Download PDF
ads:
A EDUCAÇÃO EM DOIS MOMENTOS:
ILUMINISMO E CONTEMPORANEIDADE
Lígia Sholl Pinheiro
Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Siomara Borba
Rio de Janeiro, RJ
Julho / 2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
A EDUCAÇÃO EM DOIS MOMENTOS:
ILUMINISMO E CONTEMPORANEIDADE
Lígia Sholl Pinheiro
Orientadora: Profa. Dra. Siomara Borba
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade
de Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Educação.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof.
_______________________________
Prof.
_______________________________
Prof.
Rio de Janeiro, RJ
Julho / 2010
ii
ads:
Pinheiro, Lígia Sholl.
A Educação em dois momentos: Iluminismo e contemporaneidade/Lígia Sholl
Pinheiro. Rio de Janeiro: UERJ/FE, 2009.
vi, 77f.; 31 cm.
Orientadora: Profa. Dra. Siomara Borba
Dissertação (Mestrado) – UERJ/FE/Programa de Pós-graduação em Educação, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 83.
1. Educação. 2. Iluminismo. 3. Contemporaneidade. 4. Adorno. 5. Kant. I. Borba,
Siomara. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação,
Programa de Pós-graduação em Educação. III. A Educação em dois momentos:
Iluminismo e contemporaneidade.
iii
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo pensar a educação em dois tempos históricos
distintos: a contemporaneidade, a partir de Theodor Adorno, e o Iluminismo, a partir de
alguns pensadores, entre eles Immanuel Kant. Sua concepção surgiu após a leitura de textos
de Adorno e a suspeita de que as críticas que ele fez à educação de sua época e os conceitos
que ele trata, como barbárie, emancipação e indústria cultural, possuíam pontos que se
relacionavam em alguma medida com o pensamento próprio do Século das Luzes. Deste
modo, apresentamos aqui as duas concepções de educação, estabelecendo pontos em que elas
divergem e em que elas se relacionam. Além disso, nos propomos a pensar, a partir das idéias
de Adorno, um modo de ser da educação que parece contribuir para a emancipação do homem
e afastá-lo da barbárie.
ABSTRACT
iv
AGRADECIMENTOS
À Mariana, companheira inquestionável, presente ainda que distante, agradeço toda a
confiança e amizade. Ao Marcelo, a disponibilidade, generosidade, tranquilidade e atenção. Ao
Filipe, as discussões, o apoio, as críticas e contribuições. À Viviane, todo o acolhimento e
sensatez. À professora Joana, a força, prova viva de que a produção acadêmica não precisa se
afastar do mundo real, e a demostração de que pensar e viver o/no mundo é uma função única. À
Adriana Freixo, pela atuação política dentro da escola, pela consciência, seriedade e compreensão
de si e da sociedade que me orgulham de trabalhar a seu lado. E agradeço ainda a tantos outros
amigos, que compreenderam minha ausência e distância.
Sou grata ao CNPQ pelo auxílio, que me proporcionou dois anos dignos, podendo viver,
pesquisar e produzir. Ao grupo Episteme, pelo carinho de João, pelo acolhimento de Aline, pela
generosidade de Luis, pelas contribuições sempre enriquecedoras de Rosa e Adriana, pela
seriedade e comprometimento de Natália e Sérgio. Aos meus alunos, que me ensinaram e me
ensinam tanto a cada dia e me fazem acreditar que vale a pena continuar, mostrando como é
importante pensar teoricamente a educação, assim como provando que é importante mudar a
educação na prática. À filosofia, pela inquietude que provoca, me fazendo pensar e re-pensar
sobre tantas questões.
Agradeço à minha orientadora, Siomara Borba, pela seriedade com que leu meus textos,
pelo cuidado e exigência. Sem dúvida, a atenção que ela dedicou ao texto é proporcional ao
resultado desse trabalho. Obrigada.
Manifesto minha gratidão ainda a Ana Luz, por ter tornado possível a realização dessa
dissertação. E à minha família, em que cada um tem um papel importante na minha vida: minha
irmã com seu carinho; minha avó com seu amor e admiração; minha mãe com seus ensinamentos,
a cada dia, de como lidar com os limites, meus e dos outros; e meu pai, que se mostrou parceiro,
apoiando e dividindo diversas etapas da construção desse trabalho.
Se com Adorno, aprendi a pensar sobre o amor, a reconhecer a importância deste para
a humanidade, com Isaac aprendi a viver esse amor, com todas as dores, prazeres e exigências
que uma experiência genuína demanda. Obrigada Isaac, pelo seu amor.
v
SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................................................5
Capítulo 1
1.1 A concepção de educação em Immanuel Kant ..................................................................11
1.2 Pedagogia e educação no Iluminismo.................................................................................12
1.3 A educação em Kant.......................................................................................................... 20
Capítulo 2
2.1 A concepção de educação em Theodor Adorno.................................................................32
2.2 Educação e barbárie............................................................................................................44
Capítulo 3
3.1 Críticas feitas ao modelo Iluminista de educação a partir da contribuição teórica de
Theodor Adorno........................................................................................................................55
3.2 Apontamentos sobre a contribuição do modelo iluminista para a compreensão do conceito
de educação de Adorno e de suas formulações críticas............................................................56
3.3 Educação como experiência X Educação como adaptação.................................................67
Conclusão.................................................................................................................................75
Bibliografia..............................................................................................................................81
vi
Apresentação
Esta dissertação é fruto das inquietações surgidas a partir da leitura da obra Educação
e Emancipação
1
, de Theodor Adorno. As críticas feitas à sociedade contemporânea, em sua
relação com modelos e concepções de educação, foram o ponto de partida da pesquisa. A
partir dessa leitura, começamos a investigar elementos que poderiam ter dado origem a tal
modelo de educação. Depois de iniciada a pesquisa, descobrimos que as críticas de Adorno
tinham como pressuposto um tempo histórico diferente do que ele vivia.
Investigando mais profundamente seu texto, concluímos que o Iluminismo poderia ser
o momento em que diversas práticas e pensamentos criticados por Adorno teriam surgido. A
partir disso, nos dedicamos a pesquisar outros autores que trataram de concepções de
educação no Iluminismo. Optamos por ler alguns livros que tratavam da história da educação
e, portanto, de um período mais abrangente do que aquele que nos interessava, bem como
decidimos eleger a obra de um autor daquele tempo histórico para servir como ilustração da
época. Desse modo, chegamos ao livro de Immanuel Kant Sobre a Pedagogia
2
. Esse trabalho
apresenta um caminho percorrido através do pequeno recorte de duas obras de dois autores.
Um caminho que surge a partir de críticas contemporâneas que desconfiamos que se
fundamentam no momento bem anterior do Iluminismo.
Olhamos para a obra de Adorno aqui escolhida como uma obra esclarecedora. Nela, o
filósofo trata das concepções de educação e, em consequência, do entendimento do homem
contemporâneo, suas práticas, sua forma de se relacionar, seu universo. Essa obra reúne uma
série de textos sob o tema comum da educação. Neles é possível identificar, entre muitas
outras coisas, a constatação de práticas cotidianas que abrandariam as relações entre os
homens e de práticas escolares que enfraqueceriam a sua possibilidade de emancipação.
Adorno também nos fala do empobrecimento das relações e das experiências, da
mercantilização da educação, da dificuldade de pensar em uma educação emancipadora
dentro de instituições submetidas à lógica do capital.
Os pontos da obra de Adorno que nos parecem mais relevantes e que acreditamos
terem contribuído para uma melhor compreensão dos conceitos de que tratamos são: a
impossibilidade de emancipação dentro de nosso modelo econômico e a hipótese de que a
1
Coletânea de artigos do autor que tem como tema comum a educação.
2
Essa obra, reunida por um discípulo de Kant, é um conjunto de textos que serviu como orientação para um
curso de pedagogia que o filósofo ministrava.
educação, em sua forma institucional, na maioria das vezes não seria suficiente para dar conta
da superação das dificuldades com que nos deparamos.
Ao ler a obra de Adorno, é possível enxergar uma crítica, ainda que nem sempre de
maneira clara ou explícita, a um certo modelo de pensamento que se traduz em práticas que
sustentariam a barbárie. Em alguns momentos parece clara a crítica a um modelo de
pensamento baseado somente na razão, justamente por perceber que esse modelo não deu
conta de impedir práticas bárbaras como o genocídio de judeus na Segunda Guerra Mundial.
Este mesmo modelo de pensamento serviu também à construção de armas de destruição em
massa. Ao nos depararmos com essas críticas, pareceu necessário buscar alguma fonte que
nos mostrasse o que é esse modelo de pensamento criticado, e o que ele compreendia como
educação. Elegemos como tal fonte a obra Sobre a Pedagogia.
A escolha desse segundo texto acontece por entendermos que ele é um “retrato” do
que se pensava sobre a educação em um tempo específico da história, além do fato de que
Kant é um representante do Iluminismo e um pensador fundamental. Kant é o ponto de
partida para enteder de maneira mais clara as críticas feitas por Adorno na obra com que
estamos trabalhando. Se Adorno parece criticar o modelo que era defendido por Kant, isso
não significa uma crítica específica ao folósofo do século XVIII, mas sim a um modelo de
Homem e de Educação próprios do Século das Luzes.
Outros dois textos nos ajudaram a caracterizar a educação no Iluminismo: A escola do
homem novo. Entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, de Carlota Boto; e História da
Pedagogia, de Franco Cambi (colocar referências bibliográficas). Ambos adotam o ponto de
vista histórico para apresentar a compreensão da educação iluminista de outros autores, como
Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau.
Se concordamos que a escolha, como obras principais nessa pesquisa, de apenas um
título de cada autor – Sobre a pedagogia e Educação e Emancipação – pode ter como fator
negativo a superficialidade, por outro lado entendemos que essa escolha é bastante produtiva
se levamos em conta que o objetivo deste trabalho não é investigar detalhadamente o
pensamento dos autores escolhidos, mas buscar elementos teórico-conceituais para ajudar a
elucidar a questão que nos move. Além disso, é preciso lembrar que essas duas obras são
norteadoras de uma pesquisa que, sem dúvida, não começou nem se encerrará nelas.
Nessa pesquisa, tentamos mostrar como a educação formal pode contribuir para a
adaptação do homem às necessidades do trabalho ou, ao contrário do que se poderia pensar,
para afastá-lo da possibilidade de ter uma vida autônoma e levá-lo a barbárie. Com isso, não
2
pretendemos fundamentar tal percepção em uma educação abstrata, ideal, mas sim
contextualizá-la desde o ponto de vista histórico.
Ao pensar sobre a educação no Iluminismo e na contemporaneidade muitas
inquietações foram surgindo e um caminho sem fim pareceu se abrir. Nos detemos ao que
aqui nomeamos como processo educacional-institucional, aquele que se dá dentro de espaços
bem definidos, ou seja, na escola. O objeto de nosso estudo é, portanto, a educação do ponto
de vista formal.
O objetivo dessa pesquisa foi identificar elementos que pudessem fundamentar
teoricamente nossa idéia inicial de que as críticas feitas por Adorno à sociedade de sua época
na verdade eram críticas feitas ao resultado de um modelo que teve como origem outro tempo
histórico. Para isso, foi preciso identificar as principais compreensões de educação nas duas
épocas e, só então, tentarmos estabelecer relações de aproximação ou de contradição. Desta
forma, entendemos que se pode melhor entender o processo cujo resultado, criticado por
Adorno, é o enfraquecimento das experiências, a indiferença e a alienação.
Em Educação e Emancipação observamos dificuldades do que chamamos de
educação institucional enraizadas em nosso modelo econômico. O deslocamento da atualidade
até o chamado Século das Luzes se mostrou necessário por defendermos que algumas ações
que hoje entendemos como enfraquecedoras de uma educação que não seja mera adaptação
descomprometida com o mundo podem ser fundamentadas em práticas defendidas no
contexto iluminista.
Pretendemos colher elementos presentes no texto de Kant que possam mostrar como
algumas práticas apresentadas como necessárias para a concretização e sucesso da
humanidade são, na verdade, precursoras da barbárie de que fala Adorno. Além disso, essas
práticas também contribuíram para a dificuldade de se pensar em uma prática educacional
dentro dos espaços institucionais que não tenha como conseqüência apenas aumentar a
conformação e limitação do homem, conforme aponta Adorno. Pretendemos também recortar
elementos que tratam da compreensão de homem e de educação que parecem já anunciar o
que Adorno irá constatar, criticar e lamentar. Adorno afirma que a frieza e enfraquecimento
das relações sustentam a barbárie e pouco contribuem com a autonomia do homem.
Os elementos identificados na obra de Kant podem ajudar a justificar, por outro lado, a
hipótese de que em momento histórico posterior há a impossibilidade de uma educação
emancipadora, se esta estiver submetida às ordens institucionais do capitalismo. Isso porque
dentro de nosso modelo econômico, que objetiva o acúmulo de capital e o lucro, a dominação
3
do homem se mostra inevitável. Entendemos que é incompatível a relação de exploração
econômica com projetos ligados à emancipação deste mesmo homem.
Em alguns momentos do texto, ao falar da educação, fizemos referências ao modelo
econômico. Isso porque compreendemos que a educação, como qualquer outro elemento
inserido na sociedade, sofre influência da economia, assim como da história e de outras
relações sociais. A partir de Adorno, pensamos o espaço da educação na sociedade, de que
forma ela pode ou não contribuir para a emancipação, quais objetivos poderão ser atribuídos a
um modelo educacional e se existe ou não a possibilidade de uma educação submetida ao
nosso modelo econômico que não seja apenas a preparação-adaptação ao mundo do trabalho.
Quanto ao contexto iluminista, entendemos que a pesquisa sobre ele contribuiu para a
melhor compreensão do homem e da educação nos dias de hoje. Dessa forma, entendemos o
surgimento de algumas críticas feitas por Adorno que servirão de fundamento para essa
pesquisa. Apontamos como tais problemas, como dissemos, têm sua origem antes mesmo da
consolidação do nosso modelo econômico. Ao falarmos que o que identificamos como
“problemas” podem ter origem em um tempo histórico distinto do que vivemos, entendemos
que a origem não precisa coincidir com início, ela por vezes se apresenta apenas como
condições de possibilidade.
O homem do projeto iluminista, que acreditava que a razão bastaria para dar conta de
se chegar à liberdade, tinha que atingir a sua humanidade. Kant, na obra aqui escolhida,
expressa bem o ideal de homem a ser conquistado. O homem, através da racionalidade, do
controle dos instintos e da educação formal, concretizaria seu projeto humano. Desta e
somente desta forma, através da educação, do conhecimento, da racionalidade e do controle
sobre si ele seria capaz de ser de fato humano, afastando-se assim da sua animalidade.
Seria preciso também conter os afetos. A racionalidade deveria imperar e ocupar o
lugar dos instintos e afetos, mostrando que de fato a razão é que deveria assumir o controle
das ações. Esse seria um caminho necessário a ser percorrido para a garantia da evolução
humana. O progresso ilimitado parecia ser o horizonte da humanidade. O desenvolvimento
estaria garantido se toda a humanidade aderisse ao domínio supremo da razão.
A idéia de que havia algo a ser atingido e que isso consolidaria o ser como humano e
que essa conquista seria atingida através da razão é uma expressão clara do momento
histórico de que estamos falando. Ao passamos para a obra de Adorno, algumas mudanças
poderão ser rapidamente observadas. Nela não há mais um ideal de homem a ser atingido,
uma essência de homem a ser alcançada, o homem não é um projeto que se concretizaria
somente se etapas muitas definidas fossem cumpridas e a racionalidade não é sinônimo de
4
afastamento da barbárie, nem o pilar que sustenta o êxito humano. Mesmo porque não haveria
algo nesse sentido a ser conquistado.
Se com Kant podemos observar a defesa da racionalidade, com Adorno a
racionalidade excessiva é apontada como um dos pilares da barbárie, exemplificada com
eventos como Auschwitz e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Se com Kant podemos
entender o controle dos instintos e dos afetos como necessários para que o ideal de homem se
concretize, com Adorno essas mesmas práticas serão apontadas como a origem do
enfraquecimento das relações que culminaram na indiferença para com o outro e no
empobrecimento das experiências.
Ao olhar para o homem nos dias de hoje e tentar compreender sua relação com o
mundo, nos deparamos, em grande medida, com a passividade e a adaptação, com a ausência
de questionamento e de reflexão. Podemos aceitar que o trabalho e a adaptação são
necessários para a sua sobrevivência, mas isso não é suficiente para explicar de onde vem a
passividade e a aceitação inquestionável.
Pensamos que o que parece ser almejado na prática educacional-institucional como o
ideal de emancipação, a “formação” de cidadãos conscientes, parece ser incompatível com o
que se mostra possível no projeto educacional inserido na lógica capitalista. Tentaremos
justificar essa impossibilidade relacionando a compreensão de homem do ideal iluminista às
críticas de Adorno ao homem na contemporaneidade, que sustenta o enfraquecimento das
relações, das experiências e as práticas bárbaras. Para isso, partiremos do lugar que a
educação ocupava no processo de “formação”
3
do sujeito no momento iluminista e no que ela
ocupa dentro do atual momento econômico, político e histórico.
Nossa pesquisa está assim organizada: no primeiro capítulo apresentamos a
compreensão de educação no período iluminista. Essa apresentação se dá desde o ponto de
vista histórico/teórico e tem como objetivo ressaltar os pontos comuns dos pensadores dessa
época, bem como os elementos que podem nos ajudar a compreender as críticas feitas por
Adorno. Nesse capítulo apresentamos as idéias de Kant, de modo a ilustrar a partir de um
pensador da época a compreensão iluminista de educação.
No segundo capítulo, apresentamos as principais idéias de Adorno contidas em
Educação e Emancipação. Destacamos os momentos que consideramos mais relevantes do
livro para ilustrar o descontentamento do filósofo com sua época, assim como as críticas que
3
Quando utilizamos o termo formação estamos nos referindo ao que hoje chamamos de processo institucional de
educação. Sabemos que, no contexto iluminista, ao qual Kant está submetido, o processo de formação do homem
em quase sua totalidade não cabia a uma instituição, mas a mestres e tutores que ensinavam quase sempre em
aulas particulares.
5
fazia a um modelo de educação que segundo ele poderia levar a humanidade à barbárie e ao
afastamento da emancipação e da autonomia.
No terceiro capítulo, estabelecemos relações entre as críticas de Adorno à sociedade
em que vivia e o modo de compreender a educação próprio do Iluminismo. Tais relações nem
sempre se mostraram de maneira explícita. Adorno não se dedicou nessa obra a fazer uma
crítica direta ao Século das Luzes, nem mesmo a algum pensador da época. Ainda assim,
conseguimos identificar elementos que puderam fundamentar a nossa hipótese inicial de que
as críticas feitas por ele tinham, na maioria das vezes, origem em pensamentos surgidos ou
difundidos pelo Iluminismo.
É preciso lembrar que o termo educação aqui é compreendido como educação
institucional e atentamos para o fato de que esta não é a única forma de aquisição de
conhecimento. A educação é um dos modos de transmissão e aquisição de conhecimento
dentre muitos outros possíveis. Porém, como dissemos, quando utilizamos o termo educação
dentro desse trabalho será sempre aproximando-o de um modelo que compreende a formação
do homem.
6
Capítulo I
1.1 A concepção de educação em Immanuel Kant
Falar da pedagogia iluminista é falar de concepções, tempos e entendimentos
diferentes. Não há como generalizar. Existem diferenças dentro da Europa neste tempo e,
claro, entre as compreensões sobre o que deveria ser contemplado durante o processo
pedagógico. E também diferenças sobre como este deveria ser aplicado, o que seria o ensino
básico, a quem ele deveria ser oferecido, se deveria ser obrigatório ou não, voltado ou não
para a prática, dividido ou não em classes, público o não. Essas questões serão tratadas nesse
trabalho, que não pretende esgotá-las, já que a intenção aqui não é falar exclusivamente da
concepção da pedagogia e suas manifestações dentro do contexto iluminista.
Nesse capítulo, apresentamos um apanhado de diferentes expressões e compreensões
sobre o tema, mostrando que, apesar das particularidades das idéias dos diferentes autores,
existem alguns pontos comuns que aproximam os diversos entendimentos sobre a pedagogia
no Iluminismo.
A laicização é o aspecto principal dentro do tema abordado, um exemplo de que,
abstraindo o que há de específico em cada região, reinado, país, existem características
comuns. A intenção de se pensar a educação de forma mais acessível a um maior número de
pessoas, o início da obrigatoriedade do ensino, a passagem do ambiente privado para o
público, mesmo que não perdurem durante todo o tempo, são outras características que
independem de divisões geopolíticas.
Para tentarmos compreender a concepção de educação do Iluminismo, a primeira idéia
foi estudar um autor representante dessa época. Escolhemos, nesse primeiro momento,
Immanuel Kant, por poder representar o Século das Luzes desde o ponto de vista escolhido,
que é o da compreensão da pedagogia. Apropriamo-nos então da obra Sobre a Pedagogia.
Após o seu estudo, foi possível ter idéia da compreensão kantiana de educação,
levando-se em conta que esse texto foi um manual, como dissemos na introdução, utilizado
pelo filósofo ao ministrar suas aulas na Universidade. A obra, deste modo, possui limitações
também pelo seu contexto de criação e aplicação.
Ainda que o texto seja uma grande expressão do que nós buscávamos, rico e de grande
importância para ajudar a pensar a educação dentro de um contexto específico, ele não nos
pareceu ser suficiente para dar conta do objetivo de pensar a concepção de pedagogia do
7
Iluminismo. Sua contribuição foi para pensar o tema desde o ponto de vista moral, o que não
nos satisfez.
Suprimos essa necessidade recorrendo a livros que tratassem da história da pedagogia,
e estudando especificamente o período histórico que nos interessava. Carlota Boto e Franco
Cambi estão entre os autores que contribuíram com a percepção de outras concepções de
educação iluminista. Ambos nos ajudaram a ver expressões da pedagogia no Iluminismo, que
serão apresentadas de maneira extensa. Consideraremos assim o que diversos autores
compreendiam sobre o tema, como esses entendimentos eram expressos, como eram
recebidos pelo poder público e pela população, e ainda as transformações que eles
provocaram ao longo do tempo.
Ainda assim, Kant continua sendo um autor central, principalmente porque é dele a
única obra trabalhada integralmente dentro dessa pesquisa. Apesar de termos elegido somente
a obra de Kant como central na explicitação da compreensão da pedagogia e da educação na
época, não pretendemos negar a relevância e importância de outras obras que trataram da
mesma questão, como Emílio, de Jean Jacques Rousseau.
Entre os conceitos centrais do pensamento iluminista e que vão, portanto, permear a
concepção de educação de diversos pensadores dessa época, podemos ressaltar dois: a crença
no uso da razão e a separação entre o que era público e o que era privado. Desenvolveremos a
seguir uma explicação mais consistente a respeito desses conceitos.
1.2 Pedagogia e educação no Iluminismo
O surgimento da pedagogia como objeto de estudo se consolida no Iluminismo e, deste
modo, ela se coloca como objeto de pesquisa diretamente relacionado ao desenvolvimento da
idéia do que é ser cidadão e do espírito público, idéias comuns à época. A educação para a
cidadania, pensada como um bem social e não apenas em beneficio próprio, é uma idéia
central na consolidação da pedagogia Iluminista e na necessidade de se pensar sobre a prática
educativa naquele período.
A idéia de que o homem é um cidadão, faz parte de um Estado e de que isso envolve
obrigações e direitos, contribuiu para a discussão sobre o papel que a educação deveria ocupar
dentro da sociedade que almejava “a luz”. Ser cidadão e perceber-se como tal significava de
fato a passagem das trevas para as luzes:
8
A educação se torna cada vez mais nitidamente uma (ou a?) chave mestra
da vida social, enquanto constitui o elemento que a consolida como tal e
manifesta seus mais autênticos objetivos: dar vida a um sujeito humano
socializado e civilizado, ativo e responsável, habitante da “cidade” e capaz
de assimilar e também renovar as leis do Estado que manifestam o conteúdo
ético da sua vida de homem-cidadão. (CAMBI, 1999: 326)
Com a compreensão do homem como cidadão e, como dissemos, com o entendimento
de que isso lhe garantiria direitos, inicia-se a discussão sobre o que deveria estar contido na
oferta do Estado. A idéia de uma escola democrática, laica e única começa a ser defendida:
Em suma, no século XVIII desenvolve-se uma imagem nova da pedagogia
moderna: laica, racional, científica, orientada para valores sociais e civis,
crítica em relação as tradições, instituições, crenças e práxis educativas,
empenhada em reformar a sociedade também na vertente educativa,
sobretudo a partir da vertente educativa. (CAMBI, 1999: 329)
A laicização da pedagogia é uma expressão que reflete a “iluminação” da época.
Quando a prática pedagógica começa a desvincular-se de expressões religiosas e passa
então a ser responsabilidade do Estado, o que fica aparente é que a formação do homem,
nesse momento, se volta para toda a sociedade, não apenas para uma parte específica dela.
Disso surgem discussões acerca do modelo que deveria ser aplicado para realizar essa
transformação. A nova prática pedagógica deveria se realizar dentro uma escola democrática?
A escola deveria ser laica? Única e gratuita? Estas foram algumas das questões que
começaram a ser discutidas.
O Século das Luzes foi assim chamado também por se pensar que o homem seria
capaz, através da razão, de iluminar-se, emancipar-se de dogmas, preconceitos, influências
religiosas e ter acesso mais amplo à cultura. Essa era vista como um dos instrumentos que
auxiliariam o homem a emancipar-se. O maior acesso e envolvimento cultural poderiam
promover a igualdade e a almejada iluminação/emancipação.
A crença no uso da razão, como o elemento que garantiria o progresso da humanidade
e a separação entre o público e o privado, são elementos marcantes dessa época: “(...) na sua
vertente progressista e inovadora, que quer regenerar os povos submetendo-os ao domínio da
razão, fazendo, assim, que cada homem se desenvolva na sua identidade racional.” (CAMBI,
1999: 336) A valorização da razão em parte é explicada pela tentativa de contrapor-se ao
momento histórico anterior, a Idade Medieval, onde o saber era acessível a poucos e a maior
parte da população permanecia na escuridão. A ascensão social de grande parte da burguesia
européia e a influência da Revolução Industrial serviram como elementos que
9
fundamentariam a crença no progresso da humanidade, no uso da razão, da ciência e da
técnica assim como a idéia do privado e do público.
A discussão se a escola deveria estar acessível a toda população relacionava-se
diretamente com a possibilidade ou não de envolver a sociedade inteira nesse novo momento
da história, onde a razão seria amplamente valorizada e a crença de que esta seria suficiente
para garantir o sucesso do desenvolvimento da humanidade se consolidava. Quanto maior o
acesso à cultura e à educação, maior seria a possibilidade da transformação e
desenvolvimento sociais
Com a crença de que a educação, uma expressão do uso da razão, levaria a
humanidade a progredir, a pedagogia passa a ser vista também como instrumento político, já
que o homem educado, fazendo uso de sua razão poderia administrar melhor a vida pública.
Obviamente, entendemos que a educação será sempre uma ação política, o que ressaltamos
aqui é a relação entre o homem educado e o sucesso na administração da vida pública. Nesse
novo momento, com a educação disponível a um maior número de pessoas, a escolha sobre o
modelo educativo a ser oferecido deixa de ser responsabilidade do âmbito familiar. Nesse
novo momento caberia apenas escolher entre as ofertas. Essa mudança diferencia-se da
prática, por parte das famílias, da escolha de um preceptor, em que esse possuía mais
autonomia sobre a escola do conteúdo que a prática pedagógica institucional.
Como dissemos, a família deixa de eleger preceptores e com isso perde, de alguma
maneira, o poder de delinear a orientação dos educandos. O acesso à educação em alguns
momentos se dá por obrigação e garantia do Estado e não mais por interesses particulares.
Enquanto a educação se dava somente dentro da família, na maior parte do tempo essa tinha
uma orientação voltada para a preservação da história familiar. Enquanto é garantida e
regulada de alguma forma pelo Estado, se consolida como instrumento político. Com a
submissão ao Estado, este passa a ter o poder de decisão sobre a sua orientação. Essa prática
introduz mais um elemento que ajuda a consolidar o processo de laicizacão da educação.
A compreensão difundida de que a educação seria o processo necessário para o melhor
desenvolvimento da humanidade ganha mais espaço. Ainda assim, como dissemos no início,
não se pode generalizar o que foi compreendido como a pedagogia iluminista, conceito que
conteve em si idéias contraditórias, expressas pelos seus diferentes pensadores. Uma dessas
discussões se desenvolvia em torno da discussão sobre o que havia de comum e natural em
todos os homens. Com Kant desenvolveremos mais esse ponto. Nesse momento ressaltamos
apenas o fato de que diversos pensadores da época começaram também a querer observar o
homem inserido em seu contexto histórico e social.
10
Permanecia ainda a mentalidade de que o homem deveria ser compreendido desde o
ponto de vista natural, e a defesa de que haveria algo comum e essencial em todos os homens.
Até então, dominava a idéia de que haveria uma essência humana que garantiria seu modo de
ser no mundo independente das relações e da formação. Aos poucos essa concepção vai
perdendo força e dando espaço a outra, segundo a qual os homens são diferentes e a vida
social seria responsável por essa diferenciação entre eles. Deste modo, não haveria algo que
orientasse a vida dos homens desde o ponto de vista natural, essencial. O que constituiria e
diferenciaria os homens seriam as relações sociais. Com isso, a lei, mais uma representação
do Estado e da afirmação da idéia do “ser cidadão”, se fazia necessária para regular as
relações e teoricamente estabelecer a igualdade entre os homens-cidadãos.
O processo de igualdade no acesso à educação não foi absoluto, nem quando
pensamos em territórios distintos, nem em épocas distintas. A democratização da educação se
fez presente muito mais nas discussões acerca do entendimento da pedagogia do que na
prática. Um dos motivos pelo qual se despertou o receio por uma educação acessível a toda a
população foi o temor de que isso poderia afastar o homem do trabalho braçal:
Contraditoriamente surge o pensamento de que poderia ser perigoso o povo
instruir-se já que, dessa maneira, ninguém mais desejaria exercer tarefas
braçais. O aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo poderia desviar os
indivíduos de sua conformação social, trazendo-lhes esperanças e desejos
inusitados de mudança. Por isso, grande parte dos filósofos iluministas via
com muita desconfiança a possibilidade de extensão irrestrita da instrução
para as camadas populares. (BOTO, 1996: 52)
A desconfiança de que, com o acesso à educação, os homens deixariam de se dedicar
ao trabalho braçal despertou o interesse de que houvesse um processo educacional diferente
para classes distintas, sendo essas “formadas” para fins distintos. A educação aparece então
como um delimitador de classes, mesmo com a ampliação do seu acesso. Foi sugerido que o
conhecimento a ser apresentado às diferentes classes fosse adaptado e determinado de acordo
com o papel social que o estudante, a princípio, deveria exercer.
Cambi nos apresenta Gaetano Filangieri, pensador italiano, que se ocupava de pensar a
educação no século XVII. Diz Filangieri:
A escola deveria ser dividida por classes, uma produtiva, a qual será a
responsável pela formação dos trabalhadores e uma improdutiva de caráter
mais humanístico. ‘O objetivo comum desses dois modelos educativos é a
formação de uma rigorosa consciência moral, que só é possível se realizar
11
numa sociedade bem ordenada, devendo ser produzida pela ‘aquisição das
cognições e das luzes. (Filangieri apud CAMBI, 1999: 340)
Como dissemos, as compreensões sobre a pedagogia na época abarcavam inúmeras
contradições entre seus pensadores. Podemos ver isso com o trecho de Diderot,
contemporâneo de Filangieri, onde este sugeria um modelo onde não houvesse distinção entre
os educandos, o que se diferencia da concepção anteriormente citada.
a instrução obrigatória constitui uma possibilidade única de fazer com que
todas as crianças, seja qual for a sua origem, vivam do mesmo modo e,
nesse sentido, formem uma comunidade ainda que por alguns anos – com a
condição de que as distinções de classe e de fortuna não se prolonguem
mais oficialmente no interior do colégio, como era o caso do século XVII:
nenhum aluno terá um quarto separado, um criado ou um preceptor a
serviço exclusivo de sua pessoa: que eles sejam todos confundidos, que eles
aprendam a igualdade. (Diderot, apud BOTO, 1996: 52)
No Iluminismo, a educação vista como uma inclinação natural do homem se faz
presente em muitos momentos, já a idéia de que ela deve ser obrigatória e universal não é uma
idéia presente todo o tempo. Ao se pensar sobre a universalidade da educação, alguns autores
questionam-se, como vimos, se esta deveria ser acessível a todos e, caso fosse, se deveria ser
oferecida da mesma maneira, com o mesmo conteúdo, ou se este deveria ser adaptado de
acordo com a classe social, por exemplo. Outro questionamento apresentado trata da dúvida
sobre se a educação deveria ser oferecida por um preceptor e ocorrer dentro da família ou se
deveria ocorrer no espaço público. Com a consolidação do Estado e da cidadania, esse
questionamento parece ser naturalmente resolvido. Enquanto a educação se estabelece como
um serviço obrigatório do Estado, ela passa a se dar em espaços públicos.
No espírito do chamado Século das Luzes, a educação passou a também ser exercida
publicamente. Dessa forma, o espírito público e as transformações públicas se desenvolveram
de tal maneira que não havia mais espaço para o aprendizado que se dava apenas
individualmente, prevalecente no momento anterior. Esse foi mais um passo importante para a
consolidação do pensamento e ideal da época. Igualdade, fraternidade e justiça também foram
garantidos através da educação.
Rousseau, outro grande pensador dessa época, se dedicou, entre outros temas, à
pedagogia e suas aplicações. Seus estudos sobre o assunto também envolveram a antropologia
e a política. Afirmou que a sociedade, com seu contrato social, foi o solo fértil para diversas
mazelas humanas, por outro lado, acreditava que era possível dentro da mesma sociedade, e
12
somente dentro dela, superar tais males. Por isso a importância do estudo da pedagogia e suas
aplicações.
A discussão sobre o que deveria ser público e o que deveria ser privado também foi
objeto de estudo de Rousseau. Cambi nos diz que ele “teorizou uma serie de modelos
educativos (dois sobretudo: um destinado ao homem e outro ao cidadão) colocados, ao
mesmo tempo, como alternativos e complementares e como vias possíveis para operar a
renaturalização do homem(...)”. (CAMBI, 1999: 343) Rousseau defendia que as
configurações para se formar um cidadão e um homem eram diferentes. Segundo o filósofo,
as necessidades do homem do ponto de vista particular eram diferentes das necessidades do
homem inserido na sociedade. Ainda assim, Rousseau, e mais adiante veremos que também
Kant, defendia a idéia de que o homem seria um ser naturalmente bom.
Outra transformação que pôde ser observada nas novas compreensões da pedagogia,
foi a idéia de que a educação seria um saber útil, e o sendo, poderia estar a serviço de alguma
coisa: “surge o programa educativo expresso por Denis Diderot (1713 – 1784) e por Jean Le
Rond D’Alembert (1717 – 1783) na Enciclopédia, onde se defende que a educação “seja útil a
esta sociedade” e ao Estado.” (CAMBI, 1999: 337) A educação não seria então apenas um
instrumento para a erudição estéril. Com a valorização da razão, a educação começa a ser
vista também pela utilidade que poderia oferecer.
Quanto a questão de saber a quem seria atribuída a tarefa de oferecer a educação, em
um primeiro momento ainda persiste o papel do intelectual:
O intelectual torna-se o mediador entre sociedade e poder, adquire maior
autonomia, sua presença é ativa no âmbito social, muito ativa até, ele se põe
como consciência crítica de toda a vida social e sua produção cultural
adquire uma função de guia em toda a sociedade civil e até mesmo em
relação ao Estado, nos momentos mais favoráveis. (CAMBI, 1999: 325)
O intelectual, que antes era um preceptor particular, passa a ser o responsável pela prática da
nova compreensão de pedagogia antes do surgimento de escolas de formação de professores.
O intelectual então é visto como um elo entre a sociedade e o poder, representando o papel de
educador.
A educação, como dissemos, passa a consolidar seu papel como chave para a vida
social, laica, libertando os homens de crenças e preconceitos. Passa a ser responsável pela
formação do homem como cidadão. Desse modo, o homem torna-se ele próprio responsável
pelo seu “destino”, deixando para trás a idéia de que a responsabilidade pelo seu destino era
algo externo a ele, devia-se a Deus, por exemplo.
13
Se o erudito passa a ser responsável por esse novo modelo de educação, assim como o
era no modelo da formação por preceptores, um novo elemento surge questionando o seu
papel. A discussão sobre a formação dos colégios, principalmente os relacionados aos
jesuítas, como uma formação muito erudita, passa a ser alvo de crítica, pois este modelo de
educação não contribuía para a formação do homem-cidadão.
Outra crítica à educação da época se baseava na percepção de que a questão teórica
predominava em relação à prática: “a batalha contra os colégios é um dos aspectos salientes
da pedagogia setecentista: eles são acusados de ser alheios à formação do homem-cidadão, de
ser portadores de uma cultura exclusivamente humanístico-retórica e classicista(...)”(CAMBI,
1999: 331) Isso não significava uma crítica à compreensão da pedagogia como ciência, mas
sim à idéia de que a formação não contemplava, ainda que de maneira breve, questões do
mundo prático. Com isso, a formação terminava por ser apenas teórica, “gerando” eruditos
que não se aproximavam do ser cidadão, assim como da relação de igualdade entre os
diferentes cidadãos.
Ainda pensando na relação entre educação e o novo espírito de cidadania, Cambi nos
apresenta mais elementos: “A educação é o meio mais próprio e eficaz para dar vida a uma
sociedade dotada de comportamentos homogêneos e funcionais para o seu próprio
desenvolvimento.” (CAMBI, 1999: 326) Esse trecho nos mostra que, para se desenvolver o
espírito de igualdade, ao menos de igualdade na compreensão de si como cidadão, como
possibilidade, a educação representa um papel importante.
Outros aspectos devem ser ressaltados para caracterizar algumas compreensões da
pedagogia e sua aplicação dentro da compreensão do Iluminismo. Vale destacar a importância
da difusão do livro e a contribuição da leitura acessível a uma parte maior da população. Mais
uma contribuição para a idéia de que se a cultura fosse acessível a mais pessoas ela poderia
transformar a sociedade. Da mesma forma, o uso da razão em detrimento da memória passa a
ser defendido dentro do processo educativo. Essa mudança expressa o novo “espírito das
luzes” e sua crença na razão.
Ainda tratando do processo educativo, segundo Rousseau, este deveria ocorrer de
modo natural, para isso dever-se-ia deixar de lado algumas influências do meio onde se vive
porque essas poderiam conter elementos que não seriam naturais ao homem. A educação
deveria aproximar o homem do que lhe é natural, para isso devendo ser valorizado o que há
de espontâneo nas crianças. Com isso, não se pretendia afastar o homem do que ele havia
conquistado dentro da sociedade, ao contrário, se intencionava resgatar o que de melhor havia
no homem, o que havia nele de genuíno, para que então se promovesse uma renovação da
14
sociedade da época. Outros aspectos da pedagogia rousseauniana apresentavam novas
concepções sobre o modo como a pedagogia deveria ser aplicada. A necessidade de relacionar
o aprendizado a aspectos práticos, concretos da vida de quem aprende, a idéia de que o que se
aprende deve ter uma utilidade definida, são exemplos disso.
As idéias que acima apresentamos se complementavam com a defesa e importância
dada a um formato de aprendizagem que não resultasse somente na erudição, na abstração, e
na submissão às regras, mas que contemplasse também questões reais, ligadas à prática. Idéias
essas que não foram compartilhadas por todos os autores da época.
Rousseau nos fala da importância do conhecimento e da apreciação de si próprio, não
defende os castigos como forma de educação na primeira infância e nos diz que em um
primeiro momento o papel da educação não é o de acrescentar informações, mas somente o de
não deixar com que este novo ser se corrompa através de sua inserção na sociedade.
As compreensões da liberdade, da não submissão, do afeto a ser desenvolvido por si
próprio, são centrais na concepção de pedagogia apresentada por Rousseau. Ainda que
centrais, é possível se equivocar se pensarmos que tais idéias eram defendidas
incondicionalmente. O mesmo autor afirma que todo e qualquer passo dado por quem está
sendo instruído deve ser previsível, deve corresponder apenas às expectativas já concebidas
pelo seu preceptor. A educação que parecia se aproximar da liberdade quase irrestrita, em que
o jovem por ele mesmo iria se formando a partir do contato com as coisas, guiado apenas para
que não se “contaminasse” com os males que a sociedade poderia incutir-lhe, deveria ter a sua
liberdade circunscrita à previsibilidade dos seus atos. Percebemos que havia uma grande
defesa da liberdade no processo educativo, mas liberdade com limites.
A partir da análise dos textos de Cambi e Boto, entendemos que na França a educação
contribuiu com a idéia de formar um novo povo, conformado e coletivista. A educação foi
também compreendida como uma possibilidade de criar uma nova sociedade. Para esse
projeto, na França houve a tentativa de criar as “casas nacionais”, onde as crianças se
formariam longe da família. Embora esse projeto estivesse em conformidade com a
compreensão das aplicações da pedagogia na época, não foi levado à frente pelo alto custo e
também por violar o sagrado (retrocesso à laicização?) direito do crescimento no âmbito
familiar.
O projeto de garantir a obrigatoriedade e gratuidade das escolas não se estabeleceu
com sucesso por muito tempo e em muitos locais. Na França, em 1795, se extinguiram ambos
os projetos e junto estabeleceram-se alguns parâmetros que igualariam o conteúdo das escolas
às competências básicas a serem desenvolvidas. Além disso, diferentes formatos para a
15
educação foram desenvolvidos, como escolas técnicas, escolas destinadas à pesquisa
científica e também níveis diferentes de formação.
Tantas transformações podem ser relacionadas, senão em toda a Europa ao menos na
França, com a Revolução Francesa e seus ideais de igualdade, fraternidade e liberdade. As
constantes discussões sobre a pedagogia, suas aplicações e modelos relacionavam-se
diretamente aos padrões que se desejava alcançar em determinada época. A importância dada
à educação, a discussão se ela deveria ser ou não garantida pelo Estado, para uma parte ou
para a totalidade da população, vão certamente ao encontro dos ideais da revolução francesa.
Com a revolução, inicia-se a prática da educação coletiva, para as massas, o que não
nos permite dizer que seja para todos nem igualitária. O que nos parece mais importante é a
percepção que a partir daí surge o modelo que conhecemos de educação, em espaços
coletivos, para grande parte da população, regulamentada pelo Estado, e ainda que oferecida
por órgãos civis ou estatais, submetida a regras comuns.
Todas as transformações e discussões que apresentamos até esse momento mostram
que a educação também serviu como instrumento de regulamentação e validação do Estado.
Educar-se para ser cidadão e assim compreender-se como parte de um Estado que lhe garantia
direitos e cobrava-lhe obrigações foi a maior mudança dentro da pedagogia e do processo
educativo durante o chamado Iluminismo.
1.3 A educação em Kant
A obra de Immanuel Kant em que nos baseamos para discutir a educação na
perspectiva do Iluminismo traduz, na verdade, uma preocupação pontual do filósofo em um
determinado momento de sua atividade acadêmica. A rigor, a educação não foi uma
preocupação no pensamento de Kant. Assim, nos preocuparemos em trazer à tona as idéias de
Kant sobre educação.
Em seu entendimento sobre a educação podemos identificar elementos comuns ao
modo de pensar do momento histórico que tratamos e ainda elementos comuns a outros
pensadores que aqui apresentamos, como discussões que tratam do uso da razão e do modelo
que a educação deveria possuir.
A obra “Sobre a Pedagogia” foi escrita provavelmente entre 1776 e 1787 e publicada
pela primeira vez em 1923. A falta de precisão a respeito da data se deve ao fato de que ela é
uma compilação de textos feita por um discípulo de Kant, Theodor Rink. O livro é composto
16
pelo conteúdo das aulas ministradas pelo filósofo em um curso de pedagogia na Universidade
de Königsberg, entre 1776 e 1787.
O livro está organizado em duas partes. A primeira trata da Educação Física e de
questões que correspondem aos cuidados físicos, como, por exemplo, o modo como se deve
tratar os bebês desde o nascimento, e quais os cuidados e os modos de tratar o corpo. Ela trata
ainda da relação que pode ser estabelecida entre a escola e o trabalho. A segunda parte,
chamada Educação Prática, trata de questões que envolvem a habilidade, a prudência e a
moralidade. Cada uma dessas partes serão apresentadas e desenvolvidas a seguir.
Ao pensarmos sobre o que significa educação para Kant, podemos logo de início
afirmar que é algo necessário à constituição do homem. Utilizamos o termo constituição, pois
para Kant o homem não é algo dado, a humanidade é algo que se atinge. Desenvolvendo essa
idéia, podemos afirmar que a educação seria o instrumento pelo qual a sociedade poderia
transformar-se e só então realizar o projeto ao qual estaria destinada. Ainda que o autor
compreendesse que o ideal de educação não fosse realizável, este poderia ser entendido como
uma ferramenta para alcançar a humanidade contida no homem.
Kant afirma: “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela
educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.”. (KANT, 2004: 15). Essa frase ilustra a
importância dada à educação, lembrando que esta concepção representa claramente a
concepção iluminista de educação. Nesta citação podemos perceber que o homem torna-se
humano e isso não se dá de qualquer maneira, mas através de um processo bem definido, ou
seja, por meio da educação, que também não é nesse momento qualquer processo de
formação, mas algo muito específico.
No texto escolhido, a educação física “consiste propriamente nos cuidados materiais
prestados às crianças ou pelos pais, ou pelas amas de leite, ou pelas babás” (KANT, 2004:
37). À educação prática cabe: habilidade, prudência e moralidade, cada uma delas explicada
mais a frente.
Kant entendia que a pedagogia poderia ser vista como ciência e não apenas como
prática: “É preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange a arte da
educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma geração
poderia destruir tudo o que uma outra anterior tivesse edificado.” ( KANT, 2004: 22). Para
isso, seria necessário dedicar-se ao estudo teórico da pedagogia, não bastaria a observação ou
a dedicação apenas à prática.
A manifestação da pedagogia, segundo o autor, é uma prática, mas esta deveria ser
pensada, ou seja, ser objeto do conhecimento. Isso significava que a educação não deveria
17
iniciar e terminar apenas no fazer-se. Ela poderia ser tratada como disciplina, doutrina.
Enquanto estivesse voltada apenas para a prática, não poderia ser compreendida como ciência.
Para Kant, educação pode ser dividida entre disciplina e instrução: “Por educação
entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a
formação.” (KANT, 2004: 11). À disciplina cabe transformar a animalidade em humanidade,
o que se daria através do autocontrole do indivíduo. O homem aprenderia, como dissemos, a
conter-se de modo que não se deixasse entregar pelas paixões, pelos impulsos naturais. Desta
forma, aprenderia a controlar-se, aproximando-se assim de um agir conforme as leis morais.
A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das
próprias leis. Ela tem necessariamente o caráter de adaptação, de domínio sobre os desejos.
A disciplina contém em si um caráter ao mesmo tempo positivo e negativo. É positiva
na medida que, com o domínio dos instintos do homem, fazendo-o recorrer à razão e não só às
inclinações, contribui para a aprendizagem. A disciplina faz-se importante, segundo Kant,
porque a humanidade do homem só seria conquistada dessa maneira, submetendo as ações à
razão. O caráter negativo é que a disciplina não contribui para o conteúdo, para o
conhecimento. Ela tem apenas um caráter restritivo e não acumulativo. Kant afirma:
A disciplina é o que impede ao homem de desviar-se do seu destino, de
desviar-se da humanidade, através das suas inclinações animais. (...) A
disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo
sentir a força das próprias leis. (KANT, 2004: 12,13).
O papel da disciplina é podar, é fazer com que o homem não se deixe levar pelos
instintos, mas pense sobre seu agir, de modo que a razão se manifeste através da disciplina,
controlando-o e submetendo-o às leis.
Como dito aqui, à disciplina não cabe acrescentar algo ao homem, mas sim restringi-
lo. Como seu papel é o de “apenas” fazer com que o homem contenha-se, ela não contribui
com saberes, acresce cultura ou informação. Isso a impede de ser totalmente positiva, mas não
a torna menos importante. Segundo Kant, só através da disciplina e da instrução, e
submetendo todas as suas ações à razão, o homem é realmente livre, capaz de pensar sozinho
e agir em conformidade com as leis morais: “É preciso provar que o constrangimento, que lhe
é imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem sua liberdade, que a educamos (a criança)
para que possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de outrem” (KANT, 2004:
133,34). Ainda: “A educação prática ou moral (chama-se prático tudo o que se refere {a
liberdade) é aquela que diz respeito à construção (cultura) do homem NÃO ENTENDI!, para
18
que possa viver como um ser livre.” (KANT, 2004: 34,35). A educação se apresenta como o
caminho que deve ser percorrido para que o homem se oriente na ação de acordo com
máximas que o aproximem de um agir moral. Este é o princípio pelo qual o homem deveria se
orientar.
A imposição da disciplina ao homem deveria se dar justamente porque o homem é
naturalmente inclinado à liberdade, não a liberdade que Kant almeja e que só seria possível
através da submissão de todo o agir à razão, mas a liberdade que faz com que o homem se
deixe levar apenas pelos seus instintos, e possa se entregar a todos os seus caprichos ainda que
eles impliquem no afastamento das leis morais. Para que essa inclinação à liberdade seja
contida e dê lugar a um homem não selvagem, a disciplina se faz necessária. A liberdade,
aqui criticada por Kant, é a liberdade que aproxima o homem dos animais.
A idéia de liberdade para Kant é bem particular. Liberdade não seria agir somente de
acordo com a vontade. Somente os animais orientam suas ações apenas pela vontade, pelo
instinto. Liberdade para Kant é justamente ser capaz de não fazer o que se quer sem que isso
passe anteriormente pelo júri da razão. Isso porque ao agir de acordo apenas com a sua
vontade o homem está sendo “escravo” dela, e não livre:
A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é
por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele
tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas o
homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa
formar por si mesmo o projeto de sua conduta. (KANT, 2004: 12).
O aprendizado da disciplina deveria acontecer na primeira infância, seria justamente
esse o momento de fazer com que a disciplina se aplique, para que assim os corpos aprendam
a afastar-se dos caprichos, para que nesta idade aprendam a aceitar ordens, a conter-se.
As crianças são mandadas desde cedo à escola, não para que aí aprendam
alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e
a obedecer pontualmente aquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro
elas não sigam de fato e imediatamente cada um dos seus caprichos. (KANT,
2004: 13).
Caso a disciplina não fosse aprendida na primeira infância, correr-se-ia o risco de nunca mais
aprendê-la, pois depois de algum tempo o homem já não seria mais capaz de submeter-se a
ela.
19
Ainda que esta possua um caráter também negativo, por ser apenas uma forma de
conter a influência da inclinação da vontade, e seu papel ser apenas o da privação, a disciplina
seria fundamental, segundo o autor, para que o mais cedo possível o homem fosse capaz de
submeter-se à razão. Isso seria importante porque o homem levaria consigo eternamente essa
inclinação à liberdade, que pode ser compreendida como certa selvageria.
Mas o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se
acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, esse é o motivo
preciso, pelo qual é conveniente recorrer cedo à disciplina; pois, de outro
modo, seria muito difícil mudar depois o homem. Ele seguiria então todos
os seus caprichos. (KANT, 2004:13).
À instrução, ao contrário da disciplina, não caberia apenas o papel de impor algo no
homem que em nada o acrescentaria. Ela seria incumbida de oferecer conteúdo aos homens,
através dela ele teria possibilidade de ampliar seu conhecimento. A cultura seria um dos
elementos que comporia a instrução: “A educação abrange os cuidados e a formação. Esta é:
1. negativa, ou seja, disciplina, a qual impede os defeitos; 2. positiva, isto é, instrução e
direcionamento e sob esse aspecto, pertence à cultura.” (KANT, 2004:29).
Como dissemos, a disciplina e a instrução contribuiriam com o processo de formação
do homem, que, segundo o autor, já possuiria um fim determinado, disposições naturais a
serem apenas desenvolvidas. Não bastaria apenas que a educação ou a razão estivessem
presentes na vida do homem, sem o desenvolvimento de suas disposições naturais através
delas. Estas seriam as disposições para o bem, e que não poderiam jamais ser atingidas em sua
totalidade, posto que o homem não é um ser perfeito, caberia então ao homem, somente,
aproximar-se deste ideal.
Ao pensar na forma como o processo educativo deveria ser orientado, o autor nos diz
que este deveria ter em vista não o presente, mas o futuro. O homem contém em si, como foi
dito, disposições para o bem, e para o bem de toda a humanidade. O bem desta não se
encontraria na tentativa de garantir apenas o bem particular, desenvolver suas capacidades em
conformidade com a lei moral; seria promover o bem de todos, mesmo que isso implicasse em
abrir mão do melhor para si.
As pessoas particulares devem em primeiro lugar estar atentas à finalidade
da natureza, mas devem, sobretudo, cuidar do desenvolvimento da
humanidade, e fazer com que ela se torne não somente mais hábil, mas
ainda mais moral e, por último – coisa ainda mais difícil -, empenhar-se em
20
conduzir a posteridade a um grau mais elevado do que elas atingiriam.
(KANT, 2004: 25).
Nesse texto de Kant, podemos observar que a educação se relaciona à obediência, ao
submeter-se. Em um primeiro momento a disciplina deve fazer com que o homem, ainda na
sua primeira infância, seja capaz de obedecer de forma passiva aos comandos dados pelo
professor, a quem cabe orientar o aluno em direção à educação para que. em um segundo
momento. o aluno seja capaz de submeter-se às regras morais. Deste modo podemos perceber
uma relação entre educação e adaptação.
Ao questionar-se sobre quem deveria ser responsável pelo processo formativo do
homem, Kant afirma que, em certo momento, ele caberia a família, em outro seria de
responsabilidade pública. Durante o processo educacional far-se-ia então necessário que os
pais abrissem mão de seu poder sobre os filhos e o cedessem aos governantes. Estes os
encaminhariam na formação para a vida através da educação pública.
Quanto à educação que ocorre dentro da família, Kant nos alerta que ela pode
“engendrar defeitos do âmbito familiar”, (KANT, 2004: 23) isso porque ao educar seus filhos,
os pais, por vezes, repetem comportamentos que não seriam os mais adequados. Ao longo da
obra escolhida, em vários momentos Kant volta a tratar dos riscos da educação dentro da
família. Ele sugere maneiras de tratar os bebês quando eles choram, por exemplo. Neste caso,
se deveria agir com indiferença para que eles não aprendessem a conseguir as coisas somente
através do choro: “Deixemos pois, que chorem à vontade, e logo eles mesmos ficarão
cansados de chorar. Se cedemos, porém, a todos os seus caprichos na primeira infância,
corrompemos desse modo seu coração e seus costumes.” (KANT, 2004: 43).
Ao tratar da questão da obediência e da disciplina, Kant nos diz que é muito
importante, desde cedo, o homem aprender a sujeitar-se a ordens. Seria preciso deixar de lado
suas vontades e submetê-las a outros sem impor resistência. A necessidade de aceitar ordens
seria necessária porque, até certo tempo, o homem ainda não seria capaz de dirigir
corretamente a sua vontade e por isso poderia submeter-se aos instintos, e não à razão, o que o
afastaria de sua humanidade. Para superar isso, o autor afirma: “Na verdade, o
constrangimento é necessário!” (KANT, 2004: 32). Aqui há a associação entre
constrangimento e liberdade, onde o constrangimento seria uma via de acesso à liberdade, e
esta se daria quando, enfim, o homem fosse capaz de agir submetendo todas as suas ações à
razão.
21
Kant, durante todo esse texto, nos apresenta ao processo de formação ou construção do
homem. A finalidade da educação seria essa: contribuir para a formação do homem. Dentro
desse processo deveria haver também espaço para o conhecimento de si próprio, isso porque,
conhecendo-se a si próprio, o homem aproximar-se-ia da sua racionalidade. Desta forma
agiria, ou poderia agir, de maneira livre, isto é, de acordo com as máximas que o fariam estar
sempre em conformidade com a lei moral. Assim, o conhecimento de si contribuiria também
com a liberdade.
A educação tem um importante papel na concepção de liberdade individual, política e
moral. Na medida em que a formação individual se constitui, ela serve de sustentação para a
formação política. O indivíduo bem formado agiria sempre se submetendo à razão. Desta
forma, a ação do indivíduo deveria ser boa também para toda a humanidade e, é claro, estaria
submetida às leis morais. A compreensão de que a ação individual deveria poder ser aplicada
universalmente é a síntese de um conceito fundamental do autor, o imperativo categórico
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal” (KANT, 1980:129).
Outro desenvolvimento necessário para que a educação aconteça de maneira profícua é
o desenvolvimento da prudência, que é definida como: “(...) a capacidade de usar bem e com
proveito a habilidade própria.” (KANT, 2004: 35). A importância da prudência se encontra no
fato de que ela é necessária para que não se desperdice o conhecimento adquirido. Além de
contribuir com o não desperdício deste, a prudência ajudaria a transformar o conhecimento
adquirido em um bem comum, realizando o que há de político no homem, fazendo com que
ele não apenas aja socialmente de acordo com práticas morais, como seja capaz de aproveitar
o que há na sociedade em benefício próprio.
Agir de acordo com o próprio bem é uma idéia importante segundo o autor, e para isso
ele nos mostra formas de agir que estariam mais em conformidade com esse propósito. Em
vários momentos do texto, Kant nos diz que é importante aprender a ser indiferente aos
outros. Um dos motivos seria porque este “outro”, que pode ser, por exemplo, a família, pode
influenciar de maneira ruim as suas escolhas, mesmo que a intenção fosse de educar. Essa
indiferença deveria ser desenvolvida também em outros âmbitos, como no caso do choro dos
bebês. Tal atitude ajudaria a compreender que a conquista do que se deseja não se daria pelo
grito, pelo choro ou pela força.
O filósofo pensa que a escola deve ser tratada pela sociedade como cultura obrigatória,
idéia que se torna mais fácil de compreender se levarmos em conta que a humanidade é
22
alcançada através da cultura e da educação, logo, a escola, espaço onde se pode aprender
ambas, deveria ser obrigatória.
No que diz respeito ao mundo do trabalho, Kant sugere uma possível relação entre a
escola e o trabalho. A escola pode ser entendida como uma preparação e um condicionamento
para o mundo do trabalho:
(...) quando deveriam ser habituadas (as crianças) desde cedo nas ocupações
sérias, uma vez que ingressarão um dia na vida em sociedade. (...) a criança
deve brincar, ter suas horas e recreio, mas deve também aprender a
trabalhar. (KANT, 2004: 60).
Resguardada as diferenças de idade e limites físicos, a escola deveria antecipar o que
ocorreria no mundo do trabalho. Poderíamos nos questionar sobre o que a escola e o trabalho
têm em comum. A resposta de Kant seria a de que a escola é o espaço onde se habitua à
disciplina, à obediência, a cumprir tarefas, todas essas práticas são comuns tanto ao mundo do
trabalho quanto ao da escola.
Que a criança, portanto, seja habituada ao trabalho. E onde a tendência ao trabalho
pode ser mais bem cultivada do que na escola? A escola é uma cultura obrigatória.
“Prejudica-se a criança, se se a acostuma a considerar tudo um divertimento. Ela deve
certamente ter seu tempo de recreio, mas também as suas horas de trabalho. (...) A educação
deve ser impositiva, mas nem por isso escravizante.” (KANT, 2004: 63).
Em outro momento ele afirma: “O gosto pela felicidade é para o homem o mais
funesto dos males da vida. Por isso é sobremaneira importante que as crianças aprendam a
trabalhar desde cedo.” (KANT, 2004: 71). Como vemos, é preciso se desprender dos prazeres
que não se submetem à razão. A felicidade, que não é conquistada através da razão, que
parece significar um apreço pela facilidade e não pela dedicação à conquista do aprendizado e
dos benefícios do trabalho, deve ser recusada.
É claro que, quando Kant fala de trabalho, provavelmente não se trata de trabalho
como produção de bens, mas sim, da necessidade de, o quanto antes ter um aprendizado das
responsabilidades, do doutrinamento das paixões, tendo em vista uma adaptação melhor ao
futuro, e aí sim ao trabalho propriamente dito. Ainda assim, o que chama a atenção é a idéia
de que desde cedo é importante o condicionamento, de modo que este contribua com a
adaptação do indivíduo ao meio a que está submetido, e ainda a defesa da supressão dos
sentimentos, nesse caso expresso pela recusa ao apreço à felicidade.
23
A postura de estímulo a sentimentos servis, parece ser necessária para uma existência
de acordo com as leis morais. Dentro da mesma compreensão, Kant fala da necessidade de
reconhecer autoridades e ser capaz de submeter-se a elas. A idéia de imposição, de submissão
a ordens é algo muito presente na compreensão do que cabe à educação: “É preciso proceder
de tal modo que a criança se acostume a agir segundo máximas, e não segundo certos
motivos.” (KANT, 2004: 75) e “Os homens que não se propuseram certas regras, não podem
inspirar confiança.” (KANT, 2004: 77). Aí se encontra novamente uma relação possível entre
o mundo do trabalho e a escola.
Quando Kant trata do que chama de “Educação Prática”, ele nos diz que: “Pertencem à
educação prática: 1. a habilidade; 2. a prudência; 3. a moralidade.” (KANT, 2004: 85). Os três
estão interligados entre si, na medida em que a habilidade deve tornar-se um hábito do pensar,
é necessária ao talento e liga-se à prudência, na medida em que esta “consiste na arte de
aplicar aos homens a nossa habilidade, ou seja, de nos servir dos demais para os nossos
objetivos.” (KANT, 2004: 85) Por fim, temos a moralidade, essa é a maneira de se preparar
para uma sábia moderação. “Se se quer formar um bom caráter, é preciso antes domar as
paixões” (KANT, 2004: 86).
Esses seriam os três pilares de uma educação prática. O entendimento de homem e de
educação na obra que abordamos está fortemente marcado por estes três conceitos: a
habilidade, a prudência e a moralidade. A partir disso, podemos compreender um pouco mais
o entendimento kantiano dos conceitos de pedagogia e educação. O homem cuja humanidade
teria que ser atingida deveria ser prudente e hábil, de modo a alcançar seus objetivos, e
principalmente deveria estar sempre submetido às leis morais.
A educação formal, que nesse momento ainda não se dava dentro do espaço de uma
escola, como a conhecemos hoje, e também não seria acessível a todos, representaria um
estágio importante na conquista dessa humanidade e desempenharia um papel fundamental:
mostrar desde a infância que o homem deveria ser capaz de obedecer, aceitar ordens, reprimir
suas paixões e “adquirir” cultura.
A respeito da moral, é bom lembrar que o homem não seria naturalmente um ser
moral, ele tornar-se-ia um ser moral quando se tornasse capaz de agir em conformidade com a
razão. Enquanto o homem não submetesse as ações à racionalidade, ele se encontraria mais
próximo da animalidade, e então, não seria capaz de agir de acordo com as leis morais. Para
que isto acontecesse, seria necessário um grande esforço, só assim seria capaz de dominar-se
e conduzir as suas ações preservando a conformidade com a moralidade, recorrendo à
consciência, outro nome dado ao ato de recorrer à razão antes de agir.
24
Toda esta tentativa de Kant de compreender a educação como parte constituinte do
processo de afastamento da animalidade que estaria contida no homem, tem em vista não o
bem de um único homem, mas o bem de toda a humanidade. O projeto educacional tem por
fim o bem universal. Nisso reside a importância da educação para toda a humanidade.
Se nos perguntarmos em que consiste o processo educacional para Kant, poderíamos
resumir dizendo que é o processo pelo qual o homem pode afastar-se de sua animalidade e
então realizar o seu projeto humano. Para atingir isso, sintetizando, seria necessário que o
homem se submetesse à disciplina e garantisse a conquista de cultura, dessa forma ele se
tornaria capaz de agir sempre submetendo as ações à razão. Assim, o homem poderia também
agir sempre em conformidade com as leis morais, o que seria bom não apenas para si, mas
para todos.
Fazendo um apanhado da visão de processo educativo, este não seria conquistado sem
um esforço por parte dos educandos, ao contrário, esse processo exigiria do homem grande
dedicação, para que ele fosse capaz de abrir mão de suas paixões, submetendo todas as
vontades à razão, de modo que cada ação pudesse ser aplicada universalmente. Seria preciso
também um olhar para si constante, tentando perceber se todas as ações estão em
conformidade com a lei moral.
Dentro da compreensão de educação para Kant, é possível observar que toda a sua
concepção está permeada por um fundo moral. O que está em jogo é o aprendizado do homem
de viver em conformidade com as leis morais. Dentro desse processo de aprendizagem moral,
o homem conquistaria sua humanidade, e preservaria o bem de todos.
Mesmo sendo a educação tratada quase somente desde o ponto de vista moral, ainda
assim nos apresenta elementos para pensar a relação da educação com a técnica ou com o
mundo do trabalho. Kant coloca em evidência a educação moral, mas nos dá indícios de
outros aspectos que já estão a este relacionados. Um exemplo disso está no fato de que o
filósofo nos diz que a educação deveria ser função sob responsabilidade de pessoas generosas,
interessadas não apenas na melhora de habilidades, mas visando também o aproveitamento no
trabalho. Este poderia então ser exercido por quem avançasse na educação.
Quanto à diferenciação entre educação pública e privada, o autor nos fala que
enquanto a educação privada se devia à família, e a educação pública, que tinha altos custos,
deveria acontecer nos institutos, para poucas pessoas, apenas as que pudessem pagar. E seria
necessária justamente porque a educação no âmbito familiar não seria capaz de dar conta da
instrução e da formação moral. Com a apresentação dos institutos, Kant já anuncia que a
educação não seria direito de todos, somente dos que poderiam pagar, nesse caso, poucos.
25
Não é possível haver um grande número desses institutos, nem poderiam
admitir um grande número de alunos; na verdade, são caríssimos e a
simples montagem desses colégios acarreta grandes despesas. (...) Por isso
também é difícil conseguir que outras crianças, que não as dos ricos,
participem desses institutos. (KANT, 2004: 30, 31)
Essas são as idéias principais apresentadas por Kant no texto que escolhemos. A idéia
de que a educação se dividia entre física e prática, a primeira cabendo aos cuidados oferecidos
pelos pais, babás ou amas de leite, a segunda devendo desenvolver a habilidade, a prudência e
a moralidade. A educação deveria conter a disciplina e a instrução, à primeira seria
responsável pelo aprendizado de conter-se, de submeter todos os atos à razão, e a segunda
pela cultura, pelas informações e aprendizados na vida do homem.
O propósito maior da educação seria o de tornar possível a realização da humanidade
que está contida no homem. Projeto esse irrealizável sem a ajuda de outrem. O homem através
do processo educativo seria capaz de desenvolver a sua razão a fim de conseguir submeter
todas as suas ações a ela, dessa forma agindo sempre em conformidade com as leis morais,
propósito maior na vida do homem como ser social.
Até aqui, nos preocupamos de maneira sucinta com o que se entendia por pedagogia
no Iluminismo e com algumas de suas manifestações através da sua expressão nos processos
educacionais. Mostramos que a compreensão de pedagogia não era idêntica, se observarmos
autores e territórios distintos. Essa diversidade nos ajuda a colher peças diferentes que
formam um grande quebra-cabeça, e ainda que faltem peças, já é possível identificar a
imagem que vai se configurando.
Seguiremos nosso trabalho nesse próximo capitulo tentando perceber a visão de
pedagogia e de educação em outro contexto, expressa por outro autor. Nosso objetivo é
avançar rumo a um novo olhar que nos ajude a compreender algumas críticas feitas a esses
mesmos conceitos por Adorno. Desta forma esperamos contribuir com o entendimento de
uma relação que acreditamos existir entre a pedagogia iluminista e dos dias de hoje.
Como conclusão, após a análise dessa obra podemos dizer que as afirmações
atribuídas a Kant devem ser apreendidas obviamente dentro de seu momento histórico, dentro
do ideal iluminista e da crença de que a racionalidade, exercida também através dos processos
educacionais, passando necessariamente pela disciplina, seria suficiente para aproximar o
homem de sua emancipação. Dessa forma, podemos compreender a associação entre
26
disciplina e racionalidade. A disciplina seria uma manifestação do que a submissão à razão é
capaz.
Entendemos que a importância da educação para Kant é fundamentada na crença de
que a razão é necessariamente responsável pela passagem do homem da animalidade para a
humanidade, o homem não seria capaz de concretizar tal passagem sem a ajuda de outrem,
por isso, nos seus anos iniciais de vida precisaria ser moldado, para que através desse
exercício aprendesse a conter-se e fosse capaz de agir de acordo com as máximas que o
aproximariam de práticas em acordo com a moralidade.
27
Capítulo 2
2.1 A concepção de educação em Theodor Adorno
Neste capítulo, nos dedicaremos a apresentar o que Theodor Adorno compreendia por
educação. Não trataremos apenas de sua expressão prática, mas também da percepção das
repercussões que o processo educacional é capaz de gerar, o contexto em que esse se dá e
ainda o entendimento da educação como objeto de estudo. No texto escolhido, Adorno não
apresenta sempre de forma direta o que compreende por educação. Em diversos momentos, a
educação é tratada com ênfase mais nos efeitos e reflexos do que no conceito propriamente
dito.
Diferente do texto que escolhemos de Kant, o livro eleito como central dentre as obras
de Adorno que foram lidas durante essa pesquisa não é um tratado sobre educação. A obra
eleita é uma reunião de diversas conferências, entrevistas radiofônicas apresentadas por
Adorno que compartilham o mesmo tema da educação. Nela podemos encontrar
considerações importantes acerca do assunto, também do ponto de vista prático. Com a
reunião desses textos podemos observar uma reflexão teórica acerca da prática educacional.
Ao fazer isso, Adorno de forma alguma se restringiu a pensar a escola, o professor, o aluno
como se fossem isolados entre si. Como não podia deixar de ser, ao pensar sobre a educação,
pensamos também a sociedade como um todo, a economia, a política, a história.
Embora os textos apresentem um tema comum, isso não é perceptível sempre de forma
tão direta como no livro de Kant. Por isso, quando apresentarmos as concepções de educação
de Adorno, elas serão apresentadas a partir de idéias menos óbvias. Para entendê-las, portanto,
deve-se tentar percebê-las inseridas em um contexto mais amplo e em sua integração e relação
com diversos conceitos.
Nessa apresentação também trataremos de outras reflexões do autor. Reflexões que
pensamos serem diretamente relacionadas à educação e contribuírem para uma melhor
compreensão da atividade educativa. Entre elas, destacamos a questão da barbárie e da
emancipação. Ressaltamos que ao falar de educação, Adorno está quase sempre se referindo à
educação na Alemanha. Em pouquíssimos momentos trata diretamente da ação educativa de
modo universal. Em contrapartida, as questões que são levantadas por Adorno poderiam ser
aceitas quase sempre como questões comuns a grande parte das sociedades. É possível
identificar exemplos, práticas acontecidas na Alemanha que, aparentemente, são observáveis
em diversas partes do mundo, ou, ao menos, entra elas há pontos em comum. Em outras
28
palavras, apesar de termos clareza de que a vida humana e social se realiza em diversos
tempos históricos, a percepção da história permite que considerações de Adorno sobre a
educação na Alemanha possam ser tomadas como questões de qualquer tempo e qualquer
lugar.
Quando tentamos compreender o que significa educação ou qual o seu sentido,
segundo o pensamento de Adorno podemos resumidamente apresentá-la afirmando que a
educação tem o papel de impedir que a tragédia ocorrida em Auschwitz se repita, ou seja, o
papel principal da educação é afastar o homem da barbárie: “A exigência que Auschwitz não
se repita é a primeira de todas para a educação.” (ADORNO, 1995a: 119)
O autor afirma ainda: “Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de
significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela (?) foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação.” (ADORNO, 1995a: 119). Porém, é preciso
antes de qualquer coisa pensar se a educação pode ou não contribuir de fato para que a
barbárie deixe de existir. E mesmo que concordemos com essa possibilidade, é preciso pensar,
delinear e compreender o objetivo da educação. A questão “para onde a educação deve
conduzir?” é decisiva.
A educação não seria capaz de moldar as pessoas, mas poderia conduzi-las por alguns
caminhos possíveis, caminhos esses diferentes entre si. Isso só seria possível por não haver
uma natureza humana que defina previamente o destino do homem. Entendemos que não há
uma essência determinando a forma de agir do homem, ao contrário disso, o homem e todas
as suas ações são fruto da sua época, do contexto em que está inserido, de suas necessidades.
Dessa forma, a educação também seria fruto de uma orientação, de um objetivo
contextualizado, que poderia ser decidido, discutido e modificado.
A educação foi assim apresentada por Adorno:
Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não
temos o direito de modelar as pessoas a partir do seu exterior; mas também
não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta
já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência
verdadeira.(ADORNO, 1995a: 141)
Compreender a educação passa por entender a sociedade como ela se manifesta. É
preciso perceber qual o objetivo dessa educação dentro de seu contexto histórico e
econômico, além de diversos outros fatores. Do mesmo modo, compreender que a mesma
sociedade que pode contribuir com a integração e o bem estar das pessoas através da educação
29
pode gerar princípios de desagregação também estimulados e criados dentro da mesma
sociedade.
Aceitar que aquela que é capaz de integrar e acolher através da educação, pode
também desagregar não é uma idéia simples, principalmente por que essa contradição não fica
tão clara e exposta. Além disso, a educação quase sempre é compreendida como uma
orientação para uma vida civilizada, o que dificulta a percepção de que ela possa contribuir
justamente para o seu contrário. A sociedade seria o espaço onde a barbárie e a alienação,
conceitos que serão apresentados adiante, podem se sustentar. É na estrutura social que eles
podem ser percebidos e se amparam. E para transformá-los, ou mesmo impedir que se
sustentem, é preciso modificar também a sociedade.
Adorno afirmou, assim como muitos iluministas, que era preciso transformar a
sociedade. Quando se deparou com as lembranças de tragédias como os campos de
concentração e as bombas atômicas, entendeu que era preciso modificar antes de tudo o
contexto que permitiu que tais práticas fossem possíveis. O autor nos diz que as pessoas:
(...) por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio
primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui
para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a
explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão
urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos
educacionais por esta prioridade. (ADORNO, 1995a: 155).
Explicar o que ocorreu em Auschwitz só seria possível olhando para a sociedade,
observando suas diferentes manifestações e compreendendo-as em toda a sua complexidade.
Haveria um isolamento entre os diversos segmentos sociais, que se refletiria também em um
isolamento entre as pessoas. O resultado disso é que os seres acabam por se importar apenas
com o pequeno grupo com que se relacionam diretamente. Por todas as outras pessoas,
aprenderiam a desenvolver apenas a indiferença. Os próprios interesses acabam por valer
muito mais, apenas eles possuem valor em detrimento dos interesses, gostos e afetos
desenvolvidos pelos outros. Essa manifestação acaba por gerar uma incapacidade de
identificação com as outras pessoas. Esse processo foi chamado de frieza da “mônada social”:
“A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao
destino do outro [rever texto da citação] (...).” (ADORNO, 1995a: 134).
O desenvolvimento dessa indiferença acaba por gerar uma incapacidade de relacionar-
se, que é substituída pela relação somente com a representação do outro. Um problema gerado
a partir disso é que as relações que se estabelecem são relações com essa representação, feita
30
por si mesmo. Relacionar-se com a imagem do outro, construída por si, é relacionar-se apenas
consigo mesmo, alimentando a “frieza da mônada social”. Tal prática resultaria em um
interesse apenas por si mesmo e a percepção de si como sendo o centro.
Todas essas manifestações de relações não passariam de uma adaptação do sujeito à
sociedade em que ele vive, e a necessidade dessa adaptação seria fruto de uma pressão forte
que as próprias pessoas exerceriam: “Em primeiro lugar, a própria organização do mundo em
que vivemos e a ideologia dominante (...), ou seja, a organização do mundo converteu-se a si
mesma imediatamente em sua própria ideologia.” (ADORNO, 1995a: 143) A sociedade e a
ideologia do mundo seriam responsáveis, então, por desempenharem essa pressão sobre o
indivíduo.
A superação desse modo de ser não se daria com a vivência do oposto, a associação
coletiva não seria suficiente para superar a frieza social. A associação coletiva não era vista
sempre como positiva. Segundo Adorno, o coletivo pode ser cego, servir como massa de
manobra: “Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é
contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos
mesmos por meios do esclarecimento do problema da coletivização.” (ADORNO, 1995a:
127). O autor ainda afirma que, muitas vezes, inserir-se em algum grupo, fazer parte de
associações pode gerar traumas, até mesmo dor. Como exemplo, destaca os ritos de passagem,
como o ingresso em uma universidade, e o preço que muitas vezes se paga para inserir-se em
grupos: “(...) ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física – muitas vezes
insuportável – a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do
coletivo.” (ADORNO, 1995a: 128).
Essa indiferença desenvolvida em relação aos que nos cercam teria diversos efeitos.
Por exemplo, ela se manifestaria no entendimento de que a virilidade deveria ser expressa
através da capacidade de suportar e reprimir a dor. Desse modo, a indiferença acabaria por se
manifestar também em relação a si mesmo. O autor nos diz que esse ato acaba por tornar o
homem indiferente às suas sensações, daí ele tornar-se também indiferente à dor do outro: “O
elogiado objetivo de ‘ser duro’ de uma tal educação significa indiferença contra a dor em
geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio.”
(ADORNO, 1995a: 128). Essa prática de um homem supostamente viril acaba por tornar esse
mesmo homem capaz de causar dor nos outros. Como expressão desse fato, Adorno lembra a
rigidez defendida na formação: “(...) elogio à educação baseada na força e voltada à
disciplina. (...) Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem
até acreditar, é totalmente equivocada.” (ADORNO, 1995a: 128).
31
Essa situação de indiferença perante a dor também se manifestaria na tentativa de
limitar as possibilidades de viver determinadas experiências. Experiência implica na aceitação
do que nos chega também através dos sentidos. Reprimir essa possibilidade naturalmente
refletir-se-ia em diminuir as oportunidades de cada ser humano passar por diferentes
experiências, levando a uma falta de interesse e, até mesmo, à incapacidade de se estabelecer
experiências. Em outras palavras, isso, objetivamente significa suprimir as sensações e
estimular a indiferença, reduzindo a possibilidade da experiência.
E porque seria negativa a supressão da experiência? Para responder a essa questão é
preciso dizer que, segundo Wolfgang Leo Maar, na introdução de Educação e Emancipação,
a reflexão é fruto da experiência e o conhecimento é gerado a partir da reflexão:
Para Adorno, o travamento da experiência deve-se à repressão do
diferenciado em prol da uniformização da sociedade administrada, e à
repressão do processo em prol do resultado, falsamente independente,
isolado. Estas seriam, como já se viu, as características da ‘semiformação’.
(LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 25)
Compreendemos que o enfraquecimento da experiência pode se dar de diversas
formas, como por exemplo através de uma tendência à uniformização, e que isso resultaria,
diretamente, no enfraquecimento da reflexão. A limitação da reflexão se traduziria
conseqüentemente nos processos de construção de conhecimento.
Em nossa analise, entendemos que é mais fácil permanecer com o que já é conhecido.
Permanecer no mesmo lugar, principalmente quando o nível de dedicação e de exigência
desse lugar é pequeno, pode ser mais fácil do que se lançar ao novo. Conhecer, descobrir,
implica abrir mão do domínio que se tem frente de uma situação conhecida e esse processo é
também experiência. Dessa forma se dá o experimentar, o conhecer que tanto contribui com a
reflexão e com o conhecimento.
Outra questão relevante é a que trata da construção das identidades e da
individualidade. Entendemos que esta se realiza concomitante à experiência. É preciso pensar
sobre si e sobre o outro, compreendendo os papéis desempenhados por cada um dentro da
sociedade. Isso é necessário para que a individualidade e todas as particularidades que esse
conceito envolve surjam, se fortaleçam, sejam respeitadas e se sustentem.
O enfraquecimento da construção das identidades, individualidades e experiências
podem resultar em intolerância, barbárie e afastamento da emancipação. Além disso, esse
enfraquecimento geraria escolhas muitas vezes em desacordo com a própria vontade. Essas
32
escolhas se dariam somente de acordo com o que é imposto, acontecendo, sobretudo, de
maneira subjetiva. Pensamos que para se fazer escolhas, escolher inclusive a experiência, é
necessário auto-reflexão, olhar e pensar sobre si e sobre os outros.
Um dos resultados desse processo seria o comprometimento e envolvimento com fatos
que não foram escolhidos necessariamente de forma autônoma. Isso poderia gerar relações
que se sustentam em uma base frágil e superficial. Desse modo, o processo acaba por manter-
se e desenvolver-se de forma cíclica. Esse processo pode levar a um enfraquecimento da
consciência e ao enfraquecimento da reflexão. Tudo isso pode se refletir na própria relação
com o corpo: “Em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo
e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propícia à violência.” (ADORNO, 1955a:
127) Desta forma se explicita a relação do enfraquecimento da reflexão e da consciência com
expressões de violência.
Segundo o autor, há uma pressão para que se destrua a individualidade. Esta
destruição se mostra, entre outras formas, na pressão para a uniformização. Quando se
estimula a padronização, e a indústria cultural é um bom exemplo, o resultado é uma
identificação silenciosa com o outro, uma sensação aparente de “fazer parte”. Ao contrário de
uma integração, essa sensação gera a atenuação das particularidades contidas em cada um e
também das individualidades.
A pressão do geral dominante sobre tudo o que é particular, os homens
individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar
o particular e o individual juntamente com o seu potencial de resistência.
(ADORNO, 1995a: 122)
Esse processo é um dos responsáveis pelo surgimento e a permanência da situação de
barbárie. Ele a torna possível, faz com que ela se prolifere. A emancipação também é
prejudicada. Fruto da experiência e do pensamento, ela é de suma importância para o
extermínio da barbárie.
Emancipação é um conceito bastante complexo, discutido por Adorno. Neste trabalho,
ela será entendida como uma compreensão consciente, autônoma. A emancipação passa pela
racionalidade, que faz uso do contexto histórico, social e econômico, tendo em vista o
crescimento e a compreensão de si e do outro como parte de uma sociedade. A emancipação
implica em um desenvolvimento sustentado na dialética.
A prática educacional pode contribuir com o projeto de emancipação. Ela deve estar
contida nos processos de construção de conhecimento. Porém, tal compreensão não significa
33
que o homem tenha algo de essencial que deva ser orientado para algum sentido definido
previamente, nem que o homem, com ou sem essa ajuda, realize o destino que a ele foi
designado. Não existem destinos designados.
A emancipação é a possibilidade de fazer uso do próprio entendimento. Esse conceito
está próximo da idéia kantiana de saída da menoridade. Contudo, essa aproximação é parcial,
pois apresenta diferenças em alguns aspectos, como, por exemplo, a compreensão de que esse
processo deve ser universal, de que só se realize em sua plenitude quando permitido a todos, e
não apenas a uma parte da população.
Uma prova de que o uso da razão não é suficiente para que a emancipação se
concretize é a compreensão de que o desenvolvimento científico não conduz necessariamente
à emancipação. Fazer uso da razão e dos avanços permitidos por ela não implica,
necessariamente, em emancipação, em liberdade de pensamento, de criação e nem de escolhas
de acordo com a individualidade de cada um.
O desenvolvimento cultural também não é suficiente para que a emancipação seja
possível. A formação cultural, a escola e o desenvolvimento científico podem levar à barbárie.
Auschwitz é a prova de que uma população, que fazia uso da razão e que se relacionava com
o desenvolvimento cultural, foi capaz de praticar e sustentar a barbárie. Nos diz Adorno:
A minha geração vivenciou o retrocesso da humanidade à barbárie, em seu
sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é uma situação em que se
revela o fracasso de todas aquelas configurações para as quais vale a escola.
Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem
apenas condições mínimas de resistir a isso. (ADORNO, 1995a: 116).
Auschwitz, Hiroshima, Nagasaki, entre tantos outros exemplos, evidenciam que não
basta ter algum contato com a cultura e com a educação. Ter conhecimento de alguma coisa
não é suficiente para exercê-lo.
Pensar em indivíduos “emancipados” é pensar a humanidade com a sua compreensão
do eu, da individualidade fortalecida. Adorno argumenta que, ao longo da história, é possível
perceber de que modo a tentativa de compreender como um indivíduo e, ao mesmo tempo
como um ser social, gerou inúmeras vezes expressões de repressão e de resistência. “A idéia
de uma espécie de harmonia, tal como vislumbrada por Humboldt, entre o que funciona
socialmente e o homem formado em si mesmo tornou-se irrealizável.” (ADORNO, 1995a:
154). Nesse sentido a escola pode ser um exemplo de tal fato. Quando pensamos que a
educação e suas expressões práticas podem tanto estimular a criatividade, as características
34
singulares, como reprimi-las ao extremo, podemos então compreender o processo educativo
como uma possibilidade de repressão ou de resistência quando consideramos a questão da
emancipação.
Partir da idéia de emancipação humana como um dos pilares da humanidade e sua
garantia de sobrevivência deve ser, segundo o autor, uma exigência política, já que ele afirma
que a democracia e a emancipação se relacionam diretamente. “Isto é: uma democracia com o
dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas
emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de
quem é emancipado.” (ADORNO, 1995a: 142) Deste modo, há grande dificuldade de se fazer
escolhas genuínas onde o pensamento é submetido a outros fatores que não o estímulo de
conhecer, descobrir e aprender. Se as idéias forem, de alguma forma, tuteladas, as decisões
conseqüentemente também seriam. Emancipar-se implica em construir a própria autonomia
como fruto da atividade de pensar por si mesmo. Por isso, a emancipação não pode ser
“oferecida” por outrem. A educação pode contribuir com o processo de emancipação, mas
esta não é o resultado de uma prática que não é conquistada e exercida por si mesmo.
Esse fato mostra como a idéia de emancipação se reflete diretamente na organização
econômica e política de um país. Não há como pensar, de maneira isolada, os diversos
âmbitos de uma sociedade. Se a emancipação, ou o contrário dela, pode se dar através da
educação, esse fato se reflete na política do país e, conseqüentemente, na economia: “O
motivo evidentemente é a contradição social; é que a organização social em que vivemos
continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente
conforme suas próprias determinações” (ADORNO, 1955a: 181) Esses mecanismos se
sustentam. Se for mais rentável que a emancipação não se realize, as expressões econômicas
sustentarão essa situação. Isso porque ela passa a ser condição para a sustentação de diversos
organismos econômicos. Quanto menor for o acesso à cultura mais fácil, será o processo de
dominação.
A necessidade de uniformização da sociedade parece uma exigência de muitos
modelos econômicos. Essa uniformização se mostra incompatível com a formação de
subjetividades, pressuposto para se pensar um modelo de educação como experiência
formativa. A experiência necessita de um processo de construção de conhecimento sustentado
em um processo dialético. A educação, a que nesse momento nos referimos, precisa se
deparar com as contradições que fazem parte da sociedade, não apenas com a uniformização
ou a incansável tentativa de realizar esse projeto de uniformização que citamos anteriormente.
35
O processo de uniformização, para melhor adaptação ao modelo econômico, por
exemplo, pode ser sustentado também através de práticas educativas não reflexivas. Do
mesmo modo, o crescente valor atribuído aos resultados, em detrimento dos processos de
construção do saber que citamos, é mais uma das expressões do empobrecimento das
experiências, contribuindo com a semiformação. Essa uniformização é incompatível com um
conhecimento sustentado na lógica, que pressupõe a reflexão dialética e contribui para a
emancipação, como foi dito.
Quanto à importância dada à razão, entendemos que Adorno não fez uma crítica ao
uso da racionalidade: “Adorno não abdicara da vinculação, necessária embora não automática,
entre esclarecimento e liberdade, entre razão e emancipação.” (LEO MAAR apud ADORNO,
1955a: 20) A partir da leitura de seus textos, concluímos que há uma crítica, de fato, a um
modo de racionalidade que se dá apenas superficialmente, sem recorrer á razão para pensar,
também, sobre seu uso, em que existe um desprezo pela reflexão, pelo pensar-se. A crítica se
dá à crença não fundamentada do uso da razão, ainda que exista algum tipo de reflexão sobre
essa prática. A crítica que fazemos, tem como foco a razão vista como um mero instrumento,
como se também não pudesse ela ser objeto de reflexão. De acordo com Leo Maar: “Ele não
criticava a racionalidade, mas o seu déficit nos termos de uma experiência formativa dialética
(...)” (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 20).
Essas críticas estão presentes em grande parte da obra do autor. Na análise dos textos
de Adorno, encontramos indicações sobre práticas e compreensões equivocadas acerca da
sociedade. “(...) a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anticivilizatório.” (ADORNO, 1995a: 119) Em contrapartida, não há em sua obra a certeza ou
a clareza de que seria possível superar a condição em que nos encontramos. Também não
podemos afirmar que a emancipação poderia ser de fato conquistada por todos. Isso porque
“(...) o conceito de semiformação constitui a base social de uma estrutura de dominação, e não
representa o resultado de um processo de manipulação e dominação políticas.” (ADORNO,
1995a: 23). A semiformação serve de sustentação para a formação de uma sociedade
determinada pelos interesses econômicos, políticos e sociais, que definem uma determinada
época.
Segundo Adorno, no mundo em que vivemos é impossível pensar que as pessoas se
formam para compreenderem-se como indivíduos, estimulando a sua individualidade, como
foi citado. Tal comportamento é incompatível com o papel que o indivíduo deve representar
dentro da sociedade, onde há necessidade de competição, valorização quase sempre apenas
36
dos resultados, e estímulo à uniformização não há uma valorização das identidades com suas
particularidades.
A crença na emancipação, na consciência de si e dos outros, a racionalidade usada não
como mero instrumento, é uma idéia constante nas reflexões de Adorno, principalmente sobre
a educação. Haveria uma proximidade entre esclarecimento e liberdade, assim como entre o
uso da razão e a emancipação. É fundamental perceber essas relações. Elas são frutos do
pensamento e do estudo e não apenas resultam de um processo de associação automática.
Embora tais conceitos se articulem e dialoguem não se poderia vinculá-los automaticamente.
É preciso antes pensar sobre tais relações.
Mas aquilo que caracteriza propriamente a consciência, o pensar em relação
à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de
pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo
de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento
lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer
experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências
intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação
para a experiência é idêntica à educação para emancipação. (ADORNO,
1995a: 151)
Como afirmamos anteriormente, a educação se relaciona necessariamente com a
sociedade em se insere. Deste modo, pensamos que trabalho e educação são conceitos que se
relacionam, e por isso entendemos que o modo de produção, o trabalho, contribui, como
mencionamos, com os sentidos que a educação poderia assumir. A educação é, por vezes,
entendida como preparação para o mundo do trabalho, sendo assim, ela pode influenciar as
práticas e necessidades que verificamos nos ambientes de trabalho. Assim, em nossa análise, a
educação se relaciona com o modelo econômico vigente.
Ao aceitar a relação entre essas duas práticas, podemos pensar que o modelo
educacional é também resultado de uma dinâmica do processo produtivo. Tentamos com isso
compreender o trabalho e tudo que o envolve, em alguma medida, vinculado à educação.
Segundo Adorno, o homem se constituiria dentro de relações sociais, por isso, não seria
possível então pensá-lo abstraindo-o de sua história. Deste modo, tudo com o que ele se
relaciona o está “formando”. Sendo assim, o homem não seria educado ou “formado” apenas
na escola, mas em diversos âmbitos.
Acima nos referimos ao fato de Adorno afirmar que a educação é, muitas vezes,
compreendida como a preparação para o mundo do trabalho. A orientação no mundo passa
pela adaptação do homem ao mundo do trabalho. Quando a educação precisa ser pensada
37
como preparação para o trabalho, e cresce o espaço destinado ao trabalho que exige pessoas
semiformadas e conformadas, ela deixa de ser destinada ao estímulo do pensamento.
Obviamente, não creditamos à educação o papel de deliberar sobre os destinos individuais e
coletivos, mas a entendemos como um dos elementos que podem interferir na formação do
sujeito.
Essa mudança se fundamenta também na divisão estabelecida entre o trabalho manual
e o trabalho intelectual e a valorização deste em relação ao outro: “Ou seja: mundo sensível e
mundo intelectual já não se articulam mais no processo do trabalho, separando-se como
trabalho manual e intelectual;” (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 26) Essa distinção faz
com que o mundo sensível e o mundo intelectual não possuam um determinante comum
quando se trata da produção efetivamente. “(...) embora o trabalho fosse formador, o que se
observava era a universalização da forma social do trabalho alienado, deformador; a formação
se desenvolveria como um déficit ético no capitalismo.” (LEO MAAR apud ADORNO,
1955a: 17) Parece que o trabalho exige que a subjetividade seja deixada de lado,
condicionando o corpo e a mente apenas à concretude. Dessa forma, parece difícil pensar que
o trabalho possa ser percebido como um elemento formador, ou ainda, que a formação para o
trabalho, de fato, contribua para alguma forma de emancipação.
O valor atribuído às diversas formas de trabalho intelectual e físico é também fruto da
cultura em que estão inseridos. Com isso, não é possível afirmar que a cultura é somente um
elemento positivo. Essa afirmação se fundamenta na percepção de que a cultura se submete à
ordem econômica, assim como qualquer outro elemento da sociedade.
Entendemos a cultura como fruto de um modelo que nem sempre valoriza a produção
de conhecimento, nem sempre contribui com a produção de subjetividade. Deste modo, nos
questionamos se essa pode, necessariamente, levar à formação de um homem emancipado.
Em nossa análise, entendemos que a formação, que leva à emancipação do homem, é
também fruto das relações sociais de produção, e acaba por ser também uma relação de
produção. As relações sociais são fruto de diversos fatores que, unidos, montam o cenário das
mais distintas manifestações que se apresentam em uma sociedade, entre elas, o processo
educacional, a formação para o trabalho e, principalmente, o trabalho. Este poderia ser visto
como medida para diversas relações sociais.
Em relação ao trabalho, que muitas vezes orienta o processo educativo, pode ele
também contribuir ou não para a aproximação com a formação cultural do indivíduo.
Entretanto, esta relação pode ser incompatível. Isso porque “(...) a racionalização progressiva
dos procedimentos da produção industrial elimina junto aos outros restos da atividade
38
artesanal também categorias como a da aprendizagem, ou seja, do tempo de aquisição da
experiência no ofício”. (ADORNO, 1995a: 33) Esse fato mostra que o modo pelo qual o
trabalho se manifesta pode ser incompatível com a aproximação entre trabalho e cultura,
experiência ou algum processo educativo.
Assim como a educação, quando se aproxima do mundo do trabalho, passa a ser
instrumento somente para a preparação para esse mundo, e atenua suas potencialidades, a
cultura, ao se submeter a um modelo de produção, passa pelo mesmo processo. Essa
submissão da cultura, suas produções e manifestações ao modo de produção próprio do
capitalismo também deixam de lado algumas características essenciais. Esse processo Adorno
chama, como dissemos, de indústria cultural, desse modo a cultura se transforma em
mercadoria.
Quando falamos que a cultura transforma-se em mercadoria, pensamos que esse
processo se origina também através do desenvolvimento industrial e da valorização da
técnica. Ambos contribuem para esse processo e podem gerar o equívoco de se pensar que a
técnica é algo em si mesma. Esquece-se assim que a técnica foi criada pelo homem, é fruto do
trabalho e seu papel só se realiza na relação com o homem. A técnica deve ser compreendida
como estando a serviço da humanidade, como citamos antes. Porém, essa finalidade nem
sempre é percebida, e pode também ser confundida, deixando a técnica de ser um instrumento
para ser um fim em si mesmo. Adorno nos fala da fetichização da técnica onde o ser humano
desenvolve uma relação doentia com ela: “No caso do tipo com tendências à fetichização da
técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar.” (ADORNO, 1995a: 133).
Com isso, não há uma crítica à técnica, nem a defesa de que a educação não deve
contemplar assuntos que, de alguma maneira, colaboram com a adaptação do indivíduo ao
mundo a que ele pertence. Mas caso ela faça apenas isso, estará contribuindo para que as
mazelas do mundo se perpetuem. A educação deve se dedicar à consciência e à racionalidade,
e essa dedicação deve sempre ter em vista que a educação é fruto da história.
Percebendo a educação e suas práticas como mais uma das expressões que se dão
dentro da história, é possível afirmar que ela pode ser conformista e estar a serviço da
adaptação, sendo essa conformação uma necessidade correspondente à época a qual ela está
inserida. “Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades (...) de que
necessitam socialmente”. (ADORNO, 1995a: 132) Da mesma forma é possível pensar que a
educação, representando um papel de resistência, pode ser a expressão das necessidades de
determinados contextos históricos, econômicos e sociais. “A importância da educação em
relação à realidade muda historicamente.” (ADORNO, 1995a: 144)
39
Segundo Adorno, a educação também pode estar a serviço de um modelo particular de
adaptação das pessoas ao mundo, afastando-se da intenção de tornar as pessoas passivas ou
induzi-las ao conformismo:
“A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de
adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém
ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de
weel adjusted people, pessoas bem ajustadas, em consequência do que a
situação existente se impõe precisamente no que tem de pior.” (ADORNO,
1995a: 143).
Assim, observamos que existem formas diferentes de adaptação ao mundo. Há um tipo
de adaptação que se aproxima muito mais da consciência e da emancipação, e acontece a
partir da clareza do lugar que se ocupa, das limitações e transformações possíveis, e passa por
uma educação que não impede o afeto, que aceita a importância do outro em sua vida: “(...)
esta (a realidade) envolve continuamente um movimento de adaptação.” (ADORNO, 1995a:
143)
2.2 Educação e barbárie
Podemos pensar que a falta de consciência e de auto-reflexão não se dão de forma
ingênua. Elas se apresentam como resultado de um processo social, e podem dar origem ao
que Adorno chamava de barbárie. Barbárie é definida assim: “(...) regressão à força física
primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade,
onde exista, portanto a identificação com a erupção da violência física.” (ADORNO, 1995a:
159). É a mostra, em seu maior grau, de expressões de preconceito, tortura, opressão. É um
dos elementos sustentadores de genocídio, do ódio infundado, gerando expressões de
indiferença e maldade.
Adorno afirma que a barbárie é fruto das relações sociais. A sociedade a produz e a
escola, como parte da sociedade, pode também sustentá-la, estimulá-la e, muitas vezes, pouco
pode fazer para resistir a ela. “Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório,
então pretender se opor a isso tem algo de desesperador.” (ADORNO, 1995a: 120)
Entendemos que o poder político e outras expressões regulares da sociedade podem se
manifestar em diversas ocasiões através de atos produtores da barbárie. Esses casos seriam
40
muito graves já que, por vezes, há a tentativa de justificá-los como sendo necessários para a
manutenção da ordem.
Por outro lado, pensar, por exemplo, que o acesso à educação e à cultura bastaria para
afastar a humanidade da barbárie é um equívoco. Ambos os conceitos poderiam conter em si
expressões de barbárie, principalmente quando esses se apresentassem de maneira impositiva
ou quando fossem fruto apenas de necessidades externas, e por isso pouco contemplariam
expressões de reflexão, de experiência autônoma.
Um outro fator que entendemos se agregar à ausência de formação para sustentar a
barbárie é a falta de aptidão para a formação. Não se trata de uma aptidão essencial, mas sim
daquela que é gerada a partir de curiosidade e interesse numa relação. O que é desconhecido
pode gerar repulsa, e essa é uma das gêneses da recusa da experiência e da emancipação,
assim como propiciadora da barbárie.
Expressões da barbárie são pensadas como um dos elementos que compõe o processo
de evolução da humanidade. Como se fosse necessário que essa existisse para que o progresso
pudesse acontecer. Essa defesa é inadmissível. Entendemos que nenhuma prática tratada por
Adorno que em alguma medida se aproxime da barbárie possa ser compreendida como
positiva para a humanidade.
A barbárie pode ter como origem práticas sociais. Ao aceitar isso, ela passa a ser mais
uma parte integrante da civilização. Sendo assim, como é possível pensar a sua superação?
Ainda que a resposta a essa questão não possa ser totalmente apresentada, vamos indicar a
seguir algumas compreensões de Adorno que não as estimulam. De qualquer forma, a
tentativa de se superar a barbárie é fundamental para que se pense na continuidade da
humanidade.
É preciso pensar em transformar a capacidade de barbarização. Compreendemos que a
educação poderia ter um importante papel dentro desse processo. É claro que é preciso
discutir que tipo de educação seria essa. É preciso estar atento ao fato de que a educação pode
contribuir com a formação cultural dos indivíduos e, realizando isso, ela contribui para o
afastamento da barbárie. Se pensarmos que a barbárie se manifesta também pela intolerância,
pela incapacidade de se reconhecer no outro, pela falta de conhecimento e compreensão,
aquilo que se manifesta diferente de si, a formação cultural pode ajudar a afastá-la. Ainda que
seu alcance seja limitado, pensamos que esse é um papel que pode ser ocupado pela educação.
Como idéia comum a Kant, Adorno defendia que a reflexão e a autodeterminação
podem contribuir para o afastamento da barbárie.
41
Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem
apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível
sombra sobre nossa existência, é justamente o contrário da formação
cultural, então a desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato
da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que
sejam seu alcance e suas possibilidades. (ADORNO, 1995a: 116)
Dessa forma, entendemos que Adorno não era contra o uso da razão. Concluímos que
havia uma crítica ao uso da razão quando essa se coloca em detrimento da percepção de tudo
o que envolve o indivíduo e sua percepção. É preciso fazer uso da razão, mas isso não é
suficiente para a plena realização da humanidade. Do mesmo modo, a valorização dos afetos e
a relativização da moderação não contribuem necessariamente para afastamento da barbárie.
Dentro dessa dinâmica, é necessário atribuir para qualquer estratégia que participe da
educação a importância de sua seriedade moral. Além disso, é preciso que tais processos
sejam compreendidos como instrumentos que podem ou não contribuir para a superação pela
humanidade das relações de produção da barbárie. Veremos a seguir o que Adorno nos diz
sobre o modo como deve ser orientada a educação. Por ora, ele nos diz que:
“No instante em que indagamos: ‘Educação – para quê?’, onde este ‘para
quê’ não é mais compreensível por si mesmo, ingenuamente presente, tudo
se torna inseguro e requer reflexões complicadas. E sobretudo uma vez
perdido esse ‘para quê’, ele não pode ser simplesmente restituído por um
ato de vontade, erigido um objetivo educacional a partir do seu exterior.”
(ADORNO, 1995a: 140)
Deste modo, a resposta à pergunta: Para quê educação? Já não é mais respondida com
facilidade. Não há a certeza de que a emancipação pode ser conquistada ou que a falta dela
pode ser de fato enfrentada através da educação. E mesmo que isso fosse considerado
possível, permanecem diversas questões. Quem deveria ser responsável por tal tarefa? “É de
se perguntar de onde alguém se considera no direito de decidir a respeito da orientação da
educação dos outros.” (ADORNO, 1995a: 141) Os professores devem ser profissionais ou
intelectuais? Devem admitir a estupidez como instrumento contribuinte a fim de provar uma
moral superior?
Nem todas essas questões serão respondidas. Pretendemos, porém, nos dedicar a
mostrar diversos aspectos apresentados no texto de Adorno que contribuirão para a reflexão
sobre essas questões. Entre os argumentos apresentados, está a defesa da importância da
educação na primeira infância, já que esse seria o momento, segundo o autor, em que se forma
42
o caráter:“(...) a educação que tem como por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar
na primeira infância.” (ADORNO, 1995a: 122)
De acordo com o autor, a infância é o momento da formação do caráter: “(...)
conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais
tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância” (ADORNO, 1995a: 121). Sendo assim,
este é um momento fundamental na formação do indivíduo. Nesse momento, as crianças
devem ter acesso à realidade e à dureza do mundo, para que não se surpreendam mais à frente
ou não saibam lidar com tais situações: “Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da
dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser
protegidas.” (ADORNO, 1995a: 135) Do mesmo modo, o autor também afirma o quão ruim é
ter pais indiferentes, pouco receptivos para o afeto, incapazes de amar:
Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e
por isto nem são tão amáveis assim. (...) Mas, sobretudo, não é possível
mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos dessa
sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor humano as
crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. (ADORNO,
1995a: 135)
Um filho formado nessas condições pouca chance tem de não reproduzir o mesmo
comportamento quando tiver seus próprios filhos. E de nada adiantaria tentar impor o amor.
Se assim fosse, este seria artificial e, portanto, não seria amor.
Os processos educacionais não devem ser orientados para modelos ideais, devem ser
pensados sempre relacionando-se com o contexto em que estão inseridos. Para que de fato
possa ser uma educação que permita a experiência, e com isso contribua com a emancipação,
e com o afastamento da barbárie, deve ser voltada para a contradição e a reflexão. A respeito
de modelos ideais de educação, Adorno nos diz que:
É bastante conhecida a minha concordância com a crítica ao conceito de
modelo ideal. Esta expressão se encaixa com bastante precisão na esfera do
jargão da autenticidade que procurei atacar em seus fundamentos. Em
relação a essa questão, gostaria apenas de atentar a um momento específico
no conceito de modelo ideal, o da heteronomia, o momento autoritário, o
que é imposto a partir do exterior. (ADORNO, 1995a: 141).
A educação precisa contribuir mais do que somente com a adaptação ao mundo, com a
resistência. Ainda que essa adaptação seja de suma importância, não pode ser o único objetivo
almejado.
43
A defesa da auto-reflexão e do esforço crítico é importante por se compreender que
ambos são fundamentais para que escolhas sejam feitas de maneira crítica e não haja uma
aceitação, uma apropriação de decisões feitas por outrem, sem que o próprio sujeito seja
levado em conta, assim como suas próprias vontades, desejos e aptidões. “O único poder
efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar a expressão kantiana; o
poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.” (ADORNO, 1995a: 125) A
formação se dá também pela autocrítica e pela capacidade de perceber as suas dificuldades.
Para que isso ocorra é necessário que haja auto-reflexão:
O conteúdo da formação educacional por vezes é conformista, favorecendo
a fraqueza do eu, estimulando comportamentos de assimilação e adaptação,
canalizando os interesses existentes e por vezes irracionais apelando contra
a razão e a vida intelectual e cultural. (ADORNO, 1995a: 21)
O exemplo disso pode ser pensado até mesmo na relação que se estabelece com a
própria língua. O desconhecimento da própria língua é um exemplo de como há, por um lado,
conformidade frente à dificuldade, e, por outro, como a dificuldade de escrita formal, de
domínio da linguagem é uma das faces do desacordo entre a linguagem, a educação e o
indivíduo. A escrita que se dá de forma problemática é uma das ilustrações da falta de
domínio. Quem escreve com dificuldade, provavelmente fala, lê, e compreende também com
dificuldade.
Somente muito poucos pressentem algo na diferença entre a linguagem
como meio de comunicação e a linguagem como meio de expressão
rigorosa do objeto; acreditam que basta saber falar para saber escrever,
conquanto seja certo que quem não sabe escrever em geral também não
consegue falar. (ADORNO, 1995a: 64)
Crê-se que, independente do processo formal de educação, o indivíduo está inserido
em um contexto histórico, cultural, e se não realiza seus planos isso não se dá,
necessariamente, por uma incapacidade. Esse mesmo contexto poderia tanto limitá-lo quanto
estimulá-lo. O acesso à formação cultural se relacionaria também com fatores que não
dependem somente da escolha de cada um. Parte da história pessoal, como o local de
nascimento, a época e a constituição familiar, influenciam a formação cultural e independem,
quase em sua totalidade, de escolha ou de vontade.
44
(...) condições sociais como origem, em relação a qual somos todos
impotentes, são culpadas pela insuficiência do conceito enfático de
formação: a maioria não teve acesso àquelas experiências prévias a toda
educação explicita, de que a formação cultural de nutre. (ADORNO, 1995a:
71).
Dentro desse mesmo processo se verificaria a destruição da memória, que diminui a
importância do sujeito. A prevalência da razão, em detrimento da memória, contribuiria com
o enfraquecimento e desaparecimento da consciência da continuidade histórica. Desse fato, o
que resulta é uma humanidade sem memória, que vive o presente, sem muitas vezes percebê-
lo como parte de um grande processo, e que, por isso, se prende ao imediatismo.
Do desconhecimento da própria língua, da falta de reflexão, da desvalorização da
história e da memória e de seus reflexos na compreensão de tempo, de planos, resultaria um
afrouxamento da compreensão e da reflexão sobre as questões éticas. Auschwitz, ao mesmo
tempo, é uma mostra do resultado desse processo, como uma prova de que estamos
caminhando para práticas do gênero. A educação, em contrapartida, pode proporcionar a
recusa à violência.
Há um perigo real ao se defender a força para se estabelecer a disciplina. Entretanto,
tal idéia ocupa grande espaço quando se refere às formas de educar. Adorno ressalta que é um
equívoco pensar que a severidade e a força poderiam, de alguma forma, contribuir para a
formação do homem. Elas podem, ao contrario disso, levar o homem a comportamentos
violentos e vingativos:
Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos
podem até acreditar, é totalmente equivocada. (...) Quem é severo consigo
mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se
da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.(ADORNO, 1995a:
128)
A competição, outro exercício recorrente quando se pensa a prática educativa, segundo
o autor, também estimularia a barbárie: “Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o
qual a competição é um princípio no fundo contrário a educação humana.” (ADORNO,
1995a: 161) Assim como a força e a repressão dos afetos, a competição poderia levar o
homem à barbárie.
Pensamos que todo o esforço de fazer com que a educação se dê de forma impositiva
poderia se tornar um movimento rumo ao fracasso. Entendemos que as experiências
adquiridas pela vontade e pelo interesse diferem daquelas oferecidas impositivamente, ainda
45
que de maneira esquemática, ordenada. A formação cultural só pode ser adquirida mediante o
interesse e esforço espontâneos. Estar no espaço que deve oferecer essa formação não é
suficiente para que ela de fato aconteça.
Uma experiência verdadeira que pode gerar reflexão e conhecimento tem como
pressuposto o amor. O amor como vontade, afeição, carinho, cuidado pelo saber. Despertar
esses sentimentos seria o mais difícil, até mesmo porque eles são íntimos, particulares e não
estão submetidos, em sua completude, a forças externas. Ainda assim, sendo o amor
fundamental para que haja o desejo de aprender, quem é responsável pela apresentação, pelo
ensino deve possuir esse amor. O trabalho desempenhado pelo professor implica em uma
troca imediata permeada por uma relação afetiva direta:
(...) para haver formação cultural se requer amor; e o defeito certamente se
refere à capacidade de amar. (...) Mas seria melhor que quem tem
deficiências a esse respeito não se dedicasse a ensinar. Ele não apenas
perpetuará na escola aquele sofrimento que os poetas denunciavam há
sessenta anos e que incorretamente consideramos hoje eliminado, mas além
disto dará prosseguimento a esta deficiência nos alunos (...) (ADORNO,
1995a: 64)
Com essa citação, observamos que o professor tem um papel de destaque e
importância quando pensamos na educação desde o ponto de vista prático. Sua relação direta
com o processo de “formação” faz dele um foco de olhar, atenção, culpa, sucesso e
responsabilidade. Em diversos momentos do texto escolhido, Adorno nos fala do papel do
professor desde seu ingresso na universidade. Consideraremos alguns aspectos do pensamento
de Adorno sobre a tarefa do professor no processo de formação dos indivíduos.
Durante algum tempo, na época moderna, o professor não era visto com grande
prestígio, mas como um serviçal igual a qualquer outro, que vendia a sua força intelectual.
Essa visão se sobrepõe à idéia de que o professor era portador de um dom especial e
desempenhava essa função quase como um sacerdote desempenha a sua. O professor agiria
em nome do bem, cumprindo o seu destino.
Uma vez que o ato de ensinar torna-se uma profissão, um trabalho, a universidade
ocupa-se então da formação desses profissionais. Segundo o autor, no momento da escolha
pelo curso universitário, o processo de formação dos professores poderia gerar equívocos.
Isso porque haveria a constatação de que muitos professores escolheriam essa profissão
apenas por falta de opção. Dessa forma, o trabalho desempenhado por esses estaria quase
sempre fadado aos equívocos e insucessos: “Eles sentem seu futuro como professores como
46
uma imposição, a que se curvam apenas por falta de alternativas.” “(...) para haver formação
cultural se requer amor;” (ADORNO, 1995a: 97).
O ingresso na universidade acontece muitas vezes, não por aptidão, pela escolha
genuína do que se deseja estudar e trabalhar, mas pelo que é possível concretamente. Essa
situação mostra a incapacidade de realização de um sistema de formação que contemple
setores diversos da população, e mostra a impossibilidade de se crer que, através da educação,
classes distintas se colocariam em condição de igualdade. Nesse processo, ficaria aparente a
dificuldade de se crer que seria através da educação que o homem realizaria seu projeto de
humanidade. Como resultado desse processo, teríamos muitos professores que o são apenas
por circunstâncias e não por aptidão ou vontade. Com isso, o amor e o respeito ao que se
dedica não parece possível.
Ainda que pareça contraditório, Adorno afirma que pregar o amor é algo que não faz
nenhum sentido. A ordem social produz frieza e indiferença. Para superar isso seria preciso
pensar nos pressupostos que permitem as condições de existência dessa frieza e da indiferença
para com o outro. Só compreendendo as origens e as tais condições que possibilitam a sua
instauração é que se pode compreender como ganharam tanto espaço e como seria possível
superá-la. O que podemos ter certeza é que o homem não relaciona-se em perfeita harmonia:
Em sua configuração atual – e provavelmente há milênios – a sociedade não
repousa em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde
Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses
dos demais. (ADORNO, 1995a: 134)
Retomando a idéia que trata do ingresso na universidade, ainda que este tenha
acontecido por plena vontade, a universidade ainda pode ser culpada por acontecimentos que,
de acordo com o autor, não seriam responsabilidade dela. Não oferecer aos alunos formação
básica seria um deles. Mesmo havendo o pressuposto de que não cabe à universidade dar
conta de uma formação básica, já que esta deveria ter sido consolidada antes, a universidade
acaba por ser equivocadamente responsabilizada.
A valorização e o crédito atribuído ao ensino superior se sustentam no poder da
ciência de conferir o que é melhor, de dar garantias, de proporcionar a “salvação”. Os
professores universitários são mais respeitados e admirados. Esse destaque não é fruto da
prática docente, e sim da condição de pesquisadores de produtores de ciência. citacao] (?)
O mesmo prestígio não é atribuído a todo tipo de professor. Há um desprestígio
conferido aos professores, que não se ocupam do ensino universitário. Esse desprestígio
47
representa outra grande mudança histórica. Até aproximadamente a consolidação do
Iluminismo, o professor não era visto como um mero trabalhador, por vezes mal formado,
vendendo sua força intelectual, mas como um preceptor e, portanto, mais prestigiado. É claro
que o problema não é ser ou não um trabalhador. A questão se concentra na escolha da
profissão e no processo de formação.
Adorno afirma que toda relação que é intermediada pelo dinheiro, seja ela a de
professor ou qualquer outra, é parte fundante da ideologia de indiferença com o outro. Isso
faria do exercício do professor, dentro de qualquer sociedade onde ele fosse um funcionário
prestando serviço e vendendo sua força de trabalho, um exercício fadado ao insucesso, à
frieza. Em alguma proporção, o insucesso está assegurado. A essa questão é preciso também
dedicar atenção, tentando pensar as condições que permitem que isso seja possível:
Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente
intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e
cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência
são intermediadas. O incentivo ao amor – provavelmente na forma mais
imperativa, de um dever – constitui ele próprio parte de uma ideologia que
perpetua a frieza. (ADORNO, 1995a: 135)
Como um trabalhador intelectual, o professor é um representante de um modelo de
trabalho que não contempla, não valoriza a força física. Isso o coloca em lado oposto ao dos
soldados, guerreiros e heróis. A oposição não se encontra no objetivo de sua ação, mas no
modo como tais papéis são vistos pela sociedade. Entendemos que ao professor cabe sempre
fazer com que cada um se deparae com a própria incapacidade. Com ele, é necessário se
deparar com as próprias limitações e superá-las.
Entendemos que o professor é visto, muitas vezes, como um ser distante, que possui
algum poder, mas este pouco lembra a realidade. Isso porque a escola é um mundo particular
que não reproduz muito da vida comum, do “mundo dos adultos”. Isso faz do professor um
ser imaginário que, ao apresentar alguns comportamentos humanos, como, por exemplo, jogar
bola ou beber, passaria a ser admirado pelos alunos por mostrar, justamente, uma atitude
própria, comum aos seres humanos.
As mostras de humanidade - jogar bola e beber - são por vezes entendidas como
erro:“O aspecto mágico da relação com os professores parece se fortalecer em todos os
lugares onde o magistério é vinculado a autoridade religiosa, enquanto a imagem negativa
cresce com a dissolução dessa autoridade.” (ADORNO, 1995a: 104) Essa compreensão se dá
pela tentativa de preservar a idéia equivocada de que o professor é um “ser ideal”, como um
48
modelo, o que contribui com a idéia de que ele pouco tem algo de humano e reforça o
afastamento entre aluno e professor.
Com isso, não se pretende responsabilizar o professor por todas as mazelas atribuídas
à educação. Ao contrário disso, há a percepção de que este é tão injustiçado, vítima do mesmo
modelo que forma de modo deficiente professores e alunos. E as dificuldades de
formação/percepção não estariam somente no sistema formal de educação, se encontrariam
nos mais diversos âmbitos da sociedade. Desde a percepção do tempo, da realidade, passando
pela memória, até a influência exercida pela história:
O conteúdo da experiência formativa não se esgota na relação formal do
conhecimento (...) mas implica uma transformação do sujeito no curso do
seu contato transformador com o objeto da realidade. Para isto se exige
tempo de mediação e continuidade, em oposição ao imediatismo e
fragmentação da racionalidade formal coisificada, da identidade nos termos
da indústria cultural. (ADORNO, 1995a: 25)
Para Adorno, como mostramos nesse capítulo, a educação pode se relacionar com a
barbárie na medida em que ela se afasta da experiência e se limita a um processo de adaptação
do indivíduo ao mundo em que este vive. Ainda que essa adaptação seja necessária, como por
exemplo, ao preparar em alguma medida o homem para o mundo do trabalho, a educação não
deve se restringir a esse papel.
A educação que se relaciona e pode contribuir com a emancipação e autonomia do
indivíduo deve contemplar o afeto, o amor. Relações que são orientadas apenas pelo lucro e
pela utilidade, dificilmente se aproximaram de uma expressão genuína.
O processo formativo que contribui com a emancipação, que está fundamentado na
experiência e nada colabora com a barbárie é aquele que dá espaço a processos de pensamento
como experiência, que contemplem o uso da razão sem afastar-se da consciência e dos afetos:
(...) pensar em relação à realidade, ao conteúdo (...) não é o
desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à
capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer
experiências intelectuais (...) educação para a experiência é idêntica à
educação para a emancipação. E antes de tudo a educação para a
experiência é idêntica à educação para a imaginação. (ADORNO, 1995a:
151)
49
O uso da razão, apresentado no capítulo anterior e retomado nesse, mantém sua
importância. Como vimos aqui, porem, só a razão não é suficiente para afastar o homem da
barbárie.
Compreendemos que modos de se relacionar que estimulem excessivamente a
disciplina, a repressão e a indiferença, ainda que fazendo uso da razão, podem, ao contrário do
que se poderia pensar, não contribuir com o bem estar e avanço da humanidade. Pensar em
um modo de educar que seja genuíno e contribua com a reflexão, demanda atenção e
percepção de si e do outro. Só desse modo nos afastaríamos de práticas bárbaras e
estabeleceríamos relações genuínas.
50
Capítulo 3
3.1 Críticas feitas ao modelo iluminista de educação a partir da contribuição
teórica de Theodor Adorno
Após a apresentação de duas concepções em parte distintas de educação, nos
dedicaremos agora a pensar alguns elementos da concepção iluminista de educação que foram
os pontos centrais de algumas críticas apresentadas por Adorno. Apontaremos também
elementos que nos ajudem a pensar como este projeto de educação se desenvolveu e se
consolidou. Ressaltamos, porém, que Adorno nem sempre faz uma crítica direta e específica
ao que aqui chamamos de concepção iluminista de educação. Por vezes, identificamos
elementos comuns aos dois momentos que tratamos, o que mostra que não havia apenas
divergências extremas entre esses autores de tempos tão distintos. Com isso, não pretendemos
atribuir à responsabilidade pelo que há de insatisfatório no processo educativo a um tempo
específico da história.
Ao longo desse capítulo identificaremos algumas concepções, práticas e
entendimentos que serviram de referencial teórico para fundamentar as críticas feitas por
Adorno. Dessa forma, relacionaremos essas críticas às compreensões apresentadas no capítulo
que tratou da concepção iluminista de educação.
Como vimos, no Iluminismo a educação, na maior parte do tempo, foi tarefa de
responsabilidade das famílias e/ou de preceptores escolhidos e pagos pelas elas. Aos poucos,
esse papel passa a ser desempenhado pelo Estado. A educação, como toda expressão da vida
em sociedade, modifica-se e consolida-se dentro das transformações econômicas-históricas-
políticas. Aos poucos, a idéia de Estado volta a se consolidar e dessa forma são atribuídas a
essa instituição, tarefas que, durante muito tempo, tinham sido assumidas pela família, como
instituição privada. Isso constituiria uma mudança muito grande, pois a partir disso a
educação começaria a se configurar de acordo com o ideal de universalidade, tornando-se um
bem público, ou ao menos intencionando que tal configuração se estabelecesse.
Nesse capítulo apresentaremos elementos que fundamentam a relação das críticas
apresentadas por Adorno à educação e a humanidade de seu tempo com a origem dos
pensamentos sobre os mesmos assuntos próprios do Iluminismo.
Este capítulo divide-se em duas partes. A primeira trata de estabelecer relações a partir
das exposições feitas nos dois primeiros capítulos, a segunda de dois modelos de educação
51
que chamamos de educação como experiência e educação apenas como adaptação. São
percepções de educação que surgiram a partir da pesquisa e ilustram modos de tratar a
educação. Nenhum dos modelos apresentados pretende demarcar um modelo de educação
próprio de um dos autores, nem mesmo das épocas de que tratamos. Os dois modos de se
tratar a educação, apresentados no final desse capítulo, expressam a possibilidade de
configuração da educação, se considerarmos as configurações que foram mostradas nesse
trabalho. Nesse sentido, são produto de nossa pesquisa. Desse modo, ressaltamos que ambos
são fruto de nossa análise e não da apresentação dos autores abordados.
Os dois modelos relacionam-se diretamente com um modo e tratar a educação
criticado por Adorno e com a possibilidade de um modo de ser da educação que a aproxime
das idéias apresentadas neste trabalho a partir do mesmo autor.
3.2 Apontamentos sobre a contribuição do modelo iluminista para a compreensão
do conceito de educação de Adorno e de suas formulações críticas
Observamos que diversos pensamentos defendidos por Kant e por outros iluministas
foram em alguma medida criticados por Adorno. Este foi um dos motivos que nos levou a
realizar esta pesquisa. Neste terceiro capítulo, como anunciamos, apresentaremos tal
compreensão. Uma das idéias que Kant nos apresenta e que parece ter sido de algum modo
refutada por Adorno, é a de que a educação que ocorria dentro do âmbito familiar poderia ser
negativa, porque os pais ou os responsáveis diretos poderiam contribuir para o ensino de
saberes equivocados, já que não seriam pessoas necessariamente preparadas para tal atividade.
A família poderia ajudar a reproduzir alguns de seus comportamentos que não seriam
considerados adequados à formação dos homens: “A educação doméstica além de engendrar
defeitos do âmbito familiar, os propaga.” (KANT, 2004: 32)
Enquanto a educação permanecia restrita ao âmbito familiar, era acessível a uma parte
específica da população, aquela que poderia arcar com os custos de tal prática. Com isso
poderíamos pensar que o projeto de conquista de sua humanidade a ser realizado pelo homem,
compreensão aqui apresentada através de Kant, seria permitido também a uma parte pequena
da população. Se a realização da humanidade que todo homem conteria em si estivesse
necessariamente atrelada à participação formal no processo educativo, poderíamos dizer que
52
poucos teriam a possibilidade de tornar-se homem, isso de acordo com a compreensão de
Kant, na qual seria preciso utilizar somente a razão para fazer as suas escolhas.
Mesmo com o ideal de democratização da educação começando a se configurar,
percebemos que essa idéia não era consenso e que a compreensão de como esta deveria se dar
por vezes parecia incompatível com a sua universalização. Um exemplo disso é a defesa feita
por Kant, e apresentada no Capítulo I, de que a educação deveria ser responsabilidade de
institutos privados, por serem caros acessíveis a poucos. A liberdade, segundo Kant, seria
fruto de um modo de agir racional, onde o homem através do hábito desenvolveria a
capacidade de agir sempre de maneira que a ação fosse submetida à razão. “O primeiro
período para o educando é aquele em que deve mostrar sujeição e obediência passivamente;
no segundo, lhe é permitido usar a sua reflexão e liberdade, desde que submeta uma e outra a
certas regras.” (KANT, 2004: 30) Do mesmo modo, a liberdade do homem e a sua
compreensão de cidadão, relacionavam-se diretamente com a participação em algum sistema
formal de ensino. Deste modo, o homem não seria escravo dos seus instintos e, portanto, seria
livre. Como vimos no capítulo que trata da educação para Kant, essa possibilidade não seria
possível a todos.
Adorno faz uma crítica a um modelo de sociedade que parece afastar o homem da
emancipação:
Se atualmente podemos afirmar que vivemos numa época de
esclarecimento, isto tornou-se muito questionável em face da pressão
exercida sobre as pessoas, seja simplesmente pela organização do mundo,
seja num sentido mais amplo, pelo controle planificado (...) é preciso
começar a ver efetivamente as enormes dificuldades que se opõem à
emancipação nesta organização do mundo. (ADORNO, 1995a: 181)
Esse afastamento teria como responsável também o modelo educacional. Ser livre,
emancipado e fazer suas próprias escolhas passa, necessariamente, pela possibilidade de
percepção, compreensão e reflexão sobre si:
(...) nenhuma pessoa pode existir na sociedade atualmente conforme suas
próprias determinações; enquanto isto ocorre, a sociedade forma as pessoas
mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que
tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se
desviou de si mesma em sua consciência. (ADORNO, 1995a: 181)
53
Alguns ideais iluministas que se referem à educação, ainda hoje se mostram presentes,
como a crença de que a passagem pela educação formal seria suficiente para o avanço da
humanidade. Adorno nos mostra que a crença na superioridade e suficiência da razão continha
elementos suficientes para que tal crença pudesse ser colocada em dúvida. Essa idéia nos foi
apresentada na introdução de Educação e Emancipação por Wolfgang Leo Maar:
O problema maior é julgar-se esclarecido sem sê-lo, sem dar-se conta da
falsidade de sua própria condição. Assim como o desenvolvimento
científico não conduz necessariamente à emancipação, por encontrar-se
vinculado a uma determinada formação social, também acontece com o
desenvolvimento no plano educacional. (LEO MAAR apud ADORNO,
1955a: 15)
A defesa da razão como o elemento mais importante na busca pelo conhecimento, na
formação de si e da sociedade é uma característica forte dentro do Iluminismo. Tais idéias
foram expressas no primeiro capítulo desse trabalho. Como vimos, havia a crença de que a
razão poderia garantir o avanço da humanidade em sua vida coletiva, social. Tal idéia não
parece ser problemática, de acordo com Adorno. Ainda na introdução de seu livro, lê-se: “Ele
(Adorno) não criticava a racionalidade, mas o seu déficit nos termos da experiência formativa
dialética, que nada mais seria para Adorno que a própria razão”. (LEO MAAR apud
ADORNO, 1955a: 15) Assim, o que de fato parece ser um risco é pensar que somente a razão
seria suficiente para a realização do êxito da humanidade. Colocar toda expectativa de sucesso
ou não do homem no uso da razão não parece suficiente, é o que mostram exemplos como
Auschwitz e Hiroshima.
Esses dois casos ilustram que a crença no uso da razão como suficiente para a
realização do projeto humano, como parecia anunciar Kant, não bastou para evitar ações
bárbaras: “O desenvolvimento da sociedade a partir da Ilustração, em que cabe importante
papel à educação e formação cultural, conduziu inexoravelmente à barbárie.” (ADORNO,
1995a: 11) A mesma razão que permitiria o acesso à liberdade, poderia oferecer o seu
massacre e extermínio. Com isso, Adorno não apresenta uma crítica ao uso da razão, nem
pretende recusar sua devida importância; o que deveria ser superando, é a crença de que
apenas esta seria reguladora do avanço da humanidade, conforme mostramos no capítulo
anterior.
Ressaltamos nesse trabalho, a partir da apresentação do pensamento de Kant sobre a
educação, o valor excessivo atribuído à razão por pensadores iluministas. Este era justificado
como necessário para ajudar aos homens fazerem escolhas acertadas. As decisões que eram
54
tomadas em acordo com a compreensão somente racional de um fato, se aproximariam mais
do êxito, ao contrário das que fossem fundamentadas também pelos sentidos, essas sim,
passíveis de erro.
Privilegiar o uso da razão em detrimento de outras manifestações seria, de acordo com
Adorno, um equívoco. Tal prática permitiria que, por vezes, o homem deixasse de lado
características próprias da humanidade, como a sensibilidade e o uso dos sentidos: “O
pensamento precisa recuperar a experiência do concreto sensível (...)” (LEO MAAR apud
ADORNO, 1955a: 24). Essa compreensão é contrária ao pensamento predominante no
Iluminismo, que nos mostra que para fazer uso apenas da razão seria necessário suprimir as
particularidades em nome de uma uniformização que contribuiria com o avanço da
humanidade. Isso porque utilizando somente o conhecimento racional, seria possível um
movimento rumo à conquista do ideal de homem, como mostramos no capítulo primeiro.
Esse ideal de homem não é algo defendido por Adorno. Enquanto na concepção
Iluminista de Kant haveria um ideal de humanidade a ser atingido, Adorno compreende que
não há essa concepção universal e previamente estabelecida. A compreensão de homem é
fruto de um tempo histórico e composto por diversos fatores, como as relações sociais,
econômicas e políticas nas quais o indivíduo está inserido. Desse modo, não seria possível
pensar em um ideal de homem ou mesmo de educação a ser alcançado, estas compreensões
deveriam ser pensadas dentro de seu tempo e não poderiam ser compreendidas de maneira
estática ou atemporal.
A idéia de uma essência comum é tratada por Kant como disposição natural.
Entendemos que essa compreensão pode levar à abstração de tudo o que há de particular no
homem, como dissemos anteriormente. Para entender que há algo comum aos homens além
da sua formação biológica, seria preciso abstrair o que faz de cada um, um ser único, abstrair
sua história, por exemplo. Tratar-nos-íamos então não como um homem específico, mas como
o mesmo.
Compreendendo que há de fato uma disposição natural comum a todos os homens,
seria possível fundamentar a idéia de que haveria algo correto e igualmente comum a ser
atingido por todo e qualquer homem. Dessa forma, seria possível pensar em um projeto
educacional único, comum a todos os homens. Nesse processo, a supressão das diferenças,
das identidades e de todas as particularidades que fazem parte dos homens não ocupariam
lugar de grande importância, dando espaço para a defesa da homogeneização dos homens.
Pensar que a humanidade poderia atingir seu desenvolvimento maior e melhor foi uma
idéia apresentada por Kant, ao menos como possibilidade: “não se deve educar as crianças
55
segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no
futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira destinação.” (KANT, 2004: 22)
E ainda que esta não se realizasse, o autor afirmava que deveríamos viver e orientar nossas
ações de modo que em nosso horizonte estivesse sempre presente a idéia de que o homem
possuiria a competência de explorar todas as suas capacidades, para isso bastaria fazer sempre
e somente uso de sua razão.
Já Adorno nos diz que dentro da ordem capitalista o homem estaria necessariamente
limitado em suas potencialidades e experiências. Não seria possível atingir um
desenvolvimento considerável de suas potencialidades, isso porque tal ordem econômica
necessitaria do enfraquecimento das experiências para se sustentar, passando pelo consumo
alienado assim como pela exploração da força de trabalho:
Dirimindo a contradição entre forças produtivas e relações de produção, ao
estancar a queda da taxa de lucros e manter produção e consumo em níveis
elevados, a ciência-técnica dissolve a experiência formativa a partir do
trabalho nos termos vigentes. A crise do processo formativo e educacional,
portanto, é uma conclusão inevitável da dinâmica atual do processo
produtivo. (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 19)
Desta forma, a educação, em sua relação com o processo produtivo, contribuiria para a
coisificação do homem e, como dissemos, para o enfraquecimento das experiências
necessárias a um processo de crescimento
4
.
Defendendo a possibilidade do máximo desenvolvimento do homem, Kant pensa a
educação como se existisse um modelo ideal. Suas reflexões sobre o tema têm em vista um
modelo ideal de educação a ser pensado, a que toda humanidade poderia se submeter: “O
projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não faz mal que não possamos
realizá-lo. (...) Uma idéia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não
se encontra na experiência.” (KANT, 2004: 19) O ponto comum entre essa idéia e as que
foram apresentadas por Adorno é que ambas fazem uma reflexão sobre o seu tempo, como
podemos observar nos trechos a seguir: “Vivemos uma época de disciplina, de cultura e de
civilização, mas ela ainda não é a da verdadeira moralidade. Nas condições atuais pode dizer-
se que a felicidade dos Estados cresce na mesma medida que a infelicidade dos homens.”
(KANT, 2004: 28) e “De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa
4
Capitalismo aqui refere-se ao modelo econômico vivenciado na época em que Adorno escreve o texto
abordado. O termo “capitalismo” deve ser cuidadosamente utilizado respeitando o seu contexto para assim
fazermos uso dele com maior precisão.
56
sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de segregação.”
(ADORNO, 1995a: 122)
O estabelecimento de um modelo ideal a ser aplicado à educação universalmente era
fruto da reflexão de um homem inserido nos ideais próprios do Iluminismo. Adorno, por sua
vez, nos mostra uma incredulidade na experiência formativa humana, ao menos enquanto essa
se submete, mesmo que de modo involuntário, a uma ordem econômica com a qual não
concordava: “A dissolução da formação como experiência formativa redunda no império do
que se encontra formado, na dominação do existente.” (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a:
19) Sua descrença quanto ao desenvolvimento humano também era fruto de seu tempo, de um
homem judeu, que teve de abandonar seu país, seus amigos, seu emprego e que conviveu com
o genocídio bem de perto. (ver MARTIN JAY, 2008)
O modo de pensar que reflete sobre o momento em que se vive, sobre “o momento
presente”, é comum aos dois pensadores, como mostramos anteriormente. Pensando sobre o
seu tempo, é possível construir um conhecimento fundamentado sobre ele, o que ajudará na
compreensão de suas mazelas e de suas qualidades. Justamente por isso se faz a crítica de que
ao se estabelecer um modelo ideal de educação se desprezaria a possibilidade de, a partir
dessa reflexão, modificar o modelo vigente, ou mesmo apontar o que haveria de positivo
neste. A partir da leitura de Adorno, concluímos que a educação deve ser tratada como objeto
de estudo do seu tempo, sem estabelecer um modelo atemporal, ideal, justamente para que a
possibilidade de crescimento, advindo da reflexão e da transformação, seria enfraquecida.
O enfraquecimento das experiências, do esclarecimento, mostrado no segundo
capítulo, a partir de Adorno, sustenta-se também no crescimento da chamada indústria
cultural:
O esclarecimento como consciência de si, como autoconscientização, já
vimos anteriormente, é condicionado culturalmente e, nos termos da
indústria cultural, limita-se a uma “semiformação”, a uma falsa experiência
restrita ao caráter afirmativo, ao que resulta da satisfação provocada pelo
consumo dos bens culturais. (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 23).
A indústria cultural é responsável pela produção de arte que seja consumível,
pensando-a como um produto que deve ser acessível ao consumo e gerar lucro: “O fato de que
milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua
vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades
iguais.” (ADORNO, 1985: 114) Essa idéia explicita uma mudança de paradigma, onde as
57
expressões artísticas deixam de ser somente a expressão das sensações, do pensamento de um
ou mais artistas e tornam-se um processo produção de mercadoria.
Entre as principais diferenças entre o pensamento de Kant e de Adorno acerca da
educação, podemos ressaltar esta: segundo Adorno, a educação estava inserida no âmbito
social, sendo compreendida como mais uma expressão do seu tempo e, portanto,
manifestando em alguma medida expressões dos modelos econômicos e políticos de sua
época. Ela seria fruto da história a qual está inserida. “A importância da educação em relação
à realidade muda historicamente” (ADORNO, 1955a: 144). Já Kant, no texto que
pesquisamos, trata a educação desde o ponto de vista moral, atribuindo a ela características
atemporais e universais: “Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver em
proporção adequada as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus
germes e fazer com que o homem atinja a sua destinação”. (KANT, 2004: 18).
Isso promoveria também uma mudança de comportamento e de relação entre o homem
e a obra de arte. Nesse novo modelo, o expectador se relacionaria com a arte na maioria das
vezes da mesma maneira como se relaciona com um produto na prateleira de um mercado.
Consumindo seu objeto de desejo, muitas vezes, não através da complexidade que aquela
relação pode proporcionar, mas, ao contrário, orientado apenas pela facilidade em assimilar
ou ainda pela satisfação imediata que aquele produto pode lhe oferecer:
O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o
produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que
desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais.
Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é
escrupulosamente evitada. (ADORNO, 1985: 128).
Essa mudança tem um reflexo bastante considerável no comportamento social. Com o
crescimento da chamada indústria cultural e consequentemente do seu consumo, o
comportamento dos homens parece ser cada vez mais influenciado por esse novo modelo,
onde as relações passam a valorizar mais a facilidade, a fugacidade e a falta de complexidade:
“Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que
são aceitos sem resistência.” (ADORNO, 1985: 114). Tal comportamento pode ser
observado tanto nas relações de consumo como nas relações pessoais, refletindo nos
processos de construção do saber. Esse processo relaciona-se com a supressão dos afetos, já
que não estimula o pensamento crítico, nem uma compreensão mais profunda de si nem dos
outros.
58
O surgimento e crescimento da indústria cultural, aliado a um processo de produção
econômica, onde ambos parecem se sustentar sobre as mesmas bases, contribuiria com a
dificuldade de estabelecer um processo educativo fundamentado na complexidade, que
valorizaria por sua vez o pensamento reflexivo e crítico. O crescimento do estímulo ao
enfraquecimento das experiências seria mais um elemento contribuindo com o afastamento da
reflexão que levaria ao esclarecimento e à emancipação. “A experiência é um processo auto-
reflexivo.” (LEO MAAR apud ADORNO, 1955a: 24) Sendo assim, enfraquecendo a
possibilidade de reflexão a partir de uma compreensão crítica, a experiência também seria
prejudicada.
Segundo Adorno, em nossa sociedade outra idéia muito presente é a da disputa, e a
necessidade de se sobrepor ao outro. A respeito do assunto o autor nos diz:
Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um
princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito
também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira
alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. (ADORNO,
1995a: 161)
A percepção do estímulo à concorrência pode ser explícita também no mundo do
trabalho, mas essa prática pode se iniciar muito antes. Ela pode estar presente, como vimos,
nos espaços escolares, onde a concorrência e a disputa se fazem presentes de diversas
maneiras: aprende-se a concorrer pelo primeiro lugar, ganhar uma nota maior, até mesmo
pertencer à turma “dos melhores”. Todas essas práticas, que pretendem valorizar quem obtém
maior sucesso, ou quem corresponde mais às expectativas, podem promover a rivalidade entre
os alunos. Essa idéia de concorrência e de disputa poderia estimular inclusive a intolerância.
Privilegiar o uso da técnica e fazer uso apenas da razão não seria suficiente para
garantir o desenvolvimento da humanidade:
Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si
mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é
extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados,
porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e
desconectados da consciência das pessoas. (ADORNO, 1955a: 132).
Ao contrário da concepção iluminista, compreendemos que levar em conta apenas o
uso da razão poderia acabar por gerar uma indiferença própria da abstração de outros
59
elementos, como os sentimentos. Tal prática contribuiria para expressões da barbárie,
permitiria que bombas atômicas fossem possíveis, assim como a indiferença com a miséria e
os mais diversos comportamentos próprios do excessivo uso da racionalidade.
Desenvolvendo esse hábito, privilegiando apenas a razão, deixando de lado tantas
outras características que fazem parte da constituição do ser humano, ignorando as próprias
sensações, seria mais fácil também ignorar os outros. Dessa forma, a satisfação própria
poderia se sobrepor à percepção das necessidades dos outros, caso a percepção de si não tenha
sido reprimida. Ignorando as próprias necessidades, pode-se terminar por ignorar também as
necessidades dos outros, fazendo com que o homem se isole na sua compreensão de sucesso
5
e essa nem sempre seja objeto de reflexão. Tal comportamento poderia culminar na
prevalência do sucesso particular, da formação própria, do interesse pela garantia de acesso à
cultura e à formação apenas para si, se estendendo apenas a quem está próximo, como vimos
nos capítulos anteriores.
A defesa da disciplina e da repressão dos instintos é tratada em diversos momentos por
Kant, que nos diz que ambas são necessárias para o desenvolvimento e crescimento do
homem. Como foi visto, sua compreensão é a de que, para a formação do homem, seria
preciso aprender a desenvolver uma indiferença acerca de seus próprios instintos para que a
razão pudesse prevalecer. As mesmas práticas são criticadas por Adorno: “a desbarbarização
não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma restrição das afeições fortes, e nem
mesmo nos termos da eliminação da agressão.” (ADORNO, 1995a: 158). Compreendemos
que tal prática poderia se desenvolver até o ponto em que nos acostumaríamos e nos
tornaríamos também indiferentes à barbárie, justamente porque o outro não nos importa.
São similares à indiferença comportamentos como: supressão de sensações como
desejo e afeto com a supressão da dor: “Se se quer formar um bom caráter, é preciso antes
domar as paixões. (...) É preciso acostumar-se às recusas, à resistência etc.” (KANT, 2004:
86). Na medida em que se aprende a reprimir as próprias sensações, a ignorância pelas
sensações dos outros é estimulada. “Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser
severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e
reprimir.” (ADORNO, 1995a: 128) Essa fala demonstra que, quando o homem se torna
indiferente, acaba desenvolvendo uma frieza até mesmo a respeito das próprias dores,
desconhecendo-se. Essa incapacidade de sentir dor ou de admitir que a sente acaba por fazer
5
Mais uma vez ressaltamos que não existem, para todos os conceitos, compreensões particulares. Acreditamos
que o entendimento e o significado de conceitos e juízos são fruto da história, em que estão inseridos.
Utilizamos “sua compreensão de sucesso” para identificar a compreensão do conceito ressaltando a necessidade
de contextualização.
60
com que este mesmo homem seja indiferente à dor do outro, tornando-se então permissivo
com a dor do outro.
Para que haja a percepção de que todos fazem parte de uma sociedade e de que todos
contribuem de alguma forma para o seu crescimento é preciso compreender, refletir e
questionar as necessidades particulares e coletivas. Tais necessidades não permanecem
intactas nem são atemporais. Para que haja de fato a compreensão do seu papel dentro de uma
sociedade, é preciso colocar-se dentro de um processo onde a experiência é permitida. A
educação pode ou não contribuir para isso. Segundo Adorno, para que a barbárie não se repita
é preciso que também a educação seja o espaço para a reflexão, para o desenvolvimento da
autonomia: “É necessário contrapor-se a uma total ausência de consciência, é preciso evitar
que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem
sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.” (ADORNO, 1955a:
21) Caso isso não ocorra, corre-se o risco de gerar apenas indiferença que aparentemente pode
parecer inofensiva, mas que pode ser capaz de desenvolver-se até a máxima indiferença com o
outro.
A supressão das próprias sensações é uma idéia defendida, como dissemos, por Kant.
Ele nos fala da necessidade da aceitação das ordens que nos são impostas e do perigo de não
obedecê-las. Esse é um exemplo do modo pelo qual uma criança deve ser educada. “Toda
transgressão de uma ordem por parte da criança é defeito de obediência, que acarreta
punição.” (KANT, 2004: 78) Mesmo compreendendo que cada pensamento é fruto do seu
tempo, a intenção deste capítulo é contrapor essa reflexão com a de Adorno.
Obedecer a ordens não é de fato um problema, mas obedecê-las sem que esta ação
passe antes pela compreensão, pode sê-lo. A transgressão pode ter algum aspecto positivo se
for compreendida como um processo de reflexão, que permite a expressão das sensações e das
idéias. Em uma sociedade de consumo coisifica-se o homem, estimulando-o à aceitação de
regras de modo incondicional, assim como ao consumo impensado e à formulação de juízos
que não necessariamente sejam objeto de reflexão. Mesmo que Kant não tenha falado
obviamente do mesmo cenário histórico, econômico e cultural, nos propomos estabelecer o
que haveria de comum entre seu pensamento e algumas práticas criticadas por Adorno.
Não aceitar regras para Kant é algo que pode significar um desvio de caráter: “O
primeiro esforço da cultura moral é lançar os fundamentos da formação do caráter. O caráter
consiste no hábito de agir segundo certas máximas.” (KANT, 2004: 76). Já com Adorno,
pensamos que a recusa em obedecer a ordens sem que estas sejam antes pensadas, poderia
defender a humanidade do próprio extermínio. A barbárie, por vezes, é justificada como
61
“apenas” o cumprimento de ordens. Essa explicação é capaz de fazer com que sua prática
pareça compreensíveis. Seria preciso desde cedo compreender-se como um ser ativo e
reflexivo, só assim nos afastaríamos da possibilidade de perpetuação da barbárie. O uso da
razão defendido por grande parte dos iluministas não deveria ser desprezado nem no momento
em que se recebe uma ordem. Se desde cedo o homem aprende a dominar-se, a controlar-se e
a privar-se da expressão dos próprios pensamentos, será mais difícil recusar-se a obedecer a
tais ordens e adotar uma postura reflexiva quando adulto.
Obviamente, apenas a recusa em obedecer a ordens não é suficiente para que a
reflexão encontre algum espaço dentro dos processos de formação, mas essa recusa pode ser
necessária para que haja espaço para a mudança, para a transformação. Compreende-se que a
sociedade é composta por diversos membros e que todo processo educativo ocorre dentro da
sociedade. Por isso, não se pode esquecer que a sociedade não é homogênea. Justamente por
isso é preciso dar espaço para que as diferenças se manifestem. É nesse processo que a
sociedade se constrói e se modifica. Portanto, reiteramos que a indiferença e a capacidade de
cumprir ordens sem que seja permitido questioná-las pode ser solo fértil para práticas
bárbaras.
Ainda que tenhamos enfatizado os aspectos negativos da repressão, ressaltamos,
contudo, a posição de Kant quando nos mostra a necessidade de, desde cedo, conter as
sensações e valorizar as regras e as obrigações.
As crianças, mesmo não tendo ainda o conceito abstrato do dever, da
obrigação, da conduta boa ou má, entendem que há uma lei do dever e que
esta não deve ser determinada pelo prazer, pelo útil ou semelhante, mas por
algo universal que não se guia conforme os caprichos humanos. (KANT,
2004: 98).
A disciplina, de acordo com a importância dada a ela por Kant, pode ser vista como
uma outra expressão da repressão.
Se com Kant vimos que a disciplina é defendida como necessária ao processo de
educação do homem, compreendemos que ela pode caminhar junto com o embrutecimento
deste mesmo homem, afastando-o de um processo educativo que se propõe à auto-reflexão.
Dessa forma, seria permitido que este homem fosse manipulado, estimulando a
insensibilidade e mesmo a passividade. Estas expressões repercutirão no abatimento da
reflexão sobre si. Entendemos que quando existe a defesa da repressão e da disciplina de
62
maneira exagerada, fica difícil ter uma percepção crítica da realidade, como mostramos no
capítulo segundo.
Para compreender o homem e a educação de que falamos, sujeita ao enfraquecimento
das experiências e da emancipação, é preciso percebê-la inserida em sua história, nunca
abstraída dela, como nos diz Adorno: “A importância da educação em relação à realidade
muda historicamente”. (1955a: 144) Ressaltamos tal compreensão, pois, em vários momentos,
nos detivemos a comparar compreensões de épocas distintas. Ainda assim, o fizemos apenas
pensando em como um momento anterior pode ter contribuído com idéias tratadas em
momentos posteriores, A partir do estabelecimento dessa relação, procuramos pensar em
momentos de interseção e contraposição, não levando em conta a questão da origem em
épocas distintas, mas tendo em vista que a história não se desenvolve de maneira linear e que
elementos distintos contribuem com o seu desenvolvimento..
3.2 Educação como experiência X Educação como adaptação
Entendendo que o processo de educação passa pela escola e pela família, ainda assim
pensamos que a nenhuma das duas pode ser atribuída com exclusividade a idéia de que toda
ação do homem estará de acordo com máximas que permitam que o agir de um único homem
possa ser aceito como um agir universal. Essa idéia, em alguma medida, parecia ser defendida
por Kant, como mostrado no capítulo primeiro. Pensamos que a família, em suas novas
configurações, em sua maioria com o tempo livre reduzido pelo avanço da modernidade, faz
com que não seja mais possível o desenvolvimento do modelo de disciplina kantiano.
Poderíamos, então, pensar que a educação
também caberia à escola. Adorno afirma,
porém, que as relações, que são profissionalmente intermediadas, não serão relações genuínas
necessariamente. Aceitando tal crítica, torna-se difícil ver a escola, espaço formal dedicado à
educação, como o espaço que mais contribuiria para o agir moral, ou mesmo como o lugar
onde o homem aprenderia a ser um cidadão e expressar-se de maneira autônoma. Dessa
forma, é colocado em questão o papel e a responsabilidade atribuída à educação.
Ainda assim, entendemos que a educação pode preservar traços do ideal Iluminista.
Podemos observar como o discurso de que a razão é suficiente para administrar a vida
humana ainda se faz presente. Do mesmo modo, a passagem pelo sistema formal de ensino
permanece como fundamental para a “formação” do homem. Nessa idéia percebemos ao
menos dois problemas: aqueles que não podem fazer parte do sistema formal de ensino não
63
seriam então considerados tão “humanos” quanto os letrados, e por outro lado teríamos a
ilusão de que fazer parte do sistema formal de educação seria a garantia de que seríamos,
enfim, humanos realizados. E quanto mais tempo, no sentido quantitativo, de inserção no
sistema formal de ensino, mais preparado para a vida se estaria.
Essas duas questões são facilmente percebidas ao observarmos, por exemplo, que, em
nossa sociedade, na maioria das vezes, a educação é medida em anos, e quanto mais anos
participando desse sistema, mais qualificado se está. Ainda que não se domine a própria
língua, ainda que se desconheça o sistema político de próprio país, as regras econômicas às
quais ele está submetido, participar de um certo número de anos do sistema de educação
tornaria alguém apto a exercer atividades específicas. Trataremos desse assunto nomeando-o
de educação como experiência e educação como adaptação. Pensando sobre a compreensão
destas formas de saber, fazemos uso de uma fala de Adorno:
(...) a formação cultural é justamente aquilo para o que não existem à
disposição hábitos adequados; ela só pode ser adquirida mediante esforço
espontâneo e interesse, não pode ser garantida simplesmente por meio da
freqüência de cursos, e de qualquer modo estes seriam do tipo ‘cultura
geral’. Na verdade, ela nem ao menos corresponde ao esforço, mas sim a
disposição aberta, à capacidade de se abrir a elementos do espírito,
apropriando-os de modo produtivo na consciência, em vez de se ocupar
com os mesmos simplesmente para aprender, conforme prescreve um clichê
insuportável. (ADORNO, 1955a: 64)
Pensamos que existem diferenças entre querer saber por amor ao saber, o que aqui
chamaremos de educação como interrogação filosófica, e ter que saber para alcançar um fim
específico, que inclusive pode ser alheio às suas vontades genuínas.
Há uma mudança de paradigma, como mostrado nos capítulos anteriores, quando
contrapomos as compreensões de Adorno e de Kant sobre a educação. Enquanto para Kant a
prática educacional seria necessariamente “humanizante”, para Adorno a educação poderia
contribuir para uma “humanização-bárbara” se essa, por exemplo, acontecesse por imposição
e talvez por isso não se realizasse de fato, como vimos na citação anterior. Obviamente, essa
mudança é também fruto de tempos históricos distintos e conseqüentemente, modos de
pensamento distintos.
Quando utilizamos o termo “educação filosófica”, não pretendemos esgotar a
compreensão do termo, mas pensamos ser importante apresentá-lo a partir de algumas
orientações. Essas orientações se dão no sentido de expor o que compreendemos como
necessário para que esta forma de relacionar-se com o educar se estabeleça. Da mesma forma,
64
expomos aqui modelos e expressões que não contribuiriam com essa possibilidade. Essas
orientações e apontamentos foram formulados a partir da compreensão de educação de
Adorno. Pensando a relação entre seus apontamentos sobre o tema e nosso tempo, este sub-
capítulo foi ganhando forma.
Admitindo-se a filosofia como amizade ao saber, uma educação filosófica seria aquela
que, de alguma forma, realizasse essa relação, a de amizade com a sabedoria. Assim, deveria
aproximar o educando do gostar, do prazer pela busca do saber. Pensando que a educação se
aproxima da filosofia por ambas representarem a relação do homem com o saber, defendemos
que a educação realiza inteiramente seu projeto quando ela se dá como um fim em si mesmo.
Isso porque quando o objetivo da aproximação com a educação se encontra em algo externo
ao indivíduo, alheio às suas escolhas genuínas, o saber se coisifica.
A coisificação pode fazer com que o saber se torne mercadoria e, portanto, quem o
“consome” passa a ser um cliente, não apenas um educando. Essa mudança nas relações que
envolvem os processos educativos alcança sentido em um tempo específico e se sustenta nas
necessidades e nos modelos de épocas específicas. Quando pensamos que a educação formal
passa a ser um serviço a ser consumido, ela pode ter como finalidade não o saber em si.
Podemos tratar essas duas compreensões de educação como: educação para a vida, que
contribui para o conhecimento e o respeito de si e do outro, que passa pelo afeto, pelo corpo e
pela instrução sem privilegiar somente uma dessas áreas; e educação para o mundo do
trabalho, que tem como objetivo somente formar as pessoas para que estas possam ser
incluídas no mercado de trabalho nos níveis mais diversos.
Não pretendemos contrapor a dedicação ao trabalho como antagônica à vivência do
homem. Compreendemos que o trabalho faz parte da vida humana, mas afirmamos que esse
pode assumir um caráter negativo quando contribui para a alienação e a coisificação do
homem. Da mesma forma, entendemos que a educação que contribui apenas para a
preparação para um modo de trabalho alienado é também uma educação alienante.
Uma educação que somente domestica o corpo, que cala expressões de afeto, que tem
por fim somente domar o homem, preparando-o apenas para o mundo do trabalho, não é o
modelo de educação que a partir de Adorno entendemos ser o que contribuiria para a
emancipação. Isso porque, nesse caso, o saber tem como fim algo externo ao homem e faz
com que a educação se dê apenas pela utilidade que poderia ter, consolidando a idéia de
coisificação e desumanização.
Um modelo de educação voltado exclusivamente para o trabalho e, portanto, para a
sua utilidade, seria aquele que mais se afastaria da concepção de aprender por amor à
65
sabedoria. Nesse caso, o aprendizado se daria somente com um fim prático. O que seria
conhecido, apreendido, conservado, assim seria somente pensando na futura utilidade.
Questionamo-nos a partir do texto de Adorno: qualquer modo de relação com o saber
seria educativo? Com Kant vimos que, educado é aquele que passou pelo modelo formal de
instrução, que dominou o seu corpo porque aprendeu a reprimir os instintos para uma melhor
adaptação ao mundo. Em contrapartida, a apresentação de Adorno nos mostra que pode haver
um modo de educar-se onde os afetos são permitidos, compreendidos e assumem um papel
importante. Conhecer a si faria parte desse processo educacional, conhecendo o próprio corpo,
as vontades, os limites e, do mesmo modo, estender essas compreensões aos outros seres.
Defendemos que essa relação com a educação contribuiria com o processo de emancipação. E
para ela ser possível, necessitaria de um movimento interno e da compreensão de que o
desenvolvimento do indivíduo passa pelo desenvolvimento coletivo.
Quando falamos que a educação passa pela compreensão de si e do outro, pelo
desenvolvimento próprio e coletivo, ao mesmo tempo identificamos que todos poderíamos
pensar, em maior ou menor grau, coletivamente. Compreendemos, a partir da leitura de
Adorno, a necessidade de perceber o outro como a sua própria identidade. Desse modo, o
respeito pelas diferenças seria algo intrínseco às relações.
Com a compreensão acima referida, não pretendemos atribuir à educação um caráter
salvador de algum projeto de realização do homem, até mesmo porque não pensamos que a
preservação ou o desenvolvimento do que há de próprio no homem possa ser conquistado ou
mesmo garantido através da educação. Também não defendemos que somente a educação seja
responsável pela transformação e superação das mazelas e da barbárie que afetam toda a
humanidade.
Não afirmamos tampouco que a educação não poderia contribuir positivamente com a
formação do homem. Entendemos que, se for possível pensar na emancipação do homem do
modo como ela é tratada por Adorno, essa passaria pela educação. Entretanto, é preciso
esclarecer que não compreendemos que o homem não seja um ser autônomo e livre desde que
nasce. A emancipação de que falamos é aquela apresentada no capítulo dedicado a Adorno,
definida assim: “significa o mesmo que conscientização, racionalidade.” (ADORNO, 1955a:
143). Para que haja emancipação, a disciplina não poderia ser tratada como repressão ou
medo, e as práticas educativo-institucionais não poderiam ser consideradas apenas como o
oferecimento de um produto ou serviço.
Essa educação que pensamos contribuir para a emancipação humana, para a superação
da barbárie e seu caráter desumanizante, é a educação que chamamos de educação como
66
experiência, que tem a percepção, desde os pontos de vista prático e teórico, de que é
importante conhecer e respeitar a si e ao outro, que tem espaço para os afetos, que entende
que a educação formal não é o único espaço de formação do sujeito. A educação que
defendemos se dá pelo amor pela busca pelo saber.
Temos também como condição para a existência desse modelo que apresentamos a
liberdade de fazer escolhas. “A exigência de emancipação parece ser evidente numa
democracia.” (ADORNO, 1955a: 169). Ainda que esta afirmação possa parecer óbvia, um
olhar mais atento ajudaria a ilustrar a importância dela. Em uma sociedade dita democrática,
não parece ser um grande problema que se façam escolhas; a todo tempo podemos,
aparentemente, tomar decisões e mudar os caminhos a serem seguidos. Essas escolhas, porém,
por vezes não são orientadas pela vontade ou com clareza, mas impostas de forma mais ou
menos objetiva. As escolhas podem ser limitadas por uma série de fatores externos, o que as
condicionaria a um universo por vezes extremamente limitado.
Para se fazer escolhas genuínas, também é necessário preservar o tempo livre. Este,
em geral, é compreendido como o tempo destinado a reconstruir-se para o trabalho. Não é
desse tempo livre de que estamos falando. Tempo livre não seria o tempo de não pensar em
nada, ou o tempo destinado a fazer algo o mais distante possível de sua ocupação profissional.
O que compreendemos como positivo e necessário para a formação do homem é o tempo
destinado à execução de tarefas escolhidas por si, tempo destinado à descoberta, ao afeto e ao
prazer, ao estar consigo, o que é diferente de se submeter sempre ao que é imposto. Esse
tempo livre de que falamos não significaria tempo para dedicar-se a atividades que exigiriam
menos seriedade e dedicação, mas o tempo de ser fiel às suas escolhas.
Tratando do papel que a disciplina pode desempenhar na repressão do corpo e
mostrando como ganha espaço a idéia de tempo livre como o tempo para o lazer alienado,
citamos algumas práticas de um trabalhador na fábrica, tendo que dar conta não só do
domínio do seu corpo, como também da limitação de suas necessidades biológicas. Para
desempenhar o seu trabalho é necessário disciplinar-se e conter-se não só quando tratamos do
corpo, mas também dos afetos. Nesse exemplo, podemos perceber a idéia de tempo livre que
criticamos. Nessa concepção, o que mais se deseja fora do trabalho é esquecê-lo, por vezes
mostrando mesmo aversão a pensar nele. Esse tempo livre, visto como o oposto ao trabalho,
seria apenas o suficiente para refazer-se a fim de recomeçar. Nesse tempo provavelmente
pouco se criaria, pouco se conheceria. O tempo livre de que estamos falando é aquele em que
se pode escolher a que se dedicar, inclusive se dedicar a nada.
67
Vimos em Kant, que a disciplina era entendida como a garantia de preservação da
humanidade do homem, se a compreendermos como regulador dos instintos dentro da vida
em sociedade. Podemos pensar que, de fato, ela preserva o que há de humano em cada um.
Por outro lado, ela pode ser compreendida como o processo pelo qual o homem disciplinado,
reprimido, corpo dócil, serviria então de base para a sustentação de um modo de produção que
exige exatamente isso de cada um. Talvez esse corpo disciplinado que aprendeu a conter suas
vontades em nome da razão e que aprendeu a se sujeitar, se adapte melhor ao modelo de
produção específico.
Não parece problemático pensar que um modo de expressão da educação contribui
para o sucesso na vida do trabalho. Isso se não percebêssemos, por vezes, que a exigência
desse modelo se dá somente no âmbito da repressão de que falamos e, portanto, não contribui
com o processo de esclarecimento e emancipação do homem. Como dissemos anteriormente,
o trabalho é positivo para o homem quando ele não é apenas alienante. Pensar que a educação
contribui para esse modo de produção que exige dos homens não o que eles são capazes de
oferecer, mas apenas o que o corpo pode oferecer, é pensar em um modelo de educação
atrelado a um modelo de produção que não percebemos como positivo.
É preciso esclarecer que a crítica que fazemos aqui não é ao ensino que contribua com
uma profissão, por exemplo. Não concordamos é com a idéia de que aprender só é importante
para se posicionar melhor no trabalho, idéia que nos faz voltar à percepção da educação como
submetida ao utilitarismo. Também não acreditamos que somente a educação formal, desde o
ponto de vista prático, pode ser responsabilizada pela relação direta que fizemos entre
educação e inserção no mundo do trabalho. Essa afirmação desprezaria inclusive o fato de que
a educação formal pode não ser suficiente para apresentar a língua e os conceitos lógicos
básicos aos estudantes. Por outro lado, o caráter quantitativo da escola, como dissemos,
reforça seu lugar no pensamento de que o tempo de permanência escolar medido em anos,
séries e horas é o parâmetro utilizado para mostrar quem está apto ou não a desenvolver
atividades específicas.
Pensando nas lógicas assumidas por modelos econômicos e políticos diversos, é
possível pensar que a educação sempre vai se relacionar em maior ou menor grau com elas.
Ao compreender a educação como apenas mais uma expressão da estrutura social, faz sentido
pensar que algumas práticas assumidas por ela são necessárias para o sustento de tais
modelos. Desse modo, parece incompatível a aproximação do gosto pela busca do saber, por
exemplo, com o nosso modelo de produção e acúmulo do capital. Como seria possível
68
justificar a busca pelo saber através do gosto por um modelo que necessita da repressão dos
afetos?
A relação direta entre o gosto pelo saber e a percepção da educação como um produto
parece cada vez mais se consolidar. Podemos observar a educação se transformando em um
grande negócio. Ela gera lucro para os proprietários. E pode propiciar lucro também para
quem dela participa, na medida em que a empresa oferece um serviço ao educando. Na
medida em que ele participar do sistema formal de ensino, teoricamente estaria garantindo
uma boa colocação no mercado de trabalho, já que fazer parte do sistema formal de educação,
em nosso modelo econômico, parece de alguma forma estar mais próximo do êxito atribuído
ao acúmulo de capital.
Por outro lado, para sustentar a lógica de exploração e acúmulo de capital, não é
possível preservar a autonomia, não de todos, todo o tempo. Dentro de um modelo de
exploração, a educação que se mostra necessária é a que estimula a adaptação e ainda é capaz
de aperfeiçoar as potencialidades para o mundo do trabalho. A base de sustentação de um
modelo de exploração pode ser a desigualdade originária entre classes (donos dos modos de
produção X trabalhadores), que para que se perpetue precisa fazer com que essas diferenças se
sustentem em bases cada vez mais profundas, e que se fundamentem na origem, para que não
haja condição de escolhas igualitárias.
Entendemos que a nossa percepção expressa, em alguma medida, a mudança do modo
de ver o mundo, a passagem da suficiência da racionalidade, do mundo abstrato, para o
materialismo histórico, para a dialética, para a tentativa de perceber o mundo do modo como
ele se apresenta, deixando de lado o ideal de mundo para pensá-lo a partir de sua
materialidade, ressaltando a importância do caráter histórico para compreendê-lo.
A mudança a que nos referimos, acaba por gerar entre as pessoas uma grande
dificuldade ou mesmo incapacidade de expor seus pensamentos, já que haveria um estímulo
ao enfraquecimento da consciência, da experiência. Disso poderia resultar uma grande
probabilidade de submissão a algo externo. Sem o conhecimento de si, com a falta de
compreensão sobre si e, conseqüentemente, sem ser capaz de dizer-se, pensar-se, seria mais
fácil ser manipulado ou arrebatado por algo que se desconhece. A compreensão de educação
apresentada a partir de Adorno mostra como a educação pode contribuir também para que se
aprenda a aceitar a condição de dominado, compreendendo também a idéia da perpetuação da
divisão de classes. Em contrapartida, para Adorno existe outra possibilidade para a educação:
“(...) partindo cedo de uma superação das barreiras classistas das crianças, torna praticamente
69
possível o desenvolvimento em direção à emancipação mediante uma motivação do
aprendizado baseada numa oferta diversificada ao extremo.” (ADORNO, 1955a: 170)
Diversos pensadores iluministas, como dissemos, também pensaram que era preciso
transformar a sociedade, e a educação sempre ocupou um papel fundamental nisso. Porém,
grandes diferenças podem ser identificadas entre o pensamento de Adorno e as idéias da
maioria dos pensadores iluministas. Entre elas, destacamos a crença na possibilidade de a
razão contribuir ou não para esse processo de transformação social. Segundo Adorno, a
possibilidade de mudança se encontra em um modo específico do uso da razão, na relação da
sociedade com a escola e principalmente nas mudanças que os homens são capazes de fazer
acerca da compreensão da educação, desde os pontos de vista prático e teórico.
Outra grande diferença está no fato de que Adorno não pensa a prática e a instituição
separadas da sociedade, conferindo à educação uma responsabilidade particular, isolando-a do
restante do contexto social. É claro que essas diferenças também são fruto, como dissemos, de
um tempo histórico; ainda assim representam uma grande mudança de referência. Adorno não
compreendia a sociedade e seus órgãos isolados entre si, mas buscava compreendê-los como
um grande organismo interligado.
70
Conclusão
Neste trabalho mostramos duas concepções de educação distintas. No primeiro
capítulo, a partir de Kant, vimos a compreensão de educação dentro do Iluminismo. No
capítulo segundo, mostramos como Adorno compreendia a educação e em alguma medida a
sociedade em que vivia. Para isso, transitamos entre conceitos tratados pelo autor como
emancipação e barbárie. No terceiro capítulo, procuramos elementos da concepção de
educação iluminista que se relacionavam em alguma medida com as críticas feitas por
Adorno. Além disso, a partir da análise de seus textos, mostramos um modo de ser da
educação que poderia afastar o homem da barbárie.
Após fundamentar as críticas de Adorno a partir de elementos apresentados com a
concepção iluminista de educação, concluímos que o ideal de educação daquele tempo
histórico não parece ter se realizado por completo. Podemos citar o fato de que ainda hoje a
educação não é oferecida a todos da mesma maneira. É possível perceber também que a
crença de que a racionalidade poderia garantir o sucesso da humanidade também não se
realizou. A seguir, apontaremos diversos entendimentos que tratam de concepções próprias da
educação iluminista e do que nelas consideramos negativo a partir da fundamentação teórica
oferecida por Adorno.
Ao pensamos sobre o espaço onde a educação deveria se dar, a primeira compreensão
é a de que o processo educativo não está restrito ao espaço institucional destinado a ele.
Entendemos que a convivência em espaços coletivos com pessoas diferentes pode levar a um
maior crescimento, a partir da descoberta de diferenças e do estímulo natural a uma percepção
crítica da realidade. O ambiente coletivo de alguma maneira reproduz a sociedade com as suas
diferenças e com a necessidade de respeitá-las.
Da mesma maneira, compreendemos que a convivência no âmbito familiar também
reproduz as diferenças próprias do convívio social e, assim, os erros e os equívocos não
seriam apenas negativos, mas também enriquecedores, na medida em que aumentam o leque
de percepções sobre a realidade, mostrando que não existe sempre um saber melhor ou mais
correto, e que não é possível apenas acertar. O erro existe e não deve ser apenas reprimido,
mas servir como objeto de reflexão, contribuindo com a tolerância e o crescimento.
Sendo a educação composta pela disciplina e pela instrução, a primeira mais acessível,
e a segunda mais específica e mais restrita, podemos concluir, como vimos no primeiro
capítulo, que ela era destinada a uma parte pequena da população. Sendo a liberdade, fruto da
superação de um agir conforme os instintos, substituído pelo uso apenas da razão, e esse uso
71
da razão advindo da instrução e da disciplina, entendemos que “ser livre” não seria acessível a
toda população. Da mesma forma, no contexto iluminista fazia sentido pensar que a razão,
exercida também através da educação formal, seria o que tiraria o homem da sua escuridão e o
traria para as luzes. Este então seria livre e realizaria enfim o seu projeto de humanidade. Se
pensarmos que as práticas educacionais não são acessíveis a todas as camadas da população,
poderemos concluir que nem todos poderão tornar-se livres, ou emancipados.
Pensamos que, apesar das diferenças particulares, os espaços públicos/coletivos
destinados à educação são necessários e contribuem com a compreensão da vida em
sociedade. Conviver com a limitação do outro, pode aparentemente gerar um incômodo, já
que o limite é do outro, porém, dessa forma se experimenta a idéia de que o sucesso
individual não é suficiente quando se pensa na vida social.
Se desprezarmos o que há de particular em cada indivíduo e tentarmos suprimir os
instintos, os afetos, corremos o risco de caminhar rumo à homogeneização. Desse modo, as
diferenças não teriam espaço para se manifestar, assim como o que há de particular em cada
um. Com isso, ganharia espaço o desconhecer-se ou, como dissemos, a supressão das
sensações e compreensões próprias de cada um. A idéia de que somos todos iguais do ponto
de vista essencial, de que há um bem comum a ser atingido e que a possibilidade de alcançá-
lo seria comum a todos através da educação, é a concepção apresentada dentro desse trabalho
no capítulo dedicado ao Iluminismo. Tal compreensão pode ser explicada dentro do mesmo
contexto. Porém, há que ficar atento para não se confundir a igualdade entre os homens com a
homogeneização dos mesmos.
Essa homogeneização pode levar à indiferença. Como vimos, desprezando os meus
afetos posso também não levar em conta os sentimentos e gostos dos outro. Desta forma, eu
poderia, por exemplo, infligir-lhe dor, já que aprenderia também a reprimi-la, tal processo foi
exposto no segundo capítulo. Essa idéia de indiferença aqui descrita pode ser transportada
para o ambiente educacional, se pensarmos que o processo que compreende a educação do
homem não se restringe apenas aos espaços formais destinados a ela, mas que toda e qualquer
forma de relacionar-se e compreender-se faz parte do processo de formação do homem.
Assim, a forma de relacionar-se dentro da sociedade contribuiria com a educação tanto quanto
qualquer outro processo, por isso seria preciso refletir sobre a forma como estas relações se
apresentam. A moderação não é o alvo de nossa crítica, mas o método pelo qual ela seria
atingida sim, deveria ser objeto de reflexão. Um exemplo é a tentativa de fazer com que
vivências anteriores, principalmente as expressões de barbárie, sejam esquecidas. Isso não
72
contribui para que elas não se repitam. A superação de uma questão requer pensar sobre as
condições que permitiram que ela fosse possível, para só então podermos superá-la.
É claro que a convivência pacífica entre pessoas distintas certamente passa pela
“repressão” de algumas expressões próprias, que poderiam gerar problemas no convívio
social. Essa explicação nos parece necessária para deixar claro que compreendemos a
necessidade de regulação entre os diversos membros da sociedade e quanto mais cedo essa
regulação é vivenciada melhor para toda sociedade. O que destacamos é o valor atribuído à
repressão. A medida que tal prática se desenvolve, parece muito frágil o limite em que esta
deve se conter. Pensar sobre as limitações que nos são impostas, a necessidade e o tamanho
delas, nos parece muito importante para preservar a boa convivência e para que esta não seja
confundida com manipulação, perda da autonomia, da individualidade e enfraquecimento da
experiência e da reflexão.
Suprimindo o que há de particular, e tentando fazer uso apenas da razão, a idéia de que
haveria uma “mente correta”, que proporcionaria um “gosto justo”, encontra sentido. Este
homem que seria capaz de atingir a sua humanidade, a tem como um ideal comum
estabelecido. Nos inquieta pensar que haveria para todos os homens esse mesmo ideal. Como
dissemos, essa idéia permite desprezar as particularidades. Pensar compreensões que fazem
parte da humanidade deixando de levar em conta o que há de próprio em cada história, em
cada tempo, nos parece ameaçador. A idéia de justiça, por exemplo, é algo que só parece ter
sentido se a contextualizarmos. Se compreendermos que há de fato um gosto justo,
desprezando as especificidades, corremos o risco de alimentar a barbárie de que fala Adorno,
por não sermos capazes de aceitar que a compreensão individual
6
do que é justo ou do que é
melhor pode não ser partilhada por todos os semelhantes.
Seguindo a idéia de que todos somos iguais, seria então possível pensar que a
conquista ou não de algum objetivo seria responsabilidade apenas do indivíduo. Afinal, se
somos iguais, o que explicaria os avanços e conquistas entre os homens seria apenas a
vontade dedicada a tais conquistas. Isso permitiria pensar que, caso um desejo não se realize,
a explicação se fundamentaria na incapacidade de cada um de realizá-lo. Com isso, a
realização ou não de algum objetivo não levaria em conta limites externos e reais.
Esse argumento, embora formulado em uma época bem distinta da que falamos, assim
como da que Adorno nos fala, parece ter sido também utilizado em alguma medida para
6
Com isso, de forma alguma pretendemos defender que a idéia de justiça é formada por cada um, ou que haveria
uma justiça a ser elaborada por cada individuo. Entendemos que, independente da compreensão de justiça ou de
qualquer outra verdade a ser assumida, esta deve poder ser pensada, questionada e não somente imposta.
73
justificar diferenças nos resultados obtidos a partir da educação formal. Muitas vezes a
justificativa para a falta de um desempenho entendido como satisfatório no ambiente escolar é
justamente a falta de vontade, já que as possibilidades seriam as mesmas para todos. Do
mesmo modo, esse argumento serviu e serve para justificar diferenças entre classes sociais.
Justifica-se o sucesso ou não e as conquistas obtidas a partir do empenho dedicado em
alcançá-las, desprezando todo e qualquer traço que identifique fatores históricos e econômicos
como também determinantes da conquista ou não dos objetivos. Para ilustrar essa idéia,
selecionamos o seguinte trecho de Kant: “(...) fazer benefícios aos pobres é simplesmente
nosso dever. Já que a desigualdade de bem-estar entre os homens deriva de meras
condições ocasionais.” (KANT, 2004: 92) Essa citação parece demonstrar que a desigualdade
entre os homens se daria por meras condições ocasionais, desprezando tudo que haveria de
particular nas sociedades, nos homens.
Outro ponto deste trabalho que nos parece importante ressaltar, é o que trata do papel
atribuído à razão, quando tratamos da educação. Com a valorização cada vez maior do uso da
razão e da educação relacionada à técnica e à ciência, a educação assume um caráter mais
utilitarista, acompanhando naturalmente as necessidades e características do seu tempo.
Desse modo, a técnica passa a ocupar o papel antes ocupado pela moral, de acordo com Kant.
Como dissemos diversas vezes, essa mudança expressa as necessidades da época. Porém,
algumas dessas transformações parecem colocar os processos educativos não mais como
contribuintes para a formação do homem, mas como o tempo destinado ao aprendizado deste
na sua adaptação no mundo.
Acreditamos que é preciso adaptar-se de alguma maneira ao mundo que se habita, mas
compreendemos que isso deve ser feito a partir da reflexão e de uma postura crítica sobre o
seu tempo, e não apenas de uma adaptação sem fundamento teórico. Um processo educativo
que objetiva apenas a adaptação e o desenvolvimento técnico se sobrepor a um saber que
valoriza a experiência e a reflexão nos parece negativo.
Não pretendemos aqui afirmar que o uso da razão possui apenas um caráter negativo.
Compreendemos e concordamos com a sua importância, porém não a consideramos a única
forma de estabelecer relação entre as pessoas. Além da racionalidade, é preciso aprender a
conviver com expressões que nem sempre serão as mais agradáveis. Esse exercício permite
que a compreensão e a tolerância pelos outros seja possível.
O mesmo ocorre em relação à disciplina, como apresentada no primeiro capítulo deste
trabalho. Como vimos, Kant nos fala da importância da disciplina para a formação do homem.
Defendemos que a valorização da disciplina se sobrepondo à formação cultural pode ser um
74
grande equívoco. Quando tratamos o processo educativo como um modo de se aprender a
reprimir, o que não parece o mais adequado, e quando a instrução formal e a disciplina
parecem ter mais importância do que a tolerância e o relacionar-se com os diferentes, a
disciplina pode se tornar apenas negativa e se sobrepor a um modo de educação que
valorizaria, por exemplo, a formação cultural.
Outro ponto negativo, que pode se desenvolver fundamentado na compreensão da
disciplina com um caráter apenas positivo, idéia apresentada por Kant, é a repressão do
próprio corpo. Essa repressão, que possui algum caráter positivo quando, por exemplo, tenta
impedir o uso da força em detrimento do uso da razão, pode promover a apatia. A mesma
disciplina que estimularia o uso da razão poderia promover a docilidade e insensibilidade do
corpo, estimulando a adaptação sem reflexão. Esses corpos reprimidos que desestimulam
inclusive a experiência, na medida em que são instrumentos de passividade, são funcionais
para a adaptação ao mundo do trabalho quando este exige apenas o uso do corpo, sem que
seja preciso uma compreensão mais profunda da produção desenvolvida. Dessa forma, a
disciplina apresentaria seu caráter negativo.
Como dissemos, o excesso de repressão das sensações, dos sentimentos, do medo ou
mesmo a falta de compreensão sobre estes podem gerar uma compreensão equivocada acerca
de si e do outro. O processo responsável pela educação dos indivíduos deveria contemplar
também o conhecimento de si. Por isso mesmo, a educação não deveria se apresentar de
forma impositiva.
Entendemos que quando existe a defesa da repressão e da disciplina de maneira
exagerada, fica difícil ter uma percepção crítica da realidade, como vimos no segundo
capítulo. O excesso de repressão enfraqueceria qualquer possibilidade de esclarecimento, já
que este é um processo de construção de si que, para tornar-se possível, demanda uma
reflexão crítica. Da mesma forma, é necessária a reflexão sobre si e sobre os processos de
formação do indivíduo e da sociedade, percebendo-os como partes de um todo, inseridos em
um tempo histórico, que compreende manifestações diversas. Desse modo, a percepção e
reflexão sobre as diferenças poderiam contribuir para o processo de construção do saber como
qualquer outro processo formal de educação.
Por fim, gostaríamos de expor que após a conclusão da pesquisa, percebemos que a
tarefa da educação desde o ponto de vista teórico não é apresentar fórmulas ou técnicas que
sejam adaptáveis ao mundo da escola. Ao contrário disso, concluímos que a educação precisa
ser tratada desde o ponto de vista teórico, e desse modo, a partir da produção de conhecimento
que trate da compreensão de educação em épocas distintas, o papel atribuído a ela, o lugar que
75
ela ocupa na sociedade irá sendo construído e compreendido, e só deste modo as práticas
poderão, talvez, se transformar, para então se aproximar do que teoricamente parece ser
atribuído à educação.
Do mesmo modo, concluímos que não faz sentido atribuir à educação, e sobretudo à
educação formal, a tarefa de “salvar a humanidade”, bem como de garantir o seu progresso. O
educar-se, o aprender, escapa dos espaços institucionais e, portanto, toda tentativa de
restringir o conhecimento aos modelos que conhecemos parece ineficaz. Como apontamos
brevemente a partir de Adorno, toda tentativa de estabelecer relações genuínas a partir de
relações de exploração ou de acúmulo parece fadada ao insucesso.
Assim terminamos nosso trabalho. Sem grandes sugestões, sem um otimismo
considerável, mas ainda assim tentando defender a importância da reflexão teórica sobre a
educação formal. Mesmo que essa reflexão não possa ser traduzida imediatamente para o
mundo da prática, mesmo que ela nos leve à constatação de que a educação pode contribuir
para a sustentação da barbárie em nosso tempo.
76
Bibliografia
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 1985.
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1995a.
_______________. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
_______________. Palavras e sinais: Modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU),
1999.
CASTELLO, Luis A. e MÁRSICO, Claudia T. Oculto nas Palavras: Dicionário etimológico
para ensinar e aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
HANDFAS, Anita. Uma Leitura Crítica das Pesquisas sobre as Mudanças nas Condições
Capitalistas de Produção e a Educação do Trabalhador. Niterói, ?, 2006.
KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. São Paulo: Ed. UNIMEP, 2004.
________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
(Coleção Os Pensadores).
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
JAY, Martin. A imaginação dialética: História da escola de Frankfurt e do Instituto de
Pesquisas Sociais (1923 – 1950). Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
LUCÁKS, Georg. História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética Marxista. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
MÉSZÁROS, István. A Educação para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
77
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo