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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
AMYRES DE SOUSA
DE MARES E TRAVESSIAS:
Três romances, três viagens
NITERÓI
2006
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AMYRES DE SOUSA
DE MARES E TRAVESSIAS: três romances, três viagens
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do Grau de
Doutor. (Área de Concentração:
Literatura Comparada).
Orientador Prof. Dr. Silvio Renato Jorge
Niterói
2006
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AMYRES DE SOUSA
DE MARES E TRAVESSIAS:
Três romances, três viagens
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor. Área de Concentração: Literatura
Comparada.
Aprovada em 30 de outubro de 2006
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________________
Prof. Dr. Silvio Renato Jorge Orientador
UFF
______________________________________________________________________________
Prof
a
.
Dr
a
. Maria Luiza Scher Pereira
UFJF
______________________________________________________________________________
Prof
a
.
Dr
a
. Mônica do NascimentoFigueiredo
UFRJ
______________________________________________________________________________
Prof
a
Dr
a
Laura Padilha
UFF
______________________________________________________________________________
Prof
a
Dr
a
. Dalva Calvão
UFF
______________________________________________________________________________
Prof
a
Dr
a
Luci Ruas (Suplente)
URJ
______________________________________________________________________________
Prof. Dr. Mário César Lugarinho (Suplente)
Niterói
2006
Aos meus pais, por tudo.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Silvio Renato Jorge, orientador competente e
amigo, cuja inteligência e generosidade foram fundamentais em
todos os momentos deste trabalho.
À Professora Doutora Maria Luiza Scher Pereira, pelo incentivo e
apoio constantes.
À Professora Doutora Terezinha Maria Scher Pereira, pelas sugestões
valiosas.
À Secretaria de Educação de Juiz de Fora, pela concessão de licença
profissional que permitiu a freqüência ao Curso de Doutorado.
À Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, pelo apoio que
possibilitou o desenvolvimento da pesquisa aqui apresentada.
“Quando escrevo uma história, escrevo-a porque de alguma
forma acredito nela não como se acredita na simples
história, mas antes como se acredita num sonho ou numa
idéia.”
(Jorge Luís Borges. Esse ofício do verso 2000)
“Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido.”
(Ítalo Calvino - As cidades invisíveis-1990)
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO, p. 9
2. PERSONAGENS VIAJANTES, p. 26
2.1 VIAGENS, TRADIÇÃO E RELEITURA, p 31
2.2 LITERATURA DE VIAGENS, p. 48
2.3 RELAÇÕES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS, p. 62
3. A PEREGRINAÇÃO DE BARNABÉ DAS ÍNDIAS: A VIAGEM DO COLONIZADOR, p.66
3.1. A VIAGEM, p. 73
3.2. A PEREGRINAÇÃO, p. 78
4. DESMUNDO: A VIAGEM COMO EXÍLIO, p 107
4.1. SER MULHER EM TERRA ESTRANHA, p. 114
4.2. A DEMONIZAÇÃO DO OUTRO, p. 133
5. NAÇÃO CRIOULA: A VIAGEM DO TURISTA, p.143
5.1. UM ESTRANGEIRO EM ANGOLA, p. 150
5.2. DA ÁFRICA AO BRASIL, p. 161
6. FICÇÃO E ENTRECRUZAMENTOS: JOGOS INTERTEXTUAIS, p. 167
7. CONCLUSÃO, p. 181
8. BIBLIOGRAFIA, p. 187
8.1. OBRAS DOS AUTORES, p. 188
8.2. OUTROS AUTORES, p. 188
8.3. TEXTOS TEÓRICO-CRÍTICOS, p. 188
RESUMO
De mares e travessias: três romances, três viagens propõe uma leitura comparativa de três
romances contemporâneos de língua portuguesa que retomam a literatura de viagens, escrita à
época das Grandes Navegações. Ao longo deste estudo busca-se analisar como, sob a ótica do
tempo presente, o passado é revisitado e reescrito através de procedimentos que caracterizam a
denominada metafic ção historiográfica. Como corpus de análise, foram escolhidos Peregrinação
de Barnabé das Índias, do autor português Mário Cláudio, que apresenta como protagonista da
viagem às Índias um homem do povo; Desmundo, da brasileira Ana Miranda, que narra as
desventuras de uma jovem que chega ao Brasil no início da colonização, e Nação crioula, do
angolano José Eduardo Agualusa, cujo personagem, pinçado de A correspondência secreta de
Fradique Mendes, de Eça de Queirós, se desloca entre Portugal Angola e Brasil. Sobre esses
textos, além da discussão acerca de seu viés crítico, também são levantados pontos que permitem
analisá-los à luz de conceitos como intertextualidade, polifonia e dialogismo.
Palavras-chave: Narrativas de viagens. Narrativas contemporâneas. Estudos Comparados.
ABSTRACT
De mares e travessias: three novels, three journeys proposing a comparative reading of three
contemporary novels of the Portuguese language recapturing the travel literature written in the
period of the Great Voyages of Discovery. Throughout this study we have sought to analyze
how, in a present time perspective, the past is revisited and rewritten through procedures which
characterize the so-called historiographic metafiction. The following works were chosen as the
corpus of the analysis: Peregrinação de Barnabé das Índias, by Portuguese author Mário
Cláudio, introducing a man of the people as the main character of the journey to Índia;
Desmundo, by Brazilian author Ana Miranda, telling the misfortunes of a young woman who
arrives in Brazil at the beginning of the colonial period, and Nação crioula. by Angolan author
José Eduardo Agualusa, whose character excerpted from A correspondência secreta de
Fradique Mendes, by Eça de Queirós moves to and from Portugal, Angola and Brazil. Besides
the discussion on the critical bias of these texts, other points were also raised allowing us to
analyze them under concepts such as intertextuality, polyphony and dialogism.
Key words: Travel literature. Contemporary literature. Comparative studies.
1. INTRODUÇÃO
A questão que envolve o conceito de pós-modernismo é, sem dúvida, uma das mais
polêmicas nos atuais debates promovidos no meio intelectual. Os questionamentos sobre sua
continuidade ou até mesmo sobre seu caráter de ruptura alguns o consideram apenas uma das
fases do modernismo - ocupam não só o espaço acadêmico, mas também os cadernos de cultura
dos grandes jornais. Não é nosso objetivo analisar essas posições nem defender uma delas em
detrimento das outras, mas é inevitável a utilização de determinadas concepções críticas e, na
leitura que propomos de três textos contemporâneos, faz-se necessário pensar como a literatura
das últimas décadas tem trabalhado questões fundamentais às teorias sobre pós-modernismo.
1
Assumir essa linha de trabalho implica aceitar que características que podem ser encontradas em
manifestações culturais de todas épocas, agora se tornaram mais freqüentes, compondo não um
todo uniforme, mas um mosaico formado por peças que, embora coexistam, se contrapõem umas
às outras. A reiteração dessa coexistência conflituosa parece autorizar a identificação do
paradoxo como uma das marcas definidoras desse estilo. Inserido nos contextos históricos
europeu e norte e sulamericano, em que predomina o sistema globalizado, o pós-modernismo -
1
Em Poética do pós-modernismo:história, teoria, ficção, Linda Hutcheon (1991, p. 20) atenta para a
simplificação de se considerar pós-modernismo um termo substitutivo para contemporâneo. O primeiro
apresenta elementos que podem ser encontrados em grande parte das artes e do pensamento atual, mas
não em todas. O texto de Hutcheon fundamenta as colocações que se fazem aqui sobre esse assunto.
nas diversas áreas do conhecimento e da arte em que pode ser identificado mantém uma atitude
que questiona as “verdades” elaboradas e difundidas pelo sistema sócio-econômico e cultural de
que faz parte. Essa postura desafiadora não pode, entretanto, ser entendida como movimento de
negação ou rompimento total com as estruturas estabelecidas ou, ainda, como tentativa utópica de
modificar tais estruturas. Em uma época de distopia, preserva-se o espaço do confronto, inclusive
dentro da própria produção cultural. Nas palavras de Linda Hutcheon (1991, p. 15):
Assim, deliberadamente contraditória, a cultura pós-moderna usa e abusa das
convenções do discurso. Ela sabe que não pode escapar ao envolvimento com as
tendências econômicas (capitalismo recente) e ideológicas (humanismo liberal) de seu
tempo. Não há saída. Tudo o que ela pode fazer é questionar a partir de dentro.
Desse modo, por fazerem parte da estrutura contra a qual investem, a arte, a literatura e
também a crítica do pós-modernismo são contestatórias, ainda que dialoguem com os paradigmas
já estabelecidos. Apesar do comprometimento com o que procura descrever, a produção do
período mantém a postura crítica ao problematizar as elaborações humanas que constituem os
sistemas centralizados e hegemônicos, e esse é um dos pontos importantes em nosso trabalho.
Tal posicionamento tornou mais estreita do que sempre foram as relações entre história e
texto literário, borrando as fronteiras entre um discurso, que já se apresentou como científico, e
outro, antes considerado mera invenção. De acordo com Peter Burke, não se pode precisar
quando os historiadores passaram a ter consciência de que, por mais que almejem a objetividade,
as próprias crenças, valores, preconceitos e interesses pessoais interferem no olhar que lançam
sobre os eventos ocorridos no passado - a apreensão da realidade passa sempre pelo filtro da
subjetividade, e isso é inevitável. Pelo menos desde o Iluminismo pode-se observar o interesse
por uma história mais abrangente, que abarque as diversas esferas da vida humana e não apenas
seus aspectos políticos e militares que constituem o paradigma tradicional. Nas últimas décadas,
esse alargamento dos estudos históricos começou a ser defendido por um número considerável de
historiadores, recebendo a denominação de Nova História.
2
Essa busca pela totalidade considera
que tudo tem uma história, o que leva o pesquisador a estender seu olhar para as inumeráveis
atividades humanas, conferindo sentido não somente àquelas realizadas pelas figuras eminentes
de seu tempo, mas também aos anônimos esquecidos pela historiografia tradicional. Nas palavras
de Burke (2001, p. 11):
O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma
“construção cultural”, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço.
[...] A base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou
culturalmente constituída.
À semelhança da literatura, a história passou a ser compreendida como texto, feita de
narrativas que reelaboram ou criam situações possíveis de terem sido vivenciadas. pois, como
assinala Linda Hutcheon (1999, p.149), “ [...] tanto a ficção como a história são sistemas culturais
de signos, construções ideológicas cuja ideologia inclui sua aparência de autônomas e auto-
suficientes.”
Como conseqüência dessa nova concepção, evidenciam-se as diferenças entre
acontecimentos e fatos.
3
Se os primeiros constituem a passeidade e não possuem sentido em si
mesmos, os últimos recebem sentido e ganham estatuto de verdade, embora sejam não o que
2
Movimento que propõe a compreensão da história como trama narrativa, dependente da ideologia de
quem a elabora. Nas palavras de Peter Burke (2001, p.11), “A base filosófica da nova história é a idéia
de que a realidade é social ou culturalmente constituída.” Segundo o historiador, a nova corrente se opõe
à visão que o senso comum possui de história, considerando-a centrada em documentos e relacionada
principalmente à política e aos grandes vultos. Os novos historiadores se abrem à multiplicidade, às
vozes normalmente silenciadas e às diversas fontes de pesquisa.
3
No capítulo “Metaficção historiográfica: o passatempo do tempo passado”, de Poética do pós-
modernismo, Linda Hutcheon (1991, p. 161) ressalta a distinção entre fato e acontecimento,
apresentando a definição de um e de outro. Sobre a relação da história e da literatura com os fatos, ver o
texto de Jacques Leenhart na apresentação do livro Discurso histórico e narrativa literária
(LEENHARDT; PESAVENTO,1998).
realmente ocorreu, mas uma versão entronizada do que houve. Na literatura chamada pós-
modernista, sabe-se que é na enunciação que se recria e se torna conhecido o passado, o que leva
o autor a problematizar a representação narrativa.
Na ficção do pós-modernismo, esse repensar crítico produz o que Hutcheon chama de
metaficção historiográfica, composta por elementos heterogêneos e mesmo contraditórios.
4
Sob
essa perspectiva, podem ser lidos os romances Peregrinação de Barnabé das Índias, do
português Mário Cláudio; Desmundo, da brasileira Ana Miranda e Nação crioula: a
correspondência secreta de Fradique Mendes, do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Em
seu texto, Mário Cláudio situa a narrativa na época de expansão do império português, mas ao
reescrever a grande viagem de Vasco da Gama às Índias apresenta como protagonista um homem
que pertence às camadas humildes da sociedade. Ana Miranda explora um período pouco
comentado tanto pela história oficial quanto pela literatura brasileira os anos iniciais de
ocupação da terra descoberta, empreendida por aventureiros e párias sociais, que aqui se
misturaram às populações indígenas, construindo uma relação em que não faltaram os inevitáveis
choques culturais. Enquanto esses dois autores escolhem como cenário a época da colonização
portuguesa, privilegiando personagens que sempre ocuparam papel secundário nos relatos
históricos, Agualusa recria o cosmopolita Carlos Fradique Mendes, concebido por Eça de
Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis. É de Eça A correspondência de Fradique
Mendes, escrito em 1880 e organizado em duas partes: a primeira, em que um fascinado narrador
apresenta os dados biográficos da excêntrica figura, e outra, composta pelas cartas escritas pelo
fictício autor. Em Nação crioula tem-se a reunião de cartas em que Fradique revela a amigos -
4
Em Poética do pós-modernismo, Hutcheon (1991, passim.) aplica o conceito de metaficção
historiográfica a romances que conjugam auto-reflexão e elementos que pertencem à história.
entre eles o próprio Eça - suas aventuras, no final do século XIX, passadas entre Luanda, Lisboa,
Paris e Rio de Janeiro.
Nos três romances, acontecimentos se entrelaçam à ficção, num movimento de releitura e
reinterpretação críticas, problematizando o tempo histórico. Seu contexto de produção é o de uma
nova ordem mundial em que algumas nações se desintegraram e outras passaram a existir - todas
sofrendo o impacto do processo cada vez mais agressivo de globalização.
5
Fenômeno difícil de
definir, esse é um conceito utilizado com diferentes sentidos, de acordo com a posição e o
interesse de quem o utiliza. Como ressalta Néstor Garcia Canclini (2003, p. 10), o que um artista
latino entende por globalização, por exemplo, não é exatamente o que é percebido por um diretor
de empresa transnacional:
A rigor, somente uma parcela dos políticos, financistas e acadêmicos pensam,
em todo o mundo, numa globalização circular, e eles nem sequer constituem
uma maioria em seus campos profissionais. O resto imagina globalizações
tangenciais. A amplitude ou estreiteza dos imaginários sobre o global evidencia
a desigualdade de acesso àquilo que se conhece como economia e cultura
globais.
São vários os imaginários individuais e coletivos que concorrem em um mundo em
que cada vez mais os produtos materiais ou culturais têm suas etapas de produção realizadas em
vários países. Enfim, como ainda diz Canclini (ibid., p. 30), “A época globalizada é essa em que,
5
Para Zygmunt Baumann, o conceito de globalização é pouco claro. Seu sentido se assenta na percepção
de instabilidade e fluidez. Em suas palavras, “o significado mais profundo transmitido pela idéia de
globalização é o caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais, a
ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete
administrativo. (BAUMANN, 1999, p.67). Boaventura de Sousa Santos (2002, p.85) destaca seu caráter
transnacional, sempre enfatizando a pluralidade: “Definimos globalização como conjuntos de relações
sociais que se traduzem na intensificação das interacções transnacionais, sejam elas práticas interestatais,
práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais.” As duas colocações são
pertinentes e complementares, sendo ambas utilizadas neste trabalho.
além de nos relacionarmos efetivamente com muitas sociedades, podemos situar nossa fantasia
em múltiplos cenários ao mesmo tempo.”
Essa facilidade de comunicação encurtou as distâncias e proporcionou a determinados
povos ou segmentos da sociedade maior acesso às comodidades trazidas pelo avanço do
capitalismo. Mas, também, os problemas e crises nacionais tiveram seu raio de ação ampliado,
ultrapassando fronteiras geográficas, inserindo-se, assim, na dinâmica internacional, como
observa o historiador inglês Eric Hobsbawm (1995, p. 19-20):
A crise afetou as várias partes do mundo de maneiras e em graus diferentes, mas
afetou a todas elas, fossem quais fossem suas configurações políticas, sociais e
econômicas [...] as idéias consagradas das instituições de todos os regimes e
sistemas ficaram solapadas. [...] Na década de 1980 e início da de 1990, o
mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas da época do
entreguerras que a Era do Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa,
depressões cíclicas severas, contraposição cada vez mais espetacular de
mendigos sem teto a luxo abundante, em meio a rendas limitadas de Estado e
despesas ilimitadas de Estado [...]
O colapso de uma parte do mundo revelou o mal-estar do resto.
No final do século XX e no início do novo milênio, percebe-se que, pelo menos nos países
de política e economia estáveis, crescentemente ganham espaço as causas que se mostram mais
próximas do cidadão comum, como aquelas defendidas por organizações não-governamentais e
pequenas associações entre pessoas de interesses próximos, perdendo terreno os grandes projetos
utópicos. Tudo parece sinalizar para o descrédito nas instituições e na possibilidade de que se
possa modificar a ordem mundial erigida segundo as regras do sistema capitalista.
Nesse cenário, o processo de globalização se faz sentir no mercado cultural, cujos
produtos se tornam transnacionais sob o impacto de intensa massificação. Aparentemente
democrática, a oferta de bens culturais procura atender aos diversos segmentos da sociedade,
embora crie preferências e necessidades, consolidando, afinal, a homogeneização cultural.
Beatriz Sarlo, em Cenas da vida pós-moderna (1997, p. 9 - 10), mostra como o mercado é um
agente que, na verdade, unifica e seleciona sob a ilusão da diferença:
Esse traço se evidencia na chamada "cultura jovem", tal como definida pelo
mercado, e num imaginário social habitado por dois fantasmas: a liberdade de
escolhas sem limites como afirmação abstrata da individualidade e o
individualismo programado. As condições desse imaginário são as da condição
pós-moderna realmente existente: a reprodução crônica de necessidades no afã de
que satisfazê-las é um ato de liberdade e diferenciação. Se todas as sociedades
têm-se caracterizado pela reprodução de desejos, mitos e condutas (porque a
continuidade também depende disto), esta sociedade o faz com a idéia de que a
reprodução em pauta é um exercício da autonomia dos sujeitos. Nesse paradoxo
baseia-se a homogeneização cultural realizada sob as ordens da liberdade absoluta
de escolhas.
As identidades, que antes se mostravam estáveis e duradouras (homem, nacional
estrangeiro...), se fragmentaram, tornando-se transitórias e fugazes, sendo o resultado, como
assinala Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 135), de "negociações de sentido, jogos de
polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação. [...] Identidades
são, pois, identificações em curso". O múltiplo e o provisório tornam-se marcos das diferenças de
um tempo em que o ideal de homogeneidade passa a ser contestado pelos intelectuais. A
consciência de que tudo é produto da criação humana, sendo, pois, contingente e provisório, não
se limita aos defensores da nova história. As certezas absolutas são questionadas cada vez mais,
assim como as antigas crenças e os relatos da “história” oficial. Amparada pela abordagem
descentralizadora dos novos historiadores, a literatura contemporânea demonstra uma forte
tendência a revisar o passado, agora encarado sob ótica extremamente crítica e
desmonumentalizadora.
Em Portugal, em torno das comemorações dos quinhentos anos das viagens ultramarinas -
que tiveram como um de seus resultados a colonização do Brasil -, se constituiu uma literatura
voltada para a reflexão sobre o modo como se efetivaram os encontros entre os portugueses e os
povos que os receberam. No Brasil, a tumultuada “Comemoração dos 500 anos do
Descobrimento”, apesar de não ter mobilizado grande parte da população, tornou mais evidente a
recusa em se compreender o povo brasileiro como resultado da mistura harmoniosa de índios,
brancos e negros. Se o Governo Federal planejou uma festa em que a idéia principal seria a de
uma nação una, a manifestação dos sujeitos sociais evidenciou a consciência de que somos um
país cindido, alicerçado na exclusão social. Os conflitos surgidos entre manifestantes, governo e
força policial deram visibilidade aos questionamentos que têm sido feitos a respeito da formação
da identidade brasileira e das trocas culturais realizadas desde o século XVI entre a colônia e a
Europa, resultando na formação do novo país. Desde o início, a colonização se fez, como não
poderia deixar de ser, através de instrumentos e normas da civilização dos desbravadores, que
projetaram na terra brasileira seus sonhos de riqueza. Para os que aqui chegaram, pouco
importavam o passado e as tradições indígenas pois o que os impulsionava era o desejo de
construir o futuro. Como ressalta Octávio Paz (1976, p. 127), os países latino-americanos são a
concretização do projeto histórico da consciência européia e, embora ele esteja se referindo
especificamente às terras hispano-americanas, tal fato também se aplica ao Brasil:
Antes de ter existência histórica própria, começamos por ser uma idéia européia.
Não é possível entender-nos se se esquece que somos um capítulo da história das
utopias européias. [...] Basta recordar que a Europa é o fruto, de certo modo
involuntário, da história européia, enquanto nós somos a sua criação
premeditada. [...] Na Europa a realidade precedeu ao nome. América, pelo
contrário, começou por ser uma idéia.
A essa visão eurocêntrica, que se manteve ao longo dos séculos - inclusive nos
preparativos da comemoração dos 500 anos do Descobrimento reagiram alguns grupos que
contestaram a narrativa histórica adotada pelas autoridades. Apesar de governo e mídia terem
dado maior destaque às festividades em torno da data, sem provocar questionamentos mais
profundos nos setores da sociedade, a ênfase dada pelos manifestantes às diferenças e
desigualdades que constituem o país é um dado significativo no processo de desconstrução
6
da
história escrita sob perspectiva européia. Como destaca Sílvia Monteiro de Castro Lara (2002, p.
109) a propósito dos eventos comemorativos,
A figura do “brasileiro”, construída para sedimentar um sentimento de nação,
também serviu para dominar. A desmistificação dessa imagem através da
conscientização dos problemas sociais do país, que o discurso hegemônico teima
em esconder, é o primeiro passo para que se comece a escrever uma outra
história brasileira.
A adoção de uma nova ótica implica retomar os marcos iniciais de nossa formação e o
primeiro deles é o descobrimento da terra - com suas paisagens e habitantes exóticos -, seguido
pela construção do país, realizada por brancos, índios e, posteriormente, por negros escravos
durante o processo de colonização. Desmistificar as imagens que formaram nossa identidade
significa retomar a tão pouco discutida relação entre Brasil, Portugal e os países africanos que
abasteceram o tráfico negreiro. Celebrada em seu quinto centenário, a chegada de Pedro Álvares
Cabral parece apagada do imaginário brasileiro, sendo o 22 de abril uma data a passar quase
despercebida no calendário, ofuscada pelos eventos de maior vulto que relembram a morte de
Tiradentes, ocorrida a 21 de abril de 1792, sempre celebrada como feriado nacional.
Inicialmente estreita, a relação entre Brasil e Portugal foi aos poucos tornando-se mais
distante, chegando mesmo à negação da importância do patrimônio cultural do colonizador. Se,
nos primeiros séculos de colonização, a literatura produzida no Brasil não apresentava, ainda,
elementos que pudessem identificá-la como genuinamente brasileira, em fins do século XVII já
6
Utilizamos o termo empregado por Jacques Derrida para designar a reversão de hierarquias estabelecidas
em um sistema. (Cf. a análise de Jonathan Culler sobre o pensamento derridiano, em Sobre a
descontrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo.)
se começavam a vislumbrar, em especial nos poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel
da Costa, indícios da independência que viria a se consolidar no Romantismo.
7
Com o passar do
tempo, o olhar progressivamente se desviou de Portugal, deslocando-se para França, Inglaterra e,
depois, para os Estados Unidos. A despeito dos esforços dos dois governos para reforçar, entre a
população e nos meios de difusão cultural, os laços fraternos sintomaticamente fraternos e não
filiais entre a ex-colônia e Portugal, o afastamento que mantêm permanece evidente. Eduardo
Lourenço, em seu livro A nau de Ícaro e imagem e miragem da lusofonia, analisa o
distanciamento entre Brasil e Portugal e observa que o passado da antiga colônia parece ter sido
recalcado do imaginário brasileiro, como se o país se tivesse formado a partir de si mesmo e não
da intervenção portuguesa, o que o colocaria como uma nação desligada de suas origens
históricas. Esse alheamento, entretanto, é recíproco: se a ex-colônia ignora o colonizador, este,
por sua vez, se mantém apegado a uma imagem há muito criada do que seria o Brasil:
Contam-se nos dedos de uma só mão os portugueses que sabem até que ponto o
Brasil é um país para quem Portugal é um ponto vago num mapa maior chamado
Europa, ou vaga reminiscência escolar do sítio onde há séculos chegou um certo
Álvares Cabral. (Lourenço, 2001, p. 135)
Para Lourenço, há uma autonegação da cultura brasileira em relação a si mesma, mas, por
outro lado, existe a problemática fixação portuguesa em seu passado imperialista e no imaginário
construído a partir dele. A incompreensão, portanto, é mútua, e os (des)caminhos seguidos pelos
dois países são significativamente diferentes. Em Portugal, desfez-se o antigo império e o país só
recentemente vem se integrando economicamente ao seu continente através da adesão à União
Européia. No Brasil, tem se mantido um terceiro mundismo entranhado, sujeito às regras
7
Adotamos aqui a tese defendida por Antônio Cândido (2000, passim) segundo a qual é somente a partir
do Romantismo que se pode falar da existência de uma literatura brasileira.
determinadas pelos grandes centros econômicos, em especial pelos Estados Unidos. Os dois
apresentam em comum décadas de ditadura política de nível e duração diferentes e um
processo de redemocratização que não trouxe a rápida recuperação financeira que era esperada.
Além desses fatores, Portugal e Brasil enfrentam outras dificuldades que se tornaram
freqüentes no cenário globalizado. Embora existam diversos modos de se pensar a globalização,
não há dúvidas de que as relações econômicas e culturais têm se realizado em escala mundial,
num movimento paradoxal de homogeneização e de reordenação de diferenças e desigualdades.
(CANCLINI, 2003, p.44). Apesar de o mercado criar necessidades e preferências, uniformizando
o consumo, nele também se abrem nichos para atender às peculiaridades locais, num processo de
intensa fragmentação. O que à primeira vista poderia ser computado como dado positivo a
abertura e a integração internacional , tem tido resultados sombrios, como altas taxas de
desemprego e de migração, violência e incertezas, configurando uma época de crise em que os
indivíduos cada vez mais parecem obedecer a poderes anônimos e translocalizados. Ao enfocar
as modificações nas relações de trabalho, Néstor Canclini (ibid., p. 24-25) observa que os chefes,
antes pessoas identificáveis e próximas, estão dando lugar a estruturas organizacionais, sem rosto
e identificação com que se possa negociar. Os sindicatos tiveram seu poder de reivindicação
esvaziado e a ameaça de perder o emprego se tornou garantia de respeito às normas rígidas
impostas pelas grandes companhias. O quadro é de crescente fragilidade de indivíduos e nações -
cujas políticas cada vez mais se confundem com lobbies , novas configurações no mapa
geográfico e, no Ocidente, a globalização imaginada como americanização. Isso significa que
enquanto os padrões norte-americanos se consolidam como modelo de sucesso, paralelamente,
aqueles que não podem ou não querem segui-los passam a integrar o grande contingente de
pobres, o que significa dizer marginalizados nos múltiplos aspectos da vida social. Eles são a
outra face - inevitável - da globalização.
8
É nesse contexto que Portugal e Brasil se colocam no cenário mundial. O primeiro, com
possibilidades de superar, através de investimentos da Comunidade Européia, o atraso mantido
durante décadas de governo ditatorial, cujos efeitos ainda se faziam sentir no período
democrático pós-Revolução dos Cravos. O segundo, tentando se afirmar como principal
interlocutor da América no Sul no diálogo com os países ricos, apesar de não ter vencido os altos
índices de pobreza e violência urbana. Inseridos no conturbado contexto mundial, Portugal e
Brasil, com diferentes freqüência e intensidade, buscam a compreensão de seu presente e dos
fatores que o determinaram. Quanto aos países de colonização portuguesa na África, ainda é
evidente o ônus provocado pelo longo período de dominação e pela persistente subordinação aos
interesses econômicos dos países ricos com baixo desenvolvimento, agravado pela instabilidade
política, a região continua à margem das decisões do mundo desenvolvido, ou em
desenvolvimento.
9
Apesar disso, também não está alheia ao movimento de re-leitura de sua
história e avaliação de suas implicações no presente.
De modo consistente, antigas crenças e narrativas históricas amplamente difundidas pelos
meios oficiais têm sido questionadas com o amparo da abordagem descentralizadora da nova
historia. O passado vem sendo desmonumentalizado na tentativa de resgatar as vozes apagadas
dos relatos construídos sobre a nação. É nessa perspectiva que as comemorações em torno das
8
Para melhor compreensão dos fatores que levam à segregação no mundo globalizado, ver as colocações
de Zygmunt Bauman, para quem “uma parte integrante dos processos de globalização é a progressiva
segregação espacial, a progressiva separação e exclusão. (As tendências neotribais e fundamentalistas,
que refletem e formulam a experiência das pessoas na ponta receptora da globalização, são fruto tão
legítimo da globalização quanto a “hibridização” amplamente aclamada da alta cultura a alta cultura
globalizada.” (BAUMAN, 1999, p.9).
viagens transoceânicas e do Descobrimento do Brasil tornaram mais visíveis a crítica e a rejeição
à mistificação da história. O olhar que se volta para o passado obedece às exigências do presente,
sendo por ele dirigido e condicionado.
Em Portugal remontam há séculos narrativas que tratam criticamente os meios pelos quais
se deu a construção da pátria e a sua expansão nos domínios ultramarinos. A desmistificação da
grandeza do movimento expansionista já pode ser lida na crônica de Fernão Mendes Pinto e na
fala do Velho do Restelo, em Os Lusíadas, tornando-se mais contundente, porém, nas últimas
décadas em que também têm sido avaliados os ganhos da Revolução de Abril, ocorrida em 1974.
A literatura, como lugar de re-leitura e de re-escrita, traz para o jogo ficcional episódios e
personagens que propõem ao leitor uma nova compreensão da história. Em Angola, o caminho
percorrido pela literatura tem sido predominantemente o de negar os textos portugueses embora
não se possa deixar de reconhecer o importante diálogo com o programa estético do Neo-
Realismo português -, e a aproximação maior tem-se efetivado com os autores brasileiros,
valorizados por sua independência em relação à matriz. O desejo de afirmação cultural tem como
um dos pontos de referência a revitalização identitária promovida pelo Modernismo brasileiro e
as situações recriadas no romance nordestino, cujas imagens de pobreza e exploração retratam
uma realidade muito similar à de grande parte da África. A referência colonial, tanto pela
tentativa de distanciamento da literatura portuguesa quanto por citação explícita de suas obras,
caso de Nação Crioula, revela o projeto de construção da identidade nacional a partir de
fragmentos apagados pelo discurso do colonizador.
A tentativa de tornar visíveis passagens obscuras nos relatos históricos pode ser percebida
nos três romances escolhidos como corpus deste trabalho, que apresentam as viagens
9
Um exemplo desse quadro é Angola, cujos principais produtos, diamantes e petróleo - altamente
valorizados no mercado internacional , não impedem o condicionamento da economia às decisões dos
ultramarinas empreendidas pelos portugueses. Barnabé, personagem de Peregrinação de Barnabé
das Índias, e Oribela, de Desmundo, são portugueses pobres, levados de roldão pelas desventuras
que os conduzem a uma longa viagem de caravelas por um mar que acreditam ser cheio de
mistérios e perigos sobrenaturais. Barnabé parte com Vasco da Gama à procura das Índias; a
jovem órfã é encaminhada ao Brasil, em 1553, para ser esposa de um cristão solitário e rude. Os
dois trazem consigo os preconceitos, as superstições, o medo e o espanto diante das novas terras.
O choque cultural é imenso, tudo parece ser assombroso das paisagens aos habitantes locais,
vistos com estranhamento e desconfiança. Em uma passagem reveladora, Barnabé procura se
aproximar de um africano recolhido ao navio, sem conseguir vencer a estranheza que a seus olhos
reduz a condição humana do nativo (CLÁUDIO, 1998, p. 159):
Se em seu conceito se representava como elemento do Povo que Iahvé elegera, e
que consequentemente votara a inumeráveis provações, no oriundo das ilhas de
Cabo Verde não ousaria diagnosticar mais do que o desprezo da Providência, a
qual sujeitara ao arbítrio do que primeiro viesse a direção da sorte daquele quase
animal.
10
A condição de Oribela e Barnabé é de marginalizados, que deixam a terra natal tocados
pelas dificuldades de sobrevivência. Excluídos, sem opção, a viagem que empreendem é muito
mais do que uma aventura, tornando-se uma jornada também interior, em tudo diversa daquela
realizada por quem passeia ou está à procura do exótico. São vagabundos para quem o mundo se
mostra extremamente hostil, não lhes dando nenhuma outra opção suportável a não ser viajar.
11
Também o personagem de Agualusa, Fradique Mendes, escapa ao perfil daquele que viaja apenas
para se divertir. Aventureiro, ao se estabelecer em Luanda e depois no Brasil, se mistura aos
países imperialistas contemporâneos.
10
Grifo nosso.
11
Utilizamos aqui a categorização desenvolvida por Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 101),
fundamental à leitura que propomos para os três romances.
nativos e se envolve em suas lutas políticas, conservando, porém, o olhar surpreso diante de um
mundo novo, que o coloca em contato com costumes para ele incompreensíveis. Nesses dois
romances, a narrativa se faz em primeira pessoa, dado fundamental à compreensão do estado de
desenraizamento e aculturação em que passam a viver os protagonistas em suas aventuras em
espaços diferentes daquele de origem. Em Peregrinação de Barnabé das Índias, o foco narrativo
é assumido não só pelo protagonista, mas também por Vasco da Gama e um narrador que fala em
terceira pessoa. Barnabé, Oribela e Fradique Mendes empreendem viagens que funcionam como
processos de autognose pátria. Barnabé encarna o descobridor em sua viagem de desbravamento;
Oribela faz a viagem do colonizador, que chega a terra que precisa ser povoada pela gente da
metrópole. Fradique, por sua vez, faz o trajeto do neocolonizador, viajando no século XIX. São
trajetos diferentes que revelam diferentes olhares sobre o Outro e sobre si mesmos. Constituem,
na verdade, etapas de um longo processo de viagem geográfica e também de percurso interior dos
protagonistas, como iremos discutir no decorrer deste trabalho.
A perspectiva que adotamos é a da literatura comparada por ser a que naturalmente oferece
subsídios à abordagem conjunta de três obras literárias de países diferentes, que enfocam as
viagens ultramarinas empreendidas por portugueses e publicadas em períodos próximos às
comemorações das Grandes Navegações e do Descobrimento do Brasil. Os pontos enfocados
apontam para semelhanças, diferenças e entrelaçamentos que a leitura intertextual permite
perceber.
Se em literatura o comparativismo assume o estatuto de disciplina, é importante destacar
que comparar é uma das atividades típicas do pensamento humano. Indivíduos e grupos sempre
buscaram se projetar para fora de seus círculos, o que se tornou mais fácil com os meios de
transporte e de comunicação. Colocados face a face, povos e culturas continuamente se
confrontam e interagem em um processo que se inicia com o olhar curioso sobre aquilo que é
diferente. Costumes e valores são comparados e é a partir dessa confrontação que se forma a
imagem do outro.
Antes, como analisa Edward Said, os estudos acadêmicos comparatistas partiam da crença
na superioridade das literaturas européias e norte-americanas; hoje, embora o cânone ocidental
ainda se assente nas produções desses países, cada vez mais tem sido questionada essa
hierarquização. No dizer de Said (1995, p. 89), “escritores e estudiosos do mundo ex-colonizado
têm imposto suas diversas histórias, têm mapeado suas geografias locais nos grandes textos
canônicos do centro europeu.” Assim, a leitura do texto contemporâneo só adquire significado
quando realizada na clave da interdisciplinaridade e da revisão do passado. E a Literatura
Comparada pode fornecer instrumentos para interpretar a trama composta pelos cruzamentos de
diversas literaturas, linguagens, culturas e circunstâncias históricas.
Na era de multiculturalismo, os limites ente a Literatura Comparada, a Teoria, a Crítica e
a Historiografia literárias se tornaram ainda mais fluidos, sendo também fundamentais nessa
relação interdisciplinar os discursos da Nova História, dos Estudos Culturais e do Pós-
Colonialismo. É nessa abordagem multifacetada, de empréstimos de conceitos epistemológicos e
de metodologias, que propomos uma leitura comparativa de Peregrinação de Barnabé das
Índias, Desmundo e Nação Crioula, textos tão próximos e ao mesmo tempo tão diferentes em sua
concepção e linguagem.
Para concretizar seu objetivo, a leitura proposta se inicia com o levantamento de alguns
dados que revelam as características e a importância das viagens marítimas para a colonização
portuguesa e seus reflexos na produção textual classificada como literatura de viagens.
Buscaremos discutir sua relevância, considerando o momento histórico de comemorações dos
quinhentos anos das Grandes Navegações e o que a recuperação desse gênero textual significa
para as atuais relações luso-afro-brasileiras.
A seguir, a pesquisa incidirá sobre alguns elementos que aproximam- e também afastam -
o romance de Mário Cláudio da epopéia camoniana, e também sobre as características que
indicam a viagem de exploração geográfica e a jornada mística, interior, melhor compreendida
como peregrinação.
No momento subseqüente, trataremos, em Desmundo, da viagem como exílio e da atitude
transgressora diante da violência a que a protagonista se encontra submetida. Procuraremos
compreender os sentidos contidos na viagem a um mundo desconhecido, resultando em choque
cultural, mas também em interação.
A penúltima etapa desse estudo enfocará em Nação crioula a importância da viagem em
uma narrativa que, recuperando um personagem da literatura do século XIX, o faz transitar por
três continentes que abrigam o antigo reino e suas ex-colônias. Também aqui serão consideradas
a trama intertextual e suas implicações.
Ao final, após a abordagem em separado de cada obra, serão discutidos aspectos que
dizem respeito às relações que esses três romances contemporâneos estabelecem entre si e com
textos do cânone literário e como isso confirma a atualidade da proposta estética e ideológica de
Mário Cláudio, Ana Miranda e José Eduardo Agualusa.
2. PERSONAGENS VIAJANTES
Peregrinação de Barnabé das Índias, Desmundo e Nação crioula utilizam em sua forma e
linguagem diversos recursos que são próprios da literatura de viagens, que teve seu período mais
importante a partir do século XIV, coincidindo com a época das Descobertas. Pode-se perceber
nesse gênero a tentativa de sistematizar a informação recebida, em textos de caráter lúdico ou
educativo que privilegiam a narração de exterioridade, com o escritor-viajante observando, vendo
e refletindo sobre o lugar. Disso resultaram análises pessoais, desiguais, subjetivas,
freqüentemente preconceituosas. Com o desenvolvimento desse tipo de relato, passaram a ter
destaque os dados de interesse geral, em detrimento da experiência pessoal do autor, que se
tornava mais consciente de sua função de educar e informar. Somente no século XIX, a escrita de
viagens se tornou mais organizada e editorial, concedendo à informação maior neutralidade e
solidez. Outro dado que a caracteriza é sua aproximação do biográfico, já que o autor, ou a nação,
se colocam como heróis do texto.
12
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, Desmundo e Nação crioula, a viagem não é
somente a de exploração de novos territórios: seu traço geográfico se confunde com o percurso
interior, com o trajeto que os protagonistas fazem através do sonho, da imaginação, do medo e do
12
Adotamos o conceito de herói seguindo a concepção antropocêntrica da narrativa, como aparece em
REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa: “trata-se de considerar que
fascínio diante do desconhecido. Seu discurso é poético, metafórico e ser estrangeiro é uma
condição permanente nessas personagens que sempre permanecem à margem da sociedade,
mesmo quando em interação com outros povos. A posição social inferior de Barnabé e Oribela
exterioriza um desajuste maior, diante de situações familiares em que se sentem desconfortáveis,
pois a órfã e o jovem judeu recém-convertido vivem deslocados antes mesmo de deixarem
Portugal.
13
Já Fradique Mendes pertence às altas camadas da sociedade portuguesa, é respeitado
pela elite cultural, como revela o entusiasmado narrador de A correspondência de Fradique
Mendes, de Eça de Queirós. A extravagância da personagem é preservada no livro de Agualusa, o
que a torna diferente tanto em seu país como em Angola e no Brasil, ou seja, também aqui temos,
em essência, um estrangeiro - mas um turista, segundo a tipologia proposta por Bauman.
14
Apesar
de sua posição sócio-econômica privilegiada, Fradique mantém uma postura contestadora , que o
leva a se unir a uma ex-escrava africana e a se envolver em questões políticas como o movimento
abolicionista brasileiro. Assim como Barnabé e Oribela, ele consegue manter o olhar distanciado
de quem não está condicionado a nacionalismos e “verdades” locais. Suas viagens e seu
estranhamento encontram eco nos versos de Álvaro de Campos (PESSOA, 1980, p. 256), em
“Lisbon revisited 1926”: “Estrangeiro aqui como em toda a parte, / Casual na vida como na
alma, / Fantasma a errar em salas de recordações”.
Em seu périplo por terras distantes, Barnabé, Oribela e Fradique Mendes passam por
diversas etapas, comuns a quem vive longe da terra natal. Pra melhor compreend ê-las, usaremos
a narrativa existe e desenvolve-se em função de uma figura central, protagonista qualificado que por
essa condição se destaca das restantes figuras que povoam a história.” (1988, p. 210).
13
Novamente se faz interessante o que Zygmunt Bauman diz a respeito: “Os vagabundos sabem que não
ficarão muito tempo num lugar, por mais que o desejem, pois provavelmente em nenhum lugar onde
pousem serão bem-recebidos.” (BAUMAN, 1999, p.9)
14
Para Bauman, turistas são aqueles que pertencem às elites extraterritoriais, que podem viajar por escolha
e não por falta de opções em seu local de origem. (BAUMAN, 1999, p. 101)
aqui as colocações de Francisco Cota Fagundes (1999, p. 103) que, em seu texto “O retorno do
exilado: subsídios para o estudo dum drama humano na pessoa de Jorge de Sena”, identifica seis
fases na experiência de emigração e exílio: a preliminar, a de espectador, a de progressiva
participação na vida do país estrangeiro, a de choque cultural, a de adaptação e, finalmente, a
fase de retorno ao país de origem.
De acordo com Fagundes, a primeira fase é aquela que ocorre antes da emigração/exílio.
Barnabé passa por diversas desventuras que acabam por conduzi-lo à expedição de Vasco da
Gama. Oribela vê na viagem ao Brasil a única chance de se casar e concretizar sonhos e fantasias
já que, órfã, é um “tipo de mulher que ninguém quer”. (MIRANDA, 1996, p. 52). Fradique, por
sua vez, envia sua primeira carta de Luanda e há uma leve referência ao que antecedeu sua
chegada quando cita o amigo que o teria recomendado a uma importante figura local, um
coronel, sem legítima patente militar.
Na segunda fase, a de espectador, o estrangeiro observa o país em que se encontra.
Barnabé mantém em toda a viagem o olhar perscrutador de quem se sente curioso e fascinado
com o desconhecido. Em terra, observa atentamente as gentes e os costumes que, em geral, não
consegue compreender. Oribela faz o mesmo e sua narrativa é repleta de descrições dos lugares
por onde passa; aos poucos, vai perdendo as esperança com que chegara. Fradique também
revela em suas carta o assombro ao desembarcar na África. Parece-lhe, como conta a Madame de
Jouarre, ter “deixado para trás o próprio mundo” (AGUALUSA, 2001, p. 11) e, como que a
confirmar essa primeira impressão, analisa e comenta o que vê.
Na terceira fase citada por Cota Fagundes, a de progressiva participação, Barnabé parece
se misturar ao povo nas ruas e se mostra inebriado pelo ambiente. Oribela chega a se pintar e agir
como as índias com quem convive, embora não deixe de sonhar com a volta para Portugal.
Fradique, sempre aventureiro, se envolve em querelas locais, tanto em Angola quanto no Brasil,
tendo, inclusive, participação no movimento abolicionista.
O inevitável choque cultural, quarta fase da emigração/exílio, parece-nos, entretanto, ser
nos três romances que analisamos não uma etapa, mas um estado que atravessa toda a narrativa.
Desde o primeiro olhar que lançam ao estrangeiro, Barnabé, Oribela e Fradique Mendes entram
em confronto íntimo com aquilo que lhes é estranho e até mesmo assustador. Desse modo, a
adaptação é apenas parcial, pois mesmo com certa acomodação aos usos locais, os modos de
olhar e de sentir continuam sendo os de estrangeiros, mais argutos e críticos, pois a distância que
mantêm lhes proporciona perspectiva privilegiada, que escapa aos lugares comuns. (JORGE,
2001, p. 258)
Quanto à última fase, a de retorno, apenas Barnabé volta a se fixar em Portugal,
tornando-se um velho andarilho que relata a Vasco da Gama sua peregrinação. Oribela, apesar
das tentativas de fuga, não consegue embarcar no navio que a levaria ao reino. Fradique, sempre
um viajante, regressa a Portugal, mas apenas de passagem e vem a falecer em Paris, como já
definira Eça de Queirós. As três personagens continuam, portanto, sendo estrangeiros,
pertencentes a lugar nenhum.
Recontar as viagens ultramarinas é um modo contemporâneo de compreender as relações
entre Portugal, Brasil e Angola iniciadas no período expansionista. Em Nação crioula, o próprio
autor, em entrevista citada no prefácio assinado por Hermano Viana, explicita seu desejo de
“repensar a grande e intensa relação entre Angola e o Brasil”
15
, relação essa mediada pelo
fundamental elemento português. A recuperação de episódios das grandes navegações é um
índice de sua importância na constituição de nosso imaginário, embora isso nem sempre seja
15
Citação livre feita por Viana, a partir da entrevista realizada em Lisboa.
reconhecido nas ex-colônias. Em Portugal, é inequívoca sua permanência na construção
identitária do país e não há como pensar a identidade portuguesa sem a referência a Luís de
Camões e a seu grande poema épico.
Uma certa visão imperialista da pátria portuguesa parece estar indissoluvelmente ligada à
imagem criada nos versos de Os Lusíadas, que têm sido, ao longo de séculos, objeto de inúmeras
interpretações, considerado modelo a ser seguido ou ultrapassado. A peregrinação de Barnabé
tem como clara referência os versos de Camões, o que pode ser percebido desde sua composição
estrutural são dez os cantos do poema e dez os capítulos do romance até o tema escolhido, a
viagem às Índias empreendida por Vasco da Gama. Embora de modo mais sutil, as viagens de
Oribela e de Fradique não deixam de evocar as muitas caravelas que partiram de Portugal,
imagem comumente associada às do texto camoniano.
Ficcionalizar as viagens portuguesas em tempos pós-modernos é revisitar a tradição
literária, referendando sua relevância, o que se faz juntamente com sua dessacralização. Os textos
históricos ou literários são referências fundamentais no reconhecimento dos mecanismos
complexos envolvidos nas relações entre colonizadores e colonizados. A dominação portuguesa
se deu através da força, mas também por meio da mistura, da mestiçagem, das inter-relações que
formam o mundo luso-afro-brasileiro. A leitura dos textos de Mário Cláudio, Ana Miranda e José
Eduardo Agualusa, convidam o leitor à releitura de relatos ficcio nais e históricos, num exercício
de interpretação do passado e, conseqüentemente, do presente.
2.1. VIAGENS, TRADIÇÃO E RELEITURA
As longas viagens ultramarinas, indissoluvelmente ligadas à criação e expansão do
império português, já eram realizadas pelos navegadores e comerciantes da Antigüidade Clássica,
que contornavam as costas européias e africanas do oceano Atlântico. Entretanto, o final dessa
era e o esfacelamento de seu patrimônio cultural, impulsionados pela queda do império romano
que também empobreceu populações que habitavam as costas do Mediterrâneo e comerciavam
com o Oriente -, prejudicaram os empreendimentos marítimos e fizeram com que fossem
esquecidos os conhecimentos que tornaram mais ampla a geografia da época. Além disso, ainda
vigoravam idéias errôneas sobre a configuração da África (ou, como a chamavam então, da Líbia
e Etiópia) e as orientações da Igreja e os textos das Sagradas Escrituras eram aceitos, desde a alta
Idade Média, como base para as ciências naturais. Outro obstáculo que se impunha às
explorações marítimas e comerciais, como destaca Gaetano Ferro (1984, p. 10), era a presença
muçulmana ao longo das costas africanas, na Península Ibérica e na Sicília, interrompendo os
contatos por mar entre as civilizações mediterrâneas e atlânticas da Europa Sul-Ocidental. Esse
distanciamento, aliado às dificuldades de navegar, abriu espaço para que se acreditasse
novamente na existência de monstros e em perigos fantásticos a esperar os aventureiros que
chegassem às ilhas desconhecidas.
A reaproximação só se daria depois, por volta do ano 1000, com o surgimento de novas
civilizações e de grandes interesses comerciais, políticos e religiosos no continente europeu. As
cruzadas, apesar de seu evidente caráter beligerante, representaram a aproximação, ainda que
incipiente, entre a África e a Ásia muçulmanas e a Europa. Esse conjunto de fatores propiciou,
segundo Ferro, a retomada do conhecimento sobre regiões distantes, alargando o horizonte
geográfico das populações cristãs do Mediterrâneo.
(op. cit., p.31)
O século XIII, de fundamental importância para as navegações, foi o período em que se
começou a buscar uma via de acesso atlântico para a Ásia, ampliaram-se os conhecimentos
geográficos e se introduziram ou se intensificaram usos de tecnologias que iriam se tornar
fundamentais às grandes viagens através dos oceanos. A bússola, invenção do Oriente, passou a
ser mais utilizada pelos marinheiros do Atlântico e foram feitas as primeiras cartas náuticas. Com
esse recursos e o aperfeiçoamento das técnicas de navegação, pôde-se ter maior segurança quanto
a rotas, distâncias, localizações de terras emersas e bacias marítimas. Nos séculos seguintes, esses
progressos foram se consolidando, impulsionados pela troca de informações com diversos povos
que se dedicavam à navegação. Desse modo, as notícias sobre regiões insulares se tornaram mais
precisas, aproximando-se da realidade geográfica.
Até o início da Idade Moderna, entretanto, a imagem do oceano misterioso, povoado por
seres monstruosos, continuou a fazer parte dos temores dos homens que se lançavam às aventuras
marítimas e, durante o período das grandes navegações, as ilhas fantásticas ainda eram
representadas nos mapas marítimos. Nessas crenças tão difundidas, misturavam-se tanto
elementos pagãos quanto outros criados no período da cristandade, como detalha Gaetano Ferro
(op. cit., p. 45):
Tratava-se, em certos casos, de reminiscências de realidades já conhecidas ou de
falsas crenças difundidas na antiguidade clássica; outras vezes eram figurações
irreais, típicas da fé cristã [...] Noutros casos ainda fazia -se referência a tradições
nascidas depois da ocupação da península por parte dos Árabes [...]
provavelmente ligado a qualquer planta que se sabia prosperar no Oriente é o
mito de outra ilha encantada, a do Brasil (o nome passou mais tarde a indicar a
terra alcançada por Cabral e por Vespúcio, na América).
Para a diminuição do medo que afastava os homens das viagens marítimas, muito
contribuíram os clérigos que acreditavam ser o oceano Atlântico pródigo em riquezas e templos,
abrigando, inclusive o Paraíso. Esses religiosos encorajaram as navegações e seus interesses
comerciais, dissociando o mar dos demônios que intimidavam os futuros navegantes das
comunidades em que atuavam.
Apesar dos obstáculos reais e imaginários, os oceanos foram sendo vencidos e, em fins do
século XIV e início do século XV, Portugal começava a consolidar sua posição entre os países
dedicados à navegação. Em torno de 1420, 1425, iniciou-se o movimento de expansão
ultramarina portuguesa e a privilegiada posição geográfica de seu território parece ter sido um
dos motivos de seu interesse pela marinhagem. Outro fator, esse de inquestionável importância,
foi a pressão exercida pelo reino de Castela, que impedia, ou em muito dificultava, o
desenvolvimento de Portugal. A saída pelo mar possibilitava o crescimento e a conseqüente
resistência à anexação e à iberização da península. Era, portanto, um recurso para se manter a
própria autonomia do reino constantemente acossado. Para Luiz Felipe de Alencastro (1998, p.
193),
A expansão ultramarina portuguesa brota no seio de um reino periodicamente
posto em risco. Num estado submetido à pressão política espanhola e, mais
tarde, à coerção econômica inglesa. Neste contexto, a Coroa lusitana engendra
um expansionismo preventivo “preemptivo”-, engatilhado para ganhar
territórios do além-mar que poderiam vir a ser ocupados por Madri.
Cumpre lembrar que data de 1494 o Tratado de Tordesilhas, o pacto entre Portugal e
Espanha sobre as fronteiras ainda não conhecidas. Portugal tinha, portanto, todo interesse em se
aventurar na busca por novos territórios e riquezas que seriam conquistadas nas terras distantes.
Além disso, informa Vitorino de Magalhães Godinho, o que sustentava as receitas do reino
lusitano era a circulação de capital e não a produção de bens. (GODINHO
16
, 1978 apud
ALENCASTRO, 1998, p. 196). Era o início do capitalismo, com a circulação de moeda e de
mercadoria. Somava-se a isso a pobreza da população e as ambições econômicas da Coroa,
resultando em um cenário de todo favorável às viagens de conquistas ultramarinas. De acordo
16
GODINHO, Vitorino Magalhães. Ensaios, II, Sobre história de Portugal. Lisboa, 1978, p. 55-69.
com António Borges Coelho (1998, p. 251), em 1496, Portugal se expandia por “cidades,
fortalezas e navios pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico.” Cresciam as fortunas individuais
e as receitas do Estado, que chegava a ficar com 60% do lucro, também aumentado
consideravelmente.
Outro fator importante a considerar é a posição geográfica de Portugal, que o distanciava
dos demais países da Europa para atingi-los, era preciso atravessar o mar do Norte, o Oceano, o
estreito de Gibraltar ou cortar toda a Espanha para alcançar a França e, a partir daí, o restante do
continente. Essa localização periférica manteve o reino lusitano afastado das guerras religiosas
européias - que tiveram na Guerra dos Trinta Anos seu maior conflito - e das lutas pela
hegemonia política, ao mesmo tempo em que o colocava nas disputas comerciais marítimas. A
busca por novos mercados e territórios levou milhares de portugueses a embarcar sobretudo para
a Ásia, no século XVI, e para o Brasil, no século seguinte. Essa saída em massa diminuía as
pressões sociais internas e permitia grande mobilidade nas camadas sociais.
A facilitar a empreitada ultramarina, divulgou-se na Europa, no começo do século XV, o
mapa do mundo de Cláudio Ptolomeu, cientista grego do século II d.C., que apresentava a “idéia
de um continuum territorial da Europa ao Extremo Oriente”, como explica Bartolomé Bennassar.
(1998, p. 86) Se Ptolomeu não sugeria a possibilidade de a América existir, entre os anos de 1499
e 1502, com o progresso em relação à sua carta marítima, começou-se a suspeitar de um novo
continente. Para levar a cabo os projetos de ampliação dos domínios portugueses, uma invenção,
por volta de 1430-1440, veio a se confundir com as grandes conquistas lusas: a caravela, que por
quinhentos anos serviu à pesca, ao comércio e à guerra, deixando de ser utilizada na Europa nos
meados do século XVII. Faltam informações que precisem sua origem, forma, aparelho e
condições de navegabilidade, mas não restam dúvidas de que suas características proporcionavam
importantes vantagens para os navegadores: era alvo pequeno para os inimigos, ligeira e fácil de
manobrar, adaptando-se melhor aos ventos contrários, sendo, assim, bastante adequada às viagens
de descobrimentos.
O desenvolvimento técnico que se pode observar no Renascimento português provocou
profundas modificações na forma de agir e de pensar: o indivíduo se libertou de muitas limitações
impostas pela religião, Deus se humanizou e o homem sofreu um processo de divinização. Em
compasso com a circulação de capital - que leva à exploração racional do risco das navegações
através de contratos de seguro, fundação de bolsas e de grandes bancos, como lembra Adauto
Novaes - destacava-se a circulação de idéias.
(1998, p.11) No tempo das descobertas, Gutenberg
criou o processo de impressão com tipos móveis, o que resultou na multiplicação de livros e no
surgimento da imprensa escrita. Nicolau Copérnico iniciou a revolução científica moderna com
sua teoria sobre a circulação dos astros. O heliocentrismo obteve comprovação científica,
substituindo o antropocentrismo que vigorara no mundo antigo e na Idade Média.
Outros avanços científicos importantes foram a descoberta da circulação do sangue por
Miguel Serve (embora ainda sem verificação experimental) e os estudos de anatomia
empreendidos pelo belga André Vesalio, o pai da anatomia moderna, que realizava a dissecação
de cadáveres. Nessa mesma época, outro nome de incontestável importância, Leonardo da Vinci,
também se dedicava aos estudos de anatomia humana. No campo social, fatos significativos
assinalaram mudanças nas relações trabalhistas - surgiam manifestações contra as condições de
trabalho e foram feitas as primeiras greves na imprensa e nas fábricas de tecido. Na Alemanha, a
Guerra dos Camponeses (1524-26) teve como bandeira a propriedade comum dos bens de
produção, o fim da servidão e a diminuição de impostos. (ibid., p.11)
No período das descobertas, grandes pensadores, artistas e instituições modificaram para
sempre os diversos campos do conhecimento humano, como enumera Adauto Novaes (ibid.,p.
11): Lutero, Calvino, Erasmo, Thomas Morus, Maquiavel, Montaigne, La Bétie, Piero della
Francesca, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Van Eyck, além da Companhia de Jesus, da
Contra-Reforma. Por fim, estabeleceram-se várias europas fora da Europa e, devido à interação
econômico-político-cultural, nasceram áfricas para além do continente africano. (ibid., p.11)
Munidos de recursos que, pelo menos precariamente, satisfaziam as exigências de longas
viagens por mar, Portugal se lançou à sua grande aventura. Durante o século XVI, as naus
portuguesas, juntamente com as espanholas, dominaram os oceanos, sendo substituídas
progressivamente no século XVII pelas embarcações dos holandeses, ingleses e outros povos do
Norte europeu. No auge das conquistas portuguesas, viviam estabelecidos em Portugal cerca de
30 mil judeus, número que aumentou sensivelmente com sua expulsão da Espanha. A
convivência pacífica entre eles e os cristãos portugueses foi rompida em 1497, com a conversão
forçada empreendida por D. Manuel, motivada por razões políticas.
Apesar da intensa perseguição que se seguiu, os cristão-novos, assim denominados os
recém-convertidos à fé cristã, tiveram intensa participação no projeto da expansão marítima e
colonial. Nem mesmo o massacre de que foram vítimas em 1506 e as proibições régias
impediriam que chegassem ao Oriente, Brasil, Luanda, São Tomé, Cabo Verde e rios de Guiné.
Cumpre notar que, embora muitos cristãos-novos tenham assumido de fato o cristianismo, tantos
outros adotaram apenas exteriormente comportamentos identificados com a fé cristã, mantendo
em seus lares as práticas judaicas, pelo menos até a Inquisição. Eram os marranos que, apesar das
perseguições, nunca chegaram a desaparecer por completo.
A intolerância religiosa se refletiu no léxico e o termo cristãos-novos passou a designar os
homens de negócio ou homens da nação poderosos mercadores e financistas, estigmatizados
pelos inquisidores e por aqueles que se colocavam contrários aos comerciantes portugueses
profissionais. Com sintetiza António Borges Coelho (op. cit., p. 256),
[...] o vocábulo, inicialmente usado para resistir à integração e identificar os
novos conversos, entrava abertamente no território econômico, social e político,
sem perder a matriz religiosa que isolava e tornava suspeitos alguns dos
elementos mais dinâmicos da sociedade portuguesa.
O papel dos cristãos-novos, em especial do núcleo dos homens de negócio, foi
fundamental aos empreendimentos marítimos. Seu capital financiou as armadas, ajudou a manter
a segurança na navegação pelo Atlântico, sendo um dos responsáveis também pela restauração
portuguesa, cuja idéia de Quinto Império é uma das marcas da presença judaica em solo lusitano.
Com a perseguição aos judeus, Portugal seguia um caminho inverso àquele trilhado pela Europa
no século XVI. Lá fora o poder religioso era superado pelo interesse político, mas os portugueses
ainda continuavam a ceder às pressões do Santo Ofício e o alvará de D. João IV, que livrava o
capital dos cristãos-novos do confisco da Inquisição, foi revogado logo após sua morte, em 1649.
Enquanto em Portugal se misturavam antigos dogmas religiosos e novas idéias trazidas
pelo capitalismo emergente, o Novo Mundo se iniciava sem ter passado pela idade medieval e
sem ter tido a experiência das transformações radicais que modificaram econômica e
intelectualmente o mundo europeu. A América surgiu da intervenção do colonizador que a
imaginou e construiu segundo sua ideologia e seus anseios. O que havia antes da chegada dos
colonizadores não era o continente americano, era outro espaço, dominando por outras gentes, os
indígenas, que pouca ou nenhuma relação tiveram com a idéia de América que se formou depois.
Gruzinski (2003, passim), ao analisar a colonização empreendida no México pelos espanhóis,
observa que os indígenas se ocidentalizaram, passando a utilizar em suas representações
pictográficas elementos europeus, que também se misturaram às suas crenças e costumes
originários. Entretanto, os espanhóis igualmente se deixaram tocar pela cultura nativa, o que
resultou em uma complexa trama de trocas culturais e de composição étnica, também percebida
na formação do Brasil. Com o passar do tempo, os índios brasileiros foram sendo substituídos nas
lavouras e na mineração pelos negros escravizados trazidos da África, ficando pouco visível sua
participação no trabalho de construção do país. Com as populações dizimadas pelos aventureiros
que desbravavam seu território, em especial os bandeirantes em busca de riquezas, ou sofrendo o
processo de miscigenação com o branco e o negro, os povos indígenas não se organizaram como
força política e ideológica. Mais tarde, os próprios movimentos pela independência política foram
planejados e empreendidos por portugueses, ou seus descendentes diretos, que se julgavam
prejudicados pelas exigências monetárias da Coroa.
Nesse aspecto, evidencia-se uma diferença bastante significativa em relação ao domínio
português em território africano, onde as populações nativas se mantiveram resistentes à política
do dominador e a independência negra resultou da organização e luta dos povos autóctones. A
própria ocupação da África se deu de modo diferente daquele adotado no Brasil. O português
chegou inicialmente ao continente à procura do ouro, propósito rapidamente substituído pelo
objetivo de adquirir escravos e iniciar o lucrativo tráfico negreiro, o que aconteceu em 1442,
quando uma expedição retornou de uma viagem à região do rio do Ouro trazendo cativos para o
reino. A chegada dos portugueses à África acontecera no ano anterior e os povos encontrados já
haviam atingido há alguns séculos a idade do ferro, como informa Carmelindo Rodrigues da
Silva. (2002, p. 71) O encontro com populações solidamente organizadas não impediu que os
colonizadores buscassem, a princípio, conseguir nativos à força, no que enfrentaram grande
resistência. O fracasso dessas tentativas levou a negociações com os reis africanos que,
habilmente manipulados, começaram a permitir o envio de negros para o trabalho forçado na
América e na Europa. Evangelizados, esses reis se aliaram aos conquistadores, passando a seguir
os preceitos ditados pela coroa, que incluíam o incentivo à cristianização da África. As cartas
endereçadas, no século XVI, pelo “rei” do Congo, D. Afonso, a D. Manuel e a D. João III,
revelam sua subalternidade na relação amistosa que estabeleceram. Em missiva ao Papa, datada
de 1512, D. Afonso informa sobre sua conversão e empenho contra os idólatras, numa evidente
demonização dos valores e crenças nativas, combatidos pela ação dos reis portugueses que:
[...] com muita despesa, trabalhos, e indústria mandaram a estas terras pessoas
religiosas, com a doutrina dos quais (sendo nós enganados pelo demônio,
adorando ídolos) nos apartamos divinalmente de tamanho erro, e tamanho
cativeiro, e de como reduzidos à Fé de nosso Senhor, e Salvador Jesus Cristo
tomando a água do santo baptismo, limpando-nos com ela da lepra, de que
éramos cheios, apartando-nos dos errores gentílicos, que até então usáramos,
lançando de nós todas as abusões diabólicas de Satanás, e seus enganos, de todo
nosso coração, e vontade recebemos milagrosamente a Fé de nosso Senhor
Jesus Cristo.
17
O intenso fluxo de africanos em Portugal levou a grandes modificações étnicas, ocorridas
especialmente em Lisboa, apesar das leis que buscavam evitar a africanização dos lusitanos e a
ascensão dos mestiços. Corriam, ainda, no reino estórias aterrorizantes que procuravam impedir
as relações inter-raciais, creditadas às tentações perpetradas pelo demônio. É evidente, entretanto,
que as assimilações recíprocas entre colonizados e colonizadores se fizeram tanto no reino quanto
na África e que a presença portuguesa foi decisiva na configuração dessas sociedades coloniais,
indo muito além da conversão religiosa.
Se nas ex-colônias a presença portuguesa modificou radicalmente as relações que se
estabeleciam antes de sua chegada, em Portugal o passado de conquistas passou a fazer parte da
memória coletiva de todo o povo, determinando a imagem que se fixaria da pátria. A história das
Grandes Navegações está indissoluvelmente ligada à história do país, cuja fundação é
miticamente atribuída à ação do herói latino Luso, enquanto a criação de Lisboa é creditada ao
grego Ulisses durante sua volta para Ítaca, após a guerra de Tróia. Portugal estaria, assim, desde
sua origem, destinado à glória e aos grandes empreendimentos, concretizados por um povo
17
As cartas escritas por D. Afonso foram reunidas por António Luís Ferronha [s.n.t.], em As cartas do
“Rei do Congo” D. Afonso.
guiado pela vontade divina. Por isso, ao logo dos séculos, contar e recontar a epopéia trans-
oceânica tem sido um procedimento tradicional nas produções historiográficas e poéticas que,
utilizando mitologias diversas, situam as conquistas lusas no plano do providencial. Cumprir o
ideário da conquista é, portanto, obedecer aos desígnios de Deus, que fizeram dos portugueses o
povo escolhido para construir um grande império. Essa concepção, lida claramente n’Os
Lusíadas, epopéia-símbolo da grandeza de Portugal, tem resistido à passagem dos séculos, seja
através da tradição que a alimenta e divulga, seja pelo questionamento daqueles que buscam
desmistificar o passado imperialista.
As viagens marítimas, principais instrumentos do expansionismo, encontraram na épica
de Camões o seu mais perfeito elogio e também, em uma leitura mais acurada, uma crítica à
ganância e ao desvario que as impulsionaram. Passando pela Peregrinação de Fernão Mendes
Pinto, por Cesário Verde ou por Fernando Pessoa, chegando até os autores contemporâneos
mantém-se na cultura portuguesa a tradição de se falar sobre o império, que houve e se desfez.
Numa leitura de viés psicanalítico, Eduardo Lourenço (1988, p. 17) aponta para o irrealismo
prodigioso da imagem que os portugueses fazem de si mesmos. Nela curiosamente estariam
imbricados de modo paradoxal os complexos de superioridade - frente a outros povos a que não
foi concedido o destino de grandeza e o de inferioridade por ser uma pequena nação pobre e
periférica dentro da Europa. Assim, a crença num destino místico estaria a ocultar o sentimento
de ser um país inferiorizado, econômica e militarmente frágil, que ficcionaliza seus feitos menos
para ocupar um papel de destaque no mundo do que para acreditar em si mesmo. Dá-se, desse
modo, a suspensão do tempo presente e o sonho se concentra no que ocorreu (ou poderia ter
ocorrido) e no futuro em que se projeta o destino de grandeza interrompido pela decadência do
império.
O declínio de Portugal pode ser percebido desde o século XVI quando, além de ter
abandonado territórios importantes no Marrocos, politicamente passou a viver sob jugo espanhol,
se libertando somente em 1640, com o apoio diplomático da França e da Inglaterra. Para manter a
aliança com os ingleses, foram feitas diversas concessões: Bombaim e Tanger passaram para o
domínio da Inglaterra, assim como o monopólio comercial com o Oriente, também cedido à
Holanda.
No século XVII não era difícil perceber as dificuldades econômicas e a situação
desfavorável ocupada por Portugal em relação às novas potências que surgiam no continente
europeu. No século XVIII os problemas enfrentados pelo reino lusitano em seu confronto com a
política européia começavam a apontar como única saída a retirada da família de Bragança cuja
dinastia foi iniciada por D. João IV, em 1640 - para os territórios ultramarinos, o que poderia
garantir sua soberania e seus direitos nessas regiões. Como meio de resistir à crescente
decadência, Portugal se aliou à Inglaterra, realizando acordos que, apesar de serem bilaterais,
garantiam aos ingleses importantes vantagens econômicas ao mesmo tempo em que tornavam
mais profunda a dependência portuguesa, iniciada durante a Restauração da coroa pela casa de
Bragança. Por essa razão, quando Napoleão Bonaparte em seu projeto de conquista decidiu isolar
a Inglaterra do restante da Europa, era impossível a Portugal atender às suas exigências. A adesão
ao bloqueio continental significaria o fim da ajuda financeira britânica e também a invasão
inglesa nos domínios portugueses na América, de onde partiam recursos que sustentavam o reino.
(ALGRANTI, 1987, p. 17)
No século XIX, com o fracasso das negociações políticas, D. João VI não pôde mais
sustentar sua permanência na Europa. Acossado, foi obrigado a realizar a manobra que há muito
se discutia, a transferência da corte para o Brasil - mudança que viria a representar um profundo
golpe na imagem de grandiosidade que ainda se mantinha de Portugal. A fuga da família real, em
1807, protegida pelos navios ingleses, revelou a inferioridade militar e política portuguesa diante
das potências européias que passavam a dominar o comércio ultramarino e a impor seu poderio
dentro do continente. Durante os três anos de ocupação francesa, o país esteve sob a iminência de
ser repartido entre a França, a Espanha e o rei português, o que aumentava a situação de
instabilidade. (LOURENÇO, 1999, p. 105) No final do século, com sua monarquia esfacelada
ela teria seu final em 1910, ao ser proclamada a república e com a crise moral decorrente do
Ultimatum inglês, não havia certeza se Portugal poderia se reerguer da decadência em que se
encontrava enquanto o restante da Europa se tornava modelo de civilização.
Em reação à inferioridade evidente, houve nova eclosão do misticismo nacionalista
português como modo de fuga da realidade, que teria mais tarde, no Saudosismo, sua expressão
poético-ideológica. Aos sentimentos de impotência e de derrota se contrapôs o fortalecimento da
imagem idílica de nação vocacionada para os grandes feitos. O patriotismo viria a se acentuar,
então, em diferentes tempos da vida portuguesa, servindo inclusive como arma ideológica
durante a República e o totalitarismo do Estado Novo. Com Salazar, criou-se a imagem de uma
lusitanidade exemplar, que encontrava no passado mitificado a grandeza necessária à ocultação
da decadência do presente. Se na República já se anunciava o escamoteamento da realidade, no
Estado Novo se oficializaria a idéia de Portugal como país perfeito, modelo de superioridade e
organização política, “ficção oficial, imagem sem controlo nem contradição possível de um país
sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que conciliava o
capital e o harmonioso da sociedade”, como analisa Eduardo Lourenço. (id., 1998, p.25-28)
Embora no final dos anos 30 e início da década de 40 o pensamento marxista tenha
ajudado a desmascarar o sentimento patriótico português, não conseguiu se sobrepor à
propaganda salazarista de idealização da pobreza e da vida nacional. A exaltação da
superioridade lusa permaneceu inclusive após a Revolução de Abril, responsável pelo fim de
quatro décadas de opressão política mas que, em seu ideário, buscou não tanto a desmistificação
de Portugal como modelo de colonizador, mas a transformação dessa imagem naquela de país
capaz de promover a descolonização perfeita. (ibid., p. 44.)
Mesmo ao final do século vinte, as comemorações dos quinhentos anos do movimento
expansionista deixaram perceber a importância do passado de conquistas na construção da
identidade portuguesa e, se não se nega a violência da colonização, ainda é mantido em destaque
o seu caráter civilizatório e de propagador da fé cristã. Esse posicionamento pode ser
compreendido ao se considerar a cultura e a nação como comunidades imaginadas, conforme
proposto por Benedict Anderson. Segundo essa concepção, as culturas de origem se constituem
em uma das mais importantes fontes de identidade cultural e isso faz com que seja encarada
como elemento inerente à natureza de cada indivíduo. Por outro lado, cada cultura nacional é, na
verdade, um discurso forte o suficiente para construir identidades. (HALL, 2002, p. 47-50)
Discutir a questão das identidades exige considerar que sua origem se dá nas interações
sociais, daí seu caráter situacional e também relacional, já que se formam através do
reconhecimento obtido no meio social e, ao mesmo tempo, no estabelecimento de diferenças em
relação a ele. A criação identitária se dá, portanto, através do diálogo com o Outro, num jogo de
aproximação e afastamento, no qual a empatia se conjuga à diferenciação. Esse cruzamento acaba
por constituir uma narrativa na qual história e ficção se entrelaçam, conforme analisa José
Manuel Oliveira Mendes (2002, p. 505-522) em seu texto “O desafio das identidades”. O
discurso das identidades é o lugar e o meio através do qual elas se constituem, mantendo elos de
identificação que permitem sentir como sendo único os diferentes modos de ser, de pensar e de
agir.
Stuart Hall observa que ocorre uma narrativa da nação, contada e recontada nas histórias
e nas literaturas, na mídia e na cultura popular, ligando a existência cotidiana individual ao
destino nacional. Enfatizam-se as origens, a continuidade, a tradição e a intemporalidade, ao
mesmo tempo em que se inventa a tradição através de mitos fundacionais e da crença em povo ou
folk puro, original. (ibid., p. 56) No caso lusitano, acredita-se que seja também heróico, desde sua
origem, talhado para a grandeza e para grandes conquistas. A narrativa do passado, perpetuada na
memória, constitui uma herança que “unifica” diferenças internas de modo a constituir um
conjunto aparentemente homogêneo e coeso. Passado e presente se mantêm estreitamente ligados
exercendo interferências mútuas; a recuperação de um se faz em função do outro, como assinala
Andréas Huyssem (2000, p. 67-68):
A rememoração dá forma aos nossos elos de ligação com o passado, e os modos
de rememorar nos definem no presente. Como indivíduos e sociedades,
precisamos do passado para construir e ancorar nossas identidade e alimentar
uma visão de futuro. [...] A memória de uma sociedade é negociada no corpo
social de crenças e valores, rituais e instituições.
A escolha sobre o que se rememora e o modo como isso se realiza é em grande parte
determinado pela vontade, pelos desejos conscientes ou não. Huyssen (ibid., p.69) observa, ainda,
que a recuperação vigorosa do passado pode dar origem à memória mítica, distanciada das
necessidades do presente, fossilizada em sua negação ao continuum da história. À primeira vista,
essa é a situação vivida por Portugal ao longo dos séculos. Entretanto, embora permaneça como
eixo principal da constituição da identidade portuguesa, a época de potência ultramarina não se
fecha em sua mitificação e, a par de seu enaltecimento, se oferece a outras interpretações que se
aproximam da visão desmonumentalizadora que Camões já apresentava na fala do Velho do
Restelo. Nessa (des)leitura da grande narrativa portuguesa, a produção intelectual oferece espaço
para a revelação de outros ângulos e de personagens esquecidos e anônimos que, juntamente com
os heróis do projeto expansionista, foram responsáveis pela construção do imaginário que
sustenta o sentimento de nacionalidade portuguesa. Se nem sempre é fácil escapar do discurso
que alimenta a imagem confortável de grandeza e superioridade, é possível buscar o que
incomoda, e esse é um dos procedimentos que caracterizam a literatura, em especial a que se
situa no período considerado pós-moderno. Ao falar do compromisso do intelectual na esfera
pública, Edward Said (2003, p. 251) aponta para uma prática pode ser identificada em muitos
escritores contemporâneos:
funcionar como uma espécie de memória pública: lembrar o que foi esquecido
ou ignorado, fazer conexões, contextualizar e generalizar a partir do que aparece
como “verdade” definitiva nos jornais ou na televisão, o fragmento, a história
isolada.”
Ao privilegiar situações e personagens diferentes daqueles difundidos pelos meios
políticos e culturais, o escritor opta pelo olhar descentralizador, que reconhece o caráter
compósito da sociedade. Aquilo que se coloca como “ex-cêntrico”, “marginal” adquire novo
estatuto, revelando a heterogeneidade cultural muitas vezes escamoteada sob o ideal de
identidade monolítica, construída pelos paradigmas tradicionais de gênero, raça, etnia, orientação
sexual e classe, ou seja, pela hierarquização que apresenta como modelo o masculino, branco,
ocidental, heterossexual, de classe média. As oposições binárias se abrem para a afirmação das
diferenças, do marginal sem, entretanto, erigi-lo em um outro centro, dada à consciência do
caráter provisório das identidades, fator que torna inviável qualquer tentativa de se encontrarem
situações estáveis. Os posicionamentos adotados pelos indivíduos ou grupos sociais são sempre
resultado de posições assumidas para atender às exigências dos diversos contextos da vida social,
sendo, portanto, contingentes e nunca fixas e imutáveis. (HUTCHEON, 1991, p. 19-20)
Ao se voltar para o passado, o que se procura não é, em absoluto, encontrar “a verdade”,
única, inquestionável, escondida pelo discurso histórico oficial; o que se pretende é lançar um
novo olhar sobre os acontecimentos, de modo a questionar e reavaliar aquilo que, dentro de
estruturas hierarquizantes, passou a se constituir como história, entendida, agora, como trama,
construção humana. Essa posição iconoclasta, aberta às margens e fronteiras, não implica, como à
primeira vista pode deixar transparecer, negação da existência de centros estabilizadores,
necessários à constituição das sociedades. Sabe-se que o centro é uma função e, como tal, não
pode ser encarado como realidade, mas sim como construção a ser permanentemente desafiada.
As versões entronizadas pelo discurso histórico são, portanto, matéria de investigação a partir da
qual se parte para uma nova compreensão e conseqüente reescrita literária, desafiadoras do
cânone e da idéia de homogeneidade cultural.
Seguindo esse viés, Peregrinação de Barnabé das Índias, Nação crioula e Desmundo
retomam narrativas paradigmáticas do acervo cultural de língua portuguesa. Ao recuperarem a
literatura de viagem, esses textos apresentam a interação entre memórias coletivas e invenções,
entre o reconhecível e o inesperado da criação. O processo da escrita se conjuga ao da leitura
crítica, e por vezes mordaz, da tradição alimentada pelo relato histórico oficial. Os recursos
ficcionais possibilitam a abordagem do real sob novos ângulos permitidos pela fantasia, utilizada
numa amplitude em princípio proibida ao historiador. Nessa revisão se recuperam episódios e
personagens esquecidos ou relegados a um segundo plano na memória coletiva construída
durante séculos.
Ao revisitarem o passado, Mário Cláudio, Ana Miranda e José Eduardo Agualusa se
deslocam para outras épocas, mas concomitantemente delas se descolam, pois o olhar que lançam
sobre os acontecimentos é o resultado de suas próprias experiências, questionamentos e leituras.
Assim, percebe-se em seus textos a consciência que extrapola o pensamento comum dos séculos
que recriam e ouve-se a voz de quem escreve a partir da contemporaneidade. Nesse sentido, a
recuperação do passado funciona como estratégia de interpretação do presente, numa confluência
de tempos que dialogam e se interpenetram. Ao falar dessa interação entre passado e presente,
Eduardo Lourenço considera que o que provoca esse cruzamento “não é apenas a divergência
quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado, mas também a incerteza se o
passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que sob outras formas.”
(LOURENÇO, 1998, p. 13)
A retomada, na produção contemporânea, da literatura de viagem é a articulação entre
passado e presente, esquecimento e memória, questionando a tradição histórica e literária. Ao
utilizarem imagens encontradas em textos de autores escolhidos como seus predecessores, Mário
Cláudio, Ana Miranda e José Eduardo Agualusa usam um repertório que faz parte do patrimônio
cultural coletivo. Essa apropriação não pode ser confundida com cópia; trata-se efetivamente de
citação, trabalho sempre presente no ato de leitura-escrita. toda escrita é colagem e glosa,
citação e comentário”, alerta Antoine Compagnon para quem “ler ou escrever é realizar um ato
de citação”. (1996, p. 29 - 31) Dessa forma são trazidas para novos contextos imagens já
cristalizadas, de modo a tornar possível reatualizar e revisar criticamente o que parecia ser
verdade inquestionável. Ao abordar a importância da memória na sociedade atual, Andréas
Huyssem chama atenção para a mudança de interesse ocorrida no século vinte: se, em seu início,
com a cultura modernista, predominou a valorização do futuro, que pode ser considerado como
“futuros presentes”, o que ganha destaque a partir da década de 1980 é o que chama de “passados
presentes”. A memória passa a ocupar um lugar central nas preocupações culturais e políticas do
Ocidente, num processo de recodificação do passado iniciado após os anos 60, em decorrência da
descolonização e da emergência de movimentos sociais que buscavam histórias alternativas.
(HUYSSEN, 2000, p. 9-10)
Ao elaborar suas propostas para o terceiro milênio, Ítalo Calvino (1990b., p. 58) destaca a
importância da literatura em um mundo cada vez mais dominado pelas grandes redes de
comunicação de massa que, com sua rapidez e amplitude, valorizam e criam padrões
homogêneos, tornando superficiais as relações humanas:
[...] numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade
espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda
comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a
comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas
antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita.
Mário Cláudio, Agualusa e Ana Miranda, ao lançarem um novo olhar sobre personagens,
episódios e momentos que fazem parte das narrativas históricas assumem precisamente esse
trabalho de resistência à massificação e ao silenciamento promovido pela ideologia
homogeneizadora. Retomando a literatura de viagens, atualizam-na sob uma perspectiva que,
sendo crítica, é também prova de sua importância no imaginário tanto de Portugal, quanto do
Brasil e de Angola.
2.2. LITERATURA DE VIAGENS
A referência ao passado português remete quase automaticamente aos empreendimentos
ultramarinos que constituíram o Império ao qual está entrelaçada a identidade lusitana. Assim, as
Grandes Navegações, com seus heróis, sucessos e percalços, são parte fundamental da construção
do imaginário de um povo geograficamente circunscrito a uma pequena região periférica da
Europa, mas que conseguiu estender seus domínios a outros continentes, concretizando o que
acreditava ser seu destino de grandeza.
O movimento expansionista coincidiu com o momento em que se formavam os Estados
nacionais europeus e se intensificava o processo de internacionalização, iniciado no século XV,
passo inicial para a mundialização da cultura e da economia mercantilista que, séculos mais tarde,
culminaria na globalização. Durante a epopéia trans-oceânica, a busca por novos mercados e
riquezas encontrava sua justificativa na propagação da Fé e do Império, o que tornava aceitável a
violência da conquista de povos cujos costumes eram bastante diversos daqueles conhecidos até
então. Em carta ao vice-rei D. Luís de Ataíde, em 12 de março de 1578, D. Sebastião
recomendava: “Fazei muita cristandade. Fazei justiça. Conquistai tudo quanto puderes [...]”. (D.
SEBASTIÃO,1578, apud BARRADAS, 1995, p. 50).
18
O choque cultural provocado por esse
contato e as interpretações da experiência de “descobrir” e vivenciar as diferenças que
constituíam o outro das terras colonizadas podem ser lidos nos relatos da época, que integram o
gênero conhecido como literatura de viagens - relatos redigidos pelos próprios viajantes ou por
homens que os escreviam a partir de histórias ouvidas dos navegadores. O objetivo desses textos
era primordialmente fornecer informações àqueles que desejassem empreender novas viagens
pelos oceanos ou oferecer ao rei um retrato das terras distantes, apresentando, por isso, descrições
que buscavam a objetividade, de modo a criar um efeito de “realidade”. (LEAL, 1997, p. 130-
131)
Nessas narrativas pode-se perceber a articulação entre a memória coletiva dos
descobridores europeus e o olhar do viajante em constante transformação já que, deslocado de
seu lugar de origem, vê-se obrigado a elaborar novas significações do mundo na tentativa de
apreender o contexto físico e cultural com que passa a interagir. (OLIVEIRA FILHO, 2001, p.
495) Embora o círculo de leitores da época fosse bastante reduzido, esses relatos se tornaram
populares e chegaram a influenciar autores como Sheaksperare - em A Tempestade, Caliban
18
Na obra consultada não há indicações precisas sobre o documento em que foi encontrada a referida
carta.
remete aos canibais da América e Thomas Morus em Utopia, o personagem navegador é
português.
A participação de outros países europeus no movimento colonialista, disputando com
Portugal e Espanha a “descoberta” e o domínio de novos territórios, tornou mais intensos os
contatos com as terras distantes. O encontro com o outro se realizou sob perspectiva européia e
aquilo que era diferente foi encarado sob o signo do exótico, associado à “perdição” moral e à
barbárie, contra as quais incidiria a missão religiosa de base cristã e a empresa civilizatória do
Ocidente. (ABDALA JR, 2003, p. 50) A descrição dos povos colonizados se fez a partir dos
valores europeus e seu julgamento se assentava em noções que embasaram as guerras contra os
muçulmanos. Os comportamentos e crenças ocidentais, considerados ideais e verdadeiros, eram o
fundamento da comparação, evidenciando a suposta superioridade européia.
Ideologicamente o colonialismo e o imperialismo têm assim justificada sua violência: os
povos colonizados precisariam da dominação e dos conhecimentos estrangeiros para obterem a
salvação e o progresso. Embora revestida de caráter humanitário, a colonização não se realizou
movida pelo desejo de se conhecer o outro, mas se fez através da intolerância com a história, a
cultura e os valores diferentes dos modelos europeus que buscavam mundializar.
No processo de construção da lusitanidade, assim como de qualquer outra identidade
nacional, há uma multiplicidade de culturas que, num jogo de interrelação, mesclaram elementos
considerados originários do povo e o que se foi incorporando no contato com outras gentes.
19
No
caso português, se misturaram traços árabes e das colônias na América e na África. Além dos
elementos oriundos dos diferentes territórios conquistados, a ficção de Os Lusíadas, publicada
19
Sem dúvida, essa pureza original é mais imaginada que algo que efetivamente se possa verificar.
quando o país já se encontrava em um momento de decadência que viria a se acentuar nos séculos
seguintes, transformou-se convenientemente no retrato do país sonhado sendo, por conseguinte,
sua principal referência histórico-literária. Embora a Crônica de D. João 1, escrita por Fernão
Lopes, seja um marco importante na historiografia do reino português por legitimar a Dinastia de
Avis
20
, é com a epopéia camoniana que a História de Portugal passou a se confundir com sua
trajetória marinheira, fixando-se como Império.
21
Se a Crônica circunscreve sua narrativa aos
limites geográficos da terra portuguesa, o texto épico explora um espaço externo, criando uma
nova linguagem capaz de retratar a trajetória marítima. Os Lusíadas se tornaram o retrato oficial
da expansão portuguesa e seus traços contra-ideológicos tiveram pouco destaque nas leituras que
foram feitas desde sua publicação.
A nação lusitana se constrói, portanto, de relatos míticos, literários e também dos
cruzamentos com as diferentes culturas que se misturaram em seu território. Entretanto, essa
interação não significou a total familiaridade entre os colonizadores e aqueles que foram por eles
subjugados. Na construção da identidade, o “eu” se identifica com a coletividade a qual pertence,
confrontando-se com aqueles que escapam aos seus modelos culturais. Discutir a questão das
identidades implica considerar que sua origem se dá nas interações sociais o que as torna
situacionais, múltiplas e relacionais, já que se formam através do reconhecimento do meio social
e, ao mesmo tempo, da diferenciação no que diz respeito a esse meio. O diálogo com o outro é
fundamental, num jogo de aproximação e afastamento no qual a empatia se conjuga à
diferenciação.
20
A crônica de Fernão Lopes é escrita em defesa de D. João I, que chegou ao poder através de um golpe
de Estado contra Castela. O cronista justificou entusiasticamente o direito de nacionalidade,
contrariando a hierarquia senhorial. (SARAIVA, 1988, 166-172) A subseqüente substituição da terra
pelo mar no imaginário português trouxe certo esquecimento ao texto de Fernão Lopes, recuperado mais
tarde pelos autores românticos, principalmente por Alexandre Herculano.
21
JORGE, 2000. p. 13.
Identidades não são, portanto, algo acabado, mas em permanente processo de construção,
definido não só pelas características próprias de cada indivíduo, mas principalmente pelas
exigências do mundo exterior a que se procura atender. O modo como cada um imagina ser
avaliado pela comunidade em que está inserido é determinante na formação dessa identidade, ou
melhor identidades, dado seu caráter plural muitas vezes contraditório (HALL, 2002, p. 39).
Ocorre, então, o reconhecimento do semelhante e, ao mesmo tempo, como conseqüência, o
estranhamento diante daquele que lhe é diverso. Esse processo de aproximação e distanciamento
é um dos pilares da construção da coletividade, destacado por Sandra Jatahy Pasavento (1998, p.
18):
(...) a identidade é um processo ao mesmo tempo pessoal e coletivo, onde cada
indivíduo se define com relação a um “nós”, que por sua vez, se diferencia dos
“outros”. Enquanto representação, a identidade pode ser dada e atribuída
mediante um processo de “ilusão de espírito” e intencionalmente deliberada,
mas também implica um procedimento de opção e escolha, correspondendo a
uma necessidade de reconhecimento e identificação presentes no inconsciente
coletivo.
Apesar do contato com outras terras e povos, o outro é sempre o desconhecido, nunca
totalmente revelado. Embora as culturas se comuniquem, se interpenetrem, permanece sempre
certa impermeabilidade dos universos que cada uma representa, de modo que, como observa
Wladimir Krusinski, (1997, p. 238), “L’autre est tellemente autre que je ne pourrai jamais le
connaître.
22
O padrão cultural da colonização é estabelecido de modo a transformar o
“desconhecido” em “conhecido” de tal forma que o outro passa a se confundir com a imagem do
conquistador, ficando destituído de sua condição de alteridade, como observa Silviano Santiago.
22
KRYSINSKI, 1997. p. 238. “O outro é de tal modo outro que eu não poderei conhecê-lo jamais.”
No lugar de sua verdadeira alteridade, surge uma outra fictícia, imagem refletida do europeu. As
descobertas marítimas da época moderna e a ocupação das terras descobertas não só alargaram as
fronteiras visuais e econômicas da Europa, como também tornaram universal a sua história (para
os ocupados, estória, ficção). Ao desbravar novos territórios, o colonizador reproduziu os
conflitos e impasses que vivenciara no Velho Continente, como a quebra de unidade da Igreja e
os antagonismos entre as várias facções religiosas, o que acabou tendo como conseqüência o
desalojamento das culturas autóctones. (SANTIAGO, 1982, p. 16-18)
É evidente que, se a cultura do colonizador não permaneceu alheia à do colonizado, ao
interagir com ela, porém, colocou em plano inferior os valores e costumes do outro, que se
contrapunham aos seus. Foi estabelecida nas colônias uma política cultural dominada pelo
eurocentrismo e os territórios descobertos se tornaram espaços a serem transformados segundo a
imagem que se tinha da Europa, num processo de ocidentalização que, embora não fosse fixo,
ignorava as evoluções ocorridas nos territórios ocupados, renovando seus objetivos de modo a
atender apenas às mudanças da Europa ocidental.
Os autores de narrativas de viagens, em sua recuperação e re-criação de episódios vividos
no mar ou nas colônias, fizeram um contraponto à história oficial enaltecedora não só do triunfo
do vencedor, mas também de figuras que alcançaram o estatuto de heróis, silenciando as vozes
dos vencidos e dos anônimos que foram atores e testemunhas das conquistas. Ao apresentarem
suas versões dos acontecimentos, os textos ofereceram uma outra memória, feita tanto de
lembranças pessoais quanto de grupos, indo de encontro ao propósito de ordenar à maneira
européia um mundo diferente e aparentemente confuso. A expansão capitalista levou à tentativa
de domesticação do outro, mas também possibilitou o olhar crítico sobre a diversidade e os
mecanismos de dominação. Desse modo, o viajante descobriu as diferenças que constroem a
imagem desse outro, mas também encontrou em si mesmo similaridades com o que lhe era
exterior, apropriando-se de traços da cultura que tentava ordenar.
Tal processo de identificação pode ser encontrado em Peregrinação, de Fernão Mendes
Pinto, uma das obras que compõem o cânone da literatura portuguesa, escrita com o objetivo de
ser um registro em que o autor contaria às filhas as aventuras que vivera no Oriente durante vinte
e um anos, ao fazer parte da missão cristianizadora empreendida por Francisco Xavier. Narrado
em primeira pessoa, o relato expõe sua atribulada participação na conquista portuguesa das
Índias, em que enfrentou diversas situações felizes e também adversas, sendo embaixador,
escravo, missionário e pirata, numa composição multifacetada da aventura da conquista.
A narrativa de Fernão Mendes Pinto, um esforço de revelar a Expansão sob perspectiva
crítica, relativiza o fascínio e orgulho do descobridor, patente na leitura que com mais freqüência
tem sido feita de Os Lusíadas. Seu olhar se divide entre o encantamento com as riquezas do
Oriente - que lhe despertaram o sentimento de cobiça - e a perturbação diante de uma ordem
social distinta daquela em que sempre vivera. As referências que possuía ao chegar ao Oriente
não eram suficientes para a compreensão das novas experiências que a viagem lhe proporcionava
e ele deixa perceber a dificuldade em verbalizar suas impressões, mesmo mitificando o que
efetivamente testemunhou. Suas estratégias discursivas, condicionadoras da representação da
realidade que implicam tanto o sujeito da escrita quanto seu destinatário, são, assim,
condicionadas pelo inusitado tão fascinante quanto perturbador.
Ao abordar esse ponto, Jesiel Ferreira de Oliveira Filho (2001, p.500) observa que a
apreensão desse mundo que parece estranho aos olhos do aventureiro português “vai requisitar-
lhe dispositivos de pensamento que não só escapam aos quadros de referência originais do
peregrino como, no mais das vezes, abertamente os contrariam em seus fundamentos”. Em Freud
(1974, p.300-3001), o tema do estranho está relacionado, de modo geral, àquilo que é assustador,
provocando medo, embora remeta, paradoxalmente, ao que é conhecido, familiar. Se
aparentemente o quadro oferecido pelas populações que passa a conhecer lhe parece totalmente
inusitado, o viajante, na verdade, se depara, também, no contato com essa nova realidade, com
seus próprios sonhos, desejos e angústias. Nesse processo especular, o outro se torna assustador,
mas é também um elemento com o qual é possível se identificar, inclusive pelo intercâmbio
cultural inevitável, já que as culturas não são construções estanques, mas permeáveis ao contato.
Na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o narrador se identifica com as terras que
alcança, como destaca Benjamin Abdala Jr. Embora acredite no projeto evangelizador de
Francisco Xavier, veículo da ideologia expansionista, seu cristianismo se revela ético e oposto às
práticas religiosas que observava em sua época. Mendes Pinto encontra na religiosidade de países
orientais a projeção de seus sonhos utópicos e, através da sátira, expõe e critica a violência e a
pirataria portuguesas, confrontando-as à abertura que observa entre os chineses e japoneses em
relação aos diferentes costumes dos exploradores estrangeiros. Na Peregrinação, enquanto os
portugueses, por exemplo, são apresentados como capazes de condenar à morte um compatriota
que abraçara o islamismo, os japoneses recebem com honras a missão evangelizadora levada a
cabo por Francisco Xavier. (ABDALA Jr., 2003 , p. 54)
Não há dúvidas de que o modo como olhamos o outro revela, em muito, o que somos e o
que pensamos; por isso a narrativa idealizadora do Oriente feita por Fernão Mendes Pinto deixa
perceber seu cristianismo ético liberto da religiosidade associada aos interesses mercantis e da
colonização, apegada a um Deus misericordioso apenas para os seguidores de seus ensinamentos.
Apesar de defensor da fé que justificava a violência da conquista, predomina em sua narrativa o
humanismo que ultrapassa a ideologia dominante em seu tempo. Como analisa Benjamin Abdala
Jr. (ibidem, p. 56),
Não é suficiente apenas restringir Fernão Mendes Pinto à esfera de poder da
Igreja. Seu campo intelectual também ultrapassava-o. Seu humanismo não
seguia os parâmetros da ortodoxia: ele era efetivamente um heterodoxo. Suas
convicções eram de natureza crítica.
Em sua articulação entre o vivido e o imaginado, Fernão Mendes Pinto consegue reunir a
crença cristã e o pensamento divergente, a invenção e a historicidade, apresentando ao leitor,
juntamente com a realidade das civilizações que encontrou, a imagem de seus sonhos. Essa
articulação entre o real e a fantasia cumpre uma das funções basilares do texto criativo. A história
se apresenta em seu relato através da imaginação que, humanisticamente, se liberta da ideologia
medieval através do questionamento do modo como se efetuava a expansão colonial européia.
Luís de Camões e Fernão Mendes Pinto, cada um a seu modo, foram, de fato, viajantes
que conheceram terras a partir das quais elaboraram textos que se tornaram paradigmáticos da
expansão portuguesa, mas muitos outros relatos foram feitos sem que seus autores tivessem
vivido a experiência da viagem. Embora na época dos Descobrimentos a autoridade religiosa não
fosse mais a base para o discurso científico, tendo cedido lugar ao empirismo, muitos dos
conhecimentos sobre as viagens, povos e terras distantes eram difundidos por geógrafos que, sem
a experiência em loco, apenas divulgavam o que tinham ouvido contar, apresentando, muitas
vezes dados que não correspondiam ao que havia sido encontrado. Em tais narrativas, imaginação
e realidade se confundem, e sua divulgação resulta em descrições fantasiosas, feitas por autores
que haviam tomado conhecimento dessas aventuras extraordinárias através de terceiros. Essas
informações, repetidas por diversos autores, acabaram por ganhar estatuto de verossimilhança,
tornando-se a verdade resultado principalmente da coincidência de discursos e não de algo cuja
existência tenha sido comprovada. Como lembra Leyla Perrone-Moisés, a verdade está
condicionada pela confiança em quem a cria ou transmite - se os seres assombrosos que povoam
os testemunhos dos marinheiros encontravam comprovação nos textos de autoridades da época,
não havia, portanto, motivo para duvidar de sua existência. Por isso, até mesmo um navegador
experiente como Cristóvão Colombo foi capaz de se referir a monstros e a seres mitológicos que
povoariam os oceanos. A mesma imagem sobrenatural vai reaparecer mais tarde nos relatos que
se irão fazer sobre os homens e a natureza dos territórios conquistados (PERRONE-
MOISÉS,1997, p. 85):
Colomb, homme du Moyen-Age, décrit des sirène e des homes avec des queues
non parce qu ’il était menteur mais parce que ces êtres étaient mentionnés dans
lês écrits des Anciens et personne ne doutait de leur vérité. Lês vouageurs
subséquents ont décrit des homes et des animaux aussi invraisemblables que les
monstres anciens, la seule différence étant qu’ils disainte les avoir vus de leurs
yeux.
23
Além dessas histórias às vezes fantasiosas sobre povos e paisagens, também merecem
destaque as narrativas sobre os naufrágios sofridos durante as viagens de expansão. Segundo
Maria Alzira Seixo (1997, p. 108), uma das características desse tipo de narrativa é sua
composição a partir de fragmentos textuais e episódios, não apresentando textos inteiros, tendo,
pois, uma tessitura híbrida. Quanto à estrutura, sua divisão se dá em seis partes, que podem ser
assim delimitadas: partida, tempestade, naufrágio, desembarque, peregrinação, retorno após os
sofrimentos infligidos pelos indígenas. (ibid., p.112) As de maior tensão tempestade, naufrágio
e luta pela sobrevivência pós o afundamento do navio - constituem um périplo que se identifica
com uma peregrinação ou um itinerário repleto de referências metafóricas à redenção anunciada
pelo cristianismo. Como observa Maria Alzira Seixo a partir das colocações de Lucien
Goldmann, o discurso cristão é utilizado nessas narrativas de forma paradoxal, já que a
23
Colombo, homem da Idade Média, descreve as sereias e os homens com caudas não porque ele fosse
mentiroso, mas porque esses seres eram mencionados nos escritos dos Velhos e ninguém duvidava de
sua verdade. Os viajantes subseqüentes descreveram os homens e os animais do mesmo modo
providência e a misericórdia divinas jamais são postas em dúvida, mas, ao mesmo tempo, os
sofrimentos são encarados como punições ou eventos redentores. O homem aparece confrontado
com forças superiores, representadas por Deus, pela natureza, pelo outro ou pela diferença,
estando desde o início destinado à derrota, numa configuração trágica da existência humana que,
em caso de sobrevivência em um naufrágio, lhe reservaria outro acidente marítimo em outra
viagem. (ibid., p. 115) É importante observar que uma das falhas humanas comumente associadas
a esses desastres é a falta de experiência dos navegantes que, fiando-se em cartas marítimas e no
conhecimento que consideravam científico, se deixavam levar pelo orgulho, ignorando as
orientações daqueles que já haviam enfrentado os perigos dos oceanos e sabiam, sem usar
instrumentos, se orientar com maior segurança.
Na literatura portuguesa, o mais conhecido conjunto de narrativas de viagens é o que
recebeu o nome de História Trágico-Marítima, publicados por Bernardo Gomes de Brito, em
1735 e 1736.
24
Compostos por 12 relatos, os dois volumes da obra tratam, em sua maioria, das
adversidades sofridas pelos navegantes em seu retorno das Índias, quando traziam os lucros
obtidos com a viagem e que seriam perdidos no naufrágio. (SEIXO, 1997, p. 112) Anunciadas
desde os títulos das narrativas e da própria obra, as desventuras vividas nos oceanos vêm
acompanhadas de intenso fervor religioso, apesar de se creditar a forças superiores a causa das
desgraças sofridas. Essa mistura de aflição, religiosidade e misticismo será recontada ao longo
dos séculos, chegando à contemporaneidade em obras que irão retomar os périplos dos
portugueses pelos mares e terras misteriosas.
inverossímil que os antigos monstros, a única diferença era que eles diziam tê-los visto com seus
próprios olhos.
24
A História Trágico-Marítima é formada por cordéis que circulavam em Portugal durante o século XVI.
Esses textos ganharam especial significado no final do século vinte quando das
comemorações das viagens ultramarinas portuguesas, parte fundamental da história do país e
também de suas ex-colônias. Cabem aqui as colocações de José Manuel Oliveira Mendes (2002,
p. 512-513) que, retomando Benedict Anderson, se apóia na tese segundo a qual todas as
comunidades são construções imaginárias e, portanto, não se pode dizer que uma comunidade
seja mais genuína do que a outra. O que importa é o modo como se dá essa construção, tendo
grande importância as raízes culturais, um de seus elementos mais significativos. Para Mendes,
que também cita Boaventura de Sousa Santos, elas representam tudo o que é profundo,
perpetuando-se no tempo e dando segurança, contrapondo-se a um outro elemento fundamental,
as opções, formadas pelo efêmero e variável. No mundo atual, têm-se buscado raízes, como
comprova o crescente fundamentalismo político, religioso e cultural. A partir desse quadro pode
se perceber a relação entre a temática das identidades e a criação e a manutenção das memórias
sociais, celebradas e comemoradas para serem eficazes. O trabalho de reiterar as certezas já
adquiridas, manter a tradição e também atualizá-la de acordo com as exigências de cada época,
visa resistir aos questionamentos sobre sua pertinência e importância, constituindo o campo
celebratório, unificador por excelência, espaço em que confluem os relatos históricos e a
memória coletiva. As identidades são o resultado da narrativização do sujeito e de suas
experiências sociais, fazendo-se no discurso e através dele. Na narrativa que constrói e mantém
as identidades nacionais, história e ficção se misturam, criando o discurso identitário, que
mantém os elos de identificação que permitem sentir como sendo único os diferentes modos de
pensar e de agir, construindo a comunidade política imaginada, que é a nação.
Os festejos que celebraram o período de expansão lusitana reforçaram o sentimento
identitário de pertencimento a um grande país que, apesar dos revezes sofridos ao longo de
séculos, exerceu papel fundamental na história da civilização ocidental e também do Oriente. As
comemorações reafirmaram a crença em uma comunidade de língua portuguesa, formada por
vários povos irmanados pela colonização que, apesar da indiscutível violência, tem seus atos
redimidos pela suposta ação de erradicar o atraso. Através da festa se destacaram os atos heróicos
e o tom efusivo relativizou os questionamentos desse heroísmo e da missão civilizatória
empreendida até o século vinte. A quebrar esse discurso unificador e aparentemente
incontestável, os textos de Mário Cláudio, José Eduardo Agualusa e Ana Miranda não ignoram a
importância da narrativa identitária, mas apresentam situações e personagens que escapam às
imagens idealizadoras do império português.
Essa dissonância em relação ao tom celebratório pode ser compreendida no contexto
sócio-político-cultural do mundo globalizado. Embora sempre tenham ocorrido contatos entre os
diferentes povos e fraturas nessa relação, o alargamento de fronteiras se tornou mais intenso nas
últimas décadas e também mais evidente a situação daqueles que circulam por diferentes espaços,
num movimento que acaba por formar uma personalidade híbrida, descolada de sua cultura de
origem - sem, no entanto, tê-la abandonado por completo - e que não se adapta inteiramente às
novas culturas com que passa a interagir. Essa é a figura do emigrante, ou daquele que viaja.
Nesse contexto, o conceito de fronteira extrapola a dimensão territorial e se torna
relevante à discussão sobre os modos pelos quais as construções sociais são apropriadas pelos
mais diversos grupos humanos. Compreender a importância da noção de fronteira no mundo
globalizado implica considerar que, embora a homogeneização de necessidades, gostos e desejos
ocorra em certa escala, há ao mesmo tempo o esforço de atender às diferenças individuais ou dos
diferentes grupos sociais. O global se conjuga ao local, resultando em heterogeneidade,
fragmentação e conflito, em um processo altamente complexo no qual a hegemonia se revela ser
apenas uma ficção que acoberta as marcas de diferenças, desigualdades e contradições. O que se
afigura como global nada mais é do que localismos que, devido a relações de poder, se tornam
paradigmas apresentados como universais, enquanto aquilo que escapa a esse modelo passa a ser
encarado como manifestação local. As investidas do imperialismo cultural, que separa os sujeitos
em “nós” e “eles”, ao mesmo tempo promovem o deslocamento e a redefinição de fronteiras, já
que só é possível identificar a igualdade se, para demarcá-la, existe a diferença. Como observa
António Sousa Ribeiro (2002, p. 480), “os processos de globalização só podem produzir
uniformidade se produzirem, ao mesmo tempo, diferença; assim, a superação das fronteiras faz-
se, inevitavelmente, através da produção de fronteiras.”
É desse processo de reconhecimento de semelhanças e de diferenças que se constrói a
imagem do outro, esse elemento exterior, estranho, que reforça a proximidade daqueles que
possuem maiores afinidades entre si. O sentimento de pertencer a uma comunidade alimenta as
tradições e os mitos fundadores, mantém as datas festivas e também, quando exacerbado,
discrimina e segrega os que se situam à margem. Apesar do crescente avanço da mídia e das
empresas multinacionais ou transnacionais - que parecem apagar as peculiaridades locais,
transformando diferentes lugares em espaços reconhecíveis, como fazem as redes de fast-food
as últimas décadas vêem o aumento significativo da afirmação de resistências locais ao projeto
unificador, que assume cada vez mais as feições do novo imperialismo norte-americano. O
fortalecimento das etnias e do crescimento dos conflitos entre elas, não só localizados em
territórios geograficamente demarcados, mas também dentro de uma mesma região, torna mais
visível a questão das identidades e das fronteiras, pontos fundamentais nos debates promovidos
pelos estudos culturais.
Textos produzidos no século XX, Peregrinação de Barnabé das Índias, Desmundo e
Nação crioula, trazem problematizada a situação de indivíduos que se encontram sempre no
espaço da fronteira, seja em Portugal, seja em outras terras. São personagens que mantêm
concomitantemente o vínculo com aquilo que identificam como sendo sua cultura e o
afastamento e o conflito em relação às suas regras e convenções. Embora se situem nos séculos
XVI e XIX, as situações de desajuste vividas pelos protagonistas parecem fazer ecoar as
discussões atuais sobre o não-lugar ocupado por aqueles que, por ideologia ou condição social,
encaram e também encarnam a diversidade cultural.
2.3. RELAÇÕES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS
No século XX o centro econômico e cultural do Ocidente se deslocou da Europa para os
Estados Unidos, que estende seus padrões de comportamento e consumo por quase todo o
mundo. No Brasil, a influência norte-americana pode ser percebida em todos os setores da vida
cotidiana e essa centralidade parece ocultar a relação da ex-colônia com seu antigo colonizador.
No que diz respeito à literatura, alguns fatores históricos contribuíram para que houvesse o
afastamento entre as produções dos dois países, embora ele não seja tão radical quanto possa
parecer à primeira vista.
Em seu início, quando não se pode falar ainda de literatura, mas sim de manifestações
literárias, como destaca Antonio Candido (2000, p. 2400), os que aqui escreveram ou eram
portugueses recém-chegados do reino, como Pero Vaz de Caminha, ou brasileiros que tiveram
toda sua formação intelectual na Europa, importando referências que iriam transpor para suas
obras, sem conseguir formar, entre outros, um conjunto de produtores e receptores literários, o
que daria início a uma tradição dado essencial para que haja literatura, entendida como sistema.
Somente no século XVIII, com o Arcadismo, o Neoclassicismo e a Ilustração, os autores
passaram a ter como objetivo fazer uma literatura brasileira, que tivesse continuidade no futuro.
Utilizamos aqui o termo mais conhecido, embora as relações discutidas não se refiram a toda a África,
mas apenas a Angola.
No século XIX, os românticos já concebiam a literatura como instrumento para se
construir uma grande nação. Uma das características do Romantismo, a valorização do nacional,
favoreceu a busca pela independência criativa, embora, obviamente, não se tenha perdido de vista
as tendências seguidas pelos escritores portugueses e franceses. A ligação de nossa literatura com
as produzidas na Europa continuou durante o período do Realismo e do Naturalismo e o diálogo
com Portugal pode ser percebido tanto na presença de personagens portugueses, como acontece
em O cortiço, de Aluísio Azevedo, quanto nos artigos de crítica publicados em jornais, que
produziam debates acalorados como os travados entre Machado de Assis e Eça de Queirós a
respeito de O primo Basílio, cujo personagem que dá nome ao livro estivera no Brasil a refazer
sua fortuna.
No início do século vinte, o Modernismo passou a questionar a designação de língua
portuguesa em defesa de uma língua brasileira, radicalizando a busca de independência em
relação à literatura lusitana. A partir de então, tem sido quase consenso afirmar a ausência de
diálogo entre os autores dos dois países no período modernista. Esse afastamento, contudo, tem
sido contestado principalmente pelo crítico português Arnaldo Saraiva, cujas pesquisas reunidas
em seu livro Modernismo brasileiro e modernismo português, publicado em 2004, buscam
comprovar a importância da literatura da cultura de seu país na formação dos modernistas
brasileiros que, na defesa de teorias nacionalistas, teriam procurado ocultar a relação intertextual
que mantinham com a cultura lusitana. Em entrevista concedida a Maurício Santana Dias, Saraiva
credita também à crítica brasileira a exaltação das diferenças e o silenciamento sobre a relevância
do contato com a produção portuguesa.
25
25
Entrevista publicada em 27 de julho de 2004, no caderno Mais, do jornal Folha de São Paulo, por
ocasião do lançamento do livro de Saraiva no Brasil.
No entanto, apesar de nunca ter havido um corte radical entre as literaturas dos dois países
como atesta ainda a importância do regionalismo brasileiro para o neo-realismo português na
ex-colônia, o público leitor paulatinamente passou a ter menos contato com os textos
portugueses, concentrando-se as leituras especialmente em Os Lusíadas, nas narrativas de Eça de
Queirós e nos poemas de Fernando Pessoa, incluídos nos programas escolares e nas disciplinas
oferecidas aos alunos dos cursos de Letras. A Camões, Eça e Pessoa juntou-se recentemente José
Saramago que, principalmente por sua premiação com o Nobel, em 1998, conseguiu se integrar
às listas dos escritores mais lidos no Brasil.
Apesar desse desconhecimento e da propalada distância entre as duas literaturas, a
presença da produção portuguesa pode ser percebida em autores não só do modernismo, ou ainda
em Machado de Assis, citado por Saraiva, mas também nos contemporâneos, que trazem para sua
escritura textos fundamentais do acervo português, como faz Ana Miranda em Desmundo.
Sintomaticamente publicado no período de comemorações das viagens ultramarinas, o romance
traz imbricadas linguagem, personagens e citações que remetem à vida e à literatura portuguesas.
A representação literária de episódios que integram as narrativas históricas sobre o período
colonial e a presença das caravelas, figuras de fundamental importância no discurso identitário
português, assim como a inclusão de expressões do português arcaico encontradas nos autos de
Gil Vicente, revelam a aproximação intencional com Portugal.
Em Nação crioula, o angolano Agualusa também se volta para a literatura do colonizador
e, mais do que apresentar citações e referências sutis, desloca seu protagonista Fradique
Mendes das páginas de um escritor canônico português e o situa em contextos que revelam as
mazelas produzidas pela colonização. Ainda mais, Fradique chega ao Brasil, recuperando uma
ligação nem sempre lembrada embora fundamental desde o início com a África Negra onde
durante séculos, os navios eram abastecidos de escravos. Tal como no livro de Ana Miranda,
temos aqui o reconhecimento da importância da tradição literária, porém isso se faz sem
subserviência nem pode ser confundido com imitação. A reescrita se apropria do texto modelar e
o ultrapassa, respeitando e ao mesmo tempo interferindo no original, dando-lhe novas
significações.
Também em Peregrinação de Barnabé das Índias, a epopéia de Os Lusíadas adquire uma
outra dimensão, como se fosse uma contra-face a revelar o lado menos heróico da aventura
marítima comandada por Vasco da Gama. A escolha da temática das viagens de expansão
reafirma sua importância para a nação portuguesa, assim como do texto camoniano, mas a
apresentação de um grumete como protagonista no lugar do navegante genovês indica o olhar
descentrado que reconhece no homem do povo a grandeza comumente atribuída apenas às
personalidades consagradas pela história. Através do contato do jovem Barnabé com populações
que lhe parecem exóticas, o texto de Mário Cláudio oferece uma nova versão do encontro entre
portugueses e colonos, que poderiam estar tanto no Brasil quanto na África.
Os três romances, ao se apropriarem da tradição histórica e literária, repensam as relações
estabelecidas entre colonizadores e colonizados, transpondo para o espaço ficcional questões
fundamentais quando se discute a criação de uma comunidade de países de língua portuguesa. O
antigo centro continua, nesses romances contemporâneos, a ocupar seu lugar de referência de
matriz estética e cultural, porém a hierarquia pressuposta pela concepção de fontes e influências é
substituída pela escolha consciente da intertextualidade e pelo reconhecimento de que o outro é
construção de um imaginário que o classifica como inferior.
3. PEREGRINAÇÃO DE BARNABÉ DAS ÍNDIAS: A VIAGEM DO COLONIZADOR
A metaficção historiográfica encontra na literatura portuguesa um terreno propício a sua
produção. Ao longo de séculos a celebração dos grandes feitos marítimos e da conseqüente
expansão territorial, alcançada a partir do século XV, deixou menos evidente a violência da
expropriação e do autoritarismo político ocorridos tanto nas colônias quanto no próprio reino. A
possibilidade de explorar a estreita relação entre as estórias e as histórias que criam e difundem o
ideal de uma pátria assinalada pela conquista reaviva uma questão que há muito vem sendo
discutida, a da impossibilidade de se chegar a uma verdade absoluta e singular. Como diz Linda
Hutcheon (1998, p. 145) a respeito da metaficção historiográfica em geral, numa reflexão que
pode ser estendida a uma vertente da literatura portuguesa contemporânea, na qual se inclui a
obra de Mário Cláudio, “A preocupação do século XVIII em relação às mentiras e à falsidade
passa a ser uma preocupação pós-moderna em relação à multiplicidade e à dispersão da(s)
verdade(s) referente(s) à especificidade do local e da cultura.” O reconhecimento da pluralidade,
que substitui o ideal de um discurso homogêneo, abre espaço para que na literatura portuguesa
possam emergir as muitas vozes que foram excluídas da grande narrativa da nação. O novo olhar
sobre o passado, explorando pontos de vista que rompem com a unicidade implica no
reconhecimento de um outro, diferente daqueles a quem tradicionalmente se atribui a formação
do império ultramarino. Ou seja, tornam-se protagonistas aqueles que “vêem a história de baixo”,
das camadas mais humildes da sociedade.
26
Assim, a opção pelo discurso da alteridade elege personagens cuja experiências
funcionam como contraponto àquelas atribuídas às figuras heróicas tradicionalmente cultuadas
pela história oficial. Ganham destaque os temores e a fraqueza moral dos heróis, enquanto os
mais humildes têm sua grandeza evidenciada. Afinados com a concepção de história que
privilegia o papel desempenhado pelas pessoas do povo nos espaços que ocupam, os textos
mostram seus destinos pessoais entrelaçados a episódios marcantes, como pode ser claramente
identificado no romance de Mário Cláudio.
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, a empreitada marítima empreendida por Vasco
da Gama em sua busca pelas Índias é o acontecimento escolhido pelo autor para recontar um dos
momentos mais importantes da história portuguesa. O romance teve sua publicação em 1998,
coincidindo com a abertura da Expo 98 e com as comemorações pelo 5
o
centenário das viagens.
Em entrevista concedida a Luís Miguel Queirós, Mário Cláudio confirma ter sido proposital o
lançamento no período das celebrações, atendendo à sugestão de seu editor português. Entretanto,
garante, a concepção e elaboração do livro não se fizeram com esse propósito, e a idéia do texto
já era antiga.
27
Em uma peça teatral, “Ilha do Oriente”, de 1989, e em um conto, “De Barnabé,
mestre-cozinheiro da nau-capitânea, na primeira viagem a caminho das Índias”, de 1993, já
apareciam o Gama e o jovem marinheiro, que se tornariam personagens do romance.
26
Usamos aqui a expressão “história vista de baixo”, na acepção que lhe confere Jim Sharpe, para quem
essa nova abordagem permite revelar a participação ativa das classes inferiores nas sociedades em que
viviam. De acordo com Sharpe, o termo foi empregado pela primeira vez por Edward Thompson no
artigo “The History from Below”, publicado em 1966. (SHARPE, 2001, p. 40-41)
27
QUEIRÓS, Luís Miguel. À descoberta de duas Índias. Disponível em: http://wwww.instituto-
camões.pt/arquivos/literatura/desc2indias.htm. Acesso em: 12 jun.2003.
Apesar de, segundo o autor, não ser uma “obra de encomenda”, o contexto de produção
do livro um ano de pesquisas sobre o século XVI e outro dedicado à escrita - não pode ser
desprezado. Em meio à euforia celebratória, acompanhada por manifestações que colocaram em
discussão a validade da empresa colonizadora e imperialista, Mário Cláudio transpôs para a
literatura episódios históricos, aos quais associou elementos picarescos
28
, traçando um perfil
iconoclasta não só dos reis incentivadores da expansão - D. João II e de D. Manuel -, mas
também de Vasco da Gama e de sua viagem. O navegador, figura central das comemorações, é
mostrado sob novo prisma, sem a aura de grandeza explorada pelos governos autoritários e,
através da desmistificação de sua imagem - embora não perca de todo a configuração heróica
29
,
deixa de ser o protagonista, papel reservado ao humilde grumete. Essa inversão se justifica pelo
objetivo de deslocar o centro de interesse dos feitos heróicos da travessia marítima para a jornada
espiritual do personagem-título, o que lhe confere o estatuto de peregrinação, em seu sentido
pleno de jornada espiritual. Na entrevista anteriormente citada, o próprio autor deixa clara sua
visão dos feitos e da imagem que apresenta de Vasco da Gama:
As pessoas da minha geração têm uma grande dificuldade em o dissociar
daqueles monstros comemorativos do fascismo. Para mim, o Gama continua a
ser isso. E tudo o que li nas crónicas - em Castanheda, João de Barros, Damião
do Góis não me mostra um homem afável. Teria algumas qualidades de
mando, mas nutria um certo complexo de inferioridade em relação ao irmão
mais velho, que toda a gente sabia que era mais inteligente do que ele. Paulo da
Gama, sobretudo, era amado.
A vertente mística privilegiada em Peregrinação de Barnabé das Índias encontra na
28
Em diversos episódios a narrativa assume o tom cômico ao contar as peripécias do jovem Barnabé para
conseguir sobreviver.
29
Embora Vasco da Gama seja apresentado como um homem inseguro, Mário Cláudio não lhe nega o
mérito de ter atingido o Oriente, apesar dos revezes sofridos durante a viagem.
figura do anti-herói os elementos que inserem a narrativa na perspectiva questionadora da
literatura pós-moderna que, amparando-se nas discussões levantadas pelos novos historiadores,
escolhe como principais personagens pessoas anônimas, apagadas dos relatos oficiais.
30
Personagens secundárias também representam segmentos sociais desprezados pela historiografia,
como é o caso dos judeus e criptojudeus
31
, vítimas da intolerância religiosa, apesar de
financiadores das viagens ultramarinas. É bastante significativo, portanto, o tio judeu, o influente
Joseph de Lamego, mostrado em seu trabalho no comércio e em suas incursões na ciência
necessária à navegação. Fragmentos de conversa entre Joseph e seus convivas são ouvidos por
Barnabé, que se encanta com os misteriosos relatos. De dois companheiros que, como ele,
trabalham na fabricação de sapatos, toma maior conhecimento dos assuntos discutidos em vozes
abafadas:
[...] arrecadava Joseph papéis escritos em línguas desconhecidas, vindos da
Turquia e de Veneza e de Espanha, a acrescer àquilo a que chamavam os
hóspedes “as nossas cartas de marear”, despedidas de Marrocos e de outros
cantos da mourama. E um determinado Tomé da Régua [...] relatara tudo quanto
descobrira antes de por completo desaparecer. Falara dos mapas que se
estadeavam sem rebuço, dispersos pelo tampo das mesas, e de outros que se
distinguiam sobre os tapetes do chão, inseridos entre livros abertos ou fechados,
e junto a lentes que ajudavam os anciãos na leitura.
32
30
O personagem Barnabé, por sua configuração tanto moral quanto social ou econômica, afasta-se da
figura do herói como personagem mitificado, que se move com desenvoltura em uma sociedade
marcada pela estabilidade. Como anti-herói, Barnabé traz em si frustrações e angústias além da
desqualificação social. Os espaços que percorre favorecem os delitos que comete. Apesar de ser o
grande personagem da viagem, seu heroísmo se dá às avessas, impulsionado, inclusive, por situações
em que se vislumbra a alucinação.
31
O termo se refere aos judeus obrigados à conversão à fé cristã que, não obstante, mantinham sua crença
e a prática de seus cultos.
32
A seguir, as citações referentes à edição consultada de Peregrinação de Barnabé das Índia, serão
indicadas por P.B, com o número da(s) página(s) correspondente(s).
A colocação no romance das trocas culturais que se efetivavam nesse período subverte os
relatos oficiais concentrados nas ações apenas dos portugueses cristãos, em uma efetiva revisão
histórica, como assinala Maria Theresa Abelha Alves (1999, p. 3):
As alusões que se fazem criam a atmosfera do hibridismo cultural que em
Portugal se respirava naqueles tempos, e, simultaneamente, questionam a
intolerância religiosa. Quando se desvela uma prática e um proselitismo que
não correspondem a contradições de base, quando se patenteia que nos projetos
maiores da nação, entre os quais a busca de empórios rendosos no além-mar, se
conjugaram as duas vocações religiosas, e quando se surpreendem católicos e
judeus nas malhas de um cotidiano comum, superam-se as oposições
meramente conjunturais.
Apesar de adotar essa perspectiva, Mario Cláudio não despreza os textos que têm servido
durante séculos à historiografia oficial, estabelecendo relação intertextual com o Roteiro das
Índias, de Álvaro Velho; as Décadas da Ásia, de João de Barros; Peregrinação, de Fernão
Mendes Pinto; os autos de Gil Vicente; a História trágico-marítima; os textos bíblicos, entre
outros. Principalmente, o diálogo se dá com o grande símbolo da pátria lusitana, o poema épico
de Camões, de que Vasco da Gama é o grande personagem heróico, destinado ao sucesso em sua
empresa marítima: “Vasco da Gama, o forte Capitão, / Que a tamanhas empresas se oferece, / De
soberbo e de altivo coração, / A quem a Fortuna sempre favorece”. (CAMÕES, 1982, p. 80)
É em Os Lusíadas que a estruturação do romance encontra sua maior proximidade,
revelada desde a divisão dos capítulos, que, à semelhança dos cantos da epopéia camoniana, se
organizam em número de dez As Neves, Os Demónios, As Chagas, Os Loucos, As Cordas, Os
peixes, Os Anjos, As cidades, As Pombas, As Luzes. Ao longo das páginas, é apresentado o
percurso de Barnabé, judeu obrigado à conversão cristã, assombrado desde a infância pelos
perigos do mundo. A morte do amigo André Mendes, afogado em um rio, estará para sempre a
acompanhá-lo como um fantasma, mesmo depois de tornar-se adulto e embarcar para as Índias.
Aos dezesseis anos, Barnabé se muda para Lamego, com o propósito de trabalhar com o tio
Joseph de Lamego, ligado ao rei e às expedições marítimas. Ao engravidar Revocata, filha não
reconhecida de seu protetor, o jovem é expulso da casa e passa a viver em Lisboa, onde
perambula entre outros personagens desvalidos da corte. Passando por diversas situações difíceis,
sem se estabelecer em um ofício, consegue ser escolhido para embarcar na armada de Vasco da
Gama, integrando a tripulação da nau São Rafael, sob o comando de Paulo da Gama, a quem
Mário Cláudio atribui maior retidão de caráter - daí a escolha de colocar Barnabé mais próximo
dele: “Havia nele [em Paulo da Gama] outra humanidade. Nunca fez aquelas patifarias que o
Vasco da Gama fez. Coisas hediondas, que não incluí no romance.” (QUEIRÓS, p. 3)
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, a imagem de Vasco da Gama é a de um homem
cheio de temores, perturbado por sonhos em que se vê perseguido por uma hidra, representação
do medo que sente de sua própria fraqueza. Assim como a biografia de Barnabé, a do Gama é re-
contada desde a infância, passada junto de Paulo, e dela fazem parte suas preocupações
cotidianas, o intenso sofrimento provocado pela morte do irmão, chegando até a velhice que lhe
incentiva a memória. Em sua viagem de descoberta das Índias, Gama alcança um território
geográfico, estratégico por sua importância comercial e política. A ele havia sido dada por el-rei
uma incumbência que consegue cumprir a contento, sem, no entanto, conseguir verdadeiramente
se encontrar com o outro e alcançar a transcendência, diferentemente do que ocorre com
Barnabé. Sendo um romance inserido no contexto considerado pós-moderno, Peregrinação de
Barnabé das Índias não se furta a tocar em Os Lusíadas, obra em que se consagra o heroísmo de
Vasco da Gama em sua maior aventura. A transformação da personalidade do jovem grumete é
anunciada por duas profecias feitas por Joseph de Lamego e marcada por sinais que tornam
inequívoco o seu caráter místico. A bordo da nau São Rafael, sua figura adquire uma nova
dimensão, a de profeta e sábio, verdadeiro descobridor das Índias, por ser capaz de enxergá-la
como sonho.
Na narrativa do encontro com essas duas Índias, a material e a espiritual, a linguagem do
livro se constrói como um compósito de construções típicas do século XVI e outras
características do português atual, concretizando o que Manuel Alegre (1998, p. 23) considera
não “uma reinvenção da escrita daquele tempo, mas a reinvenção daquele tempo pela escrita.”
Nessa mescla entre passado e presente, o texto traz inquietações que pertencem aos homens de
todas as épocas.
A trajetória de Barnabé é narrada desde sua adolescência em Ucanha, onde, junto a sua
família e amigos vive a existência comum aos pobres do local. Vamos encontrá-lo pela primeira
vez no segundo capítulo - “Os Demónios” a roubar maçãs do Mosteiro de Santa Maria de
Salzedas, próximo a Lamego. Essa primeira “louca aventura” a que se refere o narrador será
seguida de outras, que terminarão por configurar uma viagem que irá muito além das andanças
que empreende por terras e oceanos. Bem antes de embarcar para o Oriente, Barnabé começa a
vivenciar situações que o preparam para a grande trajetória que irá conduzi-lo a um mundo mais
surpreendente e misterioso do que aquele que as terras exóticas lhe oferecem ao olhar: o mundo
de sua própria interioridade. Na contracapa do livro, o texto de apresentação destaca o tema do
romance. Se há uma viagem geográfica a contar, uma outra será mais importante pois oferece a
resposta para a pergunta fundamental que encerra a pequena apresentação:
Aqui se contém a oculta viagem de Vasco da Gama, relatada aos que possuírem
ouvidos para ouvir. Na escumalha da armada, segue Barnabé, jovem grumete
[...], sujeito ao mais bruto serviço, portador de um segredo que a noite não
vencerá. Com ele atravessa o mar e os seus mostrengos, as tempestades de fora
e de dentro, a euforia de se definir como homem, e, fragilíssimo como tal. Quem
terá porém descoberto o caminho, e regressado a Lisboa?
33
Repleto de metáforas, Peregrinação de Barnabé das Índias mostra ao leitor a
transformação do rapaz pobre de Ucanha em um homem, aqui compreendido como sujeito que
alcança sua completa humanidade.
3.1. A VIAGEM
Apesar de ser o protagonista do romance, Barnabé não é apresentado no primeiro capítulo
As Neves -, que se inicia com Vasco da Gama, já velho, em Évora, onde parece esquecido pela
corte de D. João III. O título se refere à neve que caracteriza a estação fria na Europa, mas
também, metaforicamente, remete às cãs que, por extensão, indicam a fase da vida em que o
leitor irá encontrá-lo imerso em letargia e desencanto, sem o reconhecimento dos tempos de
comandante:
Um velho no Inverno é a morte soprada, o tempo dorido, os fantasmas que a
paciência esfarrapou. Põem-lhe aos pés a braseira, remexe as cinzas à procura de
um rosto mais claro, aquieta-se nos reposteiros da sombra que o habita. [...]
E protege-se o velho do afrontamento dos vizinhos, ávidos de lhe calcular a
riqueza que lhe invejam, céleres a diminuir-lhe o mérito, sinuosos a inculcar-lhe
a fraqueza do braço e a mácula da virtude. (P.B: 13-15)
A imagem inicial de Vasco da Gama é de fundamental importância para a construção do
desenho que será feito de Barnabé. Como homem, e não mais sob a estatura do herói de força e
caráter superiores, Gama rememora e, nesse exercício, revela suas fraquezas e inseguranças. A
memória emerge no cenário cotidiano em que, ao lado da mulher, se aquece do frio e recebe os
33
Grifos nossos.
diligentes cuidados que a companheira de muitos anos lhe oferece. Das lembranças de sua vida
escolar junto aos frades, surge sempre a imagem do irmão Paulo, a quem reconhece a
superioridade da inteligência e que, sem que percebessem, servia a ele, Vasco, desde a meninice
“E obrigavam-no os frades, roliços nos hábitos crivados de buraquinhos, a decorar o latim de
Cícero, e era num ápice que lhe passava o mano Paulo as respostas certas sem que os outros
percebessem.” (P.B.: 15) É também o irmão que assume os erros cometidos por Vasco,
recebendo os castigos dados pelo pai: “[...] é Paulo quem invariavelmente assume as culpas. Por
amor ao catraio agüentou com o chicote e a bofetada, com três dias a açorda sem sal nem azeite,
com a confiscação de seus aprestos de pesca. (P. B.: 21) É em Paulo “imagem da segurança a
que aspira” (P. B: 20) - e não sem si mesmo que encontra as qualidades que sabe serem
fundamentais a quem sonha com aventuras e descobertas marítimas.
Orgulhoso de suas conquistas nos mares, Vasco da Gama abre diante de si os documentos
que atestam sua grandeza, julgando injusta a obrigação à Ordem de Cristo, já que os bens
conquistados são resultado das façanhas que empreendera. Entretanto, o orgulho que sente é
coberto pela sombra que sempre o acompanha, sem nunca ter sido por ele vencida: o medo
profundo, extremado, que acaba por rebaixá-lo em sua grandeza: “Mas um arrepio o trespassa,
prenúncio desse pânico que o acompanha desde a infância, e que ascende de um poço de limos
onde geme e grita um condenado, e arrasta correntes, e se atasca numa vasa excrementícia. (P. B.:
17) A alforreca
34
que encontra na praia “animal indecifrável, hesitando entre a solidez e a
liquefação” - o fascina por parecer conter os segredos dos oceanos “Para além da gelatinosa
transparência, através da qual se espia a verdade como por uma lente gigantesca, oscilam os
34
Água-viva.
navios que demandam a África, acastelam-se as nuvens e formam-se as marés, brilha o sol com
uma baça insistência.” (P. B.: 18)
O fascínio pelo mar, alimentado na infância pelo mano, que vê nele a impetuosidade
necessária às grandes empresas, sofre uma poderosa transformação. O mistério encantador da
alforreca é substituído pelo terror representado pela hidra
35
cuja imagem irá persegui-lo desde
então, apesar de seus esforços em vencê-la. Para dominar o medo, Gama chega a trazê-la pintada
em seus aposentos, mas a proximidade não é capaz de torná-la menos assustadora:
E na velhice de Évora é na terrífica hidra, exprimindo a fúria das cores que se
intercadeiam, amarelo e negro e vermelho, que haverá de se transformar a
alforreca da infância de Sines. Por uma confusão de línguas esvoaçantes e de
presas arreganhadas se exterioriza a ira da besta, pintada na parede do claustrim,
[...] não tanto com vista apregoar a sumptuosidade do seu estado como a exaurir
um medo que não alcançou desfazer. [...]
Afirmar-se-á a criatura uma velha surta a cada volta do itinerário, rápida a fazer
baixar a cerviz.
36
(P. B: 21-22)
A coragem que aparenta possuir é uma máscara que oculta o pavor que sente ao se
deparar com os perigos constantes que surgem no mar. Em viagem às Índias, a navegação é
assaltada tanto pelos imprevistos quanto pelo monstro interior, que irrompe a cada perigo. Por
serem inseparáveis, a referência à hidra, feita pelo narrador, que em terceira pessoa domina todo
o primeiro capítulo, traz imediatamente ao leitor o episódio em que a esquadra é atingida por uma
tormenta. A borrasca se aproxima e, como um animal sorrateiro que parece recuar para
repentinamente se lançar sobre o alvo, faz as águas se acalmarem para depois, como o sabiam os
nautas, ganhar maior força de destruição. O Atlântico, “a oitocentas léguas do litoral, e a noroeste
do golfo da Guiné” (P. B.: 232), insere os homens em um quadro aterrador:
35
Gênero de pólipos de água doce e, ainda, de uma cobra de água doce. A Hidra de Lerna, serpente
mitológica monstruosa, com sete cabeças, foi vencida pelo herói Hércules.
36
Grifo nosso.
De repente foi como tudo se interrompesse, e baixaram de altura as ondas, e uma
brisa fresquíssima redimia os embarcados da sua inquietude. Mas significava
isso que desembestara a borrasca, a qual ia explodindo com enorme fulgor, e
desconjuntavam-se os cascos num rangido de pregos que se desprendessem das
tábuas, e lambiam os vagalhões o cavername das barcas, e eram zurridos e
berros, estrépitos e assobios que se cruzavam, e não sobrava Norte, nem Sul,
nem Este, nem Oeste, por onde se encaminhasse a navegação. (P. B.: 23)
Aterrorizado, Gama transmite aos marujos a serenidade que dele se espera - “Aferrado à
coragem que para si engendrara, apresenta-se-lhes o capitão na impassibilidade de seu
semblante.” (B.B: 22) Entretanto, sua calma aparente esconde o medo imenso uma outra fera o
ameaça, não no mar, mas em sua própria interioridade. A hidra monstruosa o mantém sob seu
controle, afastando-o da imagem de bravura que o configura como herói para a tripulação:
E se iam acalmando os que o respeitavam, não lograva sobrepor-se à ansiedade
de que padecia, e se ia robustecendo o vozeirão, não se destacava do pranto que
o ia sufocando. Era a consabida miragem que lhe surgia, ocultando as sete
cabeças na fundura dos mares, apta a vir à tona, e a reassumir o seu poderio, e a
subjugar a vontade dos que reduzira à escravatura. E não atinaria Vasco em
determinar se no pélago que descortinava, ou em sua próprias entranhas, é que
montara guarida a tenebrosa avantesma, espalhadora das consternação que
revolve as tripas, e que precipita os valentes na mais abjeta das cobardia. [...]
Resguarda-se Vasco de denunciar frente aos restantes capitães, e a toda a
matulagem, o susto que no ânimo lhe incute a suspeição da sua hidra. [...] Proíbe
que o distraiam da vagarosa tarefa de recomposição dos nervos [...] Mas assola-
lhe um caos a inteireza da envergadura, e torcem-se-lhe os intestinos num
espasmo sem saída, e defluem as correntezas da transpiração, a perlar-lhe as
barbas sem cãs de cavaleiro de vinte e nove anos. (P. B.: 24-26)
Ao recuperar a calma, volta-se Vasco ao seu projeto grandioso de conquista; o pavor por
que passara lhe parece ter sido vivenciado por outro, e reassume novamente o controle de suas
emoções, retornando às tarefas de comandante da nau. Assossega-se-lhe a hidra que, entretanto,
não desaparece como o mar que se insurge em meio à calmaria, o monstro interior apenas
adormece, sendo sempre uma ameaça:
A cada segundo das suas navegações a sentira presente e apta a surdir, ataviada
dessa ramaria que medra nos abismos, voltando os focinhos todos em
desconformes sentidos. E com os ferrões agudos atingiria o coração deste e
daquele, e injectaria o veneno, e apropriar-se-ia da presa, metodicamente a
devorando com um maquinal movimento das mandíbulas de afiadíssimos dentes.
Nas paragens de calmaria, quando em um fantasma de aragem enfunava as
velas, e de disseminavam os mareantes na maior das prostrações, suspeitava ele
de que por debaixo do casco é que se enroscava a bestunça, e de que lentamente
se esparramaria, e de que haveria de ascender à tona, e de que um golpe dos
pescoços espatifaria a armada, e de que num coro estrídulo atiraria o silvo de
estarrecer. (P B: 36-37)
A hidra terá sempre força superior a sua, mesmo quando, já velho, tenta dominá-la
colocando-a em um afresco em que simula tê-la capturado. À imagem aterradora opõe uma outra
de coragem que cria para si, a da pantera que, entretanto, está fadada à derrota. É assim que
retorna das Índias, ainda que com os louros da missão cumprida, vencido pelo medo, pelo motivo
secreto do qual não consegue jamais escapar “Fugindo aos malefícios da fera, comprovada a
impossibilidade de adominar, é que regressara da Índia.” (P. B.: 37) A luta e a derrota do capitão
se desenrolariam durante todo o percurso, demandando dele esforço para que seu pavor não fosse
percebido pelos tripulantes.
Ao longo de todo o primeiro capítulo, o narrador entremeia as referências à hidra terrífica
e às cenas em que, ainda menino, Vasco da Gama tem o pai acusado de traição, aprisionado por
ordem do rei Dom João II. A voz do garoto se entrelaça à do narrador que também faz sua a
denúncia sobre a crueldade do monarca e o período sanguinário em que esteve no poder. A
narrativa é conduzida, ainda que em terceira pessoa, pela memória do Gama, abrigado do inverno
em sua casa confortável, inverno que metaforiza sua própria condição de velho.
Revelado em sua fragilidade humana, o que o afasta da estatura do herói invencível,
Vasco da Gama tem contraposta à sua trajetória a de um pobre homem que o acompanhara na
grande viagem às Índias e que, em sua posição humilde, não lhe deixara lembranças. É assim que
surge no romance a figura de Barnabé que, a partir de então, terá revelada sua peregrinação ao
Oriente e ao interior de si mesmo. A calma rotineira da casa é abalada por sua chegada e pela
insistência em encontrar-se com aquele a quem servira. Com a aparência de mendigo, também
Barnabé traz oculto algo insuspeito, mas que, ao contrário do que ocorre com o comandante, não
o rebaixa em sua condição de herói, como será revelado nos capítulos seguintes. Assim diz o
hortelão a respeito do estranho:
[...] é um mendigo, senhor, que por força deseja avistar-se com Vossa Mercê, e
declara que muito foi ele da privança vossa, e que o que tem para aduzir só
defronte de Vossa Mercê aduzirá, e que não é quem se julga que poderá ele ser,
e assevera que por bem vos procura, e que sobejamente o conhece o Almirante
do Mar da Índia, mas que não pretende declarar o nome, pois que importa um
nome, pergunta ele, se o que monta é a alma que lhe mora por dentro? (P. B.:
41)
Ao permitir a entrada de Barnabé em sua propriedade, Vasco da Gama tomará
conhecimento de outra viagem, ocorrida juntamente com aquela que havia realizado às Índias. O
discurso do visitante, que se apresenta para “vos resumir outras navegações em que embarquei”
(P.B.: 42), inicia-se num turbilhão em que a própria fala dirige o fio da memória que emerge no
discurso. Finda-se o primeiro capítulo e, no seguinte, Os Demónios, cujo foco narrativo se faz em
primeira e em terceira pessoas, Barnabé - assim como Vasco, - rememora os tempos em que vivia
na casa paterna.
3.2. A PEREGRINAÇÃO
Juntamente com as estripulias juvenis, Barnabé também se depara com os temores
demônios que o irão acompanhar através dos anos. Contudo, de modo diferente de Vasco, ele
conseguirá superá-los e mais, transformar a ameaça em elemento essencial à peregrinação que irá
empreender. Ainda está distante a viagem marítima que realizará à procura das Índias, mas o que
a precede se assemelha a preparativos que o tornarão capaz de empreender a jornada que será
também interior.
A voz de Barnabé inicia o capítulo com suas recordações do ano de mil quatrocentos e
oitenta e cinco quando observa os religiosos concupiscentes do mosteiro situado próximo a
Lamego. A continuidade da narrativa passa a ser feita por um narrador onisciente que passará a
acompanhar o jovem de Ucanha, judeu de família pobre. É nessa época que o rapaz começa a
despertar para outros interesses, diversos daqueles que estava tendo até então. Diverte-o, agora,
uma música que vem de seu próprio interior, fazendo-o tentar transformá-la em som através de
uma flauta improvisada. Embora não obtenha sucesso, isso não o impede de continuar a voltar-se
para si mesmo, pelo contrário: é o início de sua transformação; é o primeiro passo para o que virá
nos anos seguintes. Se lhe começa a modificar a alma, isso não se faz sem correspondente
mudança no corpo. Longe de ocorrerem separadamente, vêm juntas, sendo parte do mesmo
processo de “se definir como homem”
37
, aqui entendido em seu sentido mais amplo:
[...] uma nova paisagem descortina dentro de si, e quanto mais para ela se
debruça, mais ela se descerra num abismo. Presencia as metamorfoses do corpo,
intuindo que uma coisa e outra andam em uníssono, e com crescente freqüência
afoita-se a substituir o toque da flauta pela manipulação do órgão que mais
sensível se lhe tornou, mais dotado de uma exigência de maravilhas. (P. B.: 48)
A essa modificação vivida pela personagem, dá-se outra, na natureza, esfuziante, que
revela a Barnabé algo com que ainda não atinara: o da impossibilidade que sempre acompanha o
ser humano. A beleza e a perfeição do canto de um pássaro que, apesar de seus esforços, percebe
37
Retirado do texto de apresentação do romance.
que nunca poderá imitar, ajudam-no a começar a compreender essa limitação, em um momento
poeticamente descrito pelo narrador:
Uma tristeza envenena o adolescente, resultante do palpite de que se não dilui no
Mundo a identidade, mas de que entre o seu ser e a completa criação um véu
imaterial, posto que intransponível, se levanta, condenando-o a desejar sem
objecto, a querer sem morte e a amar sem presença. (P. B. p. 49)
A tentativa de capturar o pássaro também fracassa e a gaiola que meticulosamente
construíra permanece vazia, intensificando sua frustração. O sonho desfeito faz com que, no lugar
do passarinho encantador, se instale um corvo representação do sombrio e da morte.
38
A perda
da esperança amedronta Barnabé e, mais uma vez, seu estado de ânimo e o ambiente externo se
confundem em uma mesma paisagem. No discurso bíblico o adolescente encontra as palavras que
traduzem sua compreensão do inevitável: “Deus o deu, Deus o levou, bendito seja o nome do
Senhor!” (P. B.: 51)
O episódio do pássaro se repete simbolicamente mais à frente no desejo frustrado de
Banabé ao observar uma jovem durante uma festa religiosa cristã em que se diverte junto aos
amigos de sua classe social. A relação entre as duas passagens é referida claramente pelo
narrador que mais uma vez reforça a crescente consciência do jovem a respeito das coisas da
vida:
E ao atentar numa rapariga que entretece a trança à camarada, lembra-se do
pintarroxo que não conseguiu deter, e experimenta a ausência de alguma coisa
que se lhe torna vital, e não é pássaro, nem flauta, nem fruta monástica, nem
pião extraordinário. (P. B.: 53)
38
É interessante observar que a crença na negatividade simbólica do corvo está presente principalmente na
Europa, onde se tornou elemento significativo nas obras dos escritores românticos, associada ao mau
agouro. Em outras culturas, costuma representar elementos positivos. (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1991, p. 292 -295)
É nessa festa que aparece pela primeira vez na narrativa a personagem Joseph de Lamego,
primo de Barnabé, judeu rico e influente no reino. Ligado às viagens ultramarinas, a seu respeito
correm histórias sobre a participação obscura nesses empreendimentos, o que é compreensível
dada a condição de judeu em um meio que o tem como peça fundamental, mas que procura
manter escondida sua presença no projeto de expansão da pátria portuguesa. Em uma preleção em
que passagens bíblicas se misturam a referências às Grandes Navegações, o homem profetiza não
só os resultados que elas terão, mas também o destino do rapaz que está diante de si. A fala
profética de Joseph antecipa o malogro dos navegantes na tentativa de encontrar riquezas e
também prevê o reencontro que ocorrerá mais tarde em sua casa em Lamego a primeira de
outras profecias que fará sobre Barnabé. Com o fascínio pelas viagens dá início a seu longo
discurso premonitório:
[...] “quem não avistou uma caravela, meu rapaz, não fruiu da perfeita alegria
que nos concede o Criador, o qual, assim que foi gerado o Universo, se
regozijou por o achar a seu absoluto contento, e vou contar-te verdades que se
assemelham a sonhos, e descrever-te fantasias que parecem evidências [...] e eis
que sobre tais lugares doutamente discreteia o profeta Jeremias, mas sucede que
se evaporou a memória do adonde se situam, e tê-la-ão guardado em meu juízo
as dez tribos dispersas [...] mas não resulta qualquer ciência da geografia das
estâncias onde se haverão estabelecido, e a si mesmo se engana Cristóvão
Colombo, e aos monarcas de Espanha que almeja servir, jurando ir topar em sua
viagem com a origem de riqueza tamanha, e facto é que não trará das costas de
Poente senão uns tantos indígenas e alguns papagaios, [...] e mete-te bem no que
te relato, meu rapaz, e que te cumule Iahvé de fecundíssimas graças,
emprestando-te o vigor para vencer os inimigos que te assaltarem, e volta a casa
com os do teu sangue, e haveremos de nos abraçar, não te esqueças da promessa,
numa hora assinalada no quadrante do futuro.” (P. B.: 54-56)
E o futuro antevisto por Joseph continua a se delinear na vida de Barnabé a quem está
reservado o encontro com as naus. Antes, porém, de se aventurar nos mares, outras importantes
experiências irá viver o rapaz de Ucanha e, entre elas está o de se defrontar com os perigos que as
águas podem oferecer. Longe, ainda, no tempo da viagem rumo ao Oriente, Barnabé terá sua vida
atravessada por uma tragédia que marcará profundamente o homem que virá a se tornar. Trata-se
da morte por afogamento de um companheiro de algazarras, André Mendes, quando estavam a se
exibir no rio. Impetuoso, André se deixa perder nos mistérios que as águas exercem e, sem que se
dê conta, acaba tragado pela torrente. Na descrição da brincadeira dos três rapazinhos que
perturbam a calma dos moradores das redondezas, o narrador assume o tom poético ao contar o
desaparecimento como que encantado de André, para quem a coragem de se lançar aos segredos
da vida também traz a morte prematura:
E destaca-se dos amigos André Mendes que é o mais gaiteiro do conjunto,
curioso de quantos mistérios lhe participem, gruta que se murmura guardada por
um trasgo, poço a que um louco se botou num poente de nortada, subterrâneo
que se assegura decorrer por debaixo do cemitério. Deslocando-se ao encontro
daquela vermelhusca lua cheia, não se fatiga o temerário da sua natação, e por
ele chamam os compinchas, e nem os ouve o que se distancia, prosseguindo no
feitiço de uma ladainha que lhe anula a vontade, e que não é de ninfa, nem de
santa, nem de fada, nem de moura. E num instante, surpreendido pelo próprio
descaminho, varado por uma visão que ninguém experimenta, estrebucha um
pouco, e some-se na refulgência da esteira de prata de que se reveste a
superfície. (P. B.: 57)
O desaparecimento do jovem, cujo corpo custará a ser encontrado, provocará em Barnabé
constantes pesadelos em que uma horrenda e fantasmagórica figura o castiga por seus supostos
pecados. Em meio à cena apavorante, a imagem de André, a emergir da morte e das águas
lamacentas, também ele a lhe profetizar o destino no mar. É com o aspecto de afogado, de cor
azulada e coberto de heras, mas encantado como princesa de contos de fadas cujas palavras são
lançadas junto com ouro, que o espectro prediz:
[...] “saberás tu, Barnabé, que não tem foz o nosso rio, e que se estreita, quando
pensamos ter chegado ao sítio onde termina, e forma outros cursos, e cada qual
em outros vários se espalha, e será assim por infindável tempo até ao Juízo
Final, e bóiam os afogados como barcaças apodrecidas e neles se empoleira a
quadrilha das feiticeiras deste Mundo, e cantam pela noite sem que os vivos as
vejam, e descem as aves do céu, e constroem o ninho na orelha dos mortos, e é
isto como te conto, e não existe descanso para aquele que tragaram os
torvelinhos da água, e só podem aliviá -lo as orações que se rezarem pelos que
padecem as penas do Purgatório.” (P. B.: 61)
Essas imagens, acrescidas de outras, igualmente terríveis, desaparecem no surgimento da
manhã quando então o medo se dissipa e tudo retorna à calma habitual. Entretanto, de uma feita,
os abismos que assombram seus sonhos parecem se introjetar na própria mente e Barnabé,
embora acordado em meio às cenas assustadoras, não consegue escapar à sua força “Enroscava-
se como um gamo atingido por um chuço, gemia baixinho como um cachorro sem mama,
ofegava na espera da luz que não discernia.” (P. B.: 62) O pavor se torna insuportável e certa
noite, em um desvario, ele acaba por sair de casa indo se refugiar no campanário da igreja de
onde é retirado à força, gesticulando loucamente e dizendo coisas ininteligíveis. Como que
possuído é esse o diagnóstico dado por Teodora, feiticeira do lugar Barnabé passa por uma
espécie de exorcismo em que palavras mágicas são bizarramente associadas à ingestão de uma
beberagem que o traz de volta à sanidade. A descrição dos pesadelos e do surto, que em seu
início é feita em tensão crescente, termina em tom patético, recuperando na ladainha da velha
Teodora as rezas populares das curandeiras.
[Teodora] Enfiou um colherão de pau pela goela abaixo de Barnabé desfalecido,
e foi resmoneando esta cava litania, “pela peçonha da salamandra que resiste às
labaredas, pelo dente da toupeira que desenterra as raízes, pela crista do galo
pedrês que pressente os raios do sol, eu te ordeno, espírito desembestado, que
abandones o menino.” E rolou em convulsões o infeliz, e desprendeu-se-lhe a
língua em blasfémias terríveis, e bolsou ele um vómito de singularidades, cerdas
de javali e caganitas de cabra, e mais o que se afigurava serem as escamas das
pálpebras de um ceguinho que pelo terreiro das feiras costumava mendigar.” (P.
B.: 63-64)
Insere-se aí e não apenas na transcrição da fala da mulher aquilo que Mikhail Bakhtin
identifica como sendo uma das principais características do romance: o plurilingüismo, resultado
da combinação de diferentes estilos, vozes e linguagens. Através dos heterogêneos níveis de
discurso, o gênero romanesco assume a heteroneidade que domina a organização social, sendo,
portanto, coerente, com cada momento histórico e com as muitas realidades lingüísticas que o
configuram. Sem se reduzir a um episódio meramente engraçado ou ilustrativo de sua origem
simplória, a voz da curandeira introduz nas páginas do texto a veracidade de uma fala que lhe é
própria e que confere à narrativa a interação entre estilo e riqueza lingüística. Nas palavras de
Bakhtin (1998, p. 74),
O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente,
às vezes de línguas e de vozes individuais. [...] toda estratificação interna de
cada língua em cada momento dado de sua existência histórica constitui
premissa indispensável do gênero romanesco.
A pluralidade de discurso já se fizera presente em páginas anteriores de Peregrinação de
Barnabé das Índias, na fala da mesma Teodora, quando morte de André. É ela que assegura
serem inúteis as buscas, e sua visão virá a ser confirmada depois, quando o corpo é encontrado
por acaso: [...] “e tudo isso eu sinto nesta fraldinha que apalpo, e que foi a última que o
pobrezinho usou, Santa Bárbara, são Jerónimo, São Tiago, Cristo Jesus que nos redimiste, Padre
Eterno, ave Maria”. (P. B.: 59) Também o discurso de Joseph de Lamego a Barnabé, quando o
encontra na romaria de Santo António de Ferreirim, é exemplo de como diversos fatores
concorrem para caracterizar a voz que fala no romance, sendo mais do que uma tipificação da
personagem. As referências às passagens do Velho Testamento compõem um conjunto em que a
organização da linguagem e a mensagem transmitida adquirem força e coerência discursivas:
[...] é que recebeu aquele magnânimo e sábio rei Salomão uma embaixada que
procedia de um reino remotíssimo, e chamava-se Hiram o soberano de tal reino,
e despachou para Salomão adestrados pilotos e marinheiros expeditos,
transportadores de alucinante cópia de oiro, retirado das minas do país de Sofira,
e localizavam-se as jazidas de Ophir e em Tarsis, e eis que sobre tais lugares
doutamente discreteia o profeta Jeremias [...] (P. B.:55)
Essa coerência e vigor da linguagem podem ser percebidos em todo o romance e o
discurso religioso, mais presente até agora na fala de Joseph de Lamego, irá pouco a pouco se
fazendo mais vivo em Barnabé que, ao sair de seu lugarejo para ir morar com o primo, dará mais
um importante passo em direção ao destino que lhe está assinalado. Com dezesseis anos, o rapaz
procura com a mudança não só a aprendizagem de um ofício, mas, principalmente, o
apaziguamento de suas angústias. É na casa de Joseph que ficará excitado com os fragmentos de
conversas, que consegue escutar às escondidas, sobre as viagens marítimas a terras exóticas. No
entanto, algo ainda mais fascinante desperta o interesse do jovem e será responsável por uma
nova partida. Envolve-se Barnabé com a filha ilegítima de Joseph, Revocata, com quem inicia um
curto romance que se desenrola oculto dos olhares dos outros jovens que com eles trabalham. O
enamoramento dos dois constitui uma das passagens mais delicadas do livro, ainda que tocada
pela ironia do narrador ao se referir às idealizações do apaixonado e tímido Barnabé, que
encontrava na moça, além das qualidades que de fato possuía, “[...] virtudes outras, e excelentes,
que apenas assistiriam à moiçola nas arquitecturas febris do seu rendido admirador.” (P. B.: 68)
À noite os dois dormem em cubículos contíguos e, durante certo tempo, sua atenção se concentra
na presença próxima um do outro, embora ele não percebesse que seu interesse era
correspondido. Em meio às tentativas ingênuas de impressionar a jovem com demonstrações de
masculinidade, é Revocata quem toma a iniciativa de concretizar o desejo de ambos,
proporcionando ao inexperiente Barnabé o sentimento de plenitude:
E seria Revocata a vencer essa espécie de mal-entendido que prometia eternizar-
se, enfiando-se sem mais reticências pelo leito adentro do mancebo, transido de
um desconcerto dos sentidos que o punha violentamente a tremer. Enroscou-se
nele a rapariga com uma tal instintiva sabedoria que não havia medo que se não
pulverizasse, nem identidade viril que penetrantemente não imprimisse a força
de sua existência. Como um animal unificado, a parodiar os que enfeitam os
capitéis dos velhos templos, disparavam ambos no ímpeto de uma moção de
vaivém, procurando cada qual no corpo do outro a chave de um enigma que
ignoravam em que consistiria. E entre si se abandonavam, ou seria que se iriam
transmudando em mais dignos da estrela que no âmago se lhes incrustava,
exaustos e recompensados, silenciando um hino de beatífica gratidão. (P. B.:
70)
Esse período também encontra na natureza a paisagem correspondente - é tempo em que a
folhagem das cerejeiras se renova, assim como é para Barnabé um momento de calmaria, em que
deixam de atormentá-lo os antigos medos; ele parece florescer, vivendo em um estado de
tranqüila felicidade. O idílio, entretanto, será interrompido por uma conseqüência inesperada dos
encontros fortuitos: Revocata engravida e Joseph, enfurecido, o expulsa de casa, não deixando
dúvidas de que jamais permitiria que se casassem. Apesar do desgosto e da raiva incontida,
recomenda-lhe um destino, que o jovem acabará por seguir em sua peregrinação: “larga para
Lisboa, filhote de Baal, larga para a babilônia, que talvez te designe Eloim, nosso Pai, o
astrozinho que te guie pelo sendeiro da salvação.” (P. B.: 71)
A nova mudança, única possibilidade dada ao jovem de Ucanha, torna mais nítida sua
condição de vagabundo, tal como a compreende Zygmunt Bauman (BAUMAN, 199, p. 101).
Suas andanças não são determinadas pela vontade de conhecer outras paragens e tirar bons
proveitos das novas experiências. Sua movimentação não é uma escolha; é uma imposição, pois
os lugares onde encontra abrigo passageiro não demoram a se fechar para ele. Como vagabundo,
precisará mais do que de habilidades; será indispensável que tenha astúcia para sobreviver entre
os companheiros de sua condição.
A caminho de Lisboa, posto a serviço de um certo Dom João Coutinho, Barnabé entrará
em um mundo diferente do que conhecera até então. Já na chegada, perceberá, em meio à
confusão de gentes e de sons através da qual avança a caravana, um perigo que sempre estará à
espreita nas ruas apinhadas: a trapaça recurso comum aos pobres que, presos a uma
territorialidade forçada, olham ávidos para os bens que, sabem, jamais irão possuir.
39
No olhar
enfadado daqueles que os observam das janelas e das soleiras da portas, Barnabé enxerga quatro
chagas que dilaceram a cidade: “a astúcia da pobreza, o ressabiamento da inveja, a curiosidade do
fausto e a ganância da possessão.” (P. B.: 73) A primeira delas fará com que seja vítima de
ladrões e, sem que tenha opção, depois se junte a outros desvalidos e passe ele também a viver de
esmolas e ladroagens, indo parar cinco vezes na prisão. Ao ouvir falar de Joseph e de sua grande
influência nos negócios do reino, sente ímpetos de revê-lo e, assim, sem outra justificativa e
com remorsos por ter engravidado Revocata que, saberá depois, havia falecido, assim como o
filho que esperava - resolve ir a sua procura. Na conversa que entabulam, fica evidente a
existência dupla dos judeus obrigados a se submeterem aos ritos da conversão cristã impostos por
Dom João II, embora continuassem fiéis a sua fé - “[...] nem todo o judeu deixara de o ser” (P.
B.:76), havia dito a Barnabé o homem que lhe falara de Joseph. Ambos, apesar das posições
extremas que ocupam na sociedade homem ilustre e jovem delinqüente -, confirmam essa
máxima:
[...] e inquirindo se abjurara eu a nossa crença, aquando da persuasão régia, de
que pelas águas do baptismo nos convertêssemos, retruquei-lhe que na pureza é
39
Usamos aqui as considerações de Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 13-33), para quem nas
sociedades contemporâneas a grande divisão se dá entre os que podem se movimentar e os que não
podem, ou seja, entre os globais e os locais. Essa mobilidade possui sentido mais amplo do que o de
deslocamento geográfico; significa estar segregado dos avanços que permitem o consumo e o
encurtamento de distâncias. Embora a leitura aqui sugerida se faça de um texto cujo espaço se localiza
no século XV, o olhar que se lança sobre o período se situa no século XX, sendo, portanto, determinado
pelo contexto em que está inserido. Isso se aplica tanto à atividade de leitura quanto à de escrita, ambas
indissolúveis no processo de composição do texto. Ao entender Peregrinação de Barnabé das Índias,
Nação crioula e Desmundo, como tentativas de, através da metaficção historiográfica, encontrar no
passado questões pertinentes à contemporaneidade, consideramos adequada a abordagem da
marginalização social sob esse viés teórico do pós-modernismo.
que me ancorara, pois que não desconfiava ninguém de que provinha do nosso
grande patriarca Abraão, e que a alma que me fora insuflada era em Israel que
residia, e desculpou ele o seu amo, aduzindo que tresloucava já de moléstia fatal,
ao decidir compelir-nos a sermos o que não éramos, mas acrescentando que o
júbilo da honra lhe aquecia o coração, percebendo que resistira eu à injustiça dos
decretos, apegado a Iahvé, nosso Deus [...] (P. B.: 79)
O discurso de Joseph a seguir reforça a importância da identidade mantida, mesmo que às
escondidas, indicando a importância que isso terá para o caminho a ser percorrido por Barnabé. O
destino que lhe está reservado e o modo como irá cumpri-lo são indissociáveis de sua condição
de criptojudeu, apesar de não se restringir a ela. A fala de Joseph assinala essa questão,
assumindo o discurso religioso e profético, fundamental na narrativa:
[...] “tão seguro como ser eu Joseph de Lamego e sapateiro, e venerar a arca
dasaparecida onde se depositam as tábuas da Lei, te juro, Barnabé, que haverás
de copiar os nossos que se libertaram do cativeiro do Egipto, e como eles, e para
além do medo, e sem que a morte te assuste, intacto atravessarás as soerguidas
vagas da imensidão dos mares”. (P. B.:80)
Embora ainda pareça distante o cumprimento do que Joseph lhe havia anunciado, a
seqüência de acontecimentos que se dará a seguir funcionará como uma preparação final para a
grand e jornada. Presenteado com moedas pelo primo, o rapaz irá gastá-las com uma prostituta
que o contaminará com doença venérea cujas pústulas se alastram por seu corpo. As feridas,
chagas que expõem outras, interiores, trazem à tona as impurezas de que irá se limpar para que
possa atravessar os mares da grande viagem. Isso é percebido por Joseh a quem procura
desesperado por não encontrar remédio para a moléstia. Novamente se introduz na narrativa o
discurso religioso nas palavras do velho judeu:
[...] apetrechou-nos o Criador dos meios de O louvar e de nos empecermos, e
importa ao homem discernir o percurso que nuns e noutros desemboca, e eu
acho que a ti mesmo te julgaste, Barnabé, e que aprendeste a lição que se ilustra
no relato da malévola Jezabel, e que, vencida a força bruta que te moveu, e que
te assinalou com a mordedura da besta, outro serás, e mais tu, aberto à luz que
de ti mesmo irradia [...] (P. B.: 83)
As feridas que acometem Barnabé também são similares àquelas que o jovem percebe
estarem a afligir Portugal. Ao observar às margens do Tejo as muitas embarcações destinadas a
chegar as terras longínquas, apesar do fascínio que lhe exercem as atividades de marear, critica o
projeto de expansão assim como faz o Velho do Restelo na epopéia camoniana. Em Os Lusíadas,
a crítica é feita ao domínio da cobiça e do desejo de glória que impelem o reino a buscar vitórias
sobre povos distantes enquanto deixa a descoberto suas portas de entrada, mantendo, contudo, o
discurso imperialista que advoga para os portugueses a superioridade sobre as outras gentes.
40
Em Peregrinação de Barnabé das Índias também se condena o número desmesurado de
embarcações e viagens, mas pela razão de, na verdade, ao invés de indicarem a grandeza de
Portugal, servirem para ocultar sua decadência crescente. Sobre os navios e as viagens de
expansão, analisa Barnabé através da fala do narrador:
E outros muitos se iam construindo, e tomava-se Barnabé de susto manso,
considerando que o Reino de si próprio se evadia, roído pelas feridas que
expunha no escadório dos templos, buscando uma alternativa à sua arrastada
podridão, consumindo-se na tessitura de um imenso sonho salvítico. (P. B.: 84)
As chagas que castigam Barnabé igualmente sacrificam a paisagem degradante que vê a
sua volta. Novamente se integram no romance o mundo interior e o exterior, em um jogo
especular através do qual se amplia a compreensão de um e de outro. As mazelas de Barnabé
refletem a degeneração do reino e, assim como este busca a salvação em outras terras, também o
40
No Canto IV, estância 101: “Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe, / Por
quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe! / Busca o incerto e
incógnito perigo / Por que a Fama te exalte e te lisonje / Chamando-te senhor, com larga cópia, /Da
Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!”(Camões, 1982, p. 188).
jovem enxerga no mar a possibilidade de redenção. Essa relação entre ocorpo físico e a cidade,
entre a degradação individual e a do ambiente precede o iminente engajamento do jovem na
armada de Vasco da Gama:
E contagiava-se a Cidade da extensão da doença que o sujava, e que ia
carcomendo o reboco dos prédios, e que se ramificava pelos carreiros onde a céu
aberto fluíam os humilhantes líquidos da contingência dos homens. Um fedor de
abominação ascendia das profundezas dos armazéns, e invadia a baixa, a
impregnar o interior das casas, a saturar a roupagem dos habitantes, a agasalhá-
los numa inconsútil capa de asquerosas imundícies. E atirava Barnabé o olhar
para o Atlântico que à sua frente se estirava, e pressentia que só dele haveria de
lhe resultar a purificação da carne conspurcada. (P. B.: 86)
Essa intuição o levará ao encontro de um homem que está selecionando embarcadiços
para compor a tripulação que rumará para as Índias sob o comando de Vasco da Gama. Essa
determinação de libertar-se da moléstia que lhe acometia a alma e a cidade coincide com a morte
de Rei Dom João II, sob cujo mando foram perseguidos os judeus portugueses. A referência
histórica se mescla ao tom sarcástico com que o narrador, assumindo a crítica que lhe faz a
personagem, se regozija com a notícia. Mais uma vez é feita a denúncia do projeto imperialista e
da ilusão que ao mesmo tempo o impulsionava e era por ele alimentada. A imagem do rei aparece
sem a aura de magnitude que costuma ser atribuída aos mortos e poderosos e a menção a sua
suposta santidade reforça o vigor da ironia. Quem lamenta o desaparecimento do monarca são os
simplórios que, subjugados pela tirania compactuam com ela. Não é esse o caso de Barnabé, uma
das vítimas do período de intolerância religiosa imposta por Dom João II, assim referida pelo
narrador:
Não o choravam as mães dos meninos judeus que à força mandara o soberano
horrendamente acondicionar em umas quantas barcas, e despejar na Ilha de São
Tomé, indefesos ante o sofrimento do ânimo e a fúria dos elementos. Mas
regozijava-se o nosso vagabundo por, apesar de não ter se eximido ao baptismo,
permanecer ainda assim na fé dos antepassados, glorificando-se na sua
perseverança. (P. B.: 87)
A morte do Rei significa para Barnabé o início de uma nova fase, em que ficam para trás
a infância e a adolescência, embora o sucessor, Dom Manuel, viesse a obrigar os judeus
portugueses ao êxodo, levando muitos ao suicídio e impondo o batismo aos menores de catorze
anos, “[...] empurrando-os para as inexcedíveis doçuras da fé cristã”. (P. B.: 90) A crítica ao Rei
prosseguirá mais adiante quando, na partida das naus de Vasco da Gama, o soberano chegar ao
porto com sua comitiva. A descrição que lhe faz o narrador é de um homem cruel preso ao
ridículo e à ganância. O físico reflete seu espírito mesquinho e, apesar das reverências que
recebe, parece ser antes um animal grotesco do que um rei. Sob o olhar de Barnabé, é desse modo
que vamos encontrar Dom Manuel diante das naus:
Risível lhe surgia o gabarola que ambicionava o império do Mundo, e que na
margem se implantava como uma espécie de macacão, provido de braços tão
compridos, tão compridos que lhe atingiam meia coxa. E com o manto e o
barrete de cetim cor de cereja, nos quais, ainda que se estivesse em pleno Verão,
não prescindira de que lhe aplicassem os adereços de pele de marta que
sobremaneira o deliciavam, antolhava-se o português um como que infante que
crescera em excesso, e que atirava a navegar os seus barquinhos, atados por um
cordel de prata doirada. (P. B.:117)
Apesar de Portugal ainda estar sob o jugo da intolerância, o desaparecimento de Dom
João assinala um novo período que se inicia para Barnabé. O mar faz parte de seu destino e ele o
pressente, reafirmando aquilo que Joseph já antevira. A cidade não é mais o seu lugar e nada tem
a lhe oferecer senão a delinqüência. O mar, imagem salvacionista alimentada pelo
expansionismo, torna-se para ele instrumento de transformação profunda e irreversível que o
conduzirá à dupla jornada:
[...] e ao virar o de Ucanha costas a Lisboa, alucinado pelo voo a que lentamente
se atrevia, para levante é que projectava o pensamento, confiado em que pelo
acaso de Deus, e ao sabor das marés, na Jerusalém ressuscitada a história que lhe
pertencesse indelevelmente se escreveria. (P. B.: 87)
Com essa certeza, o rapaz se junta a outros miseráveis que, atraídos pela aventura e pela
promessa de enriquecimento, se submetem à dura inspeção para escolha dos que irão compor a
armada. Aprovado, pois consegue manter o disfarce de homem cristão, inicia-se rapaz no ofício
de aprender os procedimentos necessários aos embarcados. É sua a voz que assume a narrativa, a
contar como se passam os dias até o embarque, inclusive com o retorno da poderosa imagem de
André Mendes, o jovem afogado que, como miragem, lhe mostra em uma réplica em cristal do
globo terrestre - tal qual a máquina do Mundo
41
- a paisagem do mar e de lugares distantes. A
visão antecipa o fim das pústulas que ainda o atormentam e a preleção que faz ao amigo se
associa à simbólica eliminação do pus que rebenta das chagas. Ao embarcar, Barnabé estará livre
delas, deixando para trás as paixões que vivera na cidade e os enganos que cometera. Sua vida
doravante será no mar e nele alcançará cumprir o que lhe aconselha André:
[...] não lances o olhar para o que foi, Barnabé, porque desse modo se morre em
cada dia da vida, e não temas o que se situa adiante, já que haverá alguém de te
acompanhar, e de te guiar os passos, e de te segurar para que não caias, e atenta
em como imensíssimo se nos oferece o Mundo, e em como todavia cabe ele em
minhas mãos, e firma-te bem nas maravilhas que o compõem, as quais
claramente divisarás na pureza do teu coração, pois que superiores aos da vista
da carne se hão-de denunciar os prodígios que alcançar a vista do espírito [...]
(P. B.: 97-98)
41
No Canto X de Os Lusíadas, com prêmio pelo sucesso de sua empreitada, Vasco da Gama recebe da
deusa Tethys, a visão em miniatura do mundo, que lhe descortinará o futuro: “Aqui um globo vem no
ar, que o lume / Claríssimo por ele penetrava, / De modo que o seu centro está evidente, / Como a sua
superfície, claramente. // [...] Vendo o Gama este globo, comovido, / De espanto e de desejo ali ficou. /
Diz-lhe a Deusa: ’O trasunto, reduzido / Em pequeno volume, aqui te dou / Do Mundo aos olhos teus,
pera que vejas / Por onde vas e irás e o que desejas.’ ”(Lus: X, 77- 79)
A mensagem anuncia outra figura fundamental à peregrinação do futuro grumete: a do
anjo Rafael, que irá protegê-lo durante a viagem. À visão de André segue-se outra, apavorante
em que serpentes próximas à cabeça de Barnabé o ameaçam, dissipando-se, porém, sem tocá-lo.
Ao acordar, percebe a secreção que lhe escorre abundante do abcesso que se abrira no peito. O
discurso assume agora a referência cristã na associação com as chagas da crucificação. A paixão
de Cristo e a paixão pelos prazeres do corpo experimentada por Barnabé haviam chegado ao fim.
Ambos se libertam e o sangue que vertem possui o significado de vida e redenção. A tradição
religiosa judaica volta a inserir-se no discurso e é em sua crença que o jovem irá encontrar as
palavras que traduzem sua compreensão do momento vivido:
[...] e concluí que rebentara uma das chagas da paixão torpe que me consumira, e
dela ia escorrendo um regueiro de sangue, e não entendia eu que fosse aquilo
mau presságio, mas ao contrário sinal de aliança com o Senhor, e nem o
enxuguei, e virando para nascente e o bubão que supurava, de súbito me
ocorreram aquelas palavras de Iahvé que David em seu salmo escreveria, e não
me contive que assim as não recitasse, banhadas de lágrimas as rudes faces do
andarilho que continuava a ser, “possuíste a soberania, quando nasceste nos
montes santos, e eu te gerei antes da aurora como o orvalho”, e como o orvalho
na verdade é que me reconhecia. (P. B.: 99)
Preparado para a partida, chega o momento de embarcar e, pela primeira vez, Barnabé
encontra Vasco da Gama. A narrativa em terceira pessoa do capítulo intitulado Os Loucos remete
ao depoimento de Mário Cláudio em que assume sua simpatia não pelo Gama, herói consagrado
pela história, mas por aquele que, colocado à sombra do irmão devido ao precário estado de
saúde, possui os atributos que lhe faltam. A descrição que o narrador faz de Paulo se contrapõe
enfaticamente à que anteriormente apresenta de Vasco. A insegurança desse último se sobressai
diante da coragem e do equilíbrio do primeiro, que sempre estará por perto a avalizar seus gestos
e atitudes. Sem ele, Vasco não dispõe de condições para assumir o comando; seu olhar sempre
busca a presença do mano a lhe dar anteparo. O perfil de Vasco da Gama ainda jovem, mas já
responsável pela importante viagem, confirma o perfil traçado no início do livro, quando, ainda
garoto dependia do irmão e se colocava sob sua proteção, deixando inclusive que assumisse a
culpa por erros que eram seus. No encontro com os outros capitães, o irmão Paulo da Gama e
Nicolau Coelho, a imagem do Gama se distancia daquela de herói que lhe é traçada em Os
Lusíadas. Toda a longa descrição que inicia o capítulo se assenta na fraqueza, dependência e
conseqüente incapacidade para exercer o alto posto que assume. A alforreca da infância se
transformara na hidra terrível a atormentar-lhe constantemente o espírito:
A passos longuíssimos marchava como se não bastantemente seguro das suas
obrigações, e após a frase dirigida a um capataz buscava os olhos do irmão
Paulo que a curta distância o ia seguindo. E compunha ele o temperamento de
uma criança amuada [...] Mas denotava-se-lhe a fraqueza da constância na
intensidade com que franzia as sobrancelhas, nisso oferecendo a prova de que
mui escondido mal o torturava, e de que retirara da energia a mágica de o
transformar num motivo a seu favor. [...] Certificando-se sem descanso da
permanência do mano, e a ele ligando a legitimidade de continuar, viera ali
estatuir a eficácia de um decálogo, esquecido da urgência em concitar a lealdade
e a devoção. (P. B.: 101)
De Nicolau Coelho pouco se ocupa o narrador, apenas se detendo em sua
inexpressividade, figura a passar quase que despercebida, ao contrário dos outros dois que
chamam a atenção por motivos que se contrapõem. A saúde frágil de Paulo não impede que os
homens o tenham em alta conta, enquanto entre eles se espalham histórias desabonadoras sobre o
temperamento estável e imaturo do Gama. Mais do que evidenciar as diferenças entre os irmãos,
o retrato de Vasco da Gama servirá para revelar uma outra trajetória que será feita durante o
mesmo percurso seguido por ele. Na viagem às Índias, todos chegarão ao mesmo território,
porém apenas ao humilde moço de Ucanha será possível fazer a verdadeira descoberta, embora
para realizá-la dependa de que o comandante o conduza com acerto pelos mares que irão
percorrer. Essa complementaridade se evidencia no discurso premonitório que o capitão lhe
dirige antes da partida: “[...] e auferirás o prémio do que valeres, mas persevera na rota da luz,
porque nas restantes aqui me tens, decidido e incansável, a ajudar-te, e fica na paz de que tão
sedenta se vê a miséria da nossa condição.” (P. B.: 104) Ao final da viagem, já de volta ao
Restelo, Barnabé lhe reconhecerá a importância e a irmandade:
E não apareceu quem detivesse o grumete de diante do capitão-mor ajoelhar,
quando a este se humedeciam os olhos rasantes das colinas de Lisboa, e de ali
mesmo lhe exprimir o reconhecimento pela firmeza com que o guiara. Nele
atentou Vasco da Gama por tempo maior do que o que costumava conceder ao
reparo de quem com ele se cruzava, e percebeu o rapaz que só então, mas para
sempre, o elos dos irmãos que do mesmo ventre não promanam, nem de semente
idêntica derivam a sua origem, nesse instante se fechava. (P. B.: 271)
Apesar de não ser atribuída a Vasco da Gama o estatuto de herói destemido e imbatível -
sendo maior do que a dele a figura de Barnabé, constantemente objeto de profecias que anunciam
seu percurso interior - também o capitão está assinalado pelo destino a cumprir a viagem cuja
incumbência lhe foi dada. Sua fraqueza, temores e indecisões fazem parte da história que já
estaria traçada antes de acontecer. Vasco da Gama e Barnabé, ambos na mesma esquadra - mas
cada qual com seu destino, realizando uma jornada diferente - estão fadados ao triunfo, como
confidencia Joseph de Lamego ao jovem quando este está prestes a embarcar:
[...] cumprem-se aqui, e nesta hora, os desígnios que nas estrelas decifrou o
grande Abraão Zacuto, o qual, tendo adivinhado a Dom Manuel a imensidão do
Planeta que lhe caberia, e descurando a obra dos cosmógrafos, e baseando-se no
exclusivo movimento e na influência poderosa dos céus, prognosticou que seria
a Índia descoberta por dois irmãos indecisos, e estando um dia o soberano no
paço de Montemor-o-Novo, a meditar nas linhas de semelhante prenúncio, e
num intervalo do despacho, eis que se lhe descaiu a atenção sobre Vasco da
Gama, [...] e é que não há vontade que à trajectória dos astros se sobreponha [...]
[...] e também tu, meu bardino, foste marcado para o triunfo, embora não se
manifeste ele do tecido de que se fabrica o que para teus maiores se reservou [...]
(P. B.: 109)
Esse encontro dos primos se dará no dia seguinte ao primeiro contato com os capitães,
oito de julho de 1497, data do embarque para o Oriente, quando o povo acorre ao cais para se
despedir da tripulação, que será dividida em três naus entregues à proteção dos arcanjos São
Gabriel, São Rafael e São Miguel às quais emprestam os nomes. Em meio à balbúrdia, Barnabé
observa a mistura de litanias, choros e cinismos, em uma cena que imediatamente faz lembrar
aquela que é cantada em Os Lusíadas:
No canto dos clérigos, distraídos do seu múnus pela consciência de testemunhar
um episódio cronicável, inseria-se a gritaria das mães e das esposas
descomedidas, das filhas tontas pelo alongamento do detentor da vara patriarcal,
dos velhos que exibiam a fraqueza do ânimo, das inúmeras carpideiras
arrebatadas pelo prémio da raridade da ocasião. E via-os rojarem-se como uma
chusma de vermes, intentando apegar-se às pernas dos processionantes,
tolhendo-lhes a passada que juravam conduzir à morte, increpando-os de quanto
sabiam macular o valor amante, a crueldade e a cupidez, a indiferença e a
perfídia, o desamor e o orgulho. (P. B.: 106-107)
42
Diante da multidão que se aglomera no cais, a tripulação começa a embarcar e Barnabé
entra a bordo da São Rafael, que trará na proa a imagem do anjo protetor. Logo de início, o
jovem se sente acolhido pelo arcanjo, estabelecendo ambos uma aliança que se manterá até o fim
da viagem. É ele que o protegerá das turbulências dos mares e o ajudará a ser o grande
descobridor das Índias, embora a empresa tenha sido planejada apenas com vistas ao
enriquecimento, pouco importando aos que a financiam a sorte que os tripulantes teriam. À
semelhança dos povos vitimados pela conquista, os marinheiros são apenas instrumentos para
alcançar a grandeza que, sob a desculpa de propagação da fé, se constrói com a violência da
espoliação. Ao ver Dom Manuel falar a um de sua comitiva diante da tripulação que veio saudar,
o que Barnabé lhe adivinha dizer não é nada lisonjeiro:
42
Em Os Lusíadas, no Canto IV: 88, 89: “A gente da cidade, aquele dia, / (Uns por amigos, outros por
parentes, / Outros por ver somente) concorria, / Saudosos na vista e descontentes. [...] // Em tão longo
caminho e duvidoso / Por perdidos as gentes nos julgavam, / As mulheres cum choro piadoso, / os
homens com suspiros que arrancavam. / Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso / Amor mais desconfia,
acrecentavam / A desesperação e frio medo / De já não tornar a ver tão cedo.” (Lus: IV, 88 - 89)
[...] “que se internem por esse oceano, e que se não atrevam a regressar de
porões sem o que importa, e se houverem de perecer, que morram antes de nós,
já que nos brindou o Omnipotente com fumos de eternidade, e que não tragam
pássaros vistosos [...] e que disseminem pelo Orbe o nome redentor de Jesus, e o
tão benigno socorro da Virgem Santíssima, sua Mãe e Mãe nossa, e que se
deitem à vela, que me agasta mirá-los” [...] (P. B.: 118)
A despeito dos indícios de que suas vidas pouco ou nada valem, os tripulantes se lançam à
aventura, dividindo o espaço das naus com prisioneiros, animais, excrementos e toda a sorte de
coisas. São loucos à procura das Índias, preparados para enfrentar todas as adversidades que uma
empresa desse tipo pode sofrer, exceto, como assinala o narrador, aquelas produzidas pelo medo
e pela própria insanidade. (P. B.: 125)
A loucura será uma companheira certa na viagem e Barnabé, com suas visões, atos e
palavras, a transformará em algo que o levará à transcendência, ao encontro com o outro e
consigo mesmo. Ele cumprirá o que a visão de André metaforicamente lhe propõe em sua
primeira noite de embarcado: “ao mar vão ter, acredita agora, os rios todos, mas é preciso que
penetremos pelos afluentes deles [...] e guardam a prata do luar cobras que remexem no poço de
nós, e arrastam o que somos por invisíveis fitas, e é imenso e alvo o estuário” [...] (P. B.:121-122)
As naus avançam, as tarefas a bordo são árduas; todas as terras estão distantes. Não há
nada além do mar e o confinamento faz do navio uma prisão. Essa similaridade encontra nas
cordas das naus a imagem correspondente às grades que guardam os encarcerados. Na
imaginação de Barnabé, elas seriam muitas, em muito maior número que as cordas multiplicadas
à profusão, embora fossem invisíveis. (P. B.: 129) Na narrativa, as cordas claramente
metaforizam os impedimentos interiores que levam o homem a contrariar seus íntimos desejos e a
se colocar em situações que lhe são desconfortáveis ou assustadoras. Reveladora desse
significado é a passagem do capítulo cinco justamente intitulado As Cordas em que Vasco da
Gama, preso ao ideal de grandeza e fama a que se impôs, tem nas cordas a representação de seu
autoflagelo:
Diligencia libertar-se Vasco da Gama das ferragens da maquineta em que flutua,
no intuito de alcançar o prado que para lá dos charcos do medo e da morte
irresistivelmente o atrai, mas prendem-no as cordas que não logra romper, e
atormenta-se nas ânsias de lhes desmanchar os nós [...] (P. B.: 132-133)
O medo e a morte assumem para ele a figura do monstro horrendo de sete cabeças que
jamais logrará vencer. Apesar do pavor que lhe impõem, as cordas são mais poderosas que a
hidra e isso torna possível prosseguir em sua missão. Quanto a Barnabé, continua a se lhe
afigurar como loucura a decisão de embarcar rumo às Índias num projeto que lhe parece se opor
aos desígnios divinos pois não caberia a ninguém, nem mesmo a Portugal atingir lugares que
Deus criara afastados. Então, por que ele e os companheiros embarcaram? O grumete ainda não
sabe a resposta, mas a pergunta está a espicaçá-lo e no decorrer da viagem irá descobrindo a
resposta.
Aos poucos ele irá se transformando e a primeira indicação disso se dá quando as naus
aportam na praia de Santa Maria para os reparos necessários às embarcações. O contato com a
terra, narrado no capítulo Os Peixes, lhe traz euforia e os nativos se mostram extremamente
prestimosos com os portugueses que, ávidos, aceitam de bom grado um grupo de mulheres que
lhe são oferecidas. Apenas Barnabé, sem que atine com o motivo, não se sente atraído pela oferta
e somente quando não tem mais como manter a recusa, escolhe uma das moças. (P. B.: 157-158)
Retornando à navegação, o grumete se sente fascinado por um pequeno negro capturado
em Cabo Verde. O garoto, impermeável a todas as demonstrações de carinho e atenção que
Barnabé lhe dedica, afigura-se um mistério “quase animal” (P. B.: 159), canibal, demônio
disfarçado que lhe parece insolúvel. A ameaça que o estranho representa, contudo, não impede
o de Ucanha de se identificar com ele, pois ambos estão deslocados nos lugares em que se
encontram. Apesar de todos os esforços, ele fracassa em sua tentativa de se aproximar do nativo,
que se nega retribuir as manifestações de afeto, chegando a machucar seu protetor. O mistério da
natureza do menino passa a se confundir com outro, aquele que começa a vislumbrar na
lembrança das moças que tentaram seduzi-lo na praia. O diferente o assusta, mas também, sem
que possa compreendê-lo ainda, exerce sobre ele grande fascínio, sentimento expresso na
alucinação que o assalta em meio às tarefas rotineiras: o garoto negro e uma das mulheres que se
ofereciam a ele em Santiago se confundem em um mesmo ser, a um só tempo apavorante e
intensamente sexual:
[...] desvendava-se-lhe uma das raparigas que em Santiago tentara seduzi-lo,
agigantando-se para além de toda a proporção, despudoradamente abrindo as
pernas, a exibir uma racha equiparável à entrada de um reino devastador. Era
um golpe húmido de escorrimentos, irmão do que lhe causara a inopinada
agressão do malvado [...] e eis que o visitava agora com irreprimível
intensidade o cio que não eclodira em terra firme, e na maníaca masturbação se
libertava ele do sufoco em que desfalecia. (P. B.: 165 -166)
Essa inquietação que assola o grumete é interrompida pela irrupção da moléstia que
deixará prostrados os homens do navio. Afetado pela doença, Barnabé se compara a um peixe
posto à mercê do mar imenso. Em seu torpor, não sabe se o que sonha aconteceu ou se é uma
antevisão do que virá. Não importa: a cena horrenda dos sofrimentos dos mareantes acometidos
de escorbuto faz parte de sua experiência no navio. O que imagina e o que vê pertencem a sua
realidade interior e nela é que se concluirá sua viagem às Índias. Dentro de si já ocorre uma
metamorfose, ainda não percebida pelos companheiros. Isso não tardará a acontecer quando,
durante uma agitação descomunal das ondas do Atlântico, o rapaz é atirado para fora do navio,
submergindo e regressando à tona mais de uma vez. Antes que o mar se acalmasse, o náufrago já
se encontrava sereno e, quando tudo volta à normalidade nas naus, o grumete, ainda à espera de
socorro, cumpre o que se afigura ser a prova iniciática de sua transformação, anunciada pelo
patrono da nau, o anjo Rafael, que o conforta e protege. A aparição reafirma o caráter de
peregrinação que sua viagem possui, sendo ela o cumprimento de um desígnio divino, como já
lhe haviam profetizado Joseph de Lamego e a visão de André Mendes. A irmandade com o anjo e
a aura mística que passará a ostentar não o transformam em um ser perfeito de fortaleza
inquebrantável: o percurso que está a percorrer é de um Homem, sujeito a medos e fraquezas
como todos os homens, mas alimentado pela força que o levará a vencê-los apesar de sua
condição humilde. A grandeza de Barnabé, ao contrário da de outros, como Vasco da Gama, não
está no poder e na fama, mas na superioridade do espírito que lhe dará a vitória sobre os temores
que o afligem desde quando vivia em Ucanha. A profecia que o anjo lhe faz irá se cumprir
inteira, a começar pelo prodígio de Barnabé não ser devorado por tubarões enquanto escuta sua
preleção:
[...] “nada temas, irmão e amigo, pois que venceste agora mesmo a inicial das
provações com que deseja o Altíssimo experimentar-te, e fica sabendo que, não
bastando descer por uma vez às trevas do extermínio a que sujeita ficou a
condição do homem, de futuros combates haverás tu de sair triunfante, e nem
terá sido o presente o de valia maior, sem o de mais alevantada dificuldade, e
gozarás da paz que se sobrepõe ao temporal, se bem que diversas tentações te
revisitem, e suprema será a que te conduzir a por momentos duvidar da
misericórdia do Senhor, e afirmo-te eu que alguns que superiores te são na
ciência e na autoridade, e que nesta viagem se comprometeram, não mais imunes
se manifestam ao temor que corrói as entranhas [...]” E retornando ao seu posto
no topo da quilha o que assim o interpelara, arrearam os da embarcação um
escaler, e vieram três camarada robustos arrebatar Barnabé às fauces do cardume
de tubarões que o paralisado corpo sinistramente lhe rondavam. (P. B.: 173-
174)
A confiança no que lhe asseveraram as palavras do anjo, distinguem Barnabé do restante
dos nautas que, observando as modificações ocorridas em seu temperamento, consideram que o
incidente lhe deixara um pouco de loucura, com a qual passarão a conviver com cada vez menos
reserva. Aos poucos, o grumete será tratado como um esteio em que os companheiros
encontrarão ajuda durante os momentos de perigo que ainda irão enfrentar. A sensibilidade que se
aguça em Barnabé o deixa permeável à interação com o outro, a despeito das diferenças de
crenças e de costumes que parecem exóticos aos olhos dos estrangeiros. Ao aportar em
Moçambique, é como anjos que vê os naturais, já que se vestem de branco e é na Ilha que se
deixará fascinar por uma misteriosa nativa, coberta da cabeça aos pés, a quem segue pelas ruas
em que se misturam pacificamente gentes de várias origens e crenças. Sem lhe conhecer o rosto,
Barnabé vive com ela um instante em que os desejos do corpo não se apartam das verdades
sagradas. É como Homem que alcança a purificação e no momento em que ele e a mulher
começam a adormecer, simbolicamente lhe vêm à mente as palavras da escritura: “não desperteis,
não acordeis o amor, até que ele o queira”. (P. B.: 183)
Desperto está também o olhar de Barnabé para o cenário em que se encontra. De volta à
companhia dos marujos, escuta sobre a variedade de templos que abrigam diferentes religiões. Se
os companheiros se maravilham diante da tolerância religiosa entre os da terra, Barnabé vai mais
adiante e, em sua observação, lamenta que assim não procedam os cristãos. Enquanto o grumete
assim raciocina, outros, acreditando a missão exploratória ter também caráter evangelizador,
mantêm-se na suposição de que os nativos lhe são inferiores e que só uma fé a cristã - é
verdadeira. O pensamento típico do colonizador encontra tradução na fala de Vasco da Gama aos
tripulantes, repetindo a justificativa basilar para a existência do império português. Introduzida na
narrativa através do discurso direto, a mensagem do Gama se vale do ideal salvacionista para
justificar sua presença no Oriente:
[...] “cuidadosamente atentai na significância dos vossos gestos e das vossas
falas, já que para trazermos o que de supremo em nós existe, e não para dos
alheios colher o que magicaram, é que nos mandou El-Rei, e embora o comércio
nos importe, porque envolve uma troca, não cabe aos da comunidade de São
Pedro anular os dogmas em que se lhe estriba a doutrina, tropeçando nos
enganos em que laboram os que não acreditam no que acreditamos [...] se me
afigura haverem colocados os Céus sinal de que iríamos nós, portugueses de
aquém e de além do mar, unir os povos desavindos.” (P. B.: 185)
A experiência de Barnabé como pertencente a um povo que havia sido obrigado a deixar
Portugal, assim como ocorrera aos mouros, aliada ao belo encontro que há pouco havia tido com
a mulher muçulmana, o fazem surdo às preleções do capitão e às do clérigo que lhe daria
continuidade. Diferentemente do que desejam os dois, os ouvidos do jovem se voltam para outra
direção: a de aceitar e enaltecer as diferenças. É com essa percepção que ele reverencia não um
deus que seja apenas de alguns, mas Àquele que, indistintamente, é criador de todos. Unindo o
mundano e o divino, com poucas palavras Barnabé manifesta a compreensão que está além
daquela que o Gama pode atingir:
[...] e evocando a barriga da mulher que tão admirável e generosamente se lhe
escancarara, aflorou Barnabé o areal com a testa onde a juvenil madeixa se lhe
descompunha, sem medo balbuciando: “bendito e louvado seja o Senhor de
todas as criaturas!” (P. B.: 187)
Mais adiante, no penúltimo capítulo do romance, As cidades, o relato de Vasco da
Gama, em discurso memorialista, narra suas impressões diante do estranho mundo com que se
depara em Calecute que, desde a infância fazia parte de sua imaginação. Ao andar pelas ruas, o
que observa se mistura às imagens que havia crido na mente e, se a balbúrdia da cidade real o
envolve, seu pensamento se concentra na conquista do material que foi incumbido de buscar. Ao
entrar em um templo junto com os de sua tripulação que o acompanham, custa a enxergar os
deuses que ali estão representados; o que vê durante longo tempo é apenas o que desejava
encontrar: a imagem da Virgem. Somente após alguns minutos é que os homens percebem que se
trata da representação de um deus brâmane que lhes parece um monstro. A cidade dos sonhos se
transforma em uma povoação de espíritos satânicos, aterrorizante em sua diversidade de etnias e
cultos. Nas palavras de Vasco da Gama: “[...] e de tudo o que nestas linhas se contém
arrecadávamos nós a calada estupefacção que do pavor ingente se não desvia.” (P. B.: 226)
Se em sua trajetória Barnabé já havia experimentado a perda da razão, o Gama, após
enfrentar dificuldades para chegar a Calecute, também passará por período de confusão mental
provocado por uma forte febre. E a esse destempero de que toma conhecimento a equipagem, um
outro fato se vem ajuntar: a fúria da natureza sobre os navegantes que, reduzidos em número
devido às doenças e aos acidentes da viagem, conseguem com grande esforço vencer a forte
tempestade. Novamente algo de extraordinário acontece com o grumete de Ucanha: atingido por
um pau partido ao meio por um raio, por um triz escapa de ser levado pelas águas que invadem o
navio. Preso às tábuas, a salvação vem mais uma vez de seu protetor que sobre ele se coloca
aliviando-o da dor e, semelhante ao que pudera realizar a máquina do mundo posta diante de
Vasco da Gama no poema de Camões, homem e anjo se transportam ao futuro em que
vislumbram o império no Oriente. A preleção do arcanjo sinaliza para o sucesso da jornada
interior. As provas foram vencidas e Barnabé está livre das chagas que o levaram a buscar o mar.
A viagem se transformou em peregrinação
43
e seu destino ultrapassa as fronteiras das Índias e
atinge o território sagrado que habita o interior do Homem. A revelação de Rafael descortina para
o rapaz a importância e a beleza do destino que aceitou cumprir:
[...] agora te visito, Barnabé, para que compreendas, e te despojes das algemas
que te ferem os pulsos, e se te desvende o que para além das dunas do medo se
situa, e atravessaste a morte de novo e te alimpaste das chagas que te
atormentavam, porque está morto o que vive, e vivo está o que morre, e
43
Segundo o dicionário, peregrinação é viagem a lugares santos. (HOLLANDA FERREIRA, 1982, p.
1307.)
transpuseste as fronteiras que submetem as criaturas, e por todos os quadrantes
do Universo viajarás, e hás de tocar com os dedos a refulgência dos astros, e na
harmonia das esferas te correrá o líquido das veias [...] (P. B.: 200)
A fala do arcanjo antecipa aquilo que anos depois o grumete ouvirá de seu capitão que, a
despeito de ter chegado às Índias, não conseguiu atingi-las por completo por estar limitado aos
propósitos imediatos que haviam financiado a viagem. Coube a Barnabé a verdadeira descoberta,
a de si mesmo. Sem intenção de se apresentar como herói, é ele que consegue o maior feito,
embora jamais receba o reconhecimento que está reservado a Vasco da Gama. Isso não importa;
o que atingiu é muito maior e mais importante. Finaliza o arcanjo:
[...] e às Índias verdadeiras aportaste, pois que sempre se alojaram elas nos
ocultos de ti, e de tamanha riqueza te revestes que nenhum reino te ultrapassará,
e atenta em como abranda o temporal, e se faz chão o mar, e se afastam as
névoas que te embaciam a vista, e louva, louva o sol que te cegou, e não sofras,
nem desfaleças, e não te separes do que és, porque de ti se não arreda o que te
orienta, e para o Norte é que singrarás, para o Norte do Norte, o que dispensa o
horizonte. (P. B.: 200-2001)
Posto em segurança, Barnabé tem certeza de que cumpriu o que lhe havia previsto o
primo de Lamego: como seus antepassados, ele atravessara o mar Vermelho. Temera a morte,
mas, enfrentando o medo, conseguiu vencê-la; foi acossado por monstros e eles, assim como o
espectro de André, haviam sido dissipados. As tempestades interiores tinham acabado e ele
claramente o percebe. No capítulo intitulado As Pombas, em que se revela a completa liberação
do grumete, suas reflexões são precisas sobre os resultados de sua jornada desde Ucanha: “[...]
deduzia o jovem que definitivamente dobrara os cabos, e vencera os remoinhos, e contornara as
monções, de uma travessia interior.” (P. B.: 245) Ao ultrapassar as fronteiras que impedem os
homens de atingirem a plenitude que conseguiu alcançar, os segredos do mundo lhe aparecem
revelados e é assim que começa a ser considerado pelos companheiros, um adivinho de sonhos e
de destinos, um homem santo.
A respeito do que vivera, fica na memória a experiência, feita do que houve e do que se
imagina ter havido. Das Índias, as riquezas que traz são as sensações preservadas após ter
empreendido a descoberta de si mesmo e é através da memória que mantém presentes os
companheiros que encontraram a morte durante a jornada. Sua proximidade com Barnabé se dá
na bela imagem das pombas que, docilmente, vêm pousar no navio onde se deixam acarinhar pelo
grumete. Ao tocar em cada uma lhe é reavivada a memória do que foram e do que sofreram,
vindo a se juntar a elas uma outra, igualmente alva a receber os carinhos do rapaz: a que a trazia a
alma de Paulo da Gama, morto após longo e penoso sofrimento.
A narrativa da viagem se encerra com a morte de Paulo e com a dor que provocara em
Vasco da Gama. Com a chegada dos sobreviventes ao Restelo, ponto de partida da viagem,
Barnabé seguirá seu caminho de eterno peregrino, vivendo como mendigo, a quem logo se
pregará a fama de curandeiro. Sempre a peregrinar, acaba por dar em um mosteiro onde irá,
ironicamente, cumprir a derradeira profecia que na juventude havia lhe feito Joseph de Lamego
quando da partida para as Índias. Ao final de sua arenga, havia lhe prenunciado o primo:
[...] e em estranhíssimo augúrio consistirá sem dúvida o que te confiarei, e é
como prova provada que haverá de te sentar, e repara no que nos traça o destino,
na cadeira de São Pedro, por igual denominada sólio pontifício, trono donde
governa a Cristandade o Papa que representa os nossos jurados inimigos [...] (P.
B.: 109-100)
Na tentativa de curar um cavalo que quebrara a pata, a figura de Barnabé chama a atenção
de um pintor que, com a incumbência de retratar o Sumo Pontífice, vê no pobre homem o modelo
de que precisa para realizar o trabalho. Assim, aceitando o pedido, Barnabé toma lugar no
banquinho onde, com os paramentos sobre os trapos que usava, passa a fazer o papel de Papa,
como que a reafirmar sua condição de falsamente convertido. Agora, entretanto, o fingimento se
dá por sua própria vontade, numa contraposição à violência de que ele e outros judeus foram
vítimas.
No último capítulo, As Luzes, também se mostra o que está reservado ao Gama. Os
mensageiros de Dom João III irão encontrá-lo no Alentejo, cumprindo a rotina modorrenta de
quem chegou à velhice colocado no ostracismo. Surpreendentemente trarão consigo uma missiva
do rei que, mais do que convidar, intima o capitão a retornar ao Oriente para assumir o posto de
governador e, depois, de vice-rei cuja incumbência seria de colocar termo à corrupção que se
havia instalado na Índia. Embora com receios, o convite é aceito e o Gama se prepara para
enfrentar a longa viagem que o colocará novamente diante de seus temores mais íntimos. Ele,
como atestam os documentos históricos, realizará as duas viagens às Índias, mas o seu
descobrimento, apesar do que esses mesmos documentam relatam, cabe ao humilde Barnabé que,
mais do que ir à Índias, é das Índias: as Índias que sempre fizeram parte dele, que estavam lá à
espera de que realizasse a peregrinação para alcançá-las. Isso o compreende Vasco da Gama que
ao encontrá-lo pela última vez não se esquiva de lhe dizer: “Deus te abençoe, meu rapaz, que
foste tu, foste tu, e mais ninguém, quem essas Índias na verdade descobriu.” (P. B.: 278) Com
essa fala, está mais uma vez respondida a pergunta que encerra o texto de apresentação de
Peregrinação de Barnabé das Índias. Seguindo o itinerário ficcional traçado por Mário Cláudio,
ao leitor não restam dúvidas sobre quem realmente conseguiu descobrir o caminho.
4. DESMUNDO: A VIAGEM COMO EXÍLIO
“Quem vai ao longe casar ou vai enganado ou vai enganar”.
“Esse mundo é um desterro e nós, estrangeiros.”
(Miranda, 1996, p.61; 180)
O romance de Ana Miranda é aberto por duas epígrafes que podem ser tomadas
como eixos para a leitura proposta neste trabalho. A primeira delas é retirada longo poema “Ode
marítima”, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, poeta que falou das viagens
através das quais se criou o império português e também daquelas que são travessias acontecidas
em um mar interior. As duas viagens são assunto em Desmundo, realizadas em conjunto; uma
como causa da outra, ambas difíceis e perturbadoras. Os versos escolhidos sintetizam o que
sucede à protagonista, a jovem Oribela de Mendes Curvo, que chega à colônia no ano de 1555:
“Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata. Indefinidamente, pelas noites misteriosas
e fundas [...]”.
44
A órfã viaja para um mundo desconhecido em que se conjugam o espaço exterior
a terra brasileira e aquele que ela traz dentro de si mesma, sendo ambos misteriosos e
complexos.
44
O título do belo poema já anuncia sua temática e a abordagem emocional da expansão portuguesa. Os
versos escolhidos como epígrafe de Desmundo foram retirados da estrofe: “Ah, seja como for, seja por
onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, / Ir para Longe, ir para Fora,
A segunda epígrafe, trecho da carta de Manuel da Nóbrega ao Rei Dom João, dá conta da
falta de mulheres brancas na terra brasileira que começa a ser povoada. O pedido de envio de
cristãs para servirem de esposas encontra justificativa no estado de pecado em que os homens
viveriam devido às relações mantidas com as nativas. Esse é o motivo pelo qual, no navio
Senhora Inês, são embarcadas sete jovens por ordem da rainha. A escolha deste documento como
porta de entrada para o romance revela o diálogo estabelecido entre a trama de Desmundo e os
acontecimentos que fazem parte da narrativa histórica. Em sua missiva, que data de 1552,
Nóbrega solicita órfãs para serem desposadas pelos colonos, não importando muito quem sejam:
“ [...] mande Vossa Alteza muitas órfãs e si não houver muitas, venham da mistura dellas e
quaesquer [...]”
A urgência do pedido reflete a visão dualista do europeu colonizador, que passa
progressivamente a desviar para o Novo Mundo a mistificação do universo fantástico de que
durante muito tempo o Oriente havia sido objeto. O conhecimento das terras banhadas pelo
oceano Índico fez com que, aos poucos, as histórias fantásticas fossem sendo suplantadas pelas
observações feitas in loco e o universo imaginário que os portugueses esperavam encontrar nos
territórios recém-descobertos se deslocasse para o Brasil. Na visão redutora típica do processo de
colonização, pode-se perceber um movimento duplo: o de edenização da natureza exuberante e o
rebaixamento dos habitantes nativos, considerados animais, bárbaros ou seres demoníacos. A
explicação para tal reducionismo está nos conceitos tão profundamente arraigados sobre a
inferioridade dos indígenas que aquilo que se conseguia enxergar era determinado principalmente
pelas histórias ouvidas a respeito. Como analisa Laura de Mello e Sousa, (1986, p. 21) “[...] os
para a Distância Abstrata, / Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, / Levado, como a
poeira, p’los ventos, p’los vendavais! / Ir, ir, ir, ir de vez!” (PESSOA, 1980, 213.)
olhos europeus procuravam a confirmação do que já sabiam
45
, relutantes ante o reconhecimento
do outro”. Entre as imagens de paraíso e de inferno, outra se estabelecia na lógica do movimento
de ocupação: a da colônia como local em que se poderiam purgar as infrações cometidas no
reino. Por isso, era o destino dos degredados, dos que precisavam se purificar. Esse propósito, no
entanto, era ameaçado pela crescente proximidade entre colonizadores e colonizados que,
inevitavelmente, viria a enfraquecer os instrumentos de dominação. Como pontua Homi K.
Bhabha (1991, p. 177-203) “o objetivo do discurso colonial se concentra em construir o
colonizado como população de tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para
justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais.” Como conseqüência
desse discurso, temos em Desmundo a preocupação de Manuel da Nóbega, expressa na carta
endereçada ao rei.
A solicitação é atendida com o envio de mulheres desvalidas para quem a vinda ao Brasil
se descortina como possibilidade de escapar da rudeza a que são submetidas em Portugal. Por
isso, é de bom grado que aceitam as agruras da longa e penosa viagem; alimentadas pela
esperança de que, ao desembarcarem, a vida passará a ser de deleite e conforto. O mundo que as
aguarda, porém, é em tudo diverso daquele que haviam criado em seus sonhos ingênuos. Os
homens que as esperam são rudes e a condição feminina não lhes proporciona vantagens maiores
do que as concedidas aos nativos escravizados. A narrativa é conduzida por Oribela e dividida em
dez partes: A chegada, A terra, O casamento, O fogo, A fuga, O desmundo, A guerra, O mouro,
O filho, O fim. Em cada uma delas, como o título indica, está uma etapa da experiência da
personagem na terra brasílica que, do paraíso imaginado passa rapidamente à imagem do inferno.
Integrada a essa trajetória, uma série de pequenos desenhos feitos pela própria autora apresentam
a figura de uma sereia retratada de acordo com os núcleos temáticos. Essas imagens remetem ao
45
Grifo nosso.
fascínio da figura mitológica sobre os homens levados à morte pela beleza de seu canto.
46
A
associação com Oribela não é fortuita: a jovem, impulsionada pelos desejos que não compreende
nem domina, irá causar a ruína do marido, também desestabilizando a vida do amante.
Como observa Wander de Melo Miranda
47
, essas vinhetas, de traço semelhante ao de
gravuras antigas, não servem apenas de ilustração ao texto escrito formam um catálogo de seres
oníricos e fabulosos que sintetizam a relação de alteridade entre Oribela e o mundo da colônia.
Em seu périplo, a jovem passará do desejo de fuga ao enraizamento, representado na figura final
da sereia transformada em árvore cujas folhas são inúmeros olhos abertos como que indicando a
posição sempre atenta da narradora ao mundo ao seu redor.
Embora de natureza contestadora, Oribela sofre os limites impostos por sua inferioridade
social. O destino reservado a ela e a suas companheiras é determinado pela condição que
Zigmunt Bauman observa ser própria dos vagabundos. Viajam porque onde estão não há lugar
para elas, são um incômodo para a sociedade e, no caso de Oribela, também para o pai, que a
culpa pela morte prematura da esposa. Colocada em um convento, a oferta de matrimônio se
apresenta como a melhor oportunidade que poderia ter. Isso, contudo, não evita que perceba a
violência do exílio forçado e que sofra com a sensação de desenraizamento. Ao se referir aos
homens que conduziram o navio com sucesso, significativamente irá se comparar à planta,
firmemente segura à terra em que se desenvolveu:
[...] governaram a nau, mas cada dia me fizeram mais distante de onde fora eu
arrancada com muita pena por serem meus pés quais uma abóboras nascidas
46
De acordo com Mário da Gama Kury, as sereias, “que além de cantar também tocavam a lira e a flauta,
viviam numa ilha do Mediterrâneo (talvez em frente à península de Sorrento), e atraiam com seu canto
mavioso os nautas que passavam pelas proximidades; elas provocavam a destruição das naus contra os
rochedos, e em seguida devoravam os náufragos. (KURY, 2001, p. 354)
47
O texto do professor Wander Melo Miranda foi publicado em O Estado de São Paulo, estando
disponível no endereço eletrônico www.anamirandaliteratura.hpgvip.ig.com.br .
no chão, minhas mãos uns galhos que se vão à terra e a agarram por baixo das
pedras fundas.
48
Essa percepção se torna mais aguda quando conhece Francisco de Alburquerque, homem
de aspecto grosseiro que, logo à primeira vista, lhe causa repulsa. Justamente ele a desejará e,
mesmo sabendo do desagrado que provoca, irá insistir no casamento. Instada pela mulher do
governador a aceitá-lo como noivo, ouvindo de sua confidente, a Velha, que tivera sorte em
encontrar quem a quisesse e, mais do que isso, sem meios de retornar a Portugal, a jovem se casa
e passa a viver sob as regras impostas pelo esposo e senhor. Ao contrário do que se espera dela,
porém, nunca o aceitará a despeito das tentativas do marido de domesticá-la tanto através da
força física quanto de presentes e declarações de amor. Oribela empreende duas tentativas de
fuga, ambas frustradas; na última reencontra um homem que já havia lhe chamado atenção logo
após o desembarque. Trata-se de um mouro - belo, mas assustador devido à fé que professa,
demonizada pelas campanhas de cristianização. Apesar do medo que a faz encará-lo como um ser
maligno, a jovem aceita sua ajuda quando ele a encontra desfalecida no caminho e a abriga em
sua casa. Em meio a sentimentos conflituosos, de medo e fascínio, Oribela se apaixona e, quando
Francisco de Albuquerque consegue encontrá-la, já está grávida do marrano Ximeno Dias. O
nascimento do menino, cuja semelhança com o pai é evidente, faz com que, finalmente, o
casamento termine e isso se dá de modo não menos terrível do que havia sido todo o período de
permanência de Oribela junto ao marido, à mãe dele, dona Branca de Albuquerque “mulher fria
como se de neve fora feita” (D.: 97) - e à irmã Viliganda, “ menina de olhar e atitudes que
sinalizam sofrer de deficiência mental “era de simpleza ignorante, pelo modo como chamamos
simples os parvos.” (D.: 102)
48
MIRANDA, 1996, p. 15. Deste ponto em diante, as citações retiradas Desmundo serão identificadas por
D. ,seguido do número da página.
Além do contato conflituoso com a família do esposo, Oribela sofre outro impacto ao se
deparar com os costumes das indígenas que lhe servem de criadas. Uma em especial, Temericô,
lhe é mais próxima e intermedeia sua adoção de hábitos que são próprios das nativas. Na terra
estranha, Oribela passa por um processo de transformação que rompe com os códigos de conduta
reservados à mulher, criada segundo os preceitos que procuram condená-la ao silêncio e à
anulação dos desejos. A educação recebida, além de alimentar a submissão feminina, assume
outra característica comum aos sistemas autoritários e conservadores: o propósito de incutir em
todos a intolerância contra quem não possui as mesmas crenças. A desobediência a essas regras
em um mundo extremamente violento e confuso, que melhor se pode nomear como desmundo,
pontua toda a viagem de Oribela aos lugares mais profundos de si mesma.
As atitudes da personagem são ditadas pela emoção e pelo desejo e essa passionalidade é
identificada pela própria autora como um dos elementos que se repetem em sua obra. Ana
Miranda não se furta a assumir que, ao trabalhar com a literatura, procura se aprofundar na
compreensão da figura feminina, o que não está, em última instância, distante de sua própria
vivência pessoal. Sobre a identificação da autora com sua criação, é interessante observar o que
revela na resenha de Desmundo, assinada por Cristiane Costa. "São sempre a mesma pessoa. Mas
a cada livro parece que consigo ir mais fundo nesta mulher. Ela é a adolescente que eu fui um dia
e que está viva até hoje, mascarada nestes personagens.”
49
A afinidade entre a autora e suas
personagens femininas encontra na categoria de autor implícito uma abordagem que permite
discutir as interferências do me io cultural e de suas motivações na construção do texto ficcional.
Na verdade, mesmo quando o processo não é consciente, a presença do autor implícito está
49
Esse depoimento faz parte de matéria publicada no Jornal do Brasil, em 1996, disponibilizado no site
www.anamirandaliteratura.hpgvip.ig.com.br .
subjacente à escritura, como um conjunto de manipulações exercidas sobre os discursos do
narrador e dos personagens. (REYES, p. 114).
50
A afirmação do uso de traços autobiográficos na composição de Oribela não significa que
a escrita do romance tenha se dado apenas pelo viés da experiência e da imaginação da autora. A
pesquisa é um dado fundamental em sua composição que, se faz ecoar questionamentos
particulares, é também, como metaficção historiográfica, uma proposta de releitura de episódios e
momentos históricos. O cenário do século XVI é construído a partir da leitura de textos que
serviram de fontes para informações documentais e para o trabalho com a linguagem da época,
como se informa adiante:
“Este livro foi a minha aventura mais arriscada", revela Ana Miranda. Durante
um ano e meio, a autora se debruçou sobre as cartas de padre Manoel da
Nóbrega -- o padre gago do livro - A peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, os
relatos dos primeiros viajantes, os cinco volumes da História trágico-marítima,
os capítulos de A história das mulheres dedicados ao século 16, a obra de Gil
Vicente, Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Os desvalidos, de Francisco
Dantas. A pesquisa histórico-lingüística que teve um mesmo objetivo: romper a
barreira que separa uma escritora de hoje de uma personagem nascida há quatro
séculos. (COSTA, 1996)
A história ficcionalizada parece fazer ressurgir a linguagem quinhentista, mas esse recurso
de apropriação lingüística, longe de tornar o texto arcaico, o faz intrinsecamente atual, produto
que é de reflexões desenvolvidas no século XX, estimuladas principalmente pelos debates
promovidos pelos discursos dos vários movimentos feministas. É sob essa ótica que é contada ao
leitor a vida da órfã portuguesa no Brasil durante o início do período colonial.
50
O conceito de autor implícito identifica o terceiro elemento, que se coloca entre o autor e o narrador.
4.1. SER MULHER EM TERRA ESTRANHA
As desventuras sofridas por Oribela são indissoluvelmente relacionadas à sua natureza
feminina. O motivo da viagem, assim como o tratamento que recebe tanto antes quanto depois de
embarcar, são determinados pela posição de inferioridade reservada às mulheres na sociedade
quinhentista. As agruras sofr idas quando ainda vivia na companhia paterna são relatadas no
decorrer de sua narrativa, revelando não só a revolta e ódio do pai, que a considera responsável
pela morte da mãe, mas também a crença de que a mulher é inferior e impura, sempre a
representar uma ameaça, mesmo na infância. Ao se banharem, as órfãs são instadas pelas índias a
se despirem, o que traz à memória de Oribela uma passagem emblemática daquilo que, desde
cedo, foi-lhe ensinado: “Meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não ver o meu
corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que
verti sangue pela boca. Água nas mãos e na fuça, fidalga. Água no mais, puta.” (D.: 43)
Para além de seu ambiente familiar, a jovem continuará a sofrer as conseqüências por ser
mulher, situação que, no seu caso, se torna pior devido a uma outra contingência: é órfã, e isso a
desqualifica ainda mais, tornando-se um empecilho a que se case. A vinda ao Brasil é, portanto,
não uma das possibilidades para formar uma família; é o único recurso que se coloca a seu
alcance para tentar mudar o destino de rejeição que lhe está reservado. Assim como para
Barnabé, de Peregrinação de Barnabé das Índias, sua viagem também é a dos vagabundos a
quem não está disponível a liberdade de escolha. Seu trânsito se dá por absoluta necessidade e
não pelo desejo de se aventurar no conhecimento de outras terras.
51
A própria protagonista diz
sobre sua condição:
51
Novamente se utiliza neste trabalho das categorias propostas por Zymunt Bauman.
Órfã, só o que restava, pudesse querer se mover a tão distante país, como se diz
desse tipo de mulher que ninguém quer, tesoura aberta, martelo sem cabo,
alfinete sem ponta, que como o cão sorrateiro morde o cavalo e mata o cavaleiro.
Filhas das pobres ervas e netas das águas correntes. As enjeitadas, as fideputas,
que nem se rapta nem se dota, mulher da cafraria. (D.: 52)
Apesar da esperança que depositam na chegada à nova terra, desde a viagem as mulheres
são vistas como entraves ao sucesso da travessia marítima, o que fica evidente na comemoração
que os marujos fazem ao conseguirem atingir o Brasil, apesar da presença feminina que
consideram negativa. São, além de consideradas perigosas, um fardo incômodo, inútil do qual
sempre estiveram desejosos de se livrarem:
[...] louvavam a Deus chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são
mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e
pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as tripas,
alevantar as mãos em súplicas e trombetear por causa alguma, só pelo prazer,
feito os demos. E fôramos sete mancebas, umas sete sombras negras alembrando
os sete pecados. Qué? (D.: 14)
As pessoas que recebem as órfãs no Brasil não diferem desses homens na forma de
pensar, convictas da inferioridade das mulheres a quem pouco ou nada resta além de servir e
obedecer aos maridos que, com sorte, consigam arranjar. Aceitar a viagem para se casar com um
desconhecido revela a sujeição de Oribela ao papel reservado às mulheres, mas a submissão é
apenas parcial. Seu caráter é rebelde, rompendo com a passividade esperada por todos. O pai já
havia percebido a postura contestadora o que, para ele, sinalizava sua natureza maléfica. A
mulher deveria apenas ouvir, calar e obedecer justamente a conduta recusada por ela, atitude
responsável por muitas de suas agruras. O pai, cuja lembrança sempre a acompanhará, em sua
relação desarmoniosa com a filha, atesta o quanto a jovem se distancia do que se espera de uma
boa moça da corte: “Me dizia ter feição de puta, por meu nariz afilado e a minha rebeldia na
língua e o estar sempre sonhando, coisa de mulher pública. Que morrera minha mãe de desgosto
por adivinhar a filha. Que meus chifres da cabeça rasgaram o ventre de minha mãe.” (D.: 75)
A aproximação com o demoníaco será constante na trajetória de Oribela devido tanto à
recusa em aceitar o homem que a desposa à força quanto na afeição que passa a sentir por
Ximeno Dias, para ela, a princípio, um demônio sob forma humana já que não era cristão. Os
conselhos que recebe, assim como o que lhe fora ensinado sobre si mesma são, da mesma forma
que os preconceitos e o medo que lhe incutiram do outro, continuamente transgredidos por ela,
fazendo com que adquira o perfil de uma heroína contemporânea. Os pensamentos e atitudes de
Oribela não deixam dúvidas de que sua composição se faz através de uma ótica só possível
depois das reflexões inseridas pelo feminismo na agenda política e cultural. As vozes que falam à
personagem representam claramente o discurso sexista opressor, cujo autoritarismo só será mais
eficientemente questionado a partir do século XX.
52
A polifonia que se instala no texto denuncia a condição feminina, repulsiva na atualidade,
mas aceitável pelos diversos atores sociais da época em que se situa a narrativa. Através do
anacronismo da linguagem e das situações que apresenta, Desmundo oferece ao leitor a reflexão
sobre os discursos dominantes que historicamente têm validado a submissão feminina.
Inicialmente isso pode parecer contraditório, dada a compreensão pós-moderna de que os fatos
não são o vivido, mas uma elaboração discursiva e ideológica do passado, o que indica, portanto
que toda a recuperação realizada pela historiografia ou pela literatura, é parcial e fragmentária.
Contudo o reconhecimento do caráter de invenção não exclui a aceitação de que sejam
52
Segundo Jane Flax (1991, p. 225), é na filosofia pós-moderna que o feminismo pode ser melhor situado.
Nesse período se começa a identificar a orientação sexista nas correntes de pensamento, que refletem e
reificam principalmente a experiência do homem branco ocidental.
significativos, fundamentais aos questionamentos que são feitos ao presente e ao passado que se
deseja e necessita revisar.
53
A contestação de Oribela se faz primeiramente pela linguagem, pela “rebeldia da língua”,
a despeito das tentativas de silenciamento que lhe querem impor. Sua transgressão se efetiva no
próprio ato de narrar que se faz sob a perspectiva feminina. Ao assumir a tarefa que tem sido ao
longo dos séculos predominantemente masculina, Oribela desrespeita a tradição que tem
concedido ao homem a primazia da palavra e à mulher o papel de objeto de descrição, análise,
mas não o de sujeito capaz de formular conhecimento. Através das relações de gênero, que
dividem as pessoas em duas categorias excludentes - homem ou mulher -, o processo relacional é
construído através da interdependência entre as partes. Cada uma é definida a partir de diferenças
que mantém em relação à outra, sejam elas biologicamente inatas ou produtos de intricadas redes
de controle social. A associação do elemento masculino à racionalidade e à cultura e do feminino
à natureza e à emoção valoriza o primeiro e reduz o segundo a uma ameaça que precisa ser
vencida, ainda que à custa da violência física ou emocional. Mesmo quando uma mulher é a
personagem narradora, freqüenteme nte é a dicção masculina que parece ser o referencial. Isso
também se aplica ao próprio ato de escrita do autor, permeável aos estereótipos de gênero, assim
como o é aos de classe, religião e etnia. Segundo Susana Bornéo Funck (1993, p. 33-48), em seu
artigo “Feminismo e utopia”:
Até muito recentemente, a representação da mulher na literatura era feita a partir
do desenho heterossexual masculino, tanto nas ficções escritas por homens
quanto naquelas produzidas por mulheres. Pois ninguém cria seu mundo
ficcional do nada. Escreve-se a partir de uma tradição literária, negociando-se
53
A esse respeito, em sua defesa do pós-modernismo, Linda Hutcheon destaca a importância da referência
e sintetiza o que pode ser aplicado ao passado recriado em Desmundo: “Uma das lições do pós-
modernismo é a de que, embora todo o conhecimento do passado possa ser provisório, historicizado e
discursivo, isso não quer dizer que não damos sentido a esse passado. (Hutcheon, 1991, p. 193.)
entre significados herdados e posicionamentos alternativos, mas sempre em
relação ao que está culturalmente disponível.
A escolha de Oribela como narradora de Desmundo, parece corresponder ao projeto
feminista de desvelar a misoginia dos discursos literário e oficial, sem que isso signifique
compreendê-lo como um romance de tese que pretenda a inversão dos lugares ocupados por
homens e mulheres nas narrativas ficcionais e históricas. Entretanto, não se pode desconsiderar
seu caráter ideológico que, desde o início, questiona a lógica prevalecente ao relatar a chegada ao
Brasil assim como também o fizera Pero Vaz de Caminha. Se ambos são portugueses que
aportam no século XVI na terra recém-descoberta, a vivência feminina de Oribela afasta seu
relato da Carta e o constrói como uma visão alternativa do episódio do qual se utiliza.
54
Na
configuração da personagem, se Ana Miranda a apresenta como vítima da violência, também lhe
dá a posse do discurso, instrumento intimamente ligado ao desejo e ao poder. Embora fisicamente
seja refém das interdições impostas no desmundo, sua liberdade é exercida com e na palavra,
transformada em força de resistência e superação. Nesse sentido, a narrativa de Oribela se ajusta
à tese de Foucault (2002, p. 10) sobre a relação entre práticas discursivas e poder:
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que
o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. Nisto
não há nada espantoso, visto que o discurso [...] não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se
luta, o poder do qual nos queremos apoderar.
A ousadia da fala não se dá apenas no ato de narrar, mas também no enfrentamento aos
homens com quem se depara. Sua rebeldia é encarada como algo estranho à natureza feminina,
54
A função do cronista mor era o de informar sobre a viagem, como todo documento histórico, a Carta
não está insenta de subjetividade e, como não poderia ser de outro modo, reproduz as idéias
quinhentistas do homem europeu. Apesar de seu propósito utilitarista, a missiva de Pero Vaz de
Caminha é considerada o primeiro texto da literatura escrita no Brasil.
um defeito a ser corrigido com rigor por aquele a quem deve se submeter o marido. Ao
encontrar pela primeira vez Francisco de Albuquerque, sobrinho do governador, Oribela é
apresentada a ele como uma mercadoria de quem se exaltam as qualidades e se minimizam os
defeitos - a dureza do gênio e das palavras poderia ser vencida com atitudes corretivas. Para o
padre que a mostra ao fidalgo português, a órfã não é muito diferente de um animal que se
pretende doar ou vender. A comparação explícita não deixa margem a dúvidas sobre a natureza
que lhe é atribuída:
Disse o padre ser eu pura e virgem donzela criada em mosteiro de freiras, à luz
da absconsa [...] ainda a florescer o corpo, de alma que se podia amansar como
se faz a um cavalo, se era defeituosa, deixasse a pão e água que me ia alimpar,
como me houvera ferrado para me vender por moura e ferro no pé. [...] E que
não fazia mal ser eu tão cheia de diversas opiniões e bravezas, minhas vistas
eram tão admiráveis quanto as estrelas do céu e saberia ele se fazer obedecer
com reverência e acatamento à sua humilde pessoa [...] (D.: 56)
Essa concepção da natureza e do papel da mulher encontra eco não só nas atitudes que
Francisco de Albuquerque tomará para domesticar a esposa, mas também nas personagens
femininas que trazem interiorizadas as regras que reservam ao feminino a aceitação e o silêncio.
Ao repudiar a aproximação do pretendente, Oribela não encontra nenhum apoio da mulher do
governador, dona Brites de Albuquerque, a quem suplica que a libere do casamento com o
sobrinho. Ao relatar sua triste condição de órfã de mãe, maltratada pelo pai promíscuo e bêbado,
que não esconde seu ódio por ela, ouve a recomendação de se sujeitar à vontade do homem, pois
é o único modo de tornar melhor o destino reservado às mulheres desvalidas. Para que aceite o
matrimônio, dona Brites lhe oferece uma saia e isso deveria bastar para lhe sossegar o espírito. A
mulher deve guardar para si seu sofrimento, sua função não deve ser, como os marinheiros já
haviam se referido e condenado , a de “trombetear por alguma coisa” (D.: 14) -, mas sim de se
contentar com o que lhe é oferecido. Os sentimentos e os desejos femininos são vistos como
frivolidades e o silêncio é exigência para quem possui siso e comportamento adequado. Na
narrativa de Oribela, insere-se a voz de dona Brites, traduzindo a visão de mundo dominante na
época:
Guarda tuas misérias como secretas, do que não te arrependerás. Mais língua,
mais dor. [...] Não gostaste da saia, menina? Não basta uma formosura dessa
para ti? Que mais queres? Não se pode subir e descer uma escada ao mesmo
tempo, há de ser uma ou outra coisa, ah, Deus sabe que quem não tem nada,
nada quer e nada vem. Uh, queres viver na cozinha ou na taberna? (D.: 59)
A mulher do governador não pode ser entendida apenas como uma voz individual. É bem
mais do que isso: expressa os pensamentos de sua classe social e de sua própria condição
feminina. Como aponta Mikail Bakhtin, o discurso do narrador ou de cada personagem do
romance traz sempre em si a palavra do outro que atravessa a palavra pessoal, sendo, em sua
elaboração um conjunto de vozes e consciências que se entrecruzam no plano romanesco.
55
Da
mesma forma pode ser lida a recomendação dada durante a preparação das noivas para o
casamento: “Mas diziam. No lábio da mulher há de cintilar o silêncio, onde floresce seu saber.”
(D.: 66) Essa é uma voz que representa o pensamento coletivo, que produz e estimula a
conformidade feminina.
Isso também pode ser percebido na fala da Velha, cujo nome próprio não é citado. O
substantivo que é utilizado para nomeá-la é altamente simbólico, pois aos velhos costumam ser
atribuídos conhecimento e sabedoria. Tradicionalmente cabe a eles o papel de manter viva a
preservação da memória e dos costumes pois, sendo conhecedores de coisas ocorridas há muito
55
A esse respeito ler o texto de Beth Brait, “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso”. (BRAIT,
2003, p. 11-27)
tempo, dominariam conhecimentos que estão além da vivência juvenil. O resultado desse saber
privilegiado pela memória de comportamentos que tiveram conseqüências favoráveis fazem com
que sua fala possua a aura da verdade, mesmo que o que apregoe seja apenas a reprodução de
discursos que ocultam as diferenças e os desejos. É assim que, em Desmundo, a Velha serve à
organização social que submete a mulher à violência do silêncio, deixando perceber claramente
ao leitor seu conservadorismo: “Num ímpeto falei de minhas desventuras, do que disse a Velha
não ser eu tão infeliz assi, de boa índole era meu esposo, que me conformasse e parisse crias. [...]
E disse ela. Mais melhor para ti. Que te deleitarás se souberes.” (D.: 133) A astúcia sugerida é o
recurso que cabe à mulher para tirar algum proveito de sua condição de inferioridade no
casamento. Ao invés da revolta, a Velha sugere esperteza; à submissão propõe o acréscimo de um
certo grau de transgressão. A experiência proporcionada pela idade avançada havia lhe ensinado
serem esses os meios possíveis de tornarem mais ameno o destino das mulheres.
Contudo, outro dado fundamental compõe a figura dessa personagem. Embora recomende
passividade à Oribela no relacionamento com seu marido e senhor, a Velha também assume uma
postura combativa, não no que diz respeito à submissão feminina no matrimônio, mas à
hipocrisia dos religiosos e governantes. Punida com mordaça, também lhe são vedados a palavra
e o ato de pensar, reservado aos homens:
Vivia a Velha ainda na casa de gentias, mas fora mandada tapar a boca com a
mordaça, que o conhecer numa mulher é coisa do Demo e só a podia tirar para
confissão ou à ceia, andara dizendo umas coisas da terra, do bispo vil, do
governador, que os erros das gentias eram menores que os dos cristão, as putas
eram ovelhas de Jesus assim como as casadas, cujas eram putas de um homem
só [...] (D.: 132)
Essa compreensão do funcionamento das relações conjugais contrasta com o conselho que
dá a Oribela à órfã para quem há a possibilidade de aceitação social e obtenção de conforto,
sugere a passividade, mas em relação àquelas a quem isso é negado, assume a postura de
denúncia, transgredindo ela própria a regra que submete a mulher à aceitação de tudo que lhe é
imposto. Sua fala é desestabilizadora; por isso a colocação da mordaça que, inutilmente, tenta
conter seu ímpeto de desmantelamento da ordem que torna a condição de algumas mulheres
ainda mais humilhante: “E que mais lhe queriam tapar a boca por defender que amancebadas
pudessem entrar na igreja e ver missa, mesmo as nuas. E disse ela eu ladrarei quanto puder.” (D.:
133) A Velha é, portanto, ao mesmo tempo conservadora e subversiva: exerce um papel
fundamental na continuidade da tradição sexista ocidental segundo a qual a mulher deve ser
subserviente, mas também rompe com as concepções que condenam à segregação aquelas que se
desviam do modelo de comportamento valorizado por essa mesma tradição.
A rebeldia é traço de outra personagem que chega ao Brasil junto com Oribela, dona
Bernardina, cuja bravura a tornara capaz de superar a orfandade e os duros trabalhos no mosteiro,
o que não seria suficiente para impedir que fosse repetidamente vítima da brutalidade do marido
que conheceria na colônia. Sendo seu proprietário, e podendo dela dispor como bem entendesse
sem ninguém a impedi-lo, ele a vende a outros homens. O único que irá defendê-la é Francisco de
Albuquerque, que o faz apenas para atender aos apelos de Oribela, pois, embora não aprove o
modo como dona Bernadina é tratada, considera que a violência sofrida por ela seja assunto
estritamente conjugal. Apenas Oribela parece se compadecer e nem mesmo os padres lhe
oferecem socorro. Ao fracassar na tentativa de voltar ao reino com a amiga e sem condições de
modificar sua situação junto ao marido, utiliza o único meio de que dispõe para deixar de ser
vítima da violência intermitente: mata-o e, pelo crime, é presa em uma gaiola posta no quintal,
sob o sol e a chuva, o corpo e o rosto feridos pelos apedrejamentos, a mente já perturbada pelos
sofrimentos intensos.
Essas duas mulheres, longe de seus lugares de origem, sem quem lhes reconheça os
direitos, tratadas como bichos colocados a serviço de seus donos, rebelam-se de forma instintiva
a Velha, com gritos e xingamentos; dona Bernardina, atacando o marido com um punhal. Não
possuem reações concatenadas contra os abusos a que são submetidas. Agem com desespero,
cada uma a seu modo, sem abalarem a ordem social que as segrega. Reagem impulsivamente,
com atos de rebeldia que acabam neutralizados pela força dos homens que dominam o lugar.
Com a mesma impulsividade, Oribela recusa Francisco de Albuquerque e empreende duas
fugas que, mal sucedidas, reafirmam sua impotência diante da ordem estabelecida. Sua rebeldia
expressa na palavra insubmissa, rechaçada pelo pai como demoníaca, no Brasil será
acompanhada pelos atos que desafiam as expectativas de que seria domesticada pelo rigor do
tratamento e dos castigos que receberia a cada desobediência. É através dela que o enredo de
Desmundo reconta a situação das mulheres nos anos de 1500, colocadas em terra estrangeira, a
provocar e a sentir estranhamento, encaradas com desconfiança e também a olhar com espanto
para aquilo que não pensavam existir. A voz de Oribela predomina e nela outras falas se fazem
ouvir, sendo recuperadas pela memória da protagonista, que as dispõe na narrativa de acordo com
o fluxo das lembranças que se iniciam ainda no navio vindo de Portugal, entremeadas pelas
recordações de sua vida antes da viagem. Seu relato assume a memória como fabulação,
remetendo à natureza discursiva da história. Ao contar sua vida à índia Temericô,
conscientemente se serve da fantasia e é desse modo que, na linguagem, reconstrói sua história:
“Falava eu de minhas renembranças, do modo que alembrava na minha fantasia e se não, em
falsidades, mas formosas, de seduzir meu coração partido.” (D.: 123) O foco narrativo em
primeira pessoa e o relato com os verbos no pretérito dão o tom de testemunho em que se torna
mais evidente o caráter subjetivo de todo contar. Como destaca Luís Costa Lima, a propósito da
escrita autobiográfica, “a verdade não se encontra, mas se constrói [...] é sempre dependente da
posição do investigador.” (1986, p. 302) É exatamente isso o que demonstra a narrativa de
Oribela, que incorpora em seu discurso uma reflexão tão cara aos autores da pós-modernidade.
Mais uma vez se torna explícita no texto a contemporaneidade de sua escrita, apesar do espaço
ficcional escolhido ser o do século XVI.
A viagem traz a esperança de rompimento com o passado e a jovem acredita que irá ser
feliz na vida nova a ser iniciada na colônia Por isso, apegada ao sonho de que passaria a viver em
condições que permitiriam o conforto e a felicidade conjugal, opta não só pela invenção de
lembranças, mas também pelo apagamento da memória. À vista da nova terra, faz planos e, se lhe
vem à recordação o que lhe dissera o pai a respeito de sua natureza afastada das coisas divinas,
sua escolha é pelo que virá a partir de então:
Amém, amém, mas nada podia eu compreender do mundo e do céu, meu modo
era esquivar e renegar, no que fiz o sinal-da-cruz no peito, a face vazia, sem
obra, sem costume, sem a memória do passado, os olhos alongados ao verde da
terra, pensando naquelas coisas que desfazem um coração limpo. (D.: 12)
Também o que havia ocorrido durante a travessia lhe parece dispensável e na expectativa
do que ela e suas companheiras iriam encontrar, as esperanças se misturam ao medo do
desconhecido que, paulatinamente irá se mostrar perigoso e assustador: “[...] tudo era passado,
chegamos a um novo país com o coração em júbilo, mas de dúvida e receio, para povoar um
despejado lugar.” (D.: 16)
Apesar de sua intenção de esquecimento, o passado, entretanto, constantemente estará
retornando em sua imersão nos costumes dos gentios e nas agruras da convivência forçada com
Francisco de Albuquerque e sua família. Os conflitos que desencadeia com sua rebeldia estão
indissoluvelmente ligados à sua condição de mulher e de estrangeira em uma terra que se lhe
afigura exótica e onde, ao assumir uma conduta que resiste às tentativas de domesticação,
também ela parece estranha e incompreensível. O estranhamento, portanto, é mútuo, como pode
ser percebido na dificuldade de compreensão que a nudez ou a ausência dela provoca nas
portuguesas e nos nativos. Ao se deparar com os indígenas, a nudez lhe parece intrigante e a
explicação para esse costume irá encontrar na narrativa bíblica:
Por que andavam nus? Se era quente o lugar, assentavam-se em torno de uma
fogueira, prova que necessitavam de abrigo. Eram filhos de Cham e netos de
Noé bêbado. Descobrira Cham a vergonha do pai e o castigo era a maldição de
viverem nus, enquanto os nascidos de Seth e de Japhet andavam vestidos. (D.:
40)
Se a nudez dos índios lhe parece espantosa, sua reserva em se desnudar não causa menos
surpresa às naturais que irão ajudar as órfãs no banho:
Despimos dos vestidos os corpos para banhar nossas roupas rotas e encardidas
que levaram às barrelas umas escravas naturais e quando fomos para as abluções
muito se espantaram as bugras, que nos queriam desnudar e nos meter na água
cálida, Qui, sii, si, mela, mela, Qui, hi hi hi, açã , açu, a nos querer tirar as forças
ou matar, jogando nosso corpos dentro de um bacio grande e nos pedindo as
camisa, paieu? paieu? [...] (D.: 43)
Para os colonizadores, os nativos eram destituídos de humanidade devido às suas
diferenças culturais e étnicas que pareciam assemelhá-los às feras, mas o europeu também é um
ser cujos costumes e aparência os fazem ser vistos com desconfiança. Ao chegar a casa onde
passa a viver com o marido, Oribela é motivo de curiosidade e medo, o que a coloca, também, na
posição de ser exótico: “Por todo lado umas crianças tisnadas se escondiam de mim fosse eu uma
besta e outras se acercavam [...]”(D.: 102)
As tentativas de compreensão do outro se fazem através da reprodução de discursos
religiosos e populares em que o temor do desconhecido cria imagens sobrenaturais que reforçam
a idéia de exotismo, que surpreende e atemoriza, ao mesmo tempo provocando fascínio. Sob o
olhar de Oribela, a cena cotidiana que observa é totalmente inusitada, mais espantosa do que
estava preparada para encontrar:
Bugres da terra vendiam suas fêmeas nuas, mas assim que veio um padre da
Companhia na rua as esconderam, não dos outros padres. Por meus brios e
horrores, não despreguei os olhares das naturais [...] Nunca fora dito haver
mulheres assim, nem pudera aventar em minhas ignorâncias [...] Afirmam que
são essas crianças lançadas pelos sovacos, pelo braço direito machos e pelo do
esquerdo fêmeas. [...] (D.: 39)
A naturalização desses discursos não impede, contudo, que ela questione seu caráter
misógino. A voz de Oribela se insurge contra a representação das mulheres, opondo-se à
concepção corrente de que têm serventia apenas para a procriação. Apesar de educada por
religiosas, seu pensamento se constitui de modo independente, em que a passividade e a aceitação
da culpa dão lugar à crítica à ordem estabelecida. Tal atitude contestatória não propõe a inversão
dos pólos em que tradicionalmente se situam os homens e as mulheres na organização social.
56
O
tom dissonante não idealiza a figura feminina, reivindicando sua superioridade a própria
personagem reconhece o exagero com que antes considerava a questão:
Há homem que se gaba de jamais ter pousado as vistas no rosto de uma mulher.
Se sou desse modo, Deus perdoe. Mas não foi quem criou? Por que para
entender o pecado? Nada mais que um saco em que se fazem crianças. Guardar a
lei natural. Nem tão sem serventia, assim como querem fazer crer, nem o tão
oposto, como crera eu. (D.: 24)
Essa recusa à polarização não suaviza a brutalidade sofrida. Na trajetória de Oribela a
56
Para Linda Hutcheon, esse é um dos traços do pós-modernismo: a relativização das certezas, o que
implica colocar em cheque as posições ocupadas pelos sujeitos, mas sem sugerir que o marginal passe
a constituir um novo centro. (HUTCHEON, 1991, p. 30)
violência a que é submetida não fica escamoteada e, apesar dela trazer incutido em si mesma o
discurso opressor, sua rebeldia faz com que o desafie continuamente, embora sua consciência
nem sempre consiga entender a legitimidade de sua recusa ao tratamento que lhe é dado. As
memórias das desventuras vividas no Brasil são contundentes e o desvelamento da condição
feminina rompe, no plano ficcional, o silêncio que torna invisível a presença da mulher no início
da colonização. No entanto, se a narrativa revela o conhecimento e a pesquisa histórica realizada
pela autora dos tempos pós-modernos, seria inverossímil que a personagem tivesse inteira
consciência de injustiça de sua situação. Assim, Oribela, embora desestabilize o ambiente
familiar e chegue a contestar o que ouve sobre a natureza feminina, não consegue de todo
conjugar suas reflexões a atitudes capazes de mudar o quadro ao qual se opõe. Desse modo, ela
própria não é capaz de entender o porquê de sua rebeldia, que atinge apenas a esfera das relações
mais íntimas, não sendo uma ação organizada que proponha modificações na ordem e na
convivência sociais. Nesse sentido, é revelador o auto-questionamento que faz de seu
comportamento transgressor:
Não podia eu entender a fortuna? Deus fora bom para mim, me salvava das
garras da liberdade, que era órfã largada no mundo, sem asas e agora coberta da
caridade do Senhor e seu amor aos pobres, tinha esposo, amparo, não entendia,
embora houvesse no fundo alguém em mim que entendesse, mas sempre
houvera em meu ser um outro ser, que eu nem via direito, mas sentia e sempre o
velara [...] vivia eu metida dentro de mim para saber o fundo e para onde
endereçavam meus pensamentos [...] (D.: 74)
O pai considerava o mundo interior de Oribela inteiramente negativo e, para a jovem
também não é algo que a tranqüilize, pelo contrário, a angustia pois embora reconheça em seu
íntimo desejos que não se coadunam com as imposições do meio social, esse reconhecimento não
vem acompanhado de sua compreensão. O que carrega no íntimo se lhe configura como
componente de sua essência, de que não é possível se dissociar, pois faz parte daquilo que
designa como sendo sua natureza. Apesar das tentativas de racio nalização fundamentadas no
discurso que elege o casamento como a melhor alternativa para a vida feminina, o que prevalece
em Oribela é aquilo que a deixa atônita e que a impulsiona para a transgressão. Ao fugir pela
segunda vez, durante ataque dos indígenas à propriedade de Francisco de Albuquerque - quando
tudo é incendiado, provocando a morte dos animais e transformando o local em um inferno em
que os mortos se amontoavam pelo chão -, Oribela segue o que lhe dita essa desconhecida, mas
poderosa força inferior:
Não me pude livrar da natureza de minha alma e do meu estado tormentoso,
perdida no meu mesmo labirinto em que o desassossego se mostra em diversas
figuras para nos fazer dar mais crédito a seus enganos e falsidades. Estava eu
ali, metida nas tribulações, caída nas mãos da incidência, num afogamento de
mim, a me provar Deus diante do confundimento [...] (D.: 156)
Não por acaso os desejos, medos e sentimento de culpa que se misturam, deixando-a
confusa e desnorteada, assumem a imagem do labirinto cujos caminhos enganosos tornam a saída
quase inatingível. Ao centro está o monstro e, para Oribela, ele é a busca de liberdade e de
realização amorosa ao mesmo tempo sonho e temor - que vislumbra ao ser protegida por
Ximeno Dias. Antes disso, a índia Temericô já lhe havia dito: “[...] Fugiste à toa, sem
necessidade. Que nunca se podia fugir de nada que estava dentro de nós, doidinha Oibeinha,
dissesse, ai virgem sagrada e eu a ensinava a cantar.” (D.: 127)
É exatamente como doidinha que Oribela é encarada não só pela natural como também
pelos portugueses que estão a construir o novo país. Para dona Brites de Albuquerque, não há
nada demais em que se case contra a vontade; a súplica para que a mande de volta a Portugal, ou
mesmo que seja morta antes do matrimônio, é tratada como falta de amadurecimento da órfã, que
ainda não aprendera sobre as coisas da vida. Para acalmá-la, a mulher do governador lhe dá um
presente e oferece um refresco, argumentando com o que preconizava o senso comum a respeito
da mulher e de sua condição: o papel subalterno inquestionável. Nessa defesa da acomodação e
do silêncio, emerge na narrativa a assertiva que remete à fala popular: “Neste mundo não há
prazer permanente, nem tristeza que logo esvaneça, assim como as coisas todas têm fim e termo.
(D.: 61) O sobrinho está enamorado e disposto a pagar qualquer preço para se casar com Oribela.
Isso basta para que o casamento se realize: “Dissera à tia, Francisco de Albuquerque. Não
importa quantas vacas que esta vale. Ficava com ela mesmo sem as vacas. Está namorado.” (D.:
60)
Francisco de Albuquerque não demonstra conceder maior atenção à recusa da jovem em
desposá-lo. Apesar de a rejeição ser explícita, ele persiste em seu intento e as núpcias se realizam.
Mesmo após as fugas, ele continua a desconsiderar a vontade da mulher e o tratamento que lhe
dispensa não deixa dúvidas de que, para ele, Oribela não possui discernimento para saber o que
está fazendo. A órfã, por isso, não recebe tratamento muito diferente daquele reservado aos
indígenas, também considerados incapazes e destituídos da humanidade atribuída ao homem
branco. A atitude do marido corrobora a opinião do padre segundo a qual a braveza da noiva
poderia ser domada. É na tentativa de domesticá-la, além de impingir-lhe o castigo que julga
merecido, que o religioso a xinga e a castiga fisicamente, não abrindo qualquer possibilidade para
que seja ouvida. Manifestar vontade própria a torna aos olhos do padre, assim como para dona
Brites, destituída de inteligência e honestidade, já que empreendera a viagem para se casar. As
admoestações fazem retornar à lembrança de Oribela os insultos que o pai lhe dirigia,
condenando seu temperamento sonhador e insubordinado. Tomado pelo ódio ao presenciar
Oribela cuspir no rosto de Francisco de Albuquerque, o padre ocupa com sua voz o espaço da
narrativa, dando início a um outro capítulo do romance:
Oh, como és parva. Uma perdida! Decho que praga, tão bom homem parece e tu
uma frouxa, rabugenta, pé-de -ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte
birra é esta que tomas contigo [...] tinhosa que cheiras a raposa, rasto de burra,
torta defumada. E d’arrancada deu com uma vara. No sacrário me fez em joelhos
rezar por perdão de minha rebeldia, me deu pancada nas mãos até ver sangue,
que não doeu tanto e foi murmurar mais castigos com outros padres. (D.: 57)
Sem obter apoio que a livre do matrimônio, Oribela, juntamente com as companheiras,
será preparada para corresponder ao que é esperado delas na vida conjugal. São muitos os
conselhos e todos eles pregam a subserviência total ao marido e senhor ao que não se furta
Oribela de retorquir com veemência. É melhor morrer como um animal do que se sujeitar de
modo tão absoluto ao domínio do homem, ao que lhe responde a Velha, encontrando na natureza
feminina e na pobreza da órfã a justificativa para acatar suas orientações: “Ai, como sou, olhasse
a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira.” (D.: 67)
Não tendo como evitar o casamento que, afinal, era a razão de sua vinda, torna-se esposa
do homem por quem sente repulsa e, durante a cerimônia, ouve o celebrante deixar clara a defesa
da subserviência que a esposa deve ao marido, senhor também das filhas. Nenhum desses
discursos, entretanto, consegue ser convincente para Oribela que, mesmo após se casar, continua
a recusar a aproximação de Francisco de Albuquerque, consciente de que agia de modo diferente
das outras que haviam aceitado os homens que as escolheram. Se elas vão em paz, sem oferecer
resistência, obedecendo ao que parecia ser lei natural os homens submeterem sexualmente as
mulheres - Oribela resiste o quanto pode, mas sua fragilidade não lhe permite vencer. O marido
não hesita em estuprá-la logo que se encontram sozinhos em uma casa onde se guardam vacas,
armas e objetos de montaria. A relação se consuma sobre um monte de feno que serve de cama.
Apenas ao comprovar que a mulher nunca havia sido de outro é que lhe demonstra afeto, ainda
que nunca leve em conta o que ela pensa ou deseja. A violência a que a submete lhe parece
normal e ele lhe oferece a promessa de conforto e de ter muitos mimos, o que não surtirá nenhum
efeito sobre Oribela. Como não pode resistir a sua força física, o caminho que encontrará para
escapar será o da esperteza.
Assim como o grumete Barnabé, do romance de Mário Cláudio, a jovem usará a astúcia
para tentar reverter a situação desfavorável. Apesar de sentir escrúpulos e trazer interiorizada a
condenação a sua natureza insubmissa, não hesita em tirar vantagem do sono do marido que lhe
possibilita furtar moedas para pagar a passagem de volta a Portugal. Ao relembrar o que fizera,
curiosamente, ela associa seu ato desesperado à inferioridade feminina, sempre distante do que é
bom e correto. Mais uma vez em seu discurso aparecem camufladas as vozes da sociedade
patriarcal que associam o feminino ao maligno e ao sórdido. Não obstante, mesmo se condenando
moralmente, o desejo de se libertar é mais intenso do que acredita ser seu dever de esposa
respeitar e obedecer e, assim, deixa-se levar pelo impulso:
Mas o querer tem seu mistério e nos apaga a luz do pensar e nos turva o saber,
de ignorante que somos em nossa mulheril natureza, o que é bom sempre está
fora de nós e longe e sentindo dentro de meu a voz da discórdia, da traição
esperei que se virasse ele, para enfiar a mão na gibeira e tirar dali duas moedas
de ouro, que meti logo no meio do véu já não mais puro. (D.: 78)
Ao contrário do que imagina, as moedas não lhe trazem a liberdade sonhada. Traída pelo
oficial com que negociara a passagem, é atacada por dois marujos, inteiramente insensíveis a suas
súplicas. A fraqueza física de Oribela, determinada por seu físico feminino, não permite oferecer
maior resistência ao ato violento. Tal como havia sido subjugada sexualmente pelo marido, é
estuprada por um dos homens e se escapa de continuar a ser violentada é porque eles são
surpreendidos por Francisco de Albuquerque, que os mata e incendeia os corpos para que sirvam
de exemplo a outros que pensem em desrespeitá-lo. O horror sofrido pela mulher não o comove -
o que o deixa indignado é não ter sido respeitada sua condição de esposo e senhor de Oribela.
Como castigo, e para que não tente escapar, ela tem as mãos amarradas e é assim que retorna a
casa de onde havia fugido, seguindo a pé o marido que vai a cavalo. A imagem lembra a dos
escravos capturados que, como animais, são obrigados à dura caminhada sem nenhuma
clemência. Com os pés sangrando, sem alimento ou atenção ao seu clamor por piedade, Oribela
faz o caminho de volta, sem ter alcançado a resposta para o que havia lhe indagado o marido
ainda na praia: “Disse ele a mim. Por quê? Fiquei a pensar, para saber como explicar pois era
meu desejo claro e alumiado, mas meu motivo escuro e desalumiado, uma coisa decidida assim o
é e não se muda. Nada eu disse.” (D.: 112)
Embora não entenda a razão de seu desejo, Oribela o reconhece e sabe que ele se manterá
intacto, apesar da vigilância do marido. Se o corpo é aprisionado e sofre castigos rigorosos, o
anseio por liberdade não esvaece; por isso, novamente ela irá escapar, ainda que sem rumo, não
se rendendo de fato ao papel de esposa obediente e silenciosa que lhe reservaram. Apesar de todo
sofrimento, apenas fisicamente ela se deixa capturar e são sempre infrutíferas as tentativas de
dominá-la por completo. O mundo interior de Oribela é um mistério que ele não é capaz de
atingir; nem mesmo ela o decifra, pois é vasto, ultrapassando os limites que haviam tentado lhe
ensinado a respeitar. Enquanto o marido consegue ver apenas a superfície de sua aparência,
apaixonando-se por aquilo que julga que ela seja, Oribela é muito mais perspicaz e sabe, embora
não lhe seja possível analisar o que sente, que jamais será a mulher que ele havia idealizado,
apesar de todos os seus esforços em transfor-la:
Disse um sonho que tu serias assim como és. Logo que te avistei te conheci.
Disse eu. Quem nem saberias.
Aqui é lugar de dormir e descansar. É de recolher a alma.
E disse eu. Que minha alma se recolhe ao longe, além de acima daquelas
estrelas.
E ele disse. Lá estarei. (D.: 96)
Francisco de Albuquerque estará sempre em seu encalço, mas o desejo da esposa a leva a
outro homem que, sem a pretensão de dominá-la, lhe dispensa um tratamento em tudo diverso do
que recebera desde antes da partida de Portugal. Com Ximeno Dias, Oribela passará a conhecer
mais de si mesma e do outro, ambos a um só tempo fascinantes e amedrontadores.
4.2. A DEMONIZAÇÃO DO OUTRO
A narrativa de Oribela a revela ao mesmo tempo como personagem estranha para a
família do marido e também para as índias com quem passa a conviver. A mãe de Francisco de
Albuquerque a vê como uma mulher incomum cuja rebeldia representa perigo para a estabilidade
familiar. Para Francisco, a esposa é uma incógnita por rejeitar o que considera plenamente
aceitável e satisfatório: o casamento sem amor e a atitude passiva justificada pela condição de
inferioridade feminina. Os costumes e a aparência de Oribela provocam curiosidade nas índias, e
isso se evidencia nas conversas que mantém com Temericô. A impressão de estranhamento
também é sentida por Oribela para quem a vida na colônia é muito diversa de tudo que havia
experenciado até então. O encontro com Ximeno Dias a colocará em contato com algo que
julgava conhecer através dos ensinamentos que havia tido ainda em Portugal. A proximidade com
o mercador, também estrangeiro, mexerá com suas crenças, que antes lhe pareciam
inquestionáveis.
O choque profundo provocado pelas diferenças encontradas no outro facilmente fazem
com que o que é diferente seja avaliado como demoníaco. Isso fica evidente no relato de Oribela
sobre o desmundo em que se viu enredada. Desmundo que se configura na violência a que é
submetida, mas que também está dentro dela, no embate entre desejos e medos, entre o discurso
alheio incorporado em sua fala e o pensamento e a visão que começa a construir pela sua própria
experiência e sensibilidade.
Essa coexistência conflituosa se manifesta no romance desde a primeira parte, quando se
depara com a figura do mouro que surge no meio do povo, provocando reações de repúdio com
as quais a órfã busca se identificar, embora o fascínio que ele lhe desperta seja muito mais forte.
Ele encarna o desconhecido é o outro da cultura cristã e colonizadora, representa o oposto do
que a mentalidade religiosa da época considera como correto, honesto e verdadeiro. Os não-
cristãos, com suas diferenças não só religiosas, mas também culturais, políticas e sociais,
facilmente passam a ser identificados com o mal, num processo de satanização em que
preconceitos e fantasias se conjugam para formar o quadro de intolerância. A importância dada às
diferenças religiosas e étnicas é tão grande que, para o senso comum, seu caráter demoníaco
também estaria marcado no físico, em um sinal que Oribela chega a procurar no homem:
Um do povo gritou, Bentafufa! O homem tirou sua espada e toda a gente com
muito temor se calou. Não contestou ele de ser mouro ou de não ser, de modo
que provava ser, embora não fosse de cor maura nem levasse lua vermelha no
ombro [...] E diziam haver reinos e reinos só de mouros em muitos países, onde
viviam eles em seus costumeiros pecados. (D.: 29)
Apesar do temor, a lembrança do mouro a acompanha a partir daí e, mais do que isso,
passa a fazer parte dela, dando concretude aos sonhos que a tinham feito embarcar para o Brasil.
Em relação a esse homem estranho, tão assustador quanto fascinante, o movimento é igualmente
contraditório, feito de afastamentos e aproximações, como pode ser percebido na seqüência do
capítulo:
Do mouro corri as vistas para fora, a modo de não agasalhar em minha
lembrança a efígie de uma alma parida pelo Maomé. Mas no escuro de meu
coração a vista dele se marcara, que dela me não podia livrar, fechando as vistas
ou abrindo, de temor do blasfemo de alguma maldita seita, espírito atalaiado,
estava ele dentro de mim ardendo como um feiticeiro, os mais desumanos e
cruéis inimigos que nunca se viu no mundo. (D.: 29)
Ultrapassando os limites impostos por seu meio social, a atração pelo mouro a atingirá em
uma zona interior que ela mesma desconhece e que também se lhe afigura assustadora
exatamente por não poder dominá-la. É o que identifica como sendo “o escuro do meu coração”,
metáfora em que a imagem do desconhecido se conjuga a do sentimento amoroso. Desconhecido
e atraente, o mouro lhe parece semelhante a um feiticeiro, senhor de forças e conhecimentos
especiais.
No embate com a atração exercida pelo estranho, Oribela usa o recurso de que dispõe para
superar a si mesma: a súplica religiosa, em que o temor se mistura à demonização do que escapa
ao seu entendimento o mouro, o país que lhe parece cheio de pecados, os desejos que tenta
eliminar, sua própria natureza desafiadora e insubordinada.
A uma ermida ali logo, aos pés da Senhora me lancei em joelhos e lhe pedi para
proteger minha alma das coisas de fora e das coisas de dentro
57
, que me
esquadrinhasse [...] trouxesse Deus o bonamore, que não tenho nem uma
burrinha, tirasse de mim os desejos, os temores, os fingimentos, as visões, dessas
coisas que não se deixam bem entender e estando eu a me querer ver livre
daquele fadário, aos calcanhares da santa avistei que um par de chifres saía de
uma nuvem, foi coisa de uma serpente de que o homem não sabe a parte pois sei,
disseram, que a natureza cria e a vista transforma de uma natureza em outra, o
que é a arte do coração [...] vi que nesta terra o mal entra nos pés de uma Nossa
Senhora e se aloja nas santas obras, quanto mais na escuridão do nosso
pensamento e nos enganos dos inimigos. (D.: 30)
A tentativa de Oribela de subjugar o que traz de mais profundo em si mesma encontra no
texto freudiano elementos que tornam possível compreendê-la a partir do conceito de estranho.
57
Grifo nosso.
Freud denomina unheimlich, no inglês uncanny, estranho na tradução para o português, aquilo
que parece desconhecido e assustador, embora seja também, ao mesmo tempo, familiar. Os
sentimentos e desejos de que Oribela tentar fugir resistem a toda tentativa de auto-repressão. Eles
são ameaçadores porque não consegue compreendê-los, já que se contrapõem aos ensinamentos
que recebeu e ao que o senso comum apregoa. No conflito interior, o que é conhecido e o que não
é se conjugam naquilo que Freud (1974, p. 301) define como estranho: “[...] esse estranho não é
nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente
se alienou desta através do processo da repressão.” Isso faz com que Oribela, quando recapturada
após uma fuga em que encontra abrigo na casa de Ximeno Dias, o delate ao ser pressionada pelo
marido. É mais uma de suas tentativas de se desvencilhar do que condena e associa ao mal por ser
inteiramente transgressor:
[...] como que em meu anjo a me querer tomar das garras do encantamento, da
servidão, ao feitiço, de que dava prova a vasta trunfa avermelhada que lhe
coroava a cabeça, de má-fé, desatino, um pérfido todo ternura e inconstância,
seus olhos de um aveludado que inspiravam torrentes de poesia e lábios de onde
pareciam brotar perfumes, que dificilmente se lhe podiam descobrir as manhas e
o pacto, a quem não havia leviandade que lhe resistisse, pelos recursos de que se
valia. Foi o mouro. (D.: 186)
O mouro não amedronta apenas Oribela; no povoado, sua religiosidade não cristã torna
mais desconfortável a situação de estrangeiro. Considerado inimigo desprezível, sua fé é
responsável pela maldição que a gente do povoado lhe atribui e suas características étnicas são
encaradas como um sinal da natureza demoníaca. Ao ser apupado pelo povo, o mouro não desdiz
de sua condição de seguidor do Profeta, não tenta de nenhum modo se passar pelo que não é; pelo
contrário, o silêncio que mantém lhe confirma a origem e a manutenção de sua integridade é feita
pela espada ameaçadora. Não se percebe nele a intenção de se passar por um dos colonos
portugueses, inserido na dinâmica do local, embora ali realize seus negócios. Sua figura é
esquiva, conferindo-lhe a aura de excentricidade que Eduardo Said (2003, p. 55) identifica no
perfil do estrangeiro:
Por mais que tenham êxito, os exilados são sempre excêntricos, que sentem sua
diferença (ao mesmo tempo que, com freqüência, a exploram) como um tipo de
orfandade. [...] Agarrando-se à diferença como a uma arma a ser usada com
vontade empedernida, o exilado insiste ciosamente em seu direito de se recusar a
pertencer a outro lugar.
É assim que Ximeno Dias se diferencia inteiramente dos outros homens com quem
Oribela sempre havia convivido. Ao contrário da brutalidade dos colonos, é respeitoso e educado,
sem lhe infligir qualquer tipo de violência. Também não submete sexualmente as índias atitude
comum de Francisco de Albuquerque, que delas se serve até mesmo na frente de Oribela. Sua
casa possui muitos livros e ele revela apreço pelo conhecimento. Nas conversas com o mouro, um
outro mundo se desvela para a jovem que, assomb rada, descobre que muito do que acredita ser
verdade é apenas crendice, ignorância.
[...] vivendo sem afronta, muito contente, confiada e segura dele, que
desvendava os olhos comidos de abutre de tanta ignorância em que sempre eu
vivera [...] passei grandes pedaços das noites em perguntas de coisas novas, do
mundo de fora, que me desfiz em dúvidas de dentro de mim, para onde iria a
minha alma depois de morrer? (D.: 172)
Assim como toma ciência de que monstros fabulosos eram somente mitos, também
verifica ser infundada sua crença nas deformidades físicas que revelariam a presença do lado
demoníaco de Ximeno Dias - ele não possui pés de cabra nem rabo, embora em seu temor ela
ainda seja capaz de lhe enxergar chifres na cabeça. Principalmente, Ximeno Dias a mantém livre,
sem amarrá-la ou subjugá-la como o marido. Acostumada a receber maus tratos, Oribela tem
dificuldades em entender o inesperado comportamento de quem acreditava ser extremamente
perigoso:
Mas se estava prisioneira do mouro, por que não metera ele cordas em minhas
mãos e pés e atara à cama? Podia alevantar, abrir a janela, a porta, descer a
escada, tudo estava ao redor, no que fiquei repartida entre as interrogações dos
motivos do Ximeno, nunca me ajudara ninguém em minha vida, por que ia
querer ele nada em troca de tão arriscada empresa? (D.: 169)
Ximeno Dias parece encarnar o ideal contemporâneo de masculinidade em que o
elemento viril se conjuga à sensibilidade e ao respeito à mulher. Cada um a seu modo, ele e
Oribela estão distantes dos padrões de pensamento e conduta comuns na colônia. Ambos
desrespeitam os códigos sociais e, por isso, são considerados amaldiçoados. Ximeno, por sua
origem mulçumana; Oribela, pela fala e comportamento insubordinados. O mouro, até se
envolver com Oribela, consegue se manter sem maiores conflitos em meio à gente do lugar, mas
a órfã, desde o início, é vista como uma intrusa, sem nunca chegar a fazer parte, de fato, da
família do marido. Será permanentemente uma estranha cuja presença indesejada provoca tensão
e desentendimentos constantes entre Francisco e sua mãe, que culminam tragicamente em
matricídio. Ximeno e Oribela se encaixam na definição proposta por Zygmunt Bauman (1998, p.
27) para aqueles que se colocam à parte na comunidade em que se encontram. São diferentes,
“pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo [...] Cada
sociedade produz esses estranhos.”
A estranheza que Oribela provoca é aumentada por sua aproximação das indígenas com
quem se sente em melhor companhia do que quando junto de Francisco, de dona Branca e de
Viliganda, a irmã do marido de quem desconfia ser, também filha, resultado de relação
incestuosa. Enquanto Francisco de Albuquerque se relaciona com os nativos através da violência
da escravidão e do estupro, Oribela estabelece um contato amistoso, em especial com Temericô,
o que acaba por resultar em uma inesperada incorporação de hábitos dos nativos:
Aprendi os fumos de naturais, que me deixavam pasmada e sonhadora, sem ver
o correr dos dias, o parar das noites, quando na minha fantasia eu procurava o
que não queria achar. [...] Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que
havia um frescor sobre a pele [...] (D.: 126)
Embora lhe pareçam inofensivos, esses novos comportamentos são considerados
indesejados e, mais do que isso, perigosos para a manutenção da ordem social. O que os colonos
esperam é que suas regras sejam seguidas, não o contrário, pois tal reversão enfraquece a
supremacia que procuram manter.
58
Ao adotar o que é próprio dos indígenas, Oribela revela o que
ocorre quando culturas diferentes se encontram. É inevitável, apesar das resistências freqüentes,
que os costumes de um se incorporem aos hábitos de outros, o que acaba por configurar uma rede
de misturas. No início da ocupação das terras pelos portugueses, obviamente essa não era a
compreensão corrente; as tradições de cada povo pareciam impermeáveis e o encurtamento da
distância entre elas era encarado como um procedimento transgressor inaceitável e perigoso. Não
se podia permitir que a suposta natureza inferior dos nativos contaminasse os códigos de
civilidade trazidos da Europa. Por isso, as normas que dona Branca impõe para salvaguardar a
ordem doméstica e social:
[...] Eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava
nos dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos, dançava, de modo
que dona Branca veio baixar umas regras, antes que virasse eu uma bárbara da
selva e me metesse a comer carne humana. (D.: 127)
58
Nas palavras de Zygmunt Bauman, essa é a estratégia da assimilação cultural: “tornar a diferença
semelhante, abafar as distinções culturais ou lingüísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto
as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo abarca; promover e reforçar uma
medida, e só uma, para conformidade.”(BAUMAN, 1998, p. 29)
O discurso religioso reforça essa intenção de se manter a suposta homogeneidade
européia, o que claramente é apresentado como um dos propósitos da viagem das órfãs para o
Brasil. As relações sexuais entre os brancos e as índias são comuns, mas, embora toleradas, são
consideradas como impuras quando comparadas com aquelas avalizadas pelo casamento -
obviamente só permitido entre os do mesmo grupo étnico. Ao celebrar os matrimônios das órfãs
com os colonos, o ideal de perpetuação do biótipo europeu - o que significa dizer da cultura
européia - fica claro na preleção do bispo que, ao final da cerimônia recomenda aos noivos “[...]
fazer filhos abençoados de alvura na pele.” (D.: 73)
Mesmo Oribela, assim como os portugueses que compõem a população do lugar, irá
considerar os nativos inferiores. Por isso se desespera com a possibilidade de permanecer para
sempre na terra quando Francisco de Albuquerque embarca para Portugal. O exílio voluntário
havia se transformado em degredo do qual não havia conseguido escapar malgrado as tentativas
de fuga. À visão das velas do navio que já está ao longe, levando o marido e provavelmente o
filho, Oribela reconhece no abandono a vingança contra sua insobordinação:
“[...] e gritei tudo o que pude com a minha voz, tornassem a me buscar, mas não
fui ouvida por ínfima na terra, numa vã esperança, sabendo que me dava
Francisco de Albuquerque o mais cruel de todos os castigos e ainda levando meu
filho, ia ficar eu sozinha com a gente rude da terra, viver entre eles e me ver
tornar cada dia mais um animal besta, até nem sabia quando, mas que se salvasse
deste degredo meu filho, se é que o cão não o havia morto. (D.: 210)
A dor pela perda do filho e pela condenação a permanecer no Brasil acaba por conduzi-la
de volta à casa de Ximeno Dias onde, em meio à destruição que indica sua luta com Francisco de
Albuquerque, Oribela cogita a hipótese de suicídio, logo dissolvida pela consideração de que os
sofrimentos são a purgação da alma e de que essa é a razão para a vida. Tal crença na função
expiatória da vida se combina a uma outra corrente entre os colonos da época: a de que o Novo
Mundo seria um espaço intermediário entre o céu e a terra, o espaço do purgatório, onde se
chegava através das viagens marítimas cujos perigos as configuravam como uma espécie de rito
de passagem. (HANCIAU, 2005, p. 130)
Embora incorpore o discurso religioso de aceitação do sofrimento, mais uma vez, Oribela
contesta o que parece estar estabelecido para ela “Por que me mandou Deus para tal fim?”, mas,
logo em seguida, se dá, como uma resposta, o desfecho de sua narrativa, com a chegada de
Ximeno Dias e seu filho. Embora fique confusa diante do que ouve e vê o que pode levar os
leitores do romance a mais de uma compreensão sobre seu final ela recupera o que havia
perdido de mais importante, seja essa recuperação real ou fruto de seu desvario: “Ouvi o choro de
meu filho, virei e na porta, travessado pelos raios derradeiros do sol, os cabelos em fogo puro,
estava o Ximeno com uma trouxa de criança no colo. Hou há.” (D.: 213)
O percurso de Oribela desde sua vida de órfã na corte é marcado pelo questionamento e
pela mudanças na forma de perceber o mundo e as diferenças. Assemelha-se à peregrinação
levada a cabo pelo grumete Barnabé que, ao retornar das Índias, trará consigo uma descoberta
muito maior do que a realizada pelo Gama; a de sua Índia interior. Também Oribela dá a sua
viagem uma dimensão que ultrapassa a simples mudança de Portugal para o Brasil. Na
permanência na colônia, encontra um mundo diferente, descobre o outro representado tanto na
figura de Ximeno Dias e das indígenas quanto nos mistérios de seu próprio mundo interior.
Assim como Barnabé, é uma figura anônima transformada em protagonista de um texto que
enfoca um período fundamental da história do colonialismo português. Sob a ótica de uma
personagem do povo, através da narrativa ficcional, é oferecida ao leitor uma nova visão das
narrativas tradicionais que abordam a colonização, e, no caso de Desmundo, também a
experiência feminina. A narrativa em primeira pessoa assume o tom memorialista que, por sua
própria natureza, se coloca em posição periférica em relação à narrativa oficial, como observa
Lúcia Castello Branco (1994, p.54)
[...] o universo dos textos de memória, sempre colocados ao lado do que se
considera como estritamente literário, localiza-se numa periferia, num lugar que
não se opõe à região central, mas que faz exatamente a borda, o contorno do
centro.
É sempre dessa posição ex-cêntrica que fala a narrativa memorialista sua
escrita não pretende ser literária, mas também não se quer ensaística ou
científica: situa-se, antes, como paraliterária, ao lado da literatura. Considerado
sob esse prisma, o conceito de margem ganha outra dimensão: o texto marginal
não se opõe exatamente ao texto oficial, mas produz um deslocamento deste,
fala numa outra direção, de um outro lugar.
Oribela, mulher órfã, pobre e vítima da violência sexista, fala da margem, de um lugar
que durante séculos tem sido colocado em silêncio. Ao optar pela forma do discurso
memorialista, Ana Miranda expande a atitude transgressora de sua personagem à própria
linguagem estruturadora do romance. O fingimento da memória, no relato ficcional de Oribela é
uma voz alternativa àquelas que têm ocupado as narrativas históricas e ficcionais do paradigma
centrado nos elementos masculinos e eurocêntricos. Ao contar-se, a jovem revela seu percurso
interior e geográfico, mas também propõe uma leitura descentralizadora da condição feminina no
Brasil, o que é essencialmente atual ou pós-moderno, como prefere denominar um grande
segmento da crítica literária.
5. NAÇÃO CRIOULA: A VIAGEM DO TURISTA
Repetir repetir até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
(Barros, 1993, p. 11)
O romance de José Eduardo Agualusa explicita desde o título a presença, no texto, de
interrelações sócio-culturais, pois o adjetivo crioula acrescenta ao substantivo a carga semântica
de heterogeneidade étnica. Mais do que isso, a leitura irá revelar o diálogo entre três nações de
língua portuguesa, Portugal, Angola e Brasil, destacando a relação entre colonizados e
colonizadores. Esse caráter heterogêneo tem sido freqüentemente esquecido ou considerado
estanque em favor de uma concepção de que se trata de culturas distintas que apenas se
aproximaram superficialmente durante um período da história sem que isso tivesse conseqüências
importantes na configuração atual de cada país. Em contraposição a tal pensamento redutor,
Nação crioula, em sua forma e conteúdo, mostra ao leitor mais atento a inexistência de fronteiras
rigidamente demarcadas através do entrecruzamento de histórias e linguagens que tornam tênues
os limites entre o ficcional e o vivido, entre a escrita e a reescrita, entre a intertextualidade
sofisticada e os recursos folhetinescos.
Em sua viagem a Angola e ao Brasil, o português Fradique Mendes terá ao seu redor
personagens que, como ele, têm existência apenas literária, e outros pinçados da narrativa
histórica dos novecentos, caso dos líderes do movimento abolicionista brasileiro. Embora seja
possível identificar sua natureza histórica ou não , é redutora a tentativa de tentar separá-los,
pois, ao serem transformados em texto, tornam-se todos ficcionais e verossímeis, numa trama que
confirma o caráter questionador da metaficção historiográfica, crítica da tentativa de estabelecer
limites rígidos entre o ficcional e o vivido. Através da trajetória das personagens, questões
delicadas sobre o comércio negreiro são postas à mostra, relativizando a compreensão da
escravatura como um ato de extrema violência perpetrado apenas pelos brancos. O texto de
Agualusa põe em foco a exploração do tráfico pelos próprios africanos. Como analisa Maria
Teresa Salgado (2000, p. 177), Nação crioula propõe ao leitor reflexões sobre a abordagem do
passado sob uma nova ótica menos dicotômica:
Qual a participação dos africanos no próprio comércio de escravos? Quais as
relações dos negros brasileiros com o próprio comércio de escravos? Como
romper o discurso que reduz a história a um resumo de vencedores e vencidos?
Como dialogar com o passado sem criar personagens que tenham que ser
engrandecidas ou menosprezadas? Como resgatar a dignidade de um povo sem
recorrer a mitos?
Ao ficcionalizar essas questões, Agualusa reatualiza as características de Fradique
Mendes, em um jogo de aproximação e afastamento com o personagem ecinano. O protagonista
continua a viver no século XIX, período em que o colocara Eça de Queirós em A
correspondência secreta de Fradique Mendes. Entretanto, se a personalidade dinâmica e
cosmopolita de Fradique permanece no texto mais recente, a personagem já não é a mesma,
colocada em outro contexto, com outra linguagem, produto que é de um olhar contemporâneo
sobre o passado e sobre as relações luso-afro-brasileiras, assim como acerca da própria natureza
da escritura, essencialmente dialógica.
O diálogo textual não se dá apenas na apropriação de personagens, ocorrendo também na
apropriação de linguagens características dos diversos gêneros literários. A reinvenção de
Fradique Mendes, só percebida pelo leitor com informações sobre a obra de Eça de Queirós, se
mistura a elementos que caracterizam textos mais populares e superficiais. A composição de
personagens revela a aproximação com tipos facilmente encontráveis nos romances populares
59
,
caso da senhora Gabriela Santamarinha, estereótipo da mulher rica cuja feiúra física serve de
metáfora para o temperamento cruel.
60
O final reservado a ela também segue o previsível,
condenando-a à pobreza e à loucura, que aos poucos já vinha sendo anunciada. O padre Nicolau
dos Anjos, com sua figura exótica, também não deixará de parecer familiar ao leitor devido a sua
composição que mescla inteligência aguçada e aspecto físico disforme caracterização bastante
comum na literatura desde o Romantismo. As oposições dominam a descrição que Fradique
Mendes faz dele:
Este homem tão grande, temido e venerado é anão! A cabeça, presa a um
minúsculo tronco de criança, parece enorme, muito maior que a de um homem
normal. Entretanto emana dele tal autoridade, sobretudo quando fala, que ao seu
lado poucas pessoas alcançam maior estatura. Áspero, rude, muitas vezes
dogmático, o padre é, apesar disso, excelente conversador. (N. C.: 33)
A própria história de amor entre Fradique Mendes e Ana Olímpia, vitoriosa apesar dos
percalços e das circunstâncias violentas em que se desenvolve, ajuda a compor o conjunto de
elementos comuns aos enredos predestinados ao final feliz dos protagonistas, com a inevitável
destruição dos vilões e o nascimento do primeiro filho, a concretizar o ideal de realização afetiva.
Na última carta de Fradique enviada à Madame de Jouarre, a aproximação do enredo sentimental
e idealizado é evidente:
59
A denominação “romances populares” está sendo empregada em referência às publicações de maior
apelo comercial por serem de fácil leitura, sem grandes preocupações com o apuro da linguagem e
com a composição das personagens.
60
A conjunção desses elementos negativos se reflete nos apelidos dados a ela. “Chamam-lhe a Boca
Maldita esclareceu o Coronel Boca Cuspideira, Boca Assassina ou Boca Fétida. Dizem que os
pássaros se suicidam de desgosto à passagem dela.” (N. C.: 22)
Quem lhe escreve esta carta não é mais o ocioso e irresponsável aventureiro que
V. viu crescer, vestindo-se nos melhores alfaiates de Paris para ocultar a
miserável nudez da alma, pensando com idéias emprestadas, sentindo o mundo
com sentimentos alheios, e cujo único projecto de vida era, simplesmente,
deixar-se viver. Sou outro! Sou, desde há dois meses, pais de uma belíssima
menina à qual, em sua homenagem, chamei Sophia. [...] sou pai e de alguma
forma obscura sinto que esta criança é o meu futuro, e a razão do meu passado.
(N. C.: 1267)
A apropriação de personagens e situações facilmente encontráveis no segmento mais
lucrativo do mercado editorial se configura no texto de Agualusa como estratégia de revelação de
um mundo em que várias identidades se misturam continuamente, confirmando a
heterogeneidade que caracteriza o crioulo.
61
Muito mais do que uma referência étnica, o termo
designa o resultado de cruzamentos vários que fazem com que a identidade possa ser pensada
como plural, construída através de incorporações múltiplas. A nação, muitas vezes compreendida
como um todo homogêneo, é revista como um conjunto de diálogos interculturais extremamente
dinâmicos. Nação crioula sintetiza essa mistura que desestabiliza a compreensão redutora das
relações históricas e culturais entre Portugal e duas de suas ex-colônias, remetendo à idéia de
mestiçagem e à proposta de que ela seja um novo modo de encarar o mundo luso-afro-
brasileiro.
62
O título do livro de José Eduardo Agualusa é também o nome do navio em que Fradique
Mendes deixa Angola rumo ao Brasil. Na embarcação em que viajam o renomado português e
sua mulher angolana filha de príncipe, ex-escrava, ex- senhora rica e influente que, novamente
escravizada, se põe em fuga para o Brasil estão também traficantes brasileiros e os negros que
61
Sobre a importância desses elementos em Nação crioula , ver o texto de Maria Teresa Salgado em que
se reconhece na utilização do folhetinesco a tentativa do autor de revisar criticamente o imaginário
coletivo. (SALGADO, 2000, p. 189)
62
Conforme Serge Gruzinski, “[...] a identidade define-se sempre, pois, a partir de relações e interações
múltiplas. (GRUZINSKI, 2001, p. 53 ) O reconhecimento desse processo, assumidamente, estrutura a
proposta ideológica de Nação crioula.
foram buscar na África. Essa mistura de elementos étnico-culturais fica evidente no romance
desde seu início quando a personagem criada por Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis e Eça de
Queirós reaparece em Angola de onde inicia o relato das inusitadas experiências que terá a partir
de então. A forma epistolar segue a segunda parte de A Correspondência de Fradique Mendes,
de Eça de Queirós, na qual a personagem se corresponde com sua madrinha, Madame de Jouarre,
também interlocutora do novo Fradique.
63
Além dela, são enviadas cartas para Ana Olímpia e
para o próprio Eça de Queirós, autor do texto com o qual o romance mantém o diálogo mais
estreito.
Ao colocar Eça como interlocutor de Fradique, Agualusa assume a importância do texto
canônico, indo em direção contrária à seguida por aqueles que defendem o afastamento das
produções do colonizador como forma de criar uma identidade artística e literária própria, sem
contaminação. De modo diverso, em Nação Crioula é ressaltada a importância do texto primeiro
e sua incorporação ao acervo literário de quem lê e escreve em língua portuguesa, questionando
os limites do que seria uma tradição impermeável. A consciência desse processo remete ao
movimento antropofágico proposto por Oswald de Andrade para entender a produção cultural. A
idéia do ritual praticado pelo antropófago - que se alimenta do elemento estrangeiro e, em sua
deglutição, o transforma em algo novo, formado pela mistura de traços diversos - metaforiza a
apropriação cultural que caracteriza a relação entre as culturas. A Antropofagia oswaldiana,
elaborada durante a fase inicial do modernismo brasileiro, aplica-se à compreensão das interações
recriadas em Nação crioula. Como destaca Heloisa Toller Gomes (2005, p. 48), a Antropofagia
“é a metáfora central a partir da qual entender e expressar o Brasil, reavaliando o seu passado e
incorporando-o criativamente ao presente, na projeção e no projeto de um futuro utopicamente
63
A primeira parte do romance de Eça de Queirós, denominada “Memórias e notas”, é conduzida por um
narrador amigo que delineia o perfil de Fadique Mendes.
livre.” Essa utopia sedimenta a intenção de José Eduardo Agualusa de reavivar os laços luso-afro-
brasileiros.
É assim que os versos de Navio negreiro, de Castro Alves, também são incorporados às
páginas do romance, cantados por um marinheiro que diz desconhecer sua importância literária e
política “É só uma canção, meu senhor”, acrescentando em seguida: “Eu de política não
entendo nada.”
64
A falta de referências do jovem marinheiro não diminui a relevância do poema;
sublinha sua importância como elemento presente na cultura de língua portuguesa, sem restrição
de fronteiras geográficas.
Essa mistura sinaliza para uma outra forma de compreensão da identidade angolana,
afastada da imagem de isolamento cultural e exotismo, o que reforça sua presença e interação na
comunidade mundial, em especial de língua portuguesa. Tal proposta de uma nação crioula pode
ser compreendida em um contexto maior de necessidade de afirmação de identidades africanas a
partir do processo de descolonização. Nas palavras de Inocência da Mata (2001, p. 6), que retoma
o pensamento de Frantz Fanon, a ênfase é na pluralidade e na independência em relação à
imagem estereotipada criada e difundida pelo colonizador:
[...] a descolonização, como postila Frantz Fanon, é a criação de homens novos
que, nessa condição, tanto se tornam sujeitos de seu destino histórico como se
mostram capazes de tecer discursivamente outras ficções sobre si mesmos.
Nesse sentido, a nova fala crítica produzida por africanos, sem qualquer traço
essencialista ou xenófobo, reveste-se de um duplo significado: o de acabar com
a fantasia perversa da invenção do outro, uma das ficções mais poderosas do
ocidente branco-europeu, e o de investir na força da multiplicidade cultural onde
a rasura e o silêncio perderam totalmente o sentido.
Nesse processo de construção da nacionalidade, a memória é fundamental que a
64
A partir desse ponto as citações referentes ao livro Nação crioula serão indicadas por N.C., seguido pelo
número da página.
retomada do passado permite lançar outros olhares sobre episódios significativos dos relatos
históricos oficiais. Isso é especialmente importante em Angola, onde a baixa expectativa de vida,
aliada à escassez de bibliotecas e arquivos, faz com que a memória se torne ainda mais frágil e
volátil. Assim, a literatura é um dos recursos com que se procura deter esse esquecimento, muitas
vezes favorável ao pensamento oficial. Nação crioula, na mistura que apresenta de clichês e
refinamento literário, toca em questões incômodas da história angolana comumente apagadas dos
relatos, mas que escondem dados fundamentais à reflexão sobre o país. A retomada do tempo
pós-colonial junta fragmentos que serão interpretados e reescritos na perspectiva da pós-
modernidade.
A situação singular de Angola, que passou nas últimas décadas do século XX do regime
comunista ao sistema capitalista aliado dos interesses norte-americanos, torna ainda mais intenso
o questionamento do passado e de suas construções míticas em que se baseia o discurso
nacionalista. Segundo Inocência da Mata (op. cit., p. 68-69):
“A africanidade literária, na sua versão angolana, começa a pensar-se, então,
como o reconhecimento de identidades a serem revitalizadas pela marca não de
qualquer autenticidade, mas pela interiorizarão de registros vários que
conformam o jogo plural das identificações históricas multidimencionais em
processo. Num tempo de distopia, atravessado pelo desencanto e a perda da
inocência, o tempo pós-colonial, Memória e História são agora matrizes do novo
discurso da identidade cuja tipologia passa também pela revitalização de um
passado e o questionamento de um passado mítico, construído sobre uma mística
do heróico e do épico, em que ancora o discurso nacionalista.”
A viagem de Fradique Mendes a Angola, e depois ao Brasil, oferece ao leitor de língua
portuguesa a oportunidade de também refazer um trajeto que é parte de sua história, muitas vezes
ignorada. O europeu colonizador chega a territórios que lhe são estranhos e com seu olhar
estrangeiro irá também formar uma outra idéia sobre sua própria identidade.
5.1 UM ESTRANGEIRO EM ANGOLA
Também viajante como o grumete Barnabé ou Oribela, Fradique Mendes, diferentemente dos
dois jovens desamparados, não chega a outras terras impulsionado pela precariedade de
condições sócio-econômicas. Sua movimentação constante obedece ao imperativo de uma busca
interior, como ele mesmo diz em carta a sua amada Ana Olímpia: “Fui nómada a vida inteira.
Atravessei metade do mundo, desde Chicago até à Palestina, desde a Islândia até ao Sahara e
nunca soube que nome dar a essa errância aflita.” (N.C..: 44)
É um homem de posses, aventureiro, que desembarca em Angola como turista, merecedor de
tratamento diferenciado, dado seu grande prestígio intelectual. Já a viagem ao Brasil, na verdade
uma fuga, se dá por dois motivos interligados: envolve-se com uma mulher escravizada que
apenas tornaria à liberdade se saísse do país, e mantém laços de amizade com quem possa ajudá-
la pai e filho adversários dos chefetes locais. Deixar a África é resultado de sua opção afetiva e
chegar ao Brasil também é uma escolha, já que sua condição privilegiada leva a supor que
poderia ir para qualquer outro país que desejasse.
O desembarque de Fradique Mendes ao porto de Angola, acompanhado de Smith, seu
secretário escocês, corresponde à imagem banalizada do primeiro contato do turista rico com um
povo e um ambiente que lhe parecem destituídos de civilização outro clichê facilmente
identificável utilizado por Agualusa. Na carta enviada a Madame de Jouarre, datada de maio de
1868, temos o início do romance (a última missiva dele é de outubro de 1888, dirigida a Eça de
Queiroz) e as primeiras impressões da personagem sobre a cidade de Luanda. Tipicamente
trajado como viajante europeu em passeio aos trópicos vem inteiramente vestido de linho
branco , comicamente chega à praia carregado nos ombros de dois marinheiros, servindo de
troça para os que observavam a cena. Para as pessoas do lugar o procedimento é inusitado, mas
para Fradique a sensação é também de quem se depara com algo estranho e, por isso mesmo,
inferior.
Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o sentimento
inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente
e húmido, cheirando a frutas e a cana -de-açúcar, e pouco a pouco comecei a
perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em
decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando
falam de África. (N.C..: 11)
Entretanto, a degradação que identifica não é apenas um olhar depreciativo sobre a
colônia; é, principalmente, uma crítica dirigida a Portugal. Os ares da África enjoam Smith e a
saudação irônica de Fradique - “Bem vindo a Portugal!” - dá a conhecer sua opinião negativa
sobre o próprio país. Mesmo distante de Lisboa, Angola faz parte do reino, deixando à mostra a
precariedade da sociedade colonial portuguesa, alicerçada em um Império decadente, humilhada
com o Ultimatum.
A mordacidade de Fradique em relação a Portugal é coerente com sua condição de
homem cosmopolita, livre de enraizamentos que poderiam torná-lo apegado à idéia de uma pátria
idealizada. Como no romance de Eça, seus interesses se localizam em países diferentes, sem que
neles se destaquem pontos de maior contato com as causas portuguesas.
65
Esse homem audacioso
é a personagem ideal para conduzir uma narrativa que apresenta a possibilidade de diálogo em
meio à diversidade complexa. É como estrangeiro que ele se posiciona em relação a Portugal,
65
Em Eça de Queirós, Fradique utiliza a riqueza obtida através de herança para se dedicar a aventuras.
“Com um ímpeto de ave solta, viajara logo por todo o mundo, a todos os sopros do vento, desde
Chicago até Jerusalém, desde a Islândia até o Saara. Nestas jornadas, sempre empreendidas por uma
solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções, achara-se envolvido em feitos históricos e tratara
altas personalidades do século... [...] acompanhara Garibaldi na conquista das Duas Cecílias.
Incorporado no Estado-Maior do velho Napier, [...] fizera toda a campanha da Abissínia.” (Queirós,
2001, p. 16)
Angola e Brasil, por isso seu olhar é arguto, capaz de perceber nuanças que permitem pensar em
uma nação crioula. (JORGE, 2001, p. 206)
Quatro anos após chegar à África, Fradique já reflete sobre o processo de interação
cultural que possibilita que traços de um povo se tornem presentes em outro, de tal forma que
passem a fazer parte de sua natureza. Isso ele já observara no comportamento de seu secretário
que, do choque inicial sofrido na chegada, em pouco tempo já havia incorporado hábitos dos
nativos: “Surpreendentemente, ou talvez não, converteu-se à calorosa culinária angolense e por
mais de uma vez o encontrei entre a criadagem, comendo alegremente o funge e o feijão.” (N. C.:
15) Principalmente em uma visita à Benguela, ao se encontrar com um antigo companheiro,
agora médico, percebe as transformações que se operaram em seu comportamento e modo de
sentir. A África onde chega a trabalho não era mais apenas um território geográfico, havia sido
internalizada, criando uma nova identidade, certamente crioula:
Ouço-o às vezes falar em umbundu com o cozinheiro, António Salvador [...]
Nessas alturas parecem ambos da mesma nação, pois Luís Gonzaga não apenas
fala a língua do velho fala-a como um Ovimbundu. Volta a rir com o furor
antigo, faz grandes gestos, bate palmas, e eu fico a vê-lo com a sensação de que
este país o colonizou. (N. C.: 28)
Médico, Gonzaga acrescenta ao saber científico o respeito pela sabedoria ancestral, por
isso recorre a ela quando seus conhecimentos se mostram insuficientes para atender aos doentes,
ocasião em que os envia a um feiticeiro. Para Fradique, isso são “inexplicações” (N. C.: 28) e a
febre que passa a acometê-lo metaforiza o estado de confusão em que se encontra diante desse
quadro de identificações surpreendentes que tenta decifrar. Diz ele em carta a Ana Olímpia:
“Estendido nesta cama, ardendo de febre e no entanto trémulo de frio, procuro entender os
segredos de África.” (N. C.: 29)
Além desse processo de interação cultural, há muito mais a causar surpresa ao turista
estrangeiro que tenta compreender a organização político-social de Angola. O inusitado começa
por seu anfitrião, Arcénio de Carpo, que ostenta o título de coronel sem que tenha qualquer
ligação com o exército ou com as localidades referidas em sua patente. A situação se aproxima do
non-sense, embora em nenhum momento isso cause desconforto ou estranheza às outras
personagens. O seu poder parece inquestionável assim como o fantasioso coronel que lhe é
adicionado ao nome:
A patente de coronel que tão orgulhosamente ostenta coronel comandante das
províncias do Bié, Bailundo e Embo (!) - não tem no entanto significado algum
para além do honorífico, já que Arcénio de Carpo não é militar, nunca visitou
nenhuma destas províncias, que aliás não prestam vassalagem ao governo
português, e em nenhuma delas existe sequer um corpo de soldados. (N. C.: 12)
A condição de estrangeiro é fundamental para que Fradique Mendes possua o
distanciamento necessário que lhe permita perceber as incoerências que parecem naturais aos
angolanos.
66
Com ironia, ele desvela a lógica colonial, capaz de justificar com ideais humanistas
a brutalidade da escravidão. Arcénio se dedica ao comércio de escravos, mas seu discurso atenua
a violência do ato, com a explicação de que, na verdade, estaria a contribuir para o
desenvolvimento do Brasil, cujo progresso seria dependente do trabalho escravo. Em carta a
Madame de Jouarre, a reprodução das palavras do velho servem à crítica que Fradique faz a ele e,
por extensão, a toda prática escravocrata:
Já compreendeu, querida madrinha, como fez fortuna o senhor Arcénio de
Carpo? Precisamente: comprando e vendendo a triste humanidade. Ou, como ele
66
Esse distanciamento justifica a escolha da personagem desenvolvida por Eça de Queirós, como observa
Silvio Renato Jorge. Fradique Mendes é a “representação de um ideal cosmopolita, recuperado em
Nação Crioula como um instrumento para propor uma reflexão mais profunda acerca de conceitos
como os de identidade e nacionalidade”. (JORGE, 2001, p. 204)
prefere dizer, “contribuindo para o crescimento do Brasil”. Ainda hoje, a
acreditar no que se comenta em Luanda, continua a trabalhar para o crescimento
do Brasil
[...]
“Mas o Brasil, onde o número de colonos europeus é muito reduzido, depende
inteiramente dos escravos. Se o tráfico acabar, a agricultura brasileira entre em
colapso. Ao mesmo tempo a Inglaterra pretende arruinar as elites que amanhã
poderiam governar Angola” [...] (N. C.: 13)
Arcénio de Carpo não tem dúvidas sobre a posição de inferioridade ocupada por Portugal
no mundo do século XIX; a grandeza lusitana há muito havia ficado para trás e as pressões
internacionais para o fim do comércio negreiro sinalizariam a intromissão inglesa na soberania do
país. O coronel sabe que o império português não existe mais; as velhas crenças perderam espaço
para ideologias que sustentam agora um outro tipo de poder ao qual não é mais possível resistir.
Falta, inclusive, quem se disponha a tal resistência. O mundo defendido pelo coronel deixou de
existir e ele bem o sabe: “- O que pensar? Excelências, os Portugueses de hoje são tão pequenos
que até cabem em Portugal!” (N. C.: 14)
A incoerência nos argumentos que defendem a escravidão não é exclusiva de Arcénio de
Carpo. Fradique também a observa em outras personagens, como Victorino Vaz de Caminha
“nascido na Bahia mas que preferiu após a independência do Brasil continuar português em terras
de Angola” , senhor de escravos que, não obstante, defende os ideais da Revolução Francesa.
Novamente a ironia se insere no texto de Agualusa, sublinhando as contradições de um período
em que as identidades, mais do que nunca, são nebulosas e bizarras em sua fragilidade
ideológica:
Espírito excessivo e contraditório ouvi-o defender ao mesmo tempo e com igual
fervor o escravismo e a revolução libertária. Proprietário de três navios negreiros
não teve dúvidas quando se tratou de os baptizar: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade.
Enquanto escravocrata fez grande fortuna, tornando-se muito respeitado no país.
Enquanto anarquista assinou um meia dúzia de panfletos anti-clericais e depois
se casou na Igreja de Nossa Senhora do Carmo com Ana Olímpia [...] (N. C.: 37)
O caráter controverso do marido de Ana Olímpia também está presente na esposa que,
embora ex-escrava, não vê problemas em manter cativos em sua propriedade; pelo contrário,
encontra justificativa para a servidão no discurso paternalista que desenha o escravocrata como
protetor e benevolente, enquanto procura difundir a imagem do escravo como incapaz de lidar
com a liberdade que, por isso, não poderia lhe ser concedida. Aos olhos de Fradique, essa lógica
parece absurda e, mais uma vez é a condição de estrangeiro que permite perceber e questionar a
violência em que se assenta o discurso dos poderosos de Angola. Por isso, as explicações que
ouve não o convencem:
Porque não libertou então os escravos domésticos? “Porque”, disse-me ela,
“seria como alforriar a minha própria família”. Este argumento, que eu não
consigo compreender, ouvi-o mais tarde a outros Luandenses: “Temos
responsabilidades para com eles”, tentou explicar-me Arcénio de Carpo Filho.
“Não os podemos libertar porque os desgraçados não saberiam o que fazer com
essa liberdade. (N. C.: 40-41)
O jovem Arcénio repete o mesmo argumento quando, já fugindo de Luanda junto com
Ana Olímpia e Fradique, um escravo lhes é oferecido. Diante da repulsa do português, explica-
lhe que para o rapaz extremamente maltratado a escravidão é a única alternativa para a morte; por
isso o desespero do jovem ao perceber que Fradique se recusava a comprá-lo. Não há saídas
fáceis contra a escravidão; mesmo para quem a condena, é necessário muitas vezes, contrariar as
próprias convicções, como acontece com Fradique ao aceitar o negócio. Essa situação alimenta e
é alimentada pela lógica do sistema escravocrata em que se misturam os bons e os maus em um
círculo de violência difícil de ser rompido:
Se não os compramos, eles matam-no”, explicou Arcénio: era exactamente isto
que eu lhe queria dizer. Ao comprar um escravo estou a salvar-lhe a vida”. Em
sua opinião o tráfico negreiro é uma forma de filantropia, ele, como o pai, ama
os negros e só por isso os vende para o Brasil. Acredita que a escravatura tem os
dias contados na grande pátria de D. Pedro II e que os desgraçados, uma vez
libertos, estarão melhor lá do que estão agora aqui. (N. C.: 63)
Ao enfocar esse aspecto, Nação crioula rompe com a visão maniqueísta que poderia
resultar do encontro entre o estrangeiro cosmopolita e as personalidades do lugar. Apesar de sua
posição privilegiada, que lhe permite analisar o que vê com certo grau de distanciamento,
Fradique, por mais que o deseje, não consegue subverter a lógica já instalada e, mesmo contra
todos os seus princíp ios humanistas e paradoxalmente para ser fiel a eles , se torna um senhor
de escravo.
Antes, ao freqüentar os salões luandenses, já havia percebido o quanto na sociedade se
fazia freqüente a incoerência entre a defesa abolicionista e a prática escravocrata, o que sugere,
para além da imposição do sistema, a simples repetição de um discurso libertário então em voga
na Europa e, por isso, reproduzido com entusiasmo, sem que de fato seja acompanhado de
reflexão mais profunda e de efetivo desejo de mudança:
A questão da escravatura é sempre motivo de exaltado debate nestes saraus, em
que poucos defendem a continuidade do velho sistema e a larga maioria se bate
pela abolição; entre estes contam-se muitos em cujas casas existe ainda
numerosa escravaria, e quase todos são filhos de comerciantes implicados no
tráfico negreiro. (N. C.: 39)
O distanciamento crítico também o leva a questionar a idéia corrente entre os habitantes
de Angola para quem o trabalho é motivo de vergonha por ser um indício de origem pobre ou de
descendência escrava. Embora também não exerça atividade profissional, Fradique em carta a
Madame de Jouarre, chama atenção para esse dado curioso e cruel que serve à discriminação
social e completa sua crítica com o relato da conversa que tivera com o velho Arcénio de Carpo e
seu filho: “Os mulatos, confidenciou-me Arcénio de Carpo, ’desprezam todos os povos do
interior porque trabalham, e ainda mais, os desprezam porque sendo negros querem continuar
assim’ ”. (N. C.: 16) O jovem Arcénio, cuja mãe é uma negra de Benguela, não se sente
constrangido em atribuir aos negros a culpa pelo atraso do país, reproduzindo justificativas que
são com freqüência utilizadas pelo colonizador que considera inferior aquilo que não pertence a
sua cultura. Assim, o modelo a ser seguido é o europeu, com suas formas de Estado, ciência e
práticas religiosas. O modo de vida do negro seria perniciosa e o único caminho para o
desenvolvimento nos moldes europeus é abandoná-lo:
Nas suas palavras os pretos do mato constituem grande obstáculo à rápida
transformação de Angola num país moderno uma vez que não têm sequer uma
idéia de Estado, recusam-se a falar português e permanecem cativos de toda a
espécie de crenças e superstições. (N. C.: 17)
Mais uma vez a posição distanciada de estrangeiro permite a Fradique Mendes perceber a
fragilidade de tais argumentos com o simples confronto de dados que atestam que os defeitos
atribuídos aos selvagens não são exclusivos deles, sendo encontradas nos próprios modelos de
sociedade que Arcénio considera ideais. Entretanto, sua contestação se revela infrutífera, já que o
pensamento eurocêntrico foi totalmente internalizado e apenas o que é imaginado dentro dessa
concepção é considerado válido. A realidade africana, na perspectiva do jovem Arcénio, é
exatamente a concretização da imagem construída pelo colonizador, o que acidamente Fradique
Mendes não deixa de observar:
Disse-lhe que o ingleses, Franceses e Alemães também se recusam a falar
português, e recordei-lhe que a Rainha de Espanha acredita nas virtudes
purificadoras do suor impregnado nas vestes menores de uma freira. E qual a
diferença, afinal, entre um manipanso cravejado de duros pregos e a estatueta de
um homem pregado numa cruz? Antes de forçar um Africano a trocar as peles
de leopardo por uma casaca do Poole, ou a calçar umas botinas do Malmstrom,
seria melhor procurar compreender o mundo em que ele vive e a sua filosofia.
O jovem Arcénio de Carpo olhou-me entre o escândalo e o desgosto: “Filosofia?
Pois vossa excelência veio à África à procura de filosofia?!”. Dei-lhe razão.
Aquilo que os europeus desconhecem é porque não pode existir. (N. C.: 17)
A ironia de Fradique zomba das tentativas de europeização dos africanos que buscam
exatamente o oposto do que propõe a idéia de mestiçagem. O humor é utilizado em Nação
crioula como recurso de desvelamento das incoerências do pensamento acrítico dos angolanos
abastados. Mais do que fazer sorrir ao leitor, o humor de Agualusa exemplifica o caráter nada
inocente do riso, estudado por George Minois (2003, p. 49):
Aquele que procura fazer rir utiliza conscientemente meios visando a um fim, e
muitas vezes esse fim não é o riso; o riso é apenas uma transição. Quando
zombo de alguém, meu objetivo é humilhar, e por isso faço com que riam dele.
Todos os tipos de ironia e de zombaria visam a um objetivo que se situa além do
riso. Essa finalidade é mais reveladora das mentalidades do que o riso em si
mesmo.
A ironia serve a José Eduardo Agualusa para apontar a fragilidade da sociedade
controlada por uma elite burguesa incapaz de elaborar qualquer projeto de construção do país.
Assim como também se encontra em Eça de Queirós, Agualusa, ao provocar o riso, faz dele um
recurso de contestação política, em tudo afinado com a leitura que propõe das relações pós-
coloniais.
As situações ridículas de subordinação cultual continuam sendo relatadas por Fradique
Mendes. A Europa oferece os padrões de cultura, comportamento e organização político-social
considerados perfeitos tanto pelos europeus quanto pelos angolanos que, a todo o custo, procuram
se adequar às exigências do que julgam ser apropriado às pessoas elegantes e de posses. Por isso,
o professor de música vindo de Nápoles, contratado por Victorino Vaz de Caminha, também
encontra clientes para que lhes pinte o retrato, tendo ao fundo não a paisagem típica do continente
africano, mas a distante natureza européia. Pouco acostumados a tal tipo de pintura, postam-se
ridículos e deslocados diante do italiano, como se lê na carta enviada por Fradique a Madame de
Jouarre:
[...] Ohali dedica-se também à nova arte de pintar fotografias. Instalou um
pequeno estúdio na rua direita do Bungo e ali retrata as senhoras e cavalheiros
da colónia, moços e moças, variadas figuras típicas, todos posando, ora
assustados oura perplexos, diante de uma imagem do Vesúvio vomitando fogo.
O viajante recém-chegado a Luanda há-de talvez presumir, ao visitar as casas de
uns e de outros, que a cidade inteira esteve em Itália. (N. C.: 38)
Apesar do desejo de se constituir à feição européia, curiosamente essa sociedade que se
quer altamente sofisticada, agrega tanto pessoas respeitáveis quanto criminosos mandados a
Angola no cumprimento de suas penas. É um círculo social heterogêneo que reforça em Nação
crioula a compreensão do país como uma mistura de elementos diversos e contraditórios. Desde
que preencham as exigências de possuírem posses, saberem ler e escrever, os angolanos passam a
pertencer à alta sociedade, o que não deixa de despertar o interesse de Fradique, que conta a sua
madrinha sobre as pessoas que encontrou em um baile:
Nos salões do palácio misturam-se comerciantes honestos e criminosos a
cumprir pena de degredo, filhos-do-país e louros aventureiros europeus,
escravocratas e abolicionistas, monárquicos e republicanos, padres e maçons.
[...]
É difícil imaginar coleção mais interessante de tipos físicos, psicológicos, até
patológicos, reunida debaixo de um mesmo tecto. (N. C.: 21-22)
Durante toda a narrativa, o leitor irá encontrar no romance de José Eduardo Agualusa
índices dessa heterogeneidade na composição da identidade angolana. Os tipos se misturam, as
convicções ideológicas também; não há qualquer sugestão de que seja possível encontrar uma
identidade homogênea; pelo contrário, é ressaltado o aspecto múltiplo das identificações que
fazem de Angola um país crioulo. Reconhecer essa diversidade implica descartar os binarismos
que traçam linhas nítidas entre civilizados e selvagens, mocinhos e vilões. A recusa à
simplificação pode ser percebida em uma passagem que se refere a um episódio em que é
oferecida a Fradique uma iguaria exótica gafanhotos assados. O comandante do navio negreiro
a caminho do Brasil lhe faz companhia na refeição e relembra as dificuldades que certa vez
passara no mar. Em meio à narrativa, sem que dê maior destaque ao fato, cita o canibalismo
como possibilidade aventada pelos marujos para escaparem à fome “Tinham perdido todas as
provisões e já os marinheiros falavam em matar alguns escravos para os comer.” A ênfase nessa
história está no tipo de alimento que tiveram a partir de então gafanhotos e suas várias
possibilidades de preparo. Os negros, que poderiam ter sido sacrificados, são encarados apenas
como mercadorias ou animais -, sem que seja esboçada qualquer preocupação com sua
condição humana ou com o ato extremamente transgressor. Termina o comandante: “[...] e não só
não perdemos um único escravo como eles chegaram gordos e luzidios e foram todos vendidos
por bom preço.” (N. C.: 69-70)
Ao tocar, com humor, em questões como essa, o texto de Agualusa constrói uma visão
que se propõe desmistificadora da suposta inferioridade dos nativos africanos, comumente
associados ao canibalismo. A imagem da barbárie se desloca e na seqüência da carta a Madame
de Jouarre a pergunta que faz à madrinha se coloca como um misto de ironia e superficialidade:
“Repugna-lhe a culinária angolana?” (N. C.: 70) E segue falando sobre a utilização dos
gafanhotos na culinária desde a Roma e a Grécia Antigas. Novamente, aí, percebe-se o
embaralhamento de fronteiras: hábitos que costumam causar repulsa também existem em
sociedades consideradas superiores e o narrador não deixa de observar que isso acontece na
cultura portuguesa.
As impressões de Fradique Mendes que revelam a permeabilidade entre costumes, crenças
e ideologias se ampliam com o embarque para o Pernambuco. O refinado português, de idéias
avançadas e libertárias, por contingências impostas pelo seu envolvimento romântico com Ana
Olímpia, vê-se levado a sair de Angola em um navio negreiro, contrariando suas convicções
ideológicas. Viaja naquele que talvez seja o último navio a servir ao tráfico de escravos, e isso em
nada diminui seu desconforto com a situação. Assim como os companheiros que conhecera em
Angola, passa a incorporar as contradições que evidenciam a complexidade da história do país.
Colocadas no plano ficccional, elas servem à reflexão questionadora sobre o passado e as
relações que foram se estabelecendo entre Angola, Portugal e também o Brasil, onde irá conhecer
líderes do movimento abolicionista. O envolvimento de Fradique com pessoas e situações tão
peculiares completa a trama que, sem que se confunda com o registro de fatos, propõe uma nova
leitura da história. No navio Nação crioula ele e os amigos africanos atravessam o Atlântico, num
movimento que representa a interpenetração dos três continentes num emaranhado de identidades
fluidas e permeáveis simbolicamente referidas no nome da embarcação.
5.2 DA ÁFRICA AO BRASIL
O trânsito para o Brasil completa o diálogo intercultural proposto em Nação Crioula. Na
prime ira missiva enviada de Olinda, Fradique Mendes conta a Madame de Jouarre o que se
passara durante a viagem forçada após o resgate de Ana Olímpia da casa de Gabriela
Santamarinha e da tentativa de assassinato perpetrada pelo jovem Arcênio para vingar a morte do
pai. A bordo, começa a ter contato com os marinheiros brasileiros, continuando seu processo de
interação cultural: “Segui então o exemplo dos marinheiros, todos brasileiros, todos negros e
mestiços, e estendi a minha rede no tombadilho passando a dormir sob as estrelas.” (N. C.: 71)
Essa assimilação de costumes, entretanto, não elimina a sensação de estranhamento e também
fascínio - que o acompanha desde a chegada a Angola. As atividades adivinhatórias de um
escravo lhe parecem verdadeiras e, de fato, serão confirmadas no desenrolar da narrativa, sem
que Fradique busque apresentar uma justificativa racional para isso. Também, já em Olinda, não
deixa de registrar elementos da paisagem que lhe parecem surpreendentes:
As tardes aqui morrem bruscamente, violentamente, num largo incêndio que
depressa se desfaz em cinza e em melancolia. Mas, ao contrário do que acontece
na África Ocidental, ao contrário daquilo que eu sempre espero que aconteça, o
sol não mergulha no mar [...]
Sentado nesta mesa vejo a cidade, as casas pintadas de cores loucas, os palacetes
coloniais, as igrejas barrocas e as palmeiras altas, ondular pelos morros em
direção ao abismo. (N. C.: 67)
Não obstante as diferenças que observa, identifica pontos em comum com a vida em
Angola, o que indica a mistura de dados que unem os dois países : “Nas ruas respira-se o mesmo
odor melancólico que me surpreendeu em Luanda”. Não se atenua, porém, sua visão crítica sobre
o que vê e, mais uma vez, seu olhar de estrangeiro sempre dirigido pela perspectiva
contemporânea do autor não deixa de apontar os contrastes gritantes que tornam visível o
grande fosso que separa ricos e pobres no Brasil e também em Angola. Por isso, os cheiros da
cidade se confundem com a impressão de decadência que levam Fradique a se referir a “um
entorpecimento que se transmite das pessoas para as casas, como se toda a população estivesse já
morta e a cidade em ruínas.” E continua, sem deixar de revelar sua indignação: “E no entanto há
aqui bairros opulentos. Os ricos são odiosamente ricos e ainda mais ricos e odiosos parecem ser
por contraste com a extrema miséria do povo. (N. C.: 79)
Essa classe abastada isso logo fica evidente para Fradique Mendes assim como a elite
luandense, terá a Europa como padrão ideal. Ao ser chamado por um amigo para viajar com ele
ao recôncavo bahiano, ouve como incentivo a que aceite o convite uma justificativa que sintetiza
a alienação que predomina nas cidades: “é uma oportunidade para estudar o Brasil verídico,
autêntico, o Brasil brasileiro, e não este que por aqui se entedia, envergonhado da sua natureza e
tentando estupidamente transformar-se num país europeu.” (N. C.: 80-81)
Na perspectiva assumida por Agualusa, esse Brasil que não pode ser percebido nos salões
de Pernambuco, é exatamente o que assume sua identidade heterogênea, formada não apenas de
elementos europeus, mas também populares e africanos, ou seja, que assume sua identidade
crioula. Na descoberta do país mestiço, continuamente Fradique Mendes irá encontrar as mazelas
sociais frutos da escravidão e entrará em contato com personalidades que marcaram a campanha
abolicionista no Brasil. Ao alforriar seus escravos, conhece José do Patrocínio e no relato que faz
a Eça de Queirós não deixa de anotar as peculiaridades de sua biografia é filho de um padre
dono de escravos e em sua oratória critica duramente a Igreja. A simpatia pelos abolicionistas lhe
valerá a perseguição de um assassino profissional que, em uma reviravolta que remete àquelas
que facilmente se encontram nos enredos folhetinescos, terá a vida salva pelo próprio Fradique
Mendes quando em viagem a Portugal. Andando pela rua, o português evita que um homem seja
morto por uma caleche desgovernada. Coincidentemente, ele é o assassino que está a sua procura
e que, agora, se considera impedido de cumprir o serviço, o que comicamente não deixa de
lamentar, enquanto conversam em uma cervejaria:
[...] Andei todo esse tempo à sua procura, mas só hoje o consegui encontrar. Ia
matá-lo quando apareceu o carro.” Fez uma pausa, bebeu mais um gole, e depois
murmurou tristemente olhando-me nos olhos:
- Agora já não o posso matar e estou desonrado. Não sei o que devo fazer.
Fiquei com pena do homem:
- Lamento muito tê-lo salvo disse Se soubesse que era V. tinha ficado quieto.
(N. C.: 115)
Livre das ameaças da morte encomendada, Fradique Mendes, repetindo o destino que lhe
havia traçado Eça de Queirós, vem a falecer em Paris. Essa informação aparece nas páginas de
Nação crioula através da citação direta de A correspondência de Fradique Mendes,
67
colocada no
romance logo após a última missiva, enviada justamente a Eça na qual recusa o pedido do amigo
para escrever um artigo sobre “A Situação Actual de Portugal em África”. Como mo tivo de
recusa, faz novas críticas, desta vez ao colonialismo português e à imagem de grandeza que os
portugueses formaram sobre si mesmos. A carta de Fradique assume o tom desmistificador, e
também amargurado, de quem percebe toda a extensão da decadência do projeto de expansão
portuguesa:
Receio, meu bom amigo, não ser do interesse de Portugal que o mundo conheça
a presente situação das nossas colónias. Nós, Portugueses, estamos em África
por esquecimento: esquecimento do nosso governo e esquecimento dos governos
das grandes potências. Qualquer ruído, mesmo o pequeno rumor de um pequeno
artigo na Revista de Portugal, e corremos o risco de que a Inglaterra descubra
que no território português da Zambézia não há Portugueses e lá ficaremos nós
sem a Zambézia! (N. C.: 131)
68
A referência à morte de Fradique não é, ainda, o final do livro, que se fecha com a única
carta escrita por Ana Olímpia - novamente viúva e de volta a Angola - ao amigo Eça de Queirós.
Nela claramente se revela o caráter ficcional de todo relato, pois o que até então pareciam ser as
experiências de Fradique é desvelado por Ana Olímpia como o entrecruzamento entre o vivido e
67
Eis a citação: “Assim, cheios de idéias, de delicadas ocupações e de obras amáveis, decorreram os
derradeiros anos de Fradique Mendes em Paris, até que no inverno de 1888 a morte o colheu sob aquela
forma que ele, como César, sempre apetecera inopitatum ataque repentinam. (QUEIRÓS, 2001, p. 85).
Em Nação crioula, o trecho sofre um acréscimo: “(...) O dr. Labert declarou que fora uma forma
raríssima de pleuris.E acrescentou, com um exacto sentimento das felicidades humanas: “Toujours de la
chance, ce Fradique.”(N. C.: p. 135)
68
Em sua recusa, Fradique Mendes faz alusão ao Ultimatum britânico, entregue aos portugueses em 11 de
agosto de 1890, exigindo a retirada militar do território que hoje corresponde ao Zimbabwe na época,
território situado entre as colônias de Angola e Moçambique. A fragilidade de Portugal frente à
Inglaterra desencadeou uma grande crise que atingiu profundamente a família real, o que levaria, por
fim, à implantação da república em 1910. O Ultimatum foi determinante para os rumos que a política
portuguesa tomaria a partir de então, sendo decisivo, inclusive na perpetuação da imagem do país como
império colonial.
o imaginado. As cartas formam um romance - e ela não deixa de ressaltar -, sem correspondência
exata com a realidade: “[As cartas] contam uma história que talvez a si, e aos leitores europeus,
pareça um tanto extraordinária. Não é a história da minha vida. É a história da minha vida
contada por Fradique Mendes.” (N. C.: 138) Insere-se aí claramente no discurso ficcional a
tematização de uma das reflexões mais caras à crítica e aos autores da pós-modernidade: o caráter
de invenção de qualquer narrativa. No plano do romance, as cartas escritas por Fradique
supostamente seriam fiéis aos fatos ocorridos, entretanto, essa aparência de realidade é desvelada
por uma das personagens, que se sabe objeto de criação. Se o relatado nas missivas não
corresponde à realidade, a fala de Ana Olímpia atinge todo o conjunto de cartas e chega ao
próprio ato da escrita. Mesmo com a presença de dados e personagens referidos em documentos
históricos, tudo no texto é ficção montada a partir das conviçcões e propósitos de seu autor, seja
ele Fradique Mendes ou José Eduardo Agualusa.
O material que compõe o romance se insere na esfera daquilo que possui o aspecto de
verdadeiro, ou seja, do que é verossímil. O texto se constrói, então, como uma outra forma de
captar o real, permitindo maior espaço para o exercício da fantasia. Essa reinvenção, embora livre
da exigência de comprovação, não exclui, no entanto, a proximidade com o efetivamente vivido
objeto declarado da história. A reapresentação do passado, feita sob o estatuto ficcional, permite
sua leitura pelo presente, constituindo-se a veracidade na contextualização do que foi ou do que
poderia ter sido.
É com o entrelaçamento de histórias, personagens, culturas e textos que Nação crioula
afirma a possibilidade de compreensão das relações luso-afro-brasileiras. Ao se apropriar de um
texto literário português, situando seu protagonista em um contexto diverso daquele da obra
primeira, Agualusa realiza um duplo movimento de afastamento e de aproximação com a
narrativa original. Ele ousa dessacralisá-la, mas ao mesmo tempo, quando a toma como ponto de
partida para sua própria escritura, presta-lhe uma homenagem, reconhecendo sua importância
para o universo cultural de língua portuguesa que, como percebe o leitor mais atento, defende ser
fundamentalmente crioulo.
6 FICÇÃO E ENTRECRUZAMENTOS: JOGOS INTERTEXTUAIS
Barnabé e Oribela são assombrados por sonhos, visões, medos e angústias, que ora os
aproximam ora os afastam dos preceitos morais e religiosos da época. Podemos perceber que,
assim como a personagem de Agualusa, as observações que fazem extrapolam os limites do
século em que se situam, revelando marcas que conduzem às reflexões de seus autores. Podemos
estender a Peregrinação de Barnabé das Índias e a Desmundo o que diz Maria Nazareth Soares
Fonseca (FONSECA, 2001, p. 258) sobre a agudeza crítica que se lê em Nação crioula: “a visão
crítica com que muitos fatos são descritos exibe o descompasso entre os fatos relatados e a
interpretação deles feita pela personagem.” A presença do autor, assinalada por um conjunto de
marcas, entre elas a posição ideológica, pode ser percebida na própria concepção de cada um dos
romances, pois o discurso se faz sempre a partir de sua inserção no meio social e das
contraposições que faz às suas regras, crenças e fabulações. Como observa Mikhail Bakhtin
(1998, p.133):
[...] uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista
particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social. [...] Desta
maneira, até mesmo um esteta, que elabora um romance, torna-se, nesse gênero,
um ideólogo que defende e que experimenta suas posições ideológicas, torna-se
um apologista e um polemista.
Ao centrarem suas narrativas em personagens desvalidas, Mário Cláudio e Ana Miranda
os colocam usando de estratagemas para vencer a brutalidade, a injustiça e a violência. Barnabé,
judeu que esconde sua origem, se faz passar por cristão-novo para fugir à perseguição religiosa.
Oribela, órfã obrigada a aceitar como marido um homem por quem sente asco, tratada como um
animal, assim como as nativas sujeitas ao estupro e à escravidão, é mantida presa, às vezes
amarrada, na tentativa frustrada do marido e da sogra de domesticá-la. Tanto a personagem de
Mário Cláudio quanto a de Ana Miranda se distanciam da figura do herói explorado, resignado,
que vence as adversidades através da correção do caráter e da coragem. O desespero e a loucura
os orientam na tentativa de escaparem do destino traçado por sua própria condição de excluídos
sociais. A viagem de Barnabé parece a ele próprio destituída de razão, entretanto, não há mais
lugar para ele em Portugal na verdade, sua pobreza o colocou sempre à margem nos lugares
onde vivera. Os delírios freqüentes acabam por alçá-lo a uma nova situação: embora continue
miserável, adquire uma espécie de santidade, resultado de sua navegação interior. Oribela,
também “doidinha”, como diz a índia Temericô, rejeita o que o bom-senso da época recomenda e
desafia continuamente os limites impostos à sua natureza feminina. Ambos utilizam estratagemas
que contrariam a ordem social. Barnabé, antes de embarcar, usa de golpes desonestos para
sobreviver; Oribela, menos astuciosa, se mostra mais rebelde e intensamente determinada, o que
a leva a roubar o marido e a fugir de casa.
As crenças religiosas estão entranhadas no grumete e na órfã, sendo fundamentais ao
percurso que irão fazer. Na trajetória de Barnabé, o judaísmo é elemento fundamental. Fiel às leis
da Torá, seu guardião passa a ser o anjo Rafael, de quem tem constantes visões, como no
episódio em que os marinheiros se defrontam com uma tormenta:
E extasiava-se Barnabé, flutuando de costas, tão vivo como nunca, esperando
dos companheiros o socorro de que se achava seguro, iluminado por essa
placidez que substitui a inicial travessia dos territórios da morte. Terminada a
imprecação a Iahvé, colhera-o da vertigem de sombras um anjo perfeitíssimo, e
atentando na face que defronte se lhe postava, entendera o rapaz que não era
senão o da figura da proa, representativa do glorioso advogado da sua barca.
(P.B.: 173)
Seus conflitos interiores parecem se resolver através da loucura, que o torna respeitável
aos olhos dos companheiros que passam a ouvir com atenção suas orientações e profecias.
Oribela, moça criada em convento, teme aqueles que não são cristãos; para ela seres perigosos e
amaldiçoados, com chifres na cabeça, assemelhados ao demônio:
Agradeci não ter recebido o mais ruim de todos os males, que fora ser escolhida
para casar com o mouro para ter minha alma direta ao fim de todos os infernos e
fiquei um grande tempo pensativa com o sangue gelado de medo do que podia
ter o mouro, chifres debaixo do chapéu e patas nas botas de cordovão. (D.: p. 61)
Apesar de seus temores, Oribela se apaixona pelo mouro que lhe dá abrigo quando tenta
escapar do marido. O medo, o peso de se sentir pecadora por se unir a um homem impuro se
misturam ao desejo e ao amor. O filho, fruto do relacionamento extraconjugal, nos parece ser a
conjunção desses sentimentos opostos, que a atormentam intensamente, já que a ela mesma seus
sentimentos e atitudes não são compreensíveis.
Outro elemento importante a aproximar os dois textos é a presença de velhos, que mantêm
viva a memória do que ficou perdido. Em Peregrinação de Barnabé das Índias, o Velho é Vasco
da Gama que, com os olhos já baços pela idade, relembra o que vivera ao receber a visita de
Barnabé. Os dois, por óticas diferentes, revelam ao leitor suas lembranças, que permitem
conhecer, redescobrir e repensar o passado. O romance se inicia com Vasco da Gama e em sua
própria figura estão colocados os índices de sua trajetória no mar:
Um velho no Inverno é a morte soprada, o tempo dorido, os fantasmas que a
paciência esfarrapou. Põem-lhe aos pés a braseira, remexe as cinzas à procura
de um rosto mais calmo, quieta-se nos reposteiros da sombra que o habita.
Agasalha-se o velho no capote de castorina, puído nos lugares do atrito dos
gestos, salpicado pelos oceanos que imaginar. (P.B.: p.13)
Barnabé, maltrapilho e pedinte, traz na face e na postura a altivez que revela a grandeza
do feito que havia realizado, o que não escapa a Vasco da Gama quando o recebe em sua casa e
escuta sua arenga: “Espantou-se Vasco do discursante, apoiado ao cajado de andarilho, erecto
junto à fonte do claustrim, alheio aos flocos que se lhe esfarelavam pelos andrajos, conformando
um profeta de alguma bíblia iluminada.” (P. B.: 43)
Em Desmundo, uma mulher, cujo epíteto remete exatamente à sua condição de velha,
acompanha as órfãs na viagem, sendo por elas respeitada devido à sabedoria que comumente se
atribui aos de idade mais avançada. Aos jovens, a experiência dos que muito viveram parece ser
um guia seguro para a existência correta:
Que gente somos? Como andamos destarte? Deves olhar as ociosas por dentro e
saber o que se referem e se igualar na prudência aos velhos. [...]
Sei que foi a Velha boa freira do mosteiro da Anunciada, em exercícios de
virtude, boa religiosa, boa estudante, com fama de sabedoria e quantas vezes
seus moestamentos soaram em minhas orelhas e endireitei meu coração porque
incorri em graves tentações a minha alma muito danosas, porque sempre a vi
mostrando os erros por que padecia. (D.: 86-7.
Curiosamente, a esse papel de reiterar os códigos sociais, se junta um outro resultado da
longa experiência. Apesar de acreditar que a condição feminina é por natureza servil, a voz da
Velha é de protesto e denúncia contra a hipocrisia e a violências das autoridades locais,
assumindo uma postura divergente das normas estabelecidas:
Andara dizendo umas coisas da terra, do bispo vil, do governador, que os erros
das gentias eram menores que os do cristão, as putas eram ovelhas de Jesus
assim como as casadas, cujas eram putas de um homem só, ficavam as pessoas
atônitas daquilo que ela falava e de querer fazer sua própria justiça. (D.: 132)
No romance de Mário Cláudio, Vasco da Gama, já velho, embora se beneficie da
valorização de seus feitos, tem a sabedoria de reconhecer que as conquistas marítimas foram
realizadas pelos homens comuns e esquecidos, como Barnabé. Ao ajudá-lo a descalçar a bota, o
antigo grumete ouve de seu amo o que ele próprio ainda não havia percebido:
[...] amochando o de Ucanha para satisfazer o seu amo, um brando toque sentiu
nos cabelos encanecidos, e a roufenha voz que estas coisas lhe murmurava:
“Deus te abençoe, meu rapaz, que foste tu, foste tu, e mais ninguém, quem essas
Índias na verdade descobriu”. (P.B.: 278)
A percepção dos velhos é, pois, um forte componente de Peregrinação de Barnabé das
Índias e Desmundo. Outro elemento determinante é a lembrança, em ambos apresentada como re-
criação, reconstrução do que foi vivido, imaginado e desejado.
69
Isso é claramente posto no
romance de Mario Cláudio, em que o fio da memória é o condutor da narrativa:
E defronte das fímbrias de Cabo Verde, esfregando os olhos como se de um
longo torpor tivesse acordado, relembrava o rapazote os capítulos de uma
história que a gente vária haveria de narrar. [...] Perguntassem-lhe que saúde
trazia da Índia, e abanaria a cabeça numa grande dúvida, conhecedor de que
autêntico se não manifesta o que nos não sobrevive na imaginação. (P.B.: 248)
Em Desmundo, a protagonista revela: “Falava eu de minhas relembranças, do modo que
alembrava na minha fantasia e se não, em falsidades, mas formosas, de seduzir meu coração
69
A respeito do caráter de invenção da memória, José Moura Gonçalves Filho, em seu texto “Olhar e
memória”, sintetiza: “[...] no campo da memória, ocorre que todo empreeendimento foi tentativa, todo
projeto foi voto, anseio, desejo. Aquilo que apareceu como fracasso, desvio, interrupção, aquilo que
apareceu como antinomia, como contradição lógica ou anti-sistêmica, que se deveria corrigir ou
suprimir, a memória pode reencontrar como impasse existencial ou conjuntural, e que pode inspirar,
partido.”
(D.: 23) A questão da memória também é fundamental no texto de Agualusa - o que se
evidencia na escolha do discurso epistolar, memorialista em sua essência - embora se coloque de
outra forma. Em Nação crioula, Fradique, tal qual retratado por Eça de Queirós, é cidadão
respeitado, mas, agora, por sua postura não convencional, passa a ser perseguido juntamente com
os revoltosos a quem se une, apesar de durante algum tempo ter escravos em sua posse. Para
proteger a própria vida, se envolve em disputa de esgrima, é guardado por capoeiristas e, frente à
violência dos adversários chega a jurar vingança. As memórias recentes de suas inusitadas
experiências são transpostas para as cartas que envia a Madame de Jouarre, à amada Ana Olímpia
e ao amigo Eça de Queirós. Assim, os acontecimentos a que se reporta são recentes dentro da
seqüência narrativa, a memória parece confundir-se com o instante anterior. Se o personagem não
é um velho, possui a sabedoria do intelectual reconhecidamente arguto e brilhante. Esse perfil lhe
permite julgar duramente o processo de colonização, deixando perceber o revisionismo que hoje
é a tônica dos estudos históricos.
70
Em sua última missiva a Eça de Queirós, não há meias
palavras:
A nossa presença em África não obedece a um princípio, a uma idéia, e nem
parece ter outro fim que não seja o saque dos africanos. Depositados em África
os infelizes colonos portugueses tentam em primeiro lugar manter-se na sela,
isto é, vivos e roubando, pouco lhes importando o destino que o continente leva.
E Portugal, tendo-os depositados, nunca mais se lembra deles. (op. cit., p. 132)
Juntamente com essa abordagem iconoclasta da história portuguesa e de suas colônias,
nos três romances pode ser identificada a mistura de gêneros, uma das características da produção
romanesca. Neles se conjugam, entre outros, relatos históricos, narrativas de viagens, epístolas,
desafinado a inteligência , fazendo inventar um novo ponto de vista e novas ousadias.”(GONÇALVES
FILHO, 2002, p. 96.)
70
Obviamente, as memórias de Fradique trazem as marcas do olhar crítico do final do século XX.
textos bíblicos e poéticos, assim como personagens e / ou fatos fictícios colocados lado a lado
com outros de existência comprovada historicamente. Em Peregrinação de Barnabé das Índias e
Desmundo, mesclam-se, ainda, as linguagens das cantigas e trovas populares. O conjunto desses
elementos heterogêneos na construção da linguagem configura o que Mikhail Bakhtin denomina
plurilingüismo.
71
Cumpre aqui retomar suas colocações sobre como se diferenciam e também se
aproximam os discursos do narrador e do autor, num movimento que permite revelar as
contradições, os preconceitos e a hipocrisia da sociedade. As vozes que falam no romance, longe
de serem monológicas, são plurais (Bahktin, 1998, p. 118):
O discurso desses narradores é sempre um discurso de outrem (no tocante ao
discurso direito real ou virtual do autor) numa língua de outrem (no tocante à
variante da linguagem literária, à qual se opõe a linguagem do narrador).
[...]
O autor se realiza e realiza o seu ponto de vista não só no narrador, no seu
discurso e na sua linguagem (que, num grau mais ou menos elevado, são
objetivos e evidenciados), mas também no objeto da narração, e também realiza
o ponto de vista do narrador. Por trás do relato do narrador nós lemos um
segundo, o relato do autor sobre o que narra o narrador, e, além disso, sobre o
próprio narrador.
Outro ponto importante a destacar é a intricada rede de citações que constituem as tramas
narrativas. Em Peregrinação de Barnabé das Índias, se destaca o diálogo estreito com o texto de
Camões e com a Torá. Em Desmundo, podem ser percebidos principalmente ecos da epopéia
camoniana, da famosa carta escrita por Pero Vaz de Caminha e dos autos vicentinos. No caso de
Nação crioula, o próprio protagonista é uma citação literária, uma tradução (ou traição, no
71
Mikhail Bakhtin considera ser essa uma das características principais do romance. O termo
plurilingüismo é utilizado por ele em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, sendo
assim sintetizado: “O plurilingüismo introduzido no romance [...] é o discurso de outrem na linguagem
de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma
palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas
intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor.”
(BAHKTIN, 1998, p. 127)
sentido benjaminiano) do acervo cultural português.
72
No início de Nação crioula, a personagem
que chega a Angola parece ser a mesmo do texto de Eça de Queirós. Entretanto, à medida que se
insere no contexto angolano, torna-se outra. A recriação nada inocente realizada nos três
romances, mais que uma homenagem, é um modo de reler o cânone, de reinterpretá-lo, de tratar o
passado como rastro, resíduo. (PEREIRA, 2003, passim) Desse modo, Mário Cláudio, Ana
Miranda e José Eduardo Agualusa tocam não só no relato histórico entronizado, mas também nos
textos da tradição.
Em sua escrita, Peregrinação de Barnabé das Índias, Desmundo e Nação crioula: a
correspondência secreta de Fradique Mendes assumem claramente o diálogo que todo texto
mantém com outros e que integram um repertório literário que está sempre à disposição do autor
em seu trabalho de escrita. Esse contato intertextual, mais propriamente um jogo de aproximação
e afastamento, não deve ser confundido com cópia ou imitação. A presença de elementos comuns
tanto no enredo quanto em personagens e linguagem encontram sua grande metáfora em “Pierre
Menard, autor del Quijote”, de Jorge Luis Borges, em que o processo de produção literária é
oferecido à reflexão. Nesse conto está a imagem do escritor-leitor, que continuamente consome,
assimila e recria o que lê, num processo contínuo de transgressão. Embora o texto escrito por
Menard reproduza palavra por palavra o romance de Miguel de Cervantes, não é o mesmo texto
já que é produto de uma leitura pessoal, feito em outra época e país, escrito por outro autor. Não
resulta em dívida com os textos precedentes, enriquecidos pelas novas leituras e reescritas de que
são objetos.
72
Para Walter Benjamin, traduzir implica afastar-se do texto original, pois implica desorganizá-lo e
depois proceder a sua reestruração através da qual ele adquire novos sentidos. Ou seja: “a tradução toca
fugazmente e apenas no ponto infinitamente pequeno do sentido do original, para perseguir, segundo a
lei da fidelidade, sua própria via no interior da liberdade do movimento da língua. (Op cit. LAGES,
1999, p.57)
Levantados alguns pontos de aproximação entre as obras
73
, não poderia faltar a indicação
da existência de diferenças que podem ser detectadas, tanto no estilo e na forma quanto na
linguagem e nos sentimentos que permeiam os três textos. O livro de Mário Cláudio é maior, com
descrições minuciosas, que tocam nos aspectos essenciais de cada personagem. O de Ana
Miranda apresenta parágrafos curtos, em geral de uma página, com cada capítulo sendo aberto
por uma figura de sereia desenhada em diferentes posições. Ana Miranda e Mário Cláudio
utilizam vocabulário próprio dos quatrocentos, mas o estilo do português utiliza mais a ironia e a
narrativa se constrói na confluência da primeira e da terceira pessoas. No livro de Ana Miranda,
apenas Oribela narra suas desventuras, enquanto Agualusa mantém o formato epistolar escolhido
por Eça de Queirós, mesclado a outros gêneros.
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, temos a voz de quem sempre foi silenciado em
posição superior a de um outro tipo de personagens estereotipadas pelas narrativas tradicionais:
os nativos. Barnabé, apesar da condição humilde, integra o grupo de colonizadores, deixando
perceber o quanto de fato as identidades são plurais e relativas. Diante do menino africano
recolhido no navio e no episódio em que mulheres lhe são oferecidas, fica evidente que seu papel
está mais próximo do de dominador. Em Desmundo, a voz silenciada é de uma mulher, objeto e
propriedade do marido e senhor. O ponto de vista é feminino e suscita a questão da pertinência ou
não de ler o romance sob o aspecto do gênero.
74
Em Nação crioula, o protagonista, ainda que
perseguido politicamente, mantém a posição de interlocutor privilegiado de importantes figuras
da vida cultural portuguesa, como o próprio Eça de Queirós. Mesmo quando perseguido,
73
Há outros pontos que não são mencionados por não interessarem ao propósito deste trabalho.
74
Embora seja uma questão interessante, não cabe aqui discutir a pertinência ou não da categoria de
gênero.
situação é mais confortável e segura do que a de Ana Olímpia, por exemplo. Fradique é branco,
europeu, modelo de homem cosmopolita e elegante.
As obras inseridas no cânone ganham outros sentidos através de sua apropriação pelo artista
que a recria. Ao invés de cópia, o texto segundo é reflexão ao mesmo tempo iconoclasta e crítica
do original, como observa Silviano Santiago (2000, p. 56) no ensaio “Eça, autor de Madame
Bovary”: a nova visão do artista “surpreende o original em suas limitações, desarticula-o e
rearticula-o consoante sua visão segunda e meditada da temática apresentada em primeira mão na
metrópole.” Esse processo de citação, estreitamente ligado ao trabalho de tradução, primeiro
desorganiza e desestrutura o texto original, promovendo depois a reorganização do material
reestruturado em um outro contexto. A tradução, assim, tem seu sentido ampliado, passando a ser
compreendida para além dos limites da transformação interlingual de um texto, referindo-se
também ao processo de leitura e reescrita, em direção à intertextualidade. A fidelidade ao texto
original cede lugar à transgressão, pois se é dele que se parte o que revela sua importância no
universo literário em que o autor circula -, ele é produto de outro olhar, de outras circunstâncias
que o tornam diferente do original.
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, é evidente o diálogo com Os Lusíadas, com
passagens que remetem diretamente a episódios do longo poema épico, como a partida do
Restelo, o confronto com figuras do Oriente, as dificuldades impostas pelo mar, as figuras
ameaçadoras Adamastor, em Os Lusíadas; a hidra no romance de Mário Cláudio. O título do
romance também remete a outro texto fundamental do período de expansão: a Peregrinação, de
Fernão Mendes Pinto, escrita durante o século XVI e publicada em 1614. A narrativa é conduzida
por três narradores: Vasco da Gama, Barnabé e um narrador em terceira pessoa, que conta mais
longamente a história do grumete e dedica menos espaço às experiências do Gama. A ida às
Índias, embora siga o mesmo roteiro sob as ordens do mesmo comandante não é a mesma posto
que o foco se desloca de Vasco da Gama para o grumete anônimo e isso modifica o significado
da viagem. A presença de diferentes tipos de discurso, tanto sociais quanto literários, permite
identificar em Peregrinação de Barnabé das Índias a característica que Mikhail Bakhtin chama
de polifonia. A pluralidade de vozes, identificadas em suas especificidades não comprometem a
unidade e a coerência do romance, pelo contrário, tornam-no mais consistente do que o texto em
que a diversidade lingüística é apagada: “A essência da polifonia consiste justamente no fato de
que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de
ordem superior à da homofonia.” (BAKHTIN, 2005, p. 21). Através da polifonia, se introduzem
no romance idéias e crenças que a narrativa irá desvelar, validando-as ou não.
Também na teoria bakhtiniana, a presença no texto de variedades lingüísticas só deve ser
considerada sob o prisma da criação artística, ou seja, sua utilização não é a repetição do modo
como se realizam no cotidiano, mas uma rearticulação das formas originais em um novo
contexto. Do mesmo modo, as citações literárias fazem com que o texto primeiro passe a ser
outro, continuamente renovando a tradição literária. A relação estabelecida, portanto, é entre o
que já está instituído e o novo, entre o consagrado e o que desafia o leitor. Nas palavras de
Bakhtin (2005, p. 106),
Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais estáveis,
“perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos
imorredouros da archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva
graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualização. O gênero
sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero
renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento [...] O gênero vive
do presente mas sempre recorda o seu passado.
75
75
Em nota, o tradutor de Bakhtin esclarece o uso do termo archaica como Antiguidade ou traços que são
próprios dessa época.
Tal renovação, claramente percebida em Peregrinação de Barnabé das Índias, está colocada
também em Desmundo e em Nação crioula. No romance de Ana Miranda, as viagens marítimas
estão presentes, ainda que na memória da protagonista que a todo custo tenta refazer o caminho
de volta. A época é das Grandes Navegações e sob a perspectiva de uma personagem também
anônima, o texto de Ana Miranda traz ao leitor uma narrativa que, ao ser escrita em primeira
pessoa, se avizinha do testemunho, dado pela voz feminina, comumente apagada dos relatos da
colonização. A essa voz se juntam outras das quais a narradora se apropria, revelando os
diferentes pontos de vista dos diversos sujeitos sociais. Discursos e perspectivas múltiplas se
conjugam na ficcionalização da violência vigente no início da colonização e que, principalmente
sob outras formas, ainda persiste, como continuamente denunciam os movimentos e estudos
feministas.
A referências intertextuais utilizadas por Ana Miranda são várias e não é difícil perceber
ecos da Carta de Pero Vaz de Caminha na descrição que Oribela faz da nudez das indígenas:
“[...] não pude deixar de levar o olhar a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser
assim também eu, era como fora eu a desnudada, a ver em um espelho.” (D.: p. 39) A utilização
da palavra vergonhas para indicar as partes íntimas do corpo é bastante conhecida no texto de
Caminha (1965, p. 87): “[...] heram aly xbiij ou xx homees pardos todos nuus sem nhuua cousa
que lhes cobrisse suas vergonhas.”
76
Menos evidente é o diálogo estabelecido com a obra de Gil
de Vicente em que os personagens comumente encaram tipos sociais, sem que haja referência a
seu nome próprio. Em Desmundo, essa característica se sobressai na Velha, denominação que
remete não só a sua idade, mas ainda ao conseqüente conhecimento das regras sociais.
76
No texto publicado pela editora Agir, Homees e nhuua com til respectivamente no segundo e no
segundo u, em formatação que não se conseguiu reproduzir neste trabalho.
Em Nação crioula, igualmente se encontra o jogo intertextual - a figura de Fradique Mendes,
ainda que possua o perfil criado por Eça de Queirós, é outra personagem, colocado em situações
diferentes daquelas que aparecem no texto do autor português. No início, ao chegar a Angola, sua
caracterização é a de homem cosmopolita, esnobe e desdenhoso assim como está desenhado no
texto primeiro. À medida que o enredo se desenvolve, ele se torna o Fradique de Agualusa que,
situado no século XIX, permite ao autor reavaliar o passado a partir de suas inquietações do
presente. Esse mecanismo é bastante significativo, como Linda Hutcheon (1988, p. 193) não
deixa de destacar: “Uma das lições do pós-modenismo é a de que, embora todo o conhecimento
do passado possa ser provisório, historicizado e discursivo, isso não que dizer que não damos
sentido a esse passado.” Em Nação crioula, a retomada de episódios que fazem parte da história
luso-afro-brasileira encontra em Fradique Mendes o fio condutor da narrativa que propõe a
mestiçagem como emblema do religamento de origens históricas muitas vezes ignoradas por
Portugal, Angola e Brasil. Agualusa também se utiliza de recursos textuais típicos do folhetim e
da literatura de massa, oferecendo ao leitor elementos já conhecidos, o que não o impede de
inserir o novo em sua incursão no gênero romanesco.
Peregrinação de Barnabé das Índias, Desmundo e Nação Crioula se apropriam também da
literatura de viagens, mas isso se faz com o rompimento do protocolo de sua escrita. A escolha de
personagens inusitadas como protagonistas já é um índice de que, embora as situações do enredo
estejam situadas no passado, a perspectiva da narrativa é contemporânea. Sob o olhar dos tempos
pós-modernos, a tradição literária e a história são revisitadas e reescritas segundo as indagações e
angústias do final do século XX e dos lugares em que seus autores estão posicionados. Mário
Cláudio é português e o passado colonizador de seu país, perpetuado através tanto da
historiografia quanto da produção literária, é determinante na escolha do enredo e na composição
das personagens. José Eduardo Agualusa e Ana Miranda, por sua vez, têm sua origem em ex-
colônias portuguesas Angola, país em processo de consolidação após longo período de guerra
civil, e Brasil, onde a história oficial ao longo de séculos mitificou o período de colonização, em
geral, chegando a criticar, no máximo, a violência contra índios e negros, sem mencionar aquela
imposta às mulheres.
Na composição de cada um dos romances há experiências pessoais subjacentes, propostas
estéticas e ideológicas que, se propõem releituras históricas e literárias, o fazem por caminhos
diferentes. São três olhares singulares, a relatar viagens por oceanos e terras alcançados por
Portugal e, principalmente, pelos protagonistas que, juntamente com o percurso geográfico,
realizam uma significativa jornada interior.
7. CONCLUSÃO
A temática das viagens ultramarinas tem sido uma das referências mais importantes da
literatura portuguesa, o que pode ser observado em relatos, poemas ou prosa ficcional. A
relevância do lugar que ocupam na produção artística e nos documentos históricos encontra
justificativa no papel fundamental que exerceram na expansão do império cujo declínio já pode
ser percebido no século XVI. As histórias dos viajantes por oceanos desconhecidos contam sobre
seus medos e sua coragem no enfrentamento dos muitos perigos que o mar sempre oferece.
Falam também das superstições - que tornavam quase mítica a aventura de buscar outras terras
e da ciência utilizada nos empreendimentos marítimos cuja precisão era indispensável ao seu
sucesso.
Assim como os oceanos, as terras longínquas fascinam e ao mesmo tempo se mostram
assustadoras com suas populações de aparência e hábitos diferentes. O desconhecido ganha os
contornos de exótico e, freqüentemente, assume o aspecto demoníaco tão comumente
identificado naquilo que é estranho. O choque cultural inevitável é sentido pelos dois lados e, se
aos olhos dos viajantes personificam a antítese do que é correto e humano, para os povos
ocupados os costumes dos europeus também parecem incompreensíveis. Embora a visão
eurocêntrica consiga se impor pela violência, no processo de colonização as referências culturais
se entrecruzam continuamente, produzindo novas configurações identitárias. Nas narrativas
dessas viagens e dos encontros delas decorrentes, o efetivamente visto e o imaginado se imbricam
na constituição da imagem do grupo a que se pertence e também da idéia que se forma sobre o
outro. A questão da alteridade se encontra, portanto, intimamente relacionada às viagens
ultramarinas que, sob a bandeira de defesa do império e da fé cristã, ajudaram a manter a
economia do reino português.
A utilização pela literatura contemporânea de estratégias textuais usadas nas narrativas de
viagens dos períodos colonial e pós-colonial encontram no conceito de metaficção
historiográfica, adotado por Linda Hutcheon, elementos que permitem discutir sua validade no
contexto histórico do final do século XX. Embora essas narrativas se situem no passado, a
recuperação de episódios históricos marcantes se faz a partir de questionamentos que claramente
refletem as discussões contemporâneas acerca do processo de colonização e imperialismo. Na
esteira das reflexões propostas pelos defensores da “nova história”, a literatura passa a colocar em
cheque o que tradicionalmente era considerado como verdade inquestionável, cuja validade
estaria justificada por materiais recolhidos e organizados por historiadores. Destaca-se, agora, a
questão ideológica que permeia a consideração do que seja ou não relevante como dado histórico
e o conceito de narrativa se mostra adequado à abordagem da história como produto da
elaboração humana, sujeito, portanto, aos interesses e intenções de quem a elabora.
No caso da literatura de língua portuguesa, as festividades em torno dos quinhentos anos das
Grandes Navegações tornaram ainda mais oportuna a releitura e também reescrita - de fatos e
textos que compõem um acervo cultural comum a países que, embora pertencentes a uma mesma
comunidade lingüística, mantêm entre si um desconhecimento incômodo. Falamos
especificamente de Portugal, Brasil e Angola antigo centro colonizador e duas de suas ex-
colônias - países em que as viagens realizadas pelos portugueses são fundamentais à sua
configuração identitária. Os romances que compõem o corpus deste trabalho confirmam esta
tendência revisionista, dialogando tanto com narrativas historiográficas quanto com textos que
integram o cânone literário. A aproximá-los, o jogo intertextual explícito e a visão revisionista; a
separá-los as diferentes trajetórias seguidas por seus protagonistas em viagens que cruzam os
espaços geográficos e também os de seu mundo interior.
Em Peregrinação de Barnabé das Índias, o português Mário Cláudio retoma a viagem de
descoberta das Índias, deslocando o foco principal de Vasco da Gama para a anônima figura de
um jovem pobre e sem perspectivas favoráveis em Portugal. O olhar do autor sobre a personagem
do grumete claramente revela a sua aproximação das idéias que defendem a compreensão da
história como construção coletiva e não como resultado de ações de poucos homens heróicos.
Através do estreito diálogo com o texto camoniano - em que o Gama é a personagem mais
importante, Mário Cláudio, se não destitui de importância a figura do comandante, questiona sua
grandeza, reconhecendo-lhe antes a condição humana que de herói. A Barnabé reserva a trajetória
mais bela e poética, narrando seu percurso que, se é também geográfico, se faz principalmente
em seu universo interior. O contato com ele mesmo e com o outro permite ao jovem de Ucanha
realizar uma viagem mais significativa que melhor se define como peregrinação dado seu caráter
existencial.
Em Desmundo, a brasileira Ana Miranda também privilegia a figura retirada das camadas
populares ao transformar em ficção um dos período mais nebulosos da história da colonização do
Brasil. Poucas décadas após a chegada de Pedro Álvares Cabral, a vida na colônia é determinada
pelos códigos de conduta imposto pelo homem português. Nesse cenário, surge a jovem Oribela
que, juntamente com outras mulheres desvalidas, deixa Portugal à procura de um casamento que
a liberte da condição de pária social. À brutalidade da lógica masculina dominante, ela responde
com rebeldia tanto dos atos quanto das palavras recusando a situação de passividade e
silenciamento que sua condição feminina pressupõe. O contato com os nativos e com o mouro
Ximeno Dias lhe abrirão novas possibilidades de compreensão do mundo, com a reavaliação de
conceitos e crenças que antes da viagem considerava inquestionáveis. Ao mesmo tempo em que
enfrenta o mundo exterior incompreensível em toda sua brutalidade, ela se depara com outro
cenário intensamente perturbador: o da própria interioridade. Também sua trajetória extrapola os
limites geográficos e atinge uma dimensão muito mais ampla que é a do espaço da subjetividade,
dominado pelos medos e desejos reprovados pelo meio social. A relação da narrativa com textos
representativos da literatura portuguesa do período expansionista não deixa dúvida quanto à
interlocução que o romance mantém com as tradições literárias fundamentais à constituição do
pensamento predominante na época, que validava os mecanismos de sujeição dos habitantes das
terras ocupadas, principalmente, das mulheres, consideradas destituídas de capacidade de pensar
e agir com correção.
De modo diferente de Mário Cláudio e Ana Miranda, o angolano José Eduardo Agualusa não
escolhe como personagem principal de seu romance uma figura destituída de prestígio social.
Nação crioula tem como centro a viagem do célebre Fradique Mendes, homem de posses e com
influência no meio intelectual europeu. Conhecido em boa parte do mundo, chega à África, e
depois ao Brasil, graças ao seu espírito aventureiro que melhor o caracteriza como turista que
viaja movido pelo interesse de conhecer o mundo e não pela necessidade de sobrevivência.
Curiosamente decalcado do romance eciano, o português cosmopolita, mantendo a forma
epistolar de A correspondência secreta de Fradique Mendes, narra a sua madrinha, à amada Ana
Olímpia e ao próprio Eça de Queirós suas experiências e reflexões acerca dos costumes e
concepções que revelam as incoerências de dois países formados pela ocupação portuguesa. A
visão de um mundo desconhecido é chocante para Fradique, que encontra na ironia e no humor
uma forma de desvelar os absurdos de uma organização política e social orientada pelo
pensamento eurocêntrico. A idéia de crioulidade é apresentada como proposta para a construção
do país em outras bases, construídas a partir do restabelecimento dos laços entre as nações do
mundo luso-afro-brasileiro.
Os três romances apresentam a inequívoca visão resultante das discussões contemporâneas
sobre história, identidade cultural e intertextualidade presentes na agenda pós-moderna. A
utilização do passado como tempo da narrativa é feita sob as dúvidas e os questionamentos do
presente, servindo como recurso não para se tentar reconstruir o que passou o que é
inteiramente impossível -, mas para buscar respostas para situações atuais que dizem respeito à
importância das minorias e à formulação da historiografia oficial. A linguagem utilizada revela a
consciência dos mecanismos de citação, componentes de todo texto literário. De modo
intencional, o diálogo se faz com textos que compõem o repertório cultural de língua portuguesa
e isso, se revela a desmistificação do cânone, já que sua apropriação se faz sob novas
perspectivas, também é sinal do reconhecimento de sua relevância, que ultrapassa a época em que
foram produzidos. O jogo se estabelece entre presente e passado, valorização e transgressão e,
ainda, entre as diversas vozes sociais que falam nas páginas desses romances. Seja através do
discurso direto ou da emergência da multiplicidade na fala dos narradores, o discurso ficcional
rompe com a hegemonia e abre espaço para o dialogismo tão valorizado por Mikhail Bakhtin.
Viajantes europeus que chegam a um novo mundo cujo desenho lhes parece estranho e
incompreensível, Barnabé, Oribela e Fradique Mendes realizam trajetos que diferem entre si.
Localizados em épocas distintas da história, essas personagens vivenciam a aventura da viagem
sob ângulos diferentes, segundo sua condição de homem anônimo em empresa colonizadora,
mulher subjugada ou turista intelectual. São três experiências que, no plano romanesco,
concretizam posicionamentos ideoló gicos e estéticos indissociáveis do espaço de onde falam seus
autores. As reflexões que propõem aos leitores deixam entrever aquilo que assumem
explicitamente em seus depoimentos: o propósito de contribuírem para uma nova compreensão
de nossa formação histórica e sócio-cultural e suas implicações no processo de configuração da
identidade de países de língua portuguesa.
8. BIBLIOGRAFIA
81. OBRAS DOS AUTORES
AGUALUSA, José Eduardo. Fronteiras perdidas. Lisboa: Dom Quixote, 1998. 118 p.
______ Estação das chuvas. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000. 279 p.
______. Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus,
2001. 159 p.
______. O ano em que Zumbi tomou o Rio. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. 295 p.
______. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.199 p.
CLÁUDIO, Mário. Amadeo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984. 116 p.
______. Guilhermina. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986. 117 p.
______. Orion. Lisboa: Dom Quixote, 2003. 193 p.
_____. Rosa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998. 120 p.
______ Peregrinação de Barnabé das Índias. Lisboa. Publicações Dom Quixote, 1998. 282 p.
MIRANDA, Ana. A última quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 323 p.
______.Boca do Inferno. São Paulo: Círculo do Livro, 1992. 302 p.
______. Clarice. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 96 p.
______. Desmundo. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 213 p.
8.2. OUTROS AUTORES
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãnças. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. 104 p.
BORGES, Jorge Luís. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 159 p.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Org. Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto, 1982. 614 p.
EÇA DE QUEIRÓS, José Maria. A correspondência de Fradique Mendes. Porto Alegre: L &
PM, 2001. 206 p.
PESSOA, Fernando. Eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 280 p.
8.3.TEXTOS TEÓRICO-CRÍTICOS
ABDALA JR., Benjamin. De vôos e ilhas: literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003. 312 p. p. 49 - 62.
______. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo
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