De repente foi como tudo se interrompesse, e baixaram de altura as ondas, e uma
brisa fresquíssima redimia os embarcados da sua inquietude. Mas significava
isso que desembestara a borrasca, a qual ia explodindo com enorme fulgor, e
desconjuntavam-se os cascos num rangido de pregos que se desprendessem das
tábuas, e lambiam os vagalhões o cavername das barcas, e eram zurridos e
berros, estrépitos e assobios que se cruzavam, e não sobrava Norte, nem Sul,
nem Este, nem Oeste, por onde se encaminhasse a navegação. (P. B.: 23)
Aterrorizado, Gama transmite aos marujos a serenidade que dele se espera - “Aferrado à
coragem que para si engendrara, apresenta-se-lhes o capitão na impassibilidade de seu
semblante.” (B.B: 22) Entretanto, sua calma aparente esconde o medo imenso – uma outra fera o
ameaça, não no mar, mas em sua própria interioridade. A hidra monstruosa o mantém sob seu
controle, afastando-o da imagem de bravura que o configura como herói para a tripulação:
E se iam acalmando os que o respeitavam, não lograva sobrepor-se à ansiedade
de que padecia, e se ia robustecendo o vozeirão, não se destacava do pranto que
o ia sufocando. Era a consabida miragem que lhe surgia, ocultando as sete
cabeças na fundura dos mares, apta a vir à tona, e a reassumir o seu poderio, e a
subjugar a vontade dos que reduzira à escravatura. E não atinaria Vasco em
determinar se no pélago que descortinava, ou em sua próprias entranhas, é que
montara guarida a tenebrosa avantesma, espalhadora das consternação que
revolve as tripas, e que precipita os valentes na mais abjeta das cobardia. [...]
Resguarda-se Vasco de denunciar frente aos restantes capitães, e a toda a
matulagem, o susto que no ânimo lhe incute a suspeição da sua hidra. [...] Proíbe
que o distraiam da vagarosa tarefa de recomposição dos nervos [...] Mas assola-
lhe um caos a inteireza da envergadura, e torcem-se-lhe os intestinos num
espasmo sem saída, e defluem as correntezas da transpiração, a perlar-lhe as
barbas sem cãs de cavaleiro de vinte e nove anos. (P. B.: 24-26)
Ao recuperar a calma, volta-se Vasco ao seu projeto grandioso de conquista; o pavor por
que passara lhe parece ter sido vivenciado por outro, e reassume novamente o controle de suas
emoções, retornando às tarefas de comandante da nau. Assossega-se-lhe a hidra que, entretanto,
não desaparece – como o mar que se insurge em meio à calmaria, o monstro interior apenas
adormece, sendo sempre uma ameaça: