista. Da análise que
se realiza, entendem-se nestes domínios todas as armas como válidas, convencimentos,
promessas de casamento e de responsabilidades mútuas, omissões, fugas, recusas, e todos
os espaços honrosos, pois era o jogo, faziam parte do jogo!
Se conveniente, os contendores colocavam-se em rota de colisão com o
judiciário que não era suficientemente forte para circunscrever todos os ambientes do dia-
a-dia e assim os campos mantinham vínculos de força e poder com as instâncias que
desejavam normatizá-lo. A história de parte destes dramas sociais aponta mais
profundamente como os espaços do cotidiano tinham seus desejos e que estes não se
limitavam à lei. Com efeito, sendo a união conveniente, celebrava-se; porém, ao perceber-
se a crise conjugal como irremediável, desquitava-se; houve mesmo casos em que, às
vésperas do matrimônio, fugia-se. Segundo o que se vem argumentando, se a justiça
paraense “resolvia” casos de defloramento, autos de casamento e desquite, paternidade e
alimentos, julgando conforme a preocupação com a moral e os bons costumes, por outro a
força dos indivíduos mostrava-se poderosa, visto que variadas vezes secundarizaram a
provável importância de se manterem casados ou de repararem o mal” cometido
flexibilizando, deste modo, o que a ordem jurídica tinha como moralmente correto. As
práticas sócio-culturais jurídicas formavam domínios de poder e saber, mas estes não
devem ser entendidos como articulações em si, isto é, os conceitos jurídicos juntamente
com suas técnicas forjam-se no transcorrer do ato de julgar; o judiciário indisponibiliza de
único padrão de visão em seu trabalho. Esta imagem é bastante perceptível nos dramas
analisados, visto que as narrativas ajudavam a construir os veredictos, porque aqui o julgar
deve ser apreendido como um conjunto de forças estratégicas que possuíam ação e reação
298
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1992.
198
o que se constituía em luta intensa entre acusador e acusado; um constante conjunto de
discursos táticos elaborados na cotidianidade, onde se caracterizavam e forjavam os
veredictos e as práticas.
Seguem-se outros conflitos familiares.
3. CONFLITOS E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
“Os filhos illegitimos de pessôas, que não caibam no art. 183, ns. I
a VI, têm acção contra os paes, ou seus herdeiros, para demandar o
reconhecimento da filiação: I. Se, ao tempo da concepção, a mãe
estava concubinada com o pretendido pae. II. Se a concepção do
filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo supposto pae,
ou suas relações sexuaes com ella. III. Se existir escripto daquelle,
a quem se attribue a paternidade, reconhecendo-a,
expressivamente”.
(Artigo 363 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917)
“Nem o acto civil, nem o acto religioso do matrimonio têm o
condão de presentear os casaes com filhos dignos”.
(“Folha do Norte”. Belém, 03 de janeiro de 1930, p. 01)
Se os filhos sempre constituíram apreensões à sociedade e continuamente
sobressaltos aos seus genitores, várias vezes os problemas aprofundavam-se quando se
chegava à combinação: pais não matrimoniados, descendência não reconhecida e
contendas sob o mesmo teto. Quando o casal “amásio” perdia padrões de convivência e os
filhos eram irreconhecidos, como as mulheres e filhos maiores enfrentavam o judiciário
para comprovar a paternidade? De que modo a experiência se articulava com as
determinações do direito para se verificar a paternidade de um rebento natural/ilegítimo?
Assim enfatize-se que existia tão somente uma aparente distinção entre os códigos ditos
legais [os do direito] e os da esfera do cotidiano; aliás o conjunto de leis do dia-a-dia está
presente em qualquer momento histórico e forma cadeias constantes com as dimensões das
teias jurídicas. Em outras palavras, se por um lado existiam táticas legais desejadas bem
definidas e que se encontravam escritas na legislação do início do século XX, por outro
havia as tácitas [as do cotidiano] que funcionavam de modo competente quando acionadas.
se debateram neste capítulo os caminhos legais, segundo o Código Civil,
para se obter sucesso em uma ação de paternidade. Nesse caso, persiste-se em que a
199
legislação exigia que a mulher estivesse concubinada com o pretendido pai, a concepção
do filho coincidisse com o rapto da e e que existissem a respeito escritos daquele a
quem se responsabilizava a paternidade.
299
Tratava-se de exigências legais bastante
complexas e as únicas possíveis a quem desejasse comprovar filiação paterna. Todavia o
necessário é procurar ver as sutilezas ocultas e explícitas que se forjavam para provar
paternidade. Os filhos ilegítimos juntamente com as suas mães dispunham dessas
prerrogativas, as quais o direito brasileiro interpretava como domínios impostos pela
moral.
É lógico que os envolvidos na querela lançavam mão das viabilidades do
direito. Se advogados, mães e filhos organizavam-se diante das exigências, necessidades e
desejos do judiciário, o cotidiano forjava as suas próprias possibilidades e estratégias, as
quais convergiam aos anseios jurídicos, mas também se distanciavam deles a ponto de criar
teias bem distintas de defesa. O exemplo a seguir é o de um processo de investigação de
paternidade, dentre vários catalogados, utilizado na demonstração deste argumento. Os
movimentos realizados por Izaura Gomes de Lima, 26 anos, paraense, doméstica, casada,
porém em 1940 separada do esposo, contra o seu amásio Carlos Flaviano do Nascimento,
paraense, solteiro, marítimo, precisaram vir à tona
300
quando Izaura iniciou vida marital
com Carlos em 1932, passando a morar com a família deste à Rua Curuçá, nº 361. Vindo o
seu marido a falecer somente em 1937, durante cinco anos a impetrante manteve-se em
estado de casada-adúltera-amásia. Esta convivência dita “espúria” à época, era
questionada por expressivas forças sociais belenenses, por exemplo, o jornal católico “A
Palavra” com o título “Divórcio”, condenava as ações de dona Izaura. Então a Igreja
afirmava: “Enquanto vive o marido, será chamada (a mulher) adultera, se communicar com
outro homem; se porém morrer o seu marido, fica livre e não será adultera, ligando-se com
outro”.
301
Utilizavam-se as palavras de São Paulo em Epístola aos Romanos para condenar
práticas sexuais fora do matrimônio, pois que mesmo uma mulher separada do esposo
cometeria adultério se contratasse relações carnais com outro, porque a “mulher casada
está ligada por lei ao marido enquanto ele vivo; se o marido vier a falecer, ficará livre da
lei do marido”.
302
Assim, tal Epístola explica o porquê Carlos e Izaura faziam percursos
299
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
300
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Izaura
Gomes de Lima contra Carlos Flaviano Nascimento, 1940.
301
“A Palavra”. Belém, 09 de setembro de 1923, p. 01.
302
Bíblia Sagrada de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
200
contrários ao que se queria impor como homogêneo. O filho Raymundo [no auto não foi
publicizado o seu sobrenome] pela lei, em tempo algum poderia ser legitimado, pois como
se examinou no primeiro item deste capítulo, a prole incestuosa bem como a adulterina
jamais seria reconhecida. Desta maneira a lei aproximava-se da moralidade bíblica, pois
afirmava que os filhos surgidos de um desquitado ou casado com um solteiro seriam
ilegítimos em qualquer tempo: quando casado por razões óbvias e na condição de
desquitado porque esta ação dissolvia apenas a sociedade conjugal e não os vínculos
matrimoniais, enfatize-se. Destarte, obrigava os cônjuges aos mesmos deveres de
fidelidade indispensáveis à vigência da vida conjugal.
303
Na vigência da relação em
análise, nasceu Raymundo, em 13 de junho de 1933, e nenhuma responsabilidade foi
assumida pelo pretendido genitor, sendo que em 1940, sete anos depois do seu nascimento,
dona Izaura impetrou auto de investigação de paternidade cumulado com o de provisão e a
rigor o objetivo central da mãe era o de provar ser Carlos o pai da criança para que a ação
de alimentos se tornasse legítima.
Neste caso, que estratégias eram estabelecidas para que se tivesse a
possibilidade mínima de sucesso nos corredores do judiciário?
Os que enfrentassem esta natureza de processo teriam de articular a
cotidianidade com a legislação. A autora, juntamente com o seu Assistente Judiciário
Vicente Portugal Junior, estabeleceram a estratégia de percorrer com firmeza e afinco, em
primeiro lugar, o dia-a-dia do casal para depois entrelaçá-lo com a jurisprudência da época.
Esta tática explica-se em virtude das provas conseguidas “não serem” consistentes às
exigências do direito; em outras palavras havia como possibilidade de prova contra o réu:
promessas constantes de casamento; registro de nascimento de Raymundo e o ano em que
o amasiamento teve início, 1932. Inexistiam “provas cabais”: cartas ou qualquer outro
documento escrito por Carlos Flaviano em que se confirmasse a paternidade. As possíveis
promessas de enlace poderiam ser facilmente refutadas, porque a requerente, durante boa
parte da vida marital, manteve-se casada com outro; sobre o registro de nascimento de
Raymundo, a genitora foi a declarante e os avós paternos não apareciam no documento.
Provar o início do amasiamento e conseqüentes atos carnais apresentava-se como
importantes estratégias naquele momento, visto que o inciso II, do artigo 363 do Código
Civil afirmava: “Se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo
303
Consulte-se: Revista do Tribunal de Justiça. Vol. XXIII. Setembro de 1917, p. 419.
201
supposto pae, ou suas relações sexuaes com ella”
304
a prova de culpabilização do
impetrado.
Como seria possível construir discursos suficientemente fortes para convencer o
poder judiciário acerca da acusação de que Raymundo nasceu quando a impetrante e o réu
viviam amasiados? Havia-se de recorrer ao cotidiano. Utilizar o filho de quem se deseja
provar paternidade apresentava-se como ferramenta fundamental para esse fim, ou seja,
publicizar os predicados sócio-econômicos fazia parte do jogo; aliás, saber localizar-se
bem nele era capital às pretensões desejadas. Em depoimento, a autora afirmava ter
procurado o amante para que provesse a criança, porque inexistiam recursos de espécie
alguma que viabilizassem tamanha responsabilidade. Diante do anunciado, “o réu não se
incomodou com o menor, auxiliando, digo com o menor e não auxiliou com cousa alguma
e vivendo o menor como vagabundo, solto na rua”. Usar os filhos socialmente nos espaços
do judiciário constituiu-se em ardil para se conseguirem veredictos favoráveis. Traçar
hábitos, costumes, condições da vida financeira/social, como o estado da casa onde a
companheira e os filhos viviam, significava parte expressiva do jogo de poder à
comprovação da paternidade. É impossível deixar de acentuar as pressões que Carlos
recebeu por meio de adjetivos que lhe eram incomuns como o de pai desnaturado que
permitia caísse sobre o “filho” o epíteto de vagabundo. No bojo dessas considerações nota-
se que o cotidiano imiscuía-se no judiciário. Representava-se o pretendido pai de maneira
múltipla e comprometedora: a condição de não provedor estendia-se à de responsável pela
formação de vagabundos, fato que o complicava consideravelmente diante da justiça.
Utilizava-se a criança com destreza para localizar Carlos moralmente em situação
nevrálgica perante o direito e os seus.
A testemunha Jorge Alves Teixeira, 54 anos, brasileiro, casado, operário,
residente na Rua Curuçá, 360 procurava ajudar a impetrante dos processos, ao
considerar que poderia “informar com precisão que a autora teve ha cinco anos mais ou
menos um filho com o réu”. Mesmo que a obrigação de se constituírem testemunhas
inexistisse no artigo 363 do Código Civil, a sua presença no seio dos autos mostrou-se
essencial. O senhor Jorge dizia ser capaz de “informar com precisão” as intimidades do
casal porque os contendores eram seus vizinhos. Assim sendo, a proximidade
proporcionava momentos múltiplos e diversos onde havia participação na vida privada das
litigantes; os movimentos, as ações, as palavras, os gestos da vizinhança são campos
304
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
202
importantes em um caso de investigação de paternidade. De tal sorte, faz-se necessário
identificar o conhecimento que detinham os moradores próximos a respeito dos passos uns
dos outros, porquanto compreender com pormenor a função sócio-cultural do vizindário
era premente. Como afirmou Nicole Castan,
305
os vizinhos fazem-se presentes nos espaços
mais exíguos da família do outro, quer dizer, sem prudência, a vizinhança seria capaz de
conhecer e reconhecer em detalhes a vida de seus pares; desse modo Castan entende-a
possuidora da competência de delimitar liberdades e isolamentos. As palavras do operário
Jorge mostram intimidade próxima do casal, porquanto ele afirmava diante do juiz,
Mauricio Cordovil Pinto, “que viu varias vezes o réu agradar o referido menor e ouviu
trata-lo de filho”. Percebe-se que inexistiam cartas onde o impetrado reconhecia a
paternidade, no entanto construíram-se outras estratégias na tentativa de comprovar o que
se queria. A testemunha, Jorge, afirmava ser próxima dos amásios e argumentava, no
judiciário, que múltiplas vezes presenciou o senhor Carlos oferecendo afagos à criança;
nestes domínios tênues, a presença dos discursos é essencial, tanto que eles se constituíam
conforme as conveniências dos que se encontravam em litígio, sendo igualmente de
fundamental importância entender que as narrativas faziam-se a partir de construções nos
espaços da experiência.
A rigor, cartas, duração do amasiamento conjugado com a época da gravidez
bem como as versões das testemunhas, eram empregadas na formulação de táticas
desejadas coerentes diante do poder jurídico para se conseguir veredicto favorável. Uma
boa articulação da vivência amásia significava caminhar incisivamente sobre as
possibilidades da comprovação. Via-se a mediação do tempo como relacionada
diretamente as tramas sociais, culturais, políticas que norteavam a vida em comum de
Carlos e Izaura. Tempo no sentido em que se desenrolavam os aspectos problemáticos da
vida marital, os quais se encontravam na lógica das necessidades dos envolvidos na querela
jurídica. Colocando as coisas de outra maneira, por que dona Izaura se constituiu em
impetrante após os primeiros dois anos de vida marital? Expor tão somente que o vivido
não o permitia, mostrava-se argumento incoerente, pois as tensões ainda eram fracas para
se promoverem as ações; desta maneira, os espaços cotidianos possuíam suas próprias
lógicas que impossibilitavam cronogramas prévios; entretanto, em outro momento, é
demasiadamente óbvio observar que a sucessão dos fatos vividos organizava-se na ânsia da
305
CASTAN, Nicole. “O público e o particular”. In: ARIÈS, Philippe. & CHARTIER, Roger. (Orgs.).
História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. Vol. III. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, pp. 413 / 453.
203
comprovação da paternidade. Esses regulamentos localizavam-se na experiência de vida
não apenas dos amásios e do filho, mas também na das testemunhas, do Assistente
Judiciário, da autora e do juiz. Este provavelmente sincronizava-se com o tempo, porque
era preciso estabelecer somas e observações acerca do nascimento de Raymundo com o
período do amasiamento. Como se analisou em páginas passadas, as relações amásias
apresentavam-se tão precárias e vulneráveis quanto às estabelecidas entre os casados
legalmente e nem mais difíceis de firmar “conjugalidade” duradoura do que o modelo de
consórcio civil ou religioso.
Conforme esta fonte e diversas outras, evidenciam-se razões para supor a
existência, na Belém do início do século XX, de famílias ditas “higiênicas” e “cristãs”,
provenientes do casamento legal, e outras “pecadoras”, as que surgiam dos amasiamentos.
No bojo dessa dualidade e apesar dela o historiador deve alertar para o ideário desejado por
políticos e pela classe dominante que insistiam numa homogeneidade dentro da
heterogeneidade. A advertência deve ser mentalizada como de importância fundamental ou
do contrário poder-se-á julgar com excessiva severidade a família belenense novecentista.
A respeito um estudo significativo que aprofunda tais forças, mas da cidade de São
Paulo. O texto chama-se “Fronteiras do desejo”
306
e sua autora afirma que as primeiras
décadas da cronologia em pauta devem ser tomadas como de intensa mobilização em torno
do casamento e família higiênicas e da separação conjugal. Com efeito, nota Salum que o
tempo era de notável agudização do assunto e por isso Instituições como a Igreja Católica
desejavam corroborar [a seu modo] para imprimir concepções e ideais, aos que versavam
sobre a organização social do país.
Do assunto, apresentam-se dois problemas inerentes às relações entre homens e
mulheres que compunham as tramas familiares de então: a impossibilidade de
reconhecimento de um filho espúrio em vida do cônjuge traído e a inviabilidade de se
constituírem segundas núpcias em igual situação. Referente à fonte que se apresenta para
estudo – a do processo de investigação de paternidade impetrado por Isaura contra o
amásio Carlos Flaviano encontra-se expressivo exemplo de tal impasse. Quando nasceu
Raymundo, possível fruto das intimidades existentes entre os adúlteros/amásios enfatize-se
que era impossível reconhecer a criança, mesmo que o “pai” assim o desejasse, pois o
306
MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Fronteiras do desejo: amor e laço conjugal nas décadas iniciais do
século XX. Tese apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH / USP). São
Paulo: Mimeo, 1999.
204
marido de Izaura ainda vivia. Os jornais da cidade ocuparam-se muito de casos como esse
e, em 03 de janeiro de 1930, com o título “Últimas considerações sobre o divórcio”,
Alcides Gentil – articulista da “Folha do Norte” refletia a respeito da impossibilidade de
um segundo casamento em vida do cônjuge abandonado, dos filhos adulterinos e do fato
de que os matrimônios civil e religioso nenhum poder tinha de moralizar a prole. Segue-se
excerto de sua redação: “a impossibilidade da existencia em commum de esposos não
repercutisse, de outro modo, repercutiria ao menos, pelo exemplo de maridos fazendo prole
com outras mulheres, ou de esposas tendo filhos com outros homens, sem que a
auctoridade os incommode, porque, não havendo, nessa hypothese, queixa da parte, fica
tolhida a auctoridade de incommodar a união dos sexos nos individuos maiores de vinte e
um annos”.
307
Este é tão somente um exemplo dentre vários a representar o que se tem
argüido; de tal sorte evidenciava-se lugar comum mulheres e homens casados e
desquitados construírem outra família, homens e mulheres que se separavam sem o
conhecimento do judiciário, que formavam outro lar, homens e mulheres que viviam com
dois amantes, nada disso faltou no início do século XX belenense e provavelmente em
outros pontos do Pará.
308
Constituíam-se famílias sem a presença do casamento e também
diante de matrimônio malogrado pessoas, como a senhora Izaura, mantiveram outros
domínios amorosos e famílias ditas à época espúrias. Todavia, nesta direção, as lógicas da
mentalidade fazem valer a inexistência de posições hegemônicas, pois como reiterava o
próprio Alcides Gentil: “nem o acto civil, nem o acto religioso do matrimonio têm o
condão de presentear os casaes com filhos dignos”, dimensão sobejamente analisada nos
capítulos anteriores.
A moralidade da prole não se concentrava no casamento, tanto que se
formavam famílias às margens das alianças civil e religiosa, como bem denuncia o
articulista do jornal. Contudo, ao judiciário advinham problemas quando o casal resolvia
separar-se e a prole formada durante o convívio não estava registrada pelo genitor. Poder-
se-ia fazer o registro dos filhos de casais consensuais, aliás esta lógica apresentava-se
como dever explicitamente cobrado pelas companheiras porquanto sabiam que, ao
enfrentarem a criação de filhos irreconhecidos, a lista de prescrições aumentava
dificultando ainda mais sua vivência. O preconceito agia pois em cadeia sobre as mulheres
que resolvessem ter filhos sem a presença do matrimônio bem como sobre as desquitadas,
307
“Folha do Norte”. Belém, 03 de janeiro de 1930, p. 01.
308
Para a cidade de Vigia, interior do Pará, veja-se: NEVES. Op, cit.
205
afirmou Carmen da Silva, em 1968.
309
Logicamente, estas dificuldades eram tanto ou mais
severas quando se tratava de convivência amásia ou concubina no campo da investigação
de paternidade; por exemplo, dona Laura considerava indecoroso [para o pai] que uma
mulher fosse obrigada a recorrer aos tribunais para provar que determinados filhos foram
“frutos de longas ou curtas relações maritais”, esta atitude significava conduta de um
homem pouco afeito às responsabilidades, dizia a autora.
310
Se esta pouco comentou os
dramas de seu matrimônio com o senhor Manoel Felicio de Souza, pormenorizou o quanto
pôde os problemas que parte da sociedade de seu tempo vivenciava: investigação de
paternidade e petição de alimentos; casamento e separação (jurídica e por conta própria);
família “ilegal” e legal”. Talvez entendesse que as representações de seu casamento
estivessem no seio das tramas a que procurava dar conta em seus textos de memória,
porquanto lembre-se que Laura era casada civilmente e que se desligou do marido sem a
ajuda do judiciário, visto que a separação por meio de qualquer instância não mudaria a
sorte das mulheres, como se examinou sobejamente no capítulo anterior. Depois que
conseguiu “livrar-se” do senhor Manoel, são raras as passagens de suas memórias onde se
perceba a presença dele enquanto alvo de observações. Dava a entender que o tempo
transcorria apenas para os outros; isso possivelmente explique a desenvoltura com que
observava os movimentos alheios. Argumentava escrevendo de forma incisiva, com termos
bem aplicados e com expressiva coerência nos recônditos cultural, social e político, tecia
estratégias justamente para oferecer verossimilhança e credibilidade aos leitores, destarte
suas lembranças são apresentadas a partir do que considerou ser o melhor da seqüência de
acontecimentos a que desejava dar vazão por meio de fatos julgados [por ela] como mais
importantes, os quais foram minuciosamente escolhidos.
A tradição em relação ao consórcio e à família apresentava-se excessivamente
próxima e enfrentar este mundo era armar-se contra toda ramificação que o uso costumava
construir de modo bem mais vasto e múltiplo do que diretamente se possa supor. Filhos
irreconhecidos toleravam-se até certo ponto como para se manter o equilíbrio das tensões,
porém quando os “amásios” terminavam por qualquer motivo, a situação inúmeras vezes
tornava-se séria e múltipla o que era razão suficiente para se tentar provar a paternidade
do pretendido genitor. Buscar-se-iam cauções diante do poder jurídico, e decerto também
309
SILVA, Carmen da. O homem e a mulher no mundo moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1968.
310
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 12 de fevereiro de 1933.
206
nos arrabaldes do cotidiano, pois o dia-a-dia e possibilidades oferecidas pelo judiciário
foram amiúde conjugadas nos autos impetrados pelos que aprenderam as dificuldades
resultantes de anos de convivência malogrados.
Exemplos importantes neste sentido são as ações de Maria Jacyntha Felix,
citada no primeiro item deste capítulo. Maria empregou, em 1921, táticas adequadas na
investigação de paternidade contra o pai do companheiro falecido, Vicente Pereira Leal.
Da vida marital dos amásios, houve três filhos: Raymunda Fiderina de Souza, nascida em
24 de abril de 1913; Manoel Beda de Souza, nascido em 27 de maio de 1915 e Maria de
Lourdes de Souza, nascida em 24 de janeiro de 1920.
311
Mas é preciso ser mais
elucidativo: uma mulher, Maria Jacyntha Felix, abriu processo de paternidade contra o pai
de seu companheiro, Raymundo Pereira de Souza falecido no Rio de Janeiro, para provar
que três filhos foram produto de relações carnaes” entre eles. As alegações da amásia
estavam pautadas nas dimensões do social vivido: seus três filhos foram por resultado de
convivências íntimas entre os amantes, que teriam vivido maritalmente por bastante tempo
que a união e os filhos eram tidos como legítimos entre a vizinhança e pessôas das
relações do casal”; todas as vezes em que o amásio se ausentava de Belém deixava
dinheiro suficiente para ela e sua prole na residência onde moravam, sita à Travessa
Francisco Monteiro , Bairro de Queluz, “em companhia de uma afilhada e de uma irmã
delle”; que sobre a reputação da autora jamais nenhuma dúvida pairou; o falecido
apresentava os menores como seus verdadeiro filhos.
312
Quem desejasse provar
paternidade investia sempre pelos meandros do dia-a-dia, porque neles localizavam-se as
provas a alcançar veredictos favoráveis às impetrantes dos autos. Este mundo articulava-se
ou ao menos se procurava articular simetricamente às probabilidades de paternidade. Na
cidade de Belém, o tempo da concepção ou da possível concepção é marcado por
regularidades que não aquelas desejadas pelos grupos [elites, Igreja Católica], nem
tampouco pela norma moral e sim pelas simetrias e regularidades dos envolvidos nas
argumentações que se queria comprovar. A cotidianidade, nesse caso, significava a forma
de se tramarem as experiências em todos os aspectos comportamentais, como as maneiras
com que se relacionavam entre si e com os outros.
311
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Maria Jacyntha Felix contra Vicente Pereira Leal,
1921.
312
Idem.
207
Por esses aspectos é também necessário voltar à ação iniciada por Alzira
Gonçalves Galeão contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima, analisada um
pouco atrás, porém sob outras problematizações.
313
Cerca de oito anos após a morte do
amásio, o processo foi iniciado e rezava que a trajetória da vida marital teve início em
1925 e que do viver sob o mesmo teto houve três filhos: Eduardo, nascido em 21 de
fevereiro de 1927; Leonardo, nascido em 10 de novembro de 1928 e Eunice, em 11 de
abril de 1930. Neste caso a impetrante era portadora de documento escrito, deixado por
Demetrio, pois o falecido batizou um dos filhos, Leonardo. Coerentemente, anexou o
documento expedido pela Arquidiocese de Belém aos autos de paternidade cumulada com
a de herança. O mundo privado do casal abria-se ao judiciário na mesma velocidade das
possibilidades do veredicto favorável, mas outros espaços da vivência facilitavam a
presteza da ação: os silêncios sepulcrais dos herdeiros, documentos anexados e duas
testemunhas, davam o tom de que a paternidade mostrava-se indiscutível. A exeqüente e
novamente Vicente Portugal Junior anexaram aos autos documento solicitado e expedido
pelo Dr. Carlos Silva, que realizou o parto de Eunice com teor seguinte: “attesto ter
sido medico assistente de D. Alzira Gonçalves Galeão, na Ordem Terceira nesta Capital na
occasião de seu parto da creança Eunice, nascida, a termo em 11 de abril de 1930, tendo
sido meus serviços profissionaes pagos por Demetrio Moreira Lima”. Verifica-se
novamente o uso das experiências cotidianas no judiciário. As declarações do médico que
fez o parto da filha do casal funcionavam como portadoras de força social, bem como
assertivas de confiabilidade, porquanto se tratava de profissional notório em Belém e que
atendia na Ordem Terceira e na “Clínica Médica, Cirúrgica e Partos” localizada na Praça
da República, 192. O percurso para a condenação do réu ainda pode ser palmilhado ao se
entrecruzar a data do nascimento da criança com a que foi expedida no documento, onde se
afirmava que o senhor Demetrio compromissava-se com os custos do parto. No entanto, há
a esclarecer que o documento é de 19 de agosto de 1940, enquanto o nascimento ocorreu
em 11 de abril de 1930, ou seja, dez anos depois a impetrante solicitou ao doutor Carlos
Silva que escrevesse declaração informando as responsabilidades que o amásio assumia
com ela. O período entre nascimento e a documentação também deve ser analisado, pois o
judiciário paraense possivelmente o tomou como prova de confiabilidade, porquanto
mesmo tendo passado certo tempo cronológico, o médico confirmou proximidades íntimas
entre a requerente e o falecido.
313
Auto civil de investigação de paternidade e petição de herança impetrado por Alzira Gonçalves Galeão
contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima, 1940.
208
As articulações condenatórias não pararam. Constituíram-se duas testemunhas:
Dulce Seixas Duarte, brasileira, solteira, serviços domésticos, que residia na Rua Oliveira
Belo, 138, confirmava em juízo que o casal marital vivia “em companhia um do outro
desde o âno de 1925 e complementava afirmando “que até a data do falecimento de
Demetrio êles viviam juntos”. Outra testemunha que deu a sua versão dos fatos foi
Consuelo de Seixas Duarte, brasileira, solteira, serviços domésticos, residente no mesmo
endereço que afirmava ter sido a morte que separou os amásios e que “Demetrio
apresentava a todos os conhecidos esses meninos como seus filhos”. Em 22 de dezembro
de 1940, o juiz Mauricio Cordovil Pinto proferiu sentença favorável à impetrante. Percebe-
se como o dia-a-dia em princípio privado transformava-se em público ao atender às
necessidades das pessoas, assim o cotidiano deve ser visto como espaço multifacetado do
privado: ele também se transformava, conforme as conveniências, em domínio público;
314
de tal sorte, pode ser compreendido como um modo de ser em si e também dos membros
do ciclo que o formava. Uma investigação de paternidade não pode ser entendida apenas
como espaço singular, pois as teias em pauta envolviam mundo mais amplo, no exemplo o
das relações de vizinhança ao médico que realizou o parto. As testemunhas eram acordes
em afirmar que o casal viveu com os seus três filhos “ate a data do falecimento de
Demetrio”. Muito embora sem as bênçãos católicas, atendia-se rigorosamente o princípio
da Igreja: até que a morte os separe, como se casados legalmente fossem.
Três fatos básicos explicam, grosso modo, a trajetória dos impetrantes desses
autos: quando sentiam a prole ameaçada, quando o homem se recusava a reconhecer a
filiação e por falecimento do companheiro. Estes perigos provinham da outra família:
esposa, filhos legítimos e parentes. Mostrava-se imperativo ressabiar-se, uma vez que seria
desastroso sair da relação bruscamente, sem garantias para si e para os filhos. As tramas do
caso se publicizavam tornando-se apresentáveis às exigências da justiça, pois os
herdeiros de Demétrio tinham poucas chances de reverter o quadro. Em 01 de novembro de
1940, o periódico “Folha do Norte”, publicou que o “juizo da 4ª vara – o dr. Cordovil Pinto
– designou o dia 8 do mez fluente, para a instrucção e julgamento da acção de investigação
de paternidade que Alzira Gonçalves Galvão move contra os herdeiros de Demetrio
Moreira Pereira Lima”.
315
Ao juiz foi facilitada a sentença favorável a exeqüente, pois os
314
Sobre as categorias público e privado, veja-se: SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as
tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
315
“Folha do Norte”. Belém, 01 de novembro de 1940, p. 02.
209
herdeiros eximiram-se em executar qualquer contestação. Leia-se parte da sentença: “julgo
procedente a justificação de fls. 14 e verso, para que produza os seus efeitos legais, e em
consequencia, determino a expedição do mandado competente, para o registro dos menores
Eduardo, Leopoldo e Eunice, de 13, 12 e 11 anos respectivamente, como filhos naturais
reconhecidos do falecido Demetrio Moreira Pereira Lima e Alzira Gonçalves Galeão, de
acôrdo com os itens da petição de fls. 2, e conforme permite o Código Civil Brasileiro”.
316
Outro caso relevante foi a investigação de paternidade que dona Antonia
Pereira Lima impetrou, em 1931, contra as herdeiras de João Bussons: Luiza Bussons de
Castro e Georgina Bussons Ferreira Chaves, estas filhas legítimas de João, fruto de um
matrimônio.
317
O patriarca faleceu em 07 de fevereiro de 1931, viveu “maritalmente ha
muitos annos” com a impetrante e da união “nasceram, além dos filhos que em vida
reconheceu, mais os de nomes Leonor, nascida em 27 de Dezembro de 1923, Pantaleão,
nascido em 14 de Setembro de 1928 e Maria da Conceição, nascida em 19 de Abril de
1930”. As convivências sob o mesmo teto que Antonia e João mantiveram apresentavam-
se tão públicas e notórias que as herdeiras [representadas por seus maridos], foram a juízo
em 16 de maio de 1931 e reconheceram “a reclamada paternidade, não se fazendo
necessario, pois, prosseguir na acção”. A construção do processo sequer indica múltiplas
complexidades nem longevidade, visto que teve início em 11 de maio e terminou em 20 de
junho de 1931. Neste caso o fato de ser a vida marital de conhecimento público,
impossibilitou o elaborar de testemunhas e mesmo o de anexar quaisquer documentos
como os registros dos filhos reconhecidos em vida; foi suficiente expor o tempo social:
viviam maritalmente muitos anos. A se dar crédito à dinâmica temporal, ela deve ser
interpretada como agente que, de modo “simples”, conseguiu explicar e provar ao
judiciário e filhos legítimos do senhor João Bussons as razões almejadas pela senhora
Antonia Pereira Lima.
Mais um caso dentre diversos que converge ao anterior e que pode reforçar os
argumentos que por ora se apresentam é o processo de investigação de paternidade
cumulado com petição de herança impetrado por Ladi Silva, 40 anos, paraense, solteira,
serviços domésticos, patrocinada pela Assistência Judiciária contra os herdeiros de seu ex-
316
Veredicto proferido pelo juiz Mauricio Cordovil Pinto. Auto civil de investigação de paternidade e petição
de herança impetrado por Alzira Gonçalves Galeão contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima,
1940.
317
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonia Pereira Lima contra os herdeiros de João
Bussons, 1931.
210
amásio José Marques dos Santos, 37 anos, paraense, servente, falecido na Santa Casa de
Belém a 11 de outubro de 1940 de Pneumonia.
318
A exeqüente argumentava em juízo que
se amasiara com José no ano de 1924 e que da vida marital provieram duas filhas menores:
Joana Santos de 15 anos e Alice Santos de 14 anos. O auto era movido contra o pai do
amante falecido, Eugenio Manoel dos Santos, 55 anos, paraense, casado, carpinteiro. Pela
autora foram constituídas duas testemunhas, a saber: Daniel Antonio Meninéa, 50 anos,
paraense, casado, carpinteiro e Pedro Ferreira Mendes, 44 anos, paraense, casado,
comerciante. Os depoentes afirmavam reconhecer a vida amásia de Ladi com o falecido,
que dos nove anos de união vieram ao mundo duas filhas e a testemunha Pedro assegurava
que o senhor José costumava ir à sua casa comercial em companhia das duas menores e
que as considerava, publicamente, como filhas. Em declaração realizada à justiça o senhor
Eugenio, pai do falecido, asseverava que reconhecia a vivência amásia do filho com a
senhora Ladi e que desta união houve duas crianças, suas netas. As declarações das
testemunhas bem com as do pai do falecido amásio da autora facilitaram juridicamente a
sentença favorável proferida, em 28 de dezembro de 1940, por Mauricio Cordovil Pinto.
Os nove anos de convivência foram utilizados como base para julgar procedente a ação de
investigação de paternidade, pois entendeu-se estarem inteiramente provadas as acusações
iniciais da requerente. Aparentemente sem qualquer esforço o juiz conseguiu disciplinar
elementos morais que permitissem comparar e classificar formas, estabelecer médias e
categorias bem como fixar normatizações a uma família dita espúria, mas que necessitava
de apoio econômico para sobreviver em cidade bastante cara, como será analisado no
capítulo seguinte.
Nestes e em outros casos, o fator tempo deve ser entendido como indispensável
para que juízes tomassem decisões acerca das relações maritais, uma vez que expressava a
articulação de discursos acontecidos em determinado momento. Por exemplo, o
nascimento dos filhos do casal e o início da vida em comum com o presente histórico de
Ladi, o qual se concentrava exatamente na comprovação da paternidade da prole. O que
impressiona nestes movimentos são os posicionamentos que se tomavam no espaço da
experiência cotidiana, isto é, como se consignavam vínculos de certezas e verdades às
testemunhas. Comprovar paternidade significava a busca de si e logicamente do outro no
[determinado] tempo em que os fatos aconteceram, porquanto era preciso determinar um
318
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Ladi Silva contra os herdeiros de José Marques
dos Santos, 1940.
211
lugar do possível; saturar os espaços transitados quando da vigência da vida amásia. Traçar
um catálogo da vida a dois funcionava sempre como proteção a qualquer ato em contrário,
tanto quanto as resistências do pretendido pai em assumir as suas responsabilidades. Neste
tipo de ação palmilhavam-se jogos associativos e comparações, pois percorriam-se espaços
dos discursos de convencimento os quais enveredavam pelo mosaico das provas. Aos que
“esqueciam” as promessas feitas por ocasião do namoro, do amasiamento ou de qualquer
movimento de vida a dois, articular-se com o tempo vivido foi prática constante para se dar
base a estes autos.
Mas em quais circunstâncias eles eram abertos?
TABELA 4
DADOS DOS AUTOS DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
AMÁSIOS E
ENVOLVIDOS
ANO
RAZÕES
ALEGADAS
JUIZ VEREDICTO
Doroteia Nascimento
Gonçalves contra os
herdeiros de Aloizio
Vasconcellos Gomes
1917
Morte do amásio e
divisão dos bens
Manoel Maroja
Netto
Favorável
Judith Almeida da Paz
contra Alvarengo
Conceição Duarte
1919
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Manoel Maroja
Netto
Favorável
Maria da Conceição Alves
contra Gregorio Leocadio
Gomes
1920
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Manoel Maroja
Netto
Favorável
Maria Jacyntha Felix contra
Vicente Pereira Leal
1921
Morte do amásio e
divisão dos bens
Manoel Maroja
Netto
Não há veredicto
Josias Maia contra Zulmira
Catharina Maia do
Nascimento e outros
1921
Morte do pretendido
pai e divisão dos bens
Pedro dos Santos
Torres
Processo incompleto
Conceição Silva Santos
contra Osvaldo Dantas
Nunes
1922
Recusava-se a
reconhecer
paternidade, a pagar
alimentos e a dividir
os bens
Pedro dos Santos
Torres
Favorável
Consuelo Aragão Baia
contra Jairo Duarte Oliveira
1930
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Pedro dos Santos
Torres
Favorável
Antonia Pereira de Lima
contra as herdeiras de João
Bussons
1931
Morte do amásio e
divisão dos bens
Manoel Maroja
Netto
As filhas legítimas
reconheceram a
paternidade
Balbuciana Gomes Silva
contra Valentino Soares
Carneiro
1931
Recusa-se reconhecer
a paternidade e
alimentos
Alcibíades
Marques
Buarque de Lima
Favorável
212
Luiza Ramos do
Nascimento contra os
herdeiros de Manoel
Ramos do Nascimento
1931
Morte do pretendido
pai e divisão dos bens
Alcibíades
Marques
Buarque de Lima
Não há veredicto
Antonio da Silva Borges e
outros contra Preciosa
Rodrigues Borges
1931
Morte do pretendido
pai e divisão dos bens
Francisco Dantas
de Araújo
Cavalcante
Favorável
Marthilde Gevesia Bulhões
contra Augusto Vale
Vivenda
1932
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Manoel Maroja
Netto
Favorável
Judith Costa de Oliveira
contra Cornélio Filho
Gonçalves
1933
Recusava-se a
reconhecer
paternidade, a pagar
alimentos e a dividir
os bens
Mauricio
Cordovil Pinto
Favorável
Jeronima Vivalda Tostão
contra Mardomiro Sanches
da Anunciação
1934
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Mauricio
Cordovil Pinto
Favorável
Ladi Silva contra os
herdeiros de José Marques
dos Santos
1940
Morte do amásio e
divisão dos bens
Mauricio
Cordovil Pinto
Favorável
Izaura Gomes de Lima
contra Carlos Flaviano do
Nascimento
1940
Educação do filho e
alimentos
Mauricio
Cordovil Pinto
Favorável
Maria Reis contra
Dilermando Martins de
Oliveira Melo
1940
Recusava-se a
reconhecer
paternidade e a pagar
alimentos
Augusto Rangel
de Borborema
Favorável, mas houve
recurso
Alzira Gonçalves Galeão e
Demetrio Moreira Pereira
Lima
1940
Morte do amásio e
divisão dos bens
Mauricio
Cordovil Pinto
Favorável
A elaboração da tabela partiu dos processos de investigação de paternidade coligidos no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do
Pará. Alguns deles foram cumulados com prestação de alimentos.
Como se interpretou no primeiro item deste capítulo, investigação de
paternidade poderia ser movida pelos filhos maiores e maridos, mas foram as mulheres
quem mais se constituíram nas principais impetrantes destes processos. Levando em conta
que 77,77 % dos veredictos são sentenças favoráveis aos autores, as mulheres juntamente
com os seus filhos ilegítimos [para a lei], se encontravam amparados pelo poder jurídico,
tanto que em uma das diversas decisões alegava-se: “amasia não sahir com bens suficientes
que pudessem viabilizar a sua vida depois da morte do amasio” tratava-se de uma injustiça,
dizia o jurista Mauricio Cordovil Pinto, em 1940.
319
A percentagem restante, 22,23 %,
corresponde às ões sem veredictos, incompletas e que houve recurso. Retornando aos
dados da tabela é importante enfatizar que as razões alegadas nos autos localizavam frente
319
Auto civil de investigação de paternidade e petição de herança impetrado por Alzira Gonçalves Galeão
contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima, 1940.
213
à morte do amásio, divisão de bens, educação dos filhos e alimentos; estes eram os eixos
que deveriam ser provados nos corredores do judiciário. Sobre a morte dos companheiros,
fato que fazia com que as mulheres e descendentes impetrassem processos, é essencial
considerar que todas as vivências tiveram em média 8 anos e 11 meses, tempo que os
jurisconsultos paraenses compreendiam ser duradouro. Desta maneira, como se analisou
em páginas passadas os juristas, para promulgarem os veredictos, concentravam-se no
tempo vivido sob o mesmo teto. Assim, em virtude de não se ter reconhecido filhos na
vivência amásia, tensas querelas advinham da divisão de bens com a família dita legítima
do companheiro de anos de convivência.
Esses processos organizavam-se em movimentos judiciais prenhes de
complexidade; por exemplo a condição de requerente e requerido nem sempre se encerrava
apenas entre amásios, porquanto foram possíveis diversas combinações: “amásias”
representando contra o pai do companheiro por falecimento desse, como foi o caso de
Maria Jacyntha Felix contra Vicente Pereira Leal;
320
“amásias” contra filhos e filhas
legítimos de seus companheiros em virtude de passamento desses, como foi o caso de
Antonia Pereira de Lima contra as herdeiras de João Bussons;
321
filhos ilegítimos contra
os herdeiros legítimos de seus pretendidos pais, como foram os casos de Luiza Ramos do
Nascimento contra os herdeiros de Manoel Ramos do Nascimento e Antonio da Silva
Borges e outros contra Preciosa Rodrigues Borges;
322
irmão impetrando processo contra
irmãos, em decorrência da morte do pretendido pai, como foram as tramas entre Josias
Maia contra Zulmira Catharina Maia do Nascimento.
323
Quando se feriam interesses, os
ajustes, as argumentações e as argüições surgiam entre os interessados em provar a
desejada paternidade irreconhecida em vida do companheiro e mesmo na duração da
vivência sob o mesmo teto.
Ainda é necessário aproximar os dados da tabela aos argumentos que se quer
sustentar. Diante do exposto, a investigação de paternidade ia além do justo desejo de
possuir o nome do pretendido genitor. Esta premissa, aliás, localizava-se em segundo
320
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Maria Jacyntha Felix contra Vicente Pereira Leal,
1921.
321
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonia Pereira Lima contra as herdeiras de João
Bussons, 1931.
322
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonio da Silva Borges e outros contra Preciosa
Rodrigues Borges, 1931.
323
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Josias Maia contra Zulmira Catharina Maia do
Nascimento e outros, 1921.
214
plano. Assim é necessário enfatizar que a figura do pai mostrava-se importante, nem tanto
em relação ao nome, mas sobretudo ao seu trabalho, vencimentos e bens. Existiam às
companheiras neste tipo de ação, sentidos de recompensa moral por terem ajudado a
construir patrimônio, tolerado embriaguez, suportado ameaças de outras mulheres e as do
próprio amante. Articular eixos próximos, contudo com resultados bem distintos, é salutar.
Michelle Perrot, em trabalho intitulado “Os atores: figuras e papéis”,
324
analisou que na
vida privada oitocentista a figura do pai com o seu sobrenome mostrava-se importante,
porque a partir de leituras de teóricos como Hegel, Proudhon e Kant entendeu que quem
realmente dava à luz era o homem, por meio do seu sobrenome. Para a cidade de Belém,
contudo, tal fato sequer se apresentava como questão central, portanto os autos partiam e
indicavam a uma segurança de subsistência, tanto que vários se cumulavam com o de
pensão alimentícia, embora também se organizassem diante da divisão de bens, haja vista
que diversos processos surgiram em virtude da morte dos companheiros. João Bussons, por
exemplo, faleceu e suas filhas organizavam inventário dos bens deixados; a senhora
Antonia, amante, deve ter-se apressado quando soube desses movimentos. Foi assim
também o caso de Luiza Ramos do Nascimento, 19 anos, miserável no sentido da lei,
contra os herdeiros [a viúva, Judith Ferreira do Nascimento e seus filhos] de seu pretendido
pai, Manoel Ramos do Nascimento.
325
Luiza nasceu, em 09 de outubro de 1912, fruto do
concubinato havido entre sua mãe, Margarida Escolastica de Mello e Manoel Ramos do
Nascimento, ambos falecidos ao tempo da ação. A impetrante e o seu tutor, Raymundo
Honorio dos Santos, apresentaram-se em juízo em 1931, propondo investigação de
paternidade cumulada com a de petição de herança. Por seu turno a viúva, Judith Ferreira
do Nascimento, contestava os processos e apresentava-se como “meeira” do falecido e mãe
dos filhos legítimos: Osmar, 16 anos e Luiza Maria, 08 anos. A natureza dos bens é
ignorada, e não há veredicto nos autos.
Tomando como base os documentos analisados, boa parte dos filhos à época
chamados ilegítimos mantinha relações contemporâneas com o pai, ou seja, solidariedade
sustento e proteção faziam-se presentes entre o grupo familiar. Geralmente os problemas
que envolviam os bens e provisões surgiam quando o suposto progenitor se eximia da
proteção dos seus possíveis rebentos bem como da da amásia. Quando morriam e
324
PERROT. “Os atores: figuras e papéis”. Op. Cit.
325
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com o de herança impetrado por Luiza Ramos do
Nascimento contra os herdeiros de Manoel Ramos do Nascimento, 1931.
215
deixavam as combinações: filhos reconhecidos x ilegítimos, filhos legítimos x ilegítimos e
filhos legitimados x ilegítimos, facilmente os primeiros passavam a responder ações de
paternidade diante da justiça. Este foi o caso, em 1921, de Josias Maia, solteiro, 26 anos,
que impetrou investigação de paternidade contra as suas irmãs: Zulmira Catharina Maia
do Nascimento (casada com Alberto Guilherme do Nascimento) e Rita Maria Maia.
326
Esta
combinação foi possível porque o exeqüente asseverava ser filho de Maria Catharina Maia
com Josias Ferreira; este reconheceu as impetradas Zulmira e Rita como suas filhas
deixando de o fazer com o impetrante; assim sendo o certo é que Josias, Zulmira e Rita
eram filhos de uma mesma mãe [Maria Catharina] e que as filhas foram concebidas com o
falecido Josias Ferreira, no entanto inexistia certeza de que o primeiro fosse também filho
deste. Daí o descendente mais velho requerer judicialmente o reconhecimento para que
pudesse, com as irmãs, gozar dos bens deixados por seu suposto pai; para tal fim o
advogado do autor, Guilherme Leonidas de Mello, passou a afirmar em juízo que por ter
sido educado sob as expensas e na companhia de seu falecido pai, nenhuma dúvida restava
sobre a filiação de seu constituinte que por isso também tinha total direito à partilha dos
bens deixados. Outra argüição apresentada na ânsia de provar a pretendida paternidade
para com isso auferir da divisão dos bens foi a de que o “fallecido pai” o apresentava a
todos como seu filho, assertiva muito usada neste tipo de processo.
Especialmente nas tramas de Josias Maia, boa parte do auto detinha-se na
afirmativa de que o autor possuía os mesmo direitos de sucessão de patrimônio, contudo as
filhas reconhecidas [ao contrário das herdeiras de João Bussons, analisadas um pouco
atrás] negavam que o exeqüente fosse filho ilegítimo do falecido; as impetradas
constituíram como advogado o senhor Armando Pereira de Moraes, e iniciaram defesas de
onde vieram à tona as seguintes acusações: “que Catharina Maia foi concubina de Josias
Ferreira, delle tento concebido e acham-se vivos dois filhos unicamente e são Zulmira
Catharina do Nascimento e Rita Maria Maia; que tanto Zulmira Catharina do Nascimento,
como Rita Maria Maia foram reconhecidas por Josias Ferreira; que ao tempo em que
Catharina Maia passou a ser concubina de Josias Ferreira, já se achava gravida de Josias
Maia razão porque o autor não foi, como as verdadeiras filhas, reconhecido por Josias
Ferreira”. Surpreendentemente o autor do processo era irmão das impetradas, mas negava-
se ser filho de Josias Ferreira, isto é, exeqüente e impetradas eram irmãos apenas por parte
326
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Josias Maia contra Zulmira Catharina Maia do
Nascimento e outros, 1921.
216
de mãe. Impetrante e advogado replicaram a contestação e a linha de argüição não mudou:
o reclamante era filho de Josias Ferreira com Catharina Maia e por isso tinha igualmente
direito à herança, visto que sua mãe era concubinada com o seu pretendido pai muito
antes de ser o autor concebido e por isso considerava infame a acusação de que a genitora
estivesse grávida quando passou a viver sob o mesmo teto de Josias Ferreira, que sempre
o tratou como filho e tinha a convicção de já o ter reconhecido, daí a omissão.
Está incompleto o processo que trouxe à luz uma vida amásia iniciada no final
do século XIX, por volta de 1894. Certamente a outra parte está perdida no mar de
documentos desorganizados do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, mas da
fonte localizada percebe-se que as histórias de vida do casal amásio Maria Catharina Maia
e Josias Ferreira são bastante densas: nunca se casaram, mas viveram juntos no mínimo 26
anos; outra questão inteligível na ação é que os litigantes eram irmãos de mesma mãe, mas
buscava-se saber se de mesmo pai, e esta era a razão da briga jurídica; que Zulmira e Rita
foram reconhecidas pelo genitor; e que as convivências sociais entre pais e filhos
mostravam-se contemporâneas, porém logo após a morte do possível progenitor de Josias,
em 17 de novembro de 1920, [o auto inicia em 15 de março de 1921], a inexistência de
testamento provocou tensões acentuadas entre os irmãos em relação aos bens deixados, que
infelizmente nenhuma informação sobre quais seriam. O comportamento da “família”
em torno da herança deixada possibilitou a vinda à tona de contornos de sua vivência
privada e tudo leva a crer que as lutas eram intensas entre eles quer em casa, quer no bojo
das tensões jurídicas.
A existência de algum patrimônio intestado ao tempo do falecimento do
possuidor sempre representou aos herdeiros grandes problemas. Se alguns se digladiavam
por poucos dias por ter vencido ou desistido da ação, outros permaneciam por meses a fio
nos corredores do judiciário. Se alguns lutavam por uma partilha mais justa dos móveis e
imóveis deixados pelos pretensos genitores, outros buscavam o total dos bens [contra
supostos filhos ilegítimos], bens que foram conseguidos durante anos de intenso trabalho
dos pais. Muito embora problemas concentrados na partilha se verificassem em alguns
autos, o número esmagador de processos tinha como fim conseguir “tão somente” pensão
alimentícia e não necessariamente a divisão de móveis e imóveis. Para esta questão duas
explicações são bastante possíveis; primeira, os documentos indicam que 87 % dos
impetrados podem ser classificados como homens pobres para o início das primeiras
décadas novecentistas, quer-se dizer: funcionários públicos e do porto, empregados no
217
comércio, carpinteiros, pedreiros, embarcadiços, braçais, serventes, os quais não
acumularam nenhuma natureza de propriedade; segunda, e em virtude da primeira, as
exeqüentes objetivavam a imediata sobrevivência juntamente com a prole, por isso
requeriam rápido pagamento da desejada pensão, mesmo que esta representasse valores
“irrisórios” como será analisado no item seguinte.
O que tais campos deixam ainda entrever, além das acusações das
individualidades das partes? Contínuas ressignificações dos códigos que conduziam a
investigação de paternidade, certamente era um significado, assim como alimentos,
educação dos filhos e bens (pecúlios, propriedades, economias) sempre estiveram
articulados como razões de processos. Poder-se-ia evocar a representação de que se
pleiteavam valores econômicos e sociais que a relação sob o mesmo teto emanava quando
do seu término; nos autos, esta dimensão valorizava-se e no decorrer do tempo processual
ela crescia no interior da ação. É impossível medir com precisão a amplitude dos
fenômenos existentes no bojo desses documentos, contudo eles indicam a estas
argumentações, pois que se considerava a família como domínio muito sério uma vez que
esforços, ordens, tolerâncias, e planos foram traçados em comum.
Quando mudavam as lógicas do sistema social do casal, considerava-se que
transcorreram vários anos de intensa interdependência afetiva entre o par. Do patrimônio
cultural de outros tempos, pensado e constituído como ideal, sobravam agora tão somente
alguns resquícios que se inseriam em contextos que lhes eram estranhos, como os da
justiça. Note-se que, se por um lado a união do casal consensual foi alvo de resistências por
parte das mentalidades conservadoras tradicionais, por outro, quando as separações
aconteciam, as pechas eram devidamente lançadas aos envolvidos. No entanto apreende-se
que esta forma de família possuía estilo de vida e convivência própria e que ao tempo da
ruptura as dores, tensões, angústias e dificuldades não se mostravam mais fáceis ou
simples das dos legalmente casados, como se analisou em capítulo precedente, pois
havia a necessidade de articulação aos fatos do cotidiano para se sair com alguma garantia.
Do exposto, as esposas sabiam que ao impetrar estes autos enfrentariam reticências morais
e jurídicas, uma vez que se tratava de provar a paternidade de um possível genitor o qual,
por alguma razão, deixou de reconhecer suas responsabilidades quando vivo ou amasiado.
Atestados, testemunhas e convivência articulados com a concepção de filhos,
sempre estiveram concatenados [no interior dos autos] com o tempo social, o qual
logicamente envolvia experiências vividas entre as personagens. Tempo histórico
218
cumulado com a experiência foram as armas utilizadas por Maria Reis, em 1940, para
provar que Dilermando Martins de Oliveira Mello era o pai de Norma Reis, nascida em 24
de novembro de 1939. A exeqüente era solteira, 21 anos, doméstica, miserável no sentido
da lei, amparada pela Assistência Judiciária, residente na Avenida Tito Franco, 1644, e
Dilermando Martins de Oliveira Mello, 28 anos, paraense, casado, funcionário público da
Diretoria Geral de Agricultura e Pecuária do Pará, onde tinha como função a atividade de
auxiliar de culturas, morador da Travessa Timbó, 1110,
327
envolveram-se amorosamente e
em março de 1939 ocorreu o defloramento, nascendo Norma Reis. Por seu turno,
Dilermando e o seu advogado, Clovis da Gama Malcher, passaram a contestar o
desvirginamento e conseqüente paternidade; o réu asseverava que nunca mantivera
relações de namoro e nem tampouco sexuais com Maria, sendo inteiramente falsa a
acusação de ser o genitor da menor em questão e que “em tempo algum, em qualquer
lugar, na presença de quem quer que seja, nunca o réo, por palavras, atos ou qualquer outra
manifestação de vontade, tacita ou expressamente, reconheceu a paternidade que se lhe
quer atribuir” e defendia-se, principalmente, com a argumentação de que ao tempo do
defloramento não se encontrava na cidade de Belém, mas a serviço no interior do Estado.
O cotidiano dialogava com a lei e isto justifica a cautela que se deveria ter
diante do possível filho. Gestos, palavras e atos que pudessem sugerir proximidades
sentimentais, apreço, carinho com a criança, mesmo se realizados em domínios
particulares, precisariam ser negados diante do judiciário paraense, caso contrário, a
divisão de bens e pagamento de provisões ficariam bem mais próximos. Estes espaços o
se constituíam em possibilidades contidas no Código Civil para a comprovação de
paternidade, mas o dia-a-dia elaborava os seus próprios códigos e expressões os quais
poderiam oferecer margens de interpretação positiva à paternidade pretendida. A
investigação constituía-se campo difícil e dever-se-ia cercá-la de precauções e cuidados
porquanto as imputações e a defesa exigiam extrema nitidez dos envolvidos. Foi neste
sentido de ressabiamento que o réu e seu advogado afirmavam que em tempo algum e em
nenhum lugar [o acusado] se dirigiu com atos carinhosos à criança de que a “mãe dizia ser
ele o pai”. Estas refutações aconteceram porque na inicial dos autos citava-se que, muito
embora o impetrado “reconheça a paternidade da filha da Supte., nega-se a concorrer com
o necessário para os alimentos de que ela necessita”. Evitavam-se quaisquer ações que
327
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Maria Reis
contra Dilermando Martins de Oliveira Mello, 1940.
219
pudessem mostrar apreço ou amor à criança próximo de outras pessoas o que poderia dar
margem à constituição de testemunhas.
Dilermando, atento aos perigos e penalidades contidas tanto no judiciário
quanto em âmbito de sua família comprovou-se ser ele casado –, buscou cercar-se de
possíveis provas de suas faculdades morais, isto é, de que não havia desvirginado a autora
do processo e muito menos se constituía em genitor de Norma Reis. De tal sorte, o
impetrado conseguiu um documento na Diretoria Geral de Agricultura e Pecuária do Pará,
onde trabalhava, que asseverava que “durante os meses de Dezembro de 1938 á Junho de
1939” [em março de 1939 a autora afirmava ter sido deflorada pelo réu] encontrava-se a
serviço para o interior do Estado do Pará. A empreitada judiciária apenas iniciava, pois
Dilermando transformava-se em réu contestante; por seu turno, a autora, no desejo de
provar o que acusava, passou a publicizar as suas intimidades: que suas relações sexuais
apenas aconteceram com o réu; que o desvirginamento aconteceu em 04 de março de 1939
na sua própria residência [terreno em frente da casa] por volta das 20 horas. Apreende-se
que a impetrante imiscuía-se por vários espaços nevrálgicos como os de comprovar
defloramento e paternidade para conseguir pensão alimentícia. Desta maneira, tornava-se
preciso estabelecer simetrias de intimidade e ao mesmo tempo distanciamento das
declarações do contestante; assim, as testemunhas passaram a dar as suas versões dos fatos:
Manoel Soares de Souza, 51 anos, cearense, operário, casado, morador da casa número 21
da Estrada do Utinga, declarava que “via muito o réu Dilermando, conversando de noite e
de dia com a mesma Maria Reis, dentro da casa da propria autora”. Já, Florisbela Silva, 19
anos, paraense, solteira, doméstica, residente na casa número 1632 da Avenida Tito
Franco, narrava que o contestador “apresentou Maria Reis á depoente, como sua futura
noiva”; mais à frente a depoente expunha sempre ver “o réu e Maria passearem juntos” e
Francisca Monteiro de Queiroz, 19 anos, casada, paraense, doméstica, residente na Estrada
do Utinga, s/n que, ao ser interrogada, dava a versão de que “via sempre o réu e Maria Reis
juntos, não vendo outro homem em sua companhia”, um pouco mais adiante afirmava que
tinha “certesa que no mez de abril de mil novecentos e trinta nove o réu estava aqui na
cidade, porque o viu na casa de Maria Reis, assim no mez de janeiro tambem viu o acusado
em companhia de Maria”.
Ao que tudo sugere, as informações de que o pai de Norma Reis era
Dilermando estavam próximas de ser confirmadas. Todavia, o pretenso genitor
permaneceu argüindo o contrário, mesmo sem força de convencimento jurídico, pois
220
mantinha-se com a mesma argumentação: a da sua ausência da capital ao tempo do
defloramento. Esta linha de defesa era mantida pelas testemunhas constituídas pelo réu:
Francisco de Souza Barros, 36 anos, casado, brasileiro, funcionário do mesmo órgão em
que trabalhava o réu, morava na Boa Aventura da Silva, 251 e Samuel Alves, 50 anos,
paraense, casado, magarefe, residente na Travessa Humaitá, 1372. Partilhar com as
testemunhas os acontecimentos e imiscuindo-as em espaços antes caracterizados como
privados e agora públicos fazia parte do jogo que buscava comprovar ou negar a ação.
Somando as partes envolvidas, cinco testemunhas foram arroladas, depoentes que
certamente se conheciam e conduziam tensão às representações contidas nos autos, além
de partilharem angústias e problemas havidos no período das alegações e antes da abertura
do litígio; esses movimentos ficam inteligíveis quando os depoentes afirmavam conhecer
os envolvidos vários anos como seus amigos ou vizinhos. Em 13 de março de 1940, as
acusações davam algum resultado, ou seja, Mauricio Cordovil Pinto, juiz que arbitraria a
sentença, concedia a palavra ao senhor doutor Miguel Machado da Rocha e Souza,
Curador Geral; este opinava “pela condenação do réu por julgar que as provas contidas nos
autos, são todas em favor da autora”. Complementava com convicção que “a certidão que o
réu juntou aos autos nenhum valor tinha uma vez que as testemunhas da autora são acordes
em afirmar que o réu se encontrava nesta capital de Dezembro de mil novecentos e trinta e
nove á Junho de mil novecentos e quarenta”.
Recorrer a Michel Foucault é de fundamental importância, visto que este autor
entende que o ato de julgar está diretamente ligado às versões apresentadas no tribunal do
júri.
328
Então, era exatamente o que os réus e impetrantes elaboravam quando queriam
vencer a contenda ou livrar-se de uma querela jurídica. Ao se considerar esta linha
mesmo em nenhum momento desprezando as brechas que o judiciário proporcionava
atuavam constantemente no sentido de obter fatos no cotidiano para provar culpa de
pretensos genitores em ações de paternidade.
Aqui questiona-se mais a principal argumentação do réu. Ela também se
enfraqueceu, em 20 de março de 1940, quando o juiz certificava ser comum os
funcionários retirarem-se furtivamente “e até de má das sedes de suas atividades.
Constitui-se crível, nestes autos, alguns domínios: o de ser “verdade” tratar-se o réu de
homem casado; o de ser “verdade” o defloramento da autora e conseqüente paternidade
do suplicado; de ser “verdade” a criança constituir-se em adulterina; e o de ser
328
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.
221
“verdade” a existência de concubinato.
329
Comprovava-se pois ser Norma filha de
Dilermando e se esta criança ficava impossibilitada pela lei de ser reconhecida ao mesmo
tempo auferia o direito de ter seus alimentos garantidos por seu pai, conforme os
dispositivos do artigo 405 do Código Civil: “o casamento, embora nullo, e a filiação
espúria, provada por sentença irrecorrigivel, não provocada pelo filho, quer por confissão,
ou declaração escripta do pae, fazem certa a paternidade sómente para o effeito da
prestação de alimentos”.
330
Tomando por base o Código, o juiz Cordovil julgou procedente
o pagamento de provisões mensais de cinqüenta mil réis, visto que considerava serem
poucos os seus vencimentos, na ordem de duzentos e cinqüenta mil réis, e também pelo seu
estado de casado. Recorreu-se da condenação, mas não se obteve sucesso.
Para uma impetrante de investigação de paternidade, exigia-se que o passado
viesse à tona, pois assim haveria mais chances de vencer a causa. Representado com falas
de testemunhas que ajudariam a lembrar com mais detalhe as fases, dias, fatos e casos
importantes, permanências e rupturas do casal, ou mesmo forjá-los. Vizinhos, amigos e
parentes que pudessem lembrar dos pormenores e murmúrios da época do viver sob o
mesmo teto, apresentavam-se importantes. É necessário afirmar que estas considerações
não se recolheram do Código Civil de 1916 ou de qualquer jurista de época, conseguiram-
se, sim, nos diversos processos de investigação de paternidade estudados. O dia-a-dia
envolvia vozes as testemunhas de mesmo segmento que permitiam articular que esta
forma de conjugalidade fosse aceita, embora pecaminosa à luz de parte da sociedade.
Buscava-se procurar com diligência aqueles padrões, o que facilitaria o tráfego
comprobatório no judiciário. Seja como for, provar por meio destas que os amantes viviam
de “porta adentro” ao tempo da concepção, isto é, que viviam juntos de forma a não deixar
dúvidas aos julgadores, corroborava os desejos de vitória. Perseguindo o argumento e
reafirmando-o por meio de pesquisas e interpretações documentais, as rupturas do “viver
como se fossem casados” apresentavam situações múltiplas de relações mal resolvidas,
como denuncia a tabela atrás elaborada, mas a multiplicidade de casos em estudo não
negligencia padrões de provas que eram comuns, guardadas as devidas proporções.
A dar crédito aos argumentos expostos, o “concubinado”, amasiado”,
“amancebado”, “em constante pecado”, como queiram taxar os que conviviam às
329
O termo verdade, aqui, usa-se no estrito sentido do direito, isto é, de terem sido comprovadas as acusações
contra um réu.
330
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
222
“margens” e sem necessidade da ordem” do casamento dito legal, um fator comum se
apresenta inerente a estas convivências: viver maritalmente deve ser apreendido para além
de relações sexuais furtivas, episódicas ou fornicações, porquanto foram detentoras de
felicidade, amor e paixão, assim como frustrações, dores e brigas diante, por exemplo, da
divisão dos bens e alimentos, isto é, em nada diferentes do modelo de conjugalidade
oficial, reafirma-se. Assim como as do matrimônio, as famílias surgidas fora dele
variavam no tempo e no espaço porque estavam inelutavelmente ligadas às necessidades e
desejos que giravam em torno dos seus interesses e conveniências bem como estendiam-se
a murmúrios, queixas, denúncias que partiam de suas convivialidades. Exemplo notável de
vida fora das alianças André Béjin, em trabalho intitulado, “O casamento extraconjugal
dos dias de hoje”.
331
Em suas reflexões sobre convívios extraconjugais, o autor considerou
que tais uniões, se não apreendidas como demasiadamente temporárias também seria erro
considerá-las definitivas; desta forma é mister entendê-las como negociações de todos os
dias entre parceiros, condição bem similar à do consórcio dito higiênico.
Por tudo que se tratou, impetrados e impetrantes enfrentavam-se com armas
desiguais. O que se nota não é uma mesma tentativa de “prova” em si, mas como estas
foram movimentadas em suas particularidades; grosso modo, a qualidade e o ritmo que
cada acusação assumia, expressava diferença e força no forjar da absolvição ou da culpa.
Quando se estudam as condições das práticas jurídicas, assim como os espaços de
condenação e absolvição, partir das diversidades e tempo que as envolvidas amásias,
namoradas, concubinas, testemunhas enfrentavam, representou fator decisivo no
desenrolar da ação e na formatação de jurisprudência.
Finalmente, é importante considerar, pois, que em muito as decisões jurídicas
partiam das narrativas dos depoimentos.
331
JIN, André. “O casamento extraconjugal dos dias de hoje”. In: ARIÈS, Philippe. & JIN, André.
(Orgs.). Sexualidades ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo:
Brasiliense, 1986, pp. 183 / 193.
223
4. PENSÃO ALIMENTÍCIA: FUGAS E PRISÕES
CERTIDÃO
“Certifico a requerimento verbal de Dilermando Martins de
Oliveira Mello, que o mesmo é funcionario da Diretoria Geral de
Agricultura e Pecuaria do Pará, onde vem servindo desde 1º de
Junho de 1938 até o presente, exercendo as funções de auxiliar de
culturas, e que o referido funcionario esteve á serviço da mesma
Repartição no Interior do Estado, durante os meses de Dezembro
de 1938 á Junho de 1939.
Belem, 16 de Fevereiro de 1940.”
(Auto civil de investigação de paternidade cumulado com
prestação de alimentos impetrado por Maria Reis contra
Dilermando Martins de Oliveira Mello, 1940)
O auto de investigação de paternidade cumulado com o de prestação de
alimentos, já analisado em páginas anteriores, impetrado por dona Maria Reis contra
Dilermando Martins de Oliveira Mello que tinha vencimentos de duzentos e cinqüenta mil
réis (250 $ 000) mensais no ano de 1940, é importante ser oura vez analisado, contudo
diante de outras questões. Segundo a ação, Dilermando era casado desde 19 de setembro de
1936. Sua esposa, como é possível perceber, não era a requente. Em 1940, em dois
processos, paternidade e alimentos, ele transformou-se em réu das acusações seguintes: no
alvorecer de 1939, teria iniciado namoro com a impetrante e em 04 de março a deflorou,
por volta das “oito horas da noite”; depois desse fato mantiveram diversas relações sexuais.
O caso não foi registrado na polícia porque a “vítima” já tinha 21 anos.
332
Ao contrair
relações íntimas “no terreno da frente da casa”, Maria encontraria muitos problemas os
quais enfrentaria sozinha, ao que tudo indica. Comprovava-se, algum tempo depois, estar
grávida e de ser o namorado o pai da criança. Quando um irmão soube do desvirginamento
e da gravidez, expulsou-a de casa, segundo a versão da testemunha Manoel Soares de
Souza. Os murmúrios da vizinhança juntamente com os comentários e as múltiplas
observações alertavam a autora, quando do namoro, de que o pretendente era homem
comprometido, isto é, “que algumas moças da redondeza disseram a Maria que o réu era
casado”, porém este lhe afirmou ser solteiro. A testemunha Florisbela, 19 anos, solteira,
paraense, doméstica, residente na Avenida Tito Franco nº 1632, acentuava que “uma
visinha da senhora do réu por nome Ignez foi que disse a depoente que o réu era casado”.
332
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado por Maria Reis
contra Dilermando Martins de Oliveira Mello, 1940.
224
Para a sua defesa, Dilermando igualmente recorria aos depoimentos dos
vizinhos. O senhor Francisco de Souza Barros, afirmava que o impetrado era casado e que
“quanto á vida particular do réu o depoente nada sabe e quanto á vida pública adianta ser
ele bom funcionario”, a mesma testemunha afirmava ainda que o impetrado recebia
duzentos e cinqüenta mil réis (250 $ 000) mensalmente. Nota-se que os vizinhos, para além
de serem boas testemunhas de defesa e de acusação, também se mostravam excelentes
observadores do privado daqueles que se encontravam às proximidades, ou seja, sempre se
colocavam em movimentos tático-políticos que tinham por fim envolver os indivíduos do
seu ciclo social. Sabiam, por exemplo, do estado civil de Dilermando, seus vencimentos, a
profissão, como se dirigia à casa da namorada [de bicicleta]; a respeito da autora, as
testemunhas conheciam e publicizavam sem grandes constrangimentos o seu defloramento,
as intrigas familiares, a expulsão da casa dos pais, seu estado de miserabilidade.
Estreitamentos entre os espaços do lar e as conversas íntimas aproximavam-se dos
domínios públicos; neste sentido, a casa e a rua estabeleciam inter-relações constantes, que
devem ser apreendidas como lugares onde se realizavam trocas cotidianas. As testemunhas
afirmavam que conheciam a impetrante e o réu longos anos, que freqüentando
assiduamente a casa onde os fatos aconteceram ouviam constantes brigas e gritos, por meio
de conversas na soleira da porta e refestelando-se às janelas, elas sempre se encontravam
muito próximas dos acontecimentos, estando aptas a prestarem depoimentos. De tal sorte,
o público e o privado sofrem mudanças nas fendas sociais que não se excluem, mas
tramam simetricamente com o objetivo de transformar em crível os anseios daqueles que
as constroem.
333
Dilermando, tendo por objetivo secundarizar juridicamente as ações dos
depoentes de acusação sobre o que se comentava dele, terminava por publicizar fatos de
sua vida e da companheira. Desconsiderava as imputações, ao acentuar que estava fora da
cidade de Belém ao tempo em que a autora dizia ter sido seduzida e deflorada, como
argumentava no documento que serve de epígrafe. Aliás, ao se analisar esta fonte, é
possível observar que, para provar afastamento da capital paraense, foi necessário ao u
expor-se um pouco mais, visto que se sentiu obrigado a dar satisfações de sua vida privada
aos superiores. Para além das testemunhas constituídas, apresentava-se documento que
procurava provar a sua ausência da capital entre os meses de dezembro de 1938 a junho de
333
MATOS, Maria Izilda Santos de. Do público para o privado: redefinindo espaços e atividades femininas
(1890 / 1930)”. In: CADERNOS PAGU: Fazendo história das mulheres 4. Núcleo de Estudos de nero /
UNICAMP. Campinas: Publicações do PAGU, 1995, pp. 97 / 115.
225
1939, o que permite supor não ter namorado a autora, tê-la seduzido, desvirginado, e nem
tampouco ser o pai de Norma Reis, uma vez que a requerente assegurava ter sido
desvirginada no dia 04 de março de 1939, por volta das 20 horas, enfatize-se. Desse modo,
o réu esforçava-se em fugir de quaisquer complicações, sejam jurídicas, sejam familiares,
visto que os problemas vertidos, as explicações que foi obrigado a dar, as intrigas que teve
de contornar na vida em família, se mostravam certamente bastante embaraçosas.
Dilermando, em depoimento, defendia-se de todas as maneiras para se eximir do
pagamento da pensão alimentícia afirmando, por exemplo, que “apenas conhecia Maria
Reis de vista, isto mesmo de passagem quando se dirigia de bonde para o campo de Santa
Lucia”
334
e que ao tempo em que a autora afirmava peremptoriamente ser a data do
defloramento, encontrava-se viajando a trabalho para a cidade de Igarapé-Açu, interior do
Pará. Vislumbra-se como se narravam os espaços públicos da cidade nas defesas: no caso,
os bondes foram utilizados pelo réu para se defender em juízo quando dizia conhecer a
autora tão somente de vista, ao passar para o trabalho em uma linha de condução urbana.
Mais articulações sociais se realizavam na tentativa de engendrar sólidos argumentos de
defesa. Todavia, o judiciário paraense não foi convencido e o senhor Miguel Machado da
Rocha e Souza, Curador Geral, opina pela condenação do impetrado enquanto o juiz do
auto, Mauricio Cordovil Pinto, entende que houve colóquios amorosos e que o acusado
dirigia-se a essas palestras “até de bicicleta”, existindo promessas de noivado e casamento.
Deste modo, condenou o acusado a contribuir mensalmente com a quantia de cinqüenta mil
réis (50 $ 000) o que o réu resolveu ignorar, sendo necessário à suplicante entrar com
documento onde pedia “ser decretada, dentro das 48 horas, sua prisão, de acordo com o
que determina o § do artigo 920 do Código de Processo Civil”.
335
A justiça paraense
aceitou o argumento afirmando ser imperativo a Dilermando, no prazo de três dias, “pagar
a importancia de trezentos mil reis (rs: 300 $ 000), provenientes das pensões alimenticias,
correspondentes aos meses de Abril á Setembro”.
Apesar dos dilemas, acusações, dramas, tramas, sedução/defloramento,
gravidez, justiça e prisão ocorridas entre Maria e Dilermando, estas não foram
particularidades apenas dos litigantes em questão. Outros dramas que ajudam nestas
argumentações constam do processo de prestação de alimentos entre os cônjuges Medina
Iraty Albuquerque da Costa, 20 anos, brasileira, casada, prendas domésticas, residente na
334
Esta parte do documento contem grifos do autor.
335
Esta parte do documento contem grifos do autor.
226
José Bonifácio, 951. A autora, “pobre no sentido da lei”, patrocinada pela Assistência
Judiciária Civil, tinha como advogado Vicente Portugal Junior. No documento que
apresentou à justiça, lia-se que Pedro Vieira da Costa, 25 anos, nascido em Maceió,
copeiro [marítimo], residente na Carlos Gomes, 145, era seu marido e o casamento deu-
se em 29 de setembro de 1939. Oito meses e 14 dias após o enlace [em 13 de junho de
1940], as crises avizinharam-se e foram publicizadas ao poder jurídico paraense por meio
de ação de pensão alimentícia.
336
O motivo sustentava-se na acusação de que, em 13 de
dezembro de 1939, apenas 02 meses e 16 dias depois do matrimônio “o seu marido
embarcou como tripulante do vapor “Envira” para uma viagem ao Peru, e quando
regressou não mais procurou a requerente”. A vida em comum, a considerar a data da
viagem, pouco durou, e o até que a morte os separasse [ideal desejado] ignorou-se. Outra
imputação que recaía sobre o réu foi a despesa da autora, que migrara para seus genitores.
“Acontece, porém, que os seus pais sendo pobres, lutando com inumeras dificuldades para
viver” diziam inexistir recursos para assumirem tão onerosa responsabilidade. Também se
acusava o impetrado de disponibilizar de recursos suficientes para satisfazer as
necessidades da família que havia abandonado, pois percebia bom salário, isto é, mais de
quatrocentos mil reis por mês, asseverava a primeira testemunha do processo: Luiz da
Rocha Pita, brasileiro, comerciante, casado, residente a Avenida José Bonifácio, 953.
Diversas problemáticas interpõem-se quando se observa de forma mais atenta o
depoimento do senhor Luiz. Por exemplo, a concepção do que seria ganhar bom ordenado
na cidade, ou seja, a testemunha, proprietária de uma casa comercial nas proximidades da
residência da autora e de seu pai, compreendia que quatrocentos mil réis (400 $ 000)
mensais mostravam-se suficientes para se manter de modo conveniente uma família. No
entanto, como será analisado no capítulo 4, o valor salarial percebido pelo impetrado nem
seria tão alto a julgar o custo de vida da Belém novecentista; de tal modo, outra lógica
interpretativa pode ser apreendida, mas que também converge à questão acima: tratava-se
de um discurso para conseguir veredicto favorável na justiça paraense.
Nota-se que apenas uma imputação recaía sobre o esposo: o artigo 233, § do
Código Civil Brasileiro, isto é, o artigo e inciso afirmavam respectivamente que “o marido
é o chefe da sociedade conjugal”, desse modo competia-lhe “prover á mantença da familia,
336
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Medina Iraty Albuquerque da Costa contra Pedro
Vieira da Costa, 1940.
227
guardada a disposição do art. 277”.
337
Se era apenas uma acusação, mostrava-se múltipla
de significados, ou melhor dito, expressava as responsabilidades – quer morais, quer
sociais – atribuída aos homens no seio do casamento. Marina Maluf e Maria Lúcia Mott,
338
que estudaram o Código Civil, ajudam neste momento. Conforme o direito de família,
segundo as autoras, a legislação de 1916 apresentava os cônjuges como os seus
responsáveis. Mas é necessário tomar cautela quanto à concepção de que as mudanças
partiam das dimensões jurídicas, porque elas organizavam-se mais no âmbito do cotidiano
em virtude das teias de poder desenvolvidas e menos no campo do direito.
Juridicamente todavia, o sentido do homem como senhor das ações no interior das redes
matrimoniais, permanecia inalterado no início do século XX, porquanto cabia a ele ser o
chefe da sociedade conjugal, o representante legal da família, o administrador dos bens
comuns do casal e os particulares da esposa, bem como o responsável em prover
convenientemente a prole.
Assim sendo, dona Medina, bem orientada por seu advogado e tendo apoio de
testemunhas que reforçavam a concepção de possuir bom comportamento perante a
sociedade, fortalecia as chances de conseguir veredicto favorável quando anexou carta aos
autos.
A carta:
“Querida, Rogando A Deus sempre, para que não Aconteça nada
sinto Bastante não podre ir mim dispredrí mas não léve a mal,
lembranças para todus préciso que não si emprecidre quando eu
cheigar que em contra minha filinha górda e boníta presço que vá
sémpre na caza da D. María da fé.
escreva-mín para Manoar que eu tambem ti cresvro filinha
conheço que sou um criminózo, tinho mím arrependido Bastante,
de tre cómmetido, este, crime, cónnheço que voces não merecidora
sou um cremínózo e sérei Ate amórte lévarei a sélputuutura vócez
nem sabe cómo vou tão emprecionado que nem imagínas só
prénço em acontécer ao góma Cóiza Comtigo mas presço a Deus
que nada ha de acontecer.
Sem mais
A Déus meu amor
Deus Séja, o téu protétro, Saudações
337
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1952, pp. 110 / 111.
338
MAFUF, Marina. & MOTT, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo feminino”. In: SEVCENKO, Nicolau.
(Org.). História da vida privada no Brasil República: da Belle-Époque à era do rádio. Vol. III. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp. 367 / 412.
228
P . V. L.
339
As exposições são mais do que uma carta: apresentam-se como verdadeiros
itens condenatórios. Desconhece-se o crime ao qual o senhor Pedro se referia ao escrever a
missiva [quase incompreensível em sua ortografia e gramática] à esposa. Entretanto, duas
possibilidades são possíveis de se conjecturar: a confirmação de ser o réu mau provedor
ou de estar admitindo ter sido negligente na gravidez da esposa, pois sua mulher havia
abortado “uma criança de sete meses”, assegurava a testemunha Grasiela Miranda de
Mello, casada, doméstica, residente na Avenida José Bonifácio, 108. Muitas
possibilidades jurídicas convergiam de modo contrário ao réu, como carta escrita, onde
confirmava ser um assassino; depoimentos de testemunhas corroborando que de nenhuma
maneira cumpria com os deveres familiares por perversidade, pois recebia bom ordenado;
recusas em sustentar a família que ficou sob as expensas do pai da autora; e mesmo de
negar-se a destinar pensão alimentícia à esposa. O réu enveredava pelo campo da fuga aos
compromissos, todavia as negativas das provisões resultavam em empreender dribles sobre
a justiça paraense, visto que em diversas oportunidades os oficiais da lei não localizaram o
requerido que se tornou foragido no sentido lato da palavra. Em virtude do
desaparecimento,
340
o processo correu à sua revelia, culminando em condenação em que
teria de pagar mensalmente duzentos mil réis (200 $ 000) como pensão alimentícia à
consorte. O juiz Mauricio Cordovil Pinto sentenciava: “para condenar como condeno o réo
Pedro Vieira da Costa, que ganha quatrocentos mil reis (400 $ 000) por mez, a prestar os
alimentos á sua esposa, na razão de duzentos mil reis por mez, em dinheiro cuja
importancia sera entregue á Assistente Judiciaria Civil da Capital”.
Ainda demoraria a que a requerente desfrutasse da pensão arbitrada pelo
judiciário paraense, aliás, sequer se sabe se algum dia conseguiu desfrutá-la. Experiências,
estratégias e tramas cotidianas do senhor Pedro foram as responsáveis por prolongamentos
jurídicos entre os consortes. A esposa decidiu pedir, em juízo, a penhora dos bens do
marido porque o condenado ignorou o pagamento do arbitrado pela lei, o que o poder
judiciário acatou, delegando a tarefa a Refidio Ferreira e a Carlos de Sousa, Oficiais de
Justiça. No entanto, estes consideraram [em 30 de agosto de 1940] que realizar a penhora
desejada seria impossível “em virtude de não possuir o executado bens que pudessem ser
339
Carta anexada ao processo de provisão impetrado por Medina Albuquerque. Auto civil de prestação de
alimentos impetrado por Medina Iraty Albuquerque da Costa contra Pedro Vieira da Costa, 1940.
340
Como analisado na sessão “Sedução e defloramento no cotidiano belenense”, nesta também ficam
latentes os campos das fugas e prisões.
229
penhorados”. A exeqüente, juntamente com o Assistente Judiciário, optou pela demanda de
prisão do réu. O processo como já exposto, correu à revelia. Desconhecem-se vozes do
requerido, palavras de espécie alguma, somente acusações. Todavia, por meio delas, é
possível obter-se horizontes de sua vida e experiência cotidiana: residia na Carlos Gomes,
145, em companhia de sua mãe, sendo que no período da ação tinha 25 anos e assumir
maiores responsabilidades estava longe de suas intenções, tanto que abandonou a família;
mesmo sendo de domínio público que ganhava “bom ordenado” quatrocentos mil réis
(400 $ 000) o requerido absolutamente nada havia acumulado embora pareça ter
concordado que seus vencimentos “realmente” eram o que as testemunhas e o judiciário
declaravam. Interpretações cuidadosas do auto também indicam que era prático e
conveniente residir em habitação que não lhe exigisse responsabilidades exclusivas, pois a
rigor, até quando conseguiu viver e conviver sob o mesmo teto com a esposa, o endereço
era o do sogro: José Bonifácio, 951; e como a convivência entre marido e mulher tornou-se
impossível, o réu passou a residir com a mãe. Evitavam-se diversos inconvenientes, tais
como custos da montagem de uma casa própria, aluguéis e compromissos com a
alimentação dos membros da família. Mas quais razões conduziam a se eximir do
pagamento das pensões alimentícias? As tensões entre os cônjuges aqui encontravam-se
em estado irremediável pouco tempo porquanto “apenas” existiam dois meses de
pensões atrasadas, o que perfazia a módica” quantia de quatrocentos mil is (400 $ 000),
mas a demora significou no cotidiano da exeqüente um pedido de penhora dos bens e
outro de prisão do marido, visto que para se justificar tal desejo afirmava-se “que ele não
paga as prestações vencidas e custas porque não quer, visto ter um ordenado mensal de
quatrocentos mil reis, negando-se, peremptoriamente, ainda, a qualquer forma conciliatoria
de seus deveres com a suplicante”.
Referente ao pedido da autora o judiciário decidia, em 10 de setembro de 1940,
que “o executado Pedro Vieira da Costa não efetuou, dentro dos tres dias que lhe fôram
concedidos, o pagamento da quantia devida, nem justificou a impossibilidade de o faser (2º
a certidão retro), decreto a prisão do mesmo pelo praso de 60 (sessenta) dias, nos termos do
33º art. 920 do Codigo do Processo Civil”.
341
Boas possibilidades de defesa foram
oferecidas ao requerido, que preferiu permanecer com a mesma estratégia do início do
processo: o silêncio. Em 18 de setembro de 1940, proferia-se a sentença: “que hoje as trese
341
Para um debate em torno do Código do Processo Civil, consulte-se: BAJER, Paula. Processo penal e
cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
230
horas em a casa numero cento e quarenta e cinco á rua Carlos Gomes, efetuei a prisão do
réu Pedro Vieira da Costa, condusindo-o sob a minha guarda para a Cadeia Publica de São
José, fasendo do mesmo preso entrega ao senhor administrador que o recebeu, como se
constata do seu recibo passado neste mandado, bem assim dei ao dito preso a segunda via
deste mandado que o recebeu como se verifica de seu recibo passado tambem neste
mandado”.
342
O requerido foi preso na Rua Carlos Gomes 145, isto é, na residência da
genitora. As razões da detenção e o espaço onde se localizou o impetrado provavelmente
devem ter vertido vergonha e constrangimento à mãe do encarcerado; também a prisão,
realizada em casa de residência, certamente foi alvo de murmúrios e comentários da
vizinhança que, como bem se sabe, sempre esteve atenta e informada aos detalhes de seus
iguais para depois fazer-lhes apontamentos favoráveis ou contrários ou mesmo para, mais
tarde, servirem como testemunhas de acusação e defesa nos processos promovidos. Pedro
foi recolhido à cadeia pública de São José no mesmo dia 18 de setembro de 1940, à uma
hora e cinqüenta minutos. O réu cumpriu 60 dias de pena. Ao se encerrarem os dois meses
de encarceramento, o juiz Mauricio Cordovil Pinto decretou alvará de soltura: “Mando
ao senhor Administrador da Cadeia Publica de São José ou quem as suas veses o fizer, que
sendo-lhe este apresentado, indo por mim assinado, ponha incontinente em liberdade si por
algo não estiver preso, o réu Pedro Vieira da Costa (...), visto ter o mesmo cumprido a pena
de sessenta dias de prisão, nos termos do § terceiro do artigo novecentos e vinte do Codigo
de Processo Civil Brasileiro e que lhe foi imposta por este juizo. Cumpra-se na forma da
lei (...), aos desoito dias do mes de Novembro de mil novecentos e quarenta (...)”.
343
Já dois
meses haviam passado e punha-se em liberdade o executado. O emprego no vapor
“Envira” estava perdido, mas conseguiu nova colocação em outro navio, o “Santa Maria”.
Vislumbra-se que o réu/marítimo/copeiro era dono de boas relações nos circuitos de sua
profissão, pois poucos meses depois da liberdade o réu, que preferiu enfrentar veredictos e
determinações da justiça paraense a pagar pensão alimentícia, encontrava-se empregado
em outro navio e quem sabe com o mesmo salário de outrora. Enfim, a senhora Medina,
outra vez requeria “mandar cital-o para que efetue o pagamento das referidas pensões, no
praso legal de 24 horas, sob pena de prisão de acordo com o que estatue o Codigo de
342
O juiz Maurício Cordovil Pinto mandou prender o réu.
343
Alvará de soltura decretado pelo juiz Mauricio Cordovil Pinto. Auto civil de prestação de alimentos
impetrado por Medina Iraty Albuquerque da Costa contra Pedro Vieira da Costa, 1940.
231
Processo Civil”. A ação continuou, e com o pedido de nova prisão caso os atrasados não
fossem dirimidos em um dia.
A vida complicada de Pedro diante da justiça permanecia e a econômica
transformava-se em dívidas acumuladas e vultosas. A rigor, se contadas em meses, eram
sete, e em dinheiro, da ordem de um conto e quatrocentos mil réis (1 : 400 $ 000). Esta
importância, embora longe de ser uma fortuna, também não poderia tomar-se por
desprezível. Para que o réu conseguisse pagá-la – considerando que permanecia com
vencimentos de quatrocentos mil réis –, teria de trabalhar três meses e meio sem que se
apropriasse de nenhum centavo. Assim, a dívida com os meses de atraso das provisões,
ultrapassava a das custas do processo que se encontrava, em 10 de agosto de 1940, em
setecentos e cinqüenta e dois mil e trezentos réis (752 $ 300). Este dado deve ser analisado
pois, por ter sido condenado, o impetrado se transformava também em responsável pelo
total das despesas. O réu/marítimo/copeiro, precisava pagar em torno de dois contos,
cento e cinqüenta e dois mil e trezentos réis (2 : 152 $ 300). Com efeito, os meses de
trabalho para que pudesse quitar este significativo débito seriam multiplicados. Ao se
representar o problema e tomando por base que Pedro permanecia com o mesmo
vencimento, o tempo de trabalho pularia de três e meio para um pouco mais de cinco
meses, inexistindo a possibilidade de retirar nenhum centavo para si, porque devia
honorários à justiça e pensões à esposa.
Outro caso em que uma mulher solicitou a prisão de um mau provedor foi o que
envolveu os cônjuges Idalia dos Santos Amaral, 22 anos, paraense, pobre no sentido da lei,
dedicada a serviços domésticos e João da Costa Amaral, 27 anos, paraense, funcionário do
Armazém Âncora, localizado na Avenida Portugal, 68.
344
O ato solene foi celebrado em 16
de dezembro de 1939, porém em 30 de maio de 1940 a autora do processo afirmava em
juízo que o suplicado havia abandonado a família “na mais extrema miseria” por
conseguinte sem meios para manter-se. A acusação ficou mais séria quando acentuou não
poder dedicar-se a qualquer atividade remunerada, visto encontrar-se no terceiro mês de
gravidez. O advogado da autora conseguido na Assistência Judiciária, Emilio Uchoa
Lopes, imediatamente buscava o esvaziamento do caráter moral do réu e paralelamente
tentava enaltecer as qualidades de dona Idalia. Outra atitude do representante do direito foi
a de enfatizar no judiciário que o acusado dispunha de meios para sustentar a mulher e
344
Autos civis de prestação de alimentos impetrado por Idalia dos Santos Amaral contra João da Costa
Amaral, 1940.
232
filho em gestação, mas deixava propositadamente de cumprir disposições do Código Civil
Brasileiro que afirmava ser dever do marido prover a mantença da família. Nota-se que, no
interior do auto de alimentos, o estratagema do advogado era o de reforçar e delimitar
pública e institucionalmente papéis que deveriam ser desempenhados pelos homens e
mulheres no bojo do casamento, ou seja, buscava-se designar e ao mesmo tempo
homogeneizar tipo de funções sociais como se fossem dadas não apenas pela legislação,
mas também cristalizadas tempo pela tradição. Em 03 de agosto de 1940, dona Idalia,
alegando reconhecer que o réu era miserável no sentido da lei, solicitou ao juiz do caso,
Mauricio Cordovil Pinto, que julgasse por sentença a desistência da ação. No entanto, em
31 de outubro de 1940 por razões que não foram expostas, a mulher reabriu o processo.
se encontrava no sétimo mês de gravidez e o marido havia mudado de emprego; agora
prestava serviços à Importadora de Ferragens e percebia diariamente entre quatro mil réis
(4 $ 000) e seis mil réis (6 $ 000).
Mas o que veio a provocar a separação do casal que conseguiu conviver sob o
mesmo teto por apenas cinco meses? Testemunha constituída pela exeqüente, Osvaldo de
Almeida Bittencourt, 29 anos, comerciário bem como o próprio réu oferecem boas
indicações acerca do fim da convivência, isto é, ambos afirmaram que intrigas familiares
foram os móveis de tão curta vida conjugal. Por um lado, Osvaldo testificava que o
abandono da esposa pelo marido foi pelo fato da família do réu fazer severas oposições ao
enlace. Por outro, o depoimento do réu buscava inverter os argumento do depoente,
oferecendo a seguinte versão à ruptura: que foi a sua mulher que se aborreceu com pessoas
de sua família e que por isso a autora abandonou o lar. Por esta razão o impetrado afirmava
peremptoriamente em juízo que jamais pagaria qualquer quantia de pensão alimentícia à
mulher. duas versões distintas que buscavam explicar a razão do fim da vida sob o
mesmo teto, mas o que não deixa dúvida é que o motivo da separação passou por
instabilidades entre os membros da família. A vida jurídica de João ficou um pouco mais
complicada quando, em 03 de dezembro de 1940, negou-se a completar a sua assinatura,
comportando-se de modo inconveniente no recinto da Sala das Audiências diante dos
doutores Juiz, Assistente Judiciário e Curador Geral. Orientado a acalmar-se, respondeu
que não mais iria continuar a assinar “aquilo” e que preferia ser preso a completar o nome.
Diante da falta de respeito, o juiz Mauricio Cordovil Pinto determinou a sua detenção por
24 horas mandando apresentá-lo ao Chefe de Polícia. A testemunha Osvaldo de Almeida
Bittencourt também reiterava que conhecia a autora desde criança e que esta sempre
233
procedeu com a máxima honestidade diante do marido e sociedade. Para completar as
dificuldades de suplicado, o Assistente Judiciário Jarbas de Amorim Cavalcante
considerava que dona Idalia merecia a pensão pleiteada, uma vez que inexistia razão para o
seu marido abandoná-la, pois a mulher era honesta e encontrava-se em avançado estado de
gravidez e finalmente pelo motivo de o réu ter vencimentos que podiam perfeitamente
auxiliar a quem tirou da casa dos pais. Por tudo isso o representante do Ministério Público,
Miguel Machado da Rocha e Souza, opinou pela procedência do processo. Diante de todos
esses argumentos, o juiz Mauricio Cordovil Pinto, proferiu: “Julgo por sentença procedente
a presente ação de alimentos, para condenar o réo João da Costa Amaral a contribuir com a
importancia de oitenta mil reis (80 $ 000) por mez, como alimento á sua mulher e ao
nascituro”.
Metido em prisão por 24 horas e condenado a pagar mensalmente oitenta mil
réis (80 $ 000), o senhor João da Costa Amaral mantinha-se irredutível, ignorava
peremptoriamente a pretensão de todos e a da justiça. Em outras palavras, em 24 de abril
de 1941 a mulher novamente recorria ao judiciário, desta vez solicitando que o seu marido
fosse citado para que no prazo legal de um dia pagasse a importância de seiscentos e vinte
oito mil e setecentos réis (628 $ 700), dinheiro referente às custas do processo e a vários
meses de pensão vencidos, isto é, desde a sentença (dezembro de 1940) até abril de 1941, o
réu não havia destinado qualquer numerário à esposa. Se dentro do prazo determinado João
não quitasse a dívida seria requerido ao juiz Cordovil a prisão do mesmo de acordo com o
que preceituava o “artigo 920 § do Cód. de Proc. Civ.” Por mais duas vezes, em 26 de
abril e 10 de maio de 1941, a justiça paraense avisou ao suplicado a possibilidade da
prisão, mas ao que tudo indica o senhor João ignorou reiteradamente as determinações da
lei. Por isso, em 20 de maio de 1941, a justiça paraense decretava a “prisão de João da
Costa Amaral pelo praso de 30 dias”. Esta sentença é o último documento do auto e
ignoram-se os passos que o réu deu depois da liberdade; igualmente desconhecem-se os
movimentos da requerente, mas deseja-se acentuar que as estratégias jurídicas utilizadas
neste caso foram habilmente organizadas, ou seja, exploraram-se as qualidades e desvios
dos envolvidos tais como hábitos, moralidade, bons antecedentes, enfim padrões do que
era compreendido “normal” à sociedade. Assim pessoas como João rotuladas de
“desviantes” morais tinham poucas chances de absolvição. O direito trabalhava mediante a
existência de um perfil de julgamento que tentava fazer enquadrar os mais inumeráveis
indivíduos no bojo de métodos idealizados, os quais serviam apenas para comprovar a sua
234
maior ou menor eficácia diante das pessoas na sociedade. Desta maneira, o direito
previamente traçava limites e possibilidades de avanços aos envolvidos em qualquer tipo
de processo e neste atinente às provisões, o senhor João não dispunha de qualquer chance
de conseguir uma vitória.
O mau provedor, por qualquer razão, transformava-se em alvo de reticências
por parte das esposas, amásias, vizinhança e sociedade. Prover família firmava-se, então,
como geografia séria no âmbito do casamento dito legal e também nas relações de
amasiamento, como se analisou no capítulo anterior. No entanto, apesar das exigências,
não era raro maridos e amásios encontrarem-se às voltas com suas companheiras, com a lei
e polícia; foram muitos os candidatos a envolvimentos pouco honrosos com a justiça;
exemplos notáveis mostraram-se as tramas publicizadas com o título “nega alimentação á
familia e ameaça a esposa de pancada”, problemas enfrentados por Deusdedith Cruz
Ferreira com o esposo Luiz Ferreira publicizados, em 12 de dezembro de 1940, na “Folha
do Norte”.
345
O periódico, com a ajuda da esposa, representava o marido da seguinte
maneira: era condutor da companhia de eletricidade paraense e “lhe insulta diariamente,
recusando-se, ainda a dar-lhe e a uma filhinha do casal de 2 annos de edade o necessario
para alimentação”. Ao ser denunciado, o suposto mau provedor foi intimado a comparecer
ao posto policial para se explicar diante das autoridades, e “prometteu ao commissario
de serviço, sr, Abilio Lima, tudo fazer a fim de evitar taes immoralidades”. Ao que tudo
indica, o matrimônio estava marcado por sobressaltadas dificuldades, sendo que a polícia e
a esposa pressionavam Luiz a resolver a obrigação de prover a família. Na Chefatura por
meio de pressões – o “provedor” comprometeu-se enfim a cumprir com seus deveres.
A separação havida entre José Chagas de Oliveira e Felicidade da Conceição
Salgado de Oliveira, 1936,
346
tensões analisadas em páginas anteriores, sugere outras
formas de interpretação dos significados da pensão alimentícia. Ação complicada de se
compreender, porque iniciou litigiosa e terminou amigável. Quando litigiosa, as acusações
do esposo variavam: cio da embriaguez, maltratá-lo com injúrias e sevícias, maus tratos
sobre a filha, Raymunda Nazareth de 13 anos, abandono do lar conjugal por vários dias
seguidos, ameaças contra a vida do esposo e filha, assim como contra a ordem financeira
do casal; mas quando o processo foi transformado em amigável resumiram a
345
“Folha de Norte”. Belém, 12 de dezembro de 1940, p. 02.
346
Auto civil de desquite litigioso impetrado por JoChagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição
Salgado de Oliveira, 1936.
235
impossibilidade da vida conjugal em uma total “incompatibilidade de gênios”. Todavia,
antes da mudança, José e seu advogado, Ernesto Chaves Netto, requereram ao juiz de
direito da 1ª vara, Mauricio Cordovil Pinto, que Sua Excelência determinasse “como
medida preliminar a separação dos cônjuges e arbitrando uma mensalidade a ser paga pelo
Supte. á Supda. para sua alimentação, se digne de mandar citar a Supda. para na primeira
Audiencia deste juízo, ver-se-lhe propor a presente acção de desquite, seguindo-se os
ulteriores de direito”. Pensão alimentícia também era arbitrada em autos de desquite,
porém o curioso neste caso é o sentido dado à provisão, porque o esposo foi quem entrou
com processo e a rigor, nesta ordem, negava-se a tal compromisso. Em 07 de novembro de
1936, Mauricio Cordovil Pinto, deliberava que “(...) como quota de alimento, a quantia de
cento e cincoenta mil reis, mensaes, a contar do dia em que fôr feito o deposito, até final da
sentença da mencionada acção de desquite; e cumprindo finalmente, de todos seus actos,
como de quaesquer incidentes (...)”. Mesmo constituindo-se em autor, desejava concorrer
com pensão à esposa e à filha e tudo indica que o valor de cento e cinqüenta mil réis (150 $
000) foi pago até o veredicto favorável da separação de corpos e bens entre os cônjuges.
Note-se que os significados deste auxílio mudaram simetricamente quando a
ação passou a amigável. O acordo que os consortes firmaram, estabelecia que “a primeira
Suppte. fica desde essa data como unica e verdadeira dona dos bens acima descriptos,
[eram três casas situadas na Travessa Alferes Costa números 1.000, 1006 e 1008]
podendo receber os alugueres das casas referentes ao mez de Outubro em diante, o
segundo Suppte. fica desobrigado de pagar a mesma qualquer pensão seja a que titulo fór;
obrigando-se entretanto ao pagamento do custeio da presente acção e transpasse das
barracas referidas. Obriga-se, entretanto, o Suppte. a entregar, digo, o segundo Suppte. a
entregar a primeira a importancia de duzentos e cincoenta mil reis (250 $ 000) para
concorrer com despesas necessarias no momento”. Os significados desta ruptura eram
absolutamente variados e curiosos; após a transformação de sérias acusações conjugais em
“total incompatibilidade de gênios”, a desquitanda deixava de ganhar cento e cinqüenta
mil reis mensais, para sobreviver com o dinheiro dos aluguéis das propriedades; mas não
se pode concluir esse fato trivialmente, pois os bens expressavam grande significado no
seio do casamento, como o de autoconservação da existência e das possibilidades de
sobrevivência econômica. Essa questão de partilha de valores era sempre um assunto que
repercutia de forma tensa entre os que se envolviam nos domínios da separação e deve-se
representá-la como um dos principais problemas conjugais; assim sendo é incoerente
236
considerar que o senhor José tenha concedido propriedades sem qualquer sobressalto e
nestas condições, entender que mesmo as separações amigáveis implicavam em sujeições
desagradáveis aos cônjuges.
Enfim, desejou-se interpretar que autos de pensão alimentícia bem como fugas
e prisões possuíam significados absolutamente diferentes para cada um. Casamento e
amasiamento malogrados, onde as diferenças, mágoas, ressentimentos, foram-se
avolumando e mesmo filhos fora dos espaços ditos legais poderiam, como se analisou
repetidamente, converter-se em muitos e grandes problemas que geralmente eram
resolvidos a partir de petições de alimentos, investigação de paternidade ou desquite.
Seguem outras tensões familiares a envolver dinheiro.
237
CAPÍTULO 4
CIDADE, ECONOMIA E VIVÊNCIAS CONJUGAIS
238
1. PARTILHA DE BENS, POBREZA E RIQUEZA
“Certamente ninguem discorda com a concepção de que dinheiro é
bom na atual situação em que Belém está. Ninguem concorda que
a pobreza é boa, assim todos estão de acordo que possuir bens que
façam uma vida confortável é de fundamental importancia. Mas
muito deve ser exposto a este respeito: os consortes em relação aos
bens da vida conjugal devem ter o poder de saber administrá-los e
quando acontecem as separações os problemas e as dificuldades
entre os que viviam sob um mesmo teto se acentuam”.
(Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 10 de fevereiro de
1931).
Ainda na busca da interpretação do casamento, da família e da relação conjugal,
bens, pobreza e riqueza são categorias históricas presentes quando se pensam tais
institutos. De tal sorte, em qualquer constituição familiar, o dinheiro sempre foi elemento
importante e dentre várias de suas funções destina-se ao sustento da linhagem, como
indicava dona Laura em suas anotações de 1931. No entanto, quando aconteciam as
separações e naturalmente a necessidade da partilha, a autora da epígrafe fazia outra leitura
acerca dos bens e do dinheiro: o poder de imprimir acentuadas tensões e dificuldades de
entendimento entre os que decidiam romper a convivência sob o mesmo teto. Porém,
diante dos apontamentos da senhora Laura e de um conjunto de outros documentos como
processos de pensão alimentícia, uma outra observação mostra-se essencial: quando se fala
em dinheiro e bens como vetores de problemas entre os que entravam em litígio [casados,
amásios], não se quer dizer que estes apenas ocorressem diante de uma fortuna; quem
pensar desta maneira engana-se, pois problemas conjugais advieram de disputa por
“pequenas propriedades”, “baixas pensões” e “mobílias do lar”, ou seja, estas lutas
também definiam clivagens no bojo dos humildes que se separavam. Em conformidade
com este pensamento e em virtude das delicadas condições econômicas da cidade de
Belém, com ou sem a presença de patrimônio, a família também deve ser compreendida
como um sistema de gestão de finanças porquanto, para o melhor funcionamento das
engrenagens, os seus membros muitas vezes organizavam redes de solidariedade, como
será interpretado neste capítulo.
Um excelente exemplo do que significavam rede de solidariedade e família
enquanto sistema de gestão econômica encontrou-se no auto impetrado por Celeste
Figueiredo de Medeiros, 24 anos, paraense, prendas domésticas contra Arnaldo Barbosa de
239
Medeiros, 41 anos, paraense, funcionário dos Correios.
347
Em 14 de dezembro de 1932, o
casamento foi celebrado sob o regime de comunhão de bens e em 1940 já haviam colocado
no mundo quatro filhos: Marlene Figueiredo de Medeiros, 07 anos; America Figueiredo de
Medeiros, 05 anos; Mario Figueiredo de Medeiros, 02 anos e Marcio Figueiredo de
Medeiros, de somente alguns meses. O réu era acusado de, desde os primeiros dias
matrimoniais, impor à dona Celeste torturas físicas e morais, sendo que tais procedimentos
davam-se quando regressava ao lar sob efeito do álcool de que fazia uso imoderadamente e
nestas ocasiões ameaçava a mulher e demais membros da família de morte. Destarte
recaíam sobre o senhor Arnaldo as acusações de sevícias, injúrias e tentativa de
assassinato. Diante desta adversa situação, o advogado da exeqüente, Raimundo Puget,
buscava convencer o judiciário paraense com o discurso de que a vida da autora era
consolidada em “infelicidade”, “infortúnios”, “humilhações públicas e nos recônditos do
lar” e que por isso sua cliente era recorrentemente acolhida ora na casa da mãe, ora na de
uma sua irmã casada. Celeste unia-se à rede de pessoas que se concentrava a seu redor.
Com a vida conjugal descrita desta maneira, advogado e desquitanda deixavam inteligível
de que não havia a mínima possibilidade de colocá-la novamente em ordem por isso, além
de requererem o desquite e pensão alimentícia, também solicitavam a partilha dos bens do
casal, que eram: “um completo de sala com doze peças; duas cadeiras de balanço; uma
cama de casal completa com cortinado; uma mesa de cabeceira; um guarda roupa pequeno;
uma mala com roupas; um guarda louças contendo louças; meia duzia de cadeiras de
varanda; duas mezas; um filtro com mesa; trem de cosinha; talheres, pratos e aves
domesticas”. No decorrer do processo e assenhoreando-se das representações do conjunto
de bens, observou-se que os desquitantes viviam de modo bastante modesto, mas o que
chamou atenção foi a negativa de Celeste em abrir mão do mobiliário e mesmo dos
animais domésticos construídos no seio do casamento; inquestionavelmente tal
posicionamento corroborou para o desenvolvimento de variadas desavenças no leito
conjugal. De tal sorte, no momento da divisão de objetos aparentemente sem significado,
os campos de conflitos ampliavam-se fazendo alargar as desavenças familiares, como foi o
caso em pauta. A ação impetrada foi julgada procedente.
Outro processo que ajuda a compreender as dinâmicas da pobreza é o de pensão
alimentícia impetrado por dona Joana Pinheiro do Vale, 27 anos, residia na Rua Roso
347
Auto civil de desquite litigioso, pensão alimentícia e partilha de bens impetrado por Celeste Figueiredo de
Medeiros contra Arnaldo Barbosa de Medeiros, 1941.
240
Danin, 160, casada, dedicada a serviços domésticos, patrocinada pela Assistência
Judiciária Pública, sendo que na Terceira Delegacia da Polícia Civil foi apurado ser
“miseravel no sentido da lei, consoante declarações de Luiz Gomes e Mario Corrêa
funcionarios desta repartição” contra o marido Edgar dos Santos Vale, 34 anos, brasileiro,
empregado do Departamento de Saúde do Estado, que exercia suas funções no posto
médico da Pedreira. Nos autos afirmava-se que o “marido sem o menor motivo abandonou
o lar, deixando a Suplicante juntamente com os seus cinco filhinhos, um dos quaes
falleceu, na mais desoladora miseria, para se amancebar com uma outra mulher de apelido
Nenê”.
348
Com referência a estes consortes percebe-se pairar estado de pobreza durante e
depois do matrimônio, realizado em 15 de junho de 1930, que se transformou em quase
insolvente para Joana a partir do abandono promovido por Edgar em 1939, visto que a
deixou desamparada juntamente com os filhos impúberes: Elizabeth, Maria do Socorro,
Therezinha, Raymunda e José de Ribamar. O abandono é um divisor de águas, porque os
tempos seriam outros assim como a forma de pobreza, porquanto Joana haveria de reurdir
[agora sozinha] a própria existência.
Em virtude deste episódio, as tensões cresciam e a exeqüente passou a
defender-se escrevendo documento no sentido de verter culpabilidade no marido. Em 24 de
maio de 1940, afirmava em escrito de próprio punho que inexistiam bens e rendas e que o
marido deixou a família para viver com outra mulher, que deflorou. Em análise seguinte,
em uma cidade onerosa, é necessário considerar a pobreza como relativa, contudo como
entendê-la quando se nota a fuga de um dos cônjuges? Interrogação bem adequada para se
pensar os dramas que Joana enfrentou com os cinco filhos, cuja miséria se acentuou
quando os signos da segurança matrimonial referem-se à convivência a dois foram
desmontados em virtude do abandono. Com a saída de Edgar do ambiente conjugal para
conviver com a amásia, algumas representações sociais do cotidiano fragmentaram-se
como a da ordem econômica. Entretanto, de modo algum se considera a mulher como
incapaz de elaborar a própria sobrevivência; levanta-se tão somente a argüição de que
sustentar-se, tendo em sua companhia cinco filhos, era tarefa assaz difícil. Para além do
processo de provisão, o caso também parou na imprensa: o periódico “Folha do Norte
349
348
Os dados acima procederam dos auto civil de prestação de alimentos impetrado por Joana Pinheiro do
Vale contra Edgar dos Santos Vale, 1940.
349
A matéria foi recortada do jornal “Folha do Norte” e anexada ao processo, não sendo contemplada a data.
Assim foram concentrados esforços de pesquisas de meses a fio no referido jornal, todavia não foi possível
localizar a matéria nos periódicos arquivados na biblioteca pública do Pará (CENTUR).
241
deu vazão a algumas fases da vida dessa família, isto é, ao casamento, à separação e à
miséria em que se encontravam, em 1940, a esposa e os filhos. A reportagem policial do
jornal argumentava que, ao tempo da vivência sob o mesmo teto, “viviam modestamente e
eram felizes”, porém em virtude da ruptura, por ter “desvirginado uma mocinha”, o esposo
passou a ser visto como o responsável em lançar a família numa “triste situação”.
Substantivos e adjetivos que indicam a presença da pobreza eram recorrentes no seio da
ação de prestação de alimentos, por exemplo, sobre o senhor Edgar recaía a acusação de
que 11 meses abandonou a esposa “em estado interessante e sem recursos de especie
alguma” e que “na quarta-feira ultima, á noite, Joana resolveu procurar o esposo para
implorar-lhe um auxilio, a fim de adquirir um remedio para sua filhinha Raymunda, que se
encontrava doente”.
O estado em que se deparava a esposa era entendido como de completa penúria.
Joana e seu advogado Vicente Portugal Junior conseguido perante a Assistência
Judiciária Civil – habilmente anexaram aos autos a matéria jornalística publicada na “Folha
do Norte” e além de algumas informações acerca da vida do casal em pauta, o periódico
imprimiu uma imagem onde se podem ver os reflexos dos rostos de algumas das pessoas
envolvidas.
242
Aqui está, inteligível, o “espetáculo da pobreza”.
350
A imagem provavelmente é
a da sala da casa e procurava sustentar os anseios dos que acusavam o esposo, ou seja, o
foco centrava-se justamente na ordem sócio/econômica em que se encontravam os demais
membros da família. Buscava-se um “cenário teatral”, porquanto percebem-se todos
meticulosamente organizados para o momento da imagem, mas também se apreende que a
tática congregava um objetivo central: provar as dificuldades por que a família passava. A
fotografia proporciona rara oportunidade de se analisar o interior da habitação de uma
família pobre de Belém do início do século XX; ela é importante porque o entrar não ficou
interdito ao historiador, revela parte do cotidiano dessa família e, mesmo mostrando
somente um ângulo, como é natural, nota-se bem o desconforto e, ao mesmo tempo, a falta
de alguns dos viveres ao grupo familiar: roupas modestas, casa de madeira com
inumeráveis frestas entre as tábuas, móveis simples, cobertura de palha ou cavaco,
provavelmente a residência possuía cerca de três compartimentos, inexistindo cômodos
separados para filhos e pais. Do exposto restam poucas dúvidas relativas à natureza
humilde desta família
Em decorrência das dissensões entre o casal, a esposa mudou de residência:
saiu da Rua Roso Danin para a Avenida Gentil Bittencourt; nesse caso, a imagem atrás
impressa é a do segundo endereço. A fotografia seguinte refere-se à visão panorâmica da
Rua dos Cearenses (atual Avenida Ceará), desconhece-se em qual altura, mas sabe-se que é
paralela ao primeiro lar de Joana. Da imagem, o que se quer demonstrar é que a pobreza da
impetrante era relativa pois semelhava-se à dos moradores da região, sendo impossível
homogeneizá-la. Por exemplo, fala-se a respeito da segunda casa da mulher, que era de
madeira, enquanto as da imagem que subsegue foram construídas de enchimento e cobertas
de palha, isto é, edificadas com materiais diferentes, mas que não deixam dúvidas de
pertencer igualmente a pessoas humildes, e localizadas na periferia da cidade de Belém das
primeiras décadas novecentistas.
350
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
243
Belém da saudade: a memória da Belém do início do século em cartões-postais. Belém: SECULT, 2004.
Muito embora essenciais à análise que se faz acerca da pobreza, as duas
imagens são muito diferentes entre si: se a representação da família Vale possibilitou
adentrar em parte da casa, a outra deixa o observador fundamentalmente do lado de fora;
se a primeira buscou significados internos da pobreza, nesta estão presentes os externos.
Nas primeiras cadas do século XX, o mato tomava conta da Rua dos Cearenses; havia
somente uma trilha destinada ao trânsito local. Inexistia iluminação pública, pavimentação,
esgoto, abastecimento de água ou transporte. Em relação às humildes residências eram de
enchimento e cobertas de palha e também chama a atenção que suas fachadas, na maioria,
resumiam-se em porta e janela. Sobre o modo e as estratégias de morar, assim como os
aspectos do interior das casas, porém do campo, Zuleika Alvim,
351
em parte de suas
considerações, acentuou que as divisões internas eram realizadas com o mesmo material de
construção das paredes externas, sem portas para separar os poucos ambientes.
Provavelmente na casa de Joana encontravam-se estas características e ao se dar sentido
351
ALVIM, Zuleika. “Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo”. In: SEVCENKO, Nicolau. (Org.).
História da vida privada no Brasil República: da Belle-Époque à era do rádio. Vol. III. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp. 215 / 287.
244
histórico às frestas é difícil não pensar que por meio delas expunha-se o privado ao
público.
Embasando-se nos documentos produzidos acerca do processo em pauta, o
ambiente social de dona Joana deve ser pensado como muito difícil; dito de outro modo,
ele sempre se apresentou mesmo com o marido insatisfatório e, na ausência deste, os
problemas cresceram. Entretanto, no decorrer da ação, Joana nunca falava à margem, a
contrabando ou à mercê de dinâmicas e de ângulos sociais e morais. Desvelava cotidianos
que agora teria de enfrentar em outra posição: a de mulher abandonada que, além das
dificuldades econômicas, teria agora de administrar a inferioridade moral, uma vez que se
encontrava em situação adversa por ter sido trocada por outra mulher que o jornal “Folha
do Norte” indicava ser mais jovem. Sugeria-se o decréscimo moral e social da mulher,
quer dizer: perdeu o marido para uma “rapariga” e em virtude do seu penoso estado
econômico tinha de contar com o socorro da Assistência Judiciária Civil para o
desenvolvimento do auto de provisão.
Nestes dramas que se analisam, é impossível vê-lo somente como de
insuficiência financeira, pois no entorno passa vasto arsenal de angústias. Sem dúvida,
tanto esta problemática quanto o enfraquecimento da moral de “casada” diante da
sociedade; a dependência da Assistência Judiciária; as injustiças e rapinas da dignidade de
consorte que foram providenciadas pelo marido, por tudo isso a esposa sofreu duro golpe.
O que poderia remediar estes estragos? Tempo e passadas lembranças e vivências são
indissolúveis, e neste caso coube à caridade pública tentar amainar domínios que
degradavam os membros da família; desta maneira, entender os significados da
beneficência da Assistência Judiciária Civil é importante, uma vez que a instituição
ofereceu bases a Joana para que pudesse processar o esposo o que também faz parte da
expressão do que a autora vivenciava. Infere-se que o objetivo da ajuda localizava-se em
preservar a ordem e a moralidade ditas higiênicas e de abrandar seqüelas do abandono,
assim como atenuar uma pobreza moral e econômica quase insolvente. A rigor,
reelaboravam-se contornos do momento vivido [pela esposa], todavia o tempo moldava-se
ativamente através do ritmo em que o passado se lhe apresentava bem como a seus filhos.
Então, em conformidade com este pensamento, convém expor aqui a tese de que o tempo
245
não é marcado somente pelo badalo do relógio, mas também pelas relações sociais que os
agentes traçam na cotidianidade.
352
Veja-se que a situação financeira das que impetravam esse tipo de processos era
extremamente distinta entre si. A ilustrar esta afirmativa, entre várias ações disponíveis,
pode-se citar o caso de dona Albina Sant`Anna de Azevedo Diniz que conseguiu pagar
(como será analisado a seguir com pormenor) o valor de trezentos e dezessete mil e
quatrocentos e vinte e oito réis (317 $ 428) de custas judiciárias do auto que movia em
1927, contra o esposo. Se por um lado Joana recorreu à Assistência Judiciária por ser
totalmente desprovida de recursos, por outro Albina desprezou este meio, pois tinha como
pagar as custas da ação proposta bem como de constituir por conta própria um advogado,
Frederico da Gama Abreu;
353
mas o “curioso” é que as duas auto-proclamavam-se pobres,
no bojo dos seus processos. Em conformidade com os dados contidos no auto e de
reiteradas leituras de dificuldades econômicas, o sentido e significado que ambas inserem à
escassez de recursos é inelutavelmente distinto. Neste sentido fortalece-se a concepção de
que a pobreza comporta gradações no bojo da sociedade uma vez que, como se vem
observando, as duas diziam ser ou eram afligidas por tenaz inferioridade em relação às
bases mínimas de sobrevivência. De tal sorte, tanto a definição de pobre quanto a de
abonado devem ser tomadas no sentido mais amplo dos termos, sendo que a proporção
desses estados diversifica-se segundo as circunstâncias financeiras, sociais e morais de
cada um.
Quanto a Joana, após diversos constrangimentos públicos sofridos, porque a
imprensa deu publicidade à penúria em que se encontrava bem como notoriedade à morte
de um dos filhos, que teria ocorrido “na mais desoladora miseria”, a esposa desistiu da
ação firmando acordo “amigável” para o recebimento da pensão que teria valor descontado
na folha de pagamento do réu. Em documento consentido pelo marido, afirmava-se:
“autoriso ao sr. Diretor da Fazenda Publica do estado, a mandar descontar mensalmente a
importancia de 100 $ 000, a começar do mês corrente, como pensão alimenticia dos meus
filhos menores Elizabeth, Maria do Socorro, Terezinha e Raymunda, devendo as
importancias descontadas serem entregues a D. Agripina Alves Tupiassu, Tesoureira da
352
THOMPSON, Edward. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”. In: Costumes em comum:
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 267 / 304.
353
Consultem-se os seguintes autos de alimentos: Auto civil de ação de alimentos impetrado por Albina
Sant`Anna de Azevedo Diniz contra Galdino Antonio Diniz, 1927. Auto civil de prestação de alimentos
impetrado por Joana Pinheiro do Vale contra Edgar dos Santos Vale, 1940.
246
Assistencia Judiciaria Civil da Capital. Edgar dos Santos Vale, funcionario do Posto da
Pedreira, Departamento de Saude publica”.
354
“Amigavelmente”, os consortes
“resolveram” as querelas existentes, no entanto os constrangimentos, as tensões, as
intrigas, as angústias tiveram de vir à tona para que os dramas obtivessem “solução”.
Outro casal em que o conforto financeiro passou às margens foi o de Dona
Maria de Nazaré Cantão da Silva, 34 anos, brasileira, casada, doméstica e João Carlos da
Silva, marítimo. O casamento aconteceu em 17 de setembro de 1929 na cidade de Tomé-
Açu, interior do Pará. Os consortes formaram prole de cinco filhos: Olga, Rubem, Juracy,
Carlos e Natalina.
355
Todavia, o que isso poderia representar? Com a descendência
constituída, o marítimo João tinha dificuldade em manter as necessidades e exigências
familiares; prole grande e, naturalmente, esforço maior para mantê-la. Expressava
responsabilidade a ser assumida, porquanto, ao se considerar os custos de sobrevivência e
conjugá-los com o salário médio mensal de um marítimo, que girava entre duzentos e dez
(210 $ 000) e duzentos e sessenta mil réis (260 $ 000), mas poderia atingir quatrocentos
mil réis (400 $ 000),
356
torna-se imperativo entender que os apertos econômicos eram
comuns sobre as sete pessoas da família. Surgiram tensões acentuadas no seio do
matrimônio, pois que “após tantos anos de vida em comum” o esposo requeria na
“Assistência Judiciária” desquite amigável alegando incompatibilidade de gênios. A
impetrante da ação de provisões recusou a proposta, considerando-a ilícita; desta maneira o
executado declamou em “alto e bom som que não a receberia mais em sua casa e que podia
ir buscar o filho mais novo e com ele ir para onde bem entendesse”. Tomando como base
as trilhas deixadas, dona Maria de Nazaré precisou recorrer aos benefícios da Assistência
Judiciária e outro indicativo de que as dificuldades aumentaram é quando declara faltarem
“bens e rendas, vivendo apenas de serviços domesticos”, mas também, ao ser convidada a
retirar-se do domicílio conjugal juntamente com o filho, a autora passou a morar na casa de
uma sua irmã casada, Avenida Tito Franco, 2294. De tal sorte, abandonos, expulsões,
processos de provisão, constituição de novo domicílio eram estratégias diversas que as
pessoas construíam na cotidianidade.
354
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Joana Pinheiro do Vale contra Edgar dos Santos Vale,
1940.
355
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria de Nazaré Cantão da Silva contra João Carlos
da Silva, 1940.
356
Estes dados procederam da ação de desquite litigiosa impetrada por Francisca Gomes Nunes contra
Frederico Andrades Silva, 1917 e também do desquite litigioso impetrado por Joanna Cavalcante
Albuquerque contra Octavio Anancio Albuquerque em 1920.
247
Considerando os bens da esposa, em situação econômica pouco melhor
encontrava-se o casal João Furtado de Souza e Raymunda Barboza Corrêa de Souza. Ele,
ao tempo da separação, tinha 38 anos, funcionário do Porto do Pará (portuário), viúvo de
Waldomira Rodrigues de Souza, falecida em 05 de abril de 1932; deste consórcio houve
dois filhos: Florencia e Paulo Angelo. João, casado em segundas núpcias com Raymunda,
em 05 de janeiro de 1935, ou seja, 02 anos e 09 meses após o passamento da primeira
esposa. Por outro lado, Raymunda Barboza Corrêa de Souza, 32 anos, doméstica, além do
esposo de quem por ora se separava, tinha como parente uma irmã, Izaura Corrêa Mourão.
O consórcio foi realizado na Vila do Pinheiro, celebrado “sob o regimen da comunhão de
bens”, o veredicto favorável a separação data de 19 de junho de 1940. Neste caso o que
importa é perceber algumas fronteiras econômicas dos cônjuges, por exemplo, como
forjavam as finanças cotidianas. expressivas indicações na citação inicial do processo
de ruptura de corpos e bens, que rezava terem os requerentes renunciado reciprocamente à
partilha que coubesse a um e a outro. Caso curioso, porquanto dos deixados por herança a
Raymunda, a rigor, João também tinha direito, pois como se afirmou um pouco atrás,
casaram-se sob o regime de comunhão. Com isso, as propriedades de dona Raymunda
[deixadas pelos pais] eram parte de um terreno situado no município de Muaná avaliado
em quatrocentos mil réis (400 $ 000), metade do terreno localizado na Travessa Manuel
Evaristo, no valor total de um conto de réis (1 : 000 $ 000) e metade de uma casa e terreno
localizados no bairro da Pedreira, no valor de seiscentos mil réis (600 $ 000), o que
totalizava dois contos de réis (2 : 000 $ 000); à desquitanda, após divisão deste valor com a
irmã, coube a quantia de um conto de réis (1 : 000 $ 000).
357
Apreende-se que a partilha entre as irmãs ocorreu apenas em razão do desquite
amigável e assim problematiza-se que, durante o enlace, os consortes viviam apenas com
os ganhos do trabalho de João como funcionário do Porto do Pará. A importância de um
conto de réis (1 : 000 $ 000) jamais figurou enquanto dinheiro disponível a ser usado no
dia-a-dia da mantença dos cônjuges, pois o patrimônio encontrava-se em forma de bens
casas e terrenos e somente apareceu em virtude da ruptura conjugal em curso. O casal
indispunha de outra renda além do salário do mantenedor da família, visto que os terrenos
e a casa acima citados nunca foram alugados, o que poderia indicar dinheiro adicional
entrando no orçamento doméstico. Nota-se deste modo que a “simples” existência de
357
As informações acima procederam do auto de desquite amigável impetrado por João Furtado de Souza e
Raymunda Barbosa Corrêa de Souza, 1939.
248
propriedades nem sempre deve ser interpretada como sinônimo de vida econômica
confortável e sem problemas, visto ser necessário examinar como eram utilizadas, como
estavam dispostas e localizadas no seio do casamento, em suma, pobreza e riqueza nem
sempre se definiam a partir da quantidade de bens existentes. Nas tramas em pauta eles
encontravam-se inertes e por isso nada leva a supor a existência de maior poder econômico
ou bem-estar social a seus donos. O pobre, segundo indicações contidas nos processos e
periódicos, pode ser apreendido como parte do conjunto dos que se localizavam entre os
atendidos ou mesmo que se transformavam em hóspedes da Assistência Judiciária,
passando pela Caridade Municipal ou aos que imploravam a beneficência dos transeuntes
da cidade.
Mas como pobreza e riqueza podem ser compreendidas no bojo do casamento
ou de qualquer outra forma de união? O desquite havido entre Joaquim Oliveira,
português, 48 anos, comerciante, proprietário de uma taberna na Vila do Pinheiro e
Cypriana de Souza Gaia de Oliveira, brasileira, prendas domésticas, 44 anos, pode ajudar,
porquanto este casal guarda similitudes e diferenças quando comparado a João e
Raymunda. A rigor: impetraram processo de desquite por mútuo consentimento na década
de 1930, celebraram núpcias e moraram na Vila do Pinheiro, inexistiam filhos; todavia, as
semelhanças param aí. Os primeiros não poderiam queixar-se de falta de recursos, ao
contrário dos segundos. No processo entre Joaquim e Cypriana há informações de que as
propriedades dos cônjuges somavam vinte e nove contos e trezentos mil réis (29 : 300 $
000). Deste montante, coube à desquitanda: “Terreno a rua Quinze de Agosto a Villa do
Pinheiro com uma casa, o valor de 4 : 000 $ 000; terreno na rua Quinze de Agosto canto da
travessa Souza Franco, o valor de 5 : 000 $ 000; terreno contigua pela travessa Souza,
contendo cinco barracas, no valor de 3 : 000 $ 000; uma barraca em ruinas na travessa
Berredos, o valor de 300 $ 000”.
358
Ao desquitando, coube: “Uma casa na rua Manoel
Barata na Villa do Pinheiro, o valor de 2 : 000 $ 000; uma casa contigua ao precedente, no
de 2 : 000 $ 000; uma villa de oito casas de madeira na mesma rua, no de (5 : 000 $ 000)
cinco contos de reis; quatro casas de madeira á travessa Souza Franco no valor de 3 : 000 $
000; uma casa na travessa do Berredo, no valor de cinco contos de reis (5 : 000 $ 000)”.
359
O casamento foi realizado sob o regime de comunhão de bens e dessa forma
358
Auto civil de desquite amigável impetrado por Joaquim Oliveira e Cypriana de Souza Gaia de Oliveira,
1937.
359
Idem.
249
obrigatoriamente os móveis, imóveis e todo e qualquer bem deveriam ser partilhados de
modo equânime entre os consortes. No entanto sobram indícios que confirmam a
existência de uma partilha matreira, uma vez que dos vinte e nove contos e trezentos mil
réis (29 : 300 $ 000), couberam à desquitanda apenas doze contos e trezentos mil réis (12 :
300 $ 000) enquanto ao desquitando, dezessete contos de réis (17 : 000 $ 000), isto é, o
marido ficaria com excesso de bens no valor de quatro contos e setecentos mil réis (4 : 700
$ 000). Em outro termo de declaração das propriedades, percebe-se que os ganhos do
marido ainda se estendiam a outras propriedades não incluídas na lista inicialmente
anunciada; assim sendo, os recursos do casal eram bem maiores do que os que haviam sido
declarados. Joaquim “esqueceu” de também listar outros importantes objetos e
propriedades, tais como: “Um piano “Dorner”; o capital, mercadorias, moveis e utensilios,
da mercearia explorada sob a firma individual do conjuge desquitando (Joaquim Oliveira),
e localizada na villa do Pinheiro, á rua Manoel Barata, esquina da travessa Berredos; um
automovel marca “Aburno” e tres auto-omnibus, sendo dois da marca “Ford” e um da
marca “Chevrolet”.
360
Percebe-se que na residência do casal existia um piano; assim a problemática
aqui é um pouco mais complexa e múltipla, porquanto não se pode vislumbrar que se
tratasse de consortes sem recursos ou em dificuldades financeiras. Ao contrário das
propriedades de Raymunda e João, os de Cypriana e Joaquim produziam riquezas a agregar
valor ao patrimônio, o que fazia aumentar o poder econômico dos consortes. Sobre os
ônibus é provável que fossem utilizados para o transporte de passageiros da Vila do
Pinheiro onde moravam ao centro da cidade de Belém, atividade que, se realizada,
também viabilizaria outro ganho. Para se ter idéia, em documento datado de 29 de maio de
1938, “O Estado do Pará” publicava matéria da “Inspectoria Geral de Vehiculos e Transito
Publico”, onde dava a conhecer o itinerário assim como o preço da passagem entre a Vila
do Pinheiro e Belém. Gastavam-se mil réis (1 $ 000) para se deslocar daí ao centro da
capital. Considerando que os três auto-ônibus fossem utilizados para este fim, entrava bom
numerário nas finanças do casal. No entanto, é possível inferir a multiplicação da riqueza
por meio de outros campos e domínios, isto é, os recursos aumentavam através do capital e
das mercadorias comercializadas no estabelecimento de secos e molhados que o
desquitando explorava diariamente.
360
Idem.
250
Assim sendo, quais os significados dos bens? Palmilhando esta questão, não se
pode interpretar que possuí-los significasse gozar vida econômica despreocupada, pois
enfatize-se que para isso era trivial que as propriedades auferissem giro de riqueza. Com
efeito, esta tarefa inexistia na vida dos cônjuges, Raymunda e João; estes em tempo algum
lucraram com os bens possuídos. Como afirmou Karl Marx, os ganhos de um proprietário
são sempre expressos a partir do potencial que ele emprega para o seu beneficiamento.
361
Dessa maneira, os consortes eximiram-se de aplicar trabalho que agregasse valor ao que
tinham ou sequer um planejamento próprio de imóveis, que assim se encontravam em si,
isto é, improdutivos. Por seu turno, Joaquim e Cypriana deixavam o “dinheiro trabalhar”.
Tratava-se pois de uma economia voltada ao lucro; vê-se paixão pelas vantagens das
operações comerciais e com isso ficar livre de qualquer desconforto financeiro era
certamente objetivo da vida do casal. Por essas razões o patrimônio girava, ou seja, o
dinheiro existente era ressignificado, porque se beneficiava através da mercearia e do
transporte de passageiros realizado pelos ônibus de sua propriedade. As dimensões dos
bens enquanto produtores de riqueza são vistas ainda por Marx,
362
em outra obra, como
necessidades prementes em se constituírem valores de troca para produzirem lucro,
porquanto esta é a maneira necessária e expressa e mesmo a única de se lhes agregar
significado de produção. Quanto às casas de aluguel dos cônjuges, veja-se: eram de
enchimento ou madeira não indicando, desta maneira, arquitetura sofisticada, ou seja, as
descrições dos imóveis sugerem edificações modestas e simples. No entanto, o que chama
atenção são os números dos bens somados: vinte e nove contos e trezentos mil réis (29 :
300 $ 000) e também o dos ausentes que deveriam ser partilhados entre os consortes. A
justiça paraense, observando que os cônjuges casaram sob o regime de comunhão, mas
mesmo assim o marido era o melhor aquinhoado, resolveu preliminarmente suspender os
trâmites da separação conjugal até que os cálculos fossem reelaborados e reapresentados ao
Ministério Público, isto é, acerca de uma divisão de bens provavelmente desleal, a justiça
interveio com o objetivo de assegurar a dinâmica do regime da sua partilha.
O comerciante Herculano Augusto Coelho de Carvalho, português, 66 anos,
residente na Praça D. Pedro II, 18, e dona Maria da Cruz Carvalho, brasileira, 44 anos,
prendas domésticas, casada em segundas núpcias, residente na Rua Caripunas, 47,
entendiam que para resolver as suas incompatibilidades de gênio seria melhor impetrar
361
MARX, Karl. Manuscritos econômicos – filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
362
MARX, Karl. O capital: critica da economia política. Vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
251
desquite amigável. Em 17 de agosto de 1927, iniciaram, no juízo de direito da vara,
ruptura dos vínculos conjugais. Os nubentes casaram-se em 27 de dezembro de 1920, na
Vila do Pinheiro, ele com 59 anos e a noiva com 37. Da relação inexistiram filhos. O
matrimônio sobreviveu por cerca de sete anos, mas como se afirmou em capítulo anterior
tais números não garantem convivência em comum, visto que estes campos em diversos
casamentos eram inteiramente assimétricos: o tempo cronológico do consórcio nem sempre
representava convivência em casal, sob um mesmo teto. No entanto o que importa neste
momento são as disposições dos bens depois da separação e a este respeito os cônjuges
acertaram, amigavelmente, em 28 de junho de 1927, que o patrimônio seria dividido da
seguinte forma: “pharmacia denominada Belem (...) comprehendidos productos e preparos
pharmaceuticos e formulas de invento do mesmo, mercadorias, instalações, vasilhame,
dividas activas e todos os effeitos da firma, com a obrigação pelo cumprimento do passivo;
predios 19 e 21 a rua dos Mundurucus, predio a Villa do Pinheiro rua Siqueira Mendes
lote 9 quarteirão terreno a Villa do Pinheiro rua Siqueira Mendes lote 10 do
quarteirão; os predios em Portugal”, eram os bens que caberiam ao desquitando. Para ela
corresponderam: “predio 117 a Avenida Sezedello Correa e o terreno contiguo á dita
avenida; predios 47 e 49 a rua dos Caripunas; predio 94 a Travessa Doutor
Moraes”.
363
Ao se analisar a partilha dos bens com seus endereços e conjugá-los às casas
que aparecem nas iniciais dos autos de desquite, percebe-se que o casal estava algum
tempo separado, morando em locais diferentes, e que onde funcionava a farmácia que
ficou com o marido era também a sua residência; por seu turno, a esposa morava no
prédio 47, da Rua Caripunas. Esse cotidiano e experiência guardava semelhanças ao
também desquite amigável requerido por Joaquim e Cypriana. Os homens, Joaquim e
Herculano, eram portugueses, comerciantes; o primeiro, proprietário de uma mercearia na
Vila do Pinheiro e o segundo de uma farmácia em Belém e casaram-se na mesma
localidade, Vila do Pinheiro. As mulheres, Cypriana e Maria, também se assemelhavam em
alguns pontos: brasileiras, prendas domésticas, 44 anos. Os casais possuíam diversos
imóveis e como o caso anterior, a divisão dos bens, realizada “amigavelmente”, parece ter
contemplado melhor o marido, porque ficou com a farmácia denominada Belém,
propriedade localizada na Praça D. Pedro II, 18, assim como com todos os produtos,
preparos farmacêuticos, fórmulas de invento, mercadorias, instalações e vasilhames, isto é,
a ele coube a parte que fazia movimentar diariamente dinheiro, dinâmica somente possível
363
Auto civil de desquite amigável impetrado por Herculano Augusto Coelho de Carvalho e Maria da Cruz
Carvalho, 1927.
252
à mulher se os seus prédios e os terrenos estivessem alugados ou organizados de modo a
produzir rendimentos de alguma forma. O juiz Manoel Maroja Netto deu sentença
favorável à separação de corpos e bens.
Também às voltas com separação de corpos e bens encontravam-se, em 1937,
João Coêlho de Miranda Fonseca e Iracy Moreira de Miranda Fonseca. João, 55 anos,
funcionário público, nascido em Fortaleza. Iracy, 24 anos, nascida no Território Federal do
Acre, residente na cidade de Belém à Avenida Gentil Bittencourt, 269. Do casamento
inexistiram filhos. O processo foi impetrado de forma amigável e em relação aos bens os
consortes declararam possuir uma casa térrea na Rua Floriano Peixoto, 129, em Fortaleza,
no valor de dezoito contos de réis (18 : 000 $ 000), outra casa térrea na rua Senador
Pompeu, 781, também na capital do Ceará, no valor de vinte contos de réis (20 : 000 $
000) e um armazém localizado na rua São Paulo, 317, também em Fortaleza, avaliado em
sete contos de réis (7 : 000 $ 00).
364
Estas propriedades perfaziam quarenta e cinco contos
de réis (45 : 000 $ 000), quantia que poderia ser razoável se todas as propriedades fossem
vendidas pelos valores descritos e também se não estivessem comprometidas com débitos
que giravam em torno de sessenta e três contos de réis (63 : 000 $ 000) superando a soma
total dos imóveis. Sendo trinta e oito contos de réis (38 : 000 $ 000) ao senhor Guilhermino
Teixeira Bastos, em forma de 11 notas promissórias, e ao credor Domingos Asimar, vinte e
cinco contos de réis (25 : 000 $ 000) representados em três notas promissórias, isto é, ao
tempo da ruptura havia déficit nas contas dos que se separavam da ordem de dezoito
contos de réis (18 : 000 $ 000). O significativo débito ficava sob a responsabilidade do
marido ou, como afirmava no auto, “todos os bens descritos são de exclusiva propriedade
do cônjuge João Coelho de Miranda Fonseca para pagamento das dívidas do casal, pelas
quais fica este responsável”.
365
Os bens (do casal) achavam-se bastante comprometidos por
promissórias, porém as dívidas de João não se resumiam apenas a estas, pois assumiu ainda
o compromisso de repassar à ex-esposa dez contos de réis (10 : 000 $ 000) que reafirmou,
em 19 de maio de 1937, em documento-recibo intitulado “Termo de paga e quitação da
promessa contratada”, “João Coelho de Miranda Fonseca, exibio a referida quantia de dez
contos de reis em moeda legal e corrente, que na presença do doutor Mauricio Cordovil
364
Estas informações procederam do auto civil de desquite amigável impetrado por João Coêlho de Miranda
Fonseca e Iracy Moreira de Miranda Fonseca, 1937.
365
Há grifos do autor.
253
Pinto Juiz do feito e, na minha, do que dou fé, passou a desquitanda Iracy Moreira de
Miranda Fonseca, que contou, conferiu, achando certa guardou consigo”.
Poucos traços da vida cotidiana destas pessoas depois da separação. Por
exemplo, se João conseguiu quitar as dívidas ou como dona Iracy reorganizou a sua vida
depois do desquite, ou mesmo como morava, se em casa alugada ou própria. Dez contos de
réis (10 : 000 $ 000), não perfaziam uma fortuna, no mínimo eram significativos e por isso
a mulher precisaria gerir cuidadosamente a manutenção de seu patrimônio, pois como se
analisará a seguir, os custos de vida mostravam-se elevados na capital paraense; os
aluguéis e gêneros alimentícios de primeira necessidade representavam e expressavam
boas percentagens no que se ganhava diária, quinzenal ou mensalmente. Se por um lado os
aluguéis [como é possível perceber na sessão seguinte (tabela 5)] mostravam-se variados
concentrando-se entre sessenta mil réis (60 $ 000) e quatrocentos mil réis (400 $ 000)
mensais, conforme os endereços periféricos e centrais, respectivamente;
366
por outro lado,
mesmo sabendo que as mudanças aconteciam diariamente e que o número de membros de
uma família influenciava, gastava-se por mês com alimentação, na cidade de Belém no
recorte desta pesquisa, entre oitenta e sete mil réis (87 $ 000) e cento e quarenta e dois mil
e oitocentos réis (142 $ 800).
367
Se porventura a desquitanda morasse em casa de aluguel e
resolvesse comprar uma habitação, dependendo do local gastaria pelo menos metade do
que lhe coube, cinco contos de réis (5 : 000 $ 000). A título de comparação, seu ex-marido,
em 1926, vendeu por este valor ao senhor Alexandre Silva uma casa na Travessa 09 de
Janeiro, 126. Enfim, Iracy teria de ter efetivo cuidado, caso contrário dilapidaria facilmente
o patrimônio, entrando em um estágio de pobreza difícil de ser solucionado.
Quando o assunto era partilha de bens, problemas muitas vezes longínquos
vinham à tona, apresentando-se mais intensos. Em conformidade com este pensamento,
a se ter cuidado com a concepção jurídica de partilha amigável (de bens), pois tratava-se de
uma denominação puramente legal, fato que não autoriza a ninguém pensar na inexistência
de querelas prévias entre os consortes para se chegar a um acordo que pudesse contentar a
ambos. Caso que ilustra claramente esta conjectura é o desquite amigável havido entre
Marinor Alcantara Favacho, 20 anos, dedicada a prendas domésticas e a lavagem de roupa
366
Alguns preços de aluguéis foram pesquisados nos diversos periódicos que circulavam na cidade
novecentista.
367
Para se chegar a esta afirmação foram consultados preços de diversos gêneros alimentícios publicados nos
periódicos da cidade de Belém à época.
254
externa, paraense e Cornelio Silva Favacho, 35 anos, comerciante, paraense.
368
Os
consortes eram proprietários de uma casa de secos e molhados, seis casas alugadas que
perfaziam um total de um conto e seiscentos mil réis (1 : 600 $ 000) mensais, cinco
terrenos no centro da capital que foram avaliados em cinco contos de réis (5 : 000 $ 000),
cinqüenta cabeças de gado no interior do Estado que totalizavam quinze mil réis (15 : 000
$ 000) e um “velho seringal” avaliado em seis contos de réis (6 : 000 $ 000). As
propriedades dos cônjuges totalizavam vinte e sete contos e seiscentos mil réis (27 : 000 $
600) e ainda havia os ganhos da mercearia. Fato curioso diante das propriedades é que em
uma primeira partilha “amigável” o marido ficaria com a mercearia, as casas alugadas e o
gado e a esposa sairia do casamento com os terrenos e o seringal improdutivo. Diante da
proposta matreira do cônjuge a mulher, bastante irritada, escreveu carta destinada aos pais,
assegurando: “repudio a divisão proposta. Cornelio não construiu todo este patrimonio
sozinho, eu e os senhores somos responsaveis pela sua construção, mas mesmo se não
fossemos, sou casada com aquele ingrato com divisão de bens”. Juridicamente dizia-se ser
tanto o desquite quanto a partilha dos bens processos “amigáveis”, porém apreende-se que
até o momento de um acordo nos corredores do judiciário, muito mal-estar entre os
cônjuges e as suas famílias acontecia. Um pouco mais à frente, a jovem Marinor afirmava
que “diante da proposta de partilha um pouco mais de intriga familiar e de brigas entre eu e
Cornelio é absolutamente imprescindivel”. Ao ser afrontada com a proposta do marido,
expunha muito bem quais posturas deveria tomar bem como seus direitos diante das
aspirações de Cornelio: não aceitou a pretendida separação de bens, pois sabia que o
casamento (com comunhão de bens) a amparava e em conseqüência das atitudes do
esposo previa diálogos sobressaltados entre os membros da família. Depois de várias
escalas de tensões familiares, Manoel Maroja Netto, juiz do auto, decretou a separação dos
cônjuges.
Outro casamento realizado sob o regime de comunhão de bens e que terminou
no Tribunal de Justiça com um processo de desquite, em 1922, foi o de Bellida Ohayon,
israelita, prendas domésticas contra Moysés Ohayon, marroquino, comerciante.
369
Raul
Rangel de Borborema, advogado da exeqüente, fundamentava a ação no artigo 317, inciso
do Código Civil Brasileiro: sevícias ou injúrias graves. O casal tinha três filhos, dois
368
Auto civil de desquite amigável impetrado por Marinor Alcantara Favacho e Cornelio Silva Favacho,
1919.
369
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Bellida Ohayon contra Moysés Ohayon, 1922.
255
encontravam-se com o suplicado e o outro com a autora, mas no decorrer da ação todos
passaram a morar na companhia da autora. Os discursos contidos no libelo afirmavam que
os consortes encontravam-se casados havia 12 anos, que tempos depois do conúbio o réu
começou a tratar com violência a mulher, ora com palavras injuriosas, ora com ameaças,
ora com sevícias e também passou a maltratá-la sentimental, emocional e economicamente
por meio da péssima administração dos bens do casal, pois concebeu plano fraudulento
para lesar seus direitos alienando falsamente uma procuração pela qual ficava autorizado a
vender, hipotecar ou arrendar bens imóveis e transacionar títulos de bancos. Ao questionar
a conduta do marido diante dos bens, da família e da sociedade, a autora teria sido
seviciada repetidamente e por fim expulsa da residência do casal, sendo forçada a recolher-
se à casa da irmã. Partes do auto indicam que alguns anos da vida em casal foram bastante
sobressaltados, mas que as complicações acentuaram-se a partir do momento em que a
autora entendeu ser a administração dos bens desfavorável aos seus interesses. Desta
maneira exeqüente e advogado, para conseguirem o apoio da justiça paraense, utilizaram a
tática da privação familiar, ou seja, argumentavam que a mulher e filhos moravam em
residência estranha (na da irmã da impetrante), onde passavam duras e cruéis dificuldades
como a total falta de recursos para abrandar a fome dos filhos bem como cobrir-lhes a
nudez. Mesmo sabendo dos infortúnios por que passava a sua família, o réu era acusado de
lançar mão de estratégias protelatórias, inoportunas e impróprias para não rever os seus
posicionamentos diante dos bens e acerca da pensão alimentícia; segundo o advogado de
dona Bellida, com este modo de proceder o executado tinha como propósito cansar a
autora que era “victima da sua vontade, do seu injusto rancor e immerecida
perseguição”. Muito embora a ação não contenha veredicto, o bacharel em direito – Rangel
de Borborema – solicitava a condenação do réu, porquanto argumentava em juízo a
inexistência de motivos para que o impetrado não fosse visto como culpado.
Perceber como emanavam as expressões das dificuldades econômicas dos
casais é, portanto, necessário. Se por um lado diferentes indicadores da fragilidade
econômica familiar podem ser assinalados: solicitação de pensão alimentícia, mudanças
constantes de emprego e de endereço, vencimentos dos membros da família, existência de
variados credores, recorrer à Assistência Judiciária Civil, por outro não são os únicos,
uma vez que tanto a pobreza quanto a riqueza apresentam-se em graus diferenciados; as
pessoas possuem hábitos, padrões, anseios, necessidades diversas, ademais, sem querer
esgotar a imagem do que seria ser pobre ou remediado, a notar-se que existiam também
256
diferenças econômicas em meio àqueles que declaravam possuir bens da ordem de vinte e
nove contos e trezentos mil réis (29 : 300 $ 000) como Joaquim e Cypriana e o casal Maria
de Nazaré Cantão da Silva, doméstica, e João Carlos da Silva, marítimo, que vivia tão
somente com os vencimento do esposo, os quais giravam entre duzentos e sessenta mil réis
(260 $ 000) e quatrocentos mil réis (400 $ 000) mensais.
Indícios de uma vida próspera podem ser observados nas atitudes tomadas pelos
membros da família Moraes Bittencourt que possuíam inúmeras propriedades em locais
nobres da cidade de Belém, além de boa reserva de dinheiro aplicada no Montepio.
Antonio de Moraes Bittencourt, funcionário da alfândega e Luiza de Moraes Bittencourt
tiveram suas ações de desquite e pensão alimentícia apresentadas pelo jornal “O Estado do
Pará”, nos dias 04, 05 e 06 de janeiro de 1938, sob o título “Acção de desquite que se
complica”. Problemas que envolveram a posse dos filhos e bens deram-se aos leitores de
Belém durante três dias seguidos. O jornal afirmava tratar-se de desquite litigioso
promovido pelo esposo, mas não apresentava de forma clara as razões que sustentavam a
separação do casal, limitando-se tão somente a informar possíveis relações extraconjugais
da esposa. A matéria de 04 de janeiro de 1938, também notícias do ato de provisões
impetrado por dona Luiza e por ela vencida. Por seu turno, em 05 de janeiro de 1938,
publicizavam-se bens e pecúlios: “do processo de desquite que o dr. Moraes Bittencourt;
antes de embarcar para esta capital, recentemente, fez, na Capital da República, um
augmento de 15 contos de seu peculio no Instituto de Previdencia, augmentando-a, então,
para setenta contos de reis (70 : 000 $ 000), além de permanecer como contribuinte do
montepio, que assegura á sua familia uma pensão mensal de 500 $ 000. O autor da acção
comprara a pouco tempo um predio á rua Quintino Bocayuva, em nome de suas filhas, e
adquirira por 20 : 500 $ 000 o da residencia do casal, á avenida de São Jeronymo”.
370
Ao
se interpretar o valor da pensão alimentícia arbitrada, oitocentos mil réis (800 $ 000)
mensais, juntamente com a localização das propriedades, em espaços nobres e caros da
cidade e o valor de uma das compras [vinte contos e quinhentos mil réis (20 : 500 $ 000)],
é certo afirmar que se tratava de cônjuges bem estabelecidos financeiramente. Este
argumento é reforçado quando se pensa o aumento do pecúlio no Instituto de Previdência,
assim como o do Montepio que assegurava pensão mensal no valor de quinhentos mil réis
(500 $ 000). A pobreza passava ao largo do casal, ao contrário das intempéries vividas por
Joana Pinheiro do Vale, visto que os números e propriedades daqueles autorizam esta
370
“O Estado do Pará”. Belém, 05 de janeiro de 1938, p. 05.
257
assertiva. Mas como sentir o peso que o dinheiro exercia sobre a vida em comum? Como
se vem argumentando sobejamente, se por um lado a cidade de Belém nas décadas iniciais
novecentistas não pode ser percebida como monossilábica por existirem famílias
empobrecidas, mulheres com pensão alimentícia de cem mil réis (100 $ 000) mensais,
como a atribuída à senhora Joana, por outro havia famílias com bom poder econômico
como a Moraes Bittencourt que, além dos bens que anteriormente listados tem ainda a
pensão percebida pela esposa que ajuda esta assertiva. Se Joana deveria viver com cem mil
réis e sustentar cinco filhos, compreendia bem a insuficiência do numerário destinado pelo
marido; sabia da importância de reservas quando se era responsável por menores, mas ao
mesmo tempo possuía consciência de que indispunha desta segurança, pois a pensão era
muito baixa e a sobrevivência, elevada. Luiza, com a pensão recebida, provavelmente
pouco se preocupava com esta questão.
Do que se analisou no capítulo anterior, a explicação para pensões tão distintas
é a de que o poder judiciário considerava os vencimentos dos companheiros. Assim, a
distância entre uma e outra dependia da função desempenhada pelos envolvidos. Nos
espaços das relações em família constituíam-se pois soluções, enfrentavam-se problemas e
dificuldades, venciam-se obstáculos que o dia-a-dia impunha, todavia as experiências
vividas – como as de conforto financeiro ou sua complicação ligavam-se às ajudas
mútuas. No momento da separação é importante perceber que uma das múltiplas
dimensões contidas nas propriedades é a representação de se viver com autonomia. É,
grosso modo, por essa razão que os casais, ao se dedicarem às lutas que envolviam os bens,
não se esqueciam das dinâmicas familiares. Assim sendo, quando o dinheiro se interpunha
entre ele [o casal], as instabilidades impreterivelmente davam-se a ver. Pagamento de
pensão alimentícia e divisão de bens são momentos cruciais de ruptura, pois considerava-
se que ninguém se comprometia levianamente na aventura da separação e sim que havia
chegado à tolerância máxima da convivência amásia ou conjugal e nada chegaria a bom
termo se, quanto ao dinheiro, as partes ficassem insatisfeitas. Neste momento era comum
membros da família [mulheres e maridos; amásias (os) e filhos, como analisado no capítulo
anterior], perceberem-se como constituidores ou tendo direito ao que foi acumulado; caso a
divisão se mostrasse pouco atrativa, o sentimento de ter sido desprestigiado pairava e as
tensões tendiam a multiplicar-se. Em suma, seria imprudente ver este momento como
amigável mesmo quando se tratava de desquite por mútuo consentimento, como atrás se
argumentou. Mas se formas de favorecimento eram executadas, o outro sentia-se na
258
obrigação moral e, logicamente, econômica, de refutar o ensejo do “esperto” e o judiciário
muitas vezes amainou a esperteza, como aconteceu com o casal Joaquim e Cypriana.
Aproxima-se o final destas observações com a crença de ter sido sublinhada a
importância dos bens na construção da riqueza e pobreza, assim como a segurança mínima
quando se pleiteavam provimentos, como se analisou no capítulo anterior e em parte deste.
A função social desenvolvida pelos que se separavam, localizava-se também em uma
quase impossibilidade de se livrar das intrigas, problemas e interesses individuais que
vinham à tona, com desconcertante facilidade, nesse momento. Dessa maneira, o
patrimônio deve ser compreendido como forma de pensar e construir imagens do social,
porquanto móveis e imóveis são analisados no bojo das representações de réplicas e
tréplicas existentes entre cônjuges, amásios, amantes, pois nestas condições tudo atesta o
valor de se precaver de deslizes que conduzissem a desfavorecimentos de ordem
econômica. Os jogos complexos da divisão remetiam a princípios variados como o de
maior liberdade do cônjuge diante da família, amigos, conhecidos, sociedade; conforme tal
pensamento, esse mundo alimentava lógica diversa, bem como crítica mais apurada
concernente ao significado dos bens frente à ruptura, mas o que se apresenta inteligível é o
que as pessoas e o judiciário lhes ofereciam: lembrar que possuir-se bens [casas e
terrenos, por exemplo] não representava necessariamente riqueza. Por seu turno, com
dados como esses, é bem coerente não pensar a pobreza apenas como insuficiência de
ganhos, mas também como resultado de toda e qualquer privação, injustiça e rapina, como
as que se davam entre alguns casais.
Procurou-se mostrar assim que tergiversando é impossível entender as
economias conjugais: precisa-se enfrentá-las. De tal sorte, penetrar nestes domínios
implica reconhecimento e interpretações de diversos e múltiplos sinais que nem sempre se
encontram claros. É neste sentido que os campos da vivência conjugal são relativos e se
por um lado o sumiço de um esposo conduzia facilmente uma mulher do estado de pobreza
à de pobreza insolvente, por outro a existência de bens [casas e terrenos] não queria dizer
opulência econômica entre os consortes. A rigor é necessário cuidado, porque os limites
são tênues e muitas vezes a convivência matrimonial confundia-se justamente por possuir
fronteiras delicadas no seio da convivência a dois. Os limites existiam, muitas vezes pouco
nítidos a uma primeira observação, fazendo-se preciso estabelecer novos significados aos
móveis, imóveis, mercadorias, bens de toda natureza que pudessem proporcionar incursões
259
à vida privada dos amantes. Na família, a responsabilidade e a administração [dos bens]
sempre se mostraram campos nevrálgicos, sempre conduziram a tensões e problemas.
Numerosos casos concentram-se onde os cônjuges, amásios e concubinos viveram anos a
fio “sem” que os conflitos diante das propriedades, alimentos e educação dos filhos
viessem à tona contundentemente, porém quando entravam em crise, em que a única saída
era o judiciário, os interesses passavam a imprevisíveis. Em muito as mágoas, rancores,
revoltas afloravam quando o assunto era o dinheiro, por exemplo, a genitora, o filho
irreconhecido, o adulterino e mesmo o seu representante legal [tutor, por exemplo], como
interpretado, eram as principais pessoas que imprimiam complicações ao direito de
herança e ao princípio da responsabilidade sobre a família. Por vezes relações discretas,
mas outras nem tanto, apareciam nas ões de desquite, sendo crível conhecer histórias de
vida e revelações íntimas havidas em liames conjugais e extraconjugais, sendo que tais
aspectos passavam necessariamente pelo poder que o dinheiro desenvolvia nos recônditos
da convivência em casal.
As lutas no interior do casamento e da família eram diversas, vejam-se deste
modo outros movimentos.
2. MORADIA: PAIS, SOGROS E AMIGOS
“O lar ideal
Um porto seguro, onde se encontre sempre abrigo contra as
tempestades que se desencadeiam ás vezes, no decorrer de uma
existencia, um santuario: symbolico sagrado da vida em familia,
que aprendemos a venerar e amar com fervor e devoção desde a
nossa infancia. Sonho doirado de pobres e ricos, nobres e plebeus.
Casinhas risonhas, onde reina a alegria e a paz e as quaes todas
as tardes - operarios e trabalhadores, cansados da labuta diaria,
encontram junto da familia que o espera com solicitude e
carinho a força e a energia necessarias para o trabalho rude do
dia seguinte. E onde nos seus dias de folga, podem partilhar dos
jogos e diversões dos filhos, que crescem contentes e
despreocupados, ao cuidado dos fieis companheiros que sabem
compartilhar das suas alegrias da mesma forma os encorajam
(sempre que elles regressam, vergados ao peso das difficuldades),
com palavras reconfortantes e um sorriso amigo”.
(“O Estado do Pará”. Belém, 19 de julho de 1939, p. 06)
É inteligível que uma família estável incluísse a imagem da moradia que
representava parte do que seria o ideal na conjugalidade e na epígrafe notam-se claramente
260
os sentidos que se lhe queria imprimir. Buscava-se elaborar significados aplicando ao lar
adjetivos nobres como os de porto seguro”, “santuário” e símbolo do sagrado” e,
como a própria matéria afirmava, tratava-se do sonho dourado de diversos segmentos
sociais: do pobre e plebeu aos ricos e nobres, todos desejavam igualmente fazer das suas
casas lugar em que reinasse a alegria e a paz. No entanto falava-se de um lar idealizado e
muito embora não se queira aqui negá-lo, compreende-se que o mesmo existia somente até
ao momento em que as conveniências [entre os casados, amasiados, concubinados]
mostravam-se passíveis de negociação. Muitas vezes as estratégias do morar em teto
próprio ou alugado nem sempre se concretizavam.
Neste sentido o auto de provisão impetrado por Olgarina Justos de Campos
contra o marido, Paulo Carlos de Campos, é um bom exemplo para se entender como a
convivência entre pessoas “estranhas” poderia facilmente destruir um casamento.
371
A
exeqüente foi apresentada ao judiciário paraense como carioca, branca, 26 anos, casada,
serviços domésticos, sabia ler e escrever; o impetrado era paraense, 29 anos, Sargento
do Exército, sabia ler e escrever. Os cônjuges residiam à Avenida 16 de Novembro, 10,
Largo do Redondo. Neste endereço moravam a impetrante, suas filhas [Paola de Campos e
Julia de Campos], cunhadas (os) e sogra. Os problemas logo começaram a aparecer.
Olgarina e Paulo brigaram em 29 de agosto de 1931, por volta das cinco horas da manhã,
no interior da referida residência, em virtude de dissensões familiares que em princípio
foram descritas como discussões, mas teriam passado a agressões físicas do executado à
mulher. Por que tantas pessoas em um mesmo local? Paulo servia no Hospital da 8ª Região
Militar no Rio de Janeiro onde conheceu a denunciante e, ao ser transferido para Belém, a
sua esposa e filhas passaram a morar em companhia da família dele, isto é, na casa de Julia
Cantão de Campos, mãe de Paulo, e demais filhos. Olgarina cita nos autos que desde que
passou a residir na referida habitação sempre foi maltratada pela família do réu que lhe
dirigia ameaças por reclamar a presença do marido que não mais a procurava como esposa.
Tudo indicava tratar-se de lar espaçoso porquanto era descrito com pelo menos
três quartos, uma alcova e varanda, sendo que a disposição das duas famílias em seu
interior devia obedecer à seguinte ordem: em um dos quartos dormiam o esposo com os
seus irmãos, mas por vezes também na varanda; em outro, a sogra com as filhas e, em um
terceiro, a exeqüente com a sua prole. Os cônjuges sequer descansavam em um mesmo
371
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Olgarina Justos de Campos contra Paulo Carlos de
Campos, 1931.
261
recinto, o que afastava o casal, e certamente tal disposição dos corpos matrimoniais estava
longe de ser “o lar ideal” que Olgarina de Campos esperava para si e família. Tomando
como base as tensões entre a exeqüente e o núcleo familiar do esposo, o caráter de
perfeição publicado no jornal “O Estado do Pará” [a epígrafe] estava longe do cotidiano
enfrentado pela carioca. Enquanto o lar idealizado é o porto seguro onde sempre se pode
encontrar abrigo das tormentas do dia-a-dia, santuário, sonho de todos os segmentos, local
de descanso depois da labuta diária, a vivência da autora do processo na casa da sogra era-
lhe a antítese, um ambiente totalmente adverso. A impetrante afirmava ao judiciário
paraense viver na casa da mãe do marido sob infortúnios que desabonavam sua família e
honra de esposa e mãe; a queixosa expressava a importância social e moral do morar em
local próprio e que possuí-lo sempre foi permeado de significados, tais como o de
liberdade individual, poder educar os filhos como melhor lhe conviesse, receber amigos e
mesmo resolver querelas matrimoniais surgidas na vida cotidiana, prerrogativas
desconhecidas por ela, visto que ao ser conduzida pelo esposo aos domínios da sogra
perdia a possibilidade de se impor diante dos membros da casa alheia. Neste caso,
naturalmente, a “residência” era a arquitetura, mas também se estendia à estrutura social e
moral que representava aos seus proprietários, isto é, expressava um instrumento de poder
diante das dinâmicas necessárias à condução da vida. É lógico, como se vem
argumentando, que as representações passavam longe dos que, nas casas de sogras e sogros
ou nos espaços de mães e pais, teriam de enfrentar um mundo detalhadamente dividido
entre os seus membros.
Ao se estabelecerem vínculos de subordinação entre nora, sogra e demais
membros do núcleo familiar, criaram-se problemas específicos de coabitação, pois
emergiram complexidades que a rigor autorizam afirmar ser impossível a união e a família
no singular. Os horizontes delineavam-se muitas vezes plurais quando se pensam lógicas e
rearranjos das experiências do morar. O marido Paulo, ao chegar da capital do país com a
família, preferiu alojá-la na casa de sua mãe transformando assim a geografia da
residência, porquanto nela foram agregadas mais quatro pessoas “desconhecidas” da
família [com exceção do consorte, é claro] que teriam de se adequar a costumes e hábitos
familiares estabelecidos e que certamente ajudaram a criar e acentuar variadas lutas. O
réu, próximo de sua parentela, negou lar próprio à sua família, mas também é possível que
o compromisso do aluguel lhe fosse oneroso naquele momento. Por exemplo, a localização
da casa de dona Julia era em área nobre e central da Belém novecentista, ficava próxima a
262
importantes prédios da cidade como o da Intendência, o do Governo do Estado e o do
Mercado de Ferro do Ver-o-Peso indicando lugar agradável de se morar. Nota-se que se o
esposo desejasse alugar casa à família sustentando o mesmo padrão do de sua mãe, irmãs e
irmãos teria de empregar boa parte dos seus vencimentos mensais no sucesso da
empreitada. Tomando-se como base a propaganda da empresa Moreira, Gomes e
Companhia, anunciada no jornal “Folha do Norte”, que alugava imóveis a preços variados
e em diversos bairros da cidade, lia-se a proposta de uma residência localizada a poucos
metros do endereço da sogra de Olgarina, isto é, na mesma Avenida 16 de Novembro. A
propaganda: “16 de Novembro, 91 – aluguel mensal = 120 $ 000”.
372
Então o que se deseja
afirmar é que locações nestes valores poderiam apresentar-se demasiadamente caras ao
Sargento do Exército e por isso lhe seria mais conveniente morar na casa da mãe.
Deste modo ficam evidentes as estratégias e experiências tramadas ao se
deparar com dificuldades financeiras; destarte, razões econômicas, sentimentais ou
conjugadas conduziram o dirigente da família a lançar esposa e prole em espaço geográfico
previamente demarcado com roupagens, disposições, costumes, bitos desconhecidos aos
novos membros. Percebe-se que, em um ambiente dominado pela sogra, para Olgarina
inexistia relação de troca ou reciprocidade, antes aprofundamento das tensões matrimoniais
bem como das familiares. O resultado da desastrada união das duas famílias sob o mesmo
teto foram intrigas tais que ocasionaram finalmente a separação dos cônjuges – sem
processo de desquite –,
373
pois a impetrante Olgarina Justos de Campos mudou-se para o
Rio de Janeiro, onde se encontra em companhia de sua família. Referente à ação de
alimentos o réu, em 22 de novembro de 1931, foi pronunciado culpado a pagar duzentos e
cinqüenta mil réis (250 $ 000). O marido sentenciado continuou na casa da mãe.
Por conhecer precisamente os significados da autonomia de se estar sob um teto
em que se possa comandar, existiram esposas que se recusaram a morar com a sogra para
evitar lutas como as que envolveram a senhora Raymunda Yolanda Normaz da Silva, 20
anos e Durval Ramalho da Silva, “vulgo Maneco”, 27 anos, chauffeur. Os cônjuges
estavam casados havia dois anos e residiam na Rua Conceição, 670; tudo na vida conjugal
parecia caminhar bem até o momento em que o consorte, alegando enfermidade, decidiu
mudar-se para a residência de sua genitora, na Rua Antônio Barreto, 365. A possibilidade
da tríade casa x cônjuges x sogra iniciou os problemas entre os consortes, porquanto
372
“Folha do Norte”. Belém, 14 de janeiro de 1932, p. 01.
373
As separações sem a presença do desquite foram sobejamente analisadas no item 1 do capítulo 2.
263
Raymunda jamais se entendeu [com a sogra] e recusou-se a acompanhar o esposo, mesmo
diante de insistentes solicitações deste.
374
Aqui claramente a força de uma mulher no
seio do casamento, isto é, por nunca ter se harmonizado com a mãe do marido, formara
profundas reservas em acompanhar Durval; no entanto considera-se igualmente a noção de
que jamais foi de seu interesse perder a liberdade, autonomia e ritmo que imprimia em sua
residência, pois se resolvesse deixá-la teria de adequar-se às normas e limitações do lar da
mãe do homem a quem se uniu.
Estar sob teto próprio era vital a uma família, por exemplo, o sentir-se em
universo seu, saber a quem afrouxar e impor limites, representava ser-se o senhor de um
espaço desenhado e redesenhado conforme as conveniências dos proprietários. A senhora
Laura, em uma das poucas vezes que escreveu acerca do cotidiano de sua vida conjugal,
assegurava de modo firme a este respeito: “eu nunca morei e nunca irei morar com a minha
sogra ou sogro, cunhados ou cunhadas sempre vivi em casa propria fruto do meu trabalho e
do de Manoel, mesmo este achando que trabalhou sozinho para construir esta modesta
propriedade. Veja só, se nestas condições o meu matrimonio não vai bem e não acabará
bem, imaginem o que seria de mim se morasse com a minha sogra ou sogro, cunhados ou
cunhadas? Quem casa quer casa é uma sentença irrefutavel e secular”.
375
Novamente o
historiador encontra-se frente-a-frente com o poder dessa senhora diante das dimensões
histórico-conjugais. Claramente percebe-se em suas observações a noção de que, se
residisse com a família do marido, a vida conjugal seria um total desastre, pois interpretava
que, se em residência distante da dos pais dele, a dinâmica conjugal estava [naquele
momento] inteiramente sobressaltada, em casa alheia seria muito pior, pois tinha a
convicção de que simetricamente ao casamento exigia-se a construção de um lar próprio.
De acordo com isso uma casa pode ser entendida como um dos centros de gravidade da
convivência amásia ou conjugal e de fundamental importância o efetivo poder dos
cônjuges sobre a mesma.
O morar em casal significava enraizar a linhagem em algum lugar e ao mesmo
tempo estar dotado de autonomia diante dos filhos, parentes, amigos, enfim, ter força
moral e política frente aos seus. Daí o funcionamento da mentalidade da senhora Laura,
para quem manter-se sob uma residência onde confluíssem tais qualidades era interpretado
como investimento essencial à sobrevivência da vida a dois. No entanto, fazem-se
374
“Folha do Norte”. Belém, 21 de junho de 1940, p. 01.
375
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 10 de fevereiro de 1932.
264
necessárias duas observações a este respeito: a primeira é que Laura escrevia tendo como
base suas dinâmicas cotidianas. A segunda é que, mesmo não secundarizando a
importância de uma casa, as necessidades e conveniências de muitos [casais] faziam com
que o início da vida matrimonial ou amásia começasse sob o teto de um parente ou amigo,
aliás, os processos de desquite, alimentos, paternidade e periódicos indicam que nas
décadas iniciais do último século cerca de 67 % dos casais amásios e 70 % dos legalmente
casados iniciavam suas vidas ou em algum momento da convivência a dois se encontraram
sob o teto de algum parente.
Texto escrito para se pensar outros sujeitos, mas útil nestas reflexões pela
metodologia empregada é o de Alain Collomp.
376
Para o autor, perceber o interior das
casas por meio da maneira de comer, dormir e trabalhar é essencial ao entendimento das
estratégias do lugar. Entretanto, ao mesmo tempo, estas relações sócio-culturais são
insuficientes para se considerar adequadamente as superfícies montadas na unidade
familiar, onde as pessoas mudam de colocação e utilizam suas” partes na habitação de
forma diferenciada no decorrer do tempo. No caso da senhora Olgarina, por exemplo, a
varanda nem sempre se restringia ao significado do descanso das tardes ensolaradas de
Belém ou da ventilação caseira, era ao mesmo tempo cômodo de dormida e esta ordem
representava variações na composição do uso dos espaços caseiros. Como visto, o núcleo
habitacional reorganizava-se no bojo da residência da sogra de Olgarina de Campos,
oferecendo-se significados múltiplos a um mesmo espaço. Assim, compreender as
dinâmicas de seu funcionamento, determinar locais que opunham e unificavam os seus
constituintes é importante para melhor visualizar o funcionamento [do lar].
Olgarina e Laura foram personagens sociais que textualmente expuseram a
inconveniência e mal-estar provocados pela ausência de autonomia no morar. Sua
mentalidade localizava a casa como base e existência da família e por isso o desejo de
possuir uma habitação deveria ser atributo de todo casal. Outras mulheres, bem como
homens, tinham estes mesmos sentimentos, mas até com o conhecimento destas
representações, seja com o casamento, seja com o amasiamento e depois com a separação,
agregavam-se em habitações alheias. Qual a razão deste fato? Sabendo que sofreriam
inumeráveis restrições, morar na casa da mãe, pai, tia, sogro, sogra, amigo pode ser
376
COLLOMP, Alain. “A comunidade, o Estado e a família. Trajetórias e tensões: famílias. Habitações e
coabitações”. In: ARIÈS, Philippe & CHARTIER, Roger. (Orgs.). História da vida privada: da Renascença
ao Século das Luzes. Vol. III. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 501 / 541.
265
interpretado como tentativa de fugir dos custos elevados do aluguel, como se nota na tabela
seguinte.
TABELA 5
ENDEREÇOS E VALORES DAS CASAS PARA ALUGAR
ENDEREÇOS DAS CASAS ALUGUEL MENSAL
Avenida Nazareth, 65 400 $ 000 mil réis
Avenida S. Jeronymo, 78 350 $ 000 mil réis
Avenida Serzedello Corrêa, 98 160 $ 000 mil réis
Rua Padre Prudêncio, 170 130 $ 000 mil réis
Rua Pariquis, 23 130 $ 000 mil réis
Rua Pariquis, 26 150 $ 000 mil réis
Rua Aristides Lobo, 126 120 $ 000 mil réis
Rua Aristides Lobo, 142 180 $ 000 mil réis
Rua Manoel Barata, (Altos), 118 200 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 15 60 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 17 60 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 19 60 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 23 60 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 25 60 $ 000 mil réis
Rua Antonio Barreto, 27 60 $ 000 mil réis
Rua Oliveira Bello, 17 F 140 $ 000 mil réis
Rua Conceição, 28 60 $ 000 mil réis
Travessa Quintino Bocayuva, 38 160 $ 000 mil réis
Travessa Quintino Bocayuva, 123 B 120 $ 000 mil réis
Travessa 14 de Março, s / n 100 $ 000 mil réis
Travessa Fructuoso Guimarães, 132 A 180 $ 000 mil réis
Travessa 1 º de Março, 126 110 $ 000 mil réis
Pinheiro – Travessa S. Roque, 02 130 $ 000 mil réis
Mosqueiro – N. S. do O 60 $ 000 mil réis
Os endereços e valores que compuseram a tabela procederam do periódico “Folha do Norte”, de uma propaganda intitulada: “Casas para
alugar” de 14 de junho de 1931, p. 10.
No mapa a seguir é possível perceber alguns endereços apresentados na tabela:
266
O mapa foi retirado da obra de: PENTEADO, Antonio Rocha. Belém estudos de geografia urbana. Vol. I. Belém: Editora da UFPA,
1968.
No canto inferior esquerdo pode-se ver o Bairro da Cidade Velha, antes
chamado da Cidade, primeiro núcleo de povoamento de Belém.
377
Também se observam
algumas ruas em que o anúncio da empresa Moreira, Gomes e Companhia oferecia casas a
alugar como a Avenida Nazaré, endereço de aluguel mais alto e Avenida Governador José
Malcher, que à época da propaganda chamava-se São Jerônimo.
378
A Avenida Nazaré,
Antonio Rocha Penteado,
379
usando referências de Theodoro Braga, afirmava ser de
aparência majestosa, sombreada, com pavimentação, esgoto, água encanada, eletricidade,
linhas de bondes, ladeada por clubes e colégios, formando o bairro aristocrático da cidade,
o de Nazaré. A segunda locação mais onerosa, trezentos e cinqüenta mil is (350 $ 000),
377
Para análise acerca da fundação de Belém, veja-se: CRUZ, Ernesto. História do Pará. Vol. I. Belém:
Grafisa, 1973.
378
Para interpretação das mudanças dos nomes das ruas da cidade, consulte-se: CRUZ, Ernesto. Ruas de
Belém: significados históricos de suas denominações. Belém: CEJUP, 1992.
379
PENTEADO, Antônio Rocha. Belém do Pará (estudo de geografia urbana). Vol. I. Belém: Editora da
UFPA, 1968, p. 157.
267
era a da São Jerônimo, 78. Residir nestes locais significava proximidade da Praça da
República [um dos principais logradouros da cidade desde a Belle-Époque] e do Teatro da
Paz [principal casa de espetáculo de Belém], espaços bastante valorizados pela sociedade
belenense. Ainda no centro da cidade Bairro do Comércio é inteligível a Rua 15 de
Novembro, onde os interessados deveriam fechar os negócios com a referida empresa.
Tomando por base os endereços, notam-se circularidades entre áreas nobres, periféricas e
regiões distantes que nem mesmo aparecem no mapa, como a Vila do Pinheiro e
Mosqueiro, acerca de 30 Km e 70 Km do centro, respectivamente. Um dos endereços onde
o valor do aluguel mensal era mais baixo, sessenta mil réis (60 $ 000), no Bairro do
Jurunas na Rua Conceição, 28, estava distante do centro da cidade e de tal forma do lado
oposto ao Teatro da Paz e à Praça da República; certamente quem o alugasse encontraria
dificuldades com transporte, abastecimento de água e eletricidade.
Talvez estes valores e em alguns casos a localização ajudem a explicar porque
as casas de parentes eram eixos gravitacionais quando se casava, como ao tempo do
amasiamento e igualmente quando se fragmentavam essas uniões. Os dramas entre
Etelvina Lopes Bandeira Dias e Djalma D`Albuquerque Dias são de suma importância no
caso e deve-se novamente interpretá-los aqui. Quando o esposo viajou, em abril de 1932,
rumo ao Sul do país com o objetivo ou pretexto de conseguir melhor condição financeira
para si e a família, a mulher ficou sob o teto do comandante João Paulo Bandeira, pai de
Etelvina.
380
A morada localizava-se na Rua Boa Aventura da Silva, 105. Não
informações se quando casaram, em 17 de junho de 1917, os cônjuges passaram a residir
na habitação dos Bandeira, localizada na Avenida Gentil Bittencourt, 146, na da mãe do
consorte, que no início do século XX era na Avenida Nazaré, 91 ou se chegaram a formar
um lar; no entanto o processo de desquite promovido pela esposa em 27 de abril de 1946
denuncia que, no período da viagem, Djalma morava com ela e os filhos na casa do sogro.
Mesmo na residência ampla, o aperto na geografia do espaço ocorreu, porque em seu
interior conviviam pelo menos doze pessoas, isto é, nove netos, a filha, o comandante João
Paulo Bandeira e a sua esposa, Evangelina Lopes Bandeira. A ordem da casa mudava, bem
como hábitos, costumes e divisão do espaço. Quanto à organização interna do lar o
dormir, por exemplo a ação de desquite indica vários irmãos acomodando-se uns com os
outros em um mesmo ambiente, a mãe dormindo com alguns e outros em companhia dos
380
Auto civil de desquite litigioso impetrado por dona Etelvina Lopes Bandeira Dias contra Djalma de
Albuquerque Dias, 1946.
268
avós. Ao se ler atentamente os autos, esta arrumação doméstica íntima é previsível e tão
provável que para desconsiderá-la seria necessário conceber a habitação dividida de modo
a comportar um cômodo de recolhimento para cada membro da ampla família Bandeira,
ordem efetivamente inexistente. Esta situação comprometia a privacidade entre os seus
membros, aliás, sobre este assunto jamais pairou dúvida acerca das proximidades dos
olhares, das vigilâncias, dos gestos, dos movimentos de cada um no interior do lar.
De um a outro processo, transcorreram 29 anos. Ao tempo do primeiro, Djalma
faz-se presente em todos os momentos. Constituíram-se testemunhas e todas diziam saber
estar Etelvina, deflorada. De 1932 até 1946 [data do abandono e início do auto de desquite,
respectivamente], a família deixada na capital do Pará sequer teve notícia do senhor
Djalma. Quatorze anos passaram para que a separação de corpos e bens fosse iniciada e
corresse à sua revelia na justiça paraense. Em 1917, o “deflorador afirmava” ser o
casamento imprescindível e que fosse realizado imediatamente, mas durante a segunda
ação, a de 1946, nada proferiu, não se pronunciou em tempo algum e o silêncio era total.
As testemunhas, Almerindo Cipriano Trindade e Lauro de Sousa Moreira, declararam
resolutamente que os 09 filhos e a impetrante ficaram sob as expensas do senhor Bandeira.
Nenhuma testemunha estava propensa a admitir o oposto visto que, além de amigos de
longa data, Almerindo era colega de trabalho do pai de Etelvina e Lauro padrinho de um
dos filhos do casal. Assim todos os depoentes afirmavam que doze pessoas viviam à custa
de um único provedor o que complicava bastante o seu bem-estar e as finanças do
proprietário.
No período da partida do esposo da cidade de Belém, a sobrevivência da família
na casa do sogro de temporária transformou-se em permanente. Havia quatorze anos que o
patriarca dos Bandeira abrigava a prole e a mulher de Djalma em seu domicílio. Em
pesquisa de recorte temporal e espacial diferentes dos desta tese, Norbert Elias avaliou bem
as estratégias de morar em grupo.
381
Para o autor, todo agrupamento humano constrói
determinados tipos de configuração do lugar ocupado, ou seja, elabora costumes e hábitos
próprios. Isso acontece porque as pessoas configuram os lugares onde “estão ou podem
estar” quando se reúnem em grupo ou individualmente, e assim sendo – para o pesquisador
os espaços são passíveis de interpretações que podem ser representadas a partir das
particularidades e ações desempenhadas individual ou coletivamente pelos moradores. Em
381
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
269
Belém, se as habitações dos parentes representavam certa “segurança” a certas famílias, é
de suma importância apreender igualmente que, ao acessar as suas dependências, as
reelaborações apresentavam-se imperativas em virtude das mudanças que os novos
incorporados provocavam, ou seja, era indispensável dividir o local demarcado pelos
moradores mais antigos. Tal movimento facilmente conduzia a intrigas, problemas, tensões
entre os membros do núcleo familiar. Desse morar em grupo é impossível entender
Olgarina, Etelvina, Laura ou qualquer outra personagem isoladamente, porquanto de
alguma maneira os cunhados, pais, mães, sogros e sogras adentravam suas vidas, e os
viveres ora chocavam-se ora convergiam formando alianças e rupturas nas teias familiares,
mas sempre de forma muito semelhante.
Analisar somente os agentes que entravam ou saíam dos espaços residenciais é
arriscar em demasia os argumentos do estudo. É legítimo apresentar as teias [necessidades,
obrigações, sentimentos] que os envolviam, uma vez que estas concepções jamais eram
tranqüilas quando o assunto de voltar à casa dos pais depois de vários anos de ausência ou
imiscuir-se na residência da sogra e do sogro que muitas vezes nunca haviam se
encontrado, acontecia. Tudo indica, ao contrário de Olgarina, que Etelvina teve uma
relação mais “estável”, mas ao se interpretarem os respectivos processos, uma e outra
enfrentaram problemas com a parentela, muito embora estes se dessemelhassem quando se
pensa o grau de parentesco, quando se consideram as afinidades com os demais moradores
e quando se concebe o tempo em que se conheciam. Da geografia das duas mulheres,
Olgarina foi lançada em ambiente com hábitos e costumes muito formados, ou seja, a
casa da sogra caracterizava-se espaço confuso e complexo à sobrevivência de mais três
pessoas “estranhas”; assim, as censuras apresentavam-se indispensáveis e recorrentes. Em
outros termos, viu-se obrigada a enfrentar os parentes do marido: cunhados (as) e sogra;
por seu turno, Etelvina e seus filhos não conviveram com a mãe de Djalma e tampouco
com cunhados ou cunhadas, mas com os seus genitores. Os membros da família mudavam
expressivamente, no entanto que nem se pense que Etelvina encontrou [na casa dos pais]
espaço adequado e montado para ela. Seria equivocado esquecer que se tratava de uma
mulher abandonada pelo esposo e com nove filhos. Deste modo, quer-se afirmar que
residir outra vez na casa [dos pais] sem a presença do marido foi tarefa difícil. A família
abandonada certamente sofreu pressões de vizinhos, amigos e conhecidos. Etelvina
desligou-se dos encargos dos pais em 1917, contudo cerca de 15 anos depois, está
novamente soleira a dentro da casa de seus genitores. O assunto provocou murmúrios, da
270
vizinhança e tristezas à família, porquanto tratava-se de um retorno indesejado. Se, em
1917, forçou-se o consórcio por não se querer vê-la como mulher abandonada com filhos
ilegítimos ou por qualquer outra razão, o regresso, tal como o casamento, teve
constrangimentos e lamentações, porquanto agora ela era mulher difícil de sustentar com
sua prole. Lutas cotidianas voejavam em toda época, ou seja, à ocasião da união, durante
ela e ao tempo da separação, as pessoas tramavam estratégias cotidianas diversas para
conseguir sobreviver na cidade de Belém das primeiras décadas novecentistas.
O senhor Raymundo Nonnato de Siqueira, 32 anos, estivador e sua esposa dona
Estellita Monica de Assis, 28 anos, prendas domésticas, ao receberem veredicto favorável
de desquite do juiz Maroja Netto, em 24 de novembro de 1921, deram rumos distintos às
suas vidas.
382
Ela, marcada pelas pechas de adúltera e desquitada, continuou morando, após
a ruptura legal [pois estava algum tempo separada], na Travessa 09 de Janeiro, 79,
com outro companheiro com quem vivia concubinada. Por seu turno, o requerente do
processo foi acolhido no seio da casa de seus pais, juntamente com os filhos Pedro Lucio
de Siqueira e Edith Amelia de Siqueira. O Pai do autor, descrito como “homem excelente,
muito conhecido nesta cidade não so como homem honesto e exemplar chefe de familia,
como tambem como homem de trabalho. Acolheu novamente o filho, ferido por táo
irreparavel [ilegível] ao mesmo tempo que sua mulher, avó dos menores os amparava
convenientemente”. A situação era bastante desfavorável a um homem desquitado aos 32
anos: voltar à casa dos pais, conduzindo ainda como herança matrimonial dois filhos
menores e a traição da mulher. Com o regresso seria preciso reconquistar espaços perdidos,
porquanto a residência dos genitores apresentava outras estruturas e maneiras de se viver e
conviver. Neste drama, como no anterior, a morada recebeu novos membros o que forçava
reelaborações nas experiências cotidianas como por exemplo onde estes membros
dormiriam. Vinte e cinco anos separam as histórias do casal Djalma e Etelvina das de
Raymundo e Estellita, todavia o que os aproximava, além das ações de desquite impetradas
nas décadas iniciais dos novecentos? Etelvina e Raymundo, após sobressaltos e
desventuras no consórcio, retornaram à casa dos pais, estratégia freqüente ao tempo do
matrimônio malogrado, assim como na duração da vida em casal, enfatize-se. A rigor, a
residência dos pais, de amigos, de tios era utilizada para se alojar sozinho após
experiências a dois, com amantes ou com esposas. Mulher sem esposo, homem sem
382
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundo Nonnato de Siqueira contra Estellita Monica de
Assis, 1921.
271
mulher, filhos sem pai, avós sem o genro, em suma, ao se quebrarem elos de sustentação
familiar a sobrevivência tornava-se bem mais difícil.
Em 12 de agosto de 1938, “O Estado do Pará” noticiava o caso de Pedro
Belfort, paraense, pardo, servente de pedreiro, 21 anos, morador da Rua dos Pariquis, 375,
casado havia cinco meses com dona Maria de Nazareth Belfort. A reportagem policial
afirmava que o marido espancava a esposa, no entanto a senhora Hilda Amaral, dona e
também residente na casa da Rua dos Pariquis, achou por bem dar queixa no Posto Policial
da Batista Campos contra o sobrinho Pedro Belfort.
383
Hilda era a proprietária da
residência onde o sobrinho morava com a mulher e desta forma vislumbra-se novamente
outro rearranjo de moradia: um parente dava acolhimento a uma jovem família. Apreende-
se como o privado se transformava em público, isto é, ao se chegar a estágios indesejáveis
da vida cotidiana, parentes, cônjuges, consortes, amásios, ex-amásios publicizavam o seu
dia-a-dia, o que possibilitou levantar problemáticas da vida dos que se uniam e se
separavam. De qualquer forma, elaborar lógicas na ordem do morar apresentava-se
conveniente e de suma importância ao prosseguimento e à formação dos elos de amizade,
assim as habitações de parentes, amigos e pais visitavam-se, ocupavam-se, e com
recorrência muitas vezes este palestrar não se restringia a algumas horas e palavras e sim a
uma vida inteira ou até que os interesses do momento fossem contemplados.
O caso do senhor Abraham Benoliel, auxiliar de carteiro dos Correios,
publicizado em 19 de agosto de 1922 no periódico “A Província do Pará”, ajuda nas
questões sinalizadas. Leia-se o excerto seguinte: “ha muito vinha insistindo com um seu
amigo, residente á rua Caetano Rufino, para que este consentisse que elle fosse morar em
sua companhia pagando a metade do aluguel da casa”, Benoliel tanto insistiu que seu
amigo aceitou sua morada desde que dividissem as despesas do aluguel em partes iguais. O
novo morador, com o passar do tempo, utilizava a residência para promover encontros
amorosos com uma mulher chamada Thereza, de 19 anos de idade, residente na Travessa
São Matheus e “ao ser chamado á Policia, declarou cynicamente não querer casar para não
dar desgostos á sua velha mãe ! ...”
384
Abraham Benoliel trabalhava e tinha parentes,
entretanto preferiu por razões que escapam mas provavelmente financeiras morar com
um amigo, dividindo aluguel na Rua Caetano Rufino.
383
“O Estado do Pará”. Belém, 12 de agosto de 1938, p. 03.
384
“A Província do Pará”. Belém, 19 de agosto de 1922, p. 02.
272
Retomam-se partes da ruptura conjugal havida entre José Chagas de Oliveira e
Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira, analisada em páginas passadas, porém numa
outra visão.
385
Tratava-se de processo litigioso transformado posteriormente em amigável
no qual, em 07 de novembro de 1936, o juiz Mauricio Cordovil Pinto emitiu
documento intitulado “Mandado de intimação de separação de corpos com direito a
alimento e deposito pessoal”, onde afirmava: “a separação dos corpos; o podendo, pois,
a mesma dona Felicidade da Conceição Salgado de Oliveira, permanecer no lar de seu
casal, desde o momento da intimação, devendo, acompanhada dos mesmos officiaes,
seguir para a residencia de sua genitora dona Maria Luiza da Conceição, onde ficará
depositada até final determinação judiciaria”. As relações conjugais estavam terminadas e
a esposa voltava à residência da genitora, porém que representações permeavam a
mentalidade e a experiência dos agentes envolvidos? Seria ingenuidade pensar os
problemas circunscritos somente à consorte, pois como será interpretado no item Função
social da vizinhança”, boa parte da família, assim como dos vizinhos e amigos envolviam-
se de forma direta ou indireta nas tensões centrais do drama; uma vez mais enfatiza-se que
o separar-se nunca foi algo simples. Por exemplo, Felicidade era devolvida à mãe de modo
pouco honroso, um casamento de cerca de 13 anos malograra-se e pior, a esposa voltava
à casa da genitora entregue judicialmente. Certamente esta combinação mostrava-se
indesejável à família, pois demasiado perigoso seria afirmar que os braços de sua mãe
estavam abertos para aceitá-la sem nenhuma ressalva; dessa maneira, os indivíduos são o
que lhes permitam que sejam, tanto em sua época quando no meio social.
386
Aqui então
faz-se necessário apreender o casamento como portador de limites, que se não fossem
esgrimidos nas experiências cotidianas, tomariam rumos irreversíveis.
Mas como os envolvidos se sentiram ao ver, 13 anos depois, Felicidade voltar
ao lar materno? No documento intitulado “auto de deposito”, 07 de novembro de 1936,
encontra-se o teor seguinte: “nesta cidade de Belém Capital do Estado do Pará, na casa
numero cento e vinte e tres da Avenida Cypriano Santos onde compareci eu official de
justiça no fim assignado em cumprimento do mandado junto passado a requerimento de
José Chagas de Oliveira ahi fiz deposito de dona Felicidade da Conceição Salgado de
Oliveira em poder de sua genitora residente na aludida casa dona Maria Luiza da
385
Auto civil de desquite litigioso impetrado por JoChagas de Oliveira contra Felicidade da Conceição
Salgado de Oliveira, 1936.
386
LEBVRE, Lucien. História. São Paulo: Ática, 1978.
273
Conceição que a recebeu e por não poder escrever pediu a sua filha Nathalia da Conceição
Salgado que a seu rogo este auto assignasse”. Mãe e irmã receberam Felicidade com
reservas, porquanto tratava-se do fim do casamento e não de um contrato qualquer; desta
maneira, mesmo malsucedida, mesmo pensando-se ser a separação a melhor solução, o
desquite vertia muitos problemas entre eles o da morada dos consortes depois da ruptura.
Ao se pensar que a desquitanda foi entregue pelas mãos do Oficial de Justiça à genitora,
Maria Luiza da Conceição, e que esta pediu à filha, Nathalia, que assinasse o auto de
depósito é imperativo apreender que constrangimentos sérios envolveram – pelo menos no
que deixa perceber o documento – três membros da família.
Seria incoerente entender a assinatura do traslado da posse como algo natural,
pois quando da celebração do casamento, em nenhum momento se pensou no seu final
através de processo de desquite e sim por morte de um dos consortes [até que a morte os
separasse]. Contudo treze anos depois devolvia-se uma filha à mãe juntamente com uma
neta de mesma idade (13 anos), Raymunda Nazareth. À data do auto de depósito foi
certamente difícil a Felicidade transpor a soleira da casa materna bem como a Maria Luiza
da Conceição ver a filha naquela situação ou mesmo compreender os passos do consórcio
malogrado na sala de sua casa. Recuperar a posse [da filha] sob tais circunstâncias era
terrível, porquanto tratava-se de matrimônio frustrado o que exigia explicações aos
familiares, amigos e vizinhos curiosos; como considerou Arlette Farge, a família jamais
deve ser entendida como um núcleo isolado da sociedade; ela “faz” a sociedade e por isso
existem intercâmbios nestas dinâmicas e algumas das suas estruturas sempre estarão
expostas.
387
Da vida conjugal iniciada em 23 de dezembro de 1908 e que também não
chegou aos ideais desejados [convivência imoderada sob o mesmo teto e separação
somente por meio da morte de um dos consortes], mas através de uma ação de desquite
litigiosa e conseqüente acolhimento da consorte na casa de parentes, foi o de Galdino Luiz
Nunes, 33 anos, Tenente do Corpo da Brigada Militar, pernambucano, com Olindina
Amelia Collares, 25 anos, dedicada a serviços domésticos, cearense.
388
Segundo as
argüições do exeqüente e de seu advogado, Casemiro Gomes da Silva, a ré, em meados de
387
FARGE, Arlette. “A comunidade, o Estado e a família. Trajetórias e tensões: famílias. A honra e o sigilo”.
In: ARIÈS, Philippe & CHARTIER, Roger. (Orgs.). História da vida privada: da Renascença ao Século das
Luzes. Vol. III. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 581 / 617.
388
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Galdino Luiz Nunes contra Olindina Amelia Collares, 1917.
274
março de 1915, alegando total incompatibilidade de gênios veio a abandonar o lar
doméstico, indo residir em companhia de seus familiares.
Outro casamento, todavia celebrado em 17 de abril de 1937, que do mesmo
modo chegou à casa do pai da mulher, foi o de Geraldina Braga de Aguiar Angelim,
brasileira, dedicada a serviços domésticos com Manoel Andrade Angelim, brasileiro,
empregado no comércio. Esta interpretação tornou-se possível por meio do processo de
desquite litigioso impetrado pela esposa, onde acusava o marido de injúria grave e
abandono voluntário do lar conjugal por dois anos contínuos. Depois do enlace, os
consortes passaram a residir em companhia dos genitores da exeqüente à Rua Padre
Prudêncio, 482.
389
Uma das diversas acusações lançadas sobre o suplicado concentrava-se
em ter ele conduzido infortúnios ao matrimônio chegando diariamente embriagado à
residência do sogro, ações promovedoras de rixas e discussões bem como pouco honrosas
a Geraldina. Apreende-se que as tensões indicadas nos autos tiveram como palco a
habitação do pai da autora que certamente saía em defesa da filha, o que ajudava a
aprofundar rancores entre os membros da família.
A casa era ao mesmo tempo uma estrutura e uma relação que tinha o poder de
produzir forças materiais resultantes de formas diferenciadas de vivência; isto acontecia
quando os moradores resistiam a imposições e quando se impunham por meio de
incorporações e absorções de hábitos, costumes e valores no interior do lar, ou seja, o
modo como as pessoas se relacionavam com a casa assim como com os que a habitavam
era de suma importância à definição das dinâmicas em seu interior. As multiplicidades nas
estratégias do morar eram assim inúmeras bem como as combinações de quereres nos
interstícios da moradia: nas residências dos pais, amigos e sogros agregavam-se homens
com suas esposas-amantes-filhos, desquitados (as) e desquitandos (as) com seus filhos,
homens e mulheres sem companheiros (as), mulheres abandonadas com a sua prole,
homens abandonados com os seus filhos, filhos abandonados pelos pais, enfim, as
combinações encontradas na Belém e certamente em outras partes do Brasil
novecentista
390
são múltiplas e de uma forma ou outra traduziam experiências repletas de
marcas acumuladas no decorrer da vida conjugal cotidiana, isto é, ao se percorrer as
389
Auto civil de desquite litigioso impetrado por dona Geraldina Braga de Aguiar Angelim contra Manoel
Andrade de Angelim, 1941.
390
SCOTT, Ana Sílvia. “Apaixonando a metrópole da colônia: família, concubinato e ilegitimidade no
Nordeste Português (séculos XVIII e XIX)”. In: Anais do XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais. Ouro Preto, novembro, 2002.
275
combinações do viver e conviver em família nota-se como as pessoas buscavam adequar-
se às lógicas de onde entravam, mas também as influenciavam ao levarem tensões e
problemas consigo.
A rigor não se deve pensar as reordenações analisadas como espaços de mão
única; com efeito, residir em grupo deve ser entendido como expressão de fluxos e
refluxos do dia-a-dia que se formavam em tradutores de intrigas entre as partes envolvidas.
Em suma, no bojo da cidade de Belém, as residências de parentes e amigos
transformavam-se freqüentemente em pouso dos que se casavam, dos que se separavam,
bem como dos amasiados. Assinale-se que morar sob o teto de outro transformava-se em
jogo que, se mal articulado, acabaria por malograr qualquer possibilidade de convivência.
Familiares, amigos e vizinhos traziam tensões à vivência sob o mesmo teto,
desta forma percorra-se mais este caminho.
3. FUNÇÃO SOCIAL DA VIZINHANÇA
“A vida do homenzinho, naquella rua apertada do suburbio,
era falar mal de todo mundo, principalmente dos casados,
que não escapavam dos seus comentarios venenosos. O
pessoal já tinha verdadeiro pavor da língua delle, mas o
tratava com toda a consideração, com receio de incidir na
sua offensiva perigosa. Todas as manhãs, era elle o primeiro
que abria a porta para contar tudo o que se passara na rua
inteira tim-tim por tim-tim dos passos da vizinhança (...)”.
(Lindolpho Mesquita vulgo Vicente. Histórias do meu
subúrbio: crônicas humorísticas, 1941, pp. 32 / 34)
Vizinho, no sentido lato da palavra, seria quem morasse à direita e esquerda ou,
no caso de prédios, também acima e abaixo de determinada pessoa ou família. Mas é
comum que o termo se amplie num entorno mais abrangente, qual seja o de uma travessa,
quadra, vila. Mas diante de pessoas expressivamente diferentes entre si, quem poderia
constituir-se como tal? Parentes, amigos, colegas e conhecidos próximos, com interesses e
desejos distintos e profissões igualmente diferentes, como pedreiros, magarefes,
empregados da limpeza pública e comércio, motoristas, embarcadiços, alfaiates, carreteiros
e tantos outros, podem caracterizar uma pequena parte da vizinhança; aliás estas eram as
combinações que apareciam nos processos de desquite, matérias e crônicas jornalísticas da
276
cidade de Belém. Ela [a vizinhança] aspirava constituir-se enquanto bloco moral de táticas
e códigos que definiam conforme a exigência solicitada em cada momento histórico.
Entretanto a observar que, mesmo nessa multiplicidade, mantinham-se relações
amigáveis bem como desacertos que comumente se formam entre pessoas, ou seja,
ninguém escapava dos palpites e observações sobre a vida dos seus iguais. Desse modo a
vizinhança pode ser entendida como um censor que impreterivelmente dizia o que achava
da existência do outro em qualquer tempo, inclusive o da celebração do casamento ou
mesmo o da vida sob o mesmo teto, e se envolvia com tal força que por vezes conseguia
decidir a sorte de nubentes e consortes.
Por tudo isso, os noivos jamais eram dados em casamento somente por seus
pais; eram-no também por irmãos, vizinhos, parentes, amigos, enfim pela sociedade que
reforçava o ideal do “até que a morte os separasse”. A considerar-se esta proposição, as
pessoas imiscuíam-se da maneira mais diversa no seio da convivência conjugal bem como
aquando da separação do casal. Muitas vezes a maneira como se geria o matrimônio
ajudava a elaborar parte da opinião e dos rumores públicos, ou seja, estes intercalavam-se
na cotidianidade dos amantes e dependiam do pudor e da decência estabelecidos no seio do
consórcio. Entenda-se pois que os outros ficariam vigilantes acerca do que entendiam ser
normas guardiãs da família e por isso o ato solene sempre seria colocado nos domínios
avaliativos dos seus iguais. Por exemplo, aos homens lembrava-se com freqüência que
eram os provedores; às mulheres, que eram as responsáveis pelo cultivo da paz doméstica:
previdentes diante das finanças e fiéis ao esposo e à família, dentre outras observações.
O problema que se imprime é o de ser o consórcio um instituto regulamentado
conforme as dificuldades existentes ou aparentes, isto é, o que se chama aqui de a função
social da vizinhança” não se circunscrevia a uma amizade sempre estável e inteligível
diante dos constituidores: as dinâmicas internas do matrimônio e os demais membros da
sociedade (entenda-se os que estão fora do núcleo familiar consangüíneo), jamais
deixaram de forjar intermédios e recursos. Estes ângulos ajudam a explicar uma assertiva
localizada em páginas passadas: a de que nenhuma força social é suficientemente forte
para envolver todas as pessoas do ciclo de convivência, sendo impossível a qualquer
família administrar por si os problemas que porventura pudessem surgir. De modo natural,
brechas ficavam expostas e por elas se inseriam pessoas autorizadas ou que entravam por
conta própria tomando determinados papéis que deveriam ser de responsabilidade familiar
e não de domínio público. Estes seriam, em momentos de separações, pensões,
277
investigação de paternidade, as testemunhas, tanto de defesa quanto de acusação. Veja-se o
processo de desquite impetrado por dona Felizmunda Santana Gomes, 22 anos, paraense,
dedicada a prendas domésticas contra Dimas da Annunciação Gomes, 35 anos, cearense,
pedreiro. A razão da ruptura conjugal alegada em juízo foi a de sevícias e injúrias que o réu
aplicava em sua mulher “imoderada e demoradamente”.
391
O depoente constituído pela
queixosa, Taciturno Gonçalves Nunes, 40 anos, cearense, ajudante de pedreiro, sustentava
que, por ser vizinho e amigo lateral, conhecia detalhadamente a vida dos litigantes a ponto
de conseguir ouvir conversas, sussurros amigáveis bem como fortes discussões entre eles.
Nunes compreendia a conduta de Dimas lamentável e afirmava ter sido “padrinho de
casamento da senhora Felizmunda Santana Gomes e não esperava que o casamento
terminasse assim; se ao menos suspeitasse das sucessivas sevícias e injúrias aplicadas à
recatada esposa pelo violento marido, jamais teria consentido as núpcias”. A testemunha
Francisco de Oliveira Silva, 34 anos, paraense, alfaiate, afirmava que também havia
concordado com o casamento da autora juntamente com o pai da noiva e neste sentido
asseverava que “ao ser conforme as núpcias se sentia no dever de defender em juizo a
jovem desquitanda, pois também foi responsável por entregar aquela nubente (à época) nas
mãos do sanguinolento réu” e complementava que se no período do namoro, devidamente
recatado, tivesse suspeitado de que o casamento tornar-se-ia “um poço de infortúnios”,
nunca teria consentido na união. Oswaldo Cicero Cantagalo, 32 anos, empregado na
limpeza pública, expunha que, por ser amigo íntimo e vizinho próximo, as pessoas se
envolviam com o namoro, com o noivado e com o matrimônio e que, por essa
proximidade, muitas vezes a vizinhança tinha força e poder de vetar consórcios, mas que
nas tramas que envolveram o casal Dimas e Felizmunda inexistia quadro para que “nós o
proibíssemos e por isso tambem sou responsavel por suas (de Felizmunda) agruras no lar
domestico”.
Desquitandos e depoentes residiam na Rua Roso Danin. Todos os envolvidos se
conheciam de “longa data”, como é comum nos processos desta natureza, e se por um lado
atenta-se à evidente noção de que se formulavam discursos jurídicos com o objetivo de
livrar a impetrante de qualquer golpe desferido pelo marido, por outro seria ingênuo supor
que tudo fossem estratégias jurídicas, porquanto efetivamente os vizinhos/testemunhas
envolviam-se com o ato do casamento bem como na vida sob o mesmo teto dos consortes.
391
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Felizmunda Santana Gomes contra Dimas da Annunciação
Gomes, 1918.
278
Aliás concebiam muito bem suas funções no bojo dos diálogos que se estabeleciam, ou
seja, compreendiam-se como aspecto concreto de determinações sócio-culturais que
amplamente se interpunham entre marido/mulher. Todas as testemunhas concordaram com
as núpcias entretanto, quando as mesmas “começaram” a desfazer-se [o momento difícil da
separação], viram-se na obrigação moral de defender a jovem mulher que também
consideravam haver entregado ao senhor Dimas. Em outras palavras, em diversas tramas o
vizindário, aquando do casamento, chegava a comparar-se em grau de importância ao
próprio pai da noiva, como afirmava o senhor Francisco de Oliveira Silva, que do mesmo
modo se sentia detentor do poder de autorizar ou vetar o ato solene. O matrimônio ficava
exposto a intermináveis palpites e permissões externas; assim os consortes deveriam ter a
máxima precaução e prudência para que determinadas inserções não atuassem de forma
contrária ao desejado, ainda que se saiba o quanto eram frágeis as tentativas de se murar”
a vida sob o mesmo teto.
A força que a vizinhança poderia impor à vida das pessoas faz-se presente de
modo vivaz no depoimento do senhor Oswaldo Cicero Cantagalo, porquanto o depoente
era firme na noção de que muitas vezes, ao ser vizinho, alcançava-se o estágio de extrema
amizade, o que permitia inserções até no seio dos matrimônios dos amigos; a testemunha ia
ainda um pouco além ao afirmar que a proximidade possuía o poder de vetar pretensões
conjugais; dizia-se também responsável pela infelicidade de Felizmunda, porém acentuava
que na época das núpcias nada indicava que o seu futuro marido transformar-se-ia em um
seviciador. Compreende-se que este e qualquer depoimento foi filtrado pelos
representantes da lei, no entanto e ao mesmo tempo nota-se sua força histórica, ou seja, ao
demonstrar inteligivelmente a influência das pessoas próximas, Cantagalo não falava aos
representantes do direito apenas enquanto íntimo da nubente e depois consorte, mas ao
utilizar a primeira pessoa do plural [nós] indicava que o círculo de amizade que exercia
tal poder era amplo. Em determinados entornos, esses amigos exerciam severa vigilância
que se imprimia no seio da vida em comum, sendo inquestionável que essa assistência
pessoal fez-se presente na vida dos cônjuges em análise, e como demonstrou a historiadora
Michele Perrot, “a vizinhança é simultaneamente cúmplice e hostil”.
392
Em suma,
afirmado, as pessoas dispunham-se sempre a ser testemunhas de acusação e defesa nos
diversos autos, como nos de desquite; assim sendo, manter boa convivência com os que
392
PERROT, Michelle. (Org.). “Os atores: figuras e papéis”. In: História da vida privada: da Revolução
Francesa à Primeira Guerra. Vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 175.
279
residiam perto mostrava-se prudente para que se viabilizassem relações de solidariedade.
Todos os depoentes do caso afirmavam conhecer os consortes de longa data e quanto à
desquitanda eram consoantes em afirmar que, se desconfiassem de qualquer sinal de
“crueldade” do esposo, não teriam “permitido o desposamento”. Entenda-se então que
vizinhos e amigos estabeleciam códigos de decência nos distintos estágios da vida de seus
iguais e fazia-se coerente segui-los para ser bem aceito no círculo em que se convivia e
também para se ter apoio em momentos nevrálgicos (como compreensão e solidariedade
no ato da separação). Os vizinhos, solicitados ou não, estavam em todas as partes da vida
conjugal; serviam para desempenhar tarefas múltiplas como a de testemunhas de acusação
e de defesa nos processos em que eram requestados; eram úteis para o equilíbrio de forças
e tensões contidas no casamento; prestavam serviços de censores no seio da vida
doméstica; e em momento de dificuldade seriam os primeiros a quem se solicitaria socorro.
Do exposto, é possível notar que se fossem estabelecidas boas relações com o vizindário
tudo corria melhor, ou seja, a quantidade e a qualidade dos discursos são bons parâmetros
para se perceber os caminhos percorridos com os moradores do lado e da frente da
residência. O juiz Manoel Maroja Netto, depois de minuciosa análise dos depoimentos,
decretou a separação dos cônjuges.
Outro exemplo da dinâmica dos vizinhos/amigos no seio das famílias é a ação
de desquite impetrado por Georgina Tavares Mendes, 23 anos, paraense, costureira, sabia
ler e escrever, contra Cordopio Santos Mendes, 38 anos, cearense, marítimo, analfabeto. A
acusação que recaía sobre o senhor Cordopio era a de sevícia e injúrias.
393
A testemunha,
Cristóvão Nunes Leão, 44 anos, casado, português, comerciante, asseverava ser padrinho
de batismo e de casamento da exeqüente, que era testemunha ocular do crescimento
pessoal da autora e por isso se sentia responsável pelo bem-estar da agora mulher que
“deixou casar com um desqualificado”. A depoente Maria Santiago Leitão, 45 anos,
casada, dedicada a prendas domésticas, pouco destoava das opiniões oferecidas por Leão à
justiça paraense, porquanto afirmava que se “imaginasse todas as agruras que iria passar a
autora e por ela presenciadas, onde muitas vezes interveio, não teria deixado o casamento
acontecer”. Por seu turno, Joselino Antunes Neves, 47 anos, casado, motorista, assegurava
ser amigo há vários anos da família de Georgina, considerava as sevícias e injúrias
inclassificáveis e afirmava que “se alguma ação sugerisse maus tractos quando eram
393
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Georgina Tavares Mendes contra Cordopio Santos Mendes,
1926.
280
namorados ou nubentes eu com a minha familia não teriamos autorizado o matrimonio”.
Todos os depoimentos eram discursos previamente elaborados com o estrito objetivo de
inocentar ou condenar, no judiciário paraense, determinados movimentos em sociedade dos
réus e autores, mas também se deve ter a noção de que a vizinhança era portadora de tal
poder de influência a ponto de entender que poderia” vetar e autorizar as núpcias de
pessoas próximas. Reforça-se assim a idéia de que entre ela orquestravam-se jogos sociais
onde existiam códigos e normas a serem seguidas, pois em vários casos a área de amizade
bem como os laços pessoais de confiança fundiam-se a parentescos e a dívidas
sentimentais de anos a fio; assim repetidamente encontravam-se pessoas que entendiam ser
sua obrigação observar e envolver-se de alguma forma na vida dos moradores próximos.
Ao analisar profundamente as versões dos fatos, o juiz Mauricio Cordovil Pinto decretou a
separação dos envolvidos.
O processo de desquite em que Marinor Santiago Boiúna, 24 anos, prendas
domésticas, paraense, alfabetizada acusava de sevícias e injúrias o marido, Jaime do
Amaral Boiúna, 40 anos, pedreiro, pernambucano, analfabeto é instigante porque as
testemunhas de acusação e defesa (todos vizinhos de longa data) de modo curioso e
contraditório colocaram-se contrárias ao réu.
394
Por exemplo, a testemunha constituída pelo
impetrado, Gabriel Santana Martins, 34 anos, paraense, pedreiro, em certa altura de suas
considerações afirmava que “se suspeitasse que o réu iria se transformar em péssimo
marido não teria deixado o casamento acontecer”, uma vez que conhecia de data muito
antiga a família da autora e sabia ser Marinor pessoa digna de respeito. Dorivaldo Vivaldo
Gonçalves, 30 anos, paraense, marítimo, outra testemunha de defesa, considerava-se total
responsável pela impetrante por ter sido o seu padrinho de batismo, compadre de seu velho
pai e por ter sido convidado como testemunha para a celebração do casamento dos agora
desquitandos; um pouco mais à frente narrou ao escrivão que, mesmo vigiando
“consistentemente” a vida sob o mesmo teto dos seus pares, não suspeitava das constantes
ofensas, sevícias e injúrias que o u impingia à consorte e se o soubesse, ele mesmo teria
ido à delegacia denunciá-lo. Se até as testemunhas de defesa do u confirmavam os maus-
tratos sofridos pela exeqüente da ação de desquite, torna-se desnecessário expor os
argumentos das testemunhas constituídas pela autora; talvez apenas considerar que todas
eram consoantes na afirmativa que, sendo suas vizinhas de longa data, jamais a teriam
394
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Marinor Santiago Boiúna contra Jaime do Amaral Boiúna,
1920.
281
deixado chegar ao casamento se suspeitassem que sevícias transformar-se-iam na tônica de
convivência do lar conjugal. As tramas ocorridas no bojo do processo impetrado pela
senhora Marinor são absolutamente diferentes, porque indistintamente todas as
testemunhas arroladas se auto-definiram amigos (as) dos consortes, assim como se
sentiram na condição moral de defender a impetrante não exatamente na condição de
testemunhas, mas também na de “vizinhos fronteiros”, “vizinhos de parede”, “vizinhos de
fundo”, “vizinhos de uma quadra” ou “vizinhos de cortina”. Nesta mesma trama, a
testemunha de acusação Josberto Dagoberto Nascimento, 32 anos, paraense, casado,
pedreiro, alfabetizado, confirmava diante do judiciário que sempre havia sido contrário ao
matrimônio dos agora desquitantes, porquanto entendia que o senhor Boiúna não
apresentava os pré-requisitos mínimos que indicassem poder sustentar convenientemente
uma família, além de ser público e notório as suas constantes farras nos botequins de
Belém. O depoente também argumentava em juízo que meses antes do consórcio chamou
em particular os pais da noiva bem como a própria para se posicionar contrário ao enlace,
que percebia pouco durável. Neste caso, mais uma vez, o juiz Maurício Cordovil Pinto
posicionava-se favorável ao desquite.
Nesta mesma linha de raciocínio, é de suma importância compreender que a
vigilância elaborada pelos vizinhos fazia-se sentir de modo incisivo entre os que
namoravam, nubentes e homens/mulheres casados. Aliás, este era o preço a ser pago por
aqueles que decidissem pelas núpcias, sendo que tal ideário está sobejamente nas
argumentações dos processos de desquite, matérias e crônicas jornalísticas, que em muito
se detinham sobre a circularidade da vizinhança no dia-a-dia dos conhecidos e claro, nos
seus casamentos. Com isso eram comuns denúncias de que o falar da vida do vizinho
fronteiro era verdadeira profissão para alguns homens e mulheres de Belém, mas também
indicam os documentos que se corria perigo quando a preocupação se tornava demais,
porquanto freqüentemente esquecia-se da própria vida que igualmente desmoronava.
395
Os depoimentos até aqui interpretados caracterizam as influências e densas
inserções que a vizinhança desempenhava na vida cotidiana daqueles que viviam sob um
mesmo teto, mas a tese de que o vizindário achava dispor da força de autorizar e vetar um
matrimônio, vigiar e controlar os consortes, não foi notada somente quando as mulheres
impetravam ação de desquite; os homens, quando exeqüentes, fizeram suas testemunhas
395
Lindolpho Mesquita – vulgo Zé Vicente. Histórias do meu subúrbio: crônicas humorísticas, 1941, pp. 32 /
34.
282
valerem-se dos mesmos artifícios. Em 1927, Lindolpho Dantas Oliveira, 27 anos, paraense,
comerciante, sabia ler e escrever, impetrou auto de desquite contra Francisquinha Lemos
Oliveira, 24 anos, paraense, dedicada a prendas domésticas, analfabeta. A acusação do
senhor Oliveira era a de práticas adúlteras.
396
O depoente, João Alfredo Cunha, 60 anos,
casado, cearense, pedreiro, analfabeto, afirmava ser vizinho de parede dos consortes e em
juízo dava a versão da vida cotidiana dos cônjuges da seguinte forma: “vi o impetrante
nascer, acompanhei o seu desenvolvimento, sou padrinho de batismo do autor e também
padrinho de casamento, convivi por anos com este menino. Com toda essa proximidade
tinha absoluta força de impedir aquele casamento, mas nada indicava que o mesmo
terminaria em chifre”. Ângelo Vasconcelos, 69 anos, casado, pernambucano, alfaiate,
alfabetizado assegurava que, por ser vizinho há mais de quarenta anos da família do
impetrante, conversou variadas vezes com o nubente Lindolpho a respeito da
inconsistência da noiva e conseguiu cancelar o casamento por 28 meses, contudo quando
os desquitantes resolveram pelo matrimônio, o senhor Ângelo estava ausente da capital
paraense e afirmava ter sido por esta razão que o casamento aconteceu, pois o havia
impedido várias outras vezes. Neste caso a sentença oferecida por Mauricio Cordovil Pinto
foi favorável à separação.
Com esta combinação de argumentos foram localizados mais dois autos. O
primeiro data de 1931 e foi impetrado por Diogo Santiago, 29 anos, paraibano, carpinteiro
contra Edith Santiago, 22 anos, paraense, prendas domésticas. A acusação que recaía sobre
a era a de repetidos adultérios.
397
A testemunha Genivalda da Anunciação, 70 anos,
cearense, prendas domésticas considerava que, por ser vizinha fronteira e por ter realizado
o parto do impetrante, dispunha de larga intimidade com Diogo bem como com toda a sua
família assim, ainda no tempo do namoro, confirmava ter-lhe recomendado que não se
casasse com Edith, uma vez que havia observado movimentos suspeitos da “moça”. Dona
Genivalda tornava público que por inúmeras vezes fez o autor terminar o namoro e o
noivado, mas em uma das suas inúmeras viagens a Fortaleza, o desquitante saiu de sua
vigilância, consumando casamento com a adúltera. O depoimento de dona Estácia Duarte
Loredo, 61 anos, paraense, dedicada ao lar, analfabeta, não destoava do prestado por
Genivalda. Esta considerava que exigiu diversas vezes de Diogo o término do infrutífero
396
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Lindolpho Dantas Oliveira contra Francisquinha Lemos
Oliveira, 1927.
397
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Diogo Santiago contra Edith Santiago, 1931.
283
romance com Edith, determinação seguida pelo exeqüente; entretanto, estando em Cametá,
“Diogo casou-se com quem lhe impôs incontáveis chifres”. Um pouco mais à frente,
asseverava que o autor da ação somente entrou com o pedido de separação de corpos e
bens, porque “eu lhe contei tudo acerca dos repetidos adultérios de sua mulher; elle casou
mas eu estou lhe ajudando a descasar”. Depois de ouvir as testemunhas mais uma vez
Mauricio Cordovil Pinto decretava outra separação de corpos e bens.
O outro caso é o processo de desquite litigioso impetrado por Francisco Silva e
Silva contra Felizbela Alacide Silva, em 1934. O exeqüente, 23 anos, paraense, carpinteiro,
sabia assinar o nome; por seu turno, a contava 21 anos, paraense, dedicada a serviços
domésticos, alfabetizada. A acusação que pesava sobre a mulher era a de adultério.
398
As
cinco testemunhas constituídas pelo impetrante recomendavam ao judiciário a condenação
da impetrada e se auto-definiam como “vizinhas de próximas intimidades” do casal assim
como da família do autor. Todos os depoentes afirmavam que nunca desconfiaram de
possíveis adultérios da senhora Felizbela, mas se tivessem notado algum movimento
suspeito jamais teriam permitido o consórcio. Um dos depoentes, João da Annunciação, 59
anos, paraense, carpinteiro, analfabeto, dava a seguinte versão: “nós teríamos toda força
moral para impedir o casamento desta desonrada com o menino que vi nascer”, um pouco
mais adiante considerava que “nós não impedimos o desastroso consórcio, mas estamos
ajudando a desfaze-lo”. Neste depoimento, novamente, nota-se a presença do pronome
pessoal da primeira pessoa do plural, nós, e o mesmo jamais deve ser compreendido como
termo localizado vagamente no interior das palavras do senhor Annunciação, ou seja, ele e
as demais testemunhas compreendiam muito bem a força dos jogos que conseguiam
elaborar no bojo da vida de pessoas que interpretavam ser seus amigos de longa data, aliás
as coisas se confundiam” com bastante rapidez, isto é, o ser amigo vários anos parecia
autorizar inserções na vida íntima dos iguais. Raul da Costa Braga, juiz do litígio, decretou
a ruptura conjugal.
Também se deve observar que variados discursos aproximavam os
vizinhos/testemunhas dos consortes, aliás aqueles possuíam praticamente uma “mesma
linha” argumentativa: eram conhecidos há vários anos; era indiscutível o proceder da
desquitanda como mãe de família e esposa esmerada; o marido sempre se apresentou como
exímio provedor, jamais deixando faltar qualquer tipo de sustento à ordem familiar
398
Autos civis de desquite litigioso impetrado por Francisco Silva e Silva contra Felizbela Alacide Silva,
1934.
284
constituída; porém, de todas as argumentações, a que mais chamou atenção foi a da
máxima dramatização que os vizinhos/testemunhas realizavam para ajudar a inocentar ou a
condenar os consortes envolvidos em questões conjugais. Quando se dedicavam a defender
uma esposa, lançavam mão das “supostas” condições sentimentais pelas quais as mulheres
tinham que passar; assim sendo eram comuns termos como “ella ficou a cara da solidão
depois das surras demoradas que iniciavam ao meio dia e terminavam com o pôr-do-sol”,
“o seu coração ficou como um deserto depois das surras que levava o dia inteiro”, “ella
apanhava tanto que a sua alma saia de seu corpo”, “as surras eram tão intensas que as
velhas paredes de tijolo tremiam”. Quando a tarefa era a da defesa de um homem,
despreocupados exageros, usos de conveniências sociais e diálogos com a intimidade dos
desquitandos eram usados pelas testemunhas: “elle era exemplarmente dedicado á familia,
tanto que possuia apenas uma amante”, “ter amantes é natural, mas o senhor Dimas tinha
apenas uma verdadeira mulher, a sua esposa”, dedicava-se integralmente aos recônditos
do lar tanto que era um inquestionável provedor”, “variadas mulheres sempre o procuraram
se oferecendo, mas sempre se recusou a constituir amante”, “elle sempre apanhou
caladamente da megera que é a sua mulher”. Diversas eram as versões apresentadas pelas
testemunhas nos processos de desquite, os argumentos passavam por metáforas como a
existência de surras que duravam o dia inteiro, a confirmação de amantes constituídas
pelos maridos, bem como o uso exacerbado da tese de que todos os maridos mostravam-se
bons provedores do lar doméstico. Em boa parte dos autos analisados as testemunhas são
claramente simpáticas àqueles que estão defendendo, todavia em diversos depoimentos
também se nota que se apoiavam em exagerados argumentos que confirmavam a presença
de amantes entre marido e mulher, bem como havia as que mais ajudavam os que se
encontravam do lado oposto da ação.
Seria desgastante continuar expondo os muitos exemplos encontrados nos
documentos coligidos que discorrem a respeito da função da vizinhança no casamento, ou
seja, de que a bênção das núpcias estava muito além da anuência dos pais da noiva e do
noivo, uma vez que também os conhecidos “agregavam” aos pretendentes à vida sob o
mesmo teto a esperança que a separação ocorresse somente por meio da morte de um dos
cônjuges; porém quando esse ideal se mostrava difícil, os vizinhos sempre se dispunham a
servir de testemunhas de acusação ou defesa. De tal sorte, o importante a notar é que os
moradores da vizinhança realizavam o exercício coletivo da preocupação coerente ou não,
coercitiva ou de cumplicidade com aqueles que se encontravam próximos, motivo pelo
285
qual eram recorrentemente acusados de bisbilhotar tudo e nada deixar escapar. Isto
acontecia porque definiam amplos círculos que se complementavam com muita
competência conforme as necessidades de cada um, segundo o princípio que o intercâmbio
entre as pessoas fosse um bem ao seu “igual” e que assim deveriam proteger-se
mutuamente, fazendo romper os parênteses do que deveria permanecer sob sigilo, o que
muitas vezes não interditava a intimidade nem tampouco a confiança entre os membros do
círculo social. Muito embora fosse prodigiosa [em alguns casos] a eficácia com que a
vizinhança se apresentava nas instâncias da vida dos seus conhecidos, mesmo observando
ampla dialética da solidariedade nos tempos difíceis bem como nos de felicidade, jamais se
deve concluir que os rituais constitutivos desses laços tenham sido sempre pautadas sem
lutas, sabia-se muito bem impor mediações entre os seus pares, porquanto os laços pessoais
de confiança não eram indissolúveis.
399
Daí que vivências e longas proximidades entre
vizinhos e consortes possibilitavam declarações de respeito, consideração, bem como
cobranças e coerções sobre aqueles com quem se tinha empatia; desta maneira, tal
contigüidade entre pessoas que se conheciam de “tempos imemoriais” “facilitava” as
liberdades e os isolamentos no seio do círculo social. Quando a vizinhança não era
chamada a manter-se em certos espaços, passava a dispor de manobras altamente flexíveis
o que lhe permitia freqüentemente impor posicionamentos e opiniões além de definir
normas e papéis entendidos moralmente como corretos. Tais movimentos delimitavam
clivagens e confluências no seio da vida cotidiana; em suma, da vizinhança pouco ou nada
escapava: os comentários da vida particular, as tensas discussões, adultérios, ser péssimo
ou bom provedor, ser boa ou má mulher, coisa alguma era ignorada ou passava às
margens da vizinhança/testemunha; o anonimato era praticamente inexistente. Deste
modo, aqueles que se achavam capazes de movimentar-se com certa discrição neste terreno
deveriam em primeiro lugar vigiar-se e cercarem-se de precauções para não ser alvo dos
comentários alheios. Considerando os argumentos nesta linha de raciocínio nota-se que os
jogos e exercícios de poder jamais cessavam, tanto que a vizinhança e os consortes sempre
se encontravam em uma pluralidade de opiniões que emitia forças para todos os lados.
Estes posicionamentos conseguem explicar de maneira inteligível o que vem a ser
“Territorialidade dos sentimentos e das junções políticas familiares”.
399
A este respeito veja-se o litígio havido entre Francisco Silva e Silva e Felizbela Alacide Silva, 1934.
286
O que se deseja afirmar é que a vida conjugal de Francisco Silva e Silva x
Felizbela Alacide Silva, Diogo Santiago x Edith Santiago, Marinor Santiago Boiúna x
Jaime do Amaral Boiúna, Georgina Tavares Mendes x Cordopio Santos Mendes,
Felizmunda Santana Gomes x Dimas da Annunciação e tantos outros sempre esteve
organizada sob os aspectos da representação dos significados do seria correto social e
moralmente na opinião dos que se posicionavam entre os casais.
Finalmente as dificuldades pecuniárias à manutenção de um núcleo familiar ou
amásio consistente.
4. CIDADE, CUSTO DE VIDA E FAMÍLIA
“Foi na quietude dulcissima das alamedas umbrosas, entre o leve
ciciar da aragem sobre a romaria verde, que me lembraste a
inconveniencia do casamento”.
(“A Província do Pará”. Belém, 16 de setembro de 1924, p. 01)
Em 1924 todos sentiam as dificuldades que Belém atravessava: Igreja Católica,
Estado, Intendência, chefes de família, namorados (as), nubentes, casados (as),
desquitados (as), amasiados (as), concubinados (as), jornalistas, sabiam muito bem da
temeridade que era formar e sustentar uma família nas décadas iniciais novecentistas. A
epígrafe reconhecia as núpcias como grande inconveniência e no decorrer da matéria o
articulista o definia tão somente como idealização da mulher. O profissional das letras
jornalísticas, ao procurar categorizar tais idéias acerca do ato solene, afirmava ter receio de
que a mulher com as suas idealizações não encontrasse “um homem, verdadeiramente
homem para mantê-la nesse doce e encantador bem estar que toda mulher que tem “alma
de sêda” idealiza”. Interpretava-se que encontrar um homem disposto ao matrimônio e ao
mesmo tempo capaz de sustentar uma família era tarefa árdua, porque as condições
materiais, como será interpretado, impossibilitavam tal empreendimento. Um pouco mais à
frente, o autor da epígrafe assegurava que “a conquista de um marido ideal nestes tempos é
a mais cruel missão da mulher”.
400
Lembra-se que para elas, segundo o articulista, o
casamento ideal incluía o sustento sócio-econômico, o apoio financeiro da família;
contudo, nas primeiras décadas do século XX, este pré-requisito mostrava-se raro na
400
“A Província do Pará”. Belém, 16 de setembro de 1924, p. 01.
287
capital paraense, visto que os problemas frente à economia, postos de trabalho, habitação
eram acentuados o que provocava adiamento de consórcios e mesmo desestruturas
familiares.
Nossa conhecida Laura garantia que nas primeiras décadas do século XX a
cidade era um caos em todos os aspectos: desemprego, saúde, limpeza, transporte, sendo
que estes ângulos influenciavam a todos. A situação em que Belém se encontrava “assim
como o Estado inteiro; toda familia paraense vive com as maiores dificuldades; a
belenense está sofrendo barbaramente; familias inteiras estão se separando em decorrencia
do desemprego acentuado em nossa querida capital e por não ter onde morar; moças estão
ficando por casar em virtude de impossibilidades economicas dos companheiros honrarem
o compromisso do sustento do lar”.
401
Oferecia-se a impressão de urbe peculiar, distante,
nem tanto cronológica mas economicamente, das representações da Belle-Époque de parte
do século XIX, porquanto nas primeiras décadas novecentistas a cidade havia perdido a
força econômica do século anterior;
402
assim os efeitos econômicos faziam-se presentes e
vinham à tona com bastante força, o que afetava as finanças da Intendência e as do Estado.
Sobram indícios bastantes de que o momento era penoso para se constituir família e mantê-
la convenientemente, tanto que a autora observava saber de notícias de lares que se
desfaziam em virtude da “inexistência” de ocupação remunerada e de habitação, bem
como de nubentes que adiaram as núpcias em virtude de falta de recursos. se analisaram
os posicionamentos de Laura acerca das dificuldades de um casal em se manter
economicamente assim como os problemas da moradia; em suma, a mentalidade desta
personagem entendia que poder sustentar e alojar dignamente [uma família] era essencial à
sua sobrevivência, caso contrário o núcleo corria o perigo de enfraquecimento e
conseqüente separação. A autora, outra vez concentrada nesta linha [casamento e família],
realizava interpretações ao articular os institutos com as dificuldades econômicas pelas
quais passavam o Pará e sua capital. Se por um lado diversos documentos pesquisados,
como os escritos de Laura, processos de desquite, alimentos, paternidade, periódicos
401
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 12 de fevereiro de 1933.
402
Cristina Wolff mostra quanto cuidado deve haver em relação aos domínios da economia gomífera, pois a
Amazônia perde a hegemonia para os seringais asiáticos, nas primeiras cadas do século XX, todavia,
segundo a historiadora, a região não conheceu crise econômica imediata e irremediável; em outras palavras, a
Amazônia ainda viria a dinamizar-se por anos com o referido produto, mas paralelamente elaborando formas
de sustentabilidade construídas por homens, mulheres e crianças que possibilitavam formas diversas de
subsistências. WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história Alto Juruá, Acre (1890 / 1945).
São Paulo: HUCITEC, 1999. Para a Belle-Époque veja-se: CAMPOS, Ipojucan Dias. Repressão, higiene e
disciplina na Belle-Époque belenense (1890 / 1900). Mimeo, 2008.
288
procuravam denotar as complicações em se prover um grupo familiar, por outro é temeroso
deixar às margens a noção de que por diversas vezes estas idéias foram discursos
previamente treinados entre os envolvidos e que em juízo serviam para acusar ou defender
determinada versão dos fatos; de tal sorte, mesmo considerando importantes e ricas suas
letras, seria imprudente omitir certas observações, como por exemplo a concepção de que
em certos casos maridos e amásios se aproveitavam da situação econômica para abandonar
suas companheiras e filhos e constituírem uma outra família.
A este respeito o jornal “A Palavra”, com título “Resultado dos namoros”,
articulava namoro, emprego e a impossibilidade de casamento se não se dispusesse de
vencimentos compatíveis. Então, leia-se o excerto: “Namorava Beatriz com um moço que
tinha um empregosinho. A mãe (não tinha temôr de Deus!) querendo que sua filha casasse
para se livrar do incommodo de a sustentar, deixava-os ambos em casa. Succedeu o que
naturalmente havia de succeder. Commetido o erro, o pae de Beatriz insistia com o moço
para que casasse, mas este respondia invariavelmente que o seu emprego não lhe dava o
bastante para se sustentar a si e a familia. E entretanto pediu transferencia para outra
cidade, e deixou Beatriz entregue ás lagrimas”.
403
nestas articulações pelo menos dois
sentidos: o de expor às famílias o perigo em se deixar à vontade os namorados e o que
aqui mais interessa, o de ser importante ter bom emprego para arcar convenientemente
com as despesas matrimoniais ou da vida sob o mesmo teto. Inquestionavelmente a Igreja
Católica se preocupava com os mais diversos trâmites da vida a dois e os expunha de modo
incisivo à população; neste caso as recomendações giravam em torno da imprudência que
era a celebração do casamento desprovido de bases financeiras, ou seja, para a Instituição,
as núpcias higiênicas também deveriam passar pela mínima possibilidade do sustento
familiar.
404
Conforme o exposto, deseja-se mostrar a dificuldade em sustentar família nas
primeiras décadas do século XX em uma cidade com acentuados problemas econômicos, o
que gerava a pauperização de muitos.
“A mendicancia em Belem”, foi o título da matéria publicada pelo periódico “A
Província do Pará”, que na introdução dizia: “Causa pena senão vexame e magua, a
multidão estropiada de mendigos que transita diariamente pelas principaes e mais
403
“A Palavra”. Belém, 13 de setembro de 1917, p. 01.
404
Em relação aos Protestantes, nada pode ser coligido de forma a permitir expor sua opinião a respeito do
assunto.
289
movimentadas ruas desta capital, de mãos estendidas numa imploração constritadora á
caridade publica”.
405
A presença massiva de “desvalidos” que vagavam diariamente pelas
ruas, dava ensejo a “vexames e goas”, porém o articulista não percebia que ao
“vagarem” implorando a piedade alheia tramavam os seus próprios campos de luta e
sobrevivência, forjando domínios de relações de força e poder. Dois dias depois, em 07 de
julho de 1922, o mesmo jornal sinalizava outras dificuldades financeiras da urbe, ao
afirmar que os salários do funcionalismo público municipal estavam bastante atrasados,
pois a Contadoria da Intendência Municipal de Belém, havia realizado os pagamentos
relativos ao mês de março, em “04 do corrente mez”.
406
Note-se que a matéria era de julho
do mesmo ano.
Mendicância, problemas administrativos e econômicos andavam de mãos dadas
em Belém e deve-se expor que, neste momento histórico, a cidade havia perdido a riqueza
da borracha, sendo necessário forjarem-se outras lógicas de sobrevivência, o que a fez
passar por acentuadas dificuldades econômicas, diz Antônio Rocha Penteado.
407
Nesse
caso o Estado, diante de tais problemas, criou impostos: “Taxa da Caridade” e da
“Saúde”, onde se cobravam cem réis ($100) nos processos de investigação de
paternidade, alimentos e desquite durante as décadas de 1910, 1920, 1930 e 1940. Houve
processos em que se pagou trezentos is ($ 300), mas em outros, mil e trezentos réis (1 $
300); ao se compararem os valores, nota-se discrepância de mais de 400%.
408
Estes
impostos não eram cobrados por ação impetrada e sim por gina, o que levava o valor da
contribuição final a depender da duração do caso. No entanto, gastava-se em média com o
da “Caridade” cerca de dois mil e seiscentos réis (2 $ 600) e com o da “Saúde” trezentos
réis ($ 300), o que totalizava cerca de dois mil e novecentos réis (2 $ 900) por auto.
409
Todavia, como estas taxas eram investidas? Ou melhor, onde o Estado dizia investi-las?
Justificava ser para o socorro dos inúmeros pedintes, mendigos e doentes que transitavam
nas principais ruas e avenidas da capital, visto que se apresentava imprescindível resolver o
405
“A Província do Pará”. Belém, 05 de julho de 1922, p. 01.
406
“A Província do Pará”. Belém, 07 de julho de 1922, p. 02.
407
PENTEADO, Antônio Rocha. Belém do Pará (estudo de geografia urbana). Vol. I. Op, cit. P. 161.
408
As diferenças na cobrança desse imposto aconteciam conforme a longitude dos processos O primeiro
valor é do auto de investigação de paternidade impetrado por Luiza Ramos do Nascimento contra os
herdeiros de Manoel Ramos do Nascimento, 1931. O segundo é do auto de prestação de alimentos impetrado
por Hermirena Nascimento dos Santos contra Francisco Alves dos Santos, 1940.
409
Autos civis de investigação de paternidade impetrado por Doroteia Nascimento Gonçalves contra Aloizio
Vasconcellos Gomes, 1917.
290
incômodo que provocavam aos transeuntes ao abordá-los para suplicar ajuda em plena via
pública. O jornal “A Província do Pará” publicou matéria que expunha onde eram
investidas as taxas: “a) alimentação, vestuario e conforto dos internados no asylo do
Tocunduba; b) tratamento dos doentes pobres no Hospital da Caridade e o enterramento de
indigentes; c) manutenção e sustento de maior numero de desvalidos no Asylo de
Mendicidade”, assim como “aos leprosos” e à Santa Casa de Misericórdia”.
410
As
dificuldades apareciam e traziam lutas expressivas às famílias belenenses, entretanto estes
impostos também devem ser lidos como estratégias que o poder público articulou para
conter e reprimir a multidão de “miseráveis” que enxameava pelas ruas mais
movimentadas, estendendo a mão à caridade dos transeuntes.
Belém era agora mal afamada. Em detalhe, uma parte do quadro foi pintada
pelo periódico carioca, “O Imperial”, da seguinte maneira: “O dinheiro brasileiro
desappareceu, Belém do Pará invadida pelos passes de bondes e vales individuaes, por
falta de dinheiro papel e moeda”. Este era o título de uma matéria editada no Rio de
Janeiro, em 28 de junho de 1938, e reeditada em Belém pelo “O Estado do Pará”, um dia
depois. Analisava-se a ausência de dinheiro na capital, quer se tratasse de papel moeda,
quer moeda divisionária, explicando que esta carência foi substituída, segundo o jornal
carioca, pelos “(...) vales do leiteiro, do pedreiro, do quitandeiro, e todos os demais
commerciantes que tinham em mãos “stocks” de mercadoria (...)”.
411
“O Imperial”
afirmava que o senhor Heitor da Costa Gonçalves, um funcionário da Estrada de Ferro de
Bragança/Belém que residia na capital, havia mostrado à redação “(...) dois dos
“exemplares” de um dos muitos “dinheiros”, em circulação. Tratava-se de passes de
bondes de Belém, da The Pará Electric Railways and Lighting Co. Ltda., de $ 200 cada
um”. Publicizava-se que existiam na capital paraense diversas modalidades de dinheiro e
também é válido pensar que os “dinheiros/vales” não se resumiam ao valor de duzentos
réis ($ 200); existiam outros, conforme as necessidades e os interesses dos comerciantes
que empregavam tais táticas. O jornal concluía a matéria considerando que se tratava “(...)
de um caso para o qual devem voltar as suas vistas as altas autoridades do paiz. Não é na
fronteira do Acre longinquo ou na Fóz do Iguassu. É numa das mais adeantadas e maiores
cidades do Brasil (...)”. Preocupado em analisar intrincados ângulos citadinos, Antônio
Rocha Penteado percebeu que Belém, em 1919, possuía cerca de 200.000 mil habitantes
410
“A Província do Pará”. Belém, 15 de outubro de 1922, p. 01.
411
“O Estado do Pará”. Belém, 29 de junho de 1938, p. 01.
291
distribuídos em diversos bairros.
412
Segundo o autor, a cidade dificilmente poderia ser
agora taxada de decadente, entretanto também reconhecia que nas primeiras décadas do
século XX a “Metrópole da Amazônia” vivia momento delicado de crise econômica
acompanhada de desorganização administrativa, e tal cenário perduraria até à Segunda
Guerra Mundial.
413
Para se perceberem os custos da cidade e conjugá-los às dificuldades em se
sustentar uma família, veja-se como estavam organizados alguns gêneros alimentícios.
TABELA 6
DETERMINADOS GÊNEROS ALIMENTÍCIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XX, 1920
GÊNEROS PREÇOS
1 Kg Arroz De $ 130 a $ 200 réis
Café $ 200 réis
1 Kg Camarão De $ 650 réis a 1 $ 300 réis
1 Kg Carne Bovina 1 $ 400 réis
1 Kg Farinha $ 250 réis
1 Kg Feijão $ 400 réis
1 Kg Milho $ 140 réis
1 Kg Pirarucu De $ 790 a $ 870 réis
Total com os menores preços 3 $ 960 réis
Total com os maiores preços 4 $ 760 réis
Os preços dos gêneros alimentícios foram retirados do periódico “A Província do Pará” de 01 de julho
de 1922, p. 03.
Ao se interpretar os números, nota-se que viver em Belém mostrava-se difícil a
determinados profissionais como pedreiros, leiteiros, carpinteiros, carroceiros, foguistas,
empregados públicos. A cidade passava por contratempos para manter preços favoráveis à
população e gerar empregos; assim sendo havia significativa rotatividade quando se olham
atentamente as profissões e o tempo de permanência em um posto de trabalho, e em
variados processos de provisão, por exemplo o marido, na petição inicial, era descrito
412
Alguns anos depois, 1960, o autor, tomando emprestado dados do IBGE, afirmava que a população da
cidade cresceu para 359. 988 habitantes total que estava distribuída da forma seguinte: Marco, 40.550
habitantes; Umarizal, 33.289; Telégrafo Sem Fio, 30.148; Jurunas, 29.969; Pedreira, 25.619; Guamá, 23.400;
Sacramenta, 20.773; Canudos, 15.686; São Brás, 15.049; Souza, 14.567; Nazaré, 14.307; Cremação, 14.025;
Condor, 12.447; Batista Campos, 12.347; Matinha, 12.273; Cidade Velha, 12.125; Comércio, 11.671;
Marambaia, 10.460; Reduto, 7.073 e Terra Firme, 4.210. Na segunda metade do século XX Belém contava
com 20 bairros e o distrito de Icoaraci, antigo Pinheiro. Veja-se: PENTEADO, Antônio Rocha. Belém do
Pará (estudo de geografia urbana). Vol. II. Belém: Editora da UFPA, 1968, p. 200.
413
PENTEADO. Belém do Pará (estudo de geografia urbana). Vol. I. Op, cit. Pp. 163 e 166.
292
como foguista, depois funcionário público, porém logo a seguir, como ex-funcionário.
Nestas ocasiões seria de fundamental importância manter boas relações familiares e de
amizade, porquanto a mão-de-obra era absolutamente instável, rotativa, flutuante, enfim,
os trabalhadores encontravam-se em estado de trânsito permanente, a instabilidade no
emprego era expressiva provocando rearranjos entre parentes, uma vez que o viver
apresentava-se dependente de estratégias sutis, como já interpretado.
Com efeito, a insegurança da situação forçava homens a executarem
mobilidades geográficas na busca incessante de emprego, o que muitas vezes compelia ao
abandono da esposa e família. Neste sentido, relembrar o caso do senhor Djalma e Etelvina
é novamente importante. O réu partiu para o Sul em busca de emprego e melhor situação
econômica, deixando grávida a esposa em companhia de inúmeros filhos a serem
educados: “João, Eunice, Yolanda, Joaquim, Dilma, Djalma, Dilce, Delcio”.
414
Suportar o
peso da educação dessa extensa prole com certeza era tarefa difícil, porquanto os preços de
alguns alimentos, no início da década de 1930, continuavam elevados, como se pode
observar na tabela seguinte.
TABELA 7
DETERMINADOS GÊNEROS ALIMENTÍCIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XX, 1930
GÊNEROS ANUNCIADOS PREÇOS OFERTADOS
1 Kg 1 / 2 de carne de viração 1 $ 650 mil réis
Café Kg 4 $ 000 mil réis
Pão $ 400 réis
Açúcar moreno Kg $ 400 réis
Açúcar branco Kg $ 760
Farinha Kg $ 200 réis
Feijão Kg $ 350 a $ 700 réis
Arroz Kg $ 220 réis
Milho Kg $ 180 réis
Cação Kg $ 350 réis
Peixe seco Kg 1 $ 000 réis
Pirarucu Kg 1 $ 240 réis
Total 10 $ 750 réis
Os preços dos gêneros alimentícios procederam do jornal “Folha do Norte” seção fixa “Crônica da praça” de
02 de janeiro de 1930, 03 de janeiro de 1930, 15 de junho de 1930, 28 de fevereiro de 1931 e 14 de junho de
1931.
414
Auto civil de desquite litigioso impetrado por dona Etelvina Lopes Bandeira Dias contra Djalma de
Albuquerque Dias, 1946.
293
Desta forma, ao se compararem estes valores com os apresentados no início da
década de 1920 [tabela 6], apreende-se certa estabilidade do gráfico dos custos.
Comparativamente, em 1930 houve elevação de preços entre alguns produtos, porém em
relação a outros constata-se mesmo decréscimo, como é o caso da farinha de mandioca,
gênero básico da alimentação que, em 1920, custava duzentos e cinqüenta réis ($ 250) o
quilo e em 1930, duzentos réis ($ 200). Mesmo com preços relativamente estáveis, ao
compará-los com o salário de um carvoeiro de navio que girava em torno de duzentos e
cinqüenta mil réis, nota-se a dificuldade por que passavam determinados segmentos da
população. O curioso é que estas agruras foram fartamente usadas no Tribunal de Justiça,
veja-se o abandono familiar seguido de impasses financeiros como alegações centrais que
buscaram justificar o processo de desquite entre Djalma e Etelvina. Homens partiam para
outras regiões sob vários pretextos, dentre os quais o de que a cidade era incapaz de
proporcionar meios de subsistência e o de buscar emprego e melhoraria familiar. A este
respeito, no início de 1920, gastava-se com alguns gêneros básicos [tomando como base os
dados da tabela 6] quatro mil setecentos e sessenta réis (4 $ 760); os mesmos víveres no
início da década de 1930, ficavam por sete mil e trezentos réis (7 $ 300) diários. Percebe-
se, nesse caso, um aumento de dois mil quinhentos e quarenta réis (2 $ 540) no período.
Mesmo em outra realidade social, a falta de trabalho na Porto Alegre do início
do século XX, foi preocupação de Cláudia Fonseca.
415
Segundo a historiadora, as pessoas
movimentavam-se de modo constante na busca de melhores condições de vida para si e
família; a pesquisadora demonstra os deslocamentos geográficos na busca de profissão,
isto é, em certa época e lugar era-se pescador, depois operário, a seguir, foguista; tais
mudanças também faziam parte das dinâmicas da cidade de Belém, onde se percebe
significativo movimentar na busca da subsistência, visto que agentes tramavam relações
com o desejo de manter a si e aos seus; existiam porém enfatize-se – os que tomavam as
dificuldades como pretexto para abandonar as suas famílias. A dura busca de emprego
fazia-se sentir no cotidiano, onde o movimentar-se socialmente mostrava-se repleto de
experiências e estratégias como a de “dezenas de homens” que se dirigiam à Central de
Polícia para pedir abrigo na cadeia mas escaparem da prisão por vagabundagem, além de
não serem confundidos com “amigos da coisa alheia”. Estes debates publicaram-se no
periódico “A Palavra” sob o título: “A miseria do povo: actual situação de milhares de
415
FONSECA, Cláudia. “Ser mulher, mãe e pobre”. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.). História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 510 / 553.
294
familias no Pará”. Os que suplicam refúgio na Central de Polícia quasi todos são
operarios sem trabalho, trabalhadores mal remunerados, carreteiros, doentes sem recursos,
ou abandonados á sua triste sorte, homens sem occupação definida e que vivem da
caridade publica, todos sem domicilio, sem meios seguros de subsistência”.
416
Nota-se que
os posicionamentos do articulista do jornal convergem às posturas de Laura quando
escrevia sobre as dificuldades em se conseguir trabalho remunerado na cidade bem como o
problema da habitação que afetava acentuadamente a constituição familiar belenense,
principalmente a dos pobres.
Esta condição jamais foi particularidade de Belém; Alexandre Fortes, para
Porto Alegre, fez atrativo estudo a este respeito. O autor afirma que, nas primeiras décadas
do século XX, os trabalhadores estavam em condições calamitosas decorrentes dos
problemas de abastecimento e especulação dos neros alimentícios ocasionados pela
Primeira Guerra Mundial. A escassez e o custo elevado dos alimentos de primeira
necessidade atingiam diretamente diversos segmentos, mesmo com o Estado promovendo
tentativas de controle sobre a exportação de carne e feijão. As ações estatais mostravam-se
no entanto insuficientes e os operários passaram a organizar-se em assembléias em que
criaram a Liga de Defesa Popular que tinha por objetivo o aumento salarial e também o de
pressionar a queda do custo dos víveres, das passagens e dos aluguéis.
417
Em Belém
também se reivindicava, denunciando na imprensa os exageros dos preços dos aluguéis e
gêneros alimentícios sicos à sobrevivência. Bom exemplo neste sentido foram as
denúncias publicadas no jornal “A Província do Pará” referentes à elevação do custo da
carne verde. A matéria afirmava que “o genero principal de alimentação, que é a carne
verde, soffrerá, de hoje em diante no fornecimento á população o augmento de cem reis
por kilo, ou seja o preço de reis 1 $ 500 ao logar do preço de reis 1 $ 400 ao qual era
vendida até hontem”.
418
Desta maneira a carne de gado, um dos principais produtos
utilizados pela população, vinha sofrendo aumentos constantes e os marchantes
curiosamente afirmavam que a intenção nunca fora a de explorar o povo; ocorria em
virtude da escassez do produto que era “(...) offerecido a $ 700 reis, e as vezes mais, em pé
416
“A Palavra”. Belém, 20 de junho de 1918, p. 02.
417
As reflexões destes períodos tiveram origem dos estudos realizados por: FORTES, Alexandre. “Os
direitos, a lei e a ordem: greves e mobilizações gerais na Porto Alegre da Primeira República”. In: LARA,
Silvia Hunold. & MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. (Orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de
história social. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006, pp. 343 / 378.
418
“A Província do Pará”. Belém, 27 de dezembro de 1924, p. 01.
295
(...)”, a matéria complementava afirmando que os impostos ajudavam no acréscimo do
custo de vida. Destarte, os marchantes buscavam eximir-se de quaisquer responsabilidades
e acusavam os fazendeiros e aqueles que elevavam os impostos: o Estado e a Intendência.
Como se analisou neste capítulo, casados, amasiados, concubinados,
desquitados enfim, parte da população tinha dificuldades quando o assunto era moradia;
por exemplo, o aluguel mais barato encontrado no início do século XX, 1916, foi de trinta
e cinco mil réis (35 $ 000) mensais para casinhas de porta e janella” na Rua Ângelo
Custódio, canto da Rua de Santo Amaro, número 39;
419
no entanto, como se interpretou no
item “Moradia: pais, sogros e amigos”, houve ofertas de aluguéis nas áreas centrais da
cidade que giravam entre trezentos e cinqüenta mil réis e quatrocentos mil réis mensais.
Daí, tendo por base os preços dos alimentos além do dos aluguéis compreende-se por que
homens e mulheres pediam remoção para o Hospital de Caridade, solicitavam ao Chefe de
Polícia dormirem na delegacia e abrigavam-se em residências de parentes. Morar e
alimentar-se eram domínios onerosos a significativa porção da sociedade, e fazia-se
necessário tramar estratégias de sobrevivência para consegui-los.
Assim, de onde provinham as maiores queixas da população belenense? Os
impostos, os aluguéis e a alta dos preços lideravam essas reivindicações. Segmentos da
sociedade [operários, delegados dos bairros e população em geral] fundaram a associação
“Liga da Liberdade” com sede na Travessa do Curro, 16, com função de promover
movimentos contra a alta das mercadorias. A este respeito matéria publicada pelo
periódico “A Província do Pará” asseverava que o povo paraense estaria disposto a
reclamar às autoridades [Governador do Estado, Intendente e Associação Comercial] as
constantes elevações dos preços dos principais alimentos.
420
No momento, é de suma
importância jamais ver Belém como tendo ficado passiva diante da situação, porquanto sua
gente movimentava-se a seu modo com o objetivo de buscar soluções efetivas ao
impasse. Do que se vem argumentando infere-se que as condições de subsistência dos
belenenses eram pouco tranqüilas, e a escassez de postos de trabalho aliada à carestia da
vida fazia com que homens e mulheres migrassem de região em região e mesmo de Estado
em Estado objetivando a sobrevivência.
419
“Folha do Norte”. Belém, 03 de fevereiro de 1916, p. 05.
420
“A Província do Pará”. Belém, 30 de dezembro de 1924, p. 01.
296
Esse trânsito é notório em processos de desquite, provisões e paternidade e
outro exemplo neste sentido foram as tramas contidas no auto de prestação de alimentos
promovido por Ozana Fernandes Melo, 28 anos, cearense, doméstica, residente [quando
solteira] na Avenida Ceará, 138 e Travessa Francisco Monteiro, 260, após o
casamento, contra Sebastião da Costa Melo, 37 anos, paraense, residente na Barão de
Igarapé-Mirim, s / nº.
421
O que representou para o réu a busca de trabalho em outras
localidades e a constante mudança de profissão durante os onze anos de casamento?
Quando casou, em 1932, o esposo era guarda civil; depois comerciante, em 1935; em 1944,
empregado da Standard Oil Company que tinha agência na cidade; em data ignorada, o réu
também se mostrava agricultor na cidade de Capanema, interior do Pará e em data
igualmente desconhecida, aparecia como diarista. Este intenso trânsito ocorreu entre as
cidades de Belém e Capanema o que representava esforços para encontrar trabalho
remunerado que possibilitasse o sustento da família. No entanto quando se iniciaram as
querelas jurídicas, o movimentar geográfico do cônjuge em busca de trabalho aumentou
bastante; se antes se resumia a Belém e Capanema, com a separação provisória de corpos
este saiu de Capanema para Belém, onde montou um estabelecimento de secos e molhados;
partiu depois para o Amapá, de onde regressou após alguns meses em virtude de
enfermidade. O requerente afirmava que a pensão alimentícia devida aos filhos Benedita
Fernandes Melo e Antonio Fernandes Melo apenas seria concedida se os mesmos saíssem
da companhia de sua mãe e conforme os limites de seus vencimentos, que eram na ordem
de “dezesseis cruzeiros por dia e quando trabalhava”.
Em 1944 a moeda havia trocado, o que torna difícil perceber o que
significava ganhar “dezesseis cruzeiros por dia”. Entretanto o desejado aqui é apreender
que Belém era descrita nos autos de pensão alimentícia como cidade que enfrentava
dificuldades em relação a postos de trabalho e que isso exigia excessivos deslocamentos
geográficos bem como constante mudança dos ofícios desempenhados: em determinado
tempo era-se guarda civil, depois comerciante, agricultor, diarista. Trocas de endereço
com a família e mesmo sem a companhia dos filhos e esposa, assim como variação
constante de emprego representam nitidamente a amplitude das dificuldades financeiras
que alguns enfrentavam. Sebastião é exemplo disso, pois afirmava que seus vencimentos
eram de dezesseis cruzeiros diários, isso quando trabalhava, o que significava a
421
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Ozana Fernandes Melo contra Sebastião da Costa
Melo, 1944.
297
inexistência de trabalho regular, fato que o forçava a articular campos da vida em busca de
emprego que proporcionasse condições nimas ao sustento doméstico. Na época, o
tráfego entre cidades, localidades, regiões, assim como o de profissões apresentou-se
muitas vezes – necessário e trivial à existência.
Outro caso que reforça tal argumento foi publicado no jornal “O Estado do
Pará” em 1938, e tratava-se de documento que dava publicidade ao processo de desquite
litigioso impetrado por Custodio Pereira Ferreira contra Arcelina Ferreira. Casaram-se sob
o regime de comunhão de bens em 25 de setembro de 1909, mas aquando da separação as
razões alegadas foram repetidos adultérios e abandono do lar doméstico por Arcelina.
422
No entanto o que importa na ação, não localizada no Arquivo do Tribunal de Justiça do
Estado do Pará, é que os consortes tiveram dez filhos, o mais velho com 29 anos e o mais
novo com 07 e que, para sustentar a família, o senhor Custodio dizia-se compelido a
trabalhar no interior do Estado.
Auto de desquite de 1940 que também ajuda é o impetrado por Carlos Pereira
que trabalhava ora como Segundo Oficial da Polícia Civil, ora como funcionário público,
contra Elvira Costa Pereira, costureira. A tentativa de separação de corpos e bens centrava-
se na acusação de abandono voluntário do lar conjugal pela mulher por dois anos
contínuos. Os dois casaram-se civilmente em 16 de julho de 1932 e do consórcio não
houve filhos; após a união, passaram a residir na Travessa 22 de Junho, no perímetro da
Rua Conceição e Caripunas; depois mudaram-se para a Rua São Miguel, entre 22 de Junho
e 9 de Janeiro e posteriormente voltaram à Travessa 22 de junho, entre Boa Aventura da
Silva e Domingos Marreiros; as sucessivas páginas da ão informam que todas as casas
eram de aluguel.
423
No próprio libelo do processo, o autor articulava que em 1937 “fez ver
a sua esposa a necessidade que tinha de por medida de precaução passar a morar em
companhia de sua genitora visto nessa época achar-se o suplicante em situação financeira
precaria em virtude de estar com os seus vencimentos atrasados, vencimentos esses por si
minguados, pois a esse tempo a função que elle exercia era a de segundo oficial da
policia civil com ordenado mensal de 400 $ 000 reis a fora desconto de montepio”. A
demanda impetrada é muito curiosa por duas razões: primeira, depois de alguns meses de
altercação conjugal, de se ouvirem testemunhas e advogados, o judiciário paraense
considerou inexistirem provas suficientes contra a ré [único caso localizado com este
422
“O Estado do Pará”. Belém, 05 de fevereiro de 1938, p. 02.
423
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Carlos Pereira contra Elvira da Costa Pereira 1940.
298
veredicto]. Segunda, na petição inicial, também de forma incomum em autos desta
natureza, o exeqüente denunciava a sua incapacidade de sustentar convenientemente a
família. Tal informação é importante porque, como se interpretou amplamente, era do
homem a responsabilidade de se constituir em provedor da ordem familiar, qualidade que o
próprio autor dizia não possuir perante as autoridades do direito paraense. Mesmo
inexistindo filhos, o marido sentia o peso em se pagar aluguel e comprar alimentos; desta
maneira, confirmava serem quatrocentos mil réis mensais insuficientes, em 1940, à
sobrevivência de apenas duas pessoas e quando notou tal dificuldade mostrou à sua mulher
a improrrogável necessidade de estabelecerem pouso na residência de sua mãe [do
marido]. Este movimento foi justificado, como se tratou neste capítulo, pela situação
adversa uma vez que, se o morar na casa de sogra, sogro, mãe, amigo representou
infortúnio para determinadas personagens, para outros significou a imediata e necessária
contenção de gastos com o aluguel e alimento, como se percebe nas tramas em pauta.
A associação popular “Liga da Liberdade” preocupava-se com a sazonalidade
dos trabalhadores, porquanto se este fator acontecia era em decorrência das condições
difíceis encontradas no bojo da cidade. Para além da referida associação, a “Comissão
Agrícola Comercial e Industrial do Estado do Pará”, dois anos antes, havia publicado o
que afirmava ser apelo urgente “a todas as classes de Belém a fim de contribuir á formação
dum fundo para promover o levantamento economico desse Estado”.
424
Tratava-se do
“Fundo de Levantamento” que tinha o propósito de soerguer a economia através de
contribuições de qualquer importância. Os problemas eram latentes e a matéria faz
compreender sua proximidade com os múltiplos discursos existentes no seio do casamento
e da família. Se a cidade e o Estado efetivamente sofriam, que não se descarte o fato de que
essas condições serviram, em muitos momentos, de desculpa para se fugir de
compromissos com as esposas, prole, jovens defloradas, enfim com a família atual ou uma
vindoura. A matéria intitulada “Appello Urgente” fortificava mais ainda a compreensão do
cenário em que se encontrava Belém nas décadas iniciais do século XX, ajudando a
entender os móveis condutores dessas teias. A rigor, interpretando os preços dos gêneros
alimentícios e as matérias que denunciavam o custo de vida, percebe-se o forjar da
existência cotidiana demasiado difícil, ou seja, alto demais para se sustentar qualquer lar
doméstico seja o dito higiênico, seja o chamado espúrio.
424
“A Província do Pará”. Belém, 04 de agosto de 1922, p. 01.
299
Como se vem demonstrando recorrentemente no decorrer do trabalho, os
processos de desquite são documentos essenciais para se interpretar as vozes dos
envolvidos [mesmo filtradas pelos profissionais do direito: escrivães, advogados, juízes,
oficiais de justiça]. Neste sentido, dentre inúmeros casos que se podem tomar como
exemplo, é o impetrado em 1940 por Nacielza da Gama Andrade, 19 anos, paraense,
dedicada a trabalhos domésticos contra Americo Mendes de Andrade, proprietário de uma
casa de secos e molhados.
425
A referida ação sustentava-se no inciso do artigo 317 do
Código Civil Brasileiro: sevícia ou injúria grave. O réu era acusado de pronunciar contra a
consorte palavras da mais baixa esfera como “sua vaca, sua puta, sua sem vergonha, sua
égua, você não sabe sua obrigação, não sei onde estou que não te quebro a cara (textuais) e
em ato continuo avançou para a depoente dando-lhe varias bofetadas e jogando-a sobre a
cama, esmurrando-a”. Nacielza também alegava diante da justiça passar por
constrangimentos quando o marido a obrigava a atender no balcão da mercearia, pois
nestas ocasiões ouvia indiretas de homens e mulheres “ímpios”. O impetrado, ao se
defender em juízo, buscou provar que todas as acusações foram “industriosamente
arranjadas”, menos a utilização da consorte como mão-de-obra na mercearia, porém
justificava tal postura afirmando não ser sua mulher a primeira a ajudar o marido “na
obtenção do ganha-pão cotidiano”. Aliás, esta ordem era comum em virtude das
circunstâncias que a cidade atravessava. Usava-se com freqüência nos litígios de desquite,
paternidade, alimentos e também nos jornais da época as condições sócio/econômicas de
Belém para acusar ou defender.
De qualquer forma, não era a única na esfera das dificuldades conjugais [aliás a
esta altura tal afirmativa está mais do que explicada], ou seja, mesmo sendo importante
saber que os custos para se manter uma família eram elevados, não se deseja sustentar
fosse esta apenas a razão que explica litígios entre consortes, e sim ser recorrente homens
argumentarem em juízo a incapacidade de “sustentar mulher” e mulheres e homens que
desistiam de suas relações matrimoniais para iniciarem uma outra com esse pretexto. Desta
maneira, várias mulheres foram mães solteiras;
426
elaboravam-se separações sem a
presença do judiciário; romperam-se convivências conjugais de forma amigável ou
litigiosamente e depois formaram-se novas. Por exemplo, em 1918, o senhor Antonio
425
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Nacielza da Gama Andrade contra Americo Mendes de
Andrade, 1940.
426
“O Estado do Pará”. Belém, 04 de janeiro de 1938, p. 06.
300
Tavares de Pinho, 39 anos, português, comerciante, impetrou processo de desquite litigioso
onde acusava Maria Rodrigues Machado, 31 anos, dedicada a serviços domésticos, da
prática de repetidos adultérios nas cidades de Anajás e Belém.
427
A testemunha, Manoel da
Cunha Chaves, 44 anos, casado, marítimo, paraense, assegurava em juízo que eram de
domínio público a vida sexual desregrada da impetrada com diversos homens como com o
senhor “Felippe Cardoso e com um sargento cujo nome não veio a saber” e em virtude do
seu péssimo proceder o próprio pai a expulsou de sua residência. A testemunha Pedro
Pinto de França, 43 anos, casado, Comandante da Marinha Mercante, paraense deu
depoimento consoante à versão oferecida pelo senhor Manoel, isto é, confirmava ser
público e notório a presença de diversos amantes na vida de Maria.
A rigor, [mesmo percebendo a amplitude dos campos de análise] referenda-se a
quantidade de mulheres que recorriam ao judiciário, ora impetrando pedidos de ruptura
conjugal, onde tentavam sustentar que os companheiros não eram bons provedores, ora
abrindo autos civis de alimentos e paternidade, como foram as tensões surgidas no
processo de pensão alimentícia em que foi autora Albina Sant`Anna de Azevedo Diniz, 20
anos, casada, paraense, dedicada a serviços domésticos contra o senhor Galdino Antonio
Diniz, 25 anos, casado, maranhense, comerciante.
428
A exeqüente, grávida, foi abandonada
pelo esposo poucos dias depois de seu casamento, porque o consorte alegava não ter
condições financeiras para manter a jovem família, “não poder sustentar mulher”. No
entanto, no decorrer do litígio indicações de que Galdino valera-se de um subterfúgio
para abandonar a companheira, porquanto o auto de pensão sugere ser o réu sócio da
FIRMA NUNES & SOBRINHO, uma mercearia, por isso a autora pediu juridicamente a
penhora dos bens do comércio localizado na Travessa 09 de Janeiro, esquina com a Rua
Caripunas.
Em 28 de abril de 1927, os produtos do estabelecimento que constavam no auto
de penhora concentravam-se em:
“Oito garrafas de vinho do Porto, marca “Genuino”; dezesete
garrafas de cerveja Pilsen; seis garrafas de [ilegível]; Pereira da
Costa; trinta e tres garrafas de vinho Collares e Verde; vinte e dois
litros de cachaça; trinta e oito garrafas de vinagre; sete latas de
farinha de aveia Nestle; seis latas de Kilo de azeite doce Gallo;
427
Autos civis de desquite litigioso impetrado por Antonio Tavares de Pinho contra Maria Rodrigues
Machado, 1918.
428
Auto civil de alimentos impetrado por Albina Sant`Anna de Azevedo Diniz contra Galdino Antonio Diniz,
1927.
301
nove latas de farinha Quaker; desezete garrafas de guaraná; dez
latas de leite moça; vinte e quatro maços de phosphoros A.B.C;
vinte e quatro latas de manteiga de meia libra; um deposito de
madeira com quatro compartimentos e sete gavetinhas; uma sacca
de feijão mulatinho com cinte e cinco Kilos; tres saccas de arroz
com cento e cinco e meio Kilos; uma lata de alpiste com onze
Kilos brutos; uma dita de gergelim com nove kilos brutos; uma
sacca de café com dezeseis kilos; um deposito de madeira com
assucar com quarente e tres kilos brutos; quatorze vassouras de
piassaba; quarenta tijellas de louças sortidas em tamanhos;
dezeseis casais de chicaras; vinte e quatro vidros para candieiro
sortidos em tamanhos; cinco candieiros de metal, pequenos; uma
balança para balcão com um peso de dois kilos, um de um kilo e
um de meio kilo, de metal amarello; duas facas nacionaes”.
Estes eram então os possíveis bens pertencentes ao executado e os que
deveriam ser penhorados para garantir o pagamento da quantia de quatrocentos e sessenta e
sete mil, quatrocentos e vinte e oito réis (467 $ 428). Sendo cento e cinqüenta mil réis (150
$ 000) de pensão alimentícia e o restante, trezentos e dezessete mil, quatrocentos e vinte e
oito réis (317 $ 428), de custas judiciárias pagas pela autora. No entanto, em 07 de maio de
1927, a penhora foi questionada em juízo por Paulo Nunes da Silva e Domingos Magno da
Silva, que se posicionavam como os verdadeiros donos da referida firma comercial e
asseguravam, juntamente com o advogado José Azevedo do Amaral Brasil, ser Galdino
nada mais “do que um simples caixeiro do estabelecimento dos embargantes, que nada
podem responder pelos actos ou dividas daquelle seu empregado”. Tal posição foi
reforçada por meio da testemunha Alberto José Maria, 31 anos, casado, português,
comerciante, residente na Avenida 22 de Junho que deu a versão seguinte para os fatos:
“(...) os membros componnentes da firma embargante são Paulo Nunes da Silva e seu
sobrinho Domingos Magno da Silva (...)”, a testemunha dedicava-se em detalhar que o
senhor Galdino jamais fora sócio da mercearia localizada na Travessa Nove de Janeiro
esquina com a Rua Caripunas, mas sim um “(...) simples empregado da firma (...)”.
Existiram depoentes que contrariavam a penhora dos bens, porém outros declaravam que
Galdino era, sim, um dos donos da firma. Essencial no caso é notar que os bens estavam
em litígio, todavia após vários meses de contenda jurídica, 05 meses e 13 dias em 04 de
agosto de 1927, a exeqüente desistiu da ação, pois havia entrado em acordo com o esposo.
No termo de desistência são fortes as indicações de que Galdino possuía mesmo sociedade
na referida firma, uma vez que o documento conciliatório afirmava: “(...) E como tenha
requerido penhora em bens do seu marido, para pagamento dos alimentos e custos, requer a
V. Excia. que se digne de tomar por termo a presente desistencia, mandando expedir
mandado para levantamento da alludida penhora. Belem, 4 de agosto de 1927”.
302
Arma igual foi usada com freqüência para se fugir de compromissos
previamente acordados ou escapar dos firmados, mas apesar disso o matrimônio era
visto nas fontes como ato sério e celebrá-lo, bem como conseguir sustentá-lo
economicamente, mostrava-se vital. Na capital paraoara, uma parte da mentalidade
convergia à consideração de que trabalhar somente para si apresentava vantagens,
preterindo-se compromissos mais difíceis como o de casar-se. Exemplo neste sentido são
as argumentações dadas pela jovem Albina, em juízo: que ao tomar satisfações com o
esposo, este teria dito ser incapaz de “sustentar mulher” e em outro momento o consorte
reiterou que não é possivel vivermos juntos porque não disponho de recursos para
prover as necessidades de uma familia”. A impetrante clamava contra estas estratégias
afirmando ser o marido um dos donos da firma NUNES & SOBRINHO. Se era ou não
sócio da referida mercearia, o que se evidencia era a negação do réu de possuir condições
financeiras para prover a sua família, argüição que procurava sustentar alicerçado nos
elevados custos de vida da cidade. Tal conjectura tomou fôlego quando se analisou o
veredicto que o juiz Manoel Maroja Netto ofereceu, em 11 de março de 1927.
A sentença:
“Considerando que o procedimento do reo, a sua obstinada recusa
em viver em companhia de sua mulher, a autora, não o isenta do
dever que a lei lhe impõe de dar-lhe alimentos. O direito que tem a
mulher de exigir os alimentos provisionaes disposto no art. 233 n.v
do Código Civil, e esse direito subsiste em favor da mulher ainda
que ella não tenha obtido a separação judicial, como ocorre seu
caso Ferreira dos Santos; considerando os argumentos fixo a
quantia dos alimentos em 150 $ 000 mensaes, contribuição essa
que é necessaria attendendo o ao estado em que se encontra
de gravidez, como á circunstancia do custo exagerado de vida
actualmente; pelo exposto julgo procedente o pedido de fls., e
condeno o reo Galdino Antonio Diniz a contribuir mensalmente
com a quantia de cento e cincoenta mil reis (150 $ 000) para a
manutenção de sua mulher, a autora, enquanto ella viver
honestamente, e não tiver meios de prover a sua susbsistencia”.
429
O valor dos alimentos na década de 1920 variava bastante, mas os números
contidos na tabela 6 atrás impressa indicam que seria necessário despender entre três mil
novecentos e sessenta réis (3 $ 960) a quatro mil setecentos e sessenta réis (4 $ 760)
diariamente para frugalmente alimentar uma família média. No entanto, tomando o menor
valor mensalmente, este numerário subiria para cento e dezoito mil e oitocentos réis (118 $
800) e com o mais alto se gastaria cerca de cento e quarenta e dois mil e oitocentos réis
(142 $ 800). Segundo sentença judiciária, o senhor Galdino Antonio Diniz teria de pagar o
429
Idem.
303
valor de cento e cinqüenta mil réis (150 $ 000) mensais de pensão alimentícia à sua esposa.
Observa-se que dona Albina, com o arbitrado pelo juiz, passaria o mês de forma bastante
limitada, pois reafirme-se: sustentar família nas décadas iniciais novecentistas, não se
fazia sem dificuldades e sacrificar-se era plano secundário nas tramas de vida de Galdino.
Sobram indícios de que este se serviu das condições econômicas pouco favoráveis para
justificar a separação; no entanto Maroja Netto, ao elaborar o veredicto, também atacava
com estas circunstâncias, isto é, argüia que o momento era de “custo exagerado de vida” e
por isso condenava o réu a “contribuir mensalmente com a quantia de cento e cincoenta
mil reis (150 $ 000) para a manutenção de sua mulher”, enquanto a autora vivesse
“honestamente”, e “não tiver meios de prover a sua subsistencia”. Viver “honestamente”
nas primeiras décadas do século XX, segundo os ditames ditos higiênicos, queria dizer
renunciar a relações de amasiamento, ou seja, jamais manter aventuras amorosas porquanto
lembre-se – nem o processo de provisões favorável e nem tampouco o de desquite
possibilitavam constituir legalmente outra família.
Advogados e clientes utilizavam os parágrafos do Código Civil conforme as
necessidades, conveniências e interesses dos envolvidos na luta jurídica; no caso de
Albina, articulavam “que á proporção que se vai adeantando seu estado de gravidez, mais
se faz sentir a necessidade do disposto no art. 231 § III, “mutua assistencia”, assistencia
que de parte de seu marido nunca existiu”.
430
Recaíam sobre o acusado dívidas pesadas,
dentre as quais a de ser mau provedor e desta forma -se como os incisos do Código
continuavam a concentrar o peso da tradição: o marido que se encontrasse desempregado
ou que se recusasse a manter a família era percebido como escória social. Várias forças
convergiam a esta noção: a legislação, os espaços da mentalidade social e os jornais de
época. A este respeito a revista A Semana” publicou um decálogo, em letras graúdas,
intitulado “OS DEZ MANDAMENTOS DO PAE DE FAMILIA” e afirmava que “Sob esta
epigraphe póde-se dar a todo homem honrados os seguintes preceitos. Procure todo o bom
pae de familia guardal-os, se não quer abdicar a dignidade e a alta representação que tem
nella”. Apreende-se que o texto buscava reforçar a responsabilidade paterna como a figura
central das representações familiares, sendo que a primeira orientação era “constituirás
uma familia com amor, sustental-a-ás com teu trabalho e chefial-a-ás com bondade e
430
Artigo 231, inciso III: São deveres de ambos os cônjuges. In: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.
Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
304
energia”.
431
O importante a entender é como a tradição tinha força e se encontrava presente
quando a questão chegava aos domínios das responsabilidades com os seus. As famílias
constituíam domínios de partilha de poder que nunca podem ser interpretadas como sem
importância. A mulher, aí, jamais pode ser apresentada como vítima. Quem quisesse
inscrevê-la neste quadro [o que convinha a muitos] precisaria enfrentar certa composição
de forças, porquanto o lar não era dimensão em que vivessem reclusas ou impossibilitadas
de manter relações de enfrentamento com obstáculos que a vida cotidiana lhes impusesse.
A seu modo, esposas criavam e solucionavam problemas diariamente. A legislação fazia
investimentos sobre as famílias com o objetivo de levar a bom termo a estabilidade, a
moralidade e a normalidade sociais e para tanto os maridos eram localizados como seus
provedores e representantes. Objetivava-se formar aos homens espaços de dominação para
que mantivessem a família sob controle e também para que se apresentassem honrados
perante a sociedade, como desejava o decálogo: “procure todo o bom pae de familia
guardal-os, se não quer abdicar a dignidade e a alta representação que tem nella”.
Se as dificuldades citadinas foram aproveitadas por muitos no livrar-se de ônus
excessivos, vários magistrados lançavam mão do mesmo modo deste argumento para
sentenciar favoravelmente às mulheres, isto é, utilizava-se e caracterizava-se o momento
econômico vivido pela cidade ao modo de cada um. De forma inquestionável, quando
ocorria um abandono alterava-se o equilíbrio social, porquanto havia interdependência e
necessidades econômicas entre os envolvidos. De tal sorte, quando mulheres e homens
percebiam as suas margens de manobras diminuírem em virtude de abandono, por
exemplo, articulavam processos de desquite, alimentos e investigação de paternidade com
o objetivo de reconstituírem o que haviam perdido e com isso reequilibrar as margens da
sobrevivência cotidiana.
Por último alvitra-se que, no decorrer deste texto, jamais se desejou afirmar que
a existência de dificuldades econômicas fosse a única responsável pela fragmentação ou
não-formação familiar e sim que, em determinados casos, a influenciou efetivamente
431
“A Semana”. Belém, 24 de julho de 1920, vol. 3, nº 121.
305
enquanto em outros o fator econômico limitou-se às narrativas jurídicas que buscavam a
saída de situações embaraçosas.
306
CONSIDERAÇÕES FINAIS
307
Nesta última parte do texto, retornar à conhecida Laura Soares de Souza é
importante. Quando escreveu em seu “diário”, em 1931, que as “gerações futuras”
432
um
dia poderiam entrar em contato com sua opinião acerca do casamento, da separação e da
família, ela reafirmava que essas pessoas deveriam saber que o “casamento dito legal”, o
religioso, ou ambos não conseguiam sustentar a ordem familiar que, sem sua presença,
fazia-se tão duradoura quanto com eles. Ela expressava inteligivelmente ser um erro pensar
a existência familiar como portadora de uma única moral, homogênea e cristalizada;
melhor seria localizá-la no interior de variadas morais que se inter-relacionavam conforme
as necessidades exigidas pelo tempo histórico. Inquestionavelmente, Laura detinha clara
visão dos significados familiares que permeavam seu tempo histórico, por exemplo,
mesmo desconhecendo as especificidades do lar doméstico dos amásios” Maria Jacyntha
Felix x Vicente Pereira Leal, Conceição Silva Santos x Oswaldo Dantas Nunes e Consuelo
Aragão Baia x Jairo Duarte Oliveira, a autora interpretava que inúmeros desses casais
percebiam-se enquanto constituidores de famílias legítimas e que a ausência da cerimônia
dita higienizadora não definia a durabilidade da união, como desejava impor a Igreja
Católica. Então a idéia de que o significado de família jamais poderia ser compreendido no
singular, encontrou-se descrita diversas vezes, inclusive no próprio sub-título desta tese.
A propósito de tentar demonstrar a importância das inúmeras possibilidades de
se constituir uma relação familiar, a cada documento utilizado neste trabalho (processos de
desquite, investigação de paternidade, provisões e inúmeros jornais), demonstrou-se a
presença de um desejado padrão bem como a sua quebra, sendo que estas concepções
foram localizadas a partir de atitudes de pessoas como as acima citadas Maria Jacyntha
Felix, Conceição Silva Santos, Consuelo Aragão Baia e tantas outras que entraram no
judiciário paraense com ações de investigação de paternidade e provisões contra os seus
companheiros. Assim, no bojo desses casos, buscou-se o movimento, quer dizer o
movimentar de homens e mulheres que chegavam à celebração das núpcias e ao desquite,
ao casamento e à separação sem a presença do judiciário, assim como aqueles que se
“amasiavam” e separavam, elaborando diferentes possibilidades de rearranjos domésticos.
De tal sorte, as interpretações mesmo reconhecendo-as como apenas mais uma forma de
se ver o casamento e a família detiveram-se nas trajetórias individuais, nas múltiplas
tensões, nas escalas de força, nas relações de solidariedade que cada um forjou e enfrentou
conforme suas próprias necessidades. Estas categorias, que no texto foram nomeadas de
432
Diário de dona Laura Soares de Souza. Belém, 29 de agosto de 1931.
308
“Territorialidade dos sentimentos e das junções políticas familiares”, estiveram
freqüentemente presentes nos variados capítulos e sessões que compõem as narrativas do
trabalho; tais interpretações ficaram claras [no primeiro capítulo] quando se analisaram as
lutas entre a Igreja Católica, protestantes e Estado sobre o matrimônio e a família. Ao
mesmo tempo, tais categorias podem ser percebidas no último capítulo onde foram
compreendidas temáticas como a partilha de bens, moradia, vizinhança e o custo para se
sustentar um lar na cidade de Belém no início do século XX. Em conformidade com essas
articulações, elas se forjaram particularmente entre pessoas casadas legalmente e as ditas
“amasiadas”, mas que por razões diversas resolveram, em determinado momento, colocar
fim aos seus relacionamentos que provavelmente um dia foram pensados vitalícios.
Um dentre vários exemplos é o auto de investigação de paternidade impetrado
por Doroteia Nascimento Gonçalves contra Aloizio Vasconcellos Gomes, em 1917. Os
amásios viviam sob o mesmo teto havia vários anos e diante da justiça a exeqüente
afirmava que sempre pensou que apenas a morte seria capaz de separá-los.
433
Esta é uma
situação que procura explicar o princípio de que se no casamento havia o paradigma do
“até que a morte os separe”, em diversas uniões amásias tal referência também se fazia
presente, o que demonstra certa circularidade da prática entre o dito “legal” e o “ilegal”.
De tal sorte, as análises presentes na tese não vieram isoladas, os elos do casamento, do
amasiamento e da separação aproximaram-se no interior de todo o texto porquanto, ao se
interpretar as idéias ditas normatizadoras em torno do ato do matrimônio, (fidelidade, ser
boa mãe, ser bom provedor), via-se que estas exigências faziam-se presentes de igual
modo entre os “amasiados”. Desta maneira, a discussão sobre os significados das núpcias,
amasiamento e separação, estruturava-se frente a tensões diretamente relacionadas à
escolha do casar-se ou não, dos sentimentos, da dissolubilidade e indissolubilidade dos
vínculos matrimoniais; aliás, acerca do fim dos vínculos formalizados pelo casamento, a
Igreja Católica, os protestantes e o Estado fizeram-se presentes incisivamente. Nas décadas
iniciais do século XX, essas Instituições participavam detidamente dos diálogos em torno
dos significados bem como da necessidade de se preservar a vida em casal. Entretanto, em
inúmeras partes do texto, interpretou-se a presença de distanciamentos entre o idealizado
pela lei e as diversas formas de se organizar um lar na cidade de Belém. De tal sorte, os
discursos legais de família elaborados pela Igreja Católica e Estado, por exemplo, não
433
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Doroteia Nascimento Gonçalves contra Aloizio
Vasconcellos Gomes, 1917.
309
conseguiam envolver casais como Francisco Conde x Maria Christina Mavignier de Castro,
Francisca Gomes Nunes x Frederico Andrades Silva, Galdino Luiz Nunes x Olindina
Amelia Collares, Antonio Tavares de Pinho x Maria Rodrigues Machado e tanto outros que
impetraram processo de desquite no início do século XX. Estas separações, assim como as
tramas e dramas contidas em outras ações como nas de investigação de paternidade e
provisões, possibilitaram compreender a presença de limites entre um desejado modelo
ideal de casamento e família e a diversidade da constituição de uniões e de ordens
familiares, ou seja, as crises conjugais e amásias presentes na vasta documentação coligida
deram a ler o que dizia a lei e ao mesmo tempo o que se formava fora dela. Vê-se que o
modelo de descendência presente na legislação brasileira não contemplava os diversos
grupos familiares que se formavam entre os segmentos sociais da cidade. O legislador de
1916 era, antes, a tentativa de normatização de apenas uma visão de família, qual seja a
monogâmica idealizada pela Igreja e Estado e que tinha por preocupação e objetivo a
legitimidade da ordem doméstica somente por meio do matrimônio; desta forma, quando
os diversos artigos e incisos do Código Civil que versavam sobre as alianças e a família
foram apresentados à sociedade brasileira como normas ideais, pretendia-se fossem o
exemplo simétrico do normativo e valorativo, porquanto ao reunir inúmeras regras do
direito – buscavam indicar e delimitar papéis e com isso manter expressiva relação de força
e poder no seio da vida cotidiana, o que ficou latente a partir do momento em que o Código
ignorou como legal qualquer lar constituído fora do conúbio civil. Se por um lado o
legislador de 1916 afirmava ser a família legal a monogâmica formada a partir do
casamento, por outro o Código Penal de 1940, no capítulo intitulado “Dos crimes contra a
família”, reforçava esta idéia ao considerar crime o adultério, assim como a bigamia. Ao se
comparar as legislações, fica inteligível a intenção do Estado em fortalecer um modelo
alicerçado na monogamia.
Quanto à lei, a Cúria, o Estado e outros segmentos da capital paraense como os
protestantes encontravam-se frente-a-frente em discussões sobre reordenamentos da
concepção do que viria a ser consórcio e família ideais. Neste sentido, temas como laços
matrimoniais, vivências conjugais e separação foram algumas das preocupações. Em
Belém, como se procurou demonstrar, as tensões não foram simples, antes bastante
complexas, pois voltavam-se a debates como o de se estabelecer o divórcio perpétuo ou se
a indissolubilidade matrimonial permaneceria. Sobre esta questão é importante afirmar que
duas Constituições foram promulgadas no recorte cronológico em que esta tese se localiza,
310
a de 1934 e a de 1937, sendo que ambas reafirmaram a impossibilidade de segundas
núpcias no país bem como uma efetiva aproximação com a Igreja Católica, por exemplo, a
Constituição de 1934 reconheceu o casamento religioso, além das núpcias civis instituídas
em 1890, como as únicas maneiras legais de se constituir família. Depois de constantes
tensões ocorridas no final do século XIX e início do XX, o catolicismo abria canais para
reafirmar suas doutrinas em torno do assunto, ou seja, colocava-se contrário à
dissolubilidade matrimonial e o sexo somente era permitido no seio do casamento “legal” e
voltado à procriação. O conjunto legislador do início do século XX, 1916, 1934, 1937 e
1940, que versava sobre as núpcias, a família e a separação passava por sucessivas
discussões e redefinições como por exemplo as idéias de divórcio e desquite que eram
divulgadas em diversos centros urbanos como Belém, São Paulo e Rio de Janeiro com
tangenciamentos expressivos, uma vez que não se debatiam apenas de forma superficial,
antes envolviam determinações sérias sobre a distribuição dos papéis sociais: entre o que
se desejava permitir e o ilícito, o que se deveria mostrar e esconder, o que precisaria ser
público ou pertencer no âmbito do privado. Desta forma, buscava-se a preservação, mas
também flexibilizar a idéia de legitimidade matrimonial e familiar, então o empenho de se
“reordenar” os princípios conjugais e a vida sob o mesmo teto teve necessariamente de
dialogar com inúmeras questões colocadas ao tempo de vivência dos próprios indivíduos
que decidiam pelo consórcio ou não e pela separação de corpos e bens.
Daí note-se que em todas as partes do texto houve a análise das práticas
discursivas de poder diante do casamento, família e separação conjugal e amásia. Ao
acompanhá-las foi possível melhor reconhecer a sociedade belenense das primeiras
décadas dos novecentos, como os valores, interesses e princípios defendidos e refutados
por pessoas como Balbuciana Gomes Silva e Marthilde Gevesia Bulhões que promoveram
autos de investigação de paternidade contra seus amásios. Assim, ao se analisar os
processos de construção dos sentidos e significados relativos àquela tríade, chegou-se à
consideração de que casados, desquitados e amasiados mantinham disputas por diferentes
interesses, propostas políticas, sociais e culturais, o que provocava o aprofundamento das
escalas de poder no interior da família como deixou entrever a ação de investigação de
paternidade impetrada por Antonio da Silva Borges e outros, em 1931, contra Preciosa
Rodrigues Borges, que se intitulava a única herdeira dos bens deixados pelo pretendido pai
de Antonio. Em tramas como esta e diversas outras entenderam-se os fundamentos das
crenças, valores e expectativas que se apresentavam no interior da vida das pessoas que
311
entravam com processos no judiciário paraense; nestes foi também possível entender os
modos de viver e pensar bem como os juízos e escalas sócio-culturais que davam propósito
à existência de pessoas como a senhora Deolinda Lopes Pinto que entrou, em 1940, com
litígio de provisão contra o marido, Mario Farias Pinto.
O que se sublinhou então, nos variados exemplos dados, é que mesmo
idealizando as núpcias como instituto sólido e o amasiamento enquanto vulnerável, os seus
sentidos práticos organizavam-se conforme a intenção que os constituidores (casados e
amásios) resolvessem oferecer-lhes. Desta forma, a propagandeada concepção do Estado
e da Igreja de se elaborar uma vida homogênea ao conjunto social deve ser apreendida
como um objetivo que viesse alcançar a vida íntima de cada um de seus destinatários, o
que não aconteceu. Os envolvidos concentravam-se em outros setores que buscavam
produzir e impor as suas próprias estruturas familiares, como as diferentes formas de
hierarquia e ordenamento que insistiam na formação de outras organizações sociais, morais
e políticas.
Ao considerar-se, como se interpretou no capítulo 2, que a duração do
casamento e amasiamento eram relativas, que o tempo de vida sob o mesmo teto dependia
dos movimentos dos amantes no bojo da relação, o consórcio não pode ser compreendido
como condição sine qua non da durabilidade e ventura que as pessoas buscavam quando se
uniam. Mas se por um lado os católicos negavam esta ordem, porquanto compreendiam
estar nos laços matrimoniais a única possibilidade de amor, ordem, moral e longevidade da
união, por outro inúmeras pessoas notavam muito bem que o ideal de família pensado pela
Igreja, protestantes e Estado, toda arrumada e sem conflitos, era inatingível: na prática
cotidiana “jamais” foi assim. Os adultérios, sevícias, injúrias, separações, brigas eram
elementos que se encontravam facilmente no lar doméstico bem como a felicidade, a
harmonia, o amor e mesmo o princípio do “até que a morte os separe”. O amasiamento,
matrimônio e ordem familiar eram multiplicidades, que apontavam para intermináveis
relações a que os próprios envolvidos davam forma.
O próprio pensamento acerca do modo de união comportava inúmeras brechas
na “ordem das coisas”, como os sentidos da separação. O que se quis afirmar é que, na
cidade de Belém, as regras pensadas tanto para o conúbio quanto para o amasiamento
sofriam gradações nos circuitos da vida a dois; o visto como “ordem” para pessoas como
os jurisconsultos Mauricio Cordovil Pinto e Manoel Maroja Netto não seria o mesmo para
outros indivíduos, como os casais amásios Judith Costa de Oliveira x Cornélio Filho
312
Gonçalves e Jeronima Vivalda Tostão x Mardomiro Sanches da Amunciação. Entenda-se
assim que era em decorrência de uma pretensa disposição metódica que os códigos de
linguagem em torno das condições das uniões eram criticados na experiência da vida em
casal, que em virtude do exercício cotidiano da flexibilidade da “lei estabelecida”, os
indivíduos assumiam outras posições. De tal sorte, em qualquer forma em que se ordenasse
a união entre duas pessoas, haveria os interesses sócio/culturais incisivamente instalados na
maneira como se organizavam os modos de ser dos seus constituidores. Em inumeráveis
momentos da tese, como o segundo e terceiro capítulos, foram estas experiências que se
buscou analisar, ou seja, ao se demonstrar a natureza da vida das pessoas apresentou-se
simetricamente como as flexibilidades familiares eram formalizadas em meio à cultura da
Belém novecentista.
Em outras palavras, a forma como foram pensadas, reunidas e percebidas bem
como as trocas realizadas mostraram inteligivelmente suas modalidades, permutas, ações e
reações, as quais vinculavam-se a espaços previamente estabelecidos no seio de uma
dinâmica de vida a dois absolutamente particular. Estas noções, além dos diversos
exemplos presentes no seio desta tese, procuraram explicar a “Territorialidade dos
sentimentos e das junções políticas familiares”, exatamente na medida em que as pessoas
se constituíam em si mesmas, elaborando circunstâncias que conseguiam fazer-se
enquanto indivíduos que forjavam as suas próprias Histórias, e este esforço se desdobrava
em variadas questões como a de impetrar processos de desquite, investigação de
paternidade e alimentos, assim como realizar negociações com galhardia ou não perante
os vizinhos e amigos para que os mesmos se transformassem em testemunhas de acusação
ou defesa, conforme interpretado nos diversos exemplos do quarto capítulo. Vejam-se
pessoas como Francisco de Oliveira Silva e Oswaldo Cicero Cantagalo, testemunhas de
defesa da ação de desquite litigiosa impetrada por Felizmunda Santana Gomes contra
Dimas da Annunciação Gomes, em 1918, que ajudaram a explicar os intrincados jogos de
símbolos no interior de um consórcio que não possuía a “mínima” possibilidade de
sobrevida.
O que de ser observado para entender alguns elementos das uniões e
separações é notar a idéia de que nenhuma das duas ordens sociais, nenhum dos modelos e,
portanto, nenhuma das culturas conseguiu incluir e esgotar toda a prática e desejo humano
de vida a dois. Em outras palavras, em diversos argumentos procurou-se mostrar que era
em uma e em outra (uniões e separações) que as pessoas efetivamente se apossavam das
313
definições vigentes no seio social para se livrarem ou aproximarem de seus companheiros
(as). As tramas e dramas de iniciar, terminar, recomeçar ou lutar para manter a vida sob o
mesmo teto foram questões que os indivíduos, embora em graus variados, sempre
buscaram com consciência prática, habilidades e percepções específicas conseguidas,
inquestionavelmente, na experiência cotidiana. Isto pode ser observado diretamente nas
diversas matérias de jornais, autos de desquite, investigação de paternidade e alimentos
utilizados para tramar as análises apresentadas, mesmo compreendendo como lógico que
tenha existido, na prática, mediações diante do que significava viver a dois e da própria
separação de casados e amasiados. Esta dinâmica acontecia porque as pessoas produziam-
se não apenas em torno das necessidades e satisfações, mas também em novas definições
de necessidades; desta forma, fundamentalmente, tratava-se de processos humano-
históricos, onde se produziam os indivíduos e conseqüentemente a sociedade. Não
obstante, continua sendo válido pensar que o modo de agir permanecia organizado de
maneira específica, ou seja, como linguagem social ativa que buscava significar de maneira
clara e direta as necessidades de cada um.
De tal sorte, se as formas de união eram ritos de passagem, as de separação
(desquite e por conta própria) também não deixavam de ser. Elas, ao contrário do que
desejavam as forças conservadoras, sempre estiveram próximas dos casais, então os dois
momentos podem e devem ser compreendidos como um “antes” e um “depois”, onde
mesmo quando a vida a dois era refeita com outro parceiro, os acontecimentos que
pontuaram um e outro eram corriqueiramente lembrados. As pessoas, ao se encontrarem
em situação contraditória no interior de suas relações, buscavam reelaborá-las, terminá-las
e conseqüentemente iniciar outras, ou seja, o casamento, o amasiamento e as famílias que
deles surgiam eram instituições que sempre se mostraram ameaçadas em sua integridade.
Mesmo o relacionamento humano sendo um lugar de inesgotáveis intrigas, ao mesmo
tempo agregava espaço para a solidariedade e apoio mútuo, como foi interpretado nas
tramas de Etelvina Lopes Bandeira, no quarto capítulo e nas desventuras familiares
acontecidas em 1940 com a senhora Joana Pinheiro do Vale que foi abandonada pelo
marido, Edgar dos Santos Vale, dois dos variados exemplos de como os indivíduos
dinamizam as suas vidas depois das rupturas amorosas.
É por esta razão que as núpcias não devem ser interpretadas como condição
sine qua non para a moralidade sob um mesmo teto, porquanto está crivado de
intermediações que, se por um lado, pretendem ter força normativa, por outro, nunca
314
conseguiram circunscrever todos os seus membros em uma mesma prescrição sócio-
cultural. Estas interpretações também são válidas para os amasiamentos e suas famílias,
que submetiam, rompiam e flexibilizavam valores e padrões que cotidianamente eram
propalados no bojo da cidade de Belém. Melhor dito, em uma ou outra forma de
associação familiar, as querelas muitas vezes se mostraram incontroláveis e giravam nas
inúmeras esferas sócio-culturais: infidelidade, provisão, divisão de bens, por exemplo.
Enfim, os rumores que poderiam problematizar a vivência a dois eram praticamente
inumeráveis quando se leram as dezenas de processos e matérias jornalísticas coligidas, e
os discursos frente às uniões e às famílias apoiaram-se (para se formarem e fragmentarem-
se) freqüentemente na inevitável necessidade que o cotidiano apresentava e exigia.
As uniões, tão como foram entendidas, tiveram por principal objetivo
identificar a forma como, em diferentes situações, momentos, lugares, foram elaboradas e
conduzidas por seus constituintes. A se considerar esta argumentação, as representações da
vida sob o mesmo teto são realizadas sempre levando em consideração infinitas
necessidades e interesses das pessoas que as forjaram; daí é necessário notar os discursos
criados bem como a forma em que os mesmos são utilizados e interpretados. Desta
maneira, entende-se que em muito as lutas e rivalidades são explicadas pelas categorias do
poder e dominação, ou seja, os indivíduos procuravam impor as suas imagens de união,
família e separação por meio de aspirações e valores próprios e isto possibilitou entender
permanências, rupturas e as malhas de afrontamento que cada um buscava tecer para si e
os outros no dia-a-dia. Este modo de pensar levou ininterruptamente a considerar que
aqueles institutos foram matrizes de experiências, práticas e normas diferenciadas.
Pensar as modalidades de uniões e organizações domésticas é uma tarefa que
deve sempre partir dos laços que unem e ao mesmo tempo objetivam regular as relações
entre os diversos indivíduos, mas que eram moldadas de diferentes maneiras e em
situações também variadas pelas inúmeras formas de refletir. Entendê-las equivaleu a
romper, por exemplo, com os discursos de que o casamento era o único local da felicidade
ou que o amasiamento era o dos não tementes a Deus, como divulgava a Igreja Católica. A
partir da experiência, esta perspectiva levou a entender quão satisfatórias são as mediações
a se realizarem entre o grupo e o indivíduo, pois práticas contrastantes sempre se fizeram
presentes e tal percepção expõe com desenvoltura e relevo a pluralidade do emprego das
palavras: matrimônio, amasiamento, família e separação. Por isso os discursos que
315
ajudaram a elaborar tais leituras eram constantemente organizados e submetidos; definidos
e confiscados, por aqueles que pretendiam dominá-los.
Casamento, amasiamento, família e separação, os eixos deste trabalho, são um
conjunto de movimentos de constantes permanências e descontinuidades, onde cada pessoa
se definia por uma freqüência própria. Por isso cabe aqui reafirmar, mais uma vez, que as
leituras realizadas pelos homens e mulheres em torno dessas temáticas mostraram-se
bastante variadas, pois foram elaboradas conforme interesses particulares. Se as coisas se
organizavam nestes termos, também se note que os indivíduos selecionavam, em
movimentos, atos e ações o que fazia elaborar inumeráveis relações de força com os seus
interlocutores, ou seja, em lados opostos ou reconhecidamente em uma mesma trincheira.
Indivíduos que se envolveram em processos de desquite como Marinor Alcantara Favacho,
seu marido Cornelio Silva Favacho e igualmente as testemunhas de um e de outro lado
dedicavam-se a elaborar teias tão imediatamente excepcionais que permitissem a clara
compreensão dos advogados e juízes. Estes diversos discursos levaram a postular que,
mesmo possivelmente ensaiados, montavam interdependências na sua apropriação de um
sujeito para outro e de um grupo para outro; assim percebida, esta noção ajudou a melhor
compreender a ordem e as razões do porquê as pessoas os montavam e desmontavam
freqüentemente quando o desejo era defender ou acusar impetrantes e réus. Por isso
buscou-se a prática bem como a experiência para entendê-los, pois não existem sujeitos
históricos fora dessas concepções: sempre em movimento e em diferentes zonas de
discursos.
As interpretações diante das uniões e da família, portanto, não são somente
narrativas desgarradas de cada pessoa que ajudaram a elaborar as tramas nestas centenas de
páginas, mas teias constitutivas da prática social. Os indivíduos se faziam e descreviam por
meio de tramas ativas, onde se notaram intercessões, mediações, crises e reconciliações
entre os que buscavam vidas sob o mesmo teto e fora dele e é por isso que jamais se
encontrarão fórmulas fechadas de se ver e entender o casamento e o amasiamento,
porquanto não estão em um lugar parado, cristalizado, mas no movimentar histórico, ou
seja, em um sistema de significados de valores que se enfraquecia, fortalecia ou
estabilizava conforme a natureza dos discursos a serem pronunciados. Estas noções sempre
estiveram presentes nos vínculos amásios como no caso de Manoel Tavares Gouvêa, que
foi assassinado em 12 de abril de 1938 pelo amigo Philippe Andrade, em decorrência da
posse de uma mulher, Iacy Lopes, mas também na vida matrimonial como foi o caso do
316
senhor Francisco Conde, tripudiado por vizinhos e conhecidos em decorrência dos
repetidos adultérios cometidos por sua mulher, Maria Christina Mavignier de Castro, em
1917. Veja-se que as dificuldades de convivência encontravam-se em todo lugar, aliás esta
era uma arte que exigia, recorrentemente, boas táticas e habilidades passivas de
negociação, o que possuía uma relação irônica com os anseios da Igreja Católica, visto que
facilitava o casamento (e também a convivência amásia, é claro). É dessa forma que se
apreendem posicionamentos dessemelhantes os quais romperam com a lógica aspirada
como moral e higiênica; esta fragmentação é perfeitamente compatível com as mediações
que cada um pensava e idealizava às suas vidas práticas e constitutivas.
O que se impôs, então, em todos os capítulos e itens do trabalho “Para além da
tradição: casamentos, famílias e relações conjugais em Belém nas décadas iniciais do
século XX (1916 / 1940)” é a constante discrepância entre normas e práticas promovidas
pelas pessoas que se casavam, se amasiavam e se separavam. No campo das reelaborações
das tensões sociais, as concepções de “certo” e “errado”, assim como nas de “norma” e
“transgressão” sociais estão em constante conflito no interior dos dramas de indivíduos
como Francisca Gomes Nunes que impetrou desquite litigioso contra Frederico Andrades
Silva, 1917; Judith Almeida da Paz que foi exeqüente de auto de investigação de
paternidade cumulada com a de prestação de alimentos contra o amásio Alvarengo
Conceição Duarte, 1919 ou Galdino Luiz Nunes, que foi autor de processo de desquite
litigioso contra Olindina Amelia Collares, 1917; essas pessoas romperam de alguma
maneira com a norma desejada: por terem se casado, contudo ignorado o “até que a morte
os separasse” e por se amasiarem, romperem a relação e responsabilizarem os amásios,
exigindo direitos à família, por meio do judiciário. Por isso as noções de “norma” e
“transgressão” são as que também dão movimento à dinâmica das tramas que envolviam a
vida conjugal. Como deixa entrever Gilberto Velho,
434
o “desvio”, como sinônimo de
“transgressão”, de “errado”, de “anormal” é socialmente remetido como ameaça à
conjuntura, à ordem que é tida como coerente por determinados indivíduos e grupos sociais
como para este trabalho – a Igreja, o Estado, os advogados, os juízes, as testemunhas, os
cônjuges. De tal sorte, as teias sócio-culturais são representadas e percebidas como
portadoras de aspectos dicotômicos no interior do conjunto da sociedade onde
invariavelmente cada grupo social faz ligações entre seus objetivos, costumes e tradições
434
VELHO, Gilberto. “O estudo do comportamento desviante: a contribuição da Antropologia Social”. In:
VELHO, Gilberto. (Org.). Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1999, pp. 11 / 28.
317
enraizados e, desse modo, percebidos como corretos” e verdadeiros”. Então, quando
outros hábitos se chocam com valores previamente estabelecidos, ocorre o que Velho
categorizou de “o problema de desviantes”. A se levar em conta esta argumentação, o que
ocorria entre as dezenas de pessoas atrás analisadas era conjuntamente a satisfação das
suas condições inalienáveis para a vida e a constante “invenção” de outras condições
inalienáveis à sobrevivência individual ou em grupo. Neste constante movimento histórico,
os indivíduos produziam a si mesmos bem como ajudavam a criar demandas sociais e
políticas no seio do grupo em que se relacionavam. Nos vários exemplos utilizados, isso
sempre esteve indicado como processo contínuo e ativo, ou seja, as pessoas viram-se e
apresentaram-se em sociedade lançando mão de mediações para conseguirem sobreviver
em qualquer tempo.
A vida sob o mesmo teto, fosse a conjugal, fosse a amásia, em um sentido
“preciso” era atividade sócio-política que significava deter posse e desenvolvimento de
ações que tinham o poder de ligar atividades cotidianas específicas e ativas. Assim reforça-
se a concepção de que os indivíduos participavam e contribuíam, ao seu modo, dos debates
diante dos sentidos das uniões, das famílias, das separações, ou seja, empenhavam-se em
ordenar a vida a dois conforme o contexto das transformações que se operavam no dia-a-
dia. De tal sorte, os discursos produzidos jamais podem ser vistos a partir do caráter da
universalidade, que tinha o poder de dar aos homens e mulheres lugares e tempos
cristalizados e determinados. Não existe um método geral que possa explicar todas as
iniciativas culturais, políticas e sociais em torno daqueles que mantinham uma relação
amorosa. Daí a noção de que é na luta social que os indivíduos tramam modos de vida,
pensamentos, valores, percepções e juízos absolutamente múltiplos. Seria ingênuo pensar
que os processos da vida em casal fossem tão somente movimentos adaptativos; é também
necessário interpretá-los, pois como rupturas efetivas em condições sócio-políticas
específicas e que sofreram colapsos revolucionários reais. Justamente pode-se ver isso
melhor por meio do reconhecimento dos limites e pressões existentes na tentativa de
normatização de que a felicidade apenas se encontrava no bojo do matrimônio, como
mostrou, em 1938, Estella Pereira de Souza que se separou do marido, Edgar Pereira de
Souza, sem a presença do judiciário, para conviver com o magarefe Clodoaldo Vieira em
um amasiamento. Estas relações de força são capazes de discernir aspectos infinitos, porém
significativos, que tornam possível compreender perguntas e respostas tão variadas no
entanto o distintas entre si quando o assunto é a arte da convivência entre pessoas nas
318
décadas iniciais do século XX. É por isso que “fazer compreender” é uma atividade que
não passa pela noção de ver como as coisas realmente se passaram, mas sim como mais
uma leitura de determinado processo que chegou ao presente já bastante codificado.
Para as análises que se concentraram entre 1916 e 1940, fez-se um esforço no
intuito de dar uma versão lógica aos elos que procuraram unir a tese, no entanto para além
das tentativas de designações, o que importa acima de tudo é assinalar a maneira como os
diversos temas foram escolhidos: delimitados a partir de um imenso território e situados
em torno de suposições intelectuais, pois como avisou Marc Bloch: a história não é dada a
certezas.
435
Nesse caso, finalmente, como dito na introdução, as interpretações presentes
não passam de mais uma possibilidade de se entender os casamentos, os amasiamentos, as
famílias, as separações e os seus vários tangenciamentos, ou seja, são apenas mais uma
forma de ver, entre diversas viáveis, tais assuntos.
Ou como afirmou a conhecidíssima Laura:
“O que escrevo é apenas um jeito de entender um mundo que é infinito: o do
casamento, o dos vizinhos, o do amasiamento, o da separação, o da residência, o dos bens,
o do enfrentamento social, o do econômico, o da família, e mesmo o das minhas receitas
culinárias, ...!”
435
BLOCH, Marc. Apologia da história ou ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
319
DOCUMENTOS E BIBLIOGRAFIA
320
1. ARQUIVO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ (ATJEP)
1.1. AUTO CIVIL DE CASAMENTO
Auto de casamento em que foram contraentes Djalma de Albuquerque Dias e Etelvina
Lopes Bandeira, 1917.
1.2. AUTOS CIVIS DE DESQUITE
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisco Conde contra Maria Christina
Mavignier de Castro, 1917.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisca Gomes Nunes contra Frederico
Andrades Silva, 1917.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Galdino Luiz Nunes contra Olindina Amelia
Collares, 1917.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Antonio Tavares de Pinho contra Maria
Rodrigues Machado, 1918.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Felizmunda Santana Gomes contra Dimas da
Annunciação Gomes, 1918.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Anna Zanetti de Moura Torres contra João
de Moura Torres, 1919.
Auto civil de desquite amigável impetrado por Marinor Alcantara Favacho e Cornelio
Silva Favacho, 1919.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Joanna Cavalcante Albuquerque contra
Octavio Anancio Albuquerque, 1920.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundinha Gonçalves Silva contra Leão
Campos Silva, 1920.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Marinor Santiago Boiúna contra Jaime do
Amaral Boiúna, 1920.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Raymundo Nonnato de Siqueira contra
Estellita Monica de Assis, 1921.
321
Auto civil de desquite amigável impetrado por José Marques Zagury e Rachel Lifschitz,
1921.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Joanna de Azevedo Soares contra Nicolau
Antonio Pereira, 1921.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria de Lourdes Conceição contra Felício
Gama Conceição, 1922.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Bellida Ohayon contra Moysés Ohayon,
1922.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Conceição da Cruz Almeida contra José
Maria Almeida, 1923.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria de Jesus dos Santos contra Marcílio
Conceição dos Santos, 1924.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria Guilhermina da Silva contra João de
Jesus da Silva, 1925.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Georgina Tavares Mendes contra Cordopio
Santos Mendes, 1926.
Auto civil de desquite amigável impetrado por Paulo Xisto da Cunha Pereira e Anna de
França Pereira, 1926.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Maria Angélica Pereira contra Santiago
Dantas Pereira, 1926.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Lindolpho Dantas Oliveira contra
Francisquinha Lemos Oliveira, 1927.
Auto civil de desquite amigável impetrado por Herculano Augusto Coelho de Carvalho e
Maria da Cruz Carvalho, 1927.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Gertrudes Maria Gomes contra Mariano
Gonçalves Gomes, 1928.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Immaculada Braga Costa contra
Macimiliano João da Costa, 1928.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Antonio Nascimento contra Izabel Pinto do
Nascimento, 1930.
322
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Diogo Santiago contra Edith Santiago, 1931.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Francisco Silva e Silva contra Felizbela
Alacide Silva, 1934.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por José Chagas de Oliveira contra Felicidade da
Conceição Salgado de Oliveira, 1936.
Auto civil de desquite amigável impetrado por Joaquim Oliveira e Cypriana de Souza Gaia
de Oliveira, 1937.
Auto civil de desquite amigável impetrado por João Coêlho de Miranda Fonseca e Iracy
Moreira de Miranda Fonseca, 1937.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por rio Pereira de Carvalho contra Maria de
Jesus Castro de Carvalho, 1938.
Auto civil de desquite amigável impetrado por João Furtado de Souza e Raymunda
Barbosa Corrêa de Souza, 1939.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Nacielza da Gama Andrade contra Americo
Mendes de Andrade, 1940.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Carlos Pereira contra Elvira da Costa
Pereira, 1940.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Geraldina Braga de Aguiar Angelim contra
Manoel Andrade de Angelim, 1941.
Auto civil de desquite litigioso, pensão alimentícia e partilha de bens impetrados por
Celeste Figueiredo de Medeiros contra Arnaldo Barbosa de Medeiros, 1941.
Auto civil de desquite litigioso impetrado por Etelvina Lopes Bandeira Dias contra Djalma
de Albuquerque Dias, 1946.
1.3. AUTOS CIVIS DE ALIMENTOS E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Doroteia Nascimento Gonçalves
contra Aloizio Vasconcellos Gomes, 1917.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Katarina Mariana de Fátima contra
Marcellino Gonçalves Dias, 1917.
323
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Gervezia Cavalcante Favacho contra
Leopoldo Santos Favacho, 1917
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Anna Maria da Annunciação contra
Evangelista Gonçalves da Annunciação, 1917
Auto civil de ação ordinária para anulação de registro civil impetrado por Josepha de Jesus
Guedelha contra Maria Francisca da Conceição, 1918.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Judith Almeida da Paz contra Alvarengo Conceição Duarte, 1919.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Maria Conceição Alves contra Gregorio Leocadio Gomes, 1920.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Seixas Napoleão contra João
Pedro Napoleão, 1920.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Maria Jacyntha Felix contra
Vicente Pereira Leal, 1921.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Josias Maia contra Zulmira
Catharina Maia do Nascimento e outros, 1921.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Conceição Silva Santos contra Oswaldo Dantas Nunes, 1922.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Raymunda Consuelo Martins contra
Jairo Coutinho Martins, 1926.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Consuelo Aragão Baia contra Jairo Duarte Oliveira, 1930.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Mariana Bentes Gonçalves contra
Marioswaldo Silva Gonçalves,1930.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com o de herança impetrado por Luiza
Ramos do Nascimento contra os herdeiros de Manoel Ramos do Nascimento, 1931.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonia Pereira Lima contra as
herdeiras de João Bussons, 1931.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Conceição Silva Santos contra Oswaldo Dantas Nunes, 1931.
324
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Antonio da Silva Borges e outros
contra Preciosa Rodrigues Borges, 1931.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Balbuciana Gomes Silva contra
Valentino Soares Caeneiro, 1931.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Olgarina Justos de Campos contra
Paulo Carlos de Campos, 1931.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Marthilde Gevesia Bulhões contra
Augusto Vale Vivenda, 1932.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Judith Costa de Oliveira contra Cornélio Filho Gonçalves, 1933.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Jeronima Vivalda Tostão contra Mardomiro Sanches da Anunciação, 1934.
Auto civil de investigação de paternidade impetrado por Ladi Silva contra os herdeiros de
José Marques dos Santos, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Deolinda Lopes Pinto contra Mario
Farias Pinto, 1940.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Izaura Gomes de Lima contra Carlos Flaviano Nascimento, 1940.
Auto civil de investigação de paternidade cumulado com prestação de alimentos impetrado
por Maria Reis contra Dilermando Martins de Oliveira Mello, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Hermirena Nascimento dos Santos
contra Francisco Alves dos Santos, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Joana Pinheiro do Vale contra Edgar
dos Santos Vale, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Medina Iraty Albuquerque da Costa
contra Pedro Vieira da Costa, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria de Nazaré Cantão da Silva
contra João Carlos da Silva, 1940.
Auto civil de investigação de paternidade e petição de herança impetrado por Alzira
Gonçalves Galeão contra os herdeiros de Demetrio Moreira Pereira Lima, 1940.
325
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Hugolina da Graça Paraense contra
Wladimir Lobato Paraense, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Laura Soares de Souza contra Manoel
Felicio de Souza, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Luiza Alves contra Mario
Pereira Alves contra, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Idalia dos Santos Amaral contra João
da Costa Amaral, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Maria Ferreira de Jesus contra
Melchiades José das Neves, 1940.
Auto civil de prestação de alimentos impetrado por Ozana Fernandes Melo contra
Sebastião da Costa Melo, 1944.
1.4. AUTO DE RESTITUIÇÃO DE POSSE
Auto de restituição de posse impetrado por Salvador Souza e Cia contra Mario Cobas,
1927.
2. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ (APEP)
Auto civil de alimentos impetrado por Albina Sant`Anna de Azevedo Diniz contra Galdino
Antonio Diniz, 1927.
3. ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DE BELÉM
Auto de justificação de batismo e estado de solteiro de Guilhermino Augusto Fernandes e
Aurora Rodrigues de Azevedo, 1913.
4. JORNAIS E REVISTAS
“A Província do Pará: 1922; 1924.
326
“A Palavra”: 1916; 1917; 1918; 1919; 1920; 1921; 1922; 1923; 1924; 1925; 1926; 1927;
1928; 1929; 1930; 1931; 1932; 1933; 1934; 1935; 1936; 1937; 1938; 1939 e 1940.
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.
“Folha do Norte”: 1907; 1914; 1915; 1916; 1917; 1918; 1919; 1920; 1921; 1922; 1923;
1924; 1925; 1926; 1927; 1928; 1929; 1930; 1931; 1932; 1933; 1934; 1935; 1936; 1937;
1938, 1939 e 1940.
“O Estado do Pará”: 1938, 1939 e 1940.
“Revista A Semana”: 1919; 1920; 1921; 1922; 1923; 1924; 1925; 1926; 1927; 1928;
1929; 1930; 1931; 1932; 1933; 1934; 1935; 1936; 1937; 1938; 1939 e 1940.
“Revista Quero”: 1939; 1940.
Lindolpho Mesquita vulgo Vicente. Histórias do meu subúrbio: crônicas
humorísticas, 1941.
5. LEGISLAÇÃO
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo illustrissimo, e
reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito Arcebispado, e do
Conselho de sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo Diocesano, que o dito
senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro, 1853.
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Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial,
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Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1917.
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Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1940. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1941.
6. OBRAS DE ÉPOCA
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