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FACULDADES EST
PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
ANA CLAUDIA FIGUEROA
AMKIRA TSABO
UM ESTUDO SOBRE A MISSÃO EDUCACIONAL METODISTA,
JUNTO AO POVO KANAMARI, NO CONTEXTO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
São Leopoldo
2008
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ANA CLAUDIA FIGUEROA
AMKIRA TSABO
UM ESTUDO SOBRE A MISSÃO EDUCACIONAL METODISTA,
JUNTO AO POVO KANAMARI, NO CONTEXTO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
Tese de Doutorado
Para obtenção do grau de Doutora em Teologia
PPG - Faculdades EST
Área: Teologia e História
Orientador: Dr. Wilhelm Wachholz
São Leopoldo
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha elaborada pela Biblioteca da EST
F475a Figueroa, Ana Claudia
Amkira Tsabo: um estudo sobre a missão educacional
metodista junto ao povo Kanamari no contexto do estado
democrático de direito brasileiro / Ana Claudia Figueroa ;
orientador Wilhelm Wachholz – São Leopoldo : EST/PPG,
2008.
229 f. : :il.
Tese (doutorado) – Escola Superior de Teologia.
Programa de Pós-Graduação. Doutorado em Teologia. São
Leopoldo, 2008.
1. Índios – Missões. 2. Índios – Educação. 3. Educação e
estado. 4. Obras da Igreja junto aos índios. 5. Igreja
Metodisat – Missões. 6. Igreja Metodista – História.
I. Wachholz, Wilhelm. II. Título
FIGUEROA, Ana Claudia. Amkira Tsabo, um estudo da missão educacional metodista,
junto ao povo kanamari, no contexto do estado democrático de direito brasileiro.
Tese de doutoramento. São Leopoldo: Faculdades EST/PPG, 2008.
SINOPSE
A presente tese estuda a atuação educacional da missão indigenista metodista,
junto ao povo kanamari, avaliando suas características de relacionamento com a
conjuntura atual de implementação de políticas públicas, em educação indígena,
motivadas pelas características de estado democrático de direito, instituídas na
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988. Esta análise é
feita a partir da prática missionária educacional indigenista da igreja metodista, junto ao
povo kanamari.
O estudo está dividido em cinco capítulos, organizados em dois movimentos,
feitos a partir da historiografia narrativa. No primeiro movimento, são apresentados os
elementos introdutórios para compreensão do desenvolvimento da pesquisa,
compreendendo os capítulos primeiro ao terceiro. Estes capítulos apresentam os
elementos de existência dos sujeitos da pesquisa, dos elementos que instituem a
relação entre si, desde a perspectiva da educação indígena, como política pública.
O segundo movimento compreende os capítulos quarto e quinto, que o mais
analíticos das temáticas que atravessam as historicidades dos sujeitos históricos que
interagem no contexto da constituição do Estado democrático de direito brasileiro.
Representam a parte mais analítica e conclusiva da pesquisa, apontando elementos
transversais que auxiliam na explicitação das condições de aproximação,
distanciamento, parceria e crítica presentes nas experiências abordadas.
FIGUEROA, Ana Claudia. Amkira Tsabo, reserch about Methodist educational mission
with the kanamari people, taking into a account the Brazilian democratic rule of
law. Doctoral Dissertation. São Leopoldo: Faculdades EST/PPG, 2008.
ABSTRACT
This dissertation studies the educational actions of the Methodist indigenous
mission with the Kanamari people. The Kanamari's relationship characteristics are
evaluated, taking into consideration the current state of affairs in which public policies
regarding indigenous education, motivated by the characteristics of the democratic rule
of law established in the Constitution of the Federal Republic of Brazil promulgated in
1988, are being implemented. This analysis is done through the Methodist Church's
indigenous missionary educational practice with the Kanamari tribe.
The study is divided into five chapters and organized into two movements. It is
done through narrative historiography. In the first movement, comprised of chapters one
to three, the introductory elements for understanding the development of the research
are presented. These chapters represent elements of existence of the research
subjects, of the elements that establish a relationship among themselves from the
perspective of indigenous education as public policy.
The second movement is made up of the fourth and fifth chapters, which are
more analytical of the themes which cross the historicities of the historic subjects that
interact in the context of the constitution of the Brazilian democratic rule of law. These
chapters represent the most analytical and conclusive part of the research, pointing out
transverse elements that aide in the expliciting of conditions of approximation,
distancing, partnership and criticism present in the experiences dealt with.
AGRADECIMENTOS
A minha família, Simone e Caetano, pela paciência comigo, pelo privilégio de
aprender sobre a vida e conhecer cotidianamente o significado do amar e ser amada.
A minha família, Maria da Penha de Figueroa (in memorian), Federico Figueroa
Lino, Maria Alexandra Figueroa, Patricia Amélia Figueroa, Federico Figueroa Junior,
Andres Figueroa (in memorian), que me definem, porque nos pertencemos.
À Igreja Metodista, pela formação teológica, pela oportunidade do trabalho
missionário, pela liberdade, na experiência da fé. Principalmente, por me ter
oportunizado conhecer meus melhores amigos e minhas melhores amigas.
Ao Instituto Porto Alegre da Igreja Metodista, por me ter oportunizado trabalho e
pela bolsa que custeou, em grande parte, os estudos desta tese.
Ao Programa de Pós-Graduação da EST, por acolher minha proposta e
possibilitar um lugar de produção acadêmica de excelência.
Ao Evaldo Pauly, pela trajetória como docente, parceiro de debates e por ter
aceitado avaliar este trabalho, na banca examinadora.
Ao Wilhelm Wachholz, por ter me aceitado na condição de orientanda,
considerando a conjuntura inesperada.
Ao Robert, ao Elton, a Rosa Helena, a Lori, ao Kadji, ao Anewe, a Marohem, ao
Da’ora, ao Topianan, interlocutores e interlocutoras no labor de pensar nesta tese seu
corpo teórico, sua estética, sua consistência, nos últimos 8 anos.
A Meyre Machado, Sandra Correa, Marilúcia Fernandes, pela amizade e
trajetória longa, na convicção de que é possível ajudar a melhorar o mundo. A Nancy
Cardoso Pereira, pela inspiração na luta, pela aliança nos tempos de aldeia.
8
A Rosa Monteiro, referência no trabalho indigenista e apoio nos tempos em
Eirunepé. A Silas Moraes, Solange Silva e Grasiela Piuvezam, por partilharem comigo a
aliança, trabalho e compromisso com o povo kanamari.
Ao povo kanamari, pelo chamamento, pela convivência, pela aprendizagem, pelo
canto da flauta, pelo banho, pelo roçado e caça partilhados, pelas danças e festas, que
alegraram minha vida e habitam minhas memórias.
Ao Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (GTME), pela abertura de portas,
olhos, formação indigenista, aliança fraterna.
Para Yodji, filho de Marohem e Da’ora, que me guiou na floresta,
no lápis, na trilha, na canoa, na aldeia.
Para Caetano, filho de Simone e Omero, que me antecede naquilo
que não percebo e me guia pelos caminhos do conhecer.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................14
1 EXPLICITAR A SI NA ALTERIDADE ................................................................20
1.1 DO OBJETO: MEMÓRIA E PRESSUPOSTOS ................................................................ 22
1.1.1
Memória de uma Atuação Missionária Indigenista ................................................... 24
1.1.2 Do objeto ...................................................................................................................... 27
1.2 DO MÉTODO: DISCURSOS NARRATIVOS E CONCEITOS ....................................... 28
1.2.1
Os Discursos Narrativos: Por uma Reflexão Histórico-Teológica ............................ 30
1.2.2 Conceitos utilizados na Pesquisa .................................................................................. 38
1.3 O POVO KANAMARI ....................................................................................................... 47
1.4 A MISSÃO METODISTA JUNTO AO POVO KANAMARI ........................................... 53
2 EDUCAÇÃO INDÍGENA E ESCOLA KANAMARI .............................................63
2.1 POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO INDÍGENA .......................... 64
2.2 EDUCAÇÃO INDÍGENA E INSTITUIÇÕES PROTESTANTES .................................... 78
2.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR KANAMARI: INICIATIVAS DA SOCIEDADE CIVIL E DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS .......................................................................................................... 90
3 MISSÃO METODISTA E EDUCAÇÃO ESCOLAR KANAMARI ......................107
3.1. MISSÃO E EDUCAÇÃO METODISTA: A PRETENSÃO DA CIDADANIA ............. 110
3.2 TEOLOGIA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INDIGENISTA ......................................... 118
3.3 MISSÃO INDIGENISTA METODISTA E EDUCAÇÃO INDÍGENA .......................... 135
4 EDUCAR PARA A CIDADANIA INDÍGENA ....................................................147
4.1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA NO SISTEMA DE ENSINO BRASILEIRO ..................... 153
11
4.2 CURRÍCULO, CULTURA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ............................. 164
4.3 MISSÃO INDIGENISTA, DEMOCRACIA BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO INDÍGENA
DIFERENCIADA .................................................................................................................... 171
4.4 EDUCAÇÃO ESCOLAR ENTRE OS KANAMARI E AS RELAÇÕES DE INTERESSES
EM SEU ENTORNO .............................................................................................................. 181
5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MISSÃO INDIGENISTA METODISTA ............189
5.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO ............................................. 191
5.2 MISSÃO INDIGENISTA ALTERNATIVA E OS FUNDAMENTALISMOS EM
ASCENSÃO ............................................................................................................................ 197
5.3 MISSÃO INDIGENISTA METODISTA ......................................................................... 202
CONCLUSÃO ......................................................................................................208
REFERÊNCIAS ...................................................................................................213
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
ABA –Associação Brasileira de Antropologia
ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ARPIN-SUL – Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul
CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviços
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CINEP – Centro Indígena de Estudos e Pesquisas
CIR – Conselho Indígena de Roraima
CNBB Comissão de Pastoral da Conferência Nacional de Bispos do Brasil da Igreja
Católica Romana
COIAB – Coordenação das Organização Indígenas na Amazônia
COMIN – Conselho Missionário entre Índios
EPE – Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena
FOIN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNDEF – Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico
IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IEAB – Igreja Episcopal Anglicana no Brasil
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
IER-AM Instituto de Educação Rural da Secretária Estadual de Educação do Estado
do Amazonas
INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos
13
IPI – Igreja Presbiteriana Independente
IPU – Igreja Presbiteriana Unida
ISA – Instituto Sócio-Ambiental
JOCUM – Jovens Com Uma Missão
LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MIMEKA – Missão Metodista junto ao povo Kanamari
MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil
OIBI – Organização Indígenas da Bacia do Rio Içana
OPAN – Operação Amazônia Nativa
PDPI – Programa Demonstrativo para os Povos Indígenas
PPTAL Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da
Amazônia Legal
PVMI – Plano para Vida e Missão da Igreja Metodista
SEDUC-AM – Secretaria de Educação do Estado do Amazonas
SEPAL – Servindo a Pastores e Líderes
SIL – Summer Institute of Linguistics
SPILN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
INTRODUÇÃO
Amkira Tsabo
1
é uma expressão na ngua kanamari que convida a interlocução
entre duas ou mais pessoas. É o anúncio inicial de quem puxa a conversa no convite à
escuta. Aparece no início de relatos míticos nos momentos de início da narrativa.
Também utilizada nos momentos informais quando a narrativa acontece no meio de
uma conversa e o narrador inicia um relato sobre algo que lhe aconteceu no cotidiano
da lida na aldeia. Por isto, a tradução poderia apontar o uso da expressão “era uma
vez” do início de histórias para crianças, outras vezes a expressão poderia ser traduzida
como “vamos conversar, quero te contar”.
Amkira Tsabo, um estudo sobre a missão educacional metodista junto ao povo
kanamari no contexto do estado democrático de direito brasileiro. Este título, que
anuncia o objeto do trabalho, será abordado nas próximas páginas: estudar a missão
metodista, em sua característica educacional, em sua inserção junto ao povo kanamari,
no relacionamento com o estado democrático de direito que se inaugura no Brasil nas
últimas décadas. Este objeto contém 3 sujeitos sociais que interagem num campo de
significação comum: o povo kanamari; a missão indigenista metodista, o estado
democrático de direito brasileiro.
Perpassa este anúncio do objeto a idéia de que o período histórico que trata a
investigação diz respeito ao tempo recente da história brasileira, relacionado à
1
A escrita destas palavras na língua kanamari tomam como referência de proposta silábica no trabalho
de RIBEIRO, Adelina Vilma; LABIAK, Araci Maria; CONTE, Cláudio Quoos; NEVES, Lino João de
Oliveira e SILVA, Marcio. Elementos de Fonologia Kanamari. Cuiabá: OPAN, 1986.
15
consolidação do estado democrático de direito estabelecida na Constituição Federal da
República Federativa do Brasil no ano de 1988
2
. Neste sentido, também a missão
educacional indigenista metodista se coloca como lócus de investigação, pois sua
origem, como ão indigenista alternativa, está em sintonia com a história dos
movimentos sociais que se constituíram no combate ao estado de exceção, que marcou
o governo militar no Brasil e são protagonistas da instituição do estado democrático de
direito.
Mas é o povo kanamari o sujeito humano que se coloca como a condição
relacional de excelência entre os sujeitos sociais anunciados no objeto.
Especificamente, a experiência de implementação da escolarização junto ao povo
kanamari, que é uma sociedade ágrafa, com história de contato intermitente com a
sociedade envolvente. A história de contato com a sociedade colonizadora da região,
que ancestralmente ocupa, representou diminuição populacional por violências sociais
diversas pelos diferentes ciclos econômicos colonialistas na região.
O objeto desta tese é o trabalho missionário realizado por mim como missionária
metodista na missão metodista junto ao povo kanamari entre janeiro de 2000 a
fevereiro de 2003. O trabalho missionário entre povos indígenas possibilitou uma
formação antropológica e indigenista no período anterior à ida para aldeia, no segundo
semestre de 1999. Era minha responsabilidade, no trabalho missionário metodista, a
concepção e desenvolvimento de projetos educacionais junto ao povo kanamari. Tendo
este elemento em consideração, em alguns momentos, ao longo da redação que
segue, o uso da primeira pessoa aparece como relato de experiência vivida que será
utilizada para relacionar idéias importantes para cumprir o objetivo proposto.
O objetivo é investigar as alterações que estão acontecendo na missão
indigenista metodista, a partir de sua atuação junto ao povo kanamari, no atual período
de redefinição das práticas missionárias, associadas ao momento de redefinição do
papel das missões indigenistas na sociedade brasileira. Este objetivo estabelece
algumas tarefas específicas. Primeiro, oportunizar um conhecimento sobre o trabalho
2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: versão atualizada até
a Emenda n.30/2000. Disponível em: <http://www.teiajuridica.com.br>. Acesso em: 5.jun.2001.
16
missionário metodista entre o povo kanamari, organizando informações sobre a
característica educacional da missão indigenista metodista. O segundo desdobramento
é situar a missão educacional indigenista metodista no tempo presente, que se
caracteriza pela consolidação de direitos indígenas, promulgados na constituição
federal, em particular o direito a educação diferenciada. Em terceiro lugar, explicitar os
elementos de pertença e conflito na relação entre a implementação de políticas públicas
em educação indígena e a atuação missionária indigenista. Em quarto lugar,
compreender em que medida as experiências vivenciadas pela missão educacional
indigenista são similares, complementares e parceiras ou não às iniciativas
governamentais, no aspecto de inovação e tensionamento da garantia de autonomia
indígena na constituição de escola diferenciada. Em quinto, apresentar as condições
atuais de garantia e implementação de educação diferenciada para o povo kanamari,
destacando os elementos relacionais entre as iniciativas indigenistas missionárias e as
iniciativas governamentais.
Para alcançar o objetivo proposto, a metodologia a ser adotada tem sua
referência na historiografia, em seu aspecto específico de construir uma narrativa que
associe elementos sociais, organicidade social, instrumentos normativos e sujeitos
interagentes. Será utilizada a proposta de De Certeau que considera operação
historiográfica como uma relação entre um lugar, percebido de maneira abrangente
como recrutamento, meio ou ofício, procedimentos de análise e construção de um
texto
3
.
O discurso historiográfico, segundo De Certeau, é construído sobre um passado
que existe objetivamente com acesso mediado pelo documento escrito. Mas o discurso
também é perpassado pelas questões vividas pelo historiador. Assim a historiografia é
uma forma de conhecimento e escrita que se situa no limiar entre a ficção e a realidade
em algum lugar entre a subjetividade e a objetividade.”
4
Aqui podemos perceber
3
Cf. DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
4
Resenha feita por Alfredo Oliva, que destaca o elemento subjetivo do objeto na escrita da história
proposta por De Certeau. Oliva afirma que um tema está localizado no limite entre a realidade que
pode ser apreendida por uma série de documentos, ao mesmo tempo que aparece como resposta a
demandas pessoais e sociais. OLIVA, Alfredo dos Santos. Resenha: A Escrita da História, de Michel
17
similaridade com as pretensões historiográficas de Amkira Tsabo, segundo o povo
kanamari, pois explicita – no trabalho historiográfico – um universo de possibilidades no
campo historiográfico como um campo de possibilidades, no tempo presente, de olhar e
narrar o passado.
Também es proposta a busca de sujeitos esquecidos
5
, na perspectiva de
escrever a história da experiência missionária indigenista a partir dos sujeitos
interagentes nesta experiência. Isto implicaria em captar o significado da religião a partir
do cotidiano das pessoas, da luta pela sobrevivência e em perceber a subjetividade que
perpassa estas experiências como um dado historicamente relevante
6
. Uma
historiografia narrativa da atuação missionária indigenista apoiada na compreensão
proposta por Enrique Dussel:
Todo acontecimento histórico é irrepetível e único. Todo relato ou descrição
de um fato histórico não pode ser transparente, neutro e imediato. Todo relato
supõe uma “interpretação”, seja essa consciente ou inconsciente, querida ou
não voluntariamente intencionada. Toda história da Igreja supõe certo manejo
dos fatos eclesiais. Da concepção (seja cotidiana ou teológica) que se tiver da
Igreja, dependerá a história que se fará. Na América Latina estamos
ensaiando uma história da Igreja desde certa experiência da comunidade
institucional fundada por Jesus Cristo.
7
O estudo está dividido em cinco capítulos, organizados em dois movimentos,
feitos a partir da historiografia narrativa. No primeiro movimento, são apresentados os
elementos introdutórios para compreensão do desenvolvimento da pesquisa,
compreendendo os capítulos primeiro ao terceiro. O segundo movimento compreende
os capítulos quarto e quinto, são mais analíticos das temáticas que atravessam as
historicidades dos sujeitos históricos, que interagem no contexto da constituição do
Estado democrático de direito brasileiro.
De Certeau. In: Revista Práxis Evangélica, Londrina, 2, p. 99-102, abril 2003. Londrina, PR:
Faculdade Teológica Sul Americana, 2003, p.100.
5
Cf. VAINFAZ, Ronaldo. Micro-história, os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro: Campus,
2002, p. 23-24.
6
Cf. WIRTH, Lauri Emílio. Novas metodologias para a História do cristianismo: em busca da experiência
religiosa dos sujeitos religiosos. In COUTINHO, Sérgio R (org). Religiosidades, Misticismo e História
no Brasil Central. Brasília: CEHILA, 2001, p. 30.
7
DUSSEL, Enrique. Introdução Geral. In: História liberationis: 500 anos de história da Igreja na
Arica Latina. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 5.
18
O primeiro capítulo reflete elementos introdutórios que auxiliarão na
compreensão dos elementos apresentados nos capítulos seguintes, propondo um
detalhamento de compreensão do objeto, do método, apresentação do povo kanamari,
apresentação da missão metodista junto ao povo kanamari, apresentação de
vocabulários mais recorrentes e de importância ordenadora da abordagem.
O segundo capítulo procura compreender a educação indígena na perspectiva
de seu contexto histórico na prática educacional formal com povos indígenas, o papel
das missões religiosas. No detalhamento do capítulo é apresentada uma descrição do
trabalho educacional entre povos indígenas por iniciativa de igrejas protestantes e
apresentação do processo de educação escolarizada entre o povo kanamari. Neste
capítulo, as práticas educacionais metodistas são apresentadas em seu elemento
relacional com a conjuntura de debate e esforço governamental em implementar
formação docente indígena para as escolas indígenas.
O terceiro capítulo é dedicado à apresentação da missão educacional indigenista
metodista junto ao povo kanamari desde sua relação com a característica de missão
educacional metodista, marca histórica das origens e crescimento do metodismo no
mundo e no Brasil. Também aborda as pretensões de formação cidadã da ação
educativa metodista e suas características no trabalho educacional junto ao povo
kanamari, destacando aspectos curriculares relevantes neste processo.
O quarto apresenta uma organização transversal de temas que estabelecem os
elementos de relacionamento, práticas, distensões e acordos que acontecem entre
processos históricos das práticas indigenistas missionárias, iniciativas governamentais
de realização de políticas públicas em educação e o esforço de escolarização nas
aldeias kanamari.
O quinto capítulo, a partir das relevâncias temáticas pesquisadas, reúne
considerações finais, mas não conclusivas, dos aspectos estudados e desenvolvidos,
retomando o objeto e apresentando os elementos constitutivos que explicitam o objetivo
proposto.
19
A tese se desenvolve a partir da hipótese de que as práticas missionárias
indigenistas, sustentadas na perspectiva de pastoral de convivência, que atuam na
garantia de políticas públicas em educação escolar indígena, estão se redefinindo no
processo de constituição do direito a auto-determinação indígena. A tese, a ser
demonstrada no trabalho que segue, é que a missão educacional indigenista, no estado
de direito brasileiro, atua como sujeito de controle social, em relacionamento de
alianças e tensionamento com demais segmentos sociais, inclusive lideranças
indígenas. Mas, a missão indigenista metodista, sob influência de práticas
fundamentalistas, reduz este tipo de atuação, indicando possível extinção das
características de pastoral de convivência e retomada de formato conversionista em
suas práticas eclesiais.
Muitas interlocuções antecedem o tempo de finalização da redação desta tese.
Especialmente os seminários de formação do Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico GTME, lócus teórico-prático que possibilitou coleta de materiais e
conhecimento de várias pesquisas que aparecem como fontes na presente pesquisa.
Também nas assembléias da Operação Amazônia Nativa OPAN, as partilhas sobre
as práticas indigenistas, o acervo de material indigenista propiciaram acesso a literatura
base de compreensão da Amazônia brasileira, seus processos de constituição histórica
e a percepção das alianças entre indigenistas em ações políticas definidas. A casa da
OPAN em Eirunepé, Amazonas, que acolheu o trabalho missionário metodista, em
parceira relação solidária, em favor dos povos indígenas, espaço de inúmeras fontes
documentais do trabalho indigenista na região. Finalmente, a sede nacional da Igreja
Metodista, que detém a maioria das fontes documentais metodistas citadas na presente
pesquisa. Estas três instituições em seus contextos específicos são, nestas medidas,
cúmplices da escrita que segue.
1 EXPLICITAR A SI NA ALTERIDADE
De 15 a 20 de outubro de 1985, a Comissão de Pastoral da Conferência
Nacional de Bispos do Brasil da Igreja Católica Romana (CNBB) e o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), também vinculado à CNBB, promoveram um fórum de
debates sobre teologia missionária, tendo como enfoque a Encarnação (inculturação) e
a Salvação (libertação), na pastoral missionária indigenista. A produção teológica do
encontro resultou em publicação, organizada por Carlos Rodrigues Brandão. Na
apresentação dessa publicação, feita por Dom José Martins da Silva, então arcebispo
de Porto Velho, encontramos perguntas norteadoras do encontro: “Respeitando a
alteridade destes povos, qual o papel do missionário? Como agir? Qual a missão
específica do missionário junto a eles? O que significa evangelizar, sem manipular ou
destruir as culturas, as etnias e raças?”
8
.
Inicio com essa referência, para exemplificar como a alteridade, como questão
teológica, se institui pertinente ao trabalho missionário indigenista, como tema
reincidente. Nos tempos de hoje, 12 anos depois dessa publicação, proponho a
alteridade como elemento introdutório. Faço isso, portanto, não na pretensão de
inaugurar uma temática, mas na expectativa de que esteja pressuposto teologicamente
uma abordagem que permanece como ferramenta para pensar as condições materiais,
postas para realização do trabalho missionário cristão entre povos indígenas.
8
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (e outros). Inculturação e Libertação, semana de Estudos Teológicos
CNBB/CIMI. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 8.
21
A alteridade
9
diz respeito à necessidade de reconhecer o âmbito privado de uma
discussão pública, entendendo as iniciativas eclesiásticas, no Estado moderno, como
iniciativa privada, ou seja, como oriundas das motivações de indivíduos organizados por
livre expressão e vontade. Trata-se de entender a alteridade, como palavra que, na
relação com seu oposto reafirma a noção de identidade de determinado indivíduo, ou
grupo individual. O conceito de alteridade pressupõe um grupo social que se percebe
em relação a outro grupo social. unilateralidade, desde onde se a realidade, pois
somente existe alter se existir ego. O alter é determinado pelo ego.
Neste trabalho, entendem-se os Povos Indígenas e grupos colonizadores como
identidades que se relacionam mutuamente, na compreensão do outro (na relação de
alteridade). A sociedade multicultural (plural de matrizes étnicas) é, assim, a sociedade
dos outros entre si, relacionando-se. No enfoque desta pesquisa, os dois outros
constitutivos de um eu pretendido (identidade brasileira) são os kariwá (expressão que
significa olhar kanamari sobre “branco” colonizador) e os Índios (visão branca sobre
qualquer grupo originário, habitante da terra hoje nomeada Brasil), mais
especificamente os Kanamari, nomenclatura adotada por alguns grupos exploradores
da região do Rio Juruá.
Explicitando as alteridades, nomeando estes outros, desde seus egos
normatizadores, os dois sujeitos históricos coletivos, participantes deste trabalho, são
os Tâkâna (autodenominação dos Kanamari) e a sociedade envolvente
(autodenominação antropológica da sociedade nacional nomeada pela aceitação do
Estado-Nação Brasil). A proposta que se apresenta, aqui, então, é a de pensar as
matrizes étnicas, constitutivas da sociedade brasileira, bem como explicitar conceitos
relativos à educação como cultura. Nesse sentido, a pesquisa remete-se à prática
educativa das missões indigenistas cristãs, no particular a metodista, enquanto discurso
teológico, no contexto de implementação de políticas públicas em educação indígena.
9
Aqui o conceito alteridade é abordado desde a proposta de Hannah Arendt, quando afirma que ser
diferente não significa ser o outro, pois a alteridade na política somente existe na singularidade
individual. ARENDT, Hannah . A condição humana. São Paulo: Forense/Edusp, 1981, p. 51 e 189.
22
Por muitos anos, a constituição da identidade brasileira foi forjada na expectativa
da transformação dos povos indígenas em criaturas feitas à imagem do cristão
civilizador (assim como o cristão é a criatura feita à imagem e semelhança de Deus), ou
seja, de integrá-los à sociedade dominante. A premissa da menoridade dos índios e a
conseqüente tutela exercida, tanto pelo setor privado (Igreja, latifundiários, etc.) quanto
pelo Estado (agências diversas), pode ter sofrido interpretações diversas, mas o seu
resultado prático tem sido a negação dos povos indígenas como indivíduos e,
principalmente, como coletividades autodeterminadas. Esse cenário começou a dar
sinais de mudança a partir da Constituição de 1988.
1.1 DO OBJETO: MEMÓRIA E PRESSUPOSTOS
No transcorrer deste trabalho, apresento uma pesquisa que se propõe a ser um
diálogo entre algumas demandas da realidade brasileira. Uma primeira demanda é a
produção científica na área de educação indígena, desde o trabalho educacional de
uma das missões protestantes. a segunda demanda relaciona-se à produção
histórico-teológica da missão educacional indigenista, como contribuição às igrejas
cristãs, em geral, e à Igreja Metodista, em particular, a partir do recorte de experiência
metodista entre o povo Kanamari. Outra demanda diz respeito à importância de
explicitar indicadores teóricos, que auxiliem a indigenistas missionários e missionárias
entre povos indígenas, na perspectiva de refletir e compreender questões referentes à
educação escolar indígena, no cenário atual de implementação de novas políticas
públicas em educação indígena. E, por fim, uma demanda pessoal: organizar uma
experiência vivida entre o povo Kanamari. Essa experiência instituiu meditações e
perguntas, que, nos últimos oito anos, orientaram as escolhas e recortes redacionais da
pesquisa que segue.
Fruto de uma trajetória cheia de movimentos constitutivos, este trabalho foi
inicialmente pensado para ser um texto da área de Educação e Religião e,
posteriormente, tornou-se uma produção focada na abordagem da Teologia e História.
É tênue o espaço que separa as ênfases nesta pesquisa. A prioridade para a
abordagem histórico-teológica nasceu do movimento primeiro desta pesquisa, no
23
sentido de diagnóstico do trabalho educacional missionário metodista. Na ocasião, foi
verificado que o assunto ainda era pouco estudado e somente acessível por
documentação confessional jornalística e artigos em periódicos diversos
10
. Foi
necessária uma dedicação mais intensa quanto a esse aspecto, postergando a
continuidade da pesquisa, com ênfase inicial no aspecto histórico-teológico dos
currículos da educação escolar indígena na iniciativa missionária.
Esta tese realiza um exercício de compreensão da pertença indígena à
sociedade brasileira e explicita seus movimentos de interatividade social, na perspectiva
de percebê-los nas afirmações de cidadania brasileira. A missão cristã entre povos
indígenas constitui o corpo principal de atores sociais que protagonizaram ações
diversas entre os povos indígenas, ao longo da história do Brasil e da América Latina. É
importante, para a igreja cristã, em particular, e para a sociedade brasileira, como um
todo, pensarem-se criticamente neste aspecto. Situo esta pesquisa desde a perspectiva
de uma das igrejas cristãs que se vê nessa trajetória histórica, a Igreja Metodista.
10
Especialmente sobre trabalho missionário indigenista da Igreja Metodista no Brasil, temos acesso
somente a anotações e partilhas de missionários e missionárias, publicadas eventualmente no jornal
Expositor Cristão, periódico confessional metodista, de circulação nacional. Além disso, uma
publicação com coletânea de conferências, oficinas e debates de uma semana de estudos, na
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em 1990, reunidas no livro Repensando a Evangelização
junto a Povos Indígenas, da Editeo, organizado por Jaider Batista e Thomas Kemper. Nesse mesmo
período, a Editeo publicou Minha Prece, uma coletânea de escritos diversos do Bispo Scilla Franco,
que iniciou o trabalho indigenista metodista, reconhecido como primeiro trabalho metodista brasileiro
junto a povos indígenas, especificamente junto ao povo Kaiwoá-Guarani, na cidade de Dourados, Mato
Grosso do Sul. Recentemente Helmut Renders publicou 3 artigos que procuram analisar as
características históricas e teológicas da presença metodista na região, onde aparecem alguns
elementos referentes aos povos indígenas: RENDERS, Helmut. Convivência: coragem de uma missão
sensível e profética. Expositor Cristão, São Paulo, v. 1, p. 3, 15 jan. 2002; RENDERS, Helmut. Entre
"Tupi ou não Tupi" ou a [não tão] ingênua continuação da conquista. Caminhando, ano VIII, 2 sem.
2003, p. 212-225; RENDERS, Helmut. A Igreja Metodista na Amazônia e a Questão da Amazônia. In:
Clovis Pinto de Castro. (Org.). Meio Ambiente e Missão: a responsabilidade ecológica das igrejas.
1 ed. São Bernardo do Campo - SP: EDITEO, 2003, p. 135-154. Além destes, não existe nenhuma
outra publicação ou iniciativa de historiografia do metodismo, que se debruce sobre essa linha de
atuação missionária.
24
1.1.1 Memória de uma Atuação Missionária Indigenista
Deus não me dá sossego. É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente,
Faz-se verbo, carne, caco de vidro,
Pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do Seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe,
Sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
Me escondendo de Deus.
11
Esta pesquisa é filha de minha história pessoal, gestada desde as contradições
dos sentimentos entranháveis e da racionalidade cartesiana que me formou. Em 1999,
iniciei um processo formal de capacitação e experiência prática para o trabalho
indigenista da Igreja Metodista. vinha de uma década de envolvimento em ações
diversas de solidariedade com os povos indígenas, articuladas pelo Grupo de Trabalho
Missionário Evangélico (GTME). Aos 34 anos, vivia um tempo de conversão, para que a
mesmice não fosse meu guia, na compreensão de cumprimento de minha história no
mundo.
A entrada no trabalho indigenista representou, então, uma nova etapa, cheia de
novidades. Impulsionava-me o desejo de reaprender a conhecer. Para conhecer o
novo, são necessárias rupturas. Entre janeiro de 2000 e fevereiro de 2003, como parte
de uma trajetória auto-imposta, contribui como educadora no trabalho missionário da
Igreja Metodista, junto aos povos Kanamari e Kulina, habitantes às margens de
igarapés e rios afluentes da região nomeada Médio Jur
12
, Estado do Amazonas. Mais
especificamente, o trabalho metodista tinha como enfoque de atuação a educação
kanamari. Demais ações indigenistas, que exigiam articulações políticas, implicavam
em ação conjunta com os Kulina e, também, com os grupos do Conselho Missionário
entre Índios (COMIN) e Operação Amazônia Nativa (OPAN), que também possuem
11
PRADO, Adélia. Poesia reunida. 9 ed. São Paulo: Siciliano, 1999. p 270.
12
O Rio Juruá nasce na cordilheira dos Andes, em território peruano, mas tem seu leito mais consistente
em terras brasileiras, quando perpassa os Estados do Acre e do Amazonas, desaguando no rio
Solimões. Este último, em seu encontro com o Rio Negro, forma o rio Amazonas. A Região nomeada
médio Juruá é uma região extensa, que se inicia aproximadamente na cidade Cruzeiro do Sul, limite
territorial do Acre com Amazonas, e finaliza-se um pouco abaixo da Cidade de Carauari. Costuma-se
referenciar os rios pelas expressões alto-médio-baixo, como referência aos trechos do percurso total
do rio. Alto seria mais próximo às nascentes. Médio, como é óbvio pela própria palavra, indica o
transcorrer central da trajetória do rio. Baixo é uma referência às proximidades do deságüe do rio.
25
equipes locais sediadas na cidade de Eirunepé, desde onde organizávamos as viagens
para as aldeias.
Essa inserção no indigenismo representou quebras de paradigmas, de normas,
de dogmas, de formas. A recomposição, depois dessa fragmentação de sentidos e
conceitos, comporta uma experiência que arrisco nomear novo nascimento, como no
debate de Jesus com Nicodemos
13
. Na terra onde o boto vira gente e namora as
meninas dos povoados ribeirinhos, onde a vitória-régia é uma jovem que chora a perda
do noivo e que a lua transforma em estrela-da-água, onde a própria lua, Jaci, é uma
mulher que habita as águas e o urubu é parente ancestral, ali conheci a loucura de
Deus. Mergulhei na inquietude das minhas entranhas, reli o evangelho aos olhos
ágrafos dos kanamari, voltei a nascer.
O povo kanamari ntende-se a partir da floresta e de seus entes espirituais, numa
cosmovisão complexa e inacessível para moradores das urbanidades modernas dos
séculos XX e XXI. Entre os kanamari do Juruá, costuma-se dizer que somos nós que
escolhemos ir trabalhar com eles. Foram os pajés, no canto da flauta, que nos
chamaram e, por isso, nós fomos encontrá-los. Eles nos escolheram para si. Então,
tomada pelo desejo de um novo conhecer e escolhida pelo canto da flauta, me refugiei
entre os Kanamari para reaprender Deus.
Quando cheguei para trabalhar com povos indígenas, em Eirunepé, Amazonas,
em janeiro de 2000, não tinha idéia do volume das impressões, sensações e da
proposição de aprendizagem que me esperavam. O primeiro ensinamento decorreu da
percepção de que a convivência com os Kanamari me colocaria na escala infantil, no
que diz respeito ao lugar social de aprendizagem sobre a vida “no mato”. Era freqüente
a presença de crianças me acompanhando e guiando em situações diversas, onde
devia aprender o básico da sobrevivência e subsistência.
Para o povo kanamari nossa presença representa potencial de aliança, visando
alterar e superar as condições de exploração em que vivem. No contexto dessa entrada
13
Relato bíblico no Evangelho de João (3.1-7) em que um judeu estudioso pergunta o que é necessário
para salvação e Jesus responde
:nascer de novo”.
26
de século XXI, a garantia de direitos dos povos indígenas se consolida como realidade
efetiva na sociedade brasileira. Apesar de todas as contradições no processo de
implementação desses direitos, considera-se um período favorável às populações
indígenas, como tempo de afirmação das identidades etnicamente diferenciadas, com
garantia à manutenção de valores e tradições próprios. No Juruá, onde a história de
contato intermitente possibilitou continuidade de vários aspectos ancestrais das culturas
kanamari e kulina
14
, a afirmação dos direitos convive com um período de intensa
curiosidade de grupos indígenas sobre a cultura e valores da sociedade envolvente.
Esta, por sua vez, possui influências cruzadas de várias culturas, tidas como “brancas”,
mais comumente nomeadas como caboclas
15
. Os Kanamari e Kulina também se
seduzem pelos avanços da tecnologia e da economia da sociedade envolvente. Isso
gera o desafio do processo de assimilação dessas tecnologias, geralmente carregado
de ações que lesam os indígenas e os transformam em grupos marginais e
explorados
16
.
A introdução de garantia de direitos diferenciais entre os Kanamari e Kulina,
desde a promulgação da Constituição de 1988, possibilitou a introdução de garantias de
direitos. O volume de dinheiro que se introduziu na economia das aldeias, a partir
dessas conquistas cidadãs, no entanto, introduziu, também, práticas de consumo
novas, o que logo iniciou demandas de consumo para todas as comunidades. Essa
demanda, a curto e médio prazo, produzirá interferências e inovações nas práticas
culturais ancestrais, modificando-as ou simplesmente abolindo-as. A postura do
trabalho indigenista alternativo, nessa realidade, tenta introduzir processos
14
A expressão “contato intermitente” é utilizada para representar o processo de integração dos grupos
indígenas à sociedade nacional. Darcy Ribeiro propõe uma classificação por grau de integração:
grupos isolados, grupos de contato intermitente, de contato permanente e totalmente integrado. O que
condiciona o grau de integração dos grupos indígenas diz respeito a fatores lingüísticos, econômicos,
culturais e populacionais. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações
indígenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 252s.
15
A constituição da população cabocla, na região do médio Juruá, é estudada por Lino Oliveira Neves.
NEVES, Lino. J. Oliveira. 137 anos de sempre: Um capítulo da história Kanamari de contato.
Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de
Santa Catarina, Santa Catarina,1996.
16
Na Amazônia, os ciclos de exploração da seringa e os posteriores planos de desenvolvimento
econômico da região se utilizaram da mão-de-obra indígena, para diferentes ocupações. Marcio Souza
realizou um estudo sobre essas relações na constituição da economia amazonense e a sua relação
com as diferentes configurações quanto à constituição da mão-de-obra. SOUZA, Márcio. A expressão
Amazonense, do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa e Omega, 1978. p. 87ss.
27
permanentes de reflexão política e desenvolvimento de ações de compreensão dos
impactos provindos de conflitos e necessidades imediatas.
As escolhas cotidianas dos kanamari regem os processos estéticos inaugurais
nas práticas culturais. Assim, há substituição do cipó e algodão, pelas linhas compradas
para a confecção de bolsas artesanais, da mesma forma que o forró, nas casas,
substitui os rituais, nos terreiros. Simbolicamente, a substituição tem interferência
geracional. Os mais novos se interessam menos pela produção e reprodução simbólica
ancestrais, para utilizarem novos elementos, apreendidos no contato, parcialmente
protegido por garantias de direitos. Por outro lado, a vida na floresta exige um
conhecimento próprio, que é oferecido pela sabedoria ancestral. Esse conhecimento
tem sido um elemento vital para manutenção de práticas de plantio dos roçados, de
conhecimento da mata e dos animais e de todos seus personagens simbólicos.
1.1.2 Do objeto
O trabalho indigenista (não necessariamente missionário) vive tempos de
redefinição, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. A tendência que
parece prevalecer é a do trabalho técnico especializado, em forma de assessorias
pontuais. Este novo modelo pressupõe que os indígenas avaliam e organizam, por si
próprios, um modelo de trabalho e requerem atuação específica de não-indígenas, para
alguns aspectos. Como reflexão sobre os comportamentos sociais e as aglutinações,
justaposições e transgressões éticas, que se misturam nas relações mutantes, faz-se
necessário um perfil de trabalho inserido no contexto de escolhas e opções dos grupos
indígenas. Somente um trabalho técnico pontual pode resultar numa compreensão
marginal ao fenômeno histórico em si. O indigenismo entende-se como facilitador e
responsável, por introduzir alternativas para práticas diversas, nesse diálogo
permanente com as tecnologias possíveis para continuidade da vida, zelando,
principalmente, pelos aspectos de preservação ambiental e cultural.
No recorte da atuação missionária indigenista, na questão da Educação
Indígena, a discussão sobre a especificidade de ação se dilui no contexto de discussão
sobre o próprio papel das religiões, em particular das igrejas cristãs, no Estado de
28
direito, sob égide de princípios democráticos. Na atuação indigenista nos últimos 30
anos, a missão cristã tem desempenhado um papel protagonista, no sentido de garantir
autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, para exercício pleno de sua
cidadania. Mesmo com contradições constitutivas da diversidade de segmentos cristãos
que atuam entre povos indígenas, afirma-se como objeto de pesquisa uma reflexão
sobre a natureza das pretensões político-pedagógicas da ação das igrejas cristãs, no
particular da missão indigenista metodista. Nesse sentido, esta tese apresenta um
desvelamento das condições históricas da atuação missionária indigenista metodista e
suas afirmações teológicas diante das realidades vivenciadas pelos povos indígenas,
no particular o povo kanamari.
As condições históricas, aqui pressupostas, são percebidas desde a constituição
do Estado democrático de direito, com a promulgação da Constituição de 1988. A
conquista da constituição de 1988 é fruto de atuação de movimentos sociais que
consolidavam uma sociedade baseada em princípios que respeitassem os direitos dos
diferentes grupos sociais constitutivos da sociedade brasileira. De maneira geral, a
Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, afirma-se
como conquista social. A guinada teórico-ideológica do papel dos movimentos sociais,
em suas diversas atuações, passou a se reconfigurar, no específico de atuações
pautadas na luta por garantias de direitos. Em tempos de início do século XXI, pensar a
função social das igrejas cristãs é um debate pertinente não somente para as igrejas,
no seu papel específico de atuação pastoral, mas também para a sociedade brasileira
como um todo, principalmente considerando o aspecto hegemônico da religiosidade
cristã, como espiritualidade normativa da quase totalidade da população existente.
1.2 DO MÉTODO: DISCURSOS NARRATIVOS E CONCEITOS
A pesquisa transcorre a partir de um olhar multifocal, com três vertentes
originárias, desde onde o objeto é analisado: (1) a produção reflexiva no entorno da
implementação de políticas públicas em educação indígena, a partir das garantias de
direitos declarados na Constituição de 1988; (2) a história do cristianismo na América
Latina, na perspectiva da história da missão protestante entre índios; olhar teológico
29
explicitando os aspectos constitutivos da missão indigenista alternativa; a produção
teológica no seu entorno; e a conjuntura vivenciada no período recente, no contexto de
implementação de direitos; (3) elementos de historiografia e etnografia dos povos
indígenas, no enfoque particular do povo kanamari; olhar antropológico sobre a
constituição de contexto multicultural; e suas significações para se pensar o estado
democrático de direito. Estas três vertentes representam fontes bibliográficas definidas
e amplas.
Esta tese é uma pesquisa histórico-teológica. São diferentes materiais
existentes, a serem organizados. Uma abordagem histórico-reflexiva será a linha e a
tessitura que reunirá estes materiais, numa relação mútuo-comunicativa. O objeto da
pesquisa envolve três dimensões de um mesmo fenômeno histórico articulado por
transversalidades ordenadoras de suas existências: a educação indígena, elementos da
etnografia Kanamari e definições de missiologia indigenista. Mutuamente influentes na
realidade dos povos indígenas brasileiros, estas dimensões explicitam eixos
transversais, organizadores dos capítulos temáticos e seus subitens. Nesse sentido, ao
organizar informações oriundas de fontes documentais e literatura específica, este
trabalho exige uma aproximação de matriz plural, na constituição do método de sua
redação, oriunda da pesquisa antropológica, histórica e teológica.
As fontes materiais disponíveis se encontram em diferentes formatos: (1) fontes
bibliográficas sobre missão metodista, educação e missão indigenista, sobre o povo
kanamari e suas particularidades; (2) fonte documental de ações educativas
indigenistas e da missão metodista, junto aos kanamari; também documentos
governamentais e de instituições sociais diversas, sobre implementação das políticas
públicas em educação indígena; (3) literatura teológica (livros ou documentos) sobre
missão educacional e missão indigenista metodista, na relação com a constituição
social brasileira, identificando elementos de constituição social, pressupostos e/ou
pretendidos. Uma abordagem histórico-reflexiva sobre a missão metodista no contexto
da Educação Indígena, tomando como exemplo o caso Kanamari, avaliando o contexto
da relação entre estado e missão indigenista no Brasil dos tempos atuais.
30
Trabalho similar foi realizado por Roberto Zwetsch, que fez um levantamento de
como o diálogo entre a Antropologia, a Sociologia e a Teologia, no século XX, resultou
numa mudança paradigmática de conduta na pastoral indigenista (afirmação da
pastoral da convivência), no Brasil e América Latina. Para Zwetsch
17
, a relação entre
Teologia e Cultura, no Brasil, somente foi percebida como relevante na segunda
metade do século XX, apesar de possuir uma trajetória na Europa, desde fins do
século XIX. No Brasil, é a afirmação e constituição do Estado leigo que põe em
evidência a necessidade de dar resolutividade e constituir mecanismos sociais, no
sentido de garantir a atuação da Igreja em âmbito privado, garantindo à vida blica a
liberdade de culto e tolerância, entre diferentes iniciativas, principalmente para garantir
equilíbrio frente ao poder hegemônico da Igreja Católica.
Assim, faz-se necessário compreender o papel da cultura na constituição das
relações sociais e como mediadora de deliberações de caráter político e missiológico.
Na presente pesquisa, a constituição de uma trajetória consolidada de pastoral se
compõe paradoxalmente questionada e revitalizada, no cenário político brasileiro, de
garantia dos direitos indígenas.
1.2.1 Os Discursos Narrativos: Por uma Reflexão Histórico-Teológica
Martin Dreher
18
entende que, para escrever sobre a história da Igreja na América
Latina, é necessário colocar-se algumas questões: (1) definir Igreja, entendendo a
história da igreja como história ecumênica da própria Igreja, estabelecendo o lócus
eclesiológico, desde onde se pretende o relato histórico; (2) estabelecer o contexto
específico onde a história relatada acontece; (3) estabelecer a relação entre Igreja e
Estado, apontando uma leitura hermenêutica, como chave de leitura para uma
interpretação da história da Igreja; (4) considerar o pensamento cristão que expressa a
época em que se estabelecem os pontos de referência da narrativa histórica; (5)
explicitar os conteúdos da fé, de maneira coerente, aproximando uma abordagem da
17
ZWETSCH, Roberto E. Com as melhores intenções: trajetórias missionárias luteranas diante do
desafio das comunidades indígenas - 1960-1990. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em Missiologia, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, 1993, p.
17s.
18
DREHER, Martin Norberto. A igreja latino-americana no contexto mundial. 2
a
ed. São Leopoldo:
Sinodal, 1999, p. 7-16.
31
história da Igreja teológica; (6) definir uma periodização na abordagem realizada; (7)
explicitar a significação social da experiência religiosa considerada na narrativa
histórica.
Esses elementos metodológicos, propostos por Dreher
19
, instituem trilhas
redacionais, presentes nas aproximações temáticas ordenadoras desta pesquisa. A
organização temática dos capítulos visa a atender a esses elementos, no exercício de
redação de uma história da Igreja, na perspectiva de compreender a relação entre o
Estado e a missão indigenista, em particular da missão metodista junto ao povo
kanamari. Ao nomear essa aproximação como histórico-teológica, destaca-se o aspecto
de que, na compreensão da presença missionária, quanto às questões sociais
emergentes e atuais, os aspectos teológicos tornam-se relevantes e complementares,
para a reflexão histórica propriamente dita. No enfoque da questão indígena no Brasil,
considerando a forte influência histórica das missões cristãs, na colonização junto aos
povos indígenas, o debate teológico apresenta-se como uma ferramenta de olhar crítico
à relação entre sociedade nacional e os povos indígenas, numa multiplicidade
expressiva de sujeitos sociais (instituições e indivíduos).
Por isso, é imprescindível um diálogo entre a pesquisa antropológica e a teologia
da missão indigenista, apesar de essa não ser uma relação harmônica e possuir
divergências matriciais, na interpretação e na compreensão da relação de contato e
convivência entre povos indígenas e processos colonizadores. Na reflexão sobre a
periodização da história do Brasil e da América Latina, revela-se a compreensão das
tarefas e entraves do fazer teológico cristão, desde o enfoque da missão metodista e as
demandas do ambiente onde ela se desenvolve. No olhar do historiador crítico da
história de dominação e colonização sofrida no chamado descobrimento, mas de fato
um achamento”, a sintonia entre missão cristã e colonização e dominação foram dois
lados de uma mesma moeda. Como o tema é amplamente conhecido, esta pesquisa
19
As propostas de periodização de Dreher compõe o exercício de explicitação de uma relação histórico-
estrutural que os membros da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e Caribe,
referenciado em DUSSEL, Enrique. História Liberationis: 500 anos de história da Igreja na América
Latina. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.
32
referencia-se nos trabalhos desenvolvidos por Eduardo Bueno
20
e Ronaldo Vainfas
21
,
que organizaram diversas informações da pesquisa histórica, de forma acessível, em
literatura para consumo de pessoas leigas.
Uma pesquisa histórica existente sobre o Estado e os povos indígenas, no
contexto da Constituição de 1988, é a série Estado e Povos Indígenas, utilizado nesta
pesquisa, de Lima e Barroso-Hoffmann
22
, que investigam as bases históricas e
ideológicas que sustentam as políticas indigenistas do Estado brasileiro, na década de
1990, avaliando, inclusive, a forma como ranços históricos instituem empecilhos e
derivam alterações nos processos de garantia de direitos indígenas.
Na história do Brasil, contudo, as alterações no arcabouço legal não se
traduzem necessariamente em mudanças na prática administrativa do Estado
ou, nesse caso, na política indigenista dos governos. Ao contrário, tem sido
comum o complemento descompasso entre o texto das leis e as políticas
implementadas no chão concreto das aldeias, e não é necessário recuar muito
para verificá-lo: basta lembrar os diversos prazos estabelecidos e nunca
cumpridos para a conclusão dos processos de demarcação das terras
indígenas.
23
Sobre a experiência de educação entre povos indígenas e sua relação com
elementos míticos ordenadores, no contexto da pluralidade étnica constitutiva dessa
experiência, torna-se fundamental a contribuição da Antropologia, por mais que esta
seja contrária às intervenções e atuações missiológicas junto aos povos indígenas.
Paula Monteiro
24
organizou uma pesquisa antropológica de vários autores, que visou
compreender melhor a metodologia antropológica, que interpreta essa presença de
forma crítica e dialógica, com relação às realidades missiológicas, vividas nas
comunidades indígenas. A explicitação da etnicidade, como locus de discernimento da
20
Cf. BUENO, Eduardo. Brasil: uma História, a incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2003.
21
Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia
das Letras, 1995; VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Juliana Beatriz. Brasil de Todos os Santos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2000.
22
LIMA, Antônio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs). Estado e Povos Indígenas, bases para
uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2002. Também dos
mesmos organizadores: Estado e Povos Indígenas, bases para uma nova política indigenista II. Rio
de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2004; e Estado e Povos Indígenas, bases para uma nova
política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2006.
23
LIMA; BARROSO-HOFFMANN, 2002. p. 31s.
24
MONTERO, Paula (org). Deus na aldeia, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.
33
missão indigenista, dialoga com a contribuição do pensamento antropológico
indigenista brasileiro e estabelece uma plataforma comum de conceito e análise
conjuntural, para compreensão da situação de implementação das políticas públicas em
educação indígena. Além disso, auxilia na compreensão da missão indigenista
metodista, desde a perspectiva do protestantismo, na América Latina, e os produtos
sociais derivados desta presença.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em interlocução com teólogos, em
1992, apresenta elementos que se transformam em roteiro de abordagem narrativa, na
busca do entendimento das relações interculturais no trabalho com povos indígenas:
uma distinção fundamental entre as religiões do livro e religiões sem livro,
no sentido não apenas bíblico; no sentido de religiões escritas, de sociedades
que possuem tradição escrita, versus sociedades que não têm escrita. Essa
diferença é muito importante não em relação à religião, várias outras
coisas. Exatamente porque ali onde não há uma tradição escrita, não há
possibilidade do dogma. Porque não se tem um ponto referencial imutável em
relação ao qual possam julgar as práticas, as ações e as crenças das
pessoas. Então, uma religião não escrita dificilmente pode ser proselitista”,
estar baseada numa gica de exclusão, em termos do dogma, em termos de
heresia, porque você não tem uma referência única. Quer dizer, uma boa
parte do que a gente vê como caráter democrático, eventualmente até
anárquico, digamos assim, das práticas religiosas indígenas e de outras
populações do mundo, se deve exatamente ao fato de que elas são práticas
de sociedades ágrafas, sociedades que não possuem escrita e portanto não
possuem os instrumentos de normatização do comportamento religioso ou
outro qualquer. Ao não ter escrita para codificar leis, impor dogmas e legitimar
reis, a “falta do livro”, não é apenas uma carência, mas uma característica
estrutural essencial das religiões indígenas. Porque não existe exatamente a
norma.
25
A pretensão da norma, como sinal de religião, é aspecto a ser destacado nos
estudos sobre missiologia indigenista. A ausência de normatividade religiosa torna-se
marginal, na prática pastoral sustentada na idéia da convivência, mas a necessidade do
dogma normatizador é vital, não somente no funcionamento da religião cristã, mas,
também, no do Estado instituidor do bem comum. Mas, como garantir direito a
cidadania a sujeitos históricos que não possuem o caráter normatizador do Estado?
25
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O papel da Religião no sistema social dos povos indígenas.
Cuiabá: GTME, 1999, p. 17-18.
34
Este aspecto é estudado por Pierre Clastres
26
, antropólogo que estuda as
características de constituição política das estruturas sociais recíprocas indígenas da
América Latina (contrapondo a idéia de primitividade das estruturas clânicas), como
decisão coletiva de não organização do Estado, sendo este instituição mediadora das
relações morais e éticas do grupo social.
Na proposta da presente pesquisa, no enfoque histórico-sistemático, predomina
uma abordagem da educação como um elemento experimental do debate sobre a
relação entre Estado e missão indigenista. Igualmente, a atuação missionária
metodista, junto ao povo kanamari, torna-se exemplificadora do aspecto constitutivo da
afirmação teológica, da atuação missionária na relação com o Estado de direito. O
debate teológico sobre a educação, na missão metodista, representa uma contribuição
relevante ao metodismo brasileiro e à reflexão teológica, considerando a constituição
cultural brasileira.
No fazer teológico, o reconhecimento da confluência e do enfrentamento entre
religiosidade e identidade nacional, na história cultural constitutiva da identidade social
da América Latina, tem tido tratamento diverso, geralmente apreciado na margem das
comparações, nomeadas como sincretismo ou cultura popular
27
. O estudo dos
fenômenos religiosos é feito levando em conta o resultado dos encontros culturais e o
caráter híbrido que deriva desses encontros. Nos paradigmas epistemológicos
28
desses
26
Cf. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
27
Estudos de teologia negra latino-americana e a teologia índia procuram elementos comuns entre a
espiritualidade de matriz africana e indígena e a espiritualidade proposta pelo cristianismo, como
espaço comum do fazer teológico. Canevacci aponta que as religiões são sincréticas, pois
representam o resultado de grandes sínteses, integrando elementos de várias procedências, que
formam um novo todo. CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridações
culturais. Tradução Roberta Barni. São Paulo: Studio Nobel, 1996. No Brasil, quando se fala em
religiões populares, pensa-se imediatamente em sincretismo, como “aglomeradode ritos e mitos, ou
como bricolagem”, no sentido de mosaico, às vezes, incoerente de elementos de origens diversas.
Mesmo a exegese acadêmica tradicional e conservadora da Bíblia testemunha que o livro sagrado do
cristianismo foi gerado num processo histórico de nteses integradoras das 12 tribos que formaram
Israel. Jesus reassume essa tradição, em outra síntese integradora com seus 12 discípulos.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo:
ensaios sobre interações culturais no Mediterrâneo Antigo. Itu, SP: Ottoni, 2003.
28
Idéia de paradigmas científicos está pautada no trabalho de Kuhn. A ciência possui paradigmas
estruturantes metodológicos e os mesmos sofrem alterações, constituindo períodos em que as crises
paradigmáticas reordenam e estruturam novos paradigmas científicos. KUHN, Thomas S. A Estrutura
das Revoluções Científicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
35
modelos de estudo, o fenômeno contraditório de dominação e soberania de uma cultura
em relação à outra costuma não ser considerado. O trabalho de Gruzinski
29
, contudo,
aponta que a imposição cultural, através da escrita e das normativas ético-religiosas,
distintas da originária, entre povos indígenas centro-americanos, não eliminou a
capacidade ordenadora da experiência cultural primeira. Ao contrário,
[...] o acesso à escrita e aos escritos, longe de acarretar uma homogeinização
das culturas indígenas, por meio da cristalização, censura e uniformização da
herança, parece ter tido o efeito oposto. A cópia fiel hispanizada aparece
quase como a antítese da abertura de um espaço original e autônomo,
tachado de falsificação, de quimeras e desprezíveis ficções’. [...] A espantosa
plasticidade que manifestam, servindo-se de todas as fontes disponíveis,
multiplicando os empréstimos e inovando, leva a pensar em dois conceitos
cujo uso reiterado acabou por mascarar a complexidade, os processos e os
objetos que eles designam: o sincretismo e a tradição. Quanto ao sincretismo,
nos é dado ver que recobre fenômenos sutis, relativos tanto à modificação
dos conteúdos como à evolução dos modos de expressão, ao sabor de
deslocamentos constantes, falsos retrocessos e avanços caóticos. Em relação
à tradição, percebemos que não se pode ignorar sua diversidade social, seus
suportes concorrentes e complementares (escritos, pintados, orais), seus
caminhos múltiplos, impasses bruscos, retomadas imprevistas e incessante
movimento.
30
No caso do papel dos mitos como fundadores de ordenamento social, uma
tendência à reconstituição plástica das narrativas, para uma adequação à realidade
vivida. Na imposição religiosa, implementada no processo de cristianização das
Américas, os mitos dos seus povos se reordenaram e se refizeram, compondo nova
plataforma mítica de ordenamento dos grupos sociais diversos constitutivos e derivados
no novo ordenamento político e social imposto pela colonização. Marilena Chauí aborda
as memórias constitutivas do discurso sobre o Brasil e propõe o conceito de semióforo,
para explicitação da constituição da identidade Nação brasileira. O mito ordenador,
segundo ela, seria um semióforo.
Um semióforo é, pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa
ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e
imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou de
valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço,
29
Cf. GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário. Sociedades indígenas e ocidentalização no
México espanhol séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
30
GRUZINSKI, 2003, p. 214-215.
36
seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um espaço além de todo
espaço) ou o passado ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou
eternidade), e expostos à visibilidade, pois é nessa exposição que realizam
sua significação e sua existência
31
Na tensão entre o papel do mito como ordenador das relações entre as pessoas
e como referência étnica para ordenamento da estrutura social, o fenômeno histórico
aponta uma nova realidade, nomeada cultura popular. Essa nova realidade tem sido
estabelecida como inferior ao ideal social propagado pelo mito fundador originário do
processo colonizador. Ao identificar motivos dessas práticas etnocêntricas, na América
Latina, e debater em que medida a função do mito contribui ou não no enfrentamento
das violências delas derivadas, o fazer teológico avança na constituição de plataformas
novas, para o debate da sociedade possível, desde a realidade multicultural.
A ocidentalização não pode ser reduzida aos caminhos da cristianização e à
imposição do sistema colonial, pois rege processos mais profundos e mais
determinantes, como a evolução da representação da pessoa e das relações
entre os seres, a transformação dos códigos figurativos e gficos, dos meios
de expressão e de transmissão do saber, a mutação da temporalidade e da
crença e, finalmente, a redefinição do imaginário e do real, no qual os índios
deviam expressar-se e sobreviver, entre a obrigação e o fascínio.
32
A pluralidade cultural produz uma multiplicidade de símbolos e de
representações, que constituem significação e ordenamento sociais, amalgamados ou
não em matrizes diversas, a depender da realidade cultural de onde são oriundos.
Pierre Clastres
33
afirma que as sociedades indígenas deixam de ser tomadas, como de
costume, em abordagens evolucionistas, como passado ou infância das sociedades
modernas, cuja organização política seria mais complexa e, logo, "superior". Se as
últimas optaram por viver sob o jugo de um Estado, as primeiras recusaram-no, em
nome da liberdade. Ou seja, as sociedades indígenas não são simplesmente
sociedades "sem" Estado, e sim "contra" o Estado, na medida em que reconhecem a
possibilidade de emergência de um poder político, que está, segundo a definição da
filosofia política clássica, atrelado ao exercício da coerção, da violência.
31
CHAUÍ, Marilena. Brasil, mito fundador e sociedade autoritária. reimpressão. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 29.
32
GRUZINSKI, 2003, contracapa.
33
CLASTRES, 2003, p. 10s.
37
Uma análise da realidade de interação entre os sujeitos sociais do objeto desta
pesquisa expressa possibilidades e impasses de diálogo entre estas múltiplas
realidades religiosas e suas pretensões sociais. Essa análise considera esses
elementos na constituição da religiosidade, chão da história, matriz contextual, da
Teologia e suas tendências (latino-americanas, de terceiro mundo, negras, libertação,
feminista), reconhecendo o papel das moldagens culturais, afetas ao papel do mito
neste ordenamento social. Segundo Viveiros de Castro
34
, é necessário superar a idéia
de sociedades puras” e aculturadas”, que, por um bom tempo, ordenou a
compreensão do papel da cultura na estruturação social. Para ele, existe uma dinâmica
local e global que atesta uma capacidade de articulação cosmológica e histórica, étnica
e histórica, que fomenta os espaços de afirmação de identidade social.
Neste aspecto, cabe à Teologia explicitar os elementos constitutivos de
analogias entre mitos oriundos de diferentes matrizes culturais e, também, expressar,
através de vivências múltiplas, a plasticidade do mito e sua capacidade criadora de
novos ordenamentos sociais. Seria necessário fugir da literatura comparada, das
liturgias comparadas, que tomam a experiência tica cristã como base/formatação
padrão. Nesse caminho, uma abordagem histórico-teológica sobre a missão indigenista
metodista no Brasil pressupõe duas vontades: saber como os caminhos históricos de
missão metodista inspiram e se recriam nos nossos próprios caminhos; conhecer as
escolhas e teologias que sustentam as iniciativas metodistas. Os modelos missionários
que podem ser estudados no processo de história da ocupação territorial, em terras
hoje chamadas brasileiras, retratam a elaboração de justificativas teológicas para um
programa social centrado no colonizador.
Tão expansionistas quanto os modelos de colonização, as missões traçaram
para si, como destino, a meta de expandir a territorialidade do reino de Deus/imagem e
semelhança de mim. Segundo essa perspectiva, a salvação está na igreja (nas igrejas),
na prática de viver mimeticamente os modelos eclesiásticos propostos, ainda que esses
modelos sejam repetições simbólicas, reconstruídas nas culturas múltiplas que
34
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem: e outros ensaios de
antropologia. São Paulo: Cosac &Naify, 2002, p.339.
38
compõem os movimentos das populações. Paradoxalmente, das aldeias/cidades, em
muitos lugares aldeamentos das ordens católicas, herdamos (num permanente
movimento de transformação) as santidades, a umbanda, a festa do boi (com o amo, a
sinhazinha, rituais indígenas, lendas amazônicas e a aparição de Cunhã-poranga),
inúmeras festas e procissões para santos. Todas as festas/rituais cristãos incorporaram
elementos culturais que se ressignificam a cada movimento da história cotidiana e das
novidades dos projetos de ocupação
35
.
A atuação missiológica cristã fez parte de um modelo de constituição de
sociedade, pautado pela utilização econômica da mão-de-obra indígena. Ocorreu no
abastecimento e manutenção de mão-de-obra dos ciclos econômicos históricos e dos
empreendimentos de extração de diversas constituições tecnológicas. São múltiplos os
exemplos de como as missões constituíram espaços de acomodação o traumática
(nem sempre), a este processo de assimilação aos grandes projetos econômicos.
36
Na fórmula básica que sustenta a expansão do cristianismo de missão, está a
afirmação de que o outro povo/outras pessoas estão infelizes/inferiores, sem o
conhecimento da ‘minha’ religião/estado. Por isso, será necessário libertá-lo dessa
condição. Mais recentemente, alguns grupos têm procurado afirmar que este processo
não é violento, quando se faz desde a própria cultura do povo. Assim, a revelação do
Cristo, por exemplo, se daria numa experiência cultural própria, com nome, corpo e
espiritualidade, provenientes das culturas nativas, mas similares às do cristianismo
ocidental normativo. Procuram-se, com essa fórmula, analogias das culturas com as
afirmações doutrinárias étnico-morais dos grupos em missão.
1.2.2 Conceitos utilizados na Pesquisa
A dificuldade metodológica em recorrer a diferentes aproximações teórico-
epistêmicas está na definição de campo semântico de conceitos básicos a serem
35
Cf. VAINFAS, 2000.
36
Laura Souza estuda as estruturas imaginárias que criam estas situações político-econômicas de
domesticação e apropriação de identidade dos povos indígenas no Brasil no período chamado “Brasil
Colônia” e relata os mecanismos presentes ainda hoje na relações inter-étnicas. SOUZA, Laura de
Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
39
utilizados, como agulha e linha, na costura redacional da pesquisa. Como determinados
conceitos sofrem flutuações, em diferentes áreas do conhecimento, faz-se necessário
nomear e conceituar os termos que desempenham papel fundamental no processo
redacional.
Provavelmente a palavra cultura é a que mais aparece na redação dos capítulos
seguintes. A palavra será utilizada a partir da abordagem conceitual de Roque Laraia
37
,
que considera o conceito na perspectiva da sua constituição histórica e do uso
recorrente nas Ciências Sociais. Além disso, a noção de cultura fundamenta-se em
Carlos Rodrigues Brandão
38
, que trata o conceito na perspectiva da educação popular,
movimento de base que influenciou e influencia o trabalho de pastoral indigenista em
educação. Ambos são antropólogos, envolvidos com movimentos sociais e com a
trajetória de aproximação com trabalho indigenista.
Para Laraia, as teorias modernas sobre cultura orbitam em torno de dois eixos: a
cultura como um sistema adaptativo; e as teorias idealistas de cultura (subdivididas em
três). É mais recorrente, no trabalho indigenista, o uso das chamadas teorias idealistas
de cultura, assim descritas por Laraia:
A primeira delas é a dos que consideram cultura como sistema cognitivo [...]
análise dos modelos construídos pelos membros da comunidade a respeito de
seu próprio universo. A segunda abordagem é aquela que considera cultura
como sistemas estruturais, ou seja, a perspectiva desenvolvida por Claude
Levi-Strauss [...] [A terceira] a que considera cultura como sistemas simbólicos
[...] estudar a cultura é portanto estudar um código de símbolos partilhados
pelos membros desta cultura.
39
Laraia entende que, na Antropologia, as divergências conceituais para a palavra
cultura não eliminam seu caráter complementário; por isto, não são abordagens
excludentes umas das outras, mas são aproximações possíveis, derivadas de
preocupações metodológicas. Assim, assumiremos com Laraia, sustentado em Geertz,
que estudar a cultura seria “[...] estudar um código de símbolos partilhados pelos
37
Cf. LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. 17 ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
38
Cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas-SP: Mercado das Letras,
2002.
39
LARAIA, 2004, p. 59-63.
40
membros desta cultura
40
, e que a cultura molda uma vida “[...] num ser biologicamente
preparado para viver mil vidas”
41
.
Carlos Rodrigues Brandão apresenta o conceito de cultura vinculado à
expressão cultura popular. Essa noção é recorrente em movimentos sociais e
trabalhada pelo autor, na perspectiva da constituição da Educação Popular. O conceito
apresentado por Brandão é de grande importância, pois o trabalho missionário
indigenista, em educação indígena, na vertente perspectiva do indigenismo alternativo,
trabalhado nesta pesquisa, se consolidou a partir das propostas metodológicas da
Educação Popular e insere-se como movimento social de educação popular, em vários
momentos de sua constituição nos últimos anos
42
. O conceito de cultura, proposto por
Brandão, está sob influência metodológica da Educação Popular, onde os conceitos se
constituem na perspectiva de que o conhecimento sobre as coisas se institui no
processo de estar junto, que ocorre entre sujeitos sociais envolvidos neste conhecer:
Ao lado da concepção usual que vê na cultura o produto do trabalho do
homem sobre a natureza e leva mais em conta o produto feito do que o
trabalho – inclusive o trabalho político do fazer – que cria e reproduz a cultura,
agora se concebe uma idéia de cultura subordinando-a às de: trabalho, como
modo humano de ação consciente sobre o mundo; história, como campo de
realização e produto do trabalho do homem; dialética, como a qualidade
constitutiva das relações entre o homem e a natureza dos homens entre si,
através de cujo movimento o ser humano cria a cultura e faz a história.
43
Sob a perspectiva dessa abordagem ao conceito de cultura, se apresenta um
segundo conceito, reincidente no transcorrer desta pesquisa: o de mito. Mito aqui será
abordado palavra que referencia relato de acontecimentos em tempos primordiais,
mediante a intervenção de entes sobrenaturais. É o relato de uma história verdadeira,
ocorrida nos tempos dos princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais,
40
LARAIA, 2004, p.63.
41
LARAIA, 2004, p.66.
42
O trabalho missionário com Educação Indígena como Educação Popular aparece em várias
publicações que reúnem os trabalhos realizados pelas missões indigenistas. Como exemplo de análise
sistematizada, cito o artigo de MELIÁ, Bartolomeu. Educação Indígena e Alfabetização. Novos
Estudos – CEBRAP, n. 38, 1994. Brasília: CEBRAP, 1994.
43
BRANDÃO, 2002, p.38.
41
uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão-somente um
fragmento.
O mito expressa o mundo e a realidade humana, como uma representação
coletiva que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende
explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser
lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos;
presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. O mito não
pode, conseqüentemente, ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de
significação, uma forma. Assim, não se de definir o mito pelo objeto de sua
mensagem, mas pelo modo como a profere
44
.
A palavra mito relaciona-se diretamente com as fontes bíblicas na relação com a
instituição do pensamento teológico. Segundo Bultmann, O sentido do mito não é o de
proporcionar uma concepção objetiva do universo. Ao contrário, nele se expressa como
o ser humano se compreende em seu mundo. O mito não pretende ser interpretado
cosmologicamente, mas antropologicamente melhor; de um modo existencialista”
45
.
A palavra mito comporta a materialização cultural de símbolos ordenadores de
conduta e valores na cultura. Por isso, tem força dinâmica e não deve ser vista como
história narrativa de significação fechada. Nesta pesquisa, o uso do termo se restringe à
aplicação de Marilena Chauí
46
, ou está afeto ao trabalho desenvolvido por Ruthven:
Não temos experiência direta do mito em si, mas somente de determinados
mitos: e estes têm origem obscura, forma profética e significado ambíguo.
Aparentemente, são imunes à explicação racional, mas estimulam as
pesquisas racionais; existe uma grande diversidade de interpretações
contraditórias, e nenhuma delas possui o alcance suficiente para explicar
definitivamente o que é mito.
47
Ruthven realiza um estudo sobre as significações do mito, aplicadas na literatura
inglesa e em sua relação com diversos autores. Relaciona a aplicação do mito na
44
Cf. BARTHES, Roland. Mitologias. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Difel, 1980.
45
BULTMANN, Rudolf. Novo Testamento e a Mitologia. In: ALTMANN, Walter (Ed.). Rudolfo Bultmann:
Crer e Compreender. Artigos Selecionados n.9. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1986. p. 20.
46
Cf. CHAUÍ, 2001.
47
RUTHVEN, Karl K. O mito. São Paulo: Perspectiva, 1997, p.13.
42
perspectiva de relatos de elementos históricos, psicológicos e interpretativos de
diversas realidades, em diferentes situações. Na antropologia, principalmente devido ao
caráter narrativo das tradições orais, nas culturas indígenas, o mito tem sido objeto de
estudo fundamental, principalmente no pensamento estruturalista, que entende o mito
como estruturas arquetípicas mediadoras das contradições da experiência humana.
48
.
Ainda nessa perspectiva, é interessante a proposta de Clifford Geertz, que
motiva um uso mais lato sensu da palavra mito, pois “[...] o fato de que o pensamento é
espetacularmente múltiplo como produto, e maravilhosamente singular como processo,
tornou-se um paradoxo vivo e cada vez mais poderoso [...] Sendo a natureza deste
paradoxo associada aos enigmas da tradução, ou seja, a forma pela qual um
determinado significado de um sistema de expressão é expresso em outro sistema”
49
.
O uso lato sensu da palavra mito é um recurso auxiliar para nomear as formas e
organizações indígenas, que não atendem às formas sociais estipuladas em legislação
normativa, da estrutura social em que vivemos atualmente. Mito é, assim, palavra
utilizada para significar os elementos representativos de uma forma de pensamento e
de experiência vital da cultura dos povos indígenas, e também da sociedade brasileira.
Isso nos remete ao conceito de fundamentalismo.
A palavra fundamentalismo é originária da designação de um movimento cristão
dos Estados Unidos de fins do século XIX, centrado no manuseio da bíblia com fonte
única de verdade sobre a vida, em reação ao crescente secularismo na sociedade
50
. No
entanto, atualmente a expressão tem sido amplamente utilizada para indicar grupos
sociais diversos que se afirmam em torno de verdades absolutistas afirmadas e
norteadoras de pretensão a verdade única de significação da sociedade.
Não é exagero afirmar que o fundamentalismo nasce no contexto da
modernidade, mas negando a própria modernidade. A principal reação se
contra a teoria evolucionista de Darwin, isso em 1925. Como a Bíblia diz que
Deus criou o homem, os fundamentalistas lançaram-se em luta obsessiva
contra a tese darwinista, que afirma que o homem descende do macaco por
48
RUTHVEN, 1997, p. 53-58.
49
GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002,
p.224 – 226.
50
Cf. DREHER, Martin. Para entender fundamentalismo. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
43
seleção natural. Negando a evolução biológica, os fundamentalistas
acabariam por contaminar o próprio nome deixando-o carregado de
negatividade.
51
Assim, no fundamentalismo existe uma escritura divinamente revelada,
constituída, de preferência por um Deus único. Sua estrutura de pensamento é
monoteísta de berço e constituição. Em sua matriz estão pautados dois temas
estruturantes: o apego literal à Bíblia e o monoteísmo. Sua preocupação primeira é com
a verdade única revelada pelo Deus único no Livro sagrado.
No contexto da pastoral indigenista, o fundamentalismo se expressa
basicamente numa prática de solidariedade que visa como resultado a conversão dos
povos indígenas a verdade revelada na bíblia. Esta conversão é visualizada na
concretização de igrejas cristãs nas aldeias e no abandono às práticas e costumes
tradicionais e à gradativa substituição dos mitos tradicionais, ou releitura dos mesmos,
por mitos e narrativas bíblicas. Assim, no presente estudo, a expressão
fundamentalismo e/ou fundamentalista alia-se, não a designação de uma definição
eclesial ou eclesiológica, mas a atitude e desejo conversionista dos povos indígenas.
Uma prática social que deseja a conversão dos povos indígenas ao evangelho
está em muito associada ao desejo de introdução dos povos indígenas à vivência
civilizatória que envolve a idéia de cidadania na história brasileira. Por isto, outro
conceito que precisa ser explicitado aqui é o de Estado-Nação.As estruturas de Estado
moderno, reivindicadas desde a constituição do Estado de direito, são objeto de estudo
das mais diversas abordagens, nas Ciências Humanas em particular. Nesta pesquisa,
faz-se referência ao fenômeno histórico de constituição dos ideários políticos
normatizadores, norteadores das principais legislações que tratam a fraternidade entre
os povos. Assim, entende-se a constituição do Estado, desde o pensamento moderno,
ou seja, no processo histórico de compreensão das pessoas como seres humanizáveis,
sob determinadas ações coletivas. Nesse sentido, considera-se toda e qualquer pessoa
humana, como sujeito de direitos fundamentais, como liberdade, fraternidade e
51
MOREIRA, Deodoro José. Mídia, fundamentalismo e terror: a lógica da barbárie. In: Unirevista. Vol 1,
nº3. Disponível em <
http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_Moreira.pdf, acesso em 20ago08>.
44
igualdade. Já Nação é entendida como a expressão para designar uma coletividade de
pessoas sob égide de processos históricos e culturais comuns, que instituem, em
acordo coletivo, um ideário de vida social (o povo de um Estado). O conceito Estado-
Nação é considerado por Marilena Chaui
52
como auto-regulador. É uma compreensão
importante nesta pesquisa, que visa tratar das possibilidades de direito, no
relacionamento de consistência desigual entre os sujeitos de direitos que constituem a
sociedade brasileira. Isso nos possibilita introduzir outro conceito reincidente na
redação desta pesquisa, que é o de sociedade nacional.
Sociedade nacional é uma expressão recorrente em textos de antropólogos
brasileiros, tendo particularmente significado na obra de Darcy Ribeiro
53
. A aplicação
desse conceito tem sido utilizada no indigenismo, como expressão que diferencia as
populações não indígenas, em relacionamento com povos indígenas. Assim, as
pessoas e instituições sociais que estão em situação de relacionamento com povos
indígenas, em suas realidades concretas, são nomeadas pela expressão genérica
sociedade nacional. Esta expressão deve ser diferenciada de ‘sociedade brasileira’, que
inclui os povos indígenas, quando nomeada. Este binarismo no uso de conceitos como
sociedade nacional e povos indígenas pode não ser de todo adequado, mas é
amplamente utilizado no indigenismo, devido a sua força regulatória e diferenciadora.
Serve como recurso para explicar os conflitos de interesses, entre os representantes de
processos colonizadores e os povos indígenas, geralmente marginais e vitimados,
pelas conseqüências destes processos. Não necessariamente diz respeito a uma
diferença de constituição étnica ou racial, pois isso seria impossível, considerando o
grau de miscigenação constitutivo da tessitura social brasileira.
Entre os indivíduos e instituições que se relacionam de forma conceitual binária,
com povos indígenas, o conceito de indigenismo alternativo, também importante no
transcorrer da narrativa da pesquisa, é utilizado como expressão que nomeia pessoas,
em geral não indígenas, que atuam em favor da realidade e direitos indígenas.
Indigenismo é uma expressão adotada pelos funcionários de campo da Fundação
52
Cf. CHAUÍ, 2001.
53
Cf. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras,
1995.
45
Nacional do Índio (FUNAI), em oposição ao sertanista, que era uso recorrente nos
tempos do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
(SPILN, às vezes simplificado SPI). Solange Pereira Silva
54
apresenta os diferentes
modelos de indigenismo - independente da forma como foram nomeados na história
política brasileira, de formas de contato e de relacionamento com povos indígenas -
para diferenciar do modelo proposto naquilo que é chamado de indigenismo alternativo,
sustentado na perspectiva de convivência respeitosa e no apoio à organização e
autodeterminação dos povos. A constituição histórica do chamado indigenismo
alternativo, no Brasil, situa-se no período de Estado de exceção, mais conhecido por
ditadura militar:
A situação dos indígenas do Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, era de
crescentes casos de violência física e perdas de território, o que resultava em
decréscimo populacional, inclusive pela fome. Desta forma as instituições
empreenderam ações emergenciais para garantir as vidas que estavam sendo
subtraídas e também para que se consolidassem mudanças na estrutura
política para assistência a estes povos.
55
Solange Silva descreve como o indigenismo alternativo possui sua expressão, no
período da ditadura militar, na atuação das missões católicas e de algumas iniciativas
de missões protestantes. A expressão “alternativo” contrapõe-se aos modelos
governamentais de integrar os indígenas à sociedade nacional através, de programas
diversos, sempre agressivos ao modelo de estrutura social dos mesmos e atendendo a
grandes interesses empresariais e econômicos. Essa perspectiva sofreu uma forte
alteração, depois da promulgação da constituição de 1988, pois a postura formal da
iniciativa governamental passou a ser obrigada a mudar as formas e objetivos de
relacionamento com os povos indígenas.
Nesse sentido, é possível definir Pastoral da Convivência, conceito também
reincidente, ao longo da pesquisa. Trata-se da possibilidade de mudar o lugar político,
desde onde acontece o relacionamento com os povos indígenas, com pretensões
54
Cf. SILVA, Solange Pereira da. Indigenismo Alternativo: no compasso da educação intercultural entre
os Kanamari do Médio Juruá-AM. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Mato Grosso,
Cuiabá, MT, 2007.
55
SILVA, 2007, p. 66.
46
diversas ao integracionismo das ações de dominação econômica. A expressão está
presente nos textos teológicos que fundamentam algumas pastorais indigenistas e o
trabalho missionário indigenista metodista. Na presente pesquisa, tem-se como
pressuposto o trabalho realizado por Roberto Zwetsch:
Num primeiro momento é necessário um “silêncio” mediante o qual o
missionário ouve a palavra do outro. [...] Na pastoral da convivência, é este
diálogo que define os rumos de um trabalho junto à comunidade indígena. O
missionário, conscientemente, abre mão de fixar um plano prévio ou não
discutido com a comunidade. Toda a ação missionária é objeto de discussão e
crítica por parte da comunidade. [...] A convivência possibilita um diálogo
frutífero mediante o qual vão surgindo tarefas muito concretas. O serviço
solidário ao povo visa apoiá-lo na sua luta por autonomia, superando a
dependência e exploração. Neste sentido, o apoio à luta pela terra, o cuidado
com a situação de saúde da comunidade, o esforço na organização e às
reivindicações indígenas diante do governo federal, todas estas atividades
complexas e exigentes ganham uma nova dimensão e um novo caráter. Trata-
se agora de garantir a autonomia indígena, luta sem fim no quadro de uma
sociedade desigual, a fim de superar qualquer forma de paternalismo e
assistencialismo. Visa-se assim a autodeterminação do povo indígena.
56
Como é possível perceber, neste exercício de explicitação da prática missionária,
a Pastoral da Convivência implica numa atuação de caráter político. Ela representou, no
período da ditadura militar, uma atuação de alto risco de vida, pois, além das
dificuldades próprias da atuação missionária entre diferentes, na alteridade, a posição
pela autodeterminação enfrentava os interesses locais e nacionais de grande poder
coercitivo.
Nesta origem de caracterização da ação missionária, como ação política, reside
o aspecto de maior aproximação com os demais movimentos sociais, que instituíram as
condições de afirmação do Estado democrático de direito, expressão de nacionalidade
que vivemos nos dias atuais. Essa conquista social de identidade brasileira representa
um desafio muito grande para as próximas décadas, pois ainda não estão constituídas
as ferramentas de superação das desigualdades históricas, que instituíram boa parte
das práticas sociais que constituem as relações sociais no Brasil.
56
ZWETSCH, 1993, p. 410s.
47
Por isso, perguntar-se pela ação missionária, nos tempos de consolidação dos
direitos garantidos na Constituição de 1988, considerando o cenário de crescimento dos
fundamentalismos nas igrejas cristãs como um todo, exige escolhas. Nesse sentido, a
aproximação desta pesquisa não aborda demais conceitos teológicos presentes no
trabalho missionário indigenista, mas somente os explicita, a partir de práticas e
documentos das igrejas.
1.3 O POVO KANAMARI
O povo Kanamari é relativamente conhecido no meio acadêmico. Existem
trabalhos que explicitam sua história social, sua etnografia e a atuação educacional na
região do Juruá, onde são habitantes históricos. Reesink
57
estudou a mitologia dos
kanamari do Jutaí e seu ordenamento grupal. O trabalho de identificação social da
história de contato do grupo kanamari do Juruá com a sociedade nacional é feito por
Neves
58
. Labiak
59
focalizou o ritual entre os Queixada-dyapa do Rio Itucumã, na
margem direita do Juruá. Carvalho
60
estudou a história, o ritual e o xamanismo no Jutaí
e nos afluentes da margem direita do Juruá. Costa
61
estudou história e mitologia entre
os kanamari moradores no Itaquaí, no Vale do Javari, realizado com famílias que se
deslocaram para uma região mais a sudoeste do Estado do Amazonas, fora da região
de ocupação tradicional. Um recente trabalho sobre atuação indigenista, como trabalho
educacional junto aos Kanamari, foi realizado por Solange Silva
62
.
57
Cf. REESINK, Edwin. Imago Mundi Kanamari. Tese (Doutorado).— Programa de Pós-graduação em
Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ — Museu Nacional, 1994.
58
Cf. NEVES, 1996.
59
Cf. Labiak, Araci Maria. “Frutos do Céu” e “Frutos da Terra: Aspectos da Cosmologia Kanamari no
Warapekom. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997.
60
CARVALHO, Maria Rosário Gonçalves de. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, Mitologia,
Ritual e Xamanismo. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2002.
61
COSTA, Antonio Luiz. As faces do Jaguar, parentesco, historia e mitologia entre os kanamari da
Amazônia Ocidental. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2007.
62
Cf. SILVA, 2007.
48
Os membros do grupo Kanamari, pertencentes à família lingüística Katukina, cuja
autodenominação é Tâkâna
63
, se dividem em diversos clãs (Djapas), cada relacionado
a um determinado animal que define a sua origem. As primeiras informações históricas
dos grupos Tâkâna datam do século XVIII, em anotações do padre francês Tastevin. O
religioso encontrou os Kanamari no Juruá desde a sua Foz até o Cruzeiro do Sul (figura
1), no Estado do Acre
64
. Apesar do termo genérico Kanamari, alguns subgrupos
despontam como unidades sociais, que ainda trazem um ideal de autonomia política,
econômica e, em alguns casos, pretendem-se endogâmicos. O sistema de casamento
efetiva-se pela união de primos cruzados. No século XIX, as correrias determinaram a
dispersão dos Kanamari, entre os Rios Juruá, Javari, Japurá, Purus, Itaquai, Xeruã,
Itucumã. A era do extrativismo da seringa e do caucho, que teve como foco a calha Sul
do Amazonas, contribuiu ainda mais com a depopulação deste povo, devido ao grande
índice de doenças trazidas pelos “soldados da borracha”
65
.
Figura 1: da foz do Juruá no Solimões a Cruzeiro do Sul, no Acre.
Fonte: Alterado a partir de http://maps.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=wl
63
A opção por transliteração adotada neste trabalho segue a proposta de Márcio Silva e outros, em
Elementos de Fonologia Kanamari, publicado em forma de folheto pela OPAN (www.opan.org.br) e
também nos Cadernos de Estudos Lingüísticos da UNICAMP, Campinas, v. 16, p. 123-141, 1989.
64
COSTA, Antonio Luiz. As faces do Jaguar, parentesco, historia e mitologia entre os kanamari da
Amazônia Ocidental. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2007, p. 16s.
65
Cf. NEVES, 1996.
49
Na segunda metade do século XX, houve uma tendência crescente nos índices
de nascimento e uma maior distribuição na pirâmide etária. A população Kanamari atual
é aproximadamente 2.000 indivíduos. Entre o povo Kanamari, a agricultura é uma das
características que lhes garante fartura e possibilita várias atividades rituais, onde a
caissuma (bebida feita a partir da macaxeira cozida) é um dos elementos essenciais.
Fartura e animação determinam o estado de ânimo das aldeias. As visitas, que
freqüentemente ocorrem entre aldeias, além de proporcionarem interações de ordem
pessoal, são o momento de reafirmação de alianças sociais e econômicas, fortalecendo
o sentimento étnico.
66
Embora a laboriosa abertura de roçado seja de responsabilidade dos grupos
familiares, o consumo é ritual e coletivo. As atividades de subsistência ocupam todo o
tempo despendido em atividades produtivas. A macaxeira é, para esses grupos, a base
alimentar. A proteína vegetal é assegurada pela grande variedade de cocos da região.
O sistema de reciprocidade norteia as relações socioeconômicas, devendo a pessoa ou
grupo agraciado retribuir com equivalência. Este sistema criou uma nova configuração,
nas relações comerciais com os não-índios. O artesanato de caráter utilitário é
largamente empregado nas tarefas diárias. Podemos encontrar peneiras, cestos,
abanadores para fogo e potes de cerâmica. Palha e fibras vegetais são utilizadas para
confecção de roupas e máscaras rituais, além de tiaras, braçadeiras e outros enfeites,
usados tanto nas festas quando no dia-a-dia. O rapé é um elemento essencial na vida
dos indígenas na região. É usado para enfrentamento da labuta diária e, sobretudo, nas
seções de cura, pelos personagens que são de direito
67
.
No período de 2000 a 2003, os kanamari do Médio Juruá se distribuíam em
aproximadamente 12 aldeias. A maioria delas tinha um número médio de 50 pessoas e
se constituía a partir da relação clânica de casais idosos, cujos filhos casam entre si.
Com o aumento numérico dos membros do clã surgiram novas pequenas aldeias, com
deslocamentos chefiados por nova liderança clânica. É uma solução de natureza
66
MORAES, Silas; SILVA, Solange Pereira. Formação de Educadores Kanamari, uma experiência
indigenista na formação de educadores, Rio Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência indigenista em
escolarização. Relatório de atividades da Missão Metodista entre o povo Kanamari. Mimeo. São Paulo/
Salvador: Igreja Metodista/ CESE, 2000.
67
SILVA, Solange, 2007, p. 57s.
50
política e econômica, pois garante não somente a sustentabilidade do grupo, mas,
também, as forças rituais de celebração da reciprocidade entre aldeias.
A estratégia de domínio do território kanamari está fundada na ocupação
sazonal de regiões disponibilizadoras de alimentos e de outros recursos
naturais necessários para as atividades cotidianas. É comum ter muito bem
definidos os espaços de coleta, pesca e roçado.
68
Hoje os kanamari ocupam terras demarcadas, fruto de alianças entre os
indígenas e a ação indigenista da Operação Amazônia Nativa (OPAN). Em apoio
secundário ao processo de demarcação interagiram também missionários e
missionárias do COMIN e MIMEKA. Este trabalho de demarcação e, posteriormente, de
fiscalização da demarcação encontra-se explicitado em publicação do Projeto Integrado
de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL)
69
. Os
Kanamari habitam a Terra Indígena Mawetek, ao sudeste da cidade de Eirunepé, que
faz fronteira com o Vale do Javari (maior extensão de terra indígena demarcada no
Brasil, onde se supõe que ainda existam povos isolados do contato com a sociedade
nacional); e a Terra Indígena Kanamari do Médio Juruá, ao nordeste da cidade de
Eirunepé, com territorialidade distribuída em três municípios da região.
O grande desafio socioeconômico, enfrentado pelo povo kanamari nos tempos
atuais, diz respeito ao aspecto da relação econômica com a população local do entorno
de suas aldeias. Eles trabalharam nos ciclos da borracha, que geraram a economia da
região nos processos de ocupação territorial, e essa exploração se esgotou, como
produção econômica local e regional. Assim, a relação comercial que se estabelece
entre povos indígenas e sociedade do entorno é de volumetria muito pequena (produtos
agrícolas e artesanais), com pouco escoamento. Este elemento se agrava, com a
ausência de um programa de educação escolar, que atenda às demandas específicas
dos não indígenas por conhecimento da cultura. Um programa desse tipo poderia
auxiliar no estabelecimento de relações econômicas equilibradas e com participação
68
SILVA, Solange, 2007, p. 35.
69
Cf. LIMA, Deborah de Magalhães; PY-DANIEL, Victor. Os levantamento etnoecológicos do PPTAL, a
experiência nas áreas indígenas Kanamari do Médio Juruá e Katukina do Biá. In: GRAMKOW, Márcia
Maria (Org.) Demarcando terras indígenas II: experiências e desafios de um projeto de parceria.
FUNAI/PPTAL/GTZ. Brasília: FUNAI; PPTAL; GTZ, 2002. p. 207-221.
51
efetiva das comunidades indígenas, em projetos de exploração sustentável, prioritárias
nas soluções de produtividade e revitalização econômica para a região
70
.
A atuação indigenista na área de educação, entre os Kanamari, é relatada em
dois instrumentos bem detalhados e disponíveis em duas produções acadêmicas. O
primeiro é o livro A conquista da Escrita
71
, que reúne trabalhos educacionais entre
diversos povos indígenas, apresentados em encontros específicos sofre Educação
Indígena promovidos pela OPAN. No caso da experiência Kanamari, é relatada a
participação dos indigenistas, em encontros de 1982 a 1987, apresentando os esforços
de introdução da alfabetização, as divergências com o trabalho efetivado pelas Missões
Novas Tribos do Brasil, na implementação do bilingüismo conversionista, e as
dificuldades em avançar no processo de implementação de escolas diferenciadas.
Nesse relato, é possível notar a força da influência da Educação popular, como método
de trabalho, focado na alfabetização e matemática, no esforço de introdução da escrita,
associado ao processo de constituição de autonomia política.
Uma vez que, por diversos fatores, não podemos garantir nossa presença
permanente junto ao grupo e, principalmente, por acreditarmos que todo
trabalho indigenista deve ter como objetivo maior a independência dos povos
indígenas, procuramos que nossa presença (e não a atuação no ensino da
matemática) seja inserida num processo global de educação. Nesse sentido,
buscamos que os conhecimentos adquiridos sejam transmitidos não através
dos monitores, para isto preparados, mas que essa transmissão seja um
processo dinâmico, mediante o qual aqueles que sabem, qualquer que seja o
nível de conhecimento, transmitam até por métodos e formas próprias, seus
conhecimentos àqueles que se interessa em aprender. É neste quadro de
educação global que procuramos inserir toda a nossa vivência; não queremos
ser identificados como pessoas que sabem e que vêm trazer algo, mas como
participantes de uma relação de troca de experiências e de conhecimentos em
todos os níveis.
72
70
LIMA, Deborah de Magalhães; PY-DANIEL, Victor. Os levantamento etnoecológicos do PPTAL, a
experiência nas áreas indígenas Kanamari do Médio Juruá e Katukina do Biá. In: GRAMKOW, Márcia
Maria (Org.) Demarcando terras indígenas II: experiências e desafios de um projeto de parceria.
FUNAI/PPTAL/GTZ. Brasília: FUNAI; PPTAL; GTZ, 2002. p. 207-221.
71
Cf. EMIRI, Loretta; MONSERRAT, Ruth (orgs). A Conquista da escrita. Encontros de Educação
Indígena. São Paulo: Iluminuras, 1989.
72
EMIRI; MONSERRAT, 1989, p.116-117.
52
Um segundo relato está apresentado no relatório de trabalho da missão
metodista Kanamari, realizado por Silas Moraes e Solange Pereira da Silva
73
, que
resgata a experiência das narrativas, apresentadas no livro A Conquista da Escrita.
Neste relatório os autores abordam o aspecto estratégico de mobilização em formação
de educadores kanamari, no sentido de oportunizar o direito de constituir seus próprios
professores, nas escolas kanamari, e próprios agentes de saúde, nos programas de
saúde. O período de relato desse material é a década de 1990, quando as garantias de
direitos, estabelecidas na constituição de 1988, começavam a gerar políticas públicas
pelos órgãos responsáveis. Assim, tornava-se fundamental o fortalecimento dessas
comunidades, através de programas de capacitação de novas lideranças indígenas, na
perspectiva de ocuparem os novos espaços que se criariam.
Tentamos explicitar o que chamaremos de motivação primeira: entender e
saber mover-se com segurança na relação com a sociedade envolvente.
Consideramos que esta motivação decorre do fato de que, ao longo dos anos,
foram assimilando alguns hábitos e materiais desta sociedade envolvente,
necessitando dominar seus códigos para ter acesso a estes bens. De um
modo geral, os argumentos dos índios para que assumíssemos o trabalho
escolar, sempre se basearam na necessidade de preparação para a relação
com a sociedade envolvente. [...] Percebemos que a demanda pela educação
escolar passava muito pela conquista da remuneração do professor e da
construção do prédio com parede de tábua e teto de zinco. Ao requisitarem
estas questões não pensavam apenas em garantir funcionamento da escola,
mas também de se estabelecer um parâmetro mais igualitário em relação às
comunidades não-indígenas. Consideramos que nos últimos anos, em vista de
diversos fatores, vai se estabelecendo uma segunda motivação: o
fortalecimento interno do povo, o que cresce junto com a maior valorização do
lugar dos conhecimentos próprios da cultura kanamari no processo escolar.
74
O trabalho de Solange Pereira da Silva
75
analisa, na linha da sistematização do
trabalho junto aos kanamari, na década de 1990, como esses programas de
capacitação fortaleceram os laços entre os kanamari e a sociedade do entorno, e como
73
MORAES, Silas; SILVA, Solange Pereira. Formação de Educadores Kanamari, uma experiência
indigenista na formação de educadores, Rio Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência
indigenista em escolarização. Relatório de atividades da Missão Metodista entre o povo Kanamari.
Mimeo. São Paulo/ Salvador: Igreja Metodista/ CESE, 2000.
74
MORAES, Silas; SILVA, Solange Pereira., 2000, p.28-29..
75
SILVA, Solange Pereira da. Indigenismo Alternativo: no compasso da educação intercultural entre os
Kanamari do Médio Juruá-AM. Dissertação de Mestrado. Cuiabá, MT: Universidade Federal do Mato
Grosso, 2007.
53
constitui oportunidades de superação das diferenças latentes, entre os grupos sociais,
criando condições para a constituição de novo patamar de relacionamento.
No Médio Juruá, torno-se imperativo, portanto, investir na formação de um
número cada vez maior de pessoas indígenas e não indígenas com o intuito
de qualificar as suas ações e obter melhoria das relações estabelecidas no
cotidiano, visando o fortalecimento não da pessoa, mas dos processos
sociais coletivos, especialmente aos ligados à ampliação dos direitos
humanos.
76
Pode-se destacar, nesses relatos de experiências educacionais, junto aos
kanamari, a crítica às dificuldades do Estado, no sentido de assumir políticas públicas
diferenciadas para grupos muito pequenos e fragmentados, em suas constituições
culturais. Ocorre que as políticas públicas tendem à constituição de modelos genéricos
e hegemônicos (em nome da equidade de acesso), que ainda não atendem aos direitos
indígenas declarados. Esses modelos estão em fase experimental e com
regulamentação incipiente. Esse elemento torna-se preocupação central na presente
pesquisa.
1.4 A MISSÃO METODISTA JUNTO AO POVO KANAMARI
ficou explicado o motivo porque deixei de convidar mais auxiliadores da
América do Norte: a decretada liquidação da organização local. Pelo mesmo
motivo tenho procurado menos angariar novos membros. Mais me tenho
esforçado para estender a todos a influência benfazeja do Evangelho posto
em prática sem exceção de pessoa alguma: sem distinção de crenças, de
bolsas, de nacionalidades, de raças e, em socorros para os necessitados,
mesmo sem distinção de caráter moral. [...] Em 1880, quando se achava aqui
no Pará, o Sr. Taylor me disse: ‘One of the best jobs you can do is to get a bad
Catholic to be a good Catholic’.
77
Vale lembrar que se está mais de cem anos da experiência do missionário
metodista Justus Nelson, na região norte brasileira. O trabalho realizado pelos
missionários, na época, como é possível perceber pelo relato acima, tem uma
compreensão da prática do bem, sem distinção de pessoas, como foco do trabalho
76
SILVA, 2007, p.95.
77
NELSON, Justus [1925], In: REILY, Duncan Alexander. Momentos decisivos do Metodismo. São
Paulo: Imprensa Metodista, 1991, p.22-23.
54
evangelístico. Esta prioridade, aparentemente, não teve apoio financeiro da igreja
mantenedora (Metodista do Norte dos Estados Unidos).
A Igreja Metodista do Norte dos Estados Unidos não sustentava seus
missionários com salários. Eles tinham que desempenhar atividades profissionais para
auto-sustento. Recebiam alguma ajuda, no aspecto operacional da missão e um
mandamento missionário originário. No início do século passado, a presença da Igreja
Metodista no Brasil, então organizada e normatizada por deliberações provenientes de
conferências e acordos norte-americanos, centrou-se na região sul-sudeste, com
assistência direta da Igreja Metodista Episcopal, Sul (dos Estados Unidos da América
do Norte).
Essa decisão retardou a presença e o crescimento do metodismo pelo nordeste
e norte
78
. Pode-se ressaltar que isso foi decisivo, para marcar a identidade da Igreja
Metodista brasileira, não somente em termos teológico-eclesiais, mas também quanto
às referências culturais de seus membros e as conseqüentes estratégias de
crescimento eclesiástico, que vão marcar sua história a partir daí, principalmente no que
diz respeito à identidade missionária junto a povos indígenas.
A pesquisa histórica sobre presença, crescimento e características do metodismo
no Brasil tem sua representação principal nas pesquisas e publicações do professor
Duncan Alexander Reily
79
. Atualmente existem dois centros de pesquisa, focados em
estudar, documentar e analisar a história do metodismo brasileiro. Um localiza-se na
Universidade Metodista de Piracicaba, também voltado à produção sobre educação
metodista. Outro, na Universidade Metodista de São Paulo, junto à Faculdade de
Teologia, dedicado aos aspectos teológicos do metodismo.
78
REILY, Duncan Alexander. Momentos decisivos do Metodismo. São Paulo: Imprensa Metodista,
1991.
79
Cf. REILY, Duncan Alexander. Metodismo Brasileiro e Wesleyano. São Paulo: Imprensa Metodista,
1981. REILY, Duncan Alexander. Metodista na Amazonia. SP/SBC: FATEO, 1982. REILY, Duncan
Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, 1984. REILY,
Duncan Alexander. História, Metodismo, Libertação. São Paulo: Editeo, 1990. REILY, Duncan
Alexander. Teologia em perspectiva Wesleyana.o Paulo: Editeo, 2005.
55
A produção acadêmica sobre a atuação missionária da igreja metodista tem tido
contribuições importantes, no estudo da relação entre missão e educação no
metodismo, que serão utilizadas ao longo da pesquisa, como recurso bibliográfico e
documental. Pode-se perceber, pelo esforço documental empreendido até agora, que a
Igreja Metodista brasileira não é indígena e compreende o indígena como “o outro”, a
ser assistido por sua ação social
80
.
Ao contrário de outros países latino-americanos, onde a população indígena é
parte significativa do senso populacional do país, no Brasil, a identidade indígena foi
historicamente relegada à marginalidade conceitual, a ponto de descendentes de
primeira geração negar sua identidade indígena. Isso ocorre, quando esses
descendentes se tornam habitantes de lugares outros, para além da matriz de aldeia, e
têm atividades vinculadas à cultura de ocupação e colonização. Esse elemento de
constituição histórica e social da identidade brasileira está presente na Igreja Metodista
brasileira. Sendo não indígena e composta de representantes dos programas de
ocupação territorial, essa igreja possui crescimento numérico e regionalizado, focado
nas cidades e localidades rurais de migrantes e colonizadores.
Com essa composição, coube à Igreja Metodista responder, pastoralmente, aos
constantes desafios que sua teologia e vivência eclesial lhe provocavam, como igreja
em contexto brasileiro. Na relação com povos indígenas, se, por um lado, ao longo do
último século, alguns metodistas se aliaram aos mais diferentes segmentos da
sociedade, no seu fazer social, outros tantos metodistas se envolveram com missões
entre indígenas de origem norte-americana, com base na ação e pregação
conversionista
81
.Não um exercício de coleta formal que indique quantos metodistas
80
KEMPER, Thomas; SILVA, Jaider Batista (orgs). Repensando a evangelização junto aos povos
indígenas. São Bernardo do Campo, SP: Editeo/ Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 1994.
81
Esses últimos têm a memória de seu trabalho coletada em outros papéis, não nos atos oficiais da
Igreja Metodista. No site http-www.infobrasil.org-agen-por-cat_bra_p.pdf.url, encontram-se um
interessante catálogo de mapeamento mundial de atuação de grupos com esse perfil e de como estão
localizados, nas mais diferentes regiões geográficas e com declarados objetivos conversionistas. Outro
levantamento sobre presença missionária entre povos indígenas, com textos argumentando em defesa
da atuação missionária conversionista entre índios também estão reunidos no livro: LIDÓRIO, Ronaldo
(org). Indígenas do Brasil, avaliando a missão da igreja. Viçosa: Ultimato, 2005.
56
estão envolvidos, ou estiveram envolvidas, nessas missões. Mas, no cotidiano das
igrejas, muitas são as memórias daqueles que escolheram e escolhem esse caminho
82
.
Em diversos documentos oficiais da Igreja Metodista brasileira, que relatam o
envolvimento de metodistas com povos indígenas, até início da década de 1990, as
experiências são remetidas ao envolvimento do Pastor Scilla Franco, em dois aspectos:
(1) criação da missão metodista Kaiwoá, em Dourados, Mato Grosso do Sul, mais
antiga e mais consolidada ainda hoje; (2) surgimento do Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico (GTME), criado em agosto de 1979, resultado da necessidade que
missionários e obreiros de várias igrejas sentiam, no sentido de apoiar, mais
eficazmente, os povos indígenas e colonos com os quais trabalhavam. O GTME institui-
se como grupo de trabalho interdenominacional, propondo-se a repensar o conceito de
missão e evangelização, trocar idéias e experiências e estreitar laços de amizade,
apoiando-se mutuamente
83
. A presença formal da igreja metodista junto, ao GTME,
deu-se até recentemente por designação de representação da Igreja em sua
composição administrativa formal.
Em 1988, o GTME definiu-se por um trabalho específico de apoio e solidariedade
aos povos indígenas. Trata-se, portanto, de uma organização não-governamental,
sediada em Cuiabá MT, mantendo parcerias com as igrejas: Evangélicas de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Metodista, Episcopal Anglicana no Brasil (IEAB)
82
No relatório da Consulta Missionária Metodista Indigenista da Amazônia, em dezembro de 2002, sob
tema Perspectivas de Missão para a Ação Missionária Indigenista nos Campos Missionários da
Amazônia, foram chamados para participar esses metodistas envolvidos em organismos nomeados
como interdenominacionais para participarem. Estiveram presentes: (a) Marica Suziki, missionária da
JOCUM, com apoio financeiro de várias Igrejas Metodistas locais do Rio de Janeiro, junto ao povo
Suruahá, 20 anos; (b) Pastor Cizi, índio macuxi, que se tornou missionário por obra missionária de
uma igreja pentecostal, em sua aldeia, e foi envolvido no metodismo, por ação da missionária
Madalena, que possuía apoio financeiro de sua Igreja Metodista da 406 Norte; (c) Ruthlene (Apurinã) e
Nacoça-Piu (Cinta-Larga), casal metodista, que freqüentavam a Igreja de Cacoal, Rondônia, que se
propunham ao trabalho indigenista metodista; (d) Ulisses, também missionário da JOCUM que atuava
entre os Piraha; (e) Alcinda (Apurinã), mãe de Ruthlene; (d) Dionísio, pastor metodista em Vilhena, que
desenvolve ações de solidariedade com povos indígenas na cidade e região. No encontro, lembrou-se
de muitos outros metodistas que estão atuando com povos indígenas. FIGUEROA, Ana Claudia;
BOEHLER Genilma; SUZUKI, Márcia. Perspectivas de missão para a ão missionária indigenista
nos Campos Missionários da Amazônia. In: Relatório da Consulta Missionária Indigenista do Norte.
Mimeo. Porto Velho, Igreja Metodista nos Campos Missionários, 8 e 9 de dezembro de 2002.
83
FRANCO, Bispo Scilla. Minha Prece, coletânea de textos indígenas e missionários. São Bernardo
do Campo
: Editeo/Imprensa Metodista, 1992.
57
e Presbiterianas Independente e Unida (IPI, IPU). Em vista de objetivos indígenas
comuns, o GTME tem se articulado, ao longo dos anos, com entidades afins, como é o
caso do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da Igreja Católica, Operação
Amazônia Nativa (OPAN) e Instituto Socioambiental (ISA).
Através do GTME, muitos metodistas inseriram-se no trabalho indigenista. Ainda
hoje, é através de seus programas de capacitação que a Igreja Metodista forma
membros para o trabalho indigenista. Entre seus membros, que atuam em diversas
áreas indígenas, o GTME se aliou à caminhada de convivência e solidariedade,
encarnando o Evangelho de Jesus Cristo, através do diálogo e testemunho fraterno. Ao
longo de sua trajetória, o GTME passou a desenvolver atividades nas áreas de
educação indígena, saúde, economia, organização, política, promoção de discussões
sobre as questões indígenas nas escolas e luta pela terra. Nesse período, promoveu,
também, cursos de atualização nas áreas de Teologia e Antropologia, entre outros,
para os agentes indigenistas e representantes das igrejas parceiras. Como fruto desses
trabalhos, alguns projetos da Igreja Metodista brasileira se fortaleceram e são
existentes hoje: Projeto Kaiowá (o pioneiro), Grupo de Solidariedade ao Povo Krenak,
Pastoral Indigenista da 4ª Região, Projeto Tremembé, Projeto Kanamari.
Um ponto de destaque da articulação de metodistas, com apoio do GTME, foi
toda articulação, produção e publicação da
Carta Pastoral sobre as Diretrizes Pastorais
para a Ação Missionária Indigenista. Neste documento, consta uma carta aberta da
Igreja Metodista, por ocasião dos 500 anos do Brasil, fruto de uma reflexão da 41ª
Semana Wesleyana da Faculdade de Teologia, em 1992
84
.
Essa carta aponta as preocupações e ansiedades da Igreja, quanto ao
tratamento dispensado aos indígenas, por parte do governo brasileiro. Outro aspecto é
a avaliação da situação precária em que a maioria dos povos indígenas se encontra,
em termos de sobrevivência, tanto das pessoas quanto das culturas. Esse documento
contém, além de uma reflexão histórica, sugestões para a atuação metodista junto aos
povos indígenas. Apresenta, também, as diretrizes desse trabalho, em termos do direito
84
Cf. KEMPER, Thomas; SILVA, Jaider Batista (orgs). Repensando a evangelização junto aos povos
indígenas. São Bernardo do Campo, SP: Editeo/ Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 1994.
58
dos povos indígenas à terra, à cultura, à autodeterminação e à convivência fraterna e
respeitosa da Igreja e da sociedade, em relação a eles. Há uma igualdade básica, entre
os seres humanos, e uma capacidade comum a todos de produção de cultura.
Existem, no entanto, diferenças entre as culturas. A tendência universal parece ser a de
cada povo apreciar as outras culturas, em comparação com a sua própria.
Nos últimos relatos de jornais e periódicos da Igreja Metodista brasileira, nas
regiões eclesiásticas e, até, em publicações da sede nacional, percebe-se uma
tendência a reconhecer a presença de indivíduos metodistas em trabalhos diversos,
entre povos indígenas, como missão indígena “metodista”
85
. Na teologia metodista,
Reino de Deus é uma expressão utilizada para apoiar sua prática missionária. Guardiã
de sagrados jeitos de desejar o bem, uns aos outros, Reino de Deus tem sido uma
expressão que marca a redação das bases dos documentos que orientam as práticas
eclesiais metodistas, desde o Plano para Vida e Missão da Igreja (PVMI) e os Planos
Trienais e Quadrienais, conciliares, desde então
86
.
Nesse jogo de expressões que existem e ajudam a externalizar desejos e
sonhos, Vida Digna é atual e urgente. Por trás dessas palavras, esa vontade de que
sejam garantidas, a todas as pessoas, as coisas consideradas básicas para a vida:
comida, saúde, lazer, educação, trabalho, etc. No entanto, a vida plena, digna, tem
outra dimensão, que é a garantia de um bom relacionamento entre as pessoas, entre a
instituição e as pessoas, entre as pessoas e a instituição. Ou seja, a intenção de que
haja um consenso ético que oriente a vida de todas as pessoas. Este consenso ético,
não deve ser entendido como supressão dos conflitos e como hierarquização das
diferenças culturais, de valores distintos e das demandas sociais diversas. Essa busca
de um patamar comum apresenta o desafio de identificação de relações assimétricas e
85
Cf. FIGUEROA, Ana Claudia. Metodismo e indigenismo no Brasil. In: Caminhando, Revista da
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista (John Wesley, 300 anos), v. 8, n.12, 2
o
semestre de
2003. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003, p. 2101-211.
86
Estes aspectos são estudados por GARIN, Norberto da Cunha. O pensamento teológico de Isac
Alberto Rodrigues Aço na perspectiva de Reino de Deus e Missão: uma contribuição para a
reflexão teológica e a prática pastoral da Igreja Metodista. Tese (Doutorado). Programa de Pós-
Graduação em Teologia. São Leopoldo: EST/IEPG, 2007; SILVA, Luiz Eduardo Prates da. Metodismo
e Educação: Uma introdução ao estudo das "Diretrizes para a Educação na Igreja Metodista" a partir
dos contextos de sua elaboração. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Teologia. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004.
59
de mecanismos de exercício de poder compartilhado, sem hierarquização do mesmo.
Uma contribuição teológica para missões indigenistas, nos dias atuais, deve repensar
os princípios de identidade dos trabalhos missionários entre povos indígenas, que se
tem norteado no termo Pastoral de Convivência. Assim, ações solidárias, estar junto,
encarnar/inculturar, são termos quase sinônimos, inspirados em princípios bíblicos que
falam do amor cristão, da justiça e das experiências de libertação de situações de
opressão
87
.
Na maioria das vezes, nós cristãos/ãs nos vestimos desses princípios e nos
colocamos como referência para análise, compreensão e juízo de outros grupos de
ações e/ou pessoas . Dizemo-nos então: [...] o meu trabalho é o correto, minha atitude
e pensamento são soluções mais adequadas para as mais diversas situações vividas”.
Estamos sendo etno/ético cêntricos. Não conseguimos superar a difícil tarefa de não
colocarmo-nos como referência absoluta, tendendo a extinguir os diferentes. Os
princípios teológicos que nos orientam com pretensão de sólidas bases, cristalizadas no
espaço da a-temporalidade, não nos permitem perceber a riqueza da dinâmica do
cotidiano, no relacionamento com “o outro”, diferente radicalmente de mim.
Conseqüentemente, ao utilizarmos velhos modelos de missiologia, já não encontramos
lugar numa sociedade brasileira marcada pela garantia dos direitos à diferencialidade,
da implementação de políticas públicas de proteção da multiculturalidade. Vivemos,
neste, sentido, tempos de ânimo e tempos de desmanche, que se revezam
cotidianamente, nos instigando a uma permanente mudança de perspectivas de
pastoral.
O interesse está voltado para aquela área de atuação e reflexão onde a
cristandade se depara com outras comunhões religiosas, respectivamente,
onde ocorre o encontro entre o cristianismo e outras religiões. Neste encontro
forma-se uma nova compreensão de fé e igreja; assim o diálogo sempre
conduz de volta para a missão por meio da formação de identidade.
88
Sendo assim, permanece uma tarefa teológica, que é a constituição de relato
histórico-teológico das experiências missionárias, pressupostas no documento
87
ZWETSCH, 1993, p. 28s.
88
LIENEMANN-PERRIN, Christine. Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: Sinodal, Escola
Superior de Teologia, CEBI, 2005, p. 11.
60
orientador de sua prática: “A Igreja Metodista entende que: [...] a sociedade é um todo
social, sujeito permanentemente à influência de fatores que o modificam, que o
pressionam impondo mudanças profundas no comportamento humano”.
89
Nesta pesquisa, a pretensão é analisar este caráter relacional da prática
missionária metodista, com relação às políticas públicas em educação indígena no
Brasil, tendo como ponto de partida uma experiência, com temporalidade definida, de
missão junto ao povo Kanamari. À parte a contradição eclesiológica, anunciada acima,
de dificuldade de incorporação formal do trabalho missionário indigenista, nas
estruturas eclesiásticas existentes, interessa, introdutoriamente, uma compreensão da
presença metodista, junto ao povo kanamari.
A Missão Metodista junto ao Povo Kanamari (MIMEKA) teve seu início em 1993.
Silas Moraes e Marcos Wesley estavam em fase de conclusão do Curso de Preparação
para o Indigenismo (uma aliança do GTME e OPAN, na época) e realizaram, em
Eirunepé AM, o trabalho de estágio para conclusão da formação. Não havia estrutura
nem recursos para iniciar um trabalho missionário, mas a parceria com a Operação
Amazônia Nativa (OPAN), possibilitou a inserção dos missionários. Naquela ocasião, a
missão utilizava e dividia os custos do uso e da conservação de: casa, telefone, barcos
e motores, além de usufruir do espaço físico e político, conquistado pela OPAN na
região.
A Missão Metodista junto aos Kanamari (MIMEKA) tem colaborado, também,
com o povo Kulina, através da realização de cursos, seminários e encontros, comuns
aos dois povos. As ações foram direcionadas, desde o início, por um cunho político-
pedagógico, priorizando os trabalhos na escolarização. No ano 2000, a Secretaria de
Educação do Estado do Amazonas (SEDUC-AM) assumiu a formação de professores
indígenas, que haviam tido formação inicial com a MIMEKA. Movimento similar foi feito
na área de saúde, na implementação dos Distritos Sanitários de Saúde Indígena, que
incorporaram, como agentes de saúde, indígenas que vinham participando do curso de
89
Cânones da Igreja Metodista. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1998, p.37.
61
formação de professores, desenvolvido pela MIMEKA e OPAN, nas décadas de 1980 e
1990.
A MIMEKA tem colaborado, desde 1997, com a elaboração de projetos para
captação de recursos e execução de programas, comuns aos dois povos e às duas
entidades. É o caso, por exemplo, do Projeto de Proteção às Terras Indígenas e de
outro, em implementação no momento, com financiamento do Programa Demonstrativo
para Povos Indígenas (PDPI) ambos viabilizados por recursos públicos federais e
requerendo formação indígena, para autonomia na gestão de projetos financeiros e
execução dos programas.
O trabalho da missão metodista entre o povo Kanamari era o de ensinar os
caminhos do conhecimento não-indígena e as possibilidades de seu aprendizado, para
qualificar as relações interétnicas. O acompanhamento pedagógico ocorria nas aldeias,
visando a facilitar o aprendizado nas incipientes escolas, nascidas oficialmente a partir
do início do assalariamento dos professores indígenas, em 2000. Foi o
acompanhamento ao processo de formação de professores Kanamari de iniciativa do
Estado, e as inquietações da experiência de implementação do mesmo, no médio
Juruá, no entanto, que levaram ao desejo de aprofundar a investigação sobre a
experiência kanamari, de criação de uma escola indígena, considerando a maneira
como compreendem sua existência, em particular as constituições declaratórias de
identidade social .
Na teologia cristã, por fidelidade à tradição judaica, a origem de todas as coisas
está na matriz mítica criacionista, situada na região mesopotâmica e palestina. É o
relato bíblico do gênesis, que ordena a compreensão de muitas pessoas sobre a origem
da vida e o destino do humano. O desejo de realizar uma trajetória a entre auto-reflexão
de identidade cristã e compreensão de experiência missionária, entre o povo Kanamari,
impulsionou os estudos desta pesquisa. Esses estudos têm se caracterizado pela
perspectiva da tarefa da Teologia na vida social, a partir da experiência de identidade
da missão como tarefa educacional.
62
A Religião, como outras tantas expressões de vivência social, organiza a
compreensão do humano e suas relações. Nesse sentido, faz parte de um amplo
repertório desde onde a Teologia se expressa.
90
A Teologia, aqui, está entendida como
o exercício de sistematizar discursos sobre a experiência, a expressão, a definição, a
interlocução e outras categorias, referentes à relação do humano com o sagrado. A
ação educativa, como enfoque da ação missionária, torna-se espaço demonstrativo da
expressão teológica, desde onde o caráter organizativo da religião se expressa. É
nesse caminho de escolhas conceituais entre a natureza histórica e a reflexão sobre os
compromissos teológicos do metodismo que nasce o enfoque do objeto da pesquisa.
Devido ao caráter incipiente de pesquisa organizada sobre a missão indigenista
metodista brasileira, experiência pastoral amadurecida ao longo de 30 anos de
organização eclesiástica e ecumênica, a experiência metodista carece de estudo
sistêmico, adequadamente referendado. As produções teóricas existentes estão
resumidas em documentos eclesiais, pequenos artigos narrativos e alguma literatura de
estudo da comunidade metodista. Nesse sentido, um enfoque histórico-teológico tem
uma contribuição importante, na compreensão da missão indigenista metodista, para
além da sua própria idiossincrasia, mas projetando-se como ensaio de ação missionária
cristã, no contexto sócio-político hegemônico, em relacionamento com grupos étnico e
religiosamente minoritários e em desigualdade de direitos.
90
Para Libânio, “O binômio ‘Teologia e Religião’ só se torna inteligível, ao ser estudado na sua autonomia
específica e na articulação mútua. [...] Sem especificar de antemão que é Deus, a Teologia reflete
sobre toda realidade que se diz referida a Deus. [...] Na relação com o divino, a dimensão subjetiva
do ser humano, sua disposição, sua abertura, sua afinidade com esta realidade transcendente.
Chamamos de religiosidade.” LIBÂNIO, João Batista. Religião e Teologia da Libertação. In: SUSIN,
Luiz Carlos (org.). Sarça Ardente, teologia na América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas,
2000.
2 EDUCAÇÃO INDÍGENA E ESCOLA KANAMARI
Porque parece que será grande inconveniente os gemtios que se tornaram
christãos morarem na povoação dos outros e andarem mesturados com elles
e que será muito serviço de Deus e meu apartarem nos de sua conversação
vos encomendo e mando que trabalheis muyto por dar ordem como os que
forem christãos morem juntos perto das povoações das ditas capitanias pêra
que conversem com os christãos e não com os gentios e posam ser
doutrinados e ensinados nas cousas de nosa santa fee e aos menios porque
nelles enprimiram melhor a doutrina trabalhareis por dar ordem como se facão
christãos e que sejão insinados e tirados da conversação dos gentios e aos
capitães das outras capitanias direis de minha parte que lhe guardecereis
muyto ter cada hum cuidade de asy o fazer em sua capitania e os meninos
estarão na povoação dos portugueses e em seu ensino folguaria de se ter a
maneira que vos dixe. (seleção do Regimento de Tomé de Souza, de 15 de
dezembro de 1548)
91
A Educação Indígena no Brasil é um tema amplo o suficiente, para exigir, neste
início, uma definição de foco e delimitação de percurso. Primeiramente, apresento uma
breve abordagem quanto ao processo formal legislativo e alguns cenários de sua
aplicação e interpretação, tendo como perspectiva a mudança de enfoque quanto à
identidade dos povos indígenas, no contexto da história de ocupação colonizadora do
território brasileiro. Ainda na perspectiva geral da Educação Indígena
92
, é importante
apresentar de que forma as missões religiosas estão relacionadas aos processos
91
Trecho retirado da coletânea organizada como anexo do livro: THOMAS, Georg. Política Indigenista
dos Portugueses no Brasil 1500-1640. São Paulo: Loyola, 1981.
92
Educação indígena refere-se aos esforços de instituições sociais externas às comunidades indígenas
que desenvolvem programas de escolarização (em diferentes modelos) entre as comunidades
indígenas. É recente a idéia de uma Educação, no sentido de escolarização, que possa ser constituída
como autônoma, desde a liderança das próprias comunidades indígenas.
64
formais de constituição da sociedade nacional
93
. Um segundo momento, nesse capítulo,
propõe apresentar a escolarização kanamari no contexto da implementação das
políticas educacionais no Estado do Amazonas, entre os anos 1998 e 2003. Também
nessa abordagem será necessário apresentar a relação entre as missões religiosas e o
povo Kanamari, retratando, com mais relevo, o trabalho metodista no próximo capítulo.
2.1 POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO INDÍGENA
94
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e
eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm, nem entendem crença
alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os degredados que aqui hão
de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles,
segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na
nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente
esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se facilmente neles
qualquer cunho que lhe quiserem dar. (Pero Vaz de Caminha, Carta ao rei D.
Manuel sobre o achamento do Brasil, de 1500)
95
.
93
A expressão sociedade nacional está associada, inicialmente, ao processo da Revolução Francesa,
quando se pretendia instaurar um Estado da razão, ajustado no consenso racional, uma sociedade
constituída de instituições associadas no princípio da razão absoluta. A expressão aparece no relatório
de Condocert, de 1789, que pedia a prioridade para o estudo das ciências, em detrimento do estudo
das letras, sobretudo das línguas antigas, que ele considerava “mais nocivas do que úteis”. O relatório
defendia que o estudo, mesmo elementar, das ciências, era [...] o meio mais seguro de desenvolver
as faculdades intelectuais, de aprender a raciocinar certo, de analisar bem as ideias”. Concluía,
propondo “[...] a criação de escolas primárias, secundárias, de institutos, de liceus e de uma sociedade
nacional das ciências e das artes”. BOTO, Carlota. Na Revolução Francesa, os princípios
democráticos da escola blica, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 24, n. 84, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-73302003000300002&lng=in&nrm=iso>. Acesso em: 02/04/2007. Este trabalho
sustenta o uso corrente da expressão entre indigenistas, geralmente associado ao recorrente uso, na
obra de Darcy Ribeiro, associado à idéia de que existe uma sociedade brasileira, oriunda da mescla de
várias etnias, que ele nomeia sociedade nacional, à qual grupos excluídos, como os povos indígenas
precisam ainda ser associados de forma justa e democrática. Cf. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a
civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970.
94
Não é pretensão, aqui, abordar elementos históricos da instituição legislativa sobre povos indígenas.
Sugiro leitura do artigo de Ieda Marques de Carvalho, Diversidade étnica e educação indígena:
políticas públicas no Brasil, que apresenta uma aproximação histórico-cronológica da legislação
brasileira na perspectiva de educação indígena. CARVALHO, Ieda Marques. Diversidade étnica e
educação indígena: políticas públicas no Brasil. In: INTERAÇÕES, Revista Internacional de
Desenvolvimento Local. v. 4, n. 6, mar. 2003, p. 12-27.
95
Esta versão da carta de Pero Vaz de Caminha, em linguagem moderna, é retirada de uma publicação
de 1963. A Carta de Nascimento do Brasil, escrita ao rei Dom Manuel, é datada de de maio de
1500. Essa carta, considerada o mais importante documento relativo ao descobrimento do Brasil, ficou
guardada nos arquivos da Torre do Tombo, por mais de três séculos, sendo divulgada, pela primeira
65
Os originários moradores do novo mundo, colonizados por iniciativas diversas
dos povos europeus, sofreram um violento processo de depopulação, expropriação e
perda de domínios ancestrais. Surpreendentemente, todo processo de ocupação foi
contraditório aos debates e consensos teóricos, que protegiam os interesses indígenas,
sustentados na premissa do direito natural dos índios
96
. As ações de colonização,
preconizadas pela autorização do comércio de escravos e de uso da mão-de-obra
indígena, no trabalho escravo, marcaram, em muito, a política indigenista, no período
de ocupação territorial. Thomas, ao analisar a legislação indigenista e outras
documentações, entre 1500 e 1640, aponta como a idéia de resgate para o cristianismo
e de guerra justa e escravidão foram formas importantes de sujeição dos indígenas. O
autor, inclusive, analisou as alianças com os jesuítas, em projetos diversos de
amansamento e redução dos indígenas
97
.
Depois da reforma pombalina, no século XVIII, foi elaborada uma legislação
indigenista para o Brasil, com pretenes de acabar com o poder dos jesuítas. Trata-se
de um sistema de controle especial, destinado a integrar a população indígena à
vez, em 1817, no livro Corografia Brasileira. CASAL, Aires do. Corografia Brasileira São Paulo:
Dominus. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2006.
96
Por vários séculos, Espanha e Portugal tinham que apoiar seus projetos colonizados, em teorias
justificadoras da colonização. A idéia de um “estado de natureza” apoiada no pensamento teológico,
com base na influência Aristotélica e no pensamento moderno cunhada por Hobbes. Entre as várias
nuances debatidas ao longo de vários séculos, prevaleceu, nos debates na Europa, o manuseio dos
jesuítas em favor da autonomia e direito de posse de terras dos povos originários. Indico a leitura do
trabalho de BUENO, Eduardo. Brasil: uma História, A incrível saga de um país. São Paulo: Ática,
2003.
97
Georg Thomas analisa as principais estratégias políticas, envolvendo a criação de documentos
normativos e orientadores da ação colonizadora, ressaltando seus aspectos contraditórios: “As
medidas legislativas da Coroa Portuguesa em favor da liberdade dos índios brasileiros parecem
insuficientes e indecisas. A coroa portuguesa mostrou-se muito prudente em face das exigências dos
colonos brasileiros em favor do trabalho escravo índio e até esteve disposta a tolerar abusos públicos
que aconteciam na colônia. [...] Uma das medidas mais significativas da política indigenista portuguesa
no Brasil foi , pelo contrário, a instituição das aldeias, com a qual a Coroa perseguiu três finalidades,
quer dizer, a conversão dos índios, a segurança da terra contra os ataques dos corsários ingleses e
franceses e a disponibilidade de mão-de-obra para as plantações dos colonos brancos [...] Um dos
assuntos mais importantes da legislação indigenista era a regulamentação dos métodos mediante os
quais os indígenas poderiam ser recrutados para o trabalho. Como a Coroa foi proibindo
progressivamente a escravização de índios, procurou-se colocar à disposição, como o-de-obra, os
habitantes livres das aldeias. A Coroa deu aos colonizadores brasileiros o direito de empregarem
índios das aldeias para o trabalho nas suas plantações, durante um período de, no máximo, três
meses”. THOMAS, Georg. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil 1500-1640. São Paulo:
Loyola, 1981, p. 215-216.
66
corrente da produção colonial
98
, visando a outro modelo de projeto desenvolvimentista.
Começou a ser instituída, no Brasil, uma postura formal, que justificou as restrições de
ocupação da terra e a exploração de mão-de-obra dos indígenas
99
. Ao longo do
processo de colonização, ocupação territorial e constituição de uma identidade da
sociedade que costumamos chamar nacional, algumas categorias se constituíram, para
catalogar os povos indígenas e traçar propostas educacionais civilizatórias. Um bom
exemplo de categoria classificatória é a expressão ‘índio bravo, em oposição à ‘índio
manso’, reincidente nas falas testemunhais dos próprios indígenas e presente entre
povos de todo território nacional
100
.
Nos séculos XVI a XVIII, a colonização no Brasil foi predominantemente
agressiva, em relação à presença indígena, nos territórios ocupados. A população
indígena representava um problema a ser resolvido, no anseio da ocupação espoliativa,
que predominou nas intenções colonizadoras. O discurso de pacificação e integração
98
Na questão indígena, o principal instrumento de consolidação da Reforma Pombalina foi uma legislação
chamada de Diretório dos Índios. “O Diretório consistiu em um instrumento legal de pretensões
grandiosas, dentre as quais, a inserção do índio nos costumes ocidentais, de modo definitivo e inédito,
uma vez que desconsiderava a condução religiosa, entendendo ser possível a civilização dos
indígenas seguindo-se um programa fundamentalmente laico. O naturalista desenvolve uma reflexão
condenando a execução do referido plano de civilização do indígena, diante da ação perniciosa dos
elementos portugueses que dificultam a aculturação dos povos nativos à medida que não lhes incutem
o amor ao trabalho como se pode inferir da citação em destaque. O Diretório dos Índios resumia a
legislação aplicada primeiramente à Amazônia, visando a normatizar a relação entre o europeu e o
ameríndio. Tratou-se, principalmente, de fundá-la sob a égide do Estado, retirando ao fator missionário
qualquer autoridade sobre os índios. Distanciava-se, assim, dos digos legais anteriores, que
delegavam aos religiosos a organização e administração das povoações indígenas e a
responsabilidade por inseri-los no âmbito da civilização. [...] Quanto à questão religiosa, através do
Diretório retirava-se dos missionários, sobretudo jesuítas, o controle sobre os povos indígenas,
eliminando sua base de poder na região. Os missionários, dominando extensas áreas ao largo dos rios
da Amazônia, acabavam por deter um monopólio virtual sobre a mão-de-obra indígena, que poderia
ser utilizado na sua luta contra o consulado pombalino”.
COELHO, Mauro Cezar. A Civilização da
Amazônia Alexandre Rodrigues Ferreira e o Diretório dos Índios: a educação de indígenas
e luso-brasileiros pela ótica do trabalho. In: Revista de História Regional, vol 5, n 2, 2000
, p.
1.
99
Francisco Moonen aborda essa questão, apresentando um quadro geral sobre as pressões e posições
de Marquês de Pombal, na questão indígena. Cf. MOONEN, Francisco. Pindorama conquistada.
Repensando a questão indígena no Brasil. Jõao Pessoa: Alternativa, 1983.
100
Darcy Ribeiro, exemplifica como nomenclaturas diferentes foram utilizadas, para referenciar o
indígena amansado, no processo de constituição e ocupação do território nacional. Cf. RIBEIRO, 1995.
67
dos indígenas à cristandade colonizadora era uma intenção da iniciativa de ordens
religiosas, visíveis e passíveis de estudo ampliado.
101
No período monarquista, sob influência da reforma pombalina, iniciou-se um
processo de construir bases de políticas nacionais, que lidassem com a presença
indígena em território brasileiro, ainda em fase de definição
102
. No Estado do
Amazonas, a segunda metade do século XIX e o início do século XX representaram um
período de muita expansão territorial, motivada pelo interesse na borracha. Os ciclos de
extrativismo da borracha são extremamente importantes, para compreender o processo
de contato com diversas populações indígenas, até então isoladas. A própria história do
povo Kanamari está emaranhada com o ciclo extrativista e as conseqüências
posteriores para a economia local
103
.
O desafio em abordar uma temática como Políticas Públicas em Educação
Indígena está inserido no contexto da questão da identidade indígena. Nos cenários da
memória histórica disponível, é necessário situar o que representam, efetivamente, as
políticas blicas dos tempos atuais. Independente dos modelos de dominação,
aplicados ao longo da constituição do atual Estado-Nação Brasil, os indígenas foram
nomeados como pessoas humanas, que deveriam ser convidadas ao serviço da coroa,
à civilidade, à cidadania. Para Oliveira
104
, por um longo período de colonização, a
pretensão de integração social e econômica das populações indígenas oscilava entre
101
Ronaldo Vainfas, historiador, reúne farto material documental, que pode exemplificar esta abordagem,
em seu livro; Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial.
São Paulo: Cia das Letras, 1995. Também Eduardo Bueno retrata, de forma resumida, a presença e
desenvolvimento do trabalho missionário jesuítico e de outras ordens religiosas, no processo de
colonização do Brasil, antes do século XVIII. São literaturas de amplo acesso, que abordam diferentes
características, que influenciaram e instituíram o campo do papel da religião, na constituição de
identidade nacional, e as pretensões de incorporação das sociedades indígenas, nesse processo. Cf.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma História, A incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2003.
102
Alcida Rita Ramos realiza um trabalho de desconstrução dos interesses constitutivos da
territorialidade brasileira na virada do século XIX e XX. Cf. RAMOS, Alcida Rita. O pluralismo brasileiro
na berlinda. Série Antropologia 353, Brasília: ICS/UnB, 2004. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/ Serie353empdf.pdf>. Acesso em: 20/04/2006.
103
A dissertação de mestrado de Lino de Oliveira Neves é dedicada exclusivamente a desvelar os
elementos de contato, ocupação, dominação dos kanamari, no processo de ocupação da região do
Médio Juruá. Cf. NEVES, 1996.
104
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. Rio de Janeiro: Mana, v. 4, n. 1, 1998. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003&lng=pt&nrm
=iso>. Acesso em: 11 dez. 2005.
68
amansamento, para melhor expropriação das riquezas, e integração aos projetos de
constituição do Estado Nacional. Nas estratégias que visavam à consolidação de um
Estado Nacional, o indígena deveria ser civilizado e incluído no sistema de produção,
apesar de que, efetivamente, a extinção de grupos étnicos inteiros tenha sido o mais
recorrente produto histórico. Essa postura civilizatória somente sofreu alteração no
contexto da Constituinte de 1988, que produziu a atual Constituição Brasileira, com a
influência de várias organizações indígenas
105
. Nesse processo, foi instituído o direito
das comunidades indígenas vivenciarem sua cultura, com autonomia e sem
incorporação ao modelo cultural nacional.
Segundo estudo de Alcida Ramos, intitulado “O pluralismo brasileiro na Berlinda”,
a presença dos povos indígenas, no processo de expansão do domínio territorial do
Brasil, principalmente entre os séculos XVII e XIX, oscila entre duas idéias: (1) somar
para reinar – o uso contínuo como mão-de-obra escravizada, em diversos processos de
incursão pelas florestas; (2) subtrair para conquistar negação da existência de
população indígena em “matas desertas”, “região inhabitada”, posteriormente
“populações extintas por mestiçagem”. Os interesses do processo expansionista
territorial brasileiro forjaram diversas e convenientes identidades, atribuídas às
populações indígenas. Para Alcida Ramos,
105
“Vários grupos indígenas vêm se apropriando de formas de representação típicas da nossa sociedade
de modo a buscar novas maneiras de inserção no cenário político nacional. Nessas organizações, os
índios realizam assembléias, votam em diretorias, registram seus estatutos em cartórios e abrem
contas bancárias próprias. O surgimento e desenvolvimento das organizações têm promovido ainda o
surgimento de líderes e novas formas de aliança. Tais organizações mantêm entre si múltiplas
diferenças, seja em termos de mandato, de abrangência de sua atuação ou do espectro de suas
alianças. organizações indígenas vinculadas a uma aldeia; outras reúnem vários povos
localizados ao longo de um determinado rio; há, ainda, casos de organizações com pretensões de
representação política no plano interlocal e regional. Na sua grande maioria, as organizações
indígenas são de caráter étnico de base local (por aldeia ou comunidade), ou interlocal (grupo de
aldeias ou comunidades). Existem também algumas organizações regionais. [...] De modo geral, as
organizações indígenas têm uma tendência volátil, ilustrativa das dificuldades dos índios construírem
formas estáveis de representação com uma base tão diversa e dispersa. No Brasil, a diversidade
demográfica, lingüística e espacial entre os índios faz com que a questão da representação política
dos interesses indígenas seja algo bastante peculiar, se comparada, por exemplo, à situação na
Bolívia (onde 57% da população nacional é indígena), no Peru (40%) ou no Equador (30%). Aqui, a
política propriamente indígena, autônoma e permanente, é uma realidade fundamentalmente local (de
cada aldeia, comunidade ou família), faccional (no caso, por exemplo, de aldeias onde a organização
social esbaseada em metades rituais à cada qual corresponde um chefe) e descentralizada (sem o
reconhecimento de um centro de poder).” SOCIOAMBIENTAL. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/pib/portugues/org/sobreorg.shtm
>. Acesso em: 20 mar. 2007.
69
[...] a versão brasileira do mito das três raças [...] foi criada para acomodar as
legítimas diferenças raciais e étnicas do tipo multiculturalismo. O que os
bricoleurs desses mitos queriam era instilar o vigor genético dos brancos
sobrepujando, assim, as outras duas ‘raças’ num processo de mestiçagem
que todos conhecemos como branqueamento. As três raças eram apenas
ingredientes de uma nova receita de homogeneidade nacional que, se não era
exatamente racial, era, no mínimo, cultural e ideológica
106
.
Essa crítica é reincidente, nos dias atuais, pois, desde o início do século XX, no
período em que germinou, no imaginário nacional, a idéia de uma identidade nacional,
marcada pela existência de um brasileiro fraterno e etnicamente mestiço
107
, o Estado
brasileiro se dedicou a criar instituições formais, para absorver as populações
originárias, ainda existentes no território nacional. Havia uma expectativa de que a
absorção das populações indígenas culminaria na completa extinção das mesmas
108
.
Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais
,
mais conhecido pela sigla SPILN ou, em forma simplificada,
SPI
109
. Esse serviço tinha por foco principal, em sua missão, assimilar os povos
106
RAMOS, 2004, p. 7.
107
Cito, como exemplo da idéia hegemônica da mestiçagem harmoniosa, um trecho de Casa Grande e
Senzala, de Gilberto Freyre: “Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a
que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase
reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos
povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa,
da do conquistador com a do conquistado. Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com
a mulher indígena, recém-batizada, por esposa e mãe de família; e servindo-se em sua economia e
vida doméstica de muitas tradições, experiência e utensílios da gente autóctone.” FREYRE, Gilberto.
Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28 ed.
Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 91
108
Darcy Ribeiro, que chegou a defender esta idéia, no final da primeira metade do século XX, analisa a
questão sob o prisma do projeto civilizatório constitutivo da nacionalidade brasileira: “Índios e
brasileiros se opõem como alternos étnicos em um conflito irredutível, que jamais dá lugar a uma
fusão. Onde quer que um grupo tribal tenha oportunidade de conservar a continuidade da própria
tradição pelo convívio de pais e filhos, preserva-se a identificação étnica, qualquer que seja o grau de
pressão assimiladora que experimente. Através desse convívio aculturativo, porém, os índios se
tornam cada vez menos índios no plano cultural, acabando por ser quase idênticos aos brasileiros de
sua região na língua que falam, nos modos de trabalhar, de divertir-se e até nas tradições que cultuam.
Não obstante, permanecem identificando-se com sua etnia tribal e sendo assim identificados pelos
representantes da sociedade nacional com quem mantêm contato. O passo que se nesse processo
não é, pois, como se supôs, o trânsito da condição de índio a de brasileiro, mas da situação de índios
específicos, investidos de seus atributos e vivendo segundo seus costumes, à condição de índios
genéricos, cada vez mais aculturados mas sempre índios em sua identificação étnica.” RIBEIRO, 1995,
p.113.
109
O indígena e a República, onde ele analisa a criação e extinção do SPI. Gagliardi, inclusive, aborda a
relação da Reforma de Pombal e a Política Indigenista no Império, com as idéias principais que
moldam a política indigenista com a proclamação da República. Uma contribuição a ser destacada,
70
indígenas à sociedade nacional, inculcando-lhes condições de civilidade, em lugares
concebidos especialmente para esse fim. Esses lugares são nomeados ainda hoje de
Reservas, sendo que seu objetivo era o de proteger os indígenas das violências
colonizadoras da sociedade nacional. É importante recordar que as populações
indígenas são consideradas, no Código Civil de 1916 - atualizado somente em 1998 -,
como “relativamente incapazes”, no espírito da idéia de uma tutela necessária, por
parte do Estado.
As sucessivas crises de credibilidade do SPI produziram um conceito
diferenciado de agência governamental de apoio aos povos indígenas, ainda na
perspectiva de tutores formais dos povos indígenas, que é a Fundação Nacional do
Índio
110
, conhecida pela sigla, existente até hoje. Criada no período em que as políticas
governamentais estimulavam a expansão econômica para a região amazônica, a
FUNAI manteve a atuação integracionista (semelhante à do SPI), assim como também
era a mediadora entre o índio e a sociedade envolvente nas decisões que afetavam as
populações indígenas, característica da tutela. Era um órgão público, entendido como
estratégico à segurança nacional pelo governo militar. Do período de sua criação, em
1967, até 1998, o órgão teve 23 presidências; das seis primeiras gestões, que duraram
até 1983, quatro delas foram exercidas por militares e duas por civis.
Parte das competências da FUNAI foi sendo redesenhada, após
regulamentações que surgiram como demanda das mudanças de competências
aqui, é a influência das idéias positivistas, no processo de elaboração da política indigenista da
República, do trabalho do Marechal Rondon, culminando com a criação do SPI. A extinção do SPI está
associada a várias denúncias de maus-tratos, extermínio e violações diversas. Isto é associado a uma
burocracia exagerada, recursos escassos e impunidades diversas de quadro funcional envolvido em
diversas irregularidades e crimes comprovados. Foi oficialmente extinto, por ato do General Costa e
Silva, em 5 de dezembro de 1967, no mesmo ato em que foi criada a Fundação Nacional do Índio,
mais conhecida por FUNAI. Cf. GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo:
HUCITEC; Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
110
“Com a apuração de denúncias de práticas corruptas e genocídio de índios, a pedido do ministro do
Interior, General Albuquerque Lima, ao Procurador-Geral Jader Figueiredo, juntamente com a
repercussão internacional provocada pelo genocídio de índios, o SPI é extinto e substituído pela
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esta é instituída pela Lei 5.371, em 05 de dezembro de 1967,
para executar a tutela do Estado sobre os povos indígenas em todo território nacional. Pela mesma lei
foram também extintos (art. 6º) o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI) e o Parque
Nacional do Xingu (PNX) e incorporado o respectivo acervo à fundação recém criada” EVANGELISTA
(2004: 23).
71
derivadas da Constituição Federal de 1988. Evangelista
111
salienta que o projeto de
assimilação dos índios é tratamento posto em evidência na primeira constituição
brasileira (1824) e em todas as seguintes (1891, 1934, 1937, 1946 e 1967). O autor
explica que houve uma gradação, da omissão ao reconhecimento de posse das terras
ocupadas e da necessidade de integração, para comunhão nacional.
A Constituição de 1988 tem sido caracterizada como marco de mudanças,
alterando o preceito integrador e reconhecendo o direito à diversidade cultural e social:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens. [...]
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo. [...]
Art. 210: Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de
maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais
e artísticos, nacionais e regionais. [...] § O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas
também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.
Este texto retrata, em muito, um processo histórico, justamente anterior na
história brasileira, que foram a lutas sociais pela superação do regime militar, instituído
no Brasil na década de 1960. A organização dos povos indígenas, como movimento
social nesse contexto, teve influência determinante na garantia de direitos indígenas,
que é tida como conquista social dos povos indígenas, na Constituição de 1988
112
. A
111
Cf. EVANGELISTA, Carlos Augusto Valle. Direitos indígenas: o debate na Constituinte de 1988.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFICS, 2004. Disponível em:
<http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2004_mest_ufrj_carlos_augusto_vale_evangelista.pdf>. Acesso
em: 20 nov. 2006.
112
Maria Helena Matos realiza um estudo da participação das organizações indígenas, no contexto das
garantias da constituição de 1988. Analisa o caso específico do Vale do Javari, próximo das terras dos
Kanamari. “Na primeira fase, entre a década de 1970 e o início dos anos 80, o movimento indígena
assumiu o caráter pan-indígena, com a promoção da organização pluriétnica dos índios em defesa de
seus direitos dentro do Estado brasileiro. Enquanto estratégia política, o movimento pan-indígena
consistiu na organização de grupos indígenas a partir de uma identidade supra-étnica. A participação
de índios em assembléias, patrocinadas inicialmente pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
72
organização dos povos indígenas, como movimento social é estudada por
Evangelista
113
, que a identifica, fomentando a articulação entre os diversos povos
indígenas. Em diferentes regiões do país; a ação de pastorais, principalmente o CIMI,
foi de fomento e construção política de direitos indígenas, no processo histórico
justamente anterior à constituinte de 1988. No período de redação da constituição,
vários grupos indígenas se fizeram presentes nos debates da Constituinte. Ocuparam o
Congresso, seus diversos espaços, cantaram e dançaram, mostraram sua força e a
diversidade cultural que os constitui.
114
O texto constitucional aprovado, transcrito acima, representa uma ruptura com o
processo de desintegração e o genocídio vivenciado historicamente, e instituiu um
processo de reconquista de direitos. Dietrich analisa as bases conceituais da ruptura
principal, que é a quebra da idéia de integração dos índios à sociedade nacional.
Segundo ele, reconhecer a existência dos povos indígenas e exigir respeito às suas
formas próprias de decidir sobre suas próprias vidas e destinos aponta declaradamente
que [...] os povos indígenas são diferentes do restante da sociedade brasileira, que
possuem sistemas próprios de normatizarem suas vidas e que o Estado deve fazer
resultou na formação de uma comunidade e de uma identidade supra-étnicas, constituídas como
referências para a articulação do movimento e a criação da União das Nações Indígenas (UNI),
organização indígena de caráter nacional”. Cf. MATOS, Maria Helena Ortolan. Rumos do movimento
indígena no Brasil contemporâneo: experiências exemplares no Vale do Javari. Tese de Doutorado.
Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2006.
113
Cf. EVANGELISTA, 2006, p. 5s.
114
As primeiras Assembléias de Chefes Indígenas, previstas como uma das ões do CIMI, foram
organizadas por missionários e aos poucos assumidas e organizadas pelos próprios índios. A primeira
se realizou em 1974 em Diamantino – MT. Até o final de 80 foram realizadas 15 assembléias
envolvendo vários grupos e em várias localidades relacionadas a seguir: Missão Cururu – PA (maio de
1975), Meruri MT (setembro de 1975), Frederico Westphalen – RS (outubro de 1975), Aldeia
Cumarumã PA (setembro de 1976), Aldeia Nambiquara MT (dezembro de 1976), Missão Surumu -
RR (janeiro de 1977), Ruínas de S. Miguel RS (abril de 1977), Seringal Sta. Rosa-Purus AM
(1977), Aldeia Tapirapé MT (agosto de 1977), Aldeia Xavante o Marcos MT (maio de 1978),
Goiás Velho GO (dezembro de 1980), Ilha de S. Pedro SE (outubro de 1979), Brasília – DF (junho
de 1979), Manaus AM (julho de 1980). Através das assembléias e da rede de informações, entre as
várias regionais do CIMI, foi possibilitado o reconhecimento, por parte dos índios de causas e males
comuns entre os diferentes povos. O resultado concreto das discussões viabilizadas pelas
assembléias se converteu em ‘... ações concretas destes mesmos índios, crescentemente conscientes
de seus direitos, de sua força, de sua coesão, o que começou a significar dificuldades para a FUNAI,
como um todo35’. Neste sentido a assembléia que deveria ter ocorrido em Surumu RR foi dissolvida
pela FUNAI, ação criticada prontamente pelo CIMI em nota oficial, denunciado a violação do direito dos
índios e a ingerência da FUNAI na atuação no exercício pastoral.” EVANGELISTA 2004, p. 40.
73
respeitar esses direitos”
115
. A idéia central de garantia de direito, na lógica da
afirmação “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições”, pressupõe que existe uma constituição cultural própria das
sociedades indígena, que sabiamente evita a idéia de constituição potica própria.
Pierre Clastres, em A Sociedade contra o Estado, na década de 1960
116
,
identifica, na organização das sociedades indígenas, a ausência do Estado, nas
sociedades então chamadas de primitivas. Segundo ele, isso deriva de uma atitude
dinâmica de recusa do Estado, como poder coercitivo separado da sociedade e não de
um baixo nível de desenvolvimento social, defendido à época. Na obra de Clastres,
conhece-se formalmente, no pensamento antropológico, o princípio político da
autodeterminação sociopolítica das sociedades indígenas
117
. Isso se verifica, quando o
autor demonstra que a dispersão territorial de comunidades politicamente autônomas
oculta um sistema social mais amplo, que a integra por meios de alianças políticas
(como o casamento intercomunitário, na exogamia local).
A revelação de formas complexas de gestão da alteridade, nas sociedades
indígenas, demonstrada no trabalho de Clastres, é um conceito extremamente
importante, na interpretação e aplicação das afirmações constitucionais. No processo
de implementação de políticas públicas, derivativas dessa orientação legal, os debates
têm se acirrado. As normatizações posteriores vão enfrentar as dificuldades de
aplicabilidade dessa idéia ao princípio de participação democrática, de uma sociedade
indígena, no Estado firmado nas garantias de direitos individuais proposto.
118
115
Cf. DIETRICH, Mozar Artur. A autonomia dos povos indígenas frente ao Estado Brasileiro.
Monografia de conclusão de curso. Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, Ciências
Jurídicas, Curso de Direito, São Leopoldo, maio 1994, p. 218.
116
O livro A sociedade contra o Estado é originalmente publicado em 1974, mas reúne artigos de Pierre
Clastres, publicados ao longo da década de 1960. CLASTRES, 2003.
117
CLASTRES, 2003, p. 63.
118
Antonio Brand analisa este aspecto sobre a perspectiva da manutenção da exclusão da participação
das sociedades indígenas nos mecanismos de sustentabilidade econômica: “Analisando a realidade
brasileira e latino-americana da atualidade, no entanto, somos confrontados com um dado que
confirma o descompasso entre os textos legais e a prática política. O arcabouço legal instaurado com a
redemocratização nos diversos países da América Latina após o esgotamento das ditaduras não
significou alterações na realidade socioeconômica das populações, ou seja, os inegáveis avanços
políticos não foram acompanhados de iguais progressos nas condições objetivas de cidadania.”
BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. In: LIMA, Antônio Carlos
74
As políticas em educação aparece no artigo 210, principalmente no que ser
refere à “utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,
mas não compõem o capítulo VIII DOS ÍNDIOS (inserido no Título VIII Da Ordem
Social). Esse detalhe vinculado à idéia de conteúdos mínimos que garantam “respeito
aos valores culturais e artísticos” nos remete à necessidade de regulamentação de um
currículo, como garantia de formação diferenciada e conseqüente proteção mínima de
escolarização bilíngüe.
119
o é de estranhar, portanto, que as populações indígenas
tenham histórias pontuais de escolarização efetiva, por iniciativa do Estado. É fato que
tanto o SPI quanto a FUNAI se valeram das iniciativas religiosas, como alianças, no
processo de alfabetização e introdução dos valores sociais, cultivados no ideário da
identidade brasileira.
120
Considerando os aspectos de garantia de diferencialidade, somente é possível
falar de políticas públicas, em educação indígena, após os processos desencadeados
com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN, em
1996. É importante perceber que as instituições estatais não foram equipadas com
projetos educacionais bem definidos, em termos de escolarização, bilíngüe e
e BARROSO-HOFFMANN, Maria. (orgs). Estado e Povos Indígenas, bases para uma nova política
indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa / LACED, 2002, p. 31s.
119
Bruna Franchetto apresenta algumas reflexões sobre o impacto da assimilação, posterior à
promulgação da Constituição de 1988, e interpretação da chamada “educação bilingue intercultural
específica e diferenciada”. Afirma que “[...] a heterogeneidade de questões e posições está presente
tanto no campo da educação indígena no Brasil, com programas e projetos orientados por diferentes
filosofias, quanto internamente, dentro de um mesmo projeto, com a grande diversidade de reações e
expectativas por parte de diferentes grupos indígenas, que procuram um diálogo, muitas vezes sofrido,
com os idealizadores da proposta.” FRANCHETTO, Bruna. Sobre discursos e práticas na educação
escolar indígena. In: LIMA, Antônio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs). Estado e Povos
Indígenas, bases para uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa-LACED, 2002,
p. 98.
120
A escolarização entre os povos indígenas possui historiografia diversificada, diretamente vinculada ao
momento histórico em que se deu a ocupação territorial. A escolarização é compreendida basicamente
como aprendizagem da língua portuguesa e apropriação do sistema matemático de ordenamento das
relações comerciais. Sugiro a leitura do livro A Questão da Educação Indígena, da Comissão Pró Índio,
que reúne os materiais socializados por diversos segmentos da sociedade civil que, em 1981,
participaram do I Encontro Nacional de trabalho sobre Educação Indígena, promovido pela Comissão
Pró-Índio. O livro traz análises e relatos diversos, de várias experiências, em todo o Brasil. Um estudo
histórico mais descritivo pode ser lido na publicação Cadernos do SECAD Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade 3: Educação Escolar Indígena: diversidade sócio-cultural
indígena, ressignificando a escola (2007). Este trabalho reúne uma análise muito interessante sobre o
processo de instituição da Educação Escolar Indígena. A parte 2, nomeada Marcos Institucionais,
discorre, de forma elucidativa, sobre o processo de constituição das iniciativas em educação indígena,
inclusive o formato atual da estrutura do governo federal, em relação à temática.
75
diferenciada, mas produzem modelos nacionais. A história do acesso público à
educação, para a população brasileira em geral, remete a um longo processo de
construção, inacabado ainda hoje.
121
Na LDBEN, de 1996, lê-se:
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências
federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar
bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I -
proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas
memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização
de suas línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades e povos,
o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade
nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no
provimento da educação intercultural às comunidades indígenas,
desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. § 1º. Os
programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas. § 2º.
Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de
Educação, terão os seguintes objetivos: I - fortalecer as práticas sócio-
culturais e a ngua materna de cada comunidade indígena; II - manter
programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação
escolar nas comunidades indígenas; III - desenvolver currículos e programas
específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às
respectivas comunidades; IV - elaborar e publicar sistematicamente material
didático específico e diferenciado.”
122
É possível perceber, na redação da LDBEN, um detalhamento mais conciso
referente ao processo educacional entre povos indígenas. No cenário que se mantém
121
Grupioni apresenta uma análise que pode a auxiliar na compreensão dos desafios presentes: “Nesta
nova proposta educacional, que rompe com um padrão de escolarização guiado por intenções
catequizadoras e/ou civilizatórias, a escola indígena deixa de ser o instrumento de negação da
diferença. Orientada pelo respeito à diversidade cultural e lingüística, que marca a existência dos mais
de 210 povos indígenas que vivem no Brasil contemporâneo, essa nova escola se propõe potencializar
as expressões de identidades culturais que, informadas por sentimentos distintos e particulares de
pertencimento étnico, se inserem no movimento de busca de novas formas de relacionamento com os
demais segmentos da sociedade brasileira, a serem pautadas pelo respeito mútuo, pelo exercício da
compreensão e pela tolerância [...} Nesse processo, deixaram de ser consideradas como experiências
alternativas para serem estudadas e difundidas como experiências de vanguarda, capazes de formular
paradigmas a serem testados em outros contextos, por novos agentes. Hoje, a novidade é que esses
processos passaram a ser geridos por técnicos governamentais, enquanto política pública. Passou-se
do micro ao macro, ampliando-se o mero de professores indígenas envolvidos, bem como o de
especialistas, técnicos e instâncias governamentais, agências de financiamento e universidades.”
GRUPIONI, 2003, p. 7-8.
122
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1996. Disponível
em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm>. Acesso em 12.jun.2006.
76
como pano de fundo a essa redação, o direito a uma educação diferenciada, na
Constituição Federal, é constituído por processos ambíguos, às vezes convergentes,
outras divergentes
123
: (1) a trajetória de professores indígenas e lideranças indígenas
diversas, organizando-se em diversos, processos como sociedade civil; (2) as
dificuldades em harmonizar interesses distintos, oriundos da diversidade de trajetórias
educacionais, vivenciadas pelos indígenas, nas iniciativas colonizadoras, seja por
iniciativa de missões religiosas, seja por instituições do Estado, seja pela total ausência
de iniciativas
124
; (3) as contradições iniciadas logo após a Constituição Federal de 1988,
entre competências das instituições do Estado (Ministério da Educação e FUNAI); (4) o
processo lento e ainda em formação de atribuição de competências da União, Estados
e Municípios, na implementação e acompanhamento da Educação Escolar Indígena
diferenciada; (5) uma Escolarização Indígena, legislada em formato de respeito à
existência e integridade sociocultural é um elemento estranho às experiências culturais
fundantes das diversas populações indígenas.
Nesse contexto, identificamos o destaque nos aspectos organizativos da
Educação Indígena, com ausências conceituais estratégicas. O próprio fato de que a
Educação Indígena localiza-se na parte final da LDBEN, como Disposições Gerais, nos
remete à dificuldade de incluir a educação diferenciada, no planejamento educacional
do Estado como um todo. Os direitos educacionais indígenas a educação diferenciada,
na LDBEN, passa pelas afirmações: educação escolar bilíngüe e intercultural;
reafirmação de suas identidades étnicas; com audiência das comunidades indígenas.
Estas garantias implicam em um espectro de interpretações diversas, que carecem
123
Uma análise de conjuntura sobre a implementação das políticas públicas educacionais, situada em
períodos desde a promulgação da Constituição Federal, pode ser lida no site do MEC, no link
relacionado à Educação Escolar Indígena, que chega a afirmar: “Até bem pouco tempo atrás, em sua
grande maioria, as escolas indígenas eram consideradas como escolas rurais ou salas de extensão de
escolas urbanas, seguindo calendários e currículos próprios destes estabelecimentos. O
reconhecimento das escolas das aldeias como escolas indígenas, com estatuto diferenciado, é,
portanto, algo novo no sistema, e está em processo em todo o Brasil. MEC. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id=37&Itemid=164>. Acesso em:
02 jan. 2008.
124
As limitações de atuação, por parte do Estado, aparecem em artigo de Ieda Marques de Carvalho, que
apresenta linhas argumentativas de submissão das populações indígenas a processos educacionais
diversos, principalmente de missões religiosas. Esta constatação é verificada, também, no artigo de
Bruna Franchetto, que entende a omissão ou aliança do Estado com missões indigenistas como um
problema a ser urgentemente superado. Cf. CARVALHO In: INTERAÇÕES, 2003; FRANCHETTO, In:
LIMA; BARROSO-HOFFMANN, 2002.
77
debate e consenso, na significação de seu campo semântico. Este campo
provavelmente será definido depois de várias experimentações práticas, de
implementação de práticas educacionais, visando à implementação dos direitos.
O livro que traz a LDBEN comentada por Carlos da Fonseca Brandão, em sua
abordagem aos artigos 78 e 79, apresenta elementos que exemplificam essa
dificuldade de compreensão semântica. Comentando o artigo 78, o autor afirma: “[...]
resta saber se os povos indígenas necessitam de algum tipo de Educação Escolar”
125
.
em relação ao artigo 79, Brandão salienta “[...] causa estranheza, por exemplo, o
conteúdo do §1 do art. 79 que prevê apenas a ‘audiência’ e não a participação das
comunidades indígenas no planejamento dos programas integrados de ensino e
pesquisa sobre educação intercultural”. Nesse sentido, ele também ressalta “[...] como
dissemos, é preciso investigar se os povos indígenas entendem que essa Educação
Escolar [...] ou se essa Educação Escolar é apenas mais uma forma (ou estratégia) de
impor a cultura do homem branco a esses povos”
126
. O autor identifica os elementos
limitantes, relacionados à idéia de indígenas como, “relativamente capazes”, por um
lado, e desconhece certo histórico de organização indígena, por outro. Assim explicita,
em seus comentários, as dificuldades que se apresentam como desafio ao processo de
garantia dos direitos indígenas, que implicam a compreensão de seu significado às
pessoas e às instituições sociais envolvidas, nas relações com populações indígenas.
Esse comentário retrata o nível de dificuldade que se enfrenta para incluir uma
diferencialidade no modelo de políticas públicas, que pretendem homogeneidade de
ações, como instrumento de garantia de igualdade de acesso. Este princípio está sendo
questionado, não somente pelas populações indígenas, como também por outros
segmentos sociais, que exigem o direito à diferencialidade, por especificidades próprias
(deficientes auditivos, visuais, cadeirantes, comunidade GLBTS, negros, etc.). Com
historiografias próprias, esses segmentos da sociedade estão construindo instrumentos
de defesa de seus direitos, que, em alguma medida, apontam para um futuro, próximo
que instituirá uma forma de implementação de Políticas Públicas.
125
BRANDÃO, Carlos da Fonseca. LDB: Passo a Passo - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. São Paulo: Avercamp, 2007. p. 94.
126
BRANDÃO, 2007. p. 95.
78
Assim, no momento atual, vive-se o tempo de artigos legislativos situados nas
disposições transitórias, que servem para garantir o direito à diferencialidade, que não
pode ser transitório. Entra-se, aqui, no campo vasto que se constituiu nos últimos 10
anos, com os esforços governamentais em implementar esse direito. Optou-se por
analisar alguns documentos que podem auxiliar a entender o processo. Após a
promulgação da LDBEN, o processo normativo, oriundo de pareceres do Conselho
Nacional de Educação, sobre educação indígena, seguiu o seguinte roteiro cronológico:
(1) Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1994.
(substituída pela legislação posterior); (2) Parecer 14/99 - Conselho Nacional de
Educação - 14 de setembro de 1999; (3) Resolução 03/99 - Conselho Nacional de
Educação - 10 de novembro de 1999; (4) Plano Nacional de Educação (Lei 10.172, de 9
de janeiro de 2001): Capítulo sobre Educação Escolar Indígena; (5) Decreto
Presidencial 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção 169 da OIT.
127
2.2 EDUCAÇÃO INDÍGENA E INSTITUIÇÕES PROTESTANTES
Para melhor entender a questão da escola indígena hoje, é interessante olhar a
história da educação escolar, desenvolvida nas áreas indígenas no Brasil, ao longo
desses 500 anos. Com esse objetivo, Mariana Leal Ferreira, propôs uma divisão em
quatro fases distintas:
A primeira situa-se à época do Brasil colônia, em que a escolarização dos índios
esteve a cargo exclusivo de missionários católicos, principalmente os jesuítas.
Um segundo momento é marcado pela criação do Serviço de Proteção aos
índios – SPI, em 1910, e se estende à política de ensino da FUNAI e sua
articulação com o Summer Institute of Linguistics (SIL) e outras missões
religiosas.
O surgimento de organizações indigenistas não governamentais e a formação do
movimento indígena organizado, em fins da década de 60 e nos anos 70, época
da ditadura militar, marcou o início da terceira fase.
127
Um estudo detalhado sobre estes elementos pode ser acessado no endereço eletrônico do Instituto
Socioambiental. Trabalho que apresenta os elementos principais das políticas em educação,
emanadas do Governo Federal. Tratam das políticas em educação emanadas do Governo Federal.
Disponível em: <http://www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/polit_educacao.shtm>. Acesso
em: 20.mar.2007.
79
A última delas, iniciativa dos próprios povos indígenas, a partir da década de 80,
visa definir e autogerir seus processos de educação formal.
128
O projeto educacional brasileiro está historicamente inserido nas iniciativas
religiosas, considerando que, no período do Brasil Colônia, as escolas existentes eram
de congregações religiosas, que se dedicavam a amansar e catequizar índios e
escravos. A obra jesuítica, principalmente, tem representado o principal arsenal
informativo sobre a questão, que es disponível, em termos de período colonial,
anterior à reforma pombalina. Esta informação pode ser associada ao fato de que,
somente no século XVIII, a educação, como projeto de constituição do sujeito cidadão,
se efetivou como idéia vinculada à existência da nação, em efeito progressivo da
instauração da modernidade na Europa. Ao entender isso, tem-se melhores condições
de compreender porque somente no século XIX, com a chegada da família real
portuguesa no Brasil, e, posteriormente, com a instauração do Império, o Brasil veio a
ter projetos efetivos de educação, como política pública direcionada à população
brasileira.
129
Neste trabalho, aborda-se o período recente das iniciativas, pensando
desde o período do governo militar (décadas de 1970 aos dias atuais) e a organização
social decorrente das lutas sociais contra o regime autoritário.
Considerando a pretensão missionária e aplicando-a as missões religiosas
protestantes, entende-se o vasto campo de atuação educacional, presente nas diversas
missões entre indígenas. É o que se verifica em levantamento feito pelo CEDI,
128
FERREIRA, Mariana K. Leal. Da origem dos homens à conquista da escrita: Um estudo sobre
povos indígenas e educação escolar no Brasil. Dissertação (Mestrado), Departamento de
Antropologia, USP, 1992, p.13.
129
Vidal e Faria Filho realizam um estudo muito interessante da instituição das políticas públicas em
educação e do manuseio das informações sobre as mesmas, englobando o período de 1880 a 1970. É
reincidente o movimento de detectar iniciativa formal de políticas públicas, no período posterior à
chegada da família real no Brasil. Como foi indicado, a reforma pombalina, em período anterior,
apresentou elementos importantes de políticas públicas em educação, que influenciaram o processo
posterior. VIDAL, Diana Gonçalves; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da educação no
Brasil: a constituição histórica do campo (1880-1970). Revista Brasileira de História, São Paulo, v.
23, n. 45, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01020188
2003000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 abr. 2006.
80
encerrado em 1994 e publicado no trabalho “Transformando Deuses”, organizado por
Robin Wright
130
. Na apresentação do relatório, Marina Kahn
131
afirma que
A Igreja Protestante também tinha seu projeto civilizador e chegou
acompanhada dos opositores à Coroa Portuguesa, franceses e holandeses
que disputavam parcelas de terra com Portugal. Ganhar a benevolência
portuguesa fez com que uma grande tolerância religiosa marcasse a presença
dos protestantes nos tempos da colônia. Ao século XX, pode-se dizer que
as igrejas protestantes foram se instalando à medida que levas migratórias
oriundas da Europa não portuguesa se instalavam no país, num movimento
menos explicitamente civilizatório que o da Igreja Católica de conversão dos
selvagens. O protestantismo era a religião que vinha acompanhando seus
próprios fiéis dando apoio espiritual no Novo Mundo. É no século XX, mais
especificamente no pós-guerra, que se vai verificar uma significativa expansão
das igrejas protestantes em território nacional, seja voltada para buscar a
conversão entre as “classes educadas”, com a montagem de uma vasta rede
educacional, seja para finalidades explicitamente conversoras dos povo “não
alcançados” pela palavra de Deus.
132
que a proposta deste trabalho é uma investigação do trabalho missionário
educacional indigenista metodista, é importante dedicar uma breve nota ao processo de
constituição das missões protestantes no Brasil, que têm, diante de si, a hegemonia da
obra educacional missionária Católica Romana. Parte do material documental
disponível para compreender a missão protestante está presente na Literatura de
Viagem.
133
No século XIX, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, viajantes
com os mais diversos objetivos. Ao longo de sua estada e permanência no país, eles
produziram relatórios de diversas formas e gêneros literários. A profissão exercida por
cada viajante caracterizou um tipo de envolvimento com a população local. Nos
registros de Daniel P. Kidder, James C. Fletcher e Martha Watts, missionários
protestantes, que estiveram no Brasil entre os anos de 1836 a 1908, identifica-se a
presença e as motivações de estada no Brasil, para promover um processo civilizador
130
Cf. WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os
povos indígenas no Brasil. V. 1 Campinas, SP: Unicamp, 1999.
131
KAHN, Marina. Levantamento preliminar das organizações religiosas em áreas indígenas. In:
WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses. vol 1: os múltiplos sentidos da conversão entre os
povos indígenas no Brasil. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1999. p. 19-75.
132
KAHN In: WRIGHT, 1999. p. 21.
133
No Brasil, a Literatura de Viagem representa uma numerosa fonte documental oriunda de trabalho de
viajantes e naturistas que escreveram sobre suas estadas no Brasi.
81
no país, através de mudanças no terreno religioso e educacional. Estes deixaram um
legado de registros sobre a vida dos brasileiros no período, que apresentam críticas à
sociedade brasileira. Consideravam como primitivismo local, em relação aos chamados
países civilizados; a religiosidade atrasada e supersticiosa, em um país católico; a
presença da miscigenação, gerando um povo nativo indolente, preguiçoso e sujo; e a
necessidade de um processo civilizador que transformasse o território e reorganizasse
as relações da sociedade, através de uma intervenção educacional e religiosa.
134
As escolas constituídas por missões protestantes, em suas pretensões, não
divergiam das motivações presentes também nos educandários de formação católica,
pois estas iniciativas convergiam na idéia de civilidade e na tarefa da educação como
processo civilizador, na constituição do sujeito social. Daniel Kidder chega a afirmar:
Desejo de todo meu coração ver o dia em que as nossas escolas para
meninas sejam de tal natureza que uma jovem brasileira nelas se possa
preparar, por sua educação intelectual e moral, a tornar-se uma digna mãe,
capaz de ensinar aos seus próprios filhos os elementos de uma educação e
os deveres para com Deus e os homens: para esse objetivo é que estou me
esforçando
135
.
O projeto de fundação de colégios era percebido como uma “missão gloriosa”,
que poderia amenizar a corrupção da educação da infância e adolescência brasileira.
Assim, na sua concepção, estavam contribuindo para instituir, no Brasil, um modelo de
educação que fosse intelectual, moral e religioso.
136
As ões dos protestantes não
134
Para aprofundar essa questão, sugiro a leitura dos trabalhos: MESQUIDA, Peri. Hegemonia norte-
americana e educação protestante no Brasil: um estudo de caso. Juiz de Fora, São Bernardo do
Campo: EDUFJF/ EDITEO, 1994; MENDONÇA, A. Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro.
Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola: Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, 1990; MESQUITA, Zuleica. (org). Evangelizar e Civilizar: Cartas de Martha
Watts, 1881-1908. Piracicaba: Editora Unimep, 2001; LISBOA, K.M. Olhares Estrangeiros sobre o
Brasil do Século XIX. In: MOTA, C.G (org) Viagem Incompleta. São Paulo: Senac, 2000.
135
KIDDER; FLETCHER (1845). O Brasil e os brasileiros. Trad. De Elias Dolianti. v. 2. São Paulo: Ed.
Nacional, 1941.
136
Simone Dorneles estuda esse fenômeno de pretensão do sujeito universal, nas motivações
educacionais protestantes. “A expressão educacional foi traduzida nos processos de formação moral
cristã, construídos, a partir de dois princípios, o livre arbítrio humano e o sacerdócio universal de todos
os crentes, característicos do protestantismo histórico e incorporados às práticas missionárias [...]
Interessante resgatar que na América colonial, para onde partiram grupos de imigrantes imbuídos dos
ideais protestantes de educação para a evangelização do povo, os movimentos que geraram a
Declaração de Independência da Nação afirmaram como princípio a educação pública. Educação
pública fundamentada na ética protestante, pois não havia naquele período histórico, distinção entre as
82
separavam evangelização de educação. Sua pedagogia estava fundada em aspectos
conversionistas e na difusão de uma concepção de mundo própria, cuja ação educativa
visava a construir um novo homem, crente e servidor fiel da nação
137
. No ideário
estrangeiro, estava expresso um modelo de civilidade para a escola, baseado no
método indutivo e experimental, que valorizava o conhecimento científico,
principalmente quando o mesmo apontava para a vida cotidiana das pessoas. Esta
filosofia positivista vinha ao encontro das perspectivas do movimento Republicano, que
queria trazer, para o Brasil, a modernização da sociedade, visando à separação da
Igreja e Estado e à modernização do ensino.
As escolas protestantes implementaram um currículo que incluía o estudo de
disciplinas voltadas à investigação laboratorial, instrumentalizadas com laboratórios
para observação e experimentação dos fenômenos. O processo civilizador pretendido,
de mudança social, se daria no campo educacional, através de uma educação
protestante. Esse modelo de educação propagava, para as pessoas, um ascetismo
prático, no qual a participação e a mudança da sociedade ocorreriam através do estudo
da Gramática, da Álgebra, da Aritmética, da Cosmografia, da Geografia, da Física, da
Astronomia, da História Geral e do Brasil, entre outras disciplinas, e, também, através
do estudo da Bíblia. Essa formação ganhou credibilidade e consolidou processos
históricos diversos. Ainda hoje, no Brasil, a escola confessional é desejada por um
número expressivo de pessoas, que vêem, na formação religiosa, integrada à
educacional, uma contribuição importante na formação de seus filhos.
As estratégias educacionais, entre indígenas, variaram no tempo, mas seguem
certo padrão, motivadas pela origem comum de pretensões (o projeto civilizatório). Um
exemplo de estratégia educacional missionária recorrente, nas missões católicas, foi a
criação de internatos indígenas, com o intuito de promover a educação formal das
esferas pública e religiosa. As constituições dos estados americanos criaram normativas de instrução e
de educação que valorizaram a formação pragmática, moral e cívica, “características da educação
norte-americana”. DORNELES, Simone Silva. Sujeito do Discurso: uma leitura de gênero das
Diretrizes para Educação da Igreja Metodista. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 17-22. Ver também o
trabalho de Luzuriaga (1959), que apresenta uma abordagem interpretativa da educação protestante à
luz da idéia de constituição da educação pública. LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação
Pública. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1959.
137
Cf. MESQUIDA, 1994.
83
crianças. Retiradas do convívio familiar, elas eram proibidas de se comunicar em suas
línguas, obrigadas a aprender o português e introduzidas ao aprendizado de uma série
de ofícios. Ao atingir determinada idade, eram devolvidas às suas comunidades, onde
encontravam inúmeras dificuldades de adaptação
138
. A atuação missionária protestante,
entre povos indígenas, movida por iniciativas diversas, se estabelecia na pretensão da
introdução da grafia (para acesso da Bíblia na língua materna) e a assistência à saúde.
Nesse processo, cultivou-se a idéia de adoção de tribos. É comum um missionário
dedicar toda sua vida missionária a um único povo e aldeia, visando a compreender sua
língua e introduzir a escrita, traduzindo a bíblia para o idioma do povo. Nesse modelo
missionário, a moradia dos missionários fica próxima da aldeia e constitui uma casa
modelo rural, que serve como referência simbólica de um modelo residencial, possível
para os indígenas.
Paula Montero localiza na questão da alteridade a análise das relações
históricas, culturais e políticas, entre índios e missionários. Entende que “[...] o trabalho
missionário parece constituir uma porta de entrada privilegiada para compreender o
estatuto simbólico e político da diferença no mundo pós-colonial”
139
. Na perspectiva do
pensamento antropológico e de sua guinada metodológica, no início do século XX
140
, o
138
Um exemplo muito conhecido entre os indigenistas, por ter existido até muito recentemente, é a
missão Utiariti. “A missão de Utiariti existiu em Mato Grosso mais ou menos entre os anos 1930 e
1970, no município de Diamantino. Utiariti, que dista cerca de 550 km de Cuiabá, é o nome de uma
cachoeira no Rio Papagaio, lugar sagrado para a nação Paresi. [...] O número de grupos indígenas que
abrangeu e o momento de sua atuação, que correspondeu à expansão das fronteiras ao norte do
estado: Nambikwara, Irantxe, Paresi, Rikbáktsa, Apiaká e Kayabi. Foram todos, com maior ou menor
intensidade, envolvidos com a Missão [...] O que destaca Utiariti frente à política jesuítica tradicional,
que consistia em estabelecer reduções e catequizar; é o fato de ter sido principalmente dirigida para
crianças, que eram mantidas em sistema de internato, separadas de suas famílias. Anteriormente as
reduções envolviam o conjunto de uma aldeia, ou de aldeias, com famílias constituídas”. SILVA, Joana
A.F. Utiariti. A última tarefa, Missionários e índios na ocupação de Mato Grosso. Disponível em:
<http://orbita.starmedia.com/~i.n.d.i.o.s/textos/txt010ut.htm>. Acesso em: 12 dez. 2007.
139
MONTERO, Paula. Índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In:
MONTERO, Paula (org). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo,
2006b. p. 34.
140
Esta idéia pode ser mais bem compreendida, a partir de seminário organizado pelo Museu Nacional
do Rio de Janeiro, num processo de cooperação internacional, em setembro de 1997, quando se
realizou o seminário franco-brasileiro “Ciências Sociais, Estado e Sociedade”. Este seminário se
propôs à reflexão do papel político desenvolvido pelo pensamento antropológico e seus principais
ordenamentos paradigmáticos, no século XX. Esse trabalho está reunido em livro, organizado por
L’estoile, Neiburg e Sigaud, Antropologia, impérios e estados nacionais. Cf. L’ESTOILE, Benoi;
NEIBURG, Federico; SIGAUD, Lygia (orgs). Antropologia, Impérios e Estados Nacionais. Rio de
Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2002.
84
processo de redefinição das categorias de organização das diversidades culturais
passou a ser considerado um processo contínuo de desconstrução e reconstrução dos
códigos comunicativos que constituem práticas simbólicas diversas. Estudar as práticas
missionárias, no século XX, exigiria uma atitude investigativa em dois planos: o
empírico, observando os modos de produção; e o modo disciplinar, emergindo a
questão da alteridade, como objeto de reflexão.
141
Seguindo essa proposta de roteiro de abordagem, e focando na temática de
iniciativas educacionais de obras missionárias, no universo protestante
142
, pode-se
citar, como mais presente numericamente, entre povos indígenas, as iniciativas
nomeadas pelo trabalho de Kahn
143
, como Missões de e as Pentecostais. Nestas
missões, a compreensão de superioridade religiosa do cristianismo, sobre as práticas
ritualísticas tradicionais indígenas, remete a uma prática educacional a serviço de ideal
conversionista e à criação de igrejas cristãs indígenas. O elemento conversionista, na
prática missionária, tem se alastrado de forma expressiva nos últimos 50 anos e,
recentemente, tem sido analisado por iniciativas diversas de investigação antropológica.
Isso ocorre inclusive, por existirem, atualmente, missões indígenas indigenistas
144
, mas
não necessariamente tem significado a existência de trabalho educacional expcito
(como criação de escolas ou formação de agentes educacionais).
No caso das missões protestantes, ainda utilizando a categoria de Marina Kahn,
existem iniciativas das igrejas de confissão luterana, anglicana, metodista e
presbiteriana independente, “[...] vinculadas a uma leitura mais erudita’ da bíblia, que
buscam ajustar os dogmas religiosos à ciência, compartilham de uma posição liberal
141
MONTERO, 2006. p. 31-34.
142
Abordar, nesta parte do capítulo, o trabalho missionário da Igreja Católica, que possui em meros o
maior números de missões indigenistas no país, ampliaria desnecessariamente o enfoque pretendido.
No entanto, no próximo capítulo, será retomada a contribuição das missões católicas, sob perspectiva
da descrição dos modelos de ação missionária.
143
Cf. KAHN, Marina. Levantamento preliminar das organizações religiosas em áreas indígenas. In:
WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os
povos indígenas no Brasil. V. 1 Campinas, SP: Unicamp, 1999.
144
Como forma de exemplo, cito a Missão Uniedas, que possui como missão “Evangelizar o índio e
prepará-lo para evangelizar outros índios” e declaram atuar com “Seminários, Assistência social nas
áreas de educação e saúde e evangelização, seminário menor”, além de formarem igrejas nas aldeias
evangelizadas. MISSÃO UNIEDAS. Disponível em: <http://www.infobrasil.org/agen/por/consulta-
2005/bra/miu.htm>. Acesso em: 14 jan. 2008.
85
que abandona a visão proselitista e reconhecem que a revelação divina também se
expressa nas religiões não cristãs”
145
. Em sua origem, a ação educativa entre
indígenas está diretamente relacionada às pretensões da presença missionária
indigenista. Quando a escola se anunciou, por iniciativa missionária, em área indígena,
as línguas, a tradição oral, o saber e a arte dos povos indígenas foram discriminados e
excluídos da sala de aula. A função da escola era fazer com que estudantes indígenas
desaprendessem suas culturas e deixassem de ser indivíduos indígenas. A ação
pedagógica das missões protestantes não foi diferente da política estatal. Reforçou o
caráter colonizador e civilizatório, existente no processo colonialista.
Desde a década de 1960, algumas mudanças se instituíram na atuação
missionária, com o surgimento de pastorais indigenistas mais comprometidas com a
garantia de direitos. Cita-se, aqui, o trabalho de Duncan Reily
146
, historiador do
protestantismo e do metodismo, que propõe uma cronologia da presença missionária
protestante, entre povos indígenas, nos seguintes momentos: (1) processo colonizador,
onde a iniciativa protestante, acompanhando processos migratórios pontuais, lidou com
comunidades indígenas do entorno, do mesmo modo; (2) no período dos séculos XVI e
XVII, cuja missão de maior importância é a calvinista, no Rio de Janeiro,
particularmente em meados do século XVI, onde foi escrita a primeira confissão de
protestante em todo o novo mundo. As iniciativas nesse período possuem elementos
evangelísticos, que compreendiam o indígena como um selvagem arredio, difícil de ser
entendido e assimilado. Desse período, existe material documental disponível,
indicando nomeação entre índios, por parte da ocupação holandesa, no nordeste
brasileiro. (3) Edimburgo, em 1910, e Panamá, em 1916, que representa o período de
expulsão dos holandeses, no século XVII, reinício formal da presença protestante no
Brasil, no início do século XIX, a partir de 1818 com o tratado assinado por Portugal e
Inglaterra. Nesse período, se sabe de missões entre índios e processos de tradução
145
KAHN, 1999, p. 22.
146
REILY, Duncan Alexander. Uma pequena história dos contatos evangélicos com os povos
indígenas. In: KEMPER, Thomas; SILVA, Jaider Batista (orgs). Repensando a evangelização junto
aos povos indígenas. São Bernardo do Campo, SP: Editeo/ Faculdade de Teologia da Igreja Metodista,
1994, p. 89-107.
86
da bíblia para os idiomas indígenas
147
. (4) Envolve os trabalhos indigenistas recentes
entre os protestantes, com ausência significativa de fontes documentais públicas. Reily
identifica a necessidade criação de linhas de pesquisas, para organização formal das
experiências existentes.
No trabalho de resgate documental sobre as missões indígenas, por iniciativa
protestante, realizado por Reily, é importante perceber que o enfoque missionário
estava na evangelização dos brasileiros, na pretensão de superação do nomeado
“obscurantismo católico romano” e “religiosidades supersticiosas”. A missão entre índios
pode ser identificada a partir de nomeações específicas e pontuais. Desde a década de
1980, no entanto, vem crescendo a presença de missões evangélicas conversionistas,
novas igrejas indígenas e com a conseqüente criação de missões de lideranças
indígenas atuando em outros grupos indígenas
148
. Na última década, cresceu de forma
expressiva o número de iniciativas missionárias, entre povos indígenas, e é possível,
com relativa facilidade, acessar informações básicas sobre seus objetivos e
atividades
149
. Segundo descrição numérica do levantamento feito pelo Serviço de
147
No congresso do Panamá, em 1916, foi escrito sobre os índios do Brasil: “Os índios do Brasil, hoje,
são quase totalmente desconhecidos ou certamente um povo esquecido. Das 21 províncias dos
Estados Unidos do Brasil, pelo menos 12 ainda têm alguns índios aborígenes puros, geralmente
vivendo exatamente como seus antepassados viviam quatro séculos antes. Aqui é um dos problemas
mais desafiadores para a evangelização da América Latina. [...] Qualquer tentativa para melhorar a
condição pode contar com a simpatia do governo e sua colaboração” REILEY, 1994, p. 100-101.
148
No segundo seminário de espiritualidade indígena, promovido pelo GTME, de 5 a 7 de abril de 1999,
com presença de indígenas missionários entre outros grupos étnicos . Houve rias manifestações de
apoio e de rejeição ao trabalho missionário feito por não-indígenas, pajés, pastores e padres indígenas
se encontraram para discutir as especificidades da espiritualidade das comunidades indígenas. Na
declaração final do encontro, encontramos a seguinte reivindicação: “[...] com o decorrer do tempo as
igrejas reduziram os ritos, introduzindo outra forma de adoração, sem o conhecimento profundo da
crença indígena. É preciso conhecer em princípio a crença indígena para não destruir as forças
espirituais de todas as nações indígenas, não agredindo com poderes ideológicos que as igrejas
desenvolvem no mundo da sociedade humana de várias nações com suas religiões”. Cf. GTME,
Relatório do II Encontro de Espiritualidade Indígena. Mimeo. Cuiabá, MT, 5 a 7 de abril de 1999.
149
Além das informações coletadas pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI),
organizado em publicação por Marina Kahn, a partir de informações coletadas em diferentes fontes.
Outro exemplo de acesso a informações missionárias evangélicas é o site, sob responsabilidade da
SEPAL (Servindo a Pastores e deres), que disponibiliza informações sobre missões entre povos
indígenas. Disponível em: o <http://www.infobrasil.org/index.htm>, acesso em 20.jun.2007. Neste site,
inclusive, é possível “adotar um povo” e apoiar financeiramente a missão entre o povo escolhido. No
link resumo numérico”, o Sepal disponibiliza a seguinte informação: Número de Juntas e Agências
Missionárias Transculturais: 115% Destas, 2% são agências internacionais, internacionais com
liderança brasileira, 23%; agências brasileiras, 40%; brasileiras com liderança estrangeira 2%. Juntas
Denominacionais 12%, Igrejas Locais 10%, Iniciativas inter-eclesiásticas 3%, Centros de Capacitação
missionária 2%.
87
Pastores e Lideres (SEPAL)
150
, boa parte dessas missões entre povos indígenas no
Amazonas, especificamente, teve o apoio do Summer Institute of Linguistics (SIL) e
pela Fundação Wycliffe
151
, agências antecessoras à Missão Novas Tribos do Brasil
(MNTB)
152
e Jovens com uma Missão (JOCUM)
153
, como agências de capacitação e
manutenção de trabalhos missionários.
150
Disponível em <http://www.infobrasil.org/agen/por/graf-2005/bra/bra_graf/index.html>, acesso em
20dez2006, na lâmina “anos de fundação das organizações transculturais, há dois períodos de
crescimento de agência missionárias no Brasil: de 1947 a 1987, e crescimento expressivo a partir de
1987.
151
O Summer Institute of Linguistcs foi um aliado a iniciativas intelectuais em toda América Latina, na
expectativa de incorporação dos povos indígenas aos projetos nacionais republicanos emergentes na
primeira década do século XX: “A missão evangélica americana Summer Institute of Linguistics (SIL),
criada no México na década de 1930, expandiu-se na América Latina por meio de alianças com
intelectuais latino-americanos e não com o apoio das igrejas evangélicas locais. A missão teve como
política manter ‘padrinhos’, ‘protetores’ ou ‘patronos’ entre políticos e intelectuais, tais como Lázaro
Cardenas no México, Vargas Llosa no Peru e Darcy Ribeiro no Brasil. [...] O peculiar ao SIL foi ter sido
projetado para atender à aliança com o movimento indigenista. Essa aliança entre evangélico
fundamentalista e os indigenistas anticlericais o trouxe modificações nos objetivos religiosos da
missão, que se mantiveram os mesmos; as mudanças ocorridas nesse grupo missionário como
conseqüência dessa aliança se efetuaram na sua identidade pública e no tipo de organograma
institucional da missão. Essa aliança entre o indigenismo estatal de caráter anticlerical e uma missão
fundamentalista é a chave para entender a expansão posterior da missão em toda a América Latina e
o surgimento da dupla identidade de missionário e lingüista. O fim dessa aliança se deu a partir da
década de 1970, quando a dupla identidade, até então um pacto mútuo entre missionários e
intelectuais, entrou em crise e passou a ser vista como uma política de conspiração”. BARROS, Maria
Cândida Drumond Mendes. A missão Summer Institute of Linguistics e o indigenismo latino-americano:
história de uma aliança (décadas de 1930 a 1970). Revista Antropológica, São Paulo, v. 47, n. 1,
2004. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=si_arttext&pid=S0034-77012004000
100002&lng=en &nrm=iso>. Acesso em: 15 jan. 2007BARROS, 2004, p. 2-4.
152
A Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), fundada em 1953, é uma missão evangélica auto-
denominada transcultural, com atuação no Brasil. É uma agência missionária de caráter
indenominacional, cujo objetivo é “[...] alcançar os minoritários grupos étnicos com o Evangelho de
Cristo, e prestar assistência ‘integra’ nas áreas de saúde, educação e desenvolvimento comunitário”.
Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Disponível em: <www.mntb.org.br>. Acesso em: 02 jan. 08.
153
“Jovens Com Uma Missão” (JOCUM) é uma Missão internacional e interdenominacional, de caráter
filantrópico, empenhada na mobilização de jovens de todas as nações para a obra missionária. No
Brasil, iniciamos nossas atividades em 1975 através do casal Jim e Pamela Stier, em Contagem-MG.
Hoje temos Centros de Treinamento Missionário espalhados em todas as regiões do Brasil. Jovens
Com Uma Missão reúne pessoas diferentes para trabalhar nas mais diferentes atividades
evangelísticas. Entre os nossos missionários, podem ser encontrados, jovens, famílias, aposentados,
universitários recém-formados e pós-graduados, pessoas vindas de mais de 100 países e
denominações evangélicas diferentes, novos crentes, pastores e líderes de igrejas com muitos anos de
experiência. São objetivos da Missão: Apresentar Jesus Cristo, pessoalmente, a esta geração,
mobilizando o maior número possível de pessoas para ajudar nesta tarefa; Treinar e equipar cristãos
para o cumprimento da grande Comissão. Anualmente mais de 30.000 pessoas são mobilizadas
através dos nossos programas de curto prazo e escolas de treinamento. Graças a Deus, nossas
equipes móveis visitaram e ministraram em todos os países do mundo. Atualmente somos mais de
12.500 missionários trabalhando em tempo integral, em 650 centros de atividades missionárias, em
135 países do Mundo”. JOCUM. Disponível em: <http://www.jocum.org.br/
>. Acesso em: 20 dez. 2007.
88
Entendo que seja importante diferenciar, como faz Marina Kahn, a presença
missionária do protestantismo sem pretensões conversionistas, sem crescimento
expressivo e de presença pontual, do crescimento evangélico pentecostal de
pretensões conversionistas, com expressivo crescimento nas últimas décadas. Ronaldo
de Almeida entende que o Brasil “[...] pode ser considerado uma etapa de um
movimento missionário transnacional, que aqui adquiriu cores locais e potencializou o
impulso salvacionista desses religiosos”. O autor afirma que a ênfase no trabalho de
tradução da blia, para línguas indígenas, está na metodologia de “[...] mediações em
diferentes planos da vida social com ajustes sucessivos dos diferentes códigos culturais
[...] a tradução ocorre por meio de uma negociação de sentidos que refaz as idéias e
práticas religiosas com a finalidade de universalizar ainda mais a própria religião
evangélica”
154
.
As missões protestantes, ainda na categoria de Kahn, desde a década de 1970,
iniciaram um processo de autodeclaração de intenções e se aliaram, em articulações
ecumênicas, com as missões católicas articuladas pelo CIMI. Arlindo Leite apresenta
um quadro de ações missionárias que, apesar de focado na experiência católica, ilustra
bem a alteração na compreensão teológica e na conseqüente prática pastoral, que
ocorreu em fins da década de 1960 até o período de redação do texto (1982):
A contribuição da antropologia foi decisiva para a transformação da ótica
missionária. O aprofundamento e ampliação dos estudos antropológicos no
Brasil, abrangendo áreas indígenas, colocaram os missionários diante de uma
realidade que exigia uma nova e honesta redefinição de muitas de suas
atitudes. Evidenciou-se o alcance e significado da diferença cultural entre o
mundo missionário e o dos vários grupos indígenas, e a necessidade de se
respeitar esta alteridade, incluindo-se aí também a esfera religiosa.
155
Para Leite, a mudança de atuação missionária esteve em sintonia com o
crescimento e o fortalecimento dos movimentos sociais, alterando a prática missionária
para o enfoque de fortalecimento da organização política indigenista. Segundo o autor,
“[...] os cristãos não podiam ficar alheios à luta continental que se desencadeava, e
154
ALMEIDA, Ronaldo. Tradução e mediação transculturais entre grupos indígenas. In: MONTERO,
Paula. Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 278.
155
LEITE, Arlindo. A mudança da linha de ação missionária indigenista. São Paulo: Paulinas, 1982, p.
11.
89
engajaram-se de formas diversas na tarefa de reorganização das relações sociais,
visando o surgimento de uma nova humanidade”
156
.
A missão protestante, desde a cada de 1970, apresenta uma tendência de
maturação teológica e reorientação à prática pastoral, que pode ser verificada nos
processos de criação e consolidação das pastorais indigenistas e nos discursos
afirmativos de acesso aos direitos indígenas, geralmente nomeados como “terra, saúde,
economia, educação e mobilização”. Estes direitos básicos e a organização política das
comunidades indígenas se afirmaram como linhas de ação das pastorais. Muitas vezes,
os relatórios de trabalhos em aldeias eram organizados tematicamente, a partir dessa
classificação. Também podem ser encontrados em sistema de organização temática
dos encontros e seminários de capacitação missionária
157
.
Como ação pastoral, a maioria das missões atuou, predominantemente, no
aspecto da saúde e da educação. No plano específico da educação, a ação pedagógica
esteve preocupada em oferecer subsídios de aprendizagem, que auxiliassem os povos
indígenas, nas relações comerciais imediatas e na garantia da posse da terra. Existe
certa hierarquia, na distribuição das linhas de ação: sem terra, não tem como garantir o
direito à autonomia cultural; para possuir a terra é necessário garantir organização
política mínima. Para ter condições de organizar-se, é necessário ter saúde e dominar,
minimamente, os mecanismos documentais e organizacionais da sociedade nacional.
Nessa lógica, o direito a terra e a organização política tiveram primazia, no aspecto
ideológico e na priorização das macro estratégias de ação, enquanto as ações de
saúde e educação se fixaram no aspecto pragmático e cotidiano, servindo, inclusive,
como ferramenta de conquista de confiabilidade das comunidades indígenas
158
.
156
LEITE, 1982, p. 49.
157
Um bom exemplo de descrição metodológica pode ser encontrado no trabalho de Zwestch, que
analisa o percorrido teológico e as práticas pastorais decorrentes, desde a perspectiva da missão
luterana entre povos indígenas. Este tema será retomado com maior detalhamento no próximo
capítulo. Cf. Zwestch, 1993.
158
Diferentes estudos sobre a atuação das missões estão disponíveis somente em âmbito de relatórios
das pastorais ou de encontros de missionários e simpatizantes. Os grupos protestantes de maior
destaque no cenário da política indigenista são o Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (GTME) e
o Conselho de Missão entre os Índios (COMIN). Estas duas agências missionárias são muito próximas
uma da outra. Apesar de estarem explicitamente comprometidas com a evangelização dos povos com
90
2.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR KANAMARI: INICIATIVAS DA SOCIEDADE CIVIL E DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS
No final da década de 1970, sugiram uma série de organizações não-
governamentais, da sociedade civil, ainda no período da ditadura militar, que iniciaram
trabalhos junto às comunidades, pautadas na convivência de longa durabilidade, na
criação de laços de confiabilidade com as lideranças locais e na articulação das
mesmas com outras lideranças de outras comunidades. Na ação pedagógica, os temas
centrais que envolviam o trabalho missionário circulavam em torno da introdução da
escrita, de sua objetivação, considerando as experiências históricas vivenciadas até
então, pelo trabalho catequético.
159
Nesse tempo, alguns grupos foram criados, vinculados a algumas igrejas cristãs,
que iniciaram processo de consolidação da categoria indigenista, termo também usado
pelos profissionais da FUNAI, que trabalham diretamente nas comunidades indígenas.
No caso das organizações da sociedade civil, o surgimento do indigenismo deu-se no
contexto do trabalho de uma juventude, formada nas diretrizes dos trabalhos de
pastorais e comunidades eclesiais de base. Esses jovens se dispuseram a conviver
com povos indígenas, nas aldeias, e a desenvolver ações solidárias. No fim dos anos
1970 e em toda a década de 1980, o trabalho indigenista significou uma inserção nas
aldeias, num mapeamento etnográfico, acompanhamento populacional e
quem atuam, ambas enfatizam o envolvimento missionário na educação, saúde e movimento indígena,
atuando conjuntamente na realização de diversas atividades neste âmbito. Algumas vezes, elas agem
em parceria com os missionários católicos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e organizações
não-governamentais na condução de atividades comuns. Podemos citar a sua participação conjunta
no Comitê de Resistência Indígena, Negra e Popular, e na marcha indígena dos 500 anos, evento que
propunha fazer uma contra celebração dos festejos oficiais realizados pelo governo e Igreja Católica”.
RUFINO, Marcos Pereira. Nem de pregação vive a missão. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/missoes.shtm>. Acesso em 02 out. 2007.
159
O início do trabalho indigenista, na linha de ão educação, se deparou com a discussão da
introdução da escrita, considerando que os povos indígenas no Brasil são ágrafos. “A grande suspeita
contra a escrita está ligada à conquista e domínio que dos povos indígenas tivera o Estado servindo-se
dela. Embora a introdução da escrita e seu exercício não precisem da formalidade da escola, a prática
da alfabetização dificilmente se desenvolve fora dela. A magia da escrita se burocratiza quando ela
entra na escola, e a escola é quase sempre o espaço do Estado e das instituições que o representam.
O lugar físico, social e político que tem a escola na aldeia confunde-se facilmente com o lugar que
ocupa o Estado nesse povo”. MELIÁ, Bartolomeu. Desafios e tendências na alfabetização em língua
indígena. In: EMIRI, Loretta; MONSERRAT, Ruth (orgs). A Conquista da escrita. Encontros de
Educação Indígena. São Paulo: Iluminuras, 1989, p.11.
91
desenvolvimento de ações, no entorno das temáticas: direito a terra, formas de
economia, atenção à saúde, educação alternativa.
A realidade vivenciada pelos Kanamari, desde a perspectiva das experiências
educacionais, é cheia de movimentos afins aos processos de consolidação, retração,
inovação, manutenção de propostas sociais, que envolvem toda a população regional.
O trabalho da missão indigenista metodista insere-se nesse contexto, a partir de um
longo desenrolar de presença indigenista na região. Na região do Médio Juruá, entre o
povo Kanamari, a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) atua na aldeia chamada
Mamori. É um trabalho que possui mais de 20 anos. A introdução de uma primeira
proposta da grafia da Língua Kanamari foi feita pelo trabalho desses missionários e
missionárias. Particularmente pelo trabalho da missionária Ruth, a quem os kanamari
atribuíam o valor “conhecer a língua”. Pelo que disseram, a missionária esteve toda sua
vida vinculada ao estudo da língua, tradução da bíblia para o Kanamari e introdução da
grafia entre os mesmos
160
. O trabalho das MNTB se constitui na perspectiva de que o
aprendizado da língua grafada, com acesso ao texto bíblico, traduzido para ngua
materna, garante o caminho para o cristianismo fidedigno. A moradia dos missionários
fica a uma distância pequena da aldeia, desde onde criam um sistema de moradia em
modelo rural de migração, que pode ser interpretado como pretensão de um espaço
modelo que deveria servir de exemplo para a comunidade kanamari.
em fins da década de 1970, a Operação Amazônia Nativa (OPAN) iniciou um
trabalho indigenista, entre os kanamari. No modelo da OPAN, a convivência entre os
indígenas deve ser na própria aldeia, tentando, ao máximo, se fazer presente nas
demandas da vida cotidiana do grupo. A convivência deveria se estender entre várias
aldeias do mesmo grupo, para propiciar uma adequada interpretação etnográfica das
relações sociais intergrupais e para garantir uma leitura político-social adequada para o
trabalho indigenista. No caso específico da Educação, a OPAN iniciou, na década de
1980, um trabalho de levantamento lingüístico, que culminou com uma proposta de
160
Tive oportunidade de conhecer a missionária Ruth por ocasião da realização da primeira etapa do
Curso de Formação de Professores Kanamari, Kulina e Deni, realizado entre os dias 19 a 23 de março
de 2001. O Curso aconteceu nas dependências da MNTB, na aldeia Kanamari Mamori. A missionária
recebeu o grupo em alguns momentos pontuais e deu suporte aos professores Kanamari, ao longo da
realização do curso.
92
grafia
161
. Isso é diferente da proposta da MNTB, que serviu de parâmetro para o
trabalho em educação da OPAN
162
e, posteriormente, também para o trabalho da Igreja
Metodista
163
, que se deu em parceria e em continuidade ao que a OPAN vinha
desenvolvendo.
Ao longo da década de 1980 e década de 1990, a ênfase de trabalho em
educação destas organizações esteve no entorno de capacitação de professores e
articulação dos mesmos, através de uma rede de parcerias e movimentos, para
consolidar a garantia de direitos sociais e civis. O movimento dos professores indígenas
resultou na formação política de uma série de lideranças que hoje se encontram no
cenário nacional, despontando em ações e ocupando cargos de representação. No
Estado do Amazonas, uma primeira assembléia de Professores foi realizada em 1981,
no Alto Purus, contando com a participação das nações Apurinã, Kaxinauá, Jarawara,
Jamamadi, Kulina, Macuxi e Wapixana. Nesses encontros, os povos que traziam a
experiência de escolarização existente entre os indígenas eram rigorosos, no sentido
de avaliar o efeito destrutivo e violento da experiência. Também estava claro, contudo,
que se precisava de uma ão educativa, que ajudasse as comunidades, no
gerenciamento da relação com a sociedade do entorno
164
.
161
Há disponibilidade de material referente a este trabalho, oportunizado pela OPAN, realizado sob
responsabilidade do antropólogo e lingüista Marcio Silva, pesquisador da UNICAMP. RIBEIRO, Adelina
Vilma et al. Elementos de Fonologia Kanamari. Cuiabá: OPAN, 1986.
162
O trabalho na área de educação da OPAN pode ser encontrado na reunião de relatórios de encontros
indigenistas sobre a introdução da escrita, publicado em material organizado por Emiri e Monserrat.
EMIRI; MONSERRAT, 1989.
163
O trabalho metodista iniciou-se em 1992, quando dois metodistas, que participaram do curso de
formação para o indigenismo da OPAN, realizaram uma experiência de estágio e propuseram à Igreja
Metodista um apoio financeiro para permanecerem e dar continuidade ao trabalho de Educação.
Nesse tempo, a OPAN concentrava sua presença nas ações de garantia de demarcação de terras e o
trabalho em Educação seria suspenso. Graças à parceria da Igreja Metodista, o processo teve uma
continuidade, ao longo da década. O período de 1992 a 2002 está descrito e analisado em Relatório
da experiência, ainda não publicado, realizado por Solange Pereira e Silas Moraes, indigenistas que
atuaram na missão metodista entre os Kanamari, nessa época.
164
O relato da trajetória das assembléias pode ser encontrado no texto de Mariana Leal Ferreira, Da
origem dos homens à conquista da escrita: Um estudo sobre povos indígenas e educação escolar no
Brasil. No processo de organização, os encontros representaram, e representam, momentos decisivos,
nos quais as articulações culturais e políticas tornaram-se possíveis; as trocas de experiências e
conhecimentos fizeram surgir uma concepção de educação escolar indígena que respeita os
conhecimentos, as tradições e os costumes de cada povo, valorizando e fortalecendo a identidade
étnica, ao mesmo tempo em que procura passar conhecimentos necessários para uma melhor relação
com a sociedade o-índia. O conceito de professor indígena está ligado, como parte integrante, a
93
Os representantes, nessas assembléias, reclamavam a falta de escola para
alfabetizar seus filhos e reivindicavam que a escola não fosse semelhante à dos não
indígenas, porque desejavam
[...] projetar um amanhã em que as diferenças e singularidades – as diferentes
lógicas e racionalidades, as diversas maneiras de ver o mundo possam
compor um cenário complexo e rico (ético e esteticamente belo), contribuindo
para a superação do ideal de homogeneidade, ou seja, de uma certa
uniformização de idéias, valores e projetos que historicamente
predominaram.
165
.
Essa argumentação sinaliza as dificuldades vivenciadas, desde um modelo
educacional autoritário, experimentado por grande parte de povos indígenas, no Brasil,
ao longo da constituição de sua identidade, como Estado-Nação.
No caso do Estado do Amazonas, a formação dos professores indígenas, no
trabalho das organizações não governamentais, foi acompanhada de fomento a
espaços e processos participativos e representativos. Estas articulações, entre os
vários povos, construíram uma plataforma de reivindicações, que constituiu as
principais pautas, na interlocução com o Estado no período de implementação das
políticas do Estado em educação indígena. O Movimento dos Professores Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre na década de 1980, produziu uma experiência que serviu
como base de articulações no processo de implementação das políticas públicas em
educação indígena.
166
uma definição mais ampla: a proposta de uma escola indígena. Significa que seu trabalho pode se
realizar eficazmente, segundo os ideais afirmados, num modelo realmente indígena de escola e que
esse pode ser construído com a participação efetiva de todos: professores, lideranças, alunos e
comunidade indígena. FERREIRA, Mariana K. Leal. Da origem dos homens à conquista da escrita:
um estudo sobre povos indígenas e educação escolar no Brasil. Dissertação (Mestrado). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1992.
165
SILVA, Rosa Helena Dias. Escolas em movimento: trajetória de uma política indígena de educação.
Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, v. 111, n. dez/2000, p. 31-45, 2000. São
Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2000, p. 8.
166
Para maior detalhamento sobre essa questão, recomendo a tese de doutoramento de Maria Helena
Matos, que investiga os movimentos indígenas e sua organicidade. MATOS, Maria Helena Ortolan.
Rumos do movimento indígena no Brasil contemporâneo: experiências exemplares no Vale do
Javari. Tese (Doutorado). Programa de Doutorado em Ciências Sociais. São Paulo: Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Campinas, 2006.
94
Na esteira da discussão sobre escola na aldeia, aconteceram as discussões
sobre direitos a serem garantidos; respeito à forma de organização, a professarem suas
crenças, a possuírem sistema próprio de produção de desenvolvimento de tecnologia.
No espaço da escola, discutiu-se o espaço da dignidade na relação interétnica. Tratou-
se de um exercício típico de constituição de cidadania e afirmação de identidade social.
Na esteira dessa mobilização, entre os Kanamari, desde 1986, por iniciativa da OPAN
e, a partir de 1993, pela Missão Metodista, iniciaram ações, na área da Educação,
visando à criação e ao fortalecimento de uma escolarização diferenciada, focada na
valorização/ na intensificação da identidade cultural e da formação de educadores
indígenas.
167
Na Constituição Federal (arts 231, 210 e 215), destacam-se as dimensões de
culturas e realidades múltiplas, consideradas como constitutivas da nacionalidade
brasileira. São inúmeras e ainda incipientes as conseqüências das conquistas acima,
para o ordenamento de uma sociedade de direito que contemple as garantias aos
povos indígenas, no cotidiano das políticas públicas. A implementação, de fato, dessas
garantias se iniciou na segunda metade da década de 1990. Ou seja, praticamente uma
década depois da constituinte.
A gente lembrou de toda história. Dos cursos, das aulas e tudo que
aconteceu. A educação é como uma canoa. Tâkâna e madijá pegou ela e está
descendo o rio. Vamos ver para onde vai? Estamos querendo entender o
mundo dos brancos. A escola tem que funcionar do nosso jeito. Falando de
como vive Madija e Tâkâna. E o povo vai decidir o que vai estudar. E cada um
tem que fazer a sua parte: comunidade ajudando o professor no rado.
Assim ele pode participar em cursos. Mas o professor tem que dar aula. A
secretaria e o IERAM-Manaus tem que apoiar. Precisa dar material, fazer
escola, contratar professor.
168
O relato acima retrata uma realidade de 1999. Essas palavras contêm uma
dinâmica de trabalho e uma realidade contextual, que é objeto de análise do presente
167
Um relato cuidadoso desse trabalho foi produzido por Silas da Silva Moraes e Solange Pereira da
Silva, que atuaram como missionários metodistas, entre os kanamari, no período de 1993 a 1998. O
texto, “Formação de Educadores Kanamari: uma experiência indigenista na formação de educadores,
Rio Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência indigenista em escolarização”, retrata, de forma
extremamente detalhada, toda a experiência desse período. Trata-se de um testemunho desde o lugar
da experiência kanamari do fenômeno instaurado entre vários povos, por todo Brasil.
168
Cartilha do Encontro de Lideranças Madija e Tâkâna. Mimeo. Eirunepé, 16 a 20 de abril de 1996.
95
texto. O relato das condições de escolarização indígena, no Médio Juruá, não
representa as demandas cotidianas de muitos outros povos indígenas, habitantes no
Brasil. O estudo da situação atual da educação indígena, no Brasil, passa por uma
articulação de diferentes grupos indígenas e não indígenas, e suas lutas e conquistas,
nos últimos 30 a 35 anos. Somente depois da promulgação da LDBEN de 1996 é que,
de fato, o Estado começou a criar políticas para escolarização com direito a
diferencialidade nas comunidades indígenas, acompanhado pelo movimento de
professores indígenas, consolidado e aprendiz de modelos pautados na educação
popular e na escola participativa.
Na sociedade kanamari, a experiência de alfabetização é incipiente. A língua
portuguesa, ainda que de uso coloquial, nas aldeias têm uso restrito a situações
intermitentes de contato; é escasso o número dos falantes da Língua Portuguesa, em
cada aldeia. Menor ainda é o número daqueles que já passaram por algum processo de
formação. O tipo de uso da grafia, nas aldeias, é fragmentado e deslocado das
demandas do cotidiano. Numa descrição mais concreta, ainda é possível ver os
kanamari sendo enganados, na relação com o comércio local e com o comércio das
barcas, que levam alimentos e produtos industrializados diversos até a aldeia. Tive
oportunidade de presenciar, no mês de novembro de 2003, quando estive em Eirunepé,
relatos de denúncias de pessoas das comunidades, reclamando sobre decorrentes de
terem sido enganados no comércio. Nos relatos, percebi que permanecem os temas
das denúncias, todas atreladas ao desconhecimento dos kanamari, em relação à
Matemática Comercial.
Os trechos da Constituição Brasileira de 1988 contêm uma lista de garantias aos
povos indígenas, que estão pautando uma reivindicação típica, oriunda dos movimentos
indígenas. A expressão utilizada para garantir essa reivindicação é Autonomia, no
sentido de Autodeterminação. No entorno dessa expressão, trabalham a possibilidade
de escolher as regras que regem a conduta, determinar os elementos de interferência,
na sua realidade, e opinar sobre as ações que dizem respeito às comunidades, direta
ou indiretamente, bem como zelar pelo passado e eleger opções presentes e futuras.
Segundo Eduardo Viveiros de Castro:
96
Esta noção possui um sentido imediatamente político, o que nos remete ao
Estado. Por isso geralmente significa: autodeterminação face ao Estado
brasileiro. Estado este que tem tratado o índio como objeto de sua política
integracionista e protecionista [...] a autodeterminação, como idéia, sublinha,
ao contrário, o caráter de sujeito dos povos indígenas; sublinha sua diferença
ativa; sua capacidade virtual de definir os rumos da própria história. A
autodeterminação implica um direito à diferença, direito difícil de conceber e
conceder; de resto, direito que não se concede e sim se reconhece.
169
Identificar a escola como um caminho de consolidação de
autonomia/autodeterminação foi intenção presente nos encontros do Movimento de
Professores Indígenas. Segundo Meliá
170
, as propostas indígenas são revolucionárias,
porque defendem gestão autônoma, podem questionar os aspectos entendidos como
essenciais, nas políticas atuais, e que são totalmente desnecessários na proposição
indígena.
Se, por um lado, a imposição de uma agenda externa, no processo de formação
política dos professores era uma realidade, em termos de cotidiano, por outro, é papel
do professor fazer as mediações do conhecimento externo (supostamente aprendido na
formação) e o conhecimento interno às comunidades. Nesse viés específico,
desenvolveu-se o conceito da diferencialidade da educação indígena. As populações
indígenas procuravam superação dos modelos escolarizantes, conhecidos
historicamente (com proibição da língua materna e ão desarticuladora da
organização social). Nesse sentido, propunham resgatar a escola para si, para o zelo
das tradições.
A primeira das discussões que acalentam a escola diferenciada indígena é a
questão da educação bilíngüe, no contexto de um país que reconhece somente o
português como a língua oficial. No que tange aos povos indígenas, está-se falando de
uma realidade de 170 línguas diferentes
171
. A diversidade sociolingüística, presente
entre os vários povos indígenas, representou sempre um desafio para a implementação
169
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A autodeterminação indígena como valor. In: Anuário Antropológico
81. Fortaleza/Rio: Tempo Brasileiro, 1983, p. 235.
170
Cf. MELIÁ, Bartolomeu. Educação Indígena e Alfabetização. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 38.
Brasília: CEBRAP,1994.
171
Cf. RICARDO, Carlos Alberto (org.). Povos indígenas no Brasil: 1996-2000. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2000.
97
das escolas nas aldeias, sob a égide dos princípios de autodeterminação. Há casos em
que a língua materna é fragmentariamente falada, somente no âmbito familiar; há casos
de desaparecimento da língua materna; casos de nenhum falante do português na
aldeia; há casos de pouquíssimos falantes de português; há casos de populações
ágrafas... uma infinidade de variações.
A afirmação da língua materna, no ensino bilíngüe, é uma demanda consensual
nos estudos antropológicos e lingüísticos
172
. Em muitas comunidades indígenas no
Amazonas, no entanto, a escola serve para ajudar a aprender o Português (falado e
escrito), garantir a apropriação da matemática financeira, para superação dos
constantes engodos a que são submetidas às comunidades. Na região do Médio Juruá,
o ordenamento social ainda é muito pautado pelo sistema próprio de tradições e
reciprocidade. O contato interétnico é pontual, sazonal e de interferência mediana, nas
lidas cotidianas. No caso da escola, é muito comum o descaso dos kanamari com a
necessidade de aprendizado da língua materna e da conversa, na escola, das
tradições. A língua e as tradições se sustentam no próprio cotidiano, pra que colocar na
escola? Esse debate tem sido um eixo de negociação constante, nas diversas ações
que envolvem a discussão sobre o papel da escola na vida das comunidades.
A escola na aldeia é uma expectativa que aparece como desejo e como
afirmação. Os princípios que têm norteado o fortalecimento da autodeterminação das
comunidades indígenas para constituir suas escolas são: participação ativa das
comunidades indígenas, envolvidas, tanto no desenho quanto na operacionalização dos
projetos; formação de indivíduos indígenas, de modo a que os próprios membros das
comunidades envolvidas assumam o processo de docência e de gestão das escolas
indígenas; a perspectiva de focar o processo educativo no atendimento das demandas
postas pela comunidade indígena; escola como aliada no processo de controle social
da comunidade, agregando valores aos projetos futuros.
172
Cf. SILVA, Marcio Ferreira da; AZEVEDO, Marta Maria. Pensando as escolas dos povos indigenas no
Brasil: o movimento dos professores indigenas do Amazonas, Roraima e Acre. In: SILVA, Aracy Lopes
da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Temática indígena na escola, novos subsídios para
professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/ MARI/UNESCO, 1995, p 147-166.
98
No caso da experiência kanamari, os primeiros ensaios de escola na aldeia,
desenvolvidos por membro da própria comunidade (com educador kanamari
conduzindo o processo), ocorreram com o trabalho da Igreja Metodista, no início da
década de 1990. A Igreja Metodista, na época, optou por não continuar desenvolvendo
as atividades docentes, através da contribuição dos/as missionários/as, mas realizar um
processo de formação de educadores. Foram desenvolvidos, então, os encontros de
formação, que criaram uma identidade de professor para alguns jovens escolhidos, em
suas comunidades, para esse papel. Nesse grupo de kanamari, era escolhido o
representante, para participação das articulações das assembléias de professores. No
entorno desse grupo, foram desenvolvidas as conversas e incipientes iniciativas de
consolidar a iniciativa do Estado do Amazonas, no sentido de oferecer formação aos
professores kanamari.
O que devemos buscar, tanto em termos de macropolíticas, quanto do
exercício particular de experiências pontuais junto a cada povo indígena é
uma escola que potencialize a expressão das identidades culturais que,
informadas por sentimentos étnicos, inserem-se no movimento de busca de
novas formas de relacionamento com os demais segmentos da sociedade
brasileira, a serem pautadas pelo respeito mútuo, pelo exercício da
compreensão e pela tolerância.
Talvez seja o momento de se começar a por em prática uma política afirmativa
por parte do Estado brasileiro que impulsione o sentimento de pertencimento
étnico por parte dos povos indígenas, como parte do necessário resgate que
precisa ser feito da dívida secular contraída pelo Estado e pela sociedade em
relação a esses povos. Para tanto, não basta fazer pelos índios, mas fazer
com eles, possibilitando o protagonismo indígena, tanto no nível local, da
docência e da gestão da escola da aldeia, quanto no nível nacional, da
definição e na implementação das políticas públicas a eles dirigidas.
173
A luta social dos povos indígenas resultou em conquistas, que possuem algumas
tutelas da sociedade civil e das estruturas do Estado Brasileiro. No entanto, ao poucos
se instituem realidades que possibilitam autonomia e aquelas que estão monitoradas
por agentes externos, tais como missões indigenistas, instituições governamentais e
organizações não governamentais. No caso da educação indígena, houve uma série de
encontros e a participação de grupos indígenas, em espaços que viabilizaram a
173
GRUPIONI, 2003, p. 120.
99
organização de professores, para busca de afirmação das agendas e solicitações que
os encontros de professores definiam como pauta prioritária.
Como sociedade civil organizada, algumas dessas experiências resultaram,
posteriormente, em base para a implementação de políticas públicas, por parte da
União, dos Estados e dos municípios. Dependendo da situação, a implementação da
política pública tem resultado em arremedo, o que compromete, em muito, a
participação indígena. Em muitos encontros indigenistas, os temas de tensão reúnem
preocupações focadas em interpretar as políticas públicas, nas diferentes situações e o
aliciamento dos movimentos indígenas, no processo de implementação das ações
estatais.
174
Tive a oportunidade de participar do segundo seminário de Educação Escolar
Indígena do Estado do Amazonas, em maio de 2001, quando lideranças indígenas de
todo o Estado ficaram boa parte do tempo escutando antropólogos, educadores,
sociólogos e autoridades do Estado. O espaço de debate ficou reduzido à apreciação
de propostas prontas, que foram submetidas à mera aprovação, sem nenhum espaço
de construção real das diretrizes traçadas. A diferença do primeiro seminário, em maio
de 1998, foi bastante comentada, nas conversas de corredor. A principal crítica era
direcionada à metodologia, que, em 1998, tinha sido mais participativa de
representatividade indígena, até mesmo da preparação do seminário. No transcorrer do
segundo seminário, as pessoas que haviam participado do primeiro ficaram
extremamente preocupadas, com o processo de hierarquização das tomadas de
decisão sobre a Educação Escolar Indígena.
Observa-se, então, que por um lado existem as comunidades, na expectativa de
que a escolha de seus jovens torne viável a escola indígena, constitutiva de direitos
pró-autonomia; por outro, a ação do Estado, estabelecendo processos
pressupostos na estrutura da máquina estatal, enrijecidos por modelos burocráticos,
174
Cito, como exemplo, o seminário sobre Políticas Públicas e as Pastorais, realizado pelo Grupo de
Trabalho Missionário Evangélico, na Chapada dos Guimarães, na casa de encontro da IECLB, em
julho de 2003. Na ocasião, o centro do debate foi a discussão da imposição dos modelos estruturantes
do Estado e a imposição de regras totalmente destituidoras da autonomia indígena e de um sistema
participativo de gestão de decisões.
100
típicos do funcionamento próprio da quina blica. Em que medida essa fórmula
resultará em melhores condições para o povo Kanamari é uma situação em aberto.
A iniciativa do Estado do Amazonas, em garantir educação escolar nas aldeias
indígenas no Estado, resultou numa proposta de formação de professores indígenas,
nomeada Projeto Pira-Yawara (“boto”, na Língua Tupi), sustentada na aliança do
Estado com os municípios onde estão as escolas. Essa fórmula foi interessante. É uma
política implementada simultaneamente à criação do Fundo de Desenvolvimento do
Ensino Fundamental (FUNDEF), que condicionou o recebimento de recursos nos
municípios, a partir da declaração do senso escolar, realizado anualmente. O Estado do
Amazonas municipalizou as escolas indígenas, para que os municípios recebessem
recursos da Educação, o que tornou viável assalariamento e formação dos professores.
O assalariamento dos professores kanamari iniciou-se simultaneamente ao
assalariamento dos agentes de saúde, pela implementação dos distritos sanitários de
saúde indígena. Com os salários, a capacidade de articulação dos professores se
fragilizou, as reinvidicações ficaram condicionadas ao salário. O salário deslocou as
áreas de interesse imediato, inclusive quanto à implementação de ações historicamente
reivindicadas em outros tempos.
A introdução do acesso ao dinheiro, através de assalariamento, não é tão
recente entre os kanamari, que já tinham sido mão-de-obra dos seringalistas, no
período da ocupação da terra, ou tinham trabalhado em relações diversas com a
sociedade do entorno. A novidade do assalariamento de professores e agentes de
saúde é o fato de o dinheiro ser dado para uma atividade que mal havia iniciado sua
trajetória de consolidação, na identidade social interna das comunidades. Se juntarmos
essa remuneração ao acesso à aposentadoria rural, por parte dos mais velhos
indígenas, fomentado pelos funcionários da FUNAI na região, teremos um quadro
inigualável de volume de dinheiro circulando e se relacionando nas comunidades,
renovando as condições de trocas e reciprocidades presentes no ordenamento social
tradicional.
O Pira-Yawara pressupõe uma matriz curricular, realizada em duas dinâmicas
constitutivas da formação do professor indígena: 1) as etapas intensivas de
101
aprendizagem; 2) as etapas de experiência das escolas nas aldeias, que exige
acompanhamento pedagógico dos municípios (realidade que, no médio Juruá, nunca se
efetivou). Na realidade, é um projeto oriundo de uma experiência inicial da Secretaria
do Estado, através do IER-AM, na formação de professores Sateré-Mawé, que teve
interlocuções importantes de antropólogos, oriundos de diversos lugares do Brasil.
Além disso, contou com subsídio extenso provindo da articulação dos professores
indígenas da região norte e da participação e luta dos professores do Estado, para
constituição do Conselho Estadual de Educação Indígena. O fruto final dessa matriz
curricular foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, para certificação do
estado, como ensino fundamental (até certa carga horária cumprida) e para ensino
médio (com um restante de carga horária).
O Pira-Yawara representa um esforço significativo de aproximar demandas
indígenas das estruturas pressupostas no Estado Brasileiro, para implementação e
acompanhamento de processos escolarizantes. Toda burocratização de processos, no
entanto, impede a continuidade de uma dinâmica de trabalho participativo efetivo e
acaba deslocando o protagonismo comunitário para uma interminável expectativa de
preenchimento de papéis e cumprimento das exigências do Estado. O Plano Nacional
de Educação, de 2000, estabelece como metas:
Objetivos e metas:
1. Atribuir aos Estados a responsabilidade legal pela educação indígena, quer
diretamente, quer através de delegação de responsabilidade aos seus
Municípios, sob a coordenação geral e com apoio financeiro do Ministério
da Educação.
2. Universalizar imediatamente a adoção das diretrizes para a política nacional
de educação escolar indígena e os parâmetros curriculares estabelecidos
pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação.
3. Universalizar, em dez anos, a oferta às comunidades indígenas de
programas educacionais equivalentes às quatro primeiras séries do ensino
fundamental, respeitando seus modos de vida, suas visões de mundo e as
situações sociolingüísticas específicas por elas vivenciadas.[...]
8.
Assegurar a autonomia das escolas indígenas, tanto no que se refere ao
projeto pedagógico quanto ao uso de recursos financeiros públicos para a
manutenção do cotidiano escolar, garantindo a plena participação de cada
102
comunidade indígena nas decisões relativas ao funcionamento da
escola
175
.
A orientação acima acontece, no contexto de cinco anos após a promulgação da
Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional, em 1996. A importância do Plano
Nacional, ainda que sua implementação seja carregada de críticas e não
implementação, no contexto da experiência no Estado do Amazonas, é perceber em
que medida as reinvidicações que já vinham sendo feitas, nos encontros de
professores, se tornaram agenda nacional. O tempo de formulação do Plano Nacional
foi simultâneo à elaboração do Pira-Yawara, no Amazonas.
A versão do Pira-Yawara, para Eirunepé, constituiu-se em um movimento
interessante, no sentido de tentar garantias às reivindicações que as comunidades
vinham construindo até então. O projeto foi nomeado Pirarucu (outro peixe típico da
região amazônica). Sua redação foi uma cópia literal, principalmente em se tratando da
matriz curricular, do Pira-Yawara. Estavam previstas 11 etapas intensivas, de dois
meses, que aconteceriam semestralmente e o acompanhamento dos coordenadores
dos municípios. O Pirarucu reuniu povos de sete municípios, que tinham em comum a
identidade étnica, a região geográfica habitada, ou mobilização política conjunta. A
primeira etapa aconteceu em janeiro de 2000, período em que eu estava chegando na
região, para o meu trabalho como indigenista.
Em 1998, foi realizado, em Eirunepé, o Seminário de Educação Indígena, com
representação da Secretaria de Educação do Estado, Secretaria de Educação dos
municípios da região, com representação indígena (lideranças e professores), com
representação da entidades indigenistas da região. Nesse seminário, traçou-se a
estratégia para implementação do que ficou nomeado Projeto Pirarucu. Representantes
dos povos Kulina e Kanamari relataram suas experiências, apontaram suas
expectativas e reivindicaram suas demandas. Foi um seminário organizado e proposto
pelas entidades indigenistas, na região OPAN, MIMEKA e COMIN. Era um momento
em que os professores kanamari e kulina não queriam perder a possibilidade de ver
175
Plano Nacional de Educação. Lei 10.172 de 09 de janeiro de 2001. Publicado no Diário Oficial da
União de 10/01/01, p.01 seção I.
103
implementada na região a proposta, recém conhecida em âmbito de Estado (Pira-
Yawara). A pressão das entidades e o desejo da Secretaria Municipal de Educação de
efetivar as escolas indígenas, o que representaria um incremento no volume de
recursos do FUNDEF a ser recebido no município, tornaram possível dar início à
realização de algumas etapas, mesmo que, até hoje, ainda não haja documentos
formais, sinalizando a parceria do governo do Estado com os municípios envolvidos.
Após o seminário de 1998, em Eirunepé, para implementar a educação escolar
indígena, os municípios estabeleceram parceria com as entidades indigenistas
Operação Amazônia Nativa (OPAN), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Conselho
de Missão entre Índios (COMIN) e Missão Metodista entre o povo Kanamari (MIMEKA).
Eram estas entidades, na época, detinham conhecimento do número de aldeias, da
localização das mesmas, da situação de alfabetização, da situação de regularização
das terras. Nas etapas intensivas que se realizaram, as entidades se fizeram presentes
e acompanharam a realização das etapas. Em alguns casos, houve indicação de
docência para a formação de professores. No entanto, somente foram realizadas quatro
etapas intensivas e a última foi fragmentada em parcelas, depois de dois anos de não
realização de formação.
A não continuidade das etapas intensivas e o não acompanhamento pedagógico
nas aldeias, no entanto,o resultaram na extinção das escolas nas aldeias. As
comunidades iniciaram um processo de fiscalização do trabalho, monitorando o
professor indígena pelo critério do assalariamento e já não pelas conquistas que a
escola garantiria à comunidade. O caso mais grave parece ser a ausência das
coordenações pedagógicas nas aldeias. No ano de 2001, a MIMEKA recebeu apoio do
MEC, da Coordenadoria Geral de Educação Escolar Indígena, para realizar uma
experiência de acompanhamento pedagógico nas aldeias e diagnóstico do impacto dos
conteúdos da etapa intensiva, na vida cotidiana nas aldeias. Na execução desse
104
projeto, foi que aconteceram as poucas viagens de visita às aldeias da coordenadora
pedagógica para educação indígena do município de Eirunepé
176
.
Nessa experiência de acompanhamento às escolas kanamari, vários foram os
modelos que estavam sendo experimentados nas comunidades. A repetição dos
conteúdos das etapas intensivas de formação dos professores mostrou o mecanismo
de repasse de informações, típico da tradição das reuniões e encontros para articulação
política. A definição de planejamento e organização didática, no entanto, é uma
situação tão inexistente que ainda pede um acompanhamento próximo (a ser feito pelo
Estado ou entidade da sociedade civil).
Nas aldeias permanecem as demandas de sempre: aprendizado do
funcionamento do mundo dos “de fora”, para proteção dos interesses internos. Com a
não consolidação da formação de professores, no médio Juruá, a escola kanamari
constituiu um espaço de controle da comunidade. A novidade talvez fique para a
experiência de projetos de alternativas econômicas sustentáveis. Esses projetos foram
acompanhados de atividades de capacitação, envolvendo os professores e os agentes
de saúde kanamari.
Compartilho aqui, como parâmetro de perspectiva, a lista que os professores
kanamari construíram, em 1997, como ideário da escola kanamari
177
:
escola na aldeia;
que ensine a língua kanamari e o português;
que ensine matemática;
que dê força à cultura kanamari;
que ajude a defender a terra kanamari;
que se organize para garantir material escolar e construção de escolas;
176
Os relatórios dessa experiência estão impressos e disponíveis na sede do trabalho da OPAN e
MIMEKA, em Eirunepe, na sede Nacional da Igreja Metodista e eu os tenho comigo. Fui responsável
pela coordenação do Programa Assessoria a Professores e Suplentes Kanamari.
177
Retirado de relatórios da missão metodista kanamari, disponíveis no arquivo da missão em Eirunepé.
105
que as comunidades sejam conselheiras das escolas;
que os professores indígenas aprendam a ensinar do jeito kanamari;
que aprendam e ensinem a história e geografia dos kanamari e de outros
povos.
O tempo presente é marcado por muitas incertezas, na implementação das
políticas públicas, na região do médio Juruá. Uma região rodeada de águas, que conta
o tempo numa lógica própria, inadequada às pressas das agendas urbanas, que
pressupõe uma política diferenciada até mesmo para as populações não indígenas que
habitam. Quais são os avanços e as dificuldades históricas que as políticas públicas
têm enfrentado na região? Em que medida esse movimento redesenha as experiências
kanamari nas aldeias? Responder a essas questões pressupõe descrição dos
cruzamentos das experiências e as significações que estes vão construindo nas partes
envolvidas.
Aos olhos do indigenista insatisfeito com o modelo de implementação da política
pública, por parte do Estado, a situação é preocupante e profundamente insatisfatória.
Mas, como achar insatisfatório o ingresso de recursos financeiros, merendas para
escola e outras materialidades que a escola municipalizada introduziu? A insatisfação
poderá vir com o tempo, com a permanente situação de exploração comerciária, que
não se resolverá, se a escola não funcionar como alfabetizadora de fato. Essa
demanda, sendo canal de identidade vital para as comunidades kanamari, no tempo
certo se fará presente novamente.
A ão indigenista, na região do Médio Juruá, tem constituído outras agendas,
na espera de verificar em que medida a ação do Estado consegue ser autogestora da
relação com as comunidades kanamari. A primeira experiência que entendo ser
estimuladora de mudança é a participação conjunta, mesmo que com interesses
distintos entre si, da sociedade civil no entorno, das iniciativas do poder público
municipal, estadual e federal. São esforços que se encontram em várias ações, que vão
tornando possível a constituição do professor kanamari e qualificando sua experiência,
106
para continuar discutindo e construindo a escola kanamari, nas aldeias a que
pertencem.
Outra experiência é a formação de professores, que ocorreu em novembro de
2003 e maio de 2004. Quando muitos estavam convencidos de que a formação de
professores, no médio Juruá, não teria continuidade, por forças múltiplas,
principalmente dos próprios professores kanamari e kulina, o curso aconteceu,
fragmentário, bem desqualificado didaticamente, mas presente e ressurgente. O que
isso sinaliza para o tempo futuro? É uma incógnita, mas tem uma intensidade de desejo
de ir mais à frente, que, a meu ver, deu garantias históricas de continuidade do povo
kanamari na região.
3 MISSÃO METODISTA E EDUCAÇÃO ESCOLAR KANAMARI
“Feriados” no entender de muitos naturais do país são aqueles aos quais
todos os outros dias estão subordinados. É pelo tempo das festas que a
natureza produz as mais saborosas frutas e as mais lindas flores. Velhos e
moços aguardam as festas com viva ansiedade. Humildes e abastados
gastam, então, livremente.
178
O comentário acima é feito desde um olhar de estranhamento e está relacionado,
em seu contexto redacional, à crítica dos costumes em terras brasileiras, desde o olhar
de um missionário protestante. Daniel Kidder, autor de textos considerados fontes
históricas, na pesquisa sobre o Brasil do final do século de XIX, era missionário
metodista da Igreja Metodista do Norte dos Estados Unidos da América. O ímpeto de
tornar o mundo cristão e protestante é uma característica marcante do evangelismo
pietista, que marca o crescimento do metodismo nos Estados Unidos e, posteriormente,
no mundo sob os impulsos de evangelização norte-americana. Marcada pela cisão
norte-sul, que caracterizou a sociedade norte-americana, em sua história no século XIX,
a Igreja Metodista dos Estados Unidos também se organizava, conciliarmente, em Norte
e Sul. No modelo missionário do concílio da igreja do norte, os missionários e
missionárias metodistas tinham certo apoio de suas conferências originárias, mas
deviam exercer funções trabalhistas diversas, para se sustentarem e sustentarem a
missão, em seus campos de atuação. Kidder foi representante da Sociedade Bíblica
179
.
178
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Sul do
Brasil. Belo Horizonte, São Paulo: Ed. Itatiaia, Ed. da USP, 1980, p. 97.
179
Breve referência biográfica de Daniel Kidder encontra-se na introdução da publicação de suas
reminiscências no Brasil. Cf. KIDDER
, 1980, p. 7ss.
108
A venda e distribuição de bíblias foi uma estratégia amplamente utilizada por
missionários protestantes, de diversas origens geográficas, que vinham ao Brasil. Estes
missionários compreendiam que a população necessitava passar por um processo de
renovação moral e espiritual.
180
O único caminho possível, para tanto, seria a
superação de seus problemas, para partilhar da categoria de nação desenvolvida.
“Toda idéia de renovação, de recomeço, de restauração, por muito diferentes que se
suponham os planos em que se manifesta, é redutível à noção de nascimento e esta,
por sua vez, a de criação cósmica”
181
.
A educação, como estratégia de consolidação de um processo de renovação, foi
utilizada pelas missões católicas, ao longo do processo de colonização
182
e continuou
sendo uma estratégia importante, na consolidação dos ideários republicanos, em
180
Rodrigo Nobrega propõe uma análise, onde o desejo de regeneração é o mito presente, no imaginário
evangélico que influenciou e influencia o crescimento das denominações evangélicas no Brasil: “nosso
propósito é analisar um mito, que parece apresentar-se sob duas feições as quais, na verdade,
imiscuem-se uma na outra a primeira religiosa, a segunda política, colocam-se duas possibilidades
de abordagem. Na primeira, o mito é uma típica manifestação do caráter religioso do ser humano,
calcado em estruturas arquetípicas do inconsciente coletivo, as quais podem servir também de base
para a composição de mitos do campo político. Na segunda, o mito serve para dar uma explicação
organicamente estruturada para questões que, pelo contrário, não admitem respostas lógicas, de sorte
que os mitos, tanto religiosos quanto políticos, podem ter estruturas semelhantes, embora de
fundamentos inteiramente arbitrários. Concluímos que, por aproximação comparativa, haja ou o a
dita estrutura arquetípica básica, duas explicações, uma do campo religioso, outra do campo político,
podem ser consideradas duas faces de um mesmo mito, uma vez que haja identidade entre as
dinâmicas de organização em que se apresentam” NOBREGA, Rodrigo. Mito da Regeneração
Nacional: Missionários protestantes, políticos liberais e a salvação do Brasil (século XIX). In: Revista
Intellectus. Ano 03 Vol. II 2004. Disponível em: <http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano3n2/
Texto%20de%20Rodrigo%20 Nobrega.pdf>. Acesso em 20.jan.2007.
181
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 335.
182
Segundo análise de Sady Carnot, a “Companhia de Jesus passou a recomendar que a catequese e a
conversão fosse feita sem auxílio de intermediários, o que obrigou aos jesuítas a iniciar uma proposta
de formar os línguas no próprio interior da hierarquia da Igreja, exigindo que todos tivessem que
procurar formas de adquirir o conhecimento da língua indígena. Os colégios de toda a colônia
funcionavam, assim, como centro de formação de intérpretes, dando-se muitas vezes maior ênfase ao
conhecimento da língua brasílica do que às questões teológicas e outras disciplinas da formação
eclesiástica, substituindo em muito o grego, língua importante para formação dos clérigos da época,
preocupando-se muito mais em transformar os noviços em lingüistas do que em teólogos”. CARNOT,
Sady. O mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos. Educação e conversão Séculos XVI e
XVII. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Educação. Piracicaba-SP: Unimep, 2006, p.
98.
109
oposição à monarquia – que representava atraso e conservadorismo prejudicial ao
desenvolvimento do país
183
.
O estabelecimento de missões protestantes no Brasil é um fenômeno bastante
recente, muito embora encontremos relatos históricos da presença de
protestantes em terras brasileiras desde o período colonial. Mas foi somente a
partir da segunda metade do século XIX que os protestantes, de origens
missionárias, desembarcaram em portos brasileiros. [...] chegaram ao Brasil
com propósitos idênticos de evangelizar e educar a nação. Uma das
conseqüências imediatas dessa presença foi o abalo da hegemonia
estabelecida pela Igreja Católica no campo religioso, político e cultural. Nesse
contexto de acirramento, as principais forças conservadoras da Igreja Católica,
sentindo-se acuadas, colocaram-se contra tudo que fosse considerado
perigoso para a manutenção de sua e de seu poder. Entre esses perigos
estavam relacionados, num mesmo nível, o galicanismo, o liberalismo, o
protestantismo, a maçonaria, o positivismo, o deísmo, o racionalismo, o
socialismo e certas medidas liberais propostas pelo estado civil, tais como a
liberdade de religião, o casamento civil e a liberdade de imprensa. A resultante
dessa ação foi o fortalecimento das novas correntes ideológicas que, a partir
da segunda metade do século XIX, começaram a freqüentar o ideário
filosófico e político daqueles intelectuais que, inspirados na Revolução
Francesa e no ideal de liberdade expresso na constituição norte-americana,
anteviam benefícios para a sociedade brasileira.
184
No contexto de consolidação das missões protestantes, em fins do século XIX e
início do século XX, desencadeou-se a implantação da tradição educacional metodista,
em território brasileiro. Ao explicitar as relações e interdependências da prática
educacional metodista e o momento histórico brasileiro, quanto às políticas públicas em
educação, adquirimos ferramentas metodológicas para compreender o contexto
missionário indigenista da igreja metodista. As práticas educacionais metodistas, no
Brasil, têm sido alvo de estudos diversos e publicações conhecidas, no meio
183
Cesar Vieira, ao analisar a presença protestante no Brasil, afirma que a educação foi utilizada pelo
movimento republicano, como mote para uma revolução passiva. A segurança no processo
transformador da educação sobre a sociedade aparece em vários discursos de líderes republicanos de
fins do século XIX, no Estado de São Paulo. “A educação era considerada como um motor que
impulsionaria a história em direção ao progresso infinito”. VIEIRA, César Romero Amaral.
Protestantismo e educação: a presença liberal norte americana na Reforma Caetano de Campos
1890. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Educação. Piracicaba-SP: Unimep, 2006,
p. 151.
184
VIEIRA, César R. A. Contribuição protestante à reforma da educação pública paulista. Revista
Comunica, n. 20, jun, 2002. Piracicaba: Unimep, 2002. Disponível em:
<http://www.unimep.br/fch/revcomunica/jun%202002/art14.pdf>. Acesso em: 04.jan.2008. p.2.
110
acadêmico brasileiro
185
. Faz-se necessário um levantamento das práticas indigenistas
metodistas à luz do seu discurso educacional, desde a identidade missionária do
metodismo brasileiro. Focarei minha abordagem a seguir em duas questões. Primeiro, a
pretensão discursiva sobre a pessoa humana, nas intenções missionárias metodistas;
seus vínculos com a constituição do ideário educacional, em âmbito do discurso
religioso e do discurso educacional brasileiro, em perspectiva às propostas das políticas
públicas. Segundo, o caráter experimental da prática educacional metodista, entre
povos indígenas no Brasil, suas características organizacionais, discursos oficiais e
práticas missionárias. A Pastoral Indigenista Metodista, entre o povo Kanamari, será
abordada desde a perspectiva dialógica com essas duas aproximações temáticas.
3.1. MISSÃO E EDUCAÇÃO METODISTA: A PRETENSÃO DA CIDADANIA
O metodismo mundial tem como expressão de sua missão os projetos
educacionais que constituíram educandários em todos países, sem exceção, em que a
expansão do metodismo alcançou
186
. A concepção teológico-filosófica da prática da fé,
aliada à formação educativa, era compreendida como atos de piedade e obras de
misericórdia, exercícios considerados necessários para o aperfeiçoamento cristão,
pressupostos fundamentais da teologia metodista, influenciada pelos movimentos
místicos pietistas e puritanos, desde sua época de nascimento e crescimento
histórico
187
. A educação, como ação para ordenação da conduta social não é uma
característica exclusiva da missão metodista. Muitas das principais ordens religiosas, no
Catolicismo Romano, também instituíram educandários com esta perspectiva, no
185
É tradição no metodismo mundial a prática educacional como instrumento de missão. No Brasil, o
metodismo possui uma tradição educacional consolidada, nos locais em que o metodismo possui mais
de 50 anos de presença religiosa. Na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), está situado o
Centro de Estudos e Pesquisas sobre Metodismo e Educação e, no programa de Filosofia da
Educação, existe uma linha de pesquisa sobre educação protestante. Alguns dos resultados desse
trabalho pode ser acessado ou pesquisado na biblioteca virtual do Programa de Pós-Graduação da
UNIMEP. Na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do
Campo, existe o Centro de Estudos Wesleyanos, dedicado a organizar o pensamento wesleyano, nas
práticas teológicas e pastorais no metodismo brasileiro. UNIMEP. Disponível em:
<http://www.unimep.br/phpg/bibdig/>. Acesso em: 20.fev.2007.
186
Atualmente, existe uma rede de relacionamentos internacional, chamada Internacional Association of
Metodists Schools, Colleges and Universities (IAMSCU), que trabalha justamente com a missão de
constituir alianças entre essas instituições.
187
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. São Paulo:
Edições Paulinas, 1984, p. 42.
111
processo de crescimento e consolidação missionária. Na colonização brasileira, a tarefa
educacional ficou a cargo de missões religiosas católicas, por um longo período de
tempo
188
. Somente no período da vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, é
que se iniciou um processo de criação e consolidação das instituições públicas de
educação
189
.
O metodismo emergiu como movimento em 1725 e foi caracterizado como
herdeiro das sociedades religiosas inglesas, surgidas a partir do ano de 1675. Estas
sociedades, organizadas por leigos/as sob a supervisão de clérigos, denominaram-se
em diferentes períodos da história como Sociedade para a promoção do conhecimento
cristão (1670), Sociedade para a Reforma dos Costumes (1698) e Sociedade para a
propagação do Evangelho (1701). As sociedades religiosas refletiam o imaginário social
do protestantismo, no processo da Revolução Industrial, que promoveu rupturas no
ordenamento social inglês, bem como nos paradigmas que sustentavam as relações
sociais existentes
190
. Constituiu-se, a partir dessa época, o chamado contrato social
moderno, estabelecido sobre a relação de vender ou comprar a força de trabalho
humana entre livres.
191
188
A atribuição de responsabilidade de oferecer educação à iniciativa pública tem sido debatida na
história do pensamento pedagógico, desde os tempos do iluminismo. Desde o iluminismo, vivemos a
existência nem sempre confluentes de diferentes proposições instituintes de educandários, desde
posturas anti-clericais e diferentes propostas religiosas cristãs (em âmbito do catolicismo romano e do
protestantismo incipiente). Mario Alighiero Manacorda, em História da Educação, aponta como entre os
setecentos e os oitocentos se forjou a concepção de educação como humanização e a instituição da
idéia de educação vinculada à responsabilidade do Estado. Até os oitocentos, a educação pública era
ainda associada a uma idéia de educação pública religiosa. Sugiro leitura do capítulo 5, O pensamento
pedagógico renascentista, do livro História das Idéias Pedagógicas, de Moacyr Gadotti. Cf.
MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação. São Paulo, Cortez/ Autores Associados, 1989;
GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2004.
189
Até a chegada da corte portuguesa ao Brasil, a educação de crianças e adolescentes, no Brasil, era
feita predominantemente por preceptores e algumas poucas escolas confessionais católicas.
190
HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o Povo Chamado Metodista. São Bernardo do Campo/Rio de
Janeiro: Editeo/Pastoral Bennett, 1996. p. 21-25.
191
Essa aproximação é descrita por Simone Dorneles, da seguinte maneira: “Nesse novo cenário cultural,
os movimentos religiosos protagonizaram processos sociais fundamentais para a consolidação do
novo modelo de cidadania exigida, caracterizando o que Ester Buffa denominou como ‘laicizar o saber,
a moral, a política’. Encontram-se, assim, convergências interessantes entre as premissas teológicas e
as práticas eclesiais comunitárias próprias dessas sociedades religiosas e o pensamento de homens
ilustrados como René Descartes (1596-1650), Jean Amos Comenius (1592-1670) e John Locke (1632-
1704). No decorrer do século XVIII, os pais do método, da didática e do liberalismo, influenciaram os
ideais reformistas e suas práticas educativas organizadas pelos princípios da ordem, da disciplina e da
pressuposta igualdade entre os indivíduos”. DORNELES, 2007, p. 47.
112
Tem sido longa a trajetória do conceito de educação, para o trabalho e para o
ordenamento social, e não é uma exclusividade das pretensões missionárias
metodistas. A influência desse conceito, aliada à idéia de que o Estado deve assumir o
caráter laico da tarefa educacional, é uma pretensão instituída desde o século XVII e
XVIII. No Brasil, a primeira experiência de implementação de políticas públicas
educacionais, visando à inserção no trabalho, apareceu na proposta de ações visando
às populações indígenas, no Diretório dos Índios de Marquês de Pombal
192
.
Tradicionalmente, contudo, confere-se à chegada da família real ao Brasil o ponto de
partida para a implementação de escolas públicas, iniciada com a criação de
faculdades, no nordeste e sudeste brasileiro.
A proposta educacional das tradições protestantes, no Brasil, com origem formal
a partir da abertura dos portos, no período de D. Pedro II, alia-se ao ideário republicano
da escola secular e laica. A implementação e o crescimento de várias escolas
protestantes, em particular a metodista, segundo Amós do Nascimento, possui uma
estrutura eclesial sob base do compromisso social que alcança seu ápice como uma
proposta de educação a população em geral:
O metodismo [...] surgiu dentro do contexto universitário e foi influenciado pelo
Iluminismo, com sua ênfase na individualidade, no método científico, no
pragmatismo econômico e, por fim, na universalidade da educação. Nesse
quadro geral de relações intrincadas entre pólos distintos, [...] ajudando a
entender o metodismo no contexto do Iluminismo: 1. ênfase na disciplina
metódica, na santidade e no virtuosismo perfeccionista de onde se extrai a
denominação “metodismo” –, compatibilizando-a com a ênfase na dimensão
prática; 2. visão sui generis da racionalidade e do método científico
característico das ciências naturais; 3. compromisso social com o “povo”,
categoria que se ampliou a partir da Revolução Industrial; 4. postura
pragmática na administração econômica e gestão de projetos relacionados a
192
O Diretório é tanto um regimento, no sentido de apresentar regras que devem ser seguidas pelos que
a ele estiverem subordinados, e também um programa de adaptação do indígena a uma nova forma de
vida. Ordena a instituição do lócus no qual essa vida se desenvolverá, a direção das atividades que ali
serão realizadas e a garantia da inserção do indígena num modo de vida civilizado. Pode ser
encontrado em publicação MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Indios da Amazônia de maioria à
minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988.
113
causas sociais e religiosas; 5. iniciativa em prol da criação de escolas para a
educação em massa.
193
Helmut Renders
194
, analisando a ênfase social na consolidação do movimento
metodista, em seu período embrionário, aponta a influência do armenianismo na
teologia metodista, que indicaria a necessidade de consolidar a piedade cristã, a partir
de uma prática comunitária - chamada por Renders de soteriologia social– que,
necessariamente, se consolida em caráter público. Isso explicaria a forte presença de
instituições (na área de educação e saúde), na consolidação do metodismo na
Inglaterra, nos Estados Unidos e, posteriormente, nas locais de missão do metodismo
norte-americano.
[...] a educação não pode ser, então, predominantemente um meio de
catequese, empregando simplesmente um plano curricular para fins
missionários e denominacionais. Trata-se de um processo de restauração
racional que faz parte da restauração da santidade. [...] apesar de que o
processo da educação significa um inegável valor em si, este processo da
restauração racional não é considerado completo sem o desenvolvimento de
algo que poderia ser designado como sabedoria espiritual. Finalizando, a
educação faz parte da soteriologia, não é meramente um meio pedagógico,
mas, sem a educação, a soteriologia, por sua vez, será incompleta.
195
É reincidente, na história de criação e consolidação das igrejas metodistas, no
Brasil, o nascimento da Igreja estar associado à criação de uma creche comunitária,
uma escola comunitária ou um centro comunitário, com atividades comunitárias
diversas. As instituições educacionais são em número expressivo, no metodismo
brasileiro, se comparado ao processo de crescimento numérico de sua membresia. São
escolinhas vinculadas a igrejas locais, iniciativas regionais e educandários
193
NASCIMENTO, Amós. John Wesley, o Iluminismo e a educação metodista na Inglaterra. In: Revista
de Educação do Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação, ano 12, n. 22.
Piracicaba: COGEIME, 2003, p. 128.
194
Cf. RENDERS, Helmut. The social soteriology of John Wesley and its comunitarian, arminian and
public elements: comments on its development, purpose, inspirations, and spirituality. Trabalho
apresentado no “12 Institute, To serve the present age, our calling to fulfill; Ecclesiology, Mission,
and Vocation”. Ago. 2007. Oxford: Oxford Institute of Methodist Theological Studies, 2007. Disponível
em: <http://www.oxford-institute.org/docs/2007papers/2007-2Renders.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2008.
A idéia encontra-se melhor desenvolvida em RENDERS, Helmut. A soteriologia social de John
Wesley com consideração de seus aspectos comunitários, sinergéticos e públicos. Tese
(doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: UMESP,
2006.
195
RENDERS, 2006, p. 323-324.
114
administrados pela estrutura nacional da Igreja
196
; exemplo pragmático dos
compromissos sociais vinculados à missão metodista.
Luis Eduardo Silva, analisando a proposta educacional metodista no Brasil,
aponta como, ao chegar no Brasil, se expandiu sob influência norte-americana do
“destino manifesto”. Ressalta que isso pode ser observado nos discursos educacionais
de fundação e crescimentos de suas instituições educacionais. O autor analisa,
também, como em meados do século XX, devido a vários fatores conjunturais, iniciou-
se um processo que reformulou a identidade confessional da proposta educacional no
metodismo, sob influência da então incipiente Teologia da Libertação, resultando no
documento Diretrizes para a Educação Metodista.
Após um momento em que representaram uma alternativa de vanguarda, na
aliança com os setores mais dinâmicos economicamente e avançados
intelectualmente, no final do século XIX aas primeiras décadas do século
XX, as instituições metodistas entraram em uma certa rotina, continuando seu
intento de formar as lideranças do país e de informá-las com as idéias
pedagógicas importadas dos Estados Unidos e uma visão norte-americana de
mundo. [...] Em termos de Igreja Metodista, esta mudança de paradigma
significa o abandono do que chamamos quadro matricial” da educação
metodista trazido pelos missionários norte-americanos, voltada para a
expansão da hegemonia norte-americana no Brasil, pela nova postura de
tentativa de engajamento juntamente com as classes populares e o
movimento popular, na transformação da realidade socioeconômica e política
do país e com a retomada de conceitos e práticas do metodismo original
wesleyano como busca de fundamentação a essa postura.
197
Nessa proposta, Luis Eduardo aponta que a política Educacional do documento
oficial de diretrizes para educação na Igreja Metodista é fruto de uma efervescência, em
sintonia com o que está acontecendo no Brasil, principalmente entre a juventude. Em
seu estudo, ele resgata elementos históricos que referem à repressão da ditadura
militar, em harmonia com elementos de repressão à juventude, também no cerne da
Igreja Metodista. Destaca, assim, a sintonia da história da Igreja com a história da
196
Em visita ao site oficial do Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação (COGEIME)
(www.cogeime.org), é possível adquirir maiores informações sobre estas instituições.
197
SILVA, Luiz Eduardo Prates da. Metodismo e Educação: Uma introdução ao estudo das "Diretrizes
para a Educação na Igreja Metodista" a partir dos contextos de sua elaboração. Dissertação
(Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Teologia. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia,
2004, p. 88-89.
115
sociedade onde está inserida. Um estudo mais detalhado desse período pode ser
encontrado, também, no trabalho de Jorge Hamilton Sampaio
198
, que realiza uma
pesquisa documental e entrevistas com lideranças jovens e leigas da igreja, submetidas
à tortura, após delatação, por parte de pastores e outros membros da igreja.
Simone Dorneles destaca a constituição redacional das Diretrizes para a
Educação Metodista, desde uma crítica ao sujeito do discurso, como reprodutora dos
ideários liberais, presentes na proposta originária, que cria os educandários metodistas
no Brasil. Para Dorneles, há uma relação paradoxal entre a superação do ideário
liberal, que institui educandários metodistas no Brasil e a educão humanizadora de
mulheres.
As diretrizes, ao descreverem o sujeito histórico das ações e práticas
educativas da Igreja, em âmbito formal e não-formal, caracterizam-no desde a
normatividade androcêntrica. Essa descrição traduz o paradoxo presente na
cidadania moderna, pois identificar o sujeito e ter de caracterizá-lo
individualizando-o em suas características ou necessidades, revela, de forma
quase evidente, que de fato ele ou ela não tem sido o cidadão/a cidadã
encontrado/a nos discursos autoritários, porque circulares sobre um mesmo
sujeito, das sociedades contemporâneas. Nas diretrizes encontram-se
exemplos de um discurso universalizado e considerado universal desde a
experiência humana, mas, de fato, centrado na experiência de parte da
humanidade e sistematizado, a partir de uma leitura que, mesmo inclusiva, é
androcêntrica. Os estudos teológicos feministas permitiram descobrir que a
universalidade do sujeito histórico presente no discurso educacional do
documento foi construída sobre a concepção patriarcal de cidadania eclesial e
política.
199
Evidencia-se, então, a idéia de que a educação, como instrumento para forjar o
cidadão no processo educacional metodista, no período de 1960 a 1990, não somente
está em sintonia com as lutas sociais brasileiras, como um todo, mas também dialoga,
como tradição protestante, sob influência teológica fundamentalista, com um processo
crescente de preocupação com a realidade brasileira
200
. A preocupação com o sujeito e
198
SAMPAIO, Jorge Hamilton. Sobre Sonhos e Pesadelos da Juventude Metodista Brasileira nos
Anos Sessenta. (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do
Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 1998.
199
DORNELES, 2006, p. 95.
200
Este fenômeno é estudado por Flávio Conrado, em seu contexto contraditório ao movimento da
Teologia da Libertação, produzindo, inclusive, estratégicas eclesiológicas distintas, na perspectiva de
compreensão da contribuição das igrejas protestantes e evangélicas, ao momento que o Brasil
116
as contradições sociais, expondo a miserabilidade de uma parte significativa da
população da América Latina, representou o levante de movimentos sociais diversos,
sob auxílio e articulação de comunidades protestantes. Isso apareceu em caráter
testemunhal, nas declarações documentais das diversas igrejas. No metodismo
brasileiro, surgiu no Plano para a Vida e Missão da Igreja, documento vigente ainda
hoje, como diretriz para prática pastoral. Luis Eduardo Silva dedica-se a explicitar esses
elementos, no processo redacional do documento na década de 1980,
O Plano para a Vida e a Missão da Igreja é um documento que se articula em
torno de algumas idéias básicas: a) Deus é um Deus Missionário; b) sua
Missão é estabelecer o seu Reino - compreendido como o novo mundo, a
nova vida, o perfeito amor, a justiça plena, a autêntica liberdade e a completa
paz” que começa na realidade terrena, onde já temos os primeiros frutos, e se
estende pela eternidade; c) que a Missão da Igreja é cooperar com Deus no
estabelecimento de seu Reino, trabalhando pela mudança pessoal e estrutural
da sociedade, condenando os sinais de morte e promovendo a vida. Através
desta nova compreensão da Igreja e de sua Missão, a Igreja Metodista
esperava sair de uma “crise de identidade” na qual se via envolvida, desde a
segunda metade da década dos anos sessenta. Compreendia que se iniciava
um novo processo, cujas características principais seriam: tudo na Igreja deve
se orientar para a missão; para isso, estava desafiada à santificação,
compreendida como o desenvolvimento de atos de piedade: leitura da Bíblia,
oração, presença aos cultos, devoção pessoal, etc.; e atos de misericórdia:
ação concreta do amor em favor dos outros. Esses dois elementos deveriam
levar à unidade e ao crescimento.
201
O cidadão pretendido nas propostas educacionais, sob o desejo de sociedade
democrática, desde a primeira metade do século XX, tornou-se objeto de estudo, não
somente nos estudos sobre educação protestante, mas também nos espaços diversos,
preocupados em pensar educação como um processo de humanização, que firmará a
vivencia. “um certo viés teologicamente conservador impediu a recepção da Teologia da Libertação e
seus ventos progressistas, por seu background católico-ecumênico e sua ênfase na libertação sócio-
política, através de uma hermenêutica que conferia centralidade ao ’pobre’. Ao invés da Teologia da
Libertação foi a Teologia da Missão Integral ou Teologia Holística que chegou a ter maior penetração
na agenda dos evangélicos do continente latino-americano, a partir da década de 1970. [...] Ao mesmo
tempo, era preciso assegurar um espaço de “livre iniciativa” das relações entre Estado e religiões no
país, através da defesa da liberdade religiosa, supostamente ameaçada pela esquerda e pelo
catolicismo. É assim que, nas eleições de 1986, para a Assembléia Constituinte, 32 evangélicos foram
eleitos, entre os quais 18 pentecostais, com o apoio das cúpulas eclesiásticas.” CONRADO, Flavio
César dos Santos. Religião e Cultura vica: um estudo sobre modalidades, oposições e
complementaridades presentes nas ações sociais evangélicas no Brasil. Tese (Doutorado). Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006, p. 72s.
201
SILVA, 2004, p. 94.
117
democracia como sistema social de ordenamento das relações. Almerindo Afonso
analisa as pretensões democráticas e a ressignificação da cidadania ou das cidadanias,
bem como a reforma do Estado e as suas implicações, para a compreensão das
políticas educacionais. Em sua opinião,
No que diz respeito à reconfiguração ou ressignificação das cidadanias,
que ter em conta que a Escola e as políticas educativas nacionais foram
muitas vezes instrumentos para ajudar a nivelar ou a unificar os indivíduos
enquanto sujeitos jurídicos, criando uma igualdade meramente formal que
serviu (e ainda continua a servir) para ocultar e legitimar a permanência de
outras desigualdades (de classe, de raça, de gênero), revelando assim que a
cidadania é historicamente um atributo político e cultural que pouco ou nada
tem a ver com uma democracia substantiva ou com a democracia
comprometida com a transformação social.
202
A análise de Almerindo Afonso indica um foco de discussão sobre as pretensões
da educação como propiciadora de afirmação da cidadania. Pensar os indivíduos desde
uma perspectiva de homogeneidade, no entanto, redundou no reforço aos mecanismos
de violência social. O enfrentamento à pretensão de homogeneidade parece ser uma
preocupação aliada à idéia de superação da influência educacional européia, onde
elementos de etnicidade se constituíram como elemento constitutivo da noção de
Nação, sob égide um Estado soberano.
Quando o Estado existia e começava a democratizar-se, como aconteceu
nos Estados Unidos, na França e, mais tarde, na Grã-Bretanha, a nação era
apenas definida como o conjunto dos cidadãos do Estado. A cidadania era
universal e abstrata. A homogeneidade cultural ou “étnica” não era exigida [...]
No pólo oposto do espectro, encontramos os movimentos nacionais e os
nacionalismos sem um Estado próprio preexistente [...]: a “nação” ou o
“povo”, como sede da soberania máxima, não podiam ser definidos por uma
cidadania comum, sendo, em vez disso, concebidos em termos (ditos objetivo)
de língua, cultura, religião, e outros critérios históricos ou étnicos,
freqüentemente com conotações racistas e insinuações fundamentalistas.
203
202
AFONSO, Almerindo Janela. Reforma do estado e políticas educacionais: entre a crise do estado-
nação e a emergência da regulação supranacional. Educ. Soc., Campinas, v. 22, n. 75, 2001.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302001000200003&
lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2008. 2001, p. 15.
203
PUHLE, Hans-Jürgen. Cidadania e Estado-nação. In: VIEGAS, J.M.; DIAS, E.C. (Orgs.) Cidadania,
integração, globalização. Oeiras: Celta, 2000, p. 26-27.
118
Assim, a pretensão discursiva sobre constituição do sujeito cidadão está
relacionada a uma rede de tensionamentos, que envolve os conceitos de etnia, estado
e democracia, subentendidos nas propostas educacionais. Na missão educacional
metodista, percebe-se a mesma pretensão discursiva da cidadania, que apresenta um
cenário paradoxal, nas suas práticas, para compreensão da intencionalidade da missão
educacional.
As questões básicas de afirmação da proposta educacional, na missão metodista
tais como qual cidadania pretendemos?”, “de que democracia estamos falando?”,
“como que estratégias pedagógicas se constituem a afirmação do sujeito?” –, estão
postas como instrumentos metodológicos de pesquisa que pretenda desvelar os seus
elementos constitutivos. No recorte da aproximação à missão indigenista, o aspecto
pedagógico curricular se apresenta como uma aproximação primeira, em termos de
priorizações na tentativa de responder a estas questões.
3.2 TEOLOGIA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INDIGENISTA
A experiência do sagrado, como ordenadora de relações sociais, tem importância
vital no trabalho educacional. Nas tradições indígenas na América Latina, pensar o
sagrado e sua forte constituição, nas culturas, humanas é objeto de estudo reincidente,
voltado para compreensão da história dos povos latino-americanos
204
. Resgatar estas
referências auxilia na compreensão das tarefas e entraves do fazer teológico cristão,
em meio às demandas do ambiente multicultural latino-americano. Na teologia cristã,
por fidelidade à tradição judaica, a origem de todas as coisas está na matriz mítica
criacionista, situada na região mesopotâmica e palestina. É o relato bíblico do gênesis
que ordena a compreensão de muitas pessoas, sobre a origem da vida e o destino do
204
Para pensar os sincretismos e hibridismos, que constituem os tecidos sociais latino-americanos, sob
influência das tradições indígenas, a escolha, neste trabalho foi de textos oriundos da pesquisa
antropológica e histórica. Tem como objetivo fugir da tendência, na teologia cristã, de refletir outros
fenômenos, a partir de si, tomando o cristianismo como paradigma indiscutível, ao ser confrontado com
outros credos. A centralidade cristã, para compreensão do fenômeno, restringe o caráter em aberto e
ainda por ser desvelado, de vários aspectos da experiência humana, suas raízes e matizes
constitutivos. Cf. CANEVACCI, 1996; GRUZINSKI, 200; LEVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido.
São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.
119
humano
205
, sustentando os valores da tradição judaico-cristã. Esta tradição mítica em
muito explica e justifica o ordenamento social, vivenciado por sociedades derivadas de
colonização cristã como o Brasil.
Identificar o elemento étnico, em relação à produção teologia cristã, é uma
estratégia que auxiliará na compreensão do papel do mito, na formação social indígena,
conseqüentemente na sociedade kanamari, e a sua relação com a regulação social.
Esses elementos míticos e a tarefa teológica de explicitar a relação do humano com o
divino estabelecem limites e interlocuções em muito detectadas no trabalho educacional
indigenista. São importantes na busca de compreensão do caráter multicultural da
sociedade brasileira e latino-americana.
A América Latina tem sido um espaço laboratorial de várias teorias, que
procuram compreender o fenômeno da constituição étnica, como elemento de
ordenamento social. Estabelecer estudos de correlação da função social de
determinados produtos culturais de uma sociedade determinada com ordenamentos/
organizações sociais diversas tem sido tarefa da Antropologia, desde fins do século
XIX
206
.
Nesse contexto, os símbolos e as linguagens representativas, afetas ao
fenômeno religioso, provocaram uma compreensão lógica de uma variedade de
comportamentos e de características históricas de povos em diferentes partes do
mundo. Influenciaram, inclusive, o estudo das características culturais, na constituição
da urbanidade e do chamado tradicionalismo, presente em diferentes regiões. No caso
205
A obrigatoriedade da origem única da humanidade estar centrada no relato bíblico, tendo como
paternidade e maternidade universal Adão e Eva, faz parte de uma reinvidicação forte em vários
países de predominância cristã. Os criacionistas, como são chamados, têm adquirido força em muitos
países latino-americanos. Não investiremos tempo no relato do debate entre cientistas criacionistas e
evolucionistas. Cf. TAMBOSI, Orlando. A cruzada dos criacionistas contra Darwin e o
evolucionismo. Disponível em: <http://www.jornalismo.cce.ufsc.br/darwin.html>. Acesso em:
25.dez.2007.
206
Clifford Geertz analisa este aspecto em vários representantes do pensamento antropológico: “‘Estar lá’
em termos autorais, enfim, de maneira palpável na página, é um truque tão difícil de realizar quanto
‘estar lá’ em pessoa, o que afinal, exige, no mínimo, pouco mais do que uma reserva de passagens e a
permissão para desembarcar, a disposição de suportar uma certa dose de solidão, invasão de
privacidade e desconforto físico, uma certa serenidade diante de excrescências corporais estranhas e
febres inexplicáveis, a capacidade de permanecer imóvel para receber insultos artísticos, e o tipo de
paciência necessária para sustentar uma busca interminável de agulhas invisíveis em palheiros
invisíveis”. GEERTZ, 2002, p. 38s.
120
específico do Brasil, são os trabalhos de Levi-Strauss, entre os Nambikwara e
Bororo
207
, e de Roger Bastide, estudando cultos africanos
208
, que reuniram material
antropológico de pesquisa étnica, utilizados atualmente como ferramenta teórica, para
compreensão da etnia na constituição da identidade social. Trabalharam com o
conceito de fato social, da obra de Emile Durkheim
209
, em tempos em que a teoria
econômica e o marxismo erigiam as bases de ordenamento das relações entre povos
no ocidente, inícios do século XX.
210
O conceito de etnia reúne dados de identidade
cultural comum (língua, tradição). Em função da realidade histórica, constitutiva da
identidade dos povos derivados dos multiprocessos de ocupação territorial, deve-se
referir à constituição da identidade brasileira como decorrente de um processo
multicultural. Essa realidade demanda uma apropriação da realidade histórica,
garantindo a constituição de etnias diversas, confluindo identidades múltiplas a um
mesmo povo.
Na teologia presente na América Latina, o conceito teórico etnia é uma demanda
nascente dos sujeitos teológicos de uma África (e seus descendentes escravizados) e
América Latina cristianizadas. Seguindo Gibellini, nos capítulos Teologia da Libertação,
Teologia Negra e Teologia do Terceiro Mundo, o pensamento teológico se constitui
desde as demandas da identidade histórica das pessoas. No caso da Teologia negra e
Teologia Africana, o específico da identidade étnica é imprescindível. Segundo Gibellini,
“como a teologia latino-americana da libertação parte da experiência histórica de
dependência e pobreza, e como a teologia feminista parte da experiência do sexismo
machista, assim a teologia negra parte da experiência histórica de escravidão e
segregação racial”.
211
207
Cf. LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
208
Cf. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, contribuições a uma sociologia das
interpretações de civilizações. 2ª Ed. São Paulo: Pioneira, 1985.
209
Cf. DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.
Tradução Paulo Neves. 3ª reimpressão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
210
Cf. MARCONI, Marina A.; PRESOTTO, Zélia M.N. Antropologia: uma Introdução. 5ed. São Paulo:
Atlas, 2001.
211
GIBELLINI, Rosino, A teologia do século XX. Tradução João Paixão Neto. 2 ed. São Paulo: Loyola,
2002, p. 383.
121
Em cada um desses casos, a Teologia não esteve alheia à forma como esses
grupos sociais interpretaram sua situação de vida. Ao contrário, a Teologia foi
elaborada, considerando esses elementos e tornou consistente, a partir desta realidade.
A obra de Gibellini, na minha compreensão, é marcada por essa característica do
século XX, a fragmentação do conhecimento referencial e a possibilidade da cultura e
da prática vivencial, como espaços de excelência do fazer teológico. No recorte teórico,
resgato, aqui, algumas proposições de Gibellini, como ponto de partida para abordar
melhor a questão:
A Igreja negra, que acolhe a comunidade negra, não é apenas uma
comunidade envolvente, um ambiente caloroso, em que as pessoas da raça
negra recebem instrução, orientação na vida, ajuda e solidariedade nas
necessidades; numa palavra: identidade religiosa e social. É da comunidade
cristão negra que emerge na segunda metade dos anos 60, precisamente
entre 1966 e 1969, a teologia negra (black theology). De acordo com
reconstruções historiográficas convergentes, três são os fatores que influíram
em seu surgimento: o movimento pelos direitos civis (1955-1965), que deu aos
afro-americanos uma nova consciência negra (black awareness); a obra do
historiador negro Joseph Washington, Religião negra (1964), que cunhou esta
nova expressão (black religion), anteriormente jamais usada, que indicava a
radicação cultural africana da religiosidade dos negros americanos; o
movimento político de Poder Negro (black power), que fez sua primeira
impetuosa irrupção nos guetos negros em 1966, e representou uma
provocação e um desafio inclusive para a comunidade cristã negra. (Gibellini,
2003: 389)
212
A teologia da libertação viu-se desde o início como um novo modo de fazer
teologia, mas indicou de maneira um tanto intuitiva e fragmentária suas bases
epistemológicas. [...] ficam aqui evidenciados com toda clareza os quatro
elementos que estruturam o discurso da teologia da libertação: uma opção
prévia e três mediações [ciências do homem, da sociedade e pastoral] [...]
trata-se de uma reflexão que progrediu em sua elaboração, que se tornou
mais avisada e mais atenta às análises sociais empregadas (e deverá ainda
mais concretizar-se em termos de ‘democracia participativa’ no contexto latino-
americano, depois dos fatos ocorridos na Europa central e na Europa oriental
a partir de 1989), que soube definir-se, esclarecer-se e em alguns casos
corrigir-se, levando em conta tanto a evolução da situação político-social na
América Latina, como a controvérsia eclesiástica e teológica, na qual se viu no
centro da atenção e do debate sobretudo nos anos 1984-1986, e manteve,
212
GIBELLINI, 2002, p. 389.
122
justamente em nome de sua metodologia pastoral, os necessários vínculos
com a comunidade eclesial.
213
Libertação, inculturação/contextualização, novo diálogo com as religiões: são
esses os projetos surgidos nos últimos decênios do século XX na reflexão
teológica das comunidades cristãs do Terceiro Mundo. [...] a teologia na
África, enquanto teologia africana, levanta o problema do encontro do
cristianismo com as culturas não-ocidentais; a teologia na Ásia, enquanto
teologia asiática, está às voltas sobretudo com o problema do diálogo e da
colaboração com as religiões não cristãs.
214
Nesses relatos acima, percebemos que o autor relaciona as características
históricas vivenciadas pelos agrupamentos humanos diversos, como o espaço
fundamental, desde onde a teologia acontece e se formula. Nota-se que, na primeira
metade do século XX, alguns acontecimentos produziram matrizes de conhecimento e
organização social, em diferentes localidades. A luta dos negros norte-americanos, a
luta campesina e de trabalhadores de indústrias centro e sul-americanas, a organização
de grupos pela autonomia de países africanos constituíram-se em espaços de
representação social, envolvendo ideais sociais, que produziram uma reflexão da
experiência de fé derivada, em grande parte, da experiência de organização política por
uma vida melhor.
A produção teológica, inserida no contexto histórico dos sujeitos sociais,
provocou rupturas, no processo de compreensão do próprio papel do fazer teológico.
Seria a Teologia o espaço para garantir zelos pelas doutrinas corretas? Seria a
Teologia um espaço de ordenamento de experiências de fé e religiosidade diversa? O
movimento chamado Teologia do Terceiro Mundo tentou criar um espaço amplo e rico,
para debater as questões teológicas derivadas dessa realidade. Nesse sentido, a
questão da capacidade de diálogo, demandada da vida cotidiana das experiências de
fé, no fazer teológico, implica em incluir novas plataformas de interlocução teórica e de
locus de compreensão da experiência de fé.
213
GIBELLINI, 2002, p. 354-380.
214
GIBELLINI, 2002, p. 484.
123
Essa característica na Teologia latino-americana, feminista, negra, africana e do
terceiro mundo, perspectivas abordadas por Gibellini, também está presente nos
recentes trabalhos, que têm abordado a questão indígena. A chamada Teologia Índia
tem produzido elementos reflexivos das questões colocadas acima, em se tratando
de outras experiências:
En primer lugar habrá que revalorar la importancia de la lucha espiritual,
simbólica y ritual de nuestros pueblos. Ahí se encuentra nuestra fuerza mayor.
Debemos recuperar lo perdido, restaurar nuestros proyectos de vida con sus
valores fundamentales, recordar los mitos, celebrar y reforzar los ritos, dar su
lugar a las ancianas y ancianos, a las sabias y sabios, poseedores de la
sabiduría de nuestros pueblos; la importancia de la fiesta. Dios nos ha
sembrado en la tierra donde estamos, florezcamos y demos frutos ahí;
trabajemos con la fuerza de Dios. Los indígenas estamos enfermos por el
sistema que nos envuelve; curémonos volviendo a nuestras fuentes, a las
cosas propias; no nos dejemos manipular por los mitos que hay en el mundo
moderno. Hagamos que nuestros líderes religiosos y nuestras autoridades
tradicionales oigan la voz del pueblo y no la voz de la serpiente devoradora de
niños. Debemos convocar encuentros de pueblos y comunidades a distintos
niveles: local, regional, continental. Busquemos la solidaridad entre pueblos
indígenas y demás pobres. Solos y separados no podemos vencer las fuerzas
de mal; unidos lograremos triunfar. La manera de hacer la teología india es
parte de la lucha amplia de nuestros pueblos. Lo que hay que hacer para el
futuro está bien claro en los mitos; los cómos también se hallan ahí, pero
deben ser concretizados y actualizados ante las amenazas en las coyunturas
históricas. El reconocimiento de nuestra dignidad será la base indispensable
para defenderla ante los demás. Reafirmemos nuestro orgullo de ser
indígenas, conociendo nuestra sabiduría y viviendo nuestra espiritualidad.
Creamos en nosotros mismos.
215
A tensão da ocupação e colonização dos povos originários e a escravidão do
povo negro, no continente americano como um todo, introduziu uma experiência de
cristianismo contraditória e matriz de muitas modificações na própria estrutura da
cristã. Estudo da religiosidade derivada dessa realidade marcou o ensino teológico
(principalmente em nível de pós-graduação), na segunda metade do século XX,
215
Em 10 de mayo de 2002, em Ykua Sati, Asunção, Paraguai, aconteceu o Quarto Encontro Ecumênico
de Teologia Índia, promovida pela Rede Ecumênica de Missiólogos. Essas iniciativas são derivadas do
aumento de indígenas participando ativamente de espaços religiosos cristãos, recebendo formação
teológica em muitos casos. Influenciados por esse tempo de Teologia do Terceiro Mundo (libertação,
negra, feminista e outros mais), a organização indígena começou a ser propiciada e estimulada por
diferentes segmentos organizados. A citação é um trecho do documento de conclusão do Encontro
Ecumênico de Teologia Índia. Disponível em: <www.missiologia.org.br/documentos>. Acesso em:
13.dez.2007.
124
fenômeno que se deu, também, nas mais diferentes áreas de estudo sobre o
comportamento humano, a história dos processos de constituição das diferentes
regiões e localidades geográficas
216
.
Este fazer teológico, vivenciado e elaborado nas experiências de fé indígena,
indica inclusão múltipla de relatos e elementos da realidade. Dada a complexidade dos
elementos que se entrelaçam para constituir a cultura que estabelece a marca de
identidade de um agrupamento humano, faz-se necessário resgatar o conceito de etnia,
pelo relato de fundação de valores e ordenamentos sociais, também nomeado mito.
Esse elemento, por ter sido desconsiderado na tentativa de compreender o
comportamento social dos descendentes diretos dos povos originários e constitutivos
da identidade multicultural, marcam as sociedades americanas como um todo, no
particular a brasileira
217
. A utilização do mito, como ordenador de características sociais,
segue o pensamento explicitado por Levi-Strauss, quando afirma que
O estudo dos mitos efetivamente coloca um problema metodológico, na
medida em que não pode adequar-se ao princípio cartesiano de dividir a
dificuldade em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-lo. Não
existe um verdadeiro término na análise mítica, nenhuma unidade secreta que
se possa atingir ao final do trabalho de decomposição. Os temas se
desdobram ao infinito. Quando acreditamos ter desembaraçado e isolado uns
dos outros, verificamos, na verdade, que eles se reagrupam, respondendo à
solicitação de afinidades imprevistas. Conseqüentemente a unidade do mito é
apenas tendencial e projetiva, ela nunca reflete um estado ou um momento do
mito. Fenômeno imaginário implícito no esforço de interpretação, seu papel é
dar ao mito uma forma sintética e impedir que se dissolva na confusão dos
contrários.
218
É importante destacar essa característica do mito porque sua utilização está
diretamente vinculada a um espaço de tentativa de organização e ordenamento do
216
Uma rápida visita no site do banco de teses da CAPES, pôde demonstrar esta afirmação. Numa
pesquisa sobre o assunto Religiosidade Brasileira, apareceram 194 títulos, desde 1987, que abordam
as mais diferentes temáticas, no entorno de elementos históricos que constituem fenômenos de
religiosidade no Brasil. CAPES. Disponível em: < http://www.capes.gov.br/>. Acesso em: 20 fev. 2008.
217
A associação Mito e Folclore reduziu o potencial de contribuição social dos mitos, como explicitadores
das principais questões sociológicas da sociedade brasileira. No Brasil, um trabalho de grande porte,
na coleta de mitos/folclores, é a obra de mara Cascudo, que possui referências e acervo
parcialmente disponibilizado na biblioteca virtual do Senado. Disponível em:
<http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 13.dez.2007.
218
LEVI-STRAUSS, 1991, p. 15
125
cotidiano. Não pretensões “científicas”, na experiência da vida, a partir da
experiência mítica, somente pretensão de interpretação da realidade vivida e
ordenamento de conduta, a partir de tal ordenamento. Como esse efeito é dinâmico e
não absoluto, pode-se, no máximo, emitir opinião sobre um determinado tema, quando
muito explicitar de que forma esta dinamicidade está implicando em acertos e
equívocos, em determinadas circunstâncias.
que se pretender delicadeza, para lidar com um conhecimento frágil, que se
redesenha a cada nova aproximação, cada nova narrativa de uma mesma história
recombinada, reencantada e ressignificada. Nesse sentido, a Teologia feita a partir da
consistência histórica de grupos, com identidades étnicas próprias, vem a ser uma
experiência de elaboração dinâmica e aberta a novas significantes que a vida traz para
o espaço do pensar a vida religiosa, a experiência da fé e suas pretensões de
organização da vida. Na Educação indígena, o estudo e organização do mito em
materiais didáticos diversos tem sido uma estratégia reincidente. No curso de Formação
de Professores Kanamari, a solicitação foi feita por diferentes professores de diferentes
disciplinas. O mito da criação parece ser inevitável nestas organizações
219
.
O princípio de todas as coisas é um tema teológico de excelência. A teologia
dedica tempos e teorias especiais para a temática de como a criação do humano e os
primeiros tempos determinaram destinos para toda a humanidade. Na tradição bíblica,
fonte das expressões teológicas para esta tarefa, as narrativas como a criação (Gn 1 e
2) , Caim e Abel (Gn 4.1 24), Torre de Babel (Gn 11.1 9), Dilúvio (Gn 6.5 9.17),
Sodoma e Gomorra (Gn 19.1 29) e tantas outras apresentam as temáticas que ainda
hoje ordenam as relações humanas, no mundo judaico e cristianizado. Essas matrizes
míticas ordenam a idéia de pecado, paraíso primeiro, destino eterno. Essas narrativas,
como espaço cristão de reflexão, explicam a moralidade e a conduta. Segundo conceito
apresentado por Marilena Chauí:
219
Como exemplo em um vasto arsenal disponível, em diversos mercados editoriais, cito o trabalho de
Betty Mindlin, que tem publicado vários livros, em várias editoras, de coleta de mitos entre alguns
povos do norte brasileiro. Sugiro acesso ao site da ONG IAMA (http://iama.sarava.org/), criada por ela,
para conhecer melhor esse trabalho.
126
Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de toda fundatio, esse
mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um
passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por
isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão
do presente enquanto tal. Neste sentido, falamos em mito também na acepção
psicanalítica, ou seja, como impulso à repetição de algo imaginário, que cria
um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela. Um mito
fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se,
novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais
parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.
220
Esse passado imaginário comum, tido como fundação histórica da identidade de
um agrupamento humano, é recriado com a própria dinâmica de contar e recontar o
mito originário. Na tradição oral, esse elemento tem uma força dinâmica, diretamente
vinculada ao processo deliberativo da lida cotidiana. Nas sociedades que grafaram seus
mitos e destinaram sua interpretação aos letrados, a hierarquização de poderes
manipuladores do sentido social deliberado pelo mito é bem mais impactante.
Particularmente no caso das ocupações européias nas Américas, o impasse das
relações interétnicas era resolvido com a referência aos mitos fundadores da
cristandade colonizadora. Os sujeitos sociais colonizados foram enquadrados em
categorias de compreensão (de juízo e destino), a partir das pretensões sociais, de
ordenamento social desde a matriz mítica fundadora.
Um bom exemplo, nesse caso, é o estudo de Viveiros de Castro sobre a
interpretação de missionários sobre a religiosidade (cris ou não), entre os
Tupinambás. Ele cita, logo de início, um trecho da obra de Pe Antônio Vieira, em
Sermão do Espírito Santo:
Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes,
veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de
estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de
mármore custou muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas,
depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão:
sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil
de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário
andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa
o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os
olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos
lhe fazem sete, e o que pouco antes era um homem é uma confusão verde
220
CHAUÍ, 2001, p. 9.
127
de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na
doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as
quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados,
resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a
vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até
se renderem; mas uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam
nelas firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário
trabalhar mais com elas. outras nações, pelo contrário e estas são as do
Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e
facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são
estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo
perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como
dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre
delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que
não vêem; outra vez, que cerceie o que vicejam as orelhas, que lhes decepe o
que vicejam os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros
da gentilidade. E desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do
tronco e humos das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma
não natural, e compostura dos ramos.
221
Para Viveiros de Castro, os missionários, diante das “infidelidades” tupinambá
análoga as estátuas de murta –, possuem dificuldade de entender a cosmovisão
indígena tupinambá, sustentada na dinâmica da oralidade mítica, fundadora da
experiência litúrgica e cotidiana tupinambá. A facilidade de adoção da prática
missionária cristã dava-se, justamente, pelo fato de haver um encantamento plástico
dos tupinambás, diante das cores, gestos, cantorias e demais aspectos das introduções
cristãs, pretendidas como eliminadoras das devoções ancestrais. Essa mobilidade do
comportamento dos povos, na América colonizada, tem sido objeto de estudo
permanente. Para Levi-Strauss, Gruzinski e Viveiros de Castro, a explicação desse
fenômeno encontra-se no ordenamento social, derivado do relato mítico revivido,
recontado, garantindo uma religiosidade não estática, onde os mitos desempenham
papéis sociais diversos, mas não necessariamente são fundadores. Nesse sentido, o
relato da criação cristã é um mito fundador. o relato da criação dos mitos indígenas,
não.
Em que medida o relato bíblico da criação é um mito fundador? Na forma literária
é um mito que cumpre seu papel como qualquer outro. Esse foi, no entanto, um mito
221
VIEIRA, Pe Antônio. Sermão do Espírito Santo. apud CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância
da Alma Selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 183 – 184.
128
utilizado ao longo do tempo de cristianização do ocidente, como instante originário, que
se mantém vivo e presente, no curso do tempo, e que se sustenta temporalmente,
dando sentido a diferentes formas de ordenamento social: “assim, as ideologias, que
necessariamente acompanham o movimento histórico de formação, alimentam-se das
representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova
quadra histórica”
222
. É nesse sentido que se deve entender, por exemplo, a insistência
dos cientistas criacionistas (fundamentalistas), no seu laborioso trabalho, em querer
comprovar que o relato cristão da criação é a narrativa “histórica” dos acontecimentos
originários da humanidade.
Conforme Milton Schwantes
223
, os relatos de gênesis 1 a 11 são oriundos de
diversos encontros culturais, fundantes da origem do povo hebreu. Este povo que
posteriormente, foi constitutivo da matriz cultural judaica, por ocasião da deportação
babilônica. O processo redacional desses textos, no contexto do exílio babilônico,
produziu uma farta base teológica para a religiosidade, nomeada, daí por diante,
judaísmo. Os estudos bíblicos de Schwantes apontam o relato da criação, transcrito
acima, como originário de um tempo muito antigo, cujo contexto histórico remete a um
povo agricultor, que idealiza um tempo paradisíaco, quando o ser humano foi criado
para o lavrar, guardar e comer dele livremente.
A forma como o mito remete ao contexto de um tempo histórico concreto e à
idealização da vida também pode ser percebido em outros povos. Os cuidados
metodológicos são fundamentais, pois a metodologia também é afeta a uma realidade
pontual.
224
No caso das mitologias indígenas, segundo Viveiros de Castro, é pertinente
salientar que a dualidade entre natureza e cultura “aparece como organizando todo
discurso mítico ameríndio; ela deixa escapar, entretanto, ou não lhe todo o espaço
que merece, um terceiro domínio ontológico, que chamamos, na falta de termo melhor,
de sobrenatureza”.
225
Haveria, na dinâmica social ordenada a partir dos relatos míticos,
222
CHAUÍ, 2001, p. 10.
223
SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança: Meditações sobre Gênesis 1-11. Petrópolis: Vozes,
1989.
224
LEVI-STRAUSS, 1991, p. 11-38.
225
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 85.
129
uma flutuante perspectiva, desde um ponto de vista determinado, que pode ser dos
humanos, dos espíritos e/ou dos animais que comungam aspectos essenciais.
Na tradição do relato mítico, entre os povos indígenas, as variações na narrativa
dos mitos, a depender do narrador e da circunstância da narração, são reincidentes na
tradição oral. Levi-Strauss observa que os mitos pensam entre eles. Assim, a tarefa dos
estudos dos mitos não seria estudar o que nos mitos, mas o sistema de axiomas e
postulados, “capaz de dar significação comum e elaborações inconscientes, que são
próprias de espíritos, sociedades e culturas escolhidas entre os que apresentam, uns
em relação aos outros, o maior distanciamento”.
226
Este aspecto mutante, da narrativa
mítica da tradição oral ameríndia, faz dos mitos de criação relatos ordenadores da
sociedade. São afetos a um cenário tico local e particular de grupos populacionais
restritos, que determinarão as políticas indigenistas no país, mas não serão elementos
de consistência e enfrentamento, nas políticas sociais do Brasil, que possui mitos
fundadores, oriundos de outra matriz étnica.
No fazer teológico, o reconhecimento da confluência e enfrentamento na história
cultural constitutiva da identidade multicultural da América Latina tem tido tratamento
diverso, geralmente apreciado na margem das comparações, nomeadas como
sincretismo ou “cultura popular”
227
. O estudo, então, dos fenômenos religiosos,
considera o resultado dos encontros culturais e o híbrido derivado daí. Nesse tipo de
estudo, o fenômeno de dominação e soberania de uma cultura em relação à outra
costuma não ser considerado. O que faz com que não seja considerado o papel
desigual das matrizes mítico-culturais no ordenamento resultante destes sincretismos?
226
LEVI-STRAUSS, 1991, p. 21.
227
Estudos de teologia negra latino-americana e a teologia índia procuram elementos comuns da
espiritualidade de matriz africana e indígena, com a espiritualidade proposta pelo cristianismo, como
espaço comum do fazer teológico. Sugiro a leitura do trabalho de Canevacci, quando ele afirma que as
religiões são sincréticas, pois representam o resultado de grandes sínteses, integrando elementos de
várias procedências que formam um novo todo. No Brasil, quando se fala em religiões populares,
pensa-se imediatamente em sincretismo, como “aglomerado” de ritos e mitos, ou como “bricolagem” no
sentido de mosaico às vezes incoerente de elementos de origens diversas. Cf. CANEVACCI, Massimo.
Sincretismos, uma exploração das hibridações culturais. Tradução Roberta Barni. São Paulo:
Studio Nobel, 1996.
130
O trabalho de Gruzinski aponta que a imposição cultural, através da escrita e de
normativas ético-religiosas, distintas à originária, entre povos indígenas centro-
americanos, não eliminou a capacidade ordenadora da experiência cultural primeira. Ao
contrário,
O acesso à escrita e aos escritos, longe de acarretar uma homogeinização
das culturas indígenas, por meio da cristalização, censura e uniformização da
herança, parece ter tido o efeito oposto. A cópia fiel hispanizada aparece
quase como a antítese da abertura de um espaço original e autônomo,
tachado de falsificação, de quimeras e desprezíveis ficções’. [...] A espantosa
plasticidade que manifestam, servindo-se de todas as fontes disponíveis,
multiplicando os empréstimos e inovando, leva a pensar em dois conceitos
cujo uso reiterado acabou por mascarar a complexidade, os processos e os
objetos que eles designam: o sincretismo e a tradição. Quanto ao sincretismo,
nos é dado ver que recobre fenômenos sutis, relativos tanto à modificação
dos conteúdos como à evolução dos modos de expressão, ao sabor de
deslocamentos constantes, falsos retrocessos e avanços caóticos. Em relação
à tradição, percebemos que não se pode ignorar sua diversidade social, seus
suportes concorrentes e, complementares (escritos, pintados, orais), seus
caminhos múltiplos, impasses bruscos, retomadas imprevistas e incessante
movimento.
228
No caso do papel dos mitos, como fundadores de ordenamento social, uma
tendência à reconstituição plástica das narrativas, para uma adequação à realidade
vivida. Na imposição religiosa, implementada no processo de cristianização das
Américas, os mitos se reordenaram e se refizeram, compondo nova plataforma mítica,
de ordenamento dos grupos sociais diversos, constitutivos e derivados no novo
ordenamento político e social da colonização. Na tensão entre o papel do mito como
ordenador das boas relações entre as pessoas e como referência étnica, para
ordenamento da estrutura social, o fenômeno histórico aponta uma nova realidade,
nomeada cultura popular. Essa nova realidade tem sido, ainda assim, estabelecida
como inferior ao ideal social, propagado pelo mito fundador, originário do processo
colonizador.
Ao identificar motivos dessas práticas etnocêntricas, na América Latina, e
debater em que medida a função do mito contribui ou não no enfrentamento das
violências, derivadas destas práticas, o fazer teológico avançou na constituição de
228
GRUZINSKI, 2003, p. 214-215.
131
plataformas novas, para o debate da sociedade possível, desde a realidade
multicultural.
A ocidentalização não pode ser reduzida aos caminhos da cristianização e à
imposição do sistema colonial, pois rege processos mais profundos e mais
determinantes, como a evolução da representação da pessoa e das relações
entre os seres, a transformação dos códigos figurativos e gficos, dos meios
de expressão e de transmissão do saber, a mutação da temporalidade e da
crença e, finalmente, a redefinição do imaginário e do real, no qual os índios
deviam expressar-se e sobreviver, entre a obrigação e o fascínio.
229
A pluralidade cultural produz uma multiplicidade de símbolos e representações,
que constituem significação e ordenamento sociais, amalgamados ou não em matrizes
diversas, a depender da realidade cultural de onde são oriundos. Estes símbolos
podem exercer função absoluta sobre a pretensão de ordem social, ou não. São
nomeados semióforos por Chauí. Acontecimento, animal, objeto, pessoa ou instituição
podem ser semióforos, desde que sua significação seja capaz de relacionar o visível e
o invisível, “seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o sagrado (um
espaço além de todo espaço) ou o passado ou futuro distantes (um tempo sem tempo
ou eternidade), e expostos à visibilidade, pois é nessa exposição que realizam sua
significação e sua existência”
230
. No trabalho de Marilena Chauí, encontramos o alerta
sobre a característica de pretensão de sociedade autoritária, derivada de manipulação
de mitos fundadores, como semióforos:
Embora um semióforo seja algo retirado do circuito da utilidade e esteja
encarregado de simbolizar o invisível espacial ou temporal e de celebrar a
unidade indivisa dos que compartilham uma crença comum ou um passado
comum, ele é também posse e propriedade daqueles que detêm o poder para
produzir e dominar um meio social. Chefias religiosas ou igrejas, detentoras do
saber sobre o sagrado, e chefias político-militares, detentoras do saber sobre
o profano, são os detentores iniciais dos semióforos.”
231
Teríamos, então, a realidade social do mundo cristianizado, onde existem os
mitos oriundos das tradições cristãs, alimentando o ordenamento social, como
semióforos, em maior grau e intensidade do que os mitos oriundos e derivados das
229
GRUZINSKI, 2003, contracapa.
230
CHAUÍ, 2001, p. 12.
231
CHAUÍ, 2001, p. 13.
132
tradições culturais colonizadas, como as indígenas e negras. um espaço de
manipulação dos semióforos, instituído socialmente e apropriado/manipulado
adequadamente por autoridades (religiosas ou sociais). O melhor exemplo desse
fenômeno é a devoção à Maria, na tradição católico-romana. Maria, moldada e
remodelada por múltiplos fenômenos devocionais, é espaço simbólico adequadamente
ordenado calendários, festas, literatura e discursos teológicos pela hierarquia
eclesiástica.
Esse fenômeno explicita como um mito fundador torna-se absoluto, em se
tratando de ordenamento social. O desigual, no ordenamento social, de matriz cultural
diversa, possui espaço de expressão, somente na medida em que institui novos
semióforos, que, em tempo, são adequadamente apropriados para atender o paradigma
estipulado por um mito fundador. Tomando como exemplo, os mitos de ordenamento
cósmico, da tradição kanamari, possuem dois entes criadores: Tamakori e Kirak.
Através de sua convivência, estripulia de um e tendência normativa de outro, as coisas
viventes são criadas. Essa narrativa sofre alterações inevitáveis, derivadas da dinâmica
de ressignificação e reordenamento, demandados da realidade vivida. No caso da
tradução da Bíblia, proporcionada pela Missão Novas Tribos, na aldeia Mamori
232
, que
apresenta Tamakori como Deus criador do relato do gênesis, Kirak desapareceu, na
tradução, como ente criacionista. A tradição mítica cristã se impõe, pela impossibilidade
de haver dois seres divinos criadores. Através de mecanismos sociais diversos da
sociedade cristianizada, manipula elementos culturais indígenas, para afirmação dos
semióforos cristãos.
Gruzinski relata como “religiosos recolhiam transcrições do que os índios
cantavam para verificar seu conteúdo, enquanto outros índios, por sua vez,
conservavam os cantos por escrito, salpicando-os de termos cristãos para despistar a
censura”.
233
Para Gruzinski, uma explícita tensão entre as pretensões colonizadoras
e os mecanismos dos indígenas, de remodelagem dos relatos míticos, adaptando-se e
232
Texto não disponibilizado publicamente. Tive acesso, no trabalho que realizei nas aldeias kanamari,
entre os anos 2000-2003 e me apropriei de cópias que foram distribuídas, mimeografadas, para alguns
kanamari.
233
GRUZINSKI, 2003, p. 95.
133
preservando elementos cósmicos culturais, ordenadores da vida social. Seria esse o
mecanismo que propiciou a permanência da identidade cultural e não supressão dos
elementos vitais que conformam o lócus, desde onde tanto os povos indígenas quanto
os negros se remetem a um fazer teológico, desde suas características culturais
fundantes.
Chevitarese e Cornelli, em estudo sobre o mediterrâneo antigo, abordam este
mesmo fenômeno de fomento do hibridismo, no contexto do Império Romano.
Trabalham com a idéia de circularidade cultural, como metodologia que ajuda explicitar
o fenômeno da vivência multicultural, constitutiva das realidades diversas, ao longo da
história humana:
A esta visão impõe-se a necessidade de substituir uma teoria mais flexível,
que possa explicar interações que se dêem em níveis culturais diferentes.
Uma ocupação militar ou uma dominação do espaço econômico-financeiro
não esgotam a possibilidade de uma autonomia relativa de outros espaços
culturais. É o caso, por exemplo, do mundo do imaginário religioso, com toda
a carga de seus mitos e rituais. Nestes casos pode-se revelar um fenômeno
complexo, o de uma aculturação de retorno, na qual a cultura dos dominados
entra numa troca aberta, circularmente ou dialogicamente com a da cultura
dominadora, em certos níveis e a partir de definidos espaços de autonomia.
234
Considerando esses elementos, na constituição da religiosidade, matriz
contextual, da teologia (latino-americana, terceiro mundo, negra, libertação, feminista) e
reconhecendo o papel das moldagens culturais, afetas ao papel do mito neste
ordenamento social, pergunto-me das possibilidades de diálogo entre essas múltiplas
realidades religiosas e suas pretensões sociais, no trabalho educacional. No relato da
teologia índia, citada anteriormente Los indígenas estamos enfermos por el sistema
que nos envuelve; curémonos volviendo a nuestras fuentes, a las cosas proprias; no
nos dejemos manipular por los mitos que hay en el mundo moderno identificamos
uma afirmação de pretensões libertárias do sistema colonizador, através da afirmação
cultural.
Se considerarmos esta proposta, o relato opera em nível de discurso ideológico,
em termos de expectativa. Não seria praticável no âmbito da realidade. Primeiro,
234
CHEVITARESE; CORNELLI, 2003, p. 16-17.
134
porque as fontes originárias pretensas não existem como tal. Foram remodeladas
pelo processo histórico de ocupação e sobrevivência à mesma. Não ser manipulado
pelo sistema exigiria um desvelar dos semióforos apropriados em âmbito de
consciência histórica, a partir do discurso apresentado no documento citado. No
cotidiano das populações representadas no encontro, a realidade circular está dada e
constituindo os espaços devidos de autonomia e tutela, que explicam os tempos
modernos.
Quais seriam os espaços de diálogo considerando essas condicionantes
históricas? Não pretender semióforos? Explicitar matrizes culturais, preservando espaço
de autonomia? O diálogo é algo extremamente difícil dada à realidade das pretensões
absolutistas dos processos de colonização e ordenamento social do chamado ocidente
cristão. Nesse contexto, um reconhecimento primeiro é o de que o esforço das
teologias, advindas das realidades concretas de sujeitos diversos, apresenta um
espaço de exercícios libertários. Um passo segundo, contudo, que se mostra
fundamental, aponta o caminho do resgate mítico das matrizes culturais constitutivas
das camadas sociais instituidoras das sociedades.
Para identificar motivos de práticas etnocêntricas, na América Latina, é
importante debater em que medida a função do mito, como ordenador social, contribui
ou não no enfrentamento das violências derivadas dessas práticas. Segundo Viveiros
de Castro
235
, é necessário superar a idéia de sociedades “puras” e “aculturadas”, que
ordena a compreensão do papel da cultura na estruturação social. Para ele, existe uma
dinâmica local e uma global, que atestam uma capacidade de articulação cosmológica
e histórica, étnica e histórica, que fomentam os espaços de afirmação de identidade
social.
Se a teologia representar esse espaço de cultivo mítico ritual desses movimentos
de articulação cultural das populações em questão, estará apresentando um referencial
teórico propício para fugir da tutela de semióforos, a partir dos mitos fundadores. Mas a
teologia teria que propiciar não um espaço de analogias, entre mitos oriundos de
235
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 339.
135
diferentes matrizes culturais. Seria necessário explicitar, através de vivências múltiplas,
a plasticidade do mito e sua capacidade criadora de novos ordenamentos sociais. Seria
necessário fugir da mera literatura comparada, das liturgias comparadas, que tomam a
experiência mítica cristã como base/formatação padrão.
Assumir a experiência mítica e seus ordenamentos rituais exigiria uma atividade
não etnocêntrica, que as sociedades cristianizadas não têm demonstrado serem
capazes de realizar. Será que a teologia, a partir das realidades concretas, conseguiria
forjar um novo comportamento social, de ruptura das pretensões dos mitos fundadores
de base cristã?
3.3 MISSÃO INDIGENISTA METODISTA E EDUCAÇÃO INDÍGENA
É recente, na história do metodismo brasileiro, a existência de igrejas indígenas
e/ou indígenas metodistas. A Igreja Metodista cresceu, principalmente em cidades
brasileiras em processo de urbanização e em espaços rurais com colonos imigrantes
236
.
Os metodistas brasileiros constituem a sociedade nacional, que é resultante de um
longo período de miscigenação. Desde suas origens no Brasil, a missão metodista
pretendeu intervir na realidade da sociedade constituída no processo colonizador
braisileiro. O “[...] projeto missionário para promover a libertação do Brasil das trevas da
ignorância e sua modernização incluía a disseminação do Evangelho, através da
pregação e da educação, segundo os padrões norte-americanos”.
237
A decisão e a opção das primeiras igrejas metodistas (Catete no Rio de Janeiro)
e primeiras escolas (Instituto Piracicabano, no interior de São Paulo, e Instituto
Americano, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul) representam as escolhas
estratégicas para alcançar as elites nacionais, que seriam responsáveis pelo
conseqüente crescimento e influência do evangelho, na sociedade brasileira. Para
236
REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste,
1984. p. 78.
237
MATTOS, Paulo Ayres. Mais de um século de educação metodista. Piracicaba: COGEIME, 2000, p.
61.
136
Paulo Ayres Mattos
238
, o problema desse projeto é que não foi bem sucedido, no
aspecto político, pois as elites brasileiras permaneceram católicas e preocupadas
consigo mesmas. Assim reproduziram a cultura de classes, já iniciada no período
colonial, reforçada no modelo de monarquia, forjada pela presença da família real no
Brasil, a partir de 1808, e consolidada na implementação da república.
A presença da questão indígena, na Igreja Metodista brasileira, somente se
tornou foco de preocupação missionária com o crescimento da presença metodista em
novos lugares de missão eclesial, sob responsabilidade da missão reinterpretada pelo
metodismo brasileiro. Novas Igrejas Metodistas surgiram com o processo migração
populacional, decorrente de diferentes projetos de expansão integracionista,
promovidos pelo governo federal. Por exemplo, Reily
239
, avaliando a presença
metodista no norte brasileiro, aponta como frustrada a iniciativa de missão metodista
em Manaus, até o momento de criação do Pólo Industrial que fomentou um novo
movimento migratório para a cidade. Em Manaus, o crescimento eclesial metodista dá-
se como missão entre a massa de migrantes, que vai ocupar os cargos e funções
originadas dessa estratégia de desenvolvimento da região. O mesmo vai acontecer no
processo chamado de “ocupação do oeste”, em que milhares de migrantes do sul e
centro-oeste brasileiro vão originar as cidades e projetos rurais e industriais do itinerário
Mato Grosso do Sul – Mato Grosso – Rondônia – Acre. E não haverá presença
indígena entre os novos membros metodistas, somente migrantes e descendentes
regionais do processo de ocupação territorial, resultante deste fenômeno.
A primeira igreja indígena metodista surgiu recentemente, por incorporação de
missão existente e “adotada” pela Igreja Metodista. Cizi Manduca, missionário leigo
metodista Makuxi, relatou essa experiência no encontro “Perspectivas de Missão para a
Ação Missionária Indigenista nos Campos Missionários da Amazônia”, promovido pela
Igreja Metodista, em dezembro de 2002:
238
nosso protestantismo [...] é mais brasileiro do que gostaríamos de admitir, especialmente nos
elementos mais perversos de nossa realidade ligados aos interesses da elite brasileira, fosse ela
conservadora ou liberal, já que as propostas protestantes almejavam a modernização do Brasil e não a
transformação radical de suas estruturas. Creio que esta foi a única maneira que o protestantismo
encontrou para deitar raízes no país. A viabilização do projeto missionário protestante implicou em não
desafiar os fundamentos perversos da sociedade brasileira”. MATTOS, 2000, p. 63.
239
REILY, Duncan Alexander. Metodista na Amazonia. São Paulo, SBC: FATEO, 1982.
137
Moro na aldeia Bala a 160 km de Boa Vista. O apoio que recebemos da igreja
metodista foi a pregação através da Pastora Madalena, em 1992. Através dela
conhecemos Jesus. Hoje a maioria da tribo é metodista. 60 são batizados na
água e no espírito. Agradeço muito esse apoio da igreja metodista,
especialmente o bispo Davi e os pastores que foram lá pregar. O pastor
Dionizio mandou 86 camisas. Agora queremos ajuda da Igreja Metodista para
a construção do templo. Queremos que o templo seja construído com dinheiro
da metodista. Mas meu pensamento é diferente da comunidade. tem
Makuxi, Wapixana e Kualapas. Mas estamos precisando de ajuda, pois todo
ano falta água. As plantas morrem todas por causa da seca. Os makuxi vivem
da roça, mas no verão não é suficiente. Precisamos de poço artesiano e
construção da Igreja. Estamos batalhando já pela construção da igreja, já
compramos tijolos. A aldeia Tawepang, a 100 km da aldeia Bala, estão
pedindo para eu trabalhar com eles, pois lá está havendo muito suicídio. Dois
ou três pessoas estão morrendo por mês. Os jovens se enforcam por qualquer
razão, por briga com namorado ou qualquer coisa. Pretendo ir fazer um
trabalho no dia 17 desse mês e pede muita oração e jejum por causa dessa
viagem, pois crê que muitos demônios vão se manifestar.
240
A missionária Madalena Rocha, a que se refere Cizi, é uma senhora que se
mudou por um tempo para Boa Vista, acompanhando o marido militar. Seu trabalho
junto aos Makuxi foi auspiciado, inicialmente, pela sua igreja de origem anterior, da Asa
Norte Residencial em Brasília. Pelos relatos de Madalena
241
, havia um trabalho de uma
pequena igreja pentecostal junto ao povo Makuxi, que foi entregue para o cuidado dela,
devido a problemas financeiros da missão. Com a saída de Madalena de Boa Vista, a
Igreja iniciou o processo de reconhecimento formal do trabalho, entre os Macuxi, com
auxílio financeiro para o trabalho evangelístico do pastor Cizi. Macuxi, liderança na
aldeia Bala, Cizi é o primeiro indígena a receber auxílio de missão da igreja metodista,
para pregação e consolidação da primeira igreja metodista indígena no Brasil.
É notório o quão incipiente está a questão da presença indígena na Igreja
Metodista. Nas relações com os povos indígenas, se, por um lado, ao longo do último
século, alguns metodistas se aliaram aos mais diferentes segmentos da sociedade,
240
FIGUEROA, Ana Claudia; BOEHLER Genilma; SUZUKI, Márcia. Perspectivas de missão para a
ação missionária indigenista nos Campos Missionários da Amazônia. In: Relatório da Consulta
Missionária Indigenista do Norte. Mimeo. Porto Velho, Igreja Metodista nos Campos Missionários, 8 e 9
de dezembro de 2002, p. 3.
241
Dona Madalena Rocha é mãe de dois amigos de Igreja, no meu período de juvenis, na Igreja
Metodista da 406 Norte, em Brasília. Ela e família se retiraram para Roraima, no período em que estive
na Faculdade de Teologia. Tive oportunidade de realizar uma conversa com a senhora Madalena, em
janeiro de 1998, quando ela morava em Anápolis, cuidando da saúde. Havia contraído uma doença
respiratória que a fragilizou em muito.
138
entendendo a missão indigenista como um fazer social em solidariedade aos povos
indígenas e afirmando o direito à autodeterminação, por outro lado, outros tantos
metodistas se envolveram com missões entre indígenas, chamadas
interdenominacionais, de origem norte-americana, com base na ão e pregação
conversionista. Esses últimos têm a memória de seu trabalho coletado em outros
papéis, o nos atos oficiais da Igreja Metodista, que tem atuação localizada nas mais
diferentes regiões geográficas e com declarados objetivos conversionistas. Não há um
exercício de coleta formal, que indique quantos metodistas estão envolvidos, ou
estiveram, nestas missões. No cotidiano das igrejas metodistas, nas diversas regiões
eclesiásticas, existem muitas memórias daqueles que escolheram e escolhem esse
caminho
242
.
Esse cenário apresenta novas perspectivas eclesiológicas para a Igreja
Metodista. Trata-se de processo distinto da experiência iniciada na década de 1970 e
se distancia das premissas estabelecidas como de orientação para ações estipuladas
pelas Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista:
O evangelho constitui boas novas para os povos indígenas à medida que
os ajuda a fortalecer as suas próprias culturas, a refazer os seus direitos sobre
a terra e a recobrar a dignidade que os filhos e as filhas de Deus possuem. [...]
Desde suas primeiras iniciativas missionárias entre os povos indígenas do
Brasil, a Igreja Metodista caracterizou-se por um ecumenismo vivo e fraterno
com outras Igrejas Cristãs e pelo respeito à tradição histórico cultural e
religiosa dos povos indígenas.
243
O trabalho missionário metodista, entre povos indígenas, tem como referência
originária a presença entre o povo Kaiowá-Guarani. Parte da memória desse trabalho
pode ser encontrada na publicação Minha Prece, que homenageia o trabalho do Bispo
Scilla Franco. Esta presença entre os Kaiowá iniciou uma presença efetiva da igreja
242
No Encontro Perspectivas de Missão para a Ação Missionária Indigenista nos Campos Missionários da
Amazônia, estiveram presentes vários metodistas que estão atuando junto dos povos indígenas, por
articulação da JOCUM: Márcia Suzuki, povo Suruahá, e Ulisses, Pirahã. Também fizeram o curso da
JOCUM dois indígenas que atuam entre os Cinta-Larga, Ruthlene, Apurinã, casada com Nacoça-Piu,
que é Cinta-Larga. Todos estes procuravam ampliação do apoio financeiro da Igreja Metodista, em
seus diversos trabalhos.
243
Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista. Igreja Metodista: Biblioteca Vida e Missão,
9, 1999. São Paulo: Cedro, 1999. p.16-17.
139
metodista na missão indigenista
244
. É na origem do trabalho entre povos indígenas que
inicia, também, a articulação entre missionários, camponeses e indígenas, de algumas
igrejas de tradição protestante.
Em agosto de 1979, missionários e obreiros das igrejas Metodista, de
Confissão Luterana e da Federação Nacional das Igrejas Presbiterianas (atual
Presbiteriana Unida), além de simpatizantes da causa indígena, reunidos na
Chácara Flora, em São Paulo, para o Encontro Presença Evangélica nas
Fronteiras do País, optaram pela criação de um grupo de trabalho
interdenominacional, visando uma maior cooperação e integração dos que se
encontravam nas frentes missionárias. Os princípios do grupo foram definidos.
Os missionários não podiam ficar no isolamento. Deveriam se encontrar,
trocar experiências, apoiar uns aos outros naqueles momentos difíceis de
ditadura militar. Haveria também empenho por se desenvolver no meio das
igrejas evangélicas, uma cultura de solidariedade aos povos indígenas.
Ficavam, ainda, a preocupação com a formação de missionários e
missionárias e o compromisso elementar do ecumenismo a partir da unidade
evangélica.
245
Este relato retrata o período de criação do Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico (GTME). Tratou-se de uma articulação de pessoas que estimularam,
inicialmente, suas próprias igrejas a incluírem, em suas agendas de missão, o trabalho
de solidariedade entre camponeses e povos indígenas. Desde sua criação, o GTME
passou por processos distintos, mas sempre se organizando em eixos propositores,
ainda vigentes nos planos quadrienais de trabalho de sua secretaria executiva:
formação, comunicação, diálogo inter-religioso, articulação com movimentos sociais. A
trajetória posterior a criação do GTME constitui a formalidade do trabalho metodista
junto aos povos indígenas. Esta trajetória es descrita no documento Diretrizes
Pastorais para Ação Missionária Indigenista, da Igreja Metodista. O documento
apresenta a pastoral de convivência como orientação para o trabalho missionário
indigenista.
246
244
Entre 1924 a 1946 a Igreja Metodista era aliada a uma iniciativa das Igrejas Presbiteriana
Independente e Presbiteriana do Brasil no surgimento da Associação de Catequese Missão Kaiowá.
Somente formalizou presença como trabalho metodista com a presença de Scilla Franco, iniciando a
missão metodista kaiowá.
245
FRANCO, Bispo Scilla. Minha Prece, coletânea de textos indígenas e missionários. São Bernardo
do Campo: Editeo/Imprensa Metodista, 1992, p.3.
246
DIRETRIZES Pastorais para a Ação Missionária Indigenista. Igreja Metodista: biblioteca vida e
missão, n. 9. São Paulo: Cedro, 1999, p.3s.
140
Uma nova avaliação da trajetória indigenista da missão metodista foi realizada
nos dias 16 a 18 de março de 2003. Realizou-se, na sede nacional da Igreja Metodista,
uma consulta sobre a Pastoral Indigenista da Igreja Metodista. Essa consulta foi
promovida pelo GTME, com apoio da CESE. Contou com a presença dos bispos e
bispa da Igreja Metodista, secretários e secretária das áreas de ação missionária da
igreja, agentes indigenistas e representantes das pastorais regionais, representantes da
diretoria e secretaria executiva do GTME, bem como metodistas envolvidos em ações
de solidariedade aos povos indígenas. Foram relatados os trabalhos de Projetos
metodistas: entre o povo Kanamari, Amazonas; entre o povo Tremembé, Ceará;
Pastoral na 4
a
Região eclesiástica e junto ao povo Krenak, Minas Gerais; entre o povo
Kaiowá, Missão Taperorã, Mato Grosso do Sul. Dessa consulta resultou um documento
em forma de carta ao Colégio de Bispos e Bispa, onde são apresentados as seguintes
preocupações:
Designações episcopais terceirização da ação missionária da Igreja.
Tem acontecido ultimamente, na região norte, designações de missionários de
trabalhos da JOCUM entre povos indígenas sob sua formação e orientação
teológica e técnica. Estamos delegando a terceiros nossas obrigações
missionárias. Estabelece-se, assim, uma relação de utilitarismo mútuo, onde a
Igreja Metodista se utiliza da imagem e relato dos trabalhos desses
missionários para propaganda e divulgação de sua missão; por outro lado, os
missionários beneficiam-se de aumento nas coletas financeiras que sustentam
seus trabalhos e procuram proteção eclesiástica, de notório respaldo
institucional, que a JOCUM não tem condições de oferecer, principalmente em
situações críticas como enfrentamento judicial (como
aconteceu).Estruturação institucional e parcerias. Historicamente os
trabalhos metodistas missionários indigenistas, por sua constituição frágil em
termos de consolidação institucional e financeira, ricas experiências de
parceria com organismos diversos. Estas parcerias, no entanto, são positivas
e negativas. Positivas porque ampliam a rede de relações de solidariedade
aos povos indígenas. Negativas porque sinalizam a incapacidade de
sustentabilidade e continuidade programática e conceitual dos trabalhos
missionários existentes. Formação: Captação de pessoal; renovação de
quadros. A Igreja Metodista não oferece formação indigenista, nem trabalha
com programas vocacionais para a missão indigenista. Sequer cria
mecanismos para captação de recursos para formação e vocação. Os quadros
atuais foram formados pelo GTME, que é parceiro histórico da Igreja na
questão indígena. Houve um tempo em que campanhas de vocação, em
parceria com o GTME, foram realizadas e entendemos que devem ser
retomadas em caráter de urgência. Há uma carência imediata de missionários
qualificados para suprir as vagas existentes (MIMEKA, Tremembé a partir
de setembro). A conjuntura do trabalho missionário indigenista exige, cada vez
mais, especialização em áreas pontuais para responder às demandas das
141
realidades dos povos com os quais atuamos. Além de conhecimentos técnicos
específicos, é necessário boa formação antropológica, histórica e teológica
direcionadas à questão indígena. Manutenção dos projetos: recursos,
forma continuada. Hoje existe uma grande instabilidade e insegurança
quanto à execução nima das ações necessárias devido a falta de recursos.
Isso faz com que os trabalhos sejam fragmentados exigindo das equipes uma
constante elaboração de pequenos projetos. Corremos o risco de não
visualizar a ação como um programa contínuo. Ruptura Teológica. A Ação
Missionária Indigenista compõe a Missão da Igreja. No entanto, a atual
estrutura eclesiástica moldada em termos de Coordenação de Expansão
Missionária e Coordenação de Ação Social promove uma ruptura eclesial (de
vivência comunitária e conciliar). Historicamente os programas e pessoas que
concebem a Missão de forma mais integral foram reunidas no chamado grupo
da Ação Social; aqueles preocupados com agregar novos membros à Igreja
foram reunidos no chamado grupo Expansão. Neste modelo, vivenciamos a
realidade de que algumas ações agregacionistas alcançam povos indígenas,
sem compromissos com as garantias constitucionais civil e eclesiástica.
Compromete-se, assim, a caminhada histórica do trabalho indigenista
metodista. Parcerias com instituições de ensino. Os trabalhos metodistas
junto a povos indígenas têm como característica predominante a ação
educativa. Neste sentido, é necessária uma consolidação de parceria com as
Instituições Metodistas de Ensino. Novos parâmetros jurídicos. Na
sociedade brasileira existem garantias constitucionais dos direitos
fundamentais dos povos indígenas. A Igreja Metodista em suas Diretrizes
Pastorais para a Ação Missionária Indigenista, na página 14, estará sempre
atenta a todas e quaisquer formas de desrespeito desses direitos”. Diante
disso, não podemos referendar trabalhos que infringem a legislação brasileira
e as orientações eclesiásticas.
247
Essa avaliação, em forma de preocupações, aponta elementos que são
reincidentes, nos documentos da Igreja Metodista dedicados à questão indígena: (1) a
questão indígena é periférica aos principais temas de preocupação missionária da
igreja metodista; (2) disto resulta que não existe uma organização eclesiástica interna
dentro da estrutura da igreja metodista, ocupada em entender o fenômeno e atuar
diretamente nele; (3) o crescimento e presença da igreja metodista, em lugares em que
a relação com povos indígenas é inadiável, as escolhas locais de atuação, na questão
indígena, têm seguido as posturas conversionistas do crescimento evangélico entre
povos indígenas; (4) uma tendência nas estruturas eclesiásticas formais, em
responder afirmativamente a uma aliança com segmentos fundamentalistas de missão
247
O relatório resultante desta Consulta foi distribuído para participantes e membros do GTME.
SECRETARIA de Ação Social da Igreja Metodista; Grupo de Trabalho Missionário Evangélico.
Relatório da Consulta com a Igreja Metodista sobre Pastoral Indigenista. Cuiabá/ São Paulo:
GTME/ Igreja Metodista 2003. Mimeo.
142
indigenista; (5) é discutível o caráter orientador das diretrizes para ação indigenista,
promulgado pelo Colégio Episcopal em 1999.
Se compararmos os relatos da Consulta promovida pelo GTME, em 2003, com o
Encontro Perspectivas de Missão para a Ação Missionária Indigenista nos Campos
Missionários da Amazônia, realizado em Porto Velho, em 2002, podemos perceber
como a Igreja Metodista vive um tempo pujante, em relação à questão indígena. Existe
uma possibilidade de que a missão indigenista metodista se torne mais conversionista,
a depender dos envolvimentos da Igreja Metodista com as missões indígenas e
indigenistas conversionistas na região norte. Particularmente, é relevante destacar que
esses elementos são sinais de um crescente processo político de distanciamento, das
práticas metodistas, em relação às garantias básicas de direitos indígenas, em
processo de consolidação na sociedade brasileira.
Os projetos de pastorais metodistas, identificados no documento Diretrizes
Pastorais para a Ação Missionária Indigenista, que são os quatro grupos envolvidos na
consulta do GTME, são identificados com um processo histórico de sensibilização da
Igreja Metodista, ao clamor dos povos indígenas, por garantia de direitos. A ação
evangelizadora desses projetos concretiza-se nas ações de solidariedade, visando à
afirmação desses direitos e auxiliando os povos indígenas, na afirmação da
autodeterminação.
As diretrizes apontam a história de envolvimento pastoral metodista, com povos
indígenas, em cinco fases
248
: (1) origem da missão kaiowá, em 1928, em aliança com
Presbiteriana Independente e Presbiteriana do Brasil, de onde se retirou em 1946; (2)
Plano Piloto da Igreja Metodista de Acompanhamento a pequenos agricultores, criado
em 1971, com o trabalho do Pastor Scilla Franco, sendo criado, também, na sede geral
248
Estas fases são um primeiro exercício de memória reunida durante a 41
a
Semana Wesleyana da
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, realizada de 19 a 22 de maio de 1992. Neste encontro
nasceu a proposta de redação das Diretrizes, promulgadas pelo Colégio Episcopal, em agosto de
1993. As fases encontram-se no texto das Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista e
também na publicação da Semana. Cf. Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista. Igreja
Metodista: Biblioteca Vida e Missão, 9, 1999. São Paulo: Cedro, 1999. KEMPER, Thomas; SILVA,
Jaider Batista (orgs). Repensando a evangelização junto aos povos indígenas. São Bernardo do
Campo, SP: Editeo/ Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, 1994.
143
da igreja uma equipe de apoio; (3) 1977, o Plano Piloto tornou-se Missão Tapeporã, sob
orientação do agrônomo Áureo Brianezi, com forte integração a outros projetos que
atuavam na mesma área indígena; (4) 1983, quando a equipe de apoio à Missão
Tapeporã transformou-se em Grupo de Trabalho Indigenista, responsável por pensar e
auxiliar a igrejas, nas decisões conjunturais e na aprovação de um primeiro documento
norteador para prática pastoral metodista, “Bases para uma política indigenista da Igreja
Metodista”; (5) a partir de 1993, quando se percebeu um grupo mais amplo de pessoas
envolvidas no GTI e a ampliação da presença metodista entre outros povos indígenas,
quando é elaborado o texto das Diretrizes.
Das quatro presenças metodistas citadas, três são ações focadas
prioritariamente no eixo da educação popular: (1) entre o povo Tremembé, a missão
metodista trabalhou com o processo de consolidação da formação de professores e
agentes de saúde; (2) entre o povo Krenak, um grupo de solidariedade auxiliou na
questão do reconhecimento da terra e na inserção dos krenak no ingresso na educação
superior; (3) entre o povo Kanamari, a missão metodista focou sua atuação no
fortalecimento e formação de lideranças locais, com ênfase na criação dos agentes de
saúde indígena e professores indígenas
249
.
A atuação missionária indigenista metodista como ação educativa é inspirada
nas experiências de educação popular. Desde inícios da década de 80 um número
expressivo de jovens metodistas, chamados “geração PVMI”
250
se envolveram em
projetos sociais diversos, motivados por uma compreensão da missão como “A Missão
da Igreja Metodista é participar da ação de Deus no seu propósito de salvar o
249
Os relatórios anuais de cada um destes projetos encontram-se disponíveis na sede nacional da igreja
metodista, em São Paulo. Eu tive a oportunidade de atuar nos três projetos da Igreja e possuo cópias
dos relatórios. Entre os Krenak, atuei, entre 1994 a 1998, como membro do grupo de solidariedade
com base em Piracicaba, um grupo que articulou ações de retorno à terra no vale do Rio Doce em
Minas de um grupo de Krenak que tinham sido retirados de sua terra e transplantados para uma
reserva Kaingang em Tupã, interior de São Paulo. Estive entre os Krenak, em sua terra demarcada em
Resplendor MG, entre julho e outubro de 1999. Estive entre os Tremembé, em Almofala CE, entre
novembro de 1999 e fevereiro de 2000.
250
Ainda não localizei a expressão em documentos ou literatura de pesquisa sobre metodismo. Refiro-me
aqui a expressão que utilizamos em reunião de metodistas de mesma faixa etária, os que éramos
jovens participantes de nossas igrejas locais e de grupos societários de jovens e juvenis da Igreja
Metodista nesta década e que vivenciamos as atividades eclesiais de formação para missão.
144
mundo”
251
. Ao longo da década de 80 uma mobilização de membros metodistas leigos,
inspirados no mote de “uma igreja de dons e ministérios” foram impulsionados a
exercitar seus dons a serviço da comunidade onde a sua igreja local estava inserida.
Foi um período de criação e desenvolvimento de várias pastorais das igrejas,
envolvendo metodistas em ações solidárias e ecumênicas em diversas instâncias e em
alianças com diversos grupos e instituições da sociedade civil.
Não se deve estranhar, quando, em 1993, dois jovens metodistas
252
encontram-
se em Eirunepé, realizando um estágio de sua formação para o trabalho indigenista
entre os povos kanamari e kulina, resolvem elaborar um projeto e solicitar auxílio da
Igreja Metodista para apoiar a continuidade de trabalhos indigenistas entre o povo
Kanamari que vinha sendo realizado até então pela entidade parceira Operação
Amazônia Nativa (OPAN)
253
. Nos objetivos desta proposta inicial encontramos
propostas educacionais visando escolarização: (1) fomentar discussão sobre educação
na perspectiva de definição da escolarização estimulando alfabetização bilíngüe; (2)
coletar mitos, histórias, fatos do cotidiano, que possam se tornar literatura para uso no
processo de alfabetização; (3) articular junto a entidades e órgãos governamentais,
questões como construção de escolas, contratação de professores, assessorias; (4)
contribuir para o envolvimento de professores indígenas no movimento indígena; (5)
executar programa de ensino da matemática para capacitação dos kanamari no campo
da comercialização.
254
251
Conceito de missão aprovado X Concílio Geral da Igreja Metodista, realizado em duas etapas nos
anos de 1970 e 1971. Citação retirada de Cânones da Igreja Metodista. Colégio Episcopal da Igreja
Metodista. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1971. p.11.
252
Silas Moraes e Marcos Weslley foram dois jovens que fizeram o curso de capacitação para o trabalho
indigenista da OPAN, como metodistas encaminhados pelo GTME, que em parceria com a OPAN, era
também proponente de formação para o trabalho indigenista nas pastorais protestantes.
253
A OPAN, Operação Padre Anchieta, posteriormente Operação Amazônia Nativa, foi fundada na
década de 60 e parte de seus membros fundadores foram protagonistas no processo de criação e
consolidação do CIMI, na década de 70, orgão oficial da CNBB para pastoral indigenista da igreja
Católica.
254
Este primeiro projeto da Missão Metodista junto ao povo Kanamari recebeu apoio mediado pela CESE
e representou uma contribuição efetiva de construção dos professores indígenas que hoje estão
lidando com as iniciativas do Estado para consolidação das Escolas Kanamari nas diversas aldeias
das Terras Indígenas Mawetek e Kanamari do Médio Juruá. MORAES, Silas; SILVA, Solange Pereira.
Formação de Educadores Kanamari, uma experiência indigenista na formação de educadores, Rio
Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência indigenista em escolarização. Relatório de atividades da
145
Dez anos depois, em 2003, em relato sobre a Missão Metodista
255
junto ao povo
Kanamari, por ocasião da Consulta sobre Pastoral Indigenista Metodista, na sede
nacional da Igreja, as perspectivas de fortalecimento da missão foram: (1) Dar
continuidade ao acompanhamento da gestão do PDPI, iniciado no ano anterior; (2)
Continuar produção de recursos didáticos para aprendizado da matemática comercial;
(3) Criação de mercados para comercialização dos produtos de extrativismo; (4)
Acompanhamento de atividades de formação nos processos de produção e dos
estudos de manejo para cada aldeia
256
.
Na Missão Metodista indigenista, nestes espaços de atuação que iniciaram suas
atividades nas décadas de 80 e 90, se mantém o foco no trabalho de afirmação dos
direitos indígenas e aliança com as comunidades indígenas para fortalecimento de sua
auto-determinação. No caso específico da Missão Metodista junto ao povo Kanamari
esta aliança esteve alicerçada em apoio de igrejas co-irmãs dos Estados Unidos,
Alemanha e Canadá através de projetos diversos apresentados ao longo de sua
existência e da capacidade de articulação com a OPAN e com o COMIN na região. A
questão que permanece incógnita é por quanto tempo permanecerão, considerando
que a Igreja Metodista não tem feito nenhum esforço de preparação missionária entre
índios e tem tido dificuldade de encontrar caminhos de sustentabilidade destes projetos.
Dos elementos teológicos que sustentam estas iniciativas, a idéia de serviço,
apresentada na perspectiva a prática da pastoral da convivência, “pressupõe o estar
presente com a comunidade indígena, participando na vida cotidiana, aprendendo,
descobrindo e tornando-se parceira com cada povo, na defesa da vida. (...) O
Evangelho constitui boas novas para os povos indígenas à medida que os ajuda a
fortalecer as suas próprias culturas, a refazer os seus direitos sobre a terra e a recobrar
Missão Metodista entre o povo Kanamari. São Paulo: Igreja Metodista; Salvador: CESE, 2000. Mimeo.
p. 27ss.
255
MORAES, Silas; SILVA, Solange Pereira. Formação de Educadores Kanamari, uma experiência
indigenista na formação de educadores, Rio Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência indigenista em
escolarização. Relatório de atividades da Missão Metodista entre o povo Kanamari. São Paulo: Igreja
Metodista; Salvador: CESE, 2000. Mimeo.
256
Na memória do encontro encontram-se outras referências de atividades de relacionamento com a
implementação de políticas públicas em saúde e educação que motivaram esta ênfase nas ações de
capacitação aliadas ao fortalecimento do projeto de sustentabilidade financeira das aldeias e
fortalecimento das lideranças locais das aldeias.
146
a dignidade que os filhos e filhas de Deus possuem”
257
. Esta atitude exige um repensar
contínuo da evangelização e da teologia de missão.
257
Diretrizes Pastorais para a Ação Missionária Indigenista, 1999, p. 15-16.
4 EDUCAR PARA A CIDADANIA INDÍGENA
Luis Antônio Cunha, em seu discurso de abertura da reunião anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) de 2007
258
,
pensando a missão da ANPEd para os próximos anos, sugeriu que sejam retomados os
princípios do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932
259
, quando discorre
sobre a necessidade de restabelecimento do princípio da laicidade da educação
pública, como parâmetro inegociável da relação Estado/Igreja
260
:
Com o acirramento da crise econômica e dos conflitos sociais, desde a
década passada, a religião virou uma panacéia, defendida,
surpreendentemente, por religiosos e ateus. Um remédio para todos os males,
que se pretende ministrar em doses amplas aos alunos das escolas públicas,
como um mecanismo de controle individual e social supostamente capaz de
acalmar os indisciplinados, de conter o uso de drogas, de evitar a gravidez
precoce e as doenças sexualmente transmissíveis, apresentando-se, também,
como a única base válida para a ética e a cidadania, como se fosse uma
espécie de educação moral e cívica do bem. [...] Ora, o campo religioso é
258
O encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) de
2007, foi comemorativo dos 30 anos de sua existência, com o tema “ANPEd: 30 anos de pesquisa e
compromisso social”. As palestras de abertura foram dedicadas ao tema das perspectivas de futuro
para a ANPEd. No site da ANPEd, é possível acessar todas informações e documentos discutidos da
reunião. ANPEd. Reuniões anuais. Disponível em: <www.anped.org.br> Acesso em15.no.2007.
259
Cf. AZEVEDO, Fernando; PEIXOTO, Afranio; DORIA, A. de Sampaio; TEIXEIRA, Anisio Spinola; et al.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1932. Disponível em:
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm>. Acesso em 12 dez. 2008.
260
O tema é tratado também por Luis Antonio Cunha, em seu artigo Autonomização do Campo
Educacional: efeitos do e no ensino religioso (2006). Entende que “[...] O Manifesto defendeu a
autonomização do campo educacional diante do campo político, do campo religioso, do campo
econômico, assim como das classes sociais que lhes estão subjacentes e que se reforçam a partir de
seu funcionamento” CUNHA, Luiz Antônio. Autonomização do Campo Educacional: efeitos do e no
ensino religioso. Revista Contemporânea de Educação. n. 2, Dezembro de 2006. Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Disponível em:
<http://www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero2/artigos/lacunha.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2008.
148
necessariamente marcado por disputas pela hegemonia que assume ora a
versão suave da missão, ora a aliança ocasional chamada ecumenismo, mas
que pode chegar à competição ostensiva, em diversos graus e com diversas
conseqüências. No passado como no presente, as disputas religiosas levaram
à guerra, ao terrorismo, à tortura e à censura. Para a escola pública, não
convém nenhuma versão dessa guerra dos deuses, isto é, dos grupos que
disputam a hegemonia em nome de seus deuses.
261
O que Cunha tem nomeado como laicidade da educação pública é a não
submissão das questões curriculares a hegemonia da religiosa do cristianismo,
particularmente do catolicismo. Mas, parece não ser possível efetivar-se, nos cotidianos
das relações sociais e políticas, na sociedade brasileira. Isso ocorre primeiramente,
pela forte presença da Igreja Católica, nos espaços de poder político. Recentemente,
decorre da crescente pressão dos grupos políticos autodenominados Evangélicos, que
representam o pensamento de igrejas de características teológicas fundamentalistas. O
próprio Cunha, em artigo citado, faz uma análise comparativa dos embates políticos
enfrentados no contexto histórico brasileiro da chamada Revolução de 1930 e o
contexto de implementação da LDB, de 1996. Lembra que, por concessão à força
política da Igreja Católica, o ensino religioso, que havia se instituído como facultativo na
década de 1930, se tornou obrigatório, no fim do século XX. O autor referiu elementos
da relação Igreja/Estado (atualizando para os dias atuais a expressão Religião/Estado
talvez seja mais adequada), que estão ainda latentes, precisando ser resolvidos, na
sociedade brasileira, nessa entrada de século XXI:
Num primeiro momento, parece ter sido eficaz a aliança cristã católica e
evangélica em defesa do ER [ensino religioso] nas escolas públicas,
derrotando o laicismo ativo e passivo, implícito ou explícito. Em decorrência do
acelerado crescimento das Igrejas Evangélicas Pentecostais no âmbito das
classes populares, justamente onde as religiões de origem africana
encontravam seus adeptos, a correlação de forças no interior dessa aliança
poderá pender para o lado evangélico, devido ao seu caráter militante. Num
segundo momento, depois de efetivado o ER nas escolas públicas sob a
hegemonia cristã, não é descabido supor que as disputas entre católicos e
evangélicos, hoje latentes, sejam explicitadas e venham a se tornar um
261
CUNHA, Luiz Antônio. A retomada de compromissos históricos aos 30 anos da ANPEd.
Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/sessoes_especiais/Cunha.pdf>. Acesso em: 25
dez. 200,. p. 4.
149
elemento de conflito no interior da escola pública, para cuja pacificação seus
defensores pretendem hoje contribuir.
262
.
Eis um exemplo de debate tratado desde a perspectiva da história e sociologia.
Interessante notar como os/as educadores/as estão preocupados/as com a influência
do discurso religioso, na afirmação da liberdade religiosa, pressuposta na vida
democrática. Afinal, o discurso de Luis Antonio Cunha insere-se em um cenário que
reúne os principais teóricos da Educação, no Brasil, em sua reunião anual, que,
especialmente em 2006, tratou da história e rumos da ANPEd. Esse fato denota a
relevância em se ampliar o espectro do olhar sobre a relação entre a educação, a
religião e a afirmação da democracia brasileira. É necessário entender o papel da
religião, na relação com o Estado, num país como o Brasil e, também, qual a relação de
intencionalidade no fato de o Estado confiar em instituições religiosas a educação de
parte expressiva da população brasileira.
A preocupação de Luis Antonio Cunha, sobre a influência da Igreja, nos rumos
da sociedade brasileira, está diretamente vinculada à obrigatoriedade da oferta do
ensino religioso nas escolas blicas. Uma outra comparação, entre os ideais do
Manifesto de 1932, foi feita por Elias Boaventura
263
, que analisa o caráter de adesão da
Educação Metodista, ao momento que vivencia o país, em sintonia com os ideais do
movimento da Escola Nova
264
. Em sua análise, aponta que
que os educadores
262
CUNHA, 2006. Disponível em: <http://www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero2/artigos/lacunha
.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2008. p.15.
263
Cf. BOAVENTURA, Elias. Educação Metodista e o Manifesto dos Pioneiros da Educação de 1932. In:
IX Simpósio Internacional Processo Civilizador. 24 a. 26 nov. 2005, Ponta Grossa, Paraná. Disponível
em: <http://www.fef.unicamp.br/sipc/anais9/artigos/mesa_debates/art9.pdf>. Acesso em: 12/02/2008.
264
Esta questão foi analisada na perspectiva das similaridades e mútua influência no trabalho de Rosa
Meneghetti: “Na ótica dos protestantes e escolanovistas, enquanto o ensino católico se caracterizava
por ser tradicional, demasiadamente propedêutico, mantenedor de espaços de ignorância e
superstição das camadas da população que freqüentavam os bancos escolares, condutor, portanto de
uma visão de mundo falsa e enganosa e que, por decorrência da censura a que submetia seus
currículos, reforçava o atraso e o pouco desenvolvimento da nação, o ensino ministrado nas escolas
protestantes sinalizava uma outra possibilidade com perspectiva político-educativa mais concorde com
os ideais republicanos”. Outros estudos similares foram feitos também analisando a consolidação e
influência da educação Presbiteriana, na política educacional do país por Ester Fraga Vila-Boas.
MENEGHETTI, Rosa Gitana Krob. A proposta educacional metodista no Brasil, Revista
Comunicações, Piracicaba, a. 5, n. 2, p.149-158, novembro, 1998, p. 153; VILAS-BÔAS, Ester Fraga.
A influência da Pedagogia Norte-Americana na Educação em Sergipe e na Bahia. Revista Brasileira
de História da Educação, São Paulo, n. 2, p. 9-38, julho/dezembro, 2001.
150
metodistas viam no debate dos pioneiros, momento oportuno para o enfrentamento à
influência da Igreja Católica na composição do poder do Estado”
265
.
Como pano de fundo dessas diferentes abordagens, está o exercício pleno da
cidadania, mesmo considerando que as instituições sociais constitutivas da sociedade
estabelecem relações de disputa e enfrentamentos desiguais, que algumas são
hegemônicas e outras não. Supostamente, no ambiente escolar deve-se garantir a
liberdade do pensamento para interpretar e conhecer os diferentes interesses
constitutivos da sociedade e de seus/suas cidadãos/ãs. Pauly entende que, no Estado
democrático,
as igrejas perderam espaço político para as organizações civis e partidos
políticos. A igreja foi libertada do poder político pela conquista popular,
democrática e republicana. Livre do poder político, a igreja se dedica à sua
tarefa primordial: testemunhar o amor de Deus crucificado. A secularização da
sociedade promove a emancipação da cidadania
266
Esse aparente tema periférico à discussão da constituição do Estado
democrático emerge quando se analisa a dificuldade de alguns países Europeus, tidos
países secularizados, diante do crescimento de religiões fundamentalistas e o alcance
da interferência e determinação do exercício democrático da cidadania. Em 1984, o
parlamento holandês e, em 1994, a Assembléia Nacional francesa publicaram relatórios
sobre o fenômeno de novas religiões e movimentos religiosos, na Europa. Em 1996, os
parlamentos Belga e Alemão e estudaram o “problema das seitas” e, em 1997, a Duma
da Rússia deliberou restrições aos direitos das novas religiões. Nitidamente, a
preocupação inicial se instituiu em função da influência e potencial ameaça ao princípio
da liberdade, que inspira os ideários democráticos, se tornou um debate conceitual
sobre “seitas” e seu direito de existência, justamente para garantir a liberdade religiosa,
como expressão do exercício da democracia. O fenômeno é analisado por Seiwert:
Não são incomuns conflitos ideológicos e religiosos em sociedades pluralistas.
São resultados de competição por aceitação social, recursos econômicos e
265
BOAVENTURA, 2005, p. 9.
266
PAULY, Evaldo Luis. Mãos à obra: porque Deus nos amou primeiro, uma reflexão da teologia prática
luterana sobre o “assistencialismo”. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 42, n. 1, p. 42-57, 2002, p.
41.
151
influência ideológica. Competição, não somente competição econômica, é um
elemento chave nas sociedades modernas com uma constituição liberal.
Também é normal que agentes diferentes tentem, de acordo com seus
interesses, contrair coalizões com outros grupos de interesse e influenciar, na
medida possível, as instâncias políticas em favor de benefícios próprios. Por
isso não é surpreendente, mas sim legítimo, que grupos para os quais o
combate contra seitas é um objetivo por quaisquer razões que tinham –,
tentem ganhar apoio governamental para realizar este interesse. O sucesso
desta empreitada depende de esses grupos conseguirem apresentar seus
próprios interesses como sendo os de toda a sociedade. Isso significa, no
caso da crítica às seitas e do combate contra elas, destacar que se trata não
somente de conflitos privados ou de divergências ideológicas, mas de um
desafio para a sociedade interna ou, até mesmo, para o país. O sucesso desta
estratégia é paradigmaticamente visível pela instalação de comissões
governamentais de vários parlamentos, uma vez que eles por definição -
não se ocupam de interesses privados mas públicos. [...] Nos modernos
países constitucionais, a liberdade do indivíduo tem um valor alto. Todavia a
defesa de direitos liberais inclui responsabilidade, especialmente
responsabilidade do indivíduo por si mesmo. Se o Estado exercesse esta
responsabilidade em substituição ao indivíduo, isso aconteceria às custas de
liberdade. Os princípios da liberdade e da auto-responsabilidade têm seu
preço no risco de seu fracasso. Isso vale para todas as áreas da vida, tanto
em casos de empresas econômicas quanto no contexto de escolha de uma
profissão e outras decisões na vida individual. Um país liberal que quer cuidar
dos riscos de vida de seus cidadãos coloca-se em uma situação periclitante
entre assistência social e tutela.
267
A Cidadania, como projeto de civilidade, está para a Educação na mesma
proporção que Educação está para o Estado-Nação, como projeto de Democracia. A
democracia reúne as expectativas modernas de civilidade para o mundo. É através de
eficazes projetos educacionais que a Democracia se firmará, pois tornará plenamente
acessível e compreensível a capacidade de o sujeito/ indivíduo/ cidadão participar,
autonomamente, dos seus direitos e deveres, no exercício de sua Cidadania. Essa
fórmula reúne boa parte das expectativas das idéias de modernidade
268
. A
compreensão dessa fórmula, considerando as questões propostas pela educação
267
SEIWERT, Hubert. O problema das "seitas" - Opinião blica, o cientista e o Estado. Revista de
Estudos da Religião. da Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-São Paulo, n 2, a. 1, 2001.
Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv2_2001/t_hubert.htm>. Acesso em: 04. out. 2007, p. 2.
268
Pautando a idéia de processo civilizador, de Norbert Elias, Gynthia Greive Veiga, apresenta a
constituição do pensamento moderno, na explicitação dos entrecruzamentos de conceitos, como
educação, civilidade, cidadania, democracia. Demonstra que a idéia de escola única para todos, sob
perspectiva do humanismo, é representativa de uma ideologia monoculturalista. O Estado toma a
escola com a instituição a seu serviço para realizar, de maneira mais ampla e duradoura a função de
regulação social. VEIGA, Gynthia Greive. A escolarização como projeto de civilização. Revista
Brasileira de Educação, n 21, p. 90-103, Rio de Janeiro, set/dez, 2002.
152
indígena, torna inadiável abordar a questão da educação para a cidadania desde a
perspectiva da idéia de cultura.
Alfredo Veiga-Neto alerta para o fato de que, na instituição da modernidade,
“Educação e Cultura” foi um binômio interdependente, onde, por muito tempo, não se
dedicou à investigação do conceito cultura ou educação, entendidos como
pressupostos com significação encerrada, considerando que a “educação era entendida
como o caminho para o atingimento das formas mais elevadas da Cultura, tendo por
modelo as conquistas realizadas pelos grupos sociais mais educados e, por isso,
mais cultos”
269
. Como é expressiva a responsabilidade de missões religiosas, na
implementação de experiências educacionais, entre povos indígenas, o tripé missão -
educação - cultura torna-se lócus obrigatório de investigação da idéia de que a
educação leva ao exercício pleno da cidadania, na democracia brasileira. Não somente
aos povos indígenas interessa entender a relação do tripé, mas, também, às políticas
públicas brasileiras em educação, que já manuseiam e ensaiam propostas no entorno
de expressões como multiculturalismo, pluralidade étnica e conceitos afins, que buscam
explicitar o impacto da constituição cultural diversa da população brasileira.
Essa temática é abrangente, exigindo um recorte que subsidie a compreensão
do processo histórico de constituição da missão indigenista metodista, no cenário da
história da democracia brasileira. Portanto, estabelecendo os limites de discussão a que
se propõe essa pesquisa, primeiramente, proponho estabelecer os lugares desde onde
se pensa educação como missão indigenista. Essa discussão é pertinente, pois remete
à indagação sobre qual sistema de ensino pertence à educação indígena e como se
executa gestão democrática dos povos indígenas.
Num segundo passo, a tarefa é enunciar os elementos de pertença dos espaços
históricos firmados da educação indígena à luz da democracia brasileira, apontando
características curriculares que se impõem aos parâmetros curriculares nacionais,
existentes no país. No terceiro momento, impõe-se uma aproximação aos elementos de
divergência e convergência entre os discursos teológicos de sustentação das práticas
269
VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação, n. 23, p. 5-15,
Rio de Janeiro, mai/ago, 2003, p. 7.
153
missionárias indigenistas - no particular da missão metodista entre os kanamari - e as
possibilidades históricas disponíveis para afirmação da cidadania indígena, na
sociedade nacional. Por fim, pretendo explicitar de que forma a educação escolar
indígena tem forjado uma agenda mínima de questões para a educação brasileira,
como um todo, e para a discussão sobre a relação estado/religião, ressurgente no
século XXI sobre nova roupagem.
4.1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA NO SISTEMA DE ENSINO BRASILEIRO
Ênfase ou não do momento em que vivemos, o fato é que descobrimos todos
que é sobre o poder que importa falar. Aos poucos, em parte por aprender na
prática, em parte por praticar teorias, descobrimos que sob nomes, rostos e
intensidades diferentes é ele quem ora se oculta, ora se desvela por detrás de
tudo o que pensamos realizar e desejamos um dia transformar. O educador
cujo ofício se dirige aos servos da terra e do capital percebe que ao desvelar o
sentido que atribui ao que imagina fazer educar, conscientizar, organizar,
participar, pesquisar, comprometer-se na verdade, defronta-se com
diferentes modalidades de poder que existem tanto sobre, quanto nas suas
práticas de ação: a ciência e sua pesquisa, a educação e seu programa de
organização e desenvolvimento. Identificados, todos os que nos reunimos
aqui, com diferentes espécies de uma mesma missão que adjetivamos como
libertadora, que consiste especificamente em recriar junto e com sujeitos e
grupos populares um novo saber, substrato de uma nova cultura, onde o lugar
da pesquisa que ajude a criar a possibilidade de uma nova ciência é
fundamental, descobrimos que por isso mesmo enfrentamos problemas sérios.
Problemas que desafiam o o limiar da pesquisa, mas o das próprias
ciências de que elas pretendem ser instrumentos.
270
Educar para a cidadania, no Brasil, é uma afirmação que está perpassada pela
história e pensamento dos movimentos populares das décadas de 1960 e 1970,
analisados por Carlos Rodrigues Brandão, no rastro de compreender o âmago das
pretensões dos projetos de Educação Popular, que instituíram e mobilizaram grupos
dos mais diversos, por todo o Brasil. Esses grupos, movidos pelo chamado Método
Paulo Freire”, se instituíram em aliança com diversos segmentos da sociedade
brasileira (camponeses, quilombolas, agricultores sem-terra, bóias-frias, mulheres
prostituídas, crianças de rua, trabalhadores de fábricas, povos indígenas, etc.). A
contribuição de Paulo Freire, como ideólogo da prática educativa popular, é
270
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2002,
p. 103.
154
reconhecida
271
. De suas contribuições, na questão da Educação Indígena, é importante
destacar o impasse/embate entre as expectativas da modernidade e da pós-
modernidade, com relação ao papel da educação. Freire
272
assume uma posição pela
radicalidade da utopia (socialismo democrático) necessária ao ato educativo. O autor
entende que há uma intencionalidade política, na prática educativa, que sempre é
diretiva (em modelo autoritário ou democrático). Isso exige o controle da educação pela
população a quem ela se destina. É a chamada “gestão democrática”, pressuposta no
art. 14, da LDB
273
.
Esta apropriação popular do direito à educação, por parte dos diversos
segmentos sociais organizados, é um testemunho histórico da importância da
organização da sociedade civil, na afirmação da democracia. Evaldo Pauly aponta a
expectativa de que, no Estado democrático de direito brasileiro, a educação seja capaz
de realizar “o ensino da moral compatível com a dignidade da pessoa humana
plenamente desenvolvida, o ensino que corresponda às exigências do exercício dos
direitos e deveres da cidadania e capaz de qualificar para o trabalho produtivo”
274
.
Ensinar e aprender a moral necessária ao desenvolvimento pessoal, à consolidação da
cidadania democrática e à participação no trabalho, contudo, parece conter
contradições metodológicas que habitam as ciências da educação. No pensamento
pedagógico recorrente nos movimentos sociais, inspirados na Pedagogia do Oprimido
271
Balduíno Andreola e Mario Bueno resgatam, no capítulo 1 do livro Andarilho da Esperança: Paulo
Freire no Conselho Mundial de Igrejas, como Paulo Freire foi, dos educadores envolvidos no
Movimento de Cultura Popular e Movimento de Educação de Base na década de 1960, quem se
dedicou a sistematizar e organizar a proposta pedagógica vivenciada. Rapidamente seus escritos
tornaram-se referência para todo o movimento e gerações vindouras, vinculadas aos movimentos
sociais no Brasil e também em outros países que sofreram sua influência. ANDREOLA, Balduino
Antonio; RIBEIRO, Mario Bueno. Andarilho da Esperança: Paulo Freire no Conselho Mundial de
Igrejas. São Paulo: ASTE, 2005.
272
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 3. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
273
“Art. 14
o
. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na
educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I-
Participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II-
participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Leis de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n
o
9394, de 20 dez. 1996. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2007.
274
PAULY, Evaldo Luis. A formação de professores no contexto político-pedagógico de “preparo
para o exercício da cidadania”: uma reflexão sobre a moral republicana. Mimeo. Canoas:
UniLassale, 2006, p. 3.
155
de Paulo Freire
275
, a Educação pode estar a serviço do autoritarismo ou da autonomia e
autodeterminação. É no fazer pedagógico que as diferenças se explicitam e se
instituem.
É importante recordar que a Educação Popular, principalmente nos movimentos
consolidados nas décadas de 1970 e 1980, era o motor de propulsão das lutas sociais
e caracterizava-se pela luta contra o governo militar. A luta pela democracia, que
marcou a história brasileira como a luta pelo voto direto e pela instituição da
Constituição Federal de 1988, para muitos, ocorreu também em âmbito de discurso e
reflexão das instituições religiosas, no sentido de superação da idéia da ação social
chamada assistencialista, por uma ação social pela cidadania. Essa diferença, como
mote ideológico da afirmação da ão social das igrejas protestantes, é estudada por
Conrado
276
. O autor diferencia as iniciativas daquilo que chamou protestantismo
ecumênico dos evangélicos assistencialistas. A incorporação do ideário do Estado
democrático de direito se instituiu, em inícios da década de 1990 também nas ações
sociais de grupos evangélicos pentecostais.
Como as missões religiosas indigenistas ocuparam espaços da ausência do
Estado, devido a estas experiências, entre as décadas de 1960 a 1990, representaram
a presença indigenista em favor da afirmação da cidadania indígena. Alcida Ramos
analisa como o Estado Brasileiro tem lidado com a questão da existência indígena no
seu tecido social. Para Alcida Ramos, no século XX a imagem do indígena sofreu uma
alteração emblemática de manuseio público. De moradores zeladores dos limites
territoriais brasileiros, passaram a ser vistos como uma ameaça à soberania nacional.
Esse argumento justificou uma parte significativa dos projetos colonizadores das
regiões interioranas do país, de norte a sul,
onde quer que estejam, como quer que sejam, os índios de carne e osso são
como que uma neurose não resolvida ou uma altercação não apaziguada que
o país tem consigo mesmo. Os índios crianças, tutelados do Estado,
despertam uma considerável gama de emoções que vai desde o ódio secular
de certos segmentos regionais até à emulação ecológico-mística de quem
275
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 41 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2005.
276
Cf. CONRADO, 2006.
156
culpa o ocidente pelos males do planeta e vão sofrer os diversos projetos
expansionistas.
277
O que está para ser decifrado, nessa entrada de século XXI, é o espectro de
alterações da relação entre o estado nacional e os povos indígenas, no território
Brasileiro, bem como sua repercussão no âmbito da estrutura do Estado e de
implementação de políticas públicas. As novas políticas públicas serão derivadas da
mudança de concepção da cultura e cidadania indígena, propostas no texto da
Constituição de 1988. As garantias de direitos dos povos indígenas, sob influência das
premissas de garantia de direitos humanos, têm visibilidade internacional e se
beneficiam e fortalecem as lutas indígenas. A legitimidade das sociedades indígenas e
suas expressões culturais, na nova constituição, pretensamente encerram o longo
trajeto de políticas públicas destinadas à assimilação dos povos indígenas, a uma
chamada sociedadade/cultura nacional. Como se resolve, no entanto, a afirmação de
identidade nacional, de um país retalhado por processos tensos de incorporação do
afrodescendentes e indígenas aos projetos de desenvolvimento da pessoa e da nação?
No recorte direito à Educação diferenciada, o estado tem feito um movimento de
constituição e visibilidade da escola indígena. Nos últimos censos escolares, analisados
pelo próprio Ministério da Cultura
278
, a preocupação com a escola indígena responde
aos quesitos e elementos constitutivos de uma escola qualquer: estrutura física,
quantidade de alunos/as matriculados/as, número de docentes (indígenas ou não).
Também são observadas, no foco das ações do MEC, duas linhas de atuação:
formação de professores indígenas e publicação de recursos didáticos
279
. Mas o debate
277
A RAMOS, Alcida. Indigenismo de resultados. Série Antropologia, 100. Brasília: UnB, Brasília:
ICS/UnB, 1990. Disponível em: <http://www.unb.br/ics/dan/Serie100empdf.pdf>. Acesso em: 04 out.
2006, p. 4.
278
Na série Parâmetros em Ação, publicação do Ministério da Educação, que analisa a implementação
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em volume dedicado à Educação Escolar Indígena (2002), o
documento explicita, em números, quais são as terras indígenas, quantos são os indígenas, quantas
escolas, quantos alunos/as e quantos professores indígenas e não indígenas estão envolvidos na
educação escolar indígena brasileira. Nesse documento, percebe-se a ênfase na preocupação da
relação docente indígena por escola, desafio mais complexo, que tem sido enfrentado nas políticas
específicas do MEC. Cf. GRUPIONI, Luis Donisete (org.). Parâmetros em Ação, Educação Escolar
Indígena. Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação Fundamental, 2002. Disponível
em: <http://www.mec.gov.br/sef/indigena/materiais/Legislacao miolo.pdf>. Acesso em: 15.mar.2006.
279
De 1995 a 2005, no site da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, estava expresso, entre
os objetivos do MEC, o fomento a iniciativas de formação de docentes indígenas e de apoio e
157
sobre as questões de fundo está acontecendo em movimento paralelo e interagente
com as políticas públicas: os movimentos de professores indígenas, em todo país,
continuam estabelecendo parâmetros e indicando representatividade, para os
colegiados de gestão pública da educação (conselhos municipais, estaduais e
nacional); as entidades indígenas e indigenistas continuam elaborando ações de
assessoria e execução de projetos, em diversas características, visando a fortalecer a
idéia da educação diferenciada; a coordenadoria geral de educação escolar indígena do
MEC continua criando estratégias de fortalecimento e ampliação das garantias de
direito à escolarização para toda população indígena identificada.
Pode-se questionar, contudo, quais são os elementos que esses diferentes
atores sociais estão constituindo, para a questão da educação escolar indígena?
Analisando a publicação Terra Brasilis, do Observatório da Cidadania do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) que se propõe a “trazer à tona e
promover o debate sobre o direito universal à educação numa situação extrema em que
isso só é possível se igualmente e ao mesmo tempo – forem respeitados os direitos à
identidade e à cultura dos povos indígenas”
280
. É evidente que essa proposta, de ordem
política, está afeta à universalidade de políticas públicas, no contexto da diversidade
cultural, constitutiva dos extratos sociais brasileiros, principalmente considerando até
quanto os interesses das populações indígenas são capazes de inferir no processo de
garantias de uma coletividade maior.
Terra Brasilis traz análises e debates sobre a prática educacional de
educacores/as indígenas e indigenistas. Organizada em três capítulos, a publicação
apresenta uma análise mais histórica e conceitual, dos processos de ocupação e
construção de recursos didáticos pedagógicos. “Hoje são 1.392 escolas indígenas nas quais lecionam
cerca de 3.059 professores índios e 939 não-índios, atendendo a uma clientela de aproximadamente
93 mil estudantes indígenas. E para atender esse contingente que o Ministério da Educação criou
programas específicos, a partir de um novo paradigma educacional de respeito à interculturalidade, ao
multilingüismo e à etnicidade. A política traçada visa, fundamentalmente, a formar os próprios índios
como professores de suas comunidades, por meio de programas diferenciados de formação de
professores indígenas, bem como a produzir materiais bilíngües e na língua nacional, para uso nas
escolas indígenas de todo o país, adequando-se calendários e currículos à realidade de cada povo
indígena” Referenciais para formação de professores indígenas. Brasília: Ministério da Educação e do
Desporto, 2002, p. 10s.
280
Cf. IBASE. Educação escolar indígena em Terra Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de
Janeiro: IBASE, 2004, p. 8.
158
invenção do Brasil, em relação à educação indígena e à alteração de perspectiva, que
representou a conquista do direito a uma educação escolar diferenciada, sob
responsabilidade de José Ribamar Bessa Freire. Além disso, encontra-se uma análise
dos acontecimentos e problemáticas, que têm marcado a garantia do direito à educação
escolar diferenciada, sob responsabilidade de Luis Donizete Benzi Grupioni. Por último,
o documento aborda as características de constituição da escola pública indígena,
avaliando os resultados dos últimos censos, perpassando estes dados com elementos
da prática pedagógica nas escolas indígenas e as questões no entorno do que
caracterizaria a diferencialidade da educação, sob responsabilidade de Marina Kahn e
Marta Azevedo.
Os elementos apontados como relevantes, para compreensão e ação política,
em relação ao momento atual da questão “escola indígena”, são: (1) formação de
professores indígenas e políticas de garantia de direitos da nova categoria docente
(capítulo 2); (2) o bilingüismo e, depois, por um lado, as dificuldades de relacionamento
com as características ágrafas das sociedades indígenas e, por outro, os limites de
compreensão e prática pedagógica, considerando que o país não reconhece as línguas
indígenas como nacionais (capítulo 3); (3) a federalização ou municipalização da
educação escolar indígena, na estrutura do governo atual do sistema de educação
indígena, com o crescente questionamento sobre se não é necessário criar um sistema
nacional de educação indígena (capítulo 3).
Os elementos postos servem como uma análise dos resultados e conjunturas,
quase uma década depois da publicação da Resolução CNE/CEB 03/99
281
, que
regulamentou a educação escolar indígena e as funções e ações da União e dos
Estados sob orientação da constituição de 1988. Se esses elementos, levantados pelo
IBASE forem comparados com o documento “O Debate sobre a Educação Escolar
Indígena no Brasil (1975-1995), Resenhas e Teses”, organizado por Marta Valéria
281
Particularmente no art 9
o,
encontram-se designadas as competências da União e do Estado, no que
concerne à Educação Indígena: “Art. São definidas, no plano institucional, administrativo e
organizacional, as seguintes esferas de competência, em regime de colaboração: I à União caberá
legislar, em âmbito nacional, sobre as diretrizes e bases da educação nacional (...) II - aos Estados
competirá: a) responsabilizar-se pela oferta e execução da educação escolar indígena, diretamente ou
por meio de regime de colaboração com seus municípios”. CNE. Resolução CEB 3/99. Diário Oficial
da União. Seção 1, Brasília, 17 nov. 1999, p. 19.
159
Capada, publicado pelo MEC, na série Cadernos de Educação Indígena
282
, teremos
como temas afins: (1) a questão lingüística como grande desafio e não
necessariamente a defesa do bilingüismo, mas uma discussão sobre a introdução da
grafia, pela via da língua materna; (2) a estrutura do estado para oferta de educação
escolar pública diante dos enfrentamentos locais e regionais dos representantes da
chamada sociedade nacional com populações indígenas; (3) impasses curriculares e as
demandas da diferencialidade. É bom diferenciar a natureza das duas publicações,
principalmente porque o levantamento feito por Marta Valeria Capada organiza as
resenhas de textos acadêmicos sobre educação indígena, existentes no período
pretendido, o estado da questão. o documento do IBASE analisa e propõe questões
emergentes para as políticas públicas, em educação indígena, considerando dados da
implementação da chamada escola diferenciada. A convergência e reincidência dos
temas relacionados ao desafio do bilingüismo e a questão da estrutura do estado para
oferecer a educação pública aos povos indígenas, no entanto, permanecem no limbo do
desafio a ser superado.
O bilingüismo assume maior ou menor relevância, dependendo da história de
contato do povo analisado ou citado. O desafio, contudo, relaciona-se ao fato de estar
em pensar o Estado Brasileiro garantindo direitos, diante da fragmentação de línguas
indígenas e povos existentes; da sua inexpressividade numérica, em proporcionalidade
com a população nacional como um todo; também, da inexpressividade de
produtividade econômica referencial, para as principais discussões que determinam os
rumos do país. Alcida Ramos
283
entende que os povos indígenas brasileiros estão
conquistando espaços na agenda nacional, somente por pressão externa derivada
segundo a autora, essa pressão é decorrente de acordos internacionais de
consolidação dos direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, acordos que
282
"Cadernos de Educação Indígena" foi uma série do Ministério da Educação e do Desporto, sob
regência do ministro Paulo Renato de Souza, governo Fernando Henrique Cardoso. É resultado do
programa de promoção e divulgação de materiais didático-pedagógicos, sobre as sociedades
indígenas brasileiras, apoiado pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC e editado em
parceria com o MARI - Grupo de Educação Indígena da USP.
283
Cf. RAMOS, Alcida. The hyperreal indian. Série Antropologia, 135. Brasília: UnB, 1992. Disponível em:
<
http://www.unb.br/ics/dan/Serie135empdf.pdf>, acesso em 10/02/1008.
160
criaram condições, de “fora pra dentro” para o exercício de garantia e conquista de
direitos.
É compreensível o esforço inicial de formação de professores indígenas, pois a
escolarização, entre povos indígenas, foi historicamente feita com docentes não
indígenas. A partir de 1988, o movimento de professores indígenas foi ganhando mais
espaços, devido às reivindicações da garantia de docentes indígenas nas aldeias. Na
perspectiva de constituição curricular diferenciada para educação indígena, a questão
lingüística permanecerá, ainda por um tempo, sendo o principal desafio curricular. Na
estrutura do Estado e do sistema de ensino, no entanto, reside a maior dificuldade de
integração da Escola Indígena, pois a ela são garantidos direitos que exigiriam uma
maleabilidade desconhecida, pelo sistema atual de ensino.
A Escola indígena, sob responsabilidade da FUNAI - e antes do SPI - era escola
dedicada à alfabetização, muitas vezes organizada no formado de educação rural,
restrita ao Ensino Fundamental
284
. Os indígenas que seguiram sua escolarização o
fizeram migrando para cidades próximas, estudando o ensino médio em escolas
públicas comuns. Após a promulgação da Constituição de 1988, a compreensão da
escola indígena, como educação básica, permaneceu até recentemente. No entorno da
discussão sobre escola indígena, os temas reincidentes são alfabetização na ngua
materna, situando, num primeiro movimento, as iniciativas governamentais de Apoio às
Escolas Indígenas junto às Secretarias de Educação Fundamental
285
. Isto somente vai
sofreu alteração no Governo Lula, com a criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, que reúne, como enfoque de atuação, não
somente a temática da questão indígena, mas também a afrodescendente
286
. A
proposta de constituição de uma educação escolar diferenciada enfrenta problemas
284
No Estado do Amazonas, por exemplo, a educação indígena desvinculou-se da rubrica educação
rural, somente depois da instituição de um conselho próprio de educação indígena, em 1996.
285
Uma análise das práticas do MEC, em educação indígena, que exemplifica a localização da educação
escolar indígena sob responsabilidade da secretaria de educação básica está nas publicações do
MEC: O Governo Brasileiro e a Educação Escolar Indígena 1995 a 1998 (1998) e O Governo Brasileiro
e a Educação Escolar Indígena 1995 a 2000 (2002).
286
Uma primeira análise sobre a educação indígena, sob o governo Lula, foi publicada pelo MEC, em
parceria com a Unesco, organizada por Luís Donisete Benzi Grupioni, Formação de professores
indígenas, repensando trajetórias (2006). Uma publicação dedicada ao enfoque principal que a
Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena (CGEEI) tem se dedicado
, desde sua criação.
161
diversos, identificados nas experiências realizadas no esforço de garantir os direitos
instituídos legalmente na última década:
O projeto da escola indígena será o verdadeiro instrumento de consolidação
dos direitos, numa dinâmica de transformação, valorizando a tradição, os
costumes e o conhecimento indígena. Não basta apenas adquirir os
conhecimentos, é necessário revertê-lo para o projeto social, construído
coletivamente. A escola como espaço importante para a continuidade de
novas gerações refletirem com espírito crítico e participativo o que temos
como herança do contato e o tido como “moderno da sociedade nacional”. A
responsabilidade de promoção da interculturalidade é um compromisso
coletivo e está nas mãos dos povos indígenas. [...] Os povos indígenas têm
muito a contribuir na busca de um mundo melhor para a humanidade. É
partindo da igualdade, da diferença e da parceria que podemos criar o novo.
Esse novo poderá ser criado se a sociedade nacional oferecer a
oportunidade aos povos de mostrarem a sua capacidade e competência de
gerenciar seu próprio destino.
287
Esse documento de análise das questões emergentes da educação escolar
indígena novamente reforçou os resultados das iniciativas de formação do professor
indígena e apresentou demandas, derivadas dessas iniciativas. Entre os elementos
reincidentes, nas diferentes análises realizadas, por diferentes autores/as, destaco: (1)
maior autonomia para escolas indígenas, superando os modelos reprodutivos das
escolas não indígenas, ampliando a formação de indígenas para garantir que as
funções de gestão das escolas indígenas sejam ocupadas por indígenas; (2) contraste
entre as demandas da heterogeneidade das situações vivenciadas pelos povos
indígenas e a tendência de homogeinização, que o sistema de ensino nacional propõe,
relação paradoxal e geralmente predominante, na relação com a sociedade de entorno
das diversas comunidades indígenas; (3) ampliação da participação do movimento
organizado indígena nas questões relativas a currículo e gestão das escola, superação
da condição de assessorados; (4) ensino da língua como instrumento de um projeto
próprio de sociedade e de auto-determinação; (5) superação da idéia da educação a
serviço do resgate cultural, por uma educação específica e diferenciada; (6) retomada
da pressão internacional para auxiliar na consolidação da garantia de educação escolar
diferenciada.
287
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Formação de professores indígenas, repensando trajetórias. Brasília:
MEC/CGEEI, 2006, p. 15.
162
Esses elementos destacados remetem ao tensionamento entre a urgência de
demandas próprias de constituição da educação indígena, de características
intrínsecas, e os limitantes externos de características de Estado, de garantia de
recursos, para constituição da educação escolar indígena como diferenciada. Nomeio
esse tensionamento como pertinente a duas demandas: a questão do currículo, na
relação com a cultura; a demanda de criação de um sistema próprio, com estruturas
mínimas, que seja capaz de agilizar-se para atender às características de
heterogeneidade constitutiva da diversidade, entre os povos indígenas no Brasil.
Em julho de 2007, um encontro para refletir a educação indígena, desde o olhar
da sociedade civil organizada, tornou público, em diferentes mídias, vinculadas ao
indigenismo e aos direitos humanos, o “Manifesto em favor de uma educação escolar
indígena de qualidade”. Participaram desse encontro, um número expressivo de
entidades indigenistas e indígenas, que assinaram, juntas, um manifesto
288
: Articulação
dos Povos Indígenas da Região Sul (ARPIN-SUL), Coordenação das Organização
Indígenas na Amazônia (COIAB), Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP),
Conselho Indígena de Roraima (CIR), Conselho das Aldeias Waiãpi, CIMI Norte 1 e
Nacional, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Instituto de
Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto de Pesquisa e Formação em Educação
Indígena (EPÊ), Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (GTME), Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), Organização Indígena da Bacia do Rio Içana (OIBI),
Representação Indígena no Conselho Nacional de Educação. Entregue ao Ministro da
Educação, por Gersem Baniwa, representante indígena no CNE, o manifesto apresenta
elementos pertinentes à discussão apresentada até aqui. Transcrevo as propostas
contidas no manifesto, como exemplificação do que foi abordado nesse item:
1. Elaborar e instituir um novo marco regulatório para a educação
escolar indígena, na forma de um Subsistema de Educação Indígena
que contemple: 1) os sistemas educativos de cada povo indígena; 2) as
territorialidades (distritos) étnicas e campos socioculturais; 3) o
estabelecimento de leis e normas específicas válidas para todos os
poderes constituídos do país (tribunais, estados, municípios, Ongs, etc.);
4) o estabelecimento de orçamentos específicos (rubricas) para a
288
Manifesto em favor de uma educação escolar indígena de qualidade. 19 jul. 2007. Disponível em:
<http://www.cimi.org.br/?system=news&eid=244>. Acesso em: 10 mar. 2008.
163
educação escolar indígena, mas, integrado ao sistema nacional de
educação. O subsistema deverá definir com clareza, objetividade e
efetividade as responsabilidades e competências do Poder Público em
seus diversos níveis, superando o famigerado regime de colaboração
que definitivamente não tem funcionado.
2. O MEC precisa buscar mecanismos políticos, administrativos e
jurídicos para “forçar” que os estados e municípios apliquem na
educação escolar indígena e nas escolas indígenas os recursos
relacionados às matrículas indígenas, que para 2007, são mais de 217
milhões de reais de FUNDEB conforme a matrícula declarada no
Censo Escolar 2006 pelos sistemas de ensino.
3. Instituir formas mais eficientes de participação e controle social
indígena nas políticas de educação escolar indígena. O governo federal,
por meio do MEC, poderia dar o primeiro passo, instituindo o Conselho
Nacional de Educação Escolar Indígena, como órgão regulador da
política nacional de educação escolar indígena e com ampla
participação de professores e lideranças indígenas e de outros atores
envolvidos na oferta da educação escolar indígena, capaz de articular de
forma sistêmica os sistemas de ensino, as universidades e organizações
da sociedade civil.
4. Consolidar e ampliar a política de formação de professores indígenas
em cursos universitários de Licenciatura Intercultural e outras
licenciaturas temáticas. Para 2007 seria necessário garantir a instalação
de pelo menos mais 04 cursos, para alcançar o número de 2000
professores indígenas em formação. Para isso é necessário garantir oito
milhões de reais (R$ 8.000.000,00) para dar continuidade aos quatro
cursos já instalados e instalar mais quatro.
5. Garantir apoio técnico e financeiro para a ampliação e a continuidade
da formação de professores indígenas em cursos de Magistério Indígena
Nível Médio, das secretarias estaduais e municipais e de ONGs. Os
editais de financiamento precisam atender à demanda integral dos
cursos do início ao fim, e não como sãos os atuais editais do FNDE, que
por serem anuais, nunca se tem a garantia de continuidade e muito
menos de conclusão dos cursos iniciados. Para apoiar a formação de
2000 professores indígenas são necessários quatro milhões de reais (R$
4.000.000,00). Experiências indicam que os municípios e estados,
mesmo com os recursos do FUNDEB não garantem atender a demanda
reprimida.
6. Garantir apoio técnico e financeiro para implantação do ensino médio
integrado nas escolas indígenas articulados aos sistemas produtivos das
comunidades e com os projetos de etnodesenvolvimento dos seus
diferentes territórios. Para apoiar 20 projetos em 2007, são necessários
dois milhões de reais (R$ 2.000.000,00) e não nenhuma previsão
orçamentária este ano para este fim. Os atuais recursos do FUNDEB
não são suficientes para ampliar a oferta e nem para melhorar a
qualidade dos cursos existentes, que estão muito aquém do mínimo
desejado. Os municípios e estados utilizam os recursos do FUNDEB
prioritariamente nos centros urbanos.
7. Garantir apoio técnico e financeiro para produção de material didático
específico para escolas indígenas de autoria dos próprios índios (livros,
164
CDs, DVDs e outros). Para iniciar seriam necessários pelo menos R$
2.000.000,00 ao ano.
8. Criar um programa nacional de instalação de rede física adequada
para as escolas indígenas em todo o país, respeitando-se as realidades
e conhecimentos arquitetônicos das comunidades e com recursos
financeiros específicos garantidos. Para construção, reforma ou
ampliações de 100 escolas indígenas com aquisição de equipamentos
seriam necessários quinze milhões de reais (R$ 15.000.000,00).
Construir, reformar ou ampliar 100 escolas por ano não é nenhum
exagero se considerarmos que as mais de 2000 escolas indígenas do
país estão em péssimas condições ou simplesmente funcionam na casa
do professor ou no terreiro da aldeia.
9. Criar um programa de apoio técnico e financeiro destinado a garantir
o acesso e permanência dos estudantes indígenas no ensino superior,
por meio de bolsas adequadas que leve em consideração as suas
demandas e realidades específicas. Atualmente existem mais de 2000
estudantes indígenas no ensino superior, destes, menos da metade
recebe algum tipo de bolsa que varia de R$ 150,00 a R$ 900,00.
Mesmo aqueles que se beneficiam de alguma bolsa, todos tem
péssimas condições de estudo, moradia, alimentação e transporte o que
prejudica seus rendimentos. Pior são aqueles que não recebem bolsas,
sofrem e fazem sofrer seus familiares. Portanto, para melhorar a
situação de imediato, seriam necessárias pelos menos 500 bolsas de R$
900,00 cada uma, totalizando um valor anual de R$ 5.4000.000,00.
10. Realizar a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
precedida de pré-conferências escolares locais e regionais. Para a
conferência e as pré-conferências são necessárias pelo menos R$
2.000.000,00.
11. Criar condições operacionais e financeiras para elaboração de
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena com
ampla participação indígena, levando-se em conta a necessidade de
uma articulação integrada e sistêmica de todos os níveis e modalidade
de ensino, da educação infantil a educação superior. Para esta atividade
são necessários pelo menos R$ 500.000,00.
289
4.2 CURRÍCULO, CULTURA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
A questão crucial, e que persiste até os nossos dias, dizia respeito ao papel
da instituição escolar em áreas indígenas, a partir da ambigüidade que a
caracteriza: poderoso recurso colonialista de dominação e integração do índio
à sociedade nacional e/ou instrumento de defesa e autodeterminação das
sociedades indígenas frente à sociedade envolvente.
290
289
Manifesto em favor de uma educação escolar indígena de qualidade. 19 jul. 2007. Disponível em:
<http://www.cimi.org.br/?system=news&eid=244>. Acesso em: 10 mar. 2008.
290
LEITE, Arlindo Gilberto de Oliveira. Educação indígena Ticuna: livro didático e identidade étnica.
Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Educação. Instituto de Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 1994, p. 247.
165
Na prática problematizadora vão os educandos desenvolvendo o seu poder de
captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações
com ele [...] como uma realidade em transformação, em processo.
291
Das questões emergentes, postas como cenário para compreensão da Educação
Indígena, como tarefa do Estado Brasileiro, e da competência de uma Missão
Indigenista, identifico a pertinência da percepção de qual modelo de sociedade as
políticas públicas pretendem estabelecer e como, metodologicamente, as ações
educativas estão envolvidas na problematização da realidade, visando a sua
transformação. Como protagonista social, nesse cenário, estão os povos indígenas. Os
parâmetros curriculares
292
, para educação indígena, apontam elementos ainda
pertinentes ao olhar do não-indígena para a realidade indígena.
Em 2002, na série Parâmetros em Ação, o MEC promoveu um programa de
formação que visava “dar continuidade aos programas de formação e de titulação de
professores índios que sejam membros das próprias comunidades indígenas envolvidas
em processos de escolarização”.
293
Tive a oportunidade de participar de uma das ações
vinculadas a esse programa, em 2002, em Eirunepé. A secretaria de Educação do
Estado do Amazonas, com recursos da Coordenação Geral de Apoio à Escola Indígena
do MEC, propiciou módulos de capacitação de profissionais da Secretaria Municipal de
Educação, envolvidos com educação indígena
294
. Os indigenistas integrantes de
entidades da sociedade civil também foram convidados. O principal problema desse
tipo de iniciativa está no fato de que a realidade local, onde estão inseridos os povos
indígenas, é muito contraditória. Em Eirunepé, a tensão entre os moradores locais não-
indígenas e os povos indígenas é grande, porque a recente história de demarcação das
291
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2005, p. 82.
292
Em 1998, foi publicado o Referencial Curricular para as Escolas Indígenas, pelo MEC, como o volume
que, entre os Parâmetros Curriculares Nacionais, trata de orientações curriculares para as Escolas
Indígenas, atendendo à premissa de diferencialidade, sustentada na LDB de 1996. O texto está
organizado em duas partes: (1) Fundamentos históricos, antropológicos, políticos e legais da proposta
de educação escolar indígena; (2) referências para prática curricular, visando a auxiliar a
implementação dos projetos pedagógicos de cada escola indígena.
293
MEC Ministério da Educação e do Desporto. Referenciais para formação de professores
indígenas. Brasília, 2002, p. 11.
294
Os módulos foram realizados entre março e agosto de 2002. Foram enviados professores vinculados
à Universidade de Brasília e estudados os textos disponíveis nos Parâmetros em Ação Educação
Escolar Indígena. Tive a oportunidade do módulo I, realizado entre 20 a 24 de março de 2002.
166
terras indígenas (ao longo da década de 1990) estava sendo lida como um dos
principais obstáculos ao desenvolvimento econômico local e regional. Os conteúdos
dos documentos do MEC defendem os direitos indígenas, com uma leitura histórica,
crítica às ações da igreja, de regionais e colonizadores e do próprio Estado. Quando se
está trabalhando nas contradições do cotidiano, essas instituições da sociedade estão
representadas nas iniciativas de capacitação. É inevitável, então, o primeiro sentimento,
das pessoas que representam essas instituições, de que estão sendo lesados, em seus
próprios direitos, em favor dos indígenas (vistos como preguiçosos, sujos e bêbados).
A implementação dos direitos básicos da cidadania, entre estes, a educação
diferenciada, ainda representam um desafio quanto à pergunta “que cidadania?”. O
exercício da cidadania exige o enfrentamento da constituição dos mecanismos
discriminatórios, na consolidação dos fluxos colonialistas, que constituíram a
territorialidade do Estado brasileiro
295
. Na história de colonização foi necessário
discriminar e marginalizar populações indígenas com estereótipos desclassificatórios,
para garantir o sucesso dos novos empreendimentos econômicos e de importância
geopolítica, no nascente Estado democrático. Esses estereótipos foram reforçados pela
progressiva substituição populacional local, migrante em processos históricos distintos
que se justapuseram com o tempo, constituindo identidades regionais louvadas na
segunda década do século XX, como cultura regional
296
.
295
José Murilo Carvalho analisa a constituição do que chamou “Brasil edênico”, onde compara pesquisas
de opinião pública, realizadas entre brasileiros/as, em fins do século XX, com relatos naturalistas dos
séculos XVII e XVIII. Identifica uma reincidência em louvar o Brasil e o brasileiro a partir das
características paradisíacas (daí a expressão Brasil edênico). O Brasil seria louvado pela natureza e
recursos naturais, e o brasileiro, pelas características domésticas (hospitaleiro, festeiro, etc.).
Considere-se aqui que já na autodeclaração daquilo que se orgulham, os brasileiros, no final do século
XX, se reconhecem bons somente no âmbito privado, o que representaria um problema significativo
para o exercício da democracia, como exercício político do interesse coletivo público. Para Carvalho, é
“razoável concluir que tal auto-imagem contribui para a existência e a persistência do motivo edênico.
Quem não se como um ser civil e cívico o se pode ver como agente, individual ou coletivo, de
mudanças sociais e políticas de que se possa orgulhar e deve buscar alhures razões para a
construção de uma identidade nacional”. CARVALHO, José Murilo de. O Motivo Edênico no Imaginário
Social Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300004&lng=pt&
nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2008, p. 15.
296
Em sua dissertação de mestrado, Elton Rivas analisa o fenômeno de constituição das imagens de
inferioridade e primitividade dos povos indígenas, frente ao processo colonizador no período recente
da história do Brasil, utilizando como metodologia a análise dos discursos na mídia jornalística: “Da
mesma maneira é preciso abandonar conceitos já ultrapassados nas ciências humanas como o
167
Agravando esta situação, a preocupação com a “preservação da cultura” criou a
necessidade de identificar os elementos constitutivos da cultura de cada povo, para,
então, preservá-los, na suposta perspectiva “estática” de que seria possível colocar “em
conservas” os elementos culturais e preservá-los das forças colonizadoras. Esse
paradoxo se explicita na vivência de constituição dos conteúdos e programas das aulas,
nas escolas indígenas e nos programas de formação de professores indígenas
297
.
Situações aparentemente conflitando entre si, mas paradoxalmente complementares,
são inovadoras de novas significações para constituição do que nomeamos parâmetros
curriculares para a educação escolar indígena.
Trazendo essas características para o Juruá, relato as situações vivenciadas nas
etapas de formação de professores Kulina, Kanamari e Deni, realizados na região do
médio Juruá, nos anos 2000 e 2001
298
: (1) Na disciplina Língua Indígena, alguns dos
evolucionismo cultural ou qualquer forma de compreendê-los que os relacione ao atraso, não
reconhecendo sua alteridade. Contudo, é necessário ir além da intenção dos escritores românticos e
pensar as sociedades indígenas como nossas contemporâneas em meio a intensos processos de
mestiçagem cultural, de transformações das dinâmicas sociais que não mais se traduzem apenas em
termos de perda e dominação”. RIVAS, Elton Domingues. Entre Peris e Aimorés: Os bons e maus
selvagens da imprensa. Dissertação (Mestrado). Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem.
Cuiabá, MT: Universidade Federal do Mato Grosso/ Instituto de Linguagem, 2006, p. 99.
297
João Pacheco de Oliveira, a partir de resultados de uma pesquisa que realizou, identifica os
elementos que o levou a escrever sobre “um paradoxo: como é possível que as auto-representações
dos brasileiros sobre as suas relações com os indígenas, marcadas habitualmente pela cordialidade e
pela tolerância, possam coexistir com contextos inteiramente antagônicos, situações onde se
manifesta o terror e a intolerância absoluta e opera o código da violência sem limites”. Nessa pesquisa,
levanta os elementos da história de contato dos processos colonialistas com os povos indígenas na
região do alto-solimões e os reincidentes conflitos com moradores locais e regionais, em processos
diversos de flagrante violência e violação dos direitos indígenas: “a base para as práticas intolerantes e
racistas é que homens possam ser concebidos como animais selvagens, feras perigosas que precisam
ser vencidas e subjugadas, e não como membros de uma comunidade maior (“nação”), imaginada e
narrada, estando enquanto cidadãos em igualdade de condição e portadores virtuais dos mesmos
direitos. As imagens e narrativas naturalizantes são a senha para a entrada em ação do idioma da
animalização e da predação, com os seus componentes de sujeição e domesticação (que inclui dentro
de seus domínios a tortura, a morte, a comestibilidade e o abuso sexual)”. OLIVEIRA, João Pacheco
de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 dez. 2005., p. 38s.
298
Informações levantadas nos dias 19 a 23 de março de 2001, quando foi realizada uma reunião técnica
de Avaliação e Planejamento da III Etapa Letiva Intensiva do Programa de Formação de Professores
Indígenas Kulina, Kanamari e Deni, cujo relatório encontra-se disponível em documento avaliativo de
sua realização, fruto de reunião pedagógica promovida pela Secretaria de Educação e Qualidade do
Ensino do Estado do Amazonas, Departamento de política e programas educacionais, Gerência de
Educação Escolar Indígena. SEDUC/DEPPE-AM. Relatório Síntese da Reunião cnica de
Avaliação e Planejamento da III Etapa Letiva Intensiva do Programa de Formação de
168
professores questionaram a necessidade de aprender a escrever a língua. Quando foi
argumentado o princípio de preservação da língua, frente ao Português, eles
responderam que não perdem a língua, que todo mundo usa e sabe. Para esses
professores, o aprendizado da grafia deve ser no Português, para que possam lidar
com os crescentes mecanismos de expropriação (da terra e dos produtos de roçado);
(2) Na disciplina de Geografia, a professora lembrou que, entre as conquistas de 1988,
está a garantia de falar na língua materna na escola, o que antes era proibido. Alguns
professores reagiram afirmando: “aqui nunca foi proibido, não”. Disseram que sempre
falaram na língua deles e nunca foram proibidos. Os povos da região do Juruá não
passaram por processo algum de escolarização, pela FUNAI, SPI ou similar, que
tivessem essa proposta didática, vivenciada por outros povos, em outras regiões do
Brasil; (3) na disciplina de Ciências, a professora quis fazer uma atividade de coleta
coletiva das plantas mais usadas para curar doenças e ferimentos e foi boicotada na
iniciativa. Isso ocorreu, pois alguns professores indígenas entendiam que poderiam ser
roubados os conhecimentos tradicionais da floresta e as informações sobre o uso
terapêutico das plantas serviam para produção de medicamentos. Além disso, eles
afirmavam que as comunidades indígenas nunca foram beneficiadas com o muito do
dinheiro que se ganha com este conhecimento.
Esses exemplos são pequenos fragmentos de realidade, que auxiliam a deflagrar
o quão incipiente e, em alguma medida, ingênua - é a proposta de formação, contida
nas iniciativas do Estado, desenvolvidas por seus agentes não indígenas, na boa
vontade que os move na implementação de direitos. Por isso, é importante retomar a
perspectiva de que o currículo da Escola Indígena é uma discussão que interessa a
todos/as nós, que constituímos a sociedade brasileira. Diz respeito a um tema ainda por
se resolver, no Estado Democrático brasileiro: os elementos concretos e cotidianos que
envolvem a afirmação da cidadania que queremos e a constituição de nação e
brasilidade sobre a qual estamos falando.
Professores Indígenas Kulina, Kanamari e Deni, 19 a 23 de março de 2001. Manaus:
SEDUC/DEPPE-AM, 2001. Mimeo.
169
Segundo a proposta de Stuart Hall, existem estratégias discursivas principais, na
narrativa da cultura nacional, considerando que “as pessoas não são apenas
cidadãos/cidadãs legais de uma nação, elas participam da idéia da nação tal como
representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica”. São
cinco as principais estratégias discursivas, apresentadas por Stuart Hall
299
: (1) narrativa
da nação, contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e
cultura popular, que fornecem uma série de elementos que simbolizam ou representam
as experiências partilhadas que dão sentido à nação; (2) origens e continuidade,
tradição e intemporalidade, onde a identidade nacional é representada como primordial,
e os elementos do caráter nacional permanecem imutáveis; (3) invenção da tradição,
citando Hobsbawn e Ranger, tradições inventadas, que parecem antigas, mas são
recentes - no Rio Grande do Sul a chamada tradição Gaúcha é um bom exemplo; (4)
mito fundacional, onde se pretende localizar a origem da nação, em alguma história ou
narrativa inventada, pressupondo a origem da nação em um passado remoto, em um
tempo mítico. No Brasil, criou-se a idéia de fundação da nação na história do
descobrimento; (5) povo puro ou original, no caso do Brasil, a idéia de raças fundantes.
Essas estratégias propostas por Hall auxiliam a desmascarar as pretensões de
modernidade, que constituem determinados discursos. Esses discursos pretendem
superação da “velha” condição de injustiça, presente em determinados programas e
propostas, tanto em nível de iniciativas privadas como públicas. Auxilia a explicitar o
conflito de interesses, implícitos entre os sujeitos que constituem um estado
democrático brasileiro. Os povos indígenas, remetidos a um passado mítico de uma
raça fundadora da brasilidade resultante, quando existentes e reinvidicantes de
autodeterminação representam uma quebra paradigmática das afirmações de nação,
propostas pelas elites governantes e manipuladas em nível de construção de um
imaginário social possível para o Brasil nascente
300
.
299
Cf. HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
300
Helder Alexandre Macedo realizou um estudo sobre a relação de constituição da identidade nacional,
a partir das estratégias de colonização, nomeada por ele de ocidentalização (apoiado em Edward
Said), onde nomeia o processo de prevalência da constituição de uma elite social colonizadora sobre a
presença indígena, fenômeno reincidente em todos processos colonizadores nos territórios hoje
nomeados como Brasil, onde a reorganização social se “tanto para os indígenas, imersos nas
170
A educação tem sido utilizada como instrumento de “amansamento” dos povos
indígenas, visando a sua integração à nova constituição social do que vamos
nomeando como sociedade nacional. Assim, a introdução da idéia de
autodeterminação, auxiliada por uma educação diferenciada, não necessariamente
rompe com os desejos de constituição da sociedade nacional, mas quebra as
pretensões da educação elitista. No cerne da educação popular, prática educativa que
forjou a conquista de uma educação diferenciada, a prática pedagógica entende, como
educação “elitista”, a negação ao direito à educação, à superação do senso comum
desde dentro, onde a dialética entre o saber popular e o erudito descortina o horizonte
epistêmico da educação progressista, pela “inteligência dialética da realidade [...] capaz
de perceber as relações contraditórias entre a parcialidade e a totalidade”
301
. No caso
específico dos kanamari, não ser logrado nas vendas da produção do roçado é um dos
principais projetos curriculares de ordenação da prática escolar. Das diversas
classificações possíveis para as diferentes constituições sociais, derivadas do fazer-se
Brasil, a noção de elite dominadora é reincidente, nas tentativas de nomear as relações
entre dominados/dominadores, ou opressor/oprimido. Com relação à educação popular,
seguimos Freire
302
. Ele entende o uso de “classe social”, na perspectiva dialética, pela
qual a realidade, de opressão ou libertação, é “possibilidade e não determinismo”, e o
oprimido é visto como indivíduo e classe. Os kanamari são indivíduos portadores do
direito à condição (peculiar) de pessoa, que é indígena desde sua pertença à
comunidade kanamari.
malhas do sistema colonialista que pouco a pouco vão sendo costuradas a antigos referenciais
geográficos e culturais nativos. Bem como para os colonizadores, que vêem-se obrigados a lançar
mão de estratégias de (re)adaptação ao novo mundo em que foram lançados. Uma dessas estratégias,
senão a mais brutal e palpável pela leitura dos documentos coloniais, é a do esvaziamento
demográfico dos territórios ocupados pelos índios, para que em seu lugar novos territórios fossem
construídos à medida que a Ocidentalização alastrava-se pelo interior”. MACEDO, Helder Alexandre
Medeiros. Populações indígenas e ocidentalização no sertão da capitania do Rio Grande do Estado do
Brasil. Jaen-Espanha: Revista de Antropologia Experimental. n. 6, 2006. Texto 15, 2006, p. 222.
301
FREIRE, 1994, p. 86-87.
302
FREIRE, 1994. p. 92ss.
171
4.3 MISSÃO INDIGENISTA, DEMOCRACIA BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO INDÍGENA
DIFERENCIADA
As missões indigenistas de motivação cristã possuem uma atuação hegemônica
na história das políticas públicas, em educação indígena no Brasil. Isso pode ser
considerado, desde a perspectiva histórica das alianças oficiais com ordens católicas,
no período colonial, e do SPI com Summer Institute of Linguistics
303
, no período da
República. Não seria difícil explicitar o quão indevido tem sido manter a democracia
brasileira, no que diz respeito aos povos indígenas, sustentada na educação
proporcionada por missões cristãs. As discussões, no entorno da civilidade/cidadania
brasileira, como consolidação do Estado-Nação, incluem as religiões/igrejas de matriz
cristã. Trata-se de instituições sociais proponentes e interagentes com as demais
instituições sociais que constituem a sociedade nacional, realizando sua atuação com
força política e social
304
. O Estado brasileiro é um segmento em constituição nesse
cenário e uma instituição social que possui a responsabilidade de prover a educação
indígena, em formato diferenciado.
303
Maria ndido Barros entende que, a começar no México, na década de 1930, até os demais países
da América Latina, posterior à Segunda Guerra, a principal aliança entre os estados latino-americanos
se deve ao processo de alfabetização na língua indígena, centro do trabalho pedagógico dos
missionários, focados no trabalho de evangelização e tradução da bíblia para as línguas indígenas. Os
indigenistas missionários do SIL tinham por estratégia de trabalho aliar suas discussões e produções
ao debate dos antropólogos e agências oficiais dos governos onde atuavam, como tarefa de
contribuição da missão à constituição do direito soberano das nações e consolidação de seus sistemas
de governo. No Brasil, após uma aliança com o museu nacional, na década de 1950, que possibilitou
uma entrada efetiva no trabalho, entre povos indígenas, a identidade do lingüista americanista como
alfabetizador em língua indígena se fortaleceu quando o existia o SPI e, em seu lugar, tinha sido
criada a FUNAI. Com a FUNAI, o SIL conseguiu em 69 seu primeiro convênio com o órgão indigenista,
passando a controlar oficialmente a Educação Indígena, através da formação de centros de
treinamento de professores indígenas”. BARROS, Maria Cândida D. Educação bilíngüe, lingüística e
missionários. Em Aberto, Brasília, ano 14, n.63, jul./set, 1994., p. 28.
304
Sugiro leitura da abordagem de Adone Agnoli, ao trabalho da catequese nas missões cristãs. O texto
analisa o aspecto de função política da ão missionária, na ausência da atuação do Estado. Agnoli
compara o contexto de missão, entre povos originários americanos, ao movimento da missão cristã,
em relação aos mulçumanos na Idade Média e em relação aos povos orientais, particularmente na
China. Destaca como as “descobertas” constituíram o terreno fértil de aprofundamento dos debates, no
entorno do conceito de Estado e sobre o Direito na natureza. O nascimento da ciência do homem, no
século XVIII, pautada nas viagens científicas e estudos das línguas, literaturas, costumes, crenças e
estruturas sociais dos povos não-europeus, vão constituir as principais ões missionárias cristãs e a
estrutura discursiva e prática de suas ações, junto a povos indígenas e das sociedades não indígenas,
derivadas dos processos colonizadores. AGNOLI, Adone. Catequese e tradução: gramática cultural,
religiosa e lingüística do encontro catequético e ritual nos séculos XVI-XVII. In: MONTERO, Paula.
Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 143-208.
172
As características de diferencialidade, contudo, hoje nomeadas e em processo
de implementação, são, em grande parte, oriundas da articulação de educadores/as
populares e movimento de professores/as indígenas, ao longo de, no mínimo, três
décadas de história de movimento social. Uma parte expressiva dos movimentos de
professores indígenas é resultado de ações solidárias, sustentadas por algumas
missões indigenistas, particularmente do CIMI
305
.
Roberto Zwetsch
306
dedica-se a entender a alteração de consciência e prática
missionária, na década de 1970, que fez surgir um modelo alternativo de indigenismo e
missão, entre índios, chamada de Pastoral da Convivência. É importante destacar o
início do indigenismo, como um movimento social articulado em resistência aos
mecanismos autoritários de imposição do desenvolvimento econômico, no período do
governo militar, em oposição à política indigenista oficial e da missão tradicional
307
.
Solange Silva
308
, em seu estudo sobre o indigenismo alternativo entre os Kanamari,
ressalta a importância do papel de organismos como a OPAN, o CIMI e a Igreja
Metodista, no acompanhamento a ações de fortalecimento sócio-político-cultural e
econômico entre os kanamari. Os três organismos citados são de origem missiológica.
Pereira atuou entre os kanamari com motivações humanitárias e não vinculada ao
305
O estudo dos movimentos de professores indígenas, feito em diferentes regiões no país, aponta que o
movimento de professores indígenas tem desempenhado um importante papel, na interlocução política
e inscreve-se no reconhecimento da sua necessária emancipação política e afirmação de sua
identidade, na perspectiva de assegurar a cidadania indígena, em termos individuais e em sua prática
social coletiva. Como exemplo cito estudos como de CAVALCANTE, Lucíola Inês Pessoa. Formação
de professores na perspectiva do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 22, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sciarttext&pid= S141324782003000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2008; CIMI.
Setor de Documentação. Com as próprias mãos: professores indígenas construindo a autonomia de
suas escolas. [S.l.], 1992; BARROS, Maria Cândida D. Educação bilíngüe, lingüística e missionários.
Brasília: Em Aberto, a. 14, n. 63, jul./set. 1994; BARROS, Maria Cândida D. A missão Summer
Institute of Linguistics e o indigenismo latino-americano: história de uma aliança (décadas de 1930 a
1970). Revista de Antropologia, São Paulo, v. 47, n. 1, 2004. Disponível em: <www.scielo.br/
scielo.php?script=si_arttext&pid=S003477012004000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 jan.
2007; SILVA, Marcio Ferreira. A conquista da escola: educação escolar e o movimento de professores
indígenas no Brasil. Em Aberto, Brasília, a. 14, n. 63, p. 38-53, jul./set. 1994; SILVA, Rosa Helena
Dias da. A autonomia como valor e articulação de possibilidades: o movimento dos professores
indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a construção de uma política de educação escolar
indígena. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 49, p. 7-22, set-dez, 1999.
306
Cf. ZWETSCH, 1993.
307
SCHROEDER, Ivo. Indigenismo e política indígena entre os Parintintin. Dissertação (Mestrado)
Programa de Pós-Graduação em Educação. Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso. Cuiabá, 1995.
308
SILVA, 200, p.64s.
173
corpo de missionários. Ela entende a ação de algumas agências missionárias
indigenistas, como indigenismo, que possui uma ação alternativa, que “implica em
oferecer subsídios aos povos indígenas considerando que o contato com o mundo
externo representa o seu desejo, mas também o seu temor”
309
.
Os laços e enlaces das políticas públicas, com as iniciativas missiológicas
existentes, são fragmentários e possuem diversos tons de alianças e enfrentamentos
entre os interesses das missões, das iniciativas públicas e dos interesses locais dos
povos indígenas envolvidos. No Médio Juruá, o curso de formação dos professores
Kanamari, teve início em 2000 e parou, sem conclusão, em 2003. O principal motivo era
de ordem financeira e de insolubilidade, quanto às atribuições de responsabilidade os
governos estaduais e municipais. As primeiras etapas tinham sido realizadas sem a
assinatura de convênio de cooperação entre os municípios envolvidos e o Estado. A
Secretaria Estadual de Educação não deu continuidade, sem a assinatura do convênio,
que ficou pendente. A realização das etapas que se efetivaram foi possível graças a
recursos para formação de professores indígenas, oriundos de programa específico do
MEC, e a atuação local das entidades indigenistas, que articularam presença de
professores Deni, Kulina e Kanamari.
Nesse processo, a presença das políticas públicas, junto às escolas indígenas,
tem ocorrido principalmente como iniciativa municipal, se restringindo ao pagamento
dos salários e envio de merenda escolar. No cotidiano das escolas indígenas,
geralmente, são as entidades de apoio e a recém criada associação de professores
Kulina e Kanamari, sob liderança de um kulina morador na cidade de Eirunepé, que
realizam algum tipo de apoio e acompanhamento pedagógico às escolas nas aldeias.
Ou seja, o aspecto diferenciado da educação escolar indígena está restrito a uma
experimentação de política, a ser constituída por um ideário instituído em proposições
nacionais e estaduais, mas dependentes de agentes sociais, externos ao
acompanhamento governamental.
309
SILVA, 2007, p. 72.
174
As experiências formais de acompanhamento do Estado às escolas Kanamari,
Kulina e Deni estão restritas ao mapeamento quantitativo de alunos, docentes e dados
censitários. As atividades escolares cotidianas estão sendo acompanhadas pelas
entidades indigenistas, quando realizam, em paralelo, ações motivadas por outras
linhas de ação
310
. A experiência de investimento de recursos públicos, para as
populações indígenas, tem sido entendida como de estabelecimento de privilégios, por
parte da população não-indígena, que vive no entorno e que vivencia as mesmas
precariedades, em relação à implementação de políticas públicas para garantia de seus
direitos básicos. É reincidente, em relatos de experiências em educação indígena, o
caráter transitório, incipiente e insuficiente do atual processo de garantia de educação
diferenciada. Surgem, assim, evidências de impedimentos na oferta de educação
indígena diferenciada, devido a um acumulado de motivos, geralmente afetos à falta de
recursos, vontade política, inoperância da máquina estatal, mobilidade dos interesses
locais em relação aos povos indígenas
311
.
Em outras circunstâncias da sociedade brasileira, o Estado confere às iniciativas
cristãs a concessão de ofertar educação, desde que sejam respeitados os parâmetros e
regras estabelecidas pelo Estado. A concessão geralmente é mediada por articulações
políticas diversas, associadas a interesses econômicos que implicam em ampliação e
apropriação de terras ocupadas por indígenas. Lidar com os povos indígenas é sempre
um desafio, considerando que um Estado instituído não pode pretender extinção de sua
população, ainda que seja indefinida a sua condição de cidadania. Nesse sentido, a
exigência de integração das populações indígenas, na história de colonização, vinha
310
Com a implementação da formalização das escolas ingenas, na região, por parte dos municípios
envolvidos, as entidades indigenistas locais procuram focar seu trabalho em perspectivas à proteção e
demarcação das terras indígenas e no processo de constituição de projetos econômicos, visando auto-
sustentabilidade dos povos indígenas. Nos relatórios de atividades das ações desenvolvidas e nos
projetos que visam a arrecadar recursos para continuidade das ações e presença indigenista, a
educação não é vista como tarefa emergencial para a atuação das ONG’s. Essa situação provoca
uma contradição e um vácuo de acompanhamento, pois a implementação da política pública, em
educação indígena, na região tem caráter transitório e focado na tarefa de criar números para os
censos, que reúnem recursos para os municípios.
311
Esses elementos são reincidentes, nos relatos de professores indígenas, presentes no documento
organizado por Luís Doniseti Grupioni, que pretende apresentar os desafios ainda pendentes, no
processo de implementação das políticas públicas em educação escolar indígena. GRUPIONI, Luis
Donisete (org). Formação de Professores Indígenas: repensando trajetórias. Brasília: MEC-
SECAD/UNESCO, 2006, p. 201-226.
175
aliada com a iniciativa religiosa que, por origem e característica de constituição social, é
a instituição social que pode atuar em aliança com os ideários do Estado. Contar com a
“boa-vontade” de “pessoas de bem”, financiá-los e apoiar suas iniciativas, com
garantias políticas diversas, foram e ainda são práticas reincidentes, no trato estatal à
questão indígena.
A Igreja/Religião comporta, em seu interior, as mesmas contradições que
constituem a sociedade brasileira
312
. Suas ações podem representar um aliado
expressivo ou um opositor muito difícil de ser anulado, em sua ação permanente. Nos
exemplos cotidianos, a presença e constância das missões têm sido mais eficazes do
que a presença do Estado. Mas não mais eficaz do que a constituição e presença das
organizações indígenas, que possuem a primazia do acesso aos diversos recursos, de
diversas origens, para financiamento das ações como sociedade civil organizada.
Prioritariamente financiados por agências internacionais e governamentais, os
indígenas vão se apropriando e compreendendo o alcance da ação missionária
cristã
313
, ainda que os relatos não sejam confluentes e, muitas vezes, influenciados por
312
Como religião hegemônica no processo de consolidação da identidade nacional, o cristianismo e suas
diferentes organizações eclesiásticas compartilham das diferentes constituições sociais do tecido
social brasileiro. Entre os povos indígenas, as identidades eclesiais do cristianismo se encontram
presentes na maioria das aldeias, sem que se saiba ao certo as características ritualísticas e
significantes dessa profissão de credo religioso. Nicola Gasbarro analisa essa questão, desde a
perspectiva da História das Religiões: “a generalização cristã produz ‘as religiões dos povos primitivos’,
freqüentemente construídas pelos missionários a sua imagem e semelhança, mas também um
conceito de ‘religião’ tão geral que não tem quase mais nada de autenticamente ‘cristão’. Quando
sistemas totalmente diferentes por hierarquias e função se encontram e se chocam, as necessidades
práticas de convivência levam a compromissos variáveis que, de fato, constituem novas culturas das
quais ainda é preciso estudar as origens, pois a história tradicional do grande desenho do espírito e da
identidade, desterrando-as para o não-lugar imaginário do sincretismo ou do espaço selvagem dos
‘povos sem história’. Entre elas é possível, por exemplo, observar um outro cristianismo em ação, uma
religião historicamente vivida de maneira radicalmente diversa do cristianismo secularizado do
Ocidente moderno. Onde procurar, então, as estruturas universais do objeto religioso? Quais são suas
autênticas encarnações?” GASBARRO, Nicolas. Missões: a civilização cristã em ação. In: MONTERO,
Paula. Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 77ss.
313
Como exemplo, transcrevo o relato de Francisca Ângelo, liderança Kaingang, professora indígena: “No
século passado, o Summer Institut of Linguistic (SIL), instituição religiosa que tinha a missão de educar
os índios e salvar as suas almas, se utilizou das línguas indígenas para o convertimento religioso e
civilizatório, através da imposição de adotar normas gramaticais e sistemas de tradução das histórias
bíblicas, mas partindo dos valores, princípios e conceitos da sociedade ocidental. Muitos povos tiveram
sua língua escrita, mas o preço pago por isso foi a conversão religiosa, descaracterizando a sua
cultura. Dessa forma, surge o monitor bilíngüe, um professor indígena, domesticado e submisso, criado
para servir aos interesses da missão religiosa e na alfabetização da língua indígena, que somente
serviria para a leitura da bíblia. Todo esse pensamento de ‘civilizar’, ‘integrar’ os povos à sociedade
176
assessorias diversas não-indígenas. Essa articulação indígena é derivada de um
processo, em que os povos indígenas organizam-se em diversos segmentos
institucionais, contextualizados em diferentes linhas de atuação e se tornaram grupos
bem estabelecidos, que se instituem portadores dos interesses indígenas
314
. Em muitos
casos, as organizações indígenas trabalham aliadas e associadas às missões
indigenistas, que servem como apoiadores dos seus processos de formalização. No
médio Juruá, as missões indigenistas realizam todo trabalho de acompanhamento
administrativo das recentes entidades indígenas, que estão sendo criadas. Atuam como
assessoria às organizações indígenas e facilitadoras do diálogo com as diversas
iniciativas disponíveis, para o fomento e fortalecimento da autonomia indígena.
As atuações indigenistas, ao se especializarem em assessoria, adaptam o perfil
e a caracterização dos indigenistas em sua capacitação. Com maior freqüência,
profissionais das mais diversas áreas do conhecimento vão sendo requisitados para
realizarem um trabalho indigenista de caráter técnico. O impacto dessa característica,
nas missões cristãs que se propuseram a um trabalho de pastoral de convivência, tem
sido o de repensar a presença entre os povos indígenas. O CIMI, agência oficial da
Igreja Católica, resolve-se caracterizando sua ação, na prática política, fiscalizando
organismos governamentais e com presença nos órgãos de representação e
participação da sociedade na constituição das políticas públicas
315
. As igrejas
protestantes, comprometidas com a garantia de direitos e respeito à integridade cultural
dos povos indígenas, constituíram pastorais de organização e articulação de seus
trabalhos pastorais, junto a povos indígenas. Somente o COMIN
316
, da IECLB, no
nacional, herança deixada pelos colonizadores, influenciou a visão do Estado, através da legislação e
da política indigenista, criando uma tutela assistencialista de caráter dependente.” ÂNGELO, Francisca
Novantino P. A educação escolar indígena e a diversidade cultural. In: GRUPIONI, Luis Donisete (org).
Formação de Profesores Indígenas: repensando trajetórias. Brasília: MEC-SECAD/UNESCO, 2006,
p. 208.
314
Mapeamento das organizações indígenas. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/pib/
portugues/org/quadroorg.shtm>. Acesso em: 20 jan. 2008.
315
No Plano Pastoral, produzido na Assembléia Nacional de 2005, o CIMI propõe-se a articular as
comunidades indígenas e a atuar como fiscalizador das políticas públicas, na perspectiva de garantia
de direitos e integridade das comunidades indígenas CIMI. Plano Pastoral, assembléia geral de 2005,
p. 13s. Disponível em: <http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1138968807_cimiplanopastoral.pdf.>
Acesso em: 20 fev. 2008.
316
O COMIN articula-se com outras iniciativas da Igreja Luterana mundial e se tornou a agência de
formação e articulação de seus missionários indigenistas, criando processos de fortalecimento de seu
177
entanto, se tornou um órgão com autonomia e vitalidade expressivas. As demais
pastorais estão permeadas pelas influências fundamentalistas, que caracterizam o
discurso teológico e as práticas pastorais, nas igrejas protestantes históricas,
fortemente influenciadas pelo crescimento expressivo dos evangélicos pentecostais e
fundamentalistas, na sociedade brasileira
317
.
O acompanhamento e a fiscalização das ações do Estado, como denúncia
crítica, originada no período do governo militar, vão se transformando nestes tempos
em que o Estado se firma na garantia dos direitos. Muitas vezes, numa inversão de
papéis, em proteção às comunidades indígenas, o Estado se constitui como protetor
dos povos indígenas, frente às iniciativas das missões cristãs. Para instituições de
proteção dos direitos indígenas, como promotorias públicas, bem como para entidades
não vinculadas a Igrejas, as iniciativas missionárias são classificadas por sua
penetração e prática e, na sua maioria, estão entre os povos indígenas, no processo de
reprodução da expectativa conversionista, como salienta o trabalho de Marina Kahn
318
.
Mesmo entre as missões católicas, existem práticas conversionistas, conhecidas.
Atualmente, existem movimentos evangélicos indígenas, de padres indígenas e de
pastores evangélicos indígenas
319
.
trabalho, com a tarefa de apoiar “a caminhada dos povos indígenas para que possam viver do jeito
deles e decidir como se relacionarão com a sociedade nacional” COMIN. Disponível em:
<http://www.comin.org.br/nossos-compromissos.php>. Acesso em: 20 fev. 2008.
317
No caso específico da Igreja Metodista, os trabalhos de pastoral estão se extinguindo, por falta de
estruturas básicas, citadas em capítulo anterior. Existe uma nomeação pastoral para a função, mas
conjugada com ministério local em igreja. O caráter voluntário dessa proposta de pastoral restringe,
expressivamente, sua capacidade articuladora.
318
Cf. KAHN, Marina. Levantamento preliminar das organizações religiosas em áreas indígenas. In:
WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os
povos indígenas no Brasil. V. 1 Campinas, SP: Unicamp, 1999. p. 19-75.
319
Elementos de articulação de padres indígenas podem ser visualizados no relato: “Hoje juntamente
com o esforço para que não cesse o fluxo de missionários do sul do Brasil e do exterior, cresce o
empenho pela formação de missionários autóctones, ou seja, nascidos na própria região. É promissora
da presença do Seminário Indígena e dos primeiros padres indígenas”. Disponível em:
<http://www.revistamissoes.org.br/quadro2.php?url=edicoes/06_1999/provocacoes.php>. Acesso em:
10 mar. 2008. Elementos de articulação dos pastores indígenas podem ser vistos, por exemplo, em
relatos como: A presença evangélica é forte nesses lugares. Prova disso são as conferências que os
pastores indígenas realizam de dois em dois meses, que duram cerca de uma semana e reúnem
centenas de comunidades. Lá, eles cantam, dançam, estudam a Bíblia e contam testemunhos do
cuidado de Deus”. Disponível em: <http://www.maosdadas.net/?pg=show_artigos&area=
revista&artigo=271&sec=152&num_edicao=16&util=1>. Acesso em: 10 mar. 2008.
178
Esse perfil de identidade indígena e cristã é um fenômeno existente um certo
tempo. Lideranças religiosas cristãs possuem uma articulação internacional,
fortalecida, apoiada por organismos mais diversos; inclusive, organismos ecumênicos
internacionais incorporaram a realidade dos indígenas cristãos. No metodismo latino-
americano, tem-se a experiência da Igreja Metodista Boliviana, liderada já há uma
década por indígenas aimaras
320
. O cristianismo vivenciado pelos povos indígenas tem
assumido uma perspectiva mais enraizada na cultura latino-americana, nos países
andinos. No Brasil, ainda são incipientes as características que o constituem, pois, por
muito tempo, a conversão indígena ao cristianismo se amalgamou a processos
históricos de invisibilização da identidade indígena dos novos cristãos. Esse fenômeno,
abordado por Cristina Pompa
321
e Nicola Gasbarro, apontam como é perceptível a
supressão de identidade indígena, em substituição por uma identidade cristã, na
reprodução e manutenção dos interesses catequéticos envolvidos nesta relação.
As verdadeiras consistências semântica e histórica da “religião indígena”,
então, têm de ser procuradas na aventura pluricultural da modernidade. A
primeira é, não por acaso, o produto “espúrio” das relações entre culturas,
acionada por um exército de operadores rituais e de passeurs culturais. A
segunda pode ser observada ainda hoje nas culturas “híbridas” da
modernidade que os missionários fundaram junto a outros operadores rituais,
indígenas ou não: eles se chamam cristianismo latino-americano, igreja
africana, etc., cujo fôlego espiritual e cujas dinâmicas sociais continuam
perturbando os puros de espírito do Ocidente europeu. É preciso reconhecer
que eles são outra coisa que não o modo ocidental de viver a e a
esperança, mas para compreender suas dinâmicas é necessário lançar mão
da história comparada das relações culturais da modernidade.
322
Os formatos que estão se constituindo, de missão indigenista e missão indígena,
apresentam novos códigos de compreensão do fenômeno religioso, na América Latina.
Em função disso, faz-se necessário um longo processo descritivo, de observação e
320
Eugenio Poma, primeiro bispo metodista na Bolívia foi empossado pelo presidente da Bolívia, Evo
Morales, como embaixador da Bolívia, na Dinamarca, em maio de 2007. Anteriormente, ele havia sido
responsável pelo programa do Conselho Mundial de Igrejas, direcionado exclusivamente a apoio aos
povos indígenas. Disponível em: <http://www.iglesiametodista.org.pe/index.php?Itemid=50&id=103&
option=com_content&task=view>. Acesso em: 10 mar. 2008.
321
POMPA, Cristina. Profetas e santidades selvagens. Missionários e caraíbas no Brasil colonial. Revista
brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 40, 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882001000100009&lng=pt&
nrm=iso>. Acesso em: 12.mar. 2008.
322
GASBARRO, In: MONTERO, 2006, p. 102.
179
redesenho metodológico de compreensão, do impacto e caráter organizacional que
representam. Gasbarro e Pompa entendem que o projeto de evangelização das igrejas
cristãs e o projeto de civilização são inseparáveis, pois sempre estiveram associados. A
pretensão de civilização constitui uma sintonia entre simbólico e o social, que precisa
ser explicitada. Não devemos tratar esse movimento como absorção de elementos
cristãos pela estrutura cultural indígena. “A adesão ao uso dos mbolos cristãos (ou a
cristianização dos símbolos tradicionais) traduz a dinâmica histórica pela qual os
indígenas procuram instrumentos de afirmação política, reconstruindo com estes uma
nova hierarquia das relações sociais e de poder”
323
.
É necessário ensaiar uma nova aproximação a esse fenômeno, que inclua as
alterações na concepção de sujeito de direitos, que a questão indígena está forjando,
em nível mundial e nacional. A relação dos povos indígenas com os processos
colonizadores é um histórico de sobrevivência coletiva e individual. Os povos indígenas
utilizam de mecanismos diversos como ferramenta política de reorganização das
relações hierárquicas de poder entre dominado e dominante. Atualmente as novas
ferramentas estão pautadas na idéia de estado democrático de direito, onde o direito
coletivo, ou comunitário
324
, torna-se, progressivamente e em caráter substitutivo a
médio e longo prazo, uma ferramenta mais eficaz do que os amálgamas simbólico-
cristãos constituídos quando há predomínio da presença missionária cristã.
É necessário um olhar pragmático, diante das possibilidades que os povos
indígenas estão vendo, de aliança ou não com missões indigenistas. No médio Juruá,
onde os processos formais de garantia de direitos chegam com mais lentidão, os povos
323
POMPA, 2001, p. 2.
324
Lia Zanota Machado, em seu artigo “Comunitarismo indígena e modernidade: contrastes entre o
pensamento brasileiro e andino” avalia como tem se instituído nos últimos anos, em âmbito de
organismos internacionais (a partir dos acordos debatidos na ONU), conceitos como direito coletivo
(direito comunitário) constituídos de novas e diferentes figuras jurídicas e políticas. “Os povos
indígenas, em suas formas originais de organização, seguem as mais variadas formações, mas que
podem, no seu conjunto, ser identificadas dentro de modelos genericamente denominados “holistas”
[...] Essa noção tem por objetivo o contraste com os diferentes modelos individualistas” dos Estados-
Nações modernos [...] Um povo indígena não se concebe assim como uma sociedade contratual entre
indivíduos, o que coloca uma nova problemática para se pensar as novas configurações das relações
entre os Estados-Nações e as novas formas de autonomia dos Povos Indígenas.” MACHADO, Lia
Zanota. Comunitarismo indígena e modernidade: contrastes entre o pensamento brasileiro e
andino. Série Antropologia, 169. Brasília: UnB, 1994. Disponível em:
<
http://www.unb.br/ics/dan/Serie169empdf.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2008.
180
Kulina, Kanamari e Deni ainda vêem, na aliança com a missão indigenista, um recurso
eficaz para se colocarem como sujeitos históricos, entre a população do entorno auto-
declarada não-indígena. Se a presença missionária perde fôlego e se retrai, é muito
provável que as organizações indígenas, ainda iniciantes, vão se fortalecer para
representar os interesses das comunidades das terras indígenas já constituídas. Isso se
verifica, ainda que se em processos contraditórios, entre os grupos e interesses
indígenas, nucleados nas diversas aldeias e lideranças indígenas na região.
Às missões indigenistas, que declaram interesse em fortalecer as características
de defesa de direitos, autonomia e valoração cultural dos povos indígenas, existe um
espaço de atuação específica. Tem se mostrado como articulação do discurso religioso
cristão (teologia indígena) para ampliar o debate sobre como os novos grupos
indígenas auto-declarados cristãos se relacionam com a cristandade como um todo e
com as tradições e expressões religiosas ancestrais.
A longa convivência com a religião cristã, através das muitas formas e
tentativas de cristianização, tem deixado profundas marcas dessa prática, nas
manifestações religiosas dos povos indígenas. A história do Brasil mostra que
desde os primeiros contatos com os colonizadores a religião foi o tema
dominante, as concentrações jesuíticas reforçaram essa prática e a partir dos
anos 50 houve uma verdadeira cruzada missionária sobre os povos indígenas,
principalmente no centro-oeste e norte do Brasil. Apesar dos esforços, as
missões não tiveram tanto sucesso na tentativa de inserir os indígenas nas
suas estruturas eclesiais. Grande parte das experiências se traduz num
conjunto de práticas cristãs inseridas nos rituais tradicionais; nelas as
perseguições aos sacerdotes diminuíram e houve uma reafirmação étnica e
cultural, onde desenvolver a religiosidade própria já não é mais uma prática
clandestina. Esse equilíbrio entre as novas práticas e as práticas tradicionais
vem ocorrendo num maior volume nas últimas três décadas, até mesmo por
uma conjuntura da política nacional mais propícia que proporcionou maior
diálogo culminando com a constituição de 88, onde os povos indígenas
passaram a ter maior autonomia.
325
325
FLORES, Lúcio. Religiosidade Indígena. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/12.pdf.
Acesso em: 10 mar. 2008.
181
4.4 EDUCAÇÃO ESCOLAR ENTRE OS KANAMARI E AS RELAÇÕES DE
INTERESSES EM SEU ENTORNO
Os kanamari querem aprender o português e a matemática. São pessoas
ágrafas, viventes em espaços de pouca densidade demográfica, nomeados como
povos semi-isolados, por causa de seus contatos intermitentes com a sociedade não-
indígena do entorno de suas terras demarcadas. Por que Português e Matemática?
Para saber lidar com as demandas dos contatos. Das experiências em educação
escolar que alguns membros desta organicidade social participaram, se constituiu
algum exercício de grafia na língua portuguesa; outros, na língua materna, um tanto de
aprendizagem de números e quantificações; e a permanente exploração nas relações
comerciais imediatas que participam. As políticas públicas chegam até os kanamari com
pouca eficácia e permanência. As iniciativas mais fiéis têm sido promovidas pelos
missionários indigenistas que transitam no médio Juruá desde início da década de
1980, por iniciativa das Missões Novas Tribos do Brasil e pelo indigenismo alternativo
de aliança entre católicos, luteranos e metodistas
326
.
Assim, retornamos ao início deste capítulo, com as preocupações do Encontro
Nacional de Educadores/as Brasileiros, sobre a necessidade da laicidade da educação
frente os perigos da religião hegemônica (cristianismo como Catolicismo romano ou
como retalho de cristianismos eclesiásticos). Não somente os povos indígenas ou o
ensino religioso nas escolas são cativos desse debate, mas também a biociência
moderna e seus entraves derivados da pressão de órgãos eclesiásticos cristãos, em
oposição a pesquisas (celular-tronco), intervenções médicas (aborto legal), clonagem
de organismos vivos, entre outros exemplos.
Aparentemente, seria o caso de garantir a premissa de que religião é da ordem
da vida privada e educação é da ordem da vida pública. Essa classificação, contudo,
pouco auxilia na compreensão de perceber o que Paula Montero
327
nomeou como
326
Um levantamento desses trabalhos foi realizado por Silas Moraes e Solange Pereira, no relatório feito
no período de conclusão de suas presenças entre os Kanamari. Cf. MORAES, Silas; SILVA, Solange
Pereira, 2000.
327
MONTERO, 2006a, p. 12.
182
“mecanismos simbólicos de alargamento das relações implícitos nos processos de
interpenetração de civilizações”. A educação escolar, em formato diferenciado, é vista
pelo movimento de professores indígenas como uma conquista. A compreensão do
caráter diferenciado pertence a uma discussão sobre a proposta educacional, como
sistema onde a educação indígena é uma parte. Vivemos um tempo de modelagem dos
sistemas de ensino no país de tal forma que esses consigam incorporar os desafios da
interculturalidade constitutiva das relações sociais, no Brasil, e dos elementos
simbólicos que as ordenam.
A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério
da Educação (Secad) afirma-se, desde a necessidade de enfrentamento das injustiças
existentes nos sistemas de educação do País, valorizando a diversidade da população
brasileira, trabalhando para garantir a formulação de políticas públicas e sociais como
instrumento de cidadania”
328
. Com esta premissa, sob responsabilidade dessa
secretaria, realizam-se as atividades do ministério, nas áreas de educação de jovem e
adultos, programas de cotas raciais nas universidades, educação do campo (rural),
educação ambiental, educação indígena, programas de direitos humanos, etc. Trata-se
de um leque expressivo de áreas distintas. O objetivo é a “redução das desigualdades
educacionais”, pois a secretaria responde “pela orientação de projetos político-
pedagógicos voltados para os segmentos da população vítima de discriminação e de
violência”.
Os programas da Secad, organizados para discutir, em termos transversais, as
demandas que perpassam as demais secretarias do ministério (focadas nos níveis
superior, básica, infantil), explicitam a ausência de formato, na constituição dos
sistemas de ensino que incorporem, devidamente, as questões emergentes das
garantias de direitos, oriundas das reivindicações e conquistas dos movimentos sociais.
A educação escolar indígena diferenciada é, ainda, um exercício em formato de projeto-
piloto, que vai impactar, de forma expressiva, na constituição das alteridades
necessárias às estruturas ordenadoras do sistema de ensino no Brasil. As dificuldades
328
SECAD. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id
=102&Itemid=233>. Acesso em: 15 mar. 2008.
183
financeiras, contudo, de competências de governo e de diversidade fragmentária
exigem que a relação com os diversos atores sociais interagentes, com as
comunidades indígenas, sejam parceiros não somente no trabalho de mediação de
relacionamento, mas também de executores de ações estratégicas. É por isso que uma
missão pouco expressiva, em âmbito nacional, como a missão indigenista metodista,
por duas vezes recebeu recursos do programa de formação de professores indígenas
do MEC, para realização de atividades de fortalecimento da escola Kanamari
329
.
A ação missionária indigenista alternativa, nesse contexto, inserida nas
motivações afetas ao indigenismo alternativo, se propõe a uma problematização das
questões relativas ao formato da educação escolar indígena; à vigilância de ações, na
implementação dos direitos. Entende esta tarefa como agenda mínima de questões
para a educação brasileira como um todo e para a discussão sobre a relação
estado/religião, ressurgente no século XXI sobre nova roupagem. Por outro lado, a
ação missionária conversionista, de alcance expressivo nas aldeias, representa o foco
de interesse da maioria dos trabalhos recentes, na área de Antropologia e Estudos
Sociais. Destacam-se publicações inovadoras, como a série, em dois volumes, de
“Transformando Deuses” organizada por Robin Wright.
330
O volume 2 está focado no
fenômeno de crescimento dos evangélicos conversionistas, nas aldeias, e parte do
volume 1 tenta compreender o fenômeno de linhagem, no sistema de trabalho, derivada
do trabalho do Summer Institute of Linguistics. Uma segunda publicação, “Deuses na
aldeia”, publicação organizada por Paula Montero
331
, apresenta uma série de estudos
metodológicos sobre o estudo da relação religião e cultura, onde alguns artigos se
dedicam a explicitar a presença do cristianismo entre aldeias, inclusive as
329
Um primeiro recurso em 2001 para produção de cartilha do curso de formação, utilizada
posteriormente como livro didático em iniciativas diversas de escolarização nas aldeias kanamari. Um
segundo recurso em 2003 para realização de apoio didático-pedagógico a professores/as kanamari
nas escolas nas aldeias. Esta experiência encontra-se relatada em MORAES, Silas e SILVA, Solange
Pereira. Formação de Educadores Kanamari, uma experiência indigenista na formação de educadores,
Rio Juruá-AM, 1996 a 1998, uma experiência indigenista em escolarização. Relatório de atividades da
Missão Metodista entre o povo Kanamari. Mimeo. São Paulo/ Salvador: Igreja Metodista/ CESE, 2000.
330
WRIGHT, Robin (org.). Transformando os deuses: os ltiplos sentidos da conversão entre os
povos indígenas no Brasil. v. 1 Campinas/SP: Unicamp, 1999.; WRIGHT, Robin (org.).
Transformando deuses: igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos
indígenas no Brasil. v. 2 Campinas/SP: Unicamp, 2004.
331
MONTERO, Globo, 2006.
184
características atuais de presença do catolicismo no formato inculturação e os
evangélicos, no formato de agências interdenominacionais de teologia fundamentalista.
Essa preocupação, focada na evangelização conversionista de missões, é
derivada de um século de estudos sociais e antropológicos. Esses estudos atribuíram, à
missão cristã, a responsabilidade de ter sido mediadora, no processo de incorporação
colonialista das populações indígenas, ao modelo hegemônico dominador que se impôs
nos últimos séculos. Paula Montero
332
entende que a atividade missionária, até a
década de 1970, foi percebida como periférica no enfoque antropológico que interpretou
a problemática da relação de contato entre índios e brancos como “aculturação”. Fruto
de um binarismo dominador/dominado, a interpretação no sentido de que as missões
católicas e protestantes foram vistas, até início da década de 1990, como instrumento
ideológico de dominação e imposição cultural, “teria permanecido em aberto na agenda
da antropologia o estudo dessas ‘culturas coloniais’, cuja matéria-prima seriam as
‘configurações e criações artesanais’ dessas reconstruções imaginárias da
‘europeidade’ na colônia”
333
.
A compreensão é de que continua sendo necessário pensar as relações
simbólicas e políticas entre índios e missionários, no Brasil, em contextos históricos
específicos. Contribuições como de Stuart Hall
334
e Arjun Appadurai
335
são vistas como
inaugurais de nova abordagem à relação etnia e democracia, onde não
necessariamente coincidem geograficamente. Faz-se necessário “descrever os jogos
de comunicação que se estabelecem entre missionários e nativos e o modo como se
produz o acordo sobre as categorias que alarga os universos discursivos para, nas
situações em que a ação assim o exige, fixar modos nativos e/ou cristãos (códigos) de
compreensão do mundo”
336
.
332
MONTERO, Paula. Missionários, índios e mediação cultural. In: MONTERO, Paula (org). Deus na
Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006a, p. 35ss.
333
MONTERO, Paula. Índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In:
MONTERO, Paula (org). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo,
2006b, p. 38.
334
HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
335
APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade. Novos estudos. São Paulo: Cebrap, n. 49, 1997.
336
MONTERO, 2006b, p. 59.
185
Este trabalho também pode ser nomeado “territorialização”, como conceituam,
em “Mil Platôs”, Gilles Deleuze e Félix Guattari
337
. Compreender um espaço de
significações que implementam destinos e constituem interesses é uma perspectiva
subjetiva do humano, cujo referencial está suposto e não explícito. Desde este conceito,
é possível desenhar uma cartografia dos espaços constitutivos entre o movimento do
Estado, o movimento das entidades indigenistas e o movimento kanamari, nas
correlações de interesses e nas possibilidades de constituição da proposta de
educação nas aldeias.
A territorialização é entendida como “cruzamento maquínico” nos muitos
movimentos de constituição de fenômenos que passam a novas formas de
ordenamento da vida. Assim, a instauração de uma educação escolar kanamari, na
região do médio Juruá, é constituída de cruzamentos que a instituem e redesenham,
pois representa uma teia de atuações, que vão construindo os componentes
enunciativos mais complexos e mais heterogêneos. A proposição de escolarização, nas
comunidades kanamari, apresenta uma lógica própria de expectativa das comunidades
locais. Essa lógica constitui nova dinâmica social do encontro entre as
intencionalidades discursivas da legislação sobre educação indígena, as motivações
das políticas públicas locais de interesse na escolarização indígena e as entidades
indigenistas. Essa correlação e cruzamentos são indicativos de desterritorialização, que
é um processo inevitável e constitutivo da dinâmica de construção identitária do sujeito
e da coletividade. No caso da escola kanamari, não é possível permanecer com as
expectativas de modelo de escola, que existiam no início do processo de discussão e
implementação de experiências escolarizantes.
O universo mais discursivo e menos operativo, que é a legislação não aplicada
pelo poder executivo, é o patrimônio mais manipulado nos ambientes acadêmicos; ao
mesmo tempo, é também o menos considerado, no cotidiano das aldeias, pois as
demandas cotidianas sobrepõem interesses. Por exemplo, perceber e explicitar o
fenômeno do assalariamento do professor indígena como a implementação de um
337
Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.1 a 5. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1997.
186
direito, nas comunidades kanamari significou acesso às riquezas da sociedade do
entorno. A desterritorialização provocada por esse cruzamento maquínico é de força
reordenadora da territorialização das aldeias. Nestes relatos de experiências cotidianas,
a formação docente, escola na aldeia, salário, merenda, encontram-se o cenário para
compreender os movimentos de aliança e tensionamento entre Estado e missões
indigenistas.
A realidade da Amazônia é composta de uma história relativamente recente, no
que diz respeito aos conflitos étnicos, entre os projetos desenvolvimentistas, para
Amazônia, e a existência de indígenas na região. uma negação sistêmica da
existência do indígena, como pessoa de direito, nos discursos desenvolvimentistas que
trouxeram pessoas de várias regiões do Brasil, para as beiras dos rios da Amazônia
(“ocupar o grande vazio”). Tornar o indígena sujeito de direito próprio, como povo
etnicamente diferenciado, é um expressivo desafio para a agenda política na região.
A garantia de direitos criou novas categorias sociais, nas comunidades
indígenas: o professor assalariado e o agente indígena de saúde assalariado. O acesso
a recursos salariais, por parte dos professores e agentes de saúde, aumentou a
freqüência de procura da cidade, para compra de bens de consumo. Essa nova
categoria social inventou novas disputas de poder, entre os grupos de parentesco,
numa mesma aldeia, principalmente considerando que o critério de escolha do
professor e do agente de saúde está relacionado às distribuições de forças das
relações de parentesco internas nas aldeias.
A compreensão dos processos de construção da escola kanamari perpassa o
domínio da escrita ainda incipiente, uma organicidade própria do funcionamento da
escola na aldeia e a garantia de espaço concreto, para entender a sociedade não-
indígena e como lidar com ela. Na maioria das aldeias, o funcionamento da escola
segue o ritmo das atividades cotidianas da organização social (pescaria, roçado,
caçada). horários designados para as aulas, mas o seu cumprimento cotidiano é
bem diversificado.
187
O desafio da educação diferenciada esbarra no inevitável vínculo educação-
escola; logo, escola deve ter estruturas mínimas, currículo pré-determinado, seriação,
avaliação e todos os quesitos para identificação: “isto é uma escola”. Os kanamari
querem uma escola, oportunidade efetiva para aprendizado dos mecanismos sociais
não indígenas que tanto agridem a sua autodeterminação. O modelo incorporado até
agora, no entanto, não valoriza os conhecimentos tradicionais. Ao contrário, coloca os
conhecimentos compartimentados em disciplinas dos não-indígenas como de maior
excelência que os tradicionais. Esse desafio constitui a matriz das grandes contradições
no transcorrer da experiência na aldeia. As conversas sobre “Escola Tâkâna” tendem a
cair nas deficiências estruturais. Tanto comunidade como professores reclamam daquilo
que sentem falta, para a escola se parecer “de verdade” com a escola dos não-
indígenas que eles conhecem. Em outro caso, a conversa sobre “Escola Tâkâna” se
restringe a uma avaliação do tipo “é bom porque a gente aprende pra não ser
enganado. Tanto nas observações quanto nas conversas, o conceito educação
diferenciada é muito mais externo (de nós para eles), do que um processo de
“gestação” da parte diferenciada da história. Os conhecimentos indígenas não estão
inseridos nas narrativas dos professores e suplentes, sobre os conteúdos da escola
tâkâna. Desistem de introduzir, porque os alunos reclamam. Afinal, as coisas da cultura
eles aprendem de outra maneira (fazendo), não na escola…
uma tendência em compreender a educação escolar, desde as burocracias
escolarizantes, tais como chamada, prova, sala de aula, controle de horários. É uma
tendência nas ações de iniciativa governamental, principalmente por parte das
Secretarias Municipais, que possuem cardápios prontos, para serem sugeridos e
planilhas estabelecidas para servirem como referências censitárias. Ao não realizar um
acompanhamento pedagógico, pensando a formação e atuações dos professores nas
escolas, nas aldeias, a iniciativa pública tende a se reproduzir nos mecanismos já
existentes. Um processo reflexivo continuado das escolas que estão se gestando, como
diferenciadas, nas aldeias, representa um vácuo ocupado por iniciativas das entidades
indigenistas; entre os kanamari, a missão metodista se instituiu como a principal
interlocutora. Assim, a relação entre as missões indigenistas e as políticas públicas, sob
188
responsabilidade do Estado, somente tangencia o aspecto de enfoque da discussão,
como garantia do estado laico.
5 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MISSÃO INDIGENISTA METODISTA
No dia 11 de abril de 2008, houve uma homenagem na câmara municipal de
Porto Alegre a três segmentos da sociedade brasileira representativos da cultura afro-
brasileira. Foram homenageados com o prêmio Quilombo de Palmares: a Tinginha,
nome carinhoso da Sociedade Recreativa Beneficente Carnavalesca Academia de
Samba União da Tinga, na categoria artístico-cultural; o CECUNE, Centro Ecumênico
da Cultura Negra, na categoria atuação política e social e a Yalorixá Vera Soares, do
Centro Memorial de Matriz Africana 13 de maio, na modalidade atuação na área afro-
religiosa
338
. À parte as formalidades, discursos e loas devidas, destaco alguns
elementos simbólicos presentes na cerimônia que justificam introduzir estas últimas
considerações da pesquisa. O primeiro elemento, da hegemonia da igreja cristã na
sociedade de direito: o plenário Otávio Rocha da Câmara Municipal de Porto Alegre,
como de praxe, possui uma grande mesa para a presidência e sua composição, por
trás da mesa uma parede com altura significativa, considerando tratar-se de um
auditório; nesta parede, próximo ao teto e centralizado proporcionalmente às laterais,
encontra-se pendurado um crucifixo, que todos sabemos ser representação simbólica
expressiva da religião católica romana. O segundo elemento, da insuficiência da idéia
de público e privado para explicitar as exigências reivindicatórias de direitos contidas
nas lutas sociais diversas: antes do encerramento formal do ato oficial foi convidado um
babalaorixá para entoar uma benção africana, que foi acompanhada de forma
envolvente pela comunidade de expressão africana presente no auditório e seus
338
Tive oportunidade de participar da cerimônia de entrega dos prêmios. Informações do ato oficial
disponível em <
http://www.camarapoa.rs.gov.br/>, acesso em 12/04/08.
190
simpatizantes. O terceiro elemento, das dificuldades e possibilidade de compreensão
da nomeada democracia brasileira: em seu discurso de agradecimento pela
homenagem a Yalorixá Vera Soares chama atenção para os aspectos de decepção de
grupos religiosos como o que ela representa quando pessoas que pediram seus votos
para candidatura à vereança não honram suas promessas garantindo direito à liberdade
religiosa para os cultos de matriz africanos nas sutilezas proibitivas de determinadas
legislações.
Os elementos relatados acima são expressões características que vocacionam
contribuições de caráter teológico ao debate sobre uma sociedade pautada no princípio
da liberdade religiosa. São elementos similares e reincidentes que também poderiam
ser encontrados em encontros sobre questões indigenistas e indígenas. Na constituição
do tecido social brasileiro e suas características culturais remete à teologia um lugar de
discussão relevante. Às igrejas cristãs, que conduzem a hegemonia social das
religiosidades que são representativas da sociedade brasileira, a responsabilidade de
pensar-se neste contexto de sociedade. No protestantismo, em especial o mundo
evangélico de teologia fundamentalista crescente, estas questões precisam ser tratadas
para além dos percalços e estratégias de crescimento numérico.
Um dos problemas que a teologia evangélica tem de enfrentar em nossa época é como
responder à crescente e complexa pluralidade religiosa de nossos povos.
Tradicionalmente, definíamo-nos como “a verdade do evangelho” frente aos “erros do
romanismo” (...) Entretanto a discussão se colocava dentro de uma referência cristológica
mutuamente aceita. Este não é mais o caso: os novos movimentos religiosos, a presença
ativa de outras grandes religiões, o renascimento – ou melhor, a manifestação e a
vindicação pública das religiões indígenas ou afro-americanas negadas e ocultadas,
tudo isso nos coloca uma problemática nova.
339
A trajetória dos movimentos históricos do cristianismo aponta para uma
contribuição da teologia que deve estar em diálogo inegociável com a produção
científica que se pretende isenta de religião. Mas os fenômenos históricos que se
apontam no século XXI deixam em evidência o quão importante é o estabelecimento de
um pensar teológico que supere o reforço e desejo de hegemonia cristã presente nos
enfrentamentos sociais que se apresentam nas relações cotidianas.
339
BONINO, José Miguez. Rostos do Protestantismo Latino-Americano. São Leopoldo, RS: Sinodal,
2002, p. 102-107.
191
A intenção de explicitar o olhar sobre a relação Estado brasileiro e as missões
indigenistas constituiu, ao longo do presente trabalho, uma aproximação à questão
desde a perspectiva da elaboração teológica das igrejas cristãs, no particular do
metodismo brasileiro. A proposta de relacionar as trajetórias descritivas e analíticas,
expostas nos capítulos anteriores, às afirmações teológicas que ordenam as
justificações de existência da missão indigenista, resultaram também na desvelaram da
tessitura social que contextualiza as potencialidades do trabalho educacional
missionário metodista.
É possível estabelecer, com especial preocupação, as questões que ficam por
ser resolvidas no processo histórico que segue seu rumo. Destacam-se aspectos de
reflexão para a ação missionária metodista no contexto de sua atuação entre povos
indígenas, em particular no processo de crescimento na região norte do país. Por ser
uma abordagem em tempo real, na percepção de acontecimentos que estão sendo
vivenciados neste momento, existem elementos novos, em permanente construção, que
não alcançam este processo redacional. Mas, é possível traçar olhares que
explicitem os limites e avanços das iniciativas públicas desde as ações governamentais,
foco presente no primeiro subitem a seguir. Também é possível levantar elementos de
constituição de pastoral e missão protestante que apontam inovações ainda não
vivenciadas, objeto do segundo subitem, mas que o derivadas do caráter de imersão
na realidade presente na teologia latino-americana. Destacam-se aspectos de reflexão
para a ão missionária metodista no contexto de sua atuação entre povos indígenas,
em particular no processo de crescimento na região norte do país.
5.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
A presente pesquisa abordou as condições de relacionamento, no atual período
de constituição do estado democrático de direito brasileiro, entre a atuação do trabalho
missionário metodista indigenista alternativo e as políticas públicas de implementação
dos direitos indígenas, especialmente a experiência do povo kanamari. No recorte,
focou-se os processos de garantia da escola indígena diferenciada para o povo
kanamari e sua relação com a atuação da missão metodista.
192
Procurou-se explicitar a relação entre missões cristãs indigenistas e a educação
dos povos indígenas como processo histórico constitutivo da sociedade brasileira.
Como predominou nas iniciativas públicas colonialistas os programas que visavam à
assimilação dos povos indígenas, uma retrospectiva desta característica se opõe ao
processo que o país vive desde 1988, com a promulgação da atual Constituição da
República Federativa do Brasil. O respeito a expressões culturais próprias, nomeadas
pela expressão auto-determinação, como garantia de diferencialidade na educação, se
consolidou após os processos desencadeados com a promulgação da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional – LDBEN, em 1996.
É importante perceber que as instituições estatais não foram equipadas com
projetos educacionais bem definidos em termos de escolarização bilíngüe e
diferenciada, mas reproduzem modelos nacionais que visam atender as
particularidades dos povos que possuem processos históricos de dominação e de
contato muito diferenciados entre si, possuindo diferentes modelos de constituição de
relacionamento com a sociedade nacional. Estas características de relacionamento tem
representado um desafio para os organismos públicos e da sociedade civil na
perspectiva de amadurecer a implementação das políticas públicas que garantam o
acesso diferenciado a educação.
A história do acesso público à educação para a população brasileira em geral
remete ao um longo processo de construção inacabada ainda hoje. O estudo sobre a
atuação missionária protestante aponta contradições ideológicas e diversidade na
proposição metodológica de atuação junto aos povos indígenas. Na tradição metodista,
predominou, até este início de século XXI, a pastoral de convivência, que é um modelo
de missão indigenista aliada a processos históricos de luta de movimentos sociais, de
educação popular e de indigenismo alternativo. Esta característica possibilitou que nos
projetos de inserção metodista entre povos indígenas haja um predomínio de ão
missionária comprometida com direitos indígenas, em especial direito a uma educação
diferenciada.
É perceptível que as contradições que perpassam as iniciativas das políticas
públicas pela iniciativa governamental acontece também nas iniciativas eclesiásticas.
193
Como exemplo, percebe-se, na experiência relatada da atuação entre o povo kanamari,
que a necessidade da escolarização é vista como mecanismo de proteção social, mas a
metodologia educacional em seu contexto histórico foi utilizada para dominação e
assimilação. A superação desta contradição encontra-se na alteração de práticas
históricas e iniciativas pautadas na autonomia da comunidade kanamari. No caso
particular dos kanamari, a escolarização formal não atende as necessidades de
superação de uma comunidade ágrafa com contato intermitente, pois esta se restringe
à formação docente. É necessário e estratégico, na escolarização na região do médio
Juruá, uma ão parceira com a iniciativa da missão indigenista metodista, que já vinha
realizando processo de formação de lideranças para a docência.
A conjuntura favorável aos kanamari acontece no contexto de terem nas
características educacionais da missão metodista um aliado. A missão indigenista
metodista junto ao povo kanamari responde a aspectos históricos da missão metodista,
que afirma os ideários de cidadania como espaço preferencial curricular no trabalho
missionário e vontade de Deus na sociedade para garantir maior justiça e equidade no
relacionamento entre as pessoas.
Não somente na ão missionária metodista a associação educação para o a
cidadania marcou a presença na constituição dos ideários educacionais brasileiro. É
possível perceber afirmações similares chamada reforma pombalina. Mesmo no período
de consolidação dos ideários republicanos a educação para cidadania representa um
aspecto de pretensão inadiável para consolidação da sociedade brasileira. O que
caracteriza a diferencialidade no estado democrático de direito é uma proposição
subjetiva e descritiva da pretensão de cidadania. E neste específico ainda
contradições que se mostram nas ações educativas e nas pretensões políticas que as
envolvem.
Na presente pesquisa foi necessário, em segundo momento, destacar alguns
elementos contraditórios que apontam necessidade de intervenção. A ação discursiva
sobre constituição do sujeito cidadão, como uma rede de tensionamentos, demanda
reconstituição de conceitos como etnia, estado e democracia subentendidos nas
propostas educacionais. Na missão educacional metodista este aspecto sobre impacto
194
das mesmas oscilações presentes em outras instâncias de discussão sobre educação e
cidadania no país. O discurso homogeneizador comporta práticas das mais diversas,
inclusive antagônicas, o que apresenta um cenário paradoxo para compreensão da
intencionalidade da missão educacional indigenista.
Neste específico de discussão curricular da educação indígena, a missão
educacional indigenista alternativa, desde a contribuição do pensamento teológico,
coloca como relevante uma melhor compreensão dos elementos míticos que são
estruturais das formas sociais indígenas e também da instituição e manutenção da
sociedade nacional. A teologia na América Latina tem inserido contribuições desde
sua produção teórica, inserida no contexto histórico dos sujeitos sociais, que provocou
rupturas no processo de compreensão do próprio papel do fazer teológico. A teologia
tem se tornado espaço de amadurecimento das doutrinas e experiências de fé,
flexionando sua constituição desde as demandas da realidade. A teologia representa,
assim, um espaço de ordenamento de experiências de fé e religiosidade e diálogo com
outros espaços de e religiosidade e se compreende melhor nesta perspectiva. Neste
formato, a teologia se coloca como área de conhecimento interlocutora no processo de
explicitar e superar limitações no trabalho educacional entre povos indígenas e na
consolidação da educação indígena diferenciada.
O fazer teológico, desde as realidades múltiplas vivenciadas pelos sujeitos de
experiências de fé, identifica uma melhor compreensão da matriz étnica brasileira e
suas características multiculturais. Relatos e elementos da educação kanamari
demonstram a complexidade que constitui o currículo educacional, que intenta construir
defesa e proteção de processos exploratórios.
Ao resgatar o conceito de etnia pelo relato de fundação de valores e
ordenamentos sociais, onde também é nomeado o papel do mito, o trabalho missionário
alternativo busca compreender o comportamento social dos descendentes diretos dos
povos originários e constitutivos da identidade multicultural que marcam as sociedades
americanas como um todo, no particular a brasileira. Neste contexto de abordagem
multicultural brasileira, foi necessário expor o tensionamento entre alguns segmentos
da sociedade civil e as missões indigenistas. Como as missões indigenistas são vistas
195
como aliadas e executoras dos projetos colonialistas de assimilação indígena, há certa
pretensão de que seja possível atuar junto à multiplicidade de povos indígenas
habitantes no Brasil isolando a ação missionária, o que historicamente não acontece e
pouco provavelmente acontecerá.
O diálogo entre interessados é algo difícil dado a realidade das pretensões
absolutistas dos processos de colonização e ordenamento social do chamado ocidente
cristão. Neste contexto, um reconhecimento é que a teologia, advinda das realidades
concretas de sujeitos diversos, apresenta um espaço de compreensão da vida social. O
resgate mítico das matrizes culturais constitutivas das camadas sociais instituidoras das
sociedades-estado-nação deve constituir espaço curricular, como instrumento de leitura
de nossa realidade e de afirmação de identidade, não somente nas escolas indígenas.
Os laços e enlaces das políticas públicas com as iniciativas missiológicas existentes
são fragmentários e possuem diversos tons de alianças e enfrentamentos entre os
interesses das missões, das iniciativas públicas e dos interesses locais dos povos
indígenas envolvidos.
No trabalho missionário educacional metodista, a compreensão dos processos
de construção da escola kanamari, com organicidade própria, exige um funcionamento
da escola na aldeia com estratégias curriculares próprias para garantia de espaço
concreto para entender a sociedade não-indígena e como lidar com ela. Para isto é
necessário realizar quebras formais na estrutura escolar que as iniciativas estatais
manuseiam. Na maioria das aldeias o funcionamento da escola segue o ritmo das
atividades cotidianas da organização social (pescaria, roçado, caçada). O desafio da
educação diferenciada esbarra no inevitável vínculo educação-escola, estruturas
mínimas, currículo pré-determinado, seriação, avaliação e todos os quesitos para
identificação “isto é uma escola”.
O modelo diferenciado apresenta os conhecimentos compartimentados, como
as disciplinas de escolas não-indígenas, como de maior excelência que os
conhecimentos tradicionais. Isto sinaliza grandes contradições no transcorrer da
experiência educacional na aldeia. Na experiência kanamari, um desejo entre os
indígenas de que a escola indígena pareça “de verdade” com a escola dos não-
196
indígenas que conhecem. Assim, o conceito educação diferenciada é muito mais
externo (de nós para eles), do que um processo de “gestação” da parte diferenciada da
história.
uma tendência em compreender a educação escolar desde as burocracias
escolarizantes, tais como chamada, prova, sala de aula, controle de horários. É uma
tendência nas ações de iniciativa governamental, principalmente por parte das
Secretarias Municipais, que possuem “cardápios” prontos para serem sugeridos e
planilhas estabelecidas para servirem como referências censitárias. Ao não realizar um
acompanhamento pedagógico nas aldeias, pensando a formação e atuações dos
professores nas escolas nas aldeias, a iniciativa pública tende a se reproduzir nos
mecanismos já existentes.
Um processo reflexivo sobre as escolas que estão se gestando como
diferenciadas nas aldeias representa um vácuo ocupado por iniciativas das entidades
indigenistas; entre os kanamari a missão metodista se instituiu como a principal
interlocutora. Provavelmente esta situação se repete entre outros povos indígenas no
Brasil. Assim, a relação entre as missões indigenistas e as políticas públicas sob
responsabilidade do estado somente tangencia o aspecto de enfoque da discussão
como garantia do estado laico e suas implicações para os povos indígenas no Brasil.
Ainda na relação estado democrático, missão indigenista e povo kanamari, a
presente pesquisa abordou o aspecto de ascensão da liderança indígena e o
fortalecimento das organizações indígenas, que atendem ao espaço de interlocução
direta com o estado de direito e limita a atuação das entidades da sociedade civil não-
indígenas (maioria destas são missões indigenistas). As entidades não-indígenas se
especializam em trabalhos técnicos pontuais e passam a ser entendidas como
prestadoras de serviços para as comunidades indígenas, que deve falar por si. Quanto
mais acesso e autonomia os indígenas vão tendo na compreensão do mecanismo de
relacionamento com o estado brasileiro, mais forte fica a presença indígena nas
funções técnicas anteriormente ocupadas pelo indigenismo, produzindo no indigenismo
alternativo reflexão e mapeamento de destinação, em alguns casos extinção.
197
5.2 MISSÃO INDIGENISTA ALTERNATIVA E OS FUNDAMENTALISMOS EM
ASCENSÃO
Esta pesquisa se propôs analisar a atuação da pastoral de convivência e suas
reconfigurações por demanda do protagonismo indígena e por características eclesiais
que configuram uma religiosidade mais arraigada ao conservadorismo moral e uma
leitura teológica de matriz fundamentalista. A pastoral de convivência tem suas raízes
nas décadas de 1960 a 1970, que representaram uma contribuição na formação
missionária metodista influenciada pela crítica histórica na forma de ler a bíblia e
entender a vivência da fé organizada nos paradigmas instituídos para uma prática
pastoral encarnada na realidade do povo.
O conceito de pastoral assumiu uma densidade e dinamicidade vinculada à
práxis histórica e deixou de ser compreendido somente como resultado direto e simples
da aplicação prática de teorias ensinadas nas disciplinas de teoria prática e prática
pastoral. Luiz Longuini Neto
340
, ao estudar a constituição dos movimentos evangelicais
e o movimento ecumênico, estabelece os parâmetros e indicativos de como se
constituíram a prática pastoral dos evangelicais e a prática pastoral ecumênica, desde
um conceito expandido de prática evangélica (pastoral para ecumênicos e missão para
evangelicais) influenciada e encarnada nas demandas culturais constitutivas da
América Latina. Para Longuini Neto, este cenário aponta a uma maior comunhão entre
estes dois movimentos teológicos para vivência e compreensão do que se passa nesta
entrada do século XXI em relação à contribuição das igrejas na sociedade.
Nesta perspectiva, uma contribuição da teologia à trajetória de
relacionamento das missões cristãs no seu relacionamento com o estado brasileiro no
aspecto específico de como lidar com as demandas indígenas. Isto torna necessário um
amadurecimento da comunidade cristã na vivência de sua em meio à sociedade real,
mas também necessário para que o caráter hegemônico da religião cristã na sociedade
340
Cf. LONGUINI NETO, Luiz. El nuevo rostro de la misión: los movimientos ecuménicos y
evangelicales en el protestantismo lationoamericano. São Leopoldo: Sinodal; Quito: CLAI, 2006.
198
não se imponha como autoritário e desrespeitador das demais religiões constitutivas do
estado.
Como a presença cristã no continente latino-americano tem uma história e
trajetória que se mistura com a constituição histórica do modelo de estado vigente hoje,
a história da presença cristã é também a história desta construção de condição de
normatividade religiosa hegemônica. No caso específico dos povos indígenas, ao longo
da história de constituição do que hoje chamamos Brasil, foi conferido às igrejas cristãs
o trabalho de cuidado e de pensar destinação aos povos indígenas. E isto não foi feito
na história somente por apego ao amor que Deus tem aos povos indígenas. Muitas das
decisões eclesiásticas no trabalho indigenista estiveram envolvidas em processos de
interesse de proteção dos modelos econômicos que se instituíam no estabelecimento
do estado, independentemente das ideologias que instituem o estado.
Mesmo com a instituição do discurso ambientalista de proteção das
biodiversidades, os povos indígenas estão sendo discutidos no contexto de uma
proteção ao desenvolvimento econômico. O trabalho organizado por Eduardo
Hoornaert
341
reúne pesquisas sobre a ocupação cristã da Amazônia brasileira.
Hoornaert aponta destaca dois momentos de constituição da vivência eclesiológica
cristã dividida pela política de Marques de Pombal no aspecto político e pelas frentes de
romanização da igreja como movimento eclesiástico, teríamos assim o Regime de
Missões (início de presença crisa1850) e período de romanização (de 1850 aos
dias atuais).
342
Para ele no período do regime de missões se constitui um cristianismo
não suplantado pelas estratégias de romanização, que estão presentes na vida
cotidiana amazônica e (acrescento) brasileira.
Um cristianismo firmemente ancorado na ética da solidariedade e da resistência, da
honestidade e do compadrio. Um cristianismo de identificação amazônica que garante
341
Cf. HOORNAERT, Eduardo (coord). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, RJ: Vozes/CEHILA,
1992.
342
A presença protestante é analisada por Martin Dreher, que acontece pontualmente no final do século
XIX e expressivamente no século XX, estudando a presença protestante entre povos indígenas desde
os modelos divergentes entre o trabalho de Missões como a MNTB e as sustentadas na vocação da
pastoral de convivência. DREHER, Martin. História dos Protestantes na Amazônia até 1980. in:
HOORNAERT, Eduardo (coord). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, RJ: Vozes/CEHILA, 1992.
p 321-340.
199
postura cristã considerada nima no campo da doutrina, mas que pode ser considerada
máxima no campo da prática, um cristianismo de pouca catequese e muita fé, pouco
padre e muita reza, pouca missa e muita devoção. (...) Será que as comunidades de
base serão capazes de aliar-se à força histórica do cristianismo amazônico popular ou
será que elas ficarão presas como estão largamente até agora a tipos de
interpretação da religião do povo segundo antigos esquemas de superstição, atraso
cultural, subdesenvolvimento, magia, curandeirismo (...), afinal tipos de interpretação que
nada mais são reedições dos preconceitos com que os missionários antigos enfrentaram
as religiões amazônicas?
343
A pergunta/provocação que faz Hoornaert no encerramento de seu trabalho,
que também encerra o livro, é uma das linhas temáticas que perpassa a redação desta
pesquisa. A experiência religiosa das comunidades de base no período da ditadura
militar brasileira gestou uma série de movimentos, entre eles o movimento de pastoral
indigenista sustentado na idéia de inculturação e pastoral de convivência
344
. Por outro
lado a pastoral indigenista se influenciou muito pelo pensamento antropológico, que
entende a ação missiológica como um apêndice institucional ao processo como todo
das colonizações entre povos indígenas e conseqüentemente do comprometimento
irreversível da integridade e autodeterminação dos povos indígenas
345
. Esta dupla
identidade formativa da missão indigenista alternativa se quebra na entrada do século
XX e com o cenário de fortalecimento e garantia dos direitos indígenas no formato de
Estado atual.
Os eixos de ação constitutivos do trabalho missionário (saúde, educação, terra
e articulação política) se fundem para uma nova constituição ainda não nomeada
adequadamente. No caso específico da missão indigenista metodista, de caráter
alternativo em tempos de predomínio de pretensões fundamentalistas, os poucos
trabalhos se fragilizam ou fecham as portas (como aconteceu em 2007 entre o povo
Kanamari).
Nesta perspectiva, a base teológica que sustenta o trabalho das missões
indigenistas é a compreensão da relação entre povos culturalmente constituídos, que
exigem convivência pela garantia da vida e dos direitos. Esta característica representa
a tarefa da igreja em missão entre povos indígenas. Quando os povos indígenas
343
HOORNAERT, op cit, p 410-411.
344
Cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (e outros). Inculturação e Libertação, semana de Estudos
Teológicos CNBB/CIMI. São Paulo: Paulinas, 1986.
345
MONTERO, 2006b, p. 33-44.
200
assumem esta tarefa para si, como está acontecendo em rias expressões do
cristianismo, em particular no protestantismo latinoamericano, esta tarefa se explicita
mais fortemente, criando teologias próprias e aprofundando o caráter dialogal das
expressões de ordenadas pela teologia. Seminários teológicos e publicações
diversas têm tornado acessível uma produção teológica emergente das experiências
campesinas e indígenas, particularmente nos países de fala hispânica, onde os povos
indígenas são numericamente mais expressivos, inclusive entre a membresia das
igrejas evangélicas como um todo.
Se a teologia da encarnação cultural (inculturação) e a prática pastoral da
convivência estão vigentes na experiência missiológica, inclusive com boa reverberação
entre indígenas cristãos, a relação entre povos indígenas e o Estado de direito
estaria em bom caminho de andamento. Mas não parece ser este o foco do problema
de relacionamento para garantia de direitos. na estrutura formal das instituições do
Estado uma compreensão de constituição de relacionamento com os povos indígenas e
seus diversos interesses que não são convergentes com as práticas sociais e
interesses de outros segmentos da sociedade, o que tem trazido à tona uma
inaplicabilidade da proposta teológica à realidade emergente e conseqüente
substituição gradual do protagonismo das missões pelo de lideranças indígenas, nos
diversos espaços em que a questão indígena está sendo tratada.
Quando gradualmente os povos indígenas vão deixando de ser um local onde
se missiona e passam a ser protagonistas de sua história, cristãos ou não, a igreja
enfrenta o problema de tensionamento em sua constituição eclesial, onde estão
presentes e atuantes os indígenas e seus interesses e todos os demais segmentos
econômicos e culturais e seus interesses. Temos o retorno da questão eclesiológica
como reincidente para pensar as possibilidades de presença evangélica do
cristianismo. Numa sociedade de expressões diversas e não convergentes do
cristianismo – de hegemonia da adesão ao Jesus como declaração de fé – é necessário
nomear o que é a igreja, como se constitui o corpo eclesiástico e quais as declarações
de fé que a movem.
201
Justo González
346
entende que estamos vivendo um momento de nova
cartografia da constituição da Igreja Cristã. Compara a ruptura que estamos vivendo
nesta virada de milênio a dois outros momentos na história do cristianismo que são o
período de Eusébio, conhecido como primeiro historiador da igreja cristã, e a reforma
protestante. González interpretou os séculos segundo e terceiro da era cristã como uma
preparação para o acordo igreja e estado que ia surgindo e que constitui uma nova
ordem diante da paz que existia entre a igreja e o império. González cita como os
cristãos do século XXI resignificam a interpretação dos séculos segundo e terceiro à luz
da perspectiva de um cristianismo resistente ao império, que subvertia valores e
sistema romano. Algo parecido vai acontecer no século XVI, que constitui a Reforma
protestante e representa o período de invasão européia do hemisfério ocidental. Para
Gonzáles, na leitura sobre o século XVI feita pelas gerações posteriores do século XXI,
ganhará cada vez mais força a crítica ao processo colonizador em relação ao estudo da
própria reforma protestante, devido o impacto cataclísmico que exerce uma leitura
crítica da violência e estratégias de ocupação desempenhadas pela colonização.
Conseqüentemente González propõe que a eclesiologia no século XXI seja vista desde
a perspectiva de um movimento policêntrico da experiência cristã, com fortes influências
regionais e culturais, o que remeterá a uma capacidade de relacionamento mais
fortemente sustentado na capacidade de relacionamento fraterno e ecumênico das
igrejas cristãs entre si e com as demais religiões.
Segundo Bonino
347
, outra classificação de constituição da eclesiologia que
começa a sofrer alteração nesta conjuntura é a classificação igrejas “de missão” e “de
imigração”. Para Bonino a recriação da memória histórica e da tradição, aliada a uma
participação ativa na sociedade latino-americana, cria condições para uma abertura e
recriação da identidade eclesial. Como o século XXI anuncia um novo interesse pela
religião, explicitado particularmente pelo crescimento das igrejas evangélicas,
revitalização da espiritualidade no catolicismo romano e fortalecimento das festas
religiosas populares, pode recair no debate secular pela hegemonia do campo religioso
346
Cf. GONZALEZ, Justo L. Wesley para a América Latina Hoje. São Bernardo do Campo, SP: Editeo,
2003.
347
BONINO, 2002, p. 80s.
202
pelos protestantes (contra a hegemonia até agora desenvolvida pela Igreja Católica), ou
na discussão da continuidade da cristandade sob novo manto eclesiológico. Neste
sentido, Bonino aponta que a missão, compreendida como superação da perspectiva
de plano de salvação”, é participação na plenitude da vontade de Deus em cuidar e
amar as pessoas, no lugar em que nascem, constitui relações, valores e se socializam.
As possibilidades de espaço pastoral para uma missão metodista indigenista
alternativa progressivamente se extingue no contexto atual da igreja metodista.
Especialmente na questão indígena na Amazônia brasileira, que apresenta
características marcadas pela expansão colonizadora dos projetos econômicos que
facilitaram a ocupação das terras indígenas e eliminação de povos indígenas, como
aconteceram na ocupação agrária e industrial desenvolvidas em algumas regiões
específicas. O metodismo se constitui não-indígena e ainda não desenvolveu uma
estratégia eclesial para as situações de metodismo indígena que se apontou como
possibilidade junto aos macuxi de Roraima.
A probabilidade de extinção de uma atuação missionária metodista indigenista
alternativa pode ser percebida pelo caráter descritivo das questões vivenciadas pela
igreja metodista que esta pesquisa reúne. Como o trabalho metodista junto ao povo
kanamari encontra-se suspenso, independentemente das explicações possíveis,
indicativo de extinção das características de indigenismo alternativo na atuação
metodista no Brasil. Esta extinção não será substituída por um metodismo indígena
brasileiro, como aconteceu e tende a acontecer em outros países latino-americanos.
Seguindo o relato da presente pesquisa, forte possibilidade do metodismo juntar-se
com forças políticas que idealizam a incorporação das populações indígenas de modo a
não comprometer o crescimento econômico emergente em que se encontra o país.
5.3 MISSÃO INDIGENISTA METODISTA
A missão cristã hoje é desafiada a caminhar junto com estes povos em busca de sua
autonomia e da sua libertação. Esta caminhada de luta pela vida é um testemunho da
graça de Deus e uma vivência da “liberdade no Espírito”. Nossas igrejas começam a
aprender que o caminho para esta missão é o diálogo, mediante o qual se respeita a
diferença e se valoriza a cultura do outro. O diálogo com as espiritualidades indígenas,
contra práticas passadas de demonização, pode nos ajudar a reencontrar as nossas
203
próprias raízes de cristã, na oração e na celebração do amor de Deus por todas as
criaturas.
348
Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os
ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem
consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso
tesouro, estará também o vosso coração. A candeia do corpo são os olhos, de sorte
que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se porém, os teus olhos
forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti são trevas,
quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou de
odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e a Mamom.
349
É expressiva a responsabilidade de missões religiosas na implementação de
experiências educacionais entre povos indígenas. O tripé missão-educação-cultura
torna-se lócus obrigatório de investigação da idéia de que a educação leva ao exercício
pleno da cidadania na democracia brasileira. Não somente aos povos indígenas
interessa entender a relação do tripé, mas também às políticas públicas brasileiras em
educação, que já manuseiam e ensaiam propostas no entorno de expressões como
multiculturalismo, pluralidade étnica e conceitos afins que buscam explicitar o impacto
da constituição cultural diversa da população brasileira.
É necessário ensaiar uma nova aproximação que inclua as alterações na
concepção de sujeito de direitos que a questão indígena está forjando em nível mundial
e nacional. A relação dos povos indígenas com os processos colonizadores é um
processo histórico de sobrevivência coletiva e individual, que se utiliza de mecanismos
diversos como ferramenta política de reorganização das relações hierárquicas de poder
entre dominado e dominante. Os tempos atuais apresentam novas ferramentas
pautadas na idéia de estado democrático de direito, onde o direito coletivo, ou
comunitário, torna-se, progressivamente e em caráter substitutivo a médio e longo
prazo, uma ferramenta eficaz transformará os amálgamas simbólico-cristãos
constituídos no currículo atualmente devido ao predomínio da presença missionária
cristã. Garantir a laicidade na educação indígena, ainda que realizada por missões
cristãs, é tema em aberto, derivado desta realidade.
348
ZWETSCH, Roberto. Convivência e solidariedade com os Povos Indígenas. In: ASSENBURG, Benno
e ZWETSCH, Roberto (orgs). Desafios Missionários na realidade brasileira. São Leopoldo, RS: CECA,
1997, p. 44.
349
Mateus 5. 19-24. Sociedade Bíblica do Brasil. A bíblia sagrada. Versão Almeida corrigida e revisada.
São Paulo: SBB, 1994.
204
É necessário um olhar pragmático diante das possibilidades que os povos
indígenas estão vendo de aliança ou o com missões indigenistas. No médio Juruá os
processos formais de garantia de direitos chegam com lentidão. Os povos Kulina,
Kanamari e Deni vêem na aliança com a missão indigenista um recurso eficaz de se
colocarem como sujeitos históricos entre a população do entorno autodeclarada não-
indígena. As missões indigenistas declaram interesse em fortalecer as características
de defesa de direitos, autonomia e valoração cultural dos povos indígenas, mesmo as
conversionistas que crescem em suas atuações entre povos indígenas. Existe um
espaço de atuação específica que tem se mostrado enquanto articulação do discurso
religioso cristão (teologia indígena) e ampliação do debate sobre como os novos grupos
indígenas autodeclarados cristãos se relacionam com a cristandade como um todo. A
tarefa teológica de explicitar a relação do humano com o divino estabelece limites e
interlocuções em muito detectadas no trabalho educacional indigenista. São
importantes na busca de compreensão do caráter multicultural da sociedade brasileira e
latino-americana.
Desde a abordagem apresentada na presente pesquisa, símbolos e linguagens
representativas afetas ao fenômeno religioso provocam uma compreensão lógica de
uma variedade de comportamentos e de características históricas de povos em
diferentes partes do mundo. O predomínio colonizador cristão construiu linguagens
universais e universalizantes, mas que não conseguem substituir ou transpor os
elementos ancestrais e históricos que se reapresentam. Conceitos como hidridismo,
sincretismo e similares tem se reconstituído diante de fenômenos históricos como a
teologia índia que se constrói como teologia cristã e inaugura novos sistemas
ordenadores da mítica ordenadora dos costumes e crenças.
O trabalho educacional missionário metodista, permeado por estes elementos
na constituição da religiosidade e das moldagens culturais, permite a compreensão e
percepção da força lingüística de crítica social em relação à historicidade vivenciada
pelos povos indígenas. No entanto, este relacionamento entre missão e povos
indígenas, em sua significação, é um espaço autônomo de interpretação da cultura
social envolvente, fugindo das restrições culturais locais e introduzindo uma ampliação
205
de significação social das ambigüidades da afirmação social como representativa da
condição humana da sociedade local do entorno. No caso do povo kanamari, em
relação com a missão metodista, a ação interlocutora do sentido de humanidade
presente nas experiências culturais dos rituais kanamari deixam de ser mediadas pela
ação missionária e se constrói derivada da relação de mútuos interesses em superação
das desigualdades sociais.
A educação missionária indigenista tem o potencial de entender esta dinâmica e
construir uma nova década de ação pedagógica humanista, sustentada nos princípios
da educação libertadora. No entanto a dúvida recai sobre as condições históricas da
ação metodista e suas dificuldades de entender a relação de alteridade que perfila na
experiência das comunidades alheias aos indígenas que habitam ao seu redor. A
trajetória da pastoral indigenista metodista tem sido ambígua, apontando limitações que
indicam um abandono da perspectiva de pastoral de convivência e crescimento
fundamentalista que se coloca como modelo expansionista do metodismo nas últimas
duas décadas.
Existe a constatação do caráter periférico da missão indigenista em relação aos
principais temas de preocupação missionária da igreja metodista. Este elemento
provoca a inexistência e reincidente desorganização de estrutura mínima para
acompanhamento da questão indígena e também da capacidade de compreender os
fenômenos que envolvem a missão indigenista, desamparando a atuação entre povos
indígenas ainda existentes. Há um crescimento da presença metodista em lugares em
que a relação com povos indígenas é inadiável por ser exponencialmente mais
conflitiva do que nos grandes centros urbanos. Muitas vezes as comunidades locais
fazem escolhas que apóiam a visão fundamentalista de crescimento evangélico entre
povos indígenas, muitas vezes aliando-se com grupos neo-pentecostais neste sentido.
As estruturas eclesiásticas formais começam a responder afirmativamente para
alianças com segmentos fundamentalistas de missão indigenista projetando um
possível falso crescimento metodista junto a povos indígenas. O documento orientador
da prática missionária indigenista metodista perde seu caráter ordenador e orientador e
começa a assumir um local histórico de superação de um modelo de ação missionária.
206
O metodismo brasileiro, no entanto, não escapará da demanda social para a
sociedade brasileira que representa este novo tempo de protagonismo indígena. Será
sempre um desafio, considerando que um estado instituído não pode pretender
extinção de sua população, ainda que indefinida a condição de cidadania destes. Neste
sentido vivemos a exigência de pertença social, de brasilidade, das populações
indígenas. A história de colonização de iniciativa missionária religiosa, por origem e
característica de constituição social, institui um espaço potencial para as igrejas cristãs
como instituição social que pode atuar em aliança com os ideários do Estado. Apoiar as
iniciativas de implementação de direitos indígenas aponta uma atuação aliada às
garantias políticas diversas, que são práticas pendentes de amadurecimento no trato
estatal à questão indígena.
Aponto como horizonte e término da trajetória aqui proposta por esta pesquisa
às palavras do documento Diretrizes para Educação da Igreja Metodista, ainda
documento oficial de orientações para sua missão educacional:
Toda e qualquer iniciativa educacional da Igreja, especialmente a organização de
novos cursos e projetos, levará sempre em consideração os objetivos da Missão,
de acordo com os documentos oficiais da Igreja e as necessidades locais; (...)
Será buscado um estreito relacionamento com as comunidades em que nossos
trabalhos estão localizados, compartilhando com elas os seus problemas;
Em todos os lugares em que a Igreja atua serão colocadas à disposição da
comunidade, das organizações de classe e das entidades comunitárias, as
instalações de que dispomos, tanto para a realização de programas, quanto para
a discussão de temas de interesse comunitário, de acordo com os objetivos da
Missão;
As igrejas e instituições devem atuar também por meio de programas de
educação popular, para isso, destinando recursos financeiros específicos;
Toda a ação educativa da Igreja deverá proporcionar aos participantes condições
para que se libertem das injustiças e males sociais que se manifestam na
organização da sociedade, tais como: (...) o êxodo rural resultante do mau uso
da terra e da exploração dos trabalhadores do campo, a usurpação dos direitos
do índio, o problema da ocupação desumanizante do solo urbano e rural, (...);
207
Visando à unidade educacional da Igreja em sua missão, as igrejas locais e
instituições se esforçarão no sentido de uma ação conjunta em seus projetos
educacionais;
A Igreja e suas instituições estabelecerão programas destinados à formação de
pessoas capacitadas para todas as tarefas ligadas à ação educacional e social;
Todas as agências de educação da Igreja Metodista, tanto igreja local quanto
instituição, procurará orientar os participantes de seu trabalho sobre as diretrizes
ora adotadas, empenhando-se igualmente para que elas sejam vividas na
prática. (...)
A Igreja entende a Educação Secular que promove como o "processo que
oferece formação melhor qualificada nas suas diversas fases, possibilitando às
pessoas o desenvolvimento de uma consciência crítica e seu comprometimento
com a transformação da sociedade, segundo a missão de Jesus Cristo.
350
350
Trechos selecionados da parte final do documento: IGREJA METODISTA. Colégio Episcopal.
Diretrizes para Educação da Igreja Metodista. Cânones da Igreja Metodista. São Paulo: Cedro, 2002,
p. 33 – 74.
CONCLUSÃO
uma complexidade relacional que move as iniciativas da missão metodista e
outras entidades indigenistas e as ações govenarmentais em educação indígena, que
promove pertença e afastamento entre as práticas de implementação de uma educação
diferenciada e auto-determinada. A missão educacional indigenista metodista,
sustentada, até inícios do século XXI, pela idéia de pastoral de convivência, sofre um
processo de alteração na sua prática, explicitando uma ambigüidade entre a extinção
desta característica e a introdução, aliança e consolidação de práticas missionárias
fundamentalistas. Esta tendência, não necessariamente indica afastamento da missão
indigenista com a implementação de políticas públicas, mas redefinição de suas
características pastorais.
O povo kanamari, em sua especificidade de povo ágrafo, de contato intermitente,
habitante de uma região marginal ao circuito de crescimento urbano no Brasil, partilha
das questões nacionais postas no específico de garantia do direito a escola
diferenciada, com possibilidade de valoração e respeito cultural. Junto ao povo
kanamari, a implementação das políticas públicas em educão indígena teve a
contribuição da presença missionária educacional metodista sustentada na pastoral de
convivência.
A conjuntura da educação indígena diferenciada na história brasileira e na
realidade do povo kanamari, primeiramente, se estabeleceu na Constituição Federal
promulgada em 1988, que institui a escola diferenciada indígena como política pública.
A Constituição Federal de 1988 está associada à memória histórica dos movimentos
209
sociais na conjuntura imediatamente anterior a sua promulgação. Neste período, as
ações das missões indigenistas alternativas, como aliada aos movimentos sociais,
desenvolveram atividades que visaram superar as pretensões integracionistas das
iniciativas governamentais em relação aos povos indígenas. O trabalho missionário
indigenista alternativo consolidou a idéia de pastoral da convivência como expressão
que indica o compromisso missionário em possibilitar aos povos indígenas auto-
determinação e exercício pleno de sua cidadania.
A educação escolar indígena, no contexto da iniciativa de missões indigenistas,
possui trajetórias contraditórias na iniciativa das missões protestantes e evangélicas.
Esta origem contraditória caracteriza-se por experiências de iniciativas conversionista,
de teologia fundamentalista, aliada ao aspecto integracionista presente nas motivações
estatais anteriores à Constituição Federal de 1988, e por iniciativas missionárias
alternativas, aliadas aos movimentos sociais inspirados na educação popular, firmados
na expressão pastoral da convivência.
A educação escolar kanamari, no contexto de povo de contato intermitente e de
introdução da escolarização nas aldeias, no contexto de garantia de direitos, não
representa, necessariamente, superação das pretensões integracionistas dos modelos
formais que se aplicam a escolarização por parte de iniciativas governamentais. As
iniciativas focadas na formação de professores e professoras indígenas, a partir de um
projeto modelo, presente na iniciativa da secretaria estadual de educação do estado do
Amazonas, representam um avanço na conquista da escola auto-determinada, mas
possui contradições curriculares que explicitam as dificuldades na criação de propostas
educacionais voltadas ao respeito e autonomia das comunidades indígenas.
A missão indigenista metodista, desde a afirmação de pastoral da convivência,
com enfoque no aspecto educacional, constitui continuidade da tradição e história da
educação metodista como instrumento de missão. A educação metodista é entendida
como responsabilidade social da igreja na constituição da cidadania. Esta ão
educativa missionária objetivou propiciar a conquista da autonomia de decisão e
experimentação da liberdade humana. No entanto esta caracterização não alcança a
explicitação da multiplicidade das pessoas em suas características culturais, colocando
210
limitações e apontando necessidade de resignificação da compreensão da expressão
cidadania e sua utilização como objetivo do trabalho educacional missionário.
As principais questões de currículo, na experiência da escolarização indígena,
auxiliam e introduzem novos elementos que podem ser significativos e representativos
no debate sobre a ação educativa junto aos povos indígenas. A presença educacional
indigenista metodista representa uma contribuição ao currículo educacional no Brasil,
devido à emergência da temática étnica como espaço relevante. Os elementos
curriculares na ação missionária indigenista metodista apresentam uma condição
marginal ao trabalho missionário como um todo, principalmente na explicitação se sua
presença em novos espaços de migração humana. A missão metodista tem
acompanhado com maior relevância eclesiástica as populações migrantes e
colonizadoras que inviabilizam, em muito, a presença indígena nestes novos locais
ocupados. Esta característica de presença missionária nas diversas regiões onde a
questão indígena se torna agenda pública da sociedade brasileira exige redefinição de
abordagem, pois o protagonismo dos povos indígenas, na garantia de seus direitos,
representa uma agenda, espontânea ou por obrigatoriedade conjuntural, inadiável.
A constituição da educação indígena como política pública possui relação direta
com a atuação missionária indigenista. A educação escolar diferenciada é originária das
pretensões de cidadania indígena. Na perspectiva da iniciativa governamental revelam-
se as insuficiências do atual sistema de ensino – iniciativas focadas na formação
docente –, que apontam uma alteração radical do sistema atual ou a criação de um
sistema próprio de educação indígena. Por outro lado destaca-se que a cultura, na
educação escolar indígena, diz respeito não somente as características de afirmação
da identidade indígena, mas também a composição curricular da educação brasileira,
garantindo as escolas indígenas que dialoguem com a escola não-indígena numa
relação mútuo-alterativa. No específico da experiência kanamari estas questões podem
ser verificadas nas alterações de organização interna que a escola tem propiciado e no
potencial de interferência na sociedade nacional por parte da escolarização kanamari.
Os temas transversais que envolvem a educação indígena diferenciada e a ação
missionária indigenista explicitam o objeto da tese: compreensão da relação entre as
211
iniciativas da missão indigenista metodista e as iniciativas governamentais em
educação indígena, desde uma descrição da relação de interdependência e
tensionamento. A complexidade e ambigüidade da relação entre os sujeitos sociais
estudados apresentam também as demandas teológicas que se anunciam como novos
cenários de investigação quanto à história da igreja, missão, quanto à relação missão e
estado e a relação missão e multiculturalidade.
Ao oportunizar um conhecimento sobre o trabalho missionário metodista entre o
povo kanamari, foram organizadas informações sobre a característica educacional da
missão indigenista metodista na perspectiva da tradição missiológica metodista no
mundo e sua íntima relação com a proposta educacional enquanto afirmação da
cidadania. Situar a missão educacional indigenista metodista no tempo presente auxilia
na compreensão das práticas de acompanhamento e desenvolvimento de ações
governamentais propostas para consolidação escolas indígenas, vinculadas aos
processos formais de formação de professores indígenas, de debate e partilha de
experiências sobre a educação diferenciada.
Os elementos de pertença e conflito na relação entre a implementação de
políticas públicas em educação indígena e a atuação missionária indigenista indicam
mudanças na identidade missionária indigenista metodista. Existe uma complexidade
que envolve, em cenários de confluência e distensão, a relação entre as iniciativas
governamentais e a iniciativa missionária indigenistas. As iniciativas fundamentalistas
de grupos indigenistas interdenominacionais, ao serem chanceladas como iniciativas
metodistas anunciam uma mudança de caracterização da identidade missionária
indigenista no metodismo brasileiro. As ações governamentais, voltadas
prioritariamente para a formação docente, por outro lado, demonstram um campo de
atuação para as missões indigenistas, entendidas cada vez mais como agências
especializadas e vigilantes sociais da implementação de direitos.
As iniciativas governamentais são em grande parte similares e inspiradas na
ação missionária indigenista. As ações missionárias indigenistas, complementares e
parceiras, ou não, às iniciativas governamentais, são percebidas desde as
características de tensionamento, inovação, criação e aproximação entre as práticas
212
educativas. No aspecto de inovação e tensionamento da garantia de direitos, a
autonomia indígena pode ser vista como inaugural de novos tempos na constituição de
escola diferenciada. As condições atuais de garantia e implementação de educação
diferenciada para o povo kanamari são frágeis. A garantia da escola kanamari na região
indica, como um exemplo, que a ação missionária educacional tem mais elementos de
aliança potencial com as iniciativas governamentais do que afastamento, principalmente
pelo caráter inicial desta trajetória de constituição da escola indígena.
A pertença histórica, na questão da educação indígena, entre as práticas
missionárias e as políticas públicas do estado brasileiro, estabelece um cenário de
alianças e tensionamentos indicando que a garantia de escolarização diferenciada
indígena transformará o papel das missões indigenistas no cenário nacional. Desde a
realidade eclesiástica do metodismo e a questão indígena, a tese é de que o atual
período de recolhimento fundamentalista na prática missionária metodista, associado
ao momento de redefinição do papel das missões indigenistas na sociedade brasileira,
aponta uma ambigüidade de co-existência de ão fundamentalista e pastoral de
convivência.
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