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INTRODUÇÃO
O modelo hospitalocêntrico e asilar, baluarte do isolamento do louco e forma
privilegiada de tratamento até a primeira metade do século XX, vem sendo superado,
gradativamente, há cerca de quarenta anos no Brasil.
Em meados da década de 80 testemunhávamos o fim da ditadura militar, a abertura
democrática, a efervescência da Reforma Sanitária e dos demais movimentos sociais que
sustentavam a discussão em torno dos direitos humanos, políticos, civis e sociais. Neste
contexto histórico, o movimento dos trabalhadores de Saúde Mental apontava para a
necessária reformulação da assistência psiquiátrica no país.
Este processo resultou na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Suas diretrizes técnico-
clínicas e políticas têm sido consolidadas, ao longo desse tempo histórico, pela emergência do
chamado Campo da Atenção Psicossocial cujo paradigma se alicerça no princípio da
reinserção psicossocial.
Esta nova lógica assistencial pretende superar o modelo hospitalocêntrico, cuja
principal forma de tratamento é o internamento em hospital psiquiátrico, e afirmar o
paradigma da atenção de base territorial e comunitária. Isto quer dizer que os novos
dispositivos clínicos, em especial os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) deverão ser
construídos fora do espaço hospitalar, habitando, assim, os territórios sociais das cidades.
Aposta-se, desta forma, no tratamento da loucura, e suas variadas formas de apresentação,
sem encarceramento, preservando-se as referências familiares, culturais e históricas do
sujeito.
Os CAPS são estruturas assistenciais para tratamentos intensivos e diários aos
portadores de graves sofrimentos psíquicos. Portanto, os CAPS se constituem como
equipamentos clínicos estratégicos para esta transformação do modelo assistencial.
Pode-se considerar que o desafio permanente neste campo de trabalho, cuja prática
constrói dispositivos clínicos ampliados
1
, é fazer operar o sujeito com seus enigmas e seu
sofrimento, sua singularidade, suas possibilidades.
1
A este propósito, no âmbito da Clínica Psicanalítica, convém verificar as discussões que estão sendo feitas a
partir da “prática entre muitos” (“pratique à plusieurs”, termo cunhado por Jacques-Alain Miller), especialmente
na clínica institucional com crianças autistas e psicóticas. Ver ELIA, Luciano. A Clínica de Pesquisa na
Psicanálise: O dispositivo psicanalítico ampliado com crianças autistas e psicóticas (mimeo) – Trabalho
derivado da pesquisa O dispositivo psicanalítico ampliado na clínica institucional do autismo e da psicose
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Esta pesquisa clínica se constitui a partir de interrogações resultantes do trabalho
clínico realizado nesta esfera de atenção e cuidados psicossociais norteada pelos princípios da
Reforma Psiquiátrica Brasileira. Sustentamos que a posição do analista, neste campo de
múltiplos saberes e disciplinas, faz operar, pela escuta, o sujeito em sua relação com o saber
do inconsciente.
O trabalho no CAPS possibilitou-nos o encontro com sujeitos portadores de
transtornos mentais graves e severos. Chamou-nos a atenção que o fenômeno da emergência
da loucura fosse, muitas vezes, imediatamente, colado ao diagnóstico da psicose. Desta forma,
observávamos práticas de acirramento da compreensão biologizante e fisicalista dos
fenômenos psíquicos.
Verificávamos que as discussões clínicas coletivas e cotidianas favoreciam a
ampliação e revisão dos instrumentos de leitura e deciframento das situações que se
apresentam na clínica, expondo os modos de intervenção frente à complexidade dos
fenômenos da loucura.
A construção do diagnóstico clínico e a direção do tratamento se davam, entretanto,
muitas vezes, sob impasses e divergências entre os integrantes da equipe clínica. Com
freqüência os saberes psiquiátrico e psicológico comportamentalistas impunham determinados
modos de concepção da loucura, e dos fenômenos psíquicos em geral, circunscritos às suas
manifestações fenomênicas e comportamentais – os códigos norte americanos de classificação
das doenças mentais determinam estas referências. Pode-se afirmar que a psiquiatria pós
DSM III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American Psychiatric
Association, 3 th ed.)
2
estilhaçou os princípios psicopatológicos rigorosamente definidos, a
partir da Fenomenologia, na psiquiatria clássica
3
, propondo uma clínica definida,
estritamente, a partir de sinais e sintomas regulados por freqüência estatística. Desdobra-se, a
partir daí, a clínica dos “transtornos” ou, o que também poderia ser adjetivada como uma
“clínica transtornada”, cuja fúria organicista, apesar de seus precursores declararem-se
ateóricos, aponta para a busca desenfreada do substrato orgânico nos fenômenos mentais.
infantil, PROCIÊNCIA, UERJ, 1999-2002; e ver LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde mental: a prática feita
por muitos”. In: Revista Curinga, n.14. Belo Horizonte: Abril 2000 – EBP-MG.
2
DSM –III/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington,D.C.: American Psychiatric
Association, 3 th ed., 1980.
3
Ver JASPERS,Karl. Psicopatologia Geral: psicologia compreensiva, explicativa e fenomenologia. Rio de
Janeiro: Livraria Atheneu. Vol I, 1987.
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3
Esse recrudescimento das abordagens biológico-organo-comportamentais dos
fenômenos psíquicos na contemporaneidade produz, na esfera da clínica, direções que
apontam para a reificação/coisificação do sujeito e, portanto, diversas daquelas construídas
pelos princípios da psicanálise. A produção classificatória- diagnóstica destes dois campos é
efeito e raiz, a um só tempo, destas distintas posições discursivo-metodológicas, a saber a
posição do analista e a posição do comportamentalista. Esta constatação tem nos levado a
interrogar: Que quadro psicopatológico mais complexo pode encobrir o chamado “retardo
mental”, categoria psiquiátrica, e espécie de “saco de gatos”, onde é freqüente, na prática
médico-psiquiátrica, colocar-se tudo o que não pôde ser encaixado dentro das fôrmas dos
“transtornos”, cujo estatuto clínico é medido, estatisticamente, pela regulação fenomênica dos
sinais e sintomas?
Este cenário de interpretação compreensiva biológico-comportamental pode trazer,
para o sujeito na sua relação com o laço social, conseqüências desastrosas
4
. Consideramos que
a vertente da atenção organicista/fisicalista, preconizada pelas terapias estritamente
medicamentosas e/ou abordagens psicoterápicas, cujo efeito clínico, freqüentemente, é fazer
calar o sujeito em seu sintoma, configura tratamentos que mascaram sentenças condenatórias
e segregadoras, visando à adequação do sujeito a um status quo sócio-psíquico.
De modo aproximado, pode-se notar que na vertente da reabilitação psicossocial
5
,
verifica-se que o princípio do cuidado visa à afirmação do sujeito da inclusão social, assim
como à assunção de sua cidadania que supõe a apropriação dos direitos e deveres civis,
políticos e sociais. Se estas expectativas forem tomadas de maneira dogmática, poderão se
impor, para alguns, como ideais inalcançáveis, mais limitantes do que libertadores. A
dimensão clínica que opera a partir do discurso e do saber do sujeito sempre contingencial,
portanto, efeito, a um só tempo, da determinação do Outro e de sua escolha ativa, pode
descortinar outros destinos. Para tanto, tomamos a teoria e a clínica psicanalíticas como
bússolas.
4
Em se tratando de classificações oriundas de tratamento estatístico, ver LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde
mental: a prática feita por muitos”. In: Revista Curinga, op. cit., p. 165. Neste artigo, o autor critica a compulsão
norte-americana pelas técnicas de medição que geram classificações que podem levar à exclusão: “[...] Todas
essas belas classificações psicológicas mensuradas estatisticamente conduzem, em algum momento, a novas
segregações.”
5
Sobre os princípios da Reabilitação Psicossocial e sua interface com a cidadania, ver SARACENO, Benedetto.
Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te
Corá Editora/Instituto Franco Basaglia, 1999.
4
Desta forma, neste trabalho intitulado Os efeitos discursivos do diagnóstico na
clínica psicanalítica e na clínica do comportamento, o diagnóstico é a questão em torno da
qual pretendemos fazer girar a discussão sobre os discursos, dos quais o diagnóstico é, a um
só tempo, efeito e produção, da clínica psicanalítica e do que estamos chamando de clínica do
comportamento. Esta última se configura a partir das práticas e teorias do campo da medicina
e da psicologia comportamentalistas, mas no âmbito desta pesquisa ela é circunscrita e
correlacionada ao nominalismo pragmático contemporâneo
6
. Quanto à conceituação de
discurso a que nos referimos, tomamo-la a partir da afirmação de Lacan em que o discurso é
laço social e, portanto, é a dimensão do significante o determinante do discurso.
Aproximamos o conceito de discurso em Lacan à noção de metodologia. Ao partirmos da
concepção de posição discursiva como correlata da posição metodológica, pode-se interrogar,
no contexto desta pesquisa: qual é a operação do analista e seu discurso em sua diferença para
com o discurso vigente na clínica do comportamento?
A questão central desta pesquisa, portanto, diz respeito ao diagnóstico e aos efeitos
discursivos em que ele é, a um só tempo, fruto e raiz. Em nome de um dado saber, um
diagnóstico traça uma sentença. A partir deste vetor principal, outras questões se deslindam:
Quais as conseqüências discursivas do diagnóstico na clínica psicanalítica e na clínica do
comportamento?
7
E mais especificamente, no campo da psicanálise, do que se trata em um
diagnóstico?
Consideramos, portanto, que na prática médico-psicológica e no campo psicanalítico
encontram-se direções de tratamento antagônicas. Ao partirmos do conceito de sujeito do
inconsciente que transgride a lógica da dimensão biológica e imaginária do indivíduo,
apontando, desta forma, o sujeito como constituído na linguagem e, portanto, como “efeito,
ativo e em ato [...], do significante sobre o ser vivo”
8
, interrogamos: o que é e quais são os
desdobramentos de uma clínica orientada pelo sujeito do inconsciente e uma clínica que
exclui esse estatuto de sujeito?
Portanto, esta pesquisa visa verificar os efeitos discursivos do diagnóstico na clínica
constituída pelo saber e prática psicanalítica e aqueles que são construídos pela posição
6
Esta correlação será construída no Capítulo II.
7
Estamos chamando, aqui, de clínica do comportamento especialmente o campo da psicologia e o campo
médico-psiquiátrico de orientação biológico-comportamental.
8
ELIA, Luciano. A Clínica de Pesquisa na Psicanálise: O dispositivo psicanalítico ampliado com crianças
autistas e psicóticas. (mimeo).Op. cit., p.5.
5
metodológica da clínica médico-psicológica, inscrita no campo da contemporânea ciência do
comportamento.
Nosso objeto de pesquisa trata-se da relação do sujeito com o saber na Psicanálise e
na ciência contemporânea do comportamento, na qual circunscrevemos como paradigma o
DSM-IV ( Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American Psychiatric
Association, 4 th ed.)
9
.
Percorreremos, no Capítulo I, um trajeto de elaboração da relação do sujeito com o
saber partindo de Freud, em sua Teoria do Trauma, seguido pela teoria do sujeito em Lacan.
Centrar-nos-emos no processo de constituição do sujeito a partir do Outro através das
operações de alienação e de separação. Destaca-se, neste percurso, a operação afanísica,
tempo integrante da alienação, cujo efeito é o apagamento/desaparecimento do sujeito como
nonsense. Sedimenta-se, assim, a divisão do sujeito entre o sentido e o não-sentido, entre a
verdade e o saber.
Partiremos do desejo determinado pelo fato do sujeito se oferecer à linguagem. Ao
apontarmos a ética da psicanálise como ética do desejo, enquanto posição discursiva que se
fundamenta no saber inconsciente e, portanto, no saber do sujeito, destacaremos alguns pontos
chaves elaborados em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise
10
com o intuito de balizar a
construção dessa direção discursiva.
A discussão sobre o sujeito como o operador do campo clínico ultrapassa a idéia de
que o tratamento psicanalítico se restrinja ao contexto convencional do consultório privado.
Indicaremos, a partir do recorte de uma experiência clínico-institucional realizada num Centro
de Atenção Psicossocial (CAPS), dispositivo público de referência para o atendimento a
sujeitos psicóticos e neuróticos graves, que a intervenção psicanalítica, desde que responda
aos princípios e fundamentos ético-metodológicos e analíticos e, portanto, considerando a
operação do analista, é operante na clínica de um coletivo.
No Capítulo II empreenderemos um diálogo com o DSM, paradigma da clínica do
comportamento, interrogando uma dimensão, supostamente intrínseca a ele, de um fisicalismo
contemporâneo. Tencionamos, também, verificar a operação de forclusão do real que o
surgimento deste manual classificatório impõe.
9
DSM-IV/ Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington, D. C.: American Psychiatric
Association, 4 th ed., 1994.
10
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.
6
Demonstraremos que o poder fundacional da histeria para o inconsciente freudiano e,
portanto, para a psicanálise, em fins do século XIX, parece ter sido despotencializado no
atual manual classificatório diagnóstico americano, na medida em que sua evidência como
entidade clínica é suprimida e substituída por outros nomes-sintomas. Pode-se considerar que
este rechaço pela entidade clínica da histeria responda aos ideais de um suposto ateoricismo,
portador de concepções assépticas ou neutras a qualquer contágio teórico-científico. Observa-
se neste manual classificatório-diagnóstico americano, cuja influência é internacional, a
convocação de que os sintomas, tal como se apresentam, fenomenicamente, identifiquem
diagnósticos, segundo variações estatísticas determinadas, através de nomenclaturas
prefixadas pelo vocábulo “transtorno”. Em nome de um objetivismo nada realístico, toma-se
o fenômeno
11
e o comportamento como norteadores diagnósticos produzindo, assim,
confusões clínicas que podem levar a destinos desastrosos.
Faremos um breve histórico acerca da constituição dos manuais classificatórios
diagnósticos americanos, desde uma perspectiva psicobiológica (DSM-I, em 1952) até a sua
contemporânea dimensão empírico-pragmática (DSM-IV, 1992).
Destacaremos o saber do real do sintoma no campo clínico psicanalítico frente ao
saber nominalista do DSM (“nominalismo pragmático”).
Para a ampliação do debate, ao final do Capítulo II, partiremos de uma leitura
histórico-crítica e culturalista para examinar a concepção essencialista e naturalista das
classificações psiquiátricas. Verificaremos que a investigação científica dirigida à produção
de diagnósticos baseados em concepções construtivistas culturalistas também excluem a
causa do seu campo operatório conceitual, mas não escapam de sua incidência.
Veremos que no campo da psicanálise não há espécie natural, mas efeitos de discurso.
No Capítulo III, para traçar a relação do sujeito com o saber na clínica psicanalítica,
circunscreveremos o gozo e o desejo no lugar do saber. As dimensões do corpo gozozo, da
verdade como causa, nomes do saber, são articuladas como o real forcluído do saber da
medicina. Lacan situará a dimensão do gozo, algo da ordem do mortífero, como falha na
relação epistemo-somática – o que ele nomeou como “falha epistemo-somática”.
Verificaremos que a psicanálise inclui em seu campo operatório o gozo e o desejo,
situando-os no lugar de causa. A ciência contemporânea não consegue dar lugar ao sujeito.
Este permanece como um rasgão que ela, a todo tempo, tenta suturar.
11
Note-se que quando falamos em “fenômeno” não estamos nos referindo à Fenomenologia, com seu rigoroso
arcabouço conceitual, mas sim a uma leitura fenomênica restritiva da realidade.
7
Percorreremos, neste capítulo final, o percurso do nascimento da ciência moderna por
Koyré, instaurado no rechaço de todo o saber, até o “doutrinal de ciência” onde Milner traçará
os caminhos que levaram do sujeito cartesiano ao sujeito freudiano. E assim, examinaremos
como a ciência é a condição de possibilidade de emergência do sujeito.
Neste diálogo com o campo pragmático da ciência do comportamento tomaremos o
extrato de um caso clínico para examinarmos as relações entre o sujeito e o saber nos dois
campos (da psicanálise e da clínica do comportamento) e a incidência desta correlação na
construção do diagnóstico.
Circunscreveremos, ao fim deste trabalho, a categoria diagnóstica médico-psiquiátrica
de retardo mental como um emblema do não reconhecimento da incidência do sujeito no real
do fenômeno. Tencionamos situar, conceitualmente, a debilidade, afirmando-a como posição
subjetiva. Tomaremos, para isto, o estudo de um caso clínico de melancolia e seus
entrelaçamentos com a debilidade Ao situarmos o sujeito como conseqüência do discurso,
pretendemos verificar a correlação entre a contemporânea medicina do comportamento e o
sujeito comportamental, efeito e raiz, a umtempo, deste discurso. A construção do caso
clínico afirmará o efeito sujeito do inconsciente onde, para a psiquiatria biológico-
comportamental, só há efeito orgânico.
Tomaremos a clínica do DSM como correlata à clínica do comportamento.
Inscreve-las-emos como paradigmas da ciência contemporânea. Em conexão com a
construção do caso clínico de debilidade, iremos examinar possíveis efeitos do DSM na
debilização dos sujeitos, e possíveis saídas pela via do sujeito suposto saber.
8
CAPÍTULO I: DO INCONSCIENTE FREUDIANO AO SUJEITO LACANIANO: UM
TRAJETO DE ELABORAÇÃO DA RELAÇÃO DO SUJEITO COM O SABER
Para circunscrevermos a relação do sujeito com o saber no campo da psicanálise,
tomaremos a via do inconsciente. Buscaremos em Freud, em sua Teoria do Trauma, as
referências fundacionais da construção freudiana no que concerne ao saber.
A hipótese do sujeito do inconsciente é balizadora desta pesquisa, na medida em que, a
partir dela, interrogaremos as conseqüências de uma clínica orientada pelo sujeito e uma
clínica sem sujeito; um discurso que admita e reconheça o sujeito, e um discurso que exclua e
ignore o sujeito. Portanto, estas elaborações, articuladas à teoria do sujeito, circunscrita por
Jacques Lacan, irá nos guiar apontando a direção do trabalho.
Considerando a investigação dos efeitos discursivos do diagnóstico na vida e no
destino dos sujeitos, a que esta pesquisa se propõe, tomamos como campo clínico o trabalho
exercido num CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Trata-se de um dispositivo público
assistencial do âmbito da Saúde Mental, no qual coexistem modos múltiplos de operações e
discursos. Estes constituem, por um lado, ampliadas possibilidades de intervenções (artísticas,
sociais, políticas e clínicas) no encontro com o sujeito em sofrimento psíquico de diferentes
magnitudes e, por outro lado, podem levar, cada uma delas, a direções de tratamento
marcadamente antagônicas. Estes impasses se evidenciam na construção do caso clínico e do
diagnóstico como dimensões fundamentais da prática clínica. Situaremos os saberes médico e
psicológico, enquanto protagonistas destes impasses, inscrevendo-os neste diálogo com o
saber psicanalítico.
O argumento que sustenta esse trabalho de pesquisa indica que o saber médico-
psicológico filiado ao campo “científico” atual, cujo paradigma biológico-comportamental é o
principal expoente, define uma prática clínica que exclui o sujeito – sujeito que a psicanálise
afirma como sujeito do inconsciente. Na perspectiva da Psicanálise, conforme nos indica Elia:
“O saber [...] é atravessado, de ponta a ponta, pelo inconsciente”.
12
Consideramos, desta
forma, que o saber para a psicanálise está primeiro, e antes de tudo, do lado do sujeito e não
do cientista ou do profissional. A que conseqüências éticas essas diferentes posições
discursivas podem levar? Ao tomarmos a dimensão ética traçada pela psicanálise como ética
12
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 7.
9
do desejo, afirmamos que ejetar o sujeito e sua singularidade da cena clínica é dessubjetivar o
ato clínico e padronizá-lo em procedimentos homogeneizadores, excluidores da diferença, do
particular, daquilo que surpreende.
No entanto, pretendemos demonstrar que, neste mesmo campo clínico institucional
onde esta pesquisa se origina, é possível operar analiticamente.
Para isso partimos do conceito, formulada por Lacan, de desejo do analista , como nos
indica Rinaldi, enquanto “função essencial em torno da qual gira o movimento da análise”
13
.
É o desejo do analista que inscreve o seu lugar ético numa clínica institucional como o
CAPS, qual seja o de um lugar-função analítica sustentada pelo desejo de que haja análise
visando o trabalho de implicação e engajamento do sujeito com seu próprio desejo. Com
efeito, a efetividade analítica não está condicionada a um modelo, mas sim à vigência dos
parâmetros constituintes do campo analítico. Estes são os demarcadores ético-metodológicos
do campo analítico, deste modo circunscritos por Elia: “... o acesso a esse saber
[inconsciente] exige um trabalho (o trabalho analítico) que se realiza através de um
determinado método (o método da psicanálise), que estabelece um dispositivo ( o analítico) e
requer uma função operante ( o psicanalista)...”
14
.
Guiados por estes princípios apresentaremos o recorte de uma experiência clínico-
institucional extraída do campo do qual partiu esta pesquisa (campo da atenção psicossocial).
Esta experiência se sustenta no sujeito como operador clínico e, assim, afirma a relação do
sujeito com o saber inconsciente.
13
RINALDI, Dóris. Ética e Desejo: da psicanálise em intensão à psicanálise em extensão. Trabalho apresentado
na Reunião Lacanoamericana de Psicanálise da Bahia, 1997, p.36.
14
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.9.
10
I.1- Da Teoria do Trauma à formação do sintoma como saber do sujeito
Partiremos de Freud para pensarmos a relação do sujeito com o saber, no campo da
psicanálise, pelo viés do inconsciente. Buscaremos na Teoria do Trauma as referências
fundacionais da construção freudiana no que concerne ao saber. Traçaremos, segundo Freud,
os caminhos que entrelaçam o recalque, o sintoma e o saber do sujeito.
Em uma carta enviada a Fliess em 14 de novembro de 1897, Freud escreve:
Uma liberação da sexualidade [...] ocorre, então não apenas (1) mediante um
estímulo periférico sobre os órgãos sexuais, ou (2) mediante as excitações internas que
surgem desses órgãos, mas também (3) a partir de idéias – isto é, a partir de traços
de memória portanto, também por uma via de ação postergada. (grifos nossos).
15
A hipótese de Freud, em sua primeira teoria sobre o trauma, sustenta que um efeito a
posteriori, que produz a “liberação da sexualidade”, é resultante da lembrança (“traços de
memória”) de uma cena sexual da infância, e, portanto, anterior.
A teoria do trauma, constituída em dois tempos (um anterior e outro ulterior), lança as
bases para a construção do conceito de recalque. Isto está intimamente ligado à discussão
sobre o saber. Freud, assim, situa o saber acerca do trauma: num primeiro tempo (o anterior) o
sujeito desconhece, não sabe o que aconteceu; é no segundo tempo (o ulterior), tempo da
lembrança traumática, que o saber é recalcado. Portanto, é no a posteriori que o recalque
opera – o sujeito não quer saber.
O recalque é acionado e consolidado pela repugnância despertada frente à lembrança
de uma experiência sexual. Com efeito, a cena sexual traumática é recalcada a posteriori.
Vale destacar a função do afeto de “repugnância” na produção de sintomas. Freud nos
diz:
[...] Ao que parece, a libido e a repugnância estariam associativamente vinculadas. À
libido devemos o fato de que a lembrança não consegue produzir um desprazer
generalizado, etc., mas encontra um uso psíquico; e à repugnância devemos o fato de
que esse uso só produz sintomas, não produz idéias orientadas para um objetivo.
16
15
FREUD, Sigmund. “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950[1892-1899]) – Carta 75 (14 de
novembro de 1897)”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, vol. I, p. 370.
16
Ibid., p. 372.
11
Esta vinculação da libido à repugnância, Freud a explicita através da operação do
recalque que “[...] transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância
interna”.
17
Vemos, então, delinear-se uma relação entre saber, recalque e sintoma.
18
Alguns anos antes, num texto intitulado “ As neuropsicoses de defesa” (1894)
19
, Freud
levanta a hipótese da divisão da consciência como articulada aos estados “patológicos” que
produzem a histeria, a obsessão ou a psicose alucinatória ( as neuroses de defesa). A divisão
da consciência no sujeito se estrutura, segundo Freud, em função de :
[...] uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa – isto é, até que
seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que
suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em
sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu
por meio da atividade de pensamento.
20
Diante da representação incompatível, mecanismos psíquicos são acionados para a
defesa do eu:
[...] na histeria, a representação incompatível é tornada inócua pela transformação de
sua soma de excitação em alguma coisa somática [mecanismo da conversão].
21
Nas obsessões, quando o afeto é separado da representação incompatível, mas não é
convertido para o corpo,
[...] esse afeto fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. A representação, agora
enfraquecida, persiste ainda na consciência, separada de qualquer associação. Mas seu
afeto, tornado livre, liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si
mesmas, e graças a essa “falsa ligação”, tais representações se transformam em
representações obsessivas.
22
17
Ibid., p. 372.
18
Exploraremos, mais adiante, esta relação triádica quando discutirmos acerca da Conferência XXIII Os
caminhos da formação dos sintomas.
19
FREUD, Sigmund. “As neuropsicoses de defesa” (1894). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III.
20
Ibid., p. 55.
21
Ibid., p. 56.
22
Ibid., p. 58.
12
Freud apontará, ainda neste texto, uma espécie de defesa muito poderosa, situando-a
como um mecanismo presente na psicose:
[...] Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se
comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido.
23
Cabe ressaltar que, ao final do texto, Freud destaca a função, ouso dizer vivificante, do
que vinha chamando de “[...] carga de afeto ou soma de excitação”
24
ao incidir sobre os traços
mnêmicos das representações, sem a qual esses traços de memória permaneceriam
mortificados, ou neutralizados, e, assim, não apresentariam conflito para o eu.
Freud parece vislumbrar, desta forma, o advento do desejo e da pulsão enquanto
constituintes deste motor propulsor do fluxo de energia capaz de investir os traços mnêmicos
das representações psíquicas acionando a defesa e a formação do sintoma.
Em 1896, numa obra intitulada “A hereditariedade e a etiologia das neuroses”
25
, Freud
questionará a incidência da hereditariedade como fator principal na determinação das
neuroses.
Freud sustenta, neste período, a posição passiva do sujeito frente ao ato da sedução e
do abuso sexual cometido pelo outro. Acentua que a causalidade específica das demais
neuroses e da histeria, em particular, remete-se a esta passividade e à precocidade da
experiência sexual:
Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta
duas características de máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve uma
lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com
excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra
pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é a infância [...].
26
Com efeito, é notável a ênfase dada por Freud à dimensão da lembrança inconsciente
do evento ocorrido num tempo anterior. Esta lembrança é resultante de traços psíquicos que
foram preservados, apesar da passagem do tempo. Estes traços mnêmicos são despertados a
partir de um evento ocorrido a posteriori, , cujo efeito é traumático:
23
Ibid., p. 63.
24
Ibid., p. 65.
25
FREUD, Sigmund. “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III.
26
Ibid., p. 144.
13
[...] A lembrança atua como se fosse um evento contemporâneo. O que acontece é, por
assim dizer, a ação póstuma de um trauma sexual.
27
Freud, até então, sustentava a experiência sexual de caráter traumático como o fator
responsável pelo acionamento do recalque ou da defesa e, quando esta falha, da formação dos
sintomas nos quadros de neuroses.
No entanto, no texto “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”
(1896)
28
ele inclui, quase trinta anos depois, uma nota de rodapé na qual ele abandona a
ênfase posta na experiência real e abre as portas para a função e operação da fantasia nos
processos psíquicos:
(Nota de rodapé acrescentada em 1924): Esta seção é dominada por um erro que desde
então tenho repetidamente reconhecido e corrigido. Naquela época, eu ainda não sabia
distinguir entre as fantasias de meus pacientes sobre sua infância e suas recordações
reais. Em conseqüência disso, atribuí ao fator etiológico da sedução uma importância e
universalidade que ele não possui.
29
É considerável que, durante este texto de 1896, Freud construa objeções às suas
próprias conclusões anteriores no tocante à importância determinante das experiências
vividas: “[...] não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes sua
revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual.”
30
Portanto, segundo Freud, não basta, para o desencadeamento da neurose, que uma
experiência sexual, da ordem da sedução ou do abuso sexual, tenha se realizado. A realização
efetiva do recalque não está na natureza da experiência ou em sua realidade, já que, para
alguns, ela se torna patogênica e, para outros, não.
Freud passa, então, a presumir uma suscetibilidade pré-existente ao trauma ou uma
predisposição histérica indefinida. Este efeito traumático a posteriori constituir-se-ia,
portanto, segundo certa condição:
27
Ibid., p.146.
28
FREUD, Sigmund. “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896). In: Edição Standard
Brasileira das Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III.
29
Ibid., p. 159.
30
Ibid., p. 156.
14
O “recalcamento” da lembrança de uma experiência sexual aflitiva, que ocorre em
idade mais madura, só é possível para aqueles em quem essa experiência consegue
ativar o traço mnêmico de um trauma da infância.
31
Pode-se afirmar, com Freud, que para alguns sujeitos esta ativação era possível,
enquanto que, para outros, não. Isto nos faz pensar que Freud se desloca de uma visão
meramente passiva da posição do sujeito frente ao ato da experiência sexual, como fator
desencadeante da neurose, para uma verificação de que havia uma ação do sujeito que
poderia ou não conferir a este ato uma dimensão de trauma.
Dez anos depois, em uma de suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-
1917 [1915-1917]): Os caminhos da formação dos sintomas”
32
, vale destacar a dimensão de
ato, conferida por Freud, ao estatuto do sintoma: “Os sintomas [...] são atos [...] indesejados
e causadores de desprazer ou sofrimento.”
33
Freud situa o sintoma como resultante patogênico do conflito psíquico entre as pulsões
sexuais e as pulsões do eu e, assim, entre o desejo e as forças que o rechaçam:
[...] Assim, o sintoma emerge como um derivado múltiplas vezes distorcido da
realização do desejo libidinal inconsciente, uma peça de ambigüidade engenhosamente
escolhida, com dois significados em completa contradição mútua.
34
O sintoma, enquanto formação de compromisso, surge como conciliação entre as
forças recalcadoras e o recalcado. Assume, para tanto, a função de satisfação nova ou
substituta frente à frustração sofrida pela libido, impedida de realização:
As tendências libidinais rechaçadas conseguem [...] abrir caminhos por algumas vias
indiretas [...]. As vias indiretas são aquelas que toma a formação dos sintomas; estes
constituem a satisfação nova ou substituta, que se tornou necessária devido ao fato
da frustração.
35
(grifos nossos).
É notável que no diagrama, proposto por Freud, sobre a causação da neurose, a
chamada “disposição” devida à fixação da libido ocupe o centro do esquema diagramático
31
Ibid., p. 158.
32
FREUD, Sigmund. “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-1917 [1915-1917]): Conferência
XXIII - Os caminhos da formação dos sintomas
”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVI.
33
Ibid., p. 419.
34
Ibid., p. 421.
35
Ibid., p. 409.
15
para onde confluem tanto a constituição sexual – que podemos considerar, conforme
indicações de Freud, como traços filogenéticos, no sentido da transmissão da linguagem
como a experiência infantil (acontecimentos marcantes). Este tripé somado à experiência
dita casual, traumática no adulto, formaria o complexo de “séries complementares”
desencadeante da neurose.
Com efeito, e em última instância, é a ação do sujeito no fator traumático o
constituinte da neurose, conforme o que Freud nos apresenta em seu diagrama da ‘série
complementar’
36
:
Doravante, nesta conferência, Freud anuncia uma novidade como conseqüência
de sua contínua pesquisa clínica analítica que, conforme já mencionado anteriormente,
representará uma mudança fundamental em sua concepção dos processos psíquicos
formadores dos sintomas, assim como também abrirá as portas para a descoberta da
sexualidade infantil e do complexo de Édipo, a saber: a fantasia. Conforme Freud nos indica:
[...] essas cenas da infância nem sempre são verdadeiras. [...] pode-se mostrar que se
está diante de uma situação em que as experiências da infância construídas ou
recordadas na análise são, às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual,
certamente corretas, e na maior parte dos casos são situações compostas de verdade
e de falsificações.
37
(grifos nossos).
Cabe destacar o estatuto de realidade (realidade psíquica) conferido, por Freud, à
fantasia:
36
Ibid., p. 423.
37
Ibid., p. 429.
Causação da Neurose =
Disposição devida à
fixação da libido
+ Experiência casual
(Traumática)[no adulto]
Constituição Sexual
(Experiência Pré-histórica)
Experiência Infantil
16
[...] esses produtos mentais [as fantasias]. Também eles possuem determinada
realidade. Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e essa
circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se
tivesse realmente experimentado o que contém suas fantasias. As fantasias possuem
realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente
aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a
realidade decisiva.
38
(grifos nossos).
Freud situará a origem das fantasias nas pulsões e as indicará como constituintes de
um “acervo filogenético”, referido à transmissão da “verdade pré-histórica” no contexto da
evolução humana.
39
Conforme já mencionado por nós, anteriormente, pode-se considerar,
segundo o ensino de Lacan, que este “acervo filogenético” trata-se da Cultura, do campo do
Outro, do significante e, portanto, da Linguagem. Desta forma, a Cultura deixa marcas que
orientam a concepção do eu e a vida pulsional. Com efeito, a fantasia e o campo do Outro
estão intimamente ligados.
Cabe-nos, neste ponto, destacar a referência à castração: o Che voui?(O que quer o
Outro de mim?), ele não diz porque não há como dizê-lo, porque no campo do Outro está
inscrito o significante da falta. À medida em que, não há resposta do Outro, o sujeito inventa
uma resposta para velar a impossibilidade, a castração, ou seja, a falta do Outro. Esta
resposta é a fantasia.
Portanto, a fantasia fundamenta o sintoma que se configura como o significado/saber
atribuído pelo sujeito ao mal-estar frente à falta no Outro, à castração do Outro.
38
Ibid., p. 430.
39
Ibid., p. 433.
17
I.2- O sujeito como efeito da Linguagem: O processo de constituição do sujeito a partir
do Outro – o percurso pela alienação e separação
Para teorizar um sujeito como este, Lacan fez uso de sua relação com o significante:
o sujeito é efeito do significante. O lugar do Outro é, portanto, um lugar de determinação do
sujeito. Lacan nos diz:
O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai
poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer.
40
Considerando as referências às lições sobre O sujeito e o Outro(I) e (II): A Alienação
e A Afânise, redigidas em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise
41
, seguiremos os determinantes fundamentais do processo de constituição do
sujeito.
O sujeito é efeito do significante, constitui-se no intervalo entre significantes: é
representado por S
1
(significante unário) que o ilumina para S
2
(significante binário) e este o
faz desaparecer. E é, portanto, nesta divisão, condição primordial de sua alienação, que o
sujeito barrado (S) aparece como sentido em S
1
e desaparece como nonsense em S
2
. Se
tomarmos a condição de apagamento, no processo de constituição do sujeito, como efeito do
significante binário (S
2
), significante afanísico, aquele que produz a barra no sujeito,
podemos pensar essa barra como o não estruturante - entendendo este não como não à
completude, não enquanto correlato da Lei da Castração fundamentada na proibição do
incesto.
Ao concebermos que a barra do sujeito(S) se configura num evento correlato à barra
do Outro(A), entrevemos que a falta é intrínseca a estes
dois campos. Assim, o A é não todo, na medida em que não responde a tudo o que o sujeito
quer saber; não responde pois não pode responder, já que nele está inscrito o significante da
falta. O A barrado (A) é o A castrado, regulado pela lei do Pai. O significante fálico incluído
40
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-4). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 194.
41
Ibid.
18
no campo do A (Outro), barra o Outro e faz cair o objeto a
42
. Desta forma, o falo é
estruturante por estar diretamente articulado à castração. Pode-se admitir, portanto, que a
separação é um movimento realizado pelo sujeito na direção de barrar esse Outro (A), ou
ainda, suportar o significante da falta inscrita no Outro e, portanto, ascender à possibilidade da
dialetização significante. É a partir do momento em que o Outro é marcado pelo significante
fálico, que o sujeito pode ou não reconhecer que também ele é marcado pelo significante – é
neste âmbito que o sujeito se inscreverá no campo da neurose ou da psicose. Deste modo, a
barra no desejo do Outro faz com que o sujeito reconheça ou não seu desejo barrado, seu
próprio desejo insatisfeito.
O sujeito, como já apontado acima, advém no intervalo entre significantes. É a sua
condição de efeito do discurso que aqui destacamos. Vejamos o que nos diz Coutinho acerca
do discurso:
O discurso articula o sujeito e o outro. O que é, para Lacan, um discurso? Não
havendo para o sujeito falante nenhuma realidade pré-discursiva, o discurso é definido
como “o que funda e define cada realidade”. Tendo sua inscrição no mundo humano
– seu lugar na ordem simbólica- produzida muito antes de seu próprio nascimento
como ser vivo e organismo biológico, o sujeito falante se inscreve em uma realidade
discursiva preexistente, a partir dos significantes do campo do Outro.
43
Desta forma, deduzimos que não há realidade anterior ao discurso, mas há discurso
anterior ao sujeito, e é esse discurso que funda a realidade.
A partir do exposto acima, podemos pensar que o sujeito é conseqüência do discurso?
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise
44
, Lacan confere a S
1
a dimensão de
interveniente, e a S
2
o estatuto de campo do saber. Estes elementos constituem a estrutura
do discurso. O sujeito emerge como efeito desta intervenção do significante unário no campo
do saber. Que implicações podem resultar disso, ao considerarmos a produção discursiva na
então ciência do comportamento contemporânea?
42
A barra que incide no A está para todo sujeito. No entanto, o psicótico fará com esta incidência algo diverso
do neurótico. O falo que incide no A, na psicose, não é operante. Na neurose o que divide o sujeito é a castração;
na psicose, é o gozo do Outro.
43
JORGE, Marco Antonio Coutinho. “Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro
discursos”. In: RINALDI, D. e JORGE, M. A. C.(org.). Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos,
2002, p. 25.
44
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editos, 1992.
19
Ao considerarmos o comportamentalismo
45
(behaviorismo), efeito e ato da ciência
contemporânea, segundo o qual o comportamento é tomado como medida do sujeito, parece-
nos que este visa ao que poderíamos chamar de domesticação do Real, ao desprezar o seu
poder fundador e aspirar a um certo adestramento do sujeito. Lacan, no entanto, indicar-nos-
á que o real retorna incessantemente, não cessa de não se escrever
46
. Portanto, enquanto
efeito de estrutura, o real ex-siste
47
. Não há adestramento possível do real! O que é possível
são operações do sujeito sobre esse real, reduzindo seu domínio e tirania. Vale ressaltar que
estas operações são de ordem analítica. Note-se que as formações do inconsciente, como por
exemplo, o sonho, enquanto portadoras de algo da dimensão do Real não articulável, podem
ser tomadas como indicadores do traço do sujeito na sua alienação ao campo do Outro.
Enquanto não houver trabalho de análise, esse traço permanecerá como sendo da ordem do
isso, mostração máxima da alienação ao campo do Outro.
Segundo Lacan, o sujeito aparece num lugar como sentido (S
1
) para desaparecer como
nonsense (S
2
). É importante sublinhar que nonsense, neste contexto, é menos ausência de
sentido do que condição de possibilidade de revelação de outra dimensão do campo do
sentido. Mas é intrigante pensar sobre o por quê do sujeito se iluminar em S
1,
para depois se
apagar em S
2
? É o próprio conceito de inconsciente correlato da idéia de sujeito
dividido/barrado que situa essa questão.
A afânise é um termo grego que significa desaparecimento
48
, apagamento. Constitui-
se, no tempo da alienação, enquanto intervalo, num movimento que prepara a separação
49
.
Lacan afirma que a afânise é o equivalente do recalque originário
50
. Vejamos o que Lacan
nos diz:
Eu havia destacado que Freud enfatiza o seguinte: o recalcamento cai sobre algo que é
da ordem da representação, que ele denomina Vorstellungsrepräsentanz. [...] insisti
no fato de que Freud sublinha que não é de modo algum o afeto que é recalcado. [...]
Então insisti nisto, que o que é recalcado não é o representado do desejo, a
significação, mas o representante – traduzi, literalmente – da representação.
51
45
No comportamentalismo que, aqui, circunscrevemos o sujeito é fantoche do Outro e seu saber não é
considerado como intervenção possível frente à esta manipulação. Assim, suas reações e atitudes
(comportamento) ficam completamente submetidas ao jugo do Outro. O saber do médico ou psicólogo é suposto
poder ordenar a desordem (transtorno) instaurada pelo domínio do Outro.
46
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
47
Ibid.
48
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op. cit., p.197.
49
Ibid., p. 207.
50
Ibid., p. 206,207,208.
51
Ibid., p. 206.
20
Continuemos com Lacan:
Podemos localizá-lo em nosso esquema dos mecanismos originais da alienação, esse
Vorstellungsrepräsentanz, nesse primeiro acasalamento significante que nos permite
conceber que o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o
significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para
um outro significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito.
Donde, divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido,
em outro lugar ele se manifesta como fading como desaparecimento. Há então, se
assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o significante unário e o sujeito
enquanto significante binário, causa de seu desaparecimento. O
Vorstellungsrepräsentanz é o significante binário.
52
E, por fim, alerta: “[...] O de que o sujeito tem que se libertar é do efeito afanísico do
significante binário [...].”
53
A transcrição desses longos fragmentos visa fundamentar a equivalência, apontada por
Lacan, entre afânise e recalque originário. Portanto, o significante binário (S
2
) constitui-se
como significante afanísico, na medida em que produz a afânise do sujeito; e é neste campo, o
do significante binário, que se inscreve o recalque originário. É nesta dimensão que se
demarca a divisão do sujeito.Assim, verificamos que é a partir deste processo de
acasalamento significante original que S
2
produz a barra do sujeito.
Sigamos circunscrevendo os tempos da alienação e da separação. A alienação é o
mergulho do ser no campo do Outro. Quanto a isso, Lacan nos adverte em seus Escritos:
“[...] não é o fato de essa operação se iniciar no Outro que a faz qualificar de alienação.[...]
A alienação reside na divisão do sujeito que acabamos de designar em sua causa.”
54
Isto posto, vemos que onde a afânise incidiu, há o desaparecimento do sujeito; e é aí,
neste ponto, que a separação se dará. Como sustentar que esse efeito de desaparecimento,
efeito afanísico do sujeito possa preparar a separação?
Ao considerarmos, conforme já citado, que o sujeito desaparece ou se apaga como
nonsense, o que não traduzimos por ausência de sentido, mas por outra dimensão do campo
do sentido, será que essa outra dimensão pode ser alçada à condição necessária para a
operação da separação do campo do Outro, enquanto ditador de sentidos? Deste modo,
52
Ibid., p. 207.
53
Ibid., p. 208.
54
LACAN, Jacques. “Posição do inconsciente” (1960-4). In: Escritos.(843-864). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998, p.855.
21
tomamos o significante afanísico (S
2
), segundo indicação de Lacan, como aquele que produz a
barra do sujeito e, assim, reduz o poder do Outro (A), abreviando seu domínio e
possibilitando, deste modo, a separação do sujeito dos caprichos do Outro.
Vale lembrar que Lacan, em seus Escritos, extrai o vocábulo separação de se parere,
cuja raiz latina significa gerar a si mesmo
55
. Lacan complementa:
[...] é por sua partição que o sujeito procede a sua parturição. E isso não implica a
metáfora grotesca de que ele se dê à luz de novo.
56
Atentemo-nos ao que Lacan nos escreve:
O que ele [sujeito] coloca aí [quando se depara com o desejo do Outro] é sua
própria falta, sob a forma da falta que produziria no Outro por seu próprio
desaparecimento. Desaparecimento que, se assim podemos dizer, ele tem nas mãos, da
parte de si mesmo que lhe cabe por sua alienação primária. Mas o que ele assim
preenche não é a falha que ele encontra no Outro, e sim, antes, a da perda constitutiva
de uma de suas partes, e pela qual ele se acha constituído em duas partes. Nisso reside
a torção através da qual a separação representa o retorno da alienação. É por ele operar
com sua própria perda, a qual o reconduz a seu começo.
57
Portanto, estas indicações de Lacan apontam que a relação do sujeito ao Outro é
sustentada numa circularidade sem reciprocidade e, assim, dissimétrica
58
. Esta dissimetria
circular indica o movimento determinante do desejo. Verificaremos que é de uma posição de
responsabilidade que o sujeito se situa frente ao desejo que o causa.
55
Ibid., p. 857.
56
Ibid.
57
Ibid., p.858.
58
Ibid., p. 196.
22
I.3- A extimidade do desejo em sua relação fundacional com o sujeito
Lacan parte do imperativo ético freudiano Wo Es war soll Ich werden, onde o isso
estava o eu, enquanto sujeito, deve advir, para articular a emergência do sujeito como
resposta do real ao que lhe sobrevêm das determinações do Outro. E assim, seguindo Lacan,
Elia nos diz: “... um sujeito é o efeito, ativo e em ato (...), do significante sobre o ser vivo”
59
.
O sujeito é atravessado por uma falta estruturante – a castração. Falta que articula o
desejo e suporta o movimento desejante. É importante, neste ponto, tomar o conceito
freudiano de das Ding, a Coisa, ao qual Lacan retorna no Seminário, livro 7
60
, para
estabelecer sua relação com o desejo. Lacan toma das Ding como causa, como o Real, a Coisa
que retorna sempre ao mesmo lugar e que causa o desejo do sujeito.
Das Ding, portanto, se constitui como o objeto perdido para sempre, expressão da
impossibilidade de retorno a uma dimensão mítica de plena satisfação do Desejo. Desta
forma, cabe destacar a íntima articulação entre desejo e lei, na medida em que a proibição
moralista, estabelecida pela Lei contra o Incesto, encobre a impossibilidade ética de
realização da satisfação absoluta e plena do desejo. Com efeito, é por isto que Lacan afirma
que a moral nasce enraizada ao desejo.
61
Com efeito, Lacan situará das Ding num lugar ex-timo e, portanto, no que há de mais
íntimo e exterior. Dimensão do interior excluído ao interior, vazio central do psiquismo em
torno do qual se tece a rede de significantes que comanda o movimento da repetição. Desta
forma, configura-se como presença ausente, realidade muda. Circunscreverá a Coisa como
algo de que é preciso se manter à distância, já que o gozo absoluto que ela engendra é mortal.
Essa distância em relação à Coisa é o que constitui o desejo.
Entrevemos, portanto, que o gozo do qual o sujeito se afasta não está só no Outro – o
Outro que o coloca no lugar de objeto do seu gozo – mas é do seu próprio gozo que se afasta,
enquanto excesso pulsional, gozo impossível, do qual não pode se aproximar.
Que conseqüências para a clínica pode trazer uma direção ética referida ao Real e ao
desejo, e , portanto, ao sujeito e uma clínica que não admite o inconsciente? Esta questão
permeará todo o desdobramento deste trabalho.
62
59
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit.,p.5.
60
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Op. cit.
61
Ibid.
62
Especialmente no Capitulo III tomaremos as vicissitudes do corpo como condição de gozo.
23
Ao partirmos da proposição de Lacan, nos Escritos, em “A ciência e a verdade” : “Por
nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”
63
, verificaremos que é da posição de
sujeito responsável que ele irá se haver com isso que o causa.
No caminho da constituição do sujeito, considerando-se o campo do qual ele é efeito,
o campo da linguagem, é a partir de seu encontro com o Outro que o sujeito advém. Elia nos
aponta: “... o sujeito é (...) um ato de resposta.”
64
Resposta ao que lhe chega como “...um
conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes – introduzidas pelo Outro...”
65
. A
condição do sujeito de assujeitamento ao significante, subposto mas operante, remete-nos ao
efeito trágico de “vítima tão terrivelmente voluntária”
66
do seu desejo. No entanto é, ao
contrário do herói trágico, no ponto máximo do assujeitamento que o sujeito encontrará o
seu desejo. Elia é explícito, quanto a isso:
A verdadeira dimensão trágica da experiência do sujeito está nessa impossibilidade, e
na correlata inexorabilidade da sujeição do sujeito ao que se articula sem o seu
arbítrio, decisão ou vontade, sem a sua consciência, mas certamente com sua escolha
ativa, no ato mesmo em que se faz sujeito do inconsciente.
67
Seguindo Lacan afirmamos que a ética da psicanálise implica a dimensão trágica da
vida, na medida em que faz operar o desejo:
Digamos [...] que a relação da ação com o desejo que a habita na dimensão trágica se
exerce no sentido de um triunfo da morte [...] triunfo do ser-para-a-morte [...].
68
Lacan se refere à morte simbólica como a operação que sustenta o movimento
metonímico do desejo. É nesta perspectiva que a tragédia é tomada por Lacan como suporte
para se pensar a ética da psicanálise, à medida em que a experiência analítica procede por um
retorno ao sentido da ação, sentido, porém, enigmático e estenografado sob o nome de
inconsciente.
63
LACAN, Jacques. “ A ciência e verdade”. In: Escritos (p.869-892). Op. cit., p.873.
64
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.41.
65
Ibid.
66
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit.,p. 300.
67
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.57.
68
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit., p.376.
24
I.4 - Análise de uma prática clínica recortada do Campo Institucional da Atenção
Psicossocial cujo operador estruturante é o Sujeito
Orientados por esta ética, apresentaremos uma experiência clínica afirmadora da
operação do sujeito com o saber do inconsciente.
A prática analítica num CAPS, dispositivo clínico-político que fundamenta a mudança
de paradigma no campo do cuidado em Saúde Mental no Brasil, provocou-nos certas
inquietações. Estas novas estratégias de cuidado, advindas desta transformação, supõem uma
rede ampliada de dispositivos clínicos de atenção psicossocial extra-hospitalares, na qual o
CAPS é um instrumento estratégico fundamental. Sua função de ordenação da demanda do
território impõe, como função, a interconexão com diversos serviços, a saber: ambulatórios
ampliados de Saúde Mental com Oficinas Terapêuticas, Centros de Convivência, Serviços
Residenciais Terapêuticos, Leitos de Atenção Integral ( Urgência e Emergência Psiquiátricas)
em Hospital Geral, recursos sócio-culturais e comunitários, etc.
Os CAPS apresentam diversas práticas clínicas constituídas por múltiplas disciplinas
e saberes (médico-psiquiátricos, psicológicos, sociais, artísticos, etc.). Estes múltiplos saberes
e disciplinas constituem o que Laurent denominou como “[...] uma comunidade heterogênea,
que se funda sobre uma certa pragmática [...]”
69
.
Para além das convergências e impasses que esses encontros podem produzir, e de
uma suposta antinomia existente entre a prática da Psicanálise, de um lado, e a prática dos
cuidados psicossociais, do outro, propomo-nos, com a apresentação desta experiência,
sustentar que a ética da psicanálise, enquanto balizadora da posição do analista, ao tomar o
operador sujeito como seu fundamento, constitui a direção pela qual o exercício e transmissão
da psicanálise se faz possível no campo da atenção psicossocial, e pode, deste modo,
inclusive, contribuir para o redimensionamento das diretrizes políticas e assistenciais
intrínsecas a este campo.
Vale destacar, de início, que a inclusão social e o resgate da cidadania não são, na
perspectiva psicanalítica, meros objetivos reabilitadores a serem alcançados, mas sim vetores
69
LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde mental”. Op. cit., p. 165. É valido destacar esta dimensão de “uma certa
pragmática” intrínseca ao campo da saúde mental, já que no desdobramento desta dissertação apontaremos para
o DSM como “a pragmática do comportamento”. A elaboração de quais são as faces dessa pragmática inscrita no
campo da saúde mental, não é o objeto de nosso trabalho. Pretendemos, apenas, apontar que parece haver uma
certa correlação entre o pragmatismo da ciência contemporânea, na qual tomamos como paradigma o DSM, e
algumas práticas existentes nos CAPS.
25
integrantes de um campo clínico ampliado. Nesta perspectiva é a dimensão do sujeito o
operador que deve orientar o trabalho na direção da assunção da responsabilidade e da
implicação, por cada um, com suas vicissitudes. Considera-se, desta forma, que a loucura
não pode ser “enquadrada” ou o louco “adaptado” ao socius. Cada sujeito encontrará, ao seu
modo, suas possibilidades de compartilhar com o outro da vida social e, assim, seu lugar no
mundo.
Para sustentarmos a efetividade da posição analítica numa instituição como o CAPS,
tomaremos emprestado alguns princípios fundamentais do arcabouço teórico-conceitual da
psicanálise. Esta nos indica que a verdade da castração é sempre não-toda e está referida ao
saber do inconsciente. Desta forma, o desejo do analista faz com que o analista se recuse em
ocupar o lugar do Outro, e possibilite o encontro do sujeito com seu desejo. O deciframento,
portanto, está do lado do sujeito e as conseqüências que ele tirará dessa revelação são suas
prerrogativas, enquanto analisante, ao decidir que destinos dará ao seu desejo. Lacan sublinha
que o desejo do analista não é puro, mas é um desejo prevenido: o analista sabe que não pode
desejar o impossível; trata-se, portanto, de um desejo atravessado pela castração. Neste ponto
citamos Guyomard que traça o desejo do analista como “um desejo separador. É um desejo de
diferença, um desejo que sustenta a análise, um desejo de analisar – e não de ser analista.”
70
Desta forma, o que norteia a função do analista é o desejo ligado a um vazio de saber, a um
não saber.
Situaremos como essa experiência de trabalho coletivo, norteada pela ética da
psicanálise, distancia-se de um mero apaziguamento do sintoma visando, assim, o sujeito em
seu desejo. Para tanto, consideremos o alerta feito por Lacan:
Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema
inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino
particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele [o destino] torna a
voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma certa trilha, para a trilha do que é
propriamente nosso afazer.
71
Examinaremos um dispositivo de ação clínica, integrante do menu de recursos
ofertados no CAPS, chamado “grupo de referência”. Pretendemos discutir como um certo
modo “versátil” de operar, mas não por isso sem rigor ou sem ética, produz efeitos clínicos,
70
Ver em GUYOMARD, Patrick. O gozo do Trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1996, p.99.
71
Ver em LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit., p.376.
26
para além do “terapêutico”, na dimensão mesma analítica. O que aqui se afirma como
“versatilidade” é a possibilidade de operar formas de intervenção que considerem estilos
particulares dos analistas, no entanto sem perder de vista a orientação do método
psicanalítico.
Quanto ao dispositivo “grupo de referência”, tencionamos demonstrar como, num
mesmo espaço, podem se operar desde agenciamentos sócio-sanitários (encaminhamentos
para dentistas, nutricionistas, atividades de lazer, etc.), remanejamentos medicamentosos, até
a intervenções mais propriamente analíticas que podem apontar para a construção de
anteparos frente à tentativa de aniquilamento exercida pelo Outro, cuja intensidade possa,
assim, ser experimentada pelo sujeito, especialmente na dimensão da psicose. Desta forma,
verifica-se que na psicose o estatuto da alteridade pode assumir, muitas vezes, o contorno de
uma invasão de gozo sem limites experimentada, pelo sujeito, como intencionalidade de
destruição advinda do Outro.
A experiência descrita a seguir indica que o dispositivo clínico nomeado “grupo de
referência” constituiu-se como ponto de ancoragem, levando os sujeitos a construírem
respostas que possibilitaram manejos singulares dessa experiência de “invasão” por parte do
Outro.
I.4.1- A construção de um ponto de ancoragem a partir de um espaço-tempo de
referência estruturante : o “grupo de referência”
A clínica exercida nos Centros de Atenção Psicossocial tem sido objeto de pesquisa
por psicanalistas e autores orientados pela psicanálise, em nosso país, há alguns anos.
Múltiplas influências teórico-clínicas, desde a Psicoterapia Institucional Francesa e seu
principal expoente Jean Oury
72
, aos estudos institucionalistas que afirmam a potência da
transdiciplinaridade
73
,como forma diferenciada de intervenção no coletivo, foram
desenhando estes dispositivos clínicos ao longo dos últimos 20 anos. E o que a Psicanálise
tem a ver com essa “clínica”?
72
Ver em VERZTMAN, Júlio Sérgio e GUTMAN, Guilherme. “A clínica dos espaços coletivos e as psicoses”
(p.39-72). In: VENÂNCIO, A T. e CAVALCANTI, M. T.(orgs) Saúde Mental – Campos, Saberes e Discursos.
Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001.
73
Ver em VASCONCELOS, Eduardo Mourão. “Desinstitucionalização e Interdisciplinaridade em Saúde
Mental”. In: Cadernos do IPUB/IPUFRJ, n. 7. Rio de Janeiro, 1997.
27
É a partir do ensinamento de Lacan acerca da descoberta freudiana que
construímos essa experiência, buscando respostas a essa questão.
A pratica institucional é necessariamente coletiva. Alguns autores apontam o coletivo
como estratégia de resposta frente a situações de impasse clínico. Zenoni nos indica: “[...] a
clínica, às vezes, exige uma estrutura coletiva de resposta. É a clínica que exige respostas que
não podem ser dadas por um só.”
74
O dispositivo que, em especial, queremos tomar em análise recebeu, ao longo do
tempo, mandatos sócio-terapêuticos pré-determinados: de início foi-lhe direcionada a função
de ser um “grupo de família”. Esta determinação institucional foi, processualmente,
desconstruída, na medida em que a demanda endereçada aos agentes analíticos indicava a
construção de um espaço coletivo de referência que não se restringisse a marcadores
temáticos como, por exemplo, a relação familiar. Consideramos que este seria um espaço de
acolhimento às famílias, incluindo os sujeitos psicóticos e os demais sujeitos com sofrimentos
psíquicos de outras magnitudes. Partimos, portanto, do acolhimento da demanda que pudesse
ser endereçada ao Outro, sem que, necessariamente, tivéssemos que lhes dar respostas.
Estamos atentos, desta forma, ao que Soler nos adverte:
A demanda supõe o Outro. Ela o procura como bom entendedor e como lugar
suposto de solução [...]. O clínico quando cede à sugestão-sedução da demanda, reduz-
se à função do terapeuta.
75
Entende-se por terapeuta aquele que não trabalha com o pressuposto do sujeito do
inconsciente e é formado pelas diretrizes das ciências psicológicas.
Seguindo a descrição histórica do dispositivo, num outro momento do percurso
institucional tornou-se imperiosa a reformulação quanto à atenção medicamentosa, visto que
a ela se atrelava a entrada do sujeito nos projetos clínicos do CAPS e, muitas vezes, a ela se
reduzia o referido projeto do sujeito. Portanto, ao antigo “grupo de família” adicionou-se esta,
também, pré-função: a de acompanhar os efeitos medicamentosos naqueles que faziam uso de
anti-psicóticos, anti-depressivos, anti-convulsivantes, benzodiazepínicos, etc. Tornar-se-ia,
então, um “grupo de medicação”? Veremos como o discurso sobre a medicação entra como
uma dimensão que se oferece à incidência da intervenção analítica.
74
Ver em ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição – A segunda clínica de Lacan. Belo Horizonte:
Abrecampos, 2000, p.17.
75
Ver em SOLER, Colette. “O Intratável” (p.107-113). In: Psicanálise ou Psicoterapia. São Paulo: Papirus,
1997, p.110.
28
Partindo da direção ética norteada pela Psicanálise, pudemos operar também sobre esta
encomenda institucional constituindo esse ancoradouro para além das demandas (família,
medicação). Espaço-tempo proposto, portanto, para delinear a construção de referências de
ancoragem no campo do Outro, em que nós, agentes analíticos, apesar de estarmos orientados,
rigorosamente, por uma mesma diretriz estratégica, permitíamo-nos uma certa “liberdade
tática”
76
no manejo deste trabalho.
Descreveremos a seguir alguns fragmentos de situações clínicas que denotam a
sustentabilidade da posição analítica, neste espaço coletivo de intervenção, enquanto
operadora de efeitos para além do terapêutico: efeitos analíticos e, portanto, da ordem do
desejo.
I.4.2 - Uma clínica coletiva em operação a partir da incidência do sujeito
Neste trabalho coletivo encontramos um sujeito psicótico que, em muitos momentos
de nossas intervenções, costumava nos lembrar: “Isso é uma questão de estratégia!”(sic).
Consideramos que esta observação é extremamente oportuna sobre o que acontecia neste
trabalho. São estratégias e agenciamentos de cuidados de toda ordem que ali são
empreendidos frente a situações diversas que assinalamos a seguir. Um movimento erotizado
dirigido à vizinha preocupa uma irmã temerosa, principalmente, pela integridade física do
irmão psicótico, já que residem em território violento. Um outro sujeito psicótico que se irrita,
permanentemente, com a mãe, na medida em que ela não consegue aceitar sua decisão de não
tomar banho, ao passo que afirma “exalar um perfume próprio”(sic). A irmã que não entende
como seu irmão lhe exige a compra de várias fitas de vídeo cassete, sem nunca assistir a
nenhuma delas, no entanto ocupando-se, muitas horas de seu dia, em ordená-las
sistematicamente numa determinada lógica singular – ele diz: “ eu faço coleção”(sic). Pais
ausentes da vida de seus filhos por anos são presentificados no desejo desses sujeitos de
reencontrá-los, muitas vezes, com a apresentação de uma posição de recusa, por parte das
mães, de que este movimento seja realizado. Todo um trabalho, então, de implicação e
engajamento desses sujeitos com seu desejo é operado. E os encaminhamentos dar-se-ão a
partir da direção apontada pelo sujeito, levando-se em conta a importante parcela de
responsabilização pelo que lhe acomete.
76
Ver em BAIO, Virgínio. “O ato a partir de muitos” (p.66-73). In: Revista Curinga, n. 13, 1999, p.67.
29
Determinados autores, como Zenoni, afirmam que uma estrutura institucional pode
ser conveniente ao sujeito psicótico, na medida em que descentralizaria a referência ao sujeito
suposto saber, que no contexto transferencial circunscreve o analista como detentor da
verdade do sujeito. O argumento do autor indica um saber suposto diluído no contexto
institucional:
Essa posição de um sujeito suposto não saber [já que não encarnado num só analista,
mas diluído no âmbito institucional] é uma posição favorável para encontrar um
sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é
endereçado enigmaticamente [resposta possível do sujeito psicótico].
77
Desta forma, possibilita-se que o saber e o poder devastadores do Outro, assim,
muitas vezes experimentados pelo psicótico, sejam descompletados, relativizados e, até
mesmo, esvaziados.
No campo da atenção psicossocial, a dimensão social e/ou territorial são consideradas
pontos de partida e, ao mesmo tempo, pano de fundo para toda e qualquer intervenção clínica.
O conceito de território amplia-se para além da definição de área geográfica e se constitui
como suporte de referências de toda ordem (culturais, históricas,etc.) na vida do sujeito. Neste
dispositivo clínico chamado “grupo de referência” é possível observarmos como o
engendramento de diversos encaminhamentos de natureza sócio-sanitária podem assumir o
contorno de uma lógica clínica singular do desejo, tal como a seguir. A demanda por
atividades esportivas na Vila Olímpica do bairro são apresentadas, em geral pelos membros
familiares, frente à ociosidade supostamente experimentada como danosa por alguns sujeitos.
Quando estes sujeitos são convocados a se posicionarem, frente a esta demanda do coletivo de
familiares, pode-se verificar a emergência de determinadas convicções. Como exemplo
citamos um sujeito que sustenta que a vida e este mundo já lhe impõe um “trabalho pesado e
tremendamente desgastante”
78
, o que o faz solicitar, inclusive, com freqüência, que possamos
poupá-los de vir com assiduidade ao CAPS.
Isto nos faz considerar, na radicalidade, a insustentabilidade do chamado “contrato
terapêutico” / “projeto terapêutico” naquilo que ambos incorporam de um impossível
77
Ver em ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição: A segunda clínica de Lacan. Op. cit., p.11 e 20.
78
Fragmento do discurso de um sujeito psicótico frente à tentativa de um profissional da equipe técnica em
construir, junto com ele, um projeto de tratamento.
30
terapêutico: há algo da dimensão de um intratável nesta empreitada – a divisão do sujeito
79
.
Dimensão esta que o analista deve incluir e sustentar em sua prática clínica no CAPS. Se a
divisão é constitutiva do sujeito, aquilo de que se pode tratar são seus efeitos significantes.
É a partir do um a um, do caso a caso, que a direção de trabalho deve ser tomada. As
estratégias de “reinserção social” se não forem articuladas a partir da direção apontada pelo
sujeito, podem tornar-se mecanismos adaptadores e empobrecedores do sujeito e de seus
enigmas. Neste contexto, lembramos uma psicótica que passou vinte e sete anos ininterruptos
de sua vida internada num grande manicômio. Chega ao CAPS depauperada, com o corpo e
seu ser marcados pelas cicatrizes do abandono. Sua aparência expressa os longos anos de
institucionalização: orelha parcialmente decepada, desdentada, marcha comprometida, fala
desarticulada. Pôde, no seu próprio tempo, e antes de qualquer atitude intervencionista da
equipe clínica, formular seu desejo de “colocar dentes”, pois havia se enamorado de um
cliente do CAPS, e passou a se preocupar com sua “ imagem” (sic).
Em outros extratos clínicos é a demanda de intervenção de uma lei de ordenamento
que se apresenta: o Outro não barrado pela lei simbólica ordenadora pode compelir o sujeito
psicótico eroticamente em sua relação no laço social. Em outros momentos pode produzir
atitudes hostis do sujeito numa tentativa de defesa frente a esse Outro gozador e invasivo. A
posição do analista, portanto, é a de não responder como Outro do saber e, assim, não
assumir uma posição prescritiva, mas possibilitar a emergência de respostas singulares
construídas pelo sujeito.
Podemos afirmar, portanto, a partir da experiência de tratamento psicanalítico nesse
espaço de referência, que amarrações significantes podem se constituir a partir do discurso e
posição do sujeito, construindo bússolas que poderão, mesmo que provisoriamente, fornecer
algum norte em seu percurso de errância.
A posição de “saber não saber”, resultante do movimento clínico que aponta para a
impossibilidade do analista saber de antemão, indica que “cabe ao sujeito psicótico construir
seu próprio saber”
80
.
Ao considerarmos uma certa estruturação da rede intrainstitucional, constitutiva dos
CAPS, prenhe de saberes especializados, formações e discursos diversos, há um importante
desafio a ser enfrentado: os profissionais e cuidadores pertencentes à equipe clínica devem
79
Ver em BERENGER, Enric e outros. “Ética e terapia em psicanálise”(p. 29-64). In: Psicanálise ou
Psicoterapia. Op. cit., p.49.
80
Ver em BAIO, Virgínio. “O ato a partir de muitos”. Op. cit., p.67.
31
sustentar a coletividade deste trabalho a partir da elaboração de um saber fazer que não se
sabe a priori e que, portanto, não é suposto! Vale sublinhar que este saber não suposto pelos
clínicos se edifica na contratualidade de estratégias acionadas pela equipe, na medida em
que são, permanentemente, revistas e reinventadas a partir da originalidade de cada caso.
É ao abrir espaço para o que insiste no real do sintoma e, portanto, de real no sujeito
que o analista opera. É a ética do desejo, desejo de obter a diferença absoluta
81
que, assim,
norteia o trabalho do analista num dispositivo institucional como o CAPS. Afirmar a
Psicanálise como um modo de operação na Clínica da Atenção Psicossocial só é possível a
partir da posição do analista segundo a qual a dimensão do sujeito não se reduz a
enquadramentos de condutas e comportamentos que devem se adequar à ordem socializadora
e aos ditames da cidadania. Vale destacar, quanto ao desejo do analista, o que Souza nos
indica:
[...] para que o analista venha a saber o que tem que saber é preciso fazer uma escolha:
escolha de esvaziar-se do saber referencial, desapegar-se do saber dos livros e da
experiência, e assim criar lugar para o saber textual, saber inconsciente, a ser recolhido
na língua particular de cada analisante. Esta escolha cujo nome próprio é desejo do
analista é um ponto vazio de saber e de imagens, avesso a identificações, propício à
emergência da diferença, ponto de ancoragem a partir de onde o analisante se lança
em sua busca. [...] Assim, o essencial do sujeito suposto saber, esse constituinte
ternário que não pertence nem ao analisante nem ao analista, se amarra entre um e
outro a partir desse elemento comum – a aposta no saber inconsciente – que move o
sujeito em sua busca e define o desejo do analista em sua função
82
.
81
A esse respeito ver LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Op. cit.
82
SOUZA, Neuza Santos. A propósito do sujeito suposto saber (mimeo), p. 119 e 120. A discussão que
interconecta o desejo do analista ao sujeito suposto saber, como fundamento da transferência, iremos articulá-la
no Capítulo III.
32
CAPÍTULO II: A PRAGMÁTICA DO COMPORTAMENTO E A
PSICOPATOLOGIA PSICANALÍTICA
Este campo clínico nos possibilitou o encontro com determinadas práticas terapêuticas
indicadoras de uma certa concepção do sujeito marcada por uma outra relação com o saber.
Correlacionamos estas práticas terapêuticas (médicas e psicológicas) ao campo do que
estamos chamando de ciência do comportamento. Circunscrevemos, neste campo, como seu
paradigma, o manual classificatório diagnóstico americano em sua quarta versão (DSM-IV) e
tencionamos articular como sua constituição empírico-pragmática pode operar numa outra
direção diferente daquela em que opera a psicanálise.
O saber nominalista do DSM define uma posição conceitual na qual a linguagem não
tem relação com o real. Para a psicanálise, no entanto, a conjunção entre o real e a linguagem
é condição sine qua non.
Veremos como o sintoma, verdade do sujeito, inscreve-se na psicopatologia
psicanalítica como o real do saber do sujeito.
II.1- O advento do DSM-IV
83
e sua operação de forclusão do Real
Tencionamos, nesta seção, começar a verificar as vicissitudes de um modelo teórico,
correlato de uma prática terapêutica, que desconsidera a incidência do real do sujeito como
determinante de seu destino. Esta tarefa seguirá ao longo do capítulo.
Destacamos, também, a diluição do nome do sujeito freudiano, a histeria, nestes
manuais como efeito do acordo pragmático que dispensa o compromisso com teorias
psicopatológicas estruturadas e, por outro lado, funda-se num inventário de sintomas forjados
a partir dos comportamentos observáveis.
II.1.1- DSM: um fisicalismo contemporâneo?
No campo médico-psicológico de orientação comportamental, “o diagnóstico é o
processo cujo objetivo é o discernimento, o reconhecimento de determinada doença.”
84
A
83
DSM-IV - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington, D. C.: American Psychiatric
Association, op. cit..
33
entidade nosográfica é definida, perfeitamente, através de três dimensões: a descritiva
(quadro), a anatômica (substrato) e a etiológica (agente), compondo a chamada nosografia
tridimensional.
Com a descoberta do substrato anatômico da “paralisia cerebral”, a partir de lesões
anatômicas localizadas no cérebro, definiu-se o seu agente causal (o treponema da sífilis). A
partir disso, alguns outros substratos anatômicos, em outras demências (Alzheimer, Pick,
etc.), foram localizados. Estas “descobertas” abrem caminho para a crença na origem
orgânica das doenças mentais. Lançam-se, desta forma, as bases para a edificação da vertente
organicista da medicina mental seguindo o modelo anátomo-patológico cerebral.
No entanto, à medida em que essas doenças eram melhor estudadas, constatava-se a
não relação direta, “mecânica”, entre o processo orgânico e a sintomatologia
85
. Concluiu-se
que a patogenia se construía, com freqüência, multifatorialmente. Verificou-se a necessidade
de renunciar a qualquer correlação específica entre diagnóstico clínico e diagnóstico
etiológico.
A diversidade de concepções que teceram, ao longo da história, o campo
epistemológico da medicina mental nos fornece o testemunho da variação teórico-político-
ideológica determinante da visão dos fenômenos psíquicos. Ao acompanharmos esta
diversidade, observamos a prevalência atual da posição fisicalista
86
na compreensão destes
fenômenos:
A psiquiatria, desde seus primórdios, se vê enredada nessa dupla possibilidade de
transformar e qualificar o sujeito-cidadão, oscilando, desde seu surgimento, entre uma
concepção física e uma concepção moral da perturbação mental. Se com o alienismo
francês do início do século XIX – cujos principais representantes foram Pinel e
Esquirol – a vertente moral de fato prevalecia, a concepção moreliana de
degenerescência e, posteriormente, a nosografia kraepeliniana fazem o pêndulo oscilar
na direção do fisicalismo mais estrito.
87
84
KAMMERER, Théophile e WARTEL, Roger.”Diálogo sobre os diagnósticos”. In : LACAN, Jacques e outros,
A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989, p. 28.
85
LACAN, Jacques e outros. A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989.
86
Chamamos de fisicalista a posição conceitual edificada sob a égide da concepção de que as doenças mentais,
e os demais fenômenos psíquicos, são causados por alterações orgânicas.
87
RUSSO, J. A e HENNING, M.F. “O sujeito da psiquiatria biológica e a concepção moderna de pessoa”. In:
Antropolítica. Niterói:Universidade Federal Fluminense, 1999, p. 39.
34
Na contemporaneidade vivemos o que alguns autores consideram um “monismo
fisicalista radical”
88
no campo da ciência do comportamento
89
, agente e efeito, a um só tempo,
a grande mudança terminológica e conceitual ocorrida no DSM que, em cuja pretensão de
[...] ateoricismo, adota, de fato, uma teoria específica acerca das perturbações.”
90
Tratar-
se-ia, então, de uma certa ingenuidade epistemológica conceber o DSM sustentado por uma
suposta visão objetiva acerca dos fenômenos mentais que não fosse informada por nenhum
tipo de teoria?
Consideramos que a ênfase na interpretação fisicalista, intrínseca à medicina
comportamental organo-biológica, parece embrenhar um fio condutor subjacente às
descrições dos fenômenos psíquicos feitas pelo manual. Desta forma, o suposto ateoricismo
mascararia uma intencionalidade político-ideológica e, até mesmo, mercadológica, na medida
em que a posição de disputa de mercado fosse intensificada pelo desejo de poder e pelos
interesses econômicos das indústrias farmacêuticas:
[...] os psicotrópicos tiveram papel importante, e não inocente, na evolução dos
conceitos diagnósticos. Responsável por isso é, sobretudo, o marketing farmacêutico.
91
II.1.2 – Histeria: o nome do sujeito freudiano dissolvido nos manuais classificatórios
diagnósticos contemporâneos
Cabe destacar que, guiados por este suposto não compromisso com qualquer teoria
psicopatológica, os autores do DSM, a partir da terceira edição, e da CID 10
92
suprimem as
categorias diagnósticas de histeria e neurose de seus manuais. Este fato merece, ao nosso ver,
um exame mais aproximado de seus efeitos. Para isso, consideramos necessário situar,
brevemente, o percurso histórico que circunscreverá o surgimento da categoria histeria até
seu suposto “desaparecimento”.
88
Ibid., p. 44.
89
Cabe ressaltar que o que nomeamos como ciência do comportamento refere-se aos procedimentos terapêuticos
aplicados pelo campo da psiquiatria e da psicologia de orientação biológica-comportamental.
90
RUSSO, J. A e HENNING, M.F. “O sujeito da psiquiatria biológica e a concepção moderna de pessoa”. In:
Antropolítica. Op. cit., p. 48.
91
ZARIFIAN, Édouard.”Um diagnóstico em psiquiatria: para quê?”. In:LACAN, Jacques e outros. A Querela
dos Diagnósticos, op. cit., p. 49.
92
CID 10/ ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE – Classificação de transtornos Mentais e de
Comportamento da Classificação Internacional de Doenças. 10
a
ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
35
A histeria não é um conceito evolutivo. No decorrer de mais de um século de
existência, reconhecida como categoria diagnóstica no campo médico encarnou uma
variedade de concepções, constituindo o que se poderia considerar uma certa plasticidade
conceitual.
Um estudo realizado por Tannous
93
nos aponta que a histeria encontrada nas
classificações, desde Philippe Pinel (século XIX), sob a categoria de neurose, é definida em
1875 como “[...] estado doentio dos nervos” [...], e tornou-se, então, objeto de estudo dos
neurologistas.”
94
. Note-se, também, o caráter de imprecisão, destacado pela autora, quanto ao
correlato significante de histeria, a saber, neurose: “[...]a palavra neurose na sua origem
designava afecções neurológicas sem lesões orgânicas precisas.”
95
Vale destacar, a partir do trabalho de pesquisa supracitado, a constatação de que
mesmo banida da classificação atual a categoria “histeria” insiste em retornar no discurso
médico-psiquiátrico vigente:
O DSM III [lançado em 1980] estabelece critérios operacionais de inclusão e exclusão
para a classificação das doenças mentais, uma abordagem descritiva e uma avaliação
multiaxial. Estas mudanças provocaram a extinção da categoria neuroses, a dissolução
de seu sub-tipo histeria em diversos outros [distúrbios de somatização, de conversão e
dissociativos] e a eliminação de seu nome. [...] Situação peculiar, já que ainda é
utilizado [o diagnóstico histeria] nas diferentes atividades desenvolvidas pelos
médicos.
96
A autora considera que a terceira e quarta edições do DSM, com a pretensão de serem
ateóricos, surgem como a salvação da clínica imersa no caos produzido pela “babilônia
conceitual” instaurada no campo da medicina mental. Segundo esta psiquiatra, as modernas
classificações americanas podem ser entendidas como uma reação ao que chamou de:
[...]influência da psicologia freudiana, que supunha uma causa dinâmica para a doença
mental, [e] pela dúvida que alguns psiquiatras levantaram à existência da doença
mental[...]
97
. [Esta última referência é dirigida ao movimento intitulado de anti-
psiquiatria].
Estes fatores, portanto, teriam causado a “desvalorização” do diagnóstico psiquiátrico.
93
TANNOUS, Leila.A clínica e as classificações diagnósticas em Psiquiatria. Dissertação de Mestrado:
IPUB/UFRJ, 1996.
94
Ibid., p. 111, 112.
95
Ibid., p. 113.
96
Ibid., p.vi;2.
97
Ibid., p.5.
36
Outros autores ratificam que a supressão do termo nosográfico “histeria” dos manuais
classificatórios atuais não determinou o seu desaparecimento, pelo contrário:
A histeria se evapora de algumas classificações contemporâneas.[Entretanto]... sua
sutileza está em despontar nos interstícios das categorias que a evitam.
98
Convém lembrar que para o campo da psicanálise a histeria é um conceito
fundacional. Freud concebe a psicanálise a partir da clínica com as histéricas. Em um texto de
1892, intitulado “Sobre a teoria dos ataques histéricos”, afirma que:
[...] para a explicação dos fenômenos histéricos, é indispensável supor a
presença de uma dissociação – uma divisão no conteúdo da consciência.
99
A idéia de retorno de uma lembrança, de um estado psíquico experimentado num
tempo anterior
100
como elemento presente e recorrente nos ataques histéricos, é o indicador
que abre as portas para a teoria do trauma e do recalque
101
. Freud nos aponta:
[...] A lembrança que forma o conteúdo de um ataque histérico [...] é o retorno do
evento que causou a irrupção da histeria – o trauma psíquico. [...] é uma lembrança
inconsciente [...].
102
A clínica com as histéricas, portanto, desvela o processo do recalcamento e impõe a
Freud a descoberta do Inconsciente. Em seus primeiros trabalhos publicados, Freud situa a
histeria no alicerce do edifício da psicanálise. Em “A etiologia da histeria”(1896), ele sinaliza,
apontando a evolução de suas reflexões feitas anteriormente:
Propus[...] a idéia de que a eclosão da histeria pode ser[...] atribuída a um conflito
psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por
parte do eu e solicita um recalcamento. Na época, eu não soube dizer quais seriam as
circunstâncias em que um esforço defensivo desse tipo teria o efeito patológico de[...]
jogar no inconsciente uma lembrança que fosse aflitiva para o eu e de criar um
sintoma histérico em seu lugar.
103
98
KAMMERER, Théophile e WARTEL, Roger. “Diálogo sobre os diagnósticos”, op. cit, p. 40.
99
FREUD, Sigmund. “Sobre a teoria dos ataques histéricos” (1892). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Vol.I,p.219.
100
Ibid.
101
Esta articulação foi feita no início do Capítulo I.
102
Ibid., p.219 e 220.
103
FREUD, Sigmund. “A etiologia da histeria” (1896).In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de Sigmund Freud. Op. cit, Vol III, p. 195.
37
É a partir da experiência clínica, portanto, que Freud forja o conceito de inconsciente,
correlato da concepção de divisão do sujeito. Desta forma, a categoria histeria e o conceito de
inconsciente se enlaçam na edificação da psicanálise.
A histeria, associada estruturalmente à noção de retorno da causa, do trauma, do
recalcado, introduz na cena clínica o desejo para além da demanda. Conforme nos indica
Elia:
[...] A histérica vem para requerer o inconsciente: ela tampouco sabe qual é o objeto
de seu desejo, mas sabe, inconscientemente, que ele não está ali onde o sujeito da
consciência o percebe, ou seja, em sua demanda .
104
Na dissertação, anteriormente citada, a autora aponta para a intencionalidade da
“morte conceitual da histeria” na atual medicina do comportamento. Faz esta afirmação por
sua ausência de lugar no modelo classificatório vigente que “[...] prioriza os aspectos
biológicos das doenças mentais.”
105
Pode-se afirmar que estes manuais classificatórios
refletem os pilares ideológico-teóricos que sustentam o contemporâneo paradigma biomédico
comportamental. Este se propõe a descrever e explicar os fenômenos mentais assumindo uma
suposta posição de neutralidade.
O levantamento desses pressupostos do DSM nos abre caminho para situar a
incidência da forclusão do real na contemporânea ciência do comportamento. Desta forma, o
DSM, enquanto paradigma desta ciência, tentaria apagar o impossível: há algo do real do
sujeito que escapa a enquadramentos farmacológicos e psicoterapêuticos, pretensamente
ordenadores dos sinais e sintomas que são regulados por freqüência estatística.
Conforme nos diz Vieira:
[...] Hoje, com o DSM-IV, cada nome corresponde, a princípio, a um acontecimento
orgânico, real e cerebral. Para cada síndrome um nome, para cada acontecimento uma
gaveta. Esta multiplicação de categorias responde à tentação da ciência de efetuar uma
substituição. Considerando todas as marcas do sujeito como sinais do eu, ela oculta
um sobre o outro e realizando assim seu programa, ou seja, a foraclusão do sujeito
106
.
104
ELIA, Luciano. A Psicanálise e o Social – Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Clínica do
IP/UERJ, 1999, p. 93.
105
TANNOUS, Leila. A clínica e as classificações diagnósticas em Psiquiatria, op. cit., 1996.p.128.
106
VIEIRA, Marcus André. “Dando nome aos bois: sobre o diagnóstico na psicanálise”. In: FIGUEIREDO, A.
C. (org.) Psicanálise – Pesquisa e Clínica. Rio de janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001, p.172.
38
II.2 – DSM: da perspectiva psicobiológica à empírico-pragmática
O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – tradução do título
norte-americano Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
107
(DSM) –
implementado pela Associação Psiquiátrica Americana, atualmente em sua quarta versão, tem
despertado importantes críticas de autores do campo teórico e clínico da Medicina
Psiquiátrica e da Psicanálise.
Partiremos de uma contextualização histórica de seus antecedentes visando, com isso,
dimensionar a complexidade desse empreendimento grandioso.
A ênfase na utilidade do manual para a prática clínica e em sua credibilidade,
sustentada por uma ampla base empírica, são os aspectos prioritários do projeto. É ressaltado
que a razão de ser do manual apóia-se em evidências empíricas.
Considerando a multiplicidade de nomenclaturas construídas ao longo de quase dois
milênios, diferentes e, algumas vezes, divergentes quanto a sua base fenomenológica e
etiológica, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou a sexta edição da Classificação
Internacional de Doenças (CID-6) incluindo, de forma inaugural, uma seção para os
transtornos mentais.
Em 1952, o Comitê de Nomenclatura e Estatística da Associação psiquiátrica
Americana desenvolveu uma variação da CID-6 publicando, assim, a primeira edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos mentais (DSM-I). Constituía-se como um
glossário de descrições de categorias diagnósticas cujo eixo se balizava numa perspectiva
psicobiológica, considerando os transtornos mentais como reações da personalidade a
fatores psicológicos, sociais e biológicos. O DSM-II (1968) tinha uma configuração
semelhante ao DSM-I eliminando, no entanto, a ênfase nesta perspectiva reativa.
Os DSMs foram constituídos de forma coordenada com as versões das CIDs. Desta
forma, o DSM-III, publicado em 1980, foi implementado de maneira equivalente à versão
nona da CID. No entanto, o DSM-III representou um certo divisor de águas quanto aos
recursos metodológicos e conceituais utilizados nos manuais anteriores:
107
DSM- IV/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit.
39
[...] O DSM-III introduziu um número importante de inovações metodológicas,
incluindo critérios explícitos de diagnóstico, um sistema multiaxial e um enfoque
descritivo que tentava ser neutro em relação às teorias etiológicas.
108
Esta terceira versão sofreu, em 1987, uma revisão, resultando no chamado DSM-III-R.
Pode-se considerar que o DSM-III representou uma ruptura evidente com o
fundamento psicopatológico e se constituiu numa perspectiva empírico-pragmática. Desta
forma, apresenta-se como um sistema de classificação “operacional”, “ateórico” e unívoco.
O rigor conceitual é considerado a partir da aplicabilidade dos critérios diagnósticos,
definidos segundo extensas pesquisas empíricas, à determinada situação clínica.
Pereira nos esclarece:
[...] Bercherie considera que a chave para decifrar o DSM-III é o behaviorismo, à
medida em que este interessa-se unicamente pelos comportamentos diretamente
observáveis.
109
(grifos nossos).
E ainda nos chama a atenção para a interpretação feita por outro autor acerca da
influência de outro viés conceitual-teórico presente no DSM-III:
[...] Quanto a Singer [...] acredita que é antes a psiquiatria biológica que ordena
implicitamente este sistema nosográfico.
110
(grifo nosso).
Ao tomar como referência Bercherie, Pereira critica o caráter falsamente ateórico do
DSM-III, que ocultaria, na verdade, um “politeorismo real”.
O surgimento do DSM-IV e sua publicação em 1992 deram-se de forma compatível
com os projetos clínicos e de pesquisas da CID-10. Os idealizadores e realizadores destes
manuais trabalharam em estreita relação e sob mútua influência. Convém destacar que no
DSM-IV o transtorno mental é afirmado conceitualmente como síndrome, esta sendo
compreendida enquanto manifestação da disfunção do padrão comportamental, biológico
ou psicológico do indivíduo
111
. A discussão sobre a causa é forcluída.
O próprio vocábulo “transtorno” assume um lugar de adorno no discurso visando à
boa funcionalidade do sistema classificatório. Conforme nos indica Pereira:
108
Ibid., p. xvii.
109
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos
Editorial,1997, p. 214.
110
Ibid., p.214.
111
Ibid., p. xxi.
40
O termo transtorno não concede, portanto, nenhuma especificidade ao quadro
clínico que designa, mas ocupa uma função que se poderia chamar de retórica,
necessária ao bom funcionamento desse sistema, fundado em um acordo
convencional quanto às categorias nosográficas a serem empregadas, e quanto à
forma a determiná-las clinicamente.
112
A escolha deste termo não é questionada pelos autores do DSM-IV (1994). Eles se
preocupam, no entanto, em justificar o uso do adjetivo “mental” considerando a imprecisão
deste vocábulo e uma certa significação retrógrada evocada por ele, no engendramento de um
suposto dualismo mente/corpo. Sua definição de “transtorno mental” é, assim, indicada:
[...] a expressão transtorno mental infelizmente implica uma distinção entre
transtornos “mentais” e transtornos “físicos”, que é um anacronismo reducionista
do dualismo mente/corpo. [...] O problema criado pela expressão transtornos
“mentais” tem sido muito mais nítido do que sua solução, e, infelizmente, ela
persiste no título do DSM-IV, porque ainda não encontramos um substituto
apropriado.
113
Este enunciado nos remete a uma análise indicadora do mal-estar produzido pela
expressão “mental”. O que é colocado em questão não é o termo/significante “transtorno” mas
o adjetivo “mental” que, ao ser considerado um “problema”, incomoda por sua imprecisão e
inconsistência. O vocábulo “mental” não se coaduna à pretensão do Manual por não conter,
em sua significação, a possibilidade de uma “evidência empírica”.
Isto nos permite pensar que há algo no transtorno que, por ser “mental”, inconsistente
e não-concreto, escapa às evidências. Portanto, o “mental”, que aguarda para ser substituído,
insiste em permanecer no real do incômodo produzido pela inconsistência de sua significação.
Pode-se hipotetizar que um complemento adjetivo substituto ideal fosse o de
“cerebral”, constituindo a expressão transtorno cerebral; mas este também não responde às
evidências empíricas. No entanto, há um outro significante capaz de produzir sentido ao
propósito do DSM-IV, qual seja o de transtorno comportamental.
Cabe ressaltar, desta forma, que à perspectiva psicobiológica orientadora das primeiras
versões do manual acrescentou-se, no DSM-IV, esta marcada ênfase na dimensão
comportamental. Esta posição metodológica e, supostamente, neutra que subsidia o que
112
Ibid., p. 208.
113
DSM- IV/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit.,p. xix.
41
estamos chamando de uma pragmática do comportamento, marcada pela desimplicação com a
etiologia, e, portanto, com a causa, dá relevo à manifestação observável do sintoma, em
detrimento da produção de saber comprometido com a verdade como causa – sendo esta
última, a posição ético-metodológica da clínica psicanalítica.
Que conseqüências podem ser produzidas com a exclusão do sujeito e de seu sintoma
enquanto verdade que o causa? A clínica reduz-se à dimensão fenomênica do comportamento,
tendo como função utilitarista apreendê-lo, adaptá-lo e encaixá-lo em padrões sociais
aceitáveis. Vale ressaltar que o sintoma enquanto função, invenção e solução do sujeito é
tamponado, sendo suas forças domadas para o alcance do bem-estar social.
O manual é enfático ao afirmar que seu propósito não é o de classificar pessoas, mas
sim os transtornos que essas pessoas apresentam. As pessoas são, portanto, veículos
portadores destas classificações. Expressões como “um esquizofrênico”, “um alcoólico” são
evitadas e, em seu lugar, sentenças consideradas mais adequadas a este propósito são
proferidas, tais como: “um indivíduo com esquizofrenia” ou “um indivíduo com dependência
alcoólica”.
Cabe ressaltar, portanto, que a operação classificatória do manual incide sobre A
doença como entidade adicional e independente do indivíduo que a porta, forcluindo, assim, o
sujeito como autor que encarna o sintoma e presentifica a doença.
Vieira, a respeito do DSM-IV, comenta:
[...] Busca-se assim circunscrever a essência das doenças através de uma lista de seus
nomes e significações. Através da constituição deste inventário, se visa a essência
da patologia, do adoecer esquizofrênico no ato do diagnóstico e não o sujeito,
prescindindo-se do indivíduo doente. Esta evacuação do sujeito, um outro nome para
sua forclusão, por si só, situa o ideal científico desta classificação.
114
(grifos nossos).
É importante sublinhar que tomamos o ideal da ciência, conforme indica Lacan, como
apagamento da verdade como causa e pela costura da verdade ao saber.
115
114
VIEIRA, Marcus André. “O catálogo e a chave: sujeito da ciência e sujeito do inconsciente”. In: Psicanálise
e ciência. Rio de Janeiro, p. 85.
115
Trataremos, no Capítulo III, desta questão articulando-a ao texto de Lacan “A ciência e a verdade”.Veremos
como a “evacuação do sujeito” se inscreve no ideal cientificista da contemporaneidade.
42
Vale destacar que hoje o edifício do DSM sofre abalos importantes a partir de críticas
oriundas do próprio campo médico. A principal crítica atualmente feita ao manual americano
centra-se no questionamento da validade do DSM como método científico. Este debate
ancora-se na discussão acerca das conseqüências da exclusão da Psicopatologia, enquanto
sustentação conceitual teórico-clínica, dos sistemas de classificação diagnóstica.
Pereira nos adverte:
[...] a abolição do debate psicopatológico em favor de um acordo pragmático.
[...]
116
. [assim como] A constituição de uma espécie de esperanto psicopatológico,
unificando pragmaticamente os objetos de pesquisa, pode apenas enfraquecer o
conjunto das ciências, sobretudo se o que se pretende é fundar o campo comum
entre elas em critérios exclusivamente empíricos, apesar das especificidades de
seus objetos formais.
117
(grifos nossos).
O autor chama a atenção para a incompatibilidade entre uma posição exclusivamente
classificatória e a abordagem psicopatológica. Afirma:
[...] o projeto nosográfico do DSM-III e de seus sucessores não pode, em
nenhum caso, pretender fundamentar uma psicopatologia, pelo menos tal
como a concebe Pierre Fédida: “Psicopatológico é um tal conhecimento
formado na experiência íntima da paixão”.
118
Sob a forma de uma “bricologem taxonômica inédita”,assim nomeada por Éric
Laurent
119
, podemos chegar à conclusão de que o DSM encerra um projeto de uma suposta
clínica com, o que poderíamos nomear de, prazo de validade. Nas palavras de Laurent:
[...] Foi assim que se engendrou um modo eminentemente perecível de clínica,
querendo-se global, mundial; integrando todas as tradições clínicas, todas as práticas
em suas diversidades.
120
A discussão sobre o sintoma, no seio da comunidade psiquiátrica americana, invade
as normas do campo social produzindo “uma verdadeira descrição psiquiátrica dos
116
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. Op.cit., p. 213.
117
Ibid., p.216.
118
Ibid., p. 217.
119
LAURENT, Éric. “A extensão do sintoma hoje”(1998). In: Revista Opção Lacaniana, São Paulo, Edições
Eólia, vol. 23 (1998), p. 18.
120
Ibid., p.18.
43
comportamentos sociais”
121
. A clínica é decomposta em síndromes fragmentadas. Ao
retomarmos o campo conceitual da psiquiatria clássica, verificamos que a mesma marcou a
nosografia e nosologia freudianas e vice-versa. O DSM-III nos anos 80 rompe com esta
influência mútua entre a psicanálise e a psiquiatria, sustentando, especialmente, a abolição da
origem, da causa no processo de sofrimento subjetivo. O DSM-III propõe-se a ser um
catálogo de diagnósticos descritivos, empiricamente observáveis, que produz como
conseqüência um projeto de mecanização do psíquico constituindo, desta forma, uma certa
filosofia da mente aproximada às finalidades do cognitivismo
122
.
Outra ruptura fundamental foi a seguinte: Edificado sob o critério operacional-
pragmático, o DSM-III e seus sucessores (DSM-III-R e DSM-IV) parecem ter assumido
uma posição intencional e decidida de retirar da psiquiatria a influência filosófica da
Fenomenologia.
Uma psiquiatra americana, Nancy C. Andreasen, afirma que o DSM-III produziu um
declínio incisivo no ensino da avaliação clínica cuidadosa e enriquecida pelo conhecimento
da psicopatologia. Sinaliza que:
[...] Os estudantes são levados a memorizar o DSM ao invés de aprender os complexos
dos grandes psicopatologistas do passado. [Por volta de] 2005, este declínio se
tornou tão sério que se poderia referir a ele como “a morte da Fenomenologia
nos Estados Unidos”.
123
(tradução nossa).
Segundo Andreasen, o ensino e o estudo da Fenomenologia e dos clássicos em
psicopatologia, com a criação do DSM, passam a ser ignorados e considerados irrelevantes
por influentes centros formadores universitários americanos (Universidade de Washington
em St. Louis, Johns Hopkins em Baltimore, Hospital psiquiátrico de Iowa na cidade de Iowa e
o Instituto Psiquiátrico de Nova York).
A novidade apontada por ela é a de que o empreendimento grandioso, complexo e de
sucesso representado pelo DSM-III e por seus sucessores na década de 80 e 90, começa a dar
sinais de falência e fracasso no segundo milênio.
121
Ibid., p.18.
122
Trata-se de um campo conceitual pertencente às ciências do comportamento.
123
ANDREASEN, Nancy C. “DSM and the Death of Phenomenology in America: An Example of Unintended
Consequences”. Schizophrenia Bulletin. Maryland Psychiatric Research Center: Oxford University Press,dec.
2006, p. 12.
44
Este processo não se dá sem contradições. Paradoxalmente numa era voltada para a
afirmação paradigmática da Medicina baseada nas Evidências, na qual a prática médica é
sustentada pela hegemonia do saber das Neurociências, esgueiram-se, esprimidas, sufocadas
e, mesmo, quase abolidas por estas tendências contemporâneas, a Psicopatologia e a
Fenomenologia como dissidentes constituintes de uma Psiquiatria Clássica sem as quais a
prática médico-psiquiátrica reduz-se à verificação, catalogação e adequação dos
comportamentos sociais.
Os erros do DSM, apontados por esta autora, apóiam-se no fato de que os critérios
operacionais desse sistema classificatório diagnóstico incluem, somente, alguns sintomas
característicos de um transtorno determinado; eles não provêem uma descrição mais
abrangente e se baseiam num mínimo de sintomas necessários para se construir um
diagnóstico.
Um segundo aspecto é a redução de uma ferramenta central para a realização do
processo de avaliação diagnóstica, a saber a história de evolução do sintoma contada pelo
paciente, em favor do uso das listas de verificação dos critérios do DSM, e a partir de uma
posição empírico-pragmática.
Um terceiro e último indicador feito por Andreasen é a perda da validade para se
alcançar a confiabilidade. A autora afirma de forma bombástica:
[...] Embora, criar diagnósticos estandardizados que facilitariam a pesquisa tenha
sido um objetivo principal, os diagnósticos do DSM não são úteis para a
pesquisa, por causa de sua falta de validade.
124
(grifo e tradução nossos).
A avaliação desta autora converge com a de um autor brasileiro do campo da
psiquiatria, Cláudio Banzato, quando este, ao referir as questões emergentes no Congresso
Europeu da Associação Mundial de Psiquiatria, realizado em Londres no ano de 2001, destaca
a preocupação da Associação Americana de Psiquiatria com a perda de credibilidade e a
ausência de uma sólida base científica nas categorias diagnósticas que as sucessivas mudanças
nestas nomenclaturas podem engendrar.
Banzato ressalta que o maior desafio da atualidade é a sustentabilidade da validade
dos Sistemas Diagnósticos – a fidedignidade passa a ocupar um papel secundário em relação à
validade. Sublinha,como uma indicação feita pelas discussões realizadas neste Congresso, o
124
Ibid. p. 19.
45
necessário esforço para se construir uma classificação baseada em etiologia, por considerar-
se, entre outros aspectos, que categorias diagnósticas reificadas obstaculizam o ensino da
psiquiatria e a pesquisa científica. O autor chama à atenção acerca do reducionismo produzido
pelo sistema classificatório diagnóstico contemporâneo com o qual se pretende dar conta da
complexidade da clínica.
Como indicação final da Associação Mundial de Psiquiatria, Banzato refere-se à
abertura do campo psiquiátrico para o “ressurgimento da psicopatologia médica”:
[...] a psicopatologia é um discurso (logos) sobre o pathos do psiquismo e [...] os
sistemas de classificação silenciam o discurso em favor de um diagnóstico
padronizado, estandardizado e repetitivo.
125
125
BANZATO, Cláudio E. M. “ Editorial: Sistemas de classificação diagnóstica passam por moratória:
tendências de avaliação e pesquisa em psiquiatria”. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, vol. iv, n. 3, Setembro de 2001, p.9.
46
II.3 – O saber do real do sintoma na psicanálise e o “nominalismo pragmático” do DSM
No campo da Psicanálise sustentamos que o DSM não tem validade como método
científico por não lidar com o real, na medida em que reduz seus instrumentos de aferição aos
aspectos manifestos do sintoma. Sobre a relação entre o real e a Ciência, Lacan nos afirma:
Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que
não sem hesitação. Isso só é certo e transmissível pelo discurso histérico. É nele,
inclusive, que se manifesta um real próximo do discurso científico. Convém notar
que falei do real, e não da natureza.
126
(grifos nossos).
A estrutura, portanto, revela-se graças à posição do sujeito frente ao sintoma. A clínica
psicanalítica não reduz o diagnóstico à manifestação fenomênica do sintoma, mas afirma, a
partir do discurso do sujeito, onde, nesse sintoma, implica-se uma posição na fantasia que o
determina.
O saber e a prática médica atual sustentam-se na potência difusora do modelo
pragmático constituído pela medicina baseada nas evidências. Esta orientação discursiva tem
se afirmado de forma hegemônica no campo da medicina contemporânea. Frente a isso, uma
primeira questão emerge para nós, qual seja a de interrogar que tipo de ciência fundamenta
esta direção discursiva.
Ao considerarmos o paradigma pragmático de finalidade adaptativa, construído
segundo as vertentes epidemiológica e estatística, intrínseco à medicina contemporânea, pode-
se verificar a redução feita, neste contexto, do corpo ao organismo. Lacan nos chama a
atenção para a “falha epistemo-somática”
127
na relação da medicina com o corpo – este último
entendido como dimensão do gozo. Portanto, o sujeito do desejo é forcluído do campo da
prática médica, pois a ciência desconhece e não quer saber da posição decidida e
determinante do gozo do sujeito para o seu corpo.
Podemos observar a incidência desta posição pragmática e “nominalista”
128
na
psiquiatria contemporânea. Tomemos como exemplo o sujeito anoréxico. Para a atual
psiquiatria, este sujeito ao ser incluído num programa terapêutico capaz de fazê-lo ganhar
126
LACAN, Jacques. “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (1973). In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 554.
127
LACAN, Jacques. “ O lugar da psicanálise na medicina” ( 1966). In: Revista Opção Lacaniana, n. 32, São
Paulo, Eólia, 2001.
128
Posição conceitual na qual a linguagem não tem relação com o real.
47
alguns quilos a mais, torna-se ícone do sucesso desta diretriz reabilitadora. Portanto, não
importa saber o porquê do sujeito anoréxico desejar esse corpo. A evidência do possível
ganho de peso é soberana àquilo que, nesta perspectiva, é tomado como especulação de ordem
abstrata e não objetiva, sem que se perceba que, nesta operação, fica escamoteado o fato de
que é a pretensão de objetividade que introduz o abstracionismo. Considerando a hipótese
radical deste sujeito vir a cometer o suicídio em algum momento do processo reabilitador
terapêutico, isto poderá não abalar a convicção do sucesso do tratamento, na medida em que
houve efetiva eliminação do sintoma anoréxico.
Portanto, diagnóstico e terapêutica neste campo clínico constituem-se segundo
finalidades adaptativas dirigidas por um modelo medicamentoso e comportamental-
cognitivista. O sujeito do desejo anoréxico é excluído da prática do tratamento, como efeito
da concepção diagnóstica, erigida no DSM-IV, que reduz a um viés organicista esta posição
subjetiva intitulando-a de “anorexia nervosa”.
Esta análise nos leva a ratificar, o já indicado antes, que os quadros diagnósticos
sindrômicos descritos pelo manual classificatório do DSM-IV sustentam-se neste
paradigma comportamental. Diante disso, esta pesquisa visa construir argumentos
conceituais que demonstrem a vigência de uma pragmática do comportamento no alicerce
edificador do DSM-IV.
Nesta análise acerca da classificação diagnóstica convém considerar as posições das
clínicas psiquiátrica e psicanalítica que determinam, de formas diferentes, a relação do nome
com a coisa.
Tomemos o comentário de Leite para iniciarmos o percurso na trilha destas diferenças:
[...] uma classificação poderia ser entendida como sendo o resultado do emprego
da análise e da comparação por seriação, para facilitar e promover o conhecimento.
Também por isso uma classificação implica sempre em uma nomenclatura, que é
o conjunto de termos particulares a uma arte ou ciência, o que na medicina se
refere ao que se chama de nosologia, que é o estudo das doenças, e à nosografia que é
a descrição delas.
129
(grifos nossos).
129
LEITE, Márcio Peter de Souza. “A psicanálise como diagnóstico da psiquiatria”. In: Revista Opção
Lacaniana, vol. 23, op. cit., p. 22.
48
Apesar da influência mútua, já referida neste trabalho, entre a nosologia e nosografia
freudianas e a psiquiatria clássica, com o advento dos DSMs no contexto da psiquiatria
contemporânea, há uma evidente cisão entre os parâmetros éticos e teórico-clínicos da Clínica
Psicanalítica e da Clínica Psiquiátrica. Esta evidência é flagrante no que tange às concepções
diagnósticas frente ao sintoma.
Sigamos as indicações de Santiago para contextualizarmos esta cisão:
[...] [para a ] tradição médica [...], nomear é apenas classificar. [...] Todo diagnóstico
comporta o percurso que vai do signo à classe. Nomear uma classe ou um tipo clínico
é fabricar uma inferência indutiva, na qual se passa de dados incompletos para um
todo, para um sistema geral.
130
Santiago destaca o caráter relativo e artificial que as classificações diagnósticas
abrigam na psiquiatria contemporânea. Desta forma, pode-se afirmar que este artificialismo
das categorias diagnósticas é o orientador da prática e conduta clínicas no contexto da
psiquiatria atual.
É coerente, por isto, considerar o estatuto perecível desta clínica na medida em que,
para sustentar seus preceitos classificatórios, seu prazo de validade dependerá da aparição ou
não de novos neurotransmissores ou moléculas que possam determinar mudanças na
distribuição dos tipos de sintomas e divisão das classes.
Quanto ao DSM-IV, Santiago ressalta que:
[...] Sob essa ótica, admite-se que a utilização dos nomes nesse sistema
classificatório representa o que se denomina um “nominalismo pragmático”, uma
vez que o nome, nesse contexto, é apenas um artifício para interferir na causalidade
neurofisiológica do cérebro
131
. (grifo nosso).
Em contraposição a um realismo universalista, o autor propõe que seja considerado,
no campo da clínica psicanalítica, um realismo lógico:
[...] o sintoma como tipo abriga uma lógica inteiramente própria que recai sobre o
fato de que, para a psicanálise, a sua estrutura é um equivalente do real.
132
(grifos
nossos).
130
SANTIAGO, Jésus. “A querela atual do sintoma: o realismo lógico da psicanálise em face do nominalismo
contemporâneo”. In: Revista Curinga, n. 24, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas,
2007, p. 16.
131
Ibid., p. 17.
132
Ibid., p. 16.
49
O nominalismo pragmático presente nos sistemas operacionais de classificação
diagnóstica atuais, do tipo DSM, é produto e indutor, a um só tempo, da disjunção entre o real
da coisa/sintoma e os nomes que o determinam. Para o nominalismo, os nomes são
entificações abstracionistas sem qualquer relação com o real.
Para a psicanálise, a conjunção entre o real e a linguagem é condição sine qua non
para a teoria e a prática clínica. Partir do ponto em que, para a clínica psicanalítica, o real é
tratado pelo simbólico supõe considerar que o ato de nomear não é sem conseqüências para
o real do sintoma.
Portanto, pode-se afirmar com Santiago:
[...] “há um saber no real”. Isso quer dizer que se pode tratar um tipo de sintoma não
por intermédio de um realismo universalista, mas sim por um realismo que incorpora o
valor lógico da estrutura.
133
Esta lógica estrutural constituinte do sintoma é fundada na verdade como causa do
sujeito que retorna na falha de um saber. Lacan nos guia ao situar a verdade do sintoma na
cadeia significante:
É difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que
poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da verdade
como tal na falha de um saber.
[...].
Diferentemente do signo, da fumaça que não existe sem fogo, fogo que ela indica com
o apelo, eventualmente, de que seja extinto, o sintoma só é interpretado na ordem do
significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante. È
nessa articulação que reside a verdade do sintoma. O sintoma tinha um ar impreciso
de representar alguma irrupção da verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na
mesma madeira de que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é
aquilo que se instaura a partir da cadeia significante.
134
(grifos nossos).
Miller chama-nos a atenção para a força do historicismo na transmissão do
conhecimento diagnóstico. Ele ressalta os efeitos supostos de verdade, não fundamentados no
real, que são produzidos pelas classes diagnósticas. Adverte-nos:
133
Ibid., p. 18.
134
LACAN, Jacques. “Do sujeito enfim em questão” (1966). In: Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998, p. 234,235.
50
[...] Nossas classes não têm um fundamento nem na natureza, nem na observação.
Nem a psicose, nem a neurose são espécies naturais.
135
Ao tomarmos a classificação como uma operação resultante da análise comparativa
entre elementos dados, sendo o nível de semelhança entre estes elementos o norteador capaz
de constituir conjuntos delimitados e, eventualmente, independentes, temos que no campo da
clínica psicanalítica isto pode representar uma redução. Miller, citando Quine, o lógico,
indica-nos que a semelhança não é ciência por seu caráter artificial e pela suposição, que
dela resulta, de generalidade. O estatuto da semelhança como referencial ordenador de uma
dada disciplina científica supõe que seja demonstrado, por esta disciplina, os critérios que são
utilizados para constituir as similaridades. Quanto a isso, Miller exemplifica:
Quine evidencia que utilizamos termos gerais, tais como substantivos comuns,
verbos, adjetivos. Podemos agrupar “homem”, “mesa”, “peixe” em função de
certas semelhanças entre seus elementos, porém, se a espécie natural é um
conjunto, no sentido da teoria dos conjuntos, duas coisa, quaisquer que sejam,
poderiam ser tomadas como elementos de uma espécie mais extensa. Por
exemplo, há o conjunto dos “animais”, dos “humanos” e das “plantas”, mas
se construímos o conjunto dos “seres vivos”, aqueles conjuntos se juntam
neste novo conjunto, de tal maneira que sempre é possível transbordar
qualquer espécie formando um conjunto mais estendido.
136
(grifos nossos).
Portanto, pode-se considerar que as classes de semelhanças, constituídas a partir da
eleição de critérios definidos segundo um campo de características específicas, são jogos
simbólicos e operatórios. O estatuto não-natural que ordena e reparte estas classes, fornece
uma margem possível permanente de ampliação ao se levar em conta a revisão dos critérios
que as constituem.
Miller chama-nos a atenção para a incidência da aliança entre o nominalismo e o
pragmatismo no mundo contemporâneo sobre o propósito do DSM. Alerta-nos acerca da
redução, presente na classificação nosográfica deste manual, de todo nosso instrumental
clínico, constituindo caricaturas e um “artificialismo absoluto”
137
.
Que resultantes este processo reducionista pode engendrar?
O realismo universalista constituinte das classes não preenche a totalidade do
indivíduo real. Este é sempre um exemplar imperfeito de uma classe, na medida em que
135
MILLER, Jacques-Alain. “O rouxinol de Lacan: a arte do diagnóstico” (1998).In: Revista Curinga , n. 23.
Belo Horizonte: E.B.P.- Seção Minas,2006, p. 8.
136
Ibid., p.8.
137
Ibid.,p. 9.
51
apresenta como resto, uma lacuna, um traço deficitário não apreensível pela classe. Este
traço lacunar, intervalar e deficitário é o efeito sujeito.
Nas palavras de Miller:
Do nosso ponto de vista, há sujeito toda vez que o indivíduo se afasta seja da espécie,
do gênero, do geral ou do universal. É algo que é preciso recordar na clínica quando
utilizamos nossas categorias e classes – não para descartá-las, mas para manejá-las
tendo ciência do seu caráter pragmático e artificial. Trata-se de não esmagar o sujeito
com as classes que utilizamos.
138
Lacan destaca a existência de tipos de sintoma e tipos clínicos, fazendo a ressalva de
que estes são provenientes da estrutura, do real, e não da natureza. Afirma ainda:
Com o que indico que o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o
mesmo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sentido
único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura, sobretudo não quando ela
atinge o discurso.
139
(grifos nossos).
Desta forma, um obsessivo pode não ver sentido no discurso de outro obsessivo.
Assim como o que identifica os sujeitos histéricos não é o sentido, mas a estrutura, na medida
em que ela incide sobre o desejo de uma falta, e não sobre a causa supostamente encontrável
para a falta.
É, portanto, de um realismo lógico que se trata quando sustentamos a lógica do
sujeito, efeito do significante, cujo sentido precário e deficiente não permite definir
completamente uma classe.
Ao tratarmos do diagnóstico, convém considerar a dimensão do julgamento
intrínseca a esta prática. Dimensão de mediação necessária entre a aplicação da teoria e a
prática. Miller retoma Kant quando afirma o ato de julgar como um momento lógico, não
dependente, exclusivamente, do conhecimento e da teoria mas eivado de arte. Arte que não
pressupõe regras e classes pré-estabelecidas, mas comporta uma decisão frente à
contingência do sujeito.
Miller, referindo-se a Kant, aponta:
138
Ibid., p.9.
139
LACAN, Jacques . “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (1973). In: Outros
Escritos. Op. cit., p. 554.
52
[...] entre a teoria e a prática, necessita-se de um intermediário que permita a conexão
de uma com a outra, mesmo que a teoria seja completa, porque é sempre necessário,
assim escreve, acrescentar, ao conceito que contém a regra, um ato de julgar que
permitiria aos praticantes decidir se o caso cabe na regra ou na classe ou no universal.
[...] e esse ato não é universalizável.
140
(grifos nossos).
Em contraposição, Miller destaca a prática automática do diagnóstico realizada
pelos seguidores dos sistemas operacionais classificatórios do tipo DSM.
Ao encaixar o indivíduo numa classe patológica, sutura-se o momento lógico do julgamento e
da decisão, obturando-se a verdade do sujeito, ordenadora dos princípios que governam,
particularmente, cada caso.
Os autores do DSM-IV sustentam o uso do julgamento clínico em situações que não
correspondam, exatamente, aos critérios diagnósticos pressupostos. No entanto, este
julgamento é ancorado pela presença fenomênica dos sintomas, e de sua persistência e
intensidade:
[...] o exercício do julgamento clínico pode justificar a atribuição de determinado
diagnóstico a um indivíduo, embora a apresentação clínica não preencha todos os
critérios para o diagnóstico, desde que os sintomas presentes sejam persistentes e
severos.
141
Miller, porém, sublinha:
[...] Julgar, isto é, utilizar categorias universais num caso particular, não é o mesmo
que aplicar uma regra, mas é decidir se uma regra se aplica. E esta decisão, este ato,
não é capaz de ser automatizado.
142
(grifos nossos).
Frente a uma clínica perecível, cujas categorias diagnósticas são instáveis e
dependentes da descoberta de novas moléculas e neurotransmissores, conseqüência do
reducionismo pragmático do DSM, o ato do julgamento e da decisão fundamentam a
perenidade da clínica e da prática do diagnóstico no campo da psicanálise.
Nesse contexto vale, também, destacar com Miller: “[...] O sujeito sempre se constitui
como exceção à regra e seu sintoma é sua invenção ou re-invenção da regra que lhe falta.”
143
140
Ibid., p.12.
141
DSM-IV//Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit., p. xxii.
142
MILLER, Jacques-Alain. “O rouxinol de Lacan: a arte do diagnóstico” (1998). Op. cit.,p. 13.
143
Ibid., p. 14.
53
Esta constituição não depende de descobertas biológicas mas das vicissitudes determinadas
pelo encontro do sujeito com a linguagem.
A perspectiva nominalista contemporânea crê no realismo universalista, na medida em
que opera a descontextualização e a generalização do sintoma.
A estrutura, enquanto função e intervenção do Outro, constitui um realismo lógico da
ordem do real. É o estatuto do real que se edifica como matriz lógica constituindo-se como
bússola orientadora da posição do sujeito, no sintoma, frente ao Outro.
Cabe lembrar que o conceito de estrutura variou ao longo do ensino de Lacan, de um
saber articulado na cadeia significante, lugar de inscrição da verdade até a dimensão de
corpo como condição de gozo.
144
Serge Cottet, partindo do platonismo e do aristotelismo, presentes em autores da Idade
Média e tomando o livro de Alain de Libera
145
, interroga esta querela, enfocada desde a Idade
Média e desdobrada em variados modos, até hoje, entre nominalismo e realismo, acentuando
neste debate “[...] as relações das palavras às coisas, e de sua ordem de determinação, de sua
causalidade.”
146
(grifos nossos).
Cottet aponta, a partir de Abelardo (um autor medieval, citado no livro de Libera),
para uma crítica ao universal distinguindo coisa e causa:
[...] Quando Abelardo questiona o realismo de todo o enunciado sobre o homem ou
estado de homem, ele distingue claramente coisa e causa. Por exemplo: “o estado de
homem não é uma coisa participada em comum por uma pluralidade de indivíduos,
mas antes a causa de sua comum designação”.
147
(grifos nossos)
Propõe aplicar essa distinção ao nome da mulher:
[...] A causa do significante mulher, assim, não repousando somente no realismo da
diferença sexual, mas notadamente no que causa o desejo ou o aborrecimento do
homem. Estamos, pois, bem no nível da causa das palavras ou, mais exatamente, da
causa dos nomes universais ou da tendência natural, [...], do nome à forma. O
universal estaria na coisa da qual se fala ou somente na palavra? No real, não há
apenas o singular?
148
(grifos nossos).
144
No Capítulo III, a partir de Lacan, faremos esta articulação do corpo como condição de gozo.
145
LIBERA, Alain de. La querelle des universaux, de Platon à la fin du Moyen-Age.Paris: Seuil, 1996.
146
COTTET, Serge. “Lacan medieval”. In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n.58, 2007,
p.53.
147
Ibid., p.55.
148
Ibid., p.55.
54
Não há universalização do ser do sujeito. Este só é alcançável a partir da
particularidade do não-todo.
Segundo a distinção acima entre coisa e causa, pode-se afirmar que o “estado”/
condição do ser não resulta da coisa, mas da causa. Vale destacar que a causa é excluída,
especialmente, da cena científica contemporânea, na medida em que, utopicamente, é suturada
pelo saber. Esta afirmação é importante neste debate acerca dos efeitos discursivos do
diagnóstico, na medida em que faz emergir a discussão que interroga a verdade do estatuto
universal da coisa frente à universalização do nome/palavra conferido à coisa. Entre as
palavras e as coisas que ordem de determinação e, portanto, ordem de causalidade sustenta
esta relação?
Verificamos que no campo das práticas médicas atuais, esta relação se dá de forma
automática, sem mediação, baseada em evidências fenomênicas e em padrões estandardizados
de reação. No campo clínico da prática psicanalítica, trata-se o real da coisa pelo simbólico,
pela linguagem – portanto, as palavras podem modificar a coisa. A concepção de
diagnóstico na clínica psicanalítica, assim, fundamenta-se na matriz lógica da estrutura,
opondo-se aos diagnósticos de conduta automatizados.
Vale ressaltar o avanço no ensino de Lacan que vai da clínica estrutural à clínica dos
nós e suplências. Esta última sustenta os modos particulares de como o sujeito responde ao
furo do real. Na clínica dos nós o Nome-do-Pai não é a única forma de enodamento entre
significante e gozo. O sintoma pode ter a mesma função.
55
II.4 – De uma crítica à concepção essencialista da verdade à estrutura talhada na
dimensão do discurso
Para a ampliação deste debate, tomaremos um autor em cuja leitura, histórica-crítica e
culturalista, analisa a concepção essencialista e naturalista das classificações psiquiátricas.
Serpa Júnior chama-nos a atenção para o seguinte:
[...]um aspecto problemático das classificações em psiquiatria é justamente uma
pressuposição essencialista de que as doenças têm uma existência prévia a qualquer
construção lingüística que a elas se refiram[...].
149
O trabalho deste autor, neste texto, é demonstrar a determinação da cultura na
produção dos sistemas simbólicos ordenadores do mundo. Aí se incluem os sistemas
classificatórios nosológicos psiquiátricos.
Consideramos que esta análise histórico-culturalista traz concepções que estabelecem
paralelos com o campo psicanalítico, possibilitando a formulação de indicadores que darão
sustentação ao debate promovido por este nosso trabalho.
Seguindo a indicação feita acima, também pelo autor, de inseparabilidade da doença
de sua construção lingüística, temos:
[...] Ora, classificar é um entre outros jogos de linguagem e como dissociar os jogos
de linguagem e o uso das palavras que nele se fazem das formas de vida em que se
inscrevem?[...]
150
(grifo nosso).
Estas formas de vida remeteram-me ao real que sofre a inscrição do significante e,
assim, de forma análoga à pergunta de Serpa Júnior, podemos questionar: como dissociar o
significante do real? Esta questão introduz um outro indicador: a dimensão da causa
fundadora do sujeito, de seus sintomas, de sua ex-sistência
151
. Cabe lembrar a posição de
evitação da causa que permeia os sistemas operacionais classificatórios diagnósticos,
buscando regras explícitas para a identificação dos casos e a substituição da controvérsia
149
SERPA JÚNIOR, Octavio Domont. “‘Culture-bound syndromes’ e a ‘natureza’ das classificações
psiquiátricas”. In: Jornal Brasileiro de Psiquiatria, vol. 43, n. 9, 1994, p. 490.
150
Ibid., p. 486.
151
Tomamos o conceito de ex-sistência para o sujeito como contraponto ao sentido de existência. Na ex-sistência
não há consistência, há contingência. Tal condição está para o sujeito assim como para o real, na dimensão
mesma de” não cessar de não se escrever”. Desta forma esta dimensão real do sujeito é a sua face de nonsense,
de impossível de ser apreendido e simbolizado. A contingência é o que estrutura o discurso do sujeito, não afeito
a modelações das “ciências” contemporâneas.
56
suscitada através de hipóteses etiológicas diversas por descrições rigorosas de sinais e
sintomas.
Lacan, no entanto, aponta-nos:
O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é
causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o
significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real.
152
(grifos nossos).
Disso apreendemos que a causa, efeito de linguagem, é o significante que incide no
real e faz o sujeito emergir.
Pode-se afirmar que a investigação científica dirigida à produção de diagnósticos
baseados em concepções construtivistas culturalistas também excluem a causa do seu
campo operatório conceitual, mas não escapam de sua incidência.
É possível verificamos esta assertiva no comentário de Serpa Júnior acerca da
definição de Culture-bound syndromes feita por Prince:
[...] “uma coleção de signos e sintomas (excluindo noções de causa) a qual é restrita
a um limitado número de culturas, primariamente em função de alguns dos seus
aspectos psicossociais”. É evidente que o intruso indesejável tão logo é expulso
desta festa retorna pela porta dos fundos na maior sem cerimônia, ou, como explicar
que se recomende excluir noções de causa, por um lado, para em seguida atribuir a
restrição da síndrome a determinada cultura como decorrente de aspectos
psicossociais peculiares a esta cultura, por outro?
153
(grifos nossos).
E
ste intruso indesejável nos fez pensar no sujeito do real: expulso da festa do saber
científico, retorna pela porta dos fundos sem cerimônia. O sujeito do real como causa, a
verdade, portanto, como causa, assim afirmado por Lacan, está excluído das classificações
que se limitam aos tipos/espécies clínicas.
Cabe, aqui, uma distinção entre a verdade supostamente apreendida pelas
“evidências”, baseadas em fatos da natureza e a verdade como causa do sujeito. Para tanto,
partiremos da crítica feita por Serpa Júnior à concepção essencialista da verdade,
esta que se propõe a reproduzir com fidelidade a realidade tal como ela é, e sua afirmação da
concepção pragmática da verdade:
152
LACAN, Jacques. “Posição do Inconsciente” (1964). In: Escritos. Op. cit.,p. 849.
153
SERPA JÚNIOR, Octavio Domont “‘Culture-bound syndromes’ e a ‘natureza’ das classificações
psiquiátricas”. In: Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Op. cit., p. 487.
57
[...] Assim a verdade pode se dessencializar e deixar de ter um uso explicativo para
ser usada como “aprovação”, de maneira que uma teoria, ou no nosso caso, uma
nosografia, não é boa porque é verdadeira – a verdade no ponto de partida,
preexistindo à teoria – mas é verdadeira porque é boa – a verdade como ponto de
chegada (aprovação), em função da utilidade da teoria com relação aos nossos
propósitos.
154
Tanto a posição naturalista/essencialista quanto a culturalista/histórica, esta última
atravessada pela concepção pragmática como verificamos na citação acima, excluem a
incidência da verdade enquanto “ponto de partida”, portanto, enquanto causa. Veremos como
a direção da psicanálise sustenta um contraponto a este modelo.
155
É válido ressaltar que a crítica ao viés essencialista, feita pelo autor, encontra
correlatos em Lacan. Os fragmentos a seguir demonstram esta correlação. Serpa Júnior alerta:
[...] o International Pilot Study on Schizophrenia [implementado há mais de 30 anos
atrás] [...], se por um lado revelou a possibilidade de, através de treinamento rigoroso
e adesão a critérios diagnósticos claros, psiquiatras de diversas culturas produzirem
diagnósticos concordantes, por outro demonstrou também que sintomas não têm o
mesmo sentido nem implicam nas mesmas conseqüências, em diferentes culturas,
além de revelar que uma determinada constelação sintomática poderia variar em
termos dos seus sintomas componentes, quanto na ênfase diferenciada em um ou
outro sintoma da constelação.
156
Vale destacar a ênfase na variação cultural determinando sentidos diferentes para os
sintomas e seus efeitos. Esta abordagem nos remete à incidência da cultura, enquanto campo
da linguagem, do significante, atravessando o sujeito da ciência que, como Lacan propôs, é o
mesmo sujeito da psicanálise.
Podemos sustentar, a partir de Lacan, cuja referência a esta questão já foi citada por
nós neste trabalho, que a estrutura talhada na dimensão do discurso, não produz um sentido
único.
Portanto, ao tomarmos a cultura como vetor determinante na construção dos
sistemas simbólicos, o fazemos pela concepção de que o Outro, campo do significante e da
linguagem, esculpe o real e produz/constrói realidades. A cultura é, portanto, discurso que
promove o laço social. A construção lingüística que não está apartada do objeto real nomeado,
154
Ibid., p. 491.
155
No Capítulo III trataremos deste contraponto mais detidamente.
156
Ibid., p. 486.
58
aqui se tratando do sintoma, aponta para a relação intrínseca entre linguagem/significante e
real.
Em se tratando das classificações da Associação Psiquiátrica Americana, do DSM-I
ao DSM-IV, pode-se, desta forma, afirmar que são construções ligadas a uma cultura
pragmática, comportamentalista, empiricista, positivista. Ao longo das cinco décadas de
existência dos manuais diagnósticos classificatórios americanos, é possível verificar a
influência do essencialismo biológico e comportamental, a idéia de um self egocêntrico,
autônomo, autocontrolável e ideal, portanto, modelo de normalidade e contraponto ao self
patológico.
No campo e discurso psicanalíticos é necessário fazer algumas marcações no que
tange à discussão acerca da nomeação diagnóstica. Trata-se, assim, de nomear o caso. O
que isto significa? Em primeiro lugar, tomar o sintoma como um tipo de matriz lógica
conforme Lacan nos aponta. Como conseqüência, esta nominação “[...] orienta o dizer do
analisante, sua transferência e o dizer do analista.”
157
No entanto, há um paradoxo intrínseco a esta questão: a lógica do sintoma se, por um
lado, afirma a existência de classes de sintomas, por outro, por sua particularidade destitui a
noção de generalização que as classes supõem.
Éric Laurent nos relembra: “[...] A nominação do sintoma remete, em última
instância, a um impossível, ao que da pulsão se recusa ao significante”.
158
(grifos nossos).
Este impossível de nomear que está na raiz do sintoma não nos deve fazer recuar
frente à exigência, inerente ao fazer clínico, qual seja a de bem-dizer o caso clínico como
direção intrínseca à experiência analítica. Miller é preciso quanto a isso:
[Na psicanálise] é preciso que sejamos, por um lado, nominalistas: o sujeito chega,
nós liberamos nossas prateleiras de todas as classificações [...] acolhemos o sujeito no
seu frescor inaugural. Quer dizer que todas as classificações não passam de
semblantes? Ah! É aí que somos estruturalistas. Ser estruturalista quer dizer:
existem espécies subjetivas, a estrutura existe.
159
(grifos nossos).
157
LAURENT, Éric. “O relato de caso, crise e solução”. In: Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Belo
Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, ano 6, n.9, 2003, p. 70.
158
Ibid., p. 4.
159
MILLER, Jacques-Alain. Os casos raros ou inclassificáveis da clínica psicanalítica. A conversação de
Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998, p. 267-268.
59
Disto decorre que em nosso afazer clínico, trabalhamos com o real da estrutura
enquanto verdade do sujeito. Portanto, nosso objeto de intervenção não é a conduta, o
comportamento manifesto do sujeito. Nas palavras de Lacan:
A análise [...] se desenvolve numa busca que vai além da realidade da conduta
nominalmente, para a verdade que aí se constitui.
160
(grifos nossos).
Miller nos chama a atenção para o nominalismo pragmático que produz uma
instabilidade nas classificações da psiquiatria contemporânea ao tomar o nome das coisas
como puro artifício, entidades abstratas sem relação ao real. Esta direção que se aproxima da
idéia, por nós pensada, de uma clínica perecível, com prazo de validade determinado por
mudanças que podem advir da descoberta de novos eventos neurocientíficos, contrapõe-se ao
sintoma como matriz lógica que afirma o saber transmissível e generalizável no real, para
além dos tipos e classes.
Portanto, o ponto de convocação deste trabalho, qual seja o de circunscrever as
relações do sujeito com o saber no campo teórico e clínico da psicanálise e na ciência do
comportamento, traduzida pela psiquiatria norte-americana contemporânea cujo paradigma é
o DSM, impõe-nos a necessidade de verificar os efeitos resultantes de diferentes posições
clínicas na condução ética dos casos. Desta forma, sustentamos que uma determinada posição
clínica frente ao real do sintoma constrói possibilidades ou impossibilidades que serão
determinantes no modo de apropriação que o sujeito venha a fazer do real que lhe acomete.
Pode-se afirmar que o uso do discurso tem efeitos sobre as classificações. Portanto,
como já referido, o discurso do DSM produz uma classificação artificial. O discurso da
psicanálise, no entanto, incide no realismo da estrutura, intervém no real da estrutura. Não se
trata, por isso, de um relativismo diagnóstico no campo da psicanálise. Podemos considerar
que as classificações dependem de enodamentos dos registros do Real, do Simbólico e do
Imaginário, constituintes dos laços sociais. As neuroses e psicoses são efeitos dos laços
sociais. Assim, o discurso, que é sempre do Outro, golpeia nosso corpo e nele entalha a
irredutibilidade do sintoma. Sintoma que é a invenção, feita pelo sujeito, do vazio estrutural
no campo do Outro (S (A)).
160
LACAN, Jacques. “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia” (1950). In: Outros escritos.
Op. cit., p. 127.
60
CAPÍTULO III: O SABER DO GOZO E DO DESEJO
Se não há espécie natural em nosso campo, mas efeitos de discurso, a questão que
nos importa é a discussão acerca da posição ética do ato do diagnóstico frente à classificação
dos efeitos do discurso sobre os corpos.
Orientados pelos marcadores conceituais do ensino de Lacan que circunscreve o gozo
e o desejo como condição de emergência do sujeito em seu saber, situaremos a prática da
ciência médica ordenada pela resposta à demanda. Indicaremos, a partir de Lacan, as
conseqüências de seu alheamento àquilo que escapa a essa suposta ordenação.
Traçaremos o percurso que inscreve o surgimento da ciência moderna num contexto
de revolução de todo o saber, cujo corolário é o sujeito da ciência. Veremos, com Lacan e
Milner, que este sujeito da ciência é o mesmo sujeito do inconsciente.
Um breve extrato clínico nos indicará como o ato do diagnóstico pode reduzir o sujeito
ao sintoma como espécie natural, neurológica e comportamental.
Tencionamos verificar os possíveis efeitos, operados pelo DSM, na direção de
debilização dos sujeitos. Partiremos de um caso clínico de melancolia debilizada e traçaremos
o percurso deste sujeito em análise. Frente ao que consideramos constituir uma operação de
debilização, efetivada num contexto em que a mãe recalca o saber sobre a origem do filho, o
filho(o sujeito em questão) forclui esse saber e o DSM intervém para reconhecê-lo como
débil, circunscreveremos o movimento deste sujeito para indicar uma saída possível pela
transferência analítica.
61
III.1 – A dimensão do corpo como condição de gozo
Partiremos de um artigo de Vieira
161
que interroga os determinantes do repúdio
provocado nos interlocutores de Lacan, em sua Conferência “O lugar da psicanálise na
medicina”
162
, frente às suas suposições quanto ao real com que trabalham os médicos.
Vieira destaca que a formulação central desta conferência é a afirmação de Lacan de
que:
[...] o corpo é feito de gozo e que o corpo goza [...] [isto] indica que algo ali está em
ruptura com a idéia de um corpo harmonioso concebido para a vida. [...] O corpo-
superfície, o corpo unidade, esta “idéia de corpo” [...] é fruto de uma operação sobre o
gozo, de uma “nova operação psíquica”, de uma construção que organiza o caos
pulsional.
163
Esta concepção de um corpo em desordem, não regular, no qual prazer e dor se
fundem, parece atualizar, para Lacan, a pulsão de morte freudiana.
Portanto, há algo da dimensão da morte e, logo, da ordem do real que incide no corpo
mas é forcluído pelo saber médico. Desta forma, Vieira nos chama a atenção para o saber que
a clínica médica instaura, enquanto produto da cadaverização e maquinização do corpo: saber
esvaziado de gozo. Com efeito, a anatomização do corpo é resultado de um
conhecimento/saber a priori acerca deste corpo, no qual os furos são suturados: “ O corpo da
medicina não trabalha para sua morte e sim para funcionar.”
164
Segundo o autor, no tocante à psicanálise, entretanto, o corpo é vivo, justamente, em
função de seus pontos cegos: os buracos/furos do corpo, abertos “para o infinito”, são a
condição de possibilidade para o movimento do objeto causa de desejo.
Vieira comenta a expressão de Lacan, “falha epistemo-somática”, criada nesta
conferência: “[...] parece-me indicar o lugar do gozo como conceito que visa tornar esta falha
instrumento da operação do analista.”
165
161
VIEIRA, Marcus André. “O lugar da psicanálise na medicina-introdução à uma conferência de Jacques
Lacan”. In: Cadernos do IPUB (Ciência e saber no campo da saúde mental), vol. VIII, n. 21, ago/set 2002.
162
LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina”(1966). Op. cit.
163
VIEIRA, Marcus André. “O lugar da psicanálise na medicina-introdução à uma conferência de Jacques
Lacan”. Op. cit., p. 115.
164
Ibid., p. 115.
165
Ibid., p. 116.
62
Desta forma, conforme nos indicou Vieira, esta falha traduz uma hiância entre o corpo
epistêmico e um gozo absoluto, inominável. O analista opera quando possibilita a passagem
deste inominável para o dizer. Este ato de nomeação não se torna um saber, no sentido da
ciência médica que oblitera e solda os furos do discurso sobre o corpo do sujeito, mas pode
reorientar seus destinos na existência.
Ao interrogar seus auditores, situando a significação da demanda na prática médica,
Lacan, nesta conferência, circunscreverá, como correlata a esta hiância, uma falha existente
entre a demanda e o desejo:
[...] parece que não é necessário ser psicanalista, nem mesmo médico, para saber que,
no momento em que qualquer um, seja macho ou fêmea, pede-nos, demanda alguma
coisa, isto não é absolutamente idêntico e mesmo por vezes é diametralmente oposto
àquilo que ele deseja
166
.
Assim, faz um alerta ao campo médico apontando que a sustentabilidade da posição
médica reside no modo de resposta à demanda do paciente.
É considerável a ênfase conferida por Lacan à relação epistemo-somática e à
insolubilidade do problema circunscrito como aquilo que escapa, do corpo, ao saber médico-
científico, apesar dos importantes progressos no campo.
Ao afirmar que: “[Este] corpo não é simplesmente caracterizado pela dimensão da
extensão. Um corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo”
167
, Lacan situa esta
dimensão do gozo como falha desta relação epistemo-somática - o que nomeou, portanto,
como “falha epistemo-somática”.
168
Ressalta:
A dimensão do gozo é completamente excluída disto que chamei relação epistemo-
somática. Isto porque a ciência é capaz de saber o que pode, mas ela, não mais do que
o sujeito que ela engendra, é incapaz de saber o que quer.
169
Esta posição nos remete à idéia de que se ‘o que a ciência quer ela é incapaz de saber’,
isto se dá à medida em que sua operação fundacional erigiu e excluiu, a um só tempo, o
desejo e, portanto, o sujeito do desejo.
166
LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina”(1966). Op. cit., p.10.
167
Ibid., p.11.
168
Ibid., p.11.
169
Ibid., p.11.
63
Dito de outra forma, somos tentados a fazer um trocadilho que poderia concluir a
sentença de Lacan assim: ‘ ... a ciência é capaz de saber o que pode, mas não pode saber do
que é capaz, na medida em que forclui o saber do gozo e do desejo’.
Neste ponto, cabe assinalar a intrínseca relação feita por Lacan entre desejo e gozo.
Ele situará o desejo num certo “ponto de compromisso
170
, no qual o desejo possibilita
estender o nível da barreira do prazer. Este, por sua vez, opera como barreira ao gozo.
Conforme nos indica Lacan, o desejo está intrinsecamente ligado ao inconsciente, e
sua função se define pelo que escapa à consciência:
[...] existe um desejo porque existe algo de inconsciente, ou seja algo da linguagem
que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos e que há sempre no nível da
linguagem alguma coisa que está além da consciência. É aí que pode se situar a função
do desejo.
171
Este trilhamento feito por Lacan nos aponta para a dupla forma de instauração da
relação do sujeito com o saber. Esta se constitui na hiância entre o desejo de saber e a
demanda de saber. Veremos, na seção seguinte, como que nesta fenda se inscreve a topologia
do sujeito.
170
Ibid., p.12.
171
Ibid., p.12.
64
III.2- O sujeito na fenda do saber
Seguiremos, a partir de agora, com o texto de Lacan “A ciência e a verdade”
172
no qual
ele estabelece a relação da psicanálise com a ciência. Nesta relação está embrenhada a
discussão sobre o sujeito que só comparece com o corte que a ciência moderna opera com
o saber antigo.
Lacan nos dirá que a posição discursiva da psicanálise opera a divisão entre saber e
verdade, marcada pelo furo do saber e, portanto, pela castração.
A ciência exclui a causa de suas considerações, ela inclui só as leis que são
simbolizáveis. Desta forma, exclui a verdade, o real e, portanto, o sujeito como ponto sem
significação. A psicanálise inclui em seu campo operatório o desejo, situando-o neste lugar
causal.
A ciência, da forma como está montada, não consegue dar lugar a um sujeito. Este
permanece como um rasgão que ela, a ciência, tenta, permanentemente, suturar.
A verdade como causa se inscreve no ponto da falha, aonde o inconsciente e,
portanto, a Linguagem é marcada pelo furo que impede o acesso a verdade toda. A causa,
desta forma, não é formulável. E esta verdade como causa é desconhecida pelo sujeito.
Lacan, neste texto, situará modos de se lidar com a verdade como causa, nos diversos
campos que a evocam: a magia a recalca, a religião a denega, a ciência a exclui, e a
psicanálise supõe que ela opera.
Cabe ressaltar que Lacan, no entanto, constrói argumentos para sustentar que a
psicanálise é tributária da ciência. Ele circunscreve “um momento historicamente definido”,
que ele reputa ao sujeito, como correlato da ciência:
[...] o que foi inaugurado por Descartes e que é chamado cogito. Este correlato, como
momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas por isso pretende
fundar para o sujeito um certo ancoramento no ser, o qual sustentamos constituir o
sujeito da ciência em sua definição [...].
173
A divisão constitutiva do sujeito entre verdade e saber é o fundamento da psicanálise.
Lacan, neste ponto, mais uma vez, evoca Freud sobre seu “[...] apelo do Wo Es war, soll Ich
172
LACAN, Jacques. “A ciência e a verdade” (1966). In: Escritos. Op. cit.
173
Ibid., p. 870.
65
werden
174
, retraduzido por Lacan como: “lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu]
advir”
175
(grifos nossos).
É, portanto, do lugar da verdade como causa que o sujeito advém como saber. Esse
estatuto da relação do sujeito com o saber, a partir da verdade que o causa, será mais
explorado na seção seguinte. Nela, percorreremos os caminhos que levaram Lacan a inscrever
a psicanálise num “doutrinal de ciência” a partir da equação dos sujeitos e a ciência: “[...] o
sujeito sobre o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência [...]”.
176
No entanto, Lacan demonstrará que a lógica moderna tenta suturar o sujeito da ciência;
tentativa fracassada dada à impossibilidade deste empreendimento. Há algo do campo do
desejo e do gozo e, portanto, do furo do saber que, permanentemente, escapa desse
movimento de apreensão e controle. Veremos como esta dimensão se constitui no real
inominável.
174
Ibid., p. 878.
175
Ibid., p. 878.
176
Ibid., p. 873.
66
III.3 – Do abalo de todo saber ao infinito do inconsciente
Seguiremos Koyré e Milner para situarmos o surgimento da Ciência a partir da ruptura
com o compreensível, quando há, portanto, um abalo de todo saber. Introduz-se, assim, uma
certa dimensão de trauma, na medida em que não há saber! Esta ruptura com o saber
compreensível instaura e é operada pelo real. Examinaremos estes desdobramentos.
As revoluções galileana e a cartesiana que definiram a passagem do cosmos fechado
dos Antigos para o universo infinito dos modernos têm:
[...] como conseqüência refundir os princípios mesmos da racionalidade filosófica e
científica, assim como os das noções de movimento, espaço, e mesmo do saber e do
ser.
177
Vale destacar que:
Para Koyré, a idéia de ordem e mesmo o conceito de razão, agora, estão
articulados à matemática, fora da qual não têm nenhum sentido ou importância.
O quadro central da nova problemática de Koyré é a matematização da física, que
inaugura a ciência moderna.
178
(grifos nossos).
[Koyré situa] o surgimento da nova cosmologia indicando que esta substitui o mundo
geocêntrico, da astronomia grega e medieval, pelo universo heliocêntrico e,
posteriormente, acêntrico, da astronomia moderna.
179
Esta revolução ocorrida no século XVII da qual a ciência moderna é, a um só tempo,
raiz e fruto, representou uma transformação radical no sistema de pensamento.
O mundo é desestabilizado, as certezas são desestabilizadas. O real do mundo emerge
como em permanente mutação e inconsistência.
Copérnico – seu Diagrama do universo infinito é de 1576
180
- revoluciona quando
propõe deslocar a Terra do centro do mundo e atribui ao Sol este lugar:“[...] o efeito imediato
da revolução copernicana foi o de espalhar o ceticismo e a perplexidade[...]”
181
(grifo nosso).
177
KOYRÉ, Alexandre . Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 4 ed.,
2006, p. X.
178
Ibid., p. X.
179
Ibid., p. 1.
180
Ibid., p. 37.
181
Ibid., p. 29.
67
Há um poema de John Donne, de 1611, citado por Koyré, cujos versos expressam
esses efeitos:
A nova Filosofia torna tudo incerto,
E Elemento do fogo é desde logo extinto;
Perde-se o Sol e a terra; e ninguém hoje
Saberá indicar onde encontrá-la.
Os homens confessam francamente que o mundo acabou,
Enquanto nos Planetas e no Firmamento
Procuram tantas coisas novas; e vêem que este
Dissolve-se mais uma vez em átomos.
Tudo está em pedaços, toda coerência termina,
Não há mais relações justas, nem nada é conforme.
182
(grifo nosso).
Koyré refere-se, neste período, a um mundo mergulhado no niilismo e no desespero. A
infinitude do universo passa a ser considerada, não podendo ser apreendida pelos sentidos.
Giordano Bruno (1583), citado por Koyré, diz em seu Diálogo sobre o Universo Infinito e os
Mundos: “[...] a verdade [do Infinito] não provém dos sentidos senão em pequena parte, como
de uma origem débil, e não reside nos sentidos.”
183
Cabe ressaltar que o astrofísico que revolucionou a concepção do universo,
promovendo a geometrização do espaço e a matematização da física, Galileu Galilei (1610)
“[...] rejeita a concepção de um centro do universo, onde a Terra, ou o sol, estaria colocada, ‘o
centro do universo que não sabemos onde localizar ou se existe mesmo’”.
184
Koyré confere merecidas honras a cada um destes filósofos e cientistas (Copérnico,
Bruno, Galileu), mas sublinha que foi “[...] Descartes quem clara e distintamente formulou os
princípios da nova ciência[...]”.
185
Assim, afirma:
O mundo de Descartes é um mundo matemático rigidamente uniforme, um mundo de
geometria reificada, de que nossas idéias claras e precisas nos dão um conhecimento
evidente e certo. Não há nada neste mundo senão matéria e movimento; ou, sendo a
matéria idêntica a espaço ou extensão, não há nada senão extensão e movimento.
186
182
Ibid., p. 29.
183
Ibid., p. 43.
184
Ibid., p. 87.
185
Ibid., p. 89.
186
Ibid., p. 91.
68
A idéia cartesiana de “indefinição” do mundo, ou “indefinição” do que chamou de “a
totalidade da substância corporal”, é assim apresentada, pelo próprio Descartes apud Koyré:
Reconhecemos ademais que este mundo, ou a totalidade da substância corporal, não
possui limites em sua extensão. Com efeito, onde quer que imaginemos tais limites,
imaginamo-los sempre não só além de alguns espaços indefinidamente extensos, mas
até percebemos serem verdadeiramente imagináveis, isto é, reais; de sorte que contém
um corpo indefinidamente extenso. Isso porque, como já demonstramos
suficientemente, a idéia dessa extensão que concebemos em tal espaço é obviamente
idêntica à própria idéia que devemos ter do corpo.
187
[1644].
Portanto, pode-se depreender de Descartes que o corpo-matéria, identificado ao
espaço como “indefinidamente extenso”, assim como os seus limites são da ordem do real.
Esta assertiva nos introduz na discussão feita por Milner acerca do Doutrinal de
ciência, por abrir as portas ao sujeito freudiano que, como Milner demonstrará, a partir do
“cartesianismo radical de Lacan”
188
, “[...] não poderia ser outra coisa senão o sujeito
cartesiano’”
189
. (grifo nosso).
Convém destacar de antemão: a psicanálise é uma práxis estruturada por um saber
que não sabe nada e que, no entanto, determina os destinos do sujeito – o saber do
inconsciente.
Retomando Descartes, o homem no contexto da emergência da ciência fica sem
certeza nenhuma: ‘eu duvido de tudo, só não posso duvidar de que duvido; a única certeza é
de que duvido.’
O cogito / res cogitans, substância cogitante/pensante, inscrito na expressão Cogito,
“ergo sum” (Penso, “logo sou”), aponta para um ser sem qualidade que decorre de um
pensamento sem qualidades. Isto pode ser estenografado sob o nome de inconsciente.
Milner partirá, conforme já referimos antes, no Doutrinal de ciência, da equação dos
sujeitos formulada por Lacan, em A ciência e a verdade: “[...] o sujeito sobre o qual
operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência[...]”.
190
A hipótese do sujeito da ciência é assim expressa como proposição doutrinal:
187
Ibid., p. 94.
188
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de
janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996,p. 33.
189
Ibid., p. 33.
190
LACAN apud MILNER, Jean-Claude. Ibid., p. 28.
69
‘A ciência moderna, como ciência e como moderna, determina um modo de
constituição do sujeito.’
De onde extraímos a definição do sujeito da ciência:
‘O sujeito da ciência nada é exceto o nome do sujeito, na medida em que, por
hipótese, a ciência moderna determina seu modo de constituição.’
191
Com efeito, a ciência é a condição de possibilidade para a emergência do sujeito.
Koyré, já citado por nós, é aqui, ao modo dos geômetras, apresentado por Milner,
através de teoremas:
‘entre a episteme antiga e a ciência moderna existe um corte;
‘a ciência moderna é a ciência galileana, cujo tipo é a física matematizada’;
‘matematizando seu objeto, a ciência galileana o despoja de suas qualidades
sensíveis’.
192
O corte, destacado por Milner a partir da leitura de Koyré, entre o saber antigo e a
ciência moderna está intimamente ligado ao despojamento das qualidades sensíveis dos
objetos da ciência. Trata-se de um corte discursivo: para responder a um universo cujas
qualidades dos existentes foram eliminadas, é necessário uma teoria do sujeito em que este
seja despojado de toda qualidade – este é o sujeito da ciência: não lhe cabem as marcas
qualitativas da individualidade empírica. Vejamos o que Milner nos diz:
É justamente esse o existente que o cogito faz emergir [...]. Correlato sem qualidades
suposto num pensamento sem qualidades, vemos em quê esse existente – chamado de
sujeito por Lacan, não por Descartes – responde ao gesto da ciência moderna.
193
E o sujeito do inconsciente freudiano, o que tem a ver com isto?
Já referimos, anteriormente, que o pensamento sem qualidades é destacado por Lacan
como matéria constituinte do inconsciente.
A partir da teoria de Freud sobre os sonhos, constrói-se uma evidência teórica e
clínica: há pensamento no sonho, há pensamento no inconsciente. Donde a conclusão: a
consciência de Si não é o determinante exclusivo do pensamento. Portanto, é a suposição de
que a consciência de Si não é essencial para fundar o pensamento que faz desse sujeito da
ciência, a um só tempo, sujeito cartesiano e sujeito freudiano.
191
Ibid., p. 29.
192
Ibid., p. 32.
193
Ibid., p. 33.
70
O corte promovido pela ciência moderna é menos histórico e mais estrutural e,
conforme já afirmamos, ele é discursivo. Isto quer dizer que ele é da ordem do real, não é
cronológico.
Com efeito, o conjunto de teses que caracteriza a episteme da qual se separa a ciência
moderna desdobra-se sobre a relação do contingente passageiro com o eterno necessário:
A episteme se vê realizada apenas no instante em que ela expôs a razão pela qual um
objeto não pode, em toda sua necessidade e em toda sua eternidade, ser diferente do
que de fato é. Mais precisamente ainda, o que há de episteme num discurso é somente
a reunião daquilo que esse discurso apreende de eterno e de necessário em seu objeto.
[...] Daí decorre também que no homem a ciência só pode se apoiar no que aparenta o
homem ao eterno e ao necessário; existe um nome para isso: é a alma. Ela se distingue
do corpo, instância no homem do que o aparenta com o passageiro e com o
contingente.
194
O corte galileano, no entanto, concerne à matemática a função de soletrar/literalizar o
empírico que é permanentemente mutável e, portanto, passageiro e contingente. No doutrinal
de ciência, o empírico está em oposição ao eterno, ao necessário:
[...] o empírico no que tem de diverso não cessa de vir a ser ou de cessar de ser, sendo,
por conseguinte, incessantemente outro do que ele é.
195
Portanto, o empírico não cessando de ser outro diferente do que ele é, tem a ver como
significante. Se o sujeito é efeito do significante, conforme nos postulou Lacan, ao
aproximarmos aqui o empírico do significante, podemos supor que o sujeito é efeito do
empírico?
Cabe destacar que como o corte é discursivo, o poder das teses da episteme antiga não
se apagou. Pode-se verificar discursos contemporâneos que se utilizam de recursos
epistemológicos cujos princípios são baseados nas fontes gregas, aristotélicas: o princípio da
evidência, o princípio da unicidade do objeto e da homogeneidade do campo, por exemplo.
Vale ressaltar que o discurso do Eu, para o qual a consciência de Si é suposta ser
essencial é um traço distintivo da episteme antiga. Correlato, portanto, do eterno e do
necessário, ocupa a função de centralidade no pensamento.
194
Ibid., p. 39.
195
Ibid., p. 40.
71
Milner nos lembra que o Eu “[...] é apenas o nome da função do imaginário. [...] [E]
‘a ciência moderna, enquanto literal, dissolve o imaginário’”.
196
Desta forma, “[...] A estrutura da ciência moderna repousa inteiramente na
contingência”.
197
Decorre disto que o discurso do sujeito é correlato do contingente, é a
afirmação da ciência moderna.
Cabe-nos lembrar que ao tomarmos a episteme (saber antigo), segundo o doutrinal de
ciência, enquanto lógica estrutural, podemos verificar a influência de seus princípios, já
referidos (da evidência, da unicidade do objeto e da homogeneidade do campo), na
contemporânea ciência do DSM marcada pelo discurso do Eu, do qual o sujeito é forcluído.
198
A imagem dos dados que são lançados no ar, extraída por Milner como paradigma da
constituição do sujeito, indica-nos que o processo de emergência do sujeito se dá no intervalo
de tempo lógico entre um momento anterior (que podemos chamar de S
1
) e um ulterior
(chamaremos de S
2
). Conforme um lance de dados, o sujeito emerge no intervalo de tempo
em que os dados, em suspensão, turbilhonam no ar antes de cair:
[...] no momento ulterior em que os dados caem, o flash do impossível: impossível,
uma vez caídos, que eles tenham outro número sobre sua face lisível. Onde vemos que
o impossível não está disjunto da contingência, mas dela constitui o núcleo real.
[...] [Para a ciência] assim que a letra se fixou, só a necessidade permanece e impõe o
esquecimento da contingência que a autorizou. A inoportunidade desse retorno do
contingente é o que Lacan chama de sutura. . A radicalidade do esquecimento é o que
Lacan chama de forclusão.
199
Considerando que “[...] o próprio da letra moderna consiste em apreender o
contingente pelo contingente [...] jamais alguma letra abolirá o acaso.”
200
Portanto, na ciência quando a letra fixa o ponto de cada proposição, não permite o
retorno do momento anterior, o retorno do contingente: Lacan chama esse mecanismo de
sutura:
196
Ibid., p. 47.
197
Ibid., p. 52.
198
Vimos no capítulo anterior como o nominalismo pragmático da ciência do comportamento define a relação
do sujeito com o saber: saber prenhe de sentidos, saber nominalista e, portanto, sem relação ao real.
199
Ibid., p. 52.
200
Ibid., p. 51.
72
[...] Durante um ínfimo momento [...] cada proposição da ciência surge como podendo
ser infinitamente outro que é, numa infinidade de pontos de vista; no momento ulterior
a letra o fixou como ele é e como não podendo ser outro que é, a não ser mudando de
letra, isto é, [no caso do lançamento dos dados] mudando de partida.
201
Parece-nos, portanto, que o mecanismo da sutura, pelo qual o retorno do contingente
não é oportuno, determina a operação da ciência na relação do sujeito com o saber: a ciência
opera esta relação pela sutura.
Enquanto que para a psicanálise, o sujeito, em sua face real, forcluído, retorna, apesar
da radicalidade do esquecimento. A psicanálise, portanto, opera sobre o retorno do
contingente, afirmando o sujeito em sua relação com o saber infinito do inconsciente.
Desta forma, a posição discursiva da psicanálise opera com a causa excluída do
campo operatório da ciência. Porquanto o analista opera com o real, efeito sujeito, do
inconsciente. Elia nos aponta:
A Psicanálise, ao retomar uma démarche científica, vai submeter o sujeito suposto e
excluído, a um só tempo, pela Ciência, e trabalhar a partir da inclusão do sujeito no
campo de sua experiência, inclusão que [...] se faz [...] pela via do inconsciente
202
.
Vimos como no século XVII a Ciência, que nasce moderna, instaura a matematização
de seu objeto despojando-o de suas qualidades – é a ciência física matematizada de Galileu
Galilei. Este gesto inaugural da ciência moderna tem como correlato o sujeito da ciência que o
cogito cartesiano faz emergir.
A ciência apesar de instaurada pelo “pensamento sem qualidades”, exclui a dimensão
da materialidade significante como determinante do sujeito e cria o sujeito do conhecimento a
partir de modelos explicativos-descritivos. A psicanálise, no entanto, trabalhará com a
verdade como causa, operando, assim, com o sujeito do significante despido de qualidades
sensoriais, morais, sociais, políticas, ideológicas.
A relevância deste recorte histórico analítico, extraído do Doutrinal de ciência
203
, para
o objeto de nossa pesquisa está na indicação dos parâmetros ético-metodológicos da posição
do analista. O lugar do analista e seu discurso frente ao sujeito não o autoriza à tentativa
inócua e ingênua de fazer calar o inconsciente e, desta forma, tentar excluir o real do campo
201
Ibid., p. 52.
202
ELIA, Luciano. “A Transferência na Pesquisa em Psicanálise: Lugar ou Excesso?” In: Psicologia: Reflexão e
Crítica. V.1, n.1/2(1986). Porto Alegre: CPG Psicologia/UFRGS, 1986, p.779
203
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia.Op. cit.
73
de sua operação, campo do tratamento analítico. Esta posição, em nossa hipótese, é tomada
pela clínica do comportamento.
Veremos na seção seguinte, a partir de um fragmento clínico, como a aparição do
sintoma no real do corpo produz o enquadramento do sujeito numa determinada classe de
síndromes comportamentais supostamente determinadas por alterações neurológicas.
Verificar-se-á, com o trabalho clínico analítico, a emergência do sujeito histérico.
74
III.4- Há um sujeito distinto de todo referente fenomênico
A posição analítica incide na construção do diagnóstico clínico que não se atém a
determinantes fenomênicos, não se restringindo, portanto, à clínica da observação e
compreensão dos sintomas.
O diagnóstico na clínica psicanalítica se constrói admitindo o real sob a forma de
sujeito que emerge na transferência
204
. Esta é o único modo de acesso ao sujeito, ao saber do
inconsciente, este sim “[...] tomado então como capaz de esclarecer o real do sintoma”
205
.
A transferência, portanto, como condição exigível para o sujeito do inconsciente é
determinante no diagnóstico clínico. Desta forma, ressaltamos o que Elia nos diz:
[...] só pela via da transferência que o sujeito acede ao saber do inconsciente, é só por
meio dela que o sujeito pode vir a saber a que elementos significantes ele se encontra
assujeitado
206
.
É, portanto, no endereçamento transferencial, apontado pelo discurso do sujeito ao
analista, que algo da estrutura deste sujeito se revela. Assim, o sujeito do inconsciente se
apresenta em ato, em transferência
207
.
Para tratar da questão do diagnóstico é necessário indicar que durante o ensino de
Lacan vimos evidenciarem-se dois momentos que circunscrevem duas formas de operação
clínica: a clínica estrutural, descontinuísta e categorial,
[...] fundada sobre a modalidade da oposição [...] da existência e não existência da
função paterna. Esta clínica é tripartida entre neurose, psicose e perversão.”
208
E a clínica borromeana, continuísta e não categorial, fundada na relação dos
registros do Imaginário, do Simbólico e do Real, “segundo as propriedades de figura
204
É importante lembrar que a transferência se desdobra, para além da dimensão real, pelos registros do
simbólico e do imaginário: a dimensão da transferência simbólica aponta para a condição do sujeito de
assujeitamento ao significante; e a transferência imaginária está “[...] voltada à identificação e ao amor ao Pai, à
demanda desmedida de reconhecimento pelo Outro [...]” – ELIA, Luciano. “A Transferência na Pesquisa em
Psicanálise: Lugar ou Excesso?” Em: Psicologia: Reflexão e Crítica. Op. cit., p. 786.
205
Ibid., p.780.
206
Ibid., p.784.
207
Desenvolveremos mais adiante o conceito de transferência como condição sine qua non para a discussão
sobre diagnóstico. Para isto tomaremos como base O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, em sua lição XVIII “Do Sujeito Suposto Saber, da Díade Primeira e do Bem”.
208
LEITE, Márcio Peter de Souza. “ Diagnóstico, psicopatologia e psicanálise de orientação lacaniana”.In:
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, n. 2, vol IV, junho 2001, p. 29.
75
topológica do nó Borromeano”.
209
Vale ressaltar que não iremos tratar aqui dessas operações
clínicas. Apenas destacaremos alguns de seus indicadores fundamentais.
Na clínica estrutural, a aposta neurótica é de que há um sujeito suposto saber lidar com
a demanda do Outro. É numa relação de dívida com o Outro que o sujeito neurótico se
constitui e obtém uma significação. Este processo se contrapõe à “escolha psicótica”, na qual
a referência é a de um saber de defesa, cujo esquecimento do impossível é da ordem da
radicalidade. Na psicose a significação fálica não opera como na neurose. Na psicose, algo
pode funcionar como metáfora, que pode dar uma significação. Neste sentido,
[...] o essencial da diferença entre psicose e neurose... [é] o fato de que a metáfora
neurótica é paterna e a problemática ‘metáfora psicótica’ seria sem agente [sujeito]
suposto.
210
Trata-se, esta última, da metáfora delirante:
[...] Um delírio é isso: o trabalho de construir uma metáfora paterna, então uma
filiação e sua relativa significação, lidando com uma função paterna não simbolizada
[forcluida], mas sim no Real.
211
No entanto, quando o sujeito neurótico, numa injunção à função paterna, evoca este
significante traumático, não simbolizado, pode acontecer deste significante voltar no Real.
Mas não se trata de forclusão.
Calligaris nos adverte:
[...] existem episódios com uma fenomenologia psicótica em quadros neuróticos,
estados pseudocrepusculares, alucinações[...] episódios psicóticos em uma estrutura
neurótica. [...] Pode-se pensar que um significante paterno que não produziu
significação [e filiação] que bateu traumaticamente no sujeito, não foi simbolizado.
212
Pode-se verificar que na lógica psicanalítica, os fenômenos emergentes na clínica não
definem, por si sós, o diagnóstico. Destacaremos os apontamentos feitos por Freud acerca de
209
Ibid.
210
CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médica,
1989, p. 22.
211
Ibid.
212
Ibid., p. 50.
76
um caso acompanhado por Victor Tausk, no qual a dimensão do sintoma no real do corpo,
recebe do sujeito um outro tratamento significante.
Trata-se de uma moça que, após a discussão com o amante, queixou-se de que seus
olhos não estavam direitos, estavam tortos. A paciente afirma que, o amante “[...] era
hipócrita, um entortador de olhos”
213
– vale destacar que na nota de rodapé do texto freudiano,
o editor registra que “[O termo alemão ‘Augenverdreher’ [traduzido para o português como
‘entortador de olhos’] tem o sentido figurado de enganador].
214
Freud, a partir do contexto deste caso, aponta-nos que:
[...] as distinções entre a formação de substitutos na esquizofrenia, por um lado, e na
histeria[...] por outro – [são] distinções sutis que, não obstante causam uma estranha
impressão
215
.
Quanto à paciente do Dr. Tausk, Freud chama a atenção para a sua relação com o
órgão corporal (o olho) que toma para si “a representação de todo o conteúdo [dos
pensamentos dela]”
216
. É importante observar que, neste caso, não houve modificação no real
do corpo. O que há é a vivência delirante-alucinatória desta transformação. Portanto, a
sensação de “inervação do corpo”
217
domina toda a estruturação do pensamento delirante.
Freud nos adverte:
[...] uma histérica teria, de fato, entortado convulsivamente os olhos, [...] em vez de ter
[...] a sensação de agir dessa forma; [...] ela [não] teria tido quaisquer pensamentos
conscientes concomitantes, nem teria sido capaz de expressar quaisquer pensamentos
depois
218
.
Do mesmo modo, as indicações de uma tese de doutoramento sobre o fenômeno da
“loucura histérica” exemplificam como os fenômenos, que comparecem na clínica, não
definem, isoladamente, o diagnóstico. A autora nos aponta que nos primórdios das
investigações científicas sobre os fenômenos mentais, já se faziam aproximações entre a
histeria e a loucura: “Charcot (1975[1887]) se refere a uma fase alucinatória dentro das quatro
213
FREUD, Sigmund. “O Inconsciente” (1915). In Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de S. Freud. Op. cit., vol. XIV, p.226.
214
Ibid., p.226
215
Ibid., p.226.
216
Ibid., p.227.
217
Ibid. p.226.
218
Ibid. p.226.
77
fases que compõem o que ele chama de ‘grande histeria’.”
219
. Para pensar esta relação entre
histeria e loucura, a autora situa, no ensino de Lacan, o gozo feminino e afirma: “A
proximidade dos sintomas histéricos e psicóticos na mulher tem sua causa no enigmático e
indescritível feminino”
220
. Este recorte breve sobre o gozo nos aponta para a relação deste
com o sujeito do inconsciente que embaraça as classificações diagnósticas restritas à
manifestação de fenômenos.
A clínica borromeana, a clínica dos nós, resitua a questão da estrutura. Inscreve-se um
quarto termo ao nó borromeano constituído pelo Real, Simbólico e Imaginário- Lacan o
denomina de Nome-do-Pai. Este quarto elemento responde pela diversidade das amarrações
possíveis dos três registros
221
. Alguns deslocamentos são realizados. Veremos, por exemplo,
que na clínica borromeana o Simbólico não é deficiente na psicose. Verifica-se, nesta clínica,
que a psicose ensina a usar outros recursos, para além do Pai, de sustentação subjetiva.
Neste diálogo com o campo pragmático da ciência do comportamento tomaremos o
extrato de um caso clínico para examinarmos as relações entre o sujeito e o saber nos dois
campos (da psicanálise e da clínica do comportamento) e a incidência desta correlação na
construção do diagnóstico.
Em nossa prática clínica verificamos que, em determinados momentos, o sujeito pode
emergir como resposta do Real invasivo e avassalador. Nestes casos, a gravidade e a
devastação subjetiva produzida na vida desses sujeitos indica que a resposta possível, muitas
vezes, dá-se no real do próprio corpo.
Este recorte clínico refere-se a uma moça homossexual que chega ao CAPS referindo
conflitos com a mãe. A paciente morava com uma outra mulher e a mãe não admitia tal
situação. Após algumas entrevistas, a paciente é encaminhada para um dispositivo
ambulatorial de Saúde Mental, considerando que seu grau de autonomia e a demanda que
apresentara, naquele momento, indicavam a possibilidade de ser tratada por uma estrutura
menos complexa do que o CAPS.
Pouco mais de um ano se passa e a paciente retorna ao CAPS. Estava irreconhecível:
apresentava intensa salivação, sua fala estava completamente comprometida por uma
contratura na região ao redor da boca, fazendo com que a mesma ficasse permanentemente
219
MAIA, Ana Martha Wilson. A Loucura Histérica- Uma afinidade especial entre a Mulher e a loucura – Tese
de Doutorado, Rio de Janeiro: UFRJ/IP,2000, p.1.
220
Ibid., p. 2.
221
A esse respeito ver VELOSO, Helena Cosma da Graça Fonseca. A Psicose de Freud a Lacan. Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 1997.
78
aberta, apenas conseguindo fechá-la comprimindo com a mão o queixo num movimento para
cima. Sua fala, neste momento, é enigmática e aponta para a dimensão metafórica intrínseca
ao sintoma. Relata que, em função de brigas constantes com a mãe, a companheira foi-se
embora e a abandonou. Após algum tempo de elaboração ela nos diz: “Meu queixo caiu!”
O percurso de construção de seu sintoma localizado no corpo, mais precisamente, na
boca aberta é marcado pelo circuito pulsional que permeia a oralidade. Este sujeito fica à
mercê dos cuidados maternos. Os cuidados ofertados pela mãe são similares àqueles
destinados a um bebê. A mãe, de fato, nos diz: “ é o meu bebê!”, enquanto limpa-lhe a saliva
que escorre pelo canto da boca com uma pequena toalha. Ressalta, também, que passou a
alimentá-la à boca com fartas colheradas de comida (sic).
Esta paciente foi diagnosticada como portadora de comprometimento neurológico não
especificado. A hipótese médico-psiquiátrica era de um quadro epiléptico subjacente, com
crises convulsivas e ausências. Vale destacar que a concepção diagnóstica psiquiátrica
aproximava-a da categoria intitulada crise não epiléptica histérica. Esta categoria foi
estabelecida no ano de 1995 e é assim definida numa pesquisa feita por Fiszman:
[são] síndromes comportamentais de caráter paroxístico clinicamente semelhantes às
crises epiléticas, mas que não são acompanhadas dos achados eletrofisiopatológicos
atribuídos à epilepsia [e, portanto,] são denominadas pseudocrises, crises pseudo-
epiléticas[...]
222
.
Estas “síndromes comportamentais” estão relacionadas com várias condições clínicas
e psiquiátricas, algumas descritas no DSM-IV e na CID 10, como por exemplo: transtorno
dissociativo, transtorno do pânico, transtorno de somatização; amnésia dissociativa, transe
dissociativo (estado crepuscular), transtorno dissociativo de identidade (personalidade
múltipla).
No entanto, esta autora psiquiatra reconhece poder tratar-se de histeria, mas ratifica a
diluição da estrutura em sintomas:
[...] as crises não epilépticas correspondem, na maioria dos casos, às crises
histéricas, as quais estão atualmente subdivididas em dois grupos: crises
convulsivas conversivas e síndromes dissociativas.
223
222
FISZMAN, Adriana. Histeria e epilepsia: relações descritivas e fisiopatológicas. Dissertação de Mestrado.
UFRJ/IPUB, 1997, p. 1.
223
Ibid., p.1
79
Retornemos ao extrato clínico: A articulação significante “meu queixo caiu”, proferida
após o reconhecimento do abandono pela companheira, admite a marca do real no corpo dessa
moça homossexual. A mãe, fonte do conflito com a companheira, reassume o lugar de
provedora, retroalimentando um circuito sintomático, de cujo gozo a paciente não abre mão.
Esta moça evidencia uma estrutura histérica cujo sintoma conversivo permite um movimento
de retorno a uma condição primária de gozo e satisfação. Assujeita-se, desta forma, à
condição de objeto de gozo do Outro materno.
Cabe trazer para a cena deste caso a articulação feita, por Lacan, no texto “Intervenção
sobre a Transferência”. A propósito de Dora, e a partir de uma observação de Freud, Lacan
define como “matriz imaginária” uma imagem da infância em que Dora chupa o polegar
esquerdo, e com a outra mão puxa a orelha do irmão mais velho
224
. É a partir dessa “matriz
imaginária” que Lacan nos indicará sinais do que significam para Dora a mulher e o homem,
apontando para a questão central da histeria (o que é uma mulher?):
A mulher é o objeto impossível de separar de um desejo oral primitivo, e no qual é
preciso, no entanto, que ela aprenda a reconhecer sua própria natureza genital. [...]
[Em Dora] Para ter acesso a esse reconhecimento de sua feminilidade, ser-lhe-ia
preciso realizar a assunção de seu próprio corpo, sem o que ela continua exposta ao
despedaçamento funcional, [...] que constitui os sintomas de conversão
225
.
No recorte clínico acima referido, portanto, este assujeitamento ao gozo do Outro,
evidenciado pela emergência do real do sintoma conversivo, dá lugar, gradativamente, a
alguns deslocamentos para além do circuito de gozo, instaurado pela regressão à condição
primordial de desamparo. À articulação significante “meu queixo caiu” seguem algumas
retificações e tentativas de separação do Outro.
224
LACAN, Jacques. “Intervenção sobre a transferência”. Em: Escritos (p.214-225). Op. cit., p.220.
225
Ibid., p.220 e 221.
80
III.5- A incidência do sujeito onde há suposição de efeito orgânico: análise de um caso de
melancolia debilizada
Considerando que a ciência contemporânea do comportamento, cujo paradigma é,
por nós, circunscrito pelo DSM, reduz o corpo ao organismo, e o sujeito às suas alterações
comportamentais, o chamado “retardo mental” representa um estreitamento do sujeito ao
suposto efeito organo-neurológico.
Acompanharemos o percurso de um sujeito débil em análise e veremos como, por sua
posição subjetiva, ocupa o lugar de tamponamento da castração materna. Em seu processo
analítico, verificaremos como construiu possibilidades e se rendeu às impossibilidades de
descolamento da posição de assujeitamento ao saber do Outro. Sustentaremos como a
transferência analítica constituiu-se como a saída possível do sujeito frente ao aplastamento
do saber determinante do Outro. No entanto, iremos nos deparar com uma retroação à
posição de submetimento ao saber do Outro.
Traçaremos, portanto, as vias pelas quais um sujeito débil, marcado pelo diagnóstico
psiquiátrico de retardado mental, em tratamento analítico, pôde percorrer. Vale destacar,
inicialmente, que sua posição na transferência produz, em análise, questões que fazem a
hipótese diagnóstica oscilar entre o campo da neurose obsessiva e o da melancolia, portanto,
da psicose. Vejamos como todo esse processo se desencadeia.
Trata-se de um rapaz com 31 anos, adotado e acompanhado até os 18 anos em escolas
especializadas para portadores de deficiências de toda ordem. Este sujeito e sua família foram
recebidos e acompanhados num CAPS da zona norte do município do Rio de Janeiro. Após a
primeira entrevista com a família, a mãe confidencia, reservadamente, ao analista: “ele é
adotado doutora, mas ele não pode saber!” Uma questão, então, apresenta-se desde o início do
tratamento: De que verdade este sujeito não pode saber, e o que esta impossibilidade
repercute em seu destino?
É num contexto de impossibilidades que este sujeito se inscreve: impossibilidade de
saber a verdade sobre sua origem filial, impossibilidade de ascender ao saber do
conhecimento. Pode-se considerar que, desde o início do tratamento, sua debilidade inscrevia-
se na impossibilidade radical de acesso ao saber.
Vale destacar que para as práticas psiquiátricas e psicológicas de cunho
comportamental, a debilidade é a tradução de uma certa marca deficitária no organismo do
81
indivíduo. Entretanto, é da posição de analista que sustentamos o trabalho com este sujeito
débil, ali onde a clínica biológica-comportamental tenta padronizá-lo e formatá-lo como
retardado mental.
A preocupação desta mãe em impedir que o filho soubesse da verdade acerca de sua
filiação, parece não levar em conta as discrepâncias evidentes e os contrastes visíveis entre
suas características físicas: enquanto os pais possuíam baixíssima estatura e eram de cor
branca, o filho media cerca de 1,90 cm de altura e a cor de sua pele se aproximava de uma
tonalidade moreno-jambo. O fato da mãe se desaperceber, supostamente, desta evidência irá
nos indicar, e a experiência de análise com este rapaz nos confirmou isto, que a verdade sobre
a qual ele não poderia saber, já era sabida por ele, porém, em algum nível, evitada. O
tratamento apontará para o processo pelo qual o sujeito pôde se apropriar dessa
impossibilidade de acesso ao saber de sua verdade sentenciada pelo Outro.
No início do tratamento, a mãe nos relatou acerca de sua impossibilidade de engravidar
e, por isso, tomara a decisão de adotar. Soube, na época, de uma mulher que daria à luz e
pretendia encaminhar o bebê para adoção. A mãe acompanhou, de longe, a gestação desta
mulher. No intervalo de tempo que antecedeu o nascimento de Pedro, a mãe desenvolveu uma
gravidez imaginária (pseudociese), que produziu mudanças no real do seu corpo,
apresentando distensão abdominal e sintomas característicos de um período gestacional. Após
o nascimento, Pedro saiu da maternidade nos braços desta mãe sendo conduzido diretamente
para sua casa.
Com o crescimento, Pedro passa a apresentar dificuldades que se evidenciam no
processo de aprendizagem. Os pais propõem-se, então, a seguir uma longa jornada por
tratamentos médicos e escolas especializadas. Pedro não conseguia aprender. Parecia
responder, assim, à determinação do Outro que o impedia, tornando-o incapaz, de ter acesso
ao saber, à verdade. Esta significação nos parece traduzir a sua impossibilidade de aprender.
Sua entrada em análise se inaugura com a questão formulada transferencialmente ao
analista: A senhora pode me curar? A partir de então, em seu processo analítico, Pedro
empreendia um grande esforço com a construção de teorias que pudessem explicar sua
origem. Julgava-se muito diferente de seus pais, e acreditava ter vindo de “um outro
universo”(sic). A relação com a morte, no início, era recorrentemente presentificada em seu
discurso. Reincidentes tentativas de suicídio se seguiram, especialmente, na adolescência,
82
antes de sua chegada ao CAPS. Afirmava merecer a morte, ao reputar esta auto-condenação a
sua “deficiência”.
Sua relação com as mulheres alternava-se entre o ódio declarado, ao considerá-las
todas como “vagabundas que só pensam em sexo e botar filho no mundo para sofrer[...]”, e
uma posição de apaixonado contumaz, admirador convicto do universo feminino. Vale
destacar que entre o lugar do ódio e do amor à mulher, por vezes apresentava uma posição
intermediária na qual encenava trejeitos homossexuais, afeminados. Portanto, ora odiava a
mulher, ora se identificava a ela, ora a amava. É importante registrar que a assunção desses
lugares também se expressava na relação com o pai.
Cabe demarcar que o segredo referente a sua verdadeira origem, supostamente
ocultado pelos pais, estava, por um lado, impedido de ser revelado, e, por outro, era difundido
nas entrelinhas do discurso dos pais adotivos. Em alguns momentos, esta transmissão se dava
de forma clara: o pai, certa vez, confessou que numa briga com este filho teria lhe dito que o
levaria de volta para sua mãe moradora do morro da Penha. Como efeito desta transmissão,
que distorcia a verdade do saber sobre sua origem filial ora encobrindo-a, ora falseando-a, ora
revelando-a violentamente, consideramos que o discurso deste sujeito em seu processo de
análise, inscrevia a deficiência num marco significante traçado por sua suposta incapacidade
de ser amado pelo Outro. A debilidade como posição subjetiva, expressa na inaptidão para
aprender, parece-nos responder a esta impossibilidade de saber, saber sobre sua origem.
As atitudes de auto-recriminação, auto-tortura, e a certeza de que toda a “culpa” por
seus infortúnios é de sua “deficiência”, levam-no a um jogo perigoso, em cujo gozo seu corpo
é objeto do massacre de si mesmo. Agride-se com freqüência, conferindo socos ao rosto,
cuspindo em seu corpo, lançando sua cabeça nas paredes e armários. Estes atos o levam a uma
posição depressivo-melancólica que oscila, por vezes, para a construção de ideações
delirantes/deliródes cujo conteúdo são idéias de grandeza de cunho megalomaníaco. Em seu
discurso megalômano salvará a humanidade de toda e qualquer ameaça. Em outros
momentos, será o empresário mais rico do mundo e desprezará os pobres; ou ainda, será um
grande esportista, um verdadeiro “campeão”, desfrutará das mulheres e depois pisará nelas,
humilhando-as (sic).
Ao tomarmos a debilidade mental como efeito de uma posição do sujeito que vela a
estrutura, o caso de Pedro nos evoca uma primeira questão que diz respeito ao diagnóstico
83
estrutural diferencial entre a neurose obsessiva e a melancolia. Vejamos como este processo
de construção do diagnóstico incidiu na direção do tratamento.
Pedro nos apresenta a intenção de análise, conforme já referimos, com a questão: “a
senhora pode me curar?” Verifica-se que seu percurso inicial no tratamento é acompanhado
de um esforço pela rememoração de seu passado. Com alguma freqüência diz: “minha
memória está voltando[...] estou me lembrando de todo o meu passado[...]”. A busca pela
verdade situada neste seu “passado”, é tomada por ele como uma certa missão a ser cumprida
em sua vida, da qual não quer recuar. O desvelamento sobre sua origem assume uma
dimensão de enigma e percorre todo o atravessamento de sua análise. Vale ressaltar que a
diferença da cor de sua pele em relação a de seus pais é o pivô de atos furiosos praticados
contra si mesmo. Situa-se como objeto de estranhamento e repulsa: cospe-se com freqüência,
bate-se, tortura-se e diz odiar a sua cor: “o erro foi do meu avô de ter casado com aquela
negra (referência à avó materna) [...]”.Cabe demarcar que Pedro jamais conheceu essa avó
supostamente negra.
Segue, portanto, em buscado fio de sua origem. Numa determinada sessão anuncia:
“eu [venho] de uma mistura de raças[...]”. Afirma, na seqüência associativa: “minha mãe
errou[...], meu pai errou[...]; vou me vingar[...], por ódio[...]”. A culpabilização do Outro
encarnada nos pais como erro parece-nos configurar uma resposta deste sujeito à
cumplicidade dos pais no gozo pela ocultação da verdade sobre a ilegitimidade de sua origem
filial. A relação com o ódio ao Outro e a si mesmo é assim definida, em certo ponto de sua
análise: “a raiva é de mim mesmo!”. Afirmação ratificada pela culpa frente à morte do Outro
pai – ocasião em que o pai adotivo morre - e por sua “deficiência”.
Segundo Lacan apud Miranda o “[...] débil se situa como ‘suporte do desejo da mãe
em um termo obscuro’”
226
. Miranda continua:
[...] Interpretamos ‘o desejo em um termo obscuro’ como aquele que, podendo ter uma
referência fálica, esta se apresenta turva, de modo que não é possível ao Outro situar o
falo alhures como falta
227
.
Cabe-nos, portanto, questionar: qual é o lugar que a debilidade de Pedro pode ocupar
no processo da economia psíquico-parental? Que verdade porta o Outro materno, cujo corpo
226
MIRANDA, Elizabeth Rocha. Debilidade Mental e Estrutura Clínica. 2002. Dissertação de Mestrado –
Instituto de Psicologia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 33.
227
Ibid., p. 34.
84
supostamente deficiente, incapaz de gerar, impõe ao sujeito a posição de objeto que responde
fazendo Um com o corpo da mãe? Ao considerarmos a indicação de Lacan apud Miranda,
“[...] [que situa] a debilidade como ocultação da impotência”
228
, pode-se interrogar: até que
ponto a debilidade de Pedro oculta a impotência da mãe?
É importante destacar que depois de um tempo de tratamento, Pedro ingressou numa
escola formal, não especializada, para cursar o supletivo no período noturno. Desejava
freqüentar uma “escola para normais”, e referia seu incômodo com a deficiência dos colegas
da escola especializada. Sua mãe não o apoiou, por não acreditar que es empreitada pudesse
dar certo. Pedro suportou e se sustentou nesta nova escola por dois anos. Referia piadas dos
colegas dirigidas a ele como “o maluco, bobão...”, e uma certa atitude segregativa da turma
em relação a ele. Após uma passagem ao ato, em que ameaçou jogar-se do topo da escada da
escola, jamais retornou. Anos depois, por iniciativa de sua mãe, reingressa numa escola
especializada para deficientes. E também sai desta, mais uma vez, por não suportar, agora, a
deficiência do Outro. Parece experimentar, permanentemente, o dilema de não suportar a
própria falha/falta e a falha/falta do Outro, encarnada no significante “deficiência”.
São muitos os momentos de “depressão”, assim nomeados por Pedro. Apresenta-se
como um sujeito morto frente ao desejo: não tem vontade para nada, não consegue sustentar
um projeto iniciado. Desta forma, abandona os objetos de desejo e se abandona ao desejo do
Outro materno. Fusionado, portanto, ao desejo do Outro materno, parece não desejar por si
mesmo. Assim, responde pelo Outro a um outro. Como indicação disso, observamos que
Pedro reagia fortemente às atitudes do pai, segundo as quais este se apresentava como
sedutor, fazendo agrados freqüentes às mulheres que estavam a sua volta. Pedro demonstrava
atitudes reativas de ciúmes em relação ao pai. Vale notar que a mãe, nesses momentos,
mantinha-se incólume, como se tal fato não a afetasse. Pedro, desta forma, reagia por ela.
A posição débil de Pedro, portanto, parece oscilar entre um saber sem poder saber da
castração do Outro – dimensão da estrutura neurótica velada pela debilidade-, e uma sujeição
objetal ao desejo do Outro, também velando os efeitos de estrutura – dimensão da debilidade
psicótica
229
. Diante disto, uma questão central se coloca: O horror de saber sobre a castração
materna, posição subjetiva do sujeito débil, aqui esbarra no “não querer saber da própria
castração”, ou na submissão objetal a um Outro absoluto avassalador e invasivo?
228
Ibid., p. 70.
229
Ibid., p. 77.
85
Cabe-nos, neste ponto, apresentar as modulações do discurso de Pedro e sua posição
na transferência para pensarmos o diagnóstico estrutural. Pedro nos diz: “a lua cheia mexe
muito comigo[...] a minha mãe disse isso[...]; a lua cheia [toca] na minha fraqueza (qual é?,
pergunto) o desânimo[...] a depressão[...]”. Tomemos, inicialmente, o apontamento feito por
Alberti acerca do sujeito melancólico:
[...] [o] delírio de negação [...] condena o sujeito [...], condenação frente à qual o
sujeito assume a posição de máxima humilhação, concordando, desde sempre, com a
culpa que lhe é imposta. Fora disso, o sujeito pode se manter num semblante no qual
tenta nos convencer da franca fraqueza, da franqueza que ocasiona seu apelo.
Demanda de amor enorme com a qual nos acostumamos na clínica com neuróticos
230
.
Por ocasião da morte do pai, o luto vivido por Pedro intensificou sua posição de auto-
recriminação e auto-culpabilização: “[...] eu não devia ter quebrado a pedra dele do santo
(referência a um patuá do candomblé que o pai guardava como proteção), [...] ele disse que se
eu quebrasse, eu iria matar ele[...] sou culpado[...]”. A intensidade na experimentação da
culpa pela morte do pai, faz emergir uma posição melancólica em Pedro. Conforme nos
afirma Quinet :
[...] Na melancolia o ódio ao Outro retorna e aparece como auto-recriminação
por sua morte. O sujeito é o culpado pela morte do Outro, ou seja, a pulsão hostil
passa ao real, e o sujeito se acha o assassino
231
.
A dicotomia do mau versus o bom sempre se presentificou no discurso de Pedro. Em
certo ponto de sua análise, essa dicotomia é associada ao âmbito do sexual: “se meu pai não
tivesse me levado naquela Termas, eu ainda seria virgem, e não seria [maldoso], malicioso
[...] antes disso, eu era um garoto bom, doce, educado [...] ainda sou educado, mas nervoso
com a minha mãe [...], [por isso] bato a cabeça no armário[...]”. Esta “maldade” é referida ao
seu hábito masturbatório. No entanto, durante o processo de tratamento, reconhece que,
mesmo antes de ter tido a única experiência sexual com uma mulher, já tinha desejos sexuais
e já se masturbava.
230
ALBERTI, Sonia. “Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva”. In: ALMEIDA,
C.P. e MOURA, J.M. (orgs). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia/ Kalimeros.
Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 1997, p. 221-222.
231
QUINET, Antonio. “A clínica do sujeito na depressão: Freud e a melancolia.” In: ALMEIDA, C.P. e
MOURA, J.M. (orgs). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia/Kalimeros.Op.
cit., p. 125.
86
A dimensão da pulsão de morte é outra constante que se encarna no sentimento de
ódio. Pedro trava uma luta consigo próprio, retificando o ódio: “eu tenho que tirar esse Pedro
mal[...] sou filho de Iemanjá com Oxalá[...] sou brigão[...] [mas] gosto de fazer justiça[...] não
é ódio[...].” O que nos faz indagar: o que demanda a justiça de Pedro? A falta do Outro? A
falta de amor do Outro? É notável em seu percurso a posição que o faz oscilar de um lugar do
ódio ao lugar do amor, nos diz: “o amor está voltando[...] aquele Pedro cheio de ódio está
indo embora[...]”. Quinet, no entanto, citando Freud, nos alerta:
[Freud] dirá na Segunda tópica que Eros se retirou e que a melancolia é a pura cultura
da pulsão de morte. Isso nos permite apontar que, na melancolia, diferentemente da
paranóia, há a foraclusão do amor, e o que resta é esse puro ódio, que o sujeito vai
voltar contra ele mesmo
232
.
Notamos, entretanto, que o funcionamento de Pedro, em certos momentos apontava
para uma lógica fálica: o empuxo permanente à busca incessante por objetos idealizados
(como carteiras de dinheiro, capas para celulares, pingentes de crucifixos) não supria sua
demanda mantendo-o insatisfeito com suas aquisições. Os objetos perdiam seu valor, logo que
eram adquiridos: “vou comprar uma carteira igual a do meu padrinho[...]; é aquela que eu
queria[...] e não esta”. Pode-se verificar, desta forma, que o objeto, que assumia para este
sujeito um valor fálico, não era capaz de recobrir a falta. De acordo com Ribeiro :
Na neurose obsessiva, o sujeito é totalmente regido pela lógica fálica. O obsessivo é o
sujeito que precisa ter: ter dinheiro, mulheres, carro do ano, computadores e mil
bugigangas às quais ele atribui um valor fálico e que, no entanto, não recobrem a falta,
que é de estrutura
233
.
Porém, esta impossibilidade de recobrimento da falta assumia para Pedro dimensões
de angústia da ordem do insustentável. O mecanismo da auto-recriminação presente na
neurose obsessiva e na melancolia, no caso deste sujeito mecanismo chegava às raias da
“pulsão de destruição” encarnada em si mesmo e no Outro. Em seu discurso em nome da
“vingança” e da “justiça” diz que irá dominar o mundo para destruí-lo. Nesta perspectiva,
Alberti nos sinaliza:
232
Ibid.
233
RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. Passo-a-passo;
v. 23, p. 29.
87
[...] Se há algo que identifica a melancolia à neurose obsessiva, é essa pulsão sádica
dirigida ao próprio eu. Só que na melancolia ela assume a característica de pulsão de
destruição-não só dirigida ao eu mas ao mundo inteiro- enquanto na neurose obsessiva
trata-se da pulsão de dominação[...]
234
.
Após um longo percurso em análise, Pedro desloca-se de uma posição, na qual havia
se fixado por muito tempo, em que identifica suas atitudes ao estatuto de “coisa do mal”.
Afirma, então, que quando bate com a cabeça no armário – ato freqüente, entre outros de
auto-flagelo – “não é coisa do mal”. Pergunto, então, o que é, e ele responde girando o dedo
indicador em torno de uma das orelhas: “é coisa de maluco!”. Nessa esteira do deslizamento
significante, Pedro confere à “coisa do mal” a dimensão de “máscara”. Ele faz referência ao
momento de “cair essa máscara [...] esse Pedro espírito do mal [...]”.
Paulatinamente Pedro passa a indicar a possibilidade de vir a construir um certo lugar
de desejo para si próprio, desprendendo-se das raias avassaladoras do desejo do Outro.
Comete, em determinada sessão, um ato falho revelador de sua questão: “[...] aprendi a
conviver com a indiferença: respeitar quem gosta e quem não gosta de mim; quem aceita e
quem não me aceita!”
Ao tomarmos como hipótese que a melancolia debilizada de Pedro encobre a estrutura
psicótica, afirmamos com Miranda que este processo de mascaramento vinha “[...] impedindo
a invasão de gozo, e o recurso utilizado pelo sujeito seria a alienação petrificada à demanda
do Outro”
235
. Os reposicionamentos, feitos em análise, produziram uma certa desestabilização
no par de gozo mortífero mãe-filho. Pedro não suporta e interrompe o tratamento, após
anunciar: “entrei pa APAE[...] agora vou recuperar minha fase mental[...]”. O significante
pa apae”, sonoramente correlato a papai, circunscreve o pai como aquele que testemunha
sua deficiência
236
. E diz ainda: “voltei pra APAE[...] você e meu pai me tiraram de lá; a minha
mãe quer o melhor pra mim[...]; ela me comanda; [ela quer que eu volte pra APAE][...]; [ela
sabe o que é melhor pra mim]; quero encerrar por aqui o nosso trabalho[...]”. .
Frente à desestabilização provocada por sua análise que aponta para um processo de
desvelamento da verdade do sujeito que a debilidade encobria, Pedro interrompe o tratamento
e se vê cooptado a retornar ao lugar petrificado, e fixado ao significante “deficiente”, na
alienação à demanda do Outro.
234
ALBERTI, Sonia. “Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva”, op. cit., p. 225.
235
MIRANDA, Elizabeth Rocha. Debilidade Mental e Estrutura Clínica.Op. cit., p. 94.
236
Vale lembrar que APAE é uma instituição que assiste deficientes de toda ordem (físicos e mentais).
88
Vale destacar a dimensão da transferência que regeu o tratamento e viabilizou a saída
possível deste sujeito pela psicose encoberta pela debilidade. Entretanto é no ato de
interrupção de sua análise que a transferência assume o lugar de impedimento do trabalho.
Cabe lembrar, com Freud: “[...] a transferência surge como a resistência mais poderosa ao
tratamento [...]”
237
. O analista é identificado ao pai que entra como barra na relação de gozo
mãe-filho. Os efeitos desta intervenção são sustentados pelo sujeito durante um tempo
importante do processo analítico. No entanto, após a morte do pai o sujeito reflui à posição
radical de objeto submetido ao desejo do outro materno. Desta forma, a condição de débil é
reafirmada como resposta alienante ao Outro.
III.5.1- Uma operação de debilização do sujeito e uma saída possível pelo sujeito suposto
saber
Nesta seção discutiremos a relação do sujeito com o saber a partir do tema da
debilidade e do caso clínico acima referido. Faremos articular-se a esta discussão a hipótese
acerca de uma certa debilização operada pelo DSM sobre os sujeitos.
Convém fazer uma breve circunscrição do conceito de debilidade mental. Segundo
Bruno, “A expressão ‘debilidade mental’ foi criada em 1909 por Dupré, que estende ao
mental uma qualificação até então reservada ao físico”.
238
Esta expressão, no âmbito do sistema escolar e das ciências da psicologia sempre
esteve, e ainda se encontra, associada à idéia de déficit intelectual. É notável que Lacan
jamais se utilizou, em seu ensino, desta aproximação. Bruno nos indica:
A inovação de Lacan é de outra ordem, ele anula toda definição deficitária da
debilidade mental para encontrar aí um mal-estar fundamental do sujeito quanto ao
saber.
239
(grifo nosso).
É importante situar as referências feitas por Lacan à debilidade em momentos distintos
de seu ensino: Em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
240
,
237
FREUD, Sigmund. “A dinâmica da transferência” (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Vol.XII, p. 135.
238
BRUNO, Pierre. Á côté de la plaque”. In: Ornicar? Paris: Navarin, n.37, 1986, p. 35.
239
Ibid., p.35.
240
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-4). Op. cit.
89
Lacan tomará da lingüística o conceito de holófrase e o aplicará à primeira dupla de
significantes (S
1
e S
2
) constituintes do sujeito, para articular seus efeitos sobre os casos de
fenômenos psicossomáticos, na criança débil, quando se introduz em sua educação a
dimensão psicótica, e na psicose.
Lacan apud Miranda, nos diz:
Quando não há intervalo entre S
1 e
S
2,
quando a primeira dupla de significantes se
holofraseia, solidifica, temos uma série de casos, ainda que, em cada um, o sujeito não
ocupe o mesmo lugar.
241
Vale destacar que neste âmbito de ordenamento do par de significantes S
1
e S
2
,
estamos tratando das operações de constituição do sujeito, a saber: alienação e separação. No
campo da debilidade mental, portanto, pode-se considerar com Miranda:
[Em função da holófrase, solidificação do primeiro par significante] O sujeito surge
não mais como falta, mas como monolito, cuja significação se iguala à mensagem
anunciada. Não há intervalo entre a mensagem e a significação, o que há é uma
colagem, na qual o sujeito não é o sujeito do desejo. A holófrase do primeiro par de
significantes impede que a operação de separação, e a conseqüente queda do
objeto, se efetuem.
242
(grifos nossos).
A posição subjetiva da debilidade como efeito do insuportável da relação do sujeito
com o saber e a verdade, faz-nos indagar junto com Bruno:
Falta explicar ainda porque, ao nível dos fenômenos clínicos, o débil produz essa
impressão de não poder se separar dos significantes do Outro, como se o sujeito se
fundasse no Outro do significante, interditando-se de interrogar sobre sua vontade. [...]
o débil se auto-interdita de saber... para não transformar em negação de saber o
grão (ponto) de verdade.
243
(grifo nosso).
Verificamos, a partir da teoria e clínica lacanianas, que o sujeito débil ao não dizer a
meia verdade da fantasia neurótica e do delírio psicótico, ele se cala e colaba no Outro.
Retomemos o caso clínico construído na seção anterior. Verificamos que houve uma
rendição ao Outro em sua verdade e saber. O sujeito interrompe o tratamento analítico
241
MIRANDA, Elizabeth da Rocha. “Debilidade mental: um transtorno em relação ao saber à verdade.” In:
Saber, verdade e gozo-Leituras de O Seminário, livro 17 de Jacques Lacan. (Org.) RINALDI, Doris e JORGE,
Marcos Antonio Coutinho. Rio de janeiro: Rios Ambiciosos, 2002, p. 185.
242
Ibid., p.188.
243
BRUNO, Pierre. Á côté de la plaque”. Op. cit., p.37.
90
afirmando sua identidade de débil, ao circunscrever o seu “lugar” numa instituição de
assistência a deficientes.
Lacan nos chama a atenção para a conceitualização de saber: “Ocorreu-me no ano
passado chamar de saber o gozo do Outro.”
244
No entanto, nesta mesma lição de O seminário,
livro 17 nos indicará que o saber é o que faz barreira ao gozo: “O saber, isto é o que faz com
que a vida se detenha em um certo limite em direção ao gozo”.
245
Vale destacar que Lacan dará a S
2
, nesta primeira lição, o estatuto de campo do
saber, bateria de significantes que se repetem a partir do recalque.
Neste ponto incluímos a questão de Miranda:
Se [...] o saber inconsciente é produzido pela repetição que visa ao gozo perdido desde
sempre, podemos nos perguntar: qual é o destino desse saber na debilidade mental?
246
O débil em sua relação com o Outro, lugar da verdade irrefutável, fecha-se num “não é
permitido saber” que se alterna com um, segundo Bruno: “[...] não querer saber do saber,
diante [desta incisão] ele monta uma guarda raramente falha.”
247
Note-se que a cena clínica do caso aponta para os seguintes lugares: no plano da mãe,
a relação do sujeito com o saber se dá pela via do recalque, da castração. A mãe não quer
dizer que o filho não é filho dela. Algo da castração da mãe faz com que ela negue que esse
filho não seja dela , portanto, ela denega o filho. Este lugar de denegação do filho, assumido
pela mãe, parece ser o resultante de uma certa relação desta mãe com o saber. No plano do
filho, o sujeito débil, há uma espécie de aplastamento entre o sujeito e o saber. No plano da
ciência do comportamento, esta constrói uma relação com o saber propondo um diagnóstico
para ele.
Se consideramos que a operação da ciência se dá pelo mecanismo da sutura do retorno
do real, pode-se verificar que na ciência do DSM esta operação da sutura é correlata àquela de
colagem entre o sujeito e o saber construída pela debilidade. Donde podemos hipotetizar
haver equiparação entre a debilidade do sujeito e uma certa debilização produzida pelo DSM.
244
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Op. cit.,,p. 17.
245
Ibid., p.17.
246
MIRANDA, Elizabeth da Rocha. “Debilidade mental: um transtorno em relação ao saber à verdade.” Op. cit.,
p. 178.
247
BRUNO, Pierre. Á côté de la plaque”. Op. cit., p.34.
91
Pode-se verificar que há uma ação de moldagem do saber realizada pelo DSM, por
não permitir o retorno do contingente, ao tentar impedir o real de emergir. Constituindo-se
como matéria modelar, o DSM supõe esvaziar o sujeito de desejo e gozo, operando, desta
forma, sua debilização.
Portanto, temos que o saber da ciência do DSM forclui o sujeito. O saber da mãe,
neste caso, recalca o sujeito. O saber do filho forclui o sujeito. Nesta operação de debilização
do sujeito estas engrenagens têm lugares e funções determinantes: a mãe recusa o saber da
castração e o DSM também recusa o saber da castração. Temos, portanto, como efeito desta
operação o sujeito débil.
Mas qual é o lugar-função do sujeito débil nesta operação?
Segundo a construção do caso clínico, vimos que durante um grande percurso do
tratamento o sujeito acionou recursos que lhe abriram possibilidades de descolamento do
Outro. Cabe-nos interrogar: como se construiu esse espaço entre o sujeito débil e o saber,
permitindo-lhe sair, por algum tempo, da posição de aplastamento radical pelo saber da
debilidade. Como ele se apropriou dessa relação com o saber? Como ele criou esse espaço de
sujeito, entre o DSM e a mãe com a entrada do analista?
É neste ponto que tomaremos a transferência e seu dispositivo de acesso (o sujeito
suposto saber) como vias que constituem a materialidade significante desse espaço pelo qual o
sujeito pôde operar descolamentos do saber do Outro.
Bruno faz uma aproximação entre a operação de separação e a transferência no campo
do discurso analítico.
248
Seguindo esta indicação, afirmamos que no percurso de Pedro, em
análise, a transferência operou como eixo sustentador e separador das investidas discursivas
aprisionantes da verdade do Outro. A suposição de um saber capaz de curar instaurou a
transferência como condição de possibilidade para o tratamento.
Segundo Lacan, ao partirmos do desejo do analista como aquele que quer obter a
diferença absoluta, e está intrinsecamente ligado ao dispositivo do sujeito suposto saber,
temos que:
Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do
desejo inconsciente. É por isso que eu digo [...] que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo,
o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do
que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a
248
BRUNO, Pierre. Á côté de la plaque”. Op. cit., p.34.
92
transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do
analista, que eu designo aqui como uma função essencial.
249
Verificamos que no ponto de interrupção do tratamento, o sujeito não suportou a
diferença extraída de seu discurso, pela via do desejo, e retroagiu a uma posição de colagem à
verdade e ao saber do Outro.
249
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-4). Op. cit.,
p. 222.
93
UM RESTO A CONCLUIR
O mecanismo da sutura acionado pela ciência pragmática do comportamento, cujo
representante paradigmático é o DSM-IV, oblitera mas não impede o impossível do real de
retornar.
Se não há em nosso campo espécies naturais, mas efeitos de discursos, cabe-nos na
clínica psicanalítica sustentar, pela transferência, as possibilidades do sujeito operar em sua
relação com o Outro do saber.
O acesso ao saber e à verdade do Outro, manejado pelo sujeito débil de um modo
singular, pode, pela via do tratamento analítico e, portanto, da transferência, constituir-se em
destinos possíveis de descolamento e separação do Outro intacto como verdade da qual o
sujeito se faz servo.
94
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