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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
PROGRAMA DE MESTRADO
NESTOR CASTILHO GOMES
A TEORIA DA NORMA DE FRIEDRICH MÜLLER: REFLEXOS NA METÓDICA
JURÍDICA
Florianópolis
02/2009
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NESTOR CASTILHO GOMES
A TEORIA DA NORMA DE FRIEDRICH MÜLLER: REFLEXOS NA METÓDICA
JURÍDICA
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado do Curso de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Sergio U. Cademartori
Florianópolis
02.2009
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NESTOR CASTILHO GOMES
A TEORIA DA NORMA DE FRIEDRICH MÜLLER: REFLEXOS NA
METÓDICA JURÍDICA
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia
e Teoria do Direito pelo Programa de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina pela Banca Examinadora composta pelos seguintes
professores:
_________________________________
Professor Dr. Sergio U. Cademartori
(Presidente e Orientador)
___________________________________
Professor Dr. Argemiro Cardoso M. Martins
_________________________________________
Professor Dr. Airton Lisle Cerqueira Leite Seelaender
___________________________________
Coordenador do Curso: Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer
Florianópolis (SC), 06 de março de 2009.
Aos meus pais, com carinho.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Sergio Cademartori, orientador desta dissertação, pelo
enriquecimento proporcionado durante a disciplina de teoria do direito, pela confiança e pelo
diálogo privilegiado. Fica, desde já, o desejo de que esta relação renda novos frutos
acadêmicos.
À Profª. Dra. Jeanine Nicolazzi Phillippi pelo aprendizado como A.P.G., nas
disciplinas lecionadas e no Grupo de Estudos.
Aos amigos Alexander Rodrigues de Castro, Adam Hass, Fernando Luís Coelho
Antunes, Rafael Schincariol e Fernando David Perazzoli pelo companheirismo, amizade e
pelos inúmeros debates (sobre todos os temas). O mestrado não seria a mesma coisa sem
vocês!
Especialmente ao grande amigo João Fábio Silva da Fontoura, cujas críticas e
contribuições são uma constante desde os tempos da faculdade. Muito obrigado!
À Ana Paula Borges Martins – futura mülleriana – pelo carinho! Beijos!
No âmbito da objetividade restrita que lhe é
possível e, não obstante, com caráter de
obrigatoriedade, a metódica jurídica deve
empreender a tentativa de uma
conscientização [Selbstverständigung] dos
operadores jurídicos acerca da
fundamentabilidade, da defensabilidade e da
admissibilidade das suas formas de trabalho.
(Friedrich Müller in Métodos de trabalho do
direito constitucional)
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a investigar de que forma a concepção de norma jurídica,
levada a efeito pela teoria e metódica estruturantes, reflete na interpretação e na aplicação do
direito. O objetivo principal é analisar de que forma a metódica estruturante se afasta dos
conceitos e métodos propostos pelas escolas hermenêuticas de decisão jurídica que lhe são
precedentes. O trabalho analisa as principais escolas hermenêuticas do século XIX e XX, no
intuito de perquirir a específica racionalidade metodológica presentes em cada uma delas.
Busca a caracterização da teoria da norma jurídica de Friedrich Müller. Disseca a relação
entre direito e realidade na teoria da norma. Apresenta os conceitos de normatividade,
interpretação e concretização. Avalia a estrutura da norma e as suas partes integrantes: o
programa da norma (Normprogramm) e o âmbito da norma (Normbereich). Em vista da
profunda ligação entre a teoria da norma e a metódica jurídica, investiga o contexto de
formação da metódica estruturante. Expõe os elementos de concretização da metódica
estruturante, bem como a sua função e hierarquia. Busca finalmente apresentar os elementos
de concretização da metódica estruturante a partir de um caso prático, o Agravo Regimental
na Reclamação n.º 3034-2 (STF).
Palavras-chave: Friedrich Müller; teoria estruturante do direito; metódica estruturante do
direito; teoria da norma jurídica, interpretação; processo de concretização.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es investigar como el concepto de norma jurídica, desarrollada por
la teoría y la metódica estructurante, se refleja en la interpretación y aplicación del derecho. El
principal objetivo es analizar cómo la metódica estructurante difiere de los conceptos y
métodos propuestos por las escuelas de hermenéutica jurídica precedentes. El estudio analiza
las principales escuelas de hermenéutica del siglo XIX y XX, con el objetivo de perquirir la
racionalidad metodológica en cada una. Presenta la caracterización de la teoría de la norma
jurídica de Friedrich Müller. Analiza la relación entre norma y realidad en la teoría de la
norma. Expone los conceptos de normatividad, interpretación y aplicación. Analiza la
estructura de la norma y sus partes: el programa de la norma (Normprogramm) y el ámbito de
la norma (Normbereich). En virtud de la conexión entre la teoría de la norma y la metódica
estructurante, investiga el contexto de formación desta. Presenta los elementos de
concretización de la metódica estructurante, su función y jerarquía. Por fin, intenta presentar
los elementos de concretización de la metódica estructurante en un estudio de caso, el Agravo
Regimental na Reclamação n.º 3034-2 (STF).
Palabras-clave: Friedrich Müller; teoria estructurante del derecho; metódica estructurante del
derecho; teoria de la norma jurídica, interpretación; processo de concretización.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
CAPÍTULO 1. HERMENÊUTICA E TRADIÇÃO: DA ESCOLA DA EXEGESE AO
POSTULADO DA PUREZA METODOLÓGICA DE
KELSEN......................................155
1.1Introdução...........................................................................................................................15
1.2 A Escola da Exegese..........................................................................................................19
1.2.1 Postulados caracterizadores da Escola da Exegese.....................................................21
1.3 A Jurisprudência dos Conceitos [Begriffsjurisprudenz] ou Pantectística
[Pandektenwissenschaft] ........................................................................................................24
1.4 A Jurisprudência dos Interesses
[Interessenjurispudenz].............................................27
1.5 A Escola do Direito Livre.................................................................................................30
1.6 A teoria da interpretação jurídica de Hans Kelsen.......................................................34
1.6.1 A Teoria Pura do Direito: a distinção entre ser e dever-ser como traço fundamental
do projeto epistemológico kelseniano....................................................................................36
1.6.2 A teoria da interpretação jurídica na Teoria Pura do
Direito.......................................................................................................................................41
1.6.3. Críticas à teoria da interpretação de Kelsen a partir da obra de Friedrich
Müller.......................................................................................................................................45
CAPÍTULO 2. A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: A INFLUÊNCIA DA
TEORIA DA NORMA PARA A METÓDICA JURÍDICA................................................51
2.1Introdução...........................................................................................................................51
2.2 As relações entre norma jurídica, metodologia e ciência jurídica................................52
2.3 A norma jurídica como noção composta de ser e dever-ser..........................................57
2.4 Normatividade, norma e texto da norma........................................................................61
2.5 Concretização e Interpretação: o problema jurídico como concretização de normas
em vez de interpretação de textos de normas.......................................................................64
2.6 Conceitos prévios: dados lingüísticos (Sprachdaten) e dados reais (Realdaten)..........69
2.7. O início do processo de concretização: o texto da norma e o caso como elementos
propulsores do processo de concretização............................................................................69
2.8 A estrutura da norma (Normstruktur): programa normativo (Normprogramm) e
âmbito normativo (Normbereich)..........................................................................................73
2.8.1 O programa normativo (Normprogramm)..................................................................73
2.8.2 O âmbito normativo(Normbereich).............................................................................75
2.9 O surgimento da normatividade: Norma jurídica (Rechtsnorm) e norma de decisão
(Entscheidungsnorm)..............................................................................................................78
CAPÍTULO 3. A METÓDICA ESTRUTURANTE DO DIREITO: LIMITES E
POSSIBILIDADES DE CONCRETIZAÇÃO......................................................................80
3.1 Introdução à metódica estruturante do direito..............................................................80
3.2 O contexto de formação da metódica estruturante........................................................83
3.2.1 A influência do Tribunal Constitucional Federal para a formulação da metódica
estruturante do direito............................................................................................................83
3.2.2 A influência dos trabalhos científicos sobre a metódica do direito constitucional
para a formulação da metódica estruturante do direito.....................................................88
3.2.2.1 Breve digressão: A metódica do direito constitucional na bibliografia científica
brasileira..................................................................................................................................91
3.3. Elementos da concretização da norma...........................................................................95
3.3.1. Elementos metodológicos strictiore sensu...................................................................96
3.3.1.1 A interpretação gramatical........................................................................................97
3.3.1.2 Elementos históricos, genéticos, sistemáticos e teleológicos...................................99
3.3.2 Princípios da interpretação da constituição..............................................................102
3.3.3 Elementos da concretização a partir do âmbito do caso e do âmbito da norma....102
3.3.4 Elementos dogmáticos..................................................................................................103
3.3.5 Elementos de técnica de solução.................................................................................104
3.3.6 Elementos de teoria......................................................................................................105
3.3.7 Elementos de política constitucional..........................................................................106
3.4 A Hierarquia dos Elementos de Concretização............................................................107
3.4.1 Conflitos entre os elementos da concretização..........................................................109
3.4.1.1 Conflito entre elementos não diretamente referidos a normas.............................109
3.4.1.2 Conflito entre os elementos não diretamente referidos a normas e os elementos
diretamente referidos a normas...........................................................................................110
3.4.1.3 Conflito entre os elementos de concretização diretamente referidos a normas..111
3.5 O uso dos elementos de concretização na jurisprudência do STF: análise da decisão
do Agravo Regimental na Reclamação n.º 3034-2..............................................................115
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................123
5. REFERÊNCIAS................................................................................................................127
13
INTRODUÇÃO
A propalada insuficiência da metodologia do positivismo jurídico na atividade de
“interpretação” e “aplicação do direito” já se tornou um lugar comum. A crítica a uma
metodologia lógico-formal remonta ao século XIX
1
. Desde então diversas teorias vêm
sendo propostas no campo da metódica do direito. É a partir dos anos 50 do século passado,
porém, que a busca por uma terceira via entre o positivismo e o jusnaturalismo se acirra. A
teoria de Friedrich Müller insere-se neste contexto (juntamente com a tópica, a teoria da
argumentação jurídica, o critical legal studies, etc.)
2
, a evidenciar que o problema
metodológico-jurídico permanece atual e merecedor de especial atenção.
O presente trabalho dispõe-se a analisar de que forma a mudança epistemológica
na concepção de norma jurídica, levada a efeito pela teoria e metódica estruturantes, reflete na
interpretação e na aplicação do direito. O objetivo principal é analisar de que forma a
metódica estruturante se afasta dos conceitos e métodos propostos pelas escolas
hermenêuticas de decisão jurídica que lhe são precedentes.
Para que o jogo de contrastes seja bem sucedido, isto é, para que possam emergir
diáfanas as eventuais mudanças ocorridas, julga-se necessário, em um primeiro momento,
apresentar as principais correntes relativas à “interpretação” e à “aplicação do direito”. Desta
forma, o primeiro capítulo analisará as mais representativas escolas jurídico-hermenêuticas do
século XIX e início do século XX. O enfoque teórico recairá principalmente sobre as
contribuições da Escola da Exegese, da Jurisprudência dos Conceitos, da Jurisprudência dos
Interesses, da Escola do Direito Livre e da Teoria Pura do Direito. O objetivo é demonstrar as
teses, conexões e discrepâncias entre as teorias formalistas e anti-formalistas que se
sucederam no decorrer do período histórico supramencionado e que, de uma forma ou de
outra, continuam a reverberar na nossa prática cotidiana.
1
Nos dizeres de Castanheira Neves, a partir do final do século XIX o método gico-formal seria objeto de
uma crítica em duplo sentido: “um sentido analítico, tendente a mostrar que o método efetivamente praticado
não é (não era) aquele que doutrinalmente se prescrevia; um sentido metodológico, em que se justifica que ele
não deve ser (não devia ser) a metódica do pensamento jurídico, ao mesmo tempo que se propunham modelos
metódicos diferentes para sua superação”. Castanheira Neves, Antônio. Método jurídico. Digesta: escritos acerca
do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. Coimbra Editora, 1995. vol. II. p. 309.
2
Kaufmann, Arthur. Hassemer, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas.
trad. Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002. p. 135.
14
Ainda no âmbito do primeiro capítulo merecerá especial destaque a teoria da
interpretação jurídica de Kelsen, em virtude do diálogo que a teoria estruturante do direito
com ela mantêm. Para além da teoria da interpretação jurídica de Kelsen propriamente dita,
serão abordados alguns dos pressupostos epistemológicos da teoria pura do direito, em
especial o princípio fundamental da “pureza” metodológica (distinção entre ser e dever-ser).
Isto porque parte-se do pressuposto que o projeto epistemológico kelseniano assente na
contraposição entre ser e dever-ser –, produzirá conseqüências para a teoria da norma jurídica
e para a teoria da interpretação do direito (ou melhor, para a prática decisória). A exposição
da teoria pura do direito afigura-se de fundamental importância em razão da sua
incompatibilidade para com a construção teórica de Müller. A inter-relação entre as aporias
do construto de Kelsen e a obra de Müller é acentuada por Olivier Jouanjan, que afirma que:
“ali onde Kelsen pensava dever parar, ali começa o trabalho”
3
.
Após a exposição da racionalidade metodológica presente no século XIX e início
do século XX elaborar-se-á, no segundo capítulo, uma exposição detalhada acerca da teoria da
norma jurídica de Friedrich Müller. A exposição da teoria da norma de Müller é
indispensável, na medida em que o jurista de Heidelberg assevera que a definição do conceito
de norma jurídica necessariamente afeta as questões práticas do direito e a própria ciência do
direito. Müller sugere uma espécie de efeito cascata, onde a definição do conceito de norma
jurídica reflete sobre a práxis decisória e finalmente sobre a ciência do direito. Nesse sentido,
Müller aduz que o que define as transformações epocais da ciência do direito é a conceituação
da norma jurídica. Em vista do dado inicial de que parte o trabalho a mudança
epistemológica no conceito de norma jurídica – o capítulo intitula-se “A teoria estruturante do
direito: a influência da teoria da norma para a metódica jurídica”. Buscar-se-á descrever os
principais predicados da teoria da norma de ller, enfatizando a noção de norma jurídica
enquanto unidade composta de ser e dever-ser, as diferenciações entre norma e texto de
norma, o significado dos termos interpretação, aplicação e concretização, bem como a
(re)significação do conceito de normatividade perante a (nova) estrutura da norma jurídica.
No terceiro capítulo analisar-se-á criticamente a metódica estruturante de
Friedrich Müller. Primeiramente discorrer-se-á sobre o contexto de formação da metódica
estruturante, isto é: a influência da práxis do Tribunal Constitucional Federal Alemão e da
3
Müller refere-se à teoria da interpretação jurídica de Kelsen, capítulo final da Teoria Pura do Direito. Müller,
Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direto. São Paulo:
15
bibliografia científica sobre a metódica do direito constitucional. Em vista do (novo) conceito
de norma proposto, avaliar-se-á a serventia dos elementos de interpretação de Savigny.
Posteriormente, serão apresentados os elementos de concretização, bem como a função por
eles exercida. Dada a complexidade e sobretudo a vocação da teoria e metódica estruturantes
para o trato de questões concretamente apresentadas, pretende-se, a partir da análise do
Agravo Regimental na Reclamação n.º 3034-2, desdobrar o estudo: (i) numa perspectiva
crítica, apta a desconstruir os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal- STF, no
intuito de perquirir os elementos de concretização efetivamente utilizados; (ii) numa
perspectiva prática, no intento de demonstrar os conceitos e a aplicabilidade da teoria e
metódica estruturantes à luz de um caso concreto.
Nas considerações finais apresentar-se-á uma síntese da teoria da norma jurídica
de Müller, bem como serão salientadas as eventuais mudanças proporcionadas para a
metódica jurídica, em comparação com as correntes apontadas no primeiro capítulo do
trabalho.
Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 248.
16
CAPÍTULO 1. HERMENÊUTICA E TRADIÇÃO: DA ESCOLA DA EXEGESE AO
POSTULADO DA PUREZA METODOLÓGICA DE KELSEN
1.1 Introdução
O presente capítulo objetiva perpassar as principais escolas hermenêuticas do
pensamento jurídico do século XIX e início do século XX. Para discutir-se a situação da
metódica jurídica na obra de Friedrich Müller, é necessário mostrar como as principais
escolas do pensamento jurídico se desenvolveram desde o Estado Liberal, apontando
diferentes concepções acerca da ciência do direito e da específica racionalidade metodológica
presentes em cada uma delas. O revisitar destas escolas é realizado não como forma de
apresentar uma história da “interpretação” e da “aplicação do direito”, mas em razão de sua
relevância para a compreensão do contexto de formação da Teoria Estruturante do Direito e
para a caracterização de sua originalidade epistemológica.
Esta contextualização é importante, pois existem concepções muito diversas a
respeito, por exemplo, da interpretação. As distintas teorias divergem em muitos pontos,
desde a natureza da significação atribuída ao objeto a ser interpretado, passando pela natureza
da operação da interpretação, até desaguar na querela de seus todos e sobre as
conseqüências que comportam para a compreensão do sistema jurídico
4
.
De fato, a interpretação é resultado de um complexo de fatores que não pode ser
simplificado e tampouco ignorado. Nos dizeres de Castanheira Neves:
Nela se reflete a concepção fundamental do direito de cada época e
pressupõe o contexto cultural que vai no horizonte significante dos
juristas, é codeterminada pela perspectiva epistemológica-
metodológica do pensamento jurídico e vê-se orientada pelos
objetivos práticos da realização do direito
5
.
Assim, buscar-se-á analisar o legado das tendências formalistas e anti-formalistas
presentes no século XIX e início do século XX, especialmente no que se refere ao seu modo
de “interpretar” e “aplicar o direito”. Este primeiro capítulo objetiva explicitar os diversos
matizes da realização do direito, apresentando as teorias da Escola da Exegese, da
4
Troper, Michel. A filosofia do direito. Trad. Ana Deiró. São Paulo: Martins, 2008. p. 123.
5
Castanheira Neves, Antonio. Interpretação jurídica. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. Coimbra Editora, 1995. vol. II. p. 337.
17
Jurisprudência dos Conceitos, da Jurisprudência dos Interesses, da Escola do Direito Livre e
da Teoria Pura do Direito de Kelsen.
Este esboço histórico servirá para demonstrar as tensões, as marchas e
contramarchas, por que passou a racionalidade metodológica em pouco mais de dois séculos.
A predominância do positivismo formalista no fim do século XIX, a influência do positivismo
científico, as contraposições anti-formalistas (ou irracionalistas) presentes na Escola do
Direito Livre, até o retorno triunfante do formalismo, com a Teoria Pura do Direito de Kelsen.
Será possível visualizar, ademais, a evolução de uma teoria da interpretação
tradicional para concepções opostas, e, nos próximos capítulos, de como estas correntes se
exprimem na obra de Friedrich Müller, isto é, como a construção epistemológica formulada
por Müller apropria ou rejeita as construções teóricas que lhe são precedentes.
De forma bastante sucinta, podemos dizer que a chamada teoria da interpretação
tradicional sustenta a interpretação como um fenômeno meramente cognitivo. A interpretação
teria por objeto enunciados dotados de significação. Segundo Troper, “essa significação seria
unívoca, em razão do relacionamento necessário entre as palavras e suas significações”
6
. O
processo de interpretação teria por função desvelar um significado oculto
7
, preexistente.
Parte-se do pressuposto de que os textos carregam consigo propriedades que apontam para
significações, e que a tarefa do intérprete seria perquirir esses dados
8
. Em sendo a
interpretação uma função do conhecimento, seria possível determinar a verdade ou a falsidade
desta operação de descobrimento. Trata-se de um conceito objetivista do conhecimento, preso
ao esquema sujeito-objeto e a um conceito de direito ontológico substancial
9
.
Em contraposição à teoria tradicional, encontram-se entrelaçadas dezenas de
teorias, algumas das quais simplesmente flexibilizam “o caráter absoluto da possibilidade de
descoberta de um sentido e alcance preexistente do dispositivo normativo interpretado”, sem,
6
Troper, Michel. A filosofia do direito. p. 124.
7
Que oscilaria, conforme a posição teórica assumida, entre a busca pela vontade do legislador ou busca pela
vontade objetivada na norma.
8
Andrade, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. São Paulo: MP Ed., 2006, p. 59.
9
Kaufmann, Arthur. Filosofia do direito. trad. António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2004. p. 87.
18
contudo, questionar o modelo cognitivo baseado (i) na descoberta de sentido; (ii) na relação
sujeito-objeto, e; (iii) na propriedade do texto representar realidades/sentidos
10
.
Prosperam, assim, na perspicaz análise de José Maria Arruda de Andrade,
propostas metodológicas contraditórias que tentam conciliar (i) a afirmação de que a
interpretação visa à busca do alcance e sentido das normas, (ii) com a assertiva de que as
normas (ou textos de normas) são ambíguas e vagas, demandando uma decisão subjetiva por
parte do intérprete
11
.
Todos estes apontamentos servem para comprovar a problemática que acompanha
atualmente a questão da interpretação e da concretização do direito. Não sem razão
Castanheira Neves adverte que, “deixou de haver uma teoria estabilizada e dominante que
tranquilamente se pudesse expor em suas linhas características – como ainda acontecia,
poderá dizer-se, a duas ou três décadas”
12
.
A obra de Friedrich Müller, calcada no conceito de concretização dos textos
normativos, insere-se entre os extremos do formalismo e o do decisionismo. Müller rejeita
tanto uma atividade meramente dedutiva e mecanicista, inviável do ponto de vista prático e
teórico
13
, quanto uma postura voluntarista, de pura decisão, que prescinde totalmente do texto
de norma.
Antonio Menezes Cordeiro, em citação longa, mas indispensável, sedimenta
algumas das preocupações presentes na obra de Müller, especialmente a discussão acerca do
método de fundamentação da decisão:
As críticas (...) alinhadas contra o formalismo e o positivismo
constatam, no fundo, a insuficiência de ambas essas posturas perante
10
Andrade, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. pp. 77-78.
11
Andrade, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. p. 33.
12
Castanheira Neves, Antonio. Interpretação Jurídica. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. p. 337. Neste complexo de distintas teorias da “interpretação” e “aplicação
do direito”, Michel Troper apresenta como antítese à teoria da interpretação tradicional a teoria realista da
interpretação. A teoria realista pauta-se na concepção de que a interpretação é um ato de vontade, e que os
enunciados possuem várias significações. A interpretação traduz as preferências subjetivas daquele que a
exprime, motivo pelo qual o produto da interpretação não poderia ser falso nem verdadeiro. Se é certo que o
realismo rompe com alguns dos pressupostos da interpretação tradicional, também é certo que traz consigo uma
série de problemas. Ao limitar o fenômeno jurídico ao ato de autoridade, o realismo proporciona um déficit de
segurança jurídica.
13
Segundo a feliz metáfora de Arthur Kaufmann, “aqueles que ainda hoje defendem o dogma da subsunção
equiparam-se aos atuais fumadores: fazem-no, é verdade, mas já não com o mesmo à-vontade”. Kaufmann,
Arthur. Filosofia do direito. p. 82.
19
as necessidades da efetiva realização do direito. Esta, contudo, não se
detém: obrigado pela proibição do non liquet a decidir, o julgador
encontrará sempre uma qualquer solução, mesmo havendo lacuna,
conceito indeterminado, contradição de princípios ou injustiça grave.
Munido, porém, de instrumentação meramente formal ou positiva, o
julgador terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão. A
experiência, a sensibilidade, certos elementos extra-positivos e, no
limite, o arbítrio subjetivo, serão utilizados. Dos múltiplos
inconvenientes daqui emergentes, dois sobressaem: por um lado, a
fundamentação que se apresente será aparente: as verdadeiras razões
da decisão, estranhas aos níveis juspositivos da linguagem, não
transparecem na decisão, inviabilizando o seu controlo; por outro
lado, o verdadeiro e último processo de realização do direito escapa à
ciência dos juristas: a decisão concreta é fruto, afinal, não da ciência
do direito, mas de fatores desconhecidos para ela, comprometendo,
com gravidade a previsibilidade, a seriedade e a própria justiça da
decisão
14
.
Afigura-se, na lição de Antonio Menezes Cordeiro, o problema das soluções
jurídicas realmente ocorridas à margem do discurso científico
15
. A problemática de um
método de concretização não julgável pela ciência do direito, se faz presente, por exemplo,
em Kelsen. O jurista austríaco recusa-se a estabelecer critérios para o julgamento da decisão
volitiva, por entender que se trata de uma questão afeita à política do direito, e não à ciência
do direito. Nas palavras de Olivier Jouanjan: “Purificada destes elementos perturbadores, a
teoria pura conclui-se abdicando deles: a ciência do direito está purificada, mas não a prática.
No interior do quadro, a escolha da decisão não é julgável por um método (jurídico)”
16
.
A teoria e a metódica estruturante, diferentemente, pretendem racionalizar o
trabalho prático dos juristas, de forma a permitir a sua discutibilidade, revisibilidade e
regularidade
17
. Müller desenvolve um conceito dinâmico de normatividade, decorrente de um
processo estruturado metodicamente a partir das exigências do Estado de Direito. Neste
14
Menezes Cordeiro, Antonio. Os dilemas da ciência do direito no final século XX. In: Canaris, Claus Wilhelm.
Pensamento sistemático e conceito de sistema. Ed. Trad. Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2002, p. XXIII-XXIV. A mesma crítica de Menezes Cordeiro também é citada por
Arruda Andrade. Cf. Andrade, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. p. 96.
15
Menezes Cordeiro. Antonio. Os dilemas da ciência do direito no final século XX. In: Canaris, Claus Wilhelm.
Pensamento sistemático e conceito de sistema. p. XX.
16
Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller Método jurídico sob o paradigma pós-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
249.
17
Segundo Müller: “a teoria da norma jurídica precisa, de qualquer modo, estar especificamente a serviço da
racionalidade jurídica, precisa diferenciar de modo racional as reflexões presentes na decisão, tornando-a com
isso passível de controle e de discussão o máximo e o melhor possível”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria
estruturante do direito. trad. Peter Naumann; Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008. p. 161.
20
processo, “os teores materiais da concretização não são ocultados, mas incluídos de forma
controlável e generalizável na concretização”
18
.
O presente trabalho presta-se, assim, a analisar criticamente de que forma a
mudança epistemológica na concepção da norma jurídica e da ciência jurídica, operada por
Friedrich Müller, reflete na interpretação e na aplicação do direito (não nos conceitos,
terminologicamente).
Daí porque seja de relevo, neste primeiro capítulo, analisar a racionalidade
metódica das escolas precedentes, sem descurar dos limites e possibilidades de decisão por
elas propostas.
1.2 A Escola da Exegese
A Escola da Exegese
19
, que remonta ao início do século XIX, representa o
pensamento jurídico francês que esteia doutrinariamente o movimento legalista da codificação
pós-revolucionária. A Escola da Exegese centra-se, sobretudo, na obra de civilistas e
caracteriza-se por identificar o direito como os novos códigos, a fim de submetê-los a uma
estrita hermenêutica exegética, de caráter dedutivo
20
. O sentido geral que perpassa a Escola da
Exegese é sistematizado, na lição de Castanheira Neves, em três postulados capitais:
identificação do direito com a lei, exclusividade da lei como critério jurídico-decisório e
suficiência da lei (i.é., ausência de lacunas). Antes de se aprofundar os postulados
caracterizadores da Escola da Exegese, em especial aqueles pertinentes à sua metodologia,
18
Christensen, Ralph. Teoria estruturante do direito. In: Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p.
243.
19
Os doutrinadores usualmente dividem a Escola da Exegese em três grandes períodos, a representar a sua
ascensão, consolidação e crise teórica. Chaim Perelman identifica na Escola da Exegese “uma fase de
instauração, que começou na promulgação do Código Civil, em 1804, e terminou em 1830 e 1840; uma fase de
apogeu, que se estendeu até cerca de 1880; e por fim uma fase de declínio, que se fechou em 1889, quando a
obra de Gény anunciou-lhe o fim”. Cf. Perelman, Chaim. gica jurídica: nova retórica. trad. Vergínia K.
Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 31. Norberto Bobbio, citando Bonnecase, distingue-lhe três grandes
períodos: “os primórdios (de 1804 a 1830), o apogeu (de 1830 a 1880) e o declínio (de 1880 em diante, até o
fim do século passado)”. Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. trad. Márcio
Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 84. Sobre este específico aspecto
classificatório da Escola da Exegese, ver também: Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta:
escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. p. 190.
20
O Code Civil foi promulgado em 1804. Em seguida o Código de Processo Civil (1806), o Código Comercial
(1807), o Código Penal (1810), etc. Cf. Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um
milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. p. 377. Sobre os digos acima citados, ver: Gillissen, John.
Introdução histórica ao direito. Ed. trad. Antonio Manuel Hespanha; L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. pp. 450-457.
21
analisar-se-á brevemente a gênese da constituição dos códigos napoleônicos, a fim de
perquirir aqueles pressupostos que os informam.
O surgimento do Código Civil francês não pode ser atribuído apenas ao processo
revolucionário francês. As circunstâncias do seu aparecimento remontam a pressupostos
filosóficos, políticos, econômicos e culturais presentes no final do século XVIII e início do
século XIX. Igualmente, a metodologia surgida no século XIX corresponde não aos
problemas internos do direito, como também é resultado imediato do contexto sócio-político,
filosófico e metodológico da época
21
.
Do ponto de vista filosófico-jurídico, pode-se dizer que o movimento da
codificação significou paradoxalmente o apogeu e a decadência das contribuições
jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII
22
. Os códigos napoleônicos surgiram como uma
espécie de positivação da razão, articulando, de um lado, a civilística racionalista francesa
(Domat, Pothier, Portalis) e, de outro, as contribuições do jusnaturalismo racionalista
setecentista
23
. O jusnaturalismo racionalista pode ser considerado como a fonte de inspiração
da codificação produzida pelo Estado, refletindo-se em grande parte do conteúdo normativo
prescrito nas leis
24
.
Em conjugação com o jusnaturalismo racionalista convivia o pressuposto político-
jurídico do legalismo democrático-liberal, o qual identificava o direito com a lei. Outrossim, a
vertente democrático-liberal ressaltava que a legitimidade política das leis provinha da
vontade popular manifestada nas assembléias representativas
25
. O Estado possuía o
21
Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 341.
22
Cf. Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 382. Castanheira Neves,
ao dissertar sobre a tensão entre legalismo e jusnaturalismo, e as conseqüências deste enfrentamento, aduz que
“após a Revolução e a sua obra legislativa, o jusnaturalismo se reservava para a concepção filosófica do direito
enquanto o legalismo passou a informar o seu entendimento estritamente jurídico”. Castanheira Neves, Antonio.
Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. p.
183.
23
Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 377.
24
Norberto Bobbio questiona o legado do jusnaturalismo racionalista na formulação do Código Civil Francês.
Apesar de ressaltar que a codificação surge em um clima filosófico e ideológico iluminista e racionalista, o
projeto de Código Civil finalmente aprovado em 1804 – cuja comissão era comporta por quatro juristas:
Tronchet, Maleville, Bigot-Préameneau e Portalis renegava firmemente o jusnaturalismo, em favor de uma
concepção mais tradicionalista. Segundo Bobbio, “O Código Civil, na sua realização, se distanciou
progressivamente da inspiração originária, francamente iluminista e jusnaturalista, para, em lugar disso, se
reaproximar decisivamente da tradição jurídica francesa do direito romano comum”. Bobbio, Norberto. O
positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. pp. 67-73.
25
Vê-se, aqui, a recepção do princípio da separação dos poderes. Bobbio ressalta que o princípio da separação
dos poderes constitui o “fundamento ideológico da estrutura do Estado Moderno”. Bobbio, Norberto. O
positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. p. 79.
22
monopólio exclusivo da produção da legislação, e a lei parlamentar era vislumbrada como a
vontade direta do povo
26
. A lei constituía a volonté génerale.
Para além destes pressupostos, e em de igualdade, fazia-se presente o
“fenômeno cultural da codificação”. A codificação foi o resultado parcial da cultura
racionalista-iluminista, que exigia a prescrição das leis sub specie codicis, e que conseguiu
materializar-se graças às forças histórico-políticas que realizaram a Revolução Francesa
27
. O
fenômeno da codificação representou o rompimento com o direito doutrinal, a história e o
passado, os costumes e as formulações jurisprudenciais, em favor das leis sistematizadas e
positivadas sob a forma de código. Castanheira Neves explicita a racionalidade da idéia de
código, no seu sentido cultural e juridicamente específico, ao dizer que o código não se
reduzia a uma mera coletânea de leis, mas antes era entendido como “um corpus legislativo
que se propunha, de modo racional, sistemático e unitário, a regulamentação total e exclusiva,
e mesmo idealmente definitiva, de um certo domínio jurídico”
28
. Em razão de todos os
pressupostos acima enunciados, os códigos foram recebidos simultaneamente como
“monumentos legislativos definitivos, cientificamente fundados e democraticamente
legitimados”
29
.
1.2.1 Postulados caracterizadores da Escola da Exegese
Serão analisados, na seqüência, os postulados que ajudam a explicar a ossatura
teórica da Escola da Exegese. O primeiro postulado se perfaz na identificação do direito à lei.
Trata-se, à evidência, de uma conseqüência direta do fenômeno cultural da codificação, a
refutar a legitimidade de qualquer norma alheia ao direito positivo. A Escola da Exegese se
notabilizou pela idéia de que perante os códigos não poderiam subsistir quaisquer outras
fontes de direito. Inexistiria qualquer direito para além daquele positivado pelo Estado. A
26
Perante a legitimidade democrática da legislação deviam curvar-se todas as antigas formas de legitimidade,
desde a legitimidade do direito divino à oriunda da tradição. Cf. Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica
européia: síntese de um milênio. p. 346. Ainda segundo o historiador português, a lei era simultaneamente o
“produto da (i) vontade popular e, para mais, de uma (ii) vontade geral, de todo o povo, liberta de despotismo e
de espírito de facção, que, portanto, (iii) exprimia o interesse geral e (iv) explicitava as ambições mais
generalizadas de felicidade”. Hespanha, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p.
346.
27
Cf. Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. pp. 64-65; Castanheira Neves,
Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e
outros. p. 182.
28
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico,
de sua metodologia e outros. p. 182.
29
Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 378.
23
Escola da Exegese consubstancia uma concepção estatista do direito, a culminar na
identificação do Estado como fonte exclusiva do Direito.
O segundo postulado da Escola da Exegese assenta-se na exclusividade da lei
como critério jurídico-decisório, com o que também se manifesta, sem mais, a sua teoria da
normatividade jurídica. A Escola da Exegese considerava que os critérios decisórios da
realização do direito seriam oferecidos exclusivamente pelo conteúdo normatizado na lei. O
juiz era tido como um mero servidor da lei, e não deveria buscar fora dela quaisquer regras
para guiá-lo no processo de aplicação do direito
30
. A Escola da Exegese recusava quer a
validade quer a necessidade da utilização de qualquer outro critério que não o conteúdo
normatizado na lei
31
. A lei seria não a única fonte do direito como também o critério
normativo-jurídico exclusivo
32
.
Esta pretensão de exclusividade normativa na realização do direito remontava a
Montesquieu e sua célebre frase de que os juízes deveriam ser “a boca que pronuncia a
palavra das leis, seres inanimados que desta lei não podem moderar nem a força nem o
rigor”
33
. O radicalismo da política de supressão da individualidade do juiz na tarefa prático-
decisória contribuiu para a instituição do Tribunal de Cassation, cuja função era a de censurar
a contravention expresse au texte da la loi”. Como bem sintetizado por Hespanha, a
Revolução havia sido feita também contra a tirania dos juízes e o seu monopólio de “dizer o
direito”. Pode-se dizer que, do ponto de vista político-jurídico, a desconfiança da Revolução
em relação aos juízes será responsável pela política da “aplicação estrita da lei”, ou seja, a
exclusividade da lei como critério jurídico-decisório.
O terceiro postulado que caracteriza a Escola da Exegese é o da suficiência da lei.
Tal postulado assenta-se na afirmação da inexistência de lacunas no sistema da lei civil
codificada, e por conclusão, da completude do sistema. Para que possam ser compreendidas as
origens deste postulado, é necessário que se faça referência ao artigo do Código Civil
Francês, e as diferentes perspectivas acerca do significado deste dispositivo, segundo os
30
Perelman, Chaim. Lógica jurídica: nova retórica. p. 54.
31
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico,
de sua metodologia e outros. p. 184.
32
Norberto Bobbio utiliza-se de outra expressão, qual seja: princípio da certeza do direito, para igualmente
afirmar a exclusividade da lei enquanto critério jurídico-decisório. Para Bobbio, “a certeza é garantida
quando existe um corpo estável de leis, e aqueles que devem resolver as controvérsias se fundam nas normas
nele contidas e não em outros critérios”. Cf. Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do
direito. p. 80.
24
redatores do Código Civil e os primeiros doutrinadores da Escola da Exegese. Afirmava o art.
4º: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da
insuficiência da lei, podeser processado como culpável de justiça denegada”. O artigo em
referência estabelece a obrigatoriedade da prestação jurisdicional, não admitindo a
possibilidade do juiz abster-se de decidir (non liquet), sob o pretexto de que a lei não oferece
nenhuma regula decidendi.
Segundo Bobbio, a exegese do art. realizada pelos primeiros doutrinadores da
Escola da Exegese foi a de que, naqueles casos de silêncio ou incerteza da lei, os juízes
deveriam “buscar no interior do próprio sistema legislativo (recorrendo à aplicação analógica
ou aos princípios gerais do direito)” a solução para o caso concreto
34
. Adotou-se o princípio
da auto-integração, que terminou por sedimentar na consciência jurídica o dogma da
onipotência do legislador. Para a Escola da Exegese o Código Civil disciplinaria todos os
casos da vida que lhe fossem apresentados (o que satisfaria o princípio da completude da lei).
No que tange ao aspecto metodológico, a Escola da Exegese notabilizou-se por
um positivismo exegético. O princípio metodológico basilar desta escola é o da fidelidade ao
texto da lei, o “culto do texto da lei”
35
. Nos dizeres de Castanheira Neves, a interpretação era
“subjetivo-histórica no seu objetivo hermenêutico e dedutivo-formal (ou lógico-dogmática) na
sua índole metodológica”
36
. Todos os esforços eram envidados primeiramente no sentido de
uma interpretação analítica, enfatizando o elemento filológico-gramatical. Em havendo
dúvidas acerca do sentido da norma, buscava-se encontrar a vontade do legislador histórico.
Daí, portanto, o seu caráter subjetivo-histórico. Já o caráter dedutivo-formal se perfazia na
prática da “explicitação hermenêutica de imperativas proposições textuais a articular numa
33
Montesquieu, Charles de. Do espírito das leis. trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Clater, 2004. p. 172.
34
Valendo-se de documentos históricos que retratam os discursos dos redatores do Código Civil, quando da
apresentação de seu primeiro projeto, Bobbio afirma que a solução que eles tinham em mente era outra, isto é
“deixar aberta a possibilidade de livre criação do direito por parte do juiz”. Os redatores seriam partidários do
que se convencionou chamar de hetero-integração do ordenamento jurídico, deixando ao juiz a possibilidade de
resolver a controvérsia através de um juízo pessoal de eqüidade, recorrendo a um sistema normativo distinto do
direito positivo, um sistema moral ou natural. Bobbio sentencia que a “intenção dos redatores do art. fosse a
de deixar uma porta aberta ao poder criativo do juiz ressalta claramente do teor do art. 9º do Livro Preliminar do
projeto (artigo que foi eliminado no texto definitivo por obra do Conselho de Estado): Nas matérias civis, o juiz,
na falta de leis precisas, é um ministro de eqüidade. A eqüidade é o retorno à lei natural e aos usos adotados no
silêncio da lei positiva”. Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. pp. 73-76.
35
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de
sua metodologia e outros. p. 187.
36
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de
sua metodologia e outros. p. 187
25
conexão sistemática (lógico-racional sistemática)”
37
. A Escola da Exegese procedia mediante
operações “lógico-conceituais de determinação significante e operações lógico-dedutivas de
conclusão necessária a partir de definidas premissas”
38
.
Na aplicação concreta da lei a Escola da Exegese partia do pressuposto de que sua
atividade seria meramente declaratória. Para a Escola da Exegese o jurista conhecia o direito
de maneira lógico-formal e aplicava-o também lógico-formalmente; nisso consistiria o
método jurídico. As ferramentas para a decisão do caso já haviam sido postas pelo
ordenamento jurídico. A norma legal formaria a premissa maior, os fatos a premissa menor,
sendo a decisão a conclusão do silogismo. A hermenêutica da Escola da Exegese se resumiria,
de um lado, à interpretação do texto da norma – a desencadear como visto na reelaboração da
vontade do legislador -, e, de outro, a qualificação jurídico-conceitual dos fatos para a
posterior subsunção (também através de uma operação lógica).
1.3. A Jurisprudência dos Conceitos [Begriffsjurisprudenz] ou Pandectística
[Pandektenwissenschaft]
A jurisprudência dos conceitos ou pandectística surgiu em meados do século XIX,
na Alemanha, e significou o ápice do formalismo jurídico neste país, a partir de uma guinada
para um método dogmático-construtivo
39
. A jurisprudência dos conceitos emergiu como um
desdobramento da Escola Histórica do Direito, de Friedrich Carl Von Savigny, ao desviar-se
do caráter histórico da ciência do direito, para a busca, sobretudo, do seu caráter científico e
sistemático
40
. A jurisprudência dos conceitos, descendendo da linha romanista da Escola
Histórica à qual se contrapunham os germanistas utilizou especialmente as fontes do
direito romano, cuja sistematização foi o seu principal legado.
37
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico,
de sua metodologia e outros. p. 188.
38
Castanheira Neves, Antonio. Escola da Exegese. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico,
de sua metodologia e outros. p. 188.
39
Segundo Antonio Manuel Hespanha: “A designação “pandectística” deve-se ao fato de que esta escola volta a
valorizar o digesto romano (pandectas) sobretudo na medida que é nele que se funda a tradição de construção
sistemática e dogmática que marcara a cultura jurídica alemã dos dois últimos séculos”. Hespanha, Antonio
Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 391.
40
o que uma preocupação sistemática não estivesse presente em Savigny. Conforme aduz Larenz: “(...)
Savigny (que nesta medida não foi insensível à filosofia da sua época) acentuou desde o começo, ao lado do
caráter histórico e com idêntica importância, o caráter filosófico ou sistemático da ciência do direito vindo a
segui-lo, de resto, nesta alta valorização do sistema científico, quase todos os juristas representativos da
Alemanha do século XIX. Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. trad. José Lamego. 2ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 19.
26
Georg Friedrich Puchta (1798-1846), último discípulo direto de Savigny, é
considerado o fundador desta vertente teórica. Também merecem destaque Rudolf von
Jhering (1818-1892), Bernhard Windscheid (1817-1892) e Paul Laband (1838-1918), que
transportou a pandectística para o direito público.
Um dos elementos caracterizadores da jurisprudência dos conceitos é a indução de
princípios jurídicos a partir de conceitos
41
. O jurista deveria induzir princípios gerais
neutralmente, sem se deixar levar por considerações de caráter político, ético ou econômico.
Segundo Wieacker, esta concepção da ciência jurídica estava ligada ao positivismo científico,
“o qual deduzia as normas jurídicas e a sua aplicação exclusivamente a partir do sistema, dos
conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos
extra-jurídicos”
42
. Esta metodologia serviu, ademais, para reforçar a crença de que a lei seria
fecunda por si mesma, sem necessidade de recurso à realidade da vida. O isolacionismo da
jurisprudência dos conceitos será um dos flancos de ataque das escolas vindouras, conforme
se verá a seguir.
Segundo Wieacker, Puchta foi o fundador da clássica jurisprudência dos conceitos
do séc. XIX, abrindo caminho para o formalismo que iria afirmar-se durante mais de um
século. A originalidade da contribuição de Puchta reside exatamente na proposta de um
sistema lógico ao estilo de uma “pirâmide de conceitos”, construído segundo as regras da
lógica formal. Na pirâmide conceitual proposta por Puctha um conceito inferior deveria
necessariamente subsumir-se a um conceito superior. O conceito superior, supremo, do qual
se deduzem todos os outros, co-determina os restantes através do seu conteúdo. Este conceito
supremo, para Puctha, não derivaria do direito positivo, mas seria dado pela filosofia do
direito: é o conceito de liberdade kantiana. Conforme acentua Larenz, “só pode ser direito o
que se deixe subordinar a esse conceito fundamental”
43
.
41
Arthur Kaufmann nos o seguinte exemplo da dedução de princípios jurídicos a partir de meros conceitos:
“por exemplo, do conceito “pessoa jurídica’ retira-se a conseqüência de que a pessoa jurídica, enquanto
“pessoa”, é suscetível de ser ofendida e de ser incriminada”. Kaufmann, Arthur. Hassemer, Winfried. Introdução
à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. trad. Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. 2002. p. 168.
42
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. Ed. trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 492.
43
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. trad. José Lamego. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1983. p. 23.
27
No que se refere ao método, a jurisprudência dos conceitos pode ser sintetizada,
segundo Hespanha, por alguns dogmas, quais sejam: (i) a teoria da subsunção; (ii) a plenitude
lógica do ordenamento jurídico; (iii) a interpretação “objetivista”.
A teoria da subsunção da jurisprudência dos conceitos difere da teoria da
subsunção de origem legalista, na medida em que a premissa maior identifica-se com um
conceito de direito, e o com a lei. A teoria da subsunção da pandectística propunha que a
resolução de um caso concreto se daria mediante a subsunção de um fato da vida (premissa
menor) ao direito i. é, um princípio de direito (premissa maior) -, concluindo-se de maneira
silogística
44
.
O dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico se perfaz na crença de que
muito embora possam existir casos não regulados por uma norma jurídica em particular (i.é,
embora o ordenamento jurídico apresente lacunas), o sistema como um todo seria capaz de
abarcar a resolução de todos os casos jurídicos. Nos dizeres de Wieacker, “o lugar dos
conceitos na pirâmide conceitual e as conexões lógicas do sistema permitem imediatamente
um preenchimento conseqüente das lacunas da lei positiva através da ‘construção criadora’”
45
.
o dogma da interpretação objetivista é uma decorrência necessária da crença no
sistema e um reflexo do historicismo e do racionalismo, que marcaram o pensamento jurídico
do século XIX
46
. Se o direito era um sistema coerente de conceitos, nada mais natural que o
sentido das normas jurídicas fosse interpretado como aquele proveniente do contexto
sistemático. Em oposição ao positivismo legalista, e tendo como norte a preservação da
integridade do sistema, a jurisprudência dos conceitos abandona a interpretação da lei de
acordo com a vontade do legislador histórico, em favor do uso da ficção do “legislador
racional”, que continuamente “reescreve” o sentido das normas de acordo com o seu contexto
sistemático, de modo que o sistema conserve a sua coerência
47
.
Bernhard Windscheid é o autor idealizador da tese da vontade racional do
legislador. Windscheid se posiciona no sentido de superar a pesquisa da histórico-empírica
44
Nos dizeres de Wieacker, dado que a ordem jurídica constitui um sistema fechado, seria possível “decidir
corretamente todas as situações jurídicas apenas por meio de uma operação lógica que subsuma a situação real à
valoração hipotética contida num princípio geral de caráter dogmático (e implícito também nos conceitos
científicos)”. Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 494.
45
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 498.
46
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 35.
47
Cf. Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 400.
28
vontade do legislador pela busca de uma sua vontade racional. Para Windscheid a lei seria
expressão de uma vontade racional e não do puro arbítrio, razão pela qual a interpretação
deveria privilegiar, isto é, “extrair, por detrás do sentido a que o legislador quis dar expressão,
o seu verdadeiro pensamento: deve não apenas ajustar à expressão insuficiente da lei o sentido
realmente pensado pelo legislador, mas ainda imaginar o pensamento que o legislador não
pensou até o fim (...)”
48
.
1.4 A Jurisprudência dos Interesses [Interessenjurispudenz]
A jurisprudência dos interesses representa a viragem teórica sobre a
jurisprudência dos conceitos. Trata-se de uma corrente do pensamento jurídico, nascida na
Alemanha, no início do século XX, influenciada pela obra tardia de Rudolf von Jhering
(1818-1892). Enquanto a jurisprudência dos conceitos defendia a subsunção como método
decisório - fundado na concepção de que a ciência do direito deveria preocupar-se com a
construção abstrata de um sistema fechado e auto-suficiente -, a jurisprudência dos interesses
alertava para o caráter prático da ciência do direito, e para a necessária consideração das
necessidades da vida social no processo de construção da solução jurídica.
A jurisprudência dos interesses erigiu como objetivo metodológico fundamental o
problema das lacunas do ordenamento jurídico, que, como visto, em finais do século XIX e
início do século XX, havia se tornado premente. Na síntese de Antonio Manuel Hespanha,
“a sua proposta base é a de que, constituindo qualquer caso jurídico um conflito de interesses,
a decisão a atingir se deve basear numa adequada ponderação desses interesses e não a partir
da dedução conceitual”
49
. Tratava-se, portanto, de refutar os dogmas da jurisprudência dos
conceitos. Mas não só. A jurisprudência dos interesses lutava, conforme Heck, em duas
frentes: contra a jurisprudência dos conceitos e contra a Escola do Direito Livre. Isto porque,
como se verá a seguir, a jurisprudência dos interesses buscava preservar a tradição do tipo
legalista, algo que a Escola do Direito Livre dispensou
50
.
A jurisprudência dos interesses tem como fundador e principal expoente Philipp
Heck (1858-1943), que na esteira do pensamento do “segundo” Jhering lançou as obras
48
Windscheid, Bernhard. Lehrbuch der Pandekten, p. 54. apud Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto.
p. 32.
49
Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 409.
29
fundamentais: Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz, Das Problem der
Rechtsgewinnung e Begriffsbildung und Interessenjurisprudenz. Igualmente merecem
destaque os autores da chamada Escola de Tubinga: Heinrich Stoll, com o estudo Begriff und
Konstrution in der Lehre der Interessenjurisprudenz, Rudolf Müller-Erzbach, com
Reichsgericht und Interessenjurisprudenz, Festschrift für das Reichsgericht
51
, além de Max
Rümellin e Eugen Locher
52
.
Enquanto movimento metodológico refratário à jurisprudência dos conceitos e,
portanto, com intenções reformadoras, a jurisprudência dos interesses partilhou, juntamente
com outras correntes que lhe são contemporâneas - como a Escola do Direito Livre, a Livre
Investigação Científica de F. Geny, a Jurisprudência Sociológica e a Jurisprudência
Teleológica – de alguns pressupostos metodológicos fundamentais.
Segundo Castanheira Neves, o tronco comum destas escolas pode ser sintetizado
nos seguintes elementos: (i) abandono da intenção formalista, substituindo-a por uma intenção
finalista; (ii) reconhecimento das lacunas; (iii) preocupação com a decisão concreta,
colocando-se em primeiro plano o momento da realização do direito através da sentença
judicial; (iv) convocação de critérios normativos extra-textuais, fossem eles os interesses, os
fins ou os valores, em oposição ao anterior isolamento do direito relativamente ao seu
contexto social e histórico-cultural; (v) alteração dos valores que o direito deveria servir; para
além do valor segurança jurídica, buscava-se a obtenção do valor justiça, através de uma
adequação material do direito às exigências da vida; (vi) alteração da racionalidade teorética
para a racionalidade prática; a atividade judicial implicaria necessariamente uma valoração
prático-normativa
53
.
Apesar de partilhar de elementos comuns com outras escolas do pensamento
jurídico, a jurisprudência dos interesses diferenciava-se em razão de alguns pressupostos
metodológicos e de método. Dentre os pressupostos metodológicos que definem a
50
Wolkmer, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade clássica à
modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 203; Neves, Antonio Castanheira. Jurisprudência dos
Interesses. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. p. 224.
51
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 57.
52
Cf. Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 665.
53
Neves, Antonio Castanheira. Jurisprudência dos Interesses. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. pp. 217-223.
30
particularidade da jurisprudência dos interesses podemos destacar o princípio da obediência à
lei e a perspectivação do direito pelos interesses
54
.
A jurisprudência dos interesses defendia a necessária obediência do juiz à lei, em
virtude de uma valoração que privilegiava o argumento democrático, isto é, a submissão da
vontade particular à vontade coletiva manifestada sob a forma da lei. Esta corrente mantém-se
fiel a tradição legalista, pois se apresenta como uma técnica da aplicação judicial da lei, onde
o juiz deve seguir “‘com uma obediência inteligente’ (na feliz expressão de Heck), a escolha
de interesses feita pelo legislador, mesmo quando no caso concreto, o interesse protegido lhe
parecer menos digno de tutela que o interesse contrário”
55
.
que se ressaltar que o legalismo da jurisprudência dos interesses - pautado na
defesa do quadro geral dado pela norma -, assume um caráter diverso daquele legalismo de
caráter lógico-dedutivo. Segundo Antonio Manuel Hespanha:
Embora não se esteja a decidir de acordo com a letra da lei (porque ela
não prevê de todo ou não prevê em termos claros o caso), está-se pelo
menos a respeitar a avaliação dos interesses legalmente estabelecidos
e a partir dela para um construtivismo de outro tipo. Não o da dedução
conceitual, típico da pandectística, mas o da análise das valorações
legais e da sua extensão a casos não previstos
56
.
Assim, no que tange ao método, a Jurisprudência dos Interesses defendia uma
postura finalista, que correspondesse aos interesses da vida social em conflito. O caráter
lacunoso do ordenamento jurídico impediria que o juiz encontrasse a solução jurídica através
da subsunção. Era necessário, portanto, que o juiz, para a solução do caso concreto, não se
resumisse à subsunção legal. Tal afirmação, porém, não significava que o juiz deveria
solucionar o caso através de uma dedução lógica a partir de um sistema ou de conceitos
(método da inversão
57
). A metodologia proposta pela jurisprudência dos interesses dispõe que
o juiz, no processo de achamento da decisão, “deve conhecer com rigor, historicamente, os
54
Neves, Antonio Castanheira. Jurisprudência dos Interesses. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. pp. 223-224.
55
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 667.
56
Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 409.
57
Extrair, por via de conclusão lógica, dos conceitos jurídicos, novas proposições jurídicas não previstas em lei.
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 62.
31
interesses reais que causaram a lei e de tomar em conta, na decisão de cada caso, os interesses
que se descobriram”
58
.
A jurisprudência dos interesses revolucionou a prática jurídica da época, ao
substituir o método decisório lógico-subsuntivo pela ponderação dos interesses da vida social
em jogo. Outrossim, o legado da Jurisprudência dos Interesses reflete-se hoje nas construções
metodológicas que afirmam que a decisão jurídica não se confunde necessariamente com a
subsunção, mas antes afirma-se como solução prática.
1.5 A Escola do Direito Livre
A Escola do Direito Livre designa o movimento radical de contestação ao
positivismo lógico e ao positivismo conceitual, em especial à escola pandectística alemã
(Pandektenwissenchaft). Surgido no início do culo XX, na Alemanha, afirmava o direito
como o resultado da criação dos juristas, sobretudo dos juízes, na sua atividade prático-
decisória, pleiteando uma maior liberalidade de conformação judicial, mediante o apelo a
critérios normativos extralegais e, em última instância, na sensibilidade do juiz para buscar o
justo no caso concreto
59
.
Embora possam ser considerados como precursores autores como Bülow
60
, G.
Rümelin e E. Danz, o movimento apenas ganha destaque e autonomia com a publicação da
obra Freie Rechtsfindung und Freie Rechtswissenchaft, em 1903, por Eugen Ehrlich (1869-
1922). Segue-se à publicação desta obra aquele que é considerado por Castanheira Neves o
58
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 59. Nos dizeres de Wieacker: “O método de achamento da
solução jurídica proposto em vez deste pela jurisprudência dos interesses baseia-se no pressuposto de que cada
norma legal constitui uma máxima do legislador para a solução do conflito de interesses por ele surpreendido e
tido em vista. Assim, cada norma legal subjazeria um ato de valoração de interesses e uma opção voluntarista
entre várias valorizações possíveis dos interesses opostos”. Wieacker, Franz. História do direito privado
moderno. p. 666.
59
Cf. Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. pp. 406-408. Neves,
Antonio Castanheira. Escola do Direito Livre. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de
sua metodologia e outros. pp. 193-195.
60
Karl Larenz aponta Oskar Bülow como precursor da Escola do Direito Livre. Segundo Larenz, a obra escrita
por Bülow em 1885, intitulada Gesetz und Richteramt (Lei e função judicial), foi importante ao expor a idéia
de que “cada decisão não é apenas a aplicação de uma norma pronta, mas também uma atividade criadora
de Direito”. Segundo Larenz, em razão de algumas omissões acerca dos critérios em que o juiz deve se basear
em sua busca pelo justo, a obra de Bülow foi interpretada tanto como pertencente à jurisprudência teleológica
quanto à teoria do “direito livre”. Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 70. Antonio Manuel
Hespanha destaca a origem da Escola do Direito Livre em Ernest Fuchs (1859-1929), que com a obra Die
Gemeinschädlichkeit der konstruktiven Jurisprudenz [O caráter socialmente danoso da jurisprudência
construtiva], escrita em 1907, afirmava que o juiz, no processo de achamento da solução jurídica, parte do seu
sentido de justiça (Rechtsgefühl) e não da lei. Cf. Hespanha, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia:
síntese de um milênio. pp. 406-407.
32
manifesto do movimento: Der Kampf um die Rechtswissenschaft, de Hermann Kantorowicz
(1877-1940), escrito sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius, em 1906. Também merece
destaque na historiografia do movimento a obra de H. Ysay, Rechtsnorm und Entscheidung,
publicada em 1929.
Como mencionado, a Escola do Direito Livre contrapunha-se
fundamentalmente à concepção metodológica consagrada pela pandectística alemã. Travou,
pois, duro combate com os postulados fundamentais do positivismo lógico-conceitual, que
afirmava: (i) o legalismo estatista; (ii) a plenitude lógica do sistema jurídico; (iii) o direito
como uma entidade racional subsistente em si
61
.
Os principais autores da Escola do Direito Livre são unânimes na rejeição deste
primeiro postulado. Para os autores do movimento
62
, o Estado não pode ser considerado fonte
exclusiva do Direito. A partir da defesa da existência de fontes extralegais, lei e direito
passam a ser entidades distintas. Eugen Ehrlich, considerado o fundador da sociologia do
direito, destacou-se por posicionar-se pela existência de um direito não estatal. Segundo
Ehrlich: “querer aprisionar o direito de uma época ou de um povo nos parágrafos de um
código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude:
o que entra não é mais correnteza viva, mas água morta e muita coisa simplesmente não
entra”
63
. Ehrlich deixa claro que não se pode reduzir todo o Direito ao direito estatal, pois o
Estado é, em sua teoria, apenas um dos grupos sociais existentes.
A Escola do Direito Livre afirmava que o direito não se identificava - não se
resumia - às leis prescritas pelo Estado, com o que sustentava a existência de um direito para-
estatal (e.g. o direito consuetudinário, provindo das comunidades). Em de igualdade com o
Direito Estatal subsistiria um direito decorrente das decisões das instâncias judiciais e o
elaborado pela Ciência do Direito
64
.
Em segundo lugar a Escola do Direito Livre renegava a concepção do direito
enquanto entidade lógico-normativa auto-suficiente, enquanto sistema fechado, capaz de
61
Cf. Neves, Antonio Castanheira. Escola do Direito Livre. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. p. 196.
62
A Escola do Direito Livre também é conhecida como movimento livre do direito. Isto porque alguns autores
ressaltam o seu aspecto militante.
63
Ehrlich, Eugen. Fundamentos de sociologia do direito. trad. René Ernani Gertz. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1986. p. 374
64
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 71.
33
fornecer todas as respostas para todos os conflitos, bastando para tanto o desenvolvimento de
suas potencialidades sistemáticas. A Escola do Direito Livre reconhecia a existência de
lacunas, ou melhor, a intrínseca lacunosidade do sistema jurídico, o que acarretaria,
necessariamente, no reconhecimento da necessidade de produção do “direito livre”
65
.
Em terceiro lugar, a Escola do Direito Livre recusava a pressuposição do direito
enquanto sistema lógico-racionalmente determinável e lógico-dedutivamente aplicável. Esta
escola não reconhecia o direito e o pensamento jurídico enquanto pura atividade teorética, no
sentido de poder ser conhecido de maneira a priori, a-historicamente, isto é, desconsiderando
as particularidades do caso concreto e sem considerações acerca da realidade histórica
66
.
Igualmente, se opunha à metodologia lógico-dedutiva do positivismo, que negava a livre
criação do direito ao remeter a decisão à subsunção em relação à lei ou aos conceitos
científicos
67
. Na crítica tenaz de Ehrlich “(...) o princípio da unidade lógica do sistema
jurídico não é uma verdade cientificamente comprovada, mas sim apenas o esforço prático de
dar ao juiz um número suficiente de normas de decisão para todos os casos que possam
ocorrer e comprometê-lo, dentro do possível, com elas”
68
O Movimento Livre do Direito sustentava a imprescindibilidade da valoração.
Contra a concepção do juiz enquanto máquina de subsunção (boca que pronuncia as palavras
da lei) ressaltava a necessidade da valoração para a aplicação do direito
69
. Contra a dedução
lógico-formal ressaltava o papel proeminente da vontade e do sentimento. Sustentava, pois,
que não se poderia (tal como advogava o positivismo) anular por completo a individualidade
do juiz. A atividade judicial seria uma atividade criadora. Entretanto, esta atividade criadora
não seria pautada por ponderações racionais, mas pelo sentimento e pela vontade. O
65
Cf. Neves, Antonio Castanheira. Escola do Direito Livre. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. pp. 196-201.
66
Cf. Neves, Antonio Castanheira. Escola do Direito Livre. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. p. 196.
67
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 671.
68
Ehrlich, Eugen. Fundamentos de sociologia do direito. p. 22.
69
Robert Alexy destaca que a idéia da imprescindibilidade da valoração foi amplamente aceita pela metodologia
jurídica contemporânea, restando controversa, porém, a questão de “onde e em que medida são necessárias
valorações, como deve ser determinada a relação dessas com os métodos de interpretação jurídica, etc”.
Segundo Alexy: “Em quase todos os escritos de metodologia destaca-se atualmente que a Ciência do Direito e
a jurisprudência não podem prescindir de tais valorações. Nesse sentido, Larenz fala do ‘reconhecimento de
que a aplicação da lei não se esgota na subsunção, mas exige, em grande medida, valorações do aplicador’.
Müller considera que ‘uma Ciência do Direito e uma jurisprudência sem decisões nem valorações...(não seria)
prática nem real’. Esser constata que ‘as valorações...(têm) uma importância central, de algum modo
problemática, em todas as decisões’”. Cf. Alexy, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do
34
sentimento jurídico seria capaz de chegar antecipadamente ao resultado da decisão, razão pela
qual se sustentará que é a vontade de chegar a uma decisão antecipadamente conhecida
que preside a escolha dos lugares da lei que permitem fundamentar essa decisão”
70
. Com o
que, complementa Larenz: “o que num caso nos leva a interpretar extensiva ou
analogicamente e em outro literal ou até restritivamente, não é a lei e a lógica, mas o Direito
livre e a vontade”
71
.
É curioso notar como esta concepção continua tendo repercussão, ainda que
imiscuída a outras correntes teóricas. Em recente decisão proferida no Supremo Tribunal
Federal, o ministro Marco Aurélio de Mello assim se pronuncia: “Ao examinar-se a lide, o
magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação
humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável
apoio, formalizá-la”
72
.
Para Castanheira Neves, enquanto crítica às concepções metodológicas assentes
na aplicação subsuntiva ou lógico-dedutiva do direito, a Escola do Direito Livre fez coro à
Jurisprudência dos Interesses e também à Libre Recherche Scientifique de Geny. O que a
diferiria destas correntes seriam algumas notas de radicalidade, quais sejam: (i) a ênfase na
natureza do direito enquanto realização histórico-social, enquanto sistema de decisões, em
contraposição à visão do direito enquanto sistema de normas; (ii) a idéia de que o elemento
criador do direito seria a vontade, e não a razão
73
.
Wieacker ainda destaca como nota diferenciadora da Escola do Direito Livre a
defesa da possibilidade do juiz desviar-se da lei sempre que a considerasse injusta ou
inadequada para a aplicação a um caso concreto, como um dos motivos que fez a Escola do
discurso racional como teoria da justificação jurídica. trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy,
2008. p. 38.
70
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 72.
71
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 72.
72
Cf. RDA, 188:288, RE 111.787. Exemplo extraído de Barroso. Cf. Barroso, Luis Roberto. Interpretação e
aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 286.
73
Neves, Antonio Castanheira. Escola do Direito Livre. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. pp. 197-201. Karl Larenz também destaca a semelhança da Escola do
Direito Livre com outras escolas do pensamento jurídico que lhe foram contemporâneas. Segundo Larenz: “A
dificuldade de uma delimitação do “Movimento do Direito Livre” frente a correntes afins como, por exemplo,
a Jurisprudência dos interesses ou o método sociológico de achamento do direito decorre da falta de clareza do
termo “Direito livre’. Os partidários do Direito livre deixaram, no fundo, à disposição de cada um que por tal
entenda aquilo que lhe pareça”. Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 71.
35
Direito Livre cair em descrédito
74
. Também para Larenz a ênfase na vontade e no sentimento,
em desfavor de uma ponderação racional, fez com que à época “a prática jurídica tenha
seguido predominantemente a Jurisprudência dos Interesses, e não a teoria do direito livre”
75
.
Será exatamente este desvio dos marcos da legalidade o principal traço de diferenciação da
Escola do Direito Livre em relação à jurisprudência dos interesses.
De todo modo, apesar de alguns equívocos, sobretudo aqueles decorrentes da
perda do caráter normativo de direito, em razão de uma defesa da decisão segundo elementos
do caso concreto, a Escola do Direito livre contribuiu para a crítica a atividade decisória
pautada pela aplicação subsuntiva ou lógico-dedutiva do direito, bem como para sedimentar a
percepção da atividade decisória enquanto atividade criadora.
1.6 A teoria da interpretação jurídica de Hans Kelsen
A presente seção intenta realizar uma aproximação à teoria da interpretação
jurídica de Hans Kelsen, apresentada na teoria pura do direito, a partir da posição teórica
de Friedrich Müller, isto é, a partir das críticas formuladas pela teoria estruturante do direito.
Dado que as formulações kelsenianas se constituem em ponto de partida privilegiado para
todas aquelas correntes que intentam superar e/ou negar o positivismo jurídico, uma sua
exposição torna-se condição de possibilidade para a compreensão das teses que se lhe
contrapõem. Assim é que a obra de Kelsen será abordada tendo em vista as críticas de Müller,
em especial aquelas dirigidas à sua teoria da interpretação e à sua concepção de norma.
Para aqueles habituados à obra de Friedrich Müller, uma crítica à teoria da
interpretação de Kelsen não chega a causar surpresa. Afinal, Müller decreta o colapso da
74
Wieacker, ressalta, entretanto, que “a atribuição ao juiz da possibilidade de criar livremente o direito não tinha
para estes juristas apaixonados o sentido, errado, de uma decisão segundo o arbítrio ou ainda segundo o saber
privado do juiz, mas devia antes dar satisfação a necessidades ou interesses relevantes da sociedade”. Cf.
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. p. 671. Antonio Manuel Hespanha, por outro lado,
discorda que a Escola do Direito Livre advogue a possibilidade de decisões contra legem. Segundo o professor
português: “O extremismo das posições metodológicas da Escola do Direito Livre foi matizado pela limitação
desta liberdade de criação do direito aos casos em que existissem lacunas da lei”. Cf. Hespanha, Antonio
Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. p. 407.
75
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 73. Sobre a questão da vinculatividade à lei, Ehrlich
observou que o fato de que o juiz está em todos os sentidos comprometido com a lei impediu que normas extra-
jurídicas se transformassem oficialmente na base para decisões, mas não impediu que isto acontecesse de fato, às
vezes até de forma mal-camuflada. Cf. Ehrlich, Eugen. Fundamentos de sociologia do direito. p. 103.
36
teoria pura do direito ao dizer que, “ali onde Kelsen pensava dever parar, ali começa o
trabalho”
76
.
Primeiramente buscar-se-á analisar alguns aspectos da teoria pura do direito, em
especial o seu projeto epistemológico assente na distinção entre ser (sein) e dever-ser (sollen),
com sua conseqüente concepção de norma e de ordenamento jurídico, a influenciar
decisivamente a teoria da interpretação jurídica
77
. Tal análise se faz importante, pois como nos
diz Luis Alberto Warat, Kelsen não se detém na construção da ciência do direito, mas “uma
vez estabelecidas as regras de seu jogo epistemológico, decide aplicá-las para ver o que
acontece”
78
.
Após a exposição do projeto epistemológico de Kelsen, será elaborada, na
segunda sub-seção, uma exposição detalhada da teoria da interpretação jurídica proposta na
Teoria Pura do Direito. Buscar-se-á descrever as principais categorias da teoria da
interpretação de Kelsen, isto é: (i) as espécies de interpretação, (ii) a questão da moldura
normativa e a (iii) possibilidade de criação de direito para além dos limites impostos pelo
quadrante normativo.
Por fim, analisar-se-á criticamente a teoria da interpretação jurídica de Kelsen,
buscando traçar linhas de contato com sua concepção de ciência, norma e ordenamento
jurídico. As críticas à teoria da interpretação de Kelsen terão como fio condutor aquelas
dispostas na teoria estruturante do direito, de Friedrich Müller, sem prejuízo da abordagem de
outros autores. Estes serão utilizados, com senso de conveniência, sempre que suas críticas
estejam albergadas, de alguma forma, pela teoria de Müller.
76
Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direto. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 248; O diálogo Kelsen/Müller é enfatizado sobretudo por Olivier
Jouanjan no artigo De Hans Kelsen a Friedrich Müller – Método jurídico sob o paradigma pós-positivista”. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução a teoria e metódica estruturantes. pp. 246-266. No
âmbito da bibliografia brasileira, este diálogo é ressaltado em maior ou menor grau por autores como João
Maurício Adeodato, Paulo Bonavides, Willis Santiago Guerra Filho, etc.; Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e
retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 237; Bonavides, Paulo. Curso de
direito constitucional. 1Ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 458; Cf. Guerra Filho, Willis Santiago. Pós-
modernismo, pós-positivismo e o Direito como Filosofia. In: O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de
docência de Luis Alberto Warat. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1998, pp. 61-67. Para uma exposição
detalhada desta relação (também francamente inspirada na tese de Jouanjan): Santos, Rodrigo Mioto dos.
Método, racionalidade e legitimidade da decisão judicial: uma análise a partir da teoria estruturante de Friedrich
Müller. Dissertação. (Mestrado em Ciências Jurídicas) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2006.
77
Cf. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. pp 24-32.
78
Warat, Luís Alberto; Pêpe, Albano Marcos Bastos. Filosofia do direito: uma introdução crítica. São Paulo:
Moderna, 1996. p. 54.
37
1.6.1 A Teoria Pura do Direito: a distinção entre ser e dever-ser como traço fundamental
do projeto epistemológico kelseniano
Com a teoria pura do direito, Kelsen propõe um novo paradigma epistemológico
para a ciência do direito. A obra de Kelsen é uma epistemologia jurídica que pretende criticar
e substituir o conhecimento jurídico-científico elaborado até então. A teoria pura procura
responder à questão: o que é e como é o Direito? Isto não significa que Kelsen estivesse
interessado com o direito em si. A preocupação de Kelsen era de cariz epistemológico. O que
verdadeiramente objetivava responder era: O que é a ciência do direito? Como é possível
fundar a ciência do direito?
79
A teoria pura é uma teoria do direito positivo e, nas palavras de Kelsen, uma
teoria geral do direito. Ela não se importa como o direito deve ser, mas sim como ele é. Não
se preocupa, pois, em explicitá-lo, transformá-lo, nem tampouco justificá-lo, pois deve estar
depurada de toda a ideologia (postulado da neutralidade valorativa da ciência). É
eminentemente ciência do direito e não política do direito.
80
O seu princípio fundamental é a “pureza” metodológica. Kelsen procurou erigir
uma Ciência do Direito sob um ponto de vista exclusivamente jurídico, isto é, fundada sob
bases exclusivamente normativas. A Teoria Pura do Direito, como ciência específica do
direito, restringe-se, portanto, às normas jurídicas. Cabe à Ciência do Direito extirpar todos os
elementos que lhe são estranhos, todos os elementos classificados como metajurídicos, caso
queira alcançar o ideal de toda ciência: objetividade e exatidão
81
.
A preocupação cientificista de Kelsen merece ser melhor contextualizada. No
final do século XIX e começo do século XX a autonomia da ciência jurídica estava em xeque.
A ciência jurídica estava envolta numa luta fatricida entre positivistas empíricos de diversos
matizes (positivismo jurídico sociológico de Rudolf v. Jhering no seu período tardio,
positivismo psicológico de Ernest Rudolf Bierling) e defensores do Direito natural
82
. Kelsen
procurou então salvaguardar a ciência do direito, ao propor que seu método e objeto fossem
exclusivamente normativos.
79
Cf. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006. p. 01; Warat, Luís Alberto. Filosofia do direito: uma introdução crítica. pp. 48-49.
80
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 01; Warat, Luís Alberto. Filosofia do direito. p. 49; Troper, Michel.
Por una teoria del Estado. trad. Maria Venegas Grau. Madrid: Dykinson, 2001. p. 26.
38
Como neokantiano, Kelsen empreende a fundamentação da autonomia
metodológica da ciência do direito a partir da distinção entre ser e dever-ser. Esta diferença é,
para Kelsen, insusceptível de maior explicação; é nos dada imediatamente à consciência.
Segundo Kelsen:
“Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é ou seja, o
enunciado através do qual descrevemos um ser fático - se distingue
essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos
uma norma e que da circunstância de algo ser não se segue que algo
deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não
segue que algo seja”
83
.
Kelsen aduz que a ciência do direito não tem a ver com fatos, com a conduta
efetiva dos homens (ser, sein), mas com o prescrito juridicamente (dever-ser, sollen); a
ciência do direito não pode ser uma ciência da natureza, que se preocupa com a descrição de
fatos e a investigação causal. O jurista austríaco refuta, assim, o estatuto de cientificidade do
positivismo empírico, que se arroga como verdadeira ciência do direito, por proceder
empiricamente, do mesmo modo que as ciências da natureza
84
.
Outrossim, Kelsen propõe a separação do direito da política. A ciência do direito
não pode ser confundida com a jurisprudência dogmática, que procede de modo normativo
(valorativo)
85
. A jurisprudência dogmática pertenceria ao âmbito da política do direito. Firme
no postulado da neutralidade valorativa da ciência, Kelsen afirma que a ciência do direito
pode ser uma ciência das formas puras do direito, uma ciência puramente normativa.
Como nos ensina Castanheira Neves, Kelsen une elementos do neokantismo e do
positivismo científico para extirpar, respectivamente, a sociologia e a política do âmbito da
ciência do direito. Nas palavras do catedrático de Coimbra:
(...) o seu neokantismo de origem lhe determinou um dualismo
metodológico em que o postulado de não sociologização da ciência do
direito foi evidente corolário e se exprimiria numa delimitativa ou
específica intencionalidade objetivante, o seu positivismo científico (o
positivismo do herdado cientificismo do século XIX e
epistemologicamente depurado na radicalização empírico-analítica
deste século) impôs-lhe, por sua vez, e para o cumprimento estrito
81
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 01.
82
Kaufmann, Arthur. Filosofia do direito. p. 21.
83
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 06.
84
Kaufmann, Arthur. Filosofia do direito. p. 21.
85
Kaufmann, Arthur. Filosofia do direito. p. 21.
39
dessa intenção tão-só teorética, um postulado de não politização da
mesma ciência do direito, que dela excluiria todos os momentos
axiológico-normativamente constitutivos e os remeteria para os
domínios não científicos do ideológico-político e da opção subjetiva
86
.
A exclusão destes elementos da ciência do direito não significa que Kelsen os
desprezasse. Conforme sintetiza, e.g, o próprio jurista de Viena, “o direito não pode ser
separado da política, pois é um essencial instrumento da política, mas a ciência do direito
pode e deve ser separada da política”
87
. Efetivamente, o que Kelsen objetivava era evitar um
sincretismo metodológico que afundasse a ciência do direito em discussões estéreis, alheias ao
seu propalado objeto, a norma jurídica
88
.
Ainda no campo da relação Direito e ciência, Kelsen entende como insuficiente a
distinção entre ciências naturais e ciências sociais, utilizada para fins de classificação do
objeto da ciência do direito entre os dois pólos. Isto porque, para Kelsen, assim como a
sociedade pode ser pensada como parte da natureza, o Direito também tem parte de seu ser
inserido no domínio da natureza. A diferença fundamental entre a ciência natural e a ciência
do direito reside na distinção entre nexo de causalidade e nexo de imputação.
A ciência da natureza produz a lei: “se A é, B é”, numa relação de causalidade
necessária. Existe uma implicação, em relação de causa e efeito, entre um fato anterior e a
ocorrência do fato posterior. Se desprendermos uma maçã do alto de uma macieira, ela cairá.
A queda (fato posterior) é decorrência necessária do desprendimento da maçã (fato anterior).
Tal fato ocorrerá, independentemente do tempo e do local, sempre que a experiência for
repetida nas mesmas condições.
a ciência do direito produz a lei: “se A é, B deve ser”. Inexiste, na ciência do
direito, uma relação de causalidade entre fatos e conseqüências. Assim, e.g., se alguém
comete um determinado crime, deve ser-lhe aplicada uma sanção. Vigora, pois, o princípio da
imputação, que determina que verificada uma condição (crime), seja aplicada uma
determinada conseqüência (sanção). Entretanto, se a sanção (conseqüência) não for aplicada,
as leis que regem a ciência do direito não são invalidadas. Se as normas jurídicas não
86
Castanheira Neves, Antônio. Método jurídico. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de
sua metodologia e outros. p. 101.
87
Kelsen, Hans, Was ist die Reine Rechtslehre? p. 620 apud Castanheira Neves, Antônio. A redução política do
pensamento metodológico-jurídico. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua
metodologia e outros. p. 386.
88
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 02.
40
descrevem o que é, mas o que deve ser, a ciência do direito não pode descrever ou predizer o
que será, mas unicamente enunciar que, em determinadas condições definidas pelo
ordenamento jurídico, devem produzir-se determinadas conseqüências
89
.
A norma jurídica, objeto da ciência do direito, se apresenta como esquema de
interpretação
90
e como sentido objetivo de um dever-ser. Segundo a rigorosa conceituação de
Hans Kelsen, “‘norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita,
permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém”
91
.
Faz-se necessário, desde já, aclarar esta dupla dimensão da norma jurídica enquanto: (i)
esquema de interpretação, e; (ii) sentido objetivo de dever-ser.
Enquanto esquema de interpretação, a norma serve como filtro de juridicidade aos
atos que se realizam no espaço e no tempo, sensorialmente perceptíveis. Conforme assevera
Kelsen, o fato recebe um sentido jurídico específico por intermédio de uma norma que a ele se
refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica
92
. Assim, por exemplo, é
por intermédio de uma norma jurídica que o fato de uma morte na guilhotina se constitui
como execução jurídica de uma sentença de condenação à pena capital e não como homicídio.
Por outro lado, o direito é uma ordem normativa da conduta humana, isto é, um
sistema de normas que regulam o comportamento humano. A norma jurídica possui o sentido
específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem (sentido objetivo de dever-ser).
Kelsen considera a norma como técnica indireta de motivação das condutas humanas.
Salienta, entretanto, que a norma não se confunde com a vontade que a produziu. A norma
não é algo de psíquico real
93
. A norma é um dever-ser, ao passo que o ato de vontade da qual
ela é o sentido objetivo, constitui um ser. Donde se conclui a estreita vinculação entre norma
e ato de vontade.
89
Troper, Michel. Por una teoria del Estado. p. 26.
90
“Nas palavras de Kelsen: “o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico
(ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”. Cf.
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 04.
91
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 06.
92
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 04.
93
Como bem sintetiza Miguel Reale: “As normas jurídicas não são comandos ou imperativos, no sentido
psicológico do termo, como se detrás de cada preceito houvesse alguém a dar ordens, mas sim enunciados
lógicos que se situam no plano do dever ser”. Reale, Miguel. Filosofia do direito. 1ed. São Paulo: Saraiva,
1986. p. 457; No mesmo sentido: Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 84; Kelsen, Hans. Teoria
pura do direito. p. 06.
41
As normas jurídicas não são fatos, mas o sentido destes, ou seja, o sentido de atos
de vontade direcionados para o comportamento humano
94
. A validade de uma norma jurídica
não resulta de seu conteúdo, mas apenas da sua criação por uma forma determinada, em
última instância, por uma norma fundamental pressuposta (fonte comum de validade de todas
as normas pertencentes ao sistema)
95
. A norma jurídica é, pois, materialmente vazia. A
discussão acerca do conteúdo ou da materialidade da norma jurídica não é posta pela teoria
pura do direito, pois irrelevante do ponto de vista jurídico-científico. Efetivamente, para
Kelsen, “todo e qualquer conteúdo pode ser direito”
96
.
Outra distinção que se faz importante (com repercussão na teoria da interpretação
kelseniana), é aquela operada entre norma jurídica e proposição jurídica. Como se verá a
seguir, a distinção entre norma jurídica e proposição jurídica corresponde à diferença entre
interpretação autêntica e interpretação não-autêntica. Proposições jurídicas são juízos
hipotéticos, formulados pela ciência do direito, sem interferências valorativas, que enunciam
que, de acordo com o sentido de uma ordem jurídica, dada ao conhecimento, sob
determinadas condições fixadas por este ordenamento, devem intervir certas conseqüências
positivadas neste mesmo ordenamento
97
.
De outro lado, normas jurídicas são mandamentos, comandos, imperativos.
Enquanto a ciência do direito tem por função conhecer o direito e descrevê-lo, os órgãos
jurídicos têm por missão produzir o direito para que ele possa ser conhecido e descrito pela
ciência do direito. Assim, norma jurídica e proposição jurídica têm caráter logicamente
diverso. A distinção revela-se no fato das proposições jurídicas formuladas pela ciência do
direito poderem ser verídicas ou inverídicas (i.é, conforme a vinculatividade da descrição à
uma norma jurídica válida), enquanto as normas jurídicas podem ser válidas ou inválidas
(conforme provenham ou não de uma outra norma jurídica válida)
98
.
94
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 48.
95
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 221. Ainda sobre a questão da validade das normas jurídicas,
prossegue Kelsen: “Se se pergunta pelo fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada
ordem jurídica, a resposta apenas pode consistir na recondução à norma fundamental desta ordem jurídica, quer
dizer: na afirmação de que esta norma foi produzida de acordo com a norma fundamental”. Kelsen, Hans. Teoria
pura do direito. p. 222.
96
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 221.
97
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 80.
98
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. pp. 80-84.
42
1.6.2 A teoria da interpretação jurídica na Teoria Pura do Direito
A questão acerca da importância que Kelsen atribuiu ao tema da interpretação
jurídica ao longo de sua obra é bastante controversa. Enquanto alguns autores entendem que
ela ocupa posição marginal no contexto da obra do jurista austríaco
99
, outros asseveram que
ele debruçou-se suficientemente sobre o tema
100
. A interpretação surge na obra de Kelsen
quando da publicação do artigo intitulado Zur Theorie der Interpretation”, no periódico
Internationale für Theorie des Rechts”, em 1934
101
. No mesmo ano, o artigo em referência é
reproduzido, sem maiores alterações, na primeira edição da Teoria Pura do Direito
102
. É
somente na segunda edição da Teoria Pura, publicada em 1960, que o tema da interpretação
será ostensivamente abordado, ainda que em uma dezena de páginas.
A originalidade de Kelsen no campo metodológico decorre sobretudo da defesa de
uma opção voluntarista, e não cognitiva, do ato de realização do direito, e no rechaço da
antinomia tradicional entre criação e aplicação do direito
103
. A Teoria Pura do Direito, ao ver
a função judicial como criadora do direito, põe de manifesto o sofisma subjacente à opinião,
até então tradicional, que considerava o juiz como mero autômato, como “boca que pronuncia
as palavras da lei”. Como se verá, a teoria da interpretação jurídica desenvolvida por Kelsen
guarda profunda coerência com a sua concepção de ciência, de norma jurídica e de
ordenamento jurídico - enquanto estrutura escalonada
104
.
Kelsen diferencia duas espécies de interpretação jurídica - autêntica e não-
autêntica -, elevando a primeira como objeto privilegiado de sua análise. Quando o direito é
aplicado por um órgão jurídico, trata-se da interpretação autêntica
105
. Já a interpretação não-
autêntica é aquela realizada por uma pessoa privada, especialmente, pela ciência jurídica. A
99
Cf. a crítica em Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. pp. 214-218.
100
Cf. Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. pp. 407-408.
101
Cf. Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 407.
102
É o que diz Paulo Bonavides. Segundo o jurista, tanto o artigo quanto o capítulo inserto na primeira edição da
Teoria Pura do Direito tratam majoritariamente do problema das lacunas. Bonavides, Paulo. Curso de direito
constitucional. pp. 407-408.
103
Em posição à teoria jurídica clássica, que advogava que atividade de realização do direito seria meramente
cognitiva. Para esta corrente, que remonta à escola da Exegese, o legislador cria o direito positivo e o jurista
conhece-o de maneira lógico-formal e aplica-o também lógico-formalmente. Cf. Troper, Michel, Por una teoria
del Estado. pp. 63-64; Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 408.
104
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 92.
105
Kelsen modifica o sentido usual da expressão “interpretação autêntica”, até então utilizada para referir-se à
interpretação realizada pelo próprio órgão que elaborou o ato. Ver, neste sentido: Troper, Michel, Por una teoria
del Estado. p. 63.
43
interpretação autêntica cria direito, ao passo que a interpretação jurídico-científica (não-
autêntica) não cria direito, sendo pura determinação cognoscitiva do sentido das normas
jurídicas. Firme no jogo de contrastes, Kelsen estabelece que a interpretação autêntica pode
assumir o caráter de lei ou tratado internacional
106
, como também pode assumir a forma de
uma sentença
107
, enquanto a interpretação jurídico-científica deve ser ater a estabelecer “as
possíveis significações de uma norma jurídica”
108
.
Kelsen elege a norma jurídica como objeto de estudo da interpretação. Não
poderia ser diferente. A marca distintiva da Teoria Pura do Direito é exatamente a eleição da
norma jurídica como objeto exclusivo de estudo da ciência jurídica.
Kelsen nos ensina que a interpretação consiste na determinação do sentido, do
conteúdo das normas jurídicas que serão aplicadas. A interpretação é, para ele, uma operação
mental que acompanha necessariamente o processo de aplicação do direito no seu progredir
de um escalão superior para um escalão inferior
109
. O ordenamento jurídico é concebido de
forma escalonada, com o que a norma de grau superior na hierarquia normativa condiciona e
determina a criação da norma jurídica de grau inferior. Neste sentido, a Constituição norma
superior - condiciona e determina o processo de produção da lei – norma inferior –, da mesma
forma que a lei condiciona a produção da sentença judicial. Tem-se, assim, que a aplicação do
direito é simultaneamente produção de direito, pois a norma de escalão superior é aplicada, na
medida em que, de acordo com ela, se produz uma norma de escalão mais baixo
110
.
Apesar da norma de escalão superior regular o ato através do qual a norma de
escalão inferior é produzida, esta relação nunca é hermética. A norma de escalão superior não
pode regular, em todos os sentidos e direções, o ato mediante o qual ela se aplica. É inerente
ao ato de aplicação do direito uma relativa indeterminação. Esta indeterminação pode ser
intencional ou não. É intencional quando o próprio órgão que estabeleceu a norma assim o
quis. Kelsen apresenta o exemplo da norma penal que deixa ao juiz a opção de decidir-se pela
aplicação de uma pena de reclusão ou multa, como sanção a um determinado delito. Já a
106
Quando cria direito de forma geral, para todos os casos iguais.
107
Quando o órgão aplicador do direito cria uma norma individual ou executa uma sanção, em vista de um
determinado caso concreto.
108
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 395.
109
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 387.
110
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 92.
44
indeterminação não intencional deriva especialmente do caráter plurívoco do conteúdo
normativo. Dada a natureza lingüística das normas jurídicas, a equivocidade é ineliminável.
A despeito da intencionalidade da indeterminação das normas jurídicas, o que se
conclui é que elas são portadoras de diversas possibilidades de concretização, restando sempre
uma margem de discricionariedade ao intérprete autêntico chamado a estabelecer a norma
inferior. Como solução ao problema, Kelsen irá se valer da figura da moldura. Segundo
Kelsen, “o direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, um moldura dentro da qual existem
várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha
dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”
111
.
Kelsen afirma sem constrangimentos que a pergunta acerca de qual dos conteúdos (sentidos)
contemplados pela moldura é o correto, não pertence à teoria do direito, mas à política do
direito. A eleição de qualquer um dos sentidos contemplados pela moldura é igualmente
correto, do ponto de vista formal.
A noção kelseniana da norma jurídica como portadora de uma gama de sentidos
possíveis irá colocar a Teoria Pura do Direito em franco conflito com a teoria tradicional da
interpretação, que parte do pressuposto de que sempre uma única interpretação correta,
bem como de que é a sua missão encontrar o método adequado para estabelecimento desta
112
.
Kelsen recusa-se a elaborar uma teoria acerca dos métodos de interpretação, pois entende
como não-científica a escolha entre uma das possibilidades albergadas pela moldura
normativa. Não há, pois, um critério de direito positivo capaz de realizar esta escolha. O
jurista austríaco identifica na falácia de que uma norma jurídica apenas pode apresentar “uma
interpretação correta”, uma ficção de que se serve a jurisprudência para assegurar o ideal da
segurança jurídica
113
.
111
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 390.
112
Sobre a divergência de Kelsen com a hermenêutica jurídica tradicional, esclarece Castanheira Neves: “Contra
a hermenêutica jurídica tradicional, que encontrara a sua acabada definição metódica em Savigny e
paralelamente na École de l’éxégèse, e segundo a qual o sentido normativo das normas jurídicas ou das
prescrições legais seria determinado de modo jurídico-cognitivamente exato, em termos de obter
interpretativamente dessas normas ou prescrições uma única (a única jurídico-legalmente correta) solução
jurídica para o caso decidendo, sustenta Kelsen que não é isso possível (que não é isso cientificamente
logrável), já que as normas legais ofereceriam apenas um quadro de várias soluções possíveis e que entre essas
várias soluções possíveis o intérprete decidiria a sua opção segundo critérios extrajurídicos, político-sociais ou
ético-políticos”. Cf. Castanheira Neves, Antonio. A redução política do pensamento metodológico-jurídico.
Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e outros. pp. 390-391.
113
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 396.
45
Kelsen enfatiza a interpretação do direito como um ato que congrega
“conhecimento” e “vontade”. A moldura seria estabelecida por um ato de conhecimento, ao
passo que um ato de vontade estabeleceria uma dentre as diversas possibilidades de aplicação.
Kelsen aduz que na interpretação autêntica, aquela realizada por um órgão jurídico, “a
interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do direito a aplicar
combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do direito efetua uma escolha
entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva”
114
. Na
relação dialética entre conhecimento” e “vontade”, esta última sempre prevalece. Na feliz
expressão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, trata-se de um “eu quero” em oposição a um “eu
sei”
115
.
Não por outro motivo Kelsen alerta para a possibilidade de, pela via da
interpretação autêntica, poder-se produzir uma norma que se situe completamente fora da
moldura que a norma a aplicar representa. Na hipótese de uma norma oferecer, através do
emprego de um termo genérico, e.g., cinco diferentes interpretações, o juiz pode escolher uma
sexta significação que se coloque completamente fora da moldura normativa
116
. No âmbito da
teoria do jurista austríaco uma decisão judicial “ilegal”, pode, por força de seu trânsito em
julgado, tornar-se definitiva, e isto não a torna “antijurídica”. Com efeito, embora tal decisão
possa contrariar algum preceito material ou processual previsto em norma geral, encontra
respaldo jurídico em outra disposição da própria lei geral, isto é, o instituto do trânsito em
julgado, que por estar assim na norma superior torna tal decisão individual conforme ao
direito
117
. É possível, pois, a criação de direito novo para além do disposto na moldura
normativa.
Como se verá a seguir, a teoria da interpretação de Kelsen é conseqüência da sua
concepção de ciência, assente na distinção entre ser e dever-ser. A discricionariedade
atribuída ao aplicador do direito possibilitou a Kelsen admitir que questões “metajurídicas”
como fatores morais, éticos, políticos e sociais, influenciassem a decisão, sem que restasse
comprometida a pureza metodológica da sua teoria.
114
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 394.
115
Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2 ed. São Paulo,
Atlas, 1994, p. 261.
116
Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. p. 211.
117
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. pp. 295-300.
46
1.6.3. Críticas à teoria da interpretação de Kelsen a partir da obra de Friedrich Müller
A teoria da interpretação de Kelsen é uma decorrência lógica da sua concepção de
ciência (do postulado da pureza metódica), e do seu conceito de norma enquanto puro dever-
ser
118
. Nas palavras antes mencionadas de Warat, tem-se que Kelsen não se limita a expor
uma epistemologia para a ciência do direito; “uma vez estabelecidas as regras de seu jogo
epistemológico, decide aplicá-las para ver o que acontece”
119
. A crítica de Müller pretende
questionar os resultados da “aplicação” das regras epistemológicas da teoria pura do direito,
especialmente aquelas referentes à interpretação e à aplicação do direito. Para Müller, a teoria
pura do direito soçobra em seu ponto decisivo, que trata da sua fecundidade para a
concretização prática do direito
120
. A crítica de Müller centra-se, pois, na absoluta separação
entre ser (sein) e dever-ser (sollen), como aspecto determinante para uma teoria vazia de
interpretação.
Como visto anteriormente, a teoria pura professa que a interpretação autêntica do
direito pode ser desmembrada num ato de conhecimento e num ato de vontade. O ato de
conhecimento põe em manifesto os sentidos possíveis da norma jurídica aplicável, ao passo
que o ato de vontade realiza a escolha entre as alternativas dispostas no quadrante normativo.
Em conclusão, a eleição de qualquer das possibilidades contempladas pela moldura normativa
é correta.
Para Müller, engana-se quem pensa que, com isso, a teoria pura do direito
purificou a atividade jurídica. Quando da escolha das alternativas reveladas pela moldura
normativa, Kelsen expressamente admite a incidência de outras “normassobre o intérprete.
E quais seriam estas “normas”? São, segundo o Mestre de Viena, “normas da moral, normas
da justiça, juízos de valor sociais que costumamos signar por expressões correntes como bem
comum, interesse do Estado, progresso, etc.
121
. Entretanto, como estas normas não fazem
parte do direito positivo, são consideradas irrelevantes para a ciência do direito, que se ocupa
tão somente das normas jurídicas válidas. Fiel aos seus pressupostos metodológicos, Kelsen
118
Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direto. p. 95.
119
Warat, Luís Alberto; Pêpe, Albano Marcos Bastos. Filosofia do direito. p. 54.
120
Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller – Método jurídico sob o paradigma pós-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 250.
121
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 393.
47
afirma que como as normas supracitadas não fazem parte do direito positivo, “nada se pode
dizer sobre a sua validade e verificabilidade”
122
.
Conforme outrora explanado, quando confrontado com a questão de como se
decide no interior do quadrante, Kelsen contorna a situação respondendo que se trata de
questões metajurídicas, questões de política do direito. As soluções jurídicas ocorrem à
margem do discurso científico. Nas palavras de Olivier Jouanjan: “Purificada destes
elementos perturbadores, a teoria pura conclui-se abdicando deles: a ciência do direito está
purificada, mas não a prática. No interior do quadro, a escolha da decisão não é julgável por
um método (jurídico)”
123
.
Karl Larenz, muito perspicazmente, antevê o mesmo desequilíbrio na Teoria Pura
do Direito, no que se refere ao balanço entre teoria e práxis. Conforme nos ensina Larenz:
assim como a jurisprudência dos interesses é deficiente como teoria,
mas foi de grande utilidade prática, assim a teoria pura do Direito
atinge um alto nível como teoria, mas do ponto de vista prático os seus
resultados são pobres. Em último termo, porém, o fato encontra a sua
razão de ser numa deficiência da própria teoria
124
.
Há, neste ponto, uma profunda imbricação entre a teoria da norma de Kelsen e a
sua teoria da interpretação, com o que se começa a dissecar a já ventilada correlação da teoria
da interpretação com os postulados epistemológicos da Teoria Pura. Para Kelsen, a norma é
puro ato de vontade. A norma é uma ordem materialmente vazia, carente de inteiro fundo
material, que se limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência, sem qualquer juízo
a respeito do valor moral ou político dessa conexão
125
. Como ordem abstrata daquilo que deve
ser, a pergunta acerca do seu conteúdo ou da sua materialidade não é de natureza jurídica
126
.
122
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 393.
123
Olivier Jouanjan. De Hans Kelsen a Friedrich Müller Método jurídico sob o paradigma s-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. p.
249.
124
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 82; Em sentido semelhante afirma Kaufmann: “A teoria
pura do direito fomentou extraordinariamente a teoria do direito. Contudo, do ponto de vista da prática, ela quase
não mereceu atenção, o que se compreende, que as formas e categorias de pouco servem à prática”. Cf.
Kaufmann, Arthur; Hassemer, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas.
p. 182. Santos utiliza a mesma citação de Larenz. Cf. Santos, Rodrigo Mioto dos. Método, racionalidade e
legitimidade da decisão judicial: uma análise a partir da teoria estruturante de Friedrich Müller. p. 33.
125
Cf. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. pp. 16-22; Reale, Miguel. Filosofia do direito. p. 462.
126
E não poderia ser de outra forma: coerentemente com seu propósito de formular uma teoria geral do Direito,
que desse conta do que o Direito é em todos os tempos e lugares, Kelsen interdita para o conhecimento
científico do fenômeno jurídico todo e qualquer conteúdo normativo, que é cambiante de sociedade para
sociedade.
48
Ora, se a norma não possui qualquer conteúdo, a pergunta pela correção material da
interpretação jurídica que cria direito (norma inferior) a partir da norma superior não é sequer
colocada pela Teoria Pura do Direito. A rigorosa separação entre ser e dever-ser impede que
Kelsen proponha a racionalização de teores materiais normativos
127
. A norma aparece como
puro dever-ser, “desconectado” da realidade.
Müller crítica a noção de norma jurídica enquanto puro dever-ser dissociado da
realidade. A sua teoria da norma propõe, ao revés, o inter-relacionamento estruturado entre
ser e dever-ser. A norma jurídica carece de ser “preenchida” pela realidade. Ela depende do
caso, seja ele concreto ou fictício. Müller censura a concepção de norma jurídica enquanto
ordem materialmente vazia, pois tal conceito afigura-se como insuficiente para todos aqueles
que partilham do Estado constitucional
128
. As normas constitucionais não aparecem na prática
como um ato de vontade carente de inteiro fundo material. Müller propõe a noção de norma
jurídica como ordem materialmente determinada. A norma sofre influência da realidade
(normatividade materialmente determinada), ao mesmo tempo em que, posteriormente, exerce
influência sobre esta realidade (normatividade concreta)
129
. A realidade influencia a norma
sem, contudo, abarcá-la totalmente
130
.
É, pois, neste sentido, que a teoria e a metódica estruturante desenvolverão um
conceito dinâmico de normatividade, decorrente de um processo estruturado metodicamente a
partir das exigências do Estado de Direito. Neste processo, “os teores materiais da
concretização não são ocultados, mas incluídos de forma controlável e generalizável na
concretização”
131
. Isto não significa, à evidência, que a metódica estruturante propugne uma
teoria da interpretação correta. A metódica estruturante pretende racionalizar o trabalho
prático dos juristas, de forma a permitir a sua discutibilidade, revisibilidade e regularidade
132
.
127
Müller, Friedrich.
O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 51
128
Note-se que Müller situa-se dentro do paradigma (modelo jurídico-político) do Estado constitucional de
direito, enquanto Kelsen se propõe a postular uma teoria universal.
129
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito.
p. 15.
130
O modo de “seleção da realidadeserá abordado no próximo capítulo, na seção referente ao “âmbito da
norma”.
131
Christensen, Ralph. Teoria estruturante do direito. In: Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito:
introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 243.
132
Segundo Müller: “a teoria da norma jurídica precisa, de qualquer modo, estar especificamente a serviço da
racionalidade jurídica, precisa diferenciar de modo racional as reflexões presentes na decisão, tornando-a com
isso passível de controle e de discussão o máximo e o melhor possível”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria
estruturante do direito. p. 161.
49
Nos dizeres de Müller, na impossibilidade de uma racionalidade absoluta, deve-se buscar a
racionalidade possível para a ciência do direito.
Para além da crítica acerca da inexistência de critérios para o julgamento da
decisão volitiva, coexiste em de igualdade a crítica acerca da inexistência de critérios para
a aferição da moldura normativa, isto é, que permitam a racionalização do ato cognitivo.
Apesar de perfeitamente lógica e coerente com o paradigma positivista que apresenta e
enaltece, a teoria da interpretação jurídica de Kelsen não consegue responder a uma questão
central: quais os métodos de interpretação capazes de traçar a moldura normativa?
Kelsen simplesmente omite quais são os métodos interpretativos capazes de
auxiliar o jurista (e também o cientista) a traçar a moldura normativa, primeiro passo para a
aplicação do direito. Nos dizeres de Müller, “os critérios do ato cognitivo, tanto no quadro da
interpretação autêntica como naquele de interpretação não-autêntica são passados em silêncio;
a menos que se considere o reenvio global ao procedimento lógico um ponto de apoio
suficiente à verdade científica”
133
. A crítica de Müller é pertinente. Se a Teoria Pura do
Direito afirma a potencialidade do jurista (e do cientista) em delimitar a moldura normativa
através de um ato cognitivo, é de rigor que apresente os métodos adequados para tanto, sob
pena de esvaziamento das suas proposições.
Assim como Müller, Dimitri Dimoulis censura duramente o niilismo
metodológico de Kelsen. Segundo Dimoulis a exposição de métodos interpretativos capazes
de delimitar a moldura “é imprescindível, que a afirmação da existência tanto de
alternativas ‘dentro’ da norma como de outras que não se enquadram em seu significado
perde sua relevância se não for indicado o caminho para constatar essas alternativas”
134
.
Em última instância, o niilismo metodológico de Kelsen termina por aproximá-lo
do decisionismo de Schmitt
135
. As teorias se tocam quando se constata que o quadro
133
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 29.
134
Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. p. 211.
135
Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
53. Outros autores enfatizam uma aproximação da teoria da interpretação jurídica de Kelsen com o Realismo
Jurídico e com a Escola do Direito Livre. Segundo Aftalión, Olano e Vilanova, que escrevem na Introducción al
Derecho: A fundamental diferença entre o voluntarismo da Escola do Direito Livre e o de Kelsen consiste em
que o daquela é um voluntarismo amorfo ou informe (Cosio), porquanto deixa tudo entregue livremente à
vontade do juiz. Em compensação, o voluntarismo kelseniano se acha estruturado de fora (voluntarismo
estruturado), no sentido de que o juiz não está livre de ataduras e que o seu ato de vontade deve discorrer dentro
dos marcos conceituais tipos figuras, “standards” enunciados pelas normas gerais, segundo explicamos ao
50
normativo pode ser sumariamente rechaçado por um ato de vontade. Kelsen expressamente
consigna que a interpretação autêntica é sempre válida, a despeito de sua conformidade com a
moldura normativa. O órgão aplicador do direito que possui competência para decidir em
última instância pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a
norma a aplicar representa
136
. Em ambas as teorias subsiste a possibilidade de dissolução da
normatividade por um mero ato de vontade. Nos dizeres de Müller, “em ambos os casos,
teores materiais são superados de forma voluntarista”
137
.
A teoria de Müller choca-se com a construção teórica de Kelsen. Müller refuta a
relação entre norma e realidade, tal como ela se processa na Teoria Pura do Direito. A Teoria
Estruturante do Direito se propõe a repensar a relação norma-realidade, fato- norma, através
de uma nova teoria da norma jurídica, que se pergunta pela estrutura de sua normatividade tal
e como se apresenta na aplicação prática do direito
138
. Müller transmuda a pergunta por
“norma e fato” pela pergunta pela normatividade e estrutura da norma
139
.
A originalidade da teoria da norma de Müller reside na estrutura normativa por ele
proposta. Para Müller, não é apenas a injunção de dever-ser que contribui para a decisão do
caso, mas também, no que toca a uma série de tipos de normas, igualmente a estrutura
substancial do âmbito de regulação, da parcela da realidade social relacionada com a
norma
140
. Enquanto a Teoria Pura do Direito assenta-se no dualismo incomunicável entre
norma e realidade empírica, ser e dever-ser
141
, a Teoria Estruturante do Direito congrega estes
dois elementos dentro da teoria da norma. Reside, pois, no entrecruzamento ordenado entre
tratar da compreensão no âmbito do Direito (E.R. Aftalión, F.G. Olano e J. Vilanova, ob. Cit., p. 443)”. In:
Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 411. De outro lado, propugnando uma identificação entre o
positivismo de Kelsen e o realismo americano, tem-se a lição de Dimoulis: “No outro extremo, encontramos a
postura de Kelsen, de Hart e de muitos outros autores que silenciam sobre as finalidades e os métodos da
interpretação, convergindo com o realismo jurídico”. Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma
teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. p. 218.
136
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. p. 394.
137
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 55.
138
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 17.
139
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 07.
140
Müller, Friedrich apud Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
141
Essa separação não é absoluta, dado que, para Kelsen, entre vigência e eficácia pode existir ‘uma certa
conexão (...) Um mínimo de eficácia [da norma] é a condição de sua vigência” (Kelsen, Hans. Teoria pura do
direito. p. 12.). E mais: ao nível de ordenamento, se pode inferir a existência de uma Grundnorm a
fundamentar toda a validade do ordenamento se esse ordenamento for, em seu conjunto, eficaz (Kelsen, Hans.
Teoria pura do direito. pp. 235-238). Sobre a relação validade/eficácia na Teoria Pura do Direito, v.
Cademartori, Sergio Urquhart de. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. 2ª Ed. Campinas:
Millennium, 2007.
51
norma e realidade, uma diferença substancial entre a teoria de Müller e a teoria de Kelsen.
Estas questões serão aprofundadas nos capítulos subseqüentes.
52
CAPÍTULO 2: A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: A INFLUÊNCIA DA
TEORIA DA NORMA PARA A METÓDICA JURÍDICA
2.1 Introdução
A teoria estruturante do direito [Strukturierende Rechtslehre] engloba conjunta e
reciprocamente a dogmática, a metodologia, a teoria do direito (da norma jurídica) e a teoria
da constituição
142
. Entretanto, apesar de intrinsecamente entrelaçados, os diversos
componentes da teoria estruturante podem ser lidos isoladamente. O presente capítulo
privilegiará a exposição da teoria da norma jurídica de Müller. Apesar do recorte no enfoque
teórico, uma tal exposição não poderá deixar de fazer referência à metódica estruturante do
direito. Isto porque a teoria da norma jurídica e a metódica estruturante atuam em constante
inter-relação. A primeira depende necessariamente da segunda, ao passo que o contrário
também é verdadeiro. Conforme enfatiza Olivier Jouanjan, a “metodologia ocupa, certamente,
no seio da teoria estruturante, lugar estratégico”
143
. Se é possível estabelecer uma hierarquia
entre os quatro elementos que formam a teoria estruturante do direito, poder-se-ia arriscar que
a teoria da norma jurídica e metódica estruturante ocupam lugar privilegiado.
Conforme se verá, Müller propõe uma relação indissociável entre norma jurídica,
metodologia jurídica e ciência jurídica. A definição da norma jurídica necessariamente
afetaria a metodologia jurídica e a própria concepção do que seja a ciência do direito. Neste
sentido importa analisar de que forma a reformulação teórica a respeito da norma jurídica
(operada por Müller) influenciou a metódica jurídica proposta. O objetivo central do presente
capítulo é investigar de que forma a mudança no conceito de norma jurídica influenciou a
alteração dos conceitos tradicionais de “interpretação” e “aplicação do direito”.
Pode-se dizer que a teoria da norma de Friedrich Müller parte do pressuposto de
que as normas jurídicas não são puro dever-ser. Müller propõe a norma jurídica como uma
noção composta de ser e dever-ser, de dados lingüísticos e dados reais. Ademais, a norma
jurídica não se identificaria ao texto da norma. A norma jurídica seria estruturada na
conjugação do programa da norma (Normprogramm) com o âmbito da norma (Normbereich).
Estes e outros aspectos serão elucidados a seguir.
142
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. p. 25.
143
Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller – Método jurídico sob o paradigma pós-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 248.
53
2.2 As relações entre norma jurídica, metodologia e ciência jurídica
para Müller um nexo indissociável entre compreensão da norma, questões
práticas do direito e epistemologia
144
. A teoria estruturante do direito parte de um dado
fundamental: a teoria da norma jurídica não pode fiar-se na separação entre ser e dever-ser.
Segundo Müller, “os enfoques fundamentais da ciência jurídica distinguem-se quanto ao
posicionamento das suas concepções diante da norma jurídica”
145
. São as transformações no
conceito de norma que definem as transformações da ciência jurídica. Como forma de
contornar o que julga uma incorreção, Müller sugere uma mudança no enfoque indagativo a
respeito do lugar epistemológico da ciência do direito e também da metódica jurídica. Müller
propõe o abandono do questionamento “que tipo de ciência é a ciência jurídica?”
146
, pois tal
pergunta não conseguiria responder em maiores detalhes o papel da ciência jurídica e da sua
metódica na realidade social. Ao contrário, Müller procura, antes de tudo, desvendar a
estrutura da norma e da normatividade jurídica tal e como ela se apresenta na aplicação
prática do direito. Para solucionar este problema, Müller propõe a seguinte indagação: “o que
ocorre efetivamente, quando se pode afirmar de um determinado ordenamento jurídico que ele
funciona?”
147
.
Ao sustentar o encadeamento entre compreensão da norma, questões práticas do
direito e epistemologia, a teoria estruturante sugere uma espécie de efeito dominó; a
compreensão da norma jurídica produz conseqüências para a metódica do direito e para a
ciência do direito. Na perspectiva crítica de ller, a caracterização da ciência do direito
como uma “ciência normativa referida à realidade(definição que, nominalmente, parte do
pressuposto da separação entre ser e dever-ser, norma e realidade
148
), conduz a uma
144
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 29.
145
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 09.
146
Em moldes estritamente positivistas “como a ciência jurídica pode ser uma ciência autônoma, uma ciência
puramente normativa?”. Cf. Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional
I. trad. Peter Naumann. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. pp. 12-13.
147
Segundo Müller, a oposição entre ciências naturais e ciências humanas foi hoje relativizada: “Vista sob
esse ângulo, a ciência jurídica se interessa menos pela sua delimitação tradicional das ciências naturais do que
pela especificidade do objeto e pela função social das normas jurídicas e da sua normatividade específica. De
resto, os critérios correntes da epistemologia geral para a delimitação das ciências naturais das ciências humanas,
tais como absoluto e relativo, objetivo e subjetivo, quantificador e qualificador evidenciaram ser simplificações
grosseiras, insustentáveis por ambas as partes. A “natureza” e a “história” perderam a univocidade
aparentemente autosuficiente da mera contraposição”. Cf. Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência:
elementos de direito constitucional I. p. 13; Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à
teoria e metódica estruturantes do direito. p. 17.
148
Cf. Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. pp. 12-13.
54
equivocada concepção da norma jurídica, que origina, por sua vez, os problemas
metodológicos constatados diuturnamente na práxis constitucional.
A teoria estruturante critica a concepção de norma jurídica do positivismo jurídico
e a conseqüente teoria da “interpretação e aplicação do direito”. Como visto no primeiro
capítulo, Müller repele o construto epistemológico de Kelsen assente na neokantiana
separação entre ser e dever-ser –, para em seguida refutar a sua teoria da norma jurídica, e a
sua teoria da “interpretação e aplicação do direito”. Muito embora o alvo preferencial da
teoria estruturante do direito seja a teoria pura do direito, não faltam críticas às concepções
que lhe são antagônicas, como as obras de Carl Schmitt, Theodor Viehweg, etc.
Nos dizeres de João Maurício Adeodato:
Müller pretende superar as posições tradicionais: do positivismo
normativista, na linha de Kelsen, para quem o texto normativo fixa os
limites (a “moldura”) da decisão e o jurista atua criativamente nas
lacunas em que falha a concepção silogística, mantendo porém a visão
exegética segundo a qual a norma é previamente dada; e do
decisionismo, na linha de Carl Schmitt, para quem a decisão não
guarda relação real com os textos normativos, no que concerne aos
problemas da validade e sentido desses mesmos textos, nem quanto ao
problema de justificação da decisão
149
.
O referido nexo entre epistemologia, compreensão da norma e questões práticas
do direito resta evidente na obra de Kelsen. Como decorrência de uma concepção da ciência
do direito assente na separação entre ser e dever-ser, a norma jurídica é vista como ordem,
juízo hipotético, vontade materialmente vazia, razão pela qual sob o ponto de vista metódico a
teoria pura do direito não oferece a possibilidade de racionalização de teores materiais
normativos.
Ao contrapor ser e dever-ser Kelsen elimina “toda e qualquer possibilidade de
desenvolver meios concretos de interpretação e aplicação”
150
. Os problemas materiais da
concretização da norma são eliminados graças à concepção epistemológica dualista. Norma e
realidade, ser e dever-ser, se encontram em campos opostos. A “pureza” é garantida por esta
separação. No interesse da objetividade e da exatidão, porém, a teoria pura do direito extirpa
da análise científica elementos materiais que necessariamente integram a decisão (políticos,
149
Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 237.
150
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. pp. 28-29.
55
sociológicos, etc.), ao classificá-los como meta-jurídicos. Na crítica de Müller, Kelsen faz
ciência às expensas da peculiaridade da norma jurídica
151
. Conforme se verá a seguir, Müller
entende a norma jurídica como uma noção composta de ser e dever-ser. De fato, Müller busca
integrar na teoria da norma o que Kelsen considerava inconciliável: ser e dever-ser. É por este
motivo que, vista sob os olhos da teoria pura do direito, a teoria estruturante do direito é
decididamente impura
152
.
Em verdade não Kelsen, mas todo o positivismo de meados do século XIX e
início do século XX define a norma jurídica como injunção de puro dever-ser, confundindo a
norma com o texto normativo. As tendências metodológicas refratárias ao positivismo do
século XX (e.g., a Escola do Direito Livre), também conceituam a norma como puro dever-
ser. Como visto no primeiro capítulo, nenhuma das mudanças metódicas propugnadas pelas
escolas antiformalistas propôs a reestruturação do que Müller considera o “calcanhar de
Aquiles” do positivismo: o conceito de norma jurídica. As propostas de reformulação
metódica são assim entendidas por Müller como marginais, pois não atingem o verdadeiro
problema, a verdadeira “aporia do positivismo”: a concepção da norma jurídica enquanto puro
dever-ser, a apartar direito e realidade
153
.
Nos dizeres de Müller:
Os discursos antipositivistas do culo a escola do direito livre até o
sociologismo e a análise econômica do direito, da hermenêutica até a
teoria do direito neofrankfurtiana caem na armadilha do paradigma
positivista, nesse sentido não superado. Eles corrigem em cima de
fenômenos da superfície, não transcendem o paradigma positivista a
partir da concepção de norma
154
.
Este estado de coisas não se modifica em outras correntes contemporâneas, como
no “decisionismo” e na “tópica”. Müller critica Carl Schmitt por tentar solucionar o problema
da metódica jurídica politicamente
155
. No debate jurídico alemão do início do século XX,
Schmitt foi um dos principais críticos de Kelsen (em verdade, de todo o positivismo e
151
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 9.
152
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
248.
153
Neste sentido, por exemplo, a jurisprudência dos interesses, cujo foco central pautava-se no problema das
lacunas do direito. Apesar da jurisprudência dos interesses criticar a dedução conceitual e reivindicar para a
prática decisória a análise dos interesses sociais em jogo, em nenhum momento a sua proposta metódica
questionou o problema do conceito de norma jurídica.
154
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 10.
155
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 23.
56
normativismo)
156
. Assim como o jurista de Viena, ele também se preocupou com a questão da
indeterminação do ato de aplicação do direito. Schmitt enfatizou que a norma individual não
poderia ser integralmente derivável da norma genérica. A lei não seria um fundamento seguro
para o ato de concretização do direito. Em Schmitt, porém, o problema da indeterminação do
texto da norma é resolvido com uma decisão de caráter pessoal
157
.
Müller vislumbra na teoria de Schmitt uma compreensão reducionista da norma
jurídica, que contrapõe “‘as meras normas” à qualidade ôntica de uma “vontade”
existencialmente existente, fundamentadora do dever-ser”
158
. Em Schmitt a norma surge da
decisão e não a decisão da norma, isto é, a decisão não tem fundamento normativo
159
. Müller
critica a teoria de Schmitt, que nada tem a ver com o Estado Democrático de Direito, pois “os
conteúdos da norma são devorados pela decisão”
160
.
Por fim, é de se ressaltar as críticas que Müller formula à tópica de Theodor
Viehweg. Viehweg tem o mérito de, com a publicação da obra Tópica e Jurisprudência [Topik
und Jurisprudenz], em meados dos anos 50, ter acendido na Alemanha o debate acerca da
necessidade de vincular as soluções normativas à práxis e à realidade
161
. A tópica questionava
156
Uma das críticas de Schmitt a Kelsen é que este dissociaria norma e decisão. Kelsen contornaria a questão da
decisão, recusando-a como extrajurídica. Enquanto em Kelsen a decisão estaria limitada pela moldura, em
Schmitt a decisão é ilimitada.
157
O decisionismo e o problema da indeterminação do ato de aplicação do direito (problema também presente na
obra de Kelsen), na obra de Schmitt, são destacados por William Scheuerman: “O decisionismo de Schmitt
sustenta que a norma jurídica não é princípio regulativo eficaz da decisão, e abraça a tese da indeterminação do
conteúdo da decisão, cuja conseqüência é a necessidade de construir uma teoria normativa diferenciada à da
completude do ordenamento”. Cf. Scheuerman, William. Carl Schmitt: The end of law. Lanham, Maryland:
Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1999, p. 8 e ss. apud Santos, Rogério Dutra dos. Direito e Decisão
Judicial: Carl Schmitt e os fundamentos normativos da homogeneidade política. In: Cademartori, Luiz Henrique
Urquhart. Temas de Política e Direito Constitucional Contemporâneos. Florianópolis, Momento Atual, 2004. p.
26
158
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 31.
159
Nos dizeres de Müller, Schmitt promove o “deslocamento da decisão não somente dos argumentos da sua
fundamentação, mas também do teor da prescrição jurídica subjacente”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria
estruturante do direito. p. 31.
160
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 31.
161
Bonavides, Paulo. Teoria estrutural de Friedrich Müller. In: O novo paradigma do direito: introdução à
teoria e metódica estruturantes do direito. p. 232. Sobre a repercussão da tópica de Viehweg no meio jurídico
alemão assinala Bonavides: O prestígio da tópica em toda a Alemanha se fez sentir com a adesão de três
civilistas eminentes – Wieacker, Esser e Coing – seguido do apoio de constitucionalistas de peso, como
Schneider e Ehmke, relatores do tema “Princípios de Interpretação Constitucional”, exposto na assembléia de
1961 dos professores de direito público daquele país. Inclinaram-se também para a tópica, nomeadamente para
uma teoria material da Constituição, construindo estradas próprias com o propósito de alcançar objetivos
semelhantes, juristas da envergadura de Martin Kriele, Peter Häberle, Friedrich Müller e Konrad Hesse”. Cf.
Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 448. O debate acerca da pertença da teoria de Müller aos
quadros da tópica será analisado a seguir.
57
o procedimento lógico-dedutivo e a capacidade da aplicação subsuntiva da lei garantir uma
decisão justa, razão pela qual defendia o pensamento tópico, por problemas
162
.
Acompanhar a crítica de Müller à tópica é importante porque o pensamento deste
autor vem sendo caracterizado no país como tópico-concretista, especialmente em virtude de
Paulo Bonavides, um dos principais divulgadores da obra de Friedrich Müller no Brasil
163
. É
de se ressaltar, contudo, que o jurista alemão expressamente refuta a designação da sua teoria
estruturante do direito como sendo de influência tópica
164
.
Apesar da tópica destacar a importância da consideração dos “dados materiais”
trazidos pelo problema o que a torna próxima da teoria e metódica estruturantes –, o papel
que a norma desempenha no processo de aplicação do direito a torna incompatível com os
pressupostos da teoria e metódica estruturantes. Já sob o ponto de vista epistemológico,
Müller critica a tópica por sustentar a diferença categórica entre ser e dever-ser, e por não
fazer a distinção entre norma e texto de norma. Entretanto, o que Müller julga
162
Nos dizeres de Larenz, a tópica de Viehweg pode ser definida como “um processo especial de tratamento de
problemas, que se caracteriza pelo emprego de certos pontos de vista, questões e argumentos gerais,
considerados pertinentes os “tópicos”, precisamente”. Os tópicos são todos aqueles argumentos utilizados para
a solução dos problemas jurídicos, como e.g., princípios jurídicos materiais e conceitos como declaração de
vontade, tutela da boa-fé, etc. (...) Segundo Larenz, Viehweg “aparentemente, considera como tópico toda e
qualquer idéia ou ponto de vista que possa desempenhar algum papel nas análises jurídicas, sejam estas de que
espécie forem”. Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. pp. 171-172.
163
Ao caracterizar o jurista alemão, afirma Bonavides: “O método de Müller é concretista. Tem sua base
medular ou inspiração na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder
chegar aos resultados da metodologia proposta”. Cf. Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 456.
Em outras paragens a relação entre a tópica e a teoria de Müller foi assim desenvolvida: “Sobre os alicerces da
tópica buscou-se reconstruir o edifício filosófico do direito. Um dos arquitetos dessa reconstrução, que
apresentou o projeto mais brilhante e engenhoso, na obra Teoria estrutural do direito, é o professor Friedrich
Müller, da Universidade de Heidelberg, de cuja faculdade foi decano. Cf. Bonavides, Paulo. Teoria Estrutural
do Direito, de Friedrich Müller. In Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e
metódica estruturantes do direito. p. 232.
164
Müller expressamente recusa a designação da sua teoria como de inspiração tópica. Nas palavras do próprio
autor em entrevista: “(...) não estou de acordo com Paulo Bonavides quando ele afirma possuir minha posição
uma “inspiraçãopica”. Evidentemente, estou mais próximo da tópica que do positivismo. Porém, apesar disso,
não concordo com o pensamento tópico”. Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à
teoria e metódica estruturantes do direito. p. 272. Outros autores também recusam a relação entre a metódica
estruturante do direito e a tópica. Thomas da Rosa de Bustamante assim se pronuncia: “Em minha opinião,
considerar o autor da Juristiche Methodik um “constitucionalista da tópica” (...) é exagerar a influência daquela
corrente de pensamento no método jurídico-concretista, que está muito mais próximo de Kelsen do que de
Viehweg (...) pois, segundo Müller, sem vida o texto da norma deve prevalecer sobre os problemas concretos
(...), devendo todo o processo de “concretizaçãotê-lo como ponto de referência (...)”. Cf. Bustamante, Thomas
da Rosa de. Sobre o conceito de norma e a função dos enunciados empíricos na argumentação jurídica segundo
Friedrich Müller e Robert Alexy. In Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 43, 2003,
pp. 101-102. Concorda-se com Bustamante no que se refere à discutível caracterização da metódica estruturante
como de decisiva influência tópica. Tem-se, porém, como temerária a gradação da obra de Müller entre os
extremos de Kelsen e Viehweg. Como visto no decorrer do trabalho, Müller refuta os conceitos de ciência,
norma jurídica, bem como a teoria da interpretação de Kelsen, o que por si dificulta uma relação aproximada
entre as teorias.
58
verdadeiramente problemático é a subestimação da função da norma na aplicação do direito,
bem como a vagueza da sua proposta metodológica
165
. No procedimento tópico a norma é
tratada como um topos entre outros; sendo que “não é licito aduzir topoi estranhos à matéria,
mas é lícito aduzir topoi estranhos à norma”
166
.
A possibilidade da decisão se afastar do texto normativo é enfatizada por Müller
como uma característica que torna a tópica imprópria ao direito constitucional e ao Estado
Democrático de Direito
167
. Nos dizeres de Müller:
Para o direito constitucional é especialmente questionável em
virtude da sua peculiaridade como direito basilar sem maior amparo
no direito positivo – se a aplicação tópica do direito pode efetivamente
passar por cima de uma norma reconhecível, concretizável, se ela,
e.g., pode decidir também contra o texto claro da norma
constitucional, quando ela não oferece nenhum ponto de apoio para
uma solução do problema, que tenha sentido
168
.
Em oposição à Viehweg, Müller defende a imprescindibilidade da consideração
tanto da norma (mais propriamente: do texto da norma), quanto do problema. Não se trata de
desconsiderar os aspectos trazidos pela realidade, mas de tratá-los no âmbito da teoria da
norma jurídica. Müller propõe a consideração de ser e dever-ser, direito e realidade, como um
problema de teoria da norma. A rejeição da concepção de norma jurídica do positivismo não
representa adesão à tópica. É o que será visto a seguir.
2.3 A norma jurídica como noção composta de ser e dever-ser
Para Müller, a separação da norma e dos fatos, do direito e da realidade, assim
como a compreensão da norma como algo que repousa em si e preexiste, é um dos erros
fundamentais do positivismo
169
na ciência jurídica
170
. O positivismo na ciência jurídica sempre
165
Para outro enfoque crítico a respeito da pica: Alexy, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do
discurso racional como teoria da justificação jurídica. trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy,
2008. pp. 49-53.
166
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 67.
167
Müller ainda assinala que a tópica foi criada para o direito civil e não para o direito público, e que a
possibilidade da sua transferência para o domínio do direito público não seria algo evidente per se. Cf. Müller,
Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 57.
168
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 68.
169
Convém esclarecer o significado do termo positivismo jurídico para Müller: “Com esse termo se
compreende o direito objetivo vigente como sistema perfeito de normas jurídicas, caracteriza-se a decisão
jurídica concreta como aplicação lógica de uma norma jurídica abstrata a um tipo concreto “a ser subsumido”,
iguala-se a relevância jurídica à construtibilidade em termos de lógica jurídica, e a ação comunitária dos homens
à “aplicação” e “execução” de normas jurídicas abstratas ou a uma infração das mesmas”. Müller, Friedrich.
Teoria estruturante do direito. p. 17.
59
diferenciou norma e realidade como polaridades abstratas, e jamais os investigou de forma
diferenciada como partes integrantes da estrutura da normatividade jurídica. A relação entre
norma e realidade, ser e dever-ser, sempre foi relegada ao campo de estudos da filosofia do
direito, em detrimento de uma sua consideração a partir da teoria da norma jurídica.
Mesmo as correntes críticas ao positivismo jamais propuseram o direcionamento
do problema direito e realidade para o âmbito da teoria da norma. O máximo que fizeram foi
propugnar para a atividade prático-decisória a necessária mediação entre norma e realidade,
sem conseguir, porém, responder de que forma esta mediação deveria ocorrer. Apesar dos
constantes apelos, não se conseguiu desenvolver uma metódica consciente, que transpusesse
para a realidade da vida a sua intenção programática. Nos dizeres de Müller, não houve
resposta à questão decisiva: “a quais passos individuais, controláveis da decisão jurídica
prática, podem referir-se metáforas como “dialética”, polaridade”, “atribuição
correlativa”?”
171
. Enquanto isso os Tribunais defrontavam-se (e defrontam-se!) com questões
concretas sem ter, ao seu dispor, mais do que posições genéricas em termos de método
172
.
No intuito de superar a vagueza das posições metódicas partidárias da concepção
de norma como puro dever-ser, Müller proporá uma compreensão da norma já orientada aos
métodos, porque capaz de diferenciar a estrutura da norma e da normatividade. A
“compreensão de norma orientada aos métodos” será melhor esclarecida quando for
170
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 16. Jan Schapp aponta a relevância da problemática da
distinção entre ser e dever-ser tanto para autores que sustentam a imprescindibilidade da contraposição, quanto
para autores (como Müller) que a criticam: “A metodologia jurídica ainda hoje vem marcada, em grande parte,
pela distinção kantiana entre ser e dever-ser. Esta distinção não é apenas determinante para os autores que a
usam como base de suas construções, ela influencia até mesmo autores que a discutem criticamente”. Cf.
Schapp, Jan. Problemas fundamentais da metodologia jurídica. trad. Ernildo Stein. Porto Alegre. Sergio Antonio
Fabris Editor, 1985. p. 33.
171
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. pp. 39-40. Sobre a vaguidade dos apelos à relação recíproca
entre direito e realidade e os perigosos reflexos para a jurisprudência, afirma o autor: “A jurisprudência prática
comprova que a “ação recíproca” é uma noção muito imprecisa e que espaço a todo processo possível de
interpretação, por ser uma idéia formal e indefinida quanto às possibilidades e limites”. Cf. Müller, Friedrich.
Teoria estruturante do direito. p. 107. É de se ressaltar que Müller estende as mesmas críticas para a desgastada
“dialética”, “quando ela não é explicitada de modo responsável, mas aparece como metáfora aleatória (...)”. Cf.
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 107.
172
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. pp. 40-41; Müller alerta que enquanto não for investigada a
estrutura da normatividade e a norma for concebida como puro “dever-ser” que se confronta com o “ser”, os
problemas metódicos continuarão sem solução. Nas palavras do Autor: “Enquanto uma teoria da (norma)
jurídica não incluir inteiramente na investigação da estrutura da norma a estrutura da “coisa” normatizada, a
norma no fundo sempre confrontar-se-á ao “ser” como um dever-ser”; será concebida como uma estrutura
autônoma e independente da realidade, uma estrutura que está em conexão com a realidade apenas de modo
genericamente teórico-jurídico, mas que em suas especificidades, e bem assim para os problemas metódicos,
permanece em aberto”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 106.
60
observada a inter-relação entre a teoria estruturada da norma jurídica e a metódica
estruturante.
Importa dizer, por ora, que Müller concluiu que o enfoque indagativo entre norma
e realidade necessitava ser modificado, pois os problemas metodológicos observados na
práxis deixavam claro que provinham de uma noção “irrealista” da norma jurídica
173
. A teoria
estruturante de direito operacionalizou a necessária mudança de perspectiva investigativa, ao
questionar, em vez de norma” e “fato”, a estrutura da normatividade jurídica, tal como se
apresentava na aplicação prática do Direito”
174
. O ponto de partida da teoria da norma de
Müller parte da recusa da contraposição entre ser e dever-ser, entre a norma e a realidade a
que ela se dirige.
Müller se propõe a acabar com a concepção tradicional que defende a
contraposição absoluta entre ser e dever-ser
175
, integrando-os na teoria da norma jurídica. Ao
deslocar a pergunta acerca da relação entre norma e realidade para o âmbito da teoria da
norma, a teoria estruturante do direito termina por refutar tais abstrações. Não se trata de
simplesmente deslocar ou maquilar o problema em termos lingüísticos. Nas palavras de
Müller: “O reencaminhamento da pergunta à teoria da norma, aos fundamentos de uma
concretização de direito instituído, não se concebe como tentativa adicional de mediação entre
dever-ser e ser, mas como enfoque indagativo que não admite tais abstrações”
176
. De fato, não
se trata de, uma vez mais, proclamar a dialética entre direito e realidade, norma e fato, mas de
tratar esta questão como problema da estrutura da norma e da normatividade.
A alteração da concepção de norma jurídica se reflete, em termos constitucionais,
na problemática da relação entre texto e realidade constitucional. Sob a ótica da teoria
estruturada da norma jurídica, o debate secular em termos de teoria constitucional torna-se
manifestamente simplificador. Isto porque Müller reputa como improdutiva do ponto de vista
da norma a compreensão da Constituição como pura relação de tensão dos fatores sociais
177
.
173
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
274.
174
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
175
Nos dizeres de Müller: “(...) eu devia acabar com o conceito “tradicional” da norma, que consiste em dizer:
primeiramente as normas não passam de “dever-ser”. Elas não m nada a ver com “o ser” ao contrário, elas
devem se sobrepor “sobre” os fatos do “ser” com o objetivo de dominá-los. A oposição “ser-dever-ser” é a
própria base do direito (e, diga-se de passagem, de todas as outras normas, também)”. Müller, Friedrich. O novo
paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 274.
176
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 44.
177
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 96.
61
Para Müller, a contraposição abstrata entre constituição e realidade constitucional deriva da
equivocada compreensão da norma do positivismo jurídico, incapaz de diferenciar a estrutura
da norma da normatividade:
(...) a questão sobre “direito e realidade” ou sobre “constituição e
realidade constitucional” não tem nenhum sentido teórico-normativo,
enquanto não âmbitos normativos, mas também recortes das
estruturas fáticas contrários ou indiferentes às normas forem
indistintamente apreendidos sob a noção de realidade
178
.
No âmbito da teoria estruturante do direito a relação entre texto e realidade
constitucional dá-se como concretização das normas constitucionais
179
. A relação entre texto
e realidade constitucional dinamiza-se na estruturação da norma jurídica, isto é, através do
trabalho jurídico que efetiva na práxis a validade das normas. A constituição é, pois, um
elemento de trabalho do processo de concretização. Müller considera a Constituição
180
um
dado de linguagem, ao passo que o processo de concretização é um processo de linguagem.
Constituição e sua concretização estão vinculadas integrativamente
181
.
A partir da integração de ser e dever-ser na norma jurídica, a realidade
constitucional passa a compor a estrutura da norma
182
. Desta forma, não se pode simplesmente
falar na contraposição abstrata da constituição à realidade constitucional. A integração de
texto e realidade constitucional será efetuada no momento de construção da norma jurídica,
durante o processo de concretização. Conforme alerta Marcelo Neves, “não se trata (...) da
antiga dicotomia ‘norma/realidade’, mas sim do problema referente à concretização das
normas constitucionais, que, nessa perspectiva, não se confundem com o texto
constitucional”
183
. Ao integrar direito e realidade na estrutura da norma jurídica, a relação
178
Cf. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 222; Sobre a tentativa de Friedrich Müller de superar
o dualismo entre texto e realidade constitucional a partir de uma nova teoria da norma jurídica, assim se
manifesta Paulo Bonavides: “Em verdade, a exaustiva perquirição de Müller busca evitar o hiato, a separação, a
antinomia das duas constituições a formal e a material bem como aquele conhecido confronto da realidade
com a norma jurídica. É esse dualismo que a metodologia concretista, ao tornar fática a norma, se empenha com
maior afinco por evitar”. Cf. Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. pp. 457-458.
179
A parcela da realidade que ingressa na estrutura da norma jurídica possui caráter jurídico. Segundo Müller: “a
contínua caracterização da realidade como uma grandeza extrajurídica aponta para a separação (...) entre ser e
dever-ser”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 103.
180
Segundo Müller: “a “constituição” é de qualquer modo o texto, corretamente posto em vigor e ainda não
invalidado legalmente, do documento que se apresenta como codificação hierarquicamente suprema em nível
intra-estatal”. Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes
do direito. p. 146.
181
Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito.
pp. 144-147.
182
O modo como a realidade irá compor a estrutura da norma jurídica será abordado no momento devido.
183
Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994. pp.76-77.
62
entre texto e realidade constitucional dá-se no processo de concretização que visa à
construção da norma jurídica. Segundo Neves tem-se que: “sob esse novo ponto de vista, o
texto e a realidade constitucionais encontram-se em permanente relação através da
normatividade constitucional obtida no decurso do processo de concretização”
184
.
Como visto, a problemática compreensão da norma jurídica enquanto puro dever-
ser propôs a questão de uma definição mais adequada da relação entre direito e realidade, a
ser buscada na direção de uma teoria sustentável da norma jurídica
185
. Em face do problema
Müller propõe a norma jurídica como uma noção composta entre ser e dever-ser (de dados
lingüísticos e de dados reais), a se estruturarem na concretização prática.
Convém agora investigar como se relaciona o conceito mülleriano de norma
jurídica e o conceito de normatividade, cujas primeiras pistas foram fornecidas por Neves,
ao abordar a problemática da relação texto e realidade constitucional; trata-se de investigar em
que medida a insurgente teoria estruturada da norma jurídica influenciou a reformulação do
conceito de normatividade, e de que forma isso possibilitou a diferenciação entre norma e
texto normativo.
2.4 Normatividade, norma e texto da norma
Segundo Müller, a contraposição estrita entre ser e dever-ser, norma e realidade,
correspondeu metodologicamente, a contrario sensu, à equiparação entre norma e texto da
norma
186
. Como conseqüência da superação da distinção entre ser e dever-ser, a teoria
estruturada da norma jurídica parte do pressuposto da não identidade entre norma e texto
normativo
187
. O texto da norma não se confunde com a norma jurídica. Na lição do jurista de
184
Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica. p. 77; No mesmo sentido disserta João Maurício
Adeodato: “a tese de Müller é que o texto e a realidade estão em constante inter-relação e que esta inter-relação,
seja mais seja menos discrepante, é que vai constituir a norma jurídica”. Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e
retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 239.
185
Muller critica a concepção da norma jurídica como “juízo hipotético transformado em proposição de lógica
formal, como ordem a ser igualada ao seu texto lingüístico, como premissa maior a ser tratada segundo as regras
silogísticas (...)”. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 22.
186
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 10.
187
A distinção teórica entre norma e texto da norma nem sempre vem acompanhada de preocupações metódicas
consistentes, no sentido da racionalização do processo de criação da norma jurídica (e da norma de decisão). É
de se observar que diversos autores subscrevem a distinção entre norma e texto da norma, sem, contudo, adotar a
metódica estruturante. Sobre a distinção entre norma e texto da norma na bibliografia científica brasileira ver:
Grau, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. pp.
84-86; Barroso, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004; Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m)
crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4ª Ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003.
63
Heidelberg a norma jurídica não preexiste nos códigos e nas leis. O que se na Constituição
Federal, por exemplo, são simples formas preliminares, textos de normas, e não normas
jurídicas
188
. Como foi dito, a “constituição” é simplesmente um dado de linguagem. Um
elemento de trabalho do processo de concretização. A “norma constitucional” surge no
processo de concretização. Em frase que se tornou um lugar comum, Müller assevera que
“o teor literal de uma prescrição juspositiva é apenas a ponta do iceberg”
189
. Isto porque e
conforme se veo texto, como dado lingüístico, é considerado elemento pertinente apenas
à formulação do programa da norma (Normprogramm). No âmbito da teoria estruturada da
norma a “positividade do direito não é idêntica à positividade dos textos normativos”
190
.
Em contraposição ao modelo estático do positivismo jurídico, Müller desenvolve
um modelo dinâmico da gênese da norma jurídica; a propriedade do direito ter sido produzido
por autoridade competente, segundo o procedimento previsto em lei, não permite, ipso facto,
que este texto de norma seja identificado a uma norma jurídica. A norma deverá ser
construída através de um processo denominado concretização
191
.
Se a norma não se confunde com o texto, também a normatividade não é uma
decorrência pura e simples do texto da norma, mas é resultado do efetivo funcionamento, do
efetivo reconhecimento e da atualidade específica do ordenamento constitucional em causa
192
.
A normatividade não é uma qualidade “estática”, “dada”, “substancial”, dos textos de normas.
188
Müller deixa claro que a norma jurídica não preexiste nos códigos e nas constituições: “O que se pode ler nos
códigos (e nas constituições) são somente os textos das normas dito de outro modo, textos que ainda devem,
pela concretização [Reichtsarbeit], ser transformados em normas jurídicas”. Cf. Müller, Friedrich. O novo
paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 274. Acerca do mesmo tema,
assevera Müller em outras paragens: “Quando os juristas falam e escrevem sobre “a” constituição referem-se ao
texto da constituição; quando falam “da” lei, referem-se ao seu teor literal”. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de
trabalho do direito constitucional. p. 53; João Maurício Adeodato também sublinha a relação entre norma e
texto de norma, norma geral e norma individual, sinalizando diferenças entre a teoria estruturante do direito e a
teoria pura do direito: “Quer dizer, não só a norma do caso concreto é construída a partir do caso, mas também a
norma aparentemente genérica e abstrata, ou seja, a norma geral não é prévia, o seu texto o é. A norma geral
não existe, é uma ficção”. Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica.
p. 239.
189
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 53.
190
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 209; Conforme sustenta Bonavides: “A autoridade do
costume e sua qualidade jurídica, que ninguém acha em textos ou que pelo menos destes não deriva, é também
invocada para sustentar a não-identidade da norma com o texto normativo”. Cf. Bonavides, Paulo. Curso de
direito constitucional. p. 462.
191
O significado do termo concretização, para a teoria e metódica estruturantes, será abordado em seguida.
192
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 54.
64
A normatividade é dinâmica; manifesta-se em decisões práticas. Ela decorre do processo de
concretização, realizado segundo os ditames do Estado de Direito e da democracia
193
.
Em outras palavras, a normatividade confirma-se apenas na determinação de
questões jurídicas concretas, com o que adquire eficácia
194
. A afirmação de que a
normatividade não se contém no texto da norma, mas decorre da práxis, é constatável ao
observarmos que as decisões elaboradas, publicadas e fundamentadas pelos Tribunais se
servem de outras fontes que não a lei, isto é, de precedentes, dos costumes, do Direito
Comparado, de livros e estudos jurídico-dogmáticos “quer dizer, com a ajuda de numerosos
textos que não são idênticos ao e transcendem o teor literal da norma”
195
.
Ademais, a normatividade não é uma propriedade dos textos de normas, porque a
norma jurídica não é formada apenas por dados lingüísticos, mas também por dados reais.
Como foi visto, Müller propõe a norma jurídica enquanto noção composta de ser e dever-
ser, de dados lingüísticos e de dados reais. A inter-relação entre ser e dever-ser na norma
jurídica manifesta-se no conceito de normatividade. Segundo Müller: normatividade designa
a qualidade dinâmica de uma norma assim compreendida, tanto de ordenar à realidade que lhe
subjaz – normatividade concreta – quanto de ser condicionada e estruturada por essa realidade
– normatividade materialmente determinada”
196
. Ao tempo em que a norma influencia a
realidade a que se dirige, é por ela influenciada e estruturada. Há, portanto, uma relação de
circularidade entre norma e caso, norma e realidade
197
.
Se a norma não se confunde com o texto, mas exsurge apenas no processo de
concretização, se o operador do direito é peça fundamental neste processo, torna-se patente a
temporalidade inerente à normatividade. A realidade histórico-social é condição constitutiva
da norma e da sua normatividade.
193
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
146.
194
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 61.
195
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 55.
196
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 15.
197
J.J. Gomes Canotilho também enfatiza a normatividade concreta e normatividade materialmente determinada.
Segundo o Prof. português: “As normas constitucionais, como quaisquer normas jurídicas, procuram regular a
vida e são por esta constituídas”. Cf. Canotilho, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.
Ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1118.
65
2.5 Concretização e Interpretação: o problema jurídico como concretização de normas
em vez de interpretação de textos de normas
Um dos problemas que o presente trabalho se dispõe a analisar é de que forma a
mudança epistemológica na concepção da norma jurídica, levada a efeito pela teoria e
metódica estruturantes, reflete na interpretação e na aplicação do direito. Já se evidenciou
que a superação da distinção entre ser e dever-ser, teve como conseqüência, para a teoria da
norma, a afirmação da não identidade entre norma e texto normativo. Igualmente se tornou
patente que a normatividade não está presente no texto da norma, mas manifesta-se
concretamente.
Analisar-se-á, agora, de que forma a nova compreensão da norma jurídica –
enquanto unidade estruturada entre ser e dever-ser modifica o sentido da interpretação e da
aplicação do direito. Uma diferença pode desde ser apontada: enquanto a hermenêutica
tradicional denominava o processo prático-decisório como aplicação do direito”, para a
teoria e metódica estruturantes o que está em jogo é a concretização do direito”. Conforme
ser verá, não se trata de um mero jogo de palavras.
O positivismo jurídico ao identificar norma e texto de norma apresentava a tarefa
prático-decisória como um procedimento de dedução lógica
198
. O juiz decidiria à maneira
silogística “subsumindo o caso jurídico aos conceitos de uma norma jurídica previamente
dada”
199
. A identificação da norma com o texto (a norma seria formada por dados
exclusivamente lingüísticos) proporcionou o entendimento da atividade decisória como
meramente declaratória. O problema da “interpretação”, ou da “interpretação e aplicação do
direito”, consistiria num problema puramente hermenêutico (em saber o que significativo-
textualmente consta, e.g., da lei)
200
.
198
Müller julga improvável a utilização da lógica formal para a resolução dos casos concretos. As prescrições
jurídicas, devido ao seu caráter lingüístico, não oferecem, na maioria dos casos, nenhum ponto de partida para
operações exatas de lógica formal. Nos dizeres de Müller: “os teores jurídico materiais nem de longe estão
“contidos” nos elementos lingüísticos das normas jurídicas, por sua natureza necessariamente imprecisos, de tal
modo que poderiam ser transformados em momentos de conclusões lógicas”. Cf. Müller, Friedrich. Teoria
estruturante do direito. p. 47.
199
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
148. Como esclarece Ralph Christensen, no modelo positivista, “a atividade do jurista gravita em torno do pólo
fixo da norma jurídica dada como orientação prévia”. Cf. Christensen, Ralph. Teoria estruturante do direito. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 234.
200
Castanheira Neves, Antonio. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora,
1993.p. 83
66
A teoria e metódica estruturantes, ao contrário, consideram a atividade decisória
um problema prático-normativo. A não-identificação da norma com o texto, e a
imprescindibilidade do caso (seja real ou fictício) que contribuirá com a inserção dos dados
reais na norma jurídica –, faz como que a teoria estruturante rejeite uma “interpretação
aplicadora” do texto normativo. Como nos diz Castanheira Neves, Müller reconhece a
prioridade metódica do caso, a inafastabilidade do caso para a concretização do direito. A
norma jurídica não é dependente do caso, mas refere-se a ele
201
. Ambos (norma e caso)
fornecem os elementos necessários à decisão jurídica. A teoria de Müller está inserida num
contexto onde:
o problema da interpretação jurídica não é hermenêutico, mas
normativo. Daí que o objeto em causa há de ser correlativo a esta
índole do problema, sendo certo que o problema interpretativo vai
implicado pela natureza prático-normativa do caso a resolver com
apoio na solução desse problema. Por outras palavras, o objeto
normativo interpretando não poderá ser um objeto meramente
significante, mas um objeto suscetível de oferecer um critério
normativo para a solução judicativa do caso decidendo. E então o
objeto da interpretação não será o texto das normas jurídicas,
enquanto expressão ou o corpus de uma significação a compreender e
a analisar, mas a normatividade que essas normas, como critérios
jurídicos, constituem e possam oferecer
202
.
Ao investigar a estrutura da normatividade jurídica, a teoria estruturante do direito
se conta de que a norma jurídica também é composta por dados reais
203
. Assim, o processo
prático-decisório não se reduz a um trabalho puramente hermenêutico, pois a norma jurídica
não é um dado exclusivamente lingüístico. Não se trata, portanto, de simplesmente descobrir
o significado textual das palavras da lei, o que ensejaria uma posterior “interpretação
aplicadora” do texto normativo
204
.
201
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 61.
202
Castanheira Neves, Antonio. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. p. 143.
203
João Maurício Adeodato enfatiza brilhantemente as razões que levam Müller a propor a diferença entre a
tradicional “interpretação e aplicação do direito” e a sua “concretização”. Segundo o Autor: “O procedimento
genérico através do qual se procura adequar normas e fatos e decidir, tradicionalmente conhecido por
“interpretação ou “interpretação e aplicação do direito”, Müller denomina “concretização da norma”
(Normkonkretisierung), procurando justamente afastar-se da hermenêutica tradicional e determinar mais
precisamente seus conceitos e procedimentos. Nessa tarefa insiste que concretização não significa silogismo,
subsunção, efetivação, aplicação ou individualização concreta do direito a partir da norma geral”. Cf. Adeodato,
João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 240; Cf. Castanheira Neves, Antonio.
Metodologia jurídica: problemas fundamentais. p. 83; Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
204
Neves, Marcelo. A constituição simbólica. p. 77.
67
Dito isso, importa dizer que a metódica estruturante não despreza a importância da
interpretação. Entretanto, ao distinguir a “aplicação” da “concretização”, Müller conferiu à
“interpretação” uma função específica, restrita. Na metódica estruturante a interpretação do
teor literal da norma é somente um dos elementos da concretização (certamente um dos mais
importantes)
205
. Müller deixa claro que a norma jurídica não está no texto, e que mera
futuridade dos casos jurídicos torna imprescindível a interpretação:
Uma norma não é (apenas) carente de interpretação porque e à medida
em que ela não é “unívoca”, “evidente”, porque e à medida que ela é
“destituída de clareza” mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a
um caso (real ou fictício). Uma norma no sentido da metódica
tradicional (isto é: o teor literal da norma) pode parecer “clara” ou
mesmo “unívoca” no papel, já o próximo caso prático ao qual ela deve
ser aplicada pode fazer que ela se afigure extremamente “destituída de
clareza”. Isso se evidencia sempre somente na tentativa efetiva de
concretização. Nela não se “aplica” algo pronto e acabado a um
conjunto de fatos igualmente compreensível como concluído. O
positivismo legalista alegou e continua alegando isso. Mas “a” norma
jurídica não está pronta nem “substancialmente” concluída
206
.
Se a interpretação mantém um específico status funcional na teoria e metódica
estruturantes, o mesmo não se pode dizer da “aplicação”. A metódica estruturante rejeita
firmemente o conceito positivista de “aplicação do direito”. A norma não pode ser
simplesmente aplicada, porque não está pronta e nem substancialmente acabada. Sob o ponto
de vista teórico, trata-se de uma impossibilidade lógica. Como se deixou assentado, a
norma jurídica será construída pelo operador do direito no decorrer do processo de
concretização. Não pode, assim, ser aplicada silogisticamente.
Se a teoria e metódica estruturantes descartam o termo “aplicação” em favor da
“concretização”, convém explicitar o significado do termo. À luz da teoria estruturante
concretizar não significa em nenhuma hipótese “interpretar, aplicar, subsumir
silogisticamente e concluir”
207
. Ao contrário, concretizar significa: produzir diante da
205
Isto porque “(...) não é apenas a injunção de dever-ser, que contribui para a decisão do caso, mas também, a
parcela da realidade social relacionada com a norma, o âmbito da norma”. O âmbito da norma será abordado a
seguir. Cf. Müller, Friedrich. Apud Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
206
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 61-62.
207
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
150.
68
provocação pelo caso de conflito social, que exige uma solução jurídica, a norma jurídica
defensável para esse caso no quadro de uma democracia e de um Estado de Direito”
208
.
Superada a querela entre aplicação e concretização, que se dizer mais algumas
palavras sobre as diferenças funcionais entre a interpretação e a concretização. Como foi
dito, a interpretação é somente um dos elementos da concretização. A “interpretação” tem
sentido mais restrito, pois diz respeito às possibilidades de tratamento do texto, isto é, a
interpretação dos textos de normas. Se a norma jurídica é mais do que o texto da norma, logo
a concretização prática da norma é mais do que a interpretação do texto. A concretização da
norma transcende, pois, a mera interpretação do texto. Paulo Bonavides oferece oportuno e
definitivo esclarecimento ao dizer que: “em relação à interpretação a concretização possui um
raio de abrangência muito mais largo, sendo que a respectiva metódica abraça todos os meios
de trabalho mediante os quais se chega a concretizar a norma e a realizar o direito”
209
.
A assertiva de Bonavides, além de reafirmar que a concretização transcende a
interpretação, traz outro dado importante; a concretização envolve uma respectiva
“metódica”. Trata-se aqui, evidentemente, da metódica estruturante (um dos elementos que
compõem a teoria estruturante do direito). De fato, a teoria da norma jurídica de Müller possui
intrínseca inter-relação com a sua metódica estruturante
210
. Tanto é assim que Robert Alexy,
em inspirada metáfora, afirma que a teoria estruturante da norma jurídica e a metódica
estruturante são duas faces da mesma moeda
211
. O próprio Friedrich Müller assim o confirma:
“Para esse conceito (estruturante do direito) a teoria (da norma) jurídica e a metodologia
jurídica estão necessária e concretamente ligadas entre si, antes mesmo que seu fundamento
na Constituição e que seus efeitos na dogmática jurídica fossem tomados em consideração”
212
.
208
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
150.
209
Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 456; Analogamente, afirma Adeodato: “A
“interpretação”, para Müller um conceito mais restrito, é construída pelas possibilidades de trato jurídico,
inclusive filológico, com os textos, ou seja, reduz-se a uma interpretação de textos normativos. Mas, como a
norma jurídica é mais do que o texto, a concretização vai muito além da interpretação”. Cf. Adeodato, João
Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 240.
210
Em uma linguagem convencional, com a sua teoria da “aplicação do direito”.
211
Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 79.
212
Müller, Friedrich. Strukturierende Rechtslehre. p. 225 apud Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich
Müller - Método jurídico sob o paradigma pós-positivista. In: Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito:
introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 257.
69
A teoria da norma jurídica e a metódica são inseparáveis (“concretamente ligadas
entre si”), porque a norma jurídica resulta do processo de concretização, isto é, resulta do
processo metódico de concretização. A teoria estruturada da norma e a metódica estão
jungidas, pois o processo de construção da norma jurídica de tomada de decisão é regido
pela metódica. A norma jurídica é criada sob o fio condutor da metódica, que busca
proporcionar a racionalidade que se espera no Estado Democrático de Direito.
Castanheira Neves afirma expressamente que a concretização de Friedrich Müller
envolve a necessária inter-relação entre a teoria estruturante da norma jurídica e a metódica
estruturante do direito. A complexidade da teoria da norma de Friedrich Müller (um projeto
que abarca tanto dados lingüísticos como dados reais) tem como corolário a consideração do
problema metodológico como um problema de concretização das normas jurídicas. Nas
palavras do eminente jurista português:
Operando com as distinções entre “texto normativo” (Normtext) e
“norma” (a normatividade concreto-material obtida pela estruturada
concretização) (...) F. Müller pensa o concreto judicium jurídico como
o resultado de um constitutivo processo normativo de concretização,
que mobiliza estruturalmente (num processo ou “método
estruturante”) um conjunto de fatores ou elementos metódicos
jurídicos (“elementos de concretização”), a mais do texto normativo
ou dos elementos hermenêuticos: elementos dogmáticos, elementos do
respectivo domínio objetivo, elementos jurídico-teóricos, técnico-
jurídicos, etc. Daí que o problema metodológico seria hoje de
“Normkonkretisierung statt Normtextauslegung” (concretização de
normas em vez de interpretação de textos de normas)
213
.
Como restou assentado, a teoria e metódica estruturantes rejeitam a “interpretação
aplicadora” do direito em favor do processo de concretização. O fato da norma não estar
pronta impede uma sua mera aplicação lógico-dedutiva. A diferença entre norma e texto de
norma permite dizer com Olivier Jouanjan que “a norma não é o ponto de partida da
concretização, mas o seu resultado”
214
. Este processo, porém, apenas se torna inteligível a
partir da compreensão de um dado prévio: a estrutura da norma jurídica proposta por Müller.
Segundo o jurista de Heidelberg, a estrutura da norma jurídica será formada pelo programa da
norma (dados lingüísticos) e pelo âmbito da norma (dados reais)
215
. Da conjugação recíproca
213
Castanheira Neves, Antonio. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. p. 145.
214
Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller todo jurídico sob o paradigma pós-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 257.
215
A estrutura da norma jurídica será abordada em detalhes a seguir.
70
destes dois elementos será formada a norma jurídica e a posterior norma de decisão. Importa,
por ora, começar a investigar os elementos constitutivos da norma jurídica.
2.6 Conceitos prévios: dados lingüísticos (Sprachdaten) e dados reais (Realdaten)
Como visto até agora, Friedrich Müller refuta a contraposição absoluta entre ser e
dever-ser. A teoria da norma jurídica proposta por ele parte do pressuposto da não-identidade
entre norma e texto normativo. A norma jurídica não é mero texto, razão pela qual o processo
de concretização não é puramente cognitivo. Ao contrário. A norma jurídica é formada por
dados lingüísticos (Sprachdaten) e por dados reais (Realdaten). A originalidade da teoria da
norma jurídica de Müller reside sobretudo na inclusão dos dados reais no processo decisório
de maneira controlada, isto é, metódica. Convém, assim, analisar no que consistem os
denominados “dados lingüísticos” e “dados reais”.
A teoria estruturante trabalha com “dados lingüísticos” e “dados reais”. Segundo
Adeodato, eles formam os dados “brutos”, pré-jurídicos e, portanto, prévios ao início do
processo de concretização
216
. Na terminologia técnica desenvolvida, os dados lingüísticos
(Sprachdaten), são formados pelos aspectos ou pontos de vista da interpretação
primariamente baseados na linguagem (e.g., aspectos da interpretação gramatical, sistemática,
genética)
217
. Estes pontos de vista primacialmente lingüísticos serão responsáveis pela
posterior formação do “programa da norma”.
De outro lado, os dados reais (Realdaten), são aqueles elementos da realidade que
enquanto fatos naturais ou sociais não são primariamente lingüísticos, mas que deverão ser
obrigatoriamente mediados pela linguagem, a fim de que a ciência jurídica possa trabalhá-los.
Os dados reais são, portanto, aqueles dados secundariamente lingüísticos, e que num segundo
momento constituirão o ‘âmbito da norma”
218
.
2.7. O início do processo de concretização: o texto da norma e o caso como elementos
propulsores do processo de concretização
De posse destes conceitos prévios, é possível analisar de que forma se desenvolve
o dinâmico processo de gênese concretização da norma jurídica. O processo de
216
Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 241.
217
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. trad. Olivier Jouanjan. Paris: Press Universitaires de
France, 1996. pp. 44; 346.
71
concretização parte tanto do caso quanto do texto da norma democraticamente criada pelo
legislador. O texto da norma fornecerá os elementos lingüísticos, ao passo que o caso
fornecerá os elementos reais. Da específica inter-relação entre elementos lingüísticos e
elementos reais será formada a norma jurídica e a posterior norma de decisão.
O texto da norma é o dado de entrada/input do processo de concretização, ao lado
do caso a ser solucionado juridicamente. O caso e os textos de normas a ele pertinentes
propiciam o início do processo de concretização. A norma jurídica não pode, portanto, ser
criada sem uma prévia referência aos casos. Müller enfatiza a relação norma/caso, ao dizer:
Não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela
regulamentado nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo
distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão
jurídica. Cada questão jurídica entra em cena na forma de um caso real
ou fictício
219
.
Pois bem. Deve-se esclarecer, desde já, que a aventada inclusão dos dados reais
na norma jurídica não significa uma sua prevalência em relação ao texto da norma. A
consideração dos elementos reais não acarreta em casuísmo ou condescendência com a “força
normativa do fático”. A metódica estruturante não permite que todos os dados reais ingressem
no processo de concretização, mas somente aqueles relevantes. Como nos diz Müller “só
fatos relevantes para o programa da norma e fatos conformes ao programa da norma podem
codeterminar o conteúdo da decisão”
220
. Importa analisar, por ora, como se inicia o processo
de “filtragem” dos dados reais.
O operador do direito que pretenda solucionar um caso normalmente se depara
com o “relato do caso” (Fallerzählung)
221
feito pelo leigo englobando todas as circunstâncias
fáticas efetivamente ocorridas, bem como (e porventura) aspectos de natureza social, política,
psicológica, etc
222
. Cabe ao operador do direito transformar o “relato do caso(Fallerzählung)
218
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. pp. 44-45; 346.
219
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 63.
220
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
154.
221
João Maurício Adeodato traduz a expressão “Fallerzählung” por “relato do caso”. Cf. Adeodato, João
Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 242; Olivier Joaunjan, na edição francesa,
fala em “version profane du cas juridique (Le récit de l’espèce)”. Cf. Müller, Friedrich. Discours de la méthode
juridique. p. 45.
222
João Maurício Adeodato fornece uma gama de exemplos que ajudam na conceitualização do chamado “relato
do caso”: “O relato do caso é a maneira pela qual o caso em questão chega ao conhecimento do profissional de
direito: “esta mulher sempre foi muito apaixonada pelo marido”; “ela dependia emocional e financeiramente
dele”; “esta mulher se comportava de maneira estranha, assim e assado”; “esta mulher adora roupas coloridas”;
72
nas “circunstâncias do caso” (Sachverhalt)
223
. Esta passagem é promovida pelo operador do
direito, mediante os seus conhecimentos e a sua pré-compreensão jurídica. Ele será o
responsável pela filtragem e pelo descarte daqueles fatos e circunstâncias que julga
irrelevantes para a posterior concretização jurídica. De fato, nem todos os fatos trazidos pelo
leigo serão pertinentes, eis que nem sempre este possui uma correta compreensão do sistema
jurídico.
O processo de concretização continua no caminhar das circunstâncias do caso”
(Sachverhalt) para o “âmbito da matéria” (Sachbereich)
224
. O âmbito da matéria”
(Sachbereich) será o produto do confronto das “circunstâncias do caso” (Sachverhalt) –
aqueles fatos que passaram pelo filtro de juridicidade do profissional do direito com as
hipóteses de textos de normas válidos a ele relacionáveis. Ou seja, diante das “circunstâncias
do caso” (Sachverhalt), o operador do direito entende que são pertinentes os textos de normas
X,Y, ou Z. É dessa relação entre hipóteses de textos válidos e as “circunstâncias do caso” que
se chega ao “âmbito da matéria” (Sachbereich). Note-se que enquanto a passagem do “relato
do caso” (Fallerzählung) para as “circunstâncias do caso” (Sachverhalt) é realizada tão
somente a partir da pré-compreensão do operador do direito, a passagem das “circunstâncias
do caso” para o “âmbito da matéria” (Sachbereich) envolve textos de normas válidos.
A última etapa não-normativa do processo de concretização ocorre com a criação
do “âmbito do caso” (Fallbereich)
225
. Após a determinação das hipóteses de textos de normas
“ela comprou revólver e balas no dia tal”; “este homem comportava-se como se fosse abandoná-la”; “este
homem levou um tiro no peito”; “ele tinha muitos amigos e torcia pelo Sport Clube”; e assim por diante”. Cf.
Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 242; Cf. Santos, Rodrigo
Mioto dos. Método, racionalidade e legitimidade da decisão judicial: uma análise a partir da teoria estruturante
de Friedrich Müller. p. 62.
223
Peter Naumann, na obra “Direito, linguagem e violência”, traduz a expressão “Sachverhalt” como
“circunstâncias do fato”. Cf. Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional
I. p. 17; João Maurício Adeodato utiliza a expressão “circunstâncias da matéria”. A edição francesa fala em
“circonstances de l’espèce”. Como o presente trabalho não utiliza o original Juristische Methodik, mas sim a
versão francesa Discours de la méthode juridique”, preferiu-se traduzir a expressão “Sachverhalt” por
“circunstâncias do caso”. No mesmo sentido: Santos, Rodrigo Mioto dos. Método, racionalidade e legitimidade
da decisão judicial: uma análise a partir da teoria estruturante de Friedrich Müller.
224
Rodrigo Bornholdt em algumas passagens de sua obra traduz a expressão “Sachbereich” por “âmbito da
realidade”. Cf. Bornholdt, Rodrigo Meyer. Métodos para Resolução do conflito entre direitos fundamentais. p.
46; Peter Naumann traduz “Sachbereich” por “âmbito da coisa”. Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do
direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 149. Adotamos a definição de João Maurício
Adeodato: “âmbito da matéria”. Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática
jurídica. p. 246
225
Rodrigo Bornholdt também discorre sobre a importância da determinação do “âmbito do caso” (Fallbereich).
Segundo o autor: “O “âmbito do caso” consiste na parcela da realidade relevante para o trabalho de
concretização. É, portanto, por meio dele que o operador jurídico se pode desvencilhar da infinitude de
possibilidades oferecidas pela realidade. Implica ele uma redução, por razões de economia, do âmbito da
73
pertinentes, o operador do direito, por economia de trabalho, reduz ainda mais os aspectos
factuais que julga convenientes em vista dos textos, dando origem ao denominado “âmbito do
caso” (Fallbereich)
226
.
Com a elucidação do “âmbito do caso” (Fallbereich), começa propriamente o
momento normativo do processo de concretização, que se estabelecerá com a determinação do
programa da norma (Normprogramm), e do âmbito da norma (Normbereich). O programa
normativo e o âmbito normativo compõem a norma jurídica (Rechtsnorm) (ainda geral e
abstrata), que ao final do processo de concretização dará lugar à norma de decisão
(Entscheidungsnorm). A estrutura da norma programa da norma e âmbito da norma e a
caracterização da “norma jurídica” e da “norma de decisão” serão precisadas a seguir.
É preciso dizer, ao final, que nem todos os passos acima citados terão de ser
necessariamente percorridos. Tudo dependerá da complexidade do caso que se apresenta
227
. O
objetivo de Müller ao dividir os passos da concretização é apenas aumentar o número de
justificações e fundamentações, com o propósito de garantir a racionalidade do processo.
Não obstante, convém noticiar a crítica de Böckenförde, amplamente subscrita por
João Maurício Adeodato, acerca dos problemas que cercam os conceitos propostos por
Müller, e quais os reflexos disso para a compreensão da sua obra metódica. Segundo os
autores:
Nunca se sabe se conceitos corriqueiros como normatividade, âmbito
da norma, estrutura da norma, etc. estão sendo propriamente
entendidos. Isso é bem claro, por exemplo, na diferenciação entre o
conceito mais tradicional de Tatbestand, que Muller sempre trata de
legal (gesetzlicher Tatbestand) e Sachverhalt ou Sachbereich. Ou
mesmo o conceito de Normbereich colocado por Müller, que parece
referir o que qualquer advogado chamaria Sachverhalt, tornando
artificial a distinção (...). Tais desvios na linguagem comum e das
realidade, formado, por sua vez, pela soma do texto da norma com os dados da realidade. O âmbito do caso,
filtrado e transformado pelo programa normativo, transmuda-se em âmbito normativo”. Cf. Bornholdt, Rodrigo
Meyer. Métodos para Resolução do conflito entre direitos fundamentais. p. 49.
226
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. p. 45; Adeodato novamente nos fornece preciosos
exemplos acerca da redução de complexidade operada na transformação do “âmbito da matéria” (Sachbereich)
no “âmbito do caso” (Fallbereich): “Nessa fase, no âmbito do caso, o jurista observa o âmbito da matéria
diante daquele caso específico: se a fulana homicida estava mesmo enciumada, bêbeda, quanto havia bebido,
teria sido a ponto de perder a consciência, se maquinou previamente o homicídio, como o fez, com quem
conversou, em que horários, etc. Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática
jurídica. p. 246; Para uma exposição do continuum “circunstâncias do caso” até o “âmbito do caso”, ver: Müller,
Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. pp. 150-152.
227
Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 249.
74
discussões dos juristas provocam um déficit comunicativo, que
funciona como imunização a críticas, por um lado, pois sempre se
pode dizer que o conceito em questão não é exatamente aquele
defendido por ele, mas, por outro, praticamente exclui a possibilidade
de estender sua teoria a círculos, além daqueles que conhecem e
reconhecem seu trabalho
228
.
2.8 A estrutura da norma (Normstruktur): programa normativo (Normprogramm) e
âmbito normativo (Normbereich)
foi investigada a relação da normatividade com a norma e o texto da norma, a
acentuada diferença funcional entre a interpretação e a concretização, os conceitos prévios ao
início do processo de concretização (Sprachdaten e Realdaten), bem como os passos
introdutórios que devem ser dados pelo operador do direito rumo à solução do caso jurídico
que se lhe apresente.
Convém agora analisar a estrutura da norma jurídica tal como proposta por
Friedrich Müller. Já se evidenciou que a norma jurídica é composta por dados lingüísticos e
dados reais. É necessário aprofundar esta inter-relação. A estrutura da norma designa o nexo
entre as partes conceituais integrantes da norma jurídica: o programa da norma
(Normprogramm) e o âmbito da norma (Normbereich). Os referidos dados lingüísticos são
responsáveis pela formação do programa da norma (primeira parte da norma jurídica), ao
passo que os dados reais conformam o âmbito da norma (segunda parte da norma jurídica).
Segue-se à exposição:
2.8.1 O programa normativo (Normprogramm)
Como visto anteriormente, a solução do caso concreto depende primeiramente da
filtragem dos dados reais. O operador do direito, munido de seus conhecimentos técnicos e da
sua pré-compreensão jurídica, deverá caminhar do “relato do caso” (Fallerzälung) até o
“âmbito do caso” (Fallbereich). Realizado o prévio trajeto, “com a ajuda de todos os
elementos de trabalho que são, num primeiro momento, de natureza lingüística, i.e., com a
ajuda dos dados lingüísticos, ele elabora o programa da norma”
229
. O programa da norma não
228
Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 254. A mesma crítica
é reproduzida por Santos. Cf.: Santos, Rodrigo Mioto dos. Método, racionalidade e legitimidade da decisão
judicial: uma análise a partir da teoria estruturante de Friedrich Müller. p. 64.
229
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
151. Conforme acentua Adeodato, “o programa da norma indica os dados lingüísticos (também técnicos)
75
será desenvolvido abstratamente, mas em face do caso. É a partir do caso, concreto ou fictício,
que o operador do direito escolherá os textos de normas válidos que, após serem interpretados
com a ajuda de todos os meios auxiliares disponíveis, se consubstanciarão no programa da
norma
230
.
Na definição de Müller, o programa da norma (Normprogramm) expressa a
“ordem jurídica”, o “comando jurídico”, o impulso de regulamentação inerente a qualquer
norma. Reitere-se: o programa da norma será formado pelo texto da norma, interpretado com
todos os recursos metódicos disponíveis. Estes recursos são representados pelos métodos
tradicionais de interpretação (formulados por Savigny e reformulados por Müller
231
):
gramatical, sistemático, histórico, genético e teleológico; bem como os modernos princípios
da interpretação constitucional: interpretação conforme a constituição, critério de aferição da
correção funcional, etc.
se acentuou que a originalidade da teoria da norma de Müller consiste na
inserção dos dados reais na estrutura da norma jurídica. A pergunta que se coloca é como
estes dados reais são selecionados. Uma primeira barreira contra a seleção arbitrária dos
dados reais é colocada –como visto – pela pré-compreensão jurídica do operador do direito. A
segunda barreira é erguida pelo programa da norma. O programa da norma atua como filtro
dos dados reais que ingressarão no processo de decisão. O programa da norma isto é, o teor
literal mediado pelos recursos metódicos fornecerá as balizas para a seleção dos elementos
reais que irão configurar o âmbito da norma. Apenas os dados reais que se mostrarem
relevantes ao programa normativo serão admitidos. O âmbito normativo (Normbereich)
deverá ser compatível com o programa da norma (Normprogramm). Afasta-se assim uma
normatividade fática pura e simples.
Por fim, deve-se ressaltar que o programa da norma dirige e limita o processo de
concretização admissível no Estado Democrático de Direito. Nos dizeres de ller o
normativamente relevantes”. Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática
jurídica. p. 248.
230
Como visto anteriormente, a norma jurídica não depende do caso, mas refere-se a ele. Se o programa da
norma é parte integrante da estrutura da norma jurídica, também ele necessitará do impulso de um caso para a
sua formulação.
231
Conforme observa Bornholdt: “(...) Müller procura precisar o modus operandi dos elementos de interpretação
sugeridos por Savigny, com o que assumem estes, inclusive quanto à sua definição doutrinária comum,
significação bastante diversa daquela normalmente encontrada entre os operadores do direito”. Bornholdt,
Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. pp. 40-41. As diferenciações,
76
programa da norma será responsável por indicar os espaços de ação metodicamente
domináveis, dentro dos quais o trabalho jurídico se deve legitimar e com base nos quais ele
pode ser controlado e criticado”
232
.
2.8.2 O âmbito normativo (Normbereich)
Segundo Müller o âmbito normativo (Normbereich)
233
expressa o “recorte da
realidade social na sua estrutura básica que o programa da norma “escolheu” para si ou em
parte “criou” para si como seu âmbito de regulamentação”
234
; ele pertence à norma jurídica
com grau hierárquico igual ao programa da norma, e deve ser visto como entidade jurídica e
não extrajurídica. O âmbito normativo é parte integrante da norma jurídica e fator co-
constitutivo da normatividade. A partir dos dados fornecidos pelo “âmbito do material”
(Sachbereich) ou pelo “âmbito do caso” (Fallbereich), o programa da norma destaca o
respectivo “âmbito normativo”, que com ele co-formará a estrutura da norma jurídica.
O âmbito da norma não se identifica com as peculiaridades materiais das
“circunstâncias dos fatos” (Sachverhalt), posto que compõe a estrutura da norma jurídica
235
.
inovações e ordenações na definição e no trato dos elementos de interpretação sugeridos por Savigny serão
abordadas no 3º Capítulo.
232
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 44. A característica
do texto como guia e limitador do processo de concretização enseja a comparação do programa normativo de
Müller com a “moldura” kelseniana. Segundo João Maurício Adeodato: “(...) o texto de toda norma é importante
em sua concretização, pois assume a função de fixar os limites (Grenzfunktion) a partir dos quais a norma será
concretizada. Neste sentido, aproxima-se da “moldura” kelseniana, pois o texto limita a concretização e não
permite decidir em qualquer direção, como querem diversas formas de decisionismo”. Cf. Adeodato, João
Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. pp. 238-239; No mesmo sentido Thomas da
Rosa de Bustamante: “Percebe-se, aqui, que ainda resta uma conexão entre o pensamento de Friedrich Müller e
as teses de Hans Kelsen, pois o denominado “programa da norma” em muito se assemelha à “moldura
normativa” prevista na Teoria Pura do Direito: nos dois casos o texto da norma é visto como algo ainda incapaz
de permitir a aplicação mecânica da norma à realidade requerendo do interprete uma valoração a fim de que a
norma de decisão (Müller) ou norma concreta (Kelsen) possa ser utilizada na resolução do caso – mas, ao mesmo
tempo, como um limite intransponível à liberdade criadora do intérprete”. Cf. Bustamante, Thomas da Rosa de.
Sobre o conceito de norma e a função dos enunciados empíricos na argumentação jurídica segundo Friedrich
Müller e Robert Alexy. p. 103.
233
Assim como outros conceitos da teoria estruturante do direito, a expressão âmbito normativo (Normbereich)
encontra distintas traduções. Peter Naumann, na tradução da obra Direito, linguagem e violência traduz a
expressão “Normbereich” por “área da norma”. Cf. Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos
de direito constitucional I. p. 42; A edição francesa Discours de la méthode juridique utiliza a expressão
“Champ Normatif”. Cf. Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. p. 28 e ss; José Lamego, de outro
lado, na tradução da obra Metodologia da ciência do direito”, de Karl Larenz, refere-se ao âmbito normativo da
teoria de Müller por “domínio da norma”. Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
234
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. p. 57.
235
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. p. 58; No mesmo sentido esclarece Eros
Roberto Grau: “Para Müller o âmbito normativo é mais do que a mera soma de fatos, abrangendo um complexo
real e possível, que aparece em toda regra (= enunciado normativo), formulado com elementos estruturais
retirados da realidade. O âmbito da norma não congrega (imediatamente) à totalidade dos fatos; ele se manifesta
quando um programa de interpretação é praticado (pelo intérprete), visando à aplicação de normas jurídicas;
77
Ele expressa os dados da realidade que não podem ser desconsiderados na formulação da
norma jurídica e da norma de decisão, o que não significa como visto –, que estes dados
sejam uma mera soma dos fatos. Isto porque o âmbito normativo é selecionado e conformado
pelo programa da norma. Conforme sustenta Müller, “o âmbito da norma entra no horizonte
visual da norma jurídica bem como da norma de decisão unicamente no enfoque indagativo
determinado pelo programa da norma”
236
. O programa da norma consubstancia-se, portanto,
em um mecanismo de defesa perante uma “força normativa do fático”
237
.
Müller esclarece que os âmbitos normativos podem ser gerados pelo direito
238
ou
não gerados pelo direito. Na maioria dos casos, porém, ressalta que o âmbito normativo
apresenta componentes gerados e não gerados pelo direito. De um lado, prescrições referentes
a prazos, datas, regras processuais e institucionais são exemplos de disposições com âmbitos
normativos gerados pelo direito; de outro, prescrições relativas aos direitos fundamentais ou
as normas principiológicas constitucionais são exemplos de disposições cujos âmbitos
normativos não são gerados pelo direito. Prescrições com âmbitos normativos gerados pelo
próprio direito são mais facilmente formuláveis no texto da norma
239
, ao passo que prescrições
com componentes não gerados pelo próprio direito carecem de uma decisiva análise do
âmbito normativo, consistente numa efetiva remissão à realidade.
Os elementos do âmbito normativo são freqüentemente apenas insinuados nas
prescrições constitucionais através de palavras-chave. Serão estas palavras-chave que
fornecerão as diretivas para a formulação do âmbito da norma, isto é, a parcela da realidade
social relacionada com o texto da norma. Conforme esclarece João Maurício Adeodato:
então, tendo em vista o caso concreto, emergem naquele âmbito relevantes estruturas sociais básicas que irão
delinear o seu universo”. Cf. Grau, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. Ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 78; Finalmente afirma Larenz: “o domínio da norma”, que não equivaleria às
particularidades da situação de fato a julgar, seria um “fator constituinte da normatividade”, e até uma “parte
integrante da configuração da previsão normativa”. Cf. Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 155.
236
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. p. 59.
237
A preocupação da teoria e metódica estruturantes com a inserção controlada da realidade também é enfatizada
por Bornholdt: “(...) se é certo que o âmbito normativo também forma a norma, isto não significa um abandono
do texto em prol da realidade. Há, como já se aludiu, uma interação entre ambos. Cf. Bornholdt. Rodrigo Meyer.
Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. p. 47.
238
Müller apresenta como exemplo de prescrições com âmbitos de normas gerados pelo direito àquelas
referentes às Seções VIII e IX da Lei Fundamental de Bonn, que tratam, respectivamente, da “execução das leis
federais e a administração federal” e do “Poder Judiciário”.
239
Como nos diz Müller, “em prescrições referentes à forma, em normas processuais e organizacionais, em
prescrições de remissão [Verweisungsvorschriften], definições legais [Legaldefinitionen] e em regulamentações
com enunciado jusdogmático-conceitual numérica ou individualmente determinado os âmbitos de normas
desaparecem por trás dos programas das normas”. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito
constitucional. pp. 59-60.
78
Os textos das normas referem-se, por exemplo, a partes do mundo
real, como “imprensa”, “a ciência”, “a arte”, “a concorrência”, “a
natureza jurídica do seguro”, “o curso de doutorado”; são esses cortes
da realidade social visados pelo programa da norma ou por ele
construídos que Müller denomina o âmbito da norma
240
.
Müller não se furta em apresentar alguns exemplos destas palavras-chaves.
Partindo da realidade alemã, isto é, da Lei Fundamental de Bonn, Müller oferece alguns
modelos de âmbitos normativos gerados pelo próprio direito (“associações e sociedades”, art.
9, (1), da Lei Fundamental; “propriedade”, “direito de sucessão hereditária”, art. 14, (1),
frase, da Lei Fundamental), e não gerados pelo próprio direito (“arte e ciência, pesquisa e
ensino”, art. 5º, (3), 1ª frase, da Lei Fundamental)
241
.
A Constituição da República Federativa do Brasil, também é capaz de fornecer
exemplos de prescrições com âmbitos normativos gerados e não gerados pelo próprio direito.
O art. 7º, inciso III, da Constituição Federal, apresenta um âmbito normativo completamente
gerado pelo direito, o que permite a sua formulação no texto da norma. Isto porque o
programa da norma afirma que é direito do trabalhador urbano e rural o “fundo de garantia
por tempo de serviço”. O “fundo de garantia por tempo de serviçoé uma definição legal
prevista em lei e regulamentada por decreto. A definição do que seja “fundo de garantia por
tempo de serviço” é dada pelo próprio direito. Logo, não a necessidade de recorrer à
realidade para a formulação do âmbito normativo; ele é suficientemente dado pelo programa
da norma da prescrição.
De outro lado, o art. 5º, inciso X, possui um âmbito normativo com componentes
não gerados pelo direito
242
. Isto porque o programa normativo diz que são invioláveis a
“intimidade, a vida privada, a honra e a imagem” das pessoas. O âmbito normativo “honra”,
por exemplo, é externo ao texto normativo, não é dado pelo próprio direito; não é passível de
segura determinação a partir do programa da norma. A “parcela da realidade social” a que o
programa da norma se dirige honra não está circunscrita no texto normativo. Trata-se de
240
Cf. Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. p. 248.
241
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. pp.
31-32. Os artigos citados são os seguintes: Art. 5. (3) frase. A arte e a ciência, a pesquisa e o ensino são
livres. Art, 9. (1) Todos os alemães têm o direito de constituir associações e sociedades. Art. 14. (1) frase. A
propriedade e o direito de sucessão hereditária são garantidos. Especificamente sobre o âmbito normativo da
ciência, Müller afirma: “Se o art. 5º, inc. 3, alínea 1, da CF declara que a ciência é “livre”, a análise do âmbito
normativo deve investigar o que, do ponto de vista jurídico, pode significar essa “liberdade”, em vista da
estrutura básica passível de ser racionalizada”. Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 235.
79
um âmbito de norma dado de maneira incompleta pelo texto, na forma de uma palavra-chave.
Na investigação do âmbito normativo “honra” será necessária uma abordagem que leve em
conta, e.g., as contribuições da filosofia, da sociologia, da economia, etc. O mesmo raciocínio
é válido para outros âmbitos normativos não circunscritos no texto normativo. Para a
determinação destes âmbitos normativos o operador do direito deverá selecionar aqueles
dados que são imprescindíveis para a norma jurídica e para a norma de decisão, podendo fazer
uso de estudos, pesquisas, monografias científicas, precedentes, material de direito
comparado, etc.
Por todo o exposto resta evidente que a dificuldade de concretização dos direitos
fundamentais reside na problemática determinação dos âmbitos normativos, normalmente
apenas evocados pelo texto normativo através de expressões sintéticas (“intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem”)
243
. A diferenciação entre âmbitos normativos gerados pelo
direito e não gerados pelo direito, permite concluir que os âmbitos normativos podem ser de
extensão, autonomia material e densidade bem diferentes. Os exemplos de normas
constitucionais acima referidas, com âmbitos normativos, fortemente marcados pelos dados
reais
244
, fornecem exemplo bastante. Trata-se de uma complexidade que a teoria estruturante
não obscurece. Ao contrário, objetiva lidar metodologicamente.
2.9 O surgimento da normatividade: Norma jurídica (Rechtsnorm) e norma de decisão
(Entscheidungsnorm)
Como visto, o programa normativo (Normprogramm) e o âmbito normativo
(Normbereich) compõem a estrutura da norma jurídica. Ao interligar o programa da norma e o
âmbito da norma, o operador do direito cria a norma jurídica (Rechtsnorm) – ainda formulada
de forma geral e abstrata. O derradeiro trabalho do operador do direito consiste na
individualização da norma jurídica em uma norma de decisão (Entscheidungsnorm), que
consiste no somatório de todas as fases do processo de concretização
245
. Na síntese precisa de
Eros Roberto Grau:
a concretização implica um caminhar do texto da norma para a norma
concreta (a norma jurídica), que não é ainda, todavia, o destino a ser
242
Dispõe o art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
243
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 205.
244
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 271.
245
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. p. 46.
80
alcançado; a concretização somente se realiza no passo seguinte,
quando é descoberta a norma de decisão, apta a dar solução ao
conflito que consubstancia o caso concreto
246
.
Se é possível uma analogia, poder-se-ia dizer que a norma jurídica (Rechtsnorm)
representa os “considerandos”, os argumentos determinantes da sentença, ao passo que a
norma de decisão (Entscheidungsnorm) consiste na parte dispositiva da sentença (e.g., “A lei
é inconstitucional”; “A medida não viola o direito fundamental ‘x’”; “o prazo previsto pela
constituição não foi observado”)
247
. Segundo Müller, apenas é possível falar na viabilidade do
raciocínio subsuntivo após a formulação da norma de decisão.
Por fim, importa dizer e conforme sinalizado no decorrer do capítulo –, que os
dados de partida do trabalho jurídico (texto de norma, “circunstâncias do caso” [Sachverhalt])
não são normativos. A normatividade não é uma qualidade do texto normativo, e tampouco
dos fatos isoladamente considerados. A normatividade apenas exsurge com a norma jurídica
(Rechtsnorm), enquanto resultado intermediário formulado em termos gerais; e com a norma
de decisão (Entscheidungsnorm), enquanto determinação obrigatória do caso individual
248
.
Com estas explicações espera-se que a estrutura da norma jurídica proposta por
Friedrich Müller tenha sido suficientemente esclarecida. Müller refuta a separação entre ser e
dever-ser, e porquanto qualquer entendimento que pretenda contrapor aspectos normativos a
aspectos da realidade. Ser e dever-ser são integrados na norma jurídica segundo as exigências
do programa da norma (Normprogramm) e do âmbito da norma (Normbereich). A articulação
entre ser e dever-ser torna-se um problema de teoria da norma jurídica. Espera-se, outrossim,
que a imbricação entre a teoria estruturada da norma e a metódica estruturante tenha restado
evidente. Isto porque o capítulo subseqüente apresentará a metódica estruturante de Friedrich
Müller, enquanto modo de trabalho que objetiva desenvolver meios controláveis de decisão,
fundamentação e representação das funções jurídicas
249
. Ver-se-á, assim, os elementos do
processo de concretização, bem como a polêmica hierarquia entre os elementos de
concretização proposta por Müller.
246
Grau, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. p. 79.
247
Müller, Friedrich. Teoria estruturante do direito. p. 151.
248
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique. p. 46.
249
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 69.
81
CAPÍTULO 3: A METÓDICA ESTRUTURANTE DO DIREITO: LIMITES E
POSSIBILIDADES DE CONCRETIZAÇÃO
3.1 Introdução à metódica estruturante do direito
No presente capítulo analisar-se-á a componente metodológica da teoria
estruturante, isto é, a denominada metódica estruturante do direito. Após esta breve
introdução, discorrer-se-á sobre o contexto de formação da metódica estruturante, os
elementos que integram o processo de concretização e a hierarquia entre os elementos de
concretização da norma jurídica.
Procurar-se-á, igualmente, estabelecer um diálogo entre a metódica estruturante e
a realidade brasileira, seja: (i) na pergunta sobre o estado da hermenêutica constitucional na
bibliografia científica brasileira
250
; (ii) apresentando exemplos extraídos da Constituição
Federal para a exposição das diferentes estruturas de normas jurídicas; (iii) na análise de um
caso do Supremo Tribunal Federal, no intuito de aferir como são utilizados, na práxis, os
distintos elementos de concretização.
Antes de discorrer sobre o que é a metódica estruturante convém deixar assentado
o que ela não é. Tal raciocínio servirá para excluir, in limine, possíveis pré-compreensões que
não se coadunam com a teoria do jurista de Heidelberg. Servirá, num segundo aspecto, para
continuar a traçar uma linha divisória entre a teoria estruturante do direito e aquelas que lhe
são precedentes.
Muito sinteticamente, podemos dizer que a metódica jurídica não é uma gica
jurídica formal, e tampouco se restringe a uma mera técnica para a resolução de casos
251
. A
metódica jurídica não é uma gica formal, pois rejeita veementemente a separação
epistemológica entre ser e dever-ser e a possibilidade de resolução dos casos concretos por
meio do tradicional raciocínio subsuntivo. De outro lado, não é simplesmente uma técnica de
250
Metódica, na linguagem de Müller.
251
Müller, Friedrich. Discours de la méthod juridique. p. 35.
82
resolução de casos concretos, uma “técnica do proceder praticamente”. A metódica
estruturante não é apenas prática, mas uma teoria da práxis
252
.
A metódica jurídica compreende a modalidade de trabalho cotidiano dos
juristas
253
. Müller pretende descrever o modo de realização do direito tal como ele se
apresenta na práxis. Não se trata, porém de legitimar a práxis, mas de racionalizá-la. Este
esforço de racionalização tem por objetivo desenvolver um nível de racionalidade e de
controlabilidade da concretização do direito de acordo com textos de normas
254
. Incumbe à
metódica estruturante desenvolver regras que tornem possível a explicitação da estrutura de
concretização da norma jurídica no caso concreto.
A metódica jurídica possui uma função em termos de teoria do direito e de
política. No que tange ao primeiro aspecto, a metódica jurídica é uma técnica de imputação. É
uma técnica de decisão e de imputação que tem como exigência a submissão da norma de
decisão aos textos de normas jurídicas gerais. Ela visa à formulação e elaboração de regras
que permitam a imputação da norma de decisão a um texto de norma jurídica geral, que lhe
serve de fundamento
255
. Politicamente, a metódica jurídica exerce uma função de
despersonalização da decisão. Nos dizeres de Müller, a função política da metódica jurídica
consiste:
em deslocar, de maneira bem-sucedida, porque regularmente aceita
como plausível, a responsabilidade pela decisão, pela orientação, pela
distribuição, pela dominação funcionalmente pessoal no caso
individual para instâncias mais distantes, sobretudo a instâncias
252
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
290.
253
Müller, Friedrich. Discours de la méthod juridique. p 37. Neste sentido, importa destacar que os destinatários
da metódica estruturante de Müller não se reduzem aos juízes de direito, mas sim a todos os agentes estatais que
concretizam a constituição em casos práticos, seja no âmbito do executivo, legislativo e judiciário. Segundo
Müller, "uma metódica do direito constitucional diz respeito a toda a ação constitucionalmente orientada de
titulares de funções estatais", já que representa o recurso do Estado constitucional liberal "à "violência
constitucional" vazada na forma do direito e conseqüentemente veiculada pela linguagem". Cf. Müller, Friedrich.
Métodos de trabalho do direito constitucional. pp. 8-9. Em verdade, não os titulares de funções estatais
concretizam a norma jurídica. Segundo Müller, “também os atingidos [Betroffenen] que participam da vida
política e da vida da constituição desempenham funções efetivas de concretização da constituição de uma
abrangência praticamente não superestimável, ainda que apareçam menos e costumem ser ignorados
metodologicamente: por meio da observância da norma, da obediência a ela, de soluções de meio-termo e
arranjo no quadro do que ainda é admissível ou defensável no direito constitucional, e assim por diante”. Cf.
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 51.
254
Ao erigir a racionalidade e a controlabilidade ótimas como objeto de trabalho, a metódica jurídica não ignora
que existem outros métodos de controle das decisões (político, social, público ou não público, informal); apenas
entende ser seu dever desenvolver uma metodologia jurídica destinada à prática decisória que deixe para trás os
fundamentos do positivismo legalista. Cf. Müller, Friedrich. Discours de la méthod juridique. p. 35.
255
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 28.
83
normatizantes, assim por exemplo para o “legislador” (em parte
também para o judiciário da instancia suprema)
256
.
Além de cumprir uma função política e em termos de teoria do direito, e
paralelamente a isso, a metódica jurídica possui a função de uma racionalidade instrumental e
legitimadora. No âmbito do Estado de Direito, a metódica jurídica possui uma racionalidade
instrumental porque visa a conferir um mínimo de calculabilidade, regularidade e
transparência à sociedade econômica e comercial burguesa
257
.
De outro lado, exerce uma racionalidade legitimadora, porque pretende com a
transparência dos processos decisórios ou ao menos das razões da decisão tornar a decisão
acessível à crítica
258
. A racionalidade da decisão passa por uma estruturação ordenada da
norma de decisão, segundo a orientação dada pelo texto da norma, em passos suficientemente
pequenos, que permitam, a posteriori, a discutibilidade, controlabilidade e revisibilidade da
decisão. Não basta, portanto, a mera imputação da norma de decisão ao texto da norma
jurídica geral.
Faz-se necessário um método que não obscureça as verdadeiras razões das
decisões e, que, neste sentido, oriente a atuação dos operadores jurídicos. Daí Muller dizer
que: “O trabalho jurídico disporá de um método científico, se ele operar de uma maneira
intersubjetivamente controlável e diferenciável segundo os passos parciais reais do seu
trabalho; se ele puder universalizar, se ele explicitar e revelar o seu próprio procedimento”
259
.
Por derradeiro, cumprem dois esclarecimentos técnicos a respeito da metódica
estruturante. Por primeiro, a metódica jurídica de Müller é construída a partir do exemplo do
direito constitucional. Isto não significa que ela não seja útil às diferentes disciplinas jurídicas
particulares. As questões fundamentais e os problemas particulares abordados pela metódica
estruturante destinam-se a todas as áreas e a todos os domínios onde é realizado o trabalho
prático sobre o direito.
Por segundo, deve-se clarificar o significado da expressão “metódica”. O termo
metódica abrange todos os modos de trabalho necessários para a concretização da norma, isto
é, a hermenêutica, a interpretação, os métodos de interpretação [Auslegung] e a metodologia
256
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 28.
257
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 28.
258
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 28.
259
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de direito constitucional I. p. 28.
84
[Methodenlehre]
260
. Não se trata, ademais, de um neologismo, posto que expressão albergada
pelo léxico pátrio
261
. No sentido empreendido pela metódica estruturante, hermenêutica diz
respeito à teoria da estrutura da normatividade jurídica e dos pressupostos epistemológicos e
de teoria do direito que estão na base da metodologia jurídica, enquanto metodologia
compreende as regras técnicas de interpretação do texto legal (interpretação gramatical,
sistemática, histórica, genética, etc.). Finalmente, a interpretação concentra-se com os limites
e possibilidades de tratamento do texto da norma.
3.2 O contexto de formação da metódica estruturante
3.2.1. A influência do Tribunal Constitucional Federal para a formulação da metódica
estruturante do direito
A metódica estruturante de Müller exsurge a partir da análise da jurisprudência do
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e da bibliografia especializada em Direito
Constitucional. Isto porque, para Müller, apenas a ciência jurídica e a jurisprudência estão
obrigadas “a fornecer constantes e concatenadas representações dos seus processos
decisórios”
262
. Partindo deste pressuposto, Müller erige inicialmente a jurisprudência do
Tribunal Constitucional Federal como lugar privilegiado para a busca por concepções e
tendências referentes ao método da ciência jurídica.
Segundo Müller, o Tribunal Constitucional Federal alemão, apesar de professar
um determinado método decisório, não o segue na prática corrente. Ao analisar a práxis do
Tribunal, o autor constata que as decisões judiciais pautam-se segundo a concepção metódica
da lógica formal, na qual os fatos são subsumidos à norma. O silogismo é efetuado com a
identificação do conteúdo da norma, que, por sua vez, se realiza através dos cânones da
interpretação, isto é, da interpretação gramatical, sistemática, genética, histórica e teleológica.
260
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 16.
261
Peter Naumann, tradutor das obras de Friedrich Müller no Brasil, defende a escolha da expressão metódica
em desfavor de “metodologia”. Segundo Naumann: “A solução terminológica aqui proposta visa conferir direito
de cidadania ao substantivo metódica” no discurso científico de língua portuguesa, por ser ele mais pertinente
do que a solução usual “metodologia”. Não se deve esquecer que “retórica”, “lógica”, “maiêutica”, “poética” e
muitos outros termos são originalmente adjetivos. (...)”. In Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência:
elementos de direito constitucional I. p. 08.
262
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. trad. Peter Naumann. 2 ed. São Paulo: Max
limonad, 2000. p. 25.
85
O que se infere da análise da jurisprudência, na ótica de Müller, é que o processo
decisório do TCF pauta-se por uma concepção onde o conteúdo da norma jurídica é imanente
à prescrição, e a realização do direito reduz-se a um problema meramente cognitivo. A
concretização da norma jurídica restringe-se à interpretação do texto da norma, que, nos
dizeres de Müller, “não é nada mais do que a reelaboração da vontade da norma ou do seu
dador”
263
. Remanesce, em termos teóricos, a dúvida se o conteúdo da norma jurídica deve
identificar-se com a vontade subjetiva do legislador ou com a vontade objetiva da norma, isto
é, da Constituição.
Programaticamente o TCF decidiu-se em favor da “teoria objetiva”
264
. Nos termos
da decisão de 21 de maio de 1952 (BVerfGE 1, 299 [312]), posteriormente reafirmada em
seus princípios na decisão de 15 de dezembro de 1959 (BVerfGE 10, 234 [244]), o Tribunal
Constitucional declarou que para a interpretação da norma é decisiva a vontade do legislador,
nele objetivada e expressa na forma como resulta do texto do dispositivo legal e do contexto,
e que a história da elaboração de uma norma só tem relevância para sua interpretação “quando
confirma ou elimina dúvidas sobre a exatidão de uma interpretação, surgida depois da
263
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 26.
264
Confira-se, neste sentido, o trecho da seguinte decisão do Segundo Senado de 17 de maio de 1960 2 BvL
11/59, 11/60. Na fundamentação da sentença são discutidos problemas clássicos da interpretação de normas
constitucionais, e delineados os princípios “programáticos” do TCF, no que se refere à polêmica entre
“objetivistas” e “subjetivistas” : “(...) Alguns autores consideram que o Judiciário atribuiria importância à
vontade dos órgãos integrantes do Poder Legislativo, ainda que essa mesma vontade não estivesse expressa na
lei. Contudo, tal concepção não é defendida na decisão de 17 de janeiro de 1957. Ela contradiria também os
princípios reconhecidos pelo Tribunal Constitucional Federal sobre finalidade e métodos de interpretação
da lei. Enquanto a teoria “subjetiva” parte da vontade histórica do legislador = autor da lei, dos seus motivos em
seu contexto histórico, na teoria “objetiva”, que encontrou reconhecimento cada vez mais forte na jurisprudência
e na literatura especializada, o objeto da interpretação é a própria lei, ou seja, a vontade objetivada na lei. “O
Estado não fala por meio de opiniões pessoais dos participantes do processo de elaboração da lei, mas somente
pela própria lei. A vontade do legislador coincide com a vontade da lei” (Radbruch, Rechtsphilosophie,
edição, 1950, p. 210 et seq.). A esse objetivo de interpretação opera a hermenêutica, com base no texto da norma
(interpretação gramatical), no seu contexto (interpretação sistemática), na sua finalidade (interpretação
teleológica), nos materiais legais [interpretação genética] e nos antecedentes normativos (interpretação histórica).
Para compreender a vontade objetiva do legislador são permitidos todos esses métodos de interpretação.
Eles não se excluem mutuamente, mas se complementam. Isso vale também para a utilização dos materiais
legais, quando esses possibilitem tirar conclusões sobre o conteúdo objetivo da lei. Obviamente, os “debates que
precedem a promulgação de uma lei podem ser utilizados para a interpretação desta sempre com um certo
cuidado, via de regra apenas como apoio” (RGZ 128, 11). Eles não devem induzir à equiparação das idéias das
instâncias legisladoras ao conteúdo objetivo da lei (por exemplo, cf. já RGZ 27, 411, Bayer VerfGH NF Vol. 3 II
1950, p. 15 [124]). A vontade do legislador pode ser considerada na interpretação da lei apenas quando ela foi
expressa na própria lei de forma suficientemente definida (cf. p.ex. BGH LM n.º 3 sobre § 133 BGB).” Cf.
Schwabe, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Trad. Beatriz
Hening, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro, Vivianne Geraldes Ferreira.
Montevidéu: Konrad Adenauer, pp. 131-132. (grifos nossos)
86
aplicação dos demais métodos hermenêuticos, vidas essas que não puderam ser eliminadas
por aqueles”
265
.
Müller assinala que com estas determinações programáticas – que privilegiariam o
aspecto literal e sistemático da interpretação, em detrimento dos elementos genético e
histórico o TCF “enuncia os princípios de uma seqüência hierárquica racional e em
princípio controlável dos critérios individuais de interpretação”
266
.
Na prática corrente o TCF parte do teor literal da prescrição e aponta para o fato
de que os aspectos sistemático e teleológico
267
teriam maior peso na tarefa da concretização.
Como o teor literal muitas vezes é pouco fecundo para a determinação de sentido, o texto da
norma é tratado “cronologicamente como primeira instância entre as alternativas de solução
considerandas, e materialmente como limite de alternativas de solução”
268
. O elemento
histórico seria utilizado de maneira residual, sendo relevante quando pudesse confirmar, como
visto, “a correção da interpretação efetuada segundo os princípios outros ou dirimir dúvidas
que não podem ser desfeitas apenas com os recursos metódicos auxiliares restantes”
269
. O TCF
privilegiaria, em suma, a identificação do “nexo de sentido da norma com outras prescrições e
o objetivo visado pela regulamentação legal na sua totalidade”
270
.
Em que pese o Tribunal Constitucional Federal apresentar programaticamente
uma metódica decisória, a sua práxis o contradiz. Müller afirma explicitamente que, “a práxis
decisória do Tribunal Constitucional Federal quase não pode ser compreendida com as regras
programaticamente professadas por esse tribunal
271
. A dura crítica de Müller poderia ser
considerada meramente retórica, não fossem os muitos exemplos extraídos do TCF que a
consubstanciam
272
.
265
Schwabe, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. p. 132.
266
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional . p. 27.
267
Segundo Müller o Tribunal busca identificar o “nexo de sentido da norma com outras prescrições e o objetivo
visado pela regulamentação na sua totalidade”. (BVerfGE 8, p. 274 e 307). Müller, Friedrich. Métodos de
trabalho do direito constitucional. p. 28.
268
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional . p. 28.
269
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 27.
270
Assim e.g., BVerfGE 8, p. 274 e 307. In Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p.
28.
271
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 28.
272
Em verdade, Müller não se restringe à jurisprudência do TCF, analisando centenas de decisões, em todos os
domínios do direito, desde decisões administrativas, até julgados dos Tribunais e Cortes Supremas.
87
A primeira crítica de Müller é no sentido de que o TCF não apresenta, em sua
prática corrente, indicações das regras de preferência utilizadas quando eventuais resultados
contraditórios causados por pontos de vista individuais da interpretação entram em jogo.
Müller critica a ausência de uma fundamentação mais detida e de uma reflexão
pormenorizada que pudesse consubstanciar o privilégio concedido aos elementos gramatical,
sistemático e teleológico. Isto seria, para Müller, indispensável, “no interesse da segurança
jurídica, bem como da compreensão do modus operandi real da concretização da
constituição”
273
. Como se verá no decorrer do trabalho, a questão acerca das regras de
preferência entre os elementos de concretização será um dos pontos centrais da metódica
estruturante do direito
274
.
Não obstante, Müller constata que o teor literal da prescrição jurídica, outrora
elevado a critério limitador e controlador da decisão jurídica, nem sempre é tratado como tal.
Decisões contra-legem (e contra o programa metódico auto-instituído do TCF) sucedem-se
sempre que o teor literal é ignorado em favor de uma aplicação “com sentido da lei que o
transcende”
275
, bem como quando o teor literal é considerado superável, em vista de uma
“melhor decisão valorativa da constituição’”
276
.
Sempre que o “teor objetivo da lei” não é capaz de apresentar uma resposta
satisfatória para a solução do litígio, o TCF usa de subterfúgios discursivos para mascarar o
descumprimento do procedimento decisório que autonomamente elevou como regra. Müller
exemplifica esta crítica apresentando decisões onde a “vontade objetivada da lei
constitucional” cedeu à “vontade subjetiva do constituinte” (e.g. manifestações individuais da
assembléia constituinte), pois com os meios tradicionais de interpretação não seria possível
fundamentar adequadamente a decisão, de modo a atingir o resultado desejado ou visado
277
.
Müller conclui que as inúmeras incoerências práticas realizadas pelo TCF, em
franca oposição ao seu procedimento metódico elevado a regra programática, decorrem
fundamentalmente da insuficiência material das regras tradicionais de interpretação, da forma
273
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. pp. 27-28.
274
E o mais criticado, a ponto de ser denominado por Paulo Bonavides como o “calcanhar de Aquiles” da teoria
de Müller.
275
BverfGE 9, p. 89 e 104; 14, p. 260, 262 e passim. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito
constitucional. p. 29.
276
BverfGE 8, p. 210 e 221. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 29.
277
BverfGE 6, p. 309, eg. p. 341 s., 344 ss., 349 e 351. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito
constitucional. p. 29.
88
como utilizadas, bem como do próprio conceito de norma jurídica. Para Müller, o
esgotamento e a insuficiência das regras tradicionais de interpretação se mostram
clarividentes quando o próprio TCF cria métodos auxiliares de concretização prática dos
direitos, tais como o princípio da unidade da constituição, o princípio da interpretação da lei
conforme a constituição, ou o critério de correção funcional-jurídica da concretização da
constituição. Toda esta situação leva Müller a asseverar que:
casos desse tipo mostram na sua totalidade que a autolimitação
programática aos tradicionais recursos exegéticos auxiliares é ilusória
diante dos problemas da práxis, que os recursos metódicos auxiliares
não logram mais cobrir e encobrir, nem mesmo no plano verbal, os
procedimentos de concretização exercidos na realidade e que os
acontecimentos cotidianamente manuseados da concretização
hodierna da constituição dão ensejo ao questionamento da concepção
tradicional da norma e da sua “aplicação”
278
.
Soma-se a isso, de forma a demonstrar a insuficiência das regras tradicionais de
interpretação e das teorias que opõem rigidamente ser e dever-ser, a enorme gama de decisões
cuja fundamentação não foi extraída das normas, mas da realidade.
Müller demonstra que há toda uma massa de casos que faz referência, e.g., à
“natureza da coisa”, cuja função consiste na “consideração de dados reais da esfera social para
o nexo decisório do caso solucionando”
279
. Outrossim, toda uma sorte de decisões que
utilizam sem mediações resultados parciais da Ciência Política, da Economia, da Sociologia,
da Estatística, e de outras disciplinas, de forma a contribuir para o nexo de fundamentação que
decide o caso.
Para Müller, este estado de coisas não deve levar à condenação dos elementos da
realidade, enquanto critérios utilizáveis para a decisão jurídica. Pelo contrário. Como visto no
segundo capítulo, a metódica estruturante é pródiga exatamente na consideração de que a
concretização não se reduz à interpretação de textos, mas comporta também a inserção dos
dados da realidade. Porém, é necessário utilizá-los de forma racional e controlável, como
278
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 33.
279
Segundo Müller, a natureza da coisa “é utilizada como um clichê polêmico substituível, destituído de função
quanto a sua dimensão material. Assim o princípio da igualdade só deverá ser considerado violado se a
determinação examinanda tiver de ser denominada como arbitrária, se, portanto, não puder ser encontrar “um
argumento razoável, resultante da natureza da coisa ou por outro motivo qualquer materialmente plausível para a
diferenciação ou para o tratamento igual perante a lei”. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito
constitucional. p. 32.
89
parte integrante da norma embasadora da decisão. Daí porque a norma jurídica deva ser
considerada uma noção composta ser e dever-ser.
Ralph Christensen sintetiza o avanço da metódica estruturante em relação ao
positivismo e à prática do TCF, por exemplo que utiliza os dados de realidade de maneira
obnubilada, sob o manto de expressões como a “natureza das coisas”:
O positivismo legal que conseguia introduzir os elementos reais no
processo de concretização de forma implícita e não refletida em
termos de método deve ser superado por uma inclusão controlada da
realidade social, sem que a concretização jurídica regrida para aquém
do seu padrão técnico alcançado
280
.
Conforme se verá, a tarefa da metódica estruturante de Friedrich Müller
constituirá exatamente na formulação de critérios que permitam conferir maior transparência
ao processo de construção da norma jurídica geral em cada caso a ser solucionado.
3.2.2 A influência dos trabalhos científicos sobre a metódica do direito constitucional
para a formulação da metódica estruturante do direito
Ao analisar o “estado da arte” da metódica do direito constitucional na
bibliografia científica, Müller encontra similitudes com o observado na jurisprudência dos
tribunais alemães, marco inicial de sua busca por concepções de uma metódica do direito
constitucional.
Para Müller, tal qual na jurisprudência, na bibliografia científica um quadro de
voluntarismo motivado ora pela coisa, ora pelo resultado, cujo escopo precípuo não está
centrado na fundamentação e documentação dos métodos aplicados. Em verdade, para Müller,
a não vinculatividade a um determinado caso concreto, faz com que a metódica proposta pela
bibliografia científica se afigure ainda mais indeterminada e múltipla do que aquela observada
nos tribunais. Essa indeterminidade e multiplicidade de modos de trabalhos não acarreta
necessariamente em má qualidade do conteúdo da argumentação, apenas depõe contra a
“transparência da sua gênese, do seu nexo de fundamentação e do seu modo de
representação”
281
.
280
Cf. Christensen, Ralph. Teoria estruturante do direito. In: Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito:
introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 242.
281
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 38.
90
Müller constata que ao mesmo tempo em que a bibliografia científica descobre
como insuficientes, na práxis da concretização, as possibilidades apresentadas pelo
positivismo legalista, transcende-as sem a fundamentação que se deveria esperar, isto é, opera
num nível de método que não transpõe aquele do positivismo legalista.
A bibliografia científica decreta a insuficiência dos cânones savignyianos para a
concretização dos direitos fundamentais e para a concretização da constituição, porém os
procedimentos propostos adicional ou substitutivamente não respeitam aos “imperativos de
clareza dos métodos jurídicos, próprios do Estado de Direito, e à objetividade jurídica que
assegura a medida possível da segurança jurídica”
282
. É por conta destes imperativos que
Müller refutará qualquer procedimento metódico que prelecione a desconsideração dos
“teores literais de normas constitucionais ou da sistemática do direito constitucional”
283
.
Para o jurista alemão, em que pese desde Paul Laband
284
, em termos de método,
uma concepção juspositivista lógico-formal não ser mais representada expressamente na
doutrina (excetuando-se Kelsen e seus sucessores), ela não foi substituída por nenhuma
concepção metodológica elaborada, razão pela qual continua a repercutir na práxis, através da
utilização de vários de seus elementos de trabalho (sobretudo a confusão entre norma e texto,
e a contraposição absoluta entre ser e dever-ser)
285
. As teorias propostas por autores da
segunda geração material da constituição, por exemplo, são consideradas insuficientes por
Müller, porque permanecem no campo do positivismo jurídico
286
. Para Müller, os autores
282
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 39.
283
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 39.
284
Paul Laband (1838- 1918), jurista alemão, especialista em teoria do Estado, professor nas universidades de
Königsberg e de Estrasburgo, foi um dos principais teóricos do positivismo e do que se convencionou chamar de
“teoria formal da constituição”. A “teoria formal da constituiçãoremonta a teóricos como Laband e Jellinek e
tem em Kelsen o seu último grande expoente. Paulo Bonavides apresenta algumas características da teoria
formal da constituição, sobretudo no que se refere à sua concepção de constituição e seu modelo metodológico
de resolução de conflitos: a constituição jurídico-estatal é nomeadamente formalista e fechada, composta de
preceitos normativos que fazem coincidir por inteiro o sentido formal com o sentido material de constituição (...)
a aplicação do direito é operação lógica, ato de subsunção, e não ato criador ou sequer aperfeiçoador”.
Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. pp. 148-149.
285
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 40.
286
Müller reluta em aceitar a conceituação de sua obra dentro do paradigma da chamada “segunda geração da
teoria material da constituição”. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica
estruturantes do direito. p. 271. Paulo Bonavides diferencia os autores da “teoria formal” e da “teoria material”
da constituição: “Os constitucionalistas modernos ou sustentam com Laband, Jellinek e Kelsen uma teoria
formal da constituição, abraçados ao positivismo que culminou de último com a Escola de Viena ou se repartem
em posições distintas, quais as de Schmitt, Smend, Hsü Dau-Lin, Heller, Schindler, Kägi e Haung. Destes
últimos resultou a teoria material da Constituição, conforme flui da Escola de Zurique, bastante adiantada nas
vias de sistematização”. Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 147. É de se fazer constar que após
a Segunda Guerra Mundial exsurge a chamada “segunda geração da teoria material da constituição”, que tem
como representantes Peter Häberle, Konrad Hesse, Martin Kriele.
91
inseridos, não rompem verdadeiramente com o positivismo, pois permanecem num horizonte
de sentido que partilha a “ilusão de que os textos nas leis, nas constituições, sejam as
normas”
287
.
O positivismo jusconstitucionalista, porém, não se resume à mera aplicação das
regras de Savigny. Para além da utilização dos cânones de Savigny, entra em jogo a crença da
decisão como uma subsunção estritamente gica, os métodos de direito constitucional como
meras regras técnicas [Kunstregeln] da metódica de interpretação de textos, a constituição
como um sistema formal, sem lacunas, fruto de um ato de vontade do Estado sob a forma de
lei. De outro lado, a norma jurídica é considerada como ordem, como juízo hipotético, como
premissa maior formalizada segundo os princípios da gica formal, como vontade
materialmente vazia
288
.
Müller critica duramente aquelas correntes doutrinárias, tal como proposto por
Forsthoff, que pretendem um retorno às regras tradicionais da hermenêutica jurídica no
sentido de Savigny. Apesar destas correntes acertadamente reivindicarem a preservação da
juridicidade dos textos constitucionais, denunciando certa dissolução da lei constitucional
decorrente de posturas orientadas segundo teores materiais
289
, elas equivocam-se ao acreditar
que este problema possa ser solucionado mediante a subsunção e pela inferência silogística,
com ajuda dos cânones savignyianos.
Muller julga ser de fundamental importância assegurar a tecnicidade da lei
constitucional, mediante um grau de objetividade possível, que seja condizente com a
segurança jurídica e a clareza dos métodos próprios de um Estado de Direito
290
. Os problemas
da concretização jurídica, porém, não serão superados com um simplificador e duvidosamente
operacionalizável retorno à Savigny.
287
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
271. Segundo Marcelo Neves a obra de Konrad Hesse permaneceria refém do dualismo ser e dever-ser: “Hesse
permanece, em parte, ainda vinculado a esse dualismo, na medida em que, no seu modelo, trata-se apenas da
‘relação da Constituição jurídica com a realidade’”. Cf. Neves, Marcelo. A constituição simbólica. p. 76.
288
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. pp. 40-43.
289
Tratam-se daquelas correntes contemporâneas do direito constitucional que pretendem transformar categorias
como valor, ordem de valores ou sistema de valores em categorias da concretização jurídica. Müller antenesta
proposição a possibilidade de subversão do Estado de Direito em Estado do Judiciário. Nos dizeres de Müller:
Com vistas à ordem de valores suposta por ele, o juiz estaria se assenhorando progressivamente da constituição”.
Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 43
290
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 44.
92
Primeiramente, porque as regras de interpretação de Savigny não foram
formuladas para o Direito Constitucional, mas para o Direito Civil, cujas normas possuem em
larga medida uma estrutura diferenciada em relação às normas constitucionais. É deveras
questionável que os direitos fundamentais e a maioria das normas constitucionais, dotadas de
forte caráter político, possam ser apreendidas de forma puramente técnica, sem que se
produzam, portanto, quaisquer fissuras que transcendam a técnica do silogismo
291
. A atividade
do juiz não é puramente cognitiva, técnica, voltada para o “descobrimento” de uma solução
contida no enunciado normativo. Ele é a figura central do processo de concretização, pois
possui a função de construção da norma jurídica a partir do texto da norma.
Para Müller, as regras exegéticas de Savigny não podem ser consideradas
“métodos” universalmente válidos, mas tão somente pontos de vista auxiliares, de
fecundidade variável segundo a estrutura das normas jurídicas concretizandas. Assim como o
conceito de ordenamento jurídico, os cânones de Savigny “não podem ser compreendidos
como sistema fechado, coerente e conclusivo, de dados previamente existente, meramente
aplicáveis”
292
.
Os cânones de Savigny foram formulados para o Direito Civil e sob a ótica
reducionista da realização do direito enquanto mera interpretação de fórmulas lingüísticas
(texto da norma). Em sendo assim, a metódica estruturante propõe-se a investigar a serventia
dos cânones de Savigny, em vista de uma nova concepção metódica assente na
“concretização” do direito, e na concepção de norma jurídica enquanto noção composta de ser
e dever-ser.
3.2.2.1 Breve digressão: A metódica do direito constitucional na bibliografia científica
brasileira
A presente subseção não pretende realizar uma ampla investigação da metódica
sobretudo do direito constitucional proposta pela bibliografia científica brasileira. Apenas
um estudo pormenorizado poderia comprovar qualquer tendência acerca dos métodos
propostos. Entretanto, ainda que perfunctoriamente, é de se notar certa coincidência entre a
discussão realizada no Brasil em termos de método e de crítica à insuficiência do
positivismo –, com o observado por Müller, na Alemanha.
291
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 44.
292
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 44.
93
no Brasil uma ampla discussão sobre o “pós-positivismo”, cujo mote é a
insuficiência das possibilidades apresentadas pelo positivismo para a interpretação/aplicação
do direito (concretização)
293
. Como visto ao longo do primeiro capítulo e também na crítica de
Müller, inexistem dúvidas acerca da debilidade de uma concepção metódica lógico-
subsuntiva. Ocorre que no Brasil a crítica ao positivismo vem permeada por referências a
necessária “busca do justo” no caso concreto, a relação “dialética entre norma e realidade”,
sem que, no entanto, sejam apresentados os métodos que permitiriam encontrar, e.g., a
propalada “solução justa” em cada caso. Do ponto de vista metodológico, a crítica raramente
ultrapassa o nível programático (ou retórico), pois não se propõe (ou mesmo se discute) a
estruturação de um modelo metódico suscetível de tornar efetiva ou praticável a intenção
294
.
Na lancinante crítica de Dimitri Dimoulis o pós-positivismo na sua vertente
nacional:
Manifesta o desejo do operador do direito de se libertar dos vínculos
impostos pelas normas jurídicas vigentes. Recorre-se, para tanto, às
mais variadas construções teóricas, referindo-se a fatos sociais, a
valores de justiça e equidade, a mudanças sociais e políticas, a formas
alternativas de aplicação do direito, a círculos hermenêuticos e a jogos
lingüísticos que impossibilitariam a aplicação fiel da norma. E a
conclusão é sempre a mesma: “produzir soluções adequadas, sem a
necessidade de se recorrer aos limites (sic) rigorosos de um texto
normativo
295
.
O pós-positivismo à brasileira, que, segundo Dimoulis, intenciona na prática
decisória a alforria do operador do direito em relação ao texto das normas jurídicas, não pode
ser confundido com o pós-positivismo proposto pela teoria estruturante do direito.
Castanheira Neves, ao dissertar sobre a redução política do pensamento metodológico-
jurídico, distingue duas metodologias pós-positivistas, segundo a sua relação com a política.
Embora o trabalho do jurista português não esteja centrado na pesquisa da bibliografia
científica brasileira, é possível estabelecer com ela uma comparação.
293
Sobre o tema, com ampla documentação sobre o pós-positivismo no Brasil, e uma crítica acerca dos métodos
propostos, ver: Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.
294
Castanheira Neves, Antonio. A redução política do pensamento metodológico-jurídico. Digesta: escritos
acerca do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. p. 402.
295
Dimoulis, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-
político. p. 61
94
Isto porque Castanheira Neves distingue duas orientações pós-positivistas: (i) uma
primeira que não se opõe à politização da metódica jurídica, convocando mesmo à sua
assunção metodológica. O direito seria convocado a se transformar num normativo e
metódico instrumento da política, em virtude da realidade político-social. A teoria crítica do
direito seria um exemplo desta orientação, pois teria como um de seus pontos característicos
“uma perspectivação metodológica que orientasse as decisões concretas no sentido de uma
justiça emancipadora que não recuaria inclusive, nas posições mais radicais, perante uma
frontal e aberta preterição da norma legal em nome daquela justiça”
296
; (ii) uma segunda,
identificada com a metódica de Müller, que reconheceria a influência da política sobre o
direito (tanto no momento da criação legislativa, quanto no momento da concretização
judicial), sem que, com isso, restasse prejudicada a autonomia do pensamento metodológico-
jurídico
297
.
Neste sentido importa consignar que no pós-positivismo de Müller, a atividade
jurídica é uma atividade política guiada por textos de normas. O direito é compreendido como
uma forma particular da política, e a metodologia jurídica é em conseqüência a metodologia
das condições e formas de trabalho de um setor determinado de ação e da organização
política
298
. Reconhecendo a influência da política no direito, sem que isso cause, contudo, a
sua instrumentalização, Müller idizer que o direito é uma versão racional da política, ao
passo que a metódica é uma versão racional do direito
299
.
Castanheira Neves, em longa citação, assinala as características da metódica
jurídica (de Müller) que possibilitam tratá-la como pós-positivista, sem que, com isso, se
manifeste a redução política do pensamento metodológico-jurídico. Segundo o jurista de
Coimbra, a metódica parte do pressuposto de que:
296
Somente esta concepção importaria na redução política do pensamento metodológico-jurídico. Cf.
Castanheira Neves, Antonio. A redução política do pensamento metodológico-jurídico. Digesta: escritos acerca
do direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. p. 398. O prof. português cita Luís Fernando
Coelho e João Batista Herkenhoff com representantes de uma radical teoria crítica do direito.
297
Fernando José Bronze também assinala a relação direito/política na obra de Friedrich Müller. Segundo o prof.
português: “Para este A., a política sempre está por detrás do direito. Desde a respectiva “posição” à sua eventual
“revisão”, passando pela “concretizaçãoque o atua, pelo “controle” que o racionaliza e pela “discussão” que o
critica, o direito revela-se sempre uma “forma especial da política”, apresentando “pressupostos, condições,
funções e conteúdos”, politicamente determinados”. Cf. Bronze, Fernando José. A metodonomologia entre a
semelhança e a diferença: reflexão problematizante dos pólos da radical matriz analógica do discurso jurídico.
Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 386.
298
Müller, Friedrich. Discours de la méthode juridique . pp. 48-49
299
Müller, Friedrich. Juristiche Methodik und Politisches System, 1976. p. 50, Apud Castanheira Neves. A
redução política do pensamento metodológico-jurídico. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento
jurídico, de sua metodologia e outros. p. 395.
95
Sem infirmar em nada a fundamental dependência política do direito,
não se devia, no entanto, deixar de dar metódica realização ao
princípio do Estado de Direito ou à exigência essencial de garantia
que o direito nele deverá instituir. E em dois sentidos, exigindo que as
decisões jurídicas concretas correspondam ao direito vigente e que
elas sejam proferidas segundo um processo previamente ordenado.
Para tanto, e como principal “contra-meio” (Gegenmittel) a opor à
total contingente politização das decisões jurídicas outro “contra-
meio” seria a própria “explicação” e crítica científica daquela geral
dependência –, se convocaria a “metódica jurídica”, criticamente
reelaborada, para ser, como contrapolo do direito enquanto expressão
racional da política, a “expressão racional do direito”. Isso através da
definição metódica de um esquema do decidir jurídico e das suas
regras em concreto, esquema e regras que permitissem a
revisibilidade, a discutibilidade e a regularidade desse decidir, e assim
a sua consensual racionalidade. Metódica que, centrando-se no
reconhecimento da vinculação jurídica do texto legal o texto como
quadro de possibilidades e limite e determinando os elementos
cientificamente controlados da concretização das normas jurídico-
legais, desempenharia a função de um padrão crítico e de controle
(uma “norma” ou dever-ser, um SollZustand) a opor ao real e descrito
decidir jurídico, no seu Ist-Zustand, e retirando assim a este a sua
impune “efetividade” ou tornando-o disfuncional perante o sistema
global. Deste modo, se “o direito é também instrumento de domínio”,
a sua realização racionalmente metódica seria simultaneamente um
“instrumento da limitação do domínio”
300
.
Feita a necessária contraposição e esclarecidos os distintos “pós-positivismos”,
importa dizer, com Müller, que a superação do positivismo em termos de método não é um
fim legítimo em si mesmo
301
. Apesar da teoria (e da metódica) estruturante refutar alguns dos
pressupostos do positivismo
302
, isto não acarreta o abandono das conquistas e exigências do
próprio positivismo.
de se perguntar, por fim, a quem interessa, na realidade brasileira, o pós-
positivismo na sua vertente anti-positivista? Será que a flexibilização da prática jurídico-
decisória constitui um avanço? É de se duvidar que num país consagrado pela manipulação
300
Castanheira Neves. A redução política do pensamento metodológico-jurídico. Digesta: escritos acerca do
direito, do pensamento jurídico, de sua metodologia e outros. pp.397-398.
301
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p.
119. Na lição do autor: “Os objetivos de cientifizar na medida do possível a ciência jurídica e de elaborar uma
dogmática racional não merecem ser esquecidos em benefício de exigências menores no tocante à racionalidade
e à honestidade em questões de método. A ‘superação’ do positivismo não é de modo nenhum um fim legítimo
em si mesmo”. Cf. Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes
do direito. p. 119.
302
Tal como a identidade entre norma e texto de norma, e a possibilidade de um raciocínio jurídico gico-
subsuntivo.
96
casuística das normas jurídicas e das práticas judiciais, e com rias dificuldades para a
concretização dos direitos fundamentais, esta postura teórica contribua para a afirmação do
Estado Democrático de Direito.
3.3. Elementos da concretização da norma
Construída a partir do exemplo do Direito Constitucional, a metódica estruturante
preocupa-se em desenvolver meios de um trabalho controlável de decisão e fundamentação
303
.
O passo decisivo para esse objetivo é dado com a especificação dos elementos que concorrem
para a concretização da norma jurídica, e a subseqüente eleição de critérios de prioridade para
regular os eventuais conflitos entre esses elementos. Müller busca dar ao trabalho jurídico um
método científico que possa universalizar, explicitar e revelar o seu próprio procedimento
304
.
Concomitantemente, intenta suprir a lacuna deixada pelo TCF, que em sua prática corrente,
como visto, se abstém de uma análise aprofundada acerca dos elementos de concretização,
bem como das regras de preferência utilizadas para a resolução de eventuais resultados
contraditórios causados por pontos de vista individuais da interpretação.
A metódica estruturante distingue os seguintes elementos de concretização da
norma jurídica: (i) elementos metodológicos em sentido estrito (interpretações gramatical,
sistemática, genética, histórica e teleológica; bem como os modernos princípios de
interpretação da constituição); (ii) elementos do âmbito da norma (que podem ou não ser
gerados pelo direito); (iii) elementos dogmáticos (doutrina e jurisprudência); (iv) elementos de
teoria (e.g., Teorias do Estado e da Constituição); (v) elementos de técnica de solução de
casos; (vi) elementos de política do direito e política constitucional
305
.
A divisão dos elementos de concretização não é realizada a esmo. Müller
subdivide os elementos de concretização em dois grandes grupos, classificando-os conforme a
sua função para a concretização e de acordo com a sua referibilidade aos textos.
Assim, fazem parte do primeiro grupo todos aqueles elementos diretamente
relacionados à interpretação dos textos das normas. Estão abrangidos os elementos
metodológicos em sentido estrito e os modernos princípios de interpretação da constituição
303
A metódica estruturante não se restringe ao direito constitucional (apesar de construída a partir do seu
exemplo), eis que fornece os equipamentos básicos necessários às diversas condições do trabalho legal.
304
Müller, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional I. pp. 26-28.
305
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 111.
97
(como o princípio da interpretação conforme a constituição, o princípio da correção funcional,
etc.).
O segundo grupo abarca os elementos de análise do âmbito da norma. Como o
processo de concretização não se resume aos textos das normas, mas engloba conjunta e
reciprocamente a análise mediada dos elementos da realidade, o segundo grupo refere-se aos
dados reais (secundariamente lingüísticos), isto é, os “teores materiais que resultam da análise
do âmbito da norma da prescrição implementanda e da análise dos elementos do conjunto de
fatos destacados como relevantes no processo de concretização, por via de detalhamentos
recíprocos”
306
.
Por fim, formando um grupo “marginalizado”, estão os elementos dogmáticos, de
técnica de solução, de política constitucional e de teoria, que também integram o processo de
concretização, desempenhando uma função suplementar. A especificidade da função auxiliar
desenvolvida por estes elementos será analisada no seu devido momento.
3.3.1. Elementos metodológicos strictiore sensu
Os elementos metodológicos em sentido estrito identificam-se aos tradicionais
cânones da interpretação. Desde já é preciso ressaltar que no âmbito da bibliografia científica,
não unanimidade em relação ao número dos cânones de interpretação
307
. Conforme
reiteradamente dito ao longo da exposição, Savigny distinguiu, no séc. XIX, os elementos
gramatical, lógico, histórico e sistemático. autores, porém, que defendem outras
classificações
308
. Para os fins da metódica estruturante, Müller restringiu os cânones aos
elementos de interpretação gramatical, sistemática, histórica, genética e teleológica.
Todas essas regras serão abordadas em detalhes a seguir.
Antes, porém, de analisarem-se os elementos de concretização em sentido estrito,
convém esclarecer algumas das polêmicas acerca dos cânones de interpretação, que ainda
repercutem no Brasil.
306
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 71.
307
Alexy, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação
jurídica. p. 35.
308
Vide: Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. pp. 385-419; Na bibliografia nacional: Dimoulis,
Dimitri. Manual de Introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2003. pp. 159-163.
98
É um erro bastante comum denominar os elementos clássicos de interpretação
desenvolvidos por Savigny, para o Direito Civil, como “métodos de interpretação”. Como se
sabe, Savigny criou elementos de interpretação, quais sejam: gramatical, lógico, sistemático e
histórico. Savigny não fala de métodos de interpretação, mas sim de elementos de
interpretação
309
.
Por segundo, também a discussão sobre uma possível hierarquia entre eles.
Savigny, por exemplo, refuta uma ordem de preferência entre os cânones. Igualmente Karl
Larenz repele qualquer relação hierárquica fixa, no sentido de que o peso dos critérios
particulares seja estabelecido a priori, e de uma vez por todas
310
. Outros autores, no entanto,
almejam estabelecer uma gradação entre os cânones.
Por terceiro, remanesce a questão da serventia dos cânones de interpretação
formulados por Savigny. É corrente na doutrina brasileira a condenação dos elementos
metodológicos formulados por Savigny no século XIX, sob o argumento de que estes estão
ultrapassados e/ou foram formulados para o Direito Civil (o que é verdade), devendo-se
utilizar para a interpretação da constituição, métodos e princípios exclusivamente
constitucionais
311
.
Adiantando o que será visto a seguir, importa deixar assentado que, na contramão
da doutrina brasileira, Müller não refuta a utilidade dos cânones de interpretação, mas deixa
claro que estes devem ser tratados como “meros elementos”. Ademais, caracteriza os
princípios exclusivamente constitucionais em larga medida - como sub-casos dos cânones
de interpretação, com funções e possibilidades de uso limitadas.
3.3.1.1 A interpretação gramatical
A interpretação gramatical determina-se segundo os diferentes tipos de normas
constitucionais em jogo. Enquanto a interpretação gramatical do art. 18, § 1º, da Constituição
Federal que estabelece Brasília como a Capital Federal –, não oferece, em tese, maiores
309
“Savigny esclarece com a denominação “elementos” que os aspectos de método não constituem “espécies da
interpretação [Auslegung]” separáveis umas das outras, mas momentos de um processo unitário de interpretação,
e que a sua relação somente pode ser determinada com vistas à estrutura material do caso jurídico individual”.
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 69.
310
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. p. 417.
311
Sobre o tema, ver especialmente: Interpretação constitucional. Silva, Virgílio Afonso da (org.). o Paulo:
Malheiros, 2005. pp. 115-145.
99
dificuldades de concretização, bastando-se por si mesma para a concretização da norma, o
mesmo não se poderá dizer do direito fundamental insculpido no art. 5º, inciso X
312
, onde a
elemento gramatical traz pouca luz para a concretização da norma jurídica.
Como bem demonstra o exemplo acima aludido, o que idiferenciar uma maior
ou menor dificuldade de concretização, não é a vagueza ou a ambigüidade do texto, mas a
diferença estrutural entre as normas jurídicas. Ao preocupar-se com a estrutura da norma,
Müller desloca o debate da dificuldade de concretização das normas constitucionais da
lingüística (gramática) para a teoria da norma jurídica. A dificuldade de concretização pode
ser dimensionada (amainada ou reforçada) pela própria pré-compreensão jurídica do operador
do direito, que é capaz de identificar e diferenciar os âmbitos de norma formados pelo próprio
direito daqueles âmbitos de norma não formados pelo direito.
Reportando-se aos artigos da Lei Fundamental de Bonn, Müller irá dizer que:
Em termos de linguagem e “gramática”, eles não são formulados mais
clara ou univocamente do que e.g. os textos de normas de prescrições
referentes a direitos fundamentais ou competências. A diferença
quanto à sua concretização (unicamente) com os meios da
interpretação gramatical localizam-se na diferença estrutural das
normas jurídicas. Não é uma diferença lingüística (“gramatical”) dos
textos das normas, mas a eficácia da pré-compreensão (jurídica) que
demonstra que o texto da norma do art. al. 1 da Lei Fundamental
possa afigurar-se ao jurista “menos claro”, “mais amplo” ou “mais
indeterminado do que o texto da norma do art. 52 al. 1 da Lei
Fundamental. Diante do pano de fundo da sua pré-compreensão não-
jurídica, ambos os enunciados talvez se afigurem ao não-jurista
igualmente “claros” ou “não-claros” em termos de conteúdo. no
quadro da sua pré-compreensão materialmente informada orientada
dos problemas jurídicos e das normas, o jurista compara os âmbitos
das normas das prescrições em pauta, dos quais ele conhece as linhas
mestras ou os pormenores, com os seus textos. Já por ocasião dessa
operação raciocinante previamente efetuada e muitas vezes não
312
Pautando-se na realidade da constituição alemã, Müller apresenta como exemplo os artigos 20, 22 e 27 da Lei
Fundamental de Bonn. Enquanto o artigo 20 seria um exemplo de artigo que traz consigo maiores dificuldades
de concretização, dada a estrutura da norma, os demais atestariam a possibilidade de suficiência da interpretação
gramatical, sobretudo quando o âmbito da norma é formado pelo próprio direito, ou naqueles casos de artigos
que tratam da parte organizacional. Os artigos a seguir transcritos demonstram a diferença de estrutura das
normas: Art. 20 (1). A República Federal da Alemanha é um Estado federal democrático e social. (2). Todo
poder do Estado emana do povo. O povo o exercepor meio de eleições e outras votações e por intermédio de
órgãos específicos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. (3). O Poder Legislativo deverá se sujeitar à
ordem constitucional, aos Poderes Executivo e Judiciário, à lei e ao direito. (4). Todos os Alemães terão o direito
de se insurgir contra quem tentar subverter essa ordem, quando não lhes restar outro recurso. Art. 22 A Bandeira
Nacional terá as cores preto, vermelho e amarelo-ouro. Art. 27. Todos os navios mercantes alemães constituem
uma frota mercante única.
100
explícita, ele constata diferenças consideráveis entre as estruturas das
normas
313
.
Como visto anteriormente, a “determinabilidade” das normas constitucionais diz
respeito antes à estrutura da norma, em especial à diferença dos âmbitos das normas, do que a
qualidade das formulações lingüísticas. Feitas estas constatações, Müller irá concluir que o
sucesso da interpretação gramatical depende, em primeiro lugar, da estrutura da norma.
Normas constitucionais relativas à parte organizacional quase sempre oferecem menores
dificuldades de concretização do que aquelas relativas aos direitos fundamentais, como atesta
o exemplo que contrapõe os artigos da Constituição Federal 18, § 1º, e 5º, inciso X
314
.
Por fim, cumpre esclarecer que a interpretação gramatical opera num duplo
aspecto, como método e como fator limitador da concretização. Para Müller, “o teor literal
demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, i.é, funcionalmente
defensáveis e constitucionalmente admissíveis. (...) Decisões que passam claramente por cima
[überspielen] do teor literal da constituição não são admissíveis”
315
.
3.3.1.2 Elementos históricos, genéticos, sistemáticos e teleológicos
Assim como Savigny, Müller professa a interdependência dos elementos de
concretização, quais sejam: os elementos históricos, genéticos, sistemáticos e teleológicos.
Para Müller, todos estes elementos relacionam-se diretamente com o elemento gramatical, e
este com aqueles, pois, com exceção do elemento teleológico, lidam com a interpretação de
textos.
Na esteira do TCF, Müller diferencia a interpretação histórica da interpretação
genética
316
. A interpretação histórica lida prioritariamente com regulamentações anteriores,
fazendo o confronto das disposições vigentes com outras anteriores paralelas ou análogas, ao
passo que a interpretação genética tem por objeto os materiais legislativos ou trabalhos
313
Müller, Friedrich. todos de trabalho do direito constitucional. pp. 73-74. Os artigos citados por Müller
são: art. 4º (1) A liberdade de crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa são invioláveis. Art. 52
(1) O Conselho Federal elege o seu Presidente por um ano.
314
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 73.
315
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 75.
316
A denominada interpretação genética sempre esteve ligada à interpretação histórica. A interpretação genética
sempre foi considerada apenas outro fator da exegese, mero desdobramento da interpretação histórica,
convivendo ambos os elementos sob a mesma denominação geral (interpretação histórica). A confusão entre o
elemento histórico e o elemento genético pode ser confirmada no capítulo “Elemento Histórico”, da obra
Hermenêutica e aplicação do direito, de Carlos Maximiliano. Vide: Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e
aplicação do direito. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 137-147.
101
preparatórios, debates, anteprojetos, exposições de motivos, etc., ou seja, todos aqueles textos
que deram origem ao texto da norma interpretanda. O traço em comum entre o elemento
histórico e genético é que ambos lidam com textos não-normativos. Explique-se: tanto a
interpretação histórica quanto a interpretação genética fornecem pontos de vista que não
derivam do direito vigente
317
.
Para Müller, a interpretação histórica e a interpretação genética, ambas referidas a
textos não-normativos, podem ser consideradas modos procedimentais acessórios à
interpretação gramatical, pois “podem ajudar a precisar em termos de conteúdo as possíveis
variantes de sentido no espaço de ação demarcado pelo teor literal”
318
.
O elemento teleológico possui para Müller uma especificidade não documentável
em outros autores. Se por um lado o elemento teleológico é autônomo no que se refere aos
cânones e demais elementos de concretização para além dos cânones
319
, não é autônomo no
sentido de poder ser utilizado sem uma qualquer “documentabilidade”.
A autonomia em relação aos cânones se perfaz na possibilidade da pergunta pelo
“sentido e finalidade” da norma possuir um sentido indagativo autônomo em relação aos
elementos gramaticais, históricos, genéticos e sistemáticos. Entretanto, a reposta obtida a
partir da pergunta pelo “sentido e finalidade” não poderá prescindir da “ajuda” dos outros
elementos de interpretação. Ao fim e ao cabo o elemento teleológico depende de uma
documentabilidade que pode ser fornecida por outro elemento de interpretação
320
. Se é
possível pensar numa imagem que reflita a condição do elemento teleológico, pode-se ver
uma circularidade que parte da autonomia (pergunta pelo sentido e finalidade da norma) e
deságua na dependência (documentabilidade) em relação aos cânones.
Sempre tendo como pano de fundo concepções metódicas que utilizam os dados
reais de forma implícita ou não refletida, Müller critica a utilização do elemento teleológico
(como forma de encobrir decisões materiais) sob o manto de expressões retóricas, tais como:
317
Sempre fiel ao pressuposto de que os elementos de interpretação atuam coordenada e reciprocamente, Müller
irá dizer que a interpretação histórica e a interpretação genética são subcasos da interpretação sistemática.
Apesar dos pontos de vista trazidos pela interpretação histórica e genética não derivarem de prescrições do
direito vigente, são contextualizáveis sistematicamente. Cf. Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito
constitucional. p. 79.
318
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. p. 77.
319
Princípios de interpretação constitucional, elementos dogmáticos, elementos de teoria, elementos de solução e
elementos de política constitucional.
102
“conforme ao fim”, “praticabilidade”, “natureza das coisas”, “essência do instituto jurídico”,
“a consideração de dados sociais e políticos”, etc. A crítica de Muller ao elemento teleológico
é interessante, quando constatado que o TCF (e outras escolas do pensamento jurídico, como
visto no primeiro capítulo) o considera um elemento objetivo e privilegiado, sem ao menos
estabelecer critérios coordenados de utilização.
A questão da documentabilidade do elemento teleológico é reiteradamente
repisada, pois a busca pela finalidade da lei não pode ser realizada sem limites e sem critérios.
No âmbito da metódica estruturante é inadmissível uma fundamentação “auto-referente”
acerca da finalidade e dos objetivos da lei, realizada sem qualquer tipo de comprovação
empírica. Nos dizeres do Professor de Heildelberg:
(...) pontos de vista de “sentido e finalidade” da prescrição
interpretanda podem ser aduzidos à medida da sua
documentabilidade com a ajuda dos outros elementos. A suposição de
uma “ratio” que não pode ser comprovada sob nenhum outro aspecto
da concretização desqualifica-se enquanto “valoração” ou
“ponderação” subjetiva deslocada da norma
321
.
A interpretação teleológica corretamente realizada e documentada se perfaz
invariavelmente na combinação de um ou de vários elementos de concretização, com o que se
comprova que os elementos de concretização não podem ser isolados como métodos
autônomos, mas devem ser trabalhados reciprocamente.
Por fim, cabe ressaltar o elemento sistemático. Este possui importância ímpar para
a concretização da norma constitucional, que, nos dizeres do próprio Müller, “nenhuma
norma representa apenas a si mesma, mas ao menos se relaciona com todo o ordenamento
jurídico”
322
. A interpretação do direito não pode ser realizada isoladamente. Na metáfora de
Eros Roberto Grau: “não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”
323
.
A interpretação sistemática não se reduz a mera comparação de textos normativos.
Se a norma jurídica é formada pelo programa da norma e pelo âmbito da norma, para além
da análise textual deve ser realizada uma análise dos âmbitos de normas das prescrições
320
Sejam aqueles elementos ligados aos textos de normas (interpretação gramatical e sistemática), sejam aqueles
ligados aos textos de não-normas (interpretação histórica e genética).
321
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 79.
322
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 80.
323
Grau, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. p. 132.
103
sistematicamente interligadas
324
. A concretização sistemática “abrange, ao lado do contexto
dos teores literais argumentativamente expostos, ao mesmo tempo o contexto das estruturas
materiais dos âmbitos de regulamentação”
325
. Ao tempo que complica e dificulta o
procedimento sistemático, a análise dos âmbitos normativos das prescrições interligadas
constitui uma obrigação inerente à teoria estruturante do direito, que advoga a necessária
pesquisa pela estrutura da norma, de forma a viabilizar o processo de concretização.
3.3.2 Princípios da interpretação da constituição
Os princípios da interpretação da constituição são considerados por Müller
majoritariamente como subcasos das regras tradicionais acima enumeradas. Müller considera
como pontos de vista autônomos apenas e com reservas - o imperativo da interpretação
conforme a constituição, e o critério de aferição da correção funcional. Isto porque o
constitucionalista alemão rejeita um “sistema de direitos fundamentais” fechado e coerente,
bem como uma “ordem de valores” de direitos fundamentais.
Todos os outros princípios da interpretação constitucional, quais sejam:
praticabilidade, interpretação a partir do nexo da história das idéias [geist geschichtlicher
Zusammenhang], critério de aferição do efeito integrante, princípio da unidade da
constituição, quadro global de direito pré-constitucional, nexo de normas de direitos
fundamentais e de normas de competência, concordância prática, e a força normativa da
constituição; são considerados subcasos de regras tradicionais da interpretação
326
.
3.3.3 Elementos da concretização a partir do âmbito do caso e do âmbito da norma
Como visto anteriormente, os dados reais compõem a norma jurídica, a norma de
decisão. A metódica estruturante do direito refuta a concretização como mera exegese de
fórmulas lingüísticas. A norma jurídica apresenta-se, pois, como um processo estruturado que
comporta a interpretação dos dados lingüísticos (programa da norma) e do conjunto de dados
reais conformes o programa da norma (âmbito da norma). Trata-se, portanto, de perquirir
quais são os elementos da concretização a partir do âmbito da norma e do âmbito do caso e de
que forma estes dados reais ingressam no trabalho de concretização.
324
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 78.
325
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. p. 78.
326
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. pp. 81-88.
104
A metódica estruturante não oferece um regramento indefectível, pronto e
acabado, para a seleção dos dados reais que ingressam no processo de concretização
327
. E nem
poderia. A valoração é um elemento ineliminável do processo decisório. Ela será responsável
pela seleção e ordenação dos critérios materiais que irão compor a estrutura do âmbito
normativo. Como visto no segundo capítulo, cabe ao operador jurídico a responsabilidade
pela seleção e introdução dos elementos reais, sob o fio condutor do programa da norma.
Em comparação com as concepções metódicas anteriores se ganha, ao menos, em
honestidade metódica. Enquanto o positivismo conseguia introduzir os elementos reais no
processo de concretização de forma implícita e não refletida em termos de método, a metódica
estruturante reconhece os dados reais e busca uma sua inserção controlável
328
.
Na análise do âmbito da norma ingressam dados advindos da sociologia, da
ciência política, da economia e de outros ramos das ciências sociais porventura exigidos pelo
âmbito da norma da prescrição concretizanda. A necessária relação interdisciplinar entre a
ciência do direito e outros ramos do saber impinge ao jurista, por sua vez, uma ampla e
adequada formação. Neste sentido, Müller expressa profunda preocupação com o ensino e a
formação jurídica
329
. A cooperação prática da ciência do direito com as ciências sociais exige
um preparo teórico diferenciado, que supere a mera retórica da necessária “integração” entre
as disciplinas
330
. Nos dizeres de Müller “a exigência da política universitária de um
treinamento em disciplinas básicas, que entrevê no horizonte distante uma formação de
juristas que mereça esse nome, bem como o desejo da cooperação interdisciplinar são
irrecusáveis”
331
.
3.3.4 Elementos dogmáticos
Na prática corrente os juristas, sempre que se deparam com alguma dificuldade,
realizam um trabalho de comparação do teor literal da prescrição aplicanda (e, segundo
327
No mesmo sentido: Santos, Rodrigo Mioto dos. Método, racionalidade e legitimidade da decisão judicial:
uma análise a partir da teoria estruturante de Friedrich Müller. p. 81.
328
Christensen, Ralph. Teoria estruturante do direito. In: Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito:
introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 242.
329
Preocupação que certamente é pertinente à realidade brasileira, sobretudo após o “boom” de faculdades
privadas de direito ocorrido no início dos anos noventa do século passado. Não é por outra razão que se fale hoje
em “(de)formação jurídica” e “(de)formação profissional”. Vide: Rodrigues, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico
e direito alternativo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1993.
330
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 90.
331
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 90.
105
Müller, de forma irrefletida ao lado do teor material do seu âmbito de norma) com textos de
outras normas e com textos dogmáticos, isto é, livros, monografias, enunciados da
jurisprudência, etc
332
.
Estes elementos dogmáticos, por estarem estruturados linguisticamente são
obviamente acessíveis à interpretação e dela carecem, podendo ser utilizados, para a sua
análise, os mesmos recursos disponíveis ao trato dos textos de normas jurídicas. Neste
sentido, e não se pode duvidar, a interpretação gramatical é evidentemente obrigatória para a
interpretação da dogmática. Igualmente, o estudo de decisões jurisprudenciais necessita do
auxílio da interpretação genética e histórica, e a busca de distintas opiniões doutrinárias e
jurisprudenciais acerca do mesmo tema evidencia a necessidade da interpretação
sistemática
333
.
Müller ressalta, porém, que a interpretação processada perante estas fontes do
conhecimento jurídico se refere a textos não-normativos, a textos de não-normas [Nicht-
Normen]. Esta particularidade deve ser ressaltada, porque determina a não vinculatividade
destes argumentos para a formação da norma de decisão. Apesar de influírem decisivamente
na solução dos casos jurídicos, os conteúdos dogmáticos não possuem obrigatoriedade, isto é,
não vinculam o intérprete autêntico. Os elementos dogmáticos devem ser utilizados em
convergência com os elementos diretamente referidos aos textos de normas, aos elementos de
interpretação em sentido estrito. A sua relativização decorre de estarem mais afastados dos
teores normativos. Nos dizeres de Müller: enunciados dogmáticos da práxis e ciência
expressam quase sempre a opinião dos seus autores acerca de determinadas normas”
334
.
3.3.5 Elementos de técnica de solução
Os elementos de técnica de solução provêm de manuais de orientação [Leitfäden],
e se destinam a oferecer um modo de estruturação e de argumentação do texto da decisão que
pareça mais útil conforme a respectiva função
335
.
332
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 91.
333
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 91.
334
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 92.
335
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 93. Segundo Ulrich Schroth: “(...) os
elementos de resolução técnica guiam a concretização da norma ao apresentarem propostas quanto à tática a
seguir para se chegar a uma solução do caso previamente aceite”. Cf. Schroth, Ulrich. Hermenêutica filosófica e
jurídica. In: Kaufmann, Arthur; Hassemer, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. p. 396.
106
Segundo Müller:
“A eles pertencem os lineamentos fundamentais dos procedimentos
com os quais se pretende formular e examinar as hipóteses
gradualmente precisandas ou corrigendas sobre a norma, com os quais
se pretende procurar pelo caminho da inventio “tópica” pontos de vista
para soluções orientados segundo problemas e com os quais se
pretende encontrar a espécie de estruturação e argumentação no texto
da decisão que parece mais útil segundo a respectiva função”
336
.
Estes compêndios fornecem instruções e conselhos técnicos que se revelam
estratégicos para assegurar o sucesso da resolução dos casos, contando com a aprovação dos
juristas, ao fornecer um tipo de apresentação e de estruturação dos argumentos conformes à
prática jurídica. Müller adverte que os manuais apresentam propostas e técnicas de solução de
casos, e como pontos de vista devem funcionar como fatores auxiliares. Em hipótese alguma
elementos de técnica de solução podem conduzir a resultados que violem expressamente o
texto da norma.
3.3.6 Elementos de teoria
A utilização de elementos de teoria na prática corrente é obvia quando se constata,
por exemplo, que o TCF se utiliza de argumentos que invocam uma “ordem de valores” dos
direitos fundamentais.
A utilização de posições da Teoria do Estado ou da Teoria Constitucional na
interpretação somente é admissível se compatíveis com e defensáveis argumentativamente
pelos textos das normas implementandas. Müller julga inadmissível querer superar textos de
normas através da invocação de teorias do Estado ou da Constituição, como se estas fossem
independentes da normatização do direito constitucional vigente. A concretização deve ser
orientada segundo o texto das normas, razão pela qual os elementos de teoria somente podem
produzir efeitos restritos.
Para além disso, é indubitável que elementos de teoria influenciam decisivamente
a pré-compreensão do intérprete. Expressa ou não expressamente a margem de ação
hermenêutica e metódica que começa a atuar num determinado caso individual depende, e. g.,
da concepção de Estado e da Constituição do operador jurídico. Partindo-se de uma
concepção democrática e republicana, tal como se processa na metódica estruturante, a
107
margem de ação hermenêutica e metódica será dada pelo texto da norma. O mesmo não se
pode dizer de outras teorias que expressa ou não expressamente, partindo de outras
concepções do Estado e/ou da Constituição, defendem a possibilidade de supressão do texto
da norma.
Reportando-se às diferentes teorias, no que tange ao método, Müller preleciona
que elas devem responder a duas questões fundamentais: quanto espaço deixam para
argumentos indiferenciadamente ideológicos, e até que ponto exigem, admitem ou impedem
uma fundamentação do processo de concretização que seja independente delas mesmas e em
vez delas se oriente segundo as normas?
337
Müller critica teorias tão distintas quanto o sociologismo, o normologismo e o
decisionismo por possuírem um equivocado conceito de norma jurídica e da sua função e, por
conseqüência, por não apreenderem a peculiaridade da ciência do direito enquanto ciência
normativa sui generis
338
. Todas estas correntes têm, segundo o jurista alemão, a sua
aproveitabilidade para a práxis do direito afetada. Na crítica de Müller, “o sociologismo
descura demais do programa da norma, que tem valor próprio; o normologismo descura
demais do âmbito da norma, que igualmente tem valor próprio. O decisionismo faz
desaparecer ambos na existencialidade acachapante da decisão soberana”
339
.
Efetivamente, sociologismo, normologismo e decisionismo permanecem no
campo do positivismo jurídico e da separação das grandezas “ser” e “dever-ser”. A
compreensão da norma e da normatividade destas correntes termina por afetar não a(s)
metodologia(s) proposta(s) para a práxis jurídica (claramente reducionista), como também do
próprio processo de concretização.
3.3.7 Elementos de política constitucional
Por fim, Müller apresenta o elemento de política constitucional. Os argumentos
provenientes deste elemento se desdobram num duplo aspecto: por primeiro, buscam ponderar
as conseqüências das decisões a serem formuladas, fornecendo pontos de vista que ajudam a
compreender e implementar, na prática, as normas constitucionais; por segundo, ajudam a
336
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 93.
337
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 95.
338
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito . p.
32.
108
perquirir o âmbito de normas de outras prescrições e áreas da constituição não diretamente
participantes do caso, perguntando acerca da adequação à finalidade das prescrições
formuladas pelo legislador. Em suma: “o estilo de raciocínio da política constitucional refere-
se à ponderação das conseqüências, à consideração valorativa de conteúdos”
340
.
O sopesamento das conseqüências de determinadas variantes de solução dos casos
jurídicos é um dado da realidade da práxis constitucional que não pode ser ignorado. De fato,
no processo de fundamentação da decisão é comum a utilização de argumentos que
mencionam as possíveis conseqüências da decisão. Como já foi visto, o Direito Constitucional
depende da política em grau elevado. Efetivamente, as normas constitucionais são políticas
quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e também a aplicação produz resultados (políticos),
que não podem ser ignorados.
341
Todavia, a concretização da constituição é uma tarefa jurídica e não política. Se o
direito é uma versão racional da política, a metódica é uma versão racional do direito. A
utilização na prática corrente de argumentos de política constitucional deve ser realizada de
maneira auxiliar, respeitando o caráter vinculante do direito constitucional. Argumentos de
política constitucional não podem ser utilizados em descompasso com as exigências de
racionalidade e objetividade próprias do Estado de Direito, e tampouco podem sobrepor-se
voluntaristicamente ao texto das normas constitucionais.
O oportunismo que se serve do “pluralismo de métodos” para a utilização em grau
hierárquico privilegiado de argumentos de política constitucional encontra na hierarquia dos
elementos de concretização proposta por Müller uma importante barreira.
3.4 A Hierarquia dos Elementos de Concretização
Como visto a metódica jurídica objetiva estruturar o processo de produção de
normas. No seu contributo à racionalização do trabalho jurídico, a metódica estruturante
objetiva identificar, avaliar, classificar e organizar por critérios de preferência os elementos de
concretização. Ao contrário de Kelsen, que abandona a concretização do direito ao puro
arbítrio do intérprete (limitado pela moldura), Müller busca estabelecer um processo seguro e
339
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 96.
340
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 97.
341
Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. p. 110.
109
comprovável, apresentando determinados critérios em que o intérprete se possa guiar. Entre
estes critérios está a hierarquia dos elementos de concretização, que será vista a seguir.
Apesar de estruturar e organizar os elementos de concretização por critérios de
preferência, a metódica estruturante não visa à obtenção de verdades, de respostas únicas.
Reconhecendo a impossibilidade de obtenção de uma racionalidade plena, busca a
racionalidade possível para o direito. Nos dizeres de Olivier Jouanjan, a metódica estruturante
“se contenta em exigir a racionalidade maximal e honestidade metódica optimal no processo
de concretização”
342
. Não por acaso, o próprio Müller enuncia que:
A metódica deve poder decompor os processos da elaboração da
decisão e da fundamentação expositiva em passos de raciocínio
suficientemente pequenos para abrir o caminho ao feedback
[Rückkopplung] controlador por parte dos destinatários da norma, dos
afetados por ela, dos titulares de funções estatais (tribunais revisores,
jurisdição constitucional etc.) e da ciência jurídica
343
.
Müller identifica e divide os elementos de concretização em dois grandes grupos:
(i) o primeiro é composto pelos elementos diretamente relacionados aos textos de normas; (ii)
ao passo que o segundo é formado pelos elementos não diretamente relacionados aos textos
de normas.
Do primeiro grupo fazem parte os elementos metodológicos strictiore sensu, isto
é, interpretações gramatical, histórica, genética, sistemática e, - com as restrições antevistas -
teleológica, além dos imperativos da interpretação em conformidade com a constituição e a da
correção funcional. Também fazem parte do grupo composto pelos elementos diretamente
relacionados aos textos de normas os elementos do âmbito da norma, por ocasião da
concretização, e aqueles elementos dogmáticos parcialmente referidos ao texto da norma. O
segundo grupo, que exerce função auxiliar no processo de concretização, compõe-se de:
elementos dogmáticos, elementos de política constitucional e elementos de técnica de solução.
110
3.4.1 Conflitos entre os elementos da concretização
Antes tudo, convém deixar assentado o que a metódica estruturante entende como
conflito entre os elementos da concretização. Para Müller: “só se pode falar de conflitos entre
os elementos individuais da concretização onde aparece uma oposição frontal entre aspectos
fecundos no caso individual”
344
. Trata-se, portanto, de deixar claro que inexiste conflito, e.g.,
quando o elemento histórico deixa duas possibilidades em aberto, das quais somente uma é
compatível com a interpretação gramatical
345
.
Feito este esclarecimento inicial, passar-se-á à exposição da caracterização e
solução das situações conflitivas entre os elementos individuais da concretização.
3.4.1.1 Conflito entre elementos não diretamente referidos a normas
Não há, em verdade, conflito entre os elementos não diretamente referidos a
normas. Trata-se, assim, de um falso conflito, aquele que contrapõe, de um lado, elementos de
política constitucional, de técnica de solução, de teoria, e de outro lado, elementos dogmáticos
não referidos a textos de normas. Isto porque inexiste regra de preferência entre tais
elementos.
Apesar de não haver ordem de preferência entre os elementos não diretamente
referidos a normas, Müller afirma que, no caso concreto, eles podem ser hierarquizados
conforme a solução possa ser “compatibilizada ‘melhor’, ‘mais corretamente’, ‘mais
plausivelmente’, ‘mais univocamente’ ou ‘mais conforme a finalidade’ com os resultados
parciais dos elementos referidos à norma ou com a função limitadora dos textos das
normas
346
. Trata-se aqui de um processo subjetivo de valoração dos elementos, que não
pode ser eliminado. Em não havendo hierarquia pré-definida entre esses elementos, cabe ao
intérprete, com senso de responsabilidade, providenciar a necessária gradação no caso
concreto, segundo os resultados parciais e as diretivas fornecidas pelos elementos diretamente
referidos às normas.
342
Jouanjan, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller - Método jurídico sob o paradigma pós-positivista. In:
Müller, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. p. 262.
343
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional.p. 53.
344
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional . p. 99.
345
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional .p. 99.
346
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional . p. 100.
111
A respeito da racionalidade no campo da metódica jurídica, Müller honestamente
assinala que: “A necessidade da racionalidade mais ampla possível da aplicação do direito
segue da impossibilidade da sua racionalidade integral; admitir esta última significaria ignorar
o caráter de decisão e de valoração do direito”
347
.
O reconhecimento da impossibilidade da racionalidade integral e a necessidade da
racionalidade e objetividade possível impelem à tentativa de contenção das decisões judiciais
fundamentadas unicamente em elementos não diretamente referidos a normas. Estes
elementos realizam um trabalho meramente auxiliar, pois sempre devem ser
compatibilizados, no processo de concretização, com aqueles elementos diretamente referidos
ao texto da norma.
Para além dessa primeira preocupação com a racionalidade da decisão, que
impinge ao intérprete a utilização dos elementos não diretamente referidos a normas conjunta
e auxiliarmente com aqueles elementos referidos às normas, surge uma segunda. A utilização
dos recursos metódicos sem orientação direta segundo a norma também deve ser realizada
levando em consideração os imperativos de clareza próprios do Estado de Direito, isto é, em
passos de raciocínio suficientemente pequenos, de modo racionalmente controlável
348
. Se a
valoração é um elemento intrínseco à decisão, Müller deixa claro que decisões valorantes
devem ser caracterizadas como tais
349
.
3.4.1.2 Conflito entre os elementos não diretamente referidos a normas e os elementos
diretamente referidos a normas
Em caso de conflito/contradição entre os elementos não diretamente referidos a
normas e os elementos diretamente referidos a normas, estes se sobrepõem àqueles. Para
Müller, esta regra de preferência é normativa. Müller utiliza como referente para a criação das
regras de preferência a Lei Fundamental de Bonn e a casuística do direito constitucional
alemão. As regras vinculantes de preferência derivam de imperativos do direito constitucional
positivo, de regras que estão contidas na Constituição alemã.
O artigo 20, alínea 3, da Constituição alemã, fornece exemplo bastante das regras
que formam o que Müller denomina “imperativos do Estado de Direito”. Dispõe o referido
347
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 66.
348
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 100.
112
dispositivo normativo: “Art. 20. (3). O poder legislativo está subordinado à ordem
constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito”. Partindo do
inarredável pressuposto de que o exercício de qualquer função estatal (seja no âmbito do
executivo, legislativo ou judiciário), é pautado pela constituição e pelo direito, Müller irá
derivar a conseqüência da prevalência dos elementos diretamente ligados aos textos de
normas.
Apesar de Müller defender a prevalência dos elementos referidos a normas, em
caso de conflito, com base na experiência e na legislação alemã, sua metódica é amplamente
adequada à realidade constitucional brasileira, já que a vinculação à Constituição é uma
obrigação que atinge a todos os poderes.
Especificamente no caso do Poder Judiciário, deve-se fazer menção ao princípio
da legalidade insculpido no art. da Constituição Federal, além do art. 93, inciso IX, que
afirma expressamente que: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. Em nível
infraconstitucional, o artigo 35, inciso I, da Lei Orgânica da Magistratura, afirma que: “Art.
35 - São deveres do magistrado: Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e
exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”. Dispositivos processuais, seja no âmbito
civil (art. 126 do Código de Processo Civil), seja no âmbito penal, também dispõem sobre a
necessidade de submissão do magistrado à lei. Daí que se possa sustentar o caráter normativo
das regras de preferência também no ordenamento jurídico brasileiro.
3.4.1.3 Conflito entre os elementos de concretização diretamente referidos a normas
Müller elenca quatro possibilidades de conflito entre os elementos de
concretização diretamente referidos a normas. São eles:
(i) elementos dogmáticos referidos a normas vs. elementos metodológicos em
sentido estrito e do âmbito da norma: Em caso de conflito entre os aspectos acima
referidos, os segundos têm preferência. Como a norma jurídica e a norma de decisão são
sempre construídas a partir do impulso de um caso concreto, os elementos metodológicos em
sentido estrito e do âmbito da norma poderiam comprovar que “as normas de decisão
anteriormente elaboradas pela práxis e pela ciência e transmitidas pelos enunciados
349
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 104.
113
dogmáticos aduzidos não dizem respeito à norma de decisão concretizanda a partir da mesma
norma jurídica com vistas ao caso pendente”
350
.
Conforme reiteradamente exposto ao longo do presente trabalho, Müller refuta (i)
a possibilidade dos textos de normas possuírem um sentido imanente, bem como a (ii)
possibilidade da solução dos problemas jurídicos realizar-se através da subsunção. Como o
texto da norma jurídica é indeterminado, e em cada caso de aplicação surge apenas como
hipótese que pode ou não ser pertinente ao caso concreto, privilegia-se o intérprete (e a
atualidade da sua ligação contextual com o texto da norma) em detrimento da dogmática
jurídica, cujo objeto (parcial) de trabalho são antigas normas de decisão. Em síntese, os
elementos metodológicos e do âmbito da norma teriam o condão de refutar, com vistas ao
caso concreto, construções dogmáticas referentes ao mesmo texto de norma, sob o argumento
de que estas não são concernentes.
(ii) elementos do âmbito da norma vs. elementos metodológicos strictiore
sensu: Em caso de conflito entre elementos do âmbito da norma e elementos metodológicos
em sentido estrito, estes prevalecem sobre aqueles. Para chegar a este resultado, Müller
diferencia um sentido positivo e um sentido negativo para a determinação do conteúdo da
norma de decisão. De um ponto de vista positivo, a estrutura da norma é formada pelo
“programa normativo” e pelo “âmbito normativo” com grau hierárquico igual.
Entretanto, numa perspectiva negativa tendente a delimitar os resultados possíveis
do processo de concretização - e de formação da norma de decisão -, os elementos de
interpretação em sentido estrito e diretamente referidos aos textos das normas, quais sejam: a
interpretação gramatical e sistemática
351
, prevalecem aos elementos do âmbito na norma, por
razões inerentes ao Estado de Direito. Isto porque, como visto no segundo capítulo, o
programa da norma dirige e limita todo o processo de concretização.
(iii) elementos metodológicos strictiore sensu (elementos de interpretação)
entre si:
350
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 101.
351
Como visto anteriormente, os elementos metodológicos em sentido estrito compõe-se da: interpretação
gramatical, interpretação sistemática, interpretação histórica, interpretação genética e interpretação teleológica.
Estes elementos se referem em parte aos textos das prescrições jurídicas vigentes (interpretação gramatical,
interpretação sistemática), e em parte aos textos de não-normas.
114
O terceiro tipo de conflito que pode surgir durante o processo de concretização é
aquele no qual conflitam elementos metodológicos em sentido estrito entre si (gramatical,
sistemático, histórico, genético e teleológico). Neste caso, têm preferência os elementos que
se relacionam diretamente com textos de normas, in casu, o elemento gramatical e o elemento
sistemático.
Müller reiteradamente insiste que a prevalência dos elementos diretamente
relacionados aos textos de normas é conseqüência de imperativos do Estado de Direito. As
regras de preferência derivam do próprio ordenamento constitucional positivo, de regras que
expressa ou veladamente estão contidas na Lei Fundamental de Bonn
352
. Nas palavras do
professor alemão:
O primado segue dos imperativos inerentes ao Estado de Direito
da inviolabilidade da constituição, da vinculação à lei e ao direito, da
rigidez do direito constitucional no sentido da clareza do seu texto de
normas, além disso dos imperativos da clareza das normas e da
determinidade do suporte fático, da clareza dos métodos, da segurança
jurídica e da delimitação constitucionalmente normatizada das
funções
353
.
Como visto anteriormente, a divisão dos elementos metodológicos em sentido
estrito: (i) relacionados aos textos das prescrições jurídicas vigentes, e; (ii) relacionados aos
textos de não-normas, repercute diretamente na hierarquização dos elementos de
preferência em caso de conflito. Em caso de contradição, a interpretação gramatical e a
interpretação sistemática sempre prevalecem. Os elementos restantes do processo de
concretização possuem o mesmo grau hierárquico. Não gradações de posição entre os
elementos genético, histórico e teleológico.
352
Müller cita os seguintes dispositivos constitucionais: artigo 19, al. 1, frase 2; art. 79, al. 1, frase 1; art. 80, al.
1, frase 2. Art. 19. (1) Na medida em que, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental pode ser
restringido por lei ou com base numa lei, essa lei tem de ser genérica e não limitada a um caso particular. Além
disso a lei terá de citar o direito fundamental em questão, indicando o artigo correspondente. Art. 79. (1) A lei
fundamental pode ser alterada por uma lei que expressamente complete ou modifique seu texto. No caso de
tratados internacionais relativos à regulamentação da paz, à preparação de uma regulamentação da paz, ou à
extinção de uma ordem jurídica criada pela ocupação, ou que sejam destinados a servir à defesa da República
Federal da Alemanha, será suficiente, para deixar esclarecido que as disposições da Lei Fundamental não se
opõem à conclusão ou à entrada em vigor de tais tratados, incluir no texto da Lei Fundamental uma
complementação que se limite a esclarecimento. Art. 80. (1) O Governo Federal, um Ministro Federal ou os
governos dos estados podem ser autorizados por lei a promulgarem decretos. Para tal a lei deve determinar
conteúdo, objetivo e extensão da autorização outorgada. O fundamento jurídico tem de ser precisado nesses
decretos. Quando a lei prevê que um poder pode ser subdelegado, a subdelegação desse poder carece de um
decreto.
353
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 102.
115
Müller oferece um exemplo sugestivo e elucidador para defender a prevalência
dos elementos relacionados aos textos das prescrições jurídicas vigentes. Num determinado
caso concreto, onde houvesse contradição entre o elemento gramatical e o elemento genético,
e a decisão levasse em conta o material legislativo em desfavor do teor literal da prescrição, a
decisão seria tomada a partir de um texto não-normativo contra o texto da norma jurídica.
Para Müller, essa decisão seria inadmissível, pois confrontaria “formulações lingüísticas de
dois estágios diferentes da história dos efeitos produzidos [Wirkungsgeschichte] pela mesma
prescrição: do estágio ainda não vinculante da história da sua origem e do estágio da sua
vigência, agora vinculante”
354
.
A divisão efetuada por Müller entre os elementos metodológicos strictiore sensu
(i) relacionados aos textos das prescrições jurídicas vigentes, e; (ii) relacionados aos textos de
não-normas, também serve como ponto de partida para a crítica às chamadas teorias subjetiva
e objetiva da interpretação.
Em linhas gerais, a teoria objetiva professa que em caso de contradição dos
resultados parciais entre os elementos metodológicos em sentido estrito, a interpretação
genética deveria ceder não em face da interpretação gramatical e sistemática, mas também
perante a interpretação histórica e teleológica.
Entretanto, a partir das regras estabelecidas por Müller, que levam em
consideração a ligação dos elementos em sentido estrito com (i) textos de normas ou (ii)
textos de não-normas, o nada que permita dizer que os elementos histórico e teleológico
sejam “mais objetivos” que o genético. Todos estes elementos referem-se à textos de não-
normas, motivo pelo qual uma gradação hierárquica somente realizar-se-á no caso concreto, a
partir da valoração do operador jurídico.
A adesão à metódica estruturante necessariamente acarreta a desconsideração do
vetusto debate entre “objetivistas” e “subjetivistas”. Nos dizeres de Müller:
O entendimento da doutrina dominante de que as interpretações
gramatical, sistemática, teleológica e histórica teriam como objeto e
resultado a “vontade objetivada” da própria norma, mas de que o
aspecto genético a partir dos materiais legais teria como objeto e
354
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 103.
116
resultado apenas a “vontade subjetiva” do dador da norma, não pode
ser sustentado conforme as regras aqui elaboradas
355
.
(iii.i) elemento gramatical vs. elemento sistemático:
Por fim, temos a possibilidade de conflito entre os elementos diretamente
referidos aos textos de normas. Ao explicitar o modo de solução de um possível conflito entre
o elemento gramatical e o elemento sistemático, Müller novamente faz uso da diferenciação
entre determinação positiva e negativa do conteúdo da norma de decisão.
No que se refere à determinação negativa, isto é, aquela destinada a limitar as
possibilidades “de decisão na margem de atuação dos resultados parciais concretizados”,
Müller afirma que o aspecto gramatical prepondera em relação ao aspecto sistemático. Em
caso de contradição entre o texto da norma pertinente A, e as textos das normas não-
pertinentes X,Y,Z... (sistematicamente agrupadas e aduzidas), o texto da norma exerce uma
função limitadora, em razão dos princípios do Estado de Direito.
no que tange à determinação positiva do conteúdo da norma de decisão, a
contradição deve ser dissolvida levando em consideração os outros elementos envolvidos no
processo de concretização. Para tanto, as decisões valorantes a respeito de uma ou outra
posição não devem ser obscurecidas ou obnubiladas, mas afirmadas enquanto tais. De
toda forma, Müller deixa claro que sempre que o aspecto sistemático não possa ser
comprovado de forma cogente, deve ceder ao aspecto gramatical. Segundo Müller, dada a
dificuldade, no direito constitucional, de comprovação cogente do nexo sistemático, “o
aspecto gramatical tem preferência no resultado para a massa principal dos casos de direito
constitucional”
356
.
3.5 O uso dos elementos de concretização na jurisprudência do STF: análise da decisão
do Agravo Regimental na Reclamação n.º 3034-2
A presente subseção não pretende apresentar uma concepção global sobre o modo
de utilização dos elementos de concretização na prática do Supremo Tribunal Federal. Apenas
um longo e duradouro estudo de casos, com metodologia bem definida, poderia lograr êxito
na consecução deste fim. O objetivo primário da presente exposição é tentar contextualizar a
355
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 103.
356
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p. 105.
117
hierarquia dos elementos (e os próprios elementos) da metódica estruturante, sob o fio
condutor de um caso prático, tentando desencastelar a metódica de Müller do abstracionismo
da mera exposição teórica. Apenas secundariamente far-se-á uma crítica da jurisprudência
selecionada, sob a ótica da metódica estruturante
357
.
Dada a vocação da metódica estruturante para o trato de questões concretamente
apresentadas, pretende-se, a partir da análise da jurisprudência selecionada do Supremo
Tribunal Federal, aprofundar o estudo numa perspectiva crítica, apta a desconstruir a decisão
proferida, buscando-se identificar: (i) quais elementos foram utilizados para a fundamentação
da decisão e, (ii) de que forma eles foram hierarquizados (ainda que implicitamente e/ou sem
reflexão).
Convém algumas explicações a respeito do procedimento para a eleição dos
julgados a serem analisados. A idéia central girou em torno da procura por demandas judiciais
que envolvessem discussão em termos de método, onde a literalidade das normas
constitucionais fosse colocada à prova. Após vários órgãos da imprensa noticiarem em
meados de 2006 a decisão do STF no Agravo Regimental na Reclamação n.
º 3.034-2,
resolveu-se que a pesquisa analisaria decisões que envolvessem a deferimento do seqüestro de
valores do Estado, em razão de grave doença de credor de precatório.
A pesquisa no banco de dados de jurisprudência do site do Supremo Tribunal
Federal foi realizada em 20 de janeiro de 2009 com as seguintes palavras-chave digitadas no
campo de busca: “precatório”, “seqüestro”, “doença”. Com as expressões que serviram para a
busca, apenas 1 (um) processo foi identificado, qual seja: o próprio Agravo Regimental na
Reclamação n.
º 3.034-2.
Tendo em vista: (i) que o objetivo prioritário não é desenvolver um estudo de
casos, mas demonstrar, sob o fio condutor de um caso prático, a hierarquia dos elementos de
concretização da metódica estruturante da maneira mais transparente possível; (ii) que a
inédita decisão do STF (e por enquanto única) abre precedente para que milhões de credores
de precatórios em situações excepcionais (e.g. grave doença) proponham ações judiciais
357
O presente subitem é solidário à crítica de Virgilio Afonso da Silva a respeito dos trabalhos científicos sobre
interpretação constitucional no Brasil; não são mais possíveis estudos que se reduzam à mera catalogação de
distintos métodos em longas e aborrecidas exposições teóricas; a necessidade da demonstração da
aplicabilidade dos métodos jurídicos. Sobre o tema ver: Interpretação constitucional e sincretismo
118
contra a União, Estados e Municípios; optou-se por manter a decisão no Agravo
Regimental na Reclamação n.º 3.034-2
como objeto de análise do estudo. Conforme se
verá, o caso versava sobre os limites e possibilidades de concretização do artigo 100, § 2º, da
Constituição Federal, in verbis:
Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os
pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em
virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem
cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos
respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas
dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão
consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente
do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento
segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do
credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de
precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do
débito. (Redação dada pela Emenda Constitucional 30, de
13/09/00)
Eis os fatos que cercam o caso do Agravo Regimental na Reclamação n.º 3.034-2,
cujo relator foi o Ministro Sepúlveda Pertence. A Sra. Maria de Jesus Bezerra Cabral,
portadora de doença grave e incurável (neoplasia maligna) e credora de precatório, ajuizou
ação ordinária de cobrança em face do Estado da Paraíba. O Tribunal de Justiça paraibano
deferiu o pedido e determinou o seqüestro de verbas do Estado para a quitação do precatório.
Insatisfeito com o resultado da demanda, o Estado da Paraíba protocolizou
Reclamação, com pedido liminar, na qual afirmava que o Presidente do Tribunal de Justiça do
Estado da Paraíba, ao determinar o seqüestro no valor de R$ 356.940,13 (trezentos e
cinqüenta e seis mil, novecentos e quarenta reais e treze centavos) desrespeitou a decisão do
Supremo Tribunal no julgamento da Adin n.º 1.662, quando se teria decidido que a “única
modalidade de seqüestro constitucionalmente admitida é aquela prevista no § 2º do art. 100 da
CF – preterimento de direito de preferência do credor”.
O Ministro Nelson Jobim deferiu o pedido de liminar para suspender os efeitos da
decisão reclamada, até o julgamento final. Ato contínuo, a Reclamação teve o seguimento
negado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, porque o ato reclamado não guardaria identidade
metodológico. In: Interpretação constitucional. Silva, Virgílio Afonso da (org.). São Paulo: Malheiros, 2005. pp.
115-143.
119
com o ato normativo impugnado na Adin n.º 1.662, o que impediria o conhecimento do caso
concreto pela via da Reclamação.
Assim, foi protocolizado o Agravo Regimental, com pedido de efeito suspensivo,
no qual o Estado da Paraíba, em suma, alegou que a identidade fática entre o caso sob exame
e o paradigma apontado na Reclamação “não há de ser absoluta, bastando a mera proximidade
da matéria”. O Ministério Público, na pessoa do então Procurador-Geral Cláudio Fonteles,
opinou pelo não provimento do agravo.
Em 21.09.2006 o plenário do Supremo Tribunal Federal negou provimento, por
unanimidade, ao recurso de Agravo Regimental na Reclamação n.º 3034-2, nos termos do
voto do relator Ministro Sepúlveda Pertence. O Ministro Eros Roberto Grau, após pedir vista
do processo em 27.10.2005 e renová-lo em 30.11.2005, apresentou voto-vista. Serão
analisados, pois, os votos dos Ministros supramencionados.
(i) O voto do Rel. Ministro Sepúlveda Pertence: O Ministro Sepúlveda Pertence
fundamenta o seu voto de forma técnica. Em verdade, o Ministro transcreve integralmente o
parecer do Ministério Público. O único trecho efetivamente redigido pelo Ministro é o
seguinte:
“Incensurável o parecer do Ministério Público, cujos fundamentos
adoto como razão de decidir, nego provimento ao agravo regimental: é
o meu voto”.
O voto do Ministro Sepúlveda Pertence se resume a julgar se a decisão do TJ-PB
ofende ou não a autoridade das decisões do STF, no cotejo com a Adin n.º 1662, cuja sentença
tem efeitos erga omnes. O voto do Ministro Relator não discute diretamente a questão que se
coloca aqui, isto é, a possibilidade de seqüestro em decorrência de situações não
contempladas no texto constitucional e tampouco na legislação infraconstitucional (e.g.,
doença grave e incurável).
O Ministro nega provimento ao Agravo Regimental, pois entende que as
circunstâncias do caso concreto distanciam-se daquelas desenhadas no quadro da Adin n
1.662. Não existiria “a necessária identidade material entre o fundo do direito impugnado e a
interpretação consagrada por esta Excelsa Corte nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. º 1662”. Apesar da Adin n.º 1662 questionar a constitucionalidade da
Instrução Normativa n.º 11/97, aprovada pela Resolução n.º 67/97, do Tribunal Superior do
120
Trabalho, fato é que a interpretação consagrada pelo STF foi aquela no sentido de que, com
relação aos precatórios originários de débitos alimentares e a outros não incluídos no preceito
transitório [art. 78, do ADCT], a única hipótese de seqüestro constitucionalmente admissível
continuaria sendo a pertinente à quebra da precedência.
Parafraseando João Maurício Adeodato, pode-se perceber aqui o conceito básico
de “concretização” em Müller, quando se observa que o sentido da norma não está fixado de
modo objetivo no texto e depende fundamentalmente do resultado da “interpretação”
358
.
Conforme se infere do artigo 102, inciso I, alínea “l”, da Constituição Federal e do artigo 13,
da Lei n.º 8.038/90
359
, a Reclamação é admissível em duas hipóteses: “para preservação da
esfera de competência da Corte” e “para garantir a autoridade das suas decisões”.
Ocorre que o significado das expressões “preservar a competência do Tribunal” e
“garantir a autoridade das suas decisões” não está dado no texto legal e depende da
concretização. Esclarece-se aqui a principal tese da teoria estruturante: o texto da norma não
se confunde com a norma jurídica; a norma jurídica é “construída” no processo de
concretização. A Constituição Federal e o texto da Lei n.º 8.038/90 não estabelecem
claramente os pressupostos para o conhecimento de Reclamação ajuizada com o fim de
preservar a autoridade de acórdão proferido no julgamento de Adin. O artigo 13 da Lei n.º
8.038/90 não pode ser simplesmente subsumido. A representação mental do positivismo
jurídico não pode oferecer uma solução satisfatória para o problema. Não se pode tirar do
texto legal a exigência da necessária identidade material entre o fundo do direito impugnado
e a interpretação consagrada no STF.
O reconhecimento destes fatores fortalece a crítica de Müller no sentido da
necessidade de uma metódica constitucional que garanta um mínimo de racionalidade e
controlabilidade das decisões. que se perguntar se por detrás da decisão “eminentemente
técnica” do Ministro Sepúlveda Pertence, não se ocultam fatores de poder e elementos de
política constitucional, tendentes a refrear o número de ações que chegam ao Supremo
Tribunal Federal.
358
Adeodato, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002.
p. 231.
359
Art. 13. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões, caberá
reclamação da parte interessada ou do Ministério Público. Parágrafo único. A reclamação, dirigida ao Presidente
do Tribunal, instruída com prova documental, será autuada e distribuída ao relator da causa principal, sempre
121
(ii) O voto-vista do Ministro Eros Roberto Grau: O voto do Ministro Eros
Roberto Grau permite outra análise crítica a partir da metódica estruturante. Isto porque,
diferentemente do voto do Min. Relator, não se detém sobre a questão da admissibilidade da
Reclamação, mas sim sobre a possibilidade de seqüestro de valores diante de uma situação de
excepcionalidade (confessadamente não contemplada pelo texto constitucional).
O Ministro Eros Roberto Grau inicia o voto-vista chamando a atenção para o fato
de o seqüestro ter sido deferido pelo Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, em razão da
doença grave e incurável da credora, e não em virtude de quebra da ordem cronológica de
pagamentos. Após apresentar as três situações nas quais entende admissível o seqüestro
360
,
bem como deixar assentado que o Supremo, de modo uniforme, o entende cabível unicamente
se houver preterimento ao direito de preferência, conclui que o caso em epígrafe não se
amolda a nenhuma destas circunstâncias.
O Ministro Eros Grau afirma que para ser coerente, haveria de votar no sentido
de dar provimento ao agravo”. No entanto, aduz que a situação de fato de que nestes autos
se cuida consubstancia uma exceção
361
. Após servir-se dos ensinamentos de Carl Schmitt,
Maurice Hauriou
362
e Giorgio Agamben, diz, ainda, que “a esta Corte, sempre que necessário,
incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do
ordenamento, eis que aplica a norma à exceção”.
Ao concluir, negando provimento ao agravo, o Ministro assim se manifesta:
que possível. Art. 17. Julgando procedente a reclamação, o Tribunal cassará a decisão exorbitante de seu julgado
ou determinará medida adequada à preservação de sua competência.
360
Segundo o Ministro Eros Roberto Grau, a Emenda Constitucional n.º 30 admite o seqüestro em três situações:
(i) vencimento do prazo de dez anos, do art. 78 do ADCT [§ 4º do art. 78 do ADCT]; (ii) preterição do direito de
precedência 2º do art. 100 e § do art. 78 do ADCT]; (iii) omissão, a partir do oitavo ano do prazo de dez
anos, de inclusão de verba no orçamento, prevista no § 1º do artigo 100, quanto aos créditos de que trata o art. 78
do ADCT [§ 4º do art. 78 do ADCT].
361
“Com efeito, estamos diante de uma situação singular, exceção, e, como observa Carl Schmitt, as normas
valem para as situações normais. A normalidade da situação que pressupõem é um elemento sico do seu
“valer”. A propósito, Maurice Hauriou menciona “...cette idée très juste que lês lois ne sont faites que pour um
certain état normal de la société, et que, si cet état normal est modifié, il est natural que lês lois et leurs garanties
soint suspendus”. E prossegue: “c’est três joli, lês lois; mais il faut avoir le temps de lês faire, et il s’agit de ne
pás être mort avant qu’elles ne soint faites”. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o
estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se
subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção apenas desse modo ela se constitui como
regra, mantendo em relação com a exceção”. As referências bibliográficas das obras citadas são (i) Carl Schmitt,
Los três legisladores extraordinários de La Constituición de Weimar, in Carl Schmitt, teólogo de la política, cit,
pág 313; (ii) Notes d’arréts sur décisions du Conseil d’État et du Tribunal dês Conflits, tome troisième, Sirey,
Paris, 1929, g. 173; (iii) Giorgio Agamben, Homo Sacer o poder soberano e a vida nua. trad. Henrique
Burgo, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2004, págs 26 e 27.
362
O Min. Eros Roberto Grau cita o autor no original, em francês, sem providenciar tradução.
122
“Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o
direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma
operação ao praticarmos essa única operação, isto é, ao
interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo
das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais
substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou
doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para
prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o
ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totalidade. Não
somos meros leitores de seus textos para o que nos bastaria a
alfabetização – mas magistrados que produzem normas, tecendo e
recompondo o próprio ordenamento”.
Procedendo-se à desconstrução do voto-vista a partir da metódica estruturante,
percebe-se que o Ministro Eros Roberto Grau utiliza-se exclusivamente de elementos de
teoria, isto é, as obras de Carl Schmitt, Maurice Hauriou e Giorgio Agamben, que
supostamente defenderiam que as leis são feitas para uma determinada sociedade normal, e
que, se esta condição é alterada, é natural que as leis e suas garantias sejam suspensas.
Do ponto de vista da metódica estruturante, porém, a norma de decisão jamais
poderia ser formulada exclusivamente com base em elementos de teoria. Os elementos
teóricos somente poderiam ser utilizados de forma auxiliar; jamais no topo da hierarquia dos
elementos de concretização. O voto do Ministro Eros Roberto Grau foi pura decisão. Não se
está aqui a debater a correção do voto. Apenas constata-se que ele não seguiu os rigores de
um método (seja ele qual for). Os argumentos empregados são retóricos, não oferecem uma
avaliação ampla das várias opções interpretativas e se satisfazem com referências a
autoridades (juristas e cientistas sociais), como se o prestígio acadêmico pudesse justificar
uma decisão.
Como visto no decorrer do trabalho, a decisão não se restringe à interpretação de
textos, não fica colada ao teor literal não mediado. Nos dizeres de Müller, “a decisão não
precisa resultar do teor literal, mas deve ser de qualquer modo ainda compatível com o texto
da norma não apenas interpretado gramaticalmente, mas integralmente concretizado no
precedente processo decisório”
363
. Para que a decisão do Ministro levasse os textos a sério (e
se fosse o caso), o teor literal deveria ser mediado com uma interpretação sistemática que
trouxesse outros textos de normas pertinentes (e.g. o texto de norma que trata do direito à
saúde). Infelizmente, não foi o caso.
363
Müller, Friedrich. Métodos de direito constitucional. p. 75.
123
Num caso que envolvesse o mesmo pedido de seqüestro de valores em virtude de
grave doença, o teor literal deveria, se adotada a metódica de Müller, ser mediado com: (i) os
recursos metodológicos em sentido estrito (interpretação gramatical, sistemática, genética e
histórica
364
); (ii) a análise do âmbito da norma (além das circunstâncias factuais, elementos
advindos das ciências sociais); os elementos auxiliares de concretização (elementos de
dogmática, de teoria, de política constitucional e de técnica de solução).
Especificamente sobre os elementos auxiliares de concretização, os argumentos
de política constitucional poderiam representar um importante papel, ao ponderar os efeitos
da decisão que defere o seqüestro de verbas do orçamento da União, Estado e Municípios,
caso os credores tenham condições de alegar o mesmo tipo de exceção e, assim, receber os
valores devidos pelo Poder Público
365
.
364
O artigo 100, § 2º da CF/88, por exemplo, guarda enormes semelhanças com o artigo 112, § 2º, da
Constituição Federal de 1967, in verbis: Art. 112 - Os pagamentos devidos pela Fazenda federal, estadual ou
municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios e à conta dos
créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos
extra-orçamentários abertos para esse fim. § - As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão
consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias respectivas à repartição competente. Cabe ao
Presidente do Tribunal, que proferiu a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades do
depósito, e autorizar, a requerimento do credor preterido no seu direito de precedência, e depois de ouvido o
chefe do Ministério Público, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito.
365
A notícia veiculada no Jornal Valor Econômico dá a medida dos efeitos: De acordo com um estudo realizado
pelo Movimento dos Advogados de Credores Alimentares (Madeca), hoje há mais de 600 mil credores de
precatórios alimentares do município e do Estado de São Paulo. No Estado, 45 mil deles morreram sem
receber os valores a que tinham direito. No município, os mortos somam 10 mil. Do total de credores, mais de
70% tem idade superior a 65 anos. Cf. Jornal Valor Econômico de 25.09.2006.
124
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho procurou enfatizar a relação entre a concepção de norma
jurídica proposta pela teoria estruturante do direito e os reflexos desta nova concepção para a
metódica jurídica. Procurou-se pesquisar em que medida a concepção de norma jurídica
levada a efeito pela teoria e metódica estruturantes reflete na interpretação e na aplicação do
direito. Conforme foi visto, Müller propõe uma relação umbilical entre teoria da norma e
metódica jurídica, ao ressaltar que construção da norma jurídica é realizada através da
respectiva metódica. Convém, em conclusão, passar em revista pela teoria e metódica
estruturantes, a fim de constatar as inovações da teoria da norma jurídica, e os seus
respectivos impactos para a metódica.
O primeiro passo do trabalho consistiu em identificar as contribuições das
principais escolas hermenêuticas do século XIX e XX. Muito brevemente viu-se que a Escola
da Exegese pleiteava um raciocínio lógico-dedutivo. A norma formaria a premissa maior, os
fatos a premissa menor, sendo a decisão a conclusão do silogismo. A jurisprudência dos
conceitos igualmente notabilizou-se por defender a teoria da subsunção. Entretanto,
diferentemente da escola francesa, a premissa maior seria formada por um conceito de direito,
e não pela lei. A Escola do Direito Livre, apesar das críticas as concepções metodológicas
assentes na aplicação subsuntiva, ficou marcada por pleitear uma atividade decisória pautada
na vontade e no sentimento. A jurisprudência dos interesses, além de também criticar ao
modelo lógico-dedutivo, se preocupou especialmente com o problema das lacunas e a
necessidade de ponderação dos interesses sociais em jogo. Conforme constatado por Müller,
as críticas da Escola do Direito Livre e da jurisprudência dos interesses não se voltaram para a
questão da estrutura do conceito de norma jurídica.
A teoria da interpretação de Hans Kelsen mereceu especial atenção. A distinção
entre ser e dever-ser proposta pela teoria pura do direito acarretou segundo Müller em
uma teoria da interpretação “vazia”, a impedir a racionalização dos teores materiais
normativos. Muller critica Kelsen por não oferecer critérios: (i) para determinar a moldura
normativa; (ii) para balizar as escolhas do operador do direito no interior desta mesma
moldura. A teoria pura do direito não propõe a pergunta pela correção quanto ao conteúdo; a
decisão do intérprete autêntico não é um problema da teoria jurídica, mas apenas da política
125
jurídica. A distinção entre ser e dever-ser faz com que “a ciência seja purificada, mas não a
prática”.
Como foi visto, na doutrina de Kelsen “direito” e “realidade” se relacionam
apenas no fato do direito ter sido positivado e da realidade condicionar a sua vigência. Para
Müller, entretanto, esta não é a única relação possível. O jurista de Heidelberg procura
deslocar a pergunta sobre a relação entre direito e realidade para a teoria da norma jurídica. Se
em Kelsen a norma está “desconectada” da realidade, em Müller ela se torna elemento co-
constitutivo.
Como foi visto no segundo capítulo, para Müller um nexo indissociável entre
compreensão da norma, questões práticas do direito e epistemologia. O autor entende que a
separação da norma e dos fatos, do direito e da realidade, assim como a compreensão da
norma como algo preexistente, são fatores que caracterizam o positivismo na ciência jurídica.
A noção “irrealista” da norma jurídica enquanto puro “dever-ser” que se confronta com o
“ser” seria, ademais, responsável pelos problemas metódicos constatados na práxis. A fim de
superar as posições metódicas devotadas à concepção de norma jurídica enquanto puro dever-
ser, Müller propõe uma nova compreensão de norma já orientada aos métodos. É neste
sentido que articula a teoria da norma jurídica e a metódica estruturante.
A teoria da norma jurídica de Friedrich Müller é construída a partir da contestação
da contraposição entre ser e dever-ser. Müller propõe a norma jurídica como uma noção
composta de ser e dever-ser, de dados lingüísticos e dados reais. A estrutura da norma
proposta por Müller designa o nexo entre as partes conceituais integrantes da norma jurídica:
o programa da norma (Normprogramm) e o âmbito da norma (Normbereich).
Para a teoria e metódica estruturantes a norma jurídica não se identifica ao texto
da norma. A norma jurídica não preexiste nos códigos e nas leis. O que se nas leis e nos
códigos não passa de formas preliminares. A norma é construída através do processo de
concretização. A diferenciação entre o programa da norma (Normprogramm) e o âmbito da
norma (Normbereich) permite dizer que a normatividade não decorre simplesmente do texto,
mas é também co-constituída pelo âmbito normativo, isto é, aquela parcela da realidade social
relacionada com o texto da norma. A norma jurídica aparece, portanto, como um modelo de
ordem materialmente determinado. A normatividade é o resultado do efetivo funcionamento,
126
do efetivo reconhecimento e da atualidade específica do ordenamento constitucional em
causa.
A temporalidade inerente da normatividade que exsurge ao final do processo de
concretização faz com que a teoria e metódica estruturantes do direito rejeitem o conceito
positivista de “aplicação do direito”. A norma não pode ser simplesmente aplicada, porque
não está pronta e nem substancialmente acabada. Trata-se, sob o ponto de vista teórico, de
uma impossibilidade lógica. Como a norma não está pronta e não se restringe ao texto (aos
dados lingüísticos/programa da norma), a concretização não se confunde com interpretação,
aplicação ou subsunção. A norma jurídica (Rechtnorm) surge apenas no decorrer do processo
de concretização, com a interligação do programa da norma e do âmbito da norma. O passo
final do processo de concretização consiste na individualização da norma jurídica
(Rechtnorm) em norma de decisão (Entscheidungsnorm).
A última parte do trabalho investigou a metódica estruturante de Friedrich Müller.
Em função da nova concepção de norma (a articular ser e dever-ser, dados lingüísticos e
dados reais, programa normativo e âmbito normativo), Müller dispõe-se a investigar a
serventia dos elementos metódicos tradicionais formulados por Savigny (interpretação
gramatical, lógica, sistemática e histórica). Müller constata que os elementos herdados da
tradição referem-se apenas ao tratamento dos textos de normas. Entretanto, para ller, a
norma é mais do que o seu teor literal. Para solucionar esta aporia, Müller atua em duas
frentes: de um lado, busca desenvolver e reformular os elementos de tratamento do texto da
norma; de outro, busca desenvolver elementos metódicos capazes de aproveitar o teor
material dos âmbitos normativos de forma racionalmente verificável.
Especificamente no que se refere aos elementos de tratamento dos textos de
normas, Müller reformula os cânones de Savigny (propondo em substituição os elementos
gramatical, sistemático, histórico, genético e teleológico), além de incorporar (parte) dos
modernos princípios de interpretação da constituição.
Em vista da estrutura da norma jurídica desenvolvida pela teoria da norma, a
metódica estruturante desenvolve e trabalha com os seguintes elementos de concretização: (i)
elementos metodológicos “strictiore sensu” (interpretação gramatical, sistemática, histórica,
genética e teleológica, bem como os modernos princípios de interpretação da constituição);
(ii) elementos do âmbito da norma; (iii) elementos dogmáticos; (iv) elementos de teoria; (v)
127
elementos de técnica de solução; e (vi) elementos de política do direito e política
constitucional. Por razões ligadas aos imperativos do Estado Democrático de Direito, viu-se
que os elementos diretamente referidos as normas preponderam em relação aos outros em
caso de conflito.
A metódica estruturante preocupa-se em desenvolver meios de um trabalho
controlável de decisão e fundamentação; apresenta-se, portanto, como uma técnica de decisão
e de imputação que tem como exigência a submissão da norma de decisão aos textos de
normas jurídicas gerais. Ela visa à formulação e elaboração de regras que permitam a
imputação da norma de decisão a um texto de norma jurídica geral, que lhe serve de
fundamento.
Tem-se, portanto, que a teoria da norma jurídica de Müller não modifica a
metódica apenas de forma terminológica, no sentido do termo “concretização” englobar os
conceitos tradicionais de “interpretação” e “aplicação do direito”. A estrutura da norma
jurídica redefine a prática jurídica; ela estabelece novas tarefas e introduz novos elementos,
no intuito de racionalizar o trabalho de decisão.
128
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