Download PDF
ads:
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Senhoras de incerta condição: proprietárias de escravos em Desterro
na segunda metade do século XIX
Daniela Fernanda Sbravati
Dissertação apresentada como requisito parcial
à obtenção do grau de Mestre em História junto
ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador Profº Dr. Henrique Espada
Rodrigues Lima Filho.
Florianópolis, dezembro de 2008.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Senhoras de incerta condição: proprietárias de escravos em Desterro
na segunda metade do século XIX
Daniela Fernanda Sbravati
Banca:
Prof. Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho UFSC
(orientador e presidente)
Profa. Dra. Cláudia Mortari Malavota – UDESC (titular)
Profa. Dra. Fabiane Popinigis – UFSC (titular)
Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado – UFSC (suplente)
Florianópolis, dezembro de 2008.
ads:
II
DEDICATÓRIA
À Rita de Cássia, Maria Rita, Eufrásia, Maria José, Ignes,
Justina e tantas outras mulheres, in memoriam, às quais
devo a existência desse trabalho.
III
AGRADECIMENTOS
Ao agradecer, divido essa dissertação com pessoas que fizeram parte de sua
construção, direta ou indiretamente, seja por me ouvir, aconselhar, sugerir, criticar
quando necessário, consolar, abraçar, estimular...
À minha família pelo amor, carinho e dedicação de sempre. Ao Rapha por estar
comigo em todos os momentos e por me amar sem cobranças.
Ao professor Henrique Espada Lima, que nunca poupou de seu tempo para me
orientar, esse trabalho também é resultado de sua dedicação. Difícil será esquecer
nossas longas conversas, em que quase sempre ia para casa pensado “como não percebi
isso antes!”
Aos membros da banca: professora Cláudia Mortari, pelas conversas que
motivaram o tema dessa dissertação, professora Fabiane Popinigis, pela leitura atenta e
sensível do texto no exame de qualificação e professor Paulo Pinheiro Machado, por
suas sugestões nas aulas da linha, quando ainda discutíamos os projetos.
Ao professor Paulino de Jesus Cardoso por ter me ensinado muito do que
aprendi a respeito da temática da escravidão e pelas sugestões e leitura do texto no
exame de qualificação.
Aos bolsistas do projeto “Arranjos de liberdade e de trabalho entre a escravidão
e o pós- emancipação: um estudo sobre os fundos cartoriais na Ilha de Santa Catarina no
século XIX”, que digitalizaram parte dos documentos utilizados na pesquisa, em
especial ao Vitor, por ter me auxiliado tão prontamente na digitalização dos inventários
e testamentos.
Aos funcionários do Arquivo e Museu do Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina e Câmara Municipal de Florianópolis.
À CAPES, pela bolsa no final do primeiro ano de mestrado.
À Bete, Grazi, Pati, Iara, Marlene e Regina pela companhia sempre prazerosa,
pelos sorrisos e abraços sinceros.
Ao Fábio, Sara, Assis, Luísa, Tame, Pri Pivatto e Pri Testoni, por carregar tanto
de vocês comigo...
IV
RESUMO
A presença de mulheres proprietárias de escravos - viúvas e solteiras - foi recorrente na
cidade do Desterro (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil) na segunda metade do século
XIX. Essa dissertação pretende estudar as trajetórias individuais de algumas dessas
mulheres para tentar compreender as estratégias que usaram para construir suas vidas,
para lidar com as incertezas do cotidiano, tecer relações sociais e ter acesso a recursos
materiais e imateriais. Foram escolhidas entre as de posição média no plano econômico
e social: não eram as mais ricas, mas podiam atingir um nível de vida com certo
conforto, através do uso de arranjos diversos, inventando e reinventando seu dia-a-dia.
As fontes dessa dissertação são os registros notariais, sobretudo as cartas de liberdade e
contratos de locação de serviços, testamentos, inventários post-mortem, anúncios de
jornais, livros de receitas e registros financeiros da Câmara Municipal. Baseado nesses
documentos, esse trabalho tenta demonstrar a importância da propriedade escrava para
as estratégias de sobrevivência dessas mulheres, assim como os conflitos, tensões e
negociações que faziam parte de uma sociedade escravista e que construíram suas
possibilidades de lidar com a precariedade do cotidiano. Entretanto, a propriedade de
escravos era, para essas mulheres que muitas vezes viviam sozinhas, não apenas uma
garantia econômica, mas também uma fonte importante de status, suporte material e
companhia pessoal. Não de modo infreqüente, essas relações entre escravos (as) e seus
proprietários do sexo feminino dava espaço a algumas formas de companheirismo
amistoso (mesmo que desigual), ligações de afeto e de interdependência pessoal. Esses
relacionamentos eram, entretanto, cheios de ambigüidades, dada a natureza intrínseca de
uma troca desigual entre pessoas com interesses, perspectivas e recursos distintos. As
principais expectativas que dominavam esses intercâmbios desiguais eram a troca
possível entre garantias de sustento na velhice, por parte das proprietárias, e acesso à
liberdade legal e à propriedade para os escravos, ex-escravos e outros dependentes. A
inventividade das estratégias dessas mulheres e a riqueza das ligações que estabeleciam
com seus escravos e ex-escravos, seus arranjos de vida, não podem ser simplesmente
deduzidos de uma visão unilateral do Brasil do século XIX, que não prestasse atenção
ao caráter da experiência feminina nessa sociedade. Por outro lado, essa dissertação
tenta mostrar como os aspectos distintivos das vidas das mulheres podem, na verdade,
V
lançar luz sobre importantes aspectos gerais da sociedade brasileira na segunda metade
do século XIX.
Palavras-chave: Mulheres, Propriedade, Escravidão, Desterro (Florianópolis), Brasil -
Século XIX - História
VI
ABSTRACT
The presence of slave owning women - widows and singles - was recurrent in the city of
Desterro in the second half of the nineteenth-century (Florianópolis, Santa Catarina,
Brazil). This dissertation aims to study individual trajectories of some of these women,
trying to understant the strategies that they used to build their lives, to deal with the
incertitudes of the everyday life, to interweave social relationships and to reach material
and immaterial resources. These women were chosen in the middling social and
economical positions of this society: they were not very wealthy, but could reach a life
with an average comfort through the use of many and diversified arrangements,
inventing and reinventing their lives in a daily basis. The sources of this dissertation are:
notary registers like freedom letters and contracts of service loan, testaments, post
mortem inventories, newspaper adds, recipes books and the financial registers of the
Municipal Chamber. Based in these documents, this dissertation tries to demonstrate the
importance of slave ownership to these women's strategies of survival, as well as the
conflicts, tensions and negotiations that were part of the day-by-day of a slave society
and have build their possibilities of dealing with the precariousness of everyday life.
However, slave ownership was, for women who often lived by themselves, not only an
economical warranty but also an important source of status, material support and
personal company. Not infrequently, the relationship between slaves and their female
owners could give rise to some sort of friendly (even if unequal) companionship, links
of affection and personal inter-dependence. These relationships were, however, full of
ambiguities, due to the intrisecous nature of an unequal exchange between people with
different interests, perspectives and resources. The main expectations that dominated
these unequal relations were the possible exchange between the garanties of sustaining
and having physical assistance in old age for the owners and access to legal freedom
and property for the slaves or ex-slaves and dependents. The inventiveness of the
women strategies and the richesses of their links to their slaves and former slaves, their
life arrangements, cannot be deduced from an unilateral view of the nineteenth-
century Brazil, without paying attention to the character of the female experience in this
society. By the other hand, this dissertation tries to show how the distinctive aspects of
women's lifes can actually shade new lights on important general issues of the Brazilian
society in the second half of nineteenth-century.
VII
Keywords: Women, Property, Slavery, Desterro (Florianópolis), Brazil – nineteenth
century – History
VIII
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: População livre de Desterro em 1872.............................................................39
Tabela 2: População escrava de Desterro em 1872........................................................40
Tabela 3: Alforrias e contratos correspondentes a Desterro na segunda metade do
século XIX ......................................................................................................................63
Tabela 4: Cartas de alforria concedidas por sexo ..........................................................74
Tabela 5: Cartas de alforria concedidas por mulheres de acordo com o sexo do
alforriado.........................................................................................................................74
Tabela 6: Cartas de alforria concedidas por homens de acordo com o sexo do
alforriado.........................................................................................................................74
Tabela 7: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por
mulheres...........................................................................................................................75
Tabela 8: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por mulheres,
distribuídas por sexo........................................................................................................75
Tabela 9: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por
homens.............................................................................................................................75
Tabela 10: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por homens,
distribuídas por sexo........................................................................................................75
Tabela 11: Contratos de Locação de Serviços ...............................................................77
Tabela 12: Contratos de Locação de Serviços feitos por mulheres................................77
Tabela 13: Contratos de Locação de Serviços feitos por homens..................................77
IX
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa da província de Santa Catarina ...........................................................37
Figura 2: Mapa da Ilha de Santa Catarina e suas freguesias .........................................38
Figura 3: Vista de Desterro por Victor Meirelles, 1846 ................................................41
Figura 4: Rua João Pinto por Victor Meirelles, 1851 ....................................................41
Figura 5: Vista de Desterro por Victor Meirelles, 1847 ................................................42
Figura 6: Mapa de Desterro ...........................................................................................43
Figura 7: Vista panorâmica de Desterro ........................................................................44
Figura 8: A praia do Mercado nos fins do século XIX ..................................................52
X
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA ............................................................................................................... II
AGRADECIMENTOS ................................................................................................... III
RESUMO ....................................................................................................................... IV
ABSTRACT ................................................................................................................... VI
LISTA DE TABELAS ................................................................................................. VIII
LISTA DE FIGURAS .................................................................................................... IX
SUMÁRIO ........................................................................................................................ X
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1
CAPÍTULO I .................................................................................................................... 9
A sociedade luso-brasileira na segunda metade do século XIX ....................................... 9
1.1 Família e sociedade .............................................................................................. 10
1.2 Escravidão e relações de dependência .................................................................. 14
1.3 As mulheres, a lei, o dote ..................................................................................... 22
CAPÍTULO II ................................................................................................................. 35
Entre sinhás e senhores: propriedade escrava em Desterro ............................................ 35
2.1 A freguesia de Desterro ........................................................................................ 36
2.2. O trabalho das (os) cativas (os) e as suas senhoras ............................................. 49
2.3 Cartas de alforria: liberdade ou controle? ............................................................ 54
2.4 As mulheres, os cativos: algumas particularidades. ............................................. 60
CAPÍTULO III ............................................................................................................... 82
Chefes de família e proprietárias de escravos ................................................................ 82
3.1 Sobre os Inventários e Testamentos ..................................................................... 83
3.2 Mulheres solteiras ................................................................................................. 84
3.3 Mulheres viúvas .................................................................................................... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 105
FONTES ....................................................................................................................... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 112
1
INTRODUÇÃO
“O documento não é inócuo. É, antes de mais nada,
o resultado de uma montagem, consciente ou
inconsciente, da história, da época, das sociedades
que o produziram, mas também das épocas
sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez
esquecido, durante as quais continuou a ser
manipulado, ainda que pelo silêncio”.
1
LE GOFF, Jacques, 2003
No ano de 1861 foi aberto o testamento de Dona Maria Rita da Conceição, por
ocasião do seu falecimento, na cidade do Desterro, Santa Catarina:
Declaro que sou solteira natural desta cidade de Desterro filha
legitima de Bartolomeu Rodrigues Pereira e de Dona Victoria Maria
de Jesus, ambos falecidos e por isso não tenho ascendentes nem
descendentes (...). Declaro que os únicos bens que possuo uma
morada de casas térreas que faz frente ao lado da igreja Matriz
dessa cidade, contestando pelo sul com casas do Tenente Coronel
Luiz Ferreira do Nascimento e pelo norte com casas de Mariano
Roza. Declaro que instituo por herdeiros das ditas minhas casas
acima mencionadas as minhas crias libertas Leocadia e Maria da
Conceição e suas duas filhas Francisca e Carlota, a Cândida Maria
do Sacramento, Jacintha Maria da Trindade e todos os seus filhos e
igualmente as minhas crias Francisco de Paula Bertho e Guilherme
crioulo os quais são meus herdeiros instituídos. Declaro que meus
herdeiros instituídos não poderão vender em tempo algum as ditas
moradas de casas que lhes deixo devendo morar sempre juntos
enquanto existirem.
2
O documento citado, cuja análise está presente no terceiro capítulo dessa dissertação,
aponta para um dos principais aspectos da pesquisa: a relação existente entre uma
senhora de escravos e os homens e mulheres que legalmente possuía. Maria Rita da
Conceição era uma mulher solteira e proprietária de escravos, como outras que
existiram em Desterro na segunda metade do século XIX. Seu testamento, embora seja
indicativo de afeto e preocupação para com os cativos, traz a tona as ambigüidades
existentes neste tipo de relação. A tutela a qual submete seus ex-escravos mesmo após
sua morte é resultado não de um sentimento de posse que ultrapassava até os limites
de sua presença física, mas também da descrença de que as pessoas a quem destina seus
1
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p.548.
2
Arquivo Central do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (ACTJSC), Inventário de Maria Rita da
Conceição, 1861.
2
bens poderiam gerenciar sua própria vida. O afeto era uma possibilidade, porém não
isentava do desejo de controle e de subordinação.
História não muito diferente da de Inácia, relatada por Sandra Graham.
3
Senhora
solteira no Vale do Paraíba, Inácia Delfina Werneck, havia deixado em testamento parte
de seus bens – inclusive escravos – para uma família de ex-escravos de sua propriedade.
Com encaminhamentos bem detalhados, demonstrou o desejo de continuar controlando
a vida dos ex-cativos mesmo após sua morte. Ao trazer a tona a história de Inácia,
Graham trabalha com uma intrincada rede de dependência, ressaltando a importância
dos laços de solidariedade e parte das dificuldades encontradas pelas mulheres e pelos
cativos, para sobreviverem numa sociedade estratificada, como a brasileira na segunda
metade do século XIX.
Em minha pesquisa outras histórias protagonizadas por mulheres e escravos se
fizeram presentes, tendo como cenário Desterro, principal freguesia da Ilha de Santa
Catarina.
4
O marco temporal é definido pela segunda metade do século XIX, período
em que, a partir da proibição do tráfico Atlântico de escravos em 1850 e a conseqüente
intensificação do tráfico interprovincial, iniciaram-se as discussões acerca da validade
da instituição escravista. O maior espaço de luta aos escravos pela sua liberdade, as
estratégias criadas e negociações feitas entre senhores e seus cativos interferiram
significativamente na vida e nas relações de toda a população do país. A despeito de
Desterro não se configurar numa área de plantation, dependia significativamente do
trabalho escravo.
Por concentrar o porto mais importante da província de Santa Catarina, Desterro
possibilitou o acúmulo de riquezas e a criação de uma classe próspera de comerciantes e
armadores. Surgiram casas comerciais na cidade, especialmente as de comércio de
alimentos.
5
A importação de gênero e utilidades cresceu na segunda metade do século
XIX pelas novas necessidades de uma população que estava aumentando e firmava sua
3
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
4
No ano de 1872, havia na Ilha de Santa Catarina aproximadamente 22.760 habitantes livres, dos quais
7.486 viviam em Desterro. Ver: CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiências de
populações de origem africana em Florianópolis, 1860/ 1888. Tese de doutorado, o Paulo: PUC, 2004,
p. 31. Configurava-se na única freguesia urbana onde se verificava a maior concentração cativa. Isto quer
dizer que os escravos em sua maioria não eram empregados na lavoura, cuja atividade se processava fora
de seus limites. Ver: CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis:
Lunardelli, 1979, v. 2, p.380.
5
PEDRO, Joana Maria. Mulheres do Sul. In: História das mulheres o Brasil. São Paulo: Contexto, 2006,
p. 284
3
economia e com a intensificação do comércio, despontaram pequenas fortunas.
6
Entretanto, a urbanização insipiente tornou a cidade espaço de sobrevivência de
mulheres e homens que buscavam brechas para superarem a ameaça da miséria. Para
alguns a propriedade escrava se configurou numa importante estratégia. Ao menos para
Dona Eufrásia Xavier Caldeira sim... Essa senhora declarou, no dia 04 de agosto, do ano
de 1851 que:
achando-me separada do meu marido por motivo de sevicia, tratando
no Juízo Eclesiástico, e municipal das competentes Ações de
separação de foro, e alimentos, e não tendo podido alimentar-me do
necessário, nem pagar a maior parte das despesas que tenho feito a
perto de três anos, tanto com as ditadas coisas, como com o curativo
dos escravos Jacinto e Feliciana em que judicialmente me foram
estipulados, os referidos alimentos, recebi da minha escrava Maria
José a quantia de cento e doze mil réis, em dinheiro para me suprir
daquelas despesas, por conta da sua liberdade, que lhe prometo dar
tanto em razão dos seus bons serviços e me ter acompanhado desde a
minha separação, como pela lealdade que sempre me guardou
repelindo as seduções ilícitas de seu senhor; e por isso lhe confiro
pelo presente a sua inteira liberdade, com a única condição de me
acompanhar enquanto eu viva for.
7
Foi recorrente a presença de proprietárias de escravos que viveram na freguesia
de Desterro e a pesquisa em questão pretende abarcar parte do cotidiano dessas
mulheres, bem como as estratégias que utilizavam para construir suas vidas, lidar com
as incertezas, tecer relações sociais, ter acesso a recursos materiais e imateriais, enfim,
sobreviver. O objetivo central é apreender, a partir de experiências específicas de
mulheres e seus cativos, a maneira pela qual estava estruturada a sociedade brasileira na
segunda metade do século XIX e ainda explorar as dinâmicas sociais específicas de
Desterro.
Na perspectiva da micro-história social, busco através do estudo pormenorizado,
investigar questões mais amplas, dando ênfase ao estudo do indivíduo como ator social.
Torna-se necessário a “reconstituição” do particular, ligado a um contexto mais amplo,
Portanto não basta estudar Desterro como se estivesse descolada do resto do país, é
necessário compreender como funcionava a sociedade brasileira e que Desterro fazia
parte dela.
8
Na análise micro-histórica é de fundamental importância o cruzamento de
6
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli, 1979, v. 1, 223 e
367.
7
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Maria José”. Livro 29 de notas do segundo ofício do
cartório de Desterro, 1866, fls 79v e 80.
8
Uma história micro não rejeita a história geral, ao contrário, o contexto é um ponto de chegada, o
resultado da organização dos fatos e das escolhas. A ação individual pode constituir-se como a exceção
do modelo geral e desta forma questioná-lo em sua abrangência, ou ainda, a partir das irregularidades e
4
fontes, objetivando trazer a tona trajetórias de vida. Nesse caso me baseio em Sidney
Chalhoub, que ao “perseguir pegadas”, vai desvendando e revelando sobre as vidas e
vontades dos escravos, mas também sobre as maneiras conflitantes como estes e seus
senhores viam determinadas situações. O que para proprietários era concessão, para os
escravos eram direitos conquistados através de negociações e conflitos.
9
As relações históricas são construídas por homens e mulheres com base em
tensões, conflitos e resistências. Dessa maneira a relação entre senhoras e escravos é
resultado de suas ações enquanto sujeitos históricos.
10
É necessário levar em
consideração que fatores externos determinam a ação desses sujeitos, ou seja, a presença
das mulheres proprietárias modifica ou interfere na ação dos escravos, assim como o
contrário também ocorre.
Não a intenção de reconstruir uma experiência comum, pois as expectativas
das mulheres proprietárias, bem como de seus escravos poderiam ser heterogêneas e o
conjunto de questionamentos a serem tratados no decorrer da dissertação dizem respeito
a estas expectativas.
Pretendo construir trajetórias de vida através de fontes documentais como
inventários post mortem, testamentos, cartas de alforria e contratos de locação de
serviços referentes à Desterro, inspirando-me na análise micro-histórica.
Os primeiros documentos que explorei nessa pesquisa constituíam-se de
inventários e testamentos e meus objetivos estavam voltados para a questão escravista.
11
Entretanto algo chamava profundamente minha atenção, em primeiro lugar Desterro era
uma localidade pequena, se comparada aos centros agro-exportadores e um local onde a
historiografia durante algum tempo considerou a escravidão amena ou de pouca
contradições internas desvendar porque as coisas mudam, de que forma as “leis” foram construídas. A
coerência entre o micro e o macro é necessária, pois o particular não teria sentido sem o “universal”. A
micro-história nasceu por volta dos anos 70, na Itália, a partir de experiências historiográficas
heterogêneas, apontando deficiências no modelo macro-histórico. De acordo com Revel, “a micro-história
nasceu como uma reação frente a um certo estado da história social, da qual ela sugere formular
concepções, exigências e procedimentos. Ela pode ter, nesse ponto de vista, valor de sintoma
historiográfico”. Apesar das diversas formas em que se apresenta, esse campo de análise possui uma
característica comum: a atenção que se dá ao ator social e ao que está no espaço do “vivido”. Ver:
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jogos de Escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 16.
9
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 43-56.
10
LARA, Silvia. Hunold. “Blowin in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto
História, São Paulo, (12), out. 1995, p. 36.
11
De agosto de 2001 a dezembro de 2002 fui bolsista do CNP’q com o projeto “A escravidão africana na
Ilha de Santa Catarina na década da abolição”, coordenado pelo professor doutor Paulino de Jesus
Cardoso, do Centro de Ciências da Educação da UDESC. A pesquisa ocorria no ACTJSC, onde estavam
os processos de Inventários post mortem e Testamentos.
5
importância.
12
Dadas as especificidades dessa localidade, o número de proprietários de
escravos que encontrei na documentação pesquisada, a princípio, destoava e muito da
idéia de uma escravidão amena ou quase insignificante.
Os documentos evidenciavam a significativa existência de proprietários e para
minha surpresa de proprietárias também. Talvez por sempre ouvir falar dos senhores de
escravos e nunca das senhoras, esse dado aguçou minha curiosidade e tentar
compreender o papel das mulheres proprietárias de escravos na freguesia de Desterro foi
meu primeiro impulso.
A pesquisa estendeu-se para os documentos pertencentes aos cartórios do e
ofício de notas de Desterro.
13
C
om essa documentação deparei-me com mulheres
comprando e vendendo os mais diversos tipos de propriedade, alforriando escravos,
contratando serviços de libertos e passando procurações. Em relação ainda aos
inventários e testamentos, eram feitos para homens e mulheres que deixaram algum bem
material. São da segunda metade do século XIX, compreendendo as décadas de 50, 60,
70 e 80.
14
Para a análise desses documentos busquei auxílio em pesquisas já realizadas e
que tiveram como elemento principal os inventários e testamentos e/ou cartas de
alforria.
15
12
CARDSOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas.
Florianópolis: Insular, 2000.
Algumas pesquisas realizadas sobre Desterro deram fim a esta idéia de uma escravidão insignificante.
Ver: CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana
em Florianópolis, 1860/1888. São Paulo: PUC, 2004. Tese (Doutorado em História); GEREMIAS,
Patrícia Ramos. Filhos “livres” de mães cativas: os “ingênuos” e os laços familiares das populações de
origem africana em Desterro na década da abolição. Florianópolis: UDESC, 2001. Monografia
(Graduação em História); MORTARI, Claudia. Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a
irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Porto alegre: PUC, 2000. Dissertação (Mestrado em História);
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-
1888. Florianópolis: UFSC, 2006. Dissertação (Mestrado em História), entre outros.
13
Os documentos do Cartório Kotzias foram digitalizados e transcritos por parte da equipe do projeto
“Arranjos de liberdade e de trabalho entre a escravidão e o pós- emancipação: um estudo sobre os fundos
cartoriais na Ilha de Santa Catarina no século XIX”, sob coordenação do professor Dr. Henrique Espada
Lima, do departamento de História da UFSC e por Tamelusa Ceccato do Amaral, integrante do Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros, do departamento de História da UDESC, sob coordenação do professor Dr.
Paulino de Jesus Cardoso. De um total de 428 alforrias concedidas por mulheres, no período de 1849 a
1887, 245 diziam respeito a proprietárias de escravos da Freguesia de Desterro. Ver tabela da p. 64.
14
Os documentos a que me refiro encontravam-se no Arquivo Central do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina. Recentemente, devido à falta de espaço no setor, foram transportados para um depósito - local
de difícil acesso e sem as mínimas condições de armazenagem da documentação. Parte dos documentos,
que correspondem aos processos utilizados nesta pesquisa, ficou no museu do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina.
15
Além dos trabalhos citados na nota 12, ver: FARIAS, Joice. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
da Lagoa. Niterói: UFF, 2003. Dissertação (Mestrado em História); AMARAL,Tamelusa Ceccato do. As
“camélias” de Desterro. A campanha abolicionista e a prática de alforriar cativos (1870-1888).
Florianópolis: UDESC, 2006. Monografia (Especialização em História); PENNA, Clemente Gentil.
Escravidão, liberdade e arranjos de trabalho nas últimas décadas da escravidão na Ilha de Santa Catarina.
Florianópolis: UFSC, 2005. Dissertação (Mestrado em História).
6
As cartas de alforria e contratos de locação de serviços trazem informações
importantes na medida em que se torna possível, em alguns casos, perceber o
movimento, o momento em que as ações aconteciam e as razões pelas quais aconteciam.
Demonstram em alguns momentos claramente, em outros sutilmente, as negociações
existentes entre senhoras e escravos ou libertos. É possível perceber através das alforrias
condicionais e contratos de locação de serviços a produção de dependentes e a partir de
algumas justificativas de alforria, laços de afetividade. Os registros de alforrias
identificam nominalmente o escravo e seu(s) senhor(es), bem como as testemunhas,
valores e condições envolvidos na liberdade. Os contratos, por outro lado, identificam
nominalmente os contraentes (liberto/devedor, patrão/credor), os antigos senhores
(quando mencionados), testemunhas e outros nomes citados; além disso, identificam
informações sobre sexo, ocupação, estado civil e origem étnica do contratado, valores e
prazos envolvidos no contrato.
A partir dos inventários é possível saber sobre a vida material de determinada
família, bem como seus investimentos, através das propriedades, dívidas e herdeiros. Os
testamentos nos dão informações mais profundas do que somente as materiais, pois esse
tipo de fonte nos permite o conhecimento da origem e o nome dos pais do testador,
número de casamentos, número de filhos, inclusive os já falecidos, detalhes sobre
relações estabelecidas entre familiares ou não e redes de solidariedade que iam muito
além da relação senhora/ escravo.
Procurando dar conta dos objetivos propostos, a dissertação está divida em três
capítulos. Inicio com uma discussão sobre a sociedade brasileira
16
e a maneira como as
mulheres e os escravos estavam inseridos nela. Utilizando a bibliografia sobre o tema,
discuti a atuação feminina em algumas localidades do país, o que implicou em trazer à
tona assuntos como a família patriarcal, a escravidão e a legislação, que as mulheres
não construíram um mundo a parte, isoladas do resto da sociedade. Procurei introduzir
Desterro ao longo dessa discussão, utilizando para tanto as fontes já citadas.
No segundo capítulo escrevi sobre Desterro e a província onde se localizava,
buscando identificar algumas características econômicas e sociais da região. Fiz uma
amostragem da documentação utilizada e algumas comparações entre os números
referentes a mulheres e homens, apresentando alguns casos específicos. Uma discussão
16
É importante ressaltar que a “sociedade brasileira a qual me refiro não compõe um quadro
homogêneo, desta forma não faz parte dos objetivos dessa pesquisa compor generalizações ou quadros
auto-explicativos. Por outro lado, torna-se tarefa difícil dar conta da abrangência desse termo.
7
bibliográfica sobre alforrias é utilizada como auxílio para interrogar as cartas de
liberdade analisadas no texto. Portanto, esse capítulo, além de situar de modo mais
amplo a localidade de estudo, pretende também anunciar sobre as relações estabelecidas
entre proprietárias e cativos e suas estratégias de sobrevivência.
No terceiro e último capítulo, construo episódios envolvendo viúvas e solteiras,
a partir de testamentos e inventários. Os documentos expostos não têm objetivos
quantitativos e embora exista uma infinidade de histórias que poderiam ser contadas e
revelariam aspectos importantes da sociedade, optei por concentrar a análise dessa parte
do texto em alguns documentos que me inspiraram desde o início da construção desse
esforço dissertativo.
É possível construir parte da experiência de mulheres proprietárias e seus cativos
a partir das fontes. Entretanto, como lembra Hobsbawm, “não podemos ser positivistas,
acreditando que as perguntas e as respostas surgem naturalmente do estudo do material.
Em geral, não existe material algum até que nossas perguntas o tenham revelado”.
17
Portanto, os questionamentos constituem em parte, o método utilizado pelo historiador,
que deve ter consciência do que deseja da fonte pesquisada. Nem sempre isso é possível
num primeiro momento. A aproximação e conhecimento em relação ao tema
possibilitarão a definição do que é ou não importante. E ainda assim, a sensação de que
algo ficou para trás é constante.
É necessário ter consciência que tratamos de vontades diferentes. Possivelmente
quem escreveu o documento não demonstrou o que pensavam e desejavam as pessoas
envolvidas nele. E ao falarmos ainda das senhoras e seus cativos, assim como de
quaisquer outros sujeitos históricos, “selecionar unicamente a vontade de um dos
agentes ou privilegiar apenas necessidades e razões econômicas para a análise desta
relação, constituem procedimentos capazes de produzir somente uma versão
(transformada em explicação) deste processo”.
18
Não é possível apreender todas as mulheres e cativos que aparecem nesse
universo documental, por isso concentro-me em algumas trajetórias que trazem
elementos distintivos de suas experiências comuns.
O que pretendiam essas mulheres e o que lhes era possível fazer? Até que ponto
suas ações eram limitadas e onde encontravam brechas para superarem esses limites?
17
HOBSBAWM, Eric J. “A história de baixo para cima.” In Sobre História. São Paulo: Cia das Letras,
1998, p.220.
18
LARA, Silvia. Hunold. “Blowin in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto
História, São Paulo, (12), out. 1995, p.47.
8
Questões como essas são respondidas em certa medida e as análises feitas tornam
possível buscar um elo com o presente, já que o trabalho historiográfico não visa apenas
descobrir o passado. Ao desvendar a vida de pessoas comuns encontramos elementos
que nos permitem saber por que as coisas aconteceram de uma maneira e não de outra e
a compreender não sobre a sociedade do ontem, mas também a de hoje.
19
Uma das
tarefas do historiador é descobrir as vidas e pensamentos das pessoas comuns, e no
presente, nosso problema é também o de desmontar visões estereotipadas e
deterministas que são impostas às pessoas. A história estando em constante movimento
nos permite questionar e inquietar.
20
Trajetórias de vida específicas nos revelam sobre a sociedade, demonstrando que
aquilo que as pessoas queriam e necessitavam nem sempre foi aquilo que seus
superiores, ou aqueles que eram mais influentes, achavam que deveriam querer. “É
importante nos lembramos de vez em quando que não sabemos todas as respostas sobre
a sociedade e que o processo de descobri-las não é simples”.
21
Pois não nos basta ver o
passado em termos do presente, ao contrário, se o fizermos, teremos aí um problema.
19
HOBSBAWM, Eric J. “A história de baixo para cima.”, p.230.
20
Idem, Ibidem, p. 230.
21
Idem, p.31.
9
CAPÍTULO I
A sociedade luso-brasileira na segunda metade do século XIX
Dentre as muitas transformações ocorridas no século XIX, podemos considerar a
consolidação do capitalismo como uma das mais importantes. Essa situação resultou em
mudanças na estrutura familiar, o que alterou também os papéis ocupados pelas pessoas
no interior dessa organização.
1
O surgimento dos centros urbanos oferecia novas
alternativas de convivência social e as camadas médias, constituídas por comerciantes,
tiveram espaço significativo em regiões como Desterro, caracterizadas pela atividade
portuária.
Os setores médios da população eram compostos por pessoas remediadas, que
não se destacavam por seus bens, ou seja, não possuíam grandes fortunas, mas poderiam
ter uma vida confortável. Em alguma medida foram responsáveis pela continuidade do
sistema escravista. Até 1850 a escravidão e a oferta de escravos de certa forma baratos
desempenharam papel fundamental na acumulação de riqueza de comerciantes,
profissionais liberais e dos que viviam de renda. Zephyr Frank demonstra através de
inventários post mortem, que no Rio de Janeiro a propriedade escrava foi recurso mais
utilizado pelos setores médios do que pelos possuidores de grandes fortunas. O fim do
tráfico atlântico provocou um aumento nos preços dos cativos, valorizando em princípio
as fortunas medianas. Aos poucos, a escassez da mercadoria escrava tornou mais difícil
o acesso a esse tipo de propriedade, sendo caminho menos fácil para o enriquecimento
dos setores médios a partir da segunda metade do século XIX.
2
Desterro possuía um porto bastante freqüentado, para onde convergiam produtos
de outras partes da província. E, segundo Cabral, não ficava nisso, pois no porto se
abastecia os navios maiores para viagens mais longas, o que obrigava o comércio local a
ter a oferecer os gêneros solicitados: aguardaente, arroz, açúcar, azeite, doce de
amendoim, bolachas, bacalhau, café, carne fresca, carne salgada, farinha, feijão, lenha,
1
D’INCÃO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: História das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2006, p.223.
2
FRANK, Zephyr L. Dutra’s World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004.
10
pão, sal, toucinho e vinagre.
3
Do que saía, cobrava-se um imposto denominado
“imposto literário”, concedido desde 1720 para rendimento da Câmara.
4
Desde o século
XVIII, comerciantes acumulavam riquezas com o controle da produção de gêneros de
primeira necessidade para os habitantes locais, e da exportação de produtos para a corte
do Rio de Janeiro e outras regiões do país e da América.
5
A população masculina de Desterro, em função de ser uma cidade portuária, era
composta por funcionários marítimos e militares, gente em movimento, desenvolvendo
seu trabalho ou buscando novas oportunidades. Por essa razão, constituía-se também
num espaço de mulheres sozinhas, muitas vezes abandonadas pelos maridos.
6
Esse capítulo pretende evidenciar as transformações ocorridas no século XIX,
relacionadas ao crescimento do capitalismo, do comércio e das áreas urbanas,
analisando o papel da escravidão e das mulheres “sozinhas” dos setores médios, nesse
processo.
1.1 Família e sociedade
Durante todo o período colonial e imperial brasileiro, a família constituiu-se na
instituição mais importante. Na época colonial, principalmente, uma intrincada rede de
dependências constituía as famílias, que eram na sua maioria extensas e, neste caso, os
laços familiares se estendiam além do sangue, pois dependentes de toda ordem e até
mesmo os escravos faziam parte da sua estrutura. Os fundamentos do poder
concentravam-se na posse de terras, de escravos e em símbolos de prestígio nas mãos de
poucos que constituíam as elites locais. Essa situação ocorria não somente nas áreas de
exportação, como também nas áreas de abastecimento interno.
7
A família era o centro
da produção e do consumo, portanto era considerada uma “empresa produtiva” e onde
as relações de parentesco estendiam-se para além dos laços de consangüinidade.
3
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli, 1979, v. 1, p.
367.
4
Idem, Ibidem, p.374.
5
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888. São Paulo: PUC, 2004. Tese (Doutorado em História) p. 52.
6
Idem, Ibidem, p. 115.
7
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. São Paulo:
EDUSC, 2003, p.29.
11
As transformações ocorridas no Brasil na segunda metade do século XIX estão
em alguma medida relacionadas às transformações ocorridas no interior da família
patriarcal. Se o modelo predominante e a fonte de riqueza no Brasil colonial era a
família extensa, entre os séculos XVIII e XIX a situação mudará em muitas localidades
do Brasil, principalmente aquelas que começam a experimentar as transformações
oriundas da urbanização. A fonte da riqueza de São Paulo no final do século XVIII, por
exemplo, deixa de ser a grande propriedade familiar, pois comerciantes atacadistas
passam a ser os habitantes mais ricos. Um jovem podia constituir capital através do
comércio, fazendo sociedade com pessoas alheias ao seu círculo familiar, que não era
a única opção para os negócios.
8
O declínio do papel coorporativo da família deu espaço ao individualismo e ao
consumo. ainda, nos centros urbanos o surgimento de famílias possuidoras de
poucos bens, morando de aluguel, vivendo de renda, porém exibindo status de elite
principalmente pelas relações que mantinham. Segundo Nazzari, essas famílias
representavam o começo de uma classe média e aponta como exemplo a estrutura
familiar do Dr. João Thomaz de Mello, médico homeopata. Quando morreu, em 1859,
os seus bens consistiam somente em grande quantidade de móveis de muito valor, um
cavalo e sete escravos. Tinha mais dívidas que bens, entretanto seu padrão de vida era
muito elevado. A família vivia da renda da profissão do médico, além da renda obtida
com o aluguel dos escravos. Uma importante característica desse tipo de estrutura, é que
se constituíam em unidades de consumo e não de produção. O marido prestava serviços
(produzindo como indivíduo) e a família somente consumia.
9
Na documentação pesquisada para Desterro, encontramos diferentes formas de
organização familiar. Desde a família nuclear até aquelas compostas por mulheres
solteiras ou viúvas e agregados, que viviam do comércio, do aluguel de escravos e de
casas. No ano de 1880, faleceu em Desterro o Major Estanislau da Conceição, deixando
como herdeiras a esposa, Maria Elisia Shutel da Conceição e a filha menor de nome
Adelaide. Em seu inventário uma lista detalhada dos bens móveis e utensílios que
possuíam: um piano, uma mobília de mogno, dois guarda-louças, três camas de casal,
duas camas pequenas, dois guarda-roupas, duas cômodas, um lavatório com tampo de
mármore, uma mesa elástica de jantar, um aparador, cinco pares de vasos para flores,
8
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.103.
9
Idem, Ibidem, p.153 e 163.
12
um aparelho de metal para chá, um dito de porcelana, um relógio de parede, dois
relógios de ouro com corrente, dois chicotes de prata, um alfinete de brilhantes, um
trancelim de ouro, um revólver, uma espingarda, prata. Esses objetos totalizavam
1:815$000. Possuíam bens semoventes e quatro escravos: Bernardo de nação, 60 anos
(100$000), José crioulo, 40 anos (400$000), José Pardo, 20 anos (1:500$000), Carlos
crioulo, 18 anos (1:000$000). Eram proprietários de uma farmácia situada no largo do
palácio.
10
Eram comerciantes e possivelmente complementavam sua renda com o
aluguel dos cativos, que, com exceção de Bernardo, pela idade, eram valorizados. Os
bens listados demonstram que viviam com certa pompa, principalmente pela presença
do piano produto importado da Europa.
11
Esse caso revela sobre uma estrutura
bastante comum para o período, a família nuclear, composta por um pequeno número de
pessoas, não se estendendo além dos laços sanguíneos. Não se caracterizavam numa
“unidade produtiva” e embora oferecessem bens para o consumo, com seu comércio,
eram também consumidores. casos que são diferentes dessa organização familiar,
como o de Rita Maria Rita da Conceição, citada na introdução, em que os nomes que
aparecem no inventário são de escravos e libertos que viviam em sua companhia,
compondo, portanto sua família.
Contrapondo-se à diversidade que abarca o conceito de família, cristalizou-se
uma idéia de que o homem era o chefe da casa, da mulher, dos escravos e todo o poder
se concentrava na figura do senhor. Esta idéia bastante difundida pela historiografia foi
baseada nos estudos de Gilberto Freyre e é considerada decisiva na construção do
modelo de família patriarcal brasileira. Para o autor:
Vencido o Jesuíta, o senhor de engenho ficou dominando quase
sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os vice-reis e os
bispos. A força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais, donos
das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas casas
representaram esse imenso poderio feudal. “Feias e fortes”. Paredes
grossas. Alicerces profundos.
12
Moravam todos na casa-grande, filhos, agregados escravos sob o jugo do
patriarca. Este enfoque, que tinha muito mais a intenção de falar do engenho do que da
10
ACTJSC, Inventário do Major Estanislau da Conceição, 1880.
11
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e ordem privada no Império. In:História da vida privada
no Brasil 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 47.
12
FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala: as origens da família patriarcal brasileira. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1987, p. 75.
13
cidade, sofreu críticas por parte de alguns historiadores
13
e pesquisas atuais fazem-se em
oposição a este modelo que aparece como fixo e homogêneo, sem levar em
consideração especificidades acerca do local estudado. A família do sul do país
mostrou-se diferente daquela descrita por Freyre no Nordeste. Segundo Eni Samara,
estudos posteriores apresentaram resultados que revelaram ser impossível conceber uma
imagem única de família aplicável ao longo do tempo para os vários segmentos sociais.
Havia que se ter em mente as diferenças de etnia e de classe para se entender a
sociedade brasileira.
14
A estrutura da família patriarcal era um modelo das relações
sociais na fazenda e no engenho que acabou influenciando as interpretações da família
no ambiente urbano, trazendo a tona algumas contradições, como o caso das mulheres
chefes de domicílio nas cidades. Dessa forma, percebe-se que casos como o de Bernarda
Roza, que no ano de 1866, em Desterro, morreu solteira e com uma filha natural, não
eram exceções.
15
As análises sobre as diferentes formas de organização familiar no Brasil tiveram
início na década de 1970 e foram utilizadas como base em estudos desenvolvidos na
década de 1980. A partir de reflexões acerca da família, novos campos de pesquisa
sobre a história das mulheres, a sexualidade, a criança e as relações de gênero marcam
definitivamente a produção dos últimos anos, colocou-se em questão a posição da
mulher nessa sociedade.
16
Algumas concepções buscam uma reflexão mais ampla sobre
os significados do paternalismo, que escapam da visão que prioriza o olhar senhorial (e
masculino), mostrando as brechas e a atuação dos dependentes, como fez, aliás, a
historiografia sobre a escravidão.
13
Eni de Mesquita Samara em suas pesquisas desmonta a imagem de família patriarcal construída por
Freyre, a partir do momento em que comprova que em São Paulo no século XIX, as famílias patriarcais
não chegavam a representar 26% dos domicílios. SAMARA, Eni de Mesquita. “Tendências atuais da
história da família no Brasil”. In ALMEIDA, Ângela Mendes de (org). Pensando a família no Brasil. Rio
de Janeiro. Espaço e Tempo & Editora da UFRJ, 1987, p. 31. Maria Odila Dias detecta para São Paulo,
desde o século XVII, presença maciça de mulheres na população da cidade mulheres s de marido
ausentes. Na época da independência, sabia-se que quase 40% dos moradores da cidade eram mulheres
sós, chefes de família, muitas delas concubinas e mães solteiras. DIAS, Maria Odila Leite da Silva.
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 30. As duas autoras
tratam de uma região diferente da estudada por Freyre, demonstrando que sua visão generalizante estava
equivocada. Havia muito a se pesquisar, além dos grandes senhores. Segundo Sheila Faria os trabalhos
que contestam a chamada “família patriarcal” e “extensa” de Gilberto Freyre, são relativos a São Paulo e
Minas Gerais, nos finais do século XVIII e XIX. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento.
Família e fortuna no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p 50.
14
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII, p.20.
15
ACTJSC, Inventário de Bernarda Roza, 1866.
16
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Família e fortuna no cotidiano colonial, p. 48.
14
O patriarcalismo e a família extensa não foram predominantes em muitos lugares
do Brasil, entretanto foram amplamente aceitos pela historiografia brasileira. Gilberto
Freyre e outros autores que compartilhavam seu modo de pensar queriam entender a
origem do caráter brasileiro e acreditavam que encontrariam a resposta para seus
questionamentos estudando a casa-grande.
17
Os que estivessem de fora desta estrutura
não deveriam ser considerados.
As estruturas não dão conta de explicar as atuações de homens e mulheres,
portanto, torna-se eficaz estudar suas estratégias de sobrevivência e as brechas
existentes no sistema, dando ênfase às histórias dos sujeitos que tinham suas ações
limitadas pela difundida idéia do poder patriarcal, mas que agiam e reagiam
constantemente. Relações foram estabelecidas neste período e nem sempre entre iguais.
1.2 Escravidão e relações de dependência
Após o fim do tráfico Atlântico de escravos, em 1850, alguns problemas
surgiram para a economia brasileira. Não se poderia mais contar com a constante
reposição de africanos e tornou-se necessário buscar alternativas para manter a mão de
obra nas principais áreas de produção agrícola movidas com o braço escravo. O tráfico
interno foi uma delas, intercambiando escravos entre as províncias. Essa situação
promoveu a intensificação da atividade portuária em algumas regiões do país,
ocasionando, em vários lugares, aceleração do processo de urbanização.
18
Na década de 1870, a transferência de escravos com o tráfico interprovincial
provocou conflitos e tensões, principalmente no sudeste, lugar para onde iam a maior
parte dos escravos vendidos no tráfico interno. Os transferidos eram em geral nascidos
no Brasil e o afastamento forçado de seus familiares e amigos era uma experiência
traumática, além de terem que se habituar a um tipo de vida que lhes era
desconhecido.
19
De Desterro e de outras freguesias de Santa Catarina saíram muitos
17
Esse tipo de enfoque também está presente em Antonio Candido Souza e Sérgio Buarque de Holanda.
Ver: FARIA, Sheila de Castro, A colônia em movimento. Família e fortuna no cotidiano colonial, p 46.
18
ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas
de transição. 1871 – 1895. Campinas: Áreas de Publicações CMU/ UNICAMP, 1997, p. 34.
19
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 58.
15
escravos para o sudeste, como demonstra episódio relatado em artigo do jornal “O
Conservador”, em 1873:
Tentativa de suicídio pretendera suicidar-se ontem na ocasião de
embarcar para o Rio de Janeiro, um crioulo do negociante Jorge de
Souza Conceição. Motivou este ato de loucura, segundo consta, o
engano de que se serviram para ele embarcar, persuadindo-lhe que ia
para Canasvieiras, o que dando logo por isso se lançou ao mar, sendo
salvo pela tripulação do bote com muita dificuldade.
A lei da emancipação devia ser mais benigna em favor desses
infelizes; às vezes o amor a ganância de obter-se na corte um alto
preço, faz desprezar e entorpecer os sentimentos de humanidade,
obrigando-se assim a esta classe desfavorecida a abandonar afeições
caras, e até o amor do torrão em que nascerão que pode nela ser um
sentimento muito natural.
20
As transformações em curso, entretanto, ampliavam as possibilidades de
emancipação dos escravos, que souberam explorar os novos caminhos, abertos,
sobretudo após a Lei Rio Branco, em 1871. Até então era no âmbito do privado que se
davam as negociações entre senhores e cativos, a partir da criação de leis que versavam
sobre a escravidão, o Estado passou a intervir diretamente nessas negociações. Novas
arenas se constituíram em campo de batalha e os tribunais locais configuraram-se em
recursos amplamente utilizados pelos escravos,
21
que reconheceram na lei, brechas para
buscar a liberdade.
22
Para contestarem sua condição, utilizavam como argumentos:
maus tratos, apresentação de pecúlio, manutenção da liberdade, reescravização ilegal.
Na década de 1860 foi lançada a discussão sobre o fim da escravidão no Brasil,
poucos discordavam que deveria ser abolida para que o país se tornasse civilizado.
23
Entretanto havia conflito entre o princípio da liberdade e a defesa ao direito da
20
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, ‘O Conservador”, 20/12/1873, n 91, p03, c 02.
21
Sobre a escravidão e a lei ver: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos
sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp, 1999. Neste livro a autora
enfoca lutas jurídicas e parlamentares que se deram em torno da Lei dos Sexagenários (1885), que
alforriava escravos sexagenários, mas obrigava os libertandos à prestação de serviços pelo espaço de três
anos ou até 65 anos. Segundo Joseli Mendonça, desde a promulgação da lei do Ventre Livre ficava
consagrada a intervenção do Estado nas disputas entre senhores e seus cativos. Como mostra a autora, ao
estabelecer um espaço de disputa jurídica em torno dos direitos do escravo, a lei tirava da esfera senhorial
o espírito norteador das relações escravistas.
22
Eram sempre representados por um curador, pois “Os cativos não podiam tentar nada sem o auxílio de
um homem livre, pois não tinham direitos civis e logo estavam incapacitados de agir judicialmente sem a
presença de um curador”. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na corte, p. 108.
23
ALANIZ, Anna Gicelle. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência familiar em épocas de
transição. 1871 – 1895, p. 37.
16
propriedade privada. Discutir a liberdade de escravos significava interferir no pacto
liberal de defesa da propriedade privada.
24
Portanto, um dos momentos decisivos do encaminhamento político da crise da
escravidão foi a lei 2040, de 18 de setembro de 1871, chamada Lei do Ventre Livre. Ela
pregava no seu artigo 1º que “os filhos da mulher escrava que nascerem no Império
desde a data desta lei serão considerados de condição livre”. Este artigo vinha acrescido
de um parágrafo que declarava: “os ditos filhos menores, ficarão em poder e sob
autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até
idade de oito anos completos”.
25
A lei, que deixava aos proprietários das mães cativas
instrumentos legais para continuar explorando a mão de obra desses menores,
configurou-se, entretanto, em um passo decisivo em direção a abolição.
26
A discussão em torno do fim da escravidão não se deu somente por conjunturas
políticas, mas sim pelas tensões existentes entre os cativos e seus senhores. Tensões
essas que se configuravam muitas vezes em fugas, revoltas e assassinatos. A resistência
em relação ao sistema escravocrata e os caminhos de autonomia encontrados pelos
escravos, mesmo no interior das relações escravistas, vêm sendo tema de inúmeras
pesquisas no Brasil, rebatendo a historiografia tradicional da escravidão que não
percebia o cativo como sujeito.
27
24
CALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, p.
99. Ver também: PENA, Eduardo S. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871.
Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001. Nesta obra o autor analisa o discurso jurídico emancipacionista de
jurisconsultos, juízes e advogados do Brasil Império.
25
GEREMIAS, Patrícia Ramos. Filhos “livres” de mães cativas: os “ingênuos” e os laços familiares das
populações de origem africana em Desterro na década da abolição. Florianópolis: UDESC, 2001.
Monografia (Graduação em História), p. 9.
26
Joseli Mendonça discute em seu livro “Entre a mão e os anéis” sobre as relações entre a Lei do Ventre
Livre e a dos Sexagenários, mostrando que desde os anos 1870 diferentes tendências políticas tinham
interesse na definição de um mercado de mão de obra livre no Brasil.
27
Apesar da riqueza do trabalho de Gilberto Freyre, sua ênfase no caráter paternalista e de uma
escravidão amena tornou-se bastante difundida. Sua tese infere uma visão harmoniosa das relações raciais
no Brasil como herança da escravidão. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala: as origens da
família patriarcal brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. Caio Prado Junior (1942), concordava
com Freyre, mas contestava sua avaliação positiva: “Se o negro traz algo de positivo, isto se anulou na
maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais”, sobre esta citação ver em: SLENES, Robert W.
Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.29. Nos anos 1950-70 a historiografia, influenciada por
Prado enfatizou a vitimização e coisificação do escravo e a marginalização dos homens livres, negros e
pobres, ressaltando a violência que foi a escravidão. Para Florestan Fernandes a herança deformadora da
escravidão seria apenas um dos fatores a explicar a desorganização social que ele percebia como
característica das populações negras. O cativeiro teria desenvolvido nos negros um comportamento
patológico, mesmo após se tornarem livres. Ver: FERNANDES, Florestan F. A Integração do negro na
sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978, v.1. Segundo Slenes, a mesma historiografia que nas
décadas de 1960 e 70 enterrou de vez a noção de uma escravidão brasileira “branda ou “benigna”,
também deixou o escravizado sem mesmo a capacidade de almejar a formação de famílias estáveis.
SLENES, 1999, p.28. A incorporação do escravo como agente permitiu uma revisão historiográfica sobre
17
A luta pela alforria era uma importante forma de resistência e negociação.
Entretanto dependia da vontade dos senhores, sendo também uma forma de controle
social da escravidão. Os cativos sabiam que, além dos atos de rebeldia explícitos e
fugas, suas esperanças de liberdade dependiam da relação que tinham com seu (sua)
proprietário (a). A ideologia senhorial era convencer os escravos da troca: liberdade por
fidelidade e obediência. Porém, as relações estabelecidas iam muito além da troca, pois
a idéia de uma concessão por parte dos senhores tornava os escravos seus devedores e
este era o elo, a aliança que os ligava. Mais importante do que manter a escravidão por
aspectos jurídicos, talvez fosse manter uma aliança paternalista entre eles.
28
Para Sidney
Chalhoub, tanto senhores quanto escravos sabiam como proceder para não se
desagradarem reciprocamente, ou seja, tinham consciência das obrigações e direitos que
os ligava.
29
A tensão e o conflito eram presentes nessas relações, pois as alianças
poderiam ser desfeitas caso as obrigações morais de reciprocidade não fossem
cumpridas. O poder de alforriar dos senhores fazia parte de uma estratégia de produção
de dependentes, transformação de ex-escravos em libertos fiéis e submissos a seus
antigos proprietários. Entretanto, a ideologia senhorial não se convertia necessariamente
em realidade.
30
Segundo Tamelusa Ceccato, em pesquisa realizada a partir de uma
amostragem de 141 documentos (alforrias e contratos de locação de serviços) referentes
à Desterro nas décadas de 1870 e 1880, somente 29,6% dispunham sobre a liberdade a
título gratuito. Os 70,4% restantes eram mediante indenização, ou condição de tempo de
serviço. As cartas seguem um padrão de informações e geralmente explicam as
motivações do ato, que na maioria das vezes, referem-se aos bons serviços.
31
Outro
aspecto interessante apontado pela autora é o fato de que muitas cartas de liberdade
parecem denunciar certos sentimentos, na medida em que o cativo conquista a afeição
do senhor. Na década de 1870, das 26 cartas de liberdade registradas, 9 eram de crianças
o tema. Na década de 80 houve mudanças de paradigmas e a ênfase das pesquisas passou a ser o papel
social dos cativos. Podemos citar trabalhos como: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, MATTOS,
Hebe Maria. Das cores do silêncio. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998, entre outros.
28
Sobre as relações paternalistas, cabe ressaltar que são aquelas baseadas na autoridade do patriarca,
dissimulada sob a forma de proteção.
29
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte,
p. 67.
30
Idem, Ibidem, p. 100.
31
AMARAL,Tamelusa Ceccato do. As “camélias” de Desterro. A campanha abolicionista e a prática de
alforriar cativos (1870-1888). Florianópolis: UDESC, 2006 Monografia (Especialização em História), p.
13.
18
menores de 12 anos, enquanto apenas 3 se referiam a maiores de 60 anos.
32
A “amizade
de criação” era uma das justificativas, principalmente no caso das crianças.
Não era raro que senhoras idosas e solitárias, temendo a doença e a morte,
recorressem a alforrias condicionais, para que os escravos permanecessem a seu lado
até seus últimos dias. As razões que impulsionavam esse tipo de alforria eram diversas e
nem sempre correspondem de fato ao que é registrado no documento, que representa
antes de tudo a versão dos senhores.
33
Desde a perspectiva dos senhores, as alforrias não significavam um rompimento
com a política de domínio, subordinação e dependência, ao contrário, o ex-escravo
despreparado devia passar de escravo a homem livre dependente, para aprender e se
preparar para as obrigações de uma pessoa livre.
34
Senhores e escravos não viam a
prática da alforria da mesma maneira, mas possivelmente em alguns momentos os
libertos desempenhavam o papel de dependentes para atingir alguns fins. A dependência
muitas vezes baseava-se na troca, e proteção tinha um papel importante nessa relação.
35
Segundo Henrique Espada Lima, a maioria das alforrias concedidas na última década da
escravidão no principal cartório de Desterro, envolvia alguma cláusula de prestação de
serviços. “Transformar a escravidão em um contrato para o pagamento de uma dívida
poderia, para os ex-escravos, também significar a tentativa de garantir de algum modo a
continuidade de uma ocupação que garantisse a subsistência e uma menor incerteza
frente ao futuro”.
36
As alianças verticais estabelecidas neste período poderiam mesmo criar relações
de dependência mútua entre senhores e seus escravos e ex-escravos. Era comum que
mulheres solteiras e viúvas dependessem do trabalho de seus cativos, que precisavam
demonstrar boa conduta e obediência para merecer por parte da senhora a tão sonhada
liberdade.
Sandra Graham aponta uma situação como essa ao analisar o caso de Inácia
Delfina Wernek, senhora de posição social do vale médio do rio Paraíba em meados do
32
Idem, Ibidem, p. 16.
33
“Até 1871 alforrias condicionais podiam ser revogadas por motivos de ingratidão, a partir da lei 2040
(a Lei de 1871) foi proibida a revogação, determinando aos libertos condicionais que não cumprissem
seus contratos, ficar a cargo da justiça, prestando serviços em estabelecimentos públicos”.
CHALHOUB,
Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, p. 114 e 138.
34
Idem, Ibidem, p.135.
35
Idem, p. 150.
36
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de
trabalho no século XIX. In Topoi. Revista de História. Programa de Pós-Graduação em História Social
da UFRJ, v.6, n 11, jul – dez, 2005, p.307.
19
século XIX. Com recursos materiais consideráveis, optou por não se casar.
37
Possuía
propriedades, porém era analfabeta. Em testamento, Inácia deixa seus escravos como
herdeiros, demonstrando que tinha uma relação mais próxima com eles. Situações como
essa ocorriam com mais freqüência em se tratando de solteiras ou viúvas sem filhos.
Nessa economia moral de troca de favores entre pessoas ligadas por relações quase
sempre desiguais, os senhores libertavam seus escravos em troca dos bons serviços
prestados, porém uma rede de obrigações desigualmente recíprocas regulava a
concessão da liberdade.
38
No caso de Inácia sua vontade não prevaleceu no final, pois
libertou seus escravos, mas eles ficaram sem dinheiro e com dívidas. Talvez porque
tinha pouco conhecimento de seus negócios, que eram gerenciados por homens da
família, ou ainda devido à esperteza de seu sobrinho que ficou encarregado de cuidar do
testamento da falecida.
Ainda que nas décadas de 1870 e 1880 a escravidão estivesse vivendo uma crise,
os proprietários não abriam mão de seus escravos. Maria Luiza Oliveira em sua
pesquisa acerca de São Paulo na segunda metade do século XIX, detectou a presença de
diferentes grupos de riqueza em relação à propriedade escrava, ou seja, tentou
classificar os proprietários de escravos em grupos sociais distintos, divididos pela renda.
Para tanto suas análises basearam-se em inventários post mortem. Para a autora ficou
clara a importância dos escravos entre as décadas de 1870 e 1880 e principalmente que
os setores médios da população contribuíam para a continuidade da escravidão.
39
Tratando das mulheres empobrecidas livres, escravas e forras, no processo de
urbanização da cidade de São Paulo entre fins do século XVIII e as vésperas da
37
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das letras, 2005, p.131.
38
Idem, Ibidem, p. 145.
39
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém. Relações sociais e experiência da
urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 80 a 110. No primeiro grupo ficaram
os proprietários mais pobres, constituídos por pequenos funcionários públicos, pequenos negociantes,
com pouca propriedade escrava. No segundo estavam os remediados, com poucos bens de raiz e muitas
dívidas, além de grande mobilidade, pois era composto por pessoas que vinham de fora tentar a vida em
São Paulo. O terceiro grupo era formado pelos setores médios, funcionários públicos, negociantes,
pessoas que viviam de renda, proprietários de alguns escravos. Esse grupo começa a experimentar certa
estabilidade em função das suas atividades comerciais. Para o quarto grupo encontrou os que viviam de
renda da profissão e dos serviços qualificados e para o quinto e último grupo os comerciantes com
sociedade, gente com rendas e com domínio das relações sociais e fortunas consolidadas. Em um universo
de 34 indivíduos do grupo três, isto é, dos setores médios, 18 eram proprietários de escravos, que
totalizavam 52 escravos. Em relação aos dois primeiros grupos o número de escravos é pequeno,
enquanto que no quarto e quinto grupos a proporção aumenta significativamente. Embora o número de
escravos fosse pequeno para os dois primeiros grupos, totalizavam grande parte de seu patrimônio. Para o
terceiro e quarto grupos a média ficava entre 9 e 11% e para o último grupo, 3,4%. A ausência de
escravos é evidente entre os grupos mais pobres, pois significava investir um capital muito grande, do
qual nem sempre dispunham
.
20
abolição, Maria Odila Dias procurou apontar para as formas sociais intermediárias, que
constituíam as margens da sociedade, representados pela dependência mútua, pelo favor
e pela necessidade. Ex-proprietárias empobrecidas, senhoras vivendo da mendicância de
seus escravos, ex-escravos que se tornavam por sua vez pequenos proprietários,
escravos com agregados, eram as formas sociais sustentadas pelo pequeno comércio e
urbanização.
40
Dias chegou à conclusão que a posse escrava era um recurso utilizado
pelas classes pobres e remediadas, que os alugava para desempenharem serviços
urbanos, como os de quitandeiras, por exemplo. Porém a alta nos preços dos escravos a
partir de 1850 e os altos impostos que recaiam sobre esse tipo de propriedade, fizeram
com que a população escrava de São Paulo diminuísse entre 1854 e 1887 de 28% do
total da população, para menos de 9%.
41
Em pesquisa para o Rio de Janeiro e São João Del Rey, entre os séculos XVIII
e primeira metade do século XIX, Sheila Faria faz um estudo sobre a prática da alforria
de escravos na região e suas condições de vida após a liberdade, indicando alguns
caminhos para se compreender o significado de pobreza. Embora considere que o
conceito é relativo e depende de conjunturas históricas e culturais, a autora sugere que
no aspecto material, quem tem um escravo que seja não pode ser considerado pobre
nessa sociedade, em qualquer época. Assim critica Maria Odila Dias, que havia
qualificado como pobres as mulheres brancas, negras ou mestiças, proprietárias de até
10 escravos na cidade de São Paulo entre os séculos XVIII e XIX.
42
Tratando ainda do
conceito de pobreza relacionado ao fator econômico, Faria afirma que além da
propriedade escrava, os que tiveram inventário post-mortem aberto ou redigiram um
testamento também não podem ser considerados pobres, pois eram proprietários de
bens. Os destituídos de posses não faziam testamento nem tinham inventário.
43
Para Sheila Faria, a propriedade escrava não era recurso utilizado somente por
brancos livres, pois para os inventários e testamentos de forros analisados, concluiu que
a propriedade de escravos era comum. No Rio de Janeiro, entre 1707 e 1812, dos
homens forros que fizeram testamento, 79% tinham escravos. Entre mulheres forras,
81% eram proprietárias de escravos. Homens livres e mulheres livres eram proprietários
de escravos em 69% e 62% entre os testamenteiros, respectivamente.
Em São João Del
40
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 13 e 146
41
Idem, Ibidem, p. 144.
42
FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e São João Del Rey (1700-1850). Niterói: UFF, 2004. Tese (Doutorado em História), p. 143.
43
Idem, Ibidem, p. 144.
21
Rey, das testadoras forras analisadas, 65% declararam a propriedade de escravos. Entre
os forros, somente 29% tinham cativos.
44
O investimento em propriedade escrava por parte dos forros poderia estar
relacionado a um projeto de ascensão social. Libertar-se e tornar-se senhor ou senhora
significava reafirmar a condição de livre. Mas havia ainda os interesses econômicos.
Pessoas sem posses compravam apenas um escravo para garantir uma fonte de renda.
As libertas adquiriam escravos através de seu pecúlio, acumulado com seu trabalho e
havia casos em que a propriedade poderia ser proveniente de alguma herança.
As maneiras para se conseguir juntar dinheiro eram diversas e o comércio
ambulante, principal atividade de mulheres escravas e libertas, estava entre as
principais. Eduardo França Paiva, num trabalho sobre a comarca de Rio das Velhas em
Minas Gerais no século XVIII, afirmou que de 600 testadores analisados, o grupo de
mais posses era o de homens livres, seguido das mulheres forras e depois das mulheres
livres. Segundo sua pesquisa, as mulheres forras foram a segunda categoria que mais
pagou tributo sobre as vendas e os escravos que possuíam.
45
Estudos sobre o padrão de posse de escravos, em variadas regiões, têm
confirmado que pequenos senhores formavam a maioria dos proprietários de cativos em
quase todas as áreas escravistas do final do período colonial. Entre eles, inclusive, ex-
escravos. Uma sociedade com base escravista conferia significados específicos à noção
de liberdade, que orientava a ação dos indivíduos desenraizados e despossuídos, que
constantemente produzia, por concessão ou compra de alforria. Liberdade era, a
princípio, um atributo do ‘branco’ que potencializava a inserção social e a propriedade.
Na segunda metade do século XIX, esse conceito de liberdade começou a ruir. O
crescimento demográfico de negros, mestiços, livres ou libertos, não permitia
percebê-los como exceções. Em 1872, no Rio de Janeiro e Minas Gerais, com exceção
do vale do Paraíba fluminense, negros e mestiços livres eram superiores em número aos
escravos e a população branca recenseada.
46
O crescimento do número de libertos na
segunda metade do século XIX, está diretamente relacionado a um período em que
houve maior espaço de luta pela liberdade, através das cartas de alforria. Estas,
negociadas entre senhores e escravos, tronaram-se uma forma de manter uma instituição
que estava com seus dias contados por um lado e por outro possibilitava aos escravos
44
Idem, p.162.
45
PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII. Estratégias de
Resistência através dos Testamentos. São Paulo: Annablume, 1995, p. 31 e 32.
46
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 31 e 33.
22
vislumbrarem uma liberdade próxima. Esse período foi marcado por leis repletas de
ambigüidades. Ao mesmo tempo em que ampliavam os espaços de busca da liberdade,
estendiam as relações escravistas, criando alianças através da idéia de troca, concessão e
obrigações morais recíprocas.
Sobre os significados empregados ao conceito de liberdade, Henrique Espada
Lima aponta que, “apesar da escravidão e dentro dela, os africanos e seus descendentes
lutaram para construir e reorganizar novos nculos sociais que tornassem a vida mais
suportável”.
47
Baseando sua análise em 56 contratos de locação de serviços no período
entre 1849 e 1887 para a cidade de Desterro, concluiu que as expectativas que o termo
liberdade carregava não se cumpriam automaticamente com a emancipação e os libertos
sabiam disso. Sob o “jugo” da liberdade os ex-escravos poderiam encarar uma ameaça
tão grande ou maior que a escravidão. As coerções poderiam ser assim substituídas pela
ameaça da miséria. Por outro lado, os libertos tentavam construir vínculos sociais e
garantias suficientes para lidar com a incerteza e a precariedade, estabelecendo laços de
dependência e interdependência que permitissem sua inserção a uma ordem social
viável.
48
Os sentidos que os cativos atribuíam à liberdade, eram múltiplos e baseavam-
se nas suas experiências no cativeiro.
1.3 As mulheres, a lei, o dote
O papel desprivilegiado ocupado pelas mulheres ao longo da história é resultado
de uma construção social e cultural das diferenças sexuais, daí a dimensão do gênero na
estratificação social.
49
Entre os papéis definidos para homens e mulheres, não era
convencional que estas últimas chefiassem domicílios ou não estivessem submetidas ao
mando de um marido. Entretanto situações que contrariavam o convencional e o “ideal”
eram recorrentes na sociedade brasileira do culo XIX. Por essa razão é necessário ter
a percepção de que a construção das diferenças sexuais foram determinadas histórica e
culturalmente, e não são naturais.
50
47
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de
trabalho no século XIX, p.309.
48
Idem, Ibidem, p. 312
49
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, n. 11. Campinas: UNCAMP,
1998, p. 90.
50
Idem, Ibidem, p. 98.
23
O estudo sobre a história das mulheres, focado nas suas experiências e na
desconstrução de certas representações, teve início na década de 1970, incorporando
contribuições da história social.
51
Nas décadas de 1980 e 1990 intensificaram-se as
pesquisas com o objetivo de compreender o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade
brasileira.
Trabalhos como o de Maria Odila Dias, Sandra Graham, Muriel Nazzari, Mary
Del Priore, Eni Samara, entre outros, colocam o protagonismo das mulheres como
importante para compreender a sociedade brasileira no século XIX e procuram
demonstrar sua atuação na descrita e por vezes “idealizada” sociedade patriarcal,
evidenciando que tinham mais competências jurídicas e oportunidades de agir nas
brechas do sistema do que se costumava reconhecer.
A partir de uma análise voltada para a história social, Dias discute em sua
pesquisa o espaço de sobrevivência das mulheres pobres, brancas, escravas e forras na
cidade de São Paulo no século XIX. Mulheres sós, viúvas, solteiras ou abandonadas em
nome do sustento de suas famílias improvisavam meios de sobrevivência. Algumas
administrando heranças dos pais ou marido, outras, pobres, vivendo de seu trabalho
como lavadeiras, quitandeiras e proprietárias de um ou mais escravos. ainda as que,
na ausência do cônjuge, geriam bens com a mesma competência dos homens,
respondendo legalmente pela figura masculina. Essa não é uma especificidade de São
Paulo, pois em Desterro também é possível apreender esse tipo de situação. Entretanto
nesta pesquisa dou prioridade às mulheres dos setores médios, considerando, assim
como Sheila Faria, que possuir escravos não era uma característica das camadas mais
pobres da população, ainda que a posse de escravos não necessariamente garantisse uma
vida confortável ou segurança financeira.
Segundo Samara, em São Paulo entre 1765 e 1836, há uma elevada porcentagem
de mulheres como chefes de famílias, porque a população masculina se deslocava com
freqüência, que a migração era uma opção nas estratégias de sobrevivência familiar,
sendo também um atributo do homem livre.
52
Por outro lado, as dificuldades de
casamentos e uniões eventuais, principalmente entre as camadas mais pobres da
população, reforçaram essa situação. Acredito que as dificuldades a que se refere a
autora dizem respeito em muitos casos à opção por não se casar ou ainda pelo fato de
51
SOIHET, Raquel. A História das Mulheres. Cultura e poder das mulheres: ensaio de Historiografia.
Niterói: Revista Gênero,
v. 2, n.1, p. 7-30, 2. Sem. 2001.
52
CARDOSO, Paulino. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888, p. 114.
24
existirem outras concepções de união que não somente o casamento cristão. E, ademais,
há de se considerar que havia outras alianças horizontais (e afetivas) além do casamento
(formal ou não), bem como alianças verticais. As mulheres das camadas populares
também constituíam família, porém nem sempre os documentos nos trazem essa
informação. Quanto a não desejarem o casamento, poderia ser uma forma de dizer não a
submissão ou a idéia de terem um homem intrometendo-se em seus negócios.
53
Para
Dias, o fenômeno de mulheres solteiras, chefe de família é vasto e parece oriundo da
urbanização como um todo no Brasil. Para a cidade de São Paulo de 1804 a 1836,
quarenta e seis por cento dos domicílios urbanos eram constituídos por mulheres sós,
chefes de família.
54
Dentre essas mulheres, uma porcentagem de cerca de 40% do total possuía
escravos, embora não fossem ricas. Tornavam-se proprietárias por meio de favores,
doações e herança. A maioria das mulheres possuía escravas, que desempenhavam as
funções de criadas domésticas, quitandeiras e amas-de-leite. Grande parte das senhoras
dependia do trabalho dos cativos e vivia de alugar seus serviços.
55
Havia nas áreas urbanas, mais escravos de aluguéis e de ganho do que
domésticos. Era respeitado o ganho do escravo, que tanto servia para a sua subsistência
como poderia constituir pecúlio para comprar sua alforria. Longe dos olhos das
proprietárias, nas ruas era possível construir laços horizontais e verticais de
solidariedade.
56
O trabalho na rua afastava senhoras e cativos (as) e a exploração em função da
dificuldade em que viviam as próprias proprietárias era motivo de constantes conflitos.
“Mulheres catalisavam frustrações e assumiam, em seus sentimentos e paixões, as
tensões e conflitos da luta social de que eram mediadoras: senhoras empobrecidas
queixavam-se de ser tratadas pelos seus companheiros como se fossem escravas ou de
serem destratadas pelas escravas concubinas de seus maridos”.
57
A realidade era de lares pequenos e famílias com estruturas simplificadas, não
mais predominava a família extensa, como no século XVII e ainda XVIII, pois no
ambiente urbano e nas camadas pobres seria muito difícil manter essa estrutura. No
53
Uma opção que, no limite, podia estar presente até mesmo para escravos: ver a história de Caetana (que
disse “não”). GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade
escravista brasileira. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
54
DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 31 e 34.
55
Idem, Ibidem, p.118 e 124.
56
Idem, p. 125, 128 e169.
57
Idem, p.142.
25
modelo de família do século XIX, o homem deveria ser o chefe e provedor, porém,
“grande maioria das mulheres viviam esmagadas sob um sistema de excessivo labor e
nula ajuda institucional e dizer família significava também mães sós que compunham a
grande maioria, sobretudo nas classes subalternas”.
58
Nas áreas urbanas ou rurais, havia lugares reservados às mulheres e outros que
não podiam freqüentar. As das classes populares pareciam ser mais livres, pois seu
trabalho as empurrava para fora de casa: nos mercados, vendendo ou comprando, nas
ruas, entregando a roupa lavada ou o pão. Em pesquisa realizada sobre o Rio de Janeiro,
Sandra Graham mostra que, em 1870, a maioria das mulheres que trabalhavam eram
empregadas domésticas.
59
Segundo censo de 1872, em Desterro, 1917 mulheres livres
foram identificadas com profissões, sendo 1469 empregadas no serviço doméstico. De
1001 mulheres escravas identificadas com profissões, 445 estavam empregadas no
serviço doméstico. Compreendidas entre livres e escravas, o serviço doméstico
representava 65,5% dos trabalhos ocupados por mulheres, que implicava em 25,5% da
população referente à freguesia de Desterro.
60
No Rio de Janeiro as criadas totalizavam 71% das mulheres trabalhadoras. Em
1870 e 1872, representavam cerca de 15% do total da população das freguesias urbanas
do Rio de Janeiro, desta forma suas presenças na vida diária da cidade era fato
marcante. Escravas que trabalhavam na rua, em suas múltiplas atividades urbanas,
trabalhavam também como criadas em alguma parte do dia (sendo que muitas criadas,
como as lavadeiras, por exemplo, também trabalhavam na rua). Brancas ou negras,
livres ou escravas, trabalhavam lado a lado, pois a partir da década de 1860, o trabalho
doméstico foi se tornando cada vez menos território de escravos.
61
Para manter um estilo de vida próprio da elite, as criadas eram fundamentais. As
atividades domésticas eram as mais diversas e estavam relacionadas a certos serviços
públicos que eram inexistentes. Até 1860, as casas do Rio de Janeiro não tinham água
encanada nem sistema de esgoto. Eram as criadas e também criados,
62
que carregavam
58
PRIORE, Mary Del. A mulher na História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988, p.55.
59
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência. Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro
1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
60
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
61
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência. Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro
1860-1910, p.18.
62
“É considerado criado ou criada, quem quer que, sendo de condição livre ou escrava, tiver ou tomar,
mediante salário, a ocupação de moço de hotel, casa de posto ou hospedaria, ou cozinheiro, cocheiro,
copeiro, hortelão ou ama de leite, ama seca, lacaio, e em geral, o de qualquer serviço doméstico”. Jornal A
Regeneração, nº 09, 11.01.1884, Laboratório de História Social da UFSC.
26
água, lavavam roupa nos chafarizes públicos, esvaziavam os urinóis, faziam compras.
Dividiam-se entre cozinheiras, amas-de-leite, mucamas, costureiras, quanto não
desempenhavam todas essas funções. Algumas domésticas tornavam-se cúmplices e
testemunhas da vida íntima da família para quem trabalhavam, pois seu trabalho se dava
principalmente na esfera privada. Por outro lado havia as domésticas que saíam as ruas,
as lavadeiras, as carregadoras de água e as que faziam compras no mercado, cruzando
de um lado para outro o espaço físico da cidade. Em Desterro, anúncios de jornais
indicavam alguns dos serviços realizados por escravos: “Vende-se uma escrava de nome
Laura de 28 anos de idade, perfeita mucama e muito hábil para todo o serviço interior
de uma casa de família; lava engoma cozinha e desempenha satisfatoriamente qualquer
serviço exterior que lhe encarregam”.
63
Num outro anúncio do jornal “Correio
Catarinense do ano de 1854: “Precisa alugar uma escrava, que seja fiel e própria para
compras; nesta tipografia se dirá quem a precisa”.
64
Esses dois exemplos demonstram
funções que poderiam ser desempenhadas dentro e fora das residências. Era necessário
que o cativo (a) fosse de confiança, pois dentro das residências participavam das
intimidades das famílias proprietárias e muitas vezes sabiam de coisas que socialmente
se preferia esconder. Esse fator poderia ser utilizado pelos escravos como estratégia de
negociação e partilhar da intimidade dos senhores (as), poderia torná-los mais
vulneráveis. Em relação aos cativos que eram contratados ou alugados para trabalhos
na rua, a relação de confiança era fundamental, pois estariam longe da fiscalização dos
proprietários (a), podendo assim atuar com maior autonomia.
As criadas pertenciam à classe” dos trabalhadores pobres urbanos, em
contraste com os bem-nascidos, resguardados do olhar público.
65
A mulher de “elite”
mesmo com certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, pois o
isolamento feminino nas atividades de esposa, mãe e dona de casa tornou-se forma de
distinção para uma classe urbana abastada.
66
Era comum que não precisasse e ainda não
devessem ganhar dinheiro, sendo esta atribuição do homem, “senhor do privado e em
especial da família, instância fundamental, cristal da sociedade civil, que governavam e
representavam”.
67
A ênfase no ócio, nas representações da mulher no século XIX sugere
63
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, “O Conservador”, 30/03/1855, nº 311, p. 04, c 02
64
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, “Correio Catharinense”, 12/07/1854, nº 87, p. 04, c 02
65
GRAHAM, Sandra Lauderale. Proteção e Obediência. Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-
1910.
66
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis:
Ed. Da UFSC, 1998, p. 285.
67
PERROT, Michele. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p.10.
27
a necessidade social de parecer não ter o que fazer. Essa, entretanto, era realidade da
minoria das mulheres. As brasileiras, em diversas partes do país, certamente diferiam do
modelo da mulher “ideal”, participando da produção agrícola e industrial, sobrevivendo
nas cidades, envolvidas nos serviços e ofícios urbanos, mesmo tendo autonomia e
propriedades em alguns casos.
68
Não foram somente as mulheres das camadas populares
que desempenharam outras funções e papéis além dos familiares: mulheres dos setores
médios executavam inúmeras atividades e muitas vezes representavam rendimento que
permitia a sobrevivência da família.
As proprietárias, viúvas ou solteiras, não possuindo situação financeira estável,
buscavam seu sustento no dia-a-dia, sem a certeza de amparo no futuro. Essas, ao invés
de se dedicarem ao piano ou ao francês, não se limitavam somente à esfera doméstica,
pois a necessidade de sobrevivência as impelia para o espaço público, vendendo e
comprando propriedades, alugando seus escravos, passando procurações e buscando
alianças que possibilitassem manter seus meios de vida. Preocupadas com a
precariedade de sua velhice, cultivavam relações afetivas, econômicas e de dependência
com familiares, amigos e até mesmo escravos e ex-escravos.
Contrariando o estereótipo da mulher submissa, muitas recorriam aos tribunais
eclesiásticos para separarem-se de maridos que as brutalizavam ou dissipavam os
bens.
69
Foi o caso de Maria Dias de Siqueira, que no jornal “O Conservador”, do ano de
1855, declarou:
D. Maria Dias de Siqueira por seu bastante Procurador, abaixo
assinado, faz público que vai promover no Juízo competente sua ação
de divorcio contra seu marido Joaquim J. Dias de Siqueira, residente
na Villa de S. Miguel desta Província: e porque consta a anunciante
q. ele trata, por isso, de esbanjar os bens do casal em dano da
anunciante e de seus filhos, como se evidencia pela venda que ha
pouco fizera nesta cidade de dois escravos: pelo presente previne ao
respeitável publico para que se não faça transações com o dito seu
marido em bens do casal em quanto não for definitivamente decidida
a ação mencionada. Protesto contra todos os atos praticados por seu
marido em contrario ao direito do anunciante. Desterro 3 de agosto
de 1855.
O procurador bastante
José Mendes da Costa Rodrigues
70
68
WOLFF, Cristina Scheibe. Como se forma uma “boa dona de casa”: A educação das mulheres teuto-
brasileiras na colônia de Blumenau. In: História das mulheres em Santa Catarina. Florianópolis: Letras
contemporâneas, 2001, p.159.
69
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII , p.124 e 118.
70
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, “O Conservador”, 07/08/1855, nº 346, p04, c 02.
28
Além de tomar uma atitude pouco comum para a época, que implicava em
contrariar normas sociais, Maria Dias de Siqueira, tentou resguardar os bens que possuía
dos desmandos do ex-marido, demonstrando preocupação com seu futuro e de seus
filhos e ,também, o conhecimento em relação aos bens que possuía, bem como dos seus
direitos. Ao que tudo indica, ela ficou com a responsabilidade de cuidar dos filhos e
para uma mulher separada e sem bens, sobreviver poderia ser uma tarefa muito
complexa, relacionada inclusive ao preconceito que acompanhava a condição de
“separada”.
Até mesmo as mulheres escravas podiam se recusar a conformar-se a um destino
traçado por outra pessoa. No livro Caetana diz não”, Sandra Graham relata a história
de uma escrava chamada Caetana, do Vale do Paraíba, em 1836, que é obrigada a se
casar contra sua vontade. Recusou-se a consumar o casamento, despertando a ira de seu
tio (também escravo), que a ameaçou, caso não se submetesse. Buscou ajuda no próprio
senhor, que apresentou uma petição ao Tribunal Eclesiástico para anular o casamento.
E de quantas Caetanas estamos falando? Brancas, negras, cativas, livres, pobres
ricas... Sem dúvida a condição de mulher e escrava deixou Caetana em situação difícil,
pois tinha que enfrentar a ira de dois homens, seu tio e seu senhor. Mas, mesmo que
submetidas ao medo, as mulheres não agiram sempre de forma passiva, ao contrário,
encontravam brechas, maneiras sutis ou não de se contrapor ao poder patriarcal. “A
história de Caetana demonstra que o patriarcado não era apenas direito de um senhor
branco, mas era reivindicado também por um homem escravo”.
71
A existência de evidências de que uma parcela representativa das mulheres das
camadas mais abastadas vivia reclusa ou entregando-se à indolência, contrapõe-se, a um
quadro em que o sexo feminino tinha uma participação ativa, à frente da família e dos
negócios, contribuindo para a manutenção da casa e em muitos casos sendo fonte dos
principais recursos. As mulheres das classes mais abastadas tinham menos
oportunidades para atividades fora do lar, pois
eram criadas para desempenhar o papel
de mãe e cuidar das coisas domésticas, como orientar os filhos, fazer ou mandar fazer a
cozinha, costurar e bordar, mas como foi dito anteriormente, não compunham a maioria.
E talvez, em algum momento de suas vidas se vissem obrigadas a não seguir os modelos
impostos.
71
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira, p.90.
29
As mulheres tinham direitos legais à propriedade, mas seu acesso, na maioria
das vezes, dependia que não houvesse oposição de parentes do sexo masculino. Tão
frágil era a legislação no que diz respeito aos direitos das mulheres, que esses podiam
ser facilmente burlados. A situação agrava-se ainda mais quando as próprias mulheres
não tinham conhecimento de seus direitos. Por isso, a existência de mulheres que
chefiavam sua família, seu sustento ou seus negócios tornou-se tão importante.
O Brasil regulava-se pelas leis portuguesas mesmo após 1822. Por mais de
trezentos anos vigorou as Ordenações Filipinas, publicada em Portugal em 1603,
trazendo em seu âmago o conservadorismo do poder patriarcal. O processo de
independência não levou a ruptura com o marco institucional português e tal marco
permaneceu em vigor, com sutis alterações, até a promulgação do digo civil em
1916.
72
Manteve-se com base na legislação uma imagem negativa da mulher na
sociedade. Aos olhos do legislador, a mulher qualificava-se como o fragilitas sexus e,
portanto, deveria ser mantida submissa ao jugo do pai ou do marido.
73
Apesar dos
limites impostos em relação à atuação feminina, a legislação portuguesa não
negligenciava a preservação do patrimônio dos filhos.
O código filipino permitia de modo expresso ao homem o direito de “castigar”
fisicamente sua família, seus dependentes e escravos, legitimando posturas violentas e
autoritárias.
74
À mulher era vedado ser testemunha em testamento público: “Querendo
alguma pessoa fazer testamento aberto por tabelião público, poderá fazer, contanto que
tenha cinco testemunhas varoas livres ou tidas por livres”.
75
Não podia a mulher praticar quase nenhum ato sem a autorização do marido,
entretanto podia promover ação para os casos de doações por ele feitas, à concubina:
“Se algum homem casado der a sua barregã alguma coisa móvel ou de raiz, ou a
qualquer outra mulher por quem tenha carnal afeição, sua mulher poderá revogar e
72
“O código de 1916 em seu artigo número 1.807 revogava as Ordenações Filipinas no Brasil, que
havia sido revogada em Portugal em 1867. Ou seja, a vigência das ordenações no Brasil ultrapassou seu
país de origem”
.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes e MELO, Hildete Pereira de. A partilha da
riqueza na ordem patriarcal. Rio de Janeiro: R. Econ. contemp., 5(2): 155-179, jul./dez. 2001.
73
Idem, Ibidem.
74
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira, p. 72.
75
Ordenações Filipinas, livro IV, título LXXX.
30
haver para si a coisa que assim foi dada”.
76
Ao marido também não era permitido
vender bens sem consentimento da mulher.
77
Em 1850 com a promulgação do código comercial, houve avanços em relação à
condição da mulher. Por esse código, a viúva se maior de 18 anos podia se tornar
comerciante. Mesmo a mulher casada podia exercer atividade mercantil sem autorização
expressa do marido. Entretanto, pelas leis civis, o marido podia proibir a mulher de
exercer tais atividades. Prevendo situações como essa, o código comercial do Império
incluiu a possibilidade de a comerciante recorrer à justiça para arbitrar a questão, caso
se opusesse à revogação.
78
Embora haja limitações legais expostas nas Ordenações Filipinas, se comparada
às mulheres inglesas, as brasileiras tiveram desde o período colonial mais autonomia e
reconhecimento de alguns direitos. As mulheres brasileiras herdavam de seus pais em
igualdade com os irmãos e sendo os bens do casal comuns, cada njuge possuía
metade. Como já foi dito anteriormente, sendo os bens comuns, o homem não podia agir
em relação ao patrimônio sem autorização legal da mulher. A esposa tinha o direito,
assim como o marido, de legar sua terça a quem quisesse. Se o casamento fracassasse e
o casal conseguisse a separação, podiam ir ao tribunal e dividir os bens igualmente.
era permitido o divórcio se houvesse abandono, adultério ou ferimentos graves que
pusessem em risco a vida de um dos cônjuges.
79
em relação às mulheres inglesas e norte-americanas, o casamento as
despojava de seus bens, tudo que possuíam era transferido totalmente para o marido que
podia fazer o que bem entendesse sem o consentimento da mulher. No caso da herança,
se a esposa morresse os bens ficavam para o marido, mas se o contrário ocorresse, ela
não tinha direito algum aos bens, a não ser que ele deixasse explicitamente para ela ou
os filhos. O salário de uma trabalhadora pertencia ao marido e podia ser tomado para
76
Ordenações Filipinas, livro IV, título LXVI.
77
“Mandamos, que o marido não possa vender nem alhear bens alguns de raiz sem procuração ou
expresso consentimento de sua mulher, nem bens em que cada um deles tenha o uso e fruto somente, quer
sejam casados por carta de metade, segundo costume do Reino, quer por dote e arras. O qual
consentimento se não poderá provar, senão por escritura pública; e fazendo-se o contrário a venda ou
alheação seja nenhuma, e sem efeito algum. E posto que se alegue, que a mulher consentiu, e outorgou na
venda, ou alheamento claramente, tal outorga tácita não valha, nem seja alguém admitido a alegar, salvo
alegando outorga expressa e provando-a; porque muitas vezes as mulheres por medo ou reverencia dos
maridos deixam caladamente passar algumas cousas não ousando de as contradizer por receio de alguns
escândalos e perigos que lhes poderiam vir”. Ordenações Filipinas, livro IV, título XLVIII. Nesse caso a
legislação reconhece que em muitos momentos as mulheres se calavam por medo da reação dos maridos.
78
GRAHAM, Sandra Lauderale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira, p. 10.
79
Idem, Ibidem, p. 91.
31
pagar dívidas mesmo que vivessem separados. Somente em 1882, depois de
discussões sobre a Lei de Propriedade de Mulheres Casadas, que as inglesas ganharam
plenos direitos sobre seus bens e todas as obrigações conseqüentes. Com essa lei
obtiveram direitos que as brasileiras exerciam séculos. Essa comparação evidencia
que as brasileiras possuíam voz legal em uma medida maior do que se costumava
reconhecer.
80
A grande preocupação com o patrimônio dos descendentes fazia da herança,
muitas vezes, um encargo e, nesse sentido, as mulheres eram muito mais cobradas. Sem
um comportamento exemplar, não lhes era dada a possibilidade de gerir seus próprios
bens e, na presença do marido, ao menos na legislação, isso não era nem mesmo
cogitado.
Em relação à herança, o direito brasileiro, seguindo o português, especificava
que dois terços dos bens de uma pessoa ou de um casal deveriam ser divididos em
partes iguais entre os filhos ou netos ou, caso o houvesse herdeiros descendentes, os
bens revertiam para os pais ou avós, até chegar a algum parente em décimo grau. Caso
não houvesse parentes, podia a mulher tornar-se herdeira universal dos bens do marido.
A pessoa podia dispor do outro terço como quisesse. Pelo falecimento de José da Silva
Pereira, em seu testamento consta que deixa a terça a sua mulher Maria Joaquina e quer
que seja comportado na terça o armazém que possui na Rua do Príncipe.
81
Se não
houvesse herdeiros necessários, podia deixar o espólio para um herdeiro de sua escolha.
Algumas mulheres poderiam optar por protegerem seu patrimônio fazendo
contrato antenupcial. Em Desterro, aos 4 de novembro de 1882, Dona Luiza Rlenges fez
escritura de contrato antenupcial com João Althoff. No documento ficava resguardada a
quantia de três contos de réis que Luiza possuía, sem que o futuro marido tivesse direito
algum a esse valor.
82
Casamento, cor e grupo social estavam diretamente relacionados. Estratégias
matrimoniais representavam a união de interesses, especialmente entre a elite branca e a
legalização das uniões dependia do consentimento paterno. As Ordenações Filipinas,
apontando as justas causas pelas quais os pais podiam deserdar seus filhos, assim se
pronunciavam: “se alguma filha, antes de ter vinte e cinco anos, dormir com algum
homem, ou casar sem mandato de seu pai, ou de sua mãe, não tendo pai, por esse
80
Idem, p. 230.
81
ACTSC, Inventário de José da Silva Pereira, 1880.
82
Escritura de Contato Antenupcial que faz Dona Luiza Rlengels com João Althoff”. Livro 54 de notas
do 2º ofício do cartório de Desterro, 1882, fls 40v e 41.
32
mesmo feito será deserdada e excluída de todos os bens ou fazenda do pai, ou mãe,
posto que não seja por ele deserdada expressamente”.
83
A condição a que estava sujeita
a mulher impossibilitava uma participação ativa na escolha do noivo, embora essa regra
tenha sido mais rígida nos séculos XVII e XVIII. Ainda nas Ordenações Filipinas, sobre
o casamento sem consentimento do pai, dizia o seguinte:
Defendemos que nenhum homem case com mulher virgem ou viúva
honesta que não passar dos 25 anos, que está em poder do pai, mãe
ou avó e vive em sua casa, sem consentimentos deles. Caso isso
ocorra o homem perderá sua fazenda e será degradado um ano para
a África. Caso possua melhores condições que o pai, será consentido
o casamento.
84
Nesse caso o fator determinante é a posição social do noivo. Antes do século
XVIII o dote era determinante para o matrimônio, entre os séculos XVIII e XIX a
condição financeira do marido o era, pois se configurava em alternativa de ascensão
social e segurança para as mulheres.
Ainda em relação às mulheres e a legislação, um aspecto interessante a ser
abordado é a prática do dote, adiantamento da herança de uma filha e os bens que uma
mulher levava consigo para o casamento.
85
Segundo Muriel Nazzari, essa prática
privilegiava a mulher em detrimento do homem, em relação à herança. O dote foi uma
das mais importantes formas de transmissão de riqueza para mulheres no Brasil colônia.
Do ponto de vista legal, gozava de proteção, uma vez que não poderia ser objeto de
penhora no caso de falência do marido, ou podia ser restituído integralmente pelo
marido em benefício da esposa, no caso de divórcio.
86
O filho dotado podia escolher se queria trazer seu dote à partilha ou não:
“havendo filhos que tenham dotes se fará a partilha do líquido entre os outros filhos, que
não tiverem dotes, salvos se os dotados disserem que querem vir logo a partilha, com
seus dotes, por que então se fará partilha direita entre todos”.
87
No século XVII, a
maioria das filhas optava por ficar com o dote, visto que eram muito maiores do que a
parte que lhes cabia na herança. No século seguinte persistia essa prática, porém os
dotes eram menores e a maioria das filhas optava por devolvê-los ao espólio.
83
Ordenações Filipinas, livro IV, título LXXXVIII.
84
Ordenações Filipinas, livro V, título XXII.
85
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, 1600-1900, p.18.
86
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes e MELO, Hildete Pereira de. A partilha da riqueza na ordem
patriarcal, p. 09.
87
Ordenações Filipinas, livro IV, título XCVI.
33
No começo do século XIX a maioria das mulheres de elite não levava dote para
o casamento. Se antes contribuíam para os bens do casal e este era um dos principais
motivos de se arranjar casamentos, no século XIX muitas eram as uniões em termos de
poder e propriedade, completamente desiguais. Ao dar menos ênfase ao dote, as
famílias aceitavam a redução do papel das esposas no sustento do casal. Os dotes
passavam a ser exclusivamente para as filhas, sendo compostos por jóias, enxoval e
escravas para os afazeres domésticos.
88
No testamento de Dona Felisarda Amália da
Costa Brocardo, do ano de 1863, Desterro, consta que tinha uma única filha de nome
Amália casada com o comendador João Pinto da Luz, a qual era a única herdeira. A dita
filha teve em dote de casamento os escravos de nome Manoel, Gervasia, Emilio e
Bonifácia.
89
O desaparecimento dessa prática diminuiu a autoridade dos pais sobre os
filhos, porém aumentou o poder do marido sobre a esposa.
Para a filha de proprietários, o desaparecimento do dote desfavoreceu sua
posição dentro do casamento, pois quando uma noiva contribuía imediatamente para o
sustento da casa, seu marido lhe era devedor. Essa mudança aumentou a possibilidades
de casamento legal para as mulheres que nada possuíam. Desta maneira uma proporção
maior da população passou a casar-se. o aumento do número de famílias com filhas
solteiras mais velhas do que suas irmãs casadas aponta para um decréscimo da
capacidade familiar de controlar os casamentos.
90
O respeito em relação à divisão igualitária dos bens entre os herdeiros torna-se
prática mais concreta entre o século XVIII e XIX, e o valor de todos os presentes,
empréstimos e dotes dados aos filhos antes da morte dos pais tinham de ser devolvidos
ao espólio para a contabilidade final e, se um filho tivesse recebido mais do que sua
parte final dos bens, então devia a diferença ao espólio.
91
O patriarca já não podia
decidir livremente sobre seu patrimônio, pois segundo a legislação tinha que respeitar o
direito de igualdade dos herdeiros.
88
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, 1600-1900, p.204.
89
ACTJSC, Testamento de Felisarda Amália da Costa Brocardo, 1863.
90
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, 1600-1900, p.271e 269.
91
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade escravista
brasileira, p. 65.
34
A partir do momento em que a família passou a ser uma unidade de consumo,
concentrando menor quantidade de bens, o futuro dos filhos não estava mais garantido,
dependendo, portanto da capacidade do indivíduo de sobreviver.
92
Do século XVII para o XIX mudanças em relação à educação das mulheres,
no século XVII a maioria delas viviam próximas de sua família de origem, dessa
maneira mesmo depois de casadas eram protegidas pelo pai. No final do século XVIII,
com o predomínio da família nuclear, muitas mulheres passam a viver longe de seus
familiares, necessitando, dessa maneira, de instrução para protegerem seu patrimônio
(até mesmo dos desmandos do próprio marido).
No final do século XIX novos modelos femininos passaram a ser reforçados,
porém, para a maioria das mulheres, as condições econômicas não favoreceram a
identificação com tais modelos, relacionados à imagem da dona de casa zelosa, educada
e conhecedora dos bons costumes, que dividia sua rotina entre os cuidados com a casa,
marido, filhos e aulas de piano e francês.
93
A maioria das mulheres trilhou seu rumo na
história na contramão da representação social que impôs a elas uma relação direta e
exclusiva com a esfera doméstica.
94
Foram desenvolvidas ao longo dos séculos
estratégias de sobrevivência e laços de solidariedade entre iguais e desiguais e o papel
das mulheres nessa sociedade nos revela sobre a situação de um grupo desfavorecido
por aspectos sociais e culturais, e que ainda assim agiu, atuou e protagonizou.
Nem ricas, nem pobres, pequenas proprietárias não tinham a segurança de um
amparo no futuro, pois seu sustento e de seus dependentes, se dava na luta diária.
Interessa-me tentar decodificar que espaços de atuação e estratégias detinham essas
mulheres durante o século XIX, fugindo da história que faz delas uma vítima ou seu
inverso.
92
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, p. 164.
93
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe, p.292.
94
DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p.104.
35
CAPÍTULO II
Entre sinhás e senhores: propriedade escrava em Desterro
Digo eu Maria [Antonia] da Conceição, solteira, de maior
idade, que sendo Senhora e possuidora de uma crioulinha de nome
Maria, filha de Valentina escrava de Patricio José da Silveira, a quem
a comprei com o fruto do meu trabalho, e a tenho criado até ao
pressente, pelo amor que lhe tenho e de minha ampla e livre vontade
confiro por esta liberdade á dita minha crioulinha para como tal ser
tratada do dia do meu falecimento em diante, porém com a obrigação
de acompanhar e servir a minha mãe a Senhora Dona Maria
Magdalena de Jesus enquanto esta viva for servindo-a como se sua
escrava fosse para então do dia da morte desta em diante gozar aonde
bem lhe convier. E como esta [é] a dita minha vontade, pedi [FLS. 26:]
ao Advogado Manoel José de Oliveira esta carta de liberdade por mim
passasse em a qual assino de meu punho com as testemunhas abaixo e
rogo as Justiças deste Império lhe dêem toda força e vigor, e a façam
inteiramente cumprir e guardar como nela se contém. Feita na Cidade
do Desterro Capital da Província de Santa Catharina aos [dez] de
Dezembro de mil oito centos e sessenta e três [sic]. Maria Antonia da
Conceição. Como testemunha que este fiz Manoel José de Oliveira,
João Ribeiro Marques.
1
O documento citado aponta para apenas um momento da vida das pessoas
envolvidas. Um momento, entretanto, que nos diz muito. Uma senhora solteira
proprietária de uma escrava já não afirmo ser uma exceção à regra, pois me deparei com
mulheres na mesma situação. Mas nem sempre é possível definir a maneira pela qual
adquiriam suas propriedades. Nesse caso, Maria da Conceição declara que a crioulinha
de nome Maria foi comprada com fruto do seu trabalho. E qual seria a ocupação desta
senhora? E que tipo de serviços eram desempenhados por Maria? Quais as expectativas
da escrava em relação a sua liberdade? Quais as expectativas de Maria Conceição e sua
mãe em relação aos serviços que seriam prestados? As reais motivações para essa
alforria de fato correspondem ao que foi dito no documento?
As fontes utilizadas nos permitem responder alguns dos questionamentos feitos.
Para outros é possível intuir, e como intuir não se constitui num esforço
historiográfico por si só, há perguntas que ficam sem repostas.
Outras situações semelhantes a esta surgem no decorrer desse capítulo, que tem
o objetivo de, partindo das cartas de alforria e contratos de locação de serviços,
recuperar um momento extremamente importante na vida das proprietárias, cativos e ex
1
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Maria”. Livro 29 de notas ofício do cartório de
Desterro 1865, fls 25v e 26.
36
cativos, indicando para as estratégias de sobrevivência utilizadas por esses sujeitos.
Inicialmente seapresentado o espaço por onde transitavam as pessoas que surgirão no
decorrer do texto.
2.1 A freguesia de Desterro
A Ilha de Santa Catarina da segunda metade do século XIX distancia-se da
Florianópolis dos dias de hoje. O asfalto em grande medida sufocou os córregos e rios
que ligavam as freguesias, facilitando o acesso ao interior da Ilha. Os prédios, os centros
comerciais, os inúmeros aterros, a grande quantidade de carros e de pessoas transitando
pelas ruas transformaram a paisagem urbana da cidade que continua a ser a capital da
antes província e agora Estado de Santa Catarina.
A Província de Santa Catarina, em meados do século XIX, delimitava-se ao
norte pela Comarca de Curitiba, pertencente à província de São Paulo, ao sul, separava-
se do Rio Grande do Sul pelo Rio Mampituba; a leste era banhada pelo oceano, e a oeste
seus limites estavam ainda em formação, executando-se o distrito de Lages. As terras
povoadas além da Ilha de Santa Catarina e São Francisco eram a estreita faixa litorânea,
como se observa no mapa a seguir.
2
2
MORTARI, Claudia. Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora do
Rosário. Porto Alegre: PUC, 2000. Dissertação (Mestrado em História), p.23.
37
Figura 1: Mapa da província de santa Catarina, 1832.
3
A Ilha e a costa catarinense foram povoados em função das necessidades
estratégicas (militares e administrativas) da Coroa Portuguesa e não em função de
objetivos econômicos. A ocupação da Ilha de Santa Catarina estava relacionada ao
desejo luso de conquista do extremo sul e serviu de apoio à conquista e fixação
portuguesa à margem esquerda do Rio da Prata.
4
Em 1746 o Rei D. João V, através
do Conselho Ultramarino, determinou a vinda de famílias açorianas e madeirenses para
povoar a Ilha. Nas pequenas propriedades, os açorianos desenvolveram o cultivo de
subsistência, destacando-se o da mandioca que aos poucos vai atender não o
consumo local, como também externo. A presença de militares para a defesa da região,
fez aumentar a população da Ilha, transformando a economia de sustento familiar, numa
economia voltada para um pequeno mercado. Esses mesmos militares foram em
princípio, responsáveis pela administração da província. Aos poucos, comerciantes
3
BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha de Santa Catarina e a Questão da Cisplatina. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1980, p.97. APUD MORTARI, Claudia. Os homens pretos do
Desterro: um estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, p.23
4
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. Da
UFSC, 1981, p. 15.
38
locais destacam-se como importante grupo social. Em geral eram proprietários de
embarcações que efetuavam o comércio entre os diversos pontos do litoral catarinense.
5
Figura 2 : Mapa da Ilha de Santa Catarina e suas freguesias
6
5
Idem, Ibidem, p. 16 e 17.
6
Mapa da Ilha de Santa Catarina. VARZEA, Virgílio. Santa Catarina: A Ilha. p. 1.
39
Era na Ilha de Santa Catarina ou município de Desterro, que se localizava a
freguesia de Nossa Senhora do Desterro, cleo urbano, caracterizado especialmente
pela intensa atividade portuária. O porto de Desterro foi o meio de contato entre as
regiões litorâneas produtoras e os mercados consumidores, principalmente o Rio de
Janeiro.
7
Havia outras importantes freguesias na Ilha e entre as mais antigas temos:
Nossa Senhora das Necessidades e Santo Antônio, Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão,
Nossa Senhora da Conceição da Lagoa.
Nossa Senhora das Necessidades e Santo Antonio, além das atividades
mercantis, era responsável pela produção de gêneros de subsistência. Até final do século
XIX, a agricultura tinha grande importância na localidade e controlava a maior parte do
comércio da região norte da Ilha. Essa freguesia possuía no ano de 1872 uma população
de 3015 habitantes, destes 414 (13,73%) eram cativos. A atividade agrícola era a mais
importante da localidade. A Freguesia Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão constituía o
principal núcleo populacional do sul da Ilha e era responsável pelo abastecimento de
Desterro de aguardente, farinha, açúcar, hortaliças e frutas. De um total de 2997
habitantes no ano de 1872, 275 (9,18%) eram cativos. Na costa leste da Ilha estava a
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, formada desde o século XVIII, por
agricultores produtores de mandioca. No ano de 1872 a freguesia contava com 3175
habitantes, desses 441 (13,89%) eram escravos.
8
Nas tabelas abaixo, o total da população livre e escrava respectivamente, por
Freguesia:
Tabela 1: População livre
9
Freguesia Sexo Total
M F
N.S. do Desterro 3826 3869 7486
N.S. da Necessidade de Santo Antônio 1255 1346 2601
N.S. da Lapa do Ribeirão 1331 1391 2722
7
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX, p. 17.
8
Ver capítulo I de: CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de
origem africana em Florianópolis, 1860/1888. São Paulo: PUC, 2004. Tese (Doutorado em História). Ver
também: FARIAS, Joice. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. Niterói: UFF, 2003.
Dissertação (Mestrado em História).
9
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
40
São João Batista do Rio Vermelho 767 815 1582
São Francisco de Paula de Canasvieiras 1748 1721 3469
Santíssima Trindade Detrás do Morro 994 1181 2175
N.S. da Conceição da Lagoa 1256 1478 2734
Tabela 2: População escrava
10
Freguesia Sexo Total
M F
N.S. do Desterro 512 610 1122
N.S. da Necessidade de Santo Antônio 224 190 414
N.S. da Lapa do Ribeirão 138 137 275
São João Batista do Rio Vermelho 94 92 186
São Francisco de Paula de Canasvieras 256 129 385
Santíssima Trindade Detrás do Morro 51 66 117
N.S. da Conceição da Lagoa 254 187 441
Circulando pela freguesia de Desterro, convém destacar que o local e tipo de
moradia eram definidores de classe social. O palácio do governo, a casa da Câmara, a
cadeia e as residências mais imponentes se localizavam em volta da praça central, nas
ruas do Ouvidor, Príncipe e Augusta, atualmente chamadas, respectivamente, Praça XV
de Novembro, Rua Deodoro, Rua Conselheiro Mafra e Rua João Pinto, onde se
concentrava a elite da cidade. O centro era comercial e residencial e toda a
administração pública se localizava nele. Nos bairros da Praia de Fora e do Mato-
Grosso localizavam-se as chácaras.
11
10
Ibidem.
11
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888, p. 177.
41
Figura 3: Vista de Desterro por Victor Meirelles, 1846
12
Figura 4: Rua João Pinto por Victor Meirelles, 1851
13
12
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Brasil. Museu Victor Meirelles – 50 anos;
catálogo de obras. Florianópolis: Tempo Editorial, 2002, p. 14.
42
O Estreito, a Tronqueira, as imediações do Campo do Manejo e as ruas de trás
da Matriz, caracterizavam-se em localidades pobres. A Toca era bairro de pescadores. A
Figueira era bairro preferido dos marinheiros, onde havia trapiches e também das
meretrizes. Eram nessas localidades que moravam a maioria dos africanos e
afrodescendentes, homens e mulheres, escravos e libertos, que exerciam o conjunto de
funções que hoje constituem a infra-estrutura urbana da cidade.
14
Localizava-se nesses bairros fontes que forneciam a água para beber e para
lavagem de roupa. As principais eram: a Fonte da Carioca, a Fonte do Campo do
Manejo, a do Largo do Senado, a do caminho do Estreito, a Fonte Grande, a Fonte da
Rua da Bica, que servia aos moradores do lugar e ao hospital de Caridade.
15
Figura 5: Vista de Desterro, Victor Meirelles, 1847
16
13
Ibidem, p. 16.
14
MORTARI, Claudia. Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário, p. 07
15
Idem, Ibidem, p. 30.
16
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Brasil. Museu Victor Meirelles – 50 anos, p. 15
43
Figura 6: Mapa de Desterro
17
Essa freguesia, cercada por morros e cortada por riachos, destacou-se por seu
porto, cuja importância estava relacionada com o desempenho da função de escoadouro
17
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli, 1979, v.1, p.
129 e 130.
44
da maior parte da produção da província, sobretudo a litorânea. Embora existisse um
movimento comercial anterior, é na cada de 1860 que vai atingir maior intensidade.
Em função da intensificação do comércio, a vida econômica não só de Desterro, mas da
província como um todo passou por mudanças significativas.
18
O comércio de cabotagem foi o mais importante da província de Santa Catarina,
tendo o porto de Desterro como principal centro comercial. Da capital do Império
procedia produtos que abasteciam a província através do porto de Desterro, como por
exemplo: cereais, bebidas, algodão, lã, linho, carvão e ferro. O produto de maior
expressão no comércio exportador de Santa Catarina foi a farinha de mandioca, sendo
que sua exportação foi efetuada principalmente por Desterro.
19
O crescimento populacional e econômico tornou Desterro um local interessante
para investimentos na área comercial. Em função disso surgiram casas comerciais,
pensões, ruas centrais e um comércio ambulante de comida nos trapiches e nas ruas.
20
Figura 7: Vista panorâmica de Desterro, reprodução da litografia de Rolacher &
Schwartzer (1860 – 1865) mostrando o porto da Capital
21
.
Mercadorias produzidas pelas populações das diferentes freguesias da Ilha
chegavam ao porto diariamente e entre as mais comercializadas estavam: milho,
mandioca, arroz, café, cana-de-açúcar, algodão, batata doce, feijão, frutas e legumes
variados. Os produtos chegavam pelo mar, pois o acesso pela terra era muito difícil. Era
18
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX, p. 27.
19
Idem, Ibidem, p. 63 e 77.
20
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis:
UFSC, 1998, p.26.
21
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro, v. 1, p. 368.
45
comum que agricultores tivessem que vender seus gêneros aos atravessadores de
alimentos, que os transportavam através de lanchas. Esses eram comprados por um
valor muito menor ao que eram vendidos na cidade.
22
Diferentes classes sociais passaram a conviver em Desterro e a emergência dos
grupos ligados às atividades comerciais constituiu uma burguesia local que, de certo
modo, ditou novos códigos de distinção e identificação. O interesse pela vida cultural,
escassa em Desterro, era preocupação das classes mais abastadas e as peças teatrais
eram o programa mais procurado entre as cadas de 60 e 70. “O teatro tinha uma
mensagem, era uma lição de comportamento prescrita pelo grupo social, embora
raramente praticado (...). Na platéia choravam todos pela escrava Andréia, que sofria e
chegava ao sacrifício pelos senhores maus e inumanos; no lar não deixavam a coisa por
menos, com os próprios cativos da casa”.
23
A vida noturna era pacata e o toque de recolher se dava às nove da noite. Os
eventos festivos ocorriam principalmente quando da visita de alguma autoridade
importante. A “elite”, composta principalmente por comerciantes e funcionários
públicos, costumava se reunir em igrejas, festas no Palácio da Presidência da Província
e na Câmara Municipal. Freqüentavam salões, onde ouviam músicas, dançavam e
organizavam comemorações.
24
O crescimento econômico trouxe transformações significativas na cidade, porém
algumas situações permaneceram por um longo período. Ao passo que se tentava refinar
o modo de se vestir, de comportar-se, de falar, não havia mínimas condições de higiene
no espaço público da cidade. As ruas de Desterro eram estreitas e sujas. A praia era o
destino do lixo, sendo no século XIX, não em Desterro, mas em outras regiões do
país lugar de despejo. No art. 23 das Posturas Municipais dizia: “Depois do toque de
recolher é permitido o despejo, ou limpeza no mar, cujas vasilhas voltarão lavadas. Os
contraventores, sendo livres, serão multados em 2$000 réis, ou em dois dias de prisão; e
sendo escravos serão punidos policialmente”.
25
Era permitido lançar lixo na praia a
qualquer hora, os excrementos somente a partir do toque de recolher, sendo esta tarefa
quase sempre destinada aos escravos.
26
Não eram incomuns casos como o de Francisca
22
MORTARI, Cláudia. Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário, p.36.
23
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro, v. 2, p.170.
24
Idem, Ibidem, p. 206.
25
Código de Posturas da Câmara Municipal de Desterro, capítulo segundo “Saúde Pública”, artigo 23.
26
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro, v. 1, p.201 e 202.
46
Basília da Cunha, que no ano de 1852 efetuou o pagamento de multa imposta pelo fiscal
da cidade de uma escrava, pela infração do art. 23 das Posturas Municipais.
Estava entre as principais atribuições dos cativos o bem estar das famílias
proprietárias. Segundo censo de 1872, havia 1076 cativos na Ilha envolvidos em
atividades domésticas, 554 somente em Desterro. Numa cidade sem água encanada e
serviços públicos de limpeza as atividades domésticas eram fundamentais para uma boa
vida e não somente pela questão de status e diferenciação social.
27
Os integrantes da “elite” de Desterro eram oriundos principalmente do comércio.
O tipo de atividade que acelerou a distinção econômica e social, possibilitando que
alguns se destacassem na constituição de riquezas, foi o de exportação da farinha de
mandioca e a exploração do comércio de abastecimento urbano da carne e de farinha.
28
Segundo o recenseamento geral do ano de 1872 a população livre de Desterro
era de 7486 habitantes, sendo 3826 homens e 3660 mulheres. Os escravos totalizavam
1122, sendo 512 homens e 610 mulheres. A cidade concentrava quase totalidade das
profissões liberais e seus funcionários: quatro juízes, nove advogados, sete notários e
escrivãos, um procurador, um oficial de justiça, sete médicos, três cirurgiões, catorze
farmacêuticos, todos do sexo masculino, uma parteira, vinte e nove professores e
homens de letras, divididos entre dezenove homens e dez mulheres, cento e seis
empregados púbicos, cento e sessenta e quatro artistas (pintores, atores, atrizes,
músicos, artesãos, etc.), sendo destes quinze mulheres. Entre a população livre havia um
total de seiscentos e vinte estrangeiros, sendo que os alemães eram a maioria, com
duzentos e trinta e um habitantes, seguidos dos portugueses, com 110 habitantes e
africanos com 108 habitantes.
29
27
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888, p. 96.
28
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas.
Florianópolis: Insular, 2000, p. 68. Ver também: HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade de
Desterro no século XIX, 1981.
29
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
A imigração estrangeira repercutiu no processo sócio-econômico não de Desterro, mas da província de
Santa Catarina como um todo. As alterações demográficas resultaram no desenvolvimento dos núcleos
coloniais que em função da produção agrícola prosperaram na segunda metade do século XIX, resultando
na atividade industrial. CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e
econômicas, p. 91.
Num balanço feito em 1855 pelo governo imperial, constatou-se que em Santa Catarina havia nove
colônias de imigrantes. Dos 18 mil colonos contabilizados em todo o país, 74% residiam em Santa
Catarina, pois aparecia como a província do Império em que o número de homens para cada cem
mulheres, apresentava-se mais equilibrado entre os estrangeiros. Ou seja, a comunidade implantada na
província, pouco caracterizada pela grande propriedade escravista, apresentava perfil essencialmente
47
Havia mulheres que eram reconhecidas como capitalistas e proprietárias,
“tratava-se de indivíduos cuja renda advinha principalmente de instrumentos financeiros
tais como ações e debêntures e do empréstimo do dinheiro a juros”.
30
Num total de
noventa e duas pessoas enquadradas nessa categoria, trinta e três eram homens e
cinqüenta e nove mulheres dentre as brasileiras, dezoito eram solteiras, oito casadas e
vinte e quatro viúvas. Dentre as estrangeiras, seis eram solteiras, uma casada e duas
viúvas.
31
Os jornais de Desterro veiculavam imagens “idealizadas” da mulher, sendo
representadas nos papéis de esposas, mães e donas-de-casa e seu espaço de atuação era
a esfera doméstica. “Mulher amante, filha, irmã, mãe, avó. Nessas seis palavras existe o
que o coração humano encerra de mais doce, de mais puro, de mais estático, de mais
sagrado, de mais inefável”. Nesta publicação do Jornal do “Comércio” de 1891, não se
destacava a proprietária, a lavadeira, a mulher que escalava o peixe, que fazia a farinha,
que plantava, que colhia, enfim, não interessavam as inúmeras atividades que eram
exercidas pelas mulheres.
32
Essa imagem encontrava seu contraponto nas práticas
costumeiras de sobrevivência de todas as camadas da população. A imagem da mulher
restrita à esfera doméstica era complementada pela imagem de um marido, cujos
rendimentos poderiam manter a família sem necessitar da ajuda feminina. Entretanto, o
trabalho remunerado fora de casa era muito utilizado pelas mulheres e, também, se
configurava em alternativa de sobrevivência para as classes médias.
No censo de 1872 consta num total de noventa manufatureiros e fabricantes,
setenta e seis homens e catorze mulheres, sendo das brasileiras uma solteira, uma casada
e duas viúvas. Das estrangeiras quatro solteiras, cinco casadas e uma viúva. Dos
familiar. Tal característica possibilitou a continuidade do povoamento pelos imigrantes. Para alguns a
imigração após a proibição do tráfico negreiro, significava a possibilidade de reequilibrar o povoamento
do Brasil em favor da população branca e para que isso ocorresse deveria haver investimentos do Estado
para atrair imigrantes detentores de capital próprio, com interesse em se tornarem proprietários na
América portuguesa. Pelo censo de 1872, no Brasil, os africanos livres e escravos (183 mil) aparecem
como o primeiro contingente estrangeiro, seguido pelos portugueses (121 mil) e pelos alemães (46 mil). O
contingente português e alemão polarizou a política imigrantista até os anos 1880 e a concentração de
imigrantes pobres nas cidades confunde os que pensavam na imigração branca como forma de “civilizar”.
Os imigrantes saídos do meio urbano, desalojados pela grande indústria desenvolvida na Alemanha a
partir dos anos 1870, desejavam reproduzir no Novo Mundo suas condições de vida anterior, representada
pelas corporações profissionais das quais se orgulhavam. ALENCASTRO, Luiz Felipe e RENAUX,
Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In História da vida privada no Brasil. Império: a
corte a modernidade nacional São Paulo: Companhia das letras, 1997, p. 292 – 335.
30
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,
Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.161.
31
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
32
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe, p. 17.
48
homens, 62 eram estrangeiros. A maior parte das pessoas que trabalhavam com
manufaturas ou eram donos de fábricas, não tinham nacionalidade brasileira. Não havia
grandes indústrias instaladas em Desterro e em se tratando da Ilha, a de maior
importância foi a do preparo do óleo de baleia, na Armação da Lagoinha, fundada em
1722. Pequenos estabelecimentos industriais existiram na cidade, como por exemplo:
fábrica de gasosas, em 1863, “Fábrica de Águas Minerais e Gasosas: de Seltz Vichy,
Cotlerets, Luchon, &&, de Limonada gasosa, composta de ingredientes próprios para
refrescar o sangue nesta estação calmosa, de sabor agradável. Uma garrafa de limonada,
sem casco, 320 réis. Em porções, mais barato, Largo do Palácio” (Jornal “O Mercantil”
– 7 de janeiro de 1864),
33
fábrica de cerveja, em 1872, manufatura de cigarros e
charutos, “Em 1870 havia 4 fábricas, em 1877 a Viúva Azevedo & Cia. tinha a sua,
dirigida por Emídio Xavier de Sousa, com máquina especial de cortar fumo” (“O
Conservador”- 2 de setembro de 1877),
34
fábrica de foguetes, fábrica de sabão e velas,
de Mota & Costa, inaugurada na Prainha a 7 de março de 1875 e que antes desta data
pertencia a viúva de Joaquim Duarte Pinto.
35
Havia ainda as pequenas manufaturas que
poderiam estar estabelecidas dentro das próprias residências. Um exemplo são as
mulheres que fabricavam limões de cheiro na sua própria casa para vender na época do
carnaval. As costureiras eram duzentas no total, sendo cento e cinqüenta e três
brasileiras, compreendidas entre cento e dez solteiras, vinte e seis casadas e dezessete
viúvas. Das vinte e seis estrangeiras, treze solteiras e treze casadas. Vinte e uma
costureiras eram escravas.
36
O viajante europeu Auguste de Saint-Hilaire, que esteve na Ilha em 1820, fez
algumas observações acerca da cidade, afirmando que as mulheres de Desterro
exerciam, dentro de suas casas, uma autoridade que não desfrutavam as do interior do
país.
37
Muitas vezes ao falarem das mulheres brasileiras, os viajantes se referiam
exclusivamente as brancas de família abastada, ignorando a existência mulheres livres
pobres, escravas e libertas.
33
Idem, Ibidem, p. 354.
34
Idem, p. 355.
35
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849
1888. Florianópolis: UFSC, 2006. Dissertação (Mestrado em História), p. 113.
36
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
37
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe, p. 279.
49
2.2. O trabalho das (os) cativas (os) e as suas senhoras
A historiografia catarinense durante algum tempo reafirmou os registros de
viajantes europeus que por aqui passaram no século XIX, como os de Auguste de Saint-
Hilarie, que dizia: “Como sejam raros ali os negros, principalmente no campo, e a
população seja pobre e muito numerosa ninguém considera uma desonra cultivar a terra
com suas próprias mãos, e em Desterro são os brancos que exercem todos os ofícios”.
38
A idéia de uma escravidão amena e de pouca importância ocultou por algum tempo a
presença africana na história de Desterro.
39
Do mesmo modo ocorreu com as mulheres
que foram tratadas ao longo da história como submissas e dependentes. Atualmente,
abordagens que tem a preocupação de evidenciar a presença cativa na Ilha e sua
importância e a atuação das mulheres chefiando domicílios sem a presença masculina,
se fazem presentes na historiografia local.
Muitas das mulheres que viveram em Desterro na segunda metade do século
XIX eram proprietárias de escravos, que desempenhavam funções domésticas dentro e
fora das residências, quando mais pobres, elas mesmas desempenhavam tais funções.
Segundo o Recenseamento Geral de 1872, 14,99% da população de Desterro era
escrava.
A propriedade escrava era um dos indicativos de nível de riqueza em Desterro e
a partir dos documentos de inventário é possível perceber a existência de mulheres
sozinhas que possuíam escravos. É o caso de Mariana Luiza da Silva, viúva, que em seu
inventário do ano de 1855 foram avaliados oito escravos. No ano de 1866, Francisca
Carolina de Siqueira Luz ficou viúva, e dentre os bens listados na herança, constava 10
escravos.
40
Trata-se de duas mulheres em períodos diferentes de suas vidas, uma no
momento de sua morte, sendo que vivia sem a presença do marido. Outra no
momento em que ficou viúva, tendo que aprender a viver sozinha, gerenciando bens e
propriedades (se já não fazia isso antes). Às duas não bastava usufruírem do que tinham,
precisavam administrar e no caso de terem dependentes, tratar da sobrevivência e futuro
dos mesmos.
Muitas mulheres optavam por escravas em função das atividades femininas
desempenhadas por elas. Havia também, em alguns casos, uma escolha de tarefas que
38
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888, p. 105.
39
Ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas.
40
ACTJSC, Inventários de Mariana Luiza da Silva, 1855 e Francisca Carolina de Siqueira Luz, 1866.
50
fossem compatíveis com as próprias atividades exercidas pelas senhoras, como as
vendas de tabuleiros. Outra razão poderia ser o fato de serem menos valiosas que os
homens e por isso mais fácil de serem adquiridas. Os homens também eram criados
domésticos, e segundo o censo de 1872, em Desterro existiam 163 pessoas do sexo
masculino que se dedicavam aos serviços domésticos, que podiam incluir várias
atividades de servir, mesmo em bares, hotéis e serviços de hortelão e cocheiro, por
exemplo. Os escravos somavam 109.
41
Eram sobretudo as mulheres de origem africana que transitavam pelas ruas de
Desterro. Não se pode dizer, entretanto, que todas as damas brancas e de classe média
podiam dar-se ao luxo de trancafiar-se em casa, esperando que todas as tarefas fossem
executadas pelos escravos e criados. Embora se constituíssem em atividades díspares,
para muitas viúvas e solteiras que negociavam propriedades, emprestar ou tomar
emprestado dinheiro garantindo a sobrevivência de suas famílias fazia parte de suas
rotinas e sair de casa tornava-se inevitável. Tanto que dos documentos das mulheres,
pesquisados no e ofício de notas dos cartórios de Desterro na segunda metade do
século XIX, além das cartas de alforria e contratos de locação de serviços, havia os
contratos de compra e venda de casas, terras, doações, procurações, hipotecas, escrituras
de contrato antenupcial e declarações de toda ordem. Foi este o caso de Candida Roza
Joaquina dos Passos que, em 26 de outubro de 1859 fez escritura de dívida, por tomar
emprestado de Jezuíno de Oliveira Passos a quantia de 1 conto e 800 mil réis a serem
pagos em dois anos e com juros de 1 por cento ao mês. Para garantia do credor fez
hipoteca de um escravo crioulo de nome Eloy.
42
As ruas de Desterro eram tomadas principalmente por mulheres, “criadas,
lavadeiras, quitandeiras, amas de leite, mulheres astutas e barulhentas, algumas
turbulentas e desordeiras, com vidas radicalmente distintas de certa visão idealizada das
mulheres que reinava absoluta nas cabeças de letrados masculinos”.
43
As quitandeiras
eram mais presentes, sendo essa atividade de escravas e de libertas. A legislação do
século XIX dizia que deveriam as quitandeiras do mercado pagar ao fisco em prestações
mensais, 12$000 ao ano. Aquelas que saíam pelas ruas a vender frutas, doces, verduras
41
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
42
Escritura de Dívida e Hipoteca” que faz Candida Roza Joaquina dos Passos. Livro 66 do ofício de
notas do cartório de Desterro, 1859, fls. 7 e 7v.
43
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe, p. 20.
51
e outros objetos em tabuleiros, cestos ou caixas, deveriam ao fisco municipal a
importância de 3$000 anuais.
44
Segundo Sheila Faria, o comércio urbano ambulante no Brasil teve sua origem
em alguma medida, na cultura portuguesa. As mulheres em Portugal não exerciam
essas atividades como também eram protegidas por leis especiais. Impedia-se que
homens comercializassem doces, bolos, frutos, hortaliças leite, marisco, etc., pois
poderiam tirar o meio de vida das mulheres pobres e decentes, naturais do reino. Aqui
no Brasil esse comércio foi tomado pelas escravas ou libertas, ficando estigmatizado
como trabalho realizado pelas classes subalternas e visto pela população branca com
grande preconceito.
45
Antes de ser construído o Mercado Público, em 1851, o comércio se concentrava
na praia, na altura que alcançava as ruas do Príncipe (atual Conselheiro Mafra) e
Augusta (atual João Pinto). Praia central da vila, aonde chegavam canoas vindas de
diversos pontos trazendo gêneros para expô-los à venda, em esteiras estendidas na areia.
As quitandeiras abrigavam sua mercadoria debaixo de toldos de esteira para se
protegerem do sol.
No final do século XVIII, o governo decretou que todas as bancas de peixe e
vendedores se mudassem para barraquinhas estabelecidas em outra região do centro da
cidade, alugando-as. O centro da capital da Província ficou ainda mais movimentado
pelo intenso comércio das barraquinhas e a presença mais constante era de africanos e
afrodescendentes escravos ou libertos. Essa presença incomodava muita gente, que
insistia em dizer que as barracas eram alugadas a pessoas imorais, até escravos e que
eram receptáculos de roubos, prostituição, além de aspecto grotesco que não combinava
com o status de capital. Muitas foram as tentativas de tirar as barraquinhas do centro da
cidade, embora estas rendessem 126$840 anualmente para os cofres da Tesouraria geral.
Após inúmeras discussões sobre o caso, foi construído em 1851 o mercado público,
44
Idem, Ibidem, p. 167. As quitandas eram definidas na época como “casas em que principalmente se
vendem verduras, frutas, carvão, lenha, ovos, e outras miudezas semelhantes, ainda que nelas também se
vendam gêneros comestíveis da terra, como farinha, arroz, milho, etc., por peso ou medida em pequena
quantidade”. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina. Obra Rara (BPEOR). Decisão 61
Fazenda aviso de 31 de julho de 1844. Coleção das decisões do Império do Brasil de 1844. Tomo VII.
Rio de Janeiro: Reimpressa na Typografia Nacional, 1865, p. 44 APUD MORTARI, Claudia. Os homens
pretos do Desterro: um estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário.
45
FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e São João Del Rey (1700-1850). Niterói: UFF, 2004. Tese (Doutorado em História), p.146.
52
local que concentrou grande parte das atividades comerciais da cidade, possibilitando
inclusive fiscalização mais efetiva em relação aos impostos.
46
Figura 8: A praia do Mercado nos fins do século XIX.
47
Na medida em que a cidade crescia, surgiam casas comerciais e o controle fiscal
passou a perseguir as quitandeiras, embora essa atividade continue até início do século
XX (e além, provavelmente). Não com quitandas se envolviam as mulheres, eram
conhecidas, também, as pombeiras. De acordo com a legislação de 1850, pombeiros
eram pessoas que compravam produtos para revenderem em lugares públicos.
48
Dona Francisca Joaquina de Oliveira Carpes, no ano de 1850, pagou a
importância do imposto de 3$200 sobre uma escrava para vender de Pombeira.
49
Esse
mesmo imposto foi cobrado de Dona Silvana Joaquina de Oliveira Mimoso, viúva do
Coronel Joaquim Felippe Lamprea Mimoso, sobre sua escrava Pombeira.
50
Essas
senhoras aparecem atuando de duas maneiras: pagando impostos e utilizando o trabalho
dos escravos como estratégia de sobrevivência.
Em se tratando de impostos, podemos citar outra fonte de rendimento do Estado,
que poderia ser oriunda do trabalho das senhoras. A fabricação de limões de cheiro
46
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro, v.1, p 84 a 96.
47
Idem, Ibidem, p 85.
48
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de origem africana em
Florianópolis, 1860/1888, p. 82.
49
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, nº114, 1850-51/ 79.
50
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, nº114, 1850-51/81.
53
constituía uma atividade a que se dedicavam muitas senhoras, que vendiam o produto
em casas comerciais ou mandavam vender pelas ruas, em tabuleiros por escravos
próprios ou alugados (licença de 2$000 nas casas ou por tabuleiro). A fabricação exigia
uma grande quantidade de cera para criar uma casca no limão, que deveria romper-se ao
ser jogada contra uma pessoa. Para fazê-los, utilizava-se um limão como molde para a
cera. Dentro podia ser colocada água simples ou perfumada. Eram utilizados no
entrudo, brincadeira carnavalesca, e costumavam divertir quem participava dessa festa
popular e mesmo quem não participava corria o risco de ser atingido por um limão de
cheiro,
51
No ano de 1850, em Desterro, Marianna Joaquina do Livramento pagou
imposto de 2$000 sobre limão de cheiro,
52
dois anos depois a senhora Rita Candida
Callado pagou a mesma importância.
53
O trabalho doméstico dentro das residências era muito utilizado em Desterro e
aos escravos cabia fazer esse tipo de serviço: lavar, passar, engomar, cozinhar, limpar,
etc. Anúncios solicitando esse tipo de trabalho eram muito freqüentes, como o que saiu
no jornal “A Regeneração”, em 1868: “Precisa-se alugar uma escrava que saiba fazer
todo o serviço de casa de família. Para informações nesta tipografia”.
54
Ficava a cargo dos cativos as atividades externas, relacionadas às ruas e por
transitarem com constância pela cidade, muitos senhores alertavam através dos jornais,
os comerciantes, que não se responsabilizavam pela venda de todo tipo de artigo a seus
escravos. Foi o caso do aviso no Jornal “Correio Catharinense”, de 09/03/1853: “D.
Maria Alves Nunes, roga e previne aos Srs. Negociantes desta cidade, que não vendam
fiado gênero ou fazenda alguma em seu nome, à sua escrava crioula Margarida,
advertindo desde já, que se não responsabiliza pelas compras que d’ora em diante fizer
em seu nome a referida escrava”.
55
O anúncio nos indica que em algum momento
Margarida foi autorizada a comprar fiado no nome de dona Maria e que uma atitude da
escrava fez à senhora voltar atrás. Ou ainda que ela comprava fiado sem a autorização
de sua proprietária. Essa situação aponta para a possibilidade de Margarida ter
aproveitado a brecha existente para ter acesso a coisas que não costumava ter em seu
51
O entrudo era uma brincadeira carnavalesca que consistia em jogar limões de cheiro no outro. Podia-se
brincar em casa ou na rua e o importante era pegar a pessoa a ser atingida desprevenida. Era uma festa
popular da qual participavam todas as classes sociais. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do
Desterro, v. 2, p 228.
52
Livro de receitas e despesas da Câmara Municipal, 114, 1850.
53
Livro de receitas e despesas da Câmara Municipal, 130, 1852 e 1853.
54
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina Jornal “A Regeneração”, 1868, nº 09, p. 04.
55
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, Jornal “Correio Catharinense”, 1853, nº 17, p. 04.
54
cotidiano (uma refeição melhor, roupas novas...). Não pensou nas restrições que
enfrentaria futuramente, fez o que queria fazer longe dos olhos de sua senhora.
Os senhores não podiam fiscalizar de perto o trabalho de seus cativos quando
estavam na rua e por essa razão viam-se muitas vezes desafiados, com atitudes nem
sempre esperadas. Se o podiam acompanhar todos os passos de seus escravos, estes,
longe dos olhares dos proprietários tinham mais liberdade para atuar.
A relação entre proprietárias e seus cativos era repleta de ambigüidades, que
estavam presentes nos seus cotidianos, nas suas trocas, nas suas necessidades, nos seus
sentimentos e nos seus desejos. Conquistar a confiança da senhora e aproximar-se de
forma mais afetiva, poderia ser uma estratégia de alguns escravos que buscavam
proteção, que poderia ser oferecida em troca de boa conduta. Sentimentos de afeição
eram desta forma, motivados por interesses próprios e o principal objetivo não eram os
laços de amizade. Estes poderiam ser resultado da dependência mútua e de uma situação
nem sempre desejada, mas muitas vezes necessária.
2.3 Cartas de alforria: liberdade ou controle?
A existência de cartas de alforria e contratos de trabalho marcou a vida dos
moradores de Desterro na segunda metade do século XIX. São documentos que nos
permitem a partir de informações pontuais, lançar luz sobre situações específicas acerca
do local e período de estudo.
Nas cartas de alforria é possível saber: ano, nome do senhor (a), nome do cativo
(a) (algumas vezes traz informações sobre nacionalidade, idade e profissão), razão pela
qual está libertando, testemunhas, localidade, condição (se houver). No contrato de
locação de serviços, que eram arranjos de trabalho feitos entre homens livres (senhores
e libertos), contém as seguintes informações: data, credor, devedor, quantia, prazo do
contrato, em alguns casos o que se espera como comportamento do devedor, e da
responsabilidade do credor sustentar com roupas e tratar do contratado em casos de
enfermidade, não excedendo 15 dias. A alforria em alguns casos estava atrelada ao
contrato, pois os escravos emprestavam dinheiro para pagar sua liberdade. O valor
emprestado era pago aos credores em tempo de serviço ou em valores mensais,
especificados no contrato. Foi exatamente o que aconteceu com a escrava Justina, no dia
55
20 de maio de 1868: “Digo eu Francisca Roza de Souza Cunha que sou legitima
Senhora possuidora de uma escrava crioula de nome Justina, a qual pelos bons serviços
que me tem prestado, e me ter apresentando a quantia de quinhentos mil reis que para
este fim lhe deu o Senhor Virgilio José Villela, por isso que lhe dou sua plena liberdade
para a gozar como lhe convier”.
56
Em seguida a esta carta de alforria está o contrato de
locação de serviços da liberta Justina, feito na mesma data de seu escrito de liberdade:
Saibam quantos este publico instrumento de escritura de locação de
serviços virem, que no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oito centos e sessenta e oito, aos vinte dias do mês de
Maio do dito ano, nesta cidade de Desterro Capital da Província de
Santa Catharina meu cartório comparecerão presentes os outorgantes
deste instrumento de uma parte como devedores a preta liberta
Justina, e da outra como credor Virgilio José Vilella, moradores nesta
cidade e reconhecidos de mim Tabelião e das duas testemunhas
presente ao diante nomeadas e assinadas de que dou fé; perante as
quais por ela devedora me foi dito que para poder obter a sua plena
liberdade pediu, e obteve do credor Virgilio José Vilella a quantia de
quinhentos mil reis que lhes emprestou por tempo de oito anos, os
quais ela devedora se obriga a paga-los dentro deste prazo com seus
serviços a contar desta data em diante, não só dele credor como a sua
família e a seus herdeiros ou a quem mais ele o determinar; bem
como no caso de moléstia grave reverterá em tempo de serviço as
despesas que ele consigo fizer na razão de doze mil reis mensais.
Pelo credor foi dito que aceita a confissão da divida e os serviços que
para seu pagamento se obriga a prestar a credora; bem como obriga-
se a dar-lhe sustento, casa, cama e alguma coisa que vestir para o
serviço de casa; outro sim quando aconteça não querer servir-me por
qualquer pretexto (sendo este justo) será obrigada a dar doze mil reis
mensais a ele credor; e assim mais ele credor desiste deste contrato
uma vez que ela devedora lhe apresente a quantia ora abonada (...).
57
O caso de Justina evidencia o quão importante poderia ser para um africano ou
afrodescendente escravo poder dizer-se liberto, que se submeteu a um contrato de locação de
serviços baseado na dependência.
A cessão do tráfico externo de escravos em 1850 determinou novas
características à escravidão no Brasil. A impossibilidade de trazer africanos para o país
e vendê-los como escravos, indicava o fim desse comércio (pois não haveria reposição
da mão de obra). Dessa forma, a abolição era algo visto como inevitável e muitas foram
as iniciativas para barrar esse processo. Algumas leis foram criadas, e tinham como uma
de suas preocupações a preservação das propriedades e investimentos dos senhores. A
Lei de 1871 configurou-se numa dessas iniciativas, ainda que se caracterizasse também
56
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Justina”. Livro 31 de notas do 2º ofício do cartório de
Desterro. 1868, fls 2 e 2v.
57
“Escritura de Locação de Serviços que presta a preta liberta Justina a Virgilio José Vilella”. Livro 31 de
notas do 2º ofício do cartório de Desterro. 1868, fls 2v e 3.
56
como um importante passo em direção a abolição.
58
A lei construía uma alternativa para
o fim do trabalho escravo, garantindo a indenização pecuniária dos proprietários e
mantendo sob controle os libertos.
59
Esse controle se dava através da idéia de proteção e
qualquer projeto de abolição que contemplasse a liberdade sem a devida “proteção”
(tutela) aos libertos, poderia ser perigoso. Portanto a liberdade deveria preservar os
laços de dependência pessoal entre ex-escravos e ex-senhores, não devendo significar a
ruptura completa com os elementos servis.
60
As possibilidades jurídicas que surgem na segunda metade do século XIX são
espaços de luta que os escravos souberam utilizar amplamente. Ao mesmo tempo em
que se criavam estratégias para dar continuidade ao cativeiro, visando um processo que
não trouxesse prejuízo ao bolso dos proprietários, o poder senhorial ruía a olhos vistos
(embora as estratégias empreendidas na busca pela liberdade fossem utilizadas pelos
cativos antes desse período).
A lei 2040 de 1871 regulamentava em seu artigo a possibilidade do escravo
comprar sua liberdade mediante ressarcimento ao proprietário do seu valor avaliado.
Para tanto era permitido ao cativo a constituição de um pecúlio, uma poupança que
pudessem compor com doações, heranças ou com o que pudessem obter por meio de
seu trabalho, consentido pelo senhor. O artigo da lei dizia que: “o escravo que, por
meio de seu pecúlio, obtiver meios para indenização de seu valor, tem direito à
alforria”.
61
A lei dava consistência jurídica a práticas que existiam antes dela. Os
escravos urbanos tinham mais possibilidades de executar tarefas remuneradas e,
portanto, suas possibilidades de acumular pecúlio eram maiores. No caso dos escravos
de ganho, havia a possibilidade de uma renda excedente.
62
A compra da alforria era um
mecanismo utilizado pelos escravos mesmo antes de 1871, como indica o documento
citado anteriormente, que é de 1868 ou a carta de alforria de 13 de dezembro de 1849,
na qual Constantina Rosa do Nascimento concede liberdade a Emerenciana Rosa,
mediante pagamento: “a qual dou plena liberdade para a gozar como bem lhe parecer e
aonde lhe convier, por haver recebido para esse fim, da mesma escrava a quantia de
58
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição. Escravos e senhores no parlamento e na justiça. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 24.
59
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth
(UNICAMP), 2009, p. 03.
60
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição. Escravos e senhores no parlamento e na justiça, p. 31
e 52.
61
Idem, Ibidem, p. 56.
62
Idem, p. 56.
57
cento e quarenta mil e oito centos réis (140$800)”.
63
Esse título de liberdade comprova
que os arranjos e negociações aconteciam antes do surgimento de uma lei que os
regulasse e evidencia a mobilidade dos escravos, pois para poder juntar a quantia
necessária para a compra de sua liberdade, Emerenciana possivelmente trabalhava na
rua, ao ganho.
As negociações e acordos marcaram as relações escravistas, tendo a carta de
alforria o significado de um rearranjo de relações sociais e de trabalho, “onde os
significados da liberdade conquistada tornavam-se de muitos modos igualmente objeto
de negociação”.
64
A alforria poderia ser uma tentativa, às vezes desesperada, de manter
os cativos no trabalho.
Vista como doação e assim reconhecida pelas Ordenações Filipinas, em seu livro
IV, título 63, até 1871, a alforria esteve associada à idéia de generosidade e afeição do
senhor para com o escravo, que exigia em troca lealdade e obediência. A gratidão e
conseqüente submissão e bons serviços para com o antigo senhor eram comportamentos
fundamentais para definir a condição da liberdade para o cativo, já que as cartas
poderiam ser revogadas pelos senhores até a lei de 1871.
65
Segundo Sheila Faria, o acesso à alforria podia ocorrer de três formas: gratuita,
onerosa, sob condição ou uma combinação das três. Poderia ser onerosa ao escravo,
determinando sua efetivação somente após a morte do senhor e a gratuita poderia estar
condicionada a um número de anos para se realizar. A prestação de serviços por tempo
determinado poderia equivaler a uma forma de pagamento.
66
Em pesquisa feita no Rio
de Janeiro na primeira metade do século XIX, Mary Karasch concluiu que raramente a
alforria foi gratuita. De 1319 cartas analisadas, somente 20,1% foram incondicionais e
gratuitas.
67
Segundo Kátia Mattoso, a concessão gratuita de uma alforria sob condição não
constituía demonstração de generosidade e afetividade por parte dos senhores, mas sim
uma estratégia de controle, pois “s
erá realmente gratuita, como gostam de escrever certos
63
Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava de nome Emerenciana Rosa” livro 12 de notas do
ofício do cartório de Desterro, 1849, fls 23v e 24.
64
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade, p. 10.
65
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição. Escravos e senhores no parlamento e na justiça, p.
85.
66
FARIAS, Sheila de Castro Siqueira. FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As
prestas minas nas cidades do Rio de Janeiro e São João Del Rey (1700-1850), p. 102.
67
KARASCH, Mary Catherine. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. 1
a
ed. [revisada] da
Tese de doutorado.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
58
senhores, essa liberdade concedida sob a condição do forro permanecer escravo enquanto vivos
forem o senhor, o seu filho, sua irmã ou qualquer dos outros membros da família?”.
68
A alforria
sob condição demonstrava a ambigüidade existente na relação senhor/ escravo e embora
pudesse haver uma dissimulação ou simulação de ambas as partes, poderia haver
também espaço para uma atitude “justa” e para ações sinceramente motivadas.
As cartas caracterizadas pela gratuidade freqüentemente eram justificadas pelos
“bons serviços prestados”, ou a “amizade de criação”. Foi o caso de Anna do
Nascimento de Jesus, que em carta de alforria de 6 de maio de 1863, em Desterro,
declarava: sou senhora e possuidora de uma escrava de nome Florencia de Nação
“Angola”, aleijada, e que em razão de seus bons serviços que me prestou dou-lhe a sua
plena liberdade para que a goze desde para sempre.
69
Além de sentimentos de afeto
explícitos nos documentos, havia outras razões que motivavam o ato da alforria e nesse
caso, fico inclinada a pensar que, mesmo que a liberdade pudesse ser de fato uma
compensação por bons serviços, o fato de a escrava ser aleijada facilitava a atitude de
“benevolência” da senhora.
Outra modalidade de alforria era aquela em que o cativo devia dar ao senhor a
quantia que este considerasse justa para pagar a liberdade e o pagamento poderia ser
realizado em quantias mensais, conforme período e valor estipulado. Em carta de
alforria de 2 de junho de 1872, em Desterro, constava: “Declaro eu abaixo assinado que
sendo senhora e possuidora da parda Henriqueta natural desta Província, deliberei hoje
muito de minha livre e espontânea vontade e por me apresentar ela a quantia de seis
centos mil reis, conferir-lhe plena liberdade, como se de ventre livre houvesse nascido,
para que a goze e desfrute aonde bem queira e lhe convier.
70
Henriqueta apresentou o
valor total, que poderia ser oriundo do seu trabalho ou ainda de quantia emprestada (o
que culminaria num contrato de trabalho para pagamento da dívida).
a alforria sob condições exigia que o ex-cativo prestasse serviços por algum
tempo a seus senhores:
71
Digo eu Francisca Candida da Silva que sou Senhora e
possuidora de uma escrava crioula de nome Pedra de vinte anos de idade a qual pelos
bons serviços prestados e amizade que me tem, lhe confiro plena liberdade para gozá-la
68
MATTOSO, Kátia M. Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 181.
69
“Lançamento de Escrito de Liberdade da Escrava Florencia”. Livro 26 do ofício de notas do cartório
de Desterro. 1863, fls 3.
70
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Henriqueta”. Livro 35 de notas do 2º ofício do
cartório de Desterro. 1872, fls 47v e 48.
71
AMARAL,Tamelusa Ceccato do. As “camélias” de Desterro. A campanha abolicionista e a prática de
alforriar cativos (1870-1888). Florianópolis: UDESC, 2006. Monografia (Especialização em História),
p.09.
59
como se de ventre livre nascesse, devendo a mesma libertada continuar a servir-me por
espaço de doze anos e se por acaso eu falecer antes dos doze anos ficará desde esse dia
isenta de ônus algum.
72
Havia casos em que a liberdade do cativo ficava condicionada a
morte da senhora, foi à situação vivida pela escrava Francisca: “digo eu Caetana Roza
de Jesus, viúva de Joaquim Anastacio Natividade que sendo senhora e possuidora de
uma escrava de Nação de nome Francisca, pelo bem que me tem servido, lhe confiro
plena liberdade como se de ventre livre nascesse, com a condição, porém de
acompanhar-me e servir até a hora da minha morte”.
73
Uma mesma alforria poderia
pertencer a duas modalidades, pois a liberdade poderia estar condicionada um tempo
determinado e pagamento de quantia em dinheiro: [Dizemos] nós Antonia Maria da
Cunha e Bernardina Joaquina da Cunha, abaixo assinadas que somos senhoras e
possuidoras de um pardo de nome Francisco ao qual pelos bons serviços que nos tem
prestado e mediante a quantia de seiscentos mil reis, que dele recebemos, conferimos
plena liberdade para que a goze desde como se de ventre livre nascesse devendo
porém acompanhar-nos enquanto vivas formos e prestarmos aqueles socorros de que
carecermos e esteja em suas forças”.
74
Nesse documento é possível perceber que
embora haja a intenção de libertar, esta é carregada de ambigüidades. Duas mulheres
proprietárias de um escravo, procuraram garantir a presença de alguém que lhes
prestaria socorros em suas carências e que ainda lhes rendeu uma boa quantia em
dinheiro. A liberdade de Francisco ficava atrelada a vida das duas mulheres e mesmo
tendo pago por sua alforria, continuava cativo. Talvez as senhoras precisassem dos
serviços de Francisco por não serem tão jovens e as carências a que se referem podem
estar relacionadas a questões da idade. Francisco percebeu um momento propício para a
compra de sua alforria, imaginando que se esperasse muito mais, poderia se tornar parte
da herança das duas. Não se trata de definir quem fez um bom negócio ou quem foi
privilegiado, mas sim evidenciar que ambas as partes negociaram defendendo interesses
próprios e distintos.
Embora não estejamos tratando de grandes propriedades ou grandes riquezas, a
presença do trabalho escravo era bastante comum em Desterro. Por ser um espaço com
características urbanas, oferecia maiores possibilidades para a compra da liberdade ao
72
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Pedra”. Livro 35 de notas do ofício de notas do
cartório de Desterro. 1873, fls 136 e 136v.
73
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Francisca”. Livro 26 de notas do ofício de notas do
cartório de Desterro. 1863, fls 11v e 12.
74
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Francisco”. Livro 26 de notas do 2º ofício de notas do
cartório de Desterro. 1863, fls 33.
60
mesmo tempo em que aumentava a dependência existente entre senhoras e cativos. A
desigualdade social colocava às margens da sociedade muitas mulheres (não era
diferentes com os homens), que ao se verem sozinhas, improvisavam meios de
sobrevivência. Muitas solteiras, viúvas ou abandonadas conseguiram com seu próprio
trabalho comprar propriedades e um investimento certo era a compra de escravos. A
escravidão urbana possibilitava que essas mulheres alugassem os cativos ou os
empregassem no comércio, vivendo de suas rendas. O transito livre pelas ruas de
Desterro possibilitava aos escravos estreitarem seus laços de solidariedade, aumentando
suas possibilidades de liberdade.
2.4 As mulheres, os cativos: algumas particularidades.
As cartas de liberdade e contratos feitos por mulheres em Desterro evidenciam
sua participação efetiva no processo de transformação pelo qual passou a sociedade
brasileira na segunda metade do século XIX, bem como apontam para as estratégias
utilizadas por mulheres e cativos, impulsionados por interesses próprios. A situação
vivida no período determinou, em alguma medida, o rumo da relação existente entre
senhoras e escravos (as).
Partindo das cartas de alforria e contratos de trabalho, procurei identificar seus
significados tanto para cativos quanto para proprietárias. A maioria dos estudos,
entretanto, acena principalmente para as expectativas dos proprietários, já que nos
documentos a “voz” do senhor (a) se faz proeminente. Segundo Kátia Matoso, através
da carta de alforria ou mediante pagamento, o liberto passava a ter direito à família, à
propriedade, à herança e a partir de 1881 com a reforma eleitoral, o direito ao voto nas
eleições primárias, com a condição imposta a todos os eleitores de uma renda mínima
anual de 100$000 reis. Poderia ser curador ou tutor de pessoas civilmente incapazes,
poderia servir o exército, à marinha ou a guarda nacional, sem nunca passar de
soldado.
75
Trata-se neste caso de atribuições no plano jurídico, mas por quais mudanças
esperavam os libertos?
75
AMARAL, Tamelusa Ceccato. As “camélias” de Desterro. A campanha abolicionista e a prática de
alforriar cativos (1870-1888), p. 24.
61
Dentro do que se considera norma ou convenções sociais, as atitudes e
expectativas das pessoas poderiam ser óbvias. Já não acontece da mesma maneira
quando se busca a história do indivíduo e seus interesses próprios. Nesse caso o papel
social é estudado como “um conjunto de inter-relações móveis dentro de configurações
em constante adaptação”.
76
Segundo Giovanni Levi, durante a vida de cada indivíduo aparecem problemas,
incertezas e escolhas e nessa política do cotidiano, as normas sociais são utilizadas de
forma estratégica. Costumamos observar a sociedade de longe, nos atendo aos
resultados que muitas vezes são contrários a vontade dos indivíduos e não dão conta das
suas resistências. Nos intervalos entre sistemas normativos estáveis ou em formação,
grupos ou pessoas atuam com estratégias próprias, capazes de interferirem na realidade
política, embora muitas vezes não sejam suficientes para impedir as formas de
dominação.
77
Mesmo tendo sido creditado as mulheres um papel social subalterno,
submetido à autoridade do poder masculino, suas atitudes demonstram que atuavam nas
brechas de um sistema paternalista que ditava as regras. Quanto aos escravos, não é
novidade as formas de resistência e adaptação em relação à condição servil que
permearam todo o período de escravidão no Brasil.
A ação individual pode constituir-se como a exceção do modelo geral e desta
forma questioná-lo em sua abrangência. Será que o modelo geral conta de
particularidades? O interesse dessa pesquisa se conecta com aspectos gerais e o micro é
a parte do todo. Mas esse todo não é uma estrutura estática, pois se constitui a partir das
práticas e relações. E estas não são movidas por forças estruturais que transformam as
escolhas dos indivíduos em meras funções do modelo geral.
Para Fredrik Barth,
78
é necessário perceber como cada situação é gerada no seu
processo, sendo composto pelo jogo (barganha) entre atores, que ocupam posições
determinadas pelos direitos, obrigações e limites. Esses atores estabelecem estratégias
para maximizar seus ganhos, porém o processo não é previsível, havendo o risco
constante e a incerteza. A mobilidade é fruto das incertezas do processo e a noção de
intenção e interesses leva a uma espécie de consciência do jogo”. O indivíduo está
imerso em relações, interações e interdependências, ou seja, é relacional. Nesse sentido
76
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória e um exorcista no Piemonte do século XVII.
Civilização brasileira: Rio de Janeiro, 2000, p. 17.
77
Idem, Ibidem, p. 45.
78
BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected Essays of Fredrik Barth. London:
Routledge& Kegan Paul, 1981. Ver capítulos 1 e 2.
62
o poder não pode ser separado do campo onde agem forças instáveis e que estão sempre
sendo reclassificadas. “O poder é a recompensa daqueles que sabem explorar os
recursos de uma situação, tirar partido das ambigüidades e das tensões que caracterizam
o jogo social”.
79
O motivo pelo qual as pessoas se associam nem sempre é comum, se
agrupam por interesses muitas vezes diferentes, por conveniências. É dessa forma que
trajetórias individuais ajudam a revelar sobre uma experiência coletiva e ainda, mostram
o quanto às grandes estruturas não submetem as vontades particulares. Os documentos
presentes neste capítulo nos dão evidências dos interesses dos indivíduos envolvidos,
bem como as estratégias que utilizavam, muitas vezes de forma consciente, para atingir
seus objetivos. Em se tratando de relações de poder, hierarquicamente os escravos eram
desprivilegiados. Entretanto, dentro das contradições do sistema escravista, negociavam
sua liberdade e tinham uma importante moeda de troca, seu trabalho.
Ainda segundo o pensamento de Barth, descontinuidade entre norma e prática
impele a pensar o sistema a partir do comportamento menos freqüente, da exceção, do
desvio. Entender como as coisas mudam, a origem da mudança a partir das exceções,
que são também desafios à ordem, nos permite construir a história a partir do que está à
margem.
Analisar a vida dos indivíduos requer um tipo de lógica adequado aos
fenômenos que estão sempre em movimento. A lógica histórica interroga os
documentos e o conhecimento histórico é provisório e incompleto, limitado e definido
pelas perguntas feitas à evidência.
80
Os conceitos e regras históricas exibem extrema
elasticidade e permitem grande irregularidade.
Os documentos interrogados neste capítulo são cartas de alforrias e contratos de
locação de serviços, pesquisadas em 26 livros do cartório Kotzias, compreendidos entre
os anos de 1849 a 1887.
81
O total de alforrias contabilizadas foram 428 e contratos de
trabalho, 116. Esses dados estão compilados na tabela 3:
82
79
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória e um exorcista no Piemonte do século XVII, p.33.
80
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar,
1981, p. 48 e 49.
81
Data dos livros: ofício: 1859, 1886/1887. ofício: 1849/1851, 1852/1853, 1859, 1859, 1861, 1862,
1863, 1865/1866, 1868/1869, 1870, 1872/1873, 1879/1882, 1882/1983, 1885,1886. Não identificados:
1864, 1874/1877, 1874, 1878/1879, 1879, 1879, 1879, 1884, 1886.
82
Dentre as 428 alforrias e 116 contratos de trabalho registrados em Desterro, nem todos remetiam aos
habitantes da freguesia. Ao somarmos o número de alforrias concedidas por homens e mulheres, bem
como dos contratos feitos, teremos um total de 245 alforrias e 83 contratos para Desterro. A diferença de
183 alforrias e 33 contratos correspondem a registros de moradores de outras freguesias ou ainda se
referiam ao casal, não tendo aparecido nesta contagem. A qualidade da amostra é incompleta e
63
Tabela 3
Total das alforrias compreendidas em 26 livros
de 1849 às 1887
428 100%
Total das alforrias analisadas 245 57,2%
Total de contratos compreendidas em 26 livros
de 1849 às 1887
116 100%
Total de contratos analisados 83 71,5%
Inicio a análise dos documentos, com a carta de alforria feita por Cândida Maria
Soares de Almeida ao seu escravo Lucio:
Digo eu Dona Candida Maria Soares de Almeida abaixo assinada
que entre os escravos que possuo existe um pardo de nome Lucio,
mestre alfaiate, [...], digo, [mestre] alfaiate ao qual em atenção à
amizade que lhe tenho não por tê-lo criado, como pela sua boa
conduta de que se tem feito [merecedor] de toda a minha estima, e
por tão motivo e gratidão, desde lhe concedo sua liberdade sem
ônus algum, para gozá-la aonde bem lhe aprouver como se de ventre
livre nascesse, cuja liberdade a dou por muito minha vontade e sem
constrangimento algum, para o que rogo as Justiças Nacionais lhe
[prestem] toda a validade que por falhar aqui alguma das
formalidades. E para que [conste] onde convier mandei passar o
presente que somente assino. Santa Catharina (Desterro) aos
dezessete dias do mês de Junho de 1859 [...].
83
Não é possível saber a idade de Lúcio, mas tendo um ofício significa que não
era criança. Segundo o que consta na carta de alforria, foi criado por Dona Cândida, em
casos como esse se presume que nem sempre o ex-cativo se afastava da senhora ao ficar
livre. Poderia continuar vivendo com ela como agregado. São somente hipóteses, que
infelizmente não são respaldadas pelas informações obtidas. É importante ter clareza de
que estamos tratando de uma situação de violência que é a escravidão e nesse caso,
independente de o proprietário ser uma mulher, ou declarar afetividade para com o
escravo, a relação não deixa de ser caracterizada por conflitos, ambigüidades, coerção e
violência. Não afirmo com isso que os sentimentos não poderiam ser verdadeiros.
Segundo a fala de Dona Cândida, Lúcio teve boa conduta e isso pode ter ocorrido em
função de seu desejo de liberdade, mas também por uma relação mais próxima com a
senhora.
selecionada pela “sobrevivência dos documentos”. Os dados foram retirados de pesquisa atualizada em
04/12/2007.
83
“Lançamento de Escrito de Liberdade” do escravo Lucio. Livro 66 de notas ofício do cartório de
Desterro 1859, fls 6v e 7.
64
Dez anos se passaram e aos 17 de fevereiro de 1869, Dona Cândida vai
novamente ao cartório de Desterro para registrar a carta de alforria de Joanna crioula e
Maria parda, sua filha. No documento declara: “pela amizade que lhes tenho e em
recompensa do zelo com que me tem tratado na minha enfermidade concedo a ambos
sua plena liberdade desde o dia do meu falecimento, para que então gozem como se de
ventre livre nascessem, e por não poder assinar por me achar cega (...)”.
84
Na carta anterior, concedida a Lucio em 1859, não faz menção a sua cegueira,
que poderia ser resultado de avançada idade. O sentimento de gratidão é demonstrado
quando reconhece ter sido bem tratada em sua enfermidade e a condição de que
continuem servindo até o dia de seu falecimento pode representar também o medo de
ficar sozinha numa situação de extrema fragilidade e dependência. Por outro lado, para
a mãe e a filha cativas ficar ao lado da senhora até o fim de sua vida poderia significar a
possibilidade de uma herança para o início de uma nova vida. Possivelmente essa
promessa foi feita, como forma de manter companhia, lealdade e a oferta de um bom
trabalho.
Quando se tratava de doação ou concessão senhorial, as alforrias geralmente
traziam o argumento de que estavam sendo realizadas pelos bons serviços prestados
pelo escravo. No dia de maio de 1872, Anna Maurícia da Costa, viúva no finado
cirurgião João Marcos da Costa Cardozo, declarava: “sou senhora e possuidora do
escravo Manoel Nação Congo, maior de sessenta anos de idade e que em atenção aos
bons serviços, por ele prestados lhe concedo desde plena liberdade para que a goze e
desfrute aonde bem quiser e lhe convier”.
85
Não há na carta de alforria nenhuma
condição de prestação de serviços. A liberdade de Manoel pode ter sido resultado de
uma negociação de anos. É importante ressaltar que o liberto tinha mais de sessenta
anos e um escravo com essa idade não era valorizado. Um escravo com tal característica
poderia dar mais despesas que lucros. Não se pode desconsiderar a conquista, mas o que
de fato significou ficar livre para Manoel? A liberdade para nós hoje pode ser
completamente diferente do que foi para Manoel. É possível pensar que ele era um
africano e independente do tempo que levou para conquistar a sua liberdade, o valor
dela pode ter um significado completamente oposto ao que pensamos ou que homens e
84
“Lançamento de Escrito de Liberdade” das escravas Joanna e Maria. Livro 31 de notas 2º ofício do
cartório de Desterro 1869, fls 58 e 58v.
85
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Manoel”. Livro 35 de notas ofício do cartório de
Desterro 1872, fls 37.
65
mulheres brancos da época pensavam. Quem garante que não possuía família, amigos
ou parentes?
As alforrias não estavam relacionadas somente a interesses econômicos, mas
para alguns proprietários poderia representar a liberação de encargos, no caso de
alforrias de idosos ou inválidos, ou de ressarcimento de investimentos e despesas, em
momentos de crise econômica. Sentimentos de apreço e estima, entretanto, não eram
suficientes para justificar a quantidade de alforrias concedidas em Desterro entre os
anos 1850 e 1880. As libertações aparecem como concessões feitas pelo proprietário ao
escravo submisso e obediente, mas na maioria das vezes são resultado de um acordo
entre ambas as partes. Manoel, com mais de sessenta anos de idade já havia quitado sua
alforria com anos de serviços, conforme redigido na própria carta, “bons serviços”.
86
Embora não se saiba se Anna Maurícia possuía outros escravos, era viúva de um,
dos três cirurgiões que existiam em Desterro, segundo o censo de 1872. Possivelmente
era uma pessoa conhecida, que poderia utilizar-se das relações do marido e proteção de
amigos como estratégia de sobrevivência, manutenção de status, prestígio,
respeitabilidade. As relações estabelecidas de forma horizontal ou vertical eram
amplamente utilizadas numa cidade como Desterro, onde as condições econômicas não
eram das mais favoráveis. Ter um sobrenome reconhecido ou ser apadrinhado por
algum comerciante proeminente ou funcionário público poderia ser uma das maneiras
que mulheres, e até mesmo seus cativos, encontravam para movimentar-se na
provinciana Desterro.
Voltemos à década de 60. Aos dois de março de 1866, ficou livre o escravo
Matheus de Nação Benguella, idade presumível de setenta anos:
Nós abaixo assinados filhos e genros da finada Dona Anna
Bernardina da Silva Lobo seus únicos e necessários herdeiros, tendo
em consideração os bons serviços prestados por muitos anos pelo
escravo Matheus de Nação Benguella, idade presumível de setenta
anos, hoje nossa propriedade [FLS. 47:] por falecimento de nossa
mãe e sogra declaramos que de nossa livre e espontânea vontade e
sem constrangimento de pessoa alguma concedemos desde a
liberdade ao referido escravo.
87
86
Este tipo de análise é reforçado pela referência a outros trabalhos sobre alforria no século XIX, como
por exemplo: BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do Século XIX: liberdade e dominação. São
Paulo: Humanitas, 2004.
87
Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Matheus”. Livro 29 de notas ofício do cartório de
Desterro 1866, fls 46 e 47v.
66
Por quantos anos Matheus esperou por sua liberdade? Mais uma vez esbarramos
na questão da idade. Assim como o exemplo de Manoel, citado acima, Matheus tinha
avançada idade e até que ponto seria vantagem mantê-lo escravo? Matheus acompanhou
Anna Bernardina em vida, a liberdade posterior a sua morte talvez fosse um acordo ou
uma esperança. Era mais recorrente que os herdeiros libertassem escravos idosos e as
razões poderiam estar relacionadas à convivência e sentimentos de afeição, mas
também a liberação de encargos de escravos que pudessem dar mais despesas que
lucros. Além de serem cativos desvalorizados, tinham pouca força para o trabalho.
Francisca da Costa, viúva de outro cirurgião mor de Desterro, João Marcos da
Costa Cardozo, aos primeiro de maio de 1872, alforriou a escrava Gerenima, próxima
de trinta anos. Na carta de alforria declarou: em atenção aos bons serviços que a
mesma escrava me tem prestado lhe confiro desde já, plena liberdade como se de ventre
livre houvesse nascido”.
88
A alforria incondicional é a que melhor representa uma
relação mais próxima entre o senhor e escravo, podendo ser também sinal de submissão
por anos. Para Scheila Faria, o perfil do alforriado incondicionalmente era feminino,
nascido no Brasil e ligado ao serviço doméstico. Numericamente as mulheres eram mais
alforriadas que os homens.
89
Na década da abolição, aos 6 de março de 1882, duas senhoras alforriam três
cativos, sendo mãe e filhos:
Carta de liberdade passada a favor dos escravos Maria, Themotheo
e Basilio, por suas Senhoras abaixo assinadas. Declaram as abaixo
assinadas Dona Carlota Fernandes da Cunha e D. Maria Carlota de
Larroc, que sendo senhoras e possuidoras dos escravos Maria,
Themóthel e Bazilio, sendo mãe e filhos, pela presente conceder aos
mesmos escravos plena liberdade para que gozem de hoje em diante
como se de ventre livre nascessem, cujas liberdades lhe conferem
sem constrangimento algum, sendo o único móvel desta liberdade a
amizade que tem aos ditos escravos e de bem lhes terem servido.
90
Ao alforriar uma família, como foi o caso, evidencia-se o reconhecimento por
parte da senhora em relação aos laços familiares dos escravos. Importante destacar que
essa carta de alforria foi concedida por duas mulheres, o que significa que os escravos
eram propriedade de ambas. Não a informação sobre o grau de parentesco, talvez
88
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Gerenima”. Livro 35 de notas ofício do cartório de
Desterro 1872, fls 33 e 33v.
89
FARIAS, Sheila de Castro Siqueira. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do
Rio de Janeiro e São João Del Rey (1700-1850), p.117.
90
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Maria, Themotheo e Basilio”. Livro 53 de notas
ofício do cartório de Desterro 1882, fls 11 e 11v.
67
fossem irmãs e suas propriedades poderiam ser oriundas de herança. A parceria entre
duas mulheres em relação à propriedade escrava poderia significar mais incertezas para
os cativos, pois as negociações implicariam na vontade de duas proprietárias e com
certeza havia muito que acordar e negociar entre elas.
A prática da alforria, que se configurava a partir de relações estabelecidas entre
proprietárias e cativos (as) muda ao longo das décadas da segunda metade do século
XIX. Na década de 1880 os espaços de luta pela liberdade se ampliaram e embora não
se pudesse prever a data exata, o fim próximo da escravidão era uma certeza. As razões,
portanto que levaram a alforria na década de 1850 e 1860 eram muito diferentes das que
motivaram o mesmo ato duas ou três décadas depois. No início da segunda metade do
século XIX em Desterro, cresce o número de comerciantes em função da atividade
portuária. Essas pessoas investem em escravos, porém com a cessão do tráfico interno, o
acesso a esse tipo de propriedade ficou mais difícil, pois a proibição da entrada de
africanos no Brasil encarece a oferta dos que haviam sido trazidos para cá como
escravos e de seus descendentes. Além do que, todas as brechas abertas no campo
jurídico possibilitaram maior espaço de luta pela liberdade, pois os senhores não tinham
mais seu direito à propriedade privada incontestável, era preciso negociar para garantir
o retorno de todo o investimento financeiro que fizeram. Em muitos casos, a existência
de um ou dois escravos responsáveis pelo sustento de toda uma família favorecia a
situação do cativo no momento da negociação, pois se o trabalho escravo era
imprescindível para a sobrevivência de seu proprietário, este tinha que oferecer algo em
troca para continuar obtendo um bom “serviço”.
Em 15 de maio de 1886, Anna Medeiros da Costa concede carta de liberdade ao
escravo Pantaleão: “declaro eu abaixo assinada que tenho nesta data dado liberdade a
meu escravo Pantaleão, com a condição do mesmo escravo me servir durante minha
vida, ficando por minha morte gozando o dito escravo de sua plena liberdade. Para
garantia do que mandei passar a presente carta que vai assinada pelo meu próprio
punho. Desterro trinta de junho de 1883”.
91
A carta foi registrada em cartório três anos
após ter sido escrita. Num momento em que muitos eram os libertos, Anna Medeiros
tentou garantir a companhia e trabalho do escravo por toda sua vida. Dessa forma a
liberdade de Pantaleão ficou atrelada à vida de sua proprietária. A alforria, ainda que
nessas condições, não deixa de ser para Pantaleão uma conquista, pois alforriar não era
91
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Pantaleão.” Livro 61 de notas do 2º ofício do cartório
de Desterro, 1886, fls 7v e 8.
68
ato de benevolência e sim uma troca. O acordo estava feito, e embora não esteja
explícito no documento, pode-se supor que os interesses eram distintos. Na mesma data
(30 de junho de 1883), Anna Medeiros faz a carta de alforria do escravo Nereu, que só
foi registrada em 20 de maio de 1886: “declaro eu abaixo assinada que tenho nesta data
dado liberdade ao meu escravo Nereu, com a condição do mesmo escravo me servir
durante minha vida, ficando por minha morte gozando o dito escravo de sua plena
liberdade”.
92
Ao conceder liberdade a dois escravos, Anna Medeiros não estava se
desfazendo de seus serviços ao contrário, estava se garantindo da continuidade do
trabalho de seus escravos. Nesse momento a revogação de alforrias por ingratidão não
era mais possível e às senhoras restava confiar.
Sem dúvida as alforrias condicionais representavam o interesse do senhor em
manter o escravo em cativeiro através de negociações. A possibilidade de ficarem livres
faria com que os escravos bem servissem seus senhores até o tão esperado momento de
sua liberdade. É claro que se pensarmos dessa maneira, a alforria parece ter sido algo
sempre manipulado pelos senhores que, para tirar vantagens, ofereciam a possibilidade
da liberdade. Não aconteceu somente dessa maneira. A própria existência da alforria
como troca por um bom serviço descaracterizava o controle total do senhor sobre o
cativo.
Bernardina Theresa da Cunha, embora conceda alforria aos seus cativos, faz
questão de destacar que, “somente manterão sua liberdade, caso não sejam ingratos”.
Tratava-se do ano de 1853, quando ainda eram permitidas revogações de cartas de
liberdade.
Achando-me em avançada idade, e querendo recompensar os
serviços de minha escrava de nome Joaquina e a amizade que tenho
aos filhos da mesma parda e meus escravos Isabel que tem dezesseis
anos, e Lourenço que tem quinze para dezesseis anos, ambos também
pardos, dou e concedo aos ditos meus escravos, Joaquina, Isabel e
Lourenço liberdade e isenção do cativeiro como se livre nascessem,
com a condição e obrigação de me servirem bem e acompanharem
enquanto eu viver, como até agora tem feito; e se tornarem maus e
ingratos, serão tornados cativo.
93
Dona Bernardina declarou sua avançada idade, demonstrando apreensão em
relação aos cuidados dos cativos para com ela. Declarar sua velhice demonstra a
92
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Nereu.” Livro 61 de notas do 2º ofício do cartório de
Desterro, 1886, fls 10 e 10v.
93
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Joaquina, Isabel e Lourenço”. Livro 14 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1853, fls 45v e 46.
69
dependência em relação aos escravos. Esses talvez a servissem melhor em função disso,
pois a liberdade estava próxima, além do que o bom comportamento poderia resultar em
algum quinhão de herança. A ameaça ao retorno do cativeiro é mais um indicativo da
dependência da senhora para com os cativos e nesse caso a estratégia era clara e
consciente por parte dela. Através da barganha, os interesses dos escravos também
prevaleciam. Dona Bernardina talvez quisesse garantir que após sua morte Joaquina,
Isabel e Lourenço não continuariam escravos em função da declarada amizade que
dizia sentir por eles.
A que tipo de amizade se refere Bernardina? Sem dúvida uma relação de
amizade entre desiguais possuía dinâmicas próprias, sendo caracterizada pela
ambigüidade e contradição. Era baseada na dependência e a liberdade posterior era
concedida em troca de companhia, bons cuidados e amparo na velhice. A ameaça de
revogação da alforria até 1871 foi um artifício utilizado pelos senhores para manter a
lealdade e obediência dos cativos.
Muitas vezes a alforria estava vinculada a morte do senhor ou senhora, ou ainda
de algum parente próximo. Era prática comum tentar garantir o cuidado dos familiares,
ou uma companhia para si no futuro.
94
Em Desterro as mulheres obtiveram mais alforrias do que os homens. O que
levava as mulheres a serem alforriadas em maior quantidade e quais recursos
utilizavam? Segundo Sheila Faria, as mulheres escravas tinham mais possibilidade de
acumular pecúlio, pois executavam atividades urbanas, como pequenos comércios
(quitandeiras), muitas eram prostitutas, amas-de-leite, lavadeiras, etc. As que se
dedicavam a atividades domésticas dentro das residências tinham maiores
possibilidades de se aproximarem de suas senhoras e suas famílias. A alforria estava,
muitas vezes, ligada a laços sentimentais e como já foi dito anteriormente, a
proximidade existente entre as mulheres que realizavam serviços domésticos nas
residências poderia determinar uma relação mais afetiva. Talvez por essa razão, muitas
das alforrias eram justificadas pelos bons serviços prestados ou amizade existente entre
senhor e escravo.
Anna Apolinária da Trindade, em 23 de fevereiro de 1863 na carta de alforria
concedida ao crioulo de nome Manuel dizia: “condição que depois de meu falecimento
94
FARIAS, Sheila de Castro Siqueira. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do
Rio de Janeiro e São João Del Rey (1700-1850), p.107.
70
ficar em companhia pela minha mãe, isto no caso de eu falecer primeiro, e (...)
mandando ao (...) ficará assinado a mesma casa em companhia de minha irmã Camilla
enquanto solteira, em caso de casar se seguirá a mesma cláusula de ficar dito Manuel
em companhia daquela que for seu gosto”.
95
Não fica claro em que momento a
liberdade tão sonhada chegará, pois a vida de Manuel está subordinada, ao que parece,
aos acontecimentos e vontades das mulheres da família, a proprietária, mãe e irmã. A
idéia de liberdade condicional era bastante relativa, pois dependia em grande medida do
estado de saúde e idade do proprietário.
Alguns meses depois, foi feita a carta de liberdade dos escravos Anna e Angelo.
Nesse documento, a senhora Joanna Benedicto Capistrano declarou:
Sou legitima senhora de uma escrava crioula de nome Anna maior de
cinqüenta anos e de um escravo pardo de nome Angelo filho da dita
minha escrava de nome Anna os quais tanto mãe como filho, com a
obrigação de me acompanharem até o dia do meu falecimento
suprindo-me e a minha família como até ao presente tem feito, e
pagar a divida que eu estou devendo ao Senhor Antonio Joaquim
Brinhoza e fazerem o meu enterro, ficarão gozando de suas plenas
liberdades, para as desfrutar desde o dia de minha morte em diante
aonde lhes convier como se ambos de ventre livre nascessem cujas
liberdades lhes confiro de minha livre e espontânea vontade, não
pelo o amor de criação como pelo bem que ambos me tem servido e
espero que continuarão a servir me e cumprirem integralmente com a
clausula acima declarada isto é, pagamento da divida e funeral.
96
A carta de alforria acima representa uma situação onde a precariedade da vida da
senhora é presente, por três aspectos por ela citados. Primeiro, a condição para libertar os dois
cativos é que eles continuem suprindo a ela e a sua família, demonstrando que o trabalho de
Anna e Angelo eram essenciais para sua sobrevivência. Por sua situação financeira pouco
favorecida, emprestou dinheiro de Antonio Joaquim Brinhoza, valor que talvez não tivesse
condições de pagar. Passou a dívida aos cativos que, para não continuarem propriedade de seus
herdeiros, teriam que dar conta da condição imposta. Por fim, Joanna procurou garantir seu
funeral, pois nem dinheiro para isso ela tinha. Havia a grande possibilidade de que os escravos
fossem seus únicos bens e sua fonte de renda, e mesmo que o “amor de criação” declarado não
fosse mentira, Joanna não tinha condições de se desfazer de imediato dos cativos. Ao contrário
tentou garantir de todas as formas que ficariam ao seu lado até o momento de sua morte. Para a
senhora seria conveniente não precisar libertar os escravos, mas através da troca ela procurou
95
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Manuel”. Livro 29 de notas do segundo ofício do
cartório de Desterro, 1866, fls 46v e 47.
96
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Anna e Angelo”. Livro 26 de notas do segundo
ofício do cartório de Desterro, 1863, fls 16v.
71
garantir situações que no seu futuro, eram incertas. Para que a vida fosse paga era necessário
que Anna e Angelo juntassem dinheiro e ao que tudo indica trabalhavam fora da residência de
Joanna, o que tornava mais fácil juntar o valor que a senhora devia. Para os dois escravos
vislumbrar a liberdade, ainda que atrelada a algumas condições, era uma situação que criava
uma série de expectativas. Não sei a idade de Joanna, mas esse pode ter sido um fator
determinante para o acordo.
As mulheres sozinhas tentavam se garantir de várias maneiras, pois se a luta pela
sobrevivência era cotidiana, seus futuros eram incertos. Uma mesma atitude poderia ser
motivada por ambigüidades, pois uma alforria ao mesmo tempo em que poderia ser resultado de
uma relação de afeto, era também uma maneira de garantir a própria segurança no curto ou
longo prazo, através de acordos, baseados na idéia da troca. As cartas de liberdade feitas pela
viúva Maria de Oliveira Bastos, no dia 24 de agosto de 1872, indicam para uma estratégia
utilizada pela senhora para garantir o trabalho de seus cativos no longo prazo:
Que sendo de minha legitima propriedade o Escravo crioulo de nome
Mariano, natural desta Província, de dezoito a vinte anos de idade,
lhe concedo plena liberdade para gozá-la logo que complete quarenta
anos, ficando obrigado a prestar-me serviços até fazer aquela idade,
depois do meu falecimento, a minha filha Maria, não podendo ter
direito aos seus serviços quer os herdeiros desta minha filha, quer
outros meus herdeiros se eu e ela falecermos antes de o dito escravo
chegar à referida idade, sendo ficar em tal caso plenamente livre.
97
Sendo de minha legitima propriedade a pardinha de nome
Marcollina, de nove anos de idade pouco mais ou menos, e natural
desta Província, lhe concedo plena liberdade para gozá-la logo que
complete trinta e cinco anos, ficando obrigada a prestar-me serviços
até fazer aquela idade e depois do meu falecimento à minha filha
Antonia, não podendo ter direito aos seus serviços quer os herdeiros
se eu e ela faltarmos antes de a dita pardinha chegar a referida idade,
devendo ficar em tal caso plenamente livre.
98
Um dos casos mais intrigantes, citado na introdução e que retomarei, é o de
Eufrasia Xavier Caldeira, que aos 4 de agosto de 1851 concedeu liberdade a sua escrava
Maria José, declarava que havia se separado de seu marido por motivo de “sevícia” e
em função disso teve dificuldades de se manter, não conseguindo nem o necessário para
alimentar-se e pagar suas despesas (entre elas o curativos dos cativos Jacinto e
Feliciana). Como alternativa, ou única opção, aceita o pagamento de cento e doze mil
97
Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Mariano”. Livro 35 de notas do segundo ofício do
cartório de Desterro, 1872, fls 60v.
98
Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Marcolina”. Livro 35 de notas do segundo ofício do
cartório de Desterro, 1872, fls 60v e 61.
72
réis (quantia não muito significativa) em troca da liberdade da escrava Maria José.
Declarou ainda que a escrava a acompanhou desde a sua separação e repeliu as
“seduções ilícitas” de seu senhor. A liberdade ficou condicionada, entretanto à morte da
senhora.
99
Esse documento nos revela algumas particularidades, pois não era regra que
senhoras se separassem de seus maridos, justamente pelas dificuldades pelas quais
passou Eufrásia. Entretanto, embora não fosse norma, situações como essa ocorriam. Se
vendo sozinha Eufrásia é obrigada a conceder liberdade a Maria José, pois precisava do
dinheiro. Vivia um impasse, pois também precisava da escrava. Maria José por sua vez,
tendo conhecimento da situação de Eufrásia, explora a situação, percebendo o momento
propício para comprar a sua liberdade.
Podemos considerar que Maria José soube
explorar os recursos de uma situação, tirando partido das ambigüidades e tensões,
caracterizando uma relação de poder, onde o fator determinante era a situação limite
vivida por Eufrásia. Neste jogo de interesses diferentes era impossível que uma
ganhasse e a outra perdesse, por essa razão foi necessária a negociação, o acordo. A
precariedade em que viviam talvez as tenha aproximado de alguma maneira.
Para Eufrásia possuir cativos era uma segurança, mas também significava um
investimento de que não dispunha. Sendo proprietária, sua responsabilidade não era
em receber rendimentos.
Em 30 de maio de 1866, Dona Eufrásia fez a carta de alforria da escrava
Custódia, onde declarava ser viúva e ter recebido a cativa por herança de sua mãe.
Declarou liberdade a escrava mediante condição que a acompanhasse enquanto viva
fosse. Justificou a alforria pelos bons serviços prestados por Custódia e por tê-la sempre
socorrido com zelo e dedicação.
100
No período de 15 anos, entre a alforria de Maria José
e Custódia não é possível saber o que aconteceu na vida dessa senhora, o fato de utilizar
a condição de viúva, pode significar a morte de seu ex-marido antes da separação
judicial. Procurou garantir novamente o trabalho de uma cativa que, como ela mesma
disse, “a socorreu” em momentos difíceis.
Os documentos expostos não necessariamente têm o objetivo de desvendar o
novo, pois tais evidências foram objetos de pesquisa de outros historiadores. Entretanto,
procuro apontar não apenas para a existência de proprietárias de escravos em Desterro,
mas para o significado da dependência mútua entre senhoras e cativos, bem como o
99
Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Maria José”. Livro 29 de notas do segundo ofício do
cartório de Desterro, 1866, fls 79 v e 80.
100
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Custódia”. Livro 29 de notas do ofício do cartório
de Desterro. 1866, fls 80.
73
poder de barganha que possuíam esses sujeitos. Momentos únicos da vida das pessoas
vêm à tona, trazendo para o cenário os nomes próprios que ficaram perdidos em páginas
de papel amareladas e castigadas pelo tempo.
Não se trata de defender que a relação de uma senhora com seus cativos era
menos coercitiva em função da condição feminina da proprietária. Outros fatores
poderiam determinar o tipo de relação, como as conjunturas políticas e sociais do
período, classe social do proprietário e seu poder aquisitivo. Segundo Oswaldo Cabral,
“as mulheres, por incrível que possa parecer, eram as mais duras de coração, as patroas
mais impiedosas no trato dos escravos, principalmente quando cuidavam de punir as
cativas, as servidoras do seu próprio sexo. Os homens eram mais brandos, tinham
sempre mais pena do que as mulheres”. Baseia sua análise em alguns acontecimentos,
como o que ocorreu em 1857, quando “uma preta escrava de Dona Francisca
Leopoldina da Silva, de nome Joaquina, faleceu e a sua morte foi atribuída aos maus
tratos da patroa, nos castigos imoderados que lhe eram infringidos”. Denunciado o fato
ao delegado José Xavier Pacheco, a necropsia revelou que “a escrava sofria de
enfermidades crônicas, mas os maus tratos lhe abreviaram os dias”. Logo em seguida
Cabral relata que o mesmo delegado punia seus escravos a chibatadas e palmatórias.
101
A relação existente entre senhores e escravos não eram determinadas somente por
questões de gênero, mas principalmente por tensões e conflitos presentes no cotidiano
dos proprietários (as).
As alforrias não eram as únicas formas de se libertar, os escravos utilizavam
outras alternativas e a fuga era uma delas. Mesmo os cativos de uma senhora, ainda que
existisse uma relação mais estreita, desejavam sua liberdade. “Fugiu no dia 5 do
corrente o crioulo de nome Firmo que foi escravo da Senhora Rosa Prates; levou
vestido, calça e camisa de algodão azul. Altura regular, e tem barba no queixo; quem o
apanhar e levá-lo a casa da casa da mesma Sra. Será gratificado”.
102
As tabelas abaixo demonstram em termos numéricos as alforrias concedidas por
mulheres e homens em Desterro na segunda metade do século XIX.
101
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro, v. 1, p., 424
102
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, jornal “A Estrela”, 10/10/1861, n 23, p 04, c 02.
74
Tabela 4: Cartas de alforria concedidas por homens e mulheres
Total de alforrias analisadas em Desterro (1850 a 1887) 245 100%
Total de alforrias concedidas por mulheres
130 53%
Total de alforrias concedidas por homens
115 46,9%
Tabela 5: Cartas de alforria concedidas por mulheres de acordo com o sexo do alforriado
Total de alforrias concedidas por mulheres
130
100%
Alforriados do sexo feminino, em relação ao total das alforrias
72
55,3%
Alforriados do sexo masculino, em relação ao total das alforrias
58
44,6%
Tabela 6: Cartas de alforria concedidas por homens de acordo com o sexo do alforriado
Total de alforrias concedidas por homens
115
100%
Alforriados do sexo feminino, em relação ao total das alforrias
70
60,8%
Alforriados do sexo masculino, em relação ao total das alforrias
45
39,13%
Não grande diferença entre o número de alforrias concedidas por homens e
mulheres. Das 245 alforrias analisadas, 53% são de mulheres e 46,9% de homens. Esses
números constatam o que foi afirmado anteriormente, a propriedade escrava não era
uma particularidade masculina. As mulheres alforriaram 6% a mais que os homens,
talvez por serem mais vulneráveis e dependentes do trabalho dos cativos, que a
alforria era fruto de negociações, de troca. A proximidade existente entre senhora e
cativo pode ser outra hipótese.
As escravas foram as mais alforriadas tanto pelos homens quanto pelas
mulheres. Por serem as que mais transitavam pelo espaço urbano, suas atividades
propiciavam a acumulação de pecúlio. Além do que, na qualidade de criadas domésticas
se aproximavam de suas senhoras. Outra explicação possível é que o valor das
mulheres, se comparado com o dos homens, era menor.
75
Tabela 7: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por mulheres
103
Alforrias concedidas por mulheres em Desterro, no período de
1850 a 1887
130
100%
Onerosas
15
11,5%
Gratuitas
66
50,7%
Condicionais
49
37,6%
Tabela 8: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por mulheres e
distribuídas por sexo
Alforriados do sexo masculino
58
100%
Alforriados do sexo feminino
72
100%
Onerosas
05
8,6%
Onerosas
10
13,8%
Gratuitas
30
51,7%
Gratuitas
36
50%
Condicionais
23
39,6%
Condicionais
26
36,1%
Tabela 9: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por homens
Alforrias concedidas por homens em Desterro, no período de
1850 a 1887
115
100%
Onerosas
54
46,9%
Gratuitas
35
27,8%
Condicionais
26
25,2%
Tabela 10: Total de alforrias onerosas, gratuitas e condicionais concedidas por homens e
distribuídas por sexo
Alforriados do sexo masculino
45
100%
Alforriados do sexo feminino
70
100%
Onerosas
25
55,5%
Onerosas
29
41,4%
Gratuitas
10
22,2%
Gratuitas
25
35,7%
Condicionais
10
22,2%
Condicionais
16
22,8%
A maioria das alforrias concedidas por mulheres foram gratuitas,
correspondendo à metade do total (50,7%), já em relação aos homens as gratuitas
103
As alforrias gratuitas dizem respeito àquelas que foram concedidas sem condição alguma ou
pagamento. A onerosa, mediante pagamento e a condicional, mediante condição de trabalhar como
escravo por um período determinado. Nesse caso não utilizei a mesma caracterização de concessão de
alforria de Sheila Faria, pois para a autora, das alforrias onerosas também faziam parte aquelas em que a
liberdade ficava a cargo da morte do senhor. Nessa amostragem, esse tipo de alforria foi contabilizada
como condicional.
76
correspondem a 27,8%, sendo que as onerosas aparecem em maior quantidade (46,9%).
As mulheres alforriaram menos de forma onerosa, 11,5%, os homens alforriaram menos
de forma condicional, 25,2%. As alforrias condicionais concedidas por mulheres foram
37,6%. Em termos numéricos a situação se inverte entre homens e mulheres quanto à
alforrias onerosas e gratuitas. A que se deve essa situação? Podemos considerar que as
mulheres que aparecem na documentação atuando de alguma maneira eram na sua
maioria sozinhas, solteiras ou viúvas, ou ao menos não contavam com a presença de um
homem que as representasse legalmente. A solidão poderia torná-las vulneráveis ou
independentes. A “independência” associada à condição de solteira ou viúva é também
(como a liberdade dos escravos) atravessada por muitas ambigüidades. Podia ter muitos
atributos negativos e lidar com esses atributos poderia ser para as mulheres do século
XIX uma questão fundamental e um forte organizador de suas estratégias.
Precisavam encontrar maneiras de impor sua vontade e a violência física não era
necessariamente o melhor caminho. A troca e a negociação eram dispositivos
possivelmente mais eficazes e aliviavam de certa maneira o antagonismo existente entre
a escravidão e possíveis relações afetivas que se estabeleciam entre senhoras e cativos.
A quantidade de alforrias gratuitas concedidas por mulheres é um forte indício da
proximidade existente e de uma relação de confiança, já que a liberdade sem ônus
poderia ser resultado de uma série de acordos verbais ou de relações afetivas.
O pequeno número de alforrias onerosas leva a crer que para as senhoras era
mais interessante ter os escravos ao seu lado, ainda que por um período determinado
(como no caso das alforrias condicionais). A possibilidade da solidão assustava
principalmente as que tinham a velhice próxima e não contavam com ascendentes ou
descendentes. Muitas até confiavam mais em seus escravos, com quem conviviam
cotidianamente, do que em familiares. Sendo propriedade de uma mulher e percebendo
ser a única possibilidade desta não ficar sozinha, o poder de negociação e mobilidade
dos escravos era muito maior. Segundo Mary Karasch, as mulheres idosas que temiam a
doença, a idade e a morte recorriam à alforria condicional para proteger uma escrava
favorita de seus herdeiros e motivá-la a cuidar delas (senhoras) até a morte. Somente se
cumprisse a condição de prestar serviço leal até a morte do dono é que o escravo ou
77
escrava receberia a liberdade. Até mesmo donos jovens libertavam condicionalmente
escravos, para garantir um serviço obediente durante anos.
104
Nos anos 1880 o número de alforrias condicionais cresce, assim como as
onerosas, agravadas pelos contratos de locação de serviços a terceiros. Segundo Paulino
Cardoso, esses contratos representavam formas de dependência temporária, trazendo
vantagens para o credor, que se livrava de inconvenientes da escravidão.
105
Nas últimas
décadas da escravidão em Desterro é perceptível um movimento no sentido de perpetuar
vínculos legais, baseados em relações de dependência assentados no pacto entre homens
livres. Mesmo que o contrato implicasse outra forma de dependência, “possuía a
vantagem de não ser vitalícia e tampouco transmitida como uma herança maldita”.
106
Tabela 11: Contratos de Locação de Serviços
Total dos contratos de Locação de Serviços analisadas em
desterro
83 100%
Total dos contratos de Locação de Serviços feitos por
mulheres
17 20,4%
Total dos contratos de Locação de Serviços feitos por homens
66 79,5%
Tabela 12: Contratos de Locação de Serviços feitos por mulheres
Total dos contratos de Locação de Serviços feitos por mulheres
(1850 a 1887)
17
100%
Contratados do sexo feminino
10
58,8%
Contratados do sexo masculino
07
41%
Tabela 13: Contratos de Locação de Serviços feitos por homens
Total dos contratos de Locação de Serviços feitos por homens
(1850 a 1887)
66
100%
Contratados do sexo feminino
37
56%
Contratados do sexo masculino
29
43,9%
104
KARASCH, Mary Catherine. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850, p. 17.
105
CARDOSO, Paulino de Jesus. Experiência das populações de origem africana em Florianópolis,
1860/1888, p. 236.
106
Idem, Ibidem, p. 61.
78
As mulheres contrataram menos do que os homens os serviços dos libertos. Dos 83
contratos analisados, 17 foram feitos por mulheres. As libertas foram contratadas em
maior quantidade, talvez em função de sua maior mobilidade pelas ruas da cidade e
maiores possibilidades em juntar o dinheiro para pagamento da dívida, pois podiam
trabalhar como amas-de-leite, prostitutas, quitandeiras, lavadeiras, pombeiras, etc.
O contrato de locação de serviços era uma maneira de ter o trabalho escravo por
um valor muitas vezes ínfimo. Muitas senhoras não tinham a possibilidade de adquirir
escravos, então contratavam seus serviços e muitas vezes por um tempo muito maior do
que o equivalente ao valor da dívida. Por outro lado, para os cativos significava a
chance de rearranjar sua vida encontrando um caminho alternativo ao cativeiro.
Em termos legais, a lei 2040, de 28 de setembro de 1871, regulamentava em
seu artigo que: era permitido “ao escravo, em favor da sua liberdade, contratar com
terceiros a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete anos,
mediante o consentimento do senhor e a aprovação do Juiz de Órfãos (Art. § 3º)”.
107
Segundo a legislação, nenhum liberto poderia viver “vadio e previa-se que os ex-
escravos seriam “obrigados a contratar seus serviços, sob pena de serem constrangidos”
a “trabalhar nos estabelecimentos públicos” (Art. 6º § 5º). O contrato de trabalho,
perante a lei, não era exatamente uma opção, embora implicasse em muita
negociação.
108
Clemente Penna indicou para o Desterro, a importância dos contratos de locação
de serviço para o acesso a liberdade. Para os vinte últimos anos do regime escravista,
apontou que 48% das alforrias registradas nos cartórios de Desterro haviam sido
conseguidas através de contratos.
109
Tratava-se de um acordo entre pessoas, reconhecidas como sujeitos donos de si e
ao menos no campo jurídico locador e locatário eram livres e autônomos. Essa situação
tinha significado para os libertos. “Podemos intuir que a liberdade conquistada poderia
exercitar-se também em um nível mais do que simbólico na possibilidade de fazer
107
Cf. LEI N. 2040 de 28 de Setembro de 1871, In Colecção de Leis do Império do Brasil de 1871.
Tomo XXXIV, Parte II, pp. 147-151. No ano seguinte, a lei é regulamentada através do Decreto 5135,
de 13 de novembro de 1872.
108
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. p 02.
109
PENNA, Clemente Gentil. Escravidão, liberdade e os arranjos de trabalho na Ilha de Santa Catarina
nas últimas décadas da escravidão (1850-1888). Dissertação de mestrado em História. Florianópolis:
UFSC, 2005, p. 126 APUD LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa
Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade, p 02.
79
um contrato diante do escrivão”. Por outro lado, configurava-se, como foi dito
anteriormente, na falta de opções e na subordinação de ex-escravos à lei e à vontade dos
ex-senhores.
110
Segundo Henrique Espada Lima a forma mais comum de contrato se dava pelo
pagamento total da dívida através da prestação de serviços. O resgate de uma dívida em
dinheiro com um credor que havia adiantado em moeda corrente o pagamento pela
alforria era feito através da prestação de serviço por tempo definido. Esse tipo de
arranjo levava a situações análogas à escravidão, principalmente antes de 1871,
momento em que os contratos não eram limitados ao período máximo de sete anos.
111
Podemos perceber essa situação no contrato feito no ano de 1847 e registrado em 1849
entre a africana Theresa e Dona Filisberta Coriolana de Souza Passos:
pela devedora me foi dito perante as testemunhas abaixo nomeadas e
assinadas, que ela devia a credora a quantia de cem mil reis que lhe
havia emprestado em quatorze de Dezembro de mil oitocentos e
quarenta e sete, para sua liberdade, cuja quantia se obrigava a
pagar-lha com vinte cinco anos de seus serviços debaixo das
condições seguintes = primeira será obrigada a credora a vesti-la,
sustentá-la e tratá-la em suas enfermidades = segunda, a devedora
obriga-se a servir a credora pelo prazo dito de vinte cinco anos como
se fora sua cativa, acompanhando-a para qualquer parte que se
destine [sic], ou á pessoa por ela indicada = Terceira obriga-se mais
a devedora a não [fazer] contrato algum com outra qualquer pessoa,
relativa mente a seus serviços de que lhe resulte vantagem, sem que
findo o mencionado prazo de vinte cinco anos durante o qual
protesta não ter a respeito ação alguma em juízo ou fora dele,
contando-se semelhante prazo por vinte cinco anos desde aquela
data de quatorze [VERSO:] de Dezembro de mil oito centos quarenta
e sete (...).
112
Theresa embora liberta, ficou obrigada a viver por 25 anos como se fora sua
cativa, conseguiria se tornar livre de fato somente em 1871. O contrato de trabalho não
abre a possibilidade para Theresa quitar sua divida e tornar-se livre antes do período
estipulado. Sem dúvida, 25 anos de trabalho era um valor muito maior do que os cem
mil réis emprestados por Felisberta. Esse contrato evidencia principalmente aspectos
negativos dessa forma de acesso a liberdade, pois Theresa não tinha autonomia ou
110
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade, p. 13 e 14.
111
Idem, Ibidem, p.31.
112
“Contrato de Locação de Serviços da liberta Theresa”. Livro 12 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1849, fls 10 e 10v.
80
mobilidade, e estava subordinada a regras que a aproximava da escravidão.
113
Ela tinha
consciência disso e talvez fosse menos pior ter a certeza de que se tornaria livre após
vinte anos a pensar que seria sempre escrava.
Após a lei de 1871, contratos como o de João crioulo eram mais comuns: em 24
de setembro de 1879, dona Bernardina Maria do Nascimento Rosa contratou os serviços
de João crioulo liberto pela quantia de 250$000 e período de cinco anos. João deveria
prestar qualquer tipo de serviço a Bernardina e “fazer o serviço que ela mandar sem que
para isso ela tenha que obrigá-lo” Bernardina por sua vez tinha que sustentar João dar-
lhe roupas para o serviço e tratá-lo de suas enfermidades contanto que não passassem de
15 dias o que seria acrescido no fim do contrato.
114
Em alguns casos no documento é
especificado o tipo de serviço a ser desempenhado pelo liberto, como no caso do
contrato que fez a preta Eva a D. Regina Ballenstackdt em 30 de maio de 1873: “por
empréstimo a quantia de duzentos e cinqüenta mil reis cuja quantia ela se obriga a
pagar-lhe no prazo de cinco anos com seus serviços domésticos obedecendo-a e
respeitando-a como se fora sua senhora”.
115
Outra modalidade de contratos que envolviam maior grau de autonomia para os
libertos eram aqueles em que a dívida era paga com abonos mensais em dinheiro, nesse
caso os libertos tinham mobilidade e a possibilidade de ganhar dinheiro para além do
pagamento da vida.
116
No “Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo” de
1872, o liberto Vicente fez contrato de locação de serviços com D. Maria Alves do
Sacramento e seus irmãos, Roza Maria Alves do Sacramento, José Alves do Sacramento
e Antônio Alves do Sacramento. Para obter plena liberdade pediu emprestada a quantia
de seiscentos e cinqüenta mil réis para pagar mensalmente com a quantia de 16 mil réis,
dentro do prazo de três anos e meio.
117
Os libertos e também suas ex-senhoras buscaram maximizar seus ganhos. Para
os que se livraram do cativeiro, a possibilidade de correr riscos indicava também
113
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade, p. 19.
114
Contrato de Locação de Serviços de João crioulo liberto”. Livro 47 de notas do 2º ofício do cartório
de Desterro, 1879, fls 36v e 37.
115
“Contrato de Locação de Serviços da preta Eva”. Livro 35 de notas do 2º ofício do cartório de
Desterro, 1873, fls 136v e 137.
116
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX:
arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade, p. 19.
117
“Contrato de Locação de Serviços do liberto Vicente”. Livro 35 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1872, fls 59-59v.
81
autonomia. E embora o processo fosse incerto, ex-proprietárias e libertos tinham
consciência de suas limitações, mas também dos espaços de atuação.
82
CAPÍTULO III
Chefes de família e proprietárias de escravos
A mobilidade espacial era característica dos homens livres que, como estratégia
de sobrevivência, migravam em busca de melhores condições de vida. No caso de
Desterro, as atividades relacionadas ao porto favoreciam o constante movimento,
principalmente da população masculina. Segundo Laura Hübener, para uma população
de cerca de 11.000 habitantes em toda Desterro, a população marítima, de acordo com o
número registrado da capitania dos portos até dezembro de 1859, chegava a 1774
indivíduos, ou seja, 16% da população dedicava-se à atividade marítima.
1
Com a saída
dos homens, algumas mulheres, de forma temporária ou definitiva, tornavam-se
responsáveis pelos bens e filhos, enquanto outras, sem recursos, tinham como legado a
luta pela sobrevivência. Para estas mulheres ficava a esperança do retorno dos maridos,
que muitas vezes não voltavam.
Em situação semelhante ficavam as viúvas que, após a morte dos maridos, ou
mesmo antes, tratavam de prover seu sustento e de seus filhos. As mulheres solteiras
também chefiavam domicílios, porém em situações diferentes, pois, embora pudessem
ser mães, não contavam com a presença de um cônjuge. Solteiras e viúvas representam,
portanto, uma atuação feminina mais independente, e tinham na propriedade escrava
uma importante estratégia de sobrevivência.
Esse capítulo tem como objetivo, a partir dos documentos de inventário e
testamento, fazer uma discussão sobre o caráter distintivo das experiências das mulheres
viúvas e solteiras proprietárias de escravos. O primeiro passo para isso, depende de
compreendermos um pouco melhor o lugar que ocupavam na cidade. De acordo com o
Recenseamento de 1872, de 7486 pessoas livres que viviam em Desterro, 3660 eram
mulheres, sendo 996 (27,2%) casadas, 278 (7,5%) viúvas e 2386 (65,1%) solteiras. As
mulheres solteiras acima de 16 anos somavam aproximadamente 1227, correspondendo,
portanto a 33,5% do total de mulheres da freguesia de Desterro.
2
1
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade de Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. Da
UFSC, 1981, p. 35.
2
Dados retirados do Recenseamento do Brazil em 1872, Santa Catharina.
83
3.1 Sobre os Inventários e Testamentos
Os inventários têm sido uma fonte importante para a historiografia, e vem sendo
utilizados como recurso para a história social e econômica.
3
inventários mais
detalhados, e outros com informações sintetizadas. Constituiu-se em processo
obrigatório para os que tiveram algo de material a deixar, ainda que fosse pouco.
Eram abertos pela família ou na sua falta pelo juiz de órfãos, sobretudo quando
havia filhos menores. Deveria ser iniciado no prazo de trinta dias após o falecimento,
porém a regra nem sempre era seguida. Na capa do documento consta o nome do
falecido, inventariante e grau de parentesco desse último, segue indicando quem
informou da morte e a lista de herdeiros. Após os dados gerais, instituíam-se os
avaliadores dos bens, para em seguida apresentar a lista de créditos e débitos. Faziam a
soma dos bens, a dedução das dívidas e a partilha, destinando a cada herdeiro em
separado.
4
Segundo Maria Luiza Oliveira, “os inventários carregam histórias
construídas em dois tempos, um, o do morto, e o outro, o do inventariante”.
5
O dinheiro dos órfãos ficava no Tesouro da Fazenda e se o viúvo (a) quisesse
retirá-lo tinha que pedir autorização e justificar a necessidade, que podia ser para
educação, vestuário, etc. Para o pagamento das dívidas, se a quantia fosse alta e o
inventariante não conseguisse negociar com os credores, os bens da herança eram
vendidos em Praça Pública ou leilão.
6
Foi o que aconteceu com Dona Maria Fontoura
Ferraz, no ano de 1875 tinha uma morada de casas situada na Rua do Príncipe, 05,
em Desterro, no valor de 4:000$000, que foi a leilão em praça pública.
7
Se os inventários post mortem se referem mais a situação material dos homens e
mulheres à época da sua morte, era diferente com os testamentos. Essa fonte permite
saber da origem e dos nomes dos pais do testador, número de casamentos e de filhos,
local de moradia e outros detalhes individuais que dizem respeito a sentimentos e
relações familiares. Através desse tipo de documento se tornava conhecida a vontade do
testador sobre os procedimentos que deveriam ser tomados após sua morte.
8
Nem
3
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém. Relações sociais e experiência da
urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 22.
4
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Família e fortuna no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 226.
5
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém. Relações sociais e experiência da
urbanização. São Paulo, 1850-1900, p. 29.
6
Idem, Ibidem, p. 24.
7
ACTJSC, Autos de Praça de morada de casas de Maria Fontoura Ferraz, 1875.
8
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Família e fortuna no cotidiano colonial, p 226.
84
sempre os inventários e testamentos constituíam um único processo e não eram
indissociáveis. Existiam casos em que o inventariado morria sem deixar testamento, que
era facultativo.
9
Inventários e testamentos de mulheres solteiras e viúvas da segunda
metade do século XIX são analisados nesse capítulo,
10
em alguns casos utilizei o
inventário do marido, evidenciando o momento em que a mulher ficou viúva. O critério
de seleção se deu com base em uma lista feita a partir das cartas de alforrias concedidas
por mulheres no cartório Kotzias e que diz respeito ao ano de 1849 em diante. Algumas
das mulheres identificadas com carta de alforria e inventário ou testamento foram
utilizadas nessa pesquisa.
3.2 Mulheres solteiras
Embora nos documentos a presença de mulheres solteiras não seja majoritária, é
possível perceber através do censo de 1872 que compunham uma parte significativa da
população feminina, sendo que as maiores de 16 anos correspondiam a 33,5% do total
das mulheres que viviam na freguesia de Desterro. Podemos considerar que nem todas
estas mulheres tinham a intenção de permanecer solteiras, mas com certeza muitas
escolherem ser e se manter nessa condição. Numa sociedade ditada por valores
paternalistas, essa possibilidade não era o caminho mais fácil a seguir.
Dentre as mulheres que surgiram nos acervos que pesquisei, Rita de Cassia
Luiza da Silva Poyção chamou a atenção por seu nome estar presente em diferentes
tipos de documentos, o que demonstra seu trânsito pela cidade.
No livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, Dona Rita de Cássia
aparece no ano de 1850-51 pagando impostos atrasados. Não especifica o tipo de
imposto: Que recebeo de D. Rita de Cassia Luiza da Silva Poyção, importância de
foros que devia a Comarca desde dezembro de 1850 ($660).
11
Sua presença no cenário
9
Os inventários e testamentos eram regidos pelas Ordenações Filipinas, que em seu livro IV, títulos
LXXX e XCVI, dispunham sobre as questões de herança e partilha.
10
Esses documentos antes pertencentes ao Arquivo Central do Tribunal de Justiça, hoje se encontram
armazenados em dois lugares: Museu e depósito do Tribunal de Justiça. O destino dado a essas fontes
dificultou a fase final da pesquisa, pois com o transporte, os processos se misturaram e ficou inviável
identificar toda a documentação que havia sido fichada, dessa forma faltam algumas informações para
compor uma análise mais completa.
11
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, 1850, 51/ 327.
85
de Desterro, freguesia onde nasceu, é anterior a essa data, pois aparece desde o ano de
1829,
12
negociando.
No ano de 1859 fez seu testamento e embora tenha declarado pouca saúde, não
faz menção à idade. De pais falecidos, solteira e sem herdeiros forçados, Rita de Cássia
pode escolher a quem deixar seus bens e Luisa Clara da Conceição foi sua prioridade.
Em 25 de maio de 1829, 30 anos antes, emprestou a essa mesma mulher a quantia de
8:799$000, nessa data Luisa Clara da Conceição fez escritura de dívida de hipoteca,
13
tendo como legítima paterna uma morada de casas na Rua Augusta, no valor citado
acima. Com a intenção de fazer reparos na dita morada de casas e repor a parte dos
herdeiros, faz empréstimo da referida quantia. O valor emprestado é alto e a opção por
esse investimento poderia ser por amizade a Luisa, mas também porque se o dinheiro
não fosse reposto, Rita de Cássia ficaria com as casas na Rua Augusta, uma região
valorizada na cidade. A partir da análise de outros documentos feitos por Rita de Cássia,
nos quais Luisa Clara é citada, a primeira hipótese (da amizade) parece prevalecer.
Entretanto a parceria comercial existente entre elas é um aspecto importante da relação
e não em nenhum dos documentos referência à interferência de homens. Temos o
exemplo de duas mulheres solteiras, que buscaram como recurso uma aliança comercial
e afetiva que garantiria o futuro de ambas. As declarações encontradas no testamento de
Rita de Cássia podem ter sido resultado de uma série de negociações e acordos firmados
pelas duas mulheres.
Rita de Cássia residia em uma casa de quatro portões em frente à Rua do
Ouvidor (atualmente Rua Deodoro) e de canto à Rua do Senado. Não morava sozinha,
porém a estrutura familiar que construíra diferia daquela convencionada pelo modelo da
família patriarcal. Embora não tivesse filhos, estabeleceu relações de afeto evidenciadas
pela preocupação que teve com algumas pessoas durante a vida. Preocupações essas,
reconhecidas no momento de sua morte, atestadas através da leitura do seu testamento.
(...) deixo a minha primeira testamenteira Dona Luisa Clara da
Conceição a casa em que resido tendo quatro portas na frente da
Rua do Ouvidor e faz canto a do Senado e por sua morte usará a Ana
parda e seus filhos Virgilino, João Evangelista e Maria José, bem
12
Essa data é anterior ao período definido para minha pesquisa, entretanto o caso de Rita de Cássia foi o
único em se tornou possível construir uma trajetória que compreendesse um período mais longo, em
função da existência de documentos correspondentes à primeira metade do século XIX. Embora tenha
considerado os documentos relativos a 1829 em diante para analisar as estratégias utilizadas por Rita de
Cássia, bem como os laços afetivos construídos, não estão inclusos na tabela da p. 63.
13
“Escritura de Dívida de Hipoteca que faz Luiza Clara da Conceição a Rita de Cássia Luiza da Silva
Poyção”, livro 4 de notas do 2º ofício do Cartório de Desterro,1829, fls 14v e 15.
86
como a Justina crioula, casada com Francisco José da Costa, a
Constança, casada com João Francisco da Silva e Ignez para nela
morarem em comum e só o que sobreviver destes legatários ou de
seus herdeiros é que poderá vender a casa referida. Declaro que os
meus escravos Antonio, José, João, Joaquim, Acácio e Lydio poderão
conjuntamente com aqueles legatários morar na casa declarada sem
que por isso adquiram qualquer posse e domínio. Declaro mais a
minha primeira testamenteira dita Dona Luisa Clara da Conceição a
minha chacrinha com uma pequena casa situada na Rua da
Tronqueira e por sua morte passar com iguais condições aos
legatários Anna parda e a seus filhos Virgilino, João Evangelista e
Maria José e os demais Justina, Constança e Ignes, conforme está
estipulado na antecedente verba que trata da casa de minha
residência.
14
Ignez, ex-escrava de Rita de Cássia, nascida em 17 de outubro de 1829, batizada
aos 30 dias do mesmo mês, filha de Felícia, teve como padrinho Ancelmo Antônio de
Lima e como madrinha Santa Anna,
15
foi alforriada em 13 de fevereiro de 1830 e nessa
data tinha apenas 3 meses de idade.
16
A condição pela qual ficou livre foi de servir e
acompanhar sua senhora enquanto viva fosse. Na carta de alforria consta a preocupação
da senhora de que após sua morte não houvesse dúvida da liberdade de Ignez, que ficou
livre de fato aos 34 anos. Ignez cresceu ao lado de Rita de Cássia, cumprindo a condição
imposta para sua liberdade e ser citada no seu testamento em 1859, evidencia essa
relação. Se a maioria das alforrias foram feitas com base em negociação, não parece
plausível negociar a liberdade de uma criança de 3 meses apenas. Rita de Cássia olha
essa relação no longo prazo, sendo solteira e sabendo dos desafios dessa condição.
Em 02 de julho de 1831 é alforriada condicionalmente a escrava Anna de menor
idade, posteriormente, mãe de
Virgilino, João Evangelista e Maria José
.
17
Condicionou a
liberdade de Anna a acompanhá-la e servi-la até sua morte e a morte de Luisa Clara da
Conceição. Em caso de ingratidão, afirmava que a carta de alforria perderia sua
validade. Nesse caso Rita de Cássia concede a alforria, mas procura se garantir do
cumprimento da condição imposta. Diferente de Ignez, Anna, embora de menor idade,
talvez já tivesse consciência de seu desejo de liberdade.
No ano seguinte, em 15 de março de 1832, foi alforriada a escrava Justina,
nascida em 18 de julho de 1831 e batizada em 9 de agosto do mesmo ano. Era irmã de
14
ACTJSC, Testamento de Rita de Cássia Luiza da Silva Poyção, 1864.
15
Catedral - Batismo de escravos, 1818 - 1840, p. 144, verso.
16
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Ignez”. Livro 4 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1830, fls 49 e 49v.
17
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Anna”. Livro 4 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1831, fls 118v e 119.
87
Ignes, filha de Felícia, seu padrinho foi Mariano, escravo e sua madrinha, Santa Anna.
18
Na data de sua alforria tinha 7 meses de vida.
19
A condição é a mesma das cartas
anteriores, servir e acompanhar Rita de Cássia enquanto viva for, no entanto ficou
expresso no documento que, “não tendo ainda idade que possa trabalhar para sua
subsistência, ficará encostada a quem for minha herdeira até a idade de vinte anos”.
Justina foi citada no testamento em 1859, casada com Francisco José da Costa. Assim
como no caso de Ignez, sua presença no testamento representa que conviveu com Rita
de Cássia, cumprindo a condição para sua liberdade, que mesmo atrelada à morte de sua
senhora, não impediu que Justina se cassasse, que oficialmente era livre. A
convivência trazia certa segurança para a senhora, nesse sentido os nculos afetivos
eram recurso muito mais eficaz do que a própria lei e poderiam ser pensados como
vínculos familiares, mesmo havendo relações entre desiguais e com condições. Ao
declarar na carta de liberdade de Justina, que ficaria encostada a sua herdeira até idade
de vinte anos, demonstrou preocupação com o futuro da liberta, ao mesmo tempo em
que garantiu a presença da ex-escrava ao lado de Luisa. Entretanto, quando Rita de
Cássia morreu, Justina já tinha 33 anos de idade.
Em 08 de outubro de 1848, Rita de Cássia concedeu outra carta de alforria ao
escravo Antonio, africano, com a condição de ser obediente e dar duas patacas diárias
do seu jornal “enquanto viva for” e por sua morte continuar a ser obediente e dar a
mesma diária a Luisa Clara da Conceição.
20
No mesmo ano em que fez seu testamento, fez também a carta de alforria de
João crioulo, marinheiro, nesse caso, uma ocupação urbana em se tratando de uma
cidade portuária, quase certamente “ao ganho”
21
e Joaquim pardo (02 de novembro de
1859), ambos, filhos de Felícia, e irmãos de Ignês e Justina
22
. Impôs aos dois a
condição de prestar serviços a Luisa Clara da Conceição, caso essa senhora a
sobrevivesse. Em relação aos demais que apareceram em seu testamento, José africano
faleceu em 1863, um ano antes da morte de Rita de Cássia e Acácio, cujo registro de
batismo data de 1836, sendo filho de Maria crioula, teve como padrinho, Joaquim
Candido da Silva Peixoto, sobrinho de Rita de Cássia e segundo testamenteiro e como
18
Catedral - Batismo de escravos, 1818 - 1840, p. 172, verso.
19
Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Justina”. Livro 4 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1832, fls 154, 154v e 155.
20
Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Antonio”. Livro 11 de notas do ofício do cartório
de Desterro, 1848, fls 68 e 69v.
21
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo João”. Livro 22 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1859, fls 10v.
22
Catedral - Batismo de escravos, 1818 - 1840, p. 193 e 206 (João: 1833 e Joaquim: 1835).
88
madrinha Santa Isabel,
23
faleceu em 1861. Joaquim e Lydio, este último filho de Maria
crioula, irmão de Acácio, com registro de batismo datado em 1842,
24
tendo ficado
libertos após a morte da senhora assentaram praça em um dos Batalhões de Voluntários
da Pátria.
25
Em relação à escrava Felícia, mãe de Ignês, Justina, João e Joaquim e a
escrava Maria crioula, mãe de Acácio, Constança e Lydio, não faz menção em seu
testamento.
Senhora solteira e proprietária de escravos, deixou a casa que residia à outra
mulher que, ao que parece, compartilhava com ela do mesmo espaço e das mesmas
vivências. Luisa a acompanhou desde 1829 (talvez antes, porém os documentos nos
permitiram constatar sua relação a partir dessa data). O laço afetivo e familiar que as
unia é evidente em toda a trajetória documentada de Rita de Cássia. Difícil saber se
havia algum laço de sangue. Luisa poderia ser sua irmã, sobrinha ou quem sabe até
filha. Talvez afilhada ou uma amiga. De todo modo, tratava-se sem dúvida de uma
parceria de vida.
Após a morte de Luisa, a casa passaria a pertencer a alguns de seus ex-escravos.
A relação era ambígua e embora houvesse laços afetivos que a ligavam aos ex-cativos,
sua preocupação primeira era consigo e com Luisa. Talvez por saber o quanto era difícil
a vida de uma mulher solteira, Rita de Cássia facilitou as coisas para sua companheira
de vida através de muitos arranjos.
Rita de Cássia era uma mulher religiosa, professava o catolicismo e fazia parte
de uma Irmandade. Em seu Testamento declarava “ser irmã da Venerável Ordem
Terceira da Penitência de São Francisco e da Irmandade do Senhor dos Passos e Divino
Espírito Santo cujas (...) tenho pago e quero que meu enterro seja feito sem a menor
pompa”.
26
Fazer parte de uma Irmandade implicava numa série de obrigações, inclusive
financeiras. Algumas solicitavam atestado de residência e ocupação, requisitavam do
futuro (a) irmão (a) prova de bons costumes e moralidade conhecida e é claro, a
principal exigência era que fosse católico (a) e a condição étnico-racial também poderia
ser um pré-requisito. Parte dos recursos das Irmandades se destinavam a atender os
respectivos “afilhados”, através de socorro em momentos difíceis e pensões aos seus
familiares. As concessões passavam por uma grande fiscalização da vida de seus
23
Catedral - Batismo de escravos, 1818 - 1840, p. 211, verso.
24
Catedral - Batismo de escravos, 1840 - 1850, p. 14, verso.
25
A carta de liberdade de Joaquim e as informações sobre José, Acácio, Joaquim e Lídio encontram-se no
Testamento de Rita de Cassia Luiza da Silva Poyção, no ACTJSC, 1864.
26
ACTJSC, Testamento de Rita de Cássia Luiza da Silva Poyção, 1864.
89
membros.
27
Além de elementos de devoção que poderiam ser sinceros, filiar-se a uma
Irmandade significava buscar proteção e segurança. Em relação aos aspectos sócio-
culturais, a religião era o núcleo de convivência da sociedade e as festas e manifestações
religiosas constituíam uma forma de reunião social, sendo muitas vezes, a única opção
das pessoas se distraírem.
Uma revisão do testamento de Rita de Cássia foi feita em 1889
28
e nessa mesma
data seus herdeiros Francisco José da Costa e sua mulher Justina Candida da Costa,
João Evangelista da Silva Poyção e sua mulher Maria Francisca Gomes Poyção,
Vergilino da Silva Poyção e sua mulher Maria Josephina Silveira Poyção, Ignez Maria
Poyção, Anna Bernardina da Silva, João Francisco da Silva Poyção e sua mulher
Constancia Maria da Silva (em seu registro de batismo, do ano de 1839, consta ser filha
de Maria, tendo como padrinho o liberto Cândido Gomes da Fonseca e como madrinha
Nossa Senhora da Conceição. A considerar pelo nome da mãe, era irmã de Acácio e
Lydio),
29
fizeram escritura de venda fixa da morada de casa situada na Rua do Senado à
Constantino Bavasso.
30
Passados 25 anos após a morte de Rita de Cássia, enfim os
herdeiros poderiam vender sua herança (ao que tudo indica Luisa Clara da Conceição
havia morrido). No documento de venda da casa, não consta que Anna e Ignez tenham
se casado, talvez elas tenham vivido os 25 anos que se seguiram à morte de Rita, ao
lado de Luisa. No caso de Anna, essa era uma condição para sua liberdade. De todos os
documentos referentes à trajetória de Rita de Cássia, esse é o único que representa a
“voz” dos ex-cativos, pois é resultado de atitudes tomadas por eles mesmos. A forma
como se identificaram, utilizando o sobrenome Poyção, demonstra que os vínculos
existentes entre Rita de Cássia e o libertos não eram motivados somente pelos interesses
da senhora, que mesmo após sua morte os herdeiros continuavam se reportando à sua
existência. Embora no testamento especifique que somente o legatário que sobrevivesse
aos outros poderia vender a casa, essa condição parece ter sido ignorada.
Rita de Cássia tentou resguardar o futuro de mulheres com quem possivelmente
passou sua vida e sua família constituía-se dos citados em seu testamento. A vida dessa
senhora se contrapôs ao imaginado para uma mulher solteira, não era solitária, nem
27
OLIVEIRA, Anderson José M. De. Devoção e Caridade. Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial
(1840-1889), Dissertação de Mestrado, Niterói, UFF, 1995.
28
ACTJSC, Revisão de Testamento de Rita de Cássia Luiza da Silva Poyção.
29
Catedral - Batismo de escravos, 1818 - 1840, p. 240.
30
Escritura de Venda Fixa”, livro 66 de notas do ofício do cartório de Desterro, 1889, fls. 46, 46v,
47, 47v e 48.
90
submissa e muito menos vivia reclusa. Proprietária de quantidade significativa de
escravos era uma mulher respeitada dentro e fora de sua casa. Procurou alongar suas
relações, para não ficar sozinha, mas tantas alforrias antes de 1850, podem sim
evidenciar a preocupação dela com a liberdade de seus escravos. Por outro lado trata de
garantir que servissem a sua herdeira e protegida, além de si mesma. Não possuindo
outros tipos de propriedade, além de uma casa onde morava e uma chácara, presume-se
que vivia do trabalho de seus cativos e ex-cativos. Pois a necessidade de que a
servissem até sua morte, não significa que precisava somente de companhia, mas sim
que precisava sobreviver.
Uma situação semelhante à relatada acima nos conduz a outra trajetória, a de
Maria Rita da Conceição que faleceu no “Ano do Nascimento do Nosso Senhor Jesus
Cristo” de 1861, aos 11 dias do mês de julho do dito ano, na cidade de Desterro. Por
achar-se enferma e querendo se preparar para a morte Dona Maria Rita ordenou seu
testamento inicialmente declarando seu estado de enfermidade. Era solteira, natural de
Desterro e de pais falecidos, sem ascendentes e descendentes. Assim como o caso
anterior, poderia escolher a quem deixar seu patrimônio. Vivia num dos únicos bens que
possuía uma morada de casas próxima da Igreja Matriz da cidade. Instituiu por
herdeiros suas crias libertas Leocadia Maria da Conceição e suas duas filhas Francisca e
Carlota, Candida Maria do Sacramento, Jacintha Maria da Trindade e todos os seus
filhos e igualmente as crias Francisco de Paula Bertho e Guilherme crioulo. Declarava
então que seus herdeiros não podiam vender a propriedade, devendo viver juntos
enquanto existissem. Deixou livre seu escravo Luis africano, com a condição de
acompanhá-la até o dia de seu falecimento. Para sua ex-escrava Maria, deixava as terras
dos fundos da morada de casas. Pedia um enterro sem pompas e missa pela sua alma, de
seus pais e irmãos falecidos.
31
No seu inventário feito pelo Coronel Amaro José Pereira constava a lista de
herdeiros com nome, idade e estado civil: Leocádia Maria da Conceição, solteira, 40
anos de idade, natural de Desterro, Francisca Rita da Conceição, filha de Leocádia,
solteira, 23 anos de idade, Carlota, filha de Leocádia, casada com Guilherme da Costa
Braga, em Desterro, Candida Maria do Sacramento, casada com João Alves Pereira,
Jacinta Maria da Trindade, solteira, 30 anos, moradora de Desterro seus filhos Augusto,
com 14 anos de idade, Leopoldina, solteira, 20 anos, Luis, com 10 anos, Maria
31
ACTJSC, Inventário de Maria Rita da Conceição, 1862.
91
Magdalena, 7 anos, Maria das Neves, 5 anos, Hipólito de 3 meses. Constava que todos
moravam com Jacinta, com exceção de Antonio. Francisco de Paula Bertho, 43 anos,
morador da cidade de São José, Guilherme crioulo, depois Guilherme Francisco de
Campos, casado com Cida Maria, escrava que foi da inventariada, conhecida como
Maria Colombo.
Em relação aos bens avaliados, constava a morada de casas já citada, as terras
nos fundos da morada, imagens de santos, móveis, objetos de prata. Dizia ainda que o
Capitão João Francisco Cidade era devedor da finada Dona Maria Rita da Conceição a
quantia de 169$000. Seu monte mor era de 2:189$300 e monte menor 1:768$658.
32
No momento de sua morte havia libertado a maioria de seus escravos,
infelizmente não encontrei suas cartas de alforria na documentação pesquisada no
cartório da cidade de Desterro. Maria Rita se refere a alguns libertos como crias suas, o
que significa que eram escravos dela desde que nasceram, como no caso de Francisco
de Paula Bertho, 43 anos de idade. Embora não tenha conhecimento da data da carta de
alforria de Francisco, possivelmente conviveu durante muitos anos com Maria Rita. No
momento de sua morte vivia na cidade de São José e ainda assim é lembrado em seu
testamento. Talvez sua relação fosse além da convivência cotidiana. Embora não se
saiba se os herdeiros libertos que viviam em Desterro coabitavam com esta senhora,
percebe-se que os ex-escravos de Maria Rita construíram família ainda sob o jugo da
escravidão e em alguns casos a referência às crias libertas diz respeito também à mãe,
como no caso de Leocádia Maria da Conceição. O único escravo que deixou livre sob
condição foi Luis africano que deveria acompanhá-la até a data de sua morte.
Maria Rita não faz menção a qualquer outra pessoa em seu testamento além de
seus ex-escravos, que são seus únicos herdeiros. Ao que parece, eram as pessoas com
quem essa senhora se relacionava ou ao menos com quem se preocupava. E mesmo
demonstrando zelo e carinho por eles, o estigma da posse, do controle, enfim da relação
de dominação permanece em sua disposição testamentária, que não permite que os
herdeiros usufruam da herança caso decidam se separar. O zelo e o cuidado amarram os
libertos mediante uma condição de alguém que talvez ainda se sentisse proprietária de
suas vidas. Mais uma vez me deparo com a ambigüidade existente neste tipo de relação,
pois a preocupação com a segurança dos cativos era marcada pela convicção de que a
32
Monte mor diz respeito ao valor total de todos os bens da pessoa falecida e monte menor é o valor dos
bens menos as dívidas e custas do inventário.
92
sua tutela deveria se estender para além da própria morte. Por outro lado poderia ser um
critério utilizado para manter os laços familiares.
Tratamos aqui de dois casos bem específicos: mulheres solteiras, independentes,
proprietárias de escravos, que buscaram em relações entre iguais e desiguais garantir
seu futuro. Essas duas mulheres tinham muitas coisas em comum, moravam em
localidades valorizadas na cidade, a proximidade com seus escravos e ex-escravos, mas
também a utilização de seu trabalho como estratégia de sobrevivência e a preocupação
com o futuro daqueles que as serviram. Nos testamentos de ambas, os conflitos e
tensões próprios do cotidiano escravista não se fazem presentes de modo óbvio, embora
sejam marcados pelas ambigüidades da relação. Poderíamos pensar então que Dona Rita
de Cássia e Dona Maria Rita eram mulheres bondosas e caridosas com seus escravos e
ex-escravos. Não nego essa hipótese por completo, mas não era isso. É necessário
considerar não somente as concessões feitas pelos senhores, mas também as conquistas
dos escravos e libertos.
Essas senhoras solteiras não possuíam muitas propriedades além de seus
escravos e mesmo a propriedade escrava aumentou em função da reprodução no
cativeiro. Em relação à forma como constituíram seu patrimônio, não é possível afirmar
com certeza - pois não encontrei nenhum documento com essa comprovação - mas suas
trajetórias sugerem que em função dos locais onde viviam, não eram de origem humilde
e, possivelmente, herdaram bens de suas famílias. Embora não fossem ricas, muito
menos eram pobres.
Para as solteiras, adquirir ou acumular bens não era tarefa fácil, sobreviver era
difícil por si só. Sem a presença de um marido que as representasse e protegesse, tinham
que provar serem merecedoras da confiança das “pessoas de bem” da cidade, com um
comportamento extremamente respeitoso.
3.3 Mulheres viúvas
A identidade feminina foi, no século XIX e antes disso, acentuadamente
demarcada pelo estado conjugal. Era esperado que as mulheres se casassem e tivessem à
frente um homem que as representasse. Antes do casamento, viviam na casa dos pais ou
93
tutores e, depois dele, sob a dominação do esposo.
33
Ao ficarem viúvas, adquiriam uma
nova posição com relação a si mesmas e ao mundo ao seu redor. Uma posição talvez
desconhecida em outras fases da vida. A morte dos maridos trazia às mulheres
incumbências e a responsabilidade da criação dos descendentes, levando-as a adotar
certas atitudes para chefiar a casa, entre elas, compartilhar a direção do domicílio com
um filho adulto. O viver de tais mulheres não era fácil e os documentos não trazem a
tristeza, sofrimento e dor que muitas vezes carregavam. Nem mesmo dá conta de
mostrar as alegrias, que sem dúvida também faziam parte de seus cotidianos.
Mesmo sozinhas, algumas viúvas conseguiram o somente manter a casa como
ampliaram suas posses graças aos próprios esforços. As proprietárias de escravos
poderiam sustentar uma família sem o auxílio de um homem ao seu lado e manter-se
era opção comum em regiões urbanas. A posse de escravos, se por um lado era algo
bom para as mulheres chefes de domicílio, garantindo um viver mais tranqüilo e seguro,
por outro, fazia recair muitas responsabilidades sobre elas, dando lugar à necessidade de
reinventar práticas destinadas a manter a estrutura herdada. Nem todas conseguiram ao
longo de suas vidas conservar o número de escravos ou aumentá-lo.
A legislação era gida quando se tratava das viúvas. O pátrio poder dos filhos
era de exclusividade do marido, não podendo a mulher ser tutora ou curadora sempre
que contraísse novas núpcias. Esse foi o caso de Emília Pereira da Rocha, que ano de
1863, na freguesia de Desterro, pede exoneração da tutoria de sua filha Belmira Emilia
da Rocha, por querer se casar novamente, “pois as viúvas que se casam não podem
continuar sendo tutoras”.
34
As viúvas tinham um papel importante na transmissão do patrimônio. Quando se
casavam, tinham o direito de serem tutoras e ficavam como “cabeça de casal”,
administrando os bens familiares enquanto os filhos fossem menores. No testamento, o
pai poderia designar tutor e curador para os órfãos, ou seja, a vontade da mãe vinha após
a do pai.
35
Transformada em “cabeça de casal” e tutora deveria justificar juridicamente
esse encargo. Na administração do patrimônio dos filhos menores devia prestar contas
ao juiz competente, demonstrando zelo e cumprimento desse dever, ao lado de um
comportamento respeitoso para com a memória do marido. E assim fez Maria Kiefer,
33
LEUKOWICZ, Ida e GUTIÉRREZ, Horácio. “Mulheres sós em Minas gerais: viuvez e sobrevivência
nos séculos XVIII e XIX”. In: História, mulher e poder. Vitória: Edufes; PPGHis, 2006, p. 229.
34
ACTJSC, Prestação de contas, 1863. Ordenações Filipinas, livro IV, título 102.
35
LEUKOWICZ, Ida e GUTIÉRREZ, Horácio. Mulheres sós em Minas gerais: viuvez e sobrevivência
nos séculos XVIII e XIX, p. 297.
94
que no ano de 1864 habilitou-se
- tutora de suas filhas órfãs, Maria e Anna, justificando
perante a lei sua capacidade.
36
Na ausência de bens por parte dos filhos, cabia alimentá-los à custa de seu
patrimônio pessoal e desde que houvesse impossibilidade por parte da mãe, o dever era
transferido a outros parentes, segundo suas posses.
37
Foi o que fez Dona Luiza do
Amaral Gondim, viúva de David do Amaral e Silva, no ano de 1863: “ficando do seu
consórcio cinco filhas menores e por conseqüência carecidas de tutor, a fim de terem
quem requeira e promova o que for a bem delas. E por isso vem a suplicante requerer
que haja de dar lhe por tutor o avô paterno, por ser pessoa abonada em bens de raiz.”
38
Em relação às viúvas que se casavam novamente acima dos 50 anos, tendo filhos
ou outros descendentes, não podiam vender seus bens. No caso de não haver
ascendentes ou descendentes, deveriam deixar os bens para parentes próximos, podendo
dispor somente da terça.
39
Às que, segundo a legislação, não sabiam administrar seu
patrimônio, as Ordenações Filipinas preveniam:
Porque a nós pertence prover, que ninguém use mal do que tem,
querendo suprir a fraqueza do entender das mulheres viúvas, que
depois da morte de seu marido desbaratam o que tem e ficam pobres
e necessitadas, e querendo, outrossim, prover como seus sucessores
não fiquem danificados; mandamos os que se for provado, que elas
maliciosamente ou sem razão, desbaratam ou alheiam seus bens, as
justiças dos lugares onde os bens estiverem, os tomem todos, e os
entreguem a quem deles tenha carrego. (...). Porém se a tal viúva foi
mulher de fidalgo, ou de Desembargador, ou Cavaleiro, se as
Justiças da terra tiverem dela tal informação, por honra do marido e
da sua linhagem, façam-no logo, a saber, antes de outra coisa, para
mandarmos o que for de Direito, sem escândalo de sua geração.
40
E apesar de tudo, as viúvas possuíam condição mais confortável do que as
solteiras ou casadas. Na sociedade portuguesa (e brasileira), “não pode restar dúvida de
que uma viúva, rica ou pobre, podia levar uma vida livre, menos presa e recatada do que
uma mulher casada e suas filhas”.
41
Para manter suas condições de vida reinventavam
constantemente seu cotidiano, estendendo relações, utilizando o sobrenome dos seus
maridos falecidos, parentes próximos e o trabalho dos escravos. Mesmo viúvas com
situação financeira mais estável, enfrentaram contratempos ao buscar autonomia e a
36
ACTJSC, Autos de tutoria, Maria Kiefer, 1864.
37
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero, 1989, p.151.
38
ACTJSC, Autos de tutoria, Luiza Amalia do Amaral Gondim, 1863.
39
Ordenações Filipinas, livro IV, título CV.
40
Ordenações Filipinas, livro IV, título CVII.
41
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes e MELO, Hildete Pereira de. A partilha da riqueza na ordem
patriarcal. Rio de Janeiro: R. Econ. contemp., 5(2): 155-179, jul./dez. 2001, p. 07.
95
realização de suas vontades. É o que nos mostra a história de Maria Helena Silvy, viúva,
sem filhos. No dia 30 de outubro de 1883, seu irmão Julio Leon Silvy solicitou o direito
permitido por lei para evitar que Maria Helena chegasse à miséria por dilapidar seus
bens em função de maus conselhos. No processo diz: “A dita irmã do supp
te
,
infelizmente, está sofrendo de sandice ou idiotismo, e por essa razão, na forma da Ord.
Liv. 4 [...] 103, deve-se lhe dar curador para administrar sua [...] e bens.” Maria Helena
residia em Biguaçu, na casa do cunhado Manoel Joaquim de Carvalho. A sandice da
viúva era justificada por uma “paralisia” decorrente de uma congestão cerebral, com
falha de memória. Foi declarada também total falta de instrução, ficando difícil definir
se a incapacidade alegada estava relacionada à doença ou à sua intelectualidade. Julio
Silvy havia sido interpelado judicialmente pela irna ocasião da morte do pai Achille
Silvy, sendo que ela afirmava ter sido lesada em 10:000$000. O processo não foi
adiante por ter sido apresentado em São Miguel e não em Desterro, onde o inventário
havia sido feito. Manoel Joaquim de Carvalho tinha interesse neste caso, pois tinha um
filho menor que era herdeiro de Maria Helena e prestar auxílio e proteção a cunhada a
tornava sua devedora. O processo levou mais de um ano para chegar ao fim tendo o
resultado desagradado os dois interessados, pois foi nomeado um curador para Maria
Helena Silvy, que não era o irmão, nem o cunhado.
42
Para os dois homens envolvidos
nesse caso, possivelmente o maior interesse não era o bem estar de Maria Helena, mas
sim seus bens materiais. Difícil saber se ela realmente era incapaz de gerir sua herança,
mas é sintomático que Julio tente imobilizar a irmã, depois de ter sido acusado por ela
de lhe lesar em 10 contos de réis. Uma quantia alta estava em jogo e Maria Helena
precisava encontrar alternativas para se desvencilhar da possível cobiça de dois homens
da sua família. Maria Helena era proprietária de uma escrava chamada Eva, libertada
pelo fundo de emancipação em 25 de junho de 1885, pelo valor de 200 mil réis. A
escrava não havia sido libertada em data anterior por ter o procurador fiscal pedido
arbitramento judicial sobre o valor avaliado. Seria ela realmente incapaz, já que a aprece
nesse documento atuando em relação à sua propriedade?
43
Para tratar das mulheres que viviam na condição de viúvas, utilizei em alguns
casos seus inventários em outros os inventários dos maridos. Somente em um caso foi
possível encontrar os dois tipos de documentos, trata-se de Rita Joaquina da Silva.
42
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. P. 102, Cx. 07 Processos Criminais e veis do Tribunal
da Relação de Porto Alegre, nº993 1883.
43
APESC, Juízo de Órfãos do Desterro, 25 de junho de 1885.
96
No ano de 1862, foi aberto naquele ano o processo de inventário pelo
falecimento de Joaquim Caetano da Silva, seu marido, que deixou como herdeiros, além
de sua esposa e meeira dos bens, cinco filhos vivos, sendo quatro mulheres e um
homem mentecapto, além de oito netos. Seu patrimônio era de 13:028$160 e a meação,
a parte da herança que cabia a esposa, 6:514$080. Rita Joaquina e suas filhas passaram
uma procuração ao advogado Candido Gonsalves, para que tocasse o processo de
inventário, representando-as. No ano de 1863, a viúva solicita, em autos de tutoria a
guarda de seu filho Hermeneto Caetano da Silva.
44
Dois anos depois, em 1865, é aberto o processo de inventário de Rita Joaquina,
no qual sua filha, Carlota Leopoldina da Silva Lacerda é inventariante. Deixa onze
herdeiros, sendo cinco filhos e oito netos. Seu patrimônio é avaliado em 3:886$260. No
momento de sua morte possuía escravos: Maria crioula, 500$000, metade de Eduardo
crioulo: 150$000, uma escrava velha de nome Justina: 20$000. Novamente é passada
uma procuração para o advogado Candido Gonsalves tomar conta do processo de
inventário.
45
Rita Joaquina da Silva desde o momento do falecimento do marido diminuiu
significativamente seu patrimônio. A partir da lista de bens, percebe-se que não adquiriu
mais propriedades. Sua terça, que era de 6:514$080, no momento de seu falecimento já
havia diminuído para 1:164$650. A situação enfrentada pelas recém viúvas não era
fácil, principalmente considerando que muitas delas estavam alheias aos negócios e o
tinham conhecimento da quantidade de dívidas. Senhores proeminentes e reconhecidos
por suas posses em muitos momentos contraiam dívidas que ultrapassavam o que
possuíam. No momento do falecimento os credores se manifestavam, surpreendendo as
viúvas que sozinhas, muitas vezes precisavam recorrer à ajuda de conhecidos, vender
seu patrimônio ou pedir dinheiro emprestado para garantirem sua sobrevivência e de
seus familiares.
O inventário de Rita Joaquina vem acompanhado de testamento, feito em 1861,
onde consta:
Declara que quer que se faça a terça em uma pequena morada de
casa que foi a botica na rua da cadeia e na parte que tem do crioulo
Eduardo de cuja terça institui por herdeiras as filhas Leopoldina e
Francisca. Declara que tendo recebido no inventário do finado
marido a escrava Justina no valor de 30$000 a deixa liberta como se
44
ACTJSC, Inventário de Joaquim Caetano da Silva, 1862.
45
ACTJSC, Inventário de Rita Joaquina da Silva, 1865.
97
de ventre livre nascesse com a única obrigação de acompanhar o
filho Hermeneto enquanto vivo for.
Seu único filho homem era mentecapto e Rita tentava garantir sua proteção após
sua morte, que não contava mais com a presença do marido, através da escrava
Justina. Para Justina a situação era instável, pois seu senhor havia falecido, talvez
esperasse pela liberdade naquele ano de 1862, continuou cativa e com a morte da
senhora em 1865 sua liberdade não chega. Ao contrário, ficou atrelada a vida de
Hermeneto. É longo o caminho percorrido. Justina era velha, de acordo com o
inventário de Rita Joaquina e parecia estar com a família bastante tempo, talvez por
essa razão tenha sido escolhida para acompanhar Hermeneto. Pela avançada idade
possivelmente não chegou a desfrutar de sua liberdade.
Nomeia como testamenteiros, em primeiro lugar Américo Antonio da Costa, em
segundo lugar o Tenente Coronel Amaro José Pereira e em terceiro lugar seu cunhado
João Correia Fraga, a eles ficava a tarefa de dar cumprimento a última vontade da
falecida. Uma das estratégias utilizadas pelas viúvas era a manutenção de relações com
homens importantes, reconhecidos como pessoas de bem. Muitas vezes essas relações
faziam parte do legado deixado pelos próprios maridos.
A senhora não contava com um filho adulto que pudesse auxiliá-la no
gerenciamento dos bens, mas contava com filhas mulheres, que no momento em que foi
necessário, assumiram determinadas tarefas, como a de inventariante, por exemplo.
Recorrer ao advogado Candido Gonçalves como procurador mais uma vez evidencia
que muitas mulheres utilizavam relações com “homens de bem” como uma estratégia
que poderia auxiliá-las a viver melhor.
Diferente de Rita Joaquina, quando D. Isidora Rosa da Silva faleceu, em 1860,
contava com a presença de um filho adulto chamado Francisco Pereira Neto. Poder
contar com a presença de um filho homem e adulto poderia significar para as viúvas
uma preocupação a menos, já que quando tinham filhos menores eram responsáveis pela
sua sobrevivência. Por outro lado, corriam o risco de terem que se submeter às vontades
de seus filhos, já que legalmente tinham direito de gerenciar os negócios da família.
Em seu testamento, Izidora confere plena liberdade à escrava Maria, bem como a
quaisquer filhos que pudesse ter antes de seu falecimento. Entre os bens que possuía,
constavam móveis de casa, utensílios domésticos, a escrava Maria parda, que ficou
livre, 1:000$000, Theresa de nação Benguella, 70 anos, 60$000, Antonio, 76 anos,
98
100$000, uma morada de casas na rua da Pedreira, 2:800$000, duas braças de terras na
rua da Tronqueira, 25$600. Seu Monte mor era de 4:578$240. Dona Izidora era viúva,
possuía dois escravos velhos que não valiam muito e a escrava avaliada em 1:000$000
deixa livre. Por questões econômicas e possuindo descendentes, não seria lógico libertar
justamente a escrava mais cara. Ainda que não seja possível saber com exatidão o que
estava por trás dessa alforria, poderia ser um caso realmente de afeto.
46
Sete anos antes de seu falecimento, Izidora fazia locação dos serviços da preta
liberta Francisca crioula mediante a quantia de 210$000, que a liberta se obrigava a lhe
pagar com sete anos de seus serviços. A credora tinha a obrigação de sustentá-la, vestir-
lhe e tratá-la em suas enfermidades.
47
Izidora possuía propriedades e utilizava os
serviços de escravos e libertos como uma das formas de conservar seus bens e garantir
seu sustento e talvez de seu filho.
Muitas mulheres não podiam mais contar com a presença dos filhos por já terem
falecido, em alguns casos, ficavam os netos. Foi o caso de Anna Prudência da
Conceição, filha legítima do finado Vicente José Rodrigues e sua mulher Dona Custódia
Maria do Sacramento, falecidos. Viúva do Ten. Coronel Francisco de Sant Anna e
Oliveira, de cujo matrimônio teve oito filhos que faleceram, quatro solteiros e quatro
casados. Dos casados existiam netos que eram seus herdeiros. Queria que a terça se
fizesse na casa de vivenda que residia à Rua Tenente Silveira, a qual deixava a um neto:
Ten. Dom Faustino José da Silveira pela “caridade que distribuiu durante sua
enfermidade”.
48
Nesse caso, Anna Prudência demonstrou em seu testamento feito no
ano de 1861 uma forma de agradecer aos cuidados do neto em relação a ela. Era
bastante comum a beira da morte se fazer referências de gratidão às pessoas que
prestaram favor em vida, com a intenção de ir para o outro mundo sem dívidas na Terra.
O testamento parecia muitas vezes uma prestação de contas referente às relações
estabelecidas com familiares, amigos, conhecidos e através deles é possível perceber
algumas estratégias utilizadas pelas mulheres, que tentaram reverter situações a seu
favor, buscando um viver mais seguro, menos solitário.
As únicas pessoas da família sanguínea que Anna tinha eram seus netos. No ano
de 1868 fez uma declaração de liberdade para os crioulos Avelino e Luiza: declaro que
desisto da condição de acompanhar-me e servir-me em quanto eu viva for, como eu
46
ACTJSC, Inventário de Izidora Rosa da Silva, 1860.
47
“Contrato de Locação de Serviços” da liberta Francisca. Livro 14 de notas do ofício do cartório de
Desterro, 1853, fls 38v e 39.
48
ACTJSC, Inventário de Anna Prudência da Conceição, 1861.
99
havia imposto nas cartas de liberdade passadas a meus escravos”.
49
Havia imposto
condições para libertar seus escravos, entretanto volta atrás e as razões para esta atitude
poderiam ser as mais diversas, como gratidão, por exemplo. Talvez tivesse se tornado
um encargo manter Avelino e Luiza ou ainda quis recompensar, assim como com seu
neto, a dedicação e cuidados para com ela. Era mais comum que mulheres na situação
de Anna tivessem a preocupação de manter seus cativos consigo até o momento de sua
morte e não podemos afirmar que isto não tenha acontecido. A relação foi
reconfigurada, o que não significa necessariamente um rompimento ou afastamento.
Alguns comerciantes de prestígio da cidade, talvez tenham deixado além dos
bens materiais às suas viúvas, relações com pessoas importantes, que poderiam
significar um caminho para a manutenção da condição social. Foi o caso do
Comendador João Pinto da Luz, negociante ligado ao comércio de escravos de
Desterro,
50
que faleceu no dia 11 de setembro de 1866. Seu inventário foi feito por sua
mulher Francisca Carolina de Siqueira Luz. Deixou nove herdeiros de seu primeiro
casamento e um herdeiro, Otacílio de 3 anos de seu matrimônio com Francisca. Os bens
que ficaram por seu falecimento foram: um sobrado na Rua Augusta, 20:000$000, um
armazém, com esquina para a rua da Conceição, 8:000$000, um sobrado na rua do
Príncipe, 8:000$000, uma chácara na rua da Princeza, 3:000$000, 10 escravos:
Dorothea, 30 anos, 800$000, Margarida, 32 anos, 700$000, José, filho de Margarida,
50$000, Zeferina, 17anos, 800$000, Francellina, 19 anos, 800$000, Francisco, 34 anos,
800$000, José, 36 anos, 700$000, Narciso, 32 anos, 500$000, Feliciano, 24 anos,
800$000, Faustina, 34 anos, 600$000. O total dos bens somava mais de 51contos de
réis. Pode-se dizer que Francisca ficou em situação material confortável, sem no entanto
estar com seu futuro garantido, pois estavam incluídos na divisão de bens os filhos do
primeiro casamento.
Em 1864, Francisca comprou uma escrava da Comissão liquidante da “Caza
Commercial de José Leocio da Gama”. Neste ano seu marido ainda era vivo, pois
aparece logo em seguida uma escritura de venda da escrava Gregoria, que fez Dona
49
“Declaração de Liberdade” dos crioulos Avelino e Luiza. Livro 31 de notas do 2º ofício do cartório de
Desterro, 1868, fls 10.
50
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849
1888. Florianópolis: UFSC, 2006. Dissertação (Mestrado em História), p, 103.
100
Giulia [Candida] de Moraes Coimbra ao Comendador. Porém Gregória não aparece no
espólio dois anos depois.
51
No ano de 1868, dois anos após a morte do marido, Francisca Carolina
representada por seu procurador Felis Lourenço da Siqueira, confere plena liberdade à
escrava Faustina, mediante a quantia de 600$000, recebida em moeda corrente da
senhora Anna Maria Albina, preta liberta, ficando a dita Faustina obrigada a pagar a
referida quantia a Anna Albina.
52
Talvez Francisca estivesse precisando de dinheiro,
pois muitas vezes o patrimônio não tratava de sanar necessidades imediatas, vender um
cativo (a) poderia ser a alternativa utilizada. Anna Maria Albina, mulher forra, contrata
os serviços de uma escrava e essa situação contrapõe a idéia de que todos os libertos
viviam na pobreza e que sua liberdade trouxe-lhes poucas vantagens.
Ao contrário de Francisca Carolina de Siqueira Luz, Sophia Maria da Gloria no
ano de 1862, de seu marido Antonio Manoel Theodoro herda apenas dívidas. Embora
não se tratasse de uma proprietária de escravos, tratava-se de uma mulher que com o
fruto do seu trabalho conseguiu pagar as dívidas deixadas pelo marido. Sophia declarou
que seu marido fez testamento dispondo de bens que não possuía, acrescentando
disposições que não poderiam ser cumpridas. A única propriedade que tinham era um
sítio na Freguesia do Ribeirão da Ilha e este estava sujeito a ser vendido, ao menos na
metade que competia a Sophia, para pagar dívidas contraídas pelo esposo, que era muito
doente e mal podia trabalhar. Antonio Manoel Theodoro precisou pedir dinheiro
emprestado e até comprou remédios fiado. A viúva viu-se obrigada a fazer escritura de
hipoteca a Antonio da Silva a fim de emprestar dinheiro para consertar a casinha onde
vivia. Declarou que trabalhava e com o fruto de suas economias pagou todas as dívidas
no finado marido, passados 3 anos de seu falecimento. Por sua extrema pobreza,
justificou o fato de não ter feito inventário. No testamento de Antonio, atestava ser dono
de terras em Canasvieiras e deixava quantias em dinheiro para parentes, amigos e
Irmandades religiosas.
53
O testamento de Antonio, em contraponto às declarações de
Sophia, me conduz a história de uma mulher que sabia se defender das intempéries da
vida. Se ela dizia a verdade tenho dúvidas, pois foi testamenteira de Antônio Manoel
51
“Escritura de Compra de uma escrava da Comissão Liquidante da “Caza Commercial de José Leocio da
Gama” e escritura de venda da escrava Gregória. Livro 27 de nota do ofício do cartório de Desterro
1864, fls 27, 27v e 28.
52
“Lançamento de Escrito de Liberdade” da escrava Faustina. Livro 31 de notas ofício do cartório de
Desterro 1868, fls 39v e 40.
53
ACTJSC. Testamento de Antonio Manoel Theodoro, 1865.
101
Theodoro, talvez tenha precisado utilizar o que estava citado no testamento, tendo
optado por não levar a inventário. Quando houve a necessidade de justificar, suas
explicações foram bastante convincentes e ainda que as disposições testamentárias do
marido fossem reais, isso não excluía a possibilidade de que tinha dívidas superiores às
suas posses.
Três anos após serem inventariados os bens de João Pinto da Luz, em 1869 abre-
se processo de inventário dos bens de João Pinto da Luz Filho. De seu casamento com
Felicidade Amália da Luz não teve filhos. Seus herdeiros são além da esposa, seus
irmãos, inclusive Otacílio, com seis anos, fruto do segundo matrimônio de seu pai. Seu
patrimônio foi avaliado no valor de 1:592$920, sendo a terça pertencente à viúva.
Possuía uma única escrava de nome Genoveva, 40 anos de idade, no valor de 800$000.
Neste documento de inventário Felicidade Amália se defende de acusação feita pelo
Procurador Fiscal de sonegação de bens. As palavras desta senhora demonstram o
conhecimento que tinha sobre seus direitos, representando parte da população feminina
que não estava alheia ao que lhes era garantido por lei.
Cumpro o mencionado despacho de Vossa Senhoria em que me
ordena que diga sobre a reclamação do Doutor Procurador Fiscal
em relação aos bens que consta (?) que existiram no casal e que não
foram descritos. A reclamação é tanto mais injusta quanto
pequenina. Injusta porque o Doutor Procurador Fiscal deve saber
que “ao cabeça do casal” segundo direito, cabe privativamente a
descrição dos bens da herança, e que nenhum herdeiro (quanto mais
a Fazenda Provincial) tem direito de fazer inscrever no inventário
bem algum contra a vontade do cabeça do casal ainda que
notoriamente pertençam a herança (Art L1 T88 Pereira de
Carvalho, inciso 28) (...). Como inventariante tenho o direito a exigir
o respeito ao meu juramento – segundo qual descrevi o que existia do
casal e até os brincos de meu uso, até o alfinete do retrato de meu
marido. Entretanto o Doutor Procurador pretende que sejam
descritos até os enfeites de minha cabeça – até a roupa de meu
marido até a roupa de cama! (...). Quanto a mim não os
descreverei e preço que com razão não posso ser forçada a isso.
54
O documento foi escrito e assinado pela própria senhora, que soube se defender
muito bem. Seu tom desafiador demonstra que não se sentiu intimidada perante a
cobrança do Procurador Fiscal e a resposta deste vem logo em seguida, dizendo da
necessidade de descrever os bens no inventário e do quanto é natural, às vezes, as
pessoas esquecerem-se de fazê-lo, não vendo motivo para que a senhora se ofendesse.
54
ACTJSC, Inventário de João Pinto da Luz Filho, 1869.
102
No fim das contas, sua resposta soa quase como um pedido de desculpas. Nem todas as
viúvas agiam como Felicidade, muitas se deixavam atormentar pelas cobranças muitas
vezes infundadas e nem sempre respaldadas pela lei, de quem as considerava frágeis
demais e incapazes de cuidar de seus próprios bens, de sua própria vida e de seus
descendentes.
Cuidar de um processo de inventário não era nada fácil, além da cobrança e
vigilância dobrada sobre as viúvas, tinham que enfrentar os credores e as autoridades.
Algumas indicavam procuradores homens para fazerem isso por elas, outras tocavam o
processo sozinhas. Maria Laux da Cunha foi um desses exemplos e o fato de ter feito
um testamento no dia 2 de junho de 1878 junto com seu marido facilitou as coisas.
Declaravam nesse documento não terem descendentes, porém criaram um menino
chamado José Alfredo da Cunha de 17 anos como filho, sendo ele o universal herdeiro.
O inventário foi aberto no dia 08 de julho de 1878 e entre os bens, constavam móveis de
casa, “trem” de cozinha e alguns escravos: pardo de nome Marcos, 20 anos de idade,
marinheiro, avaliado em 1:000$000, preta Luiza, 13 anos de idade, filha da escrava
Genoveva, avaliada em 600$000, preta de nome Genoveva, 13 anos, avaliada em
400$000, preto de nome João, 8 anos, avaliado em 350$000, filho da escrava Genoveva,
preta de nome Anna Maria, 7 anos, avaliada em 250$000, filha da escrava Genoveva.
Luiza, João e Anna Maria são chamados de “crias da casa”. Genoveva não aparece na
lista de bens do inventário, entretanto aparece na lista de matrículas de escravos, com a
idade de 27 anos, ofício de cozinheira. Alguns outros escravos que foram vendidos
aparecem na mesma lista. Sobre o destino de Genoveva não há nada mencionado. Sendo
nomeada como responsável pelo extrato do inventário, Dona Margarida Laux da Cunha
declarou que morava na Rua do Príncipe de Desterro, sua profissão era proprietária e
que tinha sob sua responsabilidade o menor José Alfredo da Cunha, de profissão
caixeiro. Em 06 de março de 1879, Margarida pediu exoneração da tutoria de José
Alfredo, por tê-lo emancipado.
55
No ano de 1880, Margarida fez escritura de venda fixa
dos escravos Anna Maria e João ao doutor José Segundinho Lopes de Gomercino.
56
Outra senhora ficou viúva no ano de 1879 e talvez fosse vizinha de Margarida.
Trata-se de D. Maria Gertrudes Cabral de Aguiar, esposa do falecido Capitão João
Vieira de Aguiar. Tinha somente um herdeiro, João Ernesto Vieira de Aguiar. Possuía
55
ACTJSC, Inventário e testamento de João Pedro da Cunha, 1878.
56
Escrito de Venda Fixa que faz margarida Laux da Cunha. Livro 09 do ofício de notas do cartório de
Desterro, 1880, fls 36, 36v e 37.
103
uma morada de casas de sobrado situada a Rua do Príncipe, de Desterro, a mesma rua
em que vivia Margarida e seu filho de criação, no valor de 5:000$000, veis de casa e
utensílios domésticos. Possuía um escravo de nome Januário, preto de nação africana,
com 63 anos, 50$000, uma escrava de nome Maria preta nação africana, 53 anos,
50$000, um escravo de nome Joaquim, crioulo, 22 anos, 850$000, um escravo de nome
Manoel, crioulo, 22 anos, 900$000. A soma dos bens totalizava 9:984$200.
57
No mesmo ano do falecimento do Capitão, a viúva Maria Gertrudes Cabral de
Aguiar faz uma procuração para Manoel Antonio Victorino de Menezes, Aureliano de
Souza Monteiro e Frederico de Freitas Noronha com o objetivo de vender o escravo
Manoel, caracterizado como lavrador. Mais uma vez uma viúva recorre a relações com
homens reconhecidos na cidade. Manoel Victorino de Menezes era um dos maiores,
talvez o maior, comerciante de escravos de Desterro.
58
O monte mor com o qual ficou Dona Gertrudes parecia suficiente para
sobreviver juntamente com seu filho. Maria, embora estivesse avaliada em uma quantia
pequena, era tida como de grande aptidão para o trabalho doméstico. Joaquim aparece
com aptidão regular e Manoel que aparece com muita aptidão é vendido pelos
procuradores de Dona Gertrudes. A necessidade em vender propriedades poderia estar
relacionada a alguma urgência financeira, ou ainda no caso da venda de um escravo, a
preferência de alguns em relação a outros.
Pouco tempo depois, no ano de 1880, Maria Kiefer inventariou os bens do
falecido marido Pedro Kiefer. Do casal ficaram duas herdeiras, Maria Kiefer e Anna
Kiefer. Os bens inventariados são uma morada de casas na rua da Cadeia, 23,
1:050$000, uma morada de casas no beco do quartel, 700$000, uma outra morada de
casas no mesmo beco, 1:000$000, uma escrava crioula de nome Juliana, 26 anos,
1:000$000, uma dita de nome Balbina, 23 anos, 1:000$000, um escravo de nome José,
14 anos, 900$000, um dito de nome Candido, 7 anos, 700$000, uma crioulinha de nome
Josefa, 4 anos, 500$00, alguns móveis e utensílios domésticos. Seu patrimônio foi
avaliado no valor de 9:637$950.
59
No ano 1864 Maria Kiefer entrou com processo para habilitar-se tutora de suas
filhas órfãs, desta forma era viúva muito antes de inventariar os bens do falecido
57
ACTJSC, Inventário do Capitão João Vieira de Aguiar, 1879.
58
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849
1888, p, 103.
59
ACTJSC, Inventário de Pedro Kiefer, 1880.
104
marido
60
. Abrir um processo de inventário era trabalhoso e muitas pessoas optavam por
não fazê-lo, mesmo que fossem obrigadas por lei. No ano de 1873, a viúva aparece no
cartório Kotzias, alforriando a escrava Balbina, maior de quarenta anos, mediante a
quantia de trezentos mil réis. Candido e Josefa eram crianças e a possibilidade de
alforria quando o escravo crescia na companhia da senhora era mais presente em função
da convivência. A proximidade criava laços de afetividade e havia casos em que as
senhoras alforriavam seus cativos por serem “crias suas”.
O universo das mulheres viúvas chefes de família foi entrecortado por
acontecimentos que tornaram suas vidas repletas de desafios, indo além da imagem de
“senhoras pacatas”. Para elas a luta pelo pão de cada dia não deveria ser muito diferente
daquela travada pelas solteiras, mas do ponto de vista social poderiam ter um viver mais
brando.
61
Percebe-se que a proximidade com os cativos era maior por parte das mulheres
solteiras, pois na maioria dos casos as viúvas tinham descendentes com quem
preocupar-se prioritariamente, e nesses casos, a vida dos cativos ficava atrelada aos
laços sanguíneos das viúvas. As duas solteiras que apareceram nessa análise tiveram
mais tendência a acumular propriedade escrava do que as viúvas, que em alguns casos,
após a morte dos maridos venderam pelo menos um cativo. O que parece, a partir da
análise desses documentos, é que as mulheres solteiras tinham mais tendência a se
aproximar de seus escravos, ao passo que as viúvas não ficavam completamente
sozinhas, ainda mais quando tinham filhos homens ao seu lado. Ainda que para essas a
luta pela sobrevivência não fosse fácil, tinham um viver mais aceito socialmente, o que
possibilitava relações sociais entre iguais ampliadas. No caso das solteiras, os laços de
afetividade que criavam com seus cativos eram também importante estratégia de
sobrevivência, já que pareciam ser mais solitárias que as viúvas.
As mulheres citadas nesse capítulo possivelmente se cruzaram algumas vezes
pelas ruas de Desterro, cada qual com sua agonia, com sua história e com muitas
vivências em comum.
60
ACTJSC, Autos de Tutoria, Maria Kiefer, 1864.
61
TEIXEIRA, Paulo Eduardo. O Outro lado da família brasileira. São Paulo: Editora da UNICAMP,
2004, p. 197.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa dissertação, assim como as histórias que a compõem, não se encerram
nessas linhas. Acredito e espero que minhas análises, ainda tímidas em relação ao tema,
tenham continuidade, trazendo em outros momentos interpretações que minhas
percepções ainda não apreenderam.
O fazer historiográfico aponta múltiplas possibilidades e por mais que a escrita
não deva ser dotada de pessoalidade, não como fugir de um olhar carregado de
experiências que determinam escolhas. A seleção de fontes, a bibliografia e o olhar
voltado para a relação de ambigüidade existente entre proprietárias e seus cativos (as)
viabilizaram descobertas, surpresas, constatações e hipóteses acerca de um trabalho
focado nas trajetórias (ainda que de um curto espaço de tempo) de indivíduos que
contrariavam o que diziam as normas estabelecidas pelas estruturas.
Caminhar hoje pelas ruas de Florianópolis, traz a constante lembrança de um
lugar, de um período que “vi” nos momentos da escrita e que mudou completamente
minha percepção da composição da cidade nos dias atuais. Imagino os vários sujeitos
históricos que se encontravam e desencontravam pelas ruelas ainda mal calçadas de uma
localidade que estava crescendo e transformando os hábitos de toda a população,
reconfigurando as relações e criando necessidades. Assim era Desterro na segunda
metade do século XIX, um centro urbano que oferecia novas alternativas de convívio
social e que favoreceu o crescimento dos setores médios da população, compostos por
fortunas que não se destacavam, mas que poderiam possibilitar uma vida relativamente
confortável. Faziam parte desses setores médios mulheres proprietárias de escravos
solteiras e viúvas, chefes de família. Para essas mulheres viver não era tarefa simples,
pois não contavam com a presença de um marido que as “protegesse” ou representasse.
Socialmente essa situação poderia ser um problema, um desafio maior a ser enfrentado,
mas sem dúvida as solteiras e viúvas tinham uma vida mais independente do que as
casadas. E essa independência também poderia ter atributos negativos, impondo às
mulheres inventarem e reinventarem cotidianamente suas estratégias de sobrevivência.
Através da legislação (Ordenações Filipinas) podemos constatar maior espaço de
atuação das solteiras e viúvas, pois a mulher quando casada era sempre representada
pelo marido. As mulheres “sozinhas” precisavam estar atentas, principalmente quando
106
se tratava de herança, pois sempre havia algum homem por perto alegando a fragilidade
do sexo feminino em dispor de seus bens e se propondo a ajudá-las a não dissiparem seu
patrimônio. Essas intenções eram na maioria das vezes carregadas de interesses
pessoais, motivados por ambição e cobiça.
Proprietárias de escravos solteiras e viúvas se não eram a norma em Desterro na
segunda metade do século XIX, muito menos eram a exceção. A partir da análise de
fontes documentais e de bibliografia sobre o tema defendo a concluo que a propriedade
escrava era uma das mais importantes estratégias de sobrevivência utilizada por essas
mulheres que através dos mais diversos arranjos procuravam garantir seu futuro e de
seus descendentes. Tratavam de garantir proteção e amparo na velhice, reinventando seu
poder senhorial sob vários aspectos, pois não era simples impô-lo.
Nesse sentido os
vínculos afetivos eram muito mais eficazes do que as formas legais de dominação.
Garantia material não era a única expectativa vislumbrada pelas mulheres, que
muitas vezes tinham nos cativos as únicas companhias com quem dividiam suas vidas.
Mulheres sozinhas tinham mais tendência a se aproximarem de seus escravos e as
relações, baseadas na troca e nas obrigações morais recíprocas, poderiam, ainda que
motivadas por interesses próprios e distintos, serem dotadas de afeição sincera.
Os laços de solidariedade embora pudessem ser reais não eliminavam a tensão e
coerção própria das relações escravistas. Mesmo nos casos em que o zelo e o carinho
eram mais evidentes, o estigma da posse, do controle, enfim da relação de dominação
permanecia. As relações de afeto não isentavam do controle e dominação, da mesma
forma que as relações desiguais inerentes ao sistema escravista não isentavam de
sentimentos sinceros de afetividade.
Muitas senhoras dividiam a precariedade de sua existência com os cativos, sendo
o trabalho desses, sua única fonte de renda. Entretanto um abismo estrutural distanciava
proprietárias e escravos, por mais próxima que pudesse parecer à relação existente. Um
abismo de classe, de interesses e da maneira como as experiências eram absorvidas.
107
FONTES
Arquivo Central do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (ACTJSC)
Inventário de Mariana Luiza da Silva, 1855
Inventário de Izidora Rosa da Silva, 1860.
Inventário de Anna Prudência da Conceição, 1861.
Inventário de Maria Rita da Conceição, 1861.
Inventário de Joaquim Caetano da Silva, 1862.
Testamento de Felisarda Amália da Costa Brocardo, 1863.
Prestação de contas, 1863.
Tutoria de Luiza Amalia do Amaral Gondim, 1863.
Tutoria de Maria Kiefer, 1864.
Testamento de Rita de Cássia Luiza da Silva Poyção, 1864.
Inventário de Rita Joaquina da Silva, 1865.
Testamento de Antonio Manoel Theodoro, 1865.
Inventário de Francisca Carolina de Siqueira Luz, 1866.
Inventário de João Pinto da Luz Filho, 1869.
Autos de Praça de morada de casas Maria de Fontoura Ferraz, 1875.
Inventário e testamento de João Pedro da Cunha, 1878
Inventário do Capitão João Vieira de Aguiar, 1879.
Inventário do Major Estanislau da Conceição, 1880.
Inventário de José da Silva Pereira, 1880.
Justificação de tutoria, Francisca Agostinho de Souza e Mello, 1880.
Inventário de Pedro Kiefer, 1880.
Arquivo do Cartório Kotzias (ACK)
“Escritura de dívida de hipoteca que faz Luiza Clara da Conceição a Rita de Cássia
Luiza da Silva Poyção”, livro 4 de notas do ofício do Cartório de Desterro,1829, fls
14v e 15.
108
“Escrito de venda fixa que faz margarida Laux da Cunha”. Livro 09 do ofício de notas
do cartório de Desterro, 1880, fls 36, 36v e 37.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Ignez”. Livro 4 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1830, fls 49 e 49v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Anna”. Livro 4 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1831, fls 118v e 119.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Justina”. Livro 4 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1832, fls 154, 154v e 155.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Antonio”. Livro 11 de notas do
ofício do cartório de Desterro, 1848, fls 68 e 69v.
“Contrato de Locação de Serviços da liberta Theresa”. Livro 12 de notas do 2º ofício do
cartório de Desterro, 1849, fls 10 e 10v.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava de nome Emerenciana Rosa” livro 12
de notas do 2º ofício do cartório de Desterro, 1849, fls 23v e 24.
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Joaquina, Isabel e Lourenço”. Livro
14 de notas do segundo ofício do cartório de Desterro, 1853, fls 45v e 46.
“Contrato de locação de serviços” da liberta Francisca. Livro 14 de notas do 2º ofício do
cartório de Desterro, 1853, fls 38v e 39.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo João”. Livro 22 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1859, fls 10v.
“Escritura de venda”. Livro 24 de notas ofício do cartório de Desterro 1862, fls 45,
45v e 46.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Florencia”. Livro 26 do ofício de
notas do cartório de Desterro. 1863, fls 3.
“Lançamento de Escrito de liberdade do escravo Francisco”. Livro 26 de notas do
ofício de notas do cartório de Desterro. 1863, fls 33.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Francisca”. Livro 26 de notas do
ofício de notas do cartório de Desterro. 1863, fls 11v e 12.
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Anna e Angelo”. Livro 26 de notas
do segundo ofício do cartório de Desterro, 1863, fls 16v.
“Escritura de compra de uma escrava da Comissão Liquidante da “Casa Comercial de
José Leocio da Gama” e “escritura de venda da escrava Gregória”. Livro 27 de nota do
2º ofício do cartório de Desterro 1864, fls 27, 27v e 28.
109
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Maria”. Livro 29 de notas ofício do
cartório de Desterro 1865, fls 25v e 26.
“Lançamento de Escrito de liberdade do escravo Matheus”. Livro 29 de notas ofício
do cartório de Desterro 1866, fls 46 e 47v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Maria José”. Livro 29 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1866, fls 79v e 80.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Manuel”. Livro 29 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1866, fls 46v e 47.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Maria José”. Livro 29 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1866, fls 79 v e 80.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Custódia”. Livro 29 de notas do
ofício do cartório de Desterro. 1866, fls 80.
“Escritura de locação de serviços que presta a preta liberta Justina a Virgilio José
Vilella”. Livro 31 de notas do ofício do cartório de Desterro. 1868, fls 2v e 3.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Justina”. Livro 31 de notas do ofício
do cartório de Desterro. 1868, fls 2 e 2v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade” das escravas Joanna e Maria. Livro 31 de notas
2º ofício do cartório de Desterro 1869, fls 58 e 58v.
“Declaração de liberdade” dos crioulos Avelino e Luiza. Livro 31 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1868, fls 10.
“Lançamento de Escrito de Liberdade” da escrava Faustina. Livro 31 de notas ofício
do cartório de Desterro 1868, fls 39v e 40.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Henriqueta. Livro 35 de notas do
ofício do cartório de Desterro. 1872, fls 47v e 48.
“Lançamento de Escrito de liberdade do escravo Manoel”. Livro 35 de notas ofício
do cartório de Desterro 1872, fls 37.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Pedra”. Livro 35 de notas do ofício
de notas do cartório de Desterro. 1873, fls 136 e 136v.
“Lançamento de Escrito de liberdade da escrava Gerenima”. Livro 35 de notas 2º ofício
do cartório de Desterro 1872, fls 33 e 33v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Mariano”. Livro 35 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1872, fls 60v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade da escrava Marcolina”. Livro 35 de notas do
segundo ofício do cartório de Desterro, 1872, fls 60v e 61.
110
“Contrato de Locação de Serviços da preta Eva”. Livro 35 de notas do ofício do
cartório de Desterro, 1873, fls 136v e 137.
“Contrato de Locação de Serviços do liberto Vicente”. Livro 35 de notas do ofício
do cartório de Desterro, 1872, fls 59-59v.
“Contrato de Locação de Serviços de João crioulo liberto”. Livro 47 de notas do
ofício do cartório de Desterro, 1879, fls 36v e 37.
“Lançamento de Escrito de Liberdade dos escravos Maria, Themotheo e Basilio”. Livro
53 de notas 2º ofício do cartório de Desterro 1882, fls 11 e 11v.
“Escritura de contato antenupcial que faz Dona Luiza Rlengels com João Althoff”.
Livro 54 de notas do 2º ofício do cartório de Desterro, 1882, fls 40v e 41.
Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Pantaleão.” Livro 61 de notas do 2º
ofício do cartório de Desterro, 1886, fls 7v e 8.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Nereu.” Livro 61 de notas do 2º ofício
do cartório de Desterro, 1886, fls 10 e 10v.
“Escritura de dívida e hipoteca que faz Candida Roza Joaquina dos Passos”. Livro 66
do 1º ofício de notas do cartório de Desterro, 1859, fls. 7 e 7v.
“Lançamento de Escrito de Liberdade do escravo Lucio”. Livro 66 de notas 2º ofício do
cartório de Desterro 1859, fls 6v e 7.
“Escritura de venda fixa”, livro 66 de notas do 2º ofício do cartório de Desterro, 1889,
fls. 46, 46v, 47, 47v e 48.
Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC)
“Correio Catharinense”, 1853, nº 17, p. 04.
“Correio Catharinense”, 1854, n 87, p. 04, c 02
“O Conservador”, 1855, n 311, p. 04, c 02
“O Conservador”, 1855, n 346, p04, c 02
“A Estrela”, 1861, n 23, p 04, c 02.
“A Regeneração”, 1868, n 09, p. 04.
Arquivo da Câmara Municipal de Florianópolis (ACMF)
111
Código de Posturas da Câmara Municipal de Desterro, capítulo segundo “Saúde
Pública”, artigo 23.
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, nº114, 1850-51/ 79.
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, nº114, 1850-51/81.
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, nº114, 1850-51/81.
Livro de receitas e despesas da Câmara Municipal, nº 114, 1850.
Livro de Receitas e Despesas da Câmara Municipal, 1850, 51/ 327.
Livro de receitas e despesas da Câmara Municipal, nº 130, 1852 e 1853.
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC)
Processos Criminais e Cíveis do Tribunal da Relação de Porto Alegre, nº993 1883, P.
102, Cx. 07
Juízo de Órfãos do Desterro, 25 de junho de 1885.
Recenseamento do Brazil em 1872. Província de Santa Catharina.
112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência
familiar em épocas de transição. 1871 1895. Campinas: Áreas de Publicações
CMU/ UNICAMP, 1997.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e ordem privada no Império. In:História
da vida privada no Brasil 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ALENCASTRO, Luiz Felipe e RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e
imigrantes. In História da vida privada no Brasil. Império: a corte a modernidade
nacional São Paulo: Companhia das letras, 1997.
AMARAL,Tamelusa Ceccato do. As “camélias” de Desterro. A campanha abolicionista
e a prática de alforriar cativos (1870-1888). Florianópolis: UDESC, 2006.
Monografia (Especialização em História).
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: A trajetória de Luiz Gama na imperial
cidade de São Paulo. Campinas, Ed. da Unicamp, 1999.
BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected Essays of Fredrik Barth.
London: Routledge& Kegan Paul, 1981
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli,
1979, v. 1.
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli,
1979, v. 2
CARDOSO, Paulino de Jesus. Negros em Desterro. Experiência das populações de
origem africana em Florianópolis, 1860/1888. São Paulo: PUC, 2004. Tese
(Doutorado em História).
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e
econômicas. Florianópolis: Insular, 2000.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1995
D’INCÃO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: História das mulheres o
Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
113
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Família e fortuna no cotidiano
colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998
FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas
cidades do Rio de Janeiro e São João Del Rey (1700-1850). Niterói: UFF, 2004.
Tese (Doutorado em História).
FARIAS, Joice. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. Rio de Janeiro,
2003. Dissertação (Mestrado em História),Universidade Federal Fluminense.
FERNANDES, Florestan F. A Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:
Ática, 1978, vol 1.
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
FRANK, Zephyr L. Dutra’s World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de
Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala: as origens da família patriarcal brasileira.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
GEREMIAS, Patrícia Ramos. Filhos “livres” de mães cativas: os “ingênuos” e os laços
familiares das populações de origem africana em Desterro na cada da abolição.
Florianópolis: monografia de graduação, UDESC, 2001.
GRAHAM, Sandra Lauderale. Proteção e Obediência. Criadas e seus patrões no Rio de
Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da sociedade
escravista brasileira. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade de Desterro no século XIX.
Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1981
HOBSBAWM, Eric J. “A história de baixo para cima.” In Sobre História. São Paulo:
Cia das Letras, 1998.
KARASCH, Mary Catherine. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. 1
a
ed.
[revisada] da Tese de doutorado .São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LARA, Silvia. Hunold. “Blowin in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no
Brasil”. Projeto História, São Paulo, (12), out. 1995.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
LEUKOWICZ, Ida e GUTIÉRREZ, Horácio. Mulheres s em Minas gerais: viuvez e
sobrevivência nos séculos XVIII e XIX. In: História, mulher e poder. Vitória:
Edufes; PPGHis, 2006.
114
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória e um exorcista no Piemonte do século
XVII. Civilização brasileira: Rio de Janeiro, 2000.
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados
da liberdade de trabalho no século XIX. In Topoi. Revista de História. Programa de
Pós-Graduação em História Social da UFRJ, v.6, n 11, jul – dez, 2005.
LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no
século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Cadernos
Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP), 2009.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes e MELO, Hildete Pereira de. A partilha da
riqueza na ordem patriarcal. Rio de Janeiro: R. Econ. contemp., 5(2): 155-179,
jul./dez. 2001
MATTOSO, Kátia M. Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp, 1999.
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição. Escravos e senhores no parlamento e
na justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
MORTARI, Claudia. Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a irmandade de
Nossa Senhora do Rosário. Porto Alegre: PUC, 2000. Dissertação (Mestrado em
História).
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, famílias e mudança social
em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
OLIVEIRA, Anderson José M. De. Devoção e Caridade. Irmandades Religiosas no Rio
de Janeiro Imperial (1840-1889). Niterói: UFF, 1995. Dissertação (Mestrado em
História).
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém. Relações sociais e
experiência da urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII.
Estratégias de Resistência através dos Testamentos. São Paulo: Annablume, 1995.
PAIVA, Eduardo França. Pelo justo valor e pelo amor de Deus: as alforrias nas Minas.
IX Seminário sobre a economia mineira.
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe.
Florianópolis: UFSC, 1998.
PEDRO, Joana Maria. Mulheres do Sul. In: História das mulheres o Brasil. São Paulo:
Contexto, 2006.
115
PERROT, Michele. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
PRIORE, Mary Del. A mulher na História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988.
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, n. 11.
Campinas, SP: UNCAMP, 1998.
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jogos de Escalas: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero,
1989.
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII.
São Paulo: EDUSC, 2003.
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em
Desterro, 1849 – 1888. Florianópolis: UFSC. Dissertação de Mestrado, 2006.
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SOIHET, Raquel. A História das Mulheres. Cultura e poder das mulheres: ensaio de
Historiografia. Niterói: Revista Gênero, v. 2, n.1, p. 7-30, 2. Sem. 2001.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.
WOLFF, Cristina Scheibe. Como se forma uma “boa dona de casa”: A educação das
mulheres teuto-brasileiras na colônia de Blumenau. In: História das mulheres em
Santa Catarina. Florianópolis: Letras contemporâneas, 2001.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo