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Universidade Federal Rural de Pernambuco
Departamento de Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História Social da Cultura Regional
HUMBERTO DA SILVA MIRANDA
MENINOS, MOLEQUES, MENORES...
Faces da infância no Recife
1927 – 1937
Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, para
obtenção do título de Mestre em História.
Orientadores:
Dr. Paulo Donizeti Sierpiersk
Dra. Isabel Cristina Martins Guillen
Recife, agosto de 2008.
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Universidade Federal Rural de Pernambuco
Departamento de Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História Social da Cultura Regional
HUMBERTO DA SILVA MIRANDA
Meninos, moleques, menores...
Faces da infância no Recife
1927 – 1937
Banca Examinadora
Dr. Paulo Donizeti Sierpiersk
UFRPE
Presidente
Dra. Isabel Cristina Martins Guillen
UFPE (Colaboradora da PPG – História – UFRPE)
Examinadora Interna
Dra. Alcileide Cabral do Nascimento
UFRPE
Suplente – Examinadora Interna
Dra. Sylvia Costa Couceiro
Fundação Joaquim Nabuco
Examinadora Externa
Dra. Erica Windler
Universidade de Michigan
Suplente – Examinadora Externa
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Para minha família querida:
minha mãe Maria, meu pai Augusto
e meu irmão Gutemberg Miranda.
Para Professora Isabel Guillen,
orientadora, companheira de luta e amiga.
Para todos os meninos do Recife,
protagonistas desta História.
11
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos que confiaram neste trabalho, que foi motivado pelo
carinho de muitos amigos que acreditaram que este dia iria chegar. Nesta caminhada,
iluminada por Deus, tivemos a companhia de pessoas maravilhosas que merecem
receber os mais sinceros agradecimentos.
À Professora Isabel Guillen, uma historiadora competente, uma pesquisadora
ética e uma orientadora exemplar. Agradeço infinitamente a sua dedicação em orientar
este trabalho. A Professora Isabel esteve sempre presente, ensinando-nos que o
compromisso com a História deve estar acima de qualquer coisa.
À Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Pernambuco, FACEPE, pela
bolsa concedida, durante os dois anos de pesquisa.
Aos professores Ângela Grillo e Paulo Donizeti, por apadrinharem a nossa
caminhada acadêmica, estando sempre presente. Professores que se tornaram amigos...
À Banca Examinadora composta pelas professoras: Alcileide Cabral (pela
dedicação e por ter acreditado desde os primeiros momentos neste trabalho), Sylvia
Couceiro (nosso muito obrigado pela confiança e pelas contribuições desde a
Qualificação) e Erica Windler (que se tornou uma importante parceira nos projetos
acadêmicos, fazendo encurtar a distancia entre o Brasil e os Estados Unidos).
À professora Maria José, nossa Pró-Reitora de Graduação da UFRPE, por
acreditar no nosso trabalho e se preocupar com a nossa caminhada.
Agradecemos todos os professores da UFRPE, especialmente a Ana Nascimento,
Suely Luna, Vicentina Ramires, Wellington Barbosa, João Moraes, Gilberto Farias,
Dolores Coutinho (por todas as horas) e Maria Auxiliadora Gonçalves, primeira
orientadora de Iniciação Científica, uma grande amiga.
Não podemos deixar de lembrar dos funcionários da UFRPE: Maria, Irene,
Magda, Jaqueline, Silvano, George, Marcos, Geraldo, Fernando, Manoel, Ester e todos
da Pró-Reitoria de Extensão.
Agrademos a Eliane Moury Fernandes, do Programa de História Oral da
Fundação Joaquim Nabuco, pela confiança desde os tempos da graduação.
Aos companheiros da Assembléia Legislativa, Cynthia Barreto e a todos que
fazem a Assistência de Preservação do Patrimônio Histórico do Poder Legislativo de
Pernambuco (Ieda, Marquinho, João, Neves, Riso, Simone, Cacilda, Laime, Ricardo e
12
Amaury), pessoas que nos acompanharam desde a graduação e acreditaram na nossa
caminhada.
Agradecemos a Marcília (grande companheira de luta), Hildo, Cristina, Pedro
Moura, Noemia Luz, pessoas que fazem o Arquivo Público Jordão Emereciano
APEJE, que contribuíram efetivamente para a realização deste trabalho.
Aos professores da UFPE, grandes historiadores Antonio Paulo, Antonio
Montenegro, Regina Beatriz, Carlos Miranda e Biu Vicenti, pela atenção e confiança.
Agradecemos a todos que fazem Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente, em especial a Fernando, Eliane, Silvino, Madalena, Eleonora
e Sr. Almery, pelo carinho e confiança.
Aos amigos: Manuela Arruda (durante esses dois anos, choramos e sorrimos
juntos); Juliana Holanda e sua família Dona Etiene, Seu Edilto, André e Breno (um
grande presente conquistado durante o Mestrado); Carol (pela confiança e pela leitura
cuidadosa); Luis Antônio (amigo, que deu o nome a este trabalho durante um dos cafés
na Praça de Casa Forte); Pablo (meu amigo, um cabra arretado); Emília (pela
confiança); Márcio Ananias (pela amizade e pelas discussões acerca da escrita); Taciana
(pelo carinho); Flavinho (pela gentileza), Aluísio (pela presteza); Lenivaldo (pela
confiança); Helder e Bete (pelo afeto); Elaine e Sérgio (pelo carinho); Vera Braga (pela
atenção); Luís e Isabel (pela confiança), Hugo e Neilton (colegas geniais); Mônica
(pelo companheirismo).
Agradecemos a Juliana Andrade, minha namorada e companheira, por estar
presente em todos os momentos, com muita firmeza e compreensão.
Agradecemos aos meus pais, Maria José Miranda e José Augusto de Barros
Miranda, e ao meu irmão Gutemberg Miranda, sem eles não estaríamos aqui
agradecendo...
13
Aos poucos, com muitas desvantagens contra mim, ia revidando os
insultos, os palavrões, os murros, os tapas, as tabicas (...)
Desgraçadamente eu era menor que os meus agressores, tinha menos
força e menos agilidade do que eles, mas era teimoso, não entregava
os pontos e não dava por vencido. Às vezes, com um rival eu brigava
três, quatro vezes, até sentir que tivera algumas vantagens ou que ele
desistia de me perseguir. Esta minha atitude impôs respeito
Gregório Bezerra. Memórias da infância no Recife, onde trabalhava como
vendedor de jornais, nas primeiras décadas do século XX. In: Memórias:
primeira parte 100-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
O moleque brasileiro é hoje um caso a estudar. À margem da história
da família brasileira que escrever a história do moleque. O
moleque é toda uma moral: a da rua. É toda uma estética. E contra a
sua moral e a sua estética não burguês com a bravura de assumir
ofensivas rasgadas. O medo e o respeito do burguês ao moleque são
talvez maiores que o medo do moleque à polícia.
Gilberto Freyre, Diário de Pernambuco, 27 de julho de 1928. In: FREYRE,
G. Tempo de Aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na
primeira mocidade do autor: 1918-1926. São Paulo: IBRASA, 1979. p. 51.
14
SUMÁRIO
INDICE DE ILUSTRAÇÕES __________________________________________ 8
ABREVIATURAS ___________________________________________________ 9
RESUMO __________________________________________________________ 10
ABSTRACT ________________________________________________________ 11
INTRODUÇÃO _____________________________________________________ 12
PRIMEIRO CAPÍTULO
MENINOS DO RECIFE, FILHOS BASTARDOS DO “PROGRESSO” ______ 31
1.1 - Recife: palco da modernidade, “cidade inimiga dos meninos” ______________ 34
1.2 - Meninos dos mocambos: pobreza e mortalidade infantil no Recife __________ 44
SEGUNDO CAPÍTULO
NAS FÁBRICAS E NAS RUAS DO RECIFE:
O COTIDINAO DOS MENINOS NO MUNDO DO TRABALHO ___________ 60
2.1 - Infância operária: o cotidiano dos meninos trabalhadores no Recife _________ 61
2.2 - Nas ruas do Recife, o cotidiano dos “pequenos gazeteiros” ________________ 78
TERCEIRO CAPÍTULO
“CRIANÇA PROBLEMA”: A CONSTRUÇÃO DA REDE DE ASSISTÊNCIA,
CONTROLE E COERÇÃO SOBRE A “INFÂNCIA PERIGOSA” ___________ 94
3.1 - Meninos do Recife: na mira da polícia ________________________________ 96
3.2 - A “criança problema”: a psiquiatrização da infância no Recife ____________________114
QUARTO CAPÍTULO
CAMINHOS DO CONFINAMENTO:
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NO RECIFE _______________ 126
4.1 - Infância encarcerada: o cotidiano dos meninos nas instituições
de confinamento em Pernambuco________________________________________ 128
4.2 - Um Abrigo para os meninos: o Instituto Profissional 5 de Julho ___________ 149
CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________ 164
REFERÊNCIAS ____________________________________________________ 169
Fontes _____________________________________________________________ 169
Bibliografias ________________________________________________________ 171
15
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
Foto 1 – Fotografia de criança presa na Casa de Detenção do Recife.
Década de 1930.
Acervo: Apeje – p. 129
Foto 2 -
Planta da Casa de Detenção do Recife. Década de 1920.
Acervo: Apeje - p. 130
Foto 3 - Sede da Administração do Presídio de Fernando de Noronha - Década de 1930.
Acervo: Administração de Fernando de Noronha - p.142
Foto 4 - Crianças de Fernando de Noronha – Sem Identificação – Década de 1930.
Acervo: Administração de Fernando de Noronha - p.143
Foto 5 - Crianças internas no Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
Acervo: Apeje - p.150
Foto 6 - Oficina de Cestaria - Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
Acervo: Apeje - p. 153
Foto 7 - Crianças trabalhando em atividades agrícolas. Década de 1930.
Acervo: Apeje - p. 155
Foto 8 - Crianças internas no Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
Acervo: Apeje - p.155
16
ABREVIATURAS
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
ALEPE – Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco
APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano
AFN – Arquivo Fernando de Noronha
BCCB – Biblioteca Central Castelo Branco
CDR – Casa de Detenção do Recife
FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco
17
RESUMO
Os documentos que retratam o mundo da infância nas ruas e nas prisões do Recife, são
documentos que nos falam de histórias de meninos. Meninos que vendiam jornais e
eram atropelados pelos bondes durante o trabalho, meninos que carregaram frete,
meninos que furtavam comida no Mercado de São José, meninos envolvidos em brigas
de ferimento e até de morte. Meninos que se tornaram “menores” e que passaram a
carregar a pecha de vagabundo, gatuno, vadio e delinqüente. O objetivo do nosso
trabalho é de historicizar o cotidiano dos meninos nas ruas e nas prisões do Recife,
tendo como problema central da nossa investigação a análise de como e por que essas
crianças e jovens que viviam no mundo das ruas e/ou do trabalho foram recolhidas na
Casa de Detenção do Recife, nas escolas correcionais e em outras instituições de
confinamento, durante o período de 1927 a 1937. A delimitação cronológica da nossa
pesquisa se justifica por ser 1927 o ano da promulgação do Código de Menores, quando
vamos analisar como os desdobramentos da criação desse aparato jurídico e assistencial
nos seus primeiros dez anos. O ano de 1937 marca o fim do governo constitucional de
Getúlio Vargas e o término da interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti em
Pernambuco. O Código de Menores de 1927, marco histórico da assistência à infância
no Brasil, nasce dos interesses desses setores da sociedade, sob a égide da moral
burguesa, das medidas punitivas e disciplinares construídas a partir da gica policial,
sendo legitimado pelo discurso científico dos especialistas da infância. Contudo, não
podemos deixar de lembrar que frente às medidas disciplinares existiu a antidisciplina,
frente às estratégias de controle e coerção existiam as mais diferentes táticas de driblar
as normas e os códigos impostos. Problematizar a infância e o universo que a norteia é
descobrir mundos inexplorados, onde as brincadeiras e as estripulias podem ser
confrontadas com as mais variadas práticas de controle e coerção. A partir dessa
perspectiva, construir a história desses meninos nos leva a investigar o lugar dos
excluídos na história.
Palavras – Chave
História Social da Infância
Meninos do Recife
Assistência à Infância no Recife
Código de Menores de 1927
18
ABSTRACT
The documents that portray the world of childhood on the streets of Recife and in
prisons show the stories of boys. Boys sellers of newspapers on the streets of Recife,
where many of them were caught by trams at work, boys loaded freight, boys who theft
food in the St. Joseph market, boys involved in fights, injury and even death. The child
it was "minor", receiving nothing worthy names such as idle, thief and criminal. The
objective of our work is research in the field of history the daily lives of the boys in the
streets and prisons of Recife, with the central problem of our research analysis of how
and why these children and young people who lived in the world of the streets and / or
work were gathered in the House of Detention of Recife, in schools and other
correctional institutions of confinement, during the period from 1927 to 1937. The
chronological boundaries of our research is justified for 1927 be the year of the
promulgation of the Code of Minors, when we examine the unfolding as the creation of
this apparatus and legal assistance in its first ten years. The year 1937 marks the end of
the constitutional government of Getúlio Vargas and the end of management of Carlos
de Lima Cavalcanti in Pernambuco. The Code of Minors of 1927, landmark of the care
of children in Brazil, born of the interests of those sectors of society, under the aegis of
the bourgeois morality, from punitive measures and disciplinary built from the logic
police, and legitimized by the scientific discourse of experts of childhood. However, we
must remember that in the face of disciplinary measures existed the no disciplinary,
forward the strategies of control and coercion exists a wide range of tactics to
circumvent the rules and tax codes. Understand the problem of children and that the
universe is guided discover unexploited worlds, where the games and bold actions may
be confronted with the most diverse practices of control and coercion. From that
perspective, build the story of these boys comes to investigate the place of the excluded
in history.
19
INTRODUÇÃO
Recife, março de 2007. Era uma manhã de quinta-feira quando nos
encaminhamos para o Arquivo Público do Estado de Pernambuco. O objetivo era
iniciarmos as nossas pesquisas no Acervo da Casa de Detenção do Recife. Um dia atrás,
em uma das reuniões de orientação, ficou acordado que estava na hora de irmos ao
encontro das crianças que foram detidas no grande Presídio, construído no centro do
Recife, às margens do Rio Capibaribe.
Ao chegarmos ao Arquivo tivemos que reorganizar a dinâmica da nossa
pesquisa, haja vista que o acervo da Casa de Detenção não estava catalogado.
Atenciosos, os historiadores/arquivistas Hildo Leal da Rosa e Marcília Gama nos
conduziram aos prontuários individuais dos detentos: centenas de pacotes colocados em
várias estantes, separados apenas pela letra inicial do primeiro nome do prontuariado.
Um grande desafio, que nos fez lembrarmos a fala do historiador francês Marc Bloch,
quando afirmou que para realizar o seu trabalho, muitas vezes o historiador pode se
assemelhar ao monstro da lenda, “onde farejar a carne humana é que está a sua caça”.
1
Naquele momento, iniciamos a caça.
Cada prontuário era aberto a partir da esperança de encontrá-los. No primeiro
dia, custou, mas, duas crianças apareceram. Eram dois meninos que foram presos por
motivo de briga seguida de ferimento. Os prontuários traziam pouca informação sobre
quem eram e como foi construído o cotidiano dessas crianças na Casa de Detenção,
fazendo com que a alegria fosse acompanhada com certa frustração. Contudo,
prosseguimos a busca.
Nos dias seguintes eles foram aparecendo... Encontrá-los era sempre motivo de
festa, algo que causava certo estranhamento em alguns funcionários, que sempre
afirmavam que historiadores tinham “manias engraçadas” ou “estranhas”. Os
prontuários falavam dos crimes e das ações das crianças de forma objetiva, quase
“telegráfica”. Os documentos ali arquivados nos permitiam apenas saber o tempo que
cada criança permaneceu na Casa e para onde foram conduzidas.
Contudo, entre os sessenta prontuários encontrados, depois de dois meses de
trabalho, observamos que em alguns, encontrava-se em anexo a Guia de Sentença, um
documento que detalhava como aconteceu o crime, quais os agentes sociais envolvidos
e como a criança foi punida. Esses documentos não nos satisfaziam, não respondiam as
1
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicação Europa-América, 1976.
20
nossas perguntas, mas, levaram-nos à procura de outros documentos a fim de
realizarmos uma História Social dessas crianças que viviam nas ruas do Recife
trabalhando, mendigando ou cometendo práticas consideradas ilícitas para a sociedade
da época.
A infância como questão de estudo: nosso problema, nossa pesquisa
O objetivo do nosso trabalho consiste em historicizar o cotidiano dos meninos
nas ruas e nas prisões do Recife, tendo como problema central da nossa investigação a
análise de como e por que essas crianças e jovens que viviam no mundo das ruas e/ou
do trabalho foram recolhidas na Casa de Detenção do Recife, nas escolas correcionais e
em outras instituições de confinamento, durante o período de 1927 a 1937.
A delimitação cronológica da nossa pesquisa se justifica por ser 1927 o ano da
promulgação do Código de Menores, e a partir daí pretendemos analisar como os
desdobramentos da criação desse aparato jurídico e assistencial foi operacionalizado em
seus primeiros dez anos. O ano de 1937 marca o fim do governo constitucional de
Getúlio Vargas e o término da interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti em
Pernambuco. Em 1937, com a implantação do Estado Novo, observamos que as
políticas voltadas para infância passam a ser construídas a partir de outro prisma, uma
vez que o governo ditatorial é instituído e com ele uma série de mudanças sociais foram
efetivadas.
Ao discutir as políticas assistenciais voltadas para a questão da infância no
Brasil República, a historiadora Maria Luisa Marcílio nos afirma que:
A distinção entre criança rica e a criança pobre ficou bem delineada.
A primeira é alvo de atenções e das políticas da família e da
educação, com o objetivo de prepará-la para dirigir a sociedade. A
segunda, virtualmente inserida nas ‘classes perigosas’ e estigmatizada
como menor’, deveria ser objeto de controle especial, de educação
elementar e profissionalizante, que a preparasse para o mundo do
trabalho. Disso cuidaram com atenção os médicos higienistas e os
juristas das primeiras décadas deste século.
2
Desse modo, o Código de Menores de 1927 representou o primeiro aparato
jurídico e assistencial voltado para a infância no Brasil. Elaborado pelo jurista Melo
Mattos, primeiro Juiz de Menores do Brasil, o Código foi composto por onze capítulos
2
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 224
21
voltados para a questão da assistência das “crianças da primeira idade” até aos 18 anos,
quando questões pertinentes aos “infantes expostos”, abandonados, delinqüentes e às
crianças inseridas no mundo do trabalho passaram a ser visto como um problema de
ordem legal. Promulgado em 12 de outubro de 1927, este dispositivo jurídico
consolidava as leis de assistência e proteção às crianças e jovens em nível nacional.
Os estudos do sociólogo Marcos César Alvarez referentes ao Código de Menores
de 1927 nos indica que desde o início do Brasil República várias iniciativas foram
efetivadas no sentido de construir uma legislação voltada aos problemas da infância,
uma vez que desde o período imperial as estratégias de institucionalização da assistência
à infância em nosso país eram criticadas por não resolver os problemas concernentes
à infância empobrecida, desvalida, exposta ou abandonada. De acordo com Alvarez,
Mello Mattos reuniu sua experiência como criminalista, filantropo e
juiz de menores para sintetizar, em forma de lei, um novo projeto de
institucionalização da infância e adolescência, que estava presente
em muitos discursos que circulavam, então, na sociedade (...) Mello
Mattos uniu essas novas idéias de mudanças na jurisprudência que,
desde o inicio do culo XX, tentavam dar conta dos novos
problemas relativos à menoridade nos grandes centros urbanos, para
criar, assim, uma legislação especial para a assistência e proteção aos
menores.
3
Na época de sua promulgação, os grandes centros urbanos do Brasil enfrentavam
os mais diferentes problemas sociais frente à onda do crescimento comercial e
industrial. As ruas das grandes cidades conviviam com a ameaça das crianças e jovens
que transitavam no mundo do abandono e da delinqüência. Representantes das elites da
época cobravam do Estado medidas normatizadoras para conter as ameaças causadas
pelos chamados menores que viviam em risco ou que representava o próprio risco para
o projeto burguês de sociedade. Por outro lado, médicos, filantropos e educadores,
buscavam discutir qual o caminho para solucionar os problemas relacionados às
crianças que viviam nesse universo de exclusão.
O Código de Menores de 1927, marco histórico da assistência à infância no
Brasil, nasce dos interesses desses setores da sociedade, sob a égide da moral burguesa,
das medidas punitivas e disciplinares construídas a partir da lógica policial, sendo
3
ALVAREZ, Marcos César. A emergência do Código de Menores de 1927: uma análise do discurso
jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores. 1989. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São
Paulo: 1989. p. 59
22
legitimado pelo discurso científico dos especialistas da infância. A partir da construção
deste Código, a classificação de categorias jurídicas sobre os meninos e meninas, a
criação dos juizados e o fortalecimento do papel do juiz, a criação das colônias e escolas
correcionais, a implantação da “liberdade vigiada” e outras artes de viver o controle,
vigilância e punição sobre as crianças e jovens foram instituídos.
Debruçar-se sobre a história do Código de Menores de 1927 e das crianças e
jovens que passaram a ser “sujeitos de direito”, faz-nos discutir as contradições sociais
em que eles estavam inseridos. No plano local, o Recife das décadas de 1920 e 1930
se apresentava como uma cidade marcada pelo expressivo aumento do desemprego, da
prostituição e da delinqüência, quando crianças e jovens faziam parte deste universo
social. A cidade que se metropolizava, vivia com intensos problemas sociais, quando o
crescimento industrial e demográfico, trouxeram consigo as mais diferentes formas de
desigualdades sociais. Durante o nosso trabalho, teremos oportunidade de discutir como
o Código de Menores de 1927 foi inserido no universo social de Recife.
Os caminhos que conduziram este trabalho nos levaram à tomada de várias
decisões. A operação historiográfica não consiste na simples práticas de selecionar e
analisar documentos, ela requer do historiador um compromisso efetivo com a sua
questão de estudos e com os agentes sociais, as pessoas, que integram a sua trama.
Nesse sentido, optamos por realizar uma história dos meninos do Recife e buscaremos
explicar o motivo da nossa escolha.
Quem são essas crianças que buscamos historicizar? O que dizem deles? Ao
discutir o desafio de se construir uma história dos excluídos, Michelle Perrot ressalta as
dificuldades do historiador, destacando o problema dos arquivos, uma vez que boa parte
da documentação institucional, por mais abundante que seja, é encoberta por “um véu
do ocultamento, um discurso de onde os prisioneiros estão ausentes”. Para a
historiadora, esses documentos são produzidos/elaborados a partir da lógica do poder
coercitivo e punitivo, quando os “verdadeiros rebeldes são raros; pelo menos não
escrevem”. Desse modo, Perrot destaca que os excluídos, “desaparecidos de sua
história, têm de ser rastreados no que se diz deles”.
4
Em 19 de outubro de 1937, o Juiz de Menores Rodolfo Aureliano publicou um
Comunicado no Jornal do Commercio, no qual trazia um debate sobre a importância de
se criar estabelecimentos para abrigo e correção de crianças e jovens que viviam em
4
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
23
situação de risco ou que representavam o próprio risco para sociedade da época. Neste
Comunicado, o Juizado afirmava que as escolas e colônias correcionais tinham duas
funções principais:
1) Preparar as crianças abandonadas para a vida social armando-as
dos conhecimentos práticos imprescindíveis ao desempenho de
profissões honestas e dos preceitos morais que serão o sustentáculo
de sua ulterior conduta de homens pobres;
2) Reintegrar os menores delinqüentes no convívio da sociedade
após a correção dos defeitos, vícios, erros de educação, fatores
endógenos e influencias nocivas de determinarem sua conduta anti-
social.
5
Foi seguindo esses princípios que o Estado e setores da sociedade daquela época
construíram uma campanha voltada para o controle e coerção das crianças e jovens do
Recife que se inseriam no contexto do abandono, exploração do trabalho, criminalidade
e outras formas de exclusão social. Esta campanha esteve direcionada para os meninos,
e esta afirmação aparece claramente no discurso do Juizado de Menores, quando o
Estado buscava “aplicar” medidas de caráter correcional/disciplinara para tornar esses
garotos em “homens pobres” honestos e doutrinados para servir à Nação.
Em um outro documento publicado neste mesmo periódico em abril de 1938, o
Juizado de Menores trazia o seguinte questionamento como título da matéria: Por que
os meninos furtam? O artigo trazia os números dos delitos caudados pelas crianças,
ocorridos em 1937, quando afirmava que 85% dos delitos eram cometidos por meninos
contra 15% praticados por meninas.
6
Para o Juizado de Menores, era necessário um
investimentos em políticas assistenciais no combate aos furtos praticados pelos meninos
do Recife, reafirmando a
Necessidade de se estudar os meninos que furtam levando em conta
que essas práticas foram numerosas e raras, as condições que
cercaram semelhantes atos, o estado mental desses menores, suas
reações anteriores e presente, o meio que viviam.
7
O Juizado de Menores passou a promover uma série de políticas assistenciais
voltadas para assistência desses meninos. As escolas correcionais construídas na capital
e no interior de Pernambuco na década de 1930 marcaram uma nova dinâmica de
5
Jornal do Commercio. Comunicado do Juizado de Menores. Recife, 19 de agosto de 1937. p. 04.
6
Jornal do Commercio. Por que os meninos furtam? Recife, 05 de abril de 1938. p. 07.
7
Idem.
24
institucionalização da assistência à infância no Estado. Através do ensino
profissionalizante, centenas de garotos foram encaminhados às oficinas de carpintaria,
sapataria, marcenaria. Por meio da perspectiva do controle e disciplina, o Estado buscou
disciplinar o cotidiano dos meninos, impondo padrões de comportamento e sentimento.
Contudo, não podemos deixar de registrar que a interventoria de Carlos de Lima
Cavalcanti também criou iniciativas voltadas para atender as meninas. De acordo com o
Relatório apresentado pela Interventoria à Assembléia Legislativa do Estado de
Pernambuco, em agosto de 1937, podemos perceber que a procura pelos serviços das
escolas eram expressiva. As escolas pertenciam ao Departamento de Ensino profissional
e foram criada para preparar as moças para as tarefas do lar.
8
A criação da Escola
Doméstica e da Escola Técnica Profissional Feminina foram exemplos que merecem
uma atenção da nossa parte, uma vez que a partir dos discursos podemos analisar como
foram construías as políticas assistenciais para meninos e meninas.
Como nos fala a historiadora Maria Izilda Santos, no inicio do século XX, a
construção das representações do feminino e do masculino foi marcada pela afirmativa
que “ao homem se reservava à esfera pública e à mulher o mundo privado (...) Aos
homens caberia enfrentar a competitividade do mundo público, enquanto as mulheres
deveriam continuar voltadas para o privado, tendo a maternidade o ponto definidor da
feminilidade”.
9
O Estado buscava estabelecer os perfis sociais de gênero através de
suas políticas assistenciais. Para os meninos pobres ou envolvidos no mundo da
criminalidade, a criação de escolas e colônias correcionais, a partir de uma lógica
disciplinar e corretiva. Para as meninas, a educação doméstica, a fim de torná-las mães e
esposas prendadas.
A historiografia contemporânea tem se preocupado com o debate sobre as
relações de gênero. As preocupações dos historiadores do final do século XX
privilegiaram o debate que problematizava como a história foi construída nas relações
entre homens x mulheres, mulheres x mulheres e homens x homens, entendendo gênero
como uma “categoria para a análise histórica” a partir de sua dinâmica relacional. De
acordo com Joan Scott, gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
8
Anaes da Assembléia Legislativa. Sessão de 1 de agosto de 1937. Acervo: Assembléia Legislativa do
Estado de Pernambuco.
9
MATOS, Maria Izilda Santos de. Delineando corpos: as representações do feminino e do masculino no
discurso médico (São Paulo). In: MATOS, M. I. & SOIHET, R. (Orgs) O corpo feminino em debate. São
Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 122-123
25
nas diferenças percebidas entre os sexo, e o gênero é uma forma primeira de significar
as relações de poder”.
10
Podemos encontrar nos estudos do historiador Durval Muniz uma reflexão
voltada para o surgimento da feminização da sociedade, mais notadamente nordestina,
que a levou a repensar como as relações entre os homens e as mulheres estavam sendo
pautadas. Para Muniz, as primeiras décadas do século XX foi um período marcado pelos
debates referentes ao papel deste homem e desta mulher no mundo moderno. Frente ao
processo de feminização, ao homem foi exigido ocupar o lugar estratégico da sociedade,
com valentia e coragem. Sobre as costas desses homens, passou a recair a
responsabilidade de sustentar a si e a família, com valentia e virilidade, através do
trabalho.
11
Desse modo, não podemos entender as políticas de assistência à infância no
Recife distante deste debate, uma vez que a prioridade do Estado era criar meios de
controle sobre os meninos oriundos das classes populares, mais notadamente àqueles
classificados como vadios, gatunos e abandonados, uma vez que eles representavam
uma ameaça para sociedade da época e atender as novas demandas econômicas e
sociais, ao contemplar, por exemplo, as meninas no âmbito do mundo profissional e
moderno.
As ruas da cidade se apresentavam como um mundo onde meninos e homens
realizavam muitas vezes as mesmas atividades profissionais ou dividiam o mesmo
espaço para efetivar as mais diferentes práticas em nome da sobrevivência, quando
muitas dessas práticas eram consideradas ilícitas. Os documentos que retratam o mundo
da infância nas ruas do Recife e nas prisões, são documentos que nos falam de histórias
de meninos. Meninos que vendiam jornais nas ruas do Recife, quando muitos deles
eram atropelados pelos bondes durante o trabalho; meninos que carregaram frete;
meninos que furtavam comida no Mercado de o José; meninos envolvidos em brigas
de ferimento e até de morte. Meninos que se tornaram “menores” e que passaram a
carregar a pecha de vagabundo, gatuno, vadio e delinqüente. São esses meninos que
protagonizam a nossa história.
10
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Recife: SOS Corpo, 1996. p. 11.
11
ALBURQUEQUE, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo (um história do gênero
masculino – Nordeste 1920-1940). Maceió: Edições Catavento, 2003.
26
Discutindo a historiografia
As investigações historiográficas sobre a infância no Brasil estão profundamente
relacionadas à influência das vertentes teóricas européias, mais notadamente da Escola
dos Annales; ao avanço das pesquisas da psicologia social e do desenvolvimento; e ao
próprio contexto cultural nacional que, desde a segunda metade do século XX, vêm
produzindo uma discussão acerca das políticas públicas voltadas para o problema da
assistência à infância. Todavia, nas primeiras cadas dos novecentos, Gilberto Freyre
alertara-nos para a importância do estudo da criança, de uma “história da vida do
menino no Brasil”, denunciando em Tempo de Aprendiz a ausência de estudos acerca
desta temática e afirmando que “todo espaço, as histórias convencionais - em todas até
hoje escritas - é ou tem sido pouco para a glorificação dos adultos (...) Não
compreensão possível do homem, deixando-se procurar compreender a mulher e o
menino”.
12
Neste período, a publicação no Brasil da obra História Social da Criança e da
Família, do historiador francês Philippe Ariès, influenciou de forma efetiva os
historiadores brasileiros no sentido de se construir uma historia voltada para os temas
família e infância.
13
Pertencente a terceira geração dos Annales, Ariès construiu a sua
obra sob a perspectiva da história das mentalidades, sofrendo as críticas que os trabalhos
desta geração, como o da fragmentação e pulverização da análise histórica.
14
Contudo,
não podemos deixar de registrar a importância desta obra, uma vez que ela se apresenta
como um dos primeiros estudos voltados para criança e para família na Europa
Ocidental.
Os primeiros estudos que contemplaram a questão da infância no século XX no
Brasil foram influenciados por outros referenciais teóricos, tendo como foco principal o
cotidiano de crianças e jovens no mundo do trabalho. Não podemos deixar de entender
este momento da historiografia nacional distante da sua historicidade, uma vez que o
final da década de 1970 foi marcado pelo avanço das políticas públicas voltadas para a
infância, mais notadamente direcionadas para as crianças e jovens que viviam nos
grandes centros urbanos, influenciando de forma efetiva a produção de pesquisas na
área do conhecimento histórico e das ciências sociais.
12
FREYRE, G. Tempo de Aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira
mocidade do autor: 1918-1926. São Paulo: IBRASA, 1979.
13
ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LCT, 1981.
14
As críticas construídas sobre a Escola dos Annales podem ser observadas na obra de José Carlos Reis.
In: REIS, J. C. Escola dos Annales: a Inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
27
O ano de 1978 também foi considerado o Ano Internacional da Criança, sendo
marcado por uma série de programas assistenciais e debates passaram a ser executados,
fomentando a discussão sobre a assistência à infância, nos mais diferentes setores da
sociedade brasileira.
15
A criação do Código de Menores de 1979, por exemplo, marca
um momento de mudança no pensamento jurídico e assistencial, contribuindo para o
avanço das discussões sobre as políticas públicas para as crianças e jovens inseridos no
mundo da pobreza e da marginalidade social.
Ao analisar o contexto social vivido por crianças que transitavam no universo da
marginalidade urbana no final dos anos de 1970, na obra Vidas nas ruas: crianças e
adolescentes nas ruas, trajetórias inevitáveis, Irene Rizzini, afirma que neste período,
O problema popularmente conhecido como do menor abandonado
ganhou crescente atenção no Brasil. Este período foi descrito por
muitos como de crise e também como uma importante transição, com
conseqüência para a economia nacional e global. Foi neste período
que o regime ditatorial, instalado com o golpe militar de 1964,
começa a desintegrar-se e proliferam os movimentos sociais e
democráticos; a inflação aumenta, bem como a dívida externa e o
déficit fiscal. O Brasil, que havia alcançado altas taxas de
crescimento, deflagra a sua crise. Os anos de 1980 passam a ser
conhecidos como a década perdida’, sendo caracterizados pelo
crescimento negativo, pela hiperinflação e por enormes dívidas
externas.
16
Desse modo, percebemos que no período da redemocratização, marcado pelo
avanço dos movimentos sociais, os historiadores passaram a estudar o lugar das
mulheres, dos operários e dos movimentos de resistência contra o poder ditatorial
estabelecido. O final dos anos de 1980 também foi marcado pelo avanço das pesquisas
voltadas para questão da família e da mulher, quando as crianças também passaram a
fazer parte das preocupações dos historiadores.
Em 1977, foi defendida no Programa de Pós-Graduação em História Econômica
da Universidade de São Paulo, a dissertação produzida pela historiadora Esmeralda
Moura, O trabalho da mulher e do menor na indústria paulistana (1890/1920),
contribuindo de forma efetiva para a produção da história da infância no período
republicano. Deste trabalho, a autora publicou a obra Mulheres e menores no trabalho
industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital, quando encontramos a
15
PEREIRA, Ivonete. Universo infanto-juvenil: a historicidade da infância no Brasil. In: Anais do
XXIV Simpósio Nacional de História. São Leopoldo: Associação Nacional de História, 2007.
16
RIZZINI, Irene. Vidas nas ruas: crianças e adolescentes nas ruas – trajetórias inevitáveis? Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p 18.
28
análise sobre as condições das crianças e adolescentes que vivenciaram a exploração do
trabalho industrial, na cidade de São Paulo e como os anarquistas e organizações
operárias reivindicaram a efetivação das leis voltadas para garantia de melhores
condições de vida para os “pequenos” operários que viviam a exclusão social.
17
A questão da exploração do trabalho infantil nos primeiros anos do Brasil
República também foi analisada no trabalho de Margareth Rago na obra Do cabaré ao
lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930, que teve sua primeira publicação
em 1985. Entre os problemas das “resistências cotidianas do proletariado”, da
“colonização da mulher” e da “desorganização do espaço urbano”, destaca-se o lugar da
“preservação da infância” no cenário social e político do Brasil marcado pelo avanço do
crescimento industrial.
18
A partir da análise de Margareth Rago, observamos que a
cidade dos adultos também era a cidade das crianças que vivenciavam as mais
diferentes formas de exploração, promovida pela lógica capitalista das relações de
trabalho.
Neste trabalho, a autora defende a idéia que na “constituição da família nuclear
moderna, higiênica e privativa”, a criança passou a desempenhar um papel de destaque,
quando influenciou, inclusive, no surgimento de novos saberes científicos e de políticas
públicas voltadas para a questão infância. Este poder que buscava disciplinar a cidade e
os citadinos, passou a estabelecer normas de controle e coerção sobre o cotidiano das
pessoas que transitavam às margens da sociedade, inclusive as crianças. Contudo, esta
“cidade disciplinar”, espaço que abrigava as indústrias também foi o lugar onde viviam
as “pobres criancinhas espancadas, humilhadas, exploradas por este mundo do adulto
vil, ignóbil, desumano...”.
19
Contudo, estas crianças resistiam das mais diferentes
formas, uma vez que as pesquisas levou-a a considerar que
a resistência das crianças no interior do processo de trabalho não se
manifesta apenas na forma da deserção ou fuga ao trabalho, no ‘freio’
à produção nas prováveis brincadeiras não constadas que tornavam os
contramestres tão furiosos e violentos sobre os menores.
20
17
MOURA, Esmeralda. O trabalho da mulher e do menor na indústria paulistana (1890/1920). 1977
(Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São
Paulo – USP. São Paulo, 1977.
18
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). 3. Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
19
Idem. P. 135
20
Idem. P. 145.
29
Nesse sentido, podemos observar que o lugar social das crianças e jovens que
vivenciavam a exploração do trabalho industrial foi marcado por práticas de exclusão e
resistência, sendo construída através das greves organizadas pelos adultos e/ou nas
sutilezas do convívio social. Esta pesquisa possui uma importante relevância por nos
levar a conhecer os mais diferentes modos de superar as injustiças impostas pela gica
do mundo fabril, o cotidiano dos “pequenos” trabalhadores foi marcado pela luta de
enfrentar os mais diferentes desafios, entre eles, o das condições insalubres de trabalho,
a longa jornada que superavam às 8 horas, entre outros problemas.
Cabe ressaltar que os trabalhos das historiadoras Esmeralda Moura e Margareth
Rago dialogam em rios aspectos. Entre eles, a discussão sobre o papel da mulher na
sociedade, durante os primeiros anos do Brasil República. A efervescência social e
cultural da sociedade brasileira do final do século XX influenciou de forma efetiva nas
transformações nas relações de gênero no Brasil e foi neste contexto que assistimos as
transformações sociais nas relações da família e na condição da maternidade. Esta
conjuntura possibilitou o surgimento de pesquisas mais sistematizadas no campo da
história e das ciências sociais acerca do lugar da mulher neste novo contexto social e
político.
A base empírica desses trabalhos nos leva a perceber as semelhanças da
tipologia documental utilizada nas duas pesquisas. Através da imprensa operária, dos
jornais produzidos pelo movimento anarquista, dos boletins das greves e dos relatos de
memórias, as historiadoras analisaram o lugar social das crianças e jovens no mundo da
produção fabril, durante as primeiras décadas do século XX. Esses documentos, antes
negligenciados pela historiografia tradicional, serviram como indícios para construção
de uma história da infância. A partir destes registros, foram analisados como os mais
diferentes setores da sociedade, passaram a construir as imagens e representações sobre
a infância no mundo do trabalho.
Debruçar-se sobre os trabalhos de Moura e Rago, faz-nos perceber um mundo
além dos muros das fábricas. Motivadas pela influência dos historiadores ingleses, mais
notadamente E. P. Thompson, o mundo das crianças foi historicizado através das
práticas resistência dos pequenos trabalhadores, construídas no cotidiano. Não podemos
deixar de lembrar que no período que estes trabalhos foram publicados foi marcado pelo
avanço das produções construídas a partir das idéias da historiografia inglesa.
30
O próprio Thompson, ao construir uma história da Formação da classe operária
inglesa, não deixou de contemplar a presença das crianças no mundo fabril. No segundo
volume desta obra, o historiador britânico nos afirma:
Nas fábricas, a força de trabalho infantil e juvenil crescia a cada ano;
em diverso dos ofícios ‘indignos’ ou relacionados com o trabalho
externo, seu trabalho tornava-se mais intenso, e a jornada, mais
longa. (...) O trabalho infantil não era novidade. A criança era uma
parte intrínseca da economia industrial e agrícola antes de 1780, e
como tal permaneceu até ser resgatada pela escola. Cerca acusações –
como a dos limpadores de chaminés ou a dos garotos empregados em
navios eram provavelmente piores do que as funções mais árduas
desempenhadas nas primeiras fábricas...
21
O texto de Thompson nos leva à Inglaterra da “Revolução Industrial” e nos faz
pensar como os pequenos trabalhadores enfrentaram aquele universo de exploração de
mão-de-obra infantil e as experiências vivenciadas dos meninos e meninas que
enfrentaram uma longa jornada de trabalho, mal nutridas, distantes dos bancos escolares
e dos momentos de lazer. Thompson se apresenta como uma grande referência nos
trabalhos sobre as relações sociais de trabalho e influenciou de forma efetiva na
construção das pesquisas de Rago e Moura.
Através da perspectiva da História Social Inglesa, as autoras buscaram seguir a
nova tendência marxista no campo dos saberes históricos. Desse modo, as contradições
passaram a ser vistas a partir de um outro ângulo, quando a questão das lutas de classes,
das contradições sociais construídas historicamente, deixaram de ser observadas apenas
sob ponto de vista econômico e político.
O trabalho de Margareth Rago sofreu várias críticas por ter colocado, no mesmo
plano de análise, os pensamentos divergentes de Thompson e Michel Foucault. A
utilização das diferentes perspectivas teóricas na mesma seara de debate, mais
notadamente sobre o conceito de classe, provocou uma forte polêmica, quando alguns
historiadores recusaram tal aproximação. Em 1990, Margareth Rago responde as
críticas, em um artigo publicado na Revista do Curso de Pós-Graduação em História da
Universidade o Rio grande do Sul, quando afirmou que
Menos brutal foi a aproximação do filósofo com os historiadores
marxistas inglesas, como Thompson, e me refiro a mim mesma
21
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. Volume
II. Rio de Janeiro: 1987. p. 203.
31
porque fiz esta aproximação. Ao mesmo tempo que me deslumbrava
com Foucault, eu me fascinada com Thompson e ficava num dilema
muito grande por não saber de qual dos dois gostava mais. Mas
naquela época, estávamos ainda tomando contato com os autores e a
questão não estava tão precisa como hoje. Não foi eu que fiz este
casamento, porém concordo que são casamentos impossíveis. Penso
então que nestes trabalhos oscilaram entre uma história genealógica,
em que os agentes sociais aparecem como efeitos do poder e da
emergência de saberes, e a valorização das suas exigências sociais
numa atitude militante, nitidamente preocupada em realçar a
importância da ação do sujeito na história.
22
Entre dúvidas e hesitações, a historiadora Margareth Rago produziu uma obra
que nos leva a perceber a influência de Thompson e Foucault no Brasil no início dos
anos de 1980. Toda obra é datada historicamente. Nos dias atuais, escutamos o
discurso do “contra o método”, quando alguns teóricos pensam na possibilidade de
realizar este tal “casamento”.
23
Acreditamos que podemos, sim, utilizar diferentes
referenciais no mesmo trabalho, respeitando o sentido teórico e político de cada
perspectiva, ou seja, uma investigação histórica pode nos conduzir a diferentes formas
de olhares que podem se cruzar em um dado momento. Cabe ao historiador saber
discernir como utilizar estes referenciais sem comprometer a integridade teórica da
pesquisa.
Através dos trabalhos produzidos pelas historiadoras Margareth Rago e
Esmeralda Moura, percebemos que o lugar historiográfico destes trabalhos foi marcado
pela contribuição aos estudos voltados para os agentes sociais que viviam múltiplas
formas de exclusão. As crianças pobres, trabalhadoras e que vivenciavam os mais
diferentes tipos de exploração, ocupam um lugar privilegiado nas obras que procuraram
analisar o lugar da mulher, do operário e de outros agentes sociais que transitavam no
mundo da exclusão promovida pela lógica perversa de um crescimento urbano e
industrial que não garantia a qualidade de vida para todos.
Os anos de 1990 foram marcados pelo efetivo avanço das pesquisas no campo da
história social das crianças e jovens que enfrentavam a criminalidade, o abandono, a
exploração sexual e de trabalho. Neste período, podemos afirmar que a historiografia
das regiões Sul e Sudeste do país, passou a construir uma análise mais sistematizada
22
RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia brasileira contemporânea.
In: Anos 90 - Revista do Curso de Pós-Graduação em História - UFRGS. N. 1. Porto Alegre, 1993. p.
133.
23
Segundo Feyerabend, nenhuma explicação científica é definitiva, fazendo com que o diálogo de várias
correntes teóricas e metodológicas seja salutar para a construção de uma análise de cunho científico. Ver:
FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
32
sobre a história de crianças que vivenciaram as transformações sociais e urbanas nos
início do século XX no Brasil.
Em 1991, foi lançada a primeira coletânea organizada pela historiadora Mary
Del Priore, tendo o título de História da Criança no Brasil. Os trabalhos reunidos na
mesma coletânea nos possibilitaram vislumbrar como o problema da infância operária e
da discussão sobre o conceito do menor merecem ser discutidos, uma vez que estes
artigos nos abrem caminhos para diferentes pontos de análise. Nesta obra, dos nove
artigos publicados, um se volta para o problema da infância operária brasileira no início
do século XX.
24
Referimo-nos ao artigo Infância operária e acidente do trabalho em São Paulo,
da historiadora Esmeralda Moura, que aborda a questão da exploração do trabalho
infantil na cidade de São Paulo. Nele, a historiadora destaca a questão da segurança de
trabalho nas fábricas e oficinas de uma cidade que vivia o crescimento industrial,
quando um dos seus desdobramentos foi a criação de associações e entidades voltadas
para a assistência do menor trabalhador, que possuíam “a máquina como um
brinquedo”. Outras experiências foram vivenciadas pelos operários paulistanos naquele
período foram historicizadas neste artigo.
No ano de 2004, assistimos o lançamento da segunda coletânea organizada pela
historiadora Mary Del Priore, Histórias das crianças no Brasil. Entre os trabalhos
presentes, o artigo do historiador Marco Antonio Cabral dos Santos, intitulado Criança
e criminalidade no início do século, traz uma importante contribuição sobre o problema
da infância inserida no universo da criminalidade, durante as primeiras décadas do
século XX, quando focou esta questão para o contexto da cidade de São Paulo. De
acordo com Santos, “o solapamento do sistema escravista e a entrada maciça de mão-
de-obra imigrante resultou numa profunda transformação do quadro social da cidade”.
25
Este contexto social e político, foi marcado pelo avanço do número de crianças
envolvidas no mundo da marginalidade. Através de textos e imagens, Santos discute as
24
PRIORE, Mary Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991
.
Esta coletânea
também nos traz o artigo assinado por Fernando Torres Londoño, intitulado A origem do conceito do
menor. Sobre o conceito do sentido e significado atribuído ao termo menor, pretendemos realizar uma
análise mais sistematizada no próximo capítulo, quando discutir a construção da identidade do menor
detento. Cf. LONDOÑO. Fernando Torres. A origem do conceito do
menor. In: PRIORE, Mary Del.
História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991
.
25
SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary
Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p 212.
33
medidas coercitivas utilizadas pelo Estado no sentido de abolir a atuação destas crianças
que representavam um perigo para a sociedade da época.
Destacamos também os trabalhos de Edson Passetti
26
e Irma Rizzini
27
, que
discutiram a problemática das políticas públicas voltadas para as crianças carentes e
trabalhadoras. A questão da pobreza, do desamparo familiar, da prostituição e outros
temas são pintados com cores fortes, evidenciando como o Estado e setores da
sociedade civil construirão, no decorrer da história, a noção de direitos e deveres em
relação às crianças e jovens no Brasil, através de uma abordagem sócio-histórica
Os estudos sobre o problema da infância que transitaram nas esferas marginais
das grandes cidades brasileiras no início do século XX, também receberam a forte
colaboração da antropologia histórica e da sociologia. O trabalho de Adriana de
Resende Vianna, O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-
1930, representa uma importante contribuição para os estudos que se debruçam sobre
esta temática. A partir da perspectiva da antropologia histórica, utilizando-se de um rico
acervo documental, Vianna passou a discutir como o problema de crianças e jovens que
viviam nas ruas do Rio de Janeiro passou a ser um caso de polícia, uma vez que estes
agentes sociais estavam inseridos no mundo da violência e marginalidade urbana.
28
O trabalho de Adriana Vianna também se torna uma referência para as
discussões sobre o conceito de menoridade e sobre as práticas de controle e coerção
utilizadas pelo aparato policial contra os menores. De acordo com o resultado de suas
pesquisas, nas primeiras décadas do século XX, a ação policial sobre as crianças e
jovens foi elaborada no sentido de construir “um personagem social específico,
genericamente denominado menor”.
29
Através desta obra, podemos perceber como a
lógica policial estava presente no discurso e nas medidas assistenciais voltadas para as
crianças e jovens tidas como “delinqüentes”.
No campo da sociologia histórica, o trabalho O século perdido: raízes históricas
das políticas públicas para infância no Brasil, de autoria da pesquisadora Irene Rizzini,
representa uma relevante contribuição para os pesquisadores que se dedicam estudar
esta temática, uma vez que traz à baila a discussão de como foi construído o discurso
26
PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del. História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
27
RIZZINI, Irma. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: PRIORE, Mary Del. História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 376-407.
28
VIANNA, Adriana de Rezende. O mal que se adivinha policia e menoridade no Rio de Janeiro -
1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
29
Idem. P. 167.
34
sobre assistência à infância no Brasil do século XX. Nesta obra, a autora analisa como
foi construído o discurso do Estado sobre as medidas de proteção à infância proposta
pelos reformadores sociais nas primeiras décadas dos novecentos. De acordo com
Rizzini, “a lógica evolucionista positivista da época, vigiar a criança para evitar que ela
se desvie é entendido como parte de uma missão eugênica, cuja meta é de regeneração
da raça humana” e esta lógica esteve presente nas primeiras tentativas de vigiar, deter e
corrigir as crianças e jovens que representavam uma ameaça para a manutenção da
“ordem” e do “progresso” da nação.
30
Não podemos deixar de registrar que este trabalho nasceu de um projeto maior,
coordenados pelas irmãs Irma e Irene Rizzini, do Centro Internacional de Estudos e
Pesquisas sobre a Infância CIESPI. A trajetória intelectual das coordenadoras deste
projeto, que possuem formação acadêmica na área da psicologia e serviço social, é
fortemente marcada por promover parcerias interinstitucionais voltadas para questão da
assistência à infância. Nesse sentido, a obra O século perdido foi elaborada a partir de
uma perspectiva interdisciplinar, de uma longa duração temporal, quando foram
utilizados diferentes perspectivas teóricas na tentativa de se construir uma história da
assistência à infância no século XX.
Neste trabalho, encontramos uma reflexão sistematizada acerca do surgimento
das medidas de controle e coerção sobre os menores, durante as primeiras décadas do
século XX e do surgimento de políticas públicas voltadas especialmente para os casos
de crianças envolvidas no universo da criminalidade. Esta análise contribui paras as
discussões acerca do surgimento dos primeiros aparatos jurídicos e policiais para os
problemas da infância dita como “delinqüente”.
Nesse sentido, podemos perceber que o final do século XX representou um
“novo tempo” para a historiografia preocupada em estudar a história de crianças e
jovens que vivenciaram o universo da marginalidade urbana. Estudar a relação criança
versus rua, criança versus trabalho urbano, criança versus violência, requer do
historiador a preocupação de dialogar com outras áreas do conhecimento humano. O
exercício interdisciplinar é indispensável para as análises voltadas para a discussão do
problema da infância inserida no mundo das contradições surgidas a partir do
desenvolvimento das grandes cidades.
30
RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora da Universidade Santa Úrsula/ AMAIS, 1997. p. 26
35
Esta análise nos leva a perceber como a escrita da história se constrói a partir de
um universo no qual o historiador esta inserido, afinal, como nos fala Michel de
Certeau, o historiador fala de um lugar social e institucional.
31
Os historiadores que se
dedicaram a estudar a questão das crianças e jovens que vivenciaram os desdobramentos
do crescimento urbano no Brasil, contribuíram de forma efetiva para uma melhor
compreensão sobre os problemas da infância no tempo presente.
Por uma história da Infância em Pernambuco
A cada dia, os estudos sobre a infância ocupam um maior espaço na área do
conhecimento histórico contemporâneo. Problematizar a infância e o universo que a
norteia é descobrir mundos inexplorados, onde as brincadeiras e as estripulias podem
ser confrontadas com as mais variadas práticas de controle e coerção. A partir dessa
perspectiva, historicizar a infância nos leva a investigar o lugar dos excluídos na
história.
A consolidação das pesquisas sobre a história dos meninos e meninas no Brasil
foi construída a partir da organização de grupos de estudos e de trabalho, laboratórios e
outras formas de articulação entre os historiadores da infância. Na cada de 1980 foi
fundado o Núcleo de Estudos Avançados em História Social da Infância, interligado ao
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica do Instituto Franciscano de
Antropologia, da Universidade de São Francisco, em São Paulo. De acordo com Marcos
Cezar de Freitas, o objetivo deste Núcleo, considerado o primeiro do Brasil, era de
reunir “inúmeros investigadores interessados na pesquisa e no estudo acerca da
formação dos campos intelectuais e de duas repercussões na produção e disseminação
de representações sobre a infância na sociedade”.
32
Outro grupo importante foi criado em 1984, o Centro de Estudos de Demografia
Histórica da América Latina CEDHAL, que contemplou em uma das suas linhas de
pesquisas a questão da família e a criança na História Social da População Brasileira.
Organizado pela historiadora Maria Luiza Marcílio, este Centro realizou um importante
31
CETEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
32
FEITAS, Marcos Cezar de. Por uma sociologia histórica da infância no Brasil. IN: História Social da
Infância no Brasil. 6 Ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 9.
36
levantamento de fontes documentais em varias capitais do Brasil, entre elas Recife,
Salvador e Rio de Janeiro.
Em 1984 também foi fundado a Coordenação de Estudos e Pesquisas sobre a
Infância CESPI, sendo criado o Centro de Documentação da Infância – CDI, na
Universidade Santa Úrsula. De acordo com a análise da historiadora Ivonete Pereira, o
Centro reuniu, organizou e disponibilizou “uma infindável série de documentos,
proveniente de diferentes arquivos com a finalidade de estimular e desenvolver
pesquisas sobre a infância pobre no Brasil e em outros países das América Latina, com
vistas à promoção sociais junto a essa população infanto-juvenil”.
33
Este Centro
também se caracterizou por aglutinar pesquisadores de várias áreas do conhecimento
humano, entre eles sociólogos e assistentes sociais.
Em Pernambuco, não um expressivo número de estudos voltados para
História da Infância. Todavia, estamos vivenciando um novo momento com a criação do
Centro de Estudos sobre Infância em Pernambuco - CEIPE, fundado pela historiadora
Alcileide Cabral, na Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 2007. Neste
mesmo ano, foi realizado o Simpósio Memórias da Infância, também na UFRPE, que
teve como objetivo reunir pesquisadores que se interessam pela temática e assim
fomentar um movimento voltado para consolidação dos estudos sobre a infância em
Pernambuco. A partir desta iniciativa foi publicada a coletânea História da Infância em
Pernambuco, que reuniu trabalhos que representaram frutos de dissertações e teses
desenvolvidas no nosso Estado.
34
Este novo momento traz consigo a esperança de se construir um novo tempo
para a historiografia voltada para os estudos de crianças e jovens em Pernambuco e o
nosso trabalho foi construído a partir deste sentimento. Organizamos a nossa dissertação
em quatro capítulos, sendo o primeiro, Recife: cidade inimiga das crianças, dedicado à
análise do lugar social das crianças e jovens nesta cidade, cujo crescimento trouxe
consigo uma série de problemas sociais para as crianças que nela moravam. No
Segundo Capítulo, intitulado Nas fábricas e nas ruas: a infância no mundo do
trabalho, será dedicado a análise do cotidiano dos meninos que vendiam jornais ou
trabalhavam nas fábricas e oficinas da cidade, tendo as memórias de infância de
33
PEREIRA, Ivonete. Universo infanto-juvenil: a historicidade da infância no Brasil. In: Anais do
XXIV Simpósio Nacional de História. São Leopoldo: Associação Nacional de História, 2007 p. 4
34
MIRANDA, Humberto & VASCONCELOS, Maria Emília. História da Infância em Pernambuco.
Recife: Editora da UFPE, 2007.
37
Gregório Bezerra
35
e a literatura de José Lins do Rego, Moleque Ricardo
36
, como fontes
que nos ajudaram a conduzir o enredo deste capítulo. No terceiro capítulo, A
construção da criança problema: a construção da rede de assistência, controle e
coerção sobre a “infância perigosa”, serão analisados os mecanismos de controle e
coerção sobre as crianças e o seu cotidiano na Casa de Detenção. O quarto capítulo,
Caminhos do Recolhimento: a institucionalização da infância no Recife, será
discutido o cotidiano dos meninos na Casa de Detenção do Recife, no Hospital de
Alienados e no Presídio de Fernando de Noronha, locais para onde as crianças e jovens
foram recolhidas após a passagem pela Detenção. Neste Capítulo também será
historicizado a criação da Escola Correcional 5 de Julho no Recife, marco da
institucionalização da infância no século XX.
Colocar em tela as mais diferentes estratégias de institucionalização da
assistência à infância no Recife, leva-nos a falar das escolas-prisões, das estratégias de
repressão e controle construídas sob a égide do ideário normatizador... Contudo, não
podemos deixar de lembrar que frente às medidas disciplinares existiu a antidisciplina,
frente às estratégias de controle e coerção existiam as mais diferentes táticas de driblar
as normas e os códigos impostos. Escrever a história dessas crianças e jovens pode nos
levar a conhecer “outrashistórias antes escondidas pelo “véu do ocultamento” de uma
historiografia tradicional. Desse modo, vamos em frente...
35
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
36
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
38
PRIMEIRO CAPÍTULO
MENINOS DO RECIFE, FILHOS BASTARDOS DO “PROGRESSO”
A Rua da União onde brincava de chicote-queimado e partia vidraças
de casa de Dona Aninha Viegas, Totônio Rodrigues era muito velho e
botava o pincenê na ponta do nariz.
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
mexericos, namoros, risadas.
A gente brincava no meio da rua e os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não Sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa terá morrido em botão...).
37
As memórias de infância de Manoel Bandeira nos fazem refletir as suas
experiências de criança, vivida em um período em que a meninada se divertia nas ruas
da cidade com suas brincadeiras de roda, de esconde-esconde e de boca de forno.
38
Neste poema, Bandeira nos traz a infância como a fase da inocência, as recordações
saudosas da meninice, do tempo em que as tradições coloniais ainda eram vivenciadas
pelos moradores que habitavam os bairros do centro do Recife, no final do século XIX.
Brincar no meio da rua, conversar nas calçadas, dar risadas... As lembranças de
infância de Bandeira nos fazem analisar como foram construídas as relações sociais de
convívio entre as famílias que residiam no centro do Recife. Naquela época, as crianças
se apoderavam das ruas da cidade e as mais diversas brincadeiras faziam parte do seu
cotidiano. Mas, Bandeira não foi o único que rememorou e registrou as suas memórias
de infância. Durante a nossa investigação encontramos o depoimento do advogado e
político pernambucano Paulo Cavalcanti, que ao relembrar momentos de sua infância no
37
BANDEIRA, Manoel. Libertinagem – Estrela da Manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p.
42.
38
Manoel Bandeira escreveu Evocação do Recife, no Rio e Janeiro, no ano de 1924. Em plena
efervescência dos debates modernistas. Mesmo sendo um dos representantes do Movimento Modernista
de São Paulo, Bandeira não deixou de contribuir com as idéias construídas pelo Movimento Regionalista,
articulado por Gilberto Freyre e outros intelectuais do Nordeste do país que, através de suas obras,
passaram a valorizar a questão da tradição e do passado. Podemos encontrar uma reflexão mais
sistematizada sobre essa questão na obra A invenção do Nordeste e outras artes, do historiador Durval
Muniz de Albuquerque Junior. IN: ALBUQUERQUE, D. A invenção do Nordeste e outras artes. São
Paulo: Cortez, 2006.
39
Recife, vivido no bairro da Boa Vista, no final da década de 1930, deixou-nos o
seguinte registro:
Na minha infância e adolescência, era ali o reino do irredentismo,
indomável, gostoso, acolhedor, a garotada jogando pião e empinando
papagaio, os adultos falando de revoluções, as pretas velhas contanto
estórias de Trancoso, as rodas das meninas, alegres, entoando os
passarás, passarás, algum dele de ficar. Teria no máximo uma
oitenta casas, uma venda na esquina e uma fábrica de óleo de algodão
na extremidade que dava para o braço do Rio Capibaribe.
39
Brincar de roda, empinar papagaio, jogar papagaio... Nessas brincadeiras as
crianças cresciam em conjunto, aprendiam coletivamente com os desafios propostas
pelos jogos e dividiam os momentos da vida marcados pelas emoções construídas no
decorrer dos jogos. De acordo com Raquel Zumbano Atman, “por meio dos jogos, a
criança manifesta suas emoções” e “estabelece relações sociais, descobre sua
capacidade de escolher, decidir e participar”.
40
Era o Recife das primeiras décadas do século XX. A cidade que crescia ainda
trazia características dos tempos de outrora. Segundo Cavalcanti, sua infância foi vivida
em uma casa localizada no centro da cidade, perto do Hospital Pedro II, e relembra que
no final da tarde, ele ou um dos seus irmãos “ia esperar o velho que descia do bonde
Hospital Pedro II com grandes embrulhos de café, bolacha, açúcar, manteiga, pão e,
uma vez ou outra, um queijo do Reino, isto nos dias de festa”.
41
Em outro trecho de
seus relatos, as memórias de infância de Cavalcanti também nos levam a perceber que
as crianças que residiam no centro da cidade tinham uma relação de convivências com
as crianças que moravam nos mocambos. Ao relembrar seus dias de estudantes,
Cavalcanti nos fala:
Cheguei à escola de espírito leve, mas curtido de experiências,
deixando para trás, nos mocambos da Ilha do Leite e dos Coelhos,
nos mangues do Capibaribe, um bando de moleque, meus colegas de
travessuras, que continuariam pela vida afora a catar caranguejos para
comer, ajudando os pais nas árduas tarefas do cotidiano, uns
sucedendo aos outros – um ciclo de miséria e sujeira – Onde está, por
exemplo, Biu, forte chutador de bola nas peladas de ponta de rua,
guapo, moreno, falante? Que é de Sebastião, exímio nadador nas
39
CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi: da Coluna Prestes à queda de Arraes
(memórias). Recife: Guararapes, 1980. p. 29.
40
ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na História. IN: PRIORE, Mary Del. História da criança
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. 231-258
41
Ibidem. p. 22.
40
águas da maré-grande, do outro lado do Hospital Dom Pedro II?
Perdi-os de vista. Se sobreviveram à lama da Ilha do Leite, não terão
resistido, talvez o peso dos anos, adultos precoces, aprendizes de
velho nas duras lutas da existência.
42
Em sua escrita de si, Cavalcanti nos faz refletir sobre as suas experiências de
infância e como foram construídas as relações sociais nessa cidade que se transformava
e analisar as trajetórias de vida dos meninos do mangue, seus “companheiros de
travessura”. Nas ruas do Recife, Paulo e seus amigos jogavam bola, nadavam na maré e
realizavam juntos as mais diferentes brincadeiras de criança. Mas, o garoto que
pertencia a uma família burguesa mudou-se de casa com seus parentes, deixando para
traz o convívio com as crianças que moravam nos mocambos da Ilha do Leite. O
menino Paulo matriculou-se em um colégio e as outras crianças do mangue, para onde
foram?
Neste primeiro capítulo iremos discutir o lugar social das crianças nesta cidade
marcada pelas desigualdades sociais. As contradições econômicas se acentuaram,
fazendo com que as ruas do Recife deixassem de ser um espaço onde as crianças das
mais diferentes classes sociais brincavam coletivamente. Nesta cidade marcada por
transformações econômicas, foram construídas novas formas de sociabilidade,
relacionadas ao universo infanto-juvenil.
O Recife, que crescia desordenadamente, trazia consigo marcas do abandono
crianças, da exploração do trabalho infantil, da prostituição e dos altos índices de óbitos
de crianças, que morriam antes de completar a primeira idade. Não podemos deixar de
registrar que, historicizar este cenário de mudanças também nos faz discutir o
surgimento de campanhas organizadas pela sociedade civil, como a Liga Pernambucana
contra a Mortalidade Infantil, em 1927, e a criação do Juizado de Menores, em 1934. É
nesta seara de debate que pretendemos problematizar o lugar social das crianças, nesta
cidade marcada pelas desigualdades sociais.
42
CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi: da Coluna Prestes à queda de Arraes
(memória). Recife: Guararapes, 1980.
41
1.1 - Recife: palco da modernidade, “cidade inimiga dos meninos”
Saí menino de minha terra
Passei trinta anos longe dela
De vez em quando me diziam
Sua terra está completamente mudada
Tem avenidas, tem arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!
Meu coração ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado
É hoje uma bonita cidade.
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra.
43
Em forma de poesia, Bandeira registrou as suas memórias de infância, nas quais
podemos encontrar imagens e representações evocativas sobre o Recife. De acordo com
o olhar do poeta a Cidade tinha mudado. Era o Recife dos anos de 1930, tempo de
Carlos de Lima Cavalcanti e do seu “Governo Revolucionário”; tempo das mudanças
políticas, sociais e econômicas que se refletiam no campo urbanístico.
A cidade já tinha enfrentado várias reformas urbanas iniciadas na segunda
metade dos oitocentos e intensificada durante a Primeira República. Durante o primeiro
triênio do século XX, os projetos urbanistas construídos para cidade se propunham a
fazer do Recife uma cidade modelo, quando uma série de melhoramentos materiais
influenciou significativas mudanças no cotidiano da população. O historiador Flávio
Weinstein Teixeira, ao estudar as transformações urbanísticas da cidade do Recife na
década de 1920, afirma-nos:
São realmente de uma extraordinária riqueza e variedade os
contornos que vieram a ganhar as demandas por ser moderno. A
modernidade impunha desde a necessidade de se ter um porto
modernamente aparelhado e ampliado na suas dimensões, de dispor
de uma ampla rede de esgotos sanitários e fornecimento de água
encanada, de se poder trafegar por ruas largas, calçadas e iluminadas,
até o desejo de se mostrar elegante, ou freqüentar os cinemas que
por essa época começam a proliferar e, mais tarde, reunidos nos
cafés e confeitarias, comentar sobre a admirável interpretação dos
atores ou sobre a extraordinária produção ora em cartaz.
44
43
BANDEIRA, Manuel. Minha terra. In: BANDEIRA, Manoel. Poesias. Rio de janeiro: José Olympio,
1955.
44
TEIXEIRA, Flávio W. As cidades enquanto palco da modernidade: o Recife de princípios do século.
1994. Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife, 1994. P. 54.
42
Este trecho do trabalho produzido por Teixeira, faz-nos refletir que o cotidiano
da cidade era marcado por mudanças que se refletiram no setor econômico, social e
cultural. Essas transformações traduziam como a modernidade “ditava” os padrões de
desenvolvimento e progresso, que por sua vez tinha um expressivo caráter estético e
higiênico/sanitarista. Recife, assim como outras metrópoles do Brasil, pode ser
observada como o “palco da modernidade”.
45
Mas, qual o lugar das nossas crianças e jovens nesse cenário de mudanças? Ao
analisar as transformações urbanas vivenciadas no Recife durante as primeiras décadas
do século XX, o sociólogo Gilberto Freyre nos fala em seu diário de criança e primeira
mocidade, que depois se tornou a obra Tempo Mortos e Outros Tempos, que os espaços
destinados às brincadeiras de crianças estavam desaparecendo e denunciava:
Estamos descobrindo que muitas das crianças do Recife não têm onde
brincar. Que o Recife, com a extensão dos velhos sítios particulares
que não vêm sendo substituídos por parques ou jardins públicos, está
se tornando uma cidade inimiga dos meninos. Sujeitos a ser
esmagados pelos automóveis. Havemos de conseguir o Prefeito que
inicie no Recife, ainda que de modo modesto, um sistema de play
grounds.
46
Gilberto Freyre foi contundente ao afirmar que as crianças do Recife já não
possuíam locais de lazer, tornando-se uma “cidade inimiga dos meninos”. A cidade se
transformava urbanisticamente, fazendo com que os espaços de convívio e brincadeiras
estivessem a cada dia mais reduzido. De acordo com as pesquisas de Raquel Altman,
com o crescimento das cidades brasileiras, os espaços destinadas às brincadeiras das
crianças se tornaram cada vez mais restritos, onde a rua foi “usurpada pelos veículos
cada vez mais velozes”, fazendo com que a garotada passasse em espaço limítrofes
como nos quintais das casas, no pátio dos colégios ou até nos corredores dos edifícios.
47
A falta de espaço para as brincadeiras das crianças foi sentida pela sociedade da
época, fazendo com que o poder público reagisse as inquietações da população. Em
setembro de 1938, a Folha da Manhã, trazia a informação que a Prefeitura estava
estudando as formas de criar parques infantis na cidade, afirmando que:
45
Idem.
46
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira
mocidade (1915-1930). São Paulo: Global, 2006. p. 322
47
ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na História. IN: PRIORE, Mary Del. História da criança
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 231-258
43
A criação de parques para crianças, como fator educacional de relevo,
tem dado ensejo a apreciações justas e oportunas, sendo, atualmente,
objeto de estudos acurados nos principais centros urbanos no país. No
Rio e Em São Paulo, o problema marcha para uma solução definitiva,
o que vale como expressão da importância de que ele se reveste (...)
Entre nós mesmo, já se ensaiou algo nesse sentido, ao tempo da
administração do prefeito Costa Maia, que inaugurou vários parques
em recantos diversos da cidade. O interesse pelos mesmos renasce,
com o Prefeito Novais Filho, que já deus os primeiros passos com o
aproveitamento dos amplos jardins do Derby, onde o movimento de
crianças, às tardes e pelas manhãs, é considerável. Instalados, ali,
jogos e entretenimentos outros, infantis, o jardim do Derby é,
atualmente, o grande centro de atração, aonde acorre a meninada das
escolas recifenses. Outros locais da cidade serão beneficiados com
providencias idênticas. Objetivado este aspecto da questão, poder-se-
á, então, cuidar e aproveita-los na sua formação educativa,
instituindo-se jogos, torneios e festas escolares, dentro de um plano
sistemático e racionalizado.
48
A matéria publicada pelo jornal Folha da Manhã ressalta a preocupação sentida
pelos gestores da Prefeitura da Cidade, que buscavam criar parques infantis para utilizá-
los como espaços para atividades educacionais. Esta matéria, que tinha uma forte
tendência de divulgar os trabalhos do Prefeito Novais Filho, refletia as novas
preocupações da época, onde os lugares das brincadeiras de rua da meninada se
reduziam, enquanto se projetava espaços para crianças se divertir a partir de uma lógica
sistematizada e racionalizada. Nas ruas do Recife não representavam espaços para as
brincadeiras espontâneas da meninada pelas calçadas e esquinas da cidade.
As ruas, que representavam o local das crianças brincarem se tornavam mais
perigosas, uma vez que o número de automóveis era cada vez mais expressivo. Nas
décadas de 1920 e 1930, o número de acidentes provocados por automóveis era
expressivo. Ao mesmo tempo, segundo Jaílson Silva, no Recife dos anos de 1920, ter
um automóvel era um privilégio, a máquina era considerada um símbolo da
modernidade:
Dentre toda uma ampla série de inventos que se estende desde o
último quartel do século XIX até meados da década de 1910, é o
automóvel aquele que aparece melhor exemplificar as transformões
da vida cotidiana engendrada pela modernidade e sua máquina
maravilhosa. Nem os aviões, nem os navios transatlânticos, nem o
telefone adentraram com tanta proficuidade.
49
48
Folha da Manhã. Parques infantis. Recife, 14 de setembro de 1938. p. 04. Apeje.
49
SILVA. Jaílson Pereira. O encanto da velocidade: automóveis, aviões e outras maravilhas no Recife
dos anos 20. 2002. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife:
2002.
44
Em 05 de janeiro de 1930 o Jornal do Commercio trazia a notícia que Anacleto
da Silva, um adolescente de 17 anos de idade, sofreu um acidente quando procurava
saltar do bonde ainda em movimento. A nota trazia a notícia: “esmagado por um bonde:
o fim da vida no começo do dia” e detalhava o acidente:
De volta à cidade, vinha, ontem, pelas 5:30, um bonde da Várzea,
guiado pelo motorneiro 502, e tendo como condutor, o de chapa 843.
Quando o veículo passou pela Avenida Olindense em frente à rua D.
Maria Lacerda, o menor de 17 anos de idade Anacleto Correia da
Silva, ao procurar galga-lo, quando ainda em movimento, fê-lo com
infelicidade, [...] desastradamente. Na queda a vítima teve esmagados
os membros superiores e inferiores, am de graves contusões na
cabeça e no tórax. Dado o sinal de alarme, o motorneiro parou o
veículo imediatamente. Quando recebia os primeiros socorros,
Anacleto faleceu.
50
A notícia ainda trazia a informação que o condutor se evadiu do local do
acidente e que Anacleto era órfão e trabalhava na Fábrica de Malha da rzea, estando
nos últimos tempos aprendendo a dirigir. O caso de Anacleto foi acompanhado pela
polícia do Distrito da Capital. Não sabemos o resultado do processo, levando-nos a
perceber que os desdobramentos da maioria dos casos foram silenciados pelos jornais
da época.
Em janeiro de 1930, o Jornal do Commercio divulgava outro caso envolvendo
uma criança:
A peste mecânica
Menor atropelado por um automóvel.
O automóvel 2833, pela madrugada de ontem atropelou na Praça
Dezessete, o menor Manuel Leandro da Costa, residente à rua da
Harmonia. A vítima tendo feridas diversas pelo corpo, foi levada para
o Posto de Assistência Pública e ali medicada. A polícia inteirou-se
do caso.
51
As mais variadas notas desses periódicos, coletadas durante a nossa
investigação, traziam a informação de que muitas crianças foram vítimas de acidente
por estarem trabalhando, brincando ou simplesmente caminhando pelas ruas da cidade.
De acordo com os estudos de Jaílson da Silva, a justificativa da lista de acidentes ser
extensa estava na falta de uma organização do sistema de transporte da cidade, quando
muitos dos atos ilícitos cometidos pelos motoristas era por excesso de velocidade e por
50
Jornal do Commercio. Na Polícia e nas Ruas. Recife, 05 de janeiro de 1930.
51
Jornal do Commercio. A peste mecânica. Na Polícia e nas Ruas. Recife, 20 de julho de 1930.
45
estarem trafegando na contramão.
52
As crianças e jovens que transitavam nas ruas e
avenidas da cidade apareciam como uma das principais timas dos automóveis, que
passou ser chamado de peste mecânica, por provocar esta série de acidentes.
Muitos desses casos que envolviam acidentes de crianças passaram a ser
resolvidos na instância do Poder Judiciário. Inicialmente, os casos eram levados para as
delegacias distritais do Recife, uma vez identificado o réu, este passava a responder
juridicamente. Contudo, durante nossa investigação percebemos que em muitos casos os
motoristas evadiam-se do local do acidente. Com a criação do Juizado de Menores, em
1934, muitos casos foram encaminhados para a referida instituição judiciária.
O Juizado de Menores, que teve Rodolfo Aureliano como primeiro Juiz de
Menores, tornou-se a referência de instituição pública voltada exclusivamente para os
casos que envolviam as crianças e jovens no Recife.
53
Foi a partir da criação do Juizado
que o Código de Menores de 1927 passou a fazer parte de forma mais expressiva das
discussões sobre os problemas das famílias pobres do Recife.
É muito importante entendermos o lugar social do Juizado de Menores frente as
transformações políticas e econômicas da cidade, uma vez que a própria criação do
Juizado reflete o contexto social que descortinou os problemas das crianças e dos jovens
na época. Tais problemas, fruto do crescimento urbano desordenado, do desemprego e
de outras formas de exclusão social, passaram a ser identificados como casos que
deveriam ser resolvidos pelo Estado através do Poder Judiciário e do aparato policial,
fazendo com que o problema da criança se tornasse merecedor de uma legislação
exclusiva: o Código de Menores de 1927.
As pesquisas realizadas pela historiadora Sylvia Arend nos apontam que o
discurso construído acerca da criação do Juizado de Menores e das suas funções
atribuídas no Código de Menores, foi permeado do sentimento de controle e coerção
sobre o cotidiano dos meninos e meninas que viviam no mundo da desvalia, do
abandono e da criminalidade.
54
Não podemos deixar de registrar que foi sendo
fomentado um discurso no qual apontava do Juiz de Menores como a autoridade
responsável pelo “destino” dos casos judiciais que envolviam as crianças e jovens.
52
SILVA. Jaílson Pereira. O encanto da velocidade: automóveis, aviões e outras maravilhas no Recife
dos anos 20. 2002. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife:
2002.
53
RIVAS, Leda. Rodolfo Aureliano: o benfeitor. In: Revista Continente – Documento. Recife, maio de
2004.
54
AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil
(década de 1930). Tese (Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS) Proto Alegre: UFRGS,
2005.
46
Analisar o papel do Juiz de Menores é necessário, uma vez que este passava a
assumir a responsabilidade de conduzir e deliberar sobre os processos referentes às
crianças e jovens. Defesa, proteção e assistência formavam o tripé que sustentava a
função social e política do referido Juiz. De acordo com o jurista carioca Lemos Brito,
O papel do juiz de menores na regeneração da infância e adolescência
desamparada, pervertida ou criminosa, é importantíssimo,
cumprindo-lhe ocupar-se do menor, desde que é apresentado em
juízo, até depois que salve da escola preventiva ou reformatória.
55
O comentário do jurista nos leva a perceber que o discurso da regeneração
permeou os debates acerca do Código de Menores de 1927. A partir de uma análise do
seu discurso, percebemos como a construção da idéia de que através do Código e da
ação efetiva do juiz ou tribunal, crianças e jovens que representassem ameaça ao poder
político-econômico instituído pudessem ser recuperadas socialmente.
O Código representou uma tentativa dos grupos sociais e econômicos
estabelecidos e do Estado em centralizar e fortalecer sua ingerência sobre as famílias,
transferindo para juiz de menores o poder de decidir sobre as questões pertinentes aos
destinos dos meninos e meninas. Para o historiador Jacques Donzelot, “a utilização de
uma única codificação, de uma etiologia homogênea, dava ao juiz um instrumento
decisivo para abarcar crianças-problema de todos os pontos de vista”.
56
Não podemos deixar de lembrar que, neste contexto foi construída uma
identidade legal para as crianças e jovens que viva em perigo ou que representava o
próprio perigo. De acordo com os estudos de Adriana Vianna,
A construção dessa identidade pode ser compreendida, portanto, em
sua dimensão relacional (dada pela relação entre menores e polícia) e
contrastiva. O contraste seria estabelecido, inicialmente, pela oposição
aos procedimentos a serem adotados pela polícia com os indivíduos
maiores, acusados dos mesmos delitos ou de outros. Respaldada em
uma diferença legal básica, que toma a divisão etária como critério
demarcador de diferentes formas de participação social, a polícia teria
condições com relação aos menores detidos, avaliando, como foi
dito, não só os próprios indivíduos, mas seus responsáveis legais.
57
55
BRITTO, Lemos. As leis dos menores no Brasil. Rio de Janeiro: Typografia da Escola de Preservação
15 de novembro, 1929, p. 2
56
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. 3º Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001. p. 135
57
VIANNA, Adriana de Rezende. O mal que se adivinha – policia e menoridade no Rio de Janeiro -
1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 27
47
Desse modo, o a criança e o jovem tornam-se legalmente assistido por um
aparato jurídico e o Estado passou a criar um complexo tutelar voltado para o controle e
coerção dos meninos e meninas, tendo a legitimidade de intervir sobre suas vidas e no
âmbito de suas famílias. Para que esta proposta se tornasse operacionável, o Juizado
contava mais diretamente com o aparato policial ou com outras instancia do próprio
Poder Judiciário, que por sua vez passou a identificar o menino que vivia ou trabalhava
nas ruas e nas fábricas, que foi atropelado pelo bonde durante seu expediente de
trabalho ou que vivia as mais diversas formas de exclusão social, como o menor.
58
A atuação do Juizado contemplava diversas áreas relacionadas ao universo
infanto-juvenil, mesmo sendo fortemente direcionada para os problemas das crianças
que buscavam meios de sobrevivência que desafiavam a Lei. Rodolfo Aureliano,
católico fervoroso e defensor dos valores morais e dos bons costumes, procurou realizar
um trabalho voltado para a manutenção desses princípios, realizando campanhas que
disseminassem suas idéias e divulgassem suas ações.
Em Recife, o Juizado de Menores procurou construir uma campanha voltada
para os problemas que norteavam o cotidiano das crianças e jovens das diversas classes
sociais. Entre os trabalhos realizados pelo Juizado, destacou-se o controle sobre a
presença da meninada nos cinemas da cidade. Através de várias medidas de vigilância e
coerção, o Poder Judiciário buscou controlar, proibir e punir as crianças, os pais e donos
de salas de exibição localizadas nos mais diversos bairros do Recife.
Nos anos de 1920, o cinema passou a ser um dos espaços mais freqüentados pela
criançada. O Recife dos automóveis também era a cidade dos cinemas. De acordo com
as pesquisas da historiadora Sylvia Couceiro, nos finais dos anos de 1910, a cidade
possuía mais de 50 salas de cinema, transformando o panorama de entretenimento da
capital pernambucana. De acordo com as suas pesquisas,
Nos anos vinte, espalhavam-se cinemas por quase todos os bairros da
cidade. Entre 1909 e o final da década, mais de cinqüenta cinemas,
desde os mais equipados e decorados do centro até as pequenas salas
de projeção dos subúrbios, acessíveis aos seguimentos populares,
foram inaugurados na cidade.
59
58
AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil
(década de 1930). Tese (Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS) Porto Alegre: UFRGS,
2005.
59
COUCEIRO, Sylvia. Artes de Viver a cidade: conflitos e convivências nos espaços de diversão e
prazer do recife nos anos de 1920. 2003. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História da
UFPE. Recife, 2003. p. 88.
48
Cinema Royal, na Rua Barão da Vitória, localizada no Bairro de Santo Antonio.
Cine-teatro Helvetia, na Rua da Imperatriz. Ideal Cine-Teatro, no Pátio do Terço.
Couceiro nos fala que essas salas se tornaram espaços onde foram construídas as mais
diferentes formas de convivência, refletindo as novas formas de comportamento, que
por sua vez desafiavam os padrões de moralidade tradicionais da época. As “cenas de
amor, com beijos prolongados, pernas e outras partes do corpo feminino em exposição”,
constantemente projetadas nas grandes telas, passaram a ser vistas como um desacato
aos bons costumes.
60
Uma série de matérias de jornais nos fazam perceber que existiu uma campanha
do Juizado em favor de uma fiscalização rigorosa contra a presença das crianças e
jovens nos cinemas da cidade que exibissem filmes considerados inadequados a
menores de 18 anos de idades. Em 1935, os jornais do Recife noticiava a seguinte
manchete: A campanha iniciada pelo Juiz de Menores contra o cinema que corrompe,
deve merecer o aplauso prestigioso da família pernambucana. A matéria defendia a
idéia que:
É cinematografo, bem como o teatro, uma diversão maravilhosa e ao
mesmo tempo uma escola a que nenhuma outra se pode comparar.
Pelo primeiro, principalmente, transmite-se noções com um mínimo
de esforço. Aligeira o trabalho do professor e faz a alegria do escolar,
dos objetivos que tem sido o desespero dos pedagogos.
61
Nesta matéria, podemos perceber que o cinema era considerado como uma
escola que poderia influenciar a educação das crianças e jovens. Mesmo reconhecendo a
importante do cinema, como um instrumento de entretenimento, o jornal alertava como
esta “maravilha” poderia apresentar uma ameaça para a formação moral das crianças.
Foi neste sentido que a presença das crianças passou a ser proibidas em salas que
exibissem determinados filmes. Neste mesmo período, o Juizado divulgava amplamente
a lista das películas proibidas.
Juizado de Menores do Recife
Relação das películas proibidas para menores
Rei da Noite (Kiing for a night) Universal Pictures S. A. Metro
Goldwyn Mayer: três garotas ladinas (Three Wise Gris) – United
Artist Corp; Esta noite ou nunca United Artist Corporation; Vidas
60
Idem. p. 91
61
Diário da Manhã. A campanha iniciada pelo Juiz de Menores contra o cinema que corrompe, deve
merecer o aplauso prestigioso da família pernambucana. Recife, 12 de junho de 1935. p. 4.
49
cruzadas ( From bell te heaven) – Paramoint Films Corp.; Loura
sedutora (pltinum Blond) United Artst Cop.; Beijos por dinheiro
(Stage mother) – Metro Goldwyn Mayer.
62
Segundo a historiadora Leda Rivas, biógrafa do Juiz de Menores Rodolfo
Aureliano, em 1934,
ao seguir, fielmente, o Código de Menores, proibindo o aceso de
crianças e adolescentes a filmes e espetáculos considerados
‘impróprios’, foi motivo de muitas discussões na cidade. Se, de um
lado, boa parte da comunidade se manifestava favorável à medida, de
outro, os proprietários de cinema reclamavam denunciando abusos
por parte do Juizado.
63
Diante da onda de polêmica levantada, a Coluna de Higiene Mental, elaborou
um artigo para ser divulgado no Diário da Manhã, trazendo para o debate os males que
o cinema podia causar às crianças. Segundo o artigo:
Até aos 7 anos não permitir filmes dramáticos ou de aventuras, são
aconselháveis as fitas cômicas, apólogos ou cantos, cenas de carinho,
piedade e virtudes. Na idade escolar devem preferir, além dos
precedentes, filmes geográficos, biográficos, históricos ou naturais,
cenas de trabalho, etc. Durante a adolescência exercer severa censura
sobre filmes sentimentais ou de crimes, indicando antes filmes
cômicos, históricos e didáticos.
64
Censura severa, vigilância atenta... Esses eram os conselhos indicado pelo
Serviço de Higiene Mental, que buscavam garantir uma educação moral voltadas para
as crianças, afastando-as da “nocividade de certos programas cinematográficos, muitos
deles destinados especialmente à petizada, aonde não há o menor critério de seleção dos
filmes apresentados”.
65
Para o Serviço, esse controle deveria ser estabelecido para a
preservação da mente e do corpo dos pequenos (protegendo o intelecto e o físico),
reforçando a idéia que as crianças e jovens deveriam ser normatizadas e enquadradas
em um determinado padrão de comportamento.
Não podemos negar que esta campanha refletia as novas preocupações que
norteavam a assistência à infância no Brasil e que o controle do juizado era voltado para
62
Diário da Manhã. Juizado de Menores do Recife - Relação das películas proibidas para menores.
Recife, 12 de junho de 1935. p. 4.
63
RIVAS, Leda. Rodolfo Aureliano: o benfeitor. In: Revista Continente – Documento. Recife, maio de
2004. p. 18
64
Diário da Manhã. Coluna de Higiene Mental. Recife, outubro de 1937. Acervo: Apeje.
65
Idem.
50
a questão da presença das crianças enquanto público freqüentador/espectador dos filmes
e daquelas que trabalhavam nas salas de cinema. O Código de Menores de 1927
estabelece que a autoridade pública o Juiz ou um representante do Poder Judiciário –,
seja encarregada da proteção e assistência à infância, podendo fiscalizar os locais de
moradia, estudo, diversão ou trabalho onde as crianças e jovens se encontrem. De
acordo com o Artigo 126, tais autoridades podiam proceder todo tipo de investigação,
caso fosse necessário, inclusive, de visitar famílias, interditar estabelecimentos de
ensino ou de qualquer tipo de instituição voltada para questão da assistência à infância,
tornando-se autorizada a inspecionar a própria autoridade pública.
66
Nesse Capítulo, o Código também estabeleceu regras de controle quanto à
relação das crianças e jovens nos dancing, music-halls, cafés, casas de jogos, cabarés ou
bailes públicos. Frente ao expressivo número de cinemas construídos nas grandes
cidades, durante o período de sua elaboração e promulgação, o Código estabelece uma
série de normas controladoras em relação à presença dos menores nos cinemas.
Vejamos:
Artigo 128. A entrada das salas de espetáculos cinematográficos é
interditada aos menores de 14 anos, que não se acompanhados de
seus pais ou tutores ou qualquer responsável.
1 Poderão os estabelecimentos cinematográficos organizar para
crianças até 14 anos sessões diurnas, nas quais sejam exibidas
películas instrutivas, devidamente aprovadas pela autoridade
fiscalizadora; e a essas sessões poderão os menores de 14 anos
comparecer desacompanhados.
2 Em todo caso é vedado aos menores de 14 anos o acesso a
espetáculos, que terminem depois das 20 horas.
3 As crianças de menos de 5 anos não poderão em caso algum ser
levadas às representações.
4 São proibidas representações perante menores de 18 anos de todas
as fitas que fam temer influencia prejudicial sobre o
desenvolvimento moral, intelectual e físico, e possam excitares
perigosamente a fantasia, despertar instintos mãos ou doentios,
corromper pela força de suas sugestões.
5 Será afixado claramente na entrada dos locais de representações em
que limites de idade o espetáculo é acessível, sendo proibida a venda
de entradas aos menores impedidos por lei.
67
O Artigo 128 conta, ainda, com
três cláusulas voltadas para o trabalho das
crianças e jovens nos estabelecimentos cinematográficos, apontando a necessidade do
66
Idem. Capítulo X, Artigo 128.
67
Ibidem.
51
consentimento dos pais ou responsáveis e a licença especial de uma autoridade pública
aprovando o trabalho das crianças. De acordo com o Código, os pais ou responsáveis, os
proprietários das casas de exibições e os produtores deveriam atentar para o horário de
trabalho e as condições de salubridade do local onde esses menores estavam
trabalhando. Caso as normas fossem violadas, os responsáveis estariam sujeitos à multa.
Desse modo, em nome da preservação de valores tradicionais, recomendava-se o
controle do horário, da idade, das cenas exibidas e do estado de higiene das casas de
espetáculo e/ou dos cinemas.
Desse modo, podemos observar o lugar social das crianças do Recife, cidade que
crescia e trazia consigo sérios problemas sociais que atingiam as crianças e jovens.
Como nos fala Passetti, ao analisar o problema das crianças e carentes e das políticas
públicas, no início do século XX, o Estado passou a se preocupar com a questão da
infância demarcando um novo momento da assistência à infância no Brasil e este marco
histórico foi construído sob a égide do controle, coerção e punição sobre a vida dos
meninos e meninas.
68
Recife, cidade marcada por múltiplas experiências sociais, onde as idéias antigas
se confrontavam com as novas, foi palco do desenvolvimento econômico e pelas
desigualdades sociais. Esse cenário de contradições e desigualdades fez gerar práticas
de controle e vigilância social, que se materializaram nas políticas assistenciais
elaboradas pelo Estado e setores da sociedade civil, entre elas, a campanha contra a
mortalidade infantil, problema que alarmou a população desta cidade inimiga dos
meninos.
1.2 - Meninos dos mocambos: pobreza e mortalidade infantil no Recife
A família Silva deixou o Sertão de Pernambuco em busca de uma vida melhor
no Recife. Luís, em companhia com sua mulher Joaquina e seus três filhos,
percorram um longo caminho do Cariri até a chegar à capital do Estado. Naquele tempo,
Espalharam pelo interior um boato que o governo tinha criado um
ministério para defender os interesses do trabalhador e que com os
68
PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del. História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
52
fiscais da Lei, a vida na cidade estava uma beleza, trabalhador
ganhando tanto que dava para comer até matar a fome.
69
Ao chegarem à cidade, Luiz e sua família perceberam que as “coisas” se
apresentaram de forma diferente... Na cidade, além de faltar trabalho, morar e comer
custava muito caro para quem vinha dos sertões trazendo na bagagem apenas esperança
em dias melhores. Só existia uma solução: viver no mangue, lá o terreno era de ninguém
e os caranguejos matavam a fome.
A estória da família Silva, foi criada pelo cientista social pernambucano Josué de
Castro. Nos anos de 1930, Castro publicava uma série de artigos nos jornais do Recife,
voltados para questão das condições de vida da população pobre da cidade. Anos mais
tarde, esses artigos foram reunidos em um livro intitulado Documentário do Nordeste.
Nessa obra, o Recife é apresentado à luz do olhar de Josué de Castro, que esteve
preocupado em retratar as desigualdades sociais da cidade, a vida das pessoas que
habitavam os mocambos, o cotidiano dos operários e outras experiências vividas pelas
pessoas “comuns” apresentadas em forma de relatório, contos e ensaios.
Um desses trabalhos tinha como protagonista uma criança de nove anos de
idade, chamada João Paulo. Segundo o ensaio de Josué de Castro, o menino João Paulo
e seus irmãos começaram a trabalhar no Recife, quando o mais velho vendia amendoim
e angu de milho no Largo da Paz, em Afogados, enquanto os outros passavam o dia
catando caranguejo. João, o filho mais novo, com apenas nove anos de idade, ajudava
nos afazeres da casa e trocava caranguejo por comida. Com o tempo, todos perceberam
as habilidades do menino João em pegar o crustáceo; foi quando o Padre Aristides o
contratou para pegar goiamum.
70
Nas primeiras décadas do século XX, a Cidade era considerada uma referência
de grande metrópole nacional. Naquele período, a capital pernambucana caracterizava-
se economicamente como uma cidade da indústria e do comércio. Segundo as pesquisas
de Catia Lubambo, a década de 1910 foi marcada por uma reestruturação da urbana,
quando o melhoramento do Porto do Recife, a instalação de linhas férreas, o
alargamento das avenidas e o investimento em saneamento se efetivaram. Esses
69
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1965. p. 23.
70
Goiamum é um parente próximo do caranguejo, “ariano, de casco lustroso e de olhos azuis”, espécie de
“primo rico” da família.
53
investimentos foram realizados por meio do pagamento de impostos advindos das
primeiras indústrias e do comércio.
71
Estes investimentos na cidade também representam como um dos
desdobramentos das mudanças ocorridas no setor agro-açucareiro da Zona da Mata
pernambucana e das outras regiões canavieiras, como o investimento de novas
tecnologias para o cultivo da cana de açúcar e a implantação dos engenhos centrais,
trouxeram para o Recife uma nova dinâmica econômica. De acordo com Gadiel Perruci,
A indústria pernambucana conhece durante a Primeira República um
inegável progresso. A “revolução tecnológica” ocorrida na produção
açucareira do Estado provoca no Recife uma aceleração das
atividades comerciais e industriais; os “engenhos centrais” e as usinas
estimulam a fabricação no Recife não somente de certos tipos de
material ligeiro para a manutenção de suas máquinas, como também
de produtos têxteis.
72
Os dados estatísticos ainda sinalizam que, nos anos de 1930, o Recife possuía
em torno de 1.148 empresas que atuavam em diferentes tipos de atividades e serviços.
De acordo com as pesquisas realizadas pela historiadora Zélia Gominho, em 1931 a
indústria têxtil empregava um número expressivo de operários, chegando a Companhia
de Fiação e Tecidos de Pernambuco, localizada no bairro da Torre, a formar um quadro
de aproximadamente 1.232 operários.
73
Esse cenário econômico gerou desdobramentos no plano social. Um número
expressivos desses trabalhadores buscavam viver uma vida melhor no Recife. O êxodo
rural foi responsável pela vinda de várias famílias para a cidade, gerando o crescimento
demográfico que implicou diretamente no aumento da população, que passaram a morar
nos morros e alagados da cidade. Ao analisar as condições sociais daqueles que
habitavam nos bairros da periferia do Recife, Josué de Castro nos fala que as
zonas de mangues, dos mocambos, dos operários, dos sem-profissão,
dos inadaptados, dos que desceram do sertão na fome e não poderam
vencer na cidade, dos rebelados e dos conformados. Zona dos
mocambos. Cidade aquática, com casas de barro batido a sopapo,
71
LUBAMBO, Catia Wanderley. O bairro do Recife no início do século: uma experiência de
modernização urbana. Mestrado e Ciências do Desenvolvimento urbano e regional Departamento de
Arquitetura e urbanismo. Recife: UFPE, 1988.
72
PERRUCI, Gadiel. A República das Usinas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 139.
73
GOMINHO, Zélia. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na Cidade do Recife
(décadas de 1930 – 1940). J. dos Guararapes: Edição do Autor, 2007.
54
telhados de capim, de palha e de folhas de flandres (...) O Recife é
todo esse mosaico de cores, de cheiros e de sons.
74
O Recife do “progresso”, dos sobrados também era a cidade que convivia com o
“atraso”, dos mocambos, que se espalhavam pela cidade e se localizavam nas margens
dos rios Capibaribe, Tejipió, Beberibe, entre outros. moravam, em habitações que
eram construídas dos restos de madeira, zinco, barro e não possuíam estrutura sanitária,
“retirantes, pescadores, balaieiros, operários, jornaleiros, tipógrafos, pedreiros,
lavadeiras, costureiras, motorneiros, meretrizes”.
75
Em “O despertar dos mocambos”, artigo publicado em Documentário do
Nordeste, Josué de Castro narra o cotidiano das famílias e das crianças dos mocambos,
quando no fala que:
Com o despertar do dia ficam vazios todos os mocambos, saindo os
homens para trabalhar nas fábricas, carregar e descarregar os navios,
as mulheres para cozinhar e lavar nas casas ricas, os meninos pra
vagabundagem, tomar contas das ruas, entrar de lama a dentro para
pegar caranguejo.
76
Cada um tomava um destino e seguia em frente. Entre a luta pela vida e a fuga
da morte, os meninos dos mocambos do Recife cresciam aprendendo que viver era um
grande desafio, marcado pela luta da sobrevivência das crianças. Correr nas ruas,
empinar papagaio, jogar bola e catar caranguejo para depois vendê-los ou trocá-los por
comida, assim era construído o cotidiano dos meninos dos mocambos do Recife.
Não podemos entender o lugar social das crianças que viviam nos mocambos do
Recife, sem antes nos voltarmos para o debate sobre o que representava viver neste tipo
de moradia no Recife durante as décadas de 1920 e 1930. Em 1936, o sociólogo
Gilberto Freyre publicou a primeira edição de Sobrados e mocambos, em que analisou o
avanço dos mocambos como um dos desdobramentos do fim da escravidão e do
crescimento urbano no Brasil. Nesta obra, Freyre nos afirma que o ex-escravo, na
segunda metade do século XIX, passou a construir suas vidas além das senzalas, quando
As mucambarias ou aldeias de mucambos, palhoças ou casebres,
fundadas nas cidades do Império e não apenas como Palmares nos
74
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1965.
75
GOMINHO, Zélia. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na Cidade do Recife
(décadas de 1930 – 1940). J. dos Guararapes: Edição do Autor, 2007. p. 39.
76
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1965. p. 20.
55
ermos coloniais, representam, evidentemente, da parte dos negros
livres ou fugitivos de engenhos ou fazendas, o desejo de reviverem
estilos africanos de habitação e convivência.
77
O discurso do vereador Geraldo Andrade, proferido na Câmara Municipal do
Recife, em 22 de fevereiro de 1937, abordava a ação promovida pela Assembléia
Legislativa de Pernambuco, determinando a criação de uma comissão voltada para
estudar os modos de viver nos mocambos. Nesse discurso, Geraldo de Andrade
denuncia que “tudo quanto se tem dito e escrito sobre os mocambos peca pela base, por
fugir dos moldes científicos” e afirma que “o mocambo é um elemento de influencia
deletéria na formação moral dos adultos e das crianças”, uma vez que “má habitação
forma um dos fatores mais decisivos para a criminalidade”. Para o vereador, os
mocambos representavam a sinonímia do atraso e da desordem, fazendo com que se
tornasse uma preocupação dos representantes dos poderes públicos.
78
O discurso proferido por Andrade aponta a possibilidade da destruição destas
habitações e a construção de casas populares para seus moradores. Durante o Estado
Novo (1937-1945), a interventoria de Agamenon Magalhães criou a Liga Social contra
os Mocambos, elaborada sob a ótica da profilaxia social e moral, fazendo parte dessa
iniciativa a destruição dos mocambos e um maior investimento para construção de vilas
operárias.
79
Como podemos perceber vários setores da sociedade pernambucana se voltaram
para a discussão dos mocambos naquele período. Sociólogos, higienistas e políticos
discutiram a questão dos mocambos, quando alguns chegaram a apontar
encaminhamentos para os problemas relacionados à moradia popular no Recife. De
acordo com os estudos de José Tavares Lira:
Na década de 30, estas pesquisas, que procuram nos argumentos
étnicos ou científicos legitimidade para uma representação idealizada
do mocambo, coadunam-se a todo um movimento político de
77
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriotismo rural e desenvolvimento do
urbano. 6ª Edição. Rio de Janeiro: José Olynpio, 1981. p. 294.
78
Este discurso foi proferido por Geraldo Andrade, na reunião do dia 22 de fevereiro de 1937. Pesquisado
na Arquivo da Câmara de Vereadores do Recife, em 05 de junho de 2007. Não podemos deixar de
registrar que provavelmente, o historiador que desejar realizar uma consulta nesta documentação
enfrentará um grande desafio para encontrá-lo. Não há nenhuma política arquivística adotada pela
instituição “Câmara de Vereadores do Recife”, fazendo com que os documentos produzidos, no passado e
nos dias de hoje, possam se perder. O estado de abandono dos documentos deste arquivo reflete a falta de
compromisso do poder público com a preservação dos espaços de documentação e memória em
Pernambuco e no Brasil.
79
GOMINHO, Zélia. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na Cidade do Recife
(décadas de 1930 – 1940). J. dos Guararapes: Edição do Autor, 2007.
56
construção da identidade da nação, para enfim fazer surgir,
homogênea e harmônica, a sociedade, e como seu representante
indiviso e eficaz, o poder.
80
Desse modo, podemos entender que as discussões sobre o problema dos
mocambos também estavam relacionadas com a questão da construção da identidade
nacional e com a manutenção do poder dos setores da sociedade, entre eles os
intelectuais, que buscavam se estabelecer. Para José Lira, essas produções sobre os
mocambos foram construídas a partir de um olhar romantizado, provocando um
constante diálogo com os problemas relacionados à questão da moral, da higiene, da
família e da religião. O discurso da Liga Social contra os Mocambos, por exemplo, foi
construído a partir da lógica higienista e moralizadora, quando Agamenon e seus
correligionários buscaram disseminar a idéia de que eliminar os mocambos representava
uma iniciativa baseada no ideário da profilaxia moral e social.
81
De refúgio de escravos a moradia dos pobres da cidade. De acordo com Castro,
os mocambos eram habitados por operário, por aqueles que não possuíam uma
profissão, por migrantes, por pessoas não adaptadas com gica social burguesa da
cidade grande. Na década de 1930, Josué de Castro apresentou um Relatório ao
Departamento de Saúde Pública, no qual focava “as condições de vida das classes
operárias no Nordeste”. Nesse Relatório, Castro analisou o cotidiano alimentar dos
operários, as condições de moradia e o problema salarial dos operários. Logo no
primeiro parágrafo Castro afirma:
Os modernos antropologistas, através de múltiplas indagações
biológicas, chegaram à evidencia de que os caracteres de deficiência
e de inferioridade de alguns povos, atribuídos outrora a fatores
étnicos, à fatalidade racial, são apenas conseqüências diretas das más
condições higiênicas e principalmente de uma alimentação má. (...)
Não é mal de raça, é mal de fome.
82
Rompendo com as teorias racialistas, com o determinismo biológico, Castro
defende a idéia que os problemas sociais do Brasil, mais notadamente do Recife,
resultaram de um outro fator, também determinante: a fome. Nesse estudo, Castro nos
80
LIRA, José Tavares Correia de. A romanização e a erradicação do mocambo, ou de como a casa
popular ganha nome. Recife, década de 1930. In: Revista Espaço & Debate. N. 37. 1994.
81
GOMINHO, Zélia. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na Cidade do Recife (décadas
de 1930 – 1940). J. dos Guararapes,: editora do Autor, 2007.
82
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1965. p. 67.
57
aponta os altos índices de mortalidade, quando os números revelam que o estado de
pobreza que condicionou a fome coletiva, fez do Recife a cidade onde a mortalidade por
habitante é mais expressiva. Vejamos a tabela
83
:
QUADRO COMPARATIVO DA MORTALIDADE
TOTAL EM VÁRIAS CIDADES
Mortalidade por 1.000 habitantes
1932
Recife
27,9
São Paulo
15,3
Rio de Janeiro
18,8
México
17,1
Paris
14,5
Londres
11,8
Nova York
17,1
Quadro comparativo a partir das pesquisas realizadas por Josué de
Castro e publicado no Relatório apresentado em 1932,
posteriormente divulgado no livro Documentário do Nordeste.
Os dados apresentados foram registrados no Anuário Estatístico de Pernambuco
de 1932 e trazem a informação que 18 % da causa mortis foi decorrência da
tuberculose, considerada “uma doença da nutrição”. De acordo com Castro: “a
tuberculose é uma das maneiras disfarçadas de se morrer de fome, fica-se tuberculoso
procurando fugir à fome, alimentando-se de si mesmos”.
84
Para o estudioso, mesmo
sendo uma das cidades onde o “progresso” econômico se apresenta na consolidação das
indústrias e do comércio, Recife era na época uma das cidades onde a pobreza e a
miséria se apresentam de forma mais expressiva.
Não podemos deixar de ressaltar que neste momento da história da saúde no
Brasil a tuberculose era observada como uma doença que atingiam as pessoas que
viviam em condições de pobreza. De acordo com Cleuza Panisset Ornellas:
A palavra tuberculose, do latim tuberculum, diminutivo de tuber,
tumefação, intumescência, significa inchação, protuberância,
projeção, crescimento mórbido. Mas o termo se tornou restrito à
doença que se conhece hoje após a descoberta do bacilo de Koch, o
que se deu em 1882.
85
83
Ibidem, p. 77
84
Ibidem, p. 78
85
ORNELLAS, Cleuza Panisset. Paciente excluído: história e crítica das práticas médicas e de
confinamento. Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 126.
58
Os estudos de Ornellas também indicam que a tuberculose, a doença metafórica
do século XIX, aquela que atingia os “heróis” da literatura, do teatro e da música. Nas
primeiras décadas do século XX este mito vai sendo desconstruído, uma vez que
Os padrões culturais que mediatizavam o sistema de relações sociais
anterior não mais entendem às necessidades. A cultural de uma época
é paulatinamente substituída. A exploração, própria do processo
capitalista que se instaura, transplanta para as cidades as populações
rurais, para viverem aglomeradas em cortiços, mas onde sua força de
trabalho pode ser mais utilizada. Homens e agora, também, mulheres
e crianças são submetidos a penosas condições de trabalho, tornando
toda a população trabalhadora vulnerável à turbeculose. Os
proletários, porque adoecem mais, são considerados fontes de
contágio. O mito dos pobres causadores de doenças, riscos para dos
demais, é construído.
86
Desse modo, no século XX, os símbolos e significados da doença foram se
transformando, quando o novo contexto econômico e social propiciaram o avanço dos
estudos da saúde, influenciando na construção de uma nova representação e imagem
sobre a doença. Para Ornellas, esta mudança decorre do fluxo de novos conhecimentos,
da renovação das pesquisas e das práticas médicas, quando a turbeculose deixa de ser
vista como um “castigo de Deus” e passa a ser vista como um desdobramento dos
problemas sociais.
Também expressivo era o número de mortes envolvendo crianças. O quadro
estatístico que revela a mortalidade infantil também traz dados alarmantes sobre as
crianças de 0 a 1 ano de idade que morrem no Recife por problemas relacionados a
desnutrição. Vejamos a tabela
87
:
QUADRO COMPARATIVO DA MORTALIDADE
INFANTIL
TOTAL EM VÁRIAS CIDADES
Mortalidade por 1.000 habitantes 1932
Recife
259,9
Buenos Aires
145,2
Montevidéu
178,2
México
233,4
Rio de Janeiro
233,4
Quadro comparativo produzido a partir das pesquisas realizadas por
Josué de Castro e publicada no Relatório apresentado em 1932,
posteriormente divulgado no livro Documentário do Nordeste.
86
Idem, p. 127.
87
Idem, p. 78
59
Nas primeiras décadas do século XX, o Recife foi palco das grandes epidemias
de varíola, febre amarela, malária e peste bubônica. Ao analisar os documentos do
Departamento de Saúde Pública, o historiador Antônio Paulo Rezende observa que esta
epidemia ocorrida nas primeiras décadas do século XX, evidenciava a falta de
saneamento básico na cidade do Recife, a falta de políticas públicas nas áreas de saúde e
educação, voltadas para a população mais carentes.
88
O surto de mortes envolvendo
crianças, faz surgir em 1927, a Liga Pernambucana contra a Mortalidade Infantil.
Filhos bastardos do “progresso”. Segundo Rezende, este cerio propiciou o
fortalecimento da campanha médico-sanitarista no Estado, quando os poderes públicos e
setores da sociedade, buscaram se articular na construção da campanha contra a
mortalidade infantil. Campanha esta que estava inserida no paradigma higienista que se
baseava na medicina preventiva.
A discussão sobre as grandes epidemias, ocorridas nas primeiras décadas do
século XX, nas grandes cidades brasileiras, também esteve presente em Ordem e
Progresso, obra de Gilberto Freyre que analisa os desdobramentos da crise da sociedade
açucareira/patriarcal e os problemas do Brasil República. Nessa obra, Freyre nos afirma:
Médicos ilustres começaram, desde o fim do século XIX a advertir os
brasileiros contra o perigo de só procurarem preservativos contra
doenças graves nas boticas, quando a defesa dos adultos e
principalmente, de crianças, de males como o croup, estava também –
ou principalmente – na observação de preceitos de higiene.
89
A partir das observações de Freyre e dos documentos produzidos ou referentes à
Liga Pernambucana, percebemos que a mortalidade infantil foi um problema nacional,
vivenciado nas grandes cidades do Brasil. A Liga Pernambucana, inclusive, teve como
referência a Liga Bahiana contra Mortalidade Infantil, conforme nos mostra a
reportagem publicada no Diário de Pernambuco, em 1º de outubro de 1927. Vejamos:
A cada cinco crianças que falecem, apenas uma tem assistência, as
demais falecem a mingua de recursos médicos. No mês de setembro
faleceram 92 criancinhas, e apenas 16 tiveram assistência médica.
Desse serviço acham-se encarregados o Dr. João Rodrigues,
professor de doença infantil na Faculdade de Medicina e Dr. Edécio
88
REZENDE, Antonio Paulo. (Des) encantos modernos: histórias da Cidade do Recife na década de
Vinte. Recife: FUNDARPE, 1997.
89
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 702.
60
Cunha, médico conterrâneo que já trabalhou na Liga Bahiana contra a
Mortalidade Infantil. Os chamados devem ser feitos por escrito ou
por solicitação verbal, feita a inspetoria de Higiene Infantil das 8 as
11 da manhã. Outro serviço que a Liga iniciou ontem foi a
beneficência preventiva, pois como na medicina, a parte preventiva
está superando a curativa.
90
A Liga Pernambucana foi fundada por Arthur Sá, professor da Faculdade de
Medicina do Recife, estando inserida no projeto político mais amplo, quando o Estado
passou a intervir mais diretamente no cotidiano das famílias e respectivamente das
crianças. Através de medidas médico-sanitaristas, uma série de ações, legitimadas pelo
discurso científico da época, foram direcionadas no sentido de reforçar a lógica da
higienização da infância e da família.
As pesquisas realizadas pela historiadora Natália Barros, apontam que o “ano de
1924, por exemplo, registrava o significativo número de 1.977 óbitos de crianças. Um
pouco mais que o ainda elevado número de 1.829 óbitos infantis registrados em 1925,
ano que foram notificados 7.388 mortes na cidade”.
De acordo com suas pesquisas:
As causas dessas mortes eram bem variadas, ressaltando-se, contudo,
a deficiência alimentar, em decorrência do desmame prematuro e dos
baixos salários da população e das doenças venéreas, com a sífilis,
por exemplo.
91
O número alarmante de crianças mortas no Recife assustava a sociedade. Não
podemos deixar de lembrar que desde o período colonial a morte de crianças
representava a morte de anjinhos. No Brasil, uma tradição foi inventada no seio da
cultura familiar, quando a mentalidade religiosa colonial dissociou a existência das
crianças, quando “a vida concreta e material foi recalcada em proveito da vida
sobrenatural”, como nos diz Jurandir Costa.
92
O surgimento da Liga Pernambucana contra Mortalidade Infantil estava
intimamente relacionado com a questão da intervenção do Estado no cotidiano das
famílias populares do Recife e tal iniciativa nasceu das pressões vindas de setores
organizados da sociedade, seu conselho técnico era composto por médicos, advogados,
90
Diário de Pernambuco. Recife, 13 de outubro de 1927 – página 8. Seção Variada. Apeje.
91
BARROS, Natália. A Liga Pernambucana contra a mortalidade infantil: médicos, eugenia e
infância na década de 1920. IN: MIRANDA, H. & VASCONCELOS, E. História da Infância em
Pernambuco. Recife: Editora da UFPE, 2007.
92
COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004. p. 160.
61
economistas, industriais.
93
O Estado foi levado a criar ações voltadas para a questão da
assistência à infância empobrecida, uma vez que tais números denunciavam a falta de
políticas públicas na área de saúde da infância.
Dessa forma, o Estado passou a estabelecer uma série de iniciativas voltadas
para o atendimento à saúde das crianças, a partir da gica de uma “ordem médica” e
uma “norma familiar”. De acordo com os estudos de Jurandir Freire Costa, no início do
século XX,
A família começou a ser mais incisivamente definida como incapaz
de proteger a vida de crianças e adultos. Valendo-se dos altos índices
de mortalidade infantil e das precárias condições de saúde dos
adultos, a higiene conseguiu impor à família uma educação física,
moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da
época. Esta educação, dirigida, sobretudo às crianças deveriam
revolucionar os costumes familiares.
94
Nesse sentido, as pesquisas de Jurandir Costa nos levam a perceber que o
período em estudo foi marcado pelo surgimento de políticas, elaboradas pelo Estado e
por diversos setores da sociedade brasileira, voltadas para a normatização dos costumes
cotidianos. As medidas sanitaristas estiveram imbuídas em atingir a vida privada dos
indivíduos, normatizando regras e códigos de higiene e da saúde. Estas medidas foram
construídas sob a égide do ideário de que a “família nuclear e conjugal, higienicamente
tratada e regulada, tornou-se mesmo movimento, sinônimo histórico da família
burguesa”, ou seja, da nova ordem social.
95
A criação da Liga contra a Mortalidade Infantil dialoga com o ideário
humanitário da burguesia da época, que buscou criar uma série de medidas disciplinares
a fim de prevenir a saúde física e mental, através de ações preventivas e educativas,
voltadas para as famílias populares. De acordo o historiador Jacques Donzelot, essa
nova lógica social defendia a idéia que “em torno da criança a família burguesa traça
um cordão sanitário que delimita seu campo de desenvolvimento”, quando, através do
discurso científico, o Estado passou a controlar e vigiar o “corpo e o espírito dos
pequenos” e dos seus responsáveis.
96
93
BARROS, Natália. A Liga Pernambucana contra a mortalidade infantil: médicos, eugenia e
infância na década de 1920. IN: MIRANDA, H. & VASCONCELOS, E. História da Infância em
Pernambuco. Recife: Editora da UFPE, 2007.
94
Ibidem, p. 12.
95
Ibidem, p. 13.
96
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
62
Desse modo, a partir dos cânones filantrópicos e científicos, a Liga
Pernambucana passou a construir centros e postos de saúde voltados para a população
que vivia nos mocambos e morros da cidade do Recife e investiu na propaganda
educativa direcionada à higiene da infância. Ao realizarmos uma conexão entre a
fundação dessa instituição com a trajetória da assistência à infância empobrecida no
Brasil, podemos observar que a Liga contra a Mortalidade Infantil se insere no período
em que o ideário filantrópico passa a ser praticado por nossa sociedade de forma mais
efetiva.
97
As ações filantrópicas são caracterizadas pela intervenção na área das
políticas sociais construída pelo Estado em parceria com setores da sociedade.
Nesse sentido, não podemos entender o surgimento da Liga Pernambucana,
distante do cenário político nacional. De acordo com Irene Rizzine, “as três primeiras
décadas que seguiram a instauração da República foram marcadas pela difusão do
higienismo, originando expressiva produção de conhecimentos especializados sobre a
infância, bem como a penetração da prática dica no âmbito doméstico”.
98
Neste
período, assistimos a disseminação do discurso salvacionista, que defendia a idéia do
Estado protetor das crianças, uma vez que elas representavam o “futuro da nação”.
Também não podemos deixar de lembrar que, esta vontade de proteger as
crianças para garantir o futuro da nação, esteve influenciada por iniciativas de âmbito
internacional. Em 30 de outubro de 1927, o Diário de Pernambuco nos trazia a
informação da presença de representantes brasileiros no V Congresso Pan-Americano
da Criança, ocorrido em Havana. Fazia parte da programação deste evento, uma “Seção
de Medicina”, que estava interessada em discutir as “insuficiências glandulares da
criança” e o “diagnóstico intestinal da infância”; além da “Seção de Hygiene”, destinada
em debater a “influencia do meio sobre a patologia da criança”.
99
97
Para a historiadora Maria Luiza Marcílio, no plano da história da assistência à infância no Brasil,
podemos delimitar fases: 1) caritativa: quando percebemos uma intervenção mais direta das ordens
religiosas (Brasil Colônia e Império); 2) filantrópica: marca a atuação do Estado e vários seguimentos
sociais voltada para as iniciativas destinadas a assistência à infância (fim do XIX até meados dos anos de
1960); 3) Bem-Estar Social: quando o Estado passou a criar políticas públicas votadas para a assistência à
infância (após dos anos de 1960). Contudo, não podemos deixar de registrar que esta divisão não pode ser
observada de forma rígida, uma vez que podemos encontrar iniciativas caritativas na chamada fase
filantrópica, fazendo-nos observar a importância desta divisão por seu caráter didático e que ao no
referimos ao uso do termo “bem-estar social”, é importante ressaltar que no plano da prática as medidas
políticas construídas a partir deste princípio não do chamado “bem-estar social” não representaram
mudanças na melhoria das condições de moradia, saúde, educação e lazer para as crianças e jovens do
Brasil. Ver: MARCÍLIO. Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec,
1989.
98
RIZZINE, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora da Universidade Santa Úrsula/ AMAIS, 1997, 137.
99
Diário de Pernambuco, Recife, 30 de outubro de 1927. p. 5. Variadas. Apeje.
63
Ao analisar a questão da “racionalidade médica e higienização da infância” no
Brasil, o historiador José Gondra nos fala que o “discurso da ciência recobre um
expressivo conjunto de objetos, constituindo campos disciplinares cada vez mais
especializados (...) Transitando dos corpos individuais ao tecido social e vice-versa, a
ordem médica constituiu a infância em tema caro”.
100
Essa sciencia da infância,
estabelecida sob a égide do ideário higienista-positivista, foi construída na segunda
metade dos oitocentos, ditando as regras que legitimaram o surgimento de políticas
públicas assistenciais. Podemos citar, como exemplo, a criação das escolas e colônias
correcionais e dos preventórios voltados para as crianças.
Em 1934, a Liga contra a Mortalidade Infantil publicou o primeiro número do
Boletim Mensal, destinado à divulgação de suas ações. Neste tablóide, a sua diretoria
registrava que o objetivo da instituição era de lutar contra a “mortinatalidade, a
morbidade, mortalidade infantil, não no Recife como nos demais municípios do
Estado”. Por meio do Boletim Mensal, percebemos que sua atuação esteve voltada para
campanha em favor dos princípios da puericultura, da criação dos preventórios, dos
lactórios e criação de laboratórios destinados à saúde das crianças. Em 1935, mais uma
ação marcava a trajetória da Liga contra a Mortalidade Infantil. Nesse ano foi construía
sua sede, localizada na Avenida João de Barros, que se chamava a Casa da Criança,
espaço destinado ao atendimento clínico de crianças e famílias pobres da cidade.
A partir do ideário preventivo, a Liga realizou ações como o Concurso de
Robustez, que tinha o objetivo de estimular a prática de aleitamento e de cuidados com
as crianças na primeira idade, fazendo com que uma vez por ano, fossem divulgadas as
taxas antropométricas de seus pequenos clientes. Outra iniciativa foi a criação do
Prêmio Idelfonso Magno, que premiava a mãe que melhor “conduzia a criação de seu
filho”. Em 1937, Dona Severina Marins, que era atendida no Centro de Saúde de
Afogados, recebeu este prêmio, uma vez que seu filho, “um lindo garoto de 10 quilos e
50 gramas”, durante aquele ano, “somente uma vez adoecera e isto mesmo
ligeiramente”, conforme nos informou o Boletim Mensal, publicado em janeiro de
1937.
101
100
GONDRA, José. “Modificar com brandura e prevenir com cautela”: racionalidade médica e
higienização da infância. In: FREITAS, Marcos Cezar & KUHLMANN JR, Moysés. Os intelectuais na
História da infância. São Paulo: Cortez, 2002. 202-209.
101
Acreditamos que um estudo mais sistematizado sobre esta questão poderia ser realizado. A partir do
Concurso de Robustez e o Prêmio Idelfonso Magno, poderíamos produzir uma história do corpo e das
“artes” de governar os corpos das crianças. Esta é uma questão de grande relevância para a história social
e cultural, uma vez que lida com as estratégias de poder e saber construídas sobre a infância, a partir da
64
Para o discurso da época, uma criança saudável era uma criança robusta,
atendendo os padrões da saúde física e mental, assim ditava a “cartilha” dos princípios
higienistas. Como podemos observar, na tentativa de tornar as crianças robustas, a mãe
tinha uma função social imprescindível. Nos diversos boletins pesquisados,
encontramos frases de efeitos que estavam presentes nos cabeçalhos e rodapés deste
periódico, voltados para a valorização do papel da mãe na luta contra a desnutrição, as
doenças que atingiam as crianças e a mortalidade. Vejamos as chamadas:
Nem chupeta, nem do balanço se deve utilizar a mão para acalentar o seu filho.
Vende a saúde do filho, a mãe que deixa de amamentá-lo para mercadejar o seu leite.
Não deixe de amamentar o seu filho com uma ama-de-leite que não foi examinada.
Através destes informes, percebemos como foi construído o discurso do lugar
social da mãe na campanha contra a mortalidade infantil. As recomendações para o não
uso da chupeta, os cuidados com o balanço, com a ama-de-leite que deveria ser
examinada, tornaram-se mecanismos disciplinares do cotidiano das mulheres. Para
Margareth Rago, o crescimento urbano, industrial e comercial das grandes metrópoles
brasileiras, fez construir uma “representação simbólica” da mulher, quando foi
solicitada a sua presença “no espaço público das ruas, das praças, dos acontecimentos
da vida social, nos teatros, cafés e exigiam sua participação no mundo do trabalho”, sem
deixar de cobrar dessas mulheres o “retorno ao lar”.
102
Não podemos deixar de nos voltar mais uma vez para as contribuições de
Jacques Donzelot, para o qual o lugar social da mulher estava relacionada ao objetivo
do Estado em manter um controle sobre as famílias.
A busca da intimidade, a competência doméstica proposta à mulher
popular, são o meio de fazer aceitar, de tornar atraente esse habitat
que possa, de uma fórmula ligada à produção e à vida social, a uma
concepção fundada na separação e na vigilância. Se o homem preferir
o exterior, as luzes do cabaré, se as crianças preferirem a rua, seu
espetáculo e suas promiscuidade, será culpa da mulher.
103
lógica da dominação e controle sobre o corpo. Este estudo não pretende se voltar de uma forma mais
aprofundada sobre este problema. Contudo, aqui registramos uma nova possibilidade de pesquisa que
poderá contribuir de modo efetivo com o campo da História da Infância em Pernambuco.
102
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). 3. Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985. , 62.
103
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 46.
65
Desse modo, a partir das observações de Donzelot, percebemos como foram
tecidas as redes que formavam a tessitura social, quando o Estado buscou intervir na
vida das famílias, através de ações que buscavam controlar o cotidiano desses agentes
sociais com a criação de moradias populares, saúde pública e educação. Recai sobre as
costas da mulher popular, da mãe, da nutriz
104
, da esposa, da dona-de-casa, a
responsabilidade de garantir a manutenção deste lar, a manutenção de uma sociedade
que buscava criar padrões de comportamento e sentimento que atendessem o ideário
burguês da época.
As mães que pertenciam às famílias pobres dos mocambos, trabalhavam nas
fábricas, prestavam serviços domésticos nas casas ricas, no comércio e até mesmo
estavam inseridas no mundo da prostituição. Ao analisar a relação entre a mortalidade
infantil e as condições das mães que habitavam nos mocambos do Recife, Zélia
Gominho nos mostra que “o esforço das mães que trabalhavam até os últimos dias de
gravidez nas fábricas, e continuavam trabalhando após o parto” comprometiam o
aleitamento das crianças, reforçando a possibilidade de aumento das taxas de
mortalidade infantil.
105
A partir do surgimento da Liga contra a Mortalidade Infantil, várias mães e
crianças dos mocambos espalhados pela cidade do Recife, passaram a ser atendidas
através dos programas oferecidos pela instituição, entre eles a distribuição de leites,
vacinas e acompanhamento nutricional das criança, nas suas primeiras fases da vida.
Todavia, não podemos afirmar o alcance de atendimento da Liga contra a Mortalidade
Infantil, uma vez que não encontramos registros documentais que nos levem a analisar o
resultado dos trabalhos desta entidade na efetiva diminuição da mortalidade infantil no
Recife.
A Liga Pernambucana contra a Mortalidade Infantil procurou controlar a
questão da mortalidade de crianças a partir da lógica disciplinar e higienista, quando
foram estabelecidas padrões de comportamentos construídos através do discurso
médico-sanitarista. Interligados a partir de uma lógica normatizadora, o Estado buscou
prevenir doenças e controlar epidemias, uma vez que, segundo o seu discurso, salvar as
crianças era garantir um futuro melhor para o Brasil.
104
Segundo Donzelot, a nutriz era a mulher profissional que cuida das crianças, no que se refere à
educação, saúde e de todo universo que norteia o cotidiano das crianças. Muitas delas saíam do campo
para cuidar dos filhos das mulheres da cidade. Ver: DONZELOT, J. 2001. A polícia das famílias. Rio de
Janeiro: Graal, 2001.
105
GOMINHO, Zélia. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na cidade do Recife
(décadas de 30 e 40). Recife: CEPE, 1998. p. 62.
66
Recife, “cidade inimiga dos meninos”. As décadas de 1920 e 1930 foram
marcadas por expressivas transformações políticas e econômicas na cidade do Recife,
fazendo com que a capital pernambucana se tornasse o cenário das mudanças
modernizadores e este contexto trouxe desdobramentos que atingiram diretamente o
cotidiano das crianças que viviam nas ruas e nos alagados da cidade. Neste período, as
ruas do Recife estavam deixando de representar o espaço para as brincadeiras de roda,
de esconde-esconde, para se tornar o espaço onde eram vivenciadas outras experiências,
como a do trabalho. Expressivo foi o número de meninos que viviam nos mangues ou
dos bairros da periferia da cidade e passaram a trabalhar nas oficinas e fábricas
espalhadas pelos arredores do Recife ou em outras atividades. A questão central que
será discutida no nosso segundo capítulo é a História dos meninos no mundo do
trabalho.
67
SEGUNDO CAPÍTULO
NAS FÁBRICAS E NAS RUAS DO RECIFE:
O COTIDINAO DOS MENINOS NO MUNDO DO TRABALHO
______________________________________________________________________
À tardinha, achava-se no pátio do Mercado de São José, defronte a
Igreja da Penha, quando uma senhora idosa veio a mim e pediu-me
para transportar umas coisas à Estação do Brum; disse que me
gratificaria generosamente. Não vacilei. Fui ajudá-la. Eram duas
maletas e uma porção de embrulhos. Fiz duas viagens. Já era noite
quando terminamos. Ela deu-me seiscentos réis. Senti-me bem pago e
muito satisfeito com a minha profissão de freteiro. Jantei um
picadinho de charque com feijão, um copo de ponche de abacaxi e
comprei vinte réis de cigarro águia de Ouro. Tudo me custara
trezentos e vinte réis, ou seja, uma pataca, na linguagem matutada.
Entre o almoço e o jantar gastara quinhentos e oitenta is. Muito
dinheiro, mas, em compensação, também ganhava muito: um mil e
duzentos réis ao todo; o salário de um trabalhador naquela época.
106
O relato de Gregório Bezerra sobre a sua experiência como freteiro no Recife,
publicado na autobiografia intitulada Memórias, chama-nos atenção pela forma como a
narrativa foi construída. As lembranças dos tempos de criança de Gregório nos fazem
conhecer um pouco mais sobre a cidade através das experiências de uma criança que
conheceu o mundo das ruas e do trabalho desde os primeiros anos de vida.
Gregório Lourenço Bezerra nasceu em Panelas de Miranda, Pernambuco, em 13
de março de 1900. Filho de Lourenço Bezerra do Nascimento e de Belarmina Conceição
do Nascimento, camponeses pobres, analfabetos, que enfrentaram nas suas vidas os
problemas de ordem econômica típicos dos sertões nordestinos: seca, desemprego, entre
outros. Serviu ao Exército, pertenceu às fileiras do Partido Comunista e foi parlamentar,
tornando-se uma liderança bastante conhecida por sua militância.
Não podemos falar do problema do trabalho infantil nas décadas de 1920 e 1930
sem ressaltar que o Código de Menores de 1927 representou uma legislação que
regulamentava a fiscalização do trabalho de meninos e meninas até os 18 anos de idade,
contemplando, inclusive, a questão do trabalho do aprendiz. De acordo com o Código,
os estabelecimentos comerciais ou industriais não podiam admitir menores de 14 anos,
106
BEZERRA, Gregório. Memórias – Primeira Parte: 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
68
mesmo sendo a criança um aprendiz. Este aparato legal representava um instrumento de
controle social das famílias, dos patrões e das próprias crianças e jovens.
107
Segundo o
Código, trabalhos como o de freteiro não podiam ser permitidos, por representarem uma
ameaça à segurança dos meninos.
Assim como Gregório, outros meninos trabalhavam nas ruas do Recife
transportando mercadorias ou ajudando a deslocar objetos pessoais dos transeuntes da
cidade. A Estação do Forte das Cinco Pontas, local onde o garoto Gregório trabalhava,
era considerado um dos pontos mais movimentados da cidade, uma vez que daquele
terminal de passageiros embarcavam e desembarcam pessoas de várias regiões do
Estado. O serviço de freteiro era bastante procurado e um significativo número de
crianças e jovens prestavam este trabalho àqueles que transitavam pela antiga Estação,
localizada no centro do Recife.
Os relatos de memórias de Gregório são registros valiosos e farão parte dos
documentos que compõem este Capítulo. A partir do depoimento daquele que viveu o
abandono nas ruas do Recife, buscando trabalhar como freteiro ou como vendedor de
jornais, buscaremos construir uma história das crianças no mundo do trabalho. A
literatura de José Lins do Rego também servirá como registro que nos possibilitará
problematizar o cotidiano das crianças no mundo fabril. Tais documentos nos levam a
discutir o cotidiano dos meninos, que se revestiu de sentimentos e ressentimentos,
exclusão e resistência, conduzindo-nos a escrever uma “outra” abordagem, na qual as
crianças e jovens deixaram o anonimato e tornaram-se protagonistas de suas histórias.
2.1 - Infância operária: o cotidiano dos meninos trabalhadores no Recife
Ricardo fugiu. Não se avistava mais o garoto nas redondezas... Era esse o
comentário que se ouvia no Engenho Santa Rosa, localizado no interior de Pernambuco.
O moleque de 16 anos deixara o convívio de sua mãe, dos seus irmãos e dos seus
familiares, para viver no Recife. No pensamento de Ricardo, “era melhor ir mesmo”, a
capital representava a cidade do “progresso”, em Santa Rosa ele “não passaria daquilo”.
O moleque aproveitou o convite do condutor do trem e partiu para a cidade grande.
108
A mãe chegou a fazer promessas a São Severino dos Ramos para reencontrar o
filho. O antigo patrão “gritou quando soube da escapula do moleque”, afirmando que
107
Brasil. 1927. Código de Menores de 1927. Art.. 31, Capítulo IX.
108
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 33.
69
Ricardo era um “negro fujão” e que, assim como outros, iria morrer de fome no Recife.
Todos procuravam por ele e as notícias sobre o seu paradeiro eram as mais diferentes.
Com o tempo, conformaram-se e chegaram a dizer que Ricardo tinha tomado o caminho
certo e que em Santa Rosa o moleque nunca iria “tirar o pé da lama”.
Assim começa a história do moleque Ricardo. José Lins do Rego, ao narrar a
trajetória de um jovem que fugiu do interior de Pernambuco em busca de uma vida
melhor na capital do Estado, legou uma obra que retrata o cenário político, social e
econômico do Recife, durante as primeiras décadas dos novecentos, tendo como
protagonista um moleque. O romance de José Lins se apresenta como uma fonte
riquíssima para o historiador que pretende problematizar o universo da infância
empobrecida na cidade do Recife naquele período, uma vez que através das emoções,
dos anseios e de outras formas de subjetividade, expressas nas palavras do romancista,
podemos encontrar as representações e imagens construídas sobre o cotidiano dos
moleques do Recife, na época estudada.
O moleque Ricardo será o fio condutor que nos levará ao encontro das
discussões sobre a história dos meninos que trabalhavam nas oficinas, nas fábricas e que
protagonizaram as mais diferentes histórias, cujo cenário foi o Recife. Ao analisar a
importância da relação entre a literatura e a escrita da história, Sandra Pesavento nos
fala que:
Neste cruzamento que se estabelece entre a História e a Literatura, o
historiador se vale do texto literário não mais como uma ilustração do
contexto em estudo, como um dado a mais, para compor uma
paisagem dada. O texto literário lhe vale como porta de entrada às
sensibilidades de um outro tempo, justo como aquela fonte
privilegiada que pode acessar elementos do passado que outros
documentos não proporcionam.
109
Desse modo, ao aproximarmos a história e a literatura, estamos dialogando com
as novas perspectivas da escrita da história. Este encontro nos faz visualizar novos
horizontes de análise, possibilitando-nos, inclusive, enxergar questões que não foram
discutidas pela historiografia tradicional. A partir da obra de José Lins do Rego,
podemos estudar o passado de Ricardo e de outros moleques, dos meninos que
possuíram uma trajetória de vida marcada pela exploração do trabalho infantil, pelo
abandono e outras formas de exclusão social.
109
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autentica, 2005. p. 113.
70
José Lins do Rego foi um romancista paraibano que integrou nos anos de 1920 e
1930 o chamado Movimento Regionalista, em parceria com Gilberto Freyre e outros
intelectuais. Em O Moleque Ricardo, obra publicada em 1936, o romancista desenhou o
Recife do crescimento urbano e das tensões políticas. Ricardo, ao vivenciar tais tensões
recorda com saudade os tempos de infância no interior de Pernambuco. Na construção
dessa obra, o romancista coloca em tela a relação entre o campo e a cidade, entre o
patrão e o empregado, entre o prazer e o sofrimento de viver numa cidade marcada por
contradições. Um importante documento histórico, que nos permite pensar como as
relações sociais foram construídas naquele tempo. Ao analisar as obras de José Lins do
Rego, o historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque nos fala:
Os romances de José Lins não nascem de uma pesquisa sociológica,
mas são livros feitos a partir de histórias que lhe foram contadas nas
salas de engenhos, nas cozinhas pelas negras, são livros de
recordações de sua vida de infância.
110
Cidade da modernidade, cenário onde Ricardo iria enfrentar os mais diferentes
tipos de desafios e aventuras. Tais desafios e aventuras iniciaram no trem que conduziu
o moleque ao Recife:
Ricardo notava que a gente que entrava pelo vagão era diferente,
gente mais despachada, ganhadores pedindo frete, moleques
vendendo jornais. O Recife estava próximo. A cidade se aproximava
dele. Teve medo. Falavam no engenho do Recife como de uma
Babel. ‘Tem mais duas léguas de ruas’. Você numa semana não
corre’. E bondes elétricos, sobrados de não sei quantos andares. E
gente na rua que só formiga. O dia todo é como se fosse festa.
111
Nas palavras de José Lins, a cidade acolhia homens, mulheres, crianças, adultos
e idosos, vindos de todos os cantos. Assim como Ricardo, essas pessoas buscavam
melhores condições de vida e de trabalho. Ao chegar à cidade grande, o moleque de
Santa Rosa foi empregado na casa do vizinho do condutor do trem. Lá, ele “trabalhava
de manhã à noite, varria casa, fazia compra, ia de lata na cabeça buscar água”.
112
Dos
desafios enfrentados na vida rural do engenho, o garoto passou a viver a exploração do
trabalho doméstico na residência de Dona Margarida, onde tinha como pagamento pelos
serviços prestados um local para comer e dormir.
110
ALBUQURQUE JR. D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2006. p. 56.
111
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 37.
112
Idem. P. 37
71
Naquele tempo, o trabalho representava uma “escola” para as crianças e jovens
que viviam no mundo da pobreza, quando os mais diferentes setores da sociedade da
época defendiam a idéia de que o trabalho afastava do mundo da ociosidade, da
vadiagem, da desordem e da criminalidade infanto-juvenil. De acordo com a
historiadora Irma Rizzini, nas primeiras décadas do século XX,
O trabalho de crianças e adolescentes das classes populares é visto
em nossa sociedade como um mecanismo disciplinador, capaz de
afastá-los das companhias maléficas e dos perigos da rua. A ‘escola
do trabalho’ é percebida como a ‘verdadeira escola da vida’.
113
Ricardo não estudou. Na casa de Dona Margarida, o moleque sofria com os
maus tratos da “patroa” e chorava com saudade da mãe e da vida do interior. Dona
Margarida tratava o garoto como um semi-escravo, “no começo fora melhor para ele.
Com o tempo foi se aborrecendo” e as cóleras e impertinências se acalmavam em
Ricardo” por meio de gritos e aquilo doía no moleque.
114
Dona Mergarida não podia perder no bicho. O povo da rua do arame
sabia. Quando ouvia um com Ricardo, o falaço, a tormenta nas
quatro paredes da casa do condutor, dizia um para o outro: Dona
Margarida não acertou hoje.
115
A relação de Ricardo com Dona Margarida nos fez pesquisar a questão da
exploração do trabalho infantil no Recife durantes as décadas de 1920 e 1930. A nossa
investigação nos levou a conhecer a história de outras crianças e jovens que sofriam
com os maus tratos dos patrões. Os jornais do período também denunciavam as
agressões físicas e verbais sofridas pelas crianças durante o trabalho. Em 13 de
dezembro de 1931, o Diário de Pernambuco trazia a notícia que:
Esteve ontem, na delegacia, o menino Alfredo Bezerra, de 13 anos
de idade, queixando-se contra o seu patrão, de nome João Felipe da
Silva, proprietário de uma quitanda na Avenida Norte. O aludido
menor declarou que Felipe da Silva de tabica em punho aplicou-lhe
várias bordoadas não continuando a espancá-lo graças a intervenção
de alguns fregueses que se achavam ali na ocasião.
116
113
RIZZINI, Irma. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: PRIORE, Mary Del. História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 389.
114
Idem. P. 40.
115
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 45.
116
Diário de Pernambuco. Factos Diversos. Recife, 05 de dezembro de 1931.
72
O caso de Alfredo Bezerra nos permite analisar a questão do abuso da autoridade
dos patrões contra as crianças trabalhadoras. Ao procurar a delegacia, a ação do menino
Alfredo Bezerra denunciava que seu patrão usava da violência no convívio das relações
de trabalho e sua queixa representou uma forma de resistir ao abuso de autoridade
praticada por Felipe da Silva. De acordo com Esmeralda Moura, “em função da pouca
idade, talvez tenham sido, entre os trabalhadores, aqueles que viveram os exemplos
mais exarcebados dessa relação: o poder hierárquico, que claramente os transformaram
no alvo privilegiado de uma disciplina férrea”.
117
Em 18 de junho de 1927, foi divulgado o caso de João Guilherme, que enfrentou
o abuso de autoridade e agressão física do seu patrão sob “o regime de palmatória”:
O menor de 15 anos de idade João Guilherme, pela manhã de ontem,
compareceu na delegacia de polícia do distrito da Capital e
procurando o Comissário de serviço, a fim de apresentar queixa
contra José Machado Figueiredo estabelecido com oficina de
marceneiro à avenida Lima de Castro, n. 1655. O menor que era
aprendiz da mesma oficina ontem pela manhã, por questões de
serviço foi repreendido pelo seu patrão. Este insatisfeito, despediu-o
do trabalho dando-lhe diversos bolos de palmatória. De fato, João
Guilherme estava com as mãos inchadas, sendo o acusado intimado a
comparecer na policia, a fim de se ver processado.
118
João Guilherme e Alfredo Bezerra: crianças em perigo. Debruçar-se sobre esses
casos nos faz discutir os mais variados modos de violência física e moral cometidos
contra as crianças. A palmatória ou tabica, instrumento de punição física, em que o
repressor buscará, por meio da violência física, deixar a marca da punição nas mãos do
punido e também em sua mente. As mãos de João de Alfredo, as mãos de “aprendizes”,
tão importantes para a condução dos trabalhos por eles realizados, foram agredidas. No
“regime da palmatória”, o punido passa a ser tido como exemplo de alguém que
desrespeitou ou desafiou a ordem estabelecida e foi castigado. Esse tipo de penalidade
pode ser observado como um castigo que “deve” corrigir e não ser esquecida..
A palmatória, enquanto instrumento de punição foi utilizada para corrigir e
disciplinar as ações da criança empregada em sua oficina. Essa ação nos leva a refletir
como foi construída o universo micro-social das crianças no mundo do trabalho, quando
o empregador muitas vezes se posicionava como proprietário da oficina e do corpo de
117
MOURA, Esmeralda. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In: PRIORE, Mary
Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
118
Jornal do Commercio. Na polícia e nas ruas – Chronicas da Cidade. Recife, 18 de junho de 1927 –
página 3.
73
seus “pequenos” empregados. Neste período, a palmatória, era utilizada por pais, mães e
até professores com o objetivo de corrigir as “faltas” das crianças. Ao analisar as
agressões sofridas pelas crianças no universo familiar do Recife “moderno”, o
historiador Iranilson Buriti Oliveira nos afirma que “meninos e meninas cresciam
amedrontados pelos instrumentos sadistas, como a palmatória (...) Tanto nas artes de
aprender o ‘bê-á-bá’ quanto nas artes de obedecer à autoridade, os filhos e filhas
sentiam no corpo as dores trágicas por um sistema corretivo”.
119
O caso de João Guilherme nos faz discutir o cenário social em que ele se
encontrava, quando a exploração do trabalho infantil, em larga escala, era uma situação
que caracterizava as sociedades que vivenciaram o processo de crescimento acelerado
da industrialização, quando muitas crianças foram arregimentados para as atividades
produtivas. Além de ser agredido fisicamente, João foi dispensado das suas atividades
da oficina, mostrando-nos indícios de como eram conflitantes as relações de trabalho
entre o empregador e o garoto empregado.
Contudo, não podemos deixar de ressaltar a iniciativa de João Guilherme em
denunciar o patrão agressor. Caminhar até a Delegacia de Polícia do Distrito da
Capital, apresentar-se como um adolescente trabalhador agredido e processar o
responsável pelo crime cometido, demonstra o poder de autonomia e coragem daquela
criança. Através da História do pequeno João, podemos perceber que os nossos
protagonistas buscavam meios de se defender e de lutar por seus direitos.
Desse modo podemos observar que Ricardo não estava sozinho. O garoto deixou
a casa de Dona Margarida, uma vez que a cada dia o trabalho naquela residência ficava
mais difícil. Um dia, um carregador de pão o chamou para trabalhar na padaria de um
português, em troca o garoto tinha um salário e um lugar para dormir. Ricardo deixava
de ser um moleque que prestava serviços domésticos na casa de Dona Margarida para se
tornar uma criança operária, empregado na oficina de fazer o “pão nosso de cada dia”.
Do trabalho doméstico ao mundo da produção. Sim. Ricardo passou a conviver
com no universo onde as relações sociais se construíam de forma diferente. O trabalho
na padaria era realizado a partir da lógica da produção e do lucro, experiência até então
desconhecida para Ricardo. Lá, trabalhavam adultos, velhos, mulheres e outras crianças,
119
OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. Façamos da família à nossa imagem: a construção de família no
Recife Moderno. 2002. Tese (Doutorado em História) Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2002. p. 139.
74
que também buscavam sobreviver por meio do salário pago por suas horas de serviços
prestados.
Foi na padaria que Ricardo conheceu Francisco, um menino “amarelo de olhos
grandes”. Francisco não tinha pai e mãe e desde os 12 anos de idade trabalhava para se
sustentar. Em uma das conversas com Ricardo, o colega de trabalho contou que
Criara-se em casa de um tio em Paulista. Sofrera o diabo o pobre
menino. Quando tinha 12 anos, já ia para a fábrica passar 12 horas no
fuso. A febre palustre reduzia Francisco a aquilo que ele era, amarelo,
magro, um pedaço feio de gente. Fugiu de Paulista porque quem ali
não era operário era resto. Os donos da fábrica queriam operários.
Um deles criava cavalos de raça e diziam que dava ovo e vinho do
Porto aos animais. Os cavalos de raça de Paulista gastavam num dia o
que cem operários não comiam. Paulista era uma desgraça.
120
Assim como Francisco, centenas de crianças vivenciaram o cotidiano do mundo
fabril e das desigualdades sociais. Em galpões insalubres e escuros, crianças e jovens
eram obrigadas a manusear as máquinas que produziam os tecidos comercializados no
Recife ou exportados para outros locais. Enfrentando as longas jornadas de trabalho e o
perigo das máquinas, grande parte dos pequenos operários não tinha acesso à escola,
assistência de saúde e aos momentos de lazer, uma vez que muitos precisavam trabalhar
para ajudar no orçamento familiar.
Paulista, cidade onde Francisco trabalhava, que hoje se localiza no Grande
Recife, foi uma cidade que vivenciou os primeiros momentos do crescimento industrial
em Pernambuco. No trabalho A sedução da cidade: os operários-camponeses e a
Fábrica dos Lundgren, a socióloga Rosilene Alvim traz uma importante contribuição
sobre a construção social e econômica dessa cidade, que nasceu a partir da Companhia
de Tecidos Paulista. Nessa obra, Alvim discute como as famílias que migraram da zona
rural de Pernambuco foram trazidas para trabalhar nessa Companhia nos anos 1930 e
nas décadas subseqüentes. A partir dos depoimentos de ex-operários, podemos perceber
que era bastante expressivo o número de crianças e jovens que trabalhavam naquele
complexo industrial.
Uma outra questão levantada por Alvim, refere-se ao problema do aliciamento
das famílias do interior de Pernambuco. De acordo com seus estudos, a Companhia de
Tecidos Paulista realizava o processo de aliciamento direto, quando seus agentes
buscavam atrair “chefes de famílias” e seus filhos para trabalharem na Companhia. A
120
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 85.
75
cidade fabril se apresentava como sedutora, terra das “montanhas de cuscuz e dos
chafarizes de leite”. Assim foi construída a imagem de Paulista pelos aliciadores que
buscavam as famílias do interior para trabalhar na Companhia. A cidade dos adultos
operários se tornava a cidade das crianças e jovens que trabalhavam para sustentar suas
famílias. O salário dos filhos e filhas representava um complemento para economia da
família operária.
121
Sobre a questão do trabalho infantil e sua relação com a economia familiar, a
historiadora Michelle Perrot nos aponta como o trabalho de crianças e dos jovens no
mundo das fábricas esteve diretamente relacionado ao cenário de pobreza onde estes
agentes sociais transitavam, quando a falta de recursos obrigava os pais, as mães ou os
responsáveis a empregarem os menores nas fábricas. De acordo com Perrot,
Mesmo fora da fábrica, a condição dos proletários é regida por uma
rigorosa economia familiar. O salário do pai corresponde a parcela
principal dos rendimentos, complementado, tão logo seja possível, pela
contribuição dos filhos (...) Nessa perspectiva, compreende-se a
hostilidade a qualquer restrição ao trabalho infantil.
122
Além de atender a demanda e aos interesses dos patrões em pagar uma mão-de-
obra mais barata, as crianças e os jovens ainda contribuíam de forma significativa para o
orçamento da família operária. Segundo Perrot, a pobreza vivida pelas famílias
operárias era tão expressiva, que o ingresso das crianças e jovens no mundo fabril, em
muitos casos, era necessário para a manutenção da vida da própria criança.
Não podemos deixar de lembrar que o interesse dos pais - oriundos das famílias
populares -, em empregar seus filhos, também foi construído a partir da ética do
trabalho puritano, que construiu a imagem do mundo do trabalho como algo
enobrecedor e redentor. Segundo a ética puritana, o trabalho é um instrumento para a
formação do bom cidadão, do filho de Deus. A partir deste princípio, era defendida a
idéia que o trabalho afastava as crianças e jovens dos vícios, quando a fábrica passou a
ser considerada uma escola, local onde essas crianças cresciam aprendendo a ser “os
futuros homens da nação”.
123
121
ALVIM, Rosilene. A sedução da cidade: os operários-camponeses e a Fábrica dos Lundgren. Rio de
Janeiro: Graphia, 1997.
122
PERROT, Michelle. Funções da família. In: PERROT, Michelle (Org). História da vida privada: da
Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 131.
123
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil, 1890-1930). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
76
O “progresso” não adotou Francisco. O garoto fugiu de Paulista e foi morar em
Olinda e depois de muita procura encontrou o trabalho no Recife. Na padaria do velho
português, o trabalho também era pesado, mas, não era tão perigoso quanto nas fábricas
de Paulista. Nessa oficina, onde era produzido “o pão nosso de cada dia”, os garotos
trabalhavam como auxiliar dos masseiros e realizavam diversos serviços. Francisco e os
outros meninos, como o moleque Ricardo, ganhavam um salário menor, mas,
enfrentaram a mesma jornada de trabalho.
Francisco, Ricardo e tantos outros meninos vivenciavam as mais diferentes
experiências naquele espaço de trabalho, quando a produção e a disciplina eram sempre
cobradas. Ao traçar o perfil de Ricardo, José Lins nos fala que o menino era um
“moleque limpo, de olhos vivos, de cara boa, um achado para o Recife, onde os
moleques daquele tipo se faziam de gente, se metiam em sociedade de operários,
quando não se perdiam na malandragem”.
124
Sim. Ricardo optou por viver o mundo do trabalho e foi aprendendo com seus
colegas que era preciso se organizar coletivamente. Nas primeiras décadas do século
XX, Recife era uma cidade que possuía varias organizações de trabalhadores, entre elas
a Sociedade de Resistência dos Empregados da Padaria.
125
Esta sociedade era
localizada no segundo andar de um sobrado, no Pátio do Paraíso, lugar onde Ricardo
ouviu pela primeira vez a palavra ‘greve’. No começo o moleque estranhou e ficou com
medo; uma vez que se o português dono da padaria soubesse que estava envolvido
nessas conversas seria demitido.
No início do século, os movimentos grevistas fizeram parte do cenário político
do Recife e este problema esteve presente nas preocupações de José Lins e da
historiografia contemporânea. Segundo Antonio Paulo Rezende, durante as primeiras
décadas dos novecentos,
124
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 35.
125
No artigo publicado em 2005, na Revista Clio, do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE,
Antonio Paulo Rezende nos fala que no início do século XX, a cidade do Recife possuía várias
associações que abrigavam as “primeiras idéias socialistas em Pernambuco”. Entre elas, a Sociedade
Beneficente dos Empregados do Comércio, a Associação dos Empregados do Comércio, a Sociedade dos
Remadores, a Sociedade Beneficente dos Fressureiros, a Sociedade Italiana de Beneficência, entre outras.
Segundo Rezende, este período também é marcado por outras formas de organização coletiva, como o
Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1906, quando uma das bandeiras de luta era a
regulamentação da jornada de 8 horas e melhores salários. Nesse sentido, não seria incoerência afirmar
que os caminhos trilhados pelo moleque Ricardo, um personagem do romance de José Lins do Rego,
podem ter sido os caminhos de outros moleques que tiveram em suas vidas a oportunidade de participar
de reuniões ou mobilizações organizadas por estas sociedades. Ver: REZENDE, Antonio Paulo. As
primeiras idéias socialistas em Pernambuco. Ver: REZENDE, A. P. As primeiras idéias socialistas em
Pernambuco. Clio – Revista de Pesquisa História. N. 23. Recife: Editora da UFPE, 2005.
77
As greves dão ao Recife a atmosfera de uma cidade moderna e
reivindicativa, mas têm suas especificidades. O movimento dos
trabalhadores foi visto, sempre, com muitas reservas pelos grupos
dominantes, a questão social não fugia muito de ser entendida como
uma questão política. A intervenção do poder público é uma
constante nas negociações e as articulações dos trabalhadores
assalariados com políticos da classe dominante.
126
N
ão podemos negar que os movimentos grevistas daquela época fortaleceram o
sentimento dos trabalhadores enquanto categoria social e política, haja vista que os
primeiros movimentos reivindicatórios deram base para a consolidação das
organizações operárias no Brasil. O Recife da efervescência econômica, também era a
cidade das agitações políticas, quando homens, mulheres e crianças fizeram parte dessa
história de resistência.
Assim como Ricardo, outras crianças freqüentavam as reuniões que discutiam as
condições da vida operária, faziam parte das greves e dos eventos que marcaram a
atuação do movimento dos trabalhadores do Recife. Ao nos debruçarmos sobre alguns
jornais produzidos pelo movimento operário, podemos perceber rias formas de
denúncias contra o trabalho infantil. Jornais que acusavam a exploração vivida pelas
crianças e jovens nas fábricas de Camaragibe, da Várzea, da Torre e de Apipucos
(também conhecida como Fábrica da Macaxeira).
127
Meninos que viviam distantes dos
bancos escolares e dos momentos de lazer, vivenciaram os maus tratos dos
contramestres, as longas jornadas de trabalho e o perigo das máquinas.
128
Ao se voltar para a questão da resistência infantil à exploração do trabalho,
Margareth Rago nos fala que freqüentemente os jornais operários registravam os maus
tratos e repressões sofridas pelas crianças, fazendo-nos “supor a existência, frente à
violência do mundo adulto, de sua evasão no ato de brincar, de correr, de conversar por
entre as máquinas durante o período de trabalho”. Para a historiadora, é “impossível
deixar de imaginar como a fábrica deve ter representado para elas um mundo tedioso,
repetitivo, monótono, severo e rígido”.
129
126
REZENDE, Antonio Paulo. (DES) encantos Modernos. Recife: Fundarp, 1997. p. 34
127
Sobre a Lei de Syndicalização. Norte Operário. Recife, 28 de dezembro de 1931. Capa. Apeje.
128
De acordo com as pesquisas de Zélia Gominho, neste período, Recife possuía mais de 1.148 empresas
de diferentes portes e dos mais diferentes ramos de atividade e serviços. In: GOMINHO, Z. Veneza
Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na cidade do Recife (décadas de 30 e de 40). Jaboatão dos
Guararapes: Ed. Do Autor, 2007.
129
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil, 1890-1930). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 130.
78
Contudo, em meio às denúncias realizadas contra o trabalho infantil, também
encontramos registros daqueles que defendiam a “sindicalização dos menores”. Em 28
de dezembro de 1931, o Jornal Norte Proletário trazia um artigo reivindicando a
organização sindical dos pequenos trabalhadores. Em uma matéria de capa, o Norte
Proletário dizia:
Um dos artigos da Lei 19.770, que golpeia em cheio os organismos
sindicais é a que alude a organização dos menores, não permitindo
que estes, sem que tenham 18 anos, se filiem às associações
trabalhadoras. Sabido como é a existência de numerosos jovens
operários nas fábricas, oficinas e nos campos, evidenciando-se este
fato nas indústrias de tecelagem além de haver outras empresas
manufatureiras onde o número de meninos, esqueléticas crianças,
tome proporções escandalosas, no exclusivo interesse dos senhores
industriais, dada desigualdade de salários para trabalho igual, - não
compreende não se justifica uma proibição de todos os princípios da
lógica social, pois que aos indigentes atingidos nas suas dolorosas
condições econômicas e morais, ninguém pode tirar-lhes um direito
indelével, qual o de pôr-se a salvo investidos pela razão e pela justiça.
Os menores tem direito à organização.
130
Para o Norte Operário não havia o interesse por parte dos patrões em
sindicalizar as crianças uma vez que o sindicato era o espaço de debate político. O
interesse dos patrões, e até mesmo do Estado, era de garantir o trabalho para as crianças
e jovens com a finalidade de controlá-los para que se tornassem futuros profissionais
que estariam a serviço do progresso da nação. A organização operária, símbolo da
resistência de luta dos trabalhadores representava sinônimo de rebeldia e contestação da
ordem, logo, o Estado se posicionava contrário à sindicalização das crianças e jovens.
Não podemos entender o discurso do Jornal Norte Operário distante de uma
análise sobre a Lei 19.770, que foi promulgada em março de 1931 e tinha como objetivo
atrelar a organização sindical ao Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio,
criado durante o Governo Varguista. Através desta Lei, os sindicatos não podiam
promover ou disseminar nenhum tipo de ideário político, social ou mesmo religioso,
fazendo com que se tornasse alvo de muitas críticas por parte daqueles que resistiam ao
aparelhamento do sindicato ao governo instituído. A verticalização da estrutura e a falta
130
Norte Operário. Sobre a Lei de Sindicalização. Recife, 28 de dezembro de 1931. Capa. Apeje.
79
de autonomia sindical foram fortalecidas com a Constituição de 1934, que chegou a
deslegitimar de modo efetivo os sindicatos considerados “não oficiais”.
131
Desse modo, observamos que tais mudanças provocaram uma intensa discussão
entre os trabalhadores que se organizavam coletivamente através dos sindicatos. Nesse
tablóide, uma série de reportagens foi produzida com a intenção de disseminar a idéia
de que as crianças trabalhadoras possuíam o direito à participação na organização
política dos operários. O caso da sindicalização das crianças e jovens estava muito
distante da vontade do Estado, uma vez que o Código de Menores de 1927 ditou uma
série de normas que proibia o trabalho infanto-juvenil ou buscava controlar a
permanência dos meninos nos estabelecimentos fabris. De acordo com o Capítulo IX do
Código, várias proibições foram estabelecidas, o Artigo 103, inclusive, afirmava que:
Os menores o podem ser admitidos nas usinas, manufaturas,
estaleiros, minas, ou qualquer trabalho subterrâneo, pedreiras,
oficinas e suas dependências, de qualquer natureza que sejam,
públicas ou privadas, ainda quando esses estabelecimentos tenham
caráter profissional ou de beneficência, antes da idade de 14 anos.
132
O Código ainda criava um sistema de fiscalização, segundo o qual os
proprietários dos estabelecimentos, os pais, mães ou responsáveis poderiam responder
um processo judicial se desrespeitassem a Lei. No capítulo IX, o Artigo 101 afirmava
que “é proibido em todo território nacional da República o trabalho de menores de 12
anos”. Entre as proibições, destacamos a restrição aos trabalhos de crianças em peças
teatrais (com exceção das infantis, mediante autorização do órgão fiscalizador), cabarés,
circos ou espetáculos circenses (acrobata e saltimbanco) ou em qualquer serviço que
fosse exercido nas ruas, nas praças ou nos demais locais públicos.
No que se refere aos estabelecimentos comerciais e industriais, o Código volta-
se para a responsabilidade dos proprietários, afirmando no Artigo 117 que:
Os chefes dos estabelecimentos industriais e comerciais, em que são
empregados menores de 18 anos como operários ou aprendizes, são
obrigados a velar pela manutenção dos bons costumes e da decência
pública, bem como da higiene e segurança dos lugares de trabalho.
A leitura desse Artigo nos faz observar como a intenção do Código estava
relacionada em fazer do mundo do trabalho fabril o espaço onde crianças e jovens
131
PIOLLI, Evaldo. Educação e sindicalismo: o discurso sindical no contexto da reestruturação
produtiva. 2004. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação – Unicamp.
Campinas, 2004.
132
Brasil. 1927. Código de Menores de 1927. Art.. 31, Capítulo IX.
80
encontrassem o caminho para a profissionalização. O discurso que valorizava os bons
costumes e a decência pública foi construído a partir do ideário normatizador,
disciplinador e higienista. Na “escola do trabalho”, os pequenos operários deveriam ser
controlados pela ordem. Uma ordem preventiva que buscava garantir a manutenção do
ideário do progresso. Segundo o Código, cabia ao patrão ao proprietário zelar por
esse mundo da fábrica, uma vez que ele também representava o lugar onde essas
crianças estavam longe dos perigos das ruas.
Em 03 de setembro de 1929, dois anos após a promulgação do Código de
Menores, o Jornal Pequeno trazia a notícia que o Juiz de Menores Mello Mattos,
multou cerca de quinhentas fábricas, uma vez que desrespeitaram a normatização
estabelecida pelo Código.
O Juiz carioca Dr. Mello Mattos publicou em dezembro do anno
passado um provimento para execução do Código de Menores na
parte relativa ao trabalho fabril, concedendo uma delação de treze
meses a respeito de certos dispositivos. Finda a delação o juiz multou
cerca de 500 fábricas por infração do mesmo Código, mas, o Centro
Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão pediu prorrogação até
que o Congresso Nacional reformasse certos artigos, que reputava
inexeqüíveis. O Juiz Mello Mattos indeferiu o pedido, o reclamante
agravou do despacho para o Conselho Supremo da Corte de
Apelação, que negou provimento do agravo confirmando
unanimemente o ato do Juiz de Menores. Tendo baixado os autos a
Cartório no sábado passado, o Dr. Mello Mattos mandou prosseguir
na execução do Código de Menores.
Esse exemplo aconteceu no Rio de Janeiro, mas, recebeu destaque no jornal
pernambucano. A reportagem ainda trazia a informação de que dez grandes empresas
foram multadas por obrigarem menores abaixo de 18 anos a trabalhar mais de seis horas
por dia, contrariando o Artigo 18 do digo de Menores. Através dessa matéria,
percebemos como os proprietários dos estabelecimentos fabris resistiram às exigências
estabelecidas pela Lei, buscando driblar este dispositivo legal. Mesmo recorrendo aos
recursos cabíveis, o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão, não
conseguiu reverter a decisão do Juiz. Desse modo, a multa e sua divulgação não
deixaram de representar a tentativa de consolidar o papel do Código, a partir da atuação
direta do juiz que o elaborou.
Contudo, nossa investigação sinaliza que nem sempre a justiça beneficiou os
pequenos trabalhadores, exemplo disso é o Processo Criminal referente à ação de
acidente de trabalho da criança João Domingues, que durante o trabalho perdeu as
81
funções da mão direita, no momento era operário da fábrica de cigarros Jockey Club.
João se acidentara quando prestava ajuda ao chofer da empresa, às 7 horas da manhã do
dia 4 de junho de 1927. A criança acidentada, representado pelo seu pai Domingos
Correia, reivindicava indenização à Companhia de Seguros Ypiranga.
133
A leitura dos documentos que integram o processo de João nos permite perceber
como a burocracia jurídica beneficiava o proprietário da empresa, uma vez que ele
contava com os advogados da seguradora e a estrutura desta instituição, enquanto a
criança operária não tinha recursos para pagar o advogado, tendo que solicitar o apoio
do Estado. De acordo com o laudo médico, João poderia ficar curado se recebesse
tratamento adequado, mas alertava que o tratamento realizado naquele momento não
garantia a cura do garoto. A seqüela física poderia ser irreversível, fazendo com que
João permanecesse afastado do trabalho. De acordo com o Artigo da Lei de
Acidentes de Trabalho e do Artigo 772 do Código de Processo Civil, sendo atestado
judicialmente a lesão, era garantida a indenização por acidente de trabalho e toda a
assistência médica para o acidentado.
Para o advogado da Companhia, João tinha sofrido apenas uma simples lesão,
não sendo merecedor de uma indenização. Segundo os laudos médicos, a criança tinha
se acidentado de forma que podia perder as funções da mão direita. As diferentes
versões sobre o fato, fizeram gerar um processo bastante conflituoso, com as partes
recorrendo por diversas vezes a decisão judicial. Como nos fala Thompson, a Lei
enquanto prática não representa um mecanismo de consenso, mas, um campo aberto
para o conflito, quando tais embates são construídos nas relações sociais entre as partes
e permeiam, de forma contraditória, o uso das leis.
134
Ao analisarmos os diversos documentos que compõem o processo, percebemos
como as relações sociais de trabalho foram construídas a partir das tensões entre o
patrão e o operário, tornando-se um desafio para o historiador que se debruça sobre essa
tipologia documental. Nesses processos, as mais diferentes versões e visões acerca do
acontecido foram registradas, com as falas do réu e da vítima, sendo construídos para
legitimar o discurso de acusação e de defesa. De acordo com os estudos do historiador
Sidney Chalhoub,
133
Processo Criminal de João Domingues de Mello. 1927. Arquivo do Memorial da Justiça.
134
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
82
Ler processos criminais não significa partir em busca ‘do que
realmente se passou’ porque esta seria uma expectativa inocente da
mesma forma como é pura inocência objetivar à utilização dos
processos criminais porque eles ‘mentem’. O importante é estar
atento às ‘coisas’ que se repetem sistematicamente: versões que se
reproduzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos,
mentiras ou contradições que aparecem com freqüência.
135
Desse modo, ao analisarmos o processo de João podemos perceber a trajetória de
uma criança operária que recorreu à instituição judiciária para requerer o direito à
indenização pelo acidente de trabalho. O Processo nos faz perceber que mesmo ao
legitimar o seu pleito, por meio do mecanismo científico - o Laudo Médico confirmou
que o acidente comprometia a saúde da criança -, a Justiça não resolveu o caso da
criança operária, uma vez que “houve agravo de petição”, fazendo com que o processo
ficasse inconcluso, como nos fala um dos relatórios arquivado no prontuário de João.
Mas, João não estava sozinho. Os jornais da época denunciavam constantemente
os acidentes envolvendo as crianças nos locais de trabalho. No dia 2 de julho de 1930,
Arlindo Bezerra da Silva, garoto empregado na Padaria Rio Branco, localizada na
Torre, acidentou-se. Naquela manhã, a moenda esmagou o braço esquerdo do pequeno
operário. Segundo matéria do Jornal Pequeno,
Companheiros seus, presenciando o sucedido trataram de prestar-lhe
os primeiros curativos, enquanto era chamado a Assistência Pública.
Minutos depois foi Arlindo transportado para o Hospital de Pronto
Socorro, onde teve logo a devida intervenção cirúrgica (...) Em
seguida o menor foi removido ao Hospital Pedro II e foi recolhido à
enfermaria de São Francisco.
136
Em novembro de 1931, o Diário de Pernambuco trazia outra notícia de acidente
de trabalho envolvendo os pequenos trabalhadores. Manuel Francisco, de 13 anos de
idade, operário da Usina Mumuripe, durante seu expediente “procurou galgar uma
locomotiva daquela usina, fê-lo desastradamente, sendo colhido pelas rodas”, o que
ocasionou o esmagamento do braço direito e outras feridas pelo corpo do garoto, que
foi levado ao Hospital Fernandes Vieira, ficando internado. O caso de Manoel era
grave, assim dizia o Jornal.
Os casos de Arlindo e de Manoel nos fazem perceber como o universo de
trabalho desses pequenos operários era cercado por uma série de perigos, entre eles, o
135
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001. p . 41
136
Jornal Pequeno. O dia começou mal... Recife, 2 de julho de 1930. p. 04.
83
de trabalhar e manusear máquinas impróprias para a idade dessas crianças e jovens. As
instalações precárias, a insalubridade, as longas jornadas de trabalho foram
características que marcaram o dia a dia das crianças trabalhadoras.
Nesse cenário marcado por constantes denúncias de acidentes de trabalho, os
jornais operários travaram uma campanha voltada para que os trabalhadores
procurassem a polícia ou a autoridade mais próxima para registrar e tomar as devidas
providências, atendendo o acidentado nas suas necessidades. Dizia o jornal Voz
Operária, em 12 de março de 1932, que:
Todos os camaradas trabalhadores que em qualquer caso de acidente
no trabalho, qualquer um sem medo de represarias por parte dos
patrões, deve imediatamente chamar mais outro como testemunhas,
participarem o ocorrido primeiro ao gerente, mestre ou encarregado, e
logo em seguida se dirigir à polícia local ou autoridade mais próxima
comunicando o fato.
137
Essa pequena nota evidencia como as organizações dos trabalhadores
orientavam os operários no caso de acidente, também considerados na época caso de
polícia. O cuidado com a testemunha, com o registro, com a procura das instâncias
especializadas, leva-nos a perceber como as estratégias foram articuladas no sentido de
atender os direitos do trabalhador acidentado. A advertência de não ter “medo da
represália do patrão”, permite-nos perceber que as denúncias podiam gerar
desdobramentos negativos para os trabalhadores, como perseguições ou até demissões.
Mas, existia um mundo além das fábricas e oficinas. Enquanto Ricardo,
Francisco, João e outros agentes sociais que protagonizam essas histórias, moravam nas
comunidades populares espalhadas pelos arredores do Recife, outros residiam com seus
familiares nas vilas operárias que, naquele período começaram a ser construídas para os
trabalhadores e suas famílias. Nos espaços de moradia, essas crianças e jovens
brincavam, conversavam à noite com seus vizinhos e descobriam, com o passar do
tempo, suas paixões e amores.
Em O moleque Ricardo, José Lins nos fala que o personagem principal do seu
romance morava na Rua do Cisco, em um dos mangues espalhados pelo Recife.
Naquela comunidade vivenciava as adversidades típicas de um morador do mangue,
quando no inverno,
137
Voz Operária. Acidentes de Trabalho. Recife. 12 de março de 1932. Capa.
84
A lama entrava por dentro de casa. O mangue fedia mais. As casas
gotejando pelas folhas de zinco furadas. O inverno ali era duro. Ainda
com sol a miséria contar a sua história.
Todavia, no verão,
O céu, à noite, cobria-se todo com as suas estrelas. A lua tinha um
mangue para se derramar por cima dele. Uma noite de verão na rua
do Cisco não fazia vergonha. As mulheres conversavam mais tempo
pelas portas das casas, os meninos brincando o ‘coelho sai’ até
tarde...
138
Eram nessas noites de verão que os homens e as mulheres, os meninos e as
meninas se divertiam, namoravam, discutiam, quando trocavam suas experiências nas
conversas realizadas nas calçadas ou nas janelas dos mocambos. Ali se discutia de tudo:
política, futebol, sem faltar às especulações sobre a “vida alheia”. Assim era vivido o
cotidiano dos pequenos trabalhadores além dos muros da fábrica.
No carnaval, que alegria! Ao sair da padaria, o moleque Ricardo ganhava as ruas
do Recife e encontrava com o som do frevo, com o ritmo contagiante das orquestras,
dos mais diversos blocos que invadiam a cidade. Ricardo caia no passo e junto com
outros moleques estavam incluídos naquela festa bonita. Era o carnaval; o bloco Paz e
Amor
Marchava para o Recife, sem medo de fracasso (...) Os bondes de
Olinda passavam grudados. Reboques empilhados. Não havia mais
história de primeira classe. Brancos e negros juntos pagando a mesma
coisa. Os blocos e os cordões desciam cantando. Os violões, as
clarinetas se uniam, confraternizavam os quebrados, nas harmonias
mais doces do mundo.
139
Na festa, a vida sofrida e pesada se tornava feliz e leve. O “carnaval encorajava
Ricardo. A música lhe fervia no sangue quando ele ouvia na rua um clube passando.
Caía no frevo, instigado sem saber por que”, assim falou José Lins. A vida das crianças
e jovens que se acordavam cedo, muitas vezes sem se alimentar devidamente, para
caminhar para fábricas ou oficinas do Recife, enfrentando os mais diferentes tipos de
exploração, também era feita de momentos de felicidade, de alegria e de festa.
O tempo passou e Ricardo cresceu. Já grande retornou ao Engenho Santa Rosa
para visitar a mãe e todos que deixara, “ainda quase menino, sumira-se do engenho
sem ninguém saber para onde”. Foi uma festa, “a casa inteira recebeu a carta com muita
138
REGO, José Lins. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 214
139
Ibidem. p. 184.
85
alegria. Ricardo vinha do Recife passar uns dias com eles”.
140
Assim como Ricardo,
outros moleques tiveram a oportunidade de voltar. Outros trouxeram suas famílias do
interior para morar no Recife. Outros caíram no mundo do abandono, do esquecimento.
Tantos moleques, várias histórias...
Ao historiador, cabe a função de narrar as trajetórias de vidas desses agentes
sociais que fizeram parte da história da cidade e que muitas vezes foram também
abandonados ou esquecidos pela historiografia tradicional. Debruçar-se sobre o
cotidiano dos pequenos trabalhadores nos faz perceber que o dia a dia desses agentes
sociais foi permeado por conflitos e tensões. Distantes dos bancos escolares e dos
momentos de lazer, essas crianças e jovens buscaram resistir das mais diversas formas à
lógica da produção e, muitos deles, tornaram-se homens e mulheres que superaram os
desafios impostos pela vida.
Gostaríamos de pedir licença ao leitor e/ou leitora para finalizarmos essas
discussões com uma frase emblemática do historiador inglês E. P. Thompson, que ao
dedicar um espaço sobre a questão do trabalho infantil na sua obra A formação da
classe operária inglesa, concluiu o seu texto com o desabafo do militante: “a
exploração das crianças, na escala e na intensidade com que foi praticada, representou
um dos acontecimentos mais vergonhosos da nossa história”.
141
2.2 - Nas ruas do Recife, o cotidiano dos “pequenos gazeteiros”
O pequeno Gregório saiu de Panelas de Miranda, cidade do Sertão de
Pernambuco, e chegou ao Recife. O seu desembarque foi na Estação das Cinco Pontas,
que se localizava ao lado da fortaleza onde funcionava o quartel que levava o mesmo
nome. Naquela noite, o Recife estava iluminado por velhos lampiões a gás que o fez
lembrar “do reino encantado das estórias” contadas por sua avó. Contudo, o encanto foi
se perdendo; mesmo, na Estação, o garoto encontrou-se com pessoas doentes,
pedindo esmolas e com outros sinais que evidenciavam as contradições sociais da
cidade. Diante de tanta pobreza, Gregório relembra: “na cidade dos meus encantos havia
muita pobreza, miséria e sofrimento...”.
140
Ibidem, p. 29.
141
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. V. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
p. 224.
86
Assim, o político pernambucano Gregório Bezerra relatou o seu primeiro
encontro com a cidade, marcado pelo desencanto:
Para mim foi um desastre. Eu tinha impressão de que a cidade do
Recife era uma cidade de rico, que não existia ninguém pobre, não
havia ninguém pedindo esmolas, o existiam miseráveis; e logo na
estação vi uma porção de gente doente, exibindo as feridas das
pernas, os aleijões, as deformações de toda natureza. Eu fiquei
horrorizado. Nunca pensei que em Recife também tivesse gente
doente, gente miserável como nós.
142
As memórias de Gregório Bezerra sobre sua chegada ao Recife tornam-se um
documento valioso para o historiador que procura entender a cidade e suas contradições
sociais. O Recife desenhado por Gregório, foi colocado em tela a partir do seu
desencanto. A construção de uma cidade “ideal” para viver, foi desconstruída no
primeiro instante, no primeiro olhar, uma vez que ao desembarcar no Forte das Cinco
Pontas, o pequeno Gregório deparou-se com a cidade das desigualdades sociais. Talvez,
na época, o olhar de uma criança não tenha registrado as contradições, mas, o
estranhamento ao encontrar tanta gente pedindo esmola, expondo suas “feridas”, foi
efetivo, haja vista que Gregório deixou registrado na sua memória aquele primeiro
encontro, marcado pela decepção e horror.
Ao publicar suas memórias, Gregório Bezerra nos deixou um importante registro
de sua atuação política e de sua trajetória de vida.
143
Na parte dedicada à infância, o
político pernambucano, relatou seu cotidiano no Recife, vivenciado durante as primeiras
décadas do século XX. Nesse “teatro da memória”, onde Gregório foi o personagem de
si mesmo, percebemos que a escrita auto-referencial, ou escrita de si, foi construída à
luz das práticas e posições políticas vivenciadas pelo autobiografado.
A luta no Partido Comunista, a influência do pensamento marxista, por exemplo,
estão fortemente presentes na sua narrativa, fazendo com que as questões políticas por
ele vividas se entrelaçassem com as suas memórias de infância e juventude. Ao
trabalharmos com autobiografias, temos que analisar o que está “por trás do texto”,
onde temos que buscar a relação entre o “mundo” e o “eu” do autobiografado.
144
A
escrita autobiográfica, enquanto fonte para escrita da história, leva-nos a conhecer os
142
Entrevista de Gregório Bezerra ao Programa de História Oral da Fundação Joaquim Nabuco.
Pesquisadora: Eliane Moury Fernandes. Recife: Fundaj, 1982.
143
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
144
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
87
fatos e acontecimentos à luz das lembranças do depoente. Essas lembranças não devem
ser analisadas distante do lugar social e político ao qual o biografado pertence. Desse
modo, também não podemos negligenciar outras formas subjetivas, presentes na
narrativa do entrevistado, como os medos, os angústias e os anseios.
145
Ao discutir a relação da historiografia com a documentação autobiográfica,
Ângela de Castro Gomes afirma que o historiador deve considerar a questão da “ilusão
biográfica”, criticando a existência de um “eu” coerente e contínuo, para que não sejam
reproduzidos os “efeitos de verdade” expressados na narrativa autobiográfica.
146
Ao
debruça-se sobre uma escrita auto-referencial, o historiador dialoga com as novas
perspectivas historiográficas, quando a memória individual passa a ser utilizada como
fonte documental para a construção de uma escrita da história. Gomes nos afirma que os
registros de memórias são práticas bastante característica do “homem moderno” e que:
De forma geral e por definição, subjetivos, fragmentados e ordinários
como suas vidas. Seu valor, especialmente como documento
histórico, é identificado justamente nessas características, e também
em uma qualidade decorrente de uma nova concepção de verdade,
própria às sociedades individualistas. Sociedades que separam o
espaço público do privado, a vida laica da religiosa, mas que, em
todos os casos, afirmaram o triunfo do indivíduo como sujeito
voltado para si, para sua razão e seus sentimentos. Uma sociedade em
cuja cultura importa aos indivíduos sobreviver na memória dos
outros, pois a vida individual tem valor e autonomia em relação ao
todo. É dos indivíduos que nasce a organização social e não o
inverso.
147
A
escrita de Gregório, uma escrita de si, faz-nos ouvir a voz de um ex-militante
comunista, que enfrentou os embates, as divergências dos setores mais conservadores da
política brasileira e do próprio Partido Comunista. Todavia, poucos conhecem a história
da sua infância e juventude, momentos de sua vida que nos possibilita uma melhor
compreensão acerca de sua trajetória pessoal e política. Desse modo, nosso interesse
maior é de historicizar o passado de Grilo, como era chamado Gregório Bezerra, quando
criança. O codinome Grilo faz referência a seu porte físico, uma vez que era um garoto
franzino, baixinho e que possuía grandes olhos azuis.
Aos nove anos de idade, foi visitar sua irmã, que morava em Palmares.
Chegando lá, conheceu Dona Dondom, esposa do Senhor Magalhães, proprietário do
145
LE GOFF, Jacques. Memória. V. II. Lisboa: Edições 70, 2000.
146
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
147
Ibidem, p. 13.
88
Sítio Brejinho, que ficou interessada em levá-lo para o Recife, uma vez que gostou dos
trabalhos que havia realizado na horta da casa de uma das madrinhas de suas irmãs. A
promessa de ensiná-lo a “ler, a escrever e a contar”, animou o menino Gregório, que
aceitou o convite. As lembranças da viagem para o Recife não se perderam no tempo.
Na vinda para a cidade grande, era uma grande admiração pelo que via. Os morros, os
rios, as pontes, os canaviais, as usinas às margens das cidades (...) Uns com os sacos nos
ombros, chapéu de palha na cabeça, barbas crescidas, descalços, na maioria
desdentados...”.
148
Era um trem que transportava os passageiros inseridos na categoria
denominada como “segunda classe”. Era o povo. Muitos podiam morar no Recife,
outros provavelmente iriam visitar os parentes que lá se encontravam. Cada um com um
destino. E o de Grilo, qual seria?
Tudo aquilo para ele era estranho. Grilo encontrava-se com o novo. Os trabalhos
domésticos da casa dos Magalhães passaram a fazer parte do seu dia-a-dia e, a partir
deles, o menino do Sertão passou a conhecer o Recife. Realizando suas obrigações, a
pedido de seus responsáveis, visitava a farmácia do Doutor Tomé Gibson, “na Rua São
João com o Pátio do Terço”; a Cruz Vermelha, uma firma de importação e exportação,
localizada na Praça da Estação Central e outros cantos e recantos da cidade que Grilo
passou a conhecer através dos recados, das entregas ou das buscas de encomendas,
passando, inclusive, a conviver com as pessoas dos arredores.
A promessa de alfabetizá-lo nunca foi cumprida. Contudo, teve que aprender a
rezar. Não era do seu agrado, “mas a disciplina doméstica” o obrigava. A jornada de
trabalho diário se tornava mais pesada e o sonho de aprender a “ler, escrever e contar”
se tornava mais distante. Ao narrar suas memórias, Gregório nos fala dos seus
sentimentos, dentre eles, o da frustração, da angústia e até mesmo do ódio, haja vista
que no decorrer de suas andanças pela cidade, Grilo percebeu que outras crianças
brincavam e se divertiam, enquanto ele não vivia esses momentos. Ao relatar a sua
relação com um colega que também trabalhava na casa dos Magalhães e com outras
crianças, recordava:
Não tínhamos liberdade de brincar, nem mesmo de falar com outros
garotos (...) Sentia a vida desigual das crianças e dos homens.
Crianças que morriam de fome, viviam descalças e não tinham casas
para morar; crianças, enfim, que nada tinham e apenas vegetavam
148
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 96.
89
com os seus pais, e muitas nem pais possuíam. Eu tinha saudade de
minha mãe, de meus irmãos, de vovó, de meus tios e chorava nas
horas de maior aflição. Nós tínhamos tempo de conversar na hora de
dormir e muito baixo para não incomodar os nossos senhores, donos
da vida.
149
Nas suas memórias, Gregório nos relata como era vivido o cotidiano das
crianças que circulavam ou até moravam nas ruas comerciais do Recife e que se
encontravam no contexto de abandono e pobreza. Este momento sócio-histórico marca o
surgimento das primeiras iniciativas do Estado no sentido de construir um plano
político-jurídico de assistência à infância. A presença dessas crianças e jovens nas ruas
dos grandes centros urbanos, inclusive do Recife, passou a comprometer a segurança e a
comodidade daqueles que transitavam neste espaço comercial, comprometendo o
projeto econômico e estético da sociedade burguesa e do cotidiano daqueles que tinham
esses espaços como locais de lazer.
A fuga se apresentou como alternativa para sair da casa dos Magalhães. Ao
fugir, a rua se tornou o local da sua morada. Na rua, Grilo encontrou outras crianças que
buscavam sobreviver no mundo da pobreza e do abandono. Muitas trabalhavam de dia e
voltavam à noite para suas casas. Outras permaneciam nas ruas, pois eram nos becos,
nas esquinas, nas calçadas que elas dormiam. Ao estudar a questão das crianças que
viviam nas ruas das grandes cidades durante as primeiras décadas dos novecentos, a
historiadora Esmeralda Moura nos fala que naquele período a rua apresentava-se como
um local de múltiplas identidades:
Aglutina e ao mesmo tempo exclui, sob seu significado, uma
extraordinária gama de personagens que se inserem na sua própria
dinâmica de forma diferenciada. A rua é, também, o espaço no qual a
pobreza ganha plena visibilidade, mesclando-se à tão questionada
marginalidade social, e são tênues os limites que a separam do crime
e da delinqüência com os quais freqüentemente se confunde.
150
Nas ruas, essas crianças buscavam, das mais diferentes formas, resistir aos
desafios que lhes eram impostos. Foi o que aconteceu com Grilo, que trabalhou como
freteiro, pediu esmolas e prestou pequenos serviços em troca de comida ou de um local
para dormir. Muitas dessas crianças tinham a rua como uma “grande escola”, onde lhes
149
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 102
150
MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na
construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. 1999. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. p. 85-102.
90
eram ensinadas as grandes lições de como enfrentar os perigos da vida, desafiando-os e
superando-os.
No decorrer da nossa investigação, percebemos que Grilo não estava só. Naquele
período, as notas de jornais denunciavam as fugas de meninos e meninas do Recife,
quando muitos deles também buscaram escapar dos trabalhos domésticos, como foi o
caso de Simplício Gomes, de 13 anos de idade, que era empregado na residência de
Maria Amélia. Em janeiro de 1930, Simplício recebeu “20$000 para fazer umas
compras, não mais voltou”. Maria Amélia apresentou-se na polícia para prestar queixa
contra o garoto. A nota do Jornal do Commercio trazia o título: “um menor que
promete, saiu e errou o caminho da volta”.
151
Em 8 de janeiro de 1931, o Diário de Pernambuco trazia outra notícia de
desaparecimento de outra criança. Maria de Barros também fugiu da casa do Senhor
Eduardo Lima. Dizia a nota:
Menor desaparecida
Era empregada na casa de família do Sr. Eduardo Lima, à rua da
Concórdia nesta cidade, a menor Maria de Barros, de 15 anos de
idade de cor branca (...) Sendo natural deste Estado, com a família de
Garanhuns, fugiu anteontem da casa onde se achava tomando destino
ignorado. O caso foi levado ao conhecimento da polícia para devidas
providências.
152
A pequena notícia de jornal ainda trazia a informação de que Maria de Barros
trabalhava na casa daquela família desde os 8 anos de idade. Um mês depois, naquele
mesmo ano, o Diário de Pernambuco trazia um outro caso, desta vez o de Maria de
Lima, que fugiu da casa dos patrões na manhã do dia 12 de fevereiro. Maria de Lima era
branca, tinha 14 anos de idade e trabalhava como doméstica na casa de João Alves de
Mello e de Luiza de Souza Mello. Dizia o jornal que “a referida menor é natural de
Alagoas e vive na casa daquela família acerca de 8 anos”.
153
Assim como os patrões de
Maria de Barros, a família Mello também foi prestar a queixa no Primeiro Distrito da
Capital.
151
Jornal do commercio. Um menor que promete. Na polícia e nas ruas. Recife, 30 de janeiro de 1930.
Acervo: Instituto de Documentação - Microfilme - Fundação Joaquim Nabuco.
152
Diário de Pernambuco. Menor desaparecida. Factos diversos. Recife, 08 de janeiro de 1931. Acervo:
Instituto de Documentação - Microfilme - Fundação Joaquim Nabuco.
153
Diário de Pernambuco. Fugiu da casa dos patrões. Factos diversos. Recife, 13 de fevereiro de 1931.
Acervo: Instituto de Documentação - Microfilme - Fundação Joaquim Nabuco
91
Maria de Barros, Maria de Lima e tantas outras “marias”. A escapada das
meninas, assim como a de Gregório e a de Simplício, da casa dos patrões que podem
ser vista como uma tática –, apresenta-se como uma procura de uma nova vida, de um
novo trabalho de um novo modo de sobrevivência. De acordo com Michel de Certeau, a
tática pode ser considerada como a “arte do fraco”, determinada pela “ausência de
poder”, sendo vivida nas sutilezas do convívio social. Para Certeau:
A tática não tem o lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com
o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força
estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distancia,
numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática
é o movimento dentro do campo de visão do inimigo e no espaço por
ele controlado.
154
A tática é a “vitória do fraco contra o forte”, assim nos diz Certeau. Diferente
das estratégias, as táticas são construídas nas práticas cotidianas, quando as artes de
falar, escrever, circular, ocupar e até mesmo a arte de fugir se apresentam como os mais
variados tipos de táticas. Grilo, Simplício e as Marias desafiaram o olhar panóptico da
sociedade em que viviam, e fugiram para um outro lugar, para um outro mundo, onde
buscaram desafiar os obstáculos impostos pela vida. A história de cada um desses
agentes nos mostra que frente aos sistemas de disciplina existe a antidisciplina; frente
aos mecanismos de ordem existe a desordem; e frente às estratégias de controle, existe a
busca pela liberdade.
Mas, a história de fugas dos nossos protagonistas não pára por aqui. Nossa
investigação nos aponta que várias crianças fugiam das “garras” dos patrões e também
do convívio familiar, como foi o caso de Antonio dos Santos, um garoto de 12 anos que
desapareceu da casa dos pais, em março de 1929.
155
No ano seguinte, em 18 de janeiro
de 1931, o Diário de Pernambuco trazia a notícia de um outro caso: Priscila Campelo
tinha sido encontrada A menor de 17 anos tinha fugido da casa de seu pai adotivo.
Assim dizia a nota:
dias desapareceu da residência do seu pai adotivo, à rua de
Jangada, 59, em São José, a menor de 17 anos Priscila Campello,
órfã de pai e mãe. O senhor por isso compareceu à 3ª delegacia
154
CETEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p 101
155
Jornal do Commercio. Onde esta ele? Um menor desapareceu da casa dos pais. Na polícia e nas ruas.
Recife, 01 de março de 1929. Acervo: Instituto de Documentação - Microfilme - Fundação Joaquim
Nabuco.
92
apresentando queixa. Ontem pela manhã, a menor aludida foi
encontrada na casa de uma viúva à rua Nova Seita, nº. 120, em
Campo Grande, para onde tinha fugido. A polícia do distrito está
ciente do fato e a menor será apresentada ao juiz de órfãos.
156
Priscila era órfã de pai e mãe e vivia com seu pai adotivo no Bairro de São José.
Nesse caso, a menina foi encaminhada ao Juiz de Órfãos, a fim de ser acompanhada por
aquela autoridade judicial. A pequena nota traz uma informação importante: a
intervenção do sistema jurídico no caso da menor. Como podemos perceber, os vários
casos anteriores que envolviam o desaparecimento das crianças, eram resolvidos na
polícia, levando-nos a perceber que no Recife os problemas sociais referentes às
crianças e jovens que viviam em situação limite se tornavam “casos de polícia”. Com a
promulgação do Código de Menores de 1927, esses casos, mesmo sendo resolvidos na
primeira instância pelo aparato policial, passavam a ser encaminhados para o Juiz de
Menores ou o Juiz de Órfãos, como foi o caso da Priscila.
No Código de Menores de 1927, o espaço destinado à questão da relação entre
pais e filhos ou responsáveis, mereceu um capítulo especial e esteve voltado para a
preocupação com “a inibição do pátrio poder e da remoção da tutela”. Em nome “da
honra e da honestidade das famílias”, o discurso do Código foi construído a partir da
premissa do controle e da punição dos pais, mães ou tutores que desrespeitassem os
ditos daquele instrumento normatizador, instituindo uma nova concepção de família.
Nesse sentido, o papel social do pai, da mãe ou do tutor estava relacionado à
garantia de uma assistência econômica, social e psicológica, e as relações entre pais e
filhos deveriam ser pautadas no campo dos sentimentos, vivenciadas em um lar que
representasse o espaço onde estes aspectos deveriam ser harmonicamente vivenciados.
Ao nos voltarmos para o artigo 31, Capítulo V do Código de Menores de 1927,
verificamos que:
Nos casos em que aprovada negligência a incapacidade, o abuso de
poder, os maus exemplos, a crueldade, a exploração, a perversidade,
ou o crime do pai da mãe ou do tutor podem comprometer a saúde,
segurança ou moralidade do filho ou do pupilo, a autoridade
competente decretará a suspensão ou a perda do pátrio poder ou a
destituição da tutela, como no caso couber.
157
156
Diário de Pernambuco. Menor encontrada. Fatos diversos. Recife, 18 de janeiro de 1931. Acervo:
Instituto de Documentação - Microfilme - Fundação Joaquim Nabuco
157
Brasil. 1927. Código de Menores de 1927. Art.. 31, Capítulo V.
93
Analisando este trecho do Código, podemos perceber que o seu discurso dialoga
com o novo sentimento de família, quando o Estado, revestido de sua autoridade,
passava a ter controle e poder de punição sobre os pais ou responsáveis que, por sua
vez, atendiam a manutenção e fortalecimento do direito penal moderno, onde a
prevenção e a punição passaram a dialogar de forma efetiva. A partir deste princípio, a
proposta do Código buscava estabelecer uma nova lógica social concernente às relações
de poder entre o Estado e as famílias, uma vez que este buscava intervir diretamente no
campo das relações domésticas, transferindo para si a “autoridade” de decidir sobre a
guarda dos filhos ou “pupilos”, caso os pais ou tutores não correspondessem às
determinações legalmente estabelecidas.
De acordo com os artigos que compõem o Capítulo V do Código, o pai, a mãe
ou o tutor seriam “condenados por crime contra a segurança da honra e honestidade das
famílias”, sendo retirado o direito do pátrio poder quando fossem constatadas práticas
de castigo indevidas contra os filhos, registradas ações “contra a moral e os bons
costumes” ou outras práticas que comprometessem a segurança e a proteção da crianças.
Neste processo, o Juiz de Menores ou o tribunal seriam as autoridades responsáveis para
que as medidas cabíveis fossem tomadas.
Ao voltar-se para a questão dos tutores, o Código de Menores de 1927 passou a
confiar ao juiz ou tribunal, além do direito da remoção da tutela, a indicação de outros
responsáveis. Como nos aponta o Artigo 53,
A autoridade judicial pode, a todo tempo, substituir o tutor ou guarda
do menor, ex-officio, a requerimento do Ministério Público ou das
pessoas às quais aquele for confiado.
158
Mas, voltemos ao mundo das ruas. O que esse espaço de trabalho, de moradia,
de convívio podia oferecer para as crianças e jovens que transitavam? Não é difícil
imaginarmos que, nas ruas, essas crianças vivenciaram as mais diferentes experiências
que ficaram marcadas nas suas vidas. Perambulando pelas ruas do Recife, o nosso Grilo
ouviu o som do frevo. Era o ensaio do Clube Carnavalesco Carvoeiro. O pequeno foi
atraído pela sica, incorporou-se na multidão e caiu no passo. De repente, um senhor
o convidou para conduzir a máquina de carbureto durante aquele momento, que garantia
a festa da multidão. Ao aceitar, o menino Gregório acompanhou as
158
Idem. Art. 53, Capítulo V.
94
Marchas de frevos, vivos, bonitos e ritmados, arrastando uma
gigantesca multidão de improvisados foliões, uns calçados e
regularmente vestidos, outros descalços, maltrapilhos e famintos; uns
embriagados pelo álcool e outros pela loucura do passo e do frevo.
159
Era o frevo pernambucano, aquele que contagiava a todos que o escutava. Era o
carnaval, “uma festa querida por todos”, como dizia Mario Sette.
160
Eram os passos do
frevo, quando ao som dos clarins de momo” Gregório entrou no bloco, caiu no passo,
esqueceu os problemas e abriu alas para um momento de alegria. Viver na rua não quer
dizer que tudo era tristeza, assim afirmou Gregório ao relembrar a sua infância.
Gregório sentiu-se inserido, partícipe daquele momento. Ainda aproveitou para ajudar
os organizadores do Clube, garantindo um pequeno “trocado”, que o possibilitou
comprar algo para comer. Depois de cair na folia, Grilo descansou e dormiu na calçada
de uma casa comercial.
Em suas memórias, Gregório narrou seus sentimentos, suas emoções, sem
desprezar acontecimentos que surgiram no cotidiano, chamando-nos a atenção que as
histórias de nossas vidas também são construídas a partir do não programado, do não
estabelecido, do não esperado. A partir deste depoimento, percebemos que a história se
constrói no dia-a-dia, transforma-se a partir dos anseios, das angústias e da necessidade
de resistência sentida por homens e mulheres comuns. De acordo com a historiadora
Maria Izilda Matos, ao se preocupar com o cotidiano, o historiador pretende perceber
suas mudanças e permanências, descontinuidade e fragmentação, as amplas
articulações, as infinitas possibilidades dessa trama multidimensional, que se compõem
e recompõem continuamente”.
161
Nas ruas, Grilo passou a vender jornais. A efervescência econômica e cultural do
Recife se refletiu no campo da imprensa escrita, quando, neste período, o número de
jornais que circulavam na cidade era bastante expressivo. Além do Jornal do
Commercio e do Diário de Pernambuco, eram distribuídos o Jornal Pequeno,
Pernambuco, A Província, Diário da Manhã, entre outros. Esses periódicos eram
considerados progressistas ou conservadores, organizados por intelectuais ou por grupos
159
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 117.
160
SETTE, Mario. Terra Pernambucana. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife; Recife,
1981. p. 177-178.
161
MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002. p.
27.
95
políticos. Através das páginas desses jornais, a vida da cidade era diariamente
registrada.
Além dos redatores, fotógrafos e revisores, os gazeteiros se tornavam
imprescindíveis para a viabilização do trabalho, uma vez que eles eram encarregados de
distribuir e comercializar os jornais nos mais distantes e diferentes locais da cidade. Os
gazeteiros caminhavam sob o calor do sol ou do frio da madrugada, nos distantes
itinerários a pé, carregando debaixo dos braços exemplares dos jornais. Para chegar ao
encontro dos consumidores, eles circulavam pelas ruas e avenidas da cidade,
estabeleciam seus pontos nas esquinas, enfrentando os momentos de disputas gerados
pela concorrência desenfreada, ou de alegrias, promovidas pelas vitórias conquistadas.
O território dos gazeteiros não era ocupado apenas pelos homens “feitos”. Para
atender à demanda de trabalho, os adultos passaram a disputar o espaço de trabalho com
os chamados “pequenos jornaleiros”: crianças e jovens que estavam na faixa etária entre
10 e 18 anos de idade. Analfabetos, pretos ou pardos, naturais de Pernambuco,
moradores dos morros e alagados do Recife. Muitos possuíam famílias, outros viviam
no estado de abandono.
162
Cada gazeteiro tinha seu setor. Essa era uma regra que deveria ser respeitada,
caso contrário, as disputas passavam a ser construídas no campo das agressões físicas
e/ou verbais. Uma vez ultrapassados os limites estabelecidos, as perseguições eram
efetivadas. De acordo com Gregório, a sua condição de criança fazia-no merecer uma
atenção especial dos leitores e isso aborrecia outros gazeteiros. Gregório, o “pequeno
jornaleiro”, era alvo dos chutes, dos tabefes e de outras formas de violência. Contudo,
Gregório afirmava:
Aos poucos, com muitas desvantagens contra mim, ia revidando os
insultos, os palavrões, os murros, os tapas, as tabicas (...)
Desgraçadamente eu era menor que os meus agressores, tinha menos
força e menos agilidade do que eles, mas era teimoso, não entregava
os pontos e não dava por vencido. Às vezes, com um rival eu brigava
três, quatro vezes, até sentir que tivera algumas vantagens ou que ele
desistia de me perseguir. Esta minha atitude impôs respeito.
163
162
Durante a nossa investigação realizamos uma pesquisa nos Livros de Entrada e Saída de presos da
Casa de Detenção do Recife, que nos permitiram realizar uma amostra sobre o perfil das crianças e jovens
detentos naquela instituição. A amostragem nos permitiu construir o perfil desses menores e nos levou a
pesquisar os prontuários individuais, que serão trabalhados no próximo capítulo. Fundo: Casa de
Detenção do Recife. Livros de Entrada e Saída. Período: 1927-1937. Arquivo Público de Pernambuco
Jordão Emereciano – Apeje
.
163
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 1900-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 127.
96
Para Gregório a estratégia de resistência foi construída na luta diária, na
persistência, na teimosia de querer continuar vivendo. Enfrentar os riscos e desafiar o
perigo nas ruas, esquinas e praças da cidade, onde cada um destes espaços era dominado
por grupo ou por um gazeteiro veterano, passou a fazer parte da sua rotina diária. Na
luta pela sobrevivência, as negociações, os vários momentos de sujeição, o silêncio e o
conflito se traduziram como estratégias de resistência.
Contudo, Gregório também nos fala das redes de solidariedade que foram
construídas no cotidiano. Além da atenção dos clientes e de algumas famílias que
demonstravam interesse em acolhê-lo, alguns dos jornalistas apresentavam-se
indignados com a exploração vivida pelas crianças e jovens. Este depoimento nos faz
observar que a história dos “pequenos jornaleiros” também foi marcada pelos momentos
de trocas de afetividade, pelas vitórias conquistadas, pelos fatos inusitados ocorridos na
sutileza do convívio social.
As disputas por espaços passaram a fazer parte do cenário da cidade, as
rivalidades entre os gazeteiros despertaram a atenção de algumas autoridades
responsáveis pela segurança pública. Desse modo, as diversas notas de jornais
denunciavam os momentos de violência vivenciados entre as crianças e jovens.
Vejamos o que diz nota publicada em 03 de maio de 1927, no Jornal do Commercio:
Entre gazeteiros – discutiam e um saiu as pauladas
Anteontem, pela 7 horas, na praça da Independência, o gazeteiro
Augusto Ferreira, de 14 anos de idade, após discutir com seu
companheiro, foi pelo mesmo agredido, recebendo várias pauladas. O
criminoso, preso flagrante delito, foi levado para a Delegacia de
Polícia do Distrito da Capital. Augusto, que recebeu vários
ferimentos no couro cabeludo, teve curativos no posto de Assistência
Pública, recolhendo-se, logo após, a sua residência, em Bomba
Grande.
164
O caso de Augusto Ferreira nos revela como eram assistidas as crianças e jovens
que sofriam agressões físicas. Estas notas eram reproduzidas pela coluna policial do
Jornal do Commercio que, por sua vez, foi criada com o objetivo de divulgar o
cotidiano policial e disseminar o discurso daquele poder, construído a partir do ideário
da ordem e da paz social. A polícia, que atuava diretamente com os casos que
164
Jornal do Commercio. Entre gazeteiros – discutiam e um saiu as pauladas. Na polícia e nas
ruas. Recife, 03 de maio de 1927
97
envolviam estas crianças e jovens que vendiam jornais, passou a controlar de forma
efetiva o cotidiano das mesmas por meio de práticas de vigilância e coerção.
Os Livros de Entrada e Saída da Casa de Detenção do Recife são documentos
que nos mostram como foi construído o controle sobre os garotos. Neles, estão expostos
os motivos das prisões das crianças e jovens que comercializavam os jornais e a
categoria criminal que eles se inseriam. Segundo o historiador Sidney Chalhoub, tais
categorias criminais foram construídas sob a lógica policial que, por sua vez, pertenciam
ao projeto de controle social forjado a partir dos interesses políticos e econômicos da
sociedade burguesa da época. Para o historiador, essas práticas de controle e coerção
procuravam intervir no cotidiano das pessoas comuns.
165
De acordo com tais registros, as crianças e jovens eram classificadas como
vagabundos, desordeiros ou gatunos. Essas formas de classificação se tornavam
estereótipos utilizados na identificação destes agentes, que passavam a carregar o
estigma do ameaçador, lesivo e perigoso, fazendo com que estes se inserissem no
universo social da marginalidade. Como nos fala Goffman, o estigma marca a relação
entre o atributo e o estereótipo, onde a sociedade passa a “categorizar as pessoas e o
total de atributos considerado como comuns e naturais para os membros de cada uma
dessas categorias”.
166
Em maio de 1927, o editorial do Jornal do Commercio trazia o debate sobre o
cotidiano dos pequenos gazeteiros e afirmava que as autoridades deveriam se preocupar
com esta categoria profissional, uma vez que a sociedade recifense estava diariamente
enfrentando a onda de perigo provocada por esses trabalhadores. Os elogios aos
gazeteiros, que se organizam em seu ponto de venda estratégico são acompanhados pela
crítica de algumas crianças e jovens, afirmando que:
O caso desse gazeteiro que se prostou em frente à barrica do “Jahu” a
introduziu melhor o produto da venda de jornais e vem demonstrando
que, na classe a que pertence, não há apenas moleques insolentes que
costumem arrumar rixas, de onde é comum sair diretinho para o outro
mundo (...) O gazeteiro fica, assim, ao cabo de um desses episódios
sangrentos, como o tipo de “caba de peia” incorrigível. Inútil
comunicar-lhe qualquer sentimento de brandura, de mansitude e de
paz. Tudo isso prova que deveriam dar ao gazeteiro a assistência que
eles não tem, para deixar a faca e agir só.
167
165
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. 2ª Ed. Campinas: editora da Unicamp, 2001.
166
No próximo capítulo faremos uma reflexão mais aprofundada sobre a questão do controle social sobre
essas crianças e jovens. GOFMAN, Erveing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 11.
167
Jornal do Commercio. Dia a dia. Recife, 03 de maio de 1927. Acervo: Fundaj.
98
As representações construídas neste editorial do Jornal do Commercio sobre as
crianças e jovens que vendiam os jornais no Recife durante este período, vistos como os
moleques insolentes”, que faziam o tipo “caba de peia”, ou seja, valentão, faz-nos
perceber como a imagem dos “pequenos jornaleiros” foi erigida por alguns segmentos
da sociedade daquela época. Para o editorial, os pequenos gazeteiros praticavam ações
desordeiras e violentas, disseminando assim, a idéia de que as crianças que transitavam
no mundo da venda de jornais representavam um perigo à sociedade.
Para conter o número expressivo de crianças e jovens destinados à Casa de
Detenção, vários debates foram travados no sentido de apontar encaminhamentos para a
resolução deste problema. Além dos poderes públicos, a imprensa operária passou a
discutir a assistência à infância dos “pequenos jornaleiros”, como nos mostra a matéria
publicada no jornal Cruzada Operária. Vejamos:
A Casa do Garoto
Antenor Nascimento
De uns tempos para cá, depois que Jacarepaguá fundou o Retiro dos
Artistas para alojar os que da ribalta saíram sem amparo na velhice,
começou a prática de se fundar tudo quanto é casa. Casa do jornalista
se admite, Casa do Médico igualmente, Casa do Marinheiro também.
São abrigos, os retiros, aonde se acolhem os que não venceram em
suas profissões. Mas, casas sem esse destino, francamente, são
inadmissíveis. A do garoto é uma delas. Para mim, a idéia da Casa do
Garoto teve uma vantagem: chamar a atenção do público e das
classes dirigentes para a situação dos pequenos vendedores de
jornais. Estes garotos passam o dia inteiro a gritar o nome das folhas,
a salta pelas estribas dos bondes, ônibus e automóveis. Com certeza
são mal alimentados, nutrem-se de qualquer pedacinho de pão, uma
frutinha comprada aos vendedores de rua, um docinho adquirido nos
tabuleiros. À noite onde dormirão? Devem dormir pelas portas das
redações, pelos albergues, pelos jardins, pelos cantos escuros onde
guarda-civil não os vá incomodar...
168
Ao analisarmos o discurso de Antenor Nascimento, percebemos que o caso dos
gazeteiros passou a ser visto como o problema de outras categorias profissionais, como
os artistas, médicos e marinheiros. A criação da Casa do Garoto foi apontada como um
mecanismo de assistência institucionalizada às crianças e jovens que vendiam jornais na
cidade, a exemplo do Retiro dos Artistas, construído no Rio de Janeiro. Desse modo,
através dessa reportagem, observamos que a sociedade passava a cobrar a intervenção
168
Cruzada Operária. A casa do garoto. Recife, maio de 1933. Acervo: Apeje.
99
do Estado no sentido da resolução dos problemas dessas crianças e jovens que vagavam
pelas ruas para vender seus jornais, muitas vezes, mal alimentadas, dormindo nas ruas
ou nos jardins e enfrentando as mais diferentes formas de perigo. A Casa do Pequeno
Jornaleiro foi construída na década de 1940, durante a interventoria de Agamenon
Magalhães.
169
Grilo, Augusto e tantos outros... As ruas da cidade do Recife são como cenários
que abrigam as mais diferentes histórias de vida. Crianças e jovens que integravam o
cotidiano da cidade e passaram a ser observados por alguns setores da sociedade como
indivíduos ameaçadores, que precisavam ser controlados, vigiados e disciplinados. Mas,
a cidade também era deles e os espaços em que eles atuavam foram reapropriados por
esses pequenos moradores, pequenos trabalhadores, fazendo com que novas maneiras de
fazer a vida fossem inventadas e reinventadas cotidianamente. De acordo com Certeau,
essas “maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais usuários se apropriam do
espaço organizado”.
170
As memórias de infância de Gregório Bezerra nos fazem ouvir o som do frevo
rasgado, cantado pelo Clube Carnavalesco Carvoeiro, nos faz sentir o medo de andar
pelas ruas estreitas, iluminadas por lâmpadas amareladas. Tais relatos construíram um
Grilo lutador, que desafiava os perigos da grande cidade, que enfrenta a rotina diária
com a vontade de vencer. Neste jogo de imagens e representações, Gregório construiu a
idéia de um personagem chamado Grilo, nos levando a tentar encontrar os sinais de
outras crianças que vivenciaram o universo social marcado pela constante relação entre
a exclusão e a resistência.
Tais memórias nos fazem ir ao encontro de outros “grilos”, permitindo-nos
discutir as relações entre estas crianças e jovens, do mundo do trabalho, que estavam
inseridos no contexto da marginalidade urbana. Através de seus relatos, podemos
vislumbrar que ao andar pelas ruas do Recife, no início do século XX, era possível se
deparar com as cenas de meninos vendendo jornais, pedindo esmolas, dormindo pelas
calçadas, ou se envolvendo em brigas, cenas o corriqueiras dos dias atuais. Estas e
169
Não podemos deixar de registrar que a construção da Casa do Pequeno Jornaleiro deve ser analisada a
partir do cenário político, social e econômico do Estado Novo, período da História do Brasil e de
Pernambuco, que as políticas de assistência à infância se processam a partir de outro ideário, ou seja, o
historiador que trabalha com o período Vargas deve analisar os cenários políticos dependendo da fase que
eles são construídos, uma vez que o Governo Provisório ou Constitucional se apresenta politicamente
diferente do Estado Novo. Daí, inclusive, o foco desse trabalho ser voltado para o período de 1927 a
1937.
170
CETEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p 41.
100
outras cenas foram relatadas por Gregório no sentido de relembrar o seu passado em
forma de protesto.
A escrita de si de Gregório Bezerra nos faz conhecer a visão de um depoente
profundamente envolvido com o contexto social e político por ele vivido, uma vez que o
período em que Gregório escreveu suas memórias foi marcado por sua militância no
Partido Comunista do Brasil e por toda sua trajetória de luta. Gregório construiu uma
auto-representação de si, através do sentimento de um militante. Relembrar o passado,
para Gregório, era protestar contra as injustiças sociais por ele vividas e reafirmar que
desde criança foi envolvido com a luta pela sobrevivência.
Não podemos negar que as memórias de infância de Gregório representam uma
fonte riquíssima para o historiador que pretende analisar o mundo do trabalho a partir
do olhar de quem viveu esta experiência na infância. Gregório Bezerra nos leva a
encontrar os caminhos dos becos, das palafitas, dos mocambos, sem deixar de dar o
brilho da antidisciplina, das festas, da trampolinagem, que se revestem como forma de
resistência.
Recife, cidade que vivia as contradições sociais causadoras dos expressivos
números da mortalidade infantil e de crianças que viviam a exploração do trabalho
infanto-juvenil. As grandes metrópoles brasileiras que enfrentavam o problema da
criminalidade que envolvia crianças e jovens. O problema central do próximo capítulo é
a questão da “delinqüência” e suas formas de combate. As ruas do Recife, locais de
moradia ou de trabalho, também eram espaços de práticas consideradas ilícitas que
passaram a ser noticiadas nos jornais da época. Diante deste cenário, são construídos
uma série de mecanismos e estratégias de controle que envolviam os mais diferentes
segmentos sociais, como o da psiquiatria, surgindo o conceito da “criança problema”.
101
TERCEIRO CAPÍTULO
“CRIANÇA PROBLEMA”: A COSNTRUÇÃO DA REDE DE ASSISTÊNCIA,
CONTROLE E COERÇÃO SOBRE A “INFÂNCIA PERIGOSA”
_________________________________________________________________
Cidade marítima, industrial, populosa, ponto de convergência da
vasta zona do Nordeste, e rica em miséria, o Recife apresenta um
volume considerável de menores desamparados, que até bem pouco
tempo, eram tratados do mesmo modo que cães vagabundos. Não
somente a extensão como a complexidade dos problemas dos
menores abandonados e delinqüentes do Recife puseram em cheque o
Juizado de Menores, desaparelhado, com ainda se acha atualmente,
sem o material e o pessoal indispensável, exigindo um gasto
excessivo de energia sem resultados mínimos. Os estudos sobre a
patologia, a antropologia e a personalidade do menor, a situação
econômica, moral e social de sua família, as condições de sua
moradia, de sua alimentação e de sua hereditariedade, sendo
indispensáveis para que se tenha justa compreensão do delito e para a
determinação do melhor meio de reeducação.
171
Essas são as palavras do Juiz de Menores do Recife, Rodolfo Aureliano que ao
abordar o problema das crianças consideradas “delinqüentes” e abandonadas na cidade,
afirmou que não bastava identificar se a criança tinha cometido um crime e “qual a
natureza do delito cometido e as circunstâncias que desencadearam o delito, para afinal
interná-lo em um estabelecimento qualquer”.
172
No seu discurso, Aureliano chama
atenção para a necessidade da produção de estudos sistematizados, elaborados por
profissionais especializados, na busca de explicar e combater as causas da delinqüência
e outros “males” que norteavam o universo de crianças e jovens.
Nas décadas de 1920 e 1930 assistimos no Brasil um avanço das discussões
acerca dos problemas da infância e as preocupações do Juizado não deixaram de
representar os reflexos desse cenário social e político. Contudo, não podemos deixar de
lembrar que desde a segunda metade dos oitocentos o higienista carioca Arthur
Moncorvo Filho desenvolveu uma série de trabalhos no sentido da implantação de
171
Diário da Manhã. Menores abandonados e delinqüentes: o Projeto Carlos Rios. Recife, 17 de
novembro de 1937.
172
Idem.
102
políticas públicas voltadas para a questão da assistência à infância, chegando a fundar
em 1880 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância, no Rio de Janeiro.
173
Na década de 1920, Moncorvo organizou e presidiu o Primeiro Congresso
Brasileiro de Proteção à Infância, realizado no Rio de Janeiro, onde uma das questões
abordadas foi o problema da delinqüência infanto-juvenil. Os problemas sobre a
sociologia e a legislação brasileira frente à questão da infância desvalida também foram
colocadas em pauta. De acordo com os estudos do historiador Janes Wadsworth, muitas
das questões discutidas nesse Congresso foram incorporadas ao Código de Menores de
1927.
174
O Primeiro Congresso foi inspirado no formato de eventos internacionais, a
exemplo do Pan-Americano da Criança, onde eram debatidos os mais diferentes temas
voltados para a infância. Nesse evento, foram colocadas na arena de debate as questões
pertinentes às leis que reconhecessem os direitos das crianças à vida e à saúde, sendo
exigida a abolição das rodas dos expostos no Brasil.
175
Desse modo, o Congresso se
insere em um contexto nacional e internacional marcado por uma preocupação
expressiva de vários setores da sociedade em discutir e apontar encaminhamentos para a
resolução dos problemas sociais que atingiam a infância.
Segundo Wadsworth, o conceito de infância de Moncorvo Filho estava associado
à idéia de que as crianças representavam um patrimônio econômico e social que deveria
ser preservado e salvaguardado. O higienista trazia em seu discurso um forte apelo
nacionalista, reforçando a idéia de que o futuro do país estava na salvação de suas
crianças. Diante das transformações ocorridas no Brasil – mais notadamente nos centros
urbanos onde a “delinqüência” se apresentava de forma mais expressiva –, cabia aos
governantes e às elites assumirem o papel “dos pais pobres da nação”, no sentido de
manter a estabilidade social das famílias pobres e de suas crianças.
176
Durante nossa investigação percebemos que esses novos olhares sobre a infância
interferiram no modo de se pensar a assistência no Recife. Em setembro de 1937 o
jornal Diário da Manhã divulgava uma matéria intitulada “Assistência ao Menor”. O
173
A roda dos expostos foi um mecanismo de assistência à infância que remonta o período colonial. Ver:
WADSWORTH, Janes. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais e ideológicos
da assistência à infância no Brasil. Revista Brasileira de História. N. 37. São Paulo: Associação Nacional
de História, 1999.
174
Idem
175
Idem.
176
Idem.
103
artigo narrava a atuação da justiça frente aos problemas sociais vividos pelas crianças e
adolescentes, afirmando que:
A atenção que os governos modernos voltam à educação da
juventude, constitui um dos centros nervosos que fundamentam
a estabilidade social e jurídica de determinados povos. O
cuidado no sistema educativo, a par de um plano de
compreensão de higiene e educação do sentimento nacional
eis em ligeira síntese os aspectos basilares da educação de
menores (...) Defender o menor, nos dias em que vivemos
segundo os métodos mais importantes do desenvolvimento da
ciência, reclama a instalação de modernas instituições de
caráter jurídico – médico - social, em união a determinado
grupo de estudiosos do assunto.
177
O artigo afirmou que o Estado era o grande responsável pela construção de
políticas sociais voltadas para os problemas das crianças. A matéria ainda nos faz
perceber a preocupação de se elaborar um método que integrasse os diferentes
segmentos sociais e institucionais no sentido de se construir um projeto em defesa das
crianças, devendo estar presentes os setores médico e jurídico. Essa deveria ser a
preocupação dos governos modernos, assim dizia o artigo.
Abandonados, vadios, desvalidos. Ao carregarem a pecha de indivíduos
perigosos ou de potencialmente perigosos, essas crianças e jovens que viviam nas
grandes cidades passaram a ser alvo das atenções de autoridades e de alguns setores da
sociedade da época, que se sentiam ameaçados com a presença dos mesmos nos espaços
públicos. “Delinqüentes”, assim passaram a ser identificados, enquadrados,
classificados, tornando-se um problema de Estado e uma série de projetos e medidas
foram construídas com a intenção de sanar este “mal” que rondava essas crianças e
jovens, formando uma rede de assistência, controle e coerção sobre esses meninos do
Recife, identificados como “menores”.
Este Capítulo tem o objetivo central de discutir o problema da delinqüência
infanto-juvenil, voltando-se para a as medidas de controle e as estratégias de prevenção
construídas pelo Estado e pelo segmento da medicina social, que estavam empenhados
em combater tal problema. O aparato policial, os estudos da psiquiatria e as medidas
realizadas pelo Juizado de Menores, intercambiaram suas experiências e passaram a
177
Diário da Manhã. Assistência ao Menor. Recife, 08 de setembro de 1937. P. 04
104
construir uma campanha marcada por ações de caráter preventivo e coercitivo, a fim de
combater as ameaças, construindo a imagem da “criança problema”.
3.1 – Meninos do Recife: na mira da polícia.
O sol do meio dia já tinha passado quando Manoel de Souza Leão compareceu à
Delegacia do Primeiro Distrito do Recife para prestar queixa contra um garoto
desconhecido. A criança tinha arrebatado de suas mãos um pacote contendo “além de
outros objetos, 25$ em dinheiro”. Segundo a vítima, o fato aconteceu quando viajava de
bonde na linha de Beberibe, quando “de modo brusco” o menino roubou e escapou do
veículo sem chance de alcaá-lo. “Menor atrevido”, dizia a nota na coluna Fatos
Diversos, publicada em outubro de 1932 no Diário de Pernambuco. De acordo com o
Jornal, a “queixa foi registrada, tendo a polícia providenciado a respeito”.
178
Nas décadas de 1920 e 1930, Recife vivia um clima de conflito social provocado
pelas desigualdades sociais, criando espaços para o aumento de atos ditos
“delinqüentes”. Furtos, roubos, brigas e outras formas de delitos marcavam o cotidiano
da cidade e um número expressivo de crianças e jovens protagonizavam muitos desses
casos. Michele Perrot, ao analisar a “delinqüência juvenil” da cidade de Paris na década
de 1920 afirma: “o despontar do século XX vem sendo marcado por uma crise geral das
disciplinas tradicionais, cuja amplitude e fundamentos ainda estão por ser mostrados” e
esta rebeldia não vinha apenas dos operários, mas, de outros setores desta sociedade que
pertenciam ao mundo da exclusão.
179
A análise de Perrot, mesmo sendo voltada para o contexto parisiense da década
de 1920, leva-nos a dialogar com o cenário brasileiro deste mesmo período. Muitas das
ações dos apaches de Paris, denominação do grupo de jovens tidos como delinqüentes e
desordeiros, podem ser encontradas nos grupos de meninos que viviam nas ruas do
Recife, que passaram a carregar o signo do indivíduo “ameaçador” da chamada “ordem
social”. Os meninos que carregavam o signo de atrevido, gatuno e vadio, formaram uma
“micro-sociedade com sua geografia, sua hierarquia, sua linguagem, seu código”.
180
As notas policiais buscavam divulgar sistematicamente a relação estabelecida
entre o aparato policial e as pessoas comuns, incluindo, as crianças e os jovens que
178
Diário de Pernambuco. Menor atrevido. Recife, 23 de outubro de 1932. . Fatos Diversos. p. 8
179
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. P. 325.
180
Idem.
105
trabalhavam e/ou viviam nas ruas do Recife. Através do estudo dessa fonte documental,
podemos analisar qual o lugar social dessas crianças e jovens que praticavam furtos, que
se envolviam em brigas ou que foram detidos por cometerem os mais diferentes atos
que desafiavam a ordem estabelecida.
Nas colunas policiais era registrado o movimento da polícia do Recife:
nomeações, suspensões, advertências e, em alguns momentos, as ocorrências da
Assistência Pública, que era o órgão responsável pelo atendimento das pessoas
envolvidas em casos relacionados aos acidentes de trabalho, atropelamentos ou daqueles
indivíduos que sofriam agressões físicas. Estas colunas representavam o “diário oficial”
desta instituição, o espaço onde eram divulgadas as ações e as idéias daqueles que
controlavam, vigiavam e reprimiam os “elementos ameaçadores”.
O olhar da imprensa policial estava atento às questões que norteavam o
cotidiano do cidadão comum: as relações conflituosas entre patrões e empregados, as
brigas entre casais e as intrigas entre vizinhos, por exemplo, faziam parte dos problemas
debatidos nessas colunas. Ao analisar a importância da imprensa periódica para a
historiografia, Tânia Regina de Luca nos fala que estas fontes se tornaram
indispensáveis para o historiador que procura entender a questão do urbano nas
primeiras décadas do século XX, uma vez que nessa época a circulação de periódicos se
processou de forma mais intensa, tornando-se um espaço onde transitavam as idéias, os
sentimentos, os projetos e outras questões que norteavam o universo da modernidade.
181
Ao nos debruçarmos sobre essas notas policiais dos jornais que circulavam na
cidade do Recife, encontramos o caso que envolveu as crianças Guilherme e José.
182
De
acordo com o Jornal Pequeno, era madrugada quando os referidos meninos discutiam
de forma exarcebada na Rua do Rosário, centro do Recife. No calor das discussões, um
guarda civil os capturou e os conduziu à Primeira Delegacia da Capital. Guilherme e
José foram presos por praticarem “tropelias na Rua do Rosário”. De acordo com a nota:
Guilherme Antonio dos Santos, branco, 15 anos, e José Severino dos
Santos, preto, com 16 anos de idade, apesar de serem ainda quase
crianças, são conhecidos antigos da polícia de diversos distritos da
181
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio de periódicos. In: PINSKY, Carla. Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2006.
182
Na tentativa de construirmos uma discussão sobre a questão das crianças e jovens que praticaram atos
ilícitos, segundo o olhar da imprensa policial, nos voltamos para o Diário de Pernambuco, Jornal do
Commercio, Diário da Manhã e Jornal Pequeno.
106
capital pelas desordens por eles praticadas. Não passa muito tempo sem
que um deles seja hospede forçado de qualquer autoridade policial. Na
madrugada de hoje, eles, bastante exaltados pelo álcool, começaram a
discutir acalorosamente, por uma questão fútil, no Café da Noite à Rua
do Rosário. Em certa ocasião a disputa chegou ao auge e, os dois
entraram a trocar bofetões, quando apareceu um guarda-civil que
prendeu e conduziu à presença do Comissário Brito Alves de
permanência na Delegacia. Ali depois de devidamente qualificados
deram entrada no xadrez à disposição do Delegado.
183
A nota trazia informações sobre as características físicas, a idade, a descrição do
caso e a forma da atuação policial. A nota de jornal nos faz discutir o cotidiano das
crianças e jovens que praticaram atos ilícitos, a partir do olhar da imprensa policial,
sinalizando como era executada a atuação policial frente aos casos envolvendo a
infância desamparada no Recife.
O caso de José e de Guilherme nos leva a discutir a questão da reincidência, uma
vez que o Jornal Pequeno ressaltou que os meninos eram “conhecidos antigos da
polícia de diversos distritos da capital pelas desordens por eles praticadas”. De acordo
com Código de Menores de 1927:
O menor que ainda não completou 18 annos não pode ser
considerado reincidente; mas, a repetição de infração penal da mesma
natureza ou a perpetração de outra diferente contribui para
equiparar o menor moralmente pervertido ou com persistente
tendência ao delito.
184
Desse modo, ao confrontarmos o caso de João Guilherme com o Código,
verificamos o distanciamento da aplicação desse aparato jurídico no procedimento
policial. Essas crianças não foram assistidas juridicamente, sendo encaminhadas para o
“xadrez”, violando, inclusive, o Artigo 86 do digo, que estabelece: “nenhum menor
de 18 anos, preso por qualquer motivo ou apreendido, será recolhido à prisão comum”.
O aparato policial praticava ações a partir da lógica punitiva e autoritária, quando o
problema dessas crianças era resolvido como mais um caso de ameaça a segurança e a
ordem pública.
O Estado passou a criar uma política de vigilância e coerção sobre a vida
cotidiana da população e as crianças passaram a ser alvo do seu controle, sendo o
aparato policial responsável pela execução de tais práticas. De acordo com Edson
183
Jornal Pequeno. Recife, 11 de julho de 1929. p. 2. Acervo: Apeje.
184
Brasil. digo de Menores. 1927. Artigo 85, Capítulo VII.
107
Passetti, ao realizar tais ações, o Estado passou a chamar para si a responsabilidade de
garantir uma maior ingerência sobre as crianças e jovens classificadas como
“delinqüentes”, procurando promover uma “integração dos indivíduos na sociedade
desde a infância (...) por meio de políticas sociais especiais destinadas às crianças e
adolescentes provenientes de famílias desestruturadas, com o intuito de reduzir a
delinqüência e criminalidade”.
185
A questão do controle social exercido pelo Estado sobre as pessoas comuns,
vem sendo discutida pela historiografia nacional, quando algumas pesquisas sinalizam
que esse controle foi construído no sentido de procurar “atingir” todas as esferas sociais.
Através de mecanismos e estratégias de coerção, de disciplinarização, dos sistemas de
vigilância e das estruturas de normatização, o Estado buscou exercer o controle sobre o
cotidiano dos homens e mulheres do povo, que passaram a ser consideradas
pertencentes às chamadas “classes perigosas”.
186
Moradores de ruas e dos alagados da cidade, negros, desempregados, pedintes;
esses representavam o atraso social e deveriam ser controlados pela “ordem pública”.
Em Cidade Febril, Sidney Chalhoub nos afirma que o termo “classes perigosas parece
ter surgido na primeira metade do século XIX”, sendo encontrado nos estudos da
escritora inglesa Mary Carpenter sobre a “infância culpada”, ou seja, acerca das crianças
que viviam no mundo da desvalia, do abandono e de outras formas de exclusão. No
decorrer dos tempos, a atuação policial voltou-se para a vigilância daqueles que
desafiavam a lógica do progresso e representavam o atraso.
187
As pesquisas voltadas para o período que compreende as primeiras décadas do
século XX sinalizam que a expansão urbano-industrial causou inúmeros problemas de
ordem social, fazendo com que as medidas tomadas pelas autoridades fossem
construídas a partir da idéia da repressão. Em nome do progresso e da ordem,
Os menores não escaparam daquelas políticas de repressão e
contenção. Os novos padrões de convívio impostos entraram em
choque com as formas habituais de ocupação dos espaços urbanos,
resultando numa constante vigília e repressão das manifestações
tradicionais de convívio.
188
185
PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del. História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 348
186
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
187
Idem.
188
SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,
Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p 229
108
Nesse contexto, as brincadeiras de ruas da meninada e outras formas lúdicas de
convívio social passaram a ter outro sentido e significado para a polícia. De acordo com
estudos do historiador Marco Antonio Cabral dos Santos, essas brincadeiras passaram a
ser objeto de punição oficial, quando “os meninos das ruas tornaram-se meninos de
rua”.
189
Ao buscar “domesticar” o comportamento das crianças e jovens, o Código
também representava um mecanismo que legitimava a atuação policial sobre o cotidiano
das crianças e jovens, uma vez que este aparato jurídico também possuía sua faceta
coercitiva e punitiva. De acordo com os estudos da antropóloga Adriana Rezende
Vianna, o Código, naturalmente, suscita a ação controladora e repressiva, ação essa
viabilizada pelo poder policial,
Partilhando definições comuns a outros agentes sobre quem seriam
esses menores, a polícia emprestava-lhes características peculiares,
fundamentais não para redimensionar os significados dessa
classificação, mas da sua própria esfera de ação. Ou seja, ao atuar de
um determinado modo sobre os indivíduos assim identificados,
inscrevia-os na fronteira dos que estavam sujeitos ao saber e ao poder
policiais, ao mesmo tempo em que ampliava e multiplicava as formas
pelas quais esse poder era exercido.
190
A partir do Código, as crianças envolvidas em práticas ilícitas eram consideradas
“elementos ameaçadores”, que precisavam ser punidos. Este aparato jurídico e
assistencial buscou construir a identidade do menor perigoso, elaborado sob a égide das
teorias criminalista e higienista européia. Para Vianna, o mecanismo de classificação e
de identificação presentes no discurso do Código de Menores de 1927 foi construído a
partir da lógica policial.
Contudo, o Código não se mostrou eficiente em sua aplicação e essa constatação
foi reconhecida pelo próprio Presidente Getúlio Vargas, quando avaliou a atuação do
Estado frente ao problema da infância pobre, abandonada ou considerada delinqüente. A
Mensagem Presidencial ao Congresso de 1933, afirmava que:
Compendiando a legislação dispersa em leis e regulamentos diversos,
organizou-se o Código de Menores, que ampliou e consolidou
189
Idem.
190
VIANNA, Adriana de Rezende. O mal que se adivinha – policia e menoridade no Rio de Janeiro -
1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.169
109
dispositivos amparados dos menores entregues à guarda do estado. A
aplicação do Código de Menores prevê, entretanto, a existência de
institutos de recolhimentos e educação, aparelhado em condições de
satisfazer os fins a quais se destinam. É sabido que eles escasseiam
por todo o país, quase exclusivamente atendidos pela iniciativa
particular, conduzida por sentimentos caridosos. Pode-se afirmar, por
isso, que, salvo o Distrito Federal, onde se organizaram
estabelecimentos privados, o Código de Menores somente cumpre
muito elasticamente e apenas na parte judiciária, falhando a de
vigilância e educação.
191
De uma legislação “dispersa em leis” ao dispositivo organizado no sentido de
assistir os problemas das crianças no Brasil, assim falou o Presidente Getúlio Vargas, ao
se voltar para questão da trajetória da assistência aos menores no Brasil. Nesse discurso,
Vargas reafirmou a responsabilidade do Estado sobre os problemas relacionado á
infância desamparada no Brasil e reconheceu que, no âmbito da aplicabilidade, o
Código de Menores de 1927 apresenta-se de forma ineficiente no combate a tais
problemas.
Em 5 de abril de 1930, a coluna policial Na Polícia e nas ruas, do Jornal do
Commercio, trazia a nota intitulada “No aprendizado da gatunagem: a tentativa
malograda de um gatuno”:
O garoto Antônio de Mello, pela manhã de ontem, no pateo do
Mercado, tentou arrebatar uma bolsa das mãos de uma criada que
voltava das compras. Saiu-se mal o gajo, na experiência porque na
ânsia de se defender, ele deixou a bolsa perdendo a partida. A polícia
teve ciência do fato.
192
Menores vadios, gatunos, pervertidos, delinqüentes. Era o aparato policial que
identificava, classificava, controlava e punia as crianças e jovens que transitavam pelas
ruas das cidades. De acordo com as pesquisas realizadas pelo historiador Marcos Bretas,
“a guerra das ruas”, provocada pelo aumento de homens e mulheres, idosos e crianças
que transitavam na zona da marginalidade urbana, fez surgir um novo sentimento entre
o povo e a polícia, fazendo com que a palavra dos agentes passasse a ser respeitada e
temida. A partir desta relação, tais agentes passaram a criar suas leis, seus códigos, seus
191
VARGAS, Getúlio. Mensagens Presidenciais. Brasília: Congresso dos Deputados, 1978. p. 174
192
Jornal do Commercio. Na Polícia e nas Ruas... Recife, 05 de abril de 1930. Fundação Joaquim
Nabuco
110
mecanismos de controle, uma vez que o “o poder oferecido pelos códigos não era
suficiente para exercer o controle sobre a cidade em transformação”.
193
Ao analisar a atuação dos agentes policiais na identificação dos grupos populares
Bretas nos afirma que:
No processo de identificação dos grupos populares na cidade,
categorias de classificação negativa são manipuladas de forma a
permitir o maior enquadramento possível. Empregando as ‘estafadas
chapas’ de identificação como os gatunos conhecidos, desordeiros ou
vagabundos, é possível à polícia punir, mesmo fora do âmbito
processual, aqueles que criam problemas para a vida da cidade.
194
A partir da análise de Bretas, não seria difícil imaginarmos como foi construída
a relação entre os agentes policiais e as crianças e jovens que transitavam nas ruas dos
grandes centros urbanos. O olhar policial, normatizador e disciplinador, buscava conter
as mais diferentes ações praticadas pelos meninos. Nesse sentido, ao ser identificado
como gatuno, a criança passava a carregar a pecha de um “elemento ameaçador” que
deveria ser controlado e punido pela força policial.
Contudo, a nossa pesquisa nos levou a observar que existia uma generalização,
por parte da polícia, da criança que era considerada sob suspeita. Muitas crianças
pobres, que trabalhavam nas ruas do Recife, também passaram a ser policiadas e
enquadradas como indivíduos ameaçadores. De acordo com a análise de Chalhoub sobre
a relação entre o aparato policial e as pessoas que pertenciam às classes perigosas, a
noção de pobreza de um indivíduo aparece como uma condição de torná-lo uma ameaça
social. Para o historiador, a polícia agia a partir da “premissa que todo cidadão é
suspeito de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos são mais
suspeitos que outros”.
195
No que se refere aos casos policiais caracterizados pelas práticas de gatunagem,
percebemos que grande parte das denúncias também envolviam as crianças e jovens
com menos de 18 anos. Em dezembro de 1930, o Jornal Pequeno trazia uma matéria
denunciando as ações de gatunagem no Recife, afirmando que “com audácia
perfeitamente reprimível”, os gatunos estavam agindo principalmente nos subúrbios,
abalando portas, sobressaltando famílias, quando não são felizes nas colheitas em que se
193
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra nas ruas: povo e polícia na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. 104
194
Idem.
195
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996. p. 23.
111
empenham”.
196
Desse modo, o gatuno era o indivíduo que praticava “audaciosamente”
roubos e furtos com rapidez e perspicácia. Através desta reportagem publicada no
Jornal Pequeno, percebemos que as práticas da gatunagem também eram realizadas
com freqüência nos subúrbios da cidade, quando a população passou a cobrar uma
efetiva atuação dos policiais no combate a tais ações.
Além das práticas de gatunagem, as brigas também faziam parte do cotidiano de
algumas crianças e jovens que viviam nas ruas do Recife. O Diário de Pernambuco
divulgava o caso de dois garotos envolvidos em uma “luta corporal”. A ponte que ligava
o bairro da Boa Vista à freguesia de São José serviu de cenário da briga entre os garotos
José de tal e Manoel da Silva:
Por questões de pouca importância, se bateram em luta corporal. Em
dado momento, porém, o primeiro fez uso de um canivete, ferindo o
seu adversário na região lombar direita. O criminoso evadiu-se e a
vítima foi devidamente medicada no Hospital do Pronto Socorro.
197
O caso do garoto que feriu o outro com um canivete e fugiu, leva-nos a discutir o
cenário social, econômico e político nos quais essas crianças estavam inseridas. De
acordo com as pesquisas de Geraldo Barroso, uma das causas que justificavam o
aumento de crianças e jovens envolvidas em práticas ilícitas era a falta de assistência às
famílias pobres, quando “muitas crianças não dispunham de meios para estudar ou então
porque a pobreza das famílias obrigava os menores em idade escolar ao ingresso
precoce no mercado de trabalho, desprezando os bancos escolares”.
198
Este cenário social, marcado pela limitação do mercado de trabalho em absorver
a demanda, pode ser comprovado “pelo grande número dos ‘sem profissão’ ou ‘sem
ocupação’ das estatísticas oficiais”, como aponta Barroso. Desse modo, o Recife se
tornava a cidade daqueles que, sem trabalho, passaram a transitar no universo da
mendicância, da prostituição e da criminalidade.
A nossa investigação nos fez encontrar outros casos de brigas envolvendo
crianças e jovens nas ruas e nos mercados do Recife. Em 2 de outubro de 1932, o Diário
de Pernambuco trazia a seguinte nota:
196
Jornal Pequeno. Recife, 4 de dezembro de 1930. O policiamento na Cidade. Capa. Arquivo Público
Estadual Jordão Emereciano
197
Diário de Pernambuco. Fatos diversos. Recife, 24 de março de 1931. Fundação Joaquim Nabuco
198
BARROSO, Geraldo Filho. Crescimento urbano, marginalidade e criminalidade: o caso do Recife
(1880-1940). 1985. Dissertação (Mestrado em História) Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Pernambuco. Recife: 1985. p. 109
112
Espancou a menor
No interior do Mercado de São José, verificou-se, ontem um fato que
indignou a todos que o presenciaram. O indivíduo Pedro Campos
Correia, depois de insultar o menor Inácio de Souza, espanco-o
barbaramente, tendo o mesmo se utilizado de um cano de ferro,
ferindo o referido menor na sua região frontal. O agressor foi preso e
a vítima recebeu curativos na Assistência Pública.
199
Os pátios dos mercados públicos, assim como os das igrejas do centro do Recife,
eram espaços onde as crianças e jovens transitavam com bastante freqüência para
negociar miudezas, pedir esmolas e praticar ações consideradas ilícitas. Os livros que
registram as entradas e saídas dos presos da Casa de Detenção do Recife comprovam
que boa parte dessas crianças foram detidas naquela instituição tinham como motivo a
gatunagem.
O interior dos pátios e as ruas do Recife, locais onde essas crianças circulavam
com freqüência, passaram a ser palco de múltiplas experiências de “arruaças”, locais
onde o aparato policial atuou de forma mais expressiva. A rua passou a ser o ambiente
onde “cada um está por si”, fazendo com que as autoridades fossem obrigadas a não
“abrir mão de um controle social rígido”, na tentativa de garantir “a pacificação dos
ânimos” e prevenir a ordem das coisas, uma vez que nas ruas das grandes cidades as
contradições sociais eram “próprias deste espaço”.
200
Ao analisar o problema das crianças inseridas no mundo da criminalidade,
Marco Antônio Cabral dos Santos nos fala que nas primeiras décadas do século XX,
Era comum na cidade a prisão de garotos efetuada por praças da
Força Pública ou por membros da Guarda Cívica, que, sem
alternativa, os levavam para as delegacias, onde passavam uma
ou duas noites presos entre os ‘bandidos perigosos’, numa
espécie de castigo informal.
201
Contudo, essa polícia que buscava controlar e “proteger” a sociedade, também
espancava. A nota policial divulgada em 28 de maio de 1929, trazia a informação que
um soldado que pertencia ao Esquadrão da Cavalaria teria espancado uma criança de 12
anos de idade. Dizia a nota:
199
Diário de Pernambuco. Espancou o menor. Fatos Diversos. Recife, 2 de outubro de 1932.
200
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª Ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
201
SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,
Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p 210-231. p. 223
113
Bárbaro e Covarde – Espancou a um menor de 12 anos.
Jovin Barreto, residente à Rua Afonso Pena, nº. 4, esteve na
Inspetoria Geral de Polícia, apresentando queixa contra o Soldado do
Esquadrão de Cavalaria João de Tal. Este, no dia 25 do andante, teria
espancado barbaramente a um filho de Jovin, o menor de 12 anos, de
nome Lourival Barreto. Este foi vistoriado, sendo instituído
inquérito a respeito.
202
Esta nota possui um forte caráter denunciativo e nos faz analisar a atuação do
policial frente aos problemas das crianças e jovens do Recife. Os estudos referentes ao
aparato policial nas primeiras décadas do século XX sinalizam para o despreparo dos
agentes, presentes na própria rotina de trabalho. De acordo com Bretas:
O policial desenvolvia suas habilidades a partir de seu
cotidiano, e mesmo que pudesse se deparar eventualmente com
acontecimentos os mais inesperados, a grande maioria dos
casos era previsível, e sua expertise se baseava na maior parte
no lidar com a rotina.
203
Por meio das intervenções realizadas e noticiadas diariamente nas colunas
policiais, observamos que fazia parte do objetivo do aparato policial disseminar a idéia
de que aquelas crianças e jovens representavam o perigo social, devendo ser
devidamente punidas. Os vários casos que envolveram crianças e jovens no mundo da
criminalidade, levam-nos a perceber que as práticas consideradas infracionais,
desafiadoras da “ordem” estabelecida, também representavam formas de sobreviver ao
mundo que eles estavam inseridos.
Em 1937, o Juizado de Menores do Recife passou a divulgar uma série de
comunicados nos jornais da cidade. Tais informativos tinham a finalidade de expressar
as suas idéias e as ações institucionais. O primeiro Communicado, publicado no jornal
Diário da Manhã, registrava a sua intenção ao divulgar tal artigo, afirmando que o
objetivo era de noticiar sistematicamente os dados, os conselhos e os conceitos teóricos
para população. No dia 10 de outubro daquele ano, o primeiro Communicado trazia
como tema central o problema da “delinqüência infantil” no Recife.
204
202
Jornal do Commercio. Na Polícia e nas Ruas... Recife, 28 de maio de 1929. Arquivo Público do
Estado de Pernambuco
203
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra nas ruas: povo e polícia na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 101.
204
Diário da Manhã. Aspecto do problema da delinqüência infantil no Recife. Recife, 10 de agosto de
1937. Acervo: Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano – Apeje.
114
No artigo foram incluídas duas tabelas que informavam os números de processos
julgados no período de 1930 a 1936, demonstrando que aquele artigo não deixava de ser
uma prestação de contas do Poder Judiciário à sociedade recifense. De acordo com a
primeira tabela, entre os 164 processos julgados naquele período, foram encontrados:
Primeira Tabela
ASPECTO DO PROBLE DA DELINQUENCIA INFANTL
NO RECIFE
CASOS - 1930 – 1936
Juizado de Menores
Número de
Casos
%
Abandono 52 31,8
Furtos 42 26,2
Ferimentos 25 15,2
Atentado ao
pudor
9 5,5
Agressões 7 4,2
Homicídios 6 3,7
Fugas 5 3,0
Outras
infrações
17 10,4
Total 164 100
Tabela produzida pelo Juizado de Menores do Recife e
publicada no Diário da Manhã em 10 de agosto de 1937.
Esses números representam o resultado do trabalho do Juizado de Menores do
Recife durante os primeiros seis anos da década de 1930. Ao tratar apenas dos casos
julgados, eles não trazem a dimensão do número das ocorrências que envolviam as
crianças e jovens no Recife. Contudo, os dados não deixam de representar uma amostra
das categorias criminais nas quais essas crianças eram enquadradas: furto, ferimento,
atentado ao pudor, agressão, homicídio.
Ao analisarmos a primeira tabela, percebemos que os processos envolvendo o
abandono de crianças são os mais numerosos, demonstrando-nos que a maioria dos
casos envolvia meninos e meninas que não possuíam amparo familiar e do próprio
Estado. O artigo ainda trazia a discussão sobre a questão da ausência familiar, quando o
Juizado defendia a idéia que a “delinqüência” era causada pela falta de orientação dos
pais, mães ou responsáveis.
205
Para o Juizado de Menores do Recife, a companhia com os adultos infratores e o
“ambiente social” onde essas crianças e jovens transitavam - os “antros de
205
Idem.
115
malandragem” (bares ou botequins, casas de jogos) -, foram apresentados como fatores
que justificavam os furtos praticados pelos menores. Segundo o Communicado, a linha
que separa o abandono e a delinqüência era tênue e por isso o problema do abandono
deveria ser combatido.
Sobre os processos que julgaram os crimes por furtos, o artigo trazia informação
de como se construíram alguns dos casos, afirmando que:
Dos furtos, 16 foram cometidos por grupos de dois ou mais menores
ao serviço de delinqüentes adultos. Na sua maioria (11 casos) não
residiam mais em companhia dos seus genitores e sim em antros de
malandragem. Ali se reuniam e daí saiam para furtar em grupos
geralmente chefiados pelo mais experiente dentre eles ou por um
delinqüente adulto.
206
No que se refere às agressões e ferimentos (que representam 18,4% dos casos
julgados), o artigo apontou uma série de motivos que provocavam tais práticas, como:
desafetos (muitas vezes pos motivos fúteis) e rivalidades entre companheiros de
trabalho. Ao analisar a questão da criminalidade infanto-juvenil durante as primeiras
décadas do século XX, o historiador Marco Antonio Cabral dos Santos nos afirma que
fazia parte do cotidiano das crianças que viviam nas ruas utilizarem as agressões como
mecanismos de defesa, quando tinham “na malícia e esperteza suas principais
ferramentas de ação; e nas ruas da cidade, o local perfeito para pôr em prática as
artimanhas que garantiam sua sobrevivência”.
207
Desse modo, agredir e ferir podia
representar um mecanismo de defesa, uma tática para driblar os desafios encontrados no
cotidiano.
208
206
Idem.
207
Idem.
208
CETEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
116
A segunda tabela publicada, trazia os dados sobre as idades dessas crianças. De
acordo com os dados podemos vislumbrar como ocorreram os incidentes envolvendo as
crianças e jovens a partir da faixa etária:
Segunda Tabela
ASPECTO DO PROBLEMA DA DELINQUENCIA INFANTL
NO RECIFE CASOS – IDADE - 1930 – 1936
Juizado de Menores
Idade Abandono % Delinqüente
%
0-3 3 5,8 - -
4-6 3 5,8 - -
7-9 6 11,5 2 1,8
10-12 26 50,0 4 3,5
13-15 10 19,2 16 14,3
16-18 3 5,8 82 73,3
19-21 - - 7 6,2
Não
informam
1 1,9 1 0,9
Total 52 100,0 112 100,0
Tabela produzida pelo Juizado de Menores do Recife e publicada
no Diário da Manhã em 10 de agosto de 1937.
A tabela traz informações sobre a questão do abandono e da delinqüência,
contemplando crianças, jovens e adultos até os 21 anos de idade (esses envolvidos nos
casos de delinqüência). Esses números representam os casos julgados e processados
pela instituição judiciária, no período de 1930 a 1936. A partir da leitura da segunda
tabela podemos discutir o problema da idade, que por sua vez estava relacionada à
questão do discernimento, que representava “aquela natureza de juízo, que coloca o
indivíduo em oposição de apreciar com retidão e critério, as suas próprias ações”.
209
Ao estudar as questões que norteiam o debate do discernimento, Mozart Vergetti
de Menezes nos afirma que a partir da República os juristas passaram a discutir de
forma mais intensa a relação da idade com o problema da imputabilidade
210
do agente
do crime. Para Menezes, o Código Penal Republicano, de 1890, estabelecia como limite
mínimo a idade de 9 anos, ficando os menores dessa idade até 14 anos sujeitos à
reclusão, vivendo sob “o regime educativo e disciplinar”. Foi a parir dessas discussões
que os juristas passaram a se interessar por questões ligadas à psicologia infantil.
209
VIEIRA, Octaviano. Os menores perante o código penal. São Paulo, 1906: s/e, p. 27
210
O conceito de imputabilidade está associado a capacidade de culpa. No âmbito penal se refere a
capacidade de culpa de uma infração. Ver: NASCIMENTO, José Flávio. Imputabilidade do menor sob
a ótica criminológica. São Paulo: Juarez de Oliveira Editora, 2007.
117
Tema, além de estar calcado em teorias psicológicas mais elaboradas,
passou a incorporar outras questões: de um lado, encontramos
pedagogos, médicos e criminologistas debatendo sobre as melhores
formas de reclusão a que deveriam ser submetidas as crianças, e, de
outro, uma discussão mais jurídica sobre a necessidade de existência
de tribunais especiais, funcionando com um corpo de jurados
moralmente idôneos que tivessem conhecimento em educação, para
julgamento exclusivo de crianças.
211
Os estudos de Menezes ressaltam, ainda, que a questão da idade foi discutida, no
começo da República, a partir dos saberes “definidores do caráter infantil”, quando
foram desenvolvidas uma série de teorias no sentido de explicar “a origem da mente
criminosa e sua correção”. Na busca de entender a questão da mente da criança,
ressaltavam o fator biológico e hereditário como responsáveis pela delinqüência infantil.
Tais estudos passaram a ser questionados com o surgimento das novas teorias
fomentadas a partir da década de 1920, que colocaram o evolucionismo spenceriano e a
criminologia lombrosiana.
212
em cheque e passaram a observar este problema da a
partir de novos olhares.
Desse modo, podemos afirmar que Código de Menores de 1927 representa uma
mudança significativa, uma vez que a partir de suas normas
O menor de 14 anos, indigitado autor e cúmplice de fato qualificado
crime ou contravenção, não será submetido a processo penal de
espécie alguma; a autoridade competente tomará somente
informações precisas, registrando-as, sobre o fato punível e seus
agentes, o estado físico, mental e moral do menor, e a situação social,
moral e econômica dos pais ou tutor ou pessoa cuja guarda viva.
213
Um outro aspecto importante, divulgado nos comunicados, refere-se as “áreas de
delinqüência infantil no Recife”, levando-nos a perceber como se construiu uma
geografia da delinqüência infantil na cidade, sendo assunto de um Communicado
publicado no Diário da Manhã. Ao descrever as condições sociais dos bairros, o
Juizado afirmou que:
211
MENEZES, Mozart Vergetti. Prevenir, disciplinar e corrigir: as escolas correcionais no Recife
(1909-1929). Recife: Dissertação de Mestrado defendida no Programa de s-graduação em História da
UFPE, 1995.
212
A obra de Tobias Barreto representa uma importante contribuição para quem busca entender o
problema da criminologia e sua relação com a questão da infância a partir da ótica lombrosiana.
MENEZES, Tobias Barreto de. Menores e Loucos em direito criminal. Obras Completas V. Sergipe:
Ed. Estado de Sergipe, 1926.
213
Brasil. 1927. Código de Menores de 1927. Art. 68, Capítulo VII.
118
Entre nós os bairros do Recife e Santo Amaro inclui uma parte
exclusivamente comercial e quarteirões ou ruas inteiras de
prostituição, onde se localizam cabarés e casas de tavolagem, etc.
Nos bairros da Boa Vista (uma parte invadida pela zona comercial,
outra pela fixação de população judia) e São José (invadida em parte
pela zona comercial, em parte pela localização de estabelecimentos
industriais e parte residencial), pode notar o desequilíbrio entre os
valores existentes...
214
Ilha do Pina, São José, Ilha do Leite, Coelhos, Bairro do Recife. Os números
apontam que 75% das crianças que cometiam delitos pertenciam aos bairros periféricos
da cidade. Com o crescimento urbano e populacional da cidade, os espaços onde
residiam as famílias pobres enfrentavam sérios problemas de violência social e as
pesquisas realizadas pelo Juizado demonstraram em seus resultados um aumento no
número de crianças e jovens que buscavam sobreviver praticando atos considerados
delituosos. Ao justificar o motivo da maioria dos delitos serem praticados por crianças
oriundas dos mocambos, o Juizado apontou com fatores determinantes: a “inferioridade
econômica” e a desorganização do lar. Estas pesquisas serviam de base para as ações do
Juizado, que em parceria com outros segmentos profissionais participaram das
iniciativas voltadas para o combate ao problema da delinqüência infanto-juvenil.
Em 2 de outubro de 1936, o Deputado Estadual Carlos Rios, apresentava um
projeto à Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, da criação do Serviço de
Assistência e Proteção aos Menores, subordinado ao Juízo Privado de Menores, que
incluía a presença de psiquiatra, responsável pela “clínica de conduta”:
Construída por dois médicos contratados, sendo um clinico e outro
psiquiátrico e um professor com funções, também, no Abrigo de
menores, competirá examinar, diagnosticar e orientar o tratamento
médico físico pedagógico dos menores para os quais o Juiz de
menores tiver solicitado a medida, bem assim opinião sobre os
métodos de reeducação aplicados nos estabelecimentos dependentes
do serviço criado com a presente Lei.
215
Segundo o Projeto do parlamentar todas as ações voltadas para questão da
assistência aos “menores desvalidos, abandonados ou delinqüentes” se tornariam
dependentes desse órgão, cabendo ao Juiz de Menores a regulamentação do serviço.
216
214
Diário da Manhã. Áreas de delinqüência infantil no Recife. Recife, 09 de novembro de 1937. Acervo:
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano – Apeje.
215
DECRETO. Criação do Serviço de Assistência e Proteção aos Menores. Recife, 2 de outubro de
1932. Arquivo: Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco.
216
Idem.
119
Na justificativa, Carlos Rios dizia, em um longo e inflamável discurso, que a aprovação
deste Decreto iria contribuir na educação dos menores abandonados e delinqüentes, uma
vez que:
O menor abandonado tem irrecusável direito à proteção. A autoridade
pública, na compreensão dos tempos modernos, perdeu aquele traço de
madrasta, de um ruim coração, que se lembra dos seus tutelados para
castigar, por crimes cuja principal autoria, em bom direito, lhe
pertencia (...) Assistência moral, assistência espiritual e assistência
material, presidindo a formação de novas personalidades (...) Desviados
do meio corrupto, obrigados ao trabalho desproporcional às suas
condições físicas e habilitações, os meninos e jovens terão elementos
para modificar seus planos de perversidade (...) E os recrutas da
criminalidade passarão a ser soldados consciente e bravos da legião dos
bons patriotas e dos homens de bem. É dessa legião que o Brasil
sempre precisou.
217
O discurso inflamado de Carlos Rios, que apelou para o campo do político e do
espiritual, uma vez que chegou a afirmar que as crianças foram vítimas de “convenções
sociais” que desafiavam as Leis de Deus, reuniu uma série de elementos que refletiam o
conceito de assistência à infância naquele período. Nesse discurso, o deputado afirma
que a sociedade moderna não pode se comportar como uma “madrasta”, reforçando a
idéia que as políticas de assistência à infância dialogavam com as preocupações de uma
sociedade “civilizada”. Uma sociedade que não cuidava de suas crianças, nos planos da
moral, do material e do espiritual, era uma sociedade do atraso.
A partir da aprovação do Projeto, também seria criado o Conselho de Assistência
e Proteção dos Menores, quando o Juiz de Menores, o diretor do Departamento de
Educação, o curador de menores, médicos, professores da Clínica de Conduta
(composta por médicos que poderiam ser contratados, sendo um clínico e outro
psiquiatra e um professor que também prestaria serviço ao Abrigo de Menores) e
membros escolhidos pela Secretaria do Interior formariam este Conselho, que tinha a
incumbência de orientar o Serviço, “na parte técnica e social”, sendo honorífica e
gratuita a função dos seus membros. Em nome do melhoramento da educação infantil
no Estado, dizia o Decreto, o Estado deveria incluir todas as despesas deste serviço no
orçamento do ano de 1937.
Não podemos deixar de registrar que o referido Projeto possuía um caráter
inovador para o período, uma vez que buscou centralizar e envolver outros setores da
217
Idem.
120
sociedade na causa da infância, com a criação do Conselho. A partir da idéia do
parlamentar, o estado de Pernambuco teria um sistema integrado, voltado para a
assistência dos menores abandonados e/ou tidos como “delinqüentes”. Tal centralização
só veio acontecer no período do Estado Novo, quando foi criado o serviço integrado, em
nível nacional, chamado Serviço de Assistência ao Menor – SAM.
218
Mesmo com o apoio de vários parlamentares e parte da sociedade civil, o Projeto
Carlos Rios não foi aprovado. Segundo os relatórios da atuação dos parlamentares da
Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco de 1936, a proposta do referido
deputado “não teve solução definitiva”, tendo o mesmo sido encaminhado para a análise
da Comissão de Fazenda e Orçamento do Estado. Em agosto de 1937, o Relatório do
Governo, publicado nos Annaes do Parlamento de Pernambuco dizia:
Um dos traços característicos deste Governo tem sido a especial
atenção que vem consagrando ao problema de assistência aos
menores. Indique eloqüente dessa atenção revela-o o franco
desenvolvimento dos estabelecimentos de amparo e proteção aos
menores abandonados e delinqüentes do Estado, tendo como órgão
central de superintendência o Juizado de Menores.
219
Ao comentar o Projeto do Deputado Carlos Rios, o Juiz de Menores Rodolfo
Aureliano, afirmou:
O Projeto Carlos Rios atende pois uma necessidade premente e
invencível. Elo que fornece ao Juizado de Menores do Recife um
modesto porém descente aparelhamento, habillitando-o a atingir a sua
verdadeira e desejada finalidade, implicando em uma despesa restrita,
perfeitamente ao alcance do Estado, mesmo porque os gastos feitos
com a profilaxia do crime são sempre despesas necessárias.
220
Como podemos perceber, o Judiciário e o Legislativo estavam bastante afinados
no sentido de aprovar a proposta do parlamentar. Para Rodolfo Aureliano, a partir da
aprovação do referido projeto, uma série de medidas permanentes seriam executadas no
sentido da garantia da assistência à infância no estado de Pernambuco. Esta parceria
ainda contava com o aparato policial e outras instituições sociais, formando um rede de
218
Sobre o SAM, ver: RIZZINI, Irene. & RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil:
percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Puc – Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
219
Annaes do Parlamento de Pernambuco. 1937. Arquivo: Assembléia Legislativa do Estado de
Pernambuco.
220
Diário da Manhã. Menores abandonados e delinqüentes: o Projeto Carlos Rios. Recife, 17 de
novembro de 1937.
121
assistência, controle e coerção sobre as crianças identificadas como perigosas ou que
estavam em “perigo de ser”.
Neste artigo, Aureliano ainda falava do “sentimento de revolta, de culpa e de
compaixão, perante a situação dos meninos” e responsabilizava mais uma vez a
sociedade pelas causas dos problemas sociais da infância, assim como fez Carlos Rios
no seu discurso. Para o Juiz, “o conjunto de conhecimentos científicos sobre os meninos
com a colaboração da criminologia contribuiu com a proteção dos menores
abandonados e delinqüentes” e ressaltou “que se firme nessa época o século do
menino”.
221
3.2 - A “criança problema”: a psiquiatrização da infância no Recife
Sabendo-se que a conduta delituosa tem origem muito mais pela
influencia de causas externas ou sociais (conflitos familiares,
desintegração do lar, falta de autoridade paterna, freqüência as zonas
de malandragem, exemplo de maus companheiros, etc.) do que pela
ação de fatores internos (debilidade de inteligência, doença mental,
constituição fisiológica, etc) é natural que a obra de prevenção da
delinqüência infantil procure combater de preferência as primeiras,
embora não descuide da segunda.
222
A partir da análise do quadro social no qual a criança e/ou jovem estavam
inseridos, buscou-se construir as imagens e representações sobre o “menor delinqüente”.
O local da moradia, o grupo de convívio social e a estrutura familiar podiam ser
apontados como componentes que influenciavam a conduta desses agentes sociais.
Segundo o discurso do Juizado, um dos caminhos para a resolução do problema da
delinqüência infantil era o investimento em pesquisas nos mais diferentes ramos do
conhecimento científico, e estas preocupações dialogavam com as novas formas de
pensar a infância no Brasil.
Em 1936, o médico Arthur Ramos publicou a sua obra Criança Problema,
quando discutiu a questão dos “desvios de conduta” por meio da psicanálise. Segundo
Ramos,
221
Idem.
222
Diário da Manhã. Aspecto do problema da delinqüência infantil no Recife. Recife, 10 de agosto de
1937. Acervo: Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano – Apeje.
122
Fatores deficitários em todos os sentidos, que vieram complicar
tremendamente o problema da assistência aos menores. E a
delinqüência infantil? E o menor abandonado? Nunca a higiene
mental teve que lidar com tantos fatores primários, que se
converteram a capital do país num grande feudo urbano, desprotegido
e entregue a própria sorte. Com razão se poderia achar uma atividade
desnecessária ou inócua um serviço de higiene mental, que tivesse de
desbastar essas causas próximas, tão grosseiras e tão deprimentes.
223
De acordo com Arthur Ramos, o serviço de higiene mental representava um
“avanço” no campo dos estudos sobre a criminalidade, uma vez que questionava a
criminologia determinista do século XIX. O que faz um menino mentir e furtar? Como
podemos entender a psiquê de uma criança que comete esse tipo de prática? Ramos
buscou responder essas perguntas a partir da psicanálise freudiana, causando uma forte
polêmica entre os especialistas na década de 1930.
Arthur Ramos, alagoano que nasceu no município de Pilar em 1903, formou-se na
Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, defendendo a tese “Primitivo e Loucura”. Na
Bahia, fez parte do Instituto Nina Rodrigues, chegando a ocupar o cargo de médico-
legista da instituição. Contudo, foi nos anos de 1930, a partir de sua experiência com o
Departamento de Educação do Rio de Janeiro que Arthur Ramos passou a desenvolver
trabalhos mais sistematizados voltados para questão da psicanálise e da educação
infantil.
224
Ramos influenciou a forma de pensar a assistência à infância no Brasil. Esse
cenário de debates sobre a delinqüência infanto-juvenil motivou as discussões no
cenário local, levando outros representantes da sociedade a se manifestar a favor da
causa da criança, quando em seus discursos também estava presente a preocupação com
o mundo subjetivo da criança.
De acordo com seus estudos, a psicanálise poderia ser uma parceira dos pais e dos
educadores e recomendava que os casos mais graves envolvendo as crianças no
contexto escolar deveriam ser acompanhados por profissionais que trabalham com a
psicanálise. Ao se voltar para o problema das crianças que praticavam furtos, Ramos
nos afirma que, “os estudos de Freud e sua escola, completados pelos de Adler, vieram
223
RAMOS, Arthur. A criança problema: a higiene mental na escola primária. 3ª Ed. Rio de Janeiro:
Casa do Estudante, 1950. P. 09
224
LOPES, Eliane Marta Teixeira. A psicanálise aplicada às crianças do Brasil: Arthur Ramos e a
“criança problema”. In: FREITAS, M. C. & KUHLMANN, M. Os intelectuais na História da Infância.
São Paulo: Cortez, 2002.
123
mostrar que os furtos infantis tinham significação simbólica. O furto praticado pela
criança, será sempre uma compensação a um afeto perdido ou inalcançado.
225
Em A criança problema, Ramos defende a idéia que:
Os higienistas mentais e os educadores familiarizados com as
conquistas da psicanálise e da psicologia individual são acordes em
reconhecer, depois do controle da sua própria experiência, que os
furtos infantis surgem como compensação a traumas efetivos, em
geral. Foram demonstrados os móveis do furto na criança, que não
tem noção do delito. A criança é captativa, por excelência...
226
Ramos passou a desenvolver a sua idéia sobre criança problema, a partir da
psicanálise, quando sinalizava que a questão da delinqüência estava relacionada às
questões subjetivas, sem desprezar as questões sociais. Segundo Arthur Ramos,
Pesquisando-se as causas dos furtos infantis, vamos encontrar, em
primeira linha, esses móveis afetivos, ou condições sociais
desfavoráveis (pauperismo, perda de ausência de amor, abandono
moral e afetivo...) que conduzem ao que muitos autores chamam os
furtos de compensação (Heuyer, Mme.Morgenstern, Gilbert Robin...)
O furto como reação contra os conflitos familiares tem sido
fartamente observado pelos educadores e ortofrenistas. Heuyer e
Dublineau descrevem o “furto generoso”, em que a criança furta para
compensar uma injustiça, distribuindo o resultado entre os
companheiros.
227
Entre as questões discutidas em sua obra encontramos a questão da família, do
abandono, da personalidade, da sexualidade e da delinqüência. Os estudos
desenvolvidos por Ramos dialogavam com as novas preocupações médicas sobre a
infância desenvolvidas na Europa e reproduzidas no Brasil. Ao analisar o cenário
político nacional onde Ramos desenvolveu seus trabalhos, a socióloga Eliane Lopes nos
afirma que,
É por essa trilha, aberta por médicos, que entrarão no Brasil a
descoberta e a teorização do inconsciente. São médicos que pretendem,
mais que curar doenças, curar o tecido social, higienizar as mentes,
sanear a ignorância, são os portadores de uma ciência como anjo tutelar
da sociedade.
228
225
Ibidem. P . 411
226
RAMOS, Arthur. A criança problema: a higiene mental na escola primária. 3ª Ed. Rio de Janeiro:
Casa do Estudante, 1950. p. 408.
227
Ibidem. P. 409
228
LOPES, Eliane Marta Teixeira. A psicanálise aplicada às crianças do Brasil: Arthur Ramos e a
“criança problema”. In: FREITAS, M. C. & KUHLMANN, M. Os intelectuais na História da Infância.
São Paulo: Cortez, 2002.
124
A aceitação aos estudos de Arthur Ramos foi marcada por resistências, uma vez
que setores mais conservadores da medicina criticavam a aplicação da psicanálise a
outras áreas do conhecimento. A proposta de Ramos caminhava no sentido de provocar
um diálogo entre a psicanálise e a educação infantil.
229
Contudo, não podemos deixar
de registrar que os estudos do referido médico foram interrompidos no Estado Novo, a
partir da implantação da ditadura de Getúlio Vargas, em 1937.
230
Além da contribuição de Ramos, na década de 1920 foi criada a Liga Brasileira
de Higiene Mental, tendo como objetivo promover ações a partir da dinâmica da
medicina mental preventiva, atuando no espaço da família, do trabalho, da escola,
“doravante tidas potenciais superfícies de emergência da loucura”.
231
A criação da Liga
representou um dos desdobramentos dos novos paradigmas construído acerca da
psiquiatria no país, uma vez que os trabalhos do programa curativo da medicina mental,
construídos a partir dos cânones do determinismo biológico, estavam desacreditados
na época. De acordo com os estudos de José Roberto Reis, desde seus primeiros
trabalhos, a Liga Brasileira buscou oferecer serviços para a população através de seus
laboratórios de psicologia aplicada, de psiquiatria e psicanálise, representando
O ápice da penetração, no domínio da psiquiatria, dos ideais da
eugenia e do saneamento preventivo da população, nos termos
renovados de um movimento pró-higiene mental.
232
Ainda de acordo com os estudos de Reis, a Liga, ao fundar a Seção de
Puericultura e Higiene Infantil procurou contemplar as mais diversas questões sobre a
infância. Nesta Seção, reuniram-se especialistas que já vinham desenvolvendo trabalhos
voltados para questão da infância, como Moncorvo Filho, fundador do Instituto de
Proteção à Infância no Rio de Janeiro. Em 1937, a instituição criou a Divisão de
229
Os estudos desenvolvidos na área de História da Educação sinalizam a resistência por parte de alguns
intelectuais em aceitar a aproximação entre a psicanálise e a educação, durante as primeiras décadas do
século XX. Tais estudos evidenciam que um grande foco de resistência esteve presente na Faculdade de
Medicina de São Paulo, quando as idéias de Freud foram questionadas. Contudo, destacamos a atuação do
medico Durval
Marcondes que contrariando seus pares buscava criar as cátedras de Psicologia e
Psiquiatria no Curso de Medicina da Universidade de São Paulo, sendo defensor da idéia da aplicação da
psicanálise nos conflitos educacionais. Durval Marcondes foi o fundador da primeira Sociedade de
Psicanálise da América Latina. Ver: MOKREJS, E. Durval Marcondes: o primeiro capítulo da Psicanálise
e da Psicopedagogia em São Paulo. Revista da Faculdade de Educação. 14 (2), 1988. p. 193-209.
230
LOPES, Eliane Marta Teixeira. A psicanálise aplicada às crianças do Brasil: Arthur Ramos e a
“criança problema”. In: FREITAS, M. C. & KUHLMANN, M. Os intelectuais na História da Infância.
São Paulo: Cortez, 2002.
231
REIS, Jose Roberto. “De pequenino é que se torce o pepino”: a infância nos programas eugênicos da
Liga Brasileira de Higiene Mental. In: História, Ciências, Saúde Manguinhos. V. 7 N. 1 Rio de
Janeiro: mar/jun. 2000.
232
Idem, p. 5
125
Amparo à Maternidade e à Infância.
233
Desse modo, percebemos que tais iniciativas
dialogavam com as novas perspectivas da psiquiatria voltada para a questão da saúde
mental da infância.
Ao analisar o nascimento da psiquiatria infantil, Jacques Donzelot nos afirma
que
Inicialmente ela não estava ligada à descoberta de um objeto próprio,
de uma patologia mental especificamente infantil. Seu aparecimento
decorre das novas ambições da psiquiatria geral, da necessidade de
encontrar um pedestal, um alvo onde se possam enraizar, sob forma
de uma pré-síntese, todas as anomalias e patologias do adulto, de
designar um possível objeto de intervenção para uma prática que não
pretende mais limitar-se a gerir os reclusos, mas, sim presidir à
inclusão social.
234
Desse modo, percebemos que a psiquiatrização da infância surgiu a partir da
necessidade de expansão da psiquiatria enquanto ciência e de sua relação com os
problemas sociais, como nos aponta Donzelot. Ao procurar explicar as práticas daqueles
que eram considerados “anormais”, “lesivos” e “ameaçadores”, especialistas
encontravam respostas na fase infantil dos indivíduos e como a perspectiva de trabalho
dos psiquiatras e higienistas era de caráter preventivo, esses agentes buscaram se
preocupar com a questão da infância.
Ao tratar sobre a psiquiatrização da infância, Michel Foucault nos fala que
Tornando-se ciência da infantilidade das condutas e das estruturas, a
psiquiatria pode se tornar ciência das condutas normais e anormais.
De sorte que poderíamos deduzir essas duas conseqüências. A
primeira é que, por uma espécie de trajeto em cotovelo, focalizando-
se cada vez mais nesse cantinho de excelência confusa que é a
infância, a psiquiatria de se constituir como instância geral para a
análise das condutas.
235
Para Foucault, o que se buscava era entender o indivíduo desde a fase do seu
nascimento, para que este saber/poder tivesse controle sobre a sua conduta, tornando-se
“o juiz tutelar” do comportamento daquele que era considerado anormal.
236
Esta ciência
voltada para a saúde mental, que se fundou na primeira metade do século XIX, buscava
ter com a psiquiatrização da infância poder sobre o comportamento das pessoas a fim de
233
Idem, p. 5
234
DONZELOT, J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986. P. 120-1.
235
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 391.
236
Idem.
126
criar uma série de dispositivos de controle, através de seus “edifícios teóricos”, de suas
técnicas de observação, de seus exames de comportamento.
237
Em Recife, o psiquiatra Ulysses Pernambucano realizou durante sua trajetória
intelectual alguns estudos sobre a questão da infância. Em 1918, Ulysses Pernambucano
produziu a dissertação intitulada Classificação das crianças anormais, trabalho
apresentado para o Concurso de professor catedrático de Psicologia e Pedagogia da
Escola Normal Oficial do Estado de Pernambuco.
238
Neste trabalho, Ulysses
Pernambucano discutia questões como de higiene infantil, escolar e familiar, quando
afirmava que não podia entender as anomalias da infância distantes dos problemas
sociais, afirmando que este assunto era
Palpitante atualidade, o estudo das crianças anormais ainda não se
encontra em nosso meio quem dele se ocupasse com carinho,
interesse e entusiasmo que tem encontrado por toda parte. E não se
diga que a pequena importância tem ele entre nós. Pelo contrário,
abundam, infelizmente, em nosso país e em nosso Estado os fatores
dessas anormalidades. está o alcoolismo, sífilis, tuberculose,
ancilostomose, impaludismo, doença de chagas, para não falar senão
das principais.
239
Foi nesse contexto que assistimos ao surgimento de uma campanha construída
pelo Serviço de Higiene Mental, órgão subordinado ao Serviço de Assistência aos
Psicopatas em Pernambuco, que buscava disseminar as idéias e práticas higienistas
voltadas para a infância, tendo o Boletim de Higiene Mental como um dos instrumentos
para divulgação e massificação desse trabalho. Ao analisar a importância do Boletim de
Saúde Mental, a historiadora Maria Concepta Padovan nos afirma que:
Todo esse trabalho acabava por criar uma sensibilidade acerca do
normal em oposição ao anormal, que era tomada pela população
como a única verdade possível, fazendo com que todo um
preconceito e uma forma de violência fosse construída para o trato
dos indivíduos classificados como diferentes.
240
237
Idem.
238
PERNAMBUCANO, Ulysses. Classificação das crianças anormais. A parada ao desenvolvimento
intelectual e suas formas, a instabilidade e a astenia mental. Dissertação para o concurso de professor
catedrático de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal Oficial do estado de Pernambuco. Recife:
Imprensa Oficial: Recife: 1918.
239
Idem. P. 15
240
PADOVAN, Maria Concepta. As mascaras da razão: memórias da loucura no Recife durante o
Estado Novo (1937-1945). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006. P. 62.
127
Em seu trabalho, As mascaras da razão: memórias da loucura no Recife
durante o Estado Novo, podemos observar como as teorias desenvolvidas nas décadas
de 1920 e 1930, por Ulysses Pernambucano e outros médicos-higienistas buscaram
disseminar suas idéias nesse Boletim, a fim de criar um movimento voltado para o
controle da saúde mental das pessoas comuns, sendo os cuidados com a saúde mental
das crianças disseminados de forma expressiva nas páginas do Boletim.
Em fevereiro de 1933, o Boletim trazia a matéria intitulada Doenças mentais na
criança. Nesta matéria, o articulista afirmava que:
Os dados fornecidos pelos especialistas do manicômio a respeito das
doenças mentais em crianças, são de menor valor do que nos casos de
adultos. Em geral a família só em ultimo caso conduz o menino até o
hospício. É o motivo pelo qual as estatísticas a este respeito não dão
uma idéias exatas de freqüência das psicoses infantis.
241
Essa matéria fazia parte do movimento que buscava chamar a atenção da
sociedade para a importância de realizar um trabalho de acompanhamento nos casos
considerados de caráter psicanalítico que envolviam as crianças. Uma informação
importante esteve presente na fala de Ulysses Pernambucano: “em geral a família em
ultimo caso conduz o menino até o hospício”. No decorrer da nossa pesquisa nos
prontuários individuais das crianças e jovens internadas no Hospital de Alienados,
percebemos que a maioria dos casos arquivados eram de meninos encaminhados pelo
aparato policial.
Assim foi o caso de Sebastião Flor, enviado pela Polícia em 14 de março de
1928, por motivo de alcoolismo e foi diagnosticado como epilético. Sebastião tinha 17
anos, morava no bairro de Dois Irmãos e exercia a profissão de doméstico. Em seu
prontuário, encontramos a informação que o garoto tinha crises de perda de
conhecimento, sua mãe era sifilítica, freqüentava o Espiritismo e era indiferente ao
meio. Sebastião passou apenas dois meses no Hospital de Alienados, tendo sido
liberado em 13 de junho daquele mesmo ano. No prontuário de Sebastião não há
registro de uma continuidade no tratamento médico ou de um retorno ao Hospital da
Tamarineira.
242
O motivo pelo qual a força policial enviou Sebastião para o Hospital de
Alienados foi o alcoolismo. Ao nos voltarmos sobre os prontuários de outras crianças e
241
Boletim de Higiene Mental. Doenças mentais em crianças. Recife, dezembro de 1933. Ano I, p. 2.
242
Prontuário Individual de Sebastião Flor. Pavilhão de Observações. Recife, junho de 1928. Hospital de
Alienados.
128
jovens internos, verificamos que um número expressivo de casos tinha como
justificativa o envolvimentos desses garotos com o consumo do álcool. Antonio Ferreira
Filho, foi um outro jovem de 18 anos que também foi encaminhado pela polícia e
identificado como “menor alcoólatra”. Antonio foi diagnosticado como desorientado,
possuidor de pouca memória e que sofria de alucinações, sendo acusado de perturbar o
sossego do pavilhão e de ser inquieto, comprometendo a “ordem asilar”.
243
Entender os casos de Sebastião e Antonio em sua historicidade, leva-nos a
perguntar o que era ser um indivíduo alcoólatra no período estudado. A historiografia
registra que nas décadas de 1920 e 1930, o problema do alcoolismo fazia parte das
preocupações de médicos e higienistas. De acordo com o historiador Fernando Dumas
dos Santos, no Brasil, as primeiras preocupações mais sistematizadas com a chamada
“doença do alcoolismo” se intensificaram no final do século XIX e intensificada com o
crescimento industrial das cidades, quando o consumo do álcool pelos operários passou
a comprometer a produção das grandes fábricas. Capitaneado pelos estudos da
historiografia inglesa, mais notadamente dos historiadores Eric Hobsbawn e E. P.
Thompon, o historiador nos fala que o alcoolismo pode ser considerado como uma
doença trazida pela lógica burguesa e foi tida como uma doença social que deveria ser
combatida.
244
A relação entre alcoolismo e infância também foi alvo das preocupações dos
saberes médicos e dos higienistas da década de 1930. De acordo com as pesquisas do
historiador José Gondra, uma campanha preventiva foi montada pela Liga de Higiene
Mental, no Rio de Janeiro, no sentido de disseminar a idéia entre as famílias, mais
notadamente as famílias populares, os “males causados pelo alcoolismo na infância”.
Para Gondra, o discurso higienista defendia a idéia que as “calamidades sociais”
causadas pelo alcoolismo “era talvez, a que mais influência exercia para a desgraça dos
povos, crimes e degeneração da raça”.
245
Tal campanha foi articulada a partir dos
argumentos que o alcoolismo também era causador da epilepsia, sífilis, tuberculose e
243
Prontuário Individual de Antonio Ferreira Filho. Pavilhão de Observações. Recife, junho de 1928.
Hospital de Alienados.
244
SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos. Moderação e excesso; uso e abuso: os saberes médicos acerca
das bebidas alcoólicas. In: Clio - Revista de Pesquisa Histórica. N. 24 – 2. Recife: Editora da UFPE,
2006. 103-129.
245
GONDRA, J. “Modificar com brandura e prevenir com cautela”: racionalidade médica e higienização
da infância. In: FREITAS, Marcos Cezar & KUHLMANN JR, Moysés. Os intelectuais na História da
infância. São Paulo: Cortez, 2002. p. 298.
129
que poderia comprometer o desempenho físico, intelectual e moral das crianças, tendo
que ser analisado a partir da ótica da hereditariedade.
246
Além de Sebastião e Antonio, outros garotos fazem parte da História do Hospital
de Alienados. O Boletim de Higiene Mental publicado em dezembro de 1933 trazia uma
tabela que informava o número de crianças internas no Hospital da Tamarineira.
Entrada de Crianças no Hospital de Alienados da Tamarineira
247
1924 - 1930
Ano Total de doentes Número de Crianças Percentagem
1924 670 19 2,4%
1925 767 30 3,9%
1926 730 34 4,6%
1927 1.070 34 3,3%
1928 1.023 50 4,8%
1929 1.141 35 3,06%
1930 1.128 34 3,05%
Tabela produzida pelo Boletim de Higiene Mental
Divulgada pelo Boletim de Higiene Mental em 1933
A tabela demonstra a oscilação no número de crianças atendidas pelo Hospital
durante os anos de 1924 até 1930, representando um percentual abaixo de 5% no total
de atendimentos realizados pela instituição. Segundo as pesquisas realizadas por Carlos
Alberto Miranda, a maioria dos pacientes internados neste período possuía a faixa etária
dos 20 a 35 anos de idade, quando um número expressivo de homens tinham a profissão
de agricultor e as mulheres exerciam os atividades domésticas.
248
A matéria ainda trazia a informação de que a maioria das causas dos
internamentos referentes às crianças era por psicose epilética. Tal diagnóstico era
realizado a partir do trabalho dos especialistas que buscavam identificar se os problemas
mentais estavam relacionados à hereditariedade patológica, quando apontavam que:
O fato de serem justamente muito mais freqüentes nas estatísticas tais
doenças, diretamente dependentes da hereditariedade patológica,
indica a necessidade que do pode de vista da higiene mental, de
246
Idem.
247
Boletim de Higiene Mental. Doenças mentais em crianças. Dezembro de 1933. Apeje. Ano I, p. 3.
248
MIRANDA, Carlos Alberto. Vivências amargas: a divisão de Assistência a Psicopatas de Pernambuco
nos primeiros anos da década de 30. In: Clio - Revista de Pesquisa Histórica. N. 24 – 2. Recife: Editora
da UFPE, 2006. 63-103
130
impedir o matrimonio dos tarados e põe em evidencia a necessidade
do exame pré-nupcial.
249
Nesse sentido, observamos que o cuidado com a criança estava relacionado com
o controle sobre as famílias, uma vez que de acordo com a matéria sugeriu o exame pré-
nupcial representava uma ação preventiva no combate à psicose epilética em crianças.
Ao nos voltarmos sobre os estudos de José Roberto Reis, podemos observar que o
exame pré-nupcial, do mesmo modo da esterilização, fazia parte das propostas da
Liga Brasileira de Higiene Mental, levando-nos a perceber que a atuação dos médicos
pernambucanos estava sintonizada com o ideário da Liga Brasileira.
250
Antonio, Sebastião e tantos outros... O Hospital de Alienados também recebia
crianças abandonadas, como Manoel Laudelino, de nove anos de idade, que foi
encaminhado pelo Hospital Pedro II. Na Ficha de Identificação preenchida no Pavilhão
de Observações, estava escrita a informação:
Este doentizinho veio do Hospital Pedro II sem a menor informão.
Desde que chegou neste serviço que tem estado excitadíssimo, não
dorme, passa dias correndo pela casa, inquietação. Quando
interrogado mostra-se inteiramente alheio as nossas interpelações. O
paciente tem perturbações na fala e parece que é de nascença.
251
Manoel fora abandonado pelos pais e o diagnóstico acusou que a criança tinha os
reflexos normais, porém estava desnutrida. O exame mental informava que quando
observado, o garoto
Mostra-se inquieto e excitado. Prefere o chão para deitar-se e
abandona seu leito. Passa as noites gritando e procurando fugir.
Crises de excitação. Queixa-se de cefaléia e é indiferente ao meio.
252
O prontuário do Manoel, assim como tantos outros, nos fornece o registro que a
criança passou apenas dois dias no Pavilhão de Observações, sendo transferido para o
Hospital de Doenças Mentais. Manoel, com apenas nove anos de idade, assim como
outras crianças, ao serem internados na Tamarineira eram direcionados para o mesmo
local dos pacientes adultos. As inquietações, os gritos e as tentativas de fuga do menino
249
Boletim de Higiene Mental. Doenças mentais em crianças. Dezembro de 1933. Apeje. Ano I, p. 3.
250
REIS, Jose Roberto. “De pequenino é que se torce o pepino”: a infância nos programas eugênicos da
Liga Brasileira de Higiene Mental. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V. 7 N. 1 Rio de
Janeiro: mar/jun. 2000.
251
Prontuário Individual de Manoel Laudelino. Livro do Pavilhão de Observações: 1930. Arquivo
Hospital da Tamarineira.
252
Idem.
131
Manoel, poderiam apresentar algum distúrbio mental ou formas de resistir às
determinações impostas por médicos e enfermeiros.
Além dos casos de abandono, o Hospital de Alienados acolhia outros casos que
envolviam a violência sica contra as crianças e jovens. Em 7 de junho de 1930, a
Polícia da Capital encaminhou Antonio, uma criança de 16 anos, para o Hospital de
Alienados. Diferente dos casos analisados até agora, Antonio não foi recolhido a mando
da polícia por ter ferido ou por ter consumido álcool. O menino de tinha sido espancado
por seu patrão, deixando-o “com sintomas de loucura”. A Guia de Sentença policial foi
reproduzida no laudo médico e assim foi registrado os antecedentes históricos da doença
de Antonio:
A Guia do seu internamento assim se refere:
‘Solicito vossas providências no sentido de ser recolhido a esse
estabelecimento o menor de nome Antonio Francisco Ferreira, que
tendo sido espancado por Alfredo Dias Pires, do que esse delegado
estar processando inquérito, ficou a vítima apresentando sintomas de
loucura, deixando o mesmo ser vistoriado pelo Instituto de Medicina
Legal. O paciente informa que sem motivo o seu patrão espancou-o
barbaramente, tendo o paciente recebido vários cacetadas e entre
essas, uma na cabeça que lhe produzia uma leseira no juízo. Chegou
excitado neste serviço, falando abundantemente e sem percepção.
Passou dois dias sem se alimentar sendo preciso dar-lhes injeção de
soro. Atualmente estar melhorando.
253
O prontuário de Antonio ainda informava que o garoto era regularmente
nutrido, que sua estrutura corpórea era desenvolvida e que em sua família não havia
antecedentes de pessoas com problemas de saúde mental. Antonio ainda tinha várias
lesões no corpo quando foi liberado: o garoto passou seis dias no Hospital de Alienados.
O caso de Antonio nos faz perceber que aquela instituição também se apresentava como
espaço onde os meninos abandonados, violentados, agredidos eram acolhidos.
Maus tratos, abandono, alcoolismo, assim eram registrados os diagnósticos das
crianças e jovens nos boletins do Hospital de Alienados. Debruçar-se sobre esses
documentos nos faz perceber que muitos dos casos envolvendo os meninos
representavam o desdobramentos do contexto social no qual estavam inseridos. A
psiquiatrização da assistência à infância no Recife esteve relacionada às praticas de
controle sobre as crianças e jovens que pertenciam às classes populares, quando muitos
foram confinados por se apresentavam como ameaçadores aos padrões estabelecidos
naquela época.
253
Prontuário Individual de Antonio Francisco Ferreira. Diretoria de Higiene da Capital – Hospital de
Doenças Nervosas e Mentais. Recife, março de 1930.
132
Neste Capítulo, podemos observar como foram construídas as práticas de
controle e disciplinamento pelo Estado e pelo saber médico psiquiátrico em torno dos
meninos que viviam no mundo do abandono ou da delinqüência e que se apresentavam
como uma ameaça à ordem estabelecida. Este debate nos levou a pesquisar como essas
práticas foram vividas no âmbito das prisões, do manicômio e das escolas correcionais
construídas na década de 1930. Das ruas esses meninos partiram para os distritos
policiais, que por sua vez os encaminhavam para a Casa de Detenção do Recife. Desta
instituição, as crianças e jovens eram direcionados para outros espaços de
confinamento. Este é o tema central do nosso próximo Capítulo. Nela, vamos discutir os
caminhos do recolhimento dessas crianças e jovens a partir de suas prisões na Casa de
Detenção do Recife.
133
QUARTO CAPÍTULO
CAMINHOS DO CONFINAMENTO:
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NO RECIFE
São magníficos os resultados da obra a respeito no Instituto 5 de
Julho, onde o menor não é só expressão quanto a prática do crime (...)
O poder público, por sua vez, procura atender um dos ângulos do
problema aquele que se refere à educação e ampara a menores
delinqüentes. Para tal, fundou-se, em 1931 o Instituto 5 de Julho (...)
A humanização dos menores no Recife, três anos vem sendo feito
pelo Dr. Rodolfo Aureliano, Juiz de Menores e com os resultados
magníficos. Os menores, aqui também frequentemente vem bater a
porta do Instituto. Temos tidos inúmeros casos desse milagre.
254
O trecho do artigo publicado pelo Diário da Manhã, em agosto de 1936, ressalta
as iniciativas promovidas pelo Estado na área da assistência à infância. Para o
articulista, a criação do Instituto 5 de Julho, que atendia crianças e jovens do sexo
masculino e oferecia educação básica e profissionalizante para as crianças, representava
um meio de humanização dos chamados “menores delinqüentes”.
O Internato Profissional 5 de Julho foi criado em 1932, tornando-se dois anos
depois o Abrigo de Menores, “o qual logo recebeu os menores que se achavam
recolhidos à Casa de Detenção”. Conforme nos afirma o Decreto 306, assinado pelo
interventor Carlos de Lima Cavalcanti:
Artigo - O Internato Profissional 5 de Julho da capital, passa a
constituir um abrigo de menores, destinado a receber
provisoriamente, até que lhes destino definitivo, os menores
abandonados e delinqüentes.
PARÁGRAFO ÚNICO: Nesse abrigo é o menor submetido a
identificação e examinado pelo médico e por um professor
conservando-se em observação durante o tempo que for julgado
necessário.
Artigo - O Abrigo de Menores terá o seu atual pessoal, com as
modificações constantes de ato especial a ser expedido.
255
A criação deste Abrigo refletia um novo sentimento em relação à assistência à
infância, dialogando com as novas perspectivas de sua institucionalização em nosso
254
Diário da Manhã. O que no Recife se vem fazendo pela humanização dos menores. Recife, 07 de
agosto de 1936. Editorial. P. 4.
255
Brasil. Código de Menores de 1927.
134
país. A historiografia registra que no início do século XX, várias capitais do Brasil
passaram a construir suas escolas e colônias correcionais, voltadas para o recolhimento
das crianças e jovens considerados abandonados e “delinqüentes”. De acordo com os
estudos das irmãs Rizzini,
No período republicano a tônica centrou-se na identificação e no
estudo das categorias necessitadas de proteção e reforma, visando ao
melhor aparelhamento institucional capaz de ‘salvar’ a infância
brasileira no século XX.
256
Distante das prisões comuns, onde tinham que conviver com os presos adultos,
mesmo separados em pavilhões diferentes, como supostamente acontecia na Casa de
Detenção, no Abrigo de Menores os meninos estudavam, praticavam educação física e
recebiam ensinamentos profissionalizantes. De acordo com Goffman, esta prática de
institucionalização pode ser entendida como uma disposição básica das instituições
totais criadas pela sociedade moderna ocidental, que para ser ressocializado ou curado,
o indivíduo deve brincar, dormir e trabalhar no mesmo “local e sob a mesma
autoridade”.
257
A criação dos abrigos para meninos foi justificada a partir de se estabelecer uma
política assistencial/prisional específica para atender os problemas sociais relacionados
à infância oriunda das classes populares. Segundo Jacques Donzelot, esta cultura da
institucionalização emergiu no fim dos oitocentos, quando vários centros especializados
na “regeneração de crianças” passaram a adotar um sistema de educação vigiada,
instaurando sobre esses agentes sociais “uma infra-estrutura de prevenção, iniciando-se
uma ação educativa que possa, oportunamente, retê-lo aquém do delito”, quando este
objeto de intervenção também era objeto de saber.
258
Em Pernambuco, as primeiras décadas do século XX foram marcadas por
inúmeros debates acercar da criação de estabelecimentos destinados ao recolhimento de
crianças e jovens. Na década de 1930, a interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti
criou uma série de políticas assistenciais voltadas para institucionalização da assistência
à infância na Capital e no interior de Pernambuco. Além do Instituto Profissional 5 de
256
RIZZINI, Irene. & RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e
desafios do presente. Rio de Janeiro: Puc – Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
257
GOFFMAN. E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo Perspectiva, 2005.
258
DONZELOT, J. A polícia das famílias. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996. p. 92.
135
Julho, outros espaços de recolhimentos foram construídos, a exemplo da Colônia
Correcional de Vitória de Santo Antão e de Garanhuns.
259
Neste quarto capítulo, analisaremos o lugar social das crianças e dos jovens nas
instituições de recolhimento. A opção por estudar estas instituições surgiu a partir da
análise dos prontuários das crianças presas na Casa de Detenção, quando daquele
espaço prisional os meninos eram transferidos para o Manicômio Judiciário (local onde
funcionava o Hospital de Alienados), para o Presídio da Ilha de Fernando Noronha e
para o Instituto Profissional 5 de Julho.
As imagens fotográficas, os prontuários individuais, a literatura da época e os
relatos de memórias formam os documentos indiciários, que nos permitiram historicizar
o cotidiano dos meninos detentos e abrigados no Instituto 5 de Julho. Desse modo,
propomo-nos a realizar uma contra-leitura dos discursos construídos sobre essas
crianças e jovens, discursos esses que mesmo sendo produzidos pelas instituições nos
permitiram encontrar falas e silêncios dos nossos protagonistas. Como nos diz Michele
Perrot, na tentativa de construirmos a história dos excluídos, “desaparecidos de sua
história”, devemos rastrear o que se diz deles, a fim de indagarmos os silêncios e
encontrarmos as mais diferentes formas de lutas pela sobrevivência construídas no
cotidiano.
260
4.1 Infância encarcerada: o cotidiano dos meninos nas instituições de
confinamento em Pernambuco
José Nogueira dos Santos, 17 anos, vulgo “Amarelinho”, morava na Rua Estreita
do Rosário, tinha mãe e pai... Não sabia ler, não possuía economias e já tinha trabalhado
como agricultor.
261
Em 26 de novembro de 1934, o adolescente foi recolhido à Casa de
Detenção do Recife, em cumprimento à ordem estabelecida pelo Delegado do Terceiro
Distrito, o Doutor Juiz de Menores Rodolfo Aureliano. José se tornou um “menor
detento”, que ao ser “fichado” pelos agentes da Casa de Detenção passou a pertencer a
“classe de delinqüente primário”. O ofício remetido à Casa de Detenção, afirmava:
259
Relatório da Interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti. 1937.
Arquivo Público Estadual Jordão
Emereciano - Apeje.
260
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
261
Ficha de Identificação. Prontuário Individual de José Nogueira dos Santos. Recife, 1934. Acervo:
Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
136
Preso em flagrante delito, as 19 e meia horas, no dia 26 do corrente,
no Pátio do Carmo, desta cidade, por haver produzido ferimento com
uma faca “águia” em Michel Agnelo, vulgo “Bague”, devendo
permanecer à disposição do Juiz de Menores.
262
Amarelinho ficou encarcerado na Casa de Detenção durante dois meses, sendo
submetido ao exame de sanidade mental, estando sob os cuidados da Assistência aos
Psicopatas, por ordem do Juizado de Menores. Logo nos primeiros dias do ano novo,
em 3 de janeiro de 1935, o garoto foi transferido para o Abrigo de Menores.
Do Pátio do Carmo à Detenção, da Detenção ao Abrigo de Menores. O breve
registro da passagem de Amarelinho pelo presídio estava escondido em meio aos
prontuários individuais, pertencentes ao acervo da antiga Casa de Detenção do Recife.
Os prontuários reúnem documentos pertinentes à passagem do preso na Casa, contendo
informações curtas, objetivas e às vezes telegráficas, tornando o trabalho do historiador
que pretende discutir o passado das crianças no cárcere, ainda mais difícil, uma vez que
não há registros do cotidiano das crianças na Casa de Detenção nesses documentos.
Foto 01 - Esta imagem foi encontra no acervo da Casa de Detenção.
As fotografias faziam parte dos documentos arquivados nos prontuários dos detentos.
Fundo: Casa de Detenção do Recife – Apeje
Contudo, através das fichas de identificação e classificação elaboradas nos
tempos de uma criminologia evolucionista, que determinava que todas as características
262
Ofício Emitido pelo Juizado de Menores, em 26 de novembro de 1934, ao Presídio Especial do
Recife. Prontuário Individual. José Nogueira dos Santos. Acervo: Casa de Detenção Arquivo Público
Jordão Emereciano.
137
físicas e biológicas fossem registradas naqueles documentos –,
263
por meio das
fotografias, das impressões digitais, dos ofícios, das guias de sentença, o poder
penitenciário buscava formar um dossiê sobre o detento. Tais documentos nos levam a
perceber como o sistema penitenciário buscava construir o seu discurso sobre a
identidade do prontuariado e como procurava exercer o poder sobre o seu “destino”.
A Casa de Detenção do Recife foi erguida na segunda metade do século XIX,
com a intenção de se tornar um presídio modelo nas terras do Norte do Brasil. Edificada
as margens do Rio Capibaribe, no atual centro comercial da cidade, a Casa foi
construída com o objetivo de abrigar os “elementos nocivos à sociedade”, onde
deveriam estar abrigados os “delinqüentes” do Recife, do interior Pernambuco e dos
estados vizinhos, por isso a Casa de Detenção também se chamava Presídio Especial.
264
A grande muralha que separava o detento da sociedade aprisionava capoeiras,
prostitutas, traficantes, políticos e crianças. Esses agentes viviam em um edifício
arquitetado a partir do modelo francês de prisão, seguindo os pressupostos do
panoptismo de Bentham, quando “na periferia uma construção em anel; no centro, uma
torre; esta vazada de largas janelas que se abre sobre a face do anel; a construção
periférica é dividida em celas, cada uma atravessando a espessura da construção”.
265
Foto 02 - Planta da Casa de Detenção do Recife. Década de 1920.
Nesse espaço, funcionava o almoxarifado, oficinas, enfermaria e salas de aulas. Entre esses
espaços podemos encontrar o “pavilhão” destinado ao abrigo das crianças e jovens.
Fundo: Casa de Detenção do Recife – Apeje
263
As fichas continham informações sobre: cútis, cabelo, olhos, barba, bigode, dentes, orelha, boca, nariz,
sobrancelhas, estatura, marcas corporais como cicatriz ou tatuagem, cabeça, mão direita, mão esquerda.
Além do estado civil, instrução, economias, profissão, etc.
264
MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. 2001. (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Pernambuco. Recife: 2001.
265
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: uma história da violência nas prisões. 34 Ed. Petrópolis: Vozes,
2007.
138
Uma instituição total, como nos fala Ervering Goffman, que procurava criar um
cotidiano próprio, determinando regras, regulamentos, buscando construir e desconstruir
barreiras sociais dentro de uma fortaleza isolada, aculturando-se, assimilando-se. Uma
instituição destinada à “cuidar das pessoas incapazes de cuidar de si mesmas”.
266
De
acordo com Goffman,
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação
semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável
período de tempo, levam uma vida fechada e fortemente
administrada.
267
Não podemos negar que as pesquisas realizadas por Goffman representam uma
referência para o historiador que pretende trabalhar com a questão das prisões a partir da
preocupação de como foi construído o cotidiano dos prisioneiros. Na obra Manicômios,
prisões e conventos, o autor analisa os mais diferentes casos envolvendo o dia a dia dos
agentes sociais internados em instituições totais. Nesta obra, o autor trabalhou com
relatos de memórias e outros documentos que registravam o lugar social do interno,
problematizando a “vida íntima de uma instituição pública” e analisando os rituais e os
costumes, as permissões e as proibições.
Ao nos voltarmos para a história da presença das crianças na Casa de Detenção,
observamos que desde a sua construção estavam elas. As pesquisas realizadas pela
historiadora Clarissa Nunes Maia sinalizam que essas crianças eram filhos de escravos,
jovens capoeiras, meninos abandonados que perambulavam pelas ruas do Recife no
período imperial que estiveram envolvidos em práticas consideradas ilícitas.
268
Mas,
qual o lugar social das crianças e jovens na Casa de Detenção do Recife, durante as
décadas de 1920 e 1930?
Na tentativa de respondermos esse questionamento, podemos nos voltar para a
dissertação defendida pelo historiador Mozart Vergetti Meneses, que focaliza a criação
das escolas correcionais construídas no Recife durante as primeiras décadas do século
XX. Defendido em 1995, o trabalho reflete o momento onde a historiografia brasileira,
mais notadamente a pernambucana, produzia seus primeiros trabalhos a partir do
pensamento de Michel Foucault. Capitaneado por este referêncial teórico, Menezes
266
Idem.
267
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2005.
268
MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. 2001 Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife, 2008.
139
procurou analisar o discurso dos saberes médicos e jurídicos construídos sobre a criança
detenta, buscando discutir as nuances do poder disciplinar que controlava e punia os
meninos que foram destinados à Casa de Detenção.
269
De acordo com as investigações de Mozart Menezes, foi no Congresso Médico
de 1909, realizado em Recife, que surgiram as primeiras discussões sobre a
possibilidade de criação de uma “escola para menores delinqüentes” a partir de
preocupações de salvaguardar as crianças em relação ao contato com os presos adultos.
Nesse período, a Casa de Detenção também servia como um laboratório, onde juristas e
médicos analisavam os casos com a finalidade de atender seus interesses de pesquisa.
Contudo, aqueles que defendiam a idéia da construção de uma escola correcional dentro
do “Presídio Especial”, tiveram que enfrentar resistências, haja vista que muitos
“denunciavam os riscos de contatos perniciosos das crianças com os prisioneiros
condenados”.
270
Segundo os estudos de Meneses, funcionou no interior da Casa de Detenção,
uma escola correcional, que depois se tornou colônia, entre o período de 1909 a 1929.
Essas instituições funcionaram da seguinte forma:
Período Perfil Institucional
1909
A partir desse período organizou-se, sob o “comando” do Major Joaquim
Cavalcanti, um espaço destinado às crianças localizado na estrutura do prédio
construído nos oitocentos.
1917
Na gestão de Manoel Borba, o espaço tomou “forma” de escola correcional, tendo
a estrutura da educação básica e profissionalizante, sendo seu atendimento
“restrito aos menores desassistidos”. Para Menezes, havia um interesse de
“regenerar” os menores detentos através da lógica do trabalho e de fazer com que
as oficinas instaladas também representassem um retorno financeiro para os
cofres do governo, no sentido de garantir certa auto-sustentação da Casa.
1924
até
1929
A criação da Colônia Correcional, ocorrida no governo de Sérgio Loreto,
representando uma mudança na estrutura do atendimento uma vez que a Escola
passou a acolher as crianças condenadas. A partir da Colônia, censores, nomeados
pelo governo, passaram a atuar junto com a administração carcerária.
Este quadro representa uma síntese de como o historiador Mozart Vergetti identificou e
analisou a trajetória da assistência à infância no âmbito da administração da Casa de Detenção,
compreendendo o período de 1909 a 1929.
269
MENEZES, Mozart Vergetti. Prevenir, disciplinar e corrigir: as escolas correcionais no Recife
(1909-1929). Recife: Dissertação de Mestrado defendida no Programa de s-graduação em História da
UFPE, 1995.
270
Idem. P. 87.
140
Ao analisar a questão da mudança de escola para colônia, Meneses nos fala que
somada à diferença conceitual, “toda uma reinterpretação de valores sociais viria
contrastar não com a mera recuperação moral do indivíduo, como também com o
próprio papel do Estado protetor”. Vigiar e punir, esse era o objetivo. O adestramento
físico, a doutrinação cívica e os trabalhos manuais, buscavam garantir a regeneração da
criança e do jovem identificados, segundo o olhar do aparato policial, como:
indisciplinados, ilícitos e perigosos.
271
Na Casa de Detenção eram oferecidas oficinas de encadernação, alfaiataria,
carpintaria, fazendo-nos perceber que o cotidiano desses meninos também foi marcado
por uma “pedagogia do trabalho”. Através das artes de ofícios, algumas crianças
detentas, tiveram acesso ao aprendizado de uma profissão, uma vez que se acreditava
que por meio do trabalho essas crianças poderiam se ressoacializar. Desse modo,
professores da “educação básica”, orientadores para o ensino de música e mestres de
ofícios, eram contratados para ensinar as crianças. De acordo com as pesquisas de
Meneses, em um grande galpão, com capacidade de acomodar setenta trabalhadores,
funcionava a oficina de sapatos, onde deveria ser reservado um espaço para os menores
detentos.
272
As memórias de Gregório Bezerra, que durante a década de 1920, tinha sido
preso na Casa de Detenção por estar envolvido no movimento sindical, ajudam-nos a
analisar o cotidiano prisional dessas crianças, uma vez que ele trabalhou como
cozinheiro da Escola Correcional que funcionava na Casa de Detenção do Recife.
Através de suas experiências, Bezerra relatou o cotidiano das crianças e jovens que
estiveram presas. Ao lembrar do lugar social das crianças naquela instituição, Gregório
nos fala:
Essas crianças, em sua maioria eram meninos abandonados que
viviam perambulando pelas ruas; outros estavam ali porque os pais
não dispunham de recursos para alimenta-los ou porque os pais os
consideravam indisciplinados demais e os punham na escola
correcional para, segundo eles ‘tomarem jeito de gente’.
273
271
Idem.
272
Idem, p. 102.
273
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 100-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
141
De acordo com as memórias de Gregório, a Casa de Detenção era um local
menos indicado para que essa transformação acontecesse, uma vez que
Havia muita fome. Fome que impelia os garotos à prática de
pederastia com os presidiários em troca de migalhas de pão, bolachas,
frutas ou pequenas gulodices. Havia certa vigilância, mas em vão. A
localização da escola correcional no pátio interno do presídio tinha
como conseqüência a inevitável promiscuidade dos meninos com os
presos comuns, com quem mantinham o contato diário nas oficinas
de alfaiataria, encadernação e carpintaria.
274
Ao nos voltarmos sobre a questão dos abusos praticados pelos guardas da
Detenção, podemos perceber que o discurso institucional do combate à “delinqüência
infantil” não era vivenciada naquela Prisão, uma vez que alguns dos seus agentes
também praticavam tais ações. Na casa de Detenção do Recife, o olhar panóptico que
buscava “tudo ver” sofria de “miopia” e se corrompeu, fazendo com que a máquina não
funcionasse de forma eficaz. O princípio do isolamento absoluto defendido por
Bentham era difícil de ser cumprido, dado ao grande número de detentos.
De acordo com as pesquisas realizadas pela historiadora Clarissa Nunes Maia,
percebemos que as transgressões cometidas pelos agentes penitenciários da Casa de
Detenção eram anteriores ao nosso período de estudo. Segundo Maia,
Todo esse aparato disciplinar contido nos regulamentos, que deveria
fazer funcionar devidamente a máquina benthaniana, classificando,
repartindo, distribuindo e reclassificando, para transformar criminosos
em homens ‘dóceis e úteis’ no entanto, caia por terra ao se deparar com
condições materiais do presídio e a indisciplina dos guardas do
estabelecimento.
275
Alguns estudos desenvolvidos na área de criminologia focaram a eficiência da
proposta de Bentham, quando sinalizam que as primeiras iniciativas realizadas na
Europa aparentavam algumas limitações quanto a sua execução. Ao problematizar a
“construção da moderna práxis carcerária na Europa”, que por sua vez influenciou o
ocidente, Dario Melossi afirma, “o Panopticon de Bentham é uma tentativa ingênua e
274
Idem,
275
MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. 2001. (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Pernambuco. Recife: 2001. p. 204
142
concretizada de coordenar um exasperante sistema punitivo e de controle com eficiência
produtiva”.
276
Na Casa de Detenção as crianças dormiam, estudavam e trabalhavam. E na hora
da alimentação? Segundo as memórias de Gregório Bezerra,
A bóia dos meninos não só era pior que a dos presos comuns como era
menos da metade da ‘xepa’ daqueles, péssima para época. Havia ts
refeições por dia: pela manhã, um caneco de café com pão sem
manteiga para os presidiários; ao meio-dia, um caneco de feijão, um de
farinha e um pedaço de bacalhau ou de charque. Isto as segundas,
quartas, sextas e sábados; às terças e quintas, carne congelada, carne
com ossos, pedaços amarrados com barbantes ou cordões, um caneco
de caldo e um de farinha (quase sempre mofada e cheia de tapurus), à
tardinha, como jantar, um caneco de chá-mate e três bolachas duras e
azedas.
277
As memórias de Gregório trazem consigo um forte caráter denunciador. O seu
testemunho ressalta a violência sexual, a improbidade da administração pública e a falta
de compromisso com a integridade física e moral das crianças detentas. Ao confrontar
esses relatos com o Regulamento da Casa de Detenção, que por sua vez classificava as
crianças e jovens detentos como menores delinqüentes, ou seja, incluindo nessa
categoria os “abandonados” e “indisciplinados”, percebemos que há uma distância entre
o discurso oficial e as memórias daquele que viveu e testemunhou como foi construído
o cotidiano dessas crianças naquela instituição prisional. O Regulamento ressaltava em
parágrafo único que: “os menores delinqüentes serão recolhidos ao pavilhão adequado
em anexo à Casa de Detenção”.
278
Na sua escrita de si, Gregório construiu um depoimento sobre a presença das
crianças na Casa de Detenção do Recife, a partir da indignação. Para Gregório, as
condições na quais se encontravam as crianças na Casa de Detenção representava uma
das vergonhas da sociedade recifense da época, uma vez que o cotidiano dos meninos
traduzia a inversão dos valores morais e dos bons costumes, defendido de forma
veemente por aquela sociedade. E Gregório desabafa:
A recuperação daqueles meninos comprova que não uma
criatura que seja recusável, principalmente as centenas de milhares de
276
MELOSSI, Dario & PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário
(séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
277
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 100-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979. p. 163
278
Relatório da Casa de Detenção do Recife. Recife: Imprensa Oficial: 1930.
143
crianças, que vivem perambulando pelas ruas, muitas das quais na
prática de todos os vícios e de todos os crimes em todas as cidades do
meu desgovernado Brasil.
279
Mas, de onde vinham e para onde iriam nossas crianças? Em dezembro de 1937,
o garoto Lauro Miranda Lobo, vulgo Galo Amarelo ou Galo Amarelinho, com 17 anos
de idade, foi recolhido “à prisão comum, porém separado dos criminosos adultos,
ficando à disposição do Juiz de Menores”. De acordo com o Ofício 140/1912-1937,
anexado ao Prontuário de Galo Amarelo, o garoto tinha se envolvido em vários crimes,
inclusive, o de furtar uma taça de bronze do Palácio da Justiça, no mês de novembro
daquele mesmo ano. Em setembro de 1938, Rodolfo Aureliano assinou mais um ofício
reafirmando a necessidade de Galo Amarelo permanecer na Casa de Detenção.
O Exm. Secretário de Segurança Pública, comunica-vos, para os
devidos fins, que o Sr. Juiz Privativo de Menores, por sentença de 17
do mês findo, declarou o réu menor Lauro de Miranda Lobo ou
Lauro Lobo Miranda, com incurso nas penas do Art. 330 da
Consolidação das Leis Penais, combinado com o Artigo 71 do
Código de Menores, determinando o seu recolhimento a esse
Presídio, onde já se encontra, em prisão separada dos criminosos
adultos, devendo permanecer até que se verifique a sua
regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exercer o seu
máximo legal de dois anos de prisão... Rodolfo Aureliano
280
Nesse Ofício, foi exposta a explicação da permanência de Galo Amarelo na Casa
de Detenção: o garoto deveria se regenerar. Confinado, Galo Amarelo foi submetido a
exames psiquiátricos e a vários interrogatórios, tendo que se deslocar para o Juizado de
Menores. Em 1942, respondendo como preso adulto, Lauro Miranda foi posto em
“liberdade”. Nesse período, o detento se encontrava em outra instituição prisional, o
Presídio Agrícola de Itamaracá.
281
Além dos casos que envolviam as crianças do Recife, a Casa de Detenção
recolhia as crianças e jovens do interior do Estado, quando vários prontuários
encontrados são de meninos que trabalhavam como agricultores, que cometeram crimes
ou contravenções. Antonio Galdino Mandú, por exemplo, foi detido pela Secretaria de
279
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 100-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
280
Ofício 8194/1913-1937. Juizado de Menores. Encontrado no Prontuário Individual de Lauro Miranda
Lobo. Acervo: Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
281
O Presídio de Itamaracá se localizava, como ainda hoje, em uma ilha no litoral norte de Pernambuco,
criada com objetivo de reabilitar delinqüentes adultos.
144
Segurança Pública de Canhotinho, em 13 de maio de 1934, sendo transferido para a
Casa de Detenção por ter praticado o crime de furto.
Mandú tinha 17 anos, o sabia ler, era agricultor e cumpriu pena de um ano na
Casa de Detenção. No ofício, o Juiz de Direito de Canhotinho recomendava que a prisão
do garoto se efetivasse de forma separada dos presos adultos. Em seu prontuário não
consta nenhuma referência às atividades realizadas durante o período que esteve
detento. Mandú foi posto em “liberdade” em setembro de 1935.
282
Além de Mandú, não podemos deixar de esquecer do caso de Severino Gomes,
um menor de 17 anos, residente da cidade de Bezerros, onde trabalhava como agricultor
e foi preso por ter cometido o crime de homicídio. Segundo a Guia de Sentença:
Severino Gomes e João campos, que andavam a noite de 10 de agosto
do ano findo, com outros na rua Torta desta cidade, tiveram forte
desinteligência seguida de discussões, então desapertada resultando
mais tarde Severino procurar João campos para vingar-se
produzindo-lhe a lesão descrita no auto de corpo delito e em
conseqüência a morte (...) Considerando a vítima recém chegada
nesta cidade, não tinha inimigos outros, afora o acusado...
283
A permanência de Severino na Casa de Detenção durou aproximadamente seis
meses, uma vez que aguardava o resultado do processo. O garoto, que exercia a
profissão de agricultor da cidade de Bezerros foi condenado a cumprir pena de 11 anos,
em prisão simples, quando foi determinando sua remoção ao Abrigo de Menores.
Contudo, Severino passou dois dias no Abrigo de Menores, uma vez que o Juiz de
Menores encaminhou Severino para o Manicômio Judiciário.
O Manicômio Judiciário, que funcionava no Hospital de Alienados, era um
órgão que esteve subordinado ao Serviço de Assistência aos Psicopatas. Esta instituição
servia para atender as pessoas que viviam em conflito com a lei e eram consideradas
doentes mentais ou que apresentavam algum tipo de distúrbio de comportamento
considerado “anormal” para os padrões da época.
284
No decorrer da nossa pesquisa encontramos a história de outro Severino, este
chamado Sebastião Severino Gomes da Silva, também conhecido como Piolho.
282
Prontuário Individual de Antonio Galdino Mandú. Recife, 1935 – Informações recolhidas na Ficha
de Identificação. Acervo: Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
283
Prontuário Individual de Severino Gomes Recife, 1935 – Informações recolhidas na Guia de
Sentença. Acervo: Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
284
MIRANDA, Carlos Alberto. Vivências amargas: a divisão de Assistência a Psicopatas de Pernambuco
nos primeiros anos da década de 30. In: Clio - Revista de Pesquisa Histórica. N. 24 – 2. Recife: Editora
da UFPE, 2006. 63-103
145
Sebastião não sabia ler e exercia o trabalho de vendedor de jornais. Era junho de 1935, o
garoto tinha 16 anos quando foi preso na Casa de Detenção do Recife por motivo de
“ferimento grave”. Da Casa de Detenção, Piolho foi encaminhado para o Abrigo de
Menores, por ordem do Juiz de Menores Rodolfo Aureliano. Em setembro do mesmo
ano, Sebastião foi transferido, com “urgência” para a Assistência aos Psicopatas, a fim
de realizar exames psiquiátricos.
285
Todos os ofícios encontrados no prontuário de Pilho foram assinados por
Rodolfo Aureliano, levando-nos a perceber que a decisão sobre o “destino” da criança
estava submetido à decisão do Juiz de Menores. O caso de Sebastião Severino deve ser
registrado por nos levar a compreender a dinâmica do Hospital de Alienados. Aquela
instituição servia como um espaço laboratorial que dava manutenção às deliberações do
Juiz. O exame psiquiátrico iria diagnosticar o estado de saúde mental de Sebastião,
sendo imprescindível para tomada de decisão do magistrado.
Este caso nos leva a pensar que, por diferentes motivos, os garotos podiam ser
encaminhados e/ou recaminhados para instituições de confinamento. Muitas crianças
podiam ser transferidas do Abrigo de Menores para o Manicômio Judiciário que
representava um espaço hospitalar, onde o contato com outros pacientes, as atividades
oferecidas e a própria assistência eram realizadas no sentido de atender os “loucos e
criminosos”. De acordo com Ulysses Pernambucano:
Em face da moderna organização penal, o Manicômio Judiciário
representa um lugar ou seqüestração dos temíveis, dos incorrigíveis,
dos anormais constitucionais, substituindo os antigos asilos de
segurança.
286
Nesta fala, podemos perceber como foi construída a idéia do Manicômio
Judiciário e sua relação com o blico ao qual se destinava. No Relatório, Ulysses
Pernambucano também nos aponta a dificuldade de gerir o Manicômio, uma vez que
este tem funções que mereceriam mais recursos financeiros para realizar os trabalhos
que eram de sua competência.
O trabalho realizado por Maria Concepta Padovan nos aponta que o próprio
Hospital de Alienados enfrentava vários problemas financeiros, chegando a mesma a
afirmar que a Ala dos Indigentes encontrava-se sempre populosa, comprometendo o
285
Prontuário Individual de Severino Gomes da Silva – Informações recolhidas na Guia de Sentença.
Acervo: Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
286
PERNAMBUCANO, Ulysses. Relatório Serviço de Assistência aos Psicopatas. Recife: Imprensa
Industrial, 1933. p. 10
146
trabalho do Hospital de recolher aqueles indivíduos que representavam sinonímia de
ameaça e perigo para a sociedade.
287
Ao
encerra seu relatório sobre o Manicômio
Judiciário, Ulysses Pernambucano afirmando que um novo prédio iria ser construído
para abrigar as atividades da referida instituição. Segundo o psiquiatra, o novo edifício
seria arquitetado a partir do modelo do Juquery, construído no final do século XIX em
São Paulo, pela Assistência a Psicopatas daquele Estado.
288
Segundo os estudos da historiadora Maria Clementina da Cunha, o Juquery era
considerado como modelo de gestão no tratamento a saúde mental no Brasil. Os seus
estudos apontam que no ano de 1922 o Hospital possuía um pavilhão apenas para o
atendimento às crianças, que se tornou em 1929 a Escola Pacheco e Silva, destinada
exclusivamente para as “crianças do Juquery”.
289
De acordo com Cunha, o Hospício
possuía uma política fundamental:
Conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores
sociais não totalmente enquadráveis nos dispositivos penais;
permitir a guarda, e quiçá a regenareção ou disciplinarização de
indivíduos resistentes às disciplinas do trabalho, da família e da
vida urbana; reforçar papéis socialmente importantes para o
resguardo da ordem e da disciplina, medicalizando
comportamentos desviantes como as perversões sexuais ou a
vadiagem e permitindo que sua reclusão possa ser lida como
um ato em favor do louco, e não contra ele.
290
Este Hospício modelo representava um espaço de interdição daqueles que
apresentavam uma ameaça à sociedade da época. Para Cunha, questões como
alcoolismo, pobreza, ignorância e má alimentação foram associados à loucura, que
atingia os trabalhadores urbanos do Brasil nas primeiras décadas dos novecentos,
fazendo com que o hospício se tornasse o lugar da exclusão social.
291
Durante nossa investigação encontramos outras histórias que nos ajudam a
entende as várias faces da assistência a infância no Recife, como o caso de Severino
Lindolfo Justino, 16 anos de idade, preso na Casa de Detenção em 24 de outubro de
287
PADOVAN, Maria Concepta. As mascaras da razão: memórias da loucura no Recife durante o
Estado Novo (1937-1945). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006.
288
PERNAMBUCANO, Ulysses. Relatório Serviço de Assistência aos Psicopatas. Recife: Imprensa
Industrial, 1933.
289
CUNHA. Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de
Janeiro: paz e Terra, 1986.
290
Idem. P. 43.
291
Idem.
147
1936, por ter praticado “atos libidinosos” contra uma criança com 5 anos de idade.
Mesmo pertencendo a “classe de delinqüência primária”, Severino foi transferido para o
Presídio de Fernando de Noronha em dezembro daquele mesmo ano. Segundo a ficha
de identificação criminal, o garoto estava sendo processado por atentado ao pudor. A
Guia de Sentença anexa ao seu prontuário nos fala que o sentenciado deveria ser punido
por ter
Praticado contra ela atos libidinosos, considerando contra uma menor
de cinco anos de idade, manobras mastubatórias, a ponto de causar-
lha a lesão descrita no auto de corpo de delito deflorado;
considerando que o fato do réu ter ausentado do detrito da culpa,
deixando correr a revelia o processo, embora continuará indício
remoto, todavia tem bastante significação para o caso, uma vez que
tendo sido ouvido pela polícia, ele não podia ignorar que pesava
contra si grave acusação e assim, teria de defender-se em processo
regular, mas o certo é que preferia fugir, dando assim a entender sua
cumplicidade.
292
Severino ignorava a identidade dos seus pais, não sabia ler e exercia a profissão
de jornaleiro e por se tratar de uma criança, recebeu a penalidade mínima, sendo
condenado a dois anos e quatro meses de prisão. Na Detenção, o garoto trabalhou na
oficina de marcenaria e foi transferido para o Presídio de Fernando de Noronha. De
acordo com os estudos da historiadora Martha Abreu, nas primeiras décadas do século
XX, o indivíduo que cometia o crime de defloramento ou estupro era considerado uma
ameaça para a sociedade, quando a decisão da sua penalidade,
Não se resumia simplesmente num elemento legal para completar os
pré-requisitos de um crime sexual; não se ligava apenas à repressão
de um ato criminoso (estabelecendo a verdade e determinando o
autor) ou à retribuição pertinente ao caso. Pela influencia da escola
jurídica positivista, o julgamento de um crime levava em conta a
defesa social, pois o crime atingia toda a sociedade, e a conduta total
do réu, no sentido de se determinar seu grau de periculosidade (...)
Desse modo, ao ser julgado um crime de defloramento, estupro ou
atentado ao pudor, resultante da quebra de uma norma jurídica
sexual, emergiam os valores sociais mais amplos da sociedade, pois
era também na quebra de outras normas morais e sociais que
determinava a absolvição ou condenação do réu.
293
292
Prontuário de Severino Lindolfo Justino. Recife, 1936. Fundo: Casa de Detenção do Recife. Apeje.
293
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro
da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
148
De acordo com Esteves, naquela época os juristas e médicos estavam imbuídos
na missão de formar cientificamente o cidadão completo, cumpridor de seus papeis
interdependentes: trabalhador, membro de uma família e indivíduo higienizado,
controlando e punindo aqueles que apresentavam uma ameaça a este “projeto de
sociedade”. A honestidade, a moral e o trabalho formavam os pilares de sustentação da
sociedade ideal e desejada.
294
Desse modo, a transferência para Fernando de Noronha,
que representava uma punição mais contundente, era destinada para o indivíduo que
desafiasse a segurança social ou os códigos morais estabelecidos naquela época.
O Presídio de Fernando de Noronha era considerado o local para onde se
destinavam os presos considerados de alta periculosidade. Distante do continente, a Ilha
representava um espaço dos “degradados”, dos criminosos que deveriam estar distantes
da sociedade. Em julho de 1937, por determinação do Juiz de Menores Rodolfo
Aureliano, o garoto regressou ao Recife. Esta decisão foi tomada a partir da idéia de que
o Presídio de Fernando de Noronha não era indicado para recolher crianças que viviam
em conflito com a Lei.
295
Durante a nossa investigação não encontramos registros do número aproximado
de crianças e jovens sentenciadas, porém, no relato do jornalista Amorim Netto
percebemos que a diversidade do perfil dos presos era expressiva, inclusive, no âmbito
da idade.
296
Netto ressalta que entre os presos tinha encontrado um garoto chamado
Pilão, “um moleque vivo e inteligente”, razão pela qual todos o estimavam “por ser
trabalhador e ladino”.
297
Tal relato nos leva a perceber que as redes de sociabilidades
tecidas em Noronha também foram permeadas pela solidariedade e que os jovens
conviviam no mesmo espaço dos adultos e dividiam as atividades cotidianas
estabelecidas pela equipe dirigente do Presídio.
Por meio dos relatórios da administração do Presídio, podemos perceber que,
diariamente, eram controladas a freqüência, a atividade e a produtividade daqueles que
participavam das atividades oferecidas nas oficinas de carpintaria, sapataria, ferraria,
294
Idem.
295
COSTA, Marcos Paulo. O caos ressurgirá da ordem: Fernando de Noronha e a reforma prisional no
Império. 2007. Dissertação (Mestrado em História) Pregrama de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba – UFPB. João Pessoa, 2007.
296
Amorim Netto era um jornalista carioca e visitou a Ilha na cada de 1930, a pedido do interventor
Carlos de Lima Cavalcanti, tendo escrito, logo depois, um livro/relatório, intitulado: Fernando de
Noronha: seu presídio e suas lindas paisagens, onde narrou suas experiências vividas durante a viagem.
In: NETTO, Amorim. Fernando de Noronha: seu presídio e suas lindas paisagens. Edição. Rio de
Janeiro: Editora A Noite, 1945.
297
Idem. P. 122.
149
funilaria, mecânica e serraria. Os trabalhos realizados nesses espaços também serviam
para atender as demandas dos moradores da Ilha. Comumente, eram solicitados aos
presidiários que realizassem reparos nos objetos de cozinha, que confeccionassem
sandálias para os adultos e para as crianças e outros serviços. Esses trabalhos eram
cobrados e parte do valor pago era destinada para os presidiários.
298
Existia na Ilha um núcleo urbano, onde as pessoas que trabalhavam na sua
administração residiam. Este núcleo era formado por edificações construídas desde o
período colonial, como várias fortalezas que foram erguidas para proteger o arquipélago
das ameaças de invasões estrangeiras. A sede administrativa do presídio (imagem logo
abaixo) localizava-se neste espaço urbano, também chamado de Vila dos Remédios,
serviu como cenário onde eram discutidas as várias decisões acerca do cotidiano dos
sentenciados.
299
Foto 03 - Sede da Administração do Presídio de Fernando de Noronha - 1930
Prédio construído no século XIX
Arquivo da Administração de Fernando de Noronha
Na década de 1930 funcionava a Escola Pública Estadual Mista do Presídio de
Fernando de Noronha, quando os filhos dos funcionários e dos presos dividiam o
mesmo cotidiano pedagógico. Contudo, essa estrutura educacional era proporcionada
aos filhos dos presos e dos funcionários do Presídio. Aos meninos detentos eram
298
Arquivo Histórico de Fernando de Noronha. Apeje. BR/PE/APEJE/FN – 001. 377.
299
SILVA. Maria José Borges Lins e. Fernando de Noronha: lendas e fatos pitorescos. Recife: Inojosa
Editores, 1999.
150
oferecidas as atividades profissionalizantes. A imagem seguinte foi produzida na década
de 1930 e registra a presenças das crianças que viviam na Ilha de Fernando de Noronha
nas primeiras décadas do século XX.
Foto 04 - Crianças de Fernando de Noronha – Sem Identificação - 1930
Arquivo da Administração de Fernando de Noronha
Depois de várias reformas estruturais, a administração do Presídio buscou
reformular seu Regulamento Interno, no qual, entre as suas metas, encontramos a
preocupação de garantir a ordem e a disciplina dos presos “que lhes forem confiados”,
fazendo com que esses tivessem acesso à “conhecimentos especializados àqueles que
mostrem aptidões para aprender diferentes oficinas ali praticadas”, não deixando de lado
a educação dos “menores filhos dos presos, aprendizes”.
300
Mas, como era vivido o cotidiano desses prisioneiros nas celas? O relato de
Amorim Netto ressaltou as condições desumanas nos quais os presos eram submetidos
no confinamento. Segundo o jornalista, os sentenciados viviam em uma estrutura de
prisão desumana, e ao descrever a sua visita aos alojamentos da prisão, Netto nos fala:
Um grande edifício, rodeado de coqueiros, branco por fora, negro por
dentro. Quanta miséria! Não força de expressão capaz, não
existem palavras que possam definir os alojamentos dos sentenciados
desse degredo maldito. A piedade humana, o sentimento cristão, em
300
Regulamento Interno do Presídio de Fernando de Noronha. 1940. Arquivo Histórico de Fernando de
Noronha. Apeje. BR/PE/APEJE/FN – 001. 311.
151
nada puderam influir no espírito da maioria dos diretores do Presídio
famoso. A impressão geral é que os governos nunca se interessaram
pela sorte dos desgraçados deportados pela justiça, como se o estado
não devesse assistência e conforto moral e material, mesmo aos
delinqüentes da pior espécie. Não lhes bastava a segregação num
inferno autentico, real! Uma impressionante falta de higiene comove
os corações mais duros. As paredes, negras de infundir pavor,
alumiadas, durante a noite, por lampiões de luz mortiça, a querosene.
Antros infames, sem ar e sem luz. As camas de cimento, como os
carneiros dos cemitérios! Não medem mais de sessenta centímetros
de largura e não dão, em cumprimento, para abrigar um homem.
Imundos colchões e chumaços de folhas de bananeiras amenizam a
dureza desses leitos desumanos, semelhantes as baias das
estrebarias.
301
As memórias de Amorim Netto denunciam o descaso do Estado frente a
organização do presídio, chamando-nos atenção que é da responsabilidade dos
governantes a sua manutenção e o cuidado sobre os “desgraçados deportados pela
justiça”. Baseado no discurso cristão, Netto argumentou que os prisioneiros, mesmo
sendo considerados “criminosos da pior espécie”, mereciam cumprir pena em um
espaço higienizado e humanizado, dando-lhes “conforto material e moral”. Neste
depoimento, Netto ainda fala da comida do alojamento, também chamada de “muniço”,
afirmando que no presídio não havia cozinha e quem produzia a alimentação dos
sentenciados eram os próprios presos.
302
Em Usina, José Lins do Rego retoma a história do Moleque Ricardo, aquele
mesmo Ricardo que viveu nas ruas do Recife, trabalhou na padaria de Seu Alexandre e
participou dos movimentos grevistas dos operários na década de 1930. No primeiro
capítulo do romance Usina, Ricardo recebeu a sentença de dois anos no Presídio de
Fernando de Noronha por estar envolvido em movimentos sindicais.
Degredo maldito. Inferno autêntico. Antro Infame. Esses eram os adjetivos
utilizados para identificar o Presídio-Ilha. Ao narrar o cotidiano do moleque Ricardo,
José Lins nos levou a analisar como eram os dias daqueles meninos ilhados, quando
afirmava que:
Os dias de Fernando de Noronha eram compridos. Parece que o sol
acordava mais cedo na ilha. Era um sol quente, uma terra feia, uma
mataria rasteira. As pedras na beira do mar cortavam os pés dos que
pescavam de tarrafa. Havia presos que estavam ali anos. E outros
que haviam voltado varias vezes, que eram da ilha como se tivessem
301
NETTO, Amorim. Fernando de Noronha. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1945. 65-66
302
Idem.
152
nascido por lá. Mas todos queriam voltar, todos quando se referiam à
terra do outro lado era como uma saudade que não tinha tamanho.
303
Foi a partir da idéia da saudade e da solidão que José Lins passou a abordar a
questão de como os presos se relacionavam e como, a partir da ausência de mulheres,
era comum os presos se relacionarem sexualmente. O moleque Ricardo, inclusive, viveu
uma relação homossexual com um Manuel, um sentenciado que trabalhava como
cozinheiro do Presídio. Ao narrar o caso do protagonista de sua história, de um moleque
que se fazia homem, o romancista afirmou:
A princípio Ricardo teve medo, uma vergonha maior do que aquela
de amar sozinho. O tempo, porém foi dando costume às
repugnâncias. Lembrava-se bem daquela noite escura, um vento
furioso soprava forte. Viria chuva na certa (...) Então ouviu que
batiam na porta. Uma voz soprava, chamando por ele. Ficou com
medo, medo de um crime, de uma aparição de alma. Tremia na rede
quando a voz se elevou mais. – Abra menino, sou eu. Uma voz
angustiada, uma voz de quem se humilhava até o mais baixo. Abra
menino, sou eu. Conheceu quem era. Era seu Manuel. Abriu seu
quarto. O frio da noite entrou-lhe portas adentro. E com ele o
companheiro que lhe chegava tremendo, de fala amedrontada,
ofegante, como de faminto de muitos dias.
304
Foi assim que José Lins narrou o “amor irregular” entre o menino Ricardo e o
cozinheiro Manuel. A idéia da homossexualidade presente na obra de José Lins foi
construída a partir da idéias que seu personagem teve práticas homossexuais justificadas
pela ausência do sexo oposto. Em Usina, esses amores eram permitidos até o momento
que não atingiam a virilidade dos presos. Ao analisar a construção narrativa de José
Lins sobre a homossexualidade, Durval Muniz nos fala que nas obras do romancista
paraibano,
O homossexualismo fala da própria perda de virilidade, de uma
classe social e de uma sociedade, fala se sua feminização. Sociedade
que deixou estrurpar por seus novos donos. Uma classe que se
desmoralizava, abandonava os antigos códigos de moralidade, por
fazer parte de novas práticas vistas como degradantes. Estas práticas
remetem à imagem de um mundo fechado, marginalizado, em que
novas gerações eram degeneradas, impotentes, dominadas,
submetidas.
305
303
REGO, Jose Lins. Usina. 18ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
304
Idem. p. 45.
305
ALBUQURQUE JR. D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2006.
153
Em Usina, as práticas sexuais entre os sentenciados faziam parte dos costumes
da Ilha, quando “ninguém se espantava com estas ligações”.
306
Para o romancista, o
Presídio de Noronha era formado por pessoas que tinham desafiado os “códigos de
conduta”, por uma “nova geração de degenerados”. Desse modo, sendo um espaço
formado “pelos piores homens que pudessem existir”, onde os sentenciados não se
sentiam como “pessoas humanas”, as práticas homossexuais, também consideradas pelo
romancista como práticas irregulares e degeneradas, tornavam-se comuns naquele
local.
307
Depois de cumprir sua sentença Ricardo voltou ao Recife e logo em seguida
partiu para sua cidade natal, o Engenho Santa Rosa
308
, deixando para trás a Ilha e
levando consigo as lembranças do dias de confinamento em uma prisão que tinha o mar
como o maior carcereiro. Ao construir a narrativa sobre a relação dos prisioneiros com o
mar, Lins do Rego nos fala que:
O mar gemendo nas pedras, com o vento gemendo na gameleira e
aquelas manhãs de sol de fogo, de areia quente que chegava a torrar
os pés do povo. Passavam vapores de bem longe que só deixavam ver
a fumaça se perdendo nas nuvens. Os presos ficavam olhando, de
olho comprido, para os que iam para lugar certo, pisar em terra que
não fosse um calcanhar-de-judas como aquele. Todos tinham raiva do
mar, um ódio igual ao que tivesse pelas grades da cadeia.
309
Esse mar que representava o grande muro do Predio serviu como cenário para
a história de Ricardo e de outros “moleques”. Em uma Ilha distante do mundo ou fora
do mundo”, esses meninos cresceram com o convívio dos presos adultos. Não seria
difícil imaginarmos que o menino se tornasse homem mais cedo, uma vez que além da
assistência oferecida para todos da mesma forma, as responsabilidades também eram
atribuídas sem levar em conta o fator etário.
Abrigo de Menores, Itamaracá, Manicômio Judiciário, Fernando de Noronha...
Um grande vai e vem! Para onde irão nossos menores? Não podemos esquecer que eles
podiam retornar para suas casas, como foi o caso de Olívio José Gonçalves. Olívio,
vulgo Rabo Fino, um menor de 17 anos, que foi preso em flagrante por ter ferido com
306
REGO, Jose Lins. Usina. 18ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. P. 43
307
Idem. p. 49.
308
Idem. 49.
309
Idem.
154
uma faca um adulto no centro do Recife, na madrugada de 21 de dezembro de 1936. De
acordo com ofício do Juiz de Menores:
Solicito de V. S. providenciar no sentido de ser apresentado na sala
deste Juízo, amanhã, às 14 horas, o réu José Gonçalves, vulgo Rabo
fino, o qual deverá ser diretamente encaminhado por este Juiz à
respectiva genitora, por intermédio do Juiz de Direito de Garanhuns.,
nos termos que alínea o artigo 179, do Código de Menores, conforme
despacho proferido nos autos do processo relativo ao aludido menor.
Rodolfo Aureliano
310
O Artigo 179 do Código de Menores autorizava ao Juiz a possibilidade de
entregar o menor ao pai, mãe, responsável ou até ao próprio Abrigo de Menores. Essa
decisão devia ser respaldada a partir dos “antecedentes do menor, sua idade, e a
natureza da infração penal”, tendo o menor que se apresentar à autoridade pública toda
vez que solicitado.
311
Desse modo, Rabo Fino deve ter se enquadrado em um desses
critérios, fazendo com que fosse colocado em liberdade em abril de 1937.
Não podemos deixar de registrar que a permanência desses menores na Casa de
Detenção poderia durar apenas uma noite, conforme nos aponta os estudos realizados
por Mozart vergetti. De acordo com o historiador, “presas, as crianças, na maior parte
das vezes, após passarem pelo setor de fichamento datiloscópico e fotográfico e
dormirem uma ou duas noites no xadrez, eram liberadas. A carência de orfanatos ou
instituições do gênero para atendimento da maior parte dos casos agravava ainda mais o
quadro”.
312
Ao analisarmos a dinâmica da permanência das crianças e jovens na Casa de
Detenção do Recife, percebemos que as sentenças eram atribuídas a partir do crime
cometido pela criança acusada, quando muitas vezes as regras estabelecidas pelo
Código não eram respeitadas. Ademais, o próprio “vai e vem” a dinâmica prisional,
quando os menores eram destinados para as instituições a partir dos casos individuais,
ou seja, do crime cometido.
Amarelinho, Galo Amarelo, Rabo Fino... Licença caro leitor! Não poderíamos
deixar de analisar a questão dos apelidos desses meninos. As características físicas,
intelectuais, os traços salientes da sua personalidade passavam a ser caricaturados por
310
Ofício 662. Recife, 20 de abril d e1937. Juizado de Menores. Encontrado no Prontuário Individual de
Olívio José Gonçalves. Acervo: Casa de Detenção – Arquivo Público Jordão Emereciano.
311
Brasil. digo de Menores de 1927. Artigo 179.
312
MENEZES, Mozart Vergetti. Prevenir, disciplinar e corrigir: as escolas correcionais no Recife
(1909-1929). Recife: Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em História da
UFPE, 1995. , p. 42
155
aqueles que fazem parte dos seus grupos de convívio. Muitos eram conhecidos
unicamente pelo apelido... O apelido que identificava a criança, era registrado nos
documentos produzidos pelo aparato policial e jurídico.
Os apelidos se tornaram uma preocupação do Juizado de Menores, que publicou
um Comunicado no Diário de Pernambuco em 13 de outubro de 1937, intitulado
“Origem e uso dos apelidos”. Dizia o Comunicado:
O apelido representa sempre um julgamento favorável ou
desfavorável do indivíduo ou por grupos de indivíduos. É muito
comum em qualquer colégio, o batizo’ de recém-chegado com um
apelido, apelido este que muitas vezes impõe de tal forma que chega
a substituir o próprio nome do menor. Ressalta daí que os apelidos
dos menores são perfeitamente aqueles que destacam desvios da
personalidade e defeitos físicos; que os apelidos das meninas são
preferencialmente afetuosos, referentes a defeitos físicos ou então
com distorção do nome importando em formas obscenas.
313
Para o Juizado de Menores havia várias categorias de apelidos, entre elas:
afetuosos, local de nascimento, nomes de animais (Galo Amarelo, por exemplo), os que
evidenciavam a distorção do nome oficial e os que ressaltavam os desvios de
personalidade. O Juizado afirmava que os apelidos deveriam ser evitados, uma vez que
muitos deles eram de caráter depreciativo, reforçando o sentimento de inferioridade
presente em muitas crianças:
Evitar o uso de apelidos pejorativos, intervir até disciplinarmente
para combater o seu emprego é a atitude mais prudente, mesmo
porque para a correção dos maus bitos da infância dispomos de
recurso mais eficazes e menos perigosos.
314
Os apelidos faziam parte das relações sociais dessas crianças e jovens. Não seria
impertinência de nossa parte imaginar que muitos não eram nem s pelo seu nome de
batismo. O discurso da correção dos maus hábitos estava sintonizado com a
preocupação de desenvolver novas estratégias para combatê-los. Contudo, acreditamos
que o Juizado deve ter se envolvido em uma missão muito difícil. Os apelidos faziam
parte da identidade de muitas dessas crianças: muitas vezes, essas crianças se
reconheciam nele e os reproduziam.
313
Diário de Pernambuco. Origem e uso dos apelidos. Recife, 13 de outubro de 1937.
314
Idem
156
Mas, essas crianças cresceram levando consigo as lembranças dos dias que
viveram no cárcere. Como nos fala as memórias de Gregório,
Apesar da fome, dos castigos, dos bolos de palmatória, da puçá ou
alimentação e da péssima orientação administrativa e sobretudo
apesar da pederastia, a maioria destas crianças conseguiu recuperar-
se, muitos deles tornaram-se bons músicos nas Forças Armadas, nas
polícias estaduais, nos corpos de bombeiro, outros foram para Escola
de Aprendiz de marinheiro e serviam à Marinha de Guerra; muitos
ligaram-se a diferentes setores operários, nas marcenarias,
alfaiatarias, encadernações, etc...
315
Essa foi a trajetória percorrida por muitos dos nossos protagonistas. Crianças
que se tornaram adultas na prisão, convivendo com as mais diferentes formas de
desafios impostos no cárcere. Outras retornaram para suas casas e se tornaram “homens
de bem”, como nos fala Gregório. Em Recife, mesmo com a criação de
estabelecimentos específicos para o recolhimento de crianças e jovens que estavam em
conflito com Lei, respeitando os novos paradigmas de assistência à infância no Brasil, a
Casa de Detenção continuou sendo um espaço de encontros e despedidas, um espaço
onde as crianças e jovens passavam e levavam guardadas em suas memórias,
lembranças dos tempos da detenção.
4.2 - Um Abrigo para os meninos: o Instituto Profissional 5 de Julho
Sebastião Bezerra da Silva, 16 anos, analfabeto, cor parda. Preso na Casa de
Detenção do Recife em 16 de março de 1937, por furtar tecidos nos bancos das feiras
livres e repassá-los aos “receptores”. Sebastião, também conhecido como Negro Jão,
morava em Quipapá, cidade da Zona da Mata pernambucana e foi transferido para a
capital do Estado, a fim de ser “julgado, processado e punido”. De acordo com a Guia
de Sentença, arquivada em seu prontuário,
A apreensão de algumas mercadorias patenteia toda culpabilidade do
menor que, useiro e viseiro na prática de tais faltas, necessita
urgentemente de repressão, afim de que seja sustada a incidência
progressiva do mal, na senda que vem trilhando. A avaliação das
mercadorias portou-as em um valor pouco inferior a quinhentos mil reis
315
BEZERRA, Gregório. Memórias: primeira parte 100-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
157
a que de certo modo mostra, qual incentivo já era o progresso do menor
na posse clandestina dos bens.
316
Ao nos debruçarmos sobre os documentos que compõem o prontuário de
Sebastião, percebemos que para quem julgou as ações do garoto, essas representavam
um mal que deveria ser combatido a partir do mecanismo da repressão. Sebastião
recebeu a pena de um ano e nove meses, tendo que ser cumprida no Instituto
Profissional 5 de Julho, no Recife. O caso de Sebastião nos faz discutir a questão do
recolhimento das crianças e jovens que eram considerados delinqüentes ou abandonados
no Recife, durante as décadas de 1920 e 1930.
Meninos que viviam no mundo do abandono, da criminalidade e/ou da pobreza,
passaram a conviver sob o mesmo teto, dividindo os mesmo aposentos, alimentando-se
da comida produzida na mesma cozinha, vestindo uniformes que buscavam padroniza-
los... A fotografia das crianças fardadas, na escadaria da fachada do Instituto 5 de
Julho, leva-nos a pensar como a instituição procurava construir a imagem das crianças
abrigadas naquela escola correcional.
Foto 05 - Crianças internas no Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
Chamamos atenção para a primeira criança da direita, da última fileira, encontra-se
com apenas com um dos sapatos. Nem sempre a produção atendia ao grau de excelência, uma
vez que um dos garotos aparece com um dos pés descalços...
Acervo Iconografia - Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano
316
Guia de Sentença de Sebastião Bezerra da Silva. Recife, maio de 1937. Prontuário de Sebastião
Bezerra da Silva. Acervo Casa de Detenção do Recife – Apeje.
158
Hora da foto! Todos enfileirados, padronizados e enquadrados. A fotografia
busca registrar o sentido de uma organização disciplinar. O olhar do fotógrafo captou a
imagem de um grupo de meninos vestidos com um traje padronizado, quando a calça e
camisa branca de algodão, acompanhada de um chapéu, também branco nos trouxe a
idéia da limpeza. O cenário da foto era a escadaria do estabelecimento, local onde as
crianças e jovens estavam abrigadas, procurando criar uma sintonia entre os agentes
sociais e a instituição a que eles pertenciam.
Ao analisar a prática utilizada pelos gestores de fotografar os internos, Erving
Goffman nos fala que tais imagens são produzidas no sentido de se construir a
representação de uma instituição ideal e uma equipe administrativa competente, quando
“freqüentemente tem uma relação muito pequena com os fatos da vida institucional,
mas, pelo menos, alguns internos passam uma manhã agradável posando para as
fotografias”.
317
Para Goffman, tais fotografias são produzidas e divulgadas no sentido
de se construir uma imagem favorável da instituição, quando o estabelecimento passa a
se inserir em uma tentativa da demonstração do limpo e do higienizado.
318
De acordo com o historiador Alberio del Castillo Troncoso, através da fotografia
os homens passaram a se dar conta que poderiam ser percebidos, observados e
representados pelo outro. Ao analisar uma série de fotografias de crianças, produzidas
na Cidade do México, no período de 1820 a 1920, Troncoso observou que tais imagens
foram um importante instrumento para os trabalhos de pedagogos, médicos e outros
especialistas que lidavam com o mundo infantil. Por meio da “mirada” desses
especialistas, conceitos, imagens e representações sobre a infância passaram a ser
construídos por esses profissionais.
319
No Brasil, durantes as primeiras décadas do século XX, a fotografia passou a ser
utilizada como registro das ações do governo e de cientistas, a fim de registrar e
disseminar as suas políticas públicas. De acordo com Heloísa Helena Pimenta Rocha,
pelas possibilidades de registro que oferecia, a máquina fotográfica “foi usada como um
poderoso instrumento na articulação de um amplo projeto de reforma dos costumes que
317
GOFFMAN. E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo Perspectiva, 2005. p. 93
318
Idem.
319
TRONCOSO, Alberio Del Castillo. Conceptos, imagenes y representaciones dela ninez in la
Cidade de México (1880-1920). México, DF: El Colégio de Me´xico, Centro de Estúdios Históricos.
2006.
159
tinha nos pobres o seu principal alvo”.
320
Ao clicar, in loco, o cenário das novas
práticas de assistência, tais imagens eram utilizadas como registros que documentavam
um novo cenário político e social, onde as crianças eram apresentadas como protótipo
do processo da higienização dos costumes.
A historiografia contemporânea, ao ampliar seus horizontes de temas,
abordagens e questões, tem reconhecido a fotografia como um material visual utilizado
como fonte para a escrita da história. O desafio do historiador ao utilizar tal documento
consiste em questionar quem, quando e qual o lugar institucional e político do fotógrafo
que produziu a imagem. Este, ao clicar o cenário composto por objetos e/ou
personagens, passa a reproduzir uma idéia, um discurso. Desse modo, a fotografia “se
transforma em auto do processo da história” e “sua contemplação livre não é adequada”,
como nos falou Walter Benjamim.
321
Analisando a questão do uso da fotografia como fonte para a pesquisa histórica,
o historiador Ivan Gaskell nos chama atenção para a questão da autoria da imagem
produzida. Para Gaskell, cabe ao historiador a análise da concepção do artista e seu
relacionamento com o que está sendo fotografado.
Porém, não podemos analisar a
imagem distante do cenário político e social no qual foi produzida.
322
As fotografias
que registram o cotidiano dos meninos são imagens institucionais e foram produzidas a
partir do interesse da instituição, aliado com a concepção artística do fotógrafo.
Tais imagens eram utilizadas nos relatórios, em matérias de jornais e em outros
documentos que registrassem a atuação da interventoria na área das políticas
assistenciais da infância. A imagem dos meninos em frente ao Instituto 5 de Julho, por
exemplo, foi utilizada para compor o Relatório de Governo da Interventoria de Carlos
de Lima Cavalcanti, documento que representou um balanço da administração pública,
sendo apresentado à Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco e para a
Presidência da República.
323
Nesse sentido, também é importante observamos como
essas imagens são apresentadas, a fim de analisarmos a sua produção e o universo que
as norteiam.
320
ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes: educação escolar no Projeto do
Instituto de Higiene de São Paulo (1925-1925). Campina: Mercado das Letras, 2003.
321
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. Coleção Obras Escolhidas. São Paulo
Brasiliense, 1994. p. 174.
322
GASKELL, Ivan. História das imagens. In: Burke, Peter. A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: editora da Unesp, 1992.
323
Relatório da Interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti – 1930-1934. Fundo: Impressos. Arquivo
Público Jordão Emereciano.
160
No decorrer da nossa pesquisa, encontramos fotografias que abordavam as
atividades de ensino profissionalizante que nos levam a discutir a questão da estratégia
de controle do Estado sobre as crianças e jovens. O Instituto nasceu a partir do interesse
do governo do Estado em criar um espaço para a ressocialização dos meninos através do
trabalho. As oficinas de carpintaria e marcenaria, por exemplo, faziam parte das
atividades oferecidas pela instituição. A fotografia, a seguir, registra o trabalho na
oficina de cestaria dos meninos internos.
Foto 06 - Crianças internas no Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
O olhar do fotógrafo captou o sorriso da criança e o registro da satisfação.
Acervo Iconografia - Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano
A imagem nos faz visualizar detalhes acerca do cotidiano dessas crianças que
poucos textos de relatórios nos fazem perceber. Os instrumentos utilizados e as mãos
desprotegidas. Mal acomodados, os meninos apoiavam o produto que estava sendo
confeccionado no próprio corpo. Nessa imagem, os meninos participavam da oficina de
cestaria, o objeto confeccionado, a cesta, podia ser utilizada nas atividades diárias do
próprio instituto, também poderia ser destinada a outras instituições do Estado ou até
comercializada.
A partir da idéia de uma educação profissionalizante, três anos depois da sua
fundação, o Abrigo de Menores fundou o seu Clube Agrícola, em parceria com a Escola
Rural Modelo, que se tornaria um espaço destinado às atividades agropastoris para os
meninos abrigados naquela instituição. A data de fundação foi em 5 de julho e a
solenidade contou com a presença de vários representantes do poder público, entre eles:
Pereira Borges, Prefeito do Recife; Augusto Coutinho, Secretário do Interior (Secretaria
161
a qual o Instituto 5 de Julho pertencia) e Rodolfo Aureliano, que nesta época havia
assumido o Juizado de Menores e transferido a direção do Instituto para Alcino
Coimbra.
De acordo com a reportagem do Diário da Manhã, Ester Góes, diretora do Clube
Agrícola do Abrigo de Menores, “proferiu uma vibrante oração enaltecendo as
vantagens dessa patriota instituição”.
324
A criação do Clube Agrícola dialoga com a
idéia dos patronatos agrícolas criados em todo o país na década de 1910. De acordo com
Adriana Vianna, esta iniciativa representa “o ponto extremo de valorização do binômio
ordem/trabalho agrícola no quadro dos estabelecimentos de internação dos menores”.
Para Vianna, a criação dos patronatos, a partir da necessidade do Estado estabelece
meios de controle sobre os menores, na cidade e no campo, quando
Eram atribuídas propriedades pedagógicas ao ensino agrícola,
articulando-se, para isso, um conjunto relativamente variado e
hierarquizado de instituições formadoras de técnicos e trabalhadores
agrícolas.
325
O Brasil da década de 1920 e 1930 era um país que possuía uma forte base na
economia agrícola. Os patronatos, durante o período de sua criação, eram subordinados
ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, fazendo parte do interesse do
Estado de contemplar os interesses do Brasil rural, que buscava fortalecer a economia
do campo frente ao crescimento do setor industrial, concentrado nas grandes cidades.
Ainda de acordo com Vianna, “os patronatos, de forma singular aos aprendizados
agrícolas, ofereciam apenas noções elementares de agrotecnia e veterinária, além de
educação cívica, ginástica e exercícios militares”.
326
Analisemos a imagem das
crianças realizando um trabalho agrícola. O olhar do fotógrafo mirou o esforço delas,
que dedicadas e sob a luz do sol, aravam a terra para plantar.
Em grupo, uniformizados e tendo como instrumentos de trabalho enxadas,
facões e outros objetos típicos do trabalho agrícola, essas crianças deveriam passar boa
parte da manhã ou da tarde voltados para a plantação dos mais variados tipos de frutas,
verduras ou hortaliças.
324
Diário da Manhã. O Abrigo de Menores funda o seu Clube Agrícola e a Escola Rural Modelo realiza
a sua Feira Semestral. Recife, 6 de julho de 1935. p. 4.
325
VIANNA, Adriana de Rezende. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio e Janeiro. P. 77
326
Idem, p. 78.
162
Foto 07 - Crianças trabalhando em atividades agrícolas.
Década de 1930.
Fundo: Iconografia – Arquivo Jordão Emereciano – Apeje.
Durante a inauguração do Clube Agrícola, foi organizada uma seção onde os
meninos expuseram as flores que cultivavam no Abrigo. Avencas, begônias, orquídeas e
hortências foram comercializadas na Ferira Semestral promovida pela Escola Rural
Modelo. Segundo a reportagem do Diário da Manhã, a seção dos meninos do Abrigo
era uma das mais visitadas e animadas.
327
Além dos trabalhos agrícolas, os alunos também freqüentavam as aulas de
ensino primário. Em uma outra fotografia, encontramos o registro dos meninos em uma
sala de aula.
Foto 08 - Crianças internas no Instituto 5 de Julho. Década de 1930.
Arquivo familiar de Rodolfo Aureliano - Publicada na Revista Continente Multicultural.
Recife, maio de 2004.
327
Diário da Manhã. O Abrigo de Menores funda o seu Clube Agrícola e a Escola Rural Modelo realiza
a sua Feira Semestral. Recife, 6 de julho de 1935. p. 4.
163
A imagem nos faz analisar as características físicas da meninada, quando
observamos que a maioria eram negros ou pardos e alguns brancos. Franzinos ou
robustos, levando-nos a perceber como o perfil dos internos era diversificado.
Devidamente sentados ou encostados uns sobre os outros, a imagem nos faz refletir
sobre a idéia de que esses meninos passaram a formar um grupo que dividiam o mesmo
espaço e que vivenciavam as mesmas atividades. Em várias matérias de jornais e nos
relatórios, referiam-se a eles como alunos do Instituto 5 de Julho ou do Abrigo de
Menores.
No meio das crianças e jovens uniformizados, um agente se destaca ao vestir-se
de branco. Não registros que informem quem é esse personagem. De acordo com os
relatórios fazia parte do quadro de funcionários um auxiliar acadêmico, professor de
música e um professor de educação física e instrução militar.
328
Esses profissionais
controlavam o cotidiano dos meninos, estabelecendo padrões de comportamento. Desde
a sua inauguração, em 1932, o quadro de funcionários do Instituto era composto por um
professor voltado para o ensino das primeiras letras, ou seja, voltado para a
alfabetização dos internos.
Ao analisar o cotidiano de uma instituição total, Erving Goffman não deixou de
realizar uma reflexão sobre o “mundo da equipe dirigente”. De acordo com seus
estudos, essas instituições não podem ser entendidas como meros “depósitos de
internos”, nelas os dirigentes buscam status do mundo externo, e isso precisa ser
considerado”.
329
A partir das observações de Goffman podemos entender um pouco
melhor o “investimento” na divulgação do Instituto nos jornais locais e mais
notadamente no Jornal Diário da Manhã, onde o Juizado de Menores publicou a
maioria dos seus comunicados.
Esses dirigentes tinham a função de reeducar as crianças e jovens abrigadas no
Instituto. Para Michele Perrot, a tentativa do Estado em buscar educar o detento fazia
parte da estratégia do sistema penitenciário, quando afirmou que “educar o prisioneiro é
ensinar-lhe a limitar as suas necessidades”. Esta estratégia forçava o confinado a
adquirir novos hábitos, como o laborioso, o econômico e o respeito à disciplina do
tempo (hora de acordar, hora de almoçar, hora de tomar banho, hora de estudar, hora de
trabalhar, hora de dormir). De acordo com Perrot, regulamentos foram elaborados e
328
Diário da Manhã. O Abrigo de Menores funda o seu Clube Agrícola e a Escola Rural Modelo realiza
a sua Feira Semestral. Recife, 6 de julho de 1935. p. 4.
329
GOFFMAN. E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo Perspectiva, 2005.
164
ditados, normas foram codificadas e um sistema de punição-recompensa foi
estabelecido, a fim de disciplinar e controlar o cotidiano do confinado.
330
Tais iniciativas eram amplamente noticiadas pelos jornais da época. Em uma
longa matéria publicada no Jornal Diário da Manhã, em 1º de agosto de 1937, o
articulista analisava os problemas relacionados à infância no Brasil, ao se voltar para
Recife, a matéria afirma:
Todos sabem qual era o destino comum dado aos menores
abandonados e delinqüentes no Recife. Uma dependência da Casa de
Detenção lhes servia de reclusão pelas faltas cometidas e pela
vagabundagem nas ruas. Colocados aos magotes em duas ou três
celas, a medida naturalmente só constituía para aguçar-lhes ainda
mais as tendências criminosas, pelo contato permanente com o
contato com os presos da pior espécie. A policia via-se diariamente a
braços com varias quadrilhas de pequenos malandros audaciosos, os
quais se estavam constituindo em motivo de terror para as
residências e casas comerciais dos arrabaldes. Depois da Revolução
de 30, o governo tomou à peito assistir ao problema com esforço que
ele realmente estava a exigir. Foi construído o Abrigo 5 de Julho.
331
Nessa matéria, percebemos que o jornalista coloca a criação do Instituto 5 de
Julho como um divisor de águas, um marco, no contexto da institucionalização da
assistência às crianças e jovens que viviam em conflito com a Lei, na cidade do Recife.
Ao reproduzir a idéia do “antes e depois”, o articulista comparava o cenário social
dessas crianças no período chamado antes da “Revolução de 30”, deixando implícito no
seu discurso que existiu um avanço social, a partir das políticas públicas implantadas
pela interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti. Da Casa de Detenção ao Instituto 5 de
Julho... Um progresso! Assim nos relatava a matéria no Diário da Manhã.
Este discurso construído sobre a Revolução de 1930 como um divisor de águas,
foi discutido pelo historiador Edgar De Decca, em seu livro 1930: o silêncio dos
vencidos. De Decca afirmou que fazia parte das estratégias deste poder, que buscava se
consolidar, produzir uma memória e uma história que entendesse aquele momento
político como um marco de ruptura com todo passado oligárquico do Brasil. De acordo
com De Decca,
A revolução é apresentada como unitária e monolítica e eis a lógica
do exercício da dominação (...) Como campo simbólico constituído
330
PERROT, Michele. Os excluídos da história. São Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 268.
331
Diário da Manhã. O Abrigo de Menores. Recife, 1 de agosto de 1937.
165
no exercício de dominação de classes, a idéia de revolução de trinta
transforma-se num marco periodizador.
332
Por meio dessas matérias de jornais foram explicitamente anunciados os
objetivos e interesses do Estado em abrigar os meninos. Nesta mesma matéria, o Diário
da Manhã trazia informações sobre o Regimento Interno do 5 de Julho e como eram
desenvolvidas algumas atividades no Instituto.
Os menores do Abrigo são empregados nos vários serviços desde
sendo respeitadas, apenas, as condições individuais de idade,
desenvolvimento físico e saúde, a fim de lhes serem incutidos hábitos
de trabalho disciplina, solidariedade e higiene. Do regimento interno
do Instituto, cumpre o diretor, mediante palestras e leituras
adequadas, orientar aos alunos na prática dos seus deveres cívicos e
morais, incultindo-lhes confiança nos seus próprios esforços, amor ao
trabalho, hábitos de perseverança e carinho pelos grandes vultos da
história, rememorando nessas palestras e leituras, exemplos de
homens ilustres que vindos de origem obscura, chegaram a ocupar
altos postos e prestar serviços notáveis à Pátria.
333
Trabalho. Higiene. Disciplina. Solidariedade. Aos meninos internos no 5 de
Julho era exigido um padrão de comportamento e sentimento. Tais exigências
dialogavam com o sentimento de infância da época, presente no discurso higienista,
policial e jurídico. Ao diretor do Abrigo, cabia-lhe “instruir” seus alunos, “governar”
seus corpos e mentes, disseminando a idéias que eles poderiam superar a condição de
abandonados ou delinqüentes, para tornarem-se “úteis” à nação; daí a estratégia de
reproduzir o ideário do dever cívico e moral.
Voltar-se para os “grandes vultos da história”, para o exemplo daqueles que
tinham “passados obscuros” e que se regeneraram, fazia parte da estratégia da equipe
dirigente do instituto. Como podemos observar, existia “um cálculo nas relações de
forças”, como dizia Michel de Certeau, uma estratégia do “forte” sobre o “fraco”,
quando os dirigentes arquitetaram, a partir de uma estratégia disciplinar e de controle
sob os meninos.
334
Não podemos deixar de discutir a questão do cuidado com o “desenvolvimento
físico e saúde”, preocupação presente na matéria analisada e que permeava o discurso
daqueles que faziam o Abrigo de Menores. De acordo com os estudos do historiador
332
DECCA, Edgar De. 1930: o silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. São Paulo:
Brasiliense, 2004. p. 73.
333
Diário da Manhã. O Abrigo de Menores. Recife, 1 de agosto de 1937.
334
CETEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
166
Iranilson Buriti de Oliveira, as décadas de 1920 e 1930 foram marcadas pela emergência
do debate sobre a importância do cuidado com a saúde e educação física, fazendo com
que esta preocupação permeasse rios setores da sociedade da época. Para o
historiador, foi neste período que métodos de adestramentos físicos foram utilizados,
uma vez que se defendia a idéia que
o corpo educado convenientemente poderá se tornar dócil e produtivo,
delgado, ágil, esperto, ereto, entusiasta, viril, com atos e pensamentos puros,
militarizado espiritualmente, assegurando os caracteres de uma família
brasileira ou uma brasilidade regenerada corporal e psiquicamente, com
atitudes intrépidas, honestas, perseverantes.
335
Desse modo, esse culto ao desenvolvimento da saúde física estava relacionada a
uma campanha do Estado e de alguns setores da sociedade daquela época que defendia a
idéia de que uma nação forte era construída por homens fortes. Daí a importância de
oferecer atividades de educação física aos alunos do Abrigo de Menores. O exercício
físico, como nos falou o artigo, garantiria um corpo saudável, pronto para serem
“incutidos” os padrões disciplinares estabelecidos.
Mas, será que esses meninos obedeciam a essas normas de disciplinarização e
adestramento? Como os garotos reagiam às ordens estabelecidas pela equipe dirigente
do instituto 5 de Julho? Durante a nossa investigação não encontramos documentos que
nos ajudassem a responder essas perguntas. Contudo, as matérias de jornais nos dão
indícios que nos levam a analisar como foram construídas as relações entre os meninos
internos e a equipe dirigente.
O Diário da Manhã publicou em novembro de 1935 um artigo que trazia a
manchete, em letras garrafais, que um auxiliar do Abrigo de Menores feriu um aluno
com um “toro de madeira”. Segundo a reportagem:
Os jornais vêm noticiando, ultimamente, graves ocorrências que se
tem verificado no Abrigo de Menores. Ontem à noite, mais um fato
que se reveste de suma gravidade ocorreu naquele educandário.
Aproximadamente às 18 horas, procedia-se a exercícios de formatura
num pátio existente naquele estabelecimento de ensino. Um dos
menores, comandado um pelotão de companheiros, foi, em
determinado momento, severamente advertido por Theodomiro
Correia de Moraes, censor do Abrigo. Não se achando passível de
qualquer observação, como afirmam, igualmente, as demais pessoas
335
OLIVEIRA, Iranilson Buriti. Façamos a família à nossa imagem: a construção de conceitos de
família no Recife moderno (décadas de 20 e 30). . 2002. Tese (Doutorado em História) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2002.
167
que assistiram o caso referido, menor procurou entender-se com o
censor, para uma explicação. Em pouco, os dois discutiam
acaloradamente. Então, o censor Theodomiro, para fazer desaparecer
a indisciplina do aluno, usou de um meio simples, inesperado e
decisivo: servindo-se de um toro de madeira, golpeou brutalmente o
menino, na cabeça.
336
A notícia ainda trazia a informação que aquela não era a primeira vez que o
jornal denunciava os maus tratos vivenciados pelos meninos no Abrigo de Menores e
solicitava as autoridades responsáveis que tomassem providências frente às denúncias
registradas naquele periódico. O garoto, chamado de “menor 40”, perdera muito sangue
e que Theodomiro se retirou do espaço “com naturalidade, sob o mais profundo
silêncio”. Uma ambulância transportou a criança para o Pronto Socorro. A matéria foi
concluída com a afirmação de que o caso do garoto era grave.
Esta matéria nos faz perceber o poder do menino, que comandava “um pelotão
de companheiros”, frente ao funcionário do Abrigo, levando-nos a analisar como as
relações sociais foram construídas. Frente à resistência do garoto, o censor Theodomiro
Correia aplicou castigo físico na frente de seus colegas, servindo como exemplo que não
deveria ser seguido, prevenindo aos demais internos que o enfrentamento à autoridade
iria ser punido violentamente.
Revidar, questionar, desafiar as exigências estabelecidas. O caso do menino de
identidade desconhecida, mas identificado como “menor 40”, faz-nos afirmar que frente
aos padrões disciplinares instaurados, os garotos buscavam, de forma individual e/ou
coletiva, resistir às normas impostas pela equipe dirigente. Não é difícil imaginarmos
que outras formas de resistência foram construídas no cotidiano, na sutilezas das
relações entre os meninos e os funcionários do Abrigo, ou até entre os próprios
meninos.
O garoto, mesmo sendo colocado como vítima da agressão, saiu fortalecido, uma
vez que a reportagem acusava o funcionário de ter cometido um ato condenável,
identificando-o como “o hábil aplicador de exemplos e de castigo”. O caráter
denunciador da reportagem nos leva a perceber que existia um movimento contra a
violência física praticada nos estabelecimentos de correção, fazendo parte, inclusive, de
uma série de reportagens que discutiam as “graves ocorrências” sobre o cotidiano do
Abrigo de Menores.
336
Diário da Manhã. Graves ocorrências no Abrigo de Menores. Recife, 23 de novembro de 1935.
Editorial.
168
Durante a nossa investigação encontramos documentos que registraram as
práticas violentas contra crianças em outras instituições correcionais. No ano de 1936, o
Diário da Manhã divulgada uma nota intitulada: “Apelam para o Juiz de Menores:
graves irregularidades estariam sendo verificadas no Instituto Profissional de
Garanhuns”. Segundo a reportagem, os garotos Walfrido Teixeira e José Elias da Silva
estavam detidos em outra instituição carcerária chamada Brasil Novo, por reagirem aos
mal tratos sofridos pelos agentes da Escola Correcional de Garanhuns. Segundo a
matéria:
Esses dois menores pediram-nos para veicular uma série de
reclamações que fazem sobre o funcionamento do Instituto
Profissional de Garanhuns. Walfrido, que é conhecido como Tarzan,
afirma que o diretor daquele estabelecimento oficial não desempenha
a contento sua delicada tarefa. Assim, muitas irregularidades graves
são notadas. Os alunos, à falta de uma vigilância segura e de
assistência moral entregando-se, em grande número, a vícios
deploráveis. Alguns fumam maconha, outros freqüentam casas
suspeitas. Os menores são muitas vezes maltratados pelos maiores.
Muitos alunos, em vista da alimentação, são obrigados a assaltar
os sítios vizinhos para matar a fome. Muitos outros fatos indicam que
ao contrário dos fins a que se destina, o Instituto vem se tornando
uma verdadeira escola de corrupção. Acresce ainda, como tamm
ignora Walfrido, que quando um menor foge é preso e passa 24 dias
no Brasil Novo. Essas são as declarações que nos fizeram, Walfrido e
José Dias, que apelam para o Juiz de Menores. Eles merecem ser
devidamente apuradas.
337
A nota de jornal nos leva a perceber que as relações entre a equipe dirigente os
internos também foram marcadas por conflitos e pela fragilidade da estrutura de
atendimento aos meninos abrigados na Escola Correcional de Garanhuns. Walfrido e
José foram jovens que protagonizaram o enfrentamento a ordem estabelecida e, por isso,
receberam a punição da transferência de 24 dias para o presídio comum. As práticas de
retaliação da equipe dirigente do instituto, que se apresentam como estratégias do forte
sobre o fraco, fazem-nos perceber que as práticas de controle autoritárias permearam as
relações sociais naquele instituto.
Contudo, reclamar, denunciar, colocar no centro das atenções os maus tratos
vividos pelos alunos internos no Instituto de Garanhuns, leva-nos a perceber que diante
da exclusão, esses garotos resistiam. Walfrido, também conhecido como Tarzan,
“gritou” a inabilidade do diretor do instituto, a falta de vigilância que deixava os alunos
337
Diário da Manhã. Espancamento e abandono de Menores. Recife, 23 de novembro de 1936. Nota.
Apeje.
169
roubar comida para sobreviver. E o articulista da reportagem pedia ao Juizado de
Menores que tomasse as devidas providências.
Outros jornais locais também denunciaram os abusos de autoridade praticados
contra os garotos, fazendo com que semanas depois o Juiz Rodolfo Aureliano tenha se
dirigido, através de um ofício expedido à Associação de Imprensa Pernambucana,
pedindo a colaboração dos jornalistas no sentido de não publicarem fatos
sensacionalistas envolvendo menores. Em reportagem publicada pelo Diário da Manhã,
intitulada “O que pelo Abrigo de Menores”, o jornal trazia a informação que um
inquérito fora aberto para apurar as denúncias. Dizia a matéria:
Esta folha publicou em sua edição de ontem - ontem um informe
segundo o qual acaba o integro Dr. Rodolfo Aureliano, Juiz de
Menores desta Capital, de mandar proceder à abertura de rigoroso
inquérito no Abrigo de Menores para apurar irregularidades
gravíssimas que estariam ocorrendo ali. Consistem essas
irregularidades, que o digno magistrado quer apurar, em
espancamentos de que estariam sendo vítimas às crianças recolhidas
àquele Abrigo, que tem à sua frente, como diretor, o Dr. Alcino
Coimbra. Sabemos que o inquérito está seguindo os seus tramites
legais, já tendo sido ouvido vário depoimentos.
338
Essas matérias de jornais são documentos que nos levam a perceber como parte
da sociedade da época, mais notadamente setores da imprensa, condenava às práticas de
violência física contra as crianças e jovens que viviam no Abrigo de Menores. Nas
primeiras décadas do século XX, a sociedade passou a se preocupar com os meios que
estavam sendo construídas as experiências da ressocialização da infância abandonada ou
que estava envolvida em conflito com a Lei. Punir através da violência física, da
palmatória ou de outras formas de tortura corporal não era mais aceitável. Como nos
fala Michel Foucault:
Mais o corpo, com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das
marcas ostensivas no ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes
um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente mas
com a necessidade e evidência no espírito de todos.
339
A violência praticada pelo profissional que atuava no Abrigo causava
indignação por parte do Editorial do Jornal, fazendo com que a cobrança às autoridades
fosse registrada. O Jornal ainda afirmava que acaso tais providências não fossem
338
Diário da Manhã. O que há no Abrigo de Menores? Recife, 13 de maio de 1937.
339
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 4º Edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2007 p. 84.
170
tomadas o Abrigo de Menores iria se tornar uma “casa de suplícios”.
340
Ao se voltar
sobre a questão das punições praticadas sobre as crianças e jovens nas instituições
correcionais, no decorrer das primeiras décadas do novecentos, Margareth Rago afirma
que
Nas escolas privativas e instituições disciplinares da infância
desamparada, à antiga disciplina quase-militar, punitiva e violenta,
que recorria aos castigos corporais, os médicos, os higienistas,
pedagogos e assistentes sociais do começo do século contrapunham
as vantagens da educação voltadas para a alma.
341
A disciplina que buscava construir um cidadão moderno, como nos fala Rago,
buscava se amparar em outras formas de atuação sobre as crianças, em que a educação
punitiva passou a ser questionada, sendo substituída por uma educação preventiva.
342
Contudo, como sabemos que a história é feita de mudanças e permanências, o caso
estudado nos aponta que naquele Abrigo do Recife o abuso da autoridade era constante
a ponto de provocar uma reação contrária de setores da sociedade.
Em de agosto de 1937, o Diário da Manhã trazia uma longa reportagem que
tinha como título: Reformatório de Menores de Dois Irmãos uma obra de grande
significação social, a que o governo do Estado vem edificando nesse arrabalde, em prol
dos menores abandonados e delinqüentes. Esta matéria trazia a informação que este
prédio iria comportar 240 alunos e substituiria o Instituto 5 de Julho. O reformatório se
localiza onde hoje é a sede da Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE, e
representava uma das “maiores construções que se executaram em nosso Estado”,
assim dizia a reportagem. A criação do Reformatório representava “um avanço” na
política de assistência à infância em Pernambuco e demonstra que o prédio do Instituto
5 de Julho, não comportava as demandas sociais da época. Pelo Instituto Profissional
passaram muitos garotos e de muitos voltaram para suas casas, alguns para o
reencontro com seus pais, tutores ou, quem sabe, para as ruas do Recife.
340
Idem.
341
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil, 1890-1930). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 123.
342
Idem, p. 124.
171
Considerações Finais
Tá relampiano
Cadê neném?
Tá vendendo drops
No sinal prá alguém
No sinal...
(...)
Mãe lavando roupa
Pai já foi embora
E o caçula chora
Prá se acostumar
Com a vida lá de fora
Do barraco...
(...)
Hai que endurecer
Um coração tão fraco
Prá vencer o mêdo
Do trovão
Sua vida aponta
A contramão...
343
Os problemas sociais que atingem diretamente nossas crianças são preocupantes
e representam uma afronta aos direitos humanos. Passados oitenta anos do primeiro
Código de Menores de 1927, mesmo com alguns avanços, o Brasil ainda não resolveu o
problema das crianças e jovens que vivem distante dos bancos escolares e dos
momentos de lazer, sem atendimento adequado à saúde e enfrentando os mais diferentes
problemas que desafiam os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente,
promulgado em 1990,
344
conforme nos demonstra a letra da música composta por
Lenine e Paulo Moska.
O nosso trabalho teve como objetivo contribuir com a causa da infância, através
de uma pesquisa desenvolvida no campo da História Social. Por meio das notas e
editoriais dos jornais, dos relatos de memórias, da literatura, das fotografias, dos
relatórios do governo e de outras fontes documentais, procuramos analisar o cotidiano
desses meninos do Recife, marcado por suas astúcias, por suas táticas de resistência que
desafiaram as estratégias do aparato policial, dos agentes penitenciários ou daqueles que
buscaram reproduzir o controle e a coerção sobre esses meninos, no período que
compreende os anos de 1927 a 1937.
343
Lenine e Paulo Moska.. Relampiano.
344
Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei N. 8.069, 13 de julho de 1990.
172
O Código de Menores de 1927 foi construído a partir do prisma punitivo e
preventivo, representando um marco na história da assistência à infância no Brasil. A
partir do Código de Menores as ações praticadas pelo sistema judiciário e pela força
policial deveriam ter, como referência, este aparato legal que se propunha servir de base
para as decisões dos juizes de menores ou autoridade judicial de cada local. Contudo,
como podemos observar durante o nosso trabalho, nem sempre as decisões daqueles que
tinham o poder sobre o “destino” das crianças e jovens seguiam as suas determinações,
a exemplo da permanência das crianças na Casa de Detenção do Recife ou o envio de
muitas delas para o Presídio de Fernando de Noronha, contrariando o Artigo 71 do
Código - que proibia a prisão de menores de 18 anos em prisões comum.
Mesmo apresentando fragilidade, as determinações do Código de Menores de
1927 foi colocado efetivamente em prática no Recife, a partir da criação do Juizado
de Menores, em 1934. Os comunicados publicados constantemente nos jornais da
cidade e no Boletim da Liga de Higiene Mental, demonstram que a preocupação do
Juizado era de se fazer presente no cotidiano da sociedade da época, divulgando as suas
ações fundamentadas pelo Código de Menores de 1927.
A promulgação do Código, a criação das escolas correcionais, as medidas
voltadas para o combate da mortalidade infantil e outras iniciativas construídas no
Recife, demonstram claramente que existia uma forte sintonia entre diferentes agentes e
instituições voltados para o problema das crianças tidas como um perigo à sociedade ou
que viviam no mundo do perigo. Esta estrutura, que Jacques Donzelot referendou como
complexo tutelar
345
, também podem ser chamada de rede de assistência, controle e
coerção sobre a infância identificada como “perigosa” ou potencialmente “perigosa”.
A trama desta rede de assistência à infância foi tecida por vários fios: os poderes
institucionais da Federação (Executivo, Judiciário e Legislativo), o saber médico, os
educadores, a imprensa e tantos outros setores sociais que se voltaram para a questão
dos meninos que viviam no mundo das ruas e das prisões. Assistimos neste período a
construção da “criança problema”, da criança psiquiatrizável, que se tornou alvo das
atenções de pessoas e instituições que formavam os dispositivos de prevenção e
combate aos problemas sociais relacionados à infância.
Este momento marca um divisor de águas na trajetória da assistência à infância
no Recife. Contudo, é importante perceber que este tempo histórico também foi
345
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
173
marcado por permanências. A própria operacionalização do Código de Menores de
1927, em vários momentos, confrontou-se com a cultura da palmatória, do castigo
físico, num período em que os fundamentos deste aparato jurídico-assistêncial voltava-
se para a prevenção, da ressocialização através da pedagogia do trabalho e da
disciplinarização do comportamento dessas crianças e jovens.
Tal incongruência entre fazer e saber, entre leis e ações, ocorreram enquanto o
Estado inaugurava um novo momento da institucionalização da assistência à infância
em Pernambuco. A criação do Instituto 5 de Julho e das colônias e das escolas
correcionais construídas no Estado, proporcionaram uma outra dinâmica institucional de
abrigamento das crianças ditas como abandonadas ou que viviam no mundo da
criminalidade. As crianças continuavam sendo recolhidas na Casa de Detenção do
Recife, embora se transformando num local de passagem, ainda havia registros e casos
de crianças que cumpriam suas penas naquela instituição. A história é feita por
mudanças e permanências.
Não podemos negar: a sociedade da época discutia expressivamente o problema
das crianças e jovens que viviam no mundo do abandono e da delinqüência e cobrava
das autoridades ações voltadas para o combate e preveão desse mal que representava
o “atraso” frente ao “progresso” que se buscava construir. As notas de jornais que
diariamente traziam notícias de crianças e jovens envolvidos em brigas ou outras formas
de delito, sempre eram permeadas de cobranças às autoridade públicas. A promulgação
do Código e as ações do Estado refletiam este desejo das elites da época em resolver ou
minimizar o problema dessas crianças e jovens, que eram vistos como uma ameaça
social. Mas, para aquelas que não tinham famílias, restaram-lhes as ruas da cidade
grande. Nas esquinas das grandes avenidas, nas marquises das lojas ou nos bancos das
praças, esses meninos se apropriavam desses espaços e inventavam a arte de sobreviver
no mundo do abandono.
Em Recife, as várias ações direcionadas para a prevenção à saúde das crianças e
da família, os mecanismos para a punição dos pais, mães e tutores que abandonavam ou
que desafiavam os padrões de responsabilidade sobre a infância na época, fizeram com
que fossem construídos códigos de controle sobre as famílias pobres, que passaram a
estar sob pena de perder o pátrio poder ou a tutela, acaso desrespeitassem normas de
conduta estabelecidos pelo Código. Neste cenário, o papel da mãe, mulher e dona de
casa foi tido como fundamental, uma vez que cabia a ela o dever de educar, zelar pela
saúde e pela segurança física e moral de seus filhos.
174
Gregório, Ricardo, Guilherme... Esta foi a História dos meninos que moravam
nas ruas ou nos mocambos da cidade; além do problema da mortalidade infantil, uma
vez que muitas dessas crianças morriam antes de completar o primeiro ano de vida, a
maioria desses meninos eram, precocemente, direcionados para o mundo do trabalho. O
Recife das décadas de 1920 e 1930, “palco da modernidade”, era cidade dos meninos
que transitavam pelas ruas da cidade enfrentando as mais diferentes experiências de
exclusão e/ou violência sociais. O crescimento desordenado do Recife a tornava uma
cidade sem espaços para as crianças brincarem, quando muitas passaram a conviver
com o perigo dos atropelamentos, a cidade se tornava “inimiga dos meninos”, como nos
falou Gilberto Freyre.
346
Este foi o Recife dos meninos que trabalhavam nas indústrias ou nas oficinas
espalhadas pelos arredores da cidade. Moleques que vendiam jornais ou que carregavam
fretes na Estação do Forte das Cinco Pontas. Inseridos no mundo do trabalho, os
meninos procuravam sobreviver das mais diferentes formas, resistindo à exploração do
patrão e, muitas vezes, denunciando às autoridades policiais as agressões sofridas no
cotidiano do trabalho, demonstrando que esta História foi marcada pela opressão
daqueles que contratavam os serviços dessas crianças e pela coragem que esses meninos
em não silenciar aos abusos sofridos.
Outros meninos buscaram meios de sobrevivência que desafiavam as leis, os
códigos de conduta, estabelecidos na época; esses eram chamados de menores
perigosos, que carregaram a pecha de indivíduos ameaçadores, gatunos e desordeiros.
Na luta pela sobrevivência, esses meninos assaltavam, roubavam, brigavam e cometiam
outras práticas consideradas ilícitas e eram identificados como menores delinqüentes.
Como podemos observar ao longo do nosso trabalho, foram criadas muitas formas de
identificar essas crianças consideradas um problema a ser resolvido, uma vez que esses
meninos também eram vistos como o futuro deste Brasil da “ordem” e do “progresso”.
O “progresso”, que não adotou esses meninos, obrigou o Estado a criar uma
série de medidas no sentido de afastar as crianças das ruas e recolhê-las em instituições
de confinamentos. Escolas e colônias correcionais passaram a ser ampliadas ou
construías no sentido de acolher essas crianças que representavam um problema social
que devia ser combatido. Na Casa de Detenção ou nas escolas e colônias correcionais,
esses meninos enfrentavam a lógica disciplinar e resistiam às estratégias de controle das
346
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira
mocidade (1915-1930). São Paulo: Global, 2006. p. 322
175
mais diferentes formas, chegando a se confrontar diretamente com os profissionais que
trabalhavam nas instituições de confinamento, como podemos observar no último
capítulo deste trabalho.
Esses meninos faziam parte deste Recife e arteiramente buscaram desafiar os
limites impostos pela vida nas ruas, no mundo das fábricas ou oficinas, nas instituições
prisionais, seja fugindo ou denunciando os maus tratos dos patrões nas delegacias
distritais da cidade. Essas crianças inventaram formas de viver o cotidiano desta cidade
cheia de contradições, reapropriando o espaço onde viviam. Eles estavam presentes,
nos mangues catando caranguejo, no meio dos blocos carnavalescos, nos pátios e feiras
livres da cidade e hoje são os protagonistas desta História.
176
REFERÊNCIAS
Fontes
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JORNAL PEQUENO
Recife, 1927-1937.
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CRUZADA OPERÁRIA
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Acervo: Apeje.
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1.2 - Relatórios
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Acervo: Apeje.
177
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Acervo: BCCB.
Relatório da Interventoria de Carlos de Lima Cavalcanti. Recife: Imprensa Oficial,
1930-1934.
Acervo: Apeje.
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Recife, 1937.
Acervo: Alepe.
Livros de Entrada e Saída da Casa de Detenção do Recife
Recife, 1927-1937.
Fundo: CDR - Apeje.
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1955.
1.4 – Prontuários
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Prontuário Individual de José Nogueira dos Santos. Recife, 1934
Prontuário Individual de Lauro Miranda. Recife, 1934.
Prontuário Individual de Antonio Galdino Mandú. Recife, 1935.
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Prontuário Individual de Severino Lindolfo Justino. Recife, 1936.
Prontuário Individual de Olívio José Gonçalves. Recife, 1937.
Prontuário Individual de Sebastião Bezerra da Silva. Recife, 1937.
Prontuários Hospital Ulysses Pernambucano
Prontuário Individual de Sebastião Flor. Recife, junho de 1928.
Prontuário Individual de Antonio Ferreira Filho. Recife, junho de 1928.
Prontuário Individual de Manoel Laudelino. Recife, março de 1930.
Prontuário Individual de Antonio Francisco Ferreira. Recife, março de 1930.
1.5 – Leis, Regulamentos e Decretos
Brasil. Código de Menores de 1927. Decreto 17.343/A de 12 de outubro de 1927.
178
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DECRETO. Criação do Serviço de Assistência e Proteção aos Menores.
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1.6 – Processos Criminais
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Acervo: Memorial da Justiça.
1.7 – Mensagem
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1978.
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Recife, década de 1930.
Acervo: Apeje.
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Acervo: Apeje.
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Fernando de Noronha-PE, década de 1930
Acervo: Administração Fernando de Noronha – Recife.
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