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UNIVERSIDADE
FEDERAL
DE
SANTA
MARIA
CENTRO
DE
ARTES
E
LETRAS
PROGRAMA
DE
PÓS-GRADUAÇÃO
LETRAS
DE
IMPOSSIBILIDADES
E
LIMITES
DA
REPRESENTAÇÃO
EM
TRÊS
TEXTOS
DE
MARGUERITE
DURAS
DISSERTAÇÃO
DE
MESTRADO
Pablo Lemos Berned
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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2
DE IMPOSSIBILIDADES E LIMITES
DA REPRESENTAÇÃO
EM TRÊS TEXTOS DE MARGUERITE DURAS
por
Pablo Lemos Berned
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
área de concentração em Estudos Literários, da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. André Soares Vieira
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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3
A Miguel, que veio,
e a Josepha, in memoriam.
4
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor Dr. André Soares Vieira, por ter aceitado os desafios
desse projeto; pela participação, compreensão e cumplicidade.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, no tocante à coordenação, professores
e secretários, pelo suporte institucional, oportunidades, respeito, paciência e
solicitude.
À CAPES, pela bolsa concedida.
Em especial à Taise Maria, minha companheira, pela presença constante, pelo apoio
incondicional nas alegrias e aflições, pelo seu carinho e pela sua dedicação que
sempre me deram forças para o êxito dessa jornada.
À família, mesmo distante, sempre presente, por toda a disposição e confiança
nesses anos de muito estudo e muitas ausências.
Por fim, aos amigos, que de uma forma ou outra, muito me ajudaram no processo
dessa pesquisa. Próximos ou longe, sempre disponíveis, sempre camaradas,
sempre consoladores, é através dos meus amigos que me constituo enquanto
sujeito. E, pelos irrestritos votos de sucesso, divido com cada um deles cada
conquista minha.
5
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
DE IMPOSSIBILIDADES E LIMITES DA REPRESENTAÇÃO
EM TRÊS TEXTOS DE MARGUERITE DURAS
AUTOR: Pablo Lemos Berned
ORIENTADOR: André Soares Vieira
Este trabalho tem por objetivo verificar as implicações na estética literária de
Marguerite Duras ao propor a negação da representação, através de transgressões
à narrativa tradicional. A partir de três textos de Duras que dialogam com a
linguagem cinematográfica, Le camion (1977), Le Navire Night (1979) e La
maladie de la mort (1983), esse trabalho, ao longo de três capítulos, reconhece
nesses textos uma escrita de denúncia, em que a própria linguagem se propõe a
tirar máscaras e desvelar seus mecanismos. O primeiro capítulo propõe a discussão
sobre diferentes conceitos de representação e a busca da escrita de Duras por um
possível além da verdade que as palavras ocultam. Num segundo momento, busca-
se a reflexão acerca da manifesta impossibilidade da escrita de Duras em exprimir
uma visão absoluta do mundo a ser representado, em que o diálogo com outras
linguagens é uma tentativa de ultrapassar a condição de descontinuidade, própria da
existência. Por fim, no último capítulo, questionam-se possíveis sentidos em uma
proposta estética que visa a negar a representação: reconhece-se a escrita de
Marguerite Duras enquanto transgressão e recusa ao definitivo. A sinceridade
desmistificadora a que a escrita de Marguerite Duras se propõe depara-se com o
desmoronamento da racionalidade, restando apenas ruínas da experiência e a
dissolução de limites e certezas.
Palavras-chave:
Marguerite Duras, representação, negação da representação, transgressão.
6
ABSTRACT
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
ABOUT IMPOSSIBILITIES AND LIMITS OF REPRESENTATION
IN THREE NOVELS BY MARGUERITE DURAS
AUTHOR: Pablo Lemos Berned
ADVISOR: André Soares Vieira
.
This work aims at verify the implications in Marguerite Duras’ literary aesthetic by
proposing the denial of representation, through transgression to the traditional
narrative. Starting from three texts by Duras which dialogue with the cinematographic
language Le camion (1977), Le Navire Night (1979) and La maladie de la mort
(1983), this work, throughout three chapters, recognizes in these novels denounce
writing, in which the language itself unveils and unmasks its mechanisms. The first
chapter proposes the discussion about the different concepts of representation and
the search of Duras’ writing for a possible beyond the truth of what the words hide. At
a second moment, I reflect about the impossibility of Duras’ writing in express an
absolute view about the world to be represented, where the dialogue with other
languages is an attempt to overcome the condition of discontinuity appropriate to the
existence. Finally, in the last chapter, the possible meanings in an aesthetic answer
aiming at denying the representation is sought: Duras’ writing is recongnized as
transgression and a refusal of the definitive. The demystifying sincerity to which
Duras’ writing proposes to do, faces the collapse of rationality, with only the
experience and limits of dissolution and certainty being left.
Key-words:
Marguerite Duras, representation, denial of representation, transgression.
7
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS..............................................................................
08
1 SOBRE REPRESENTAÇÕES
1.1 Magia da linguagem...........................................................................
14
1.2 Vazio da linguagem...........................................................................
23
2 NO LIMITE OU NA ESSÊNCIA
2.1 Denúncia da linguagem.....................................................................
35
2.2 Escrita em desastre...........................................................................
46
3 PROMESSAS DE LIBERDADE
3.1 Escrita subversiva.............................................................................
57
3.2 A presença do utópico......................................................................
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................
83
8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O privilégio à razão, herança do projeto iluminista do século XVIII, é posto em
crise pela modernidade: o progresso torna-se questionável, e o próprio pensamento
“científico” é desvelado como uma percepção finita (situada em coordenadas de
espaço, tempo e sociedade), carregando consigo valores de um sistema a serviço
de interesses de classe. A eficácia dessa representação “científica” seria
configurada pelo que Henri Lefebvre (2006) define como a ilusão de totalidade
realizada, ou seja, o enevoamento da fragmentação e da incompletude da
experiência através da representação: em oposição às coordenadas espaciais,
temporais e sociais, que evidenciam a finitude da percepção, a representação
apresenta-se como completa e total, portanto portadora da Verdade. Assim,
homogeneíza as percepções e apaga as contradições em prol de um único discurso.
Em relação aos valores hegemônicos da modernidade, trata-se da própria classe
burguesa desenhando o mundo ao seu modo de percebê-lo.
O romance reage à crise do indivíduo [...] revelando toda a problemática do
sujeito individual: de suas ambivalências, suas contradições e sua
identidade impossível ou impossível de se encontrar (ZIMA, 2001, p.38-9)
De fato, o que se percebe é que, como assinala Dacanal, “todas as grandes
obras romanescas surgidas na Europa depois de 1900 possuem um traço
característico que salta aos olhos: a crise e a queda da síntese burguesa (1990,
p.12-3). Ou seja, depois de atingir seu apogeu nos séculos XVIII e XIX, esta síntese
burguesa é como que dissolvida através de grandes obras como as de Thomas
Mann, Virgínia Wolf, Marcel Proust, Henry James e, por fim sepultada pela literatura
de James Joyce e Franz Kafka. A anulação do indivíduo, sua despersonalização,
ataca por sua vez o elemento central no desenvolvimento do romance enquanto
gênero burguês: o sujeito individual. Emerge-se, portanto, a ambivalência radical de
todos os valores modernos, evidenciando certo fracasso do projeto iluminista.
“O romance é um monstro, um desses monstros que o homem aceita, alenta,
mantém ao lado”, afirma Júlio Cortázar (1999, p. 133), ao abordar a impureza
constitutiva do gênero romanesco. Este gênero que se cristalizou no seio da era
9
burguesa, porém, cada vez mais se desfigura, tocando os seus limites; ou, pelo
contrário, encontra justamente no questionamento dos seus limites a própria
essência do romance. O que é questionado, a partir de então, é a própria
sobrevivência da narrativa romanesca na Europa. Um modelo de representação de
mundo, calcado em sistema de valores relativamente estável está em crise. Repete-
se o questionamento de Maurice Blanchot (2005): a literatura caminha para o seu
fim? Ou, que forma esse monstro tomará após o desastre que culminará com a
queda da síntese burguesa?
A escrita de Marguerite Duras parece também contestar esse modelo de
representação de mundo que a arte burguesa veicula, calcada, segundo Pierre Zima
(2001) no racionalismo, no positivismo, no causalismo e no pensamento sistemático
fundado sobre uma subjetividade cartesiana ou hegeliana. A negação dos modelos
de representação tradicionais funcionaria, na escrita de Marguerite Duras, como
escrita de transgressão, em que se subvertem interditos de tais modelos em nome
de uma sinceridade desmistificadora em relação à arte mimética. No percurso entre
três textos de Duras que dialogam com a linguagem cinematográfica, Le camion
(1977), Le navire night (1978) e La maladie de la mort (1983), reconhece-se uma
escrita de denúncia, em que a própria linguagem se propõe a tirar máscaras e
desvelar seus mecanismos: a auto-representação apresentar-se-ia como
possibilidade de saída ao exterior da linguagem para denúncia da falsidade que a
linguagem carrega consigo. Em não querer ser conivente com a dissimulação que a
ilusão referencial detém, a escrita de Duras propicia o questionamento sobre as
transgressões, localizando-as nos limites, ou, pelo contrário, justamente na essência
da arte.
Na busca de transcender às representações, Le camion apresenta-se
enquanto um gênero híbrido, cuja estrutura assemelha-se a de um roteiro de
cinema, focado em duas personagens: Marguerite Duras e Gérard Depardieu. Os
dois, segundo as indicações do texto, estão em uma sala escura onde lêem a
história que poderia vir a ser um filme: a história de uma mulher que embarca de
carona num caminhão, e cujo encontro com o motorista sugere uma possibilidade
infinita de situações e diálogos entre os dois. A evocação de um filme sem imagens,
decorrente da simples leitura do texto, acaba por questionar os interditos que
direcionam a percepção em relação ao mundo realizada através das linguagens.
10
Os interditos, para Georges Bataille (1989), seriam as restrições sociais
responsáveis pela eliminação dos movimentos de violência, que permitem ao
homem vivenciar o mundo do trabalho e da razão. Por sua vez, os interditos de
natureza artística, para André Breton (1983), se consolidam a partir da repetição
angustiante dos que caem diariamente sob nossos sentidos e nos exigem a
considerar como ilusório tudo o que se pudesse ser fora disso. La clarté s’est
obscurcie” (DURAS, 1977, p.32)
1
, diz G.D. em Le camion. As personagens de
Duras apresentam um descondicionamento na escrita de M. Duras, que buscaria
deslocar o já-dito, a insistência do significado, sugerindo que os mitos e experiências
cotidianas pareçam “estranhos”, no intuito de extirpar as falsas representações que
se faz de si e da sociedade (STAM, 1981, p.161).
Pois é justamente a mediação entre os homens e o mundo através da palavra
que se torna o principal ponto questionado pelo enredo de Le navire night. Em um
primeiro plano, a narrativa situa-se a partir do encontro de uma escritora-cineasta
em Atenas, na Grécia, com um amigo. No entremeio dessa moldura narrativa está a
história do filme sem imagens, constituído enquanto um diálogo de vozes sem corpo
a narrar a história de J.M., um rapaz que manteve um relacionamento amoroso com
uma moça, F., por intermédio do telefone: Pendent des nuits et des nuits ils
vivent le téléphone décroché. Dorment contre le récepteur. Parlent ou se taisent.
Jouissent l’un de l’autre(DURAS, 1986, p.27)
2
. Assim, todas as relações entre as
personagens possuem mediadores que impedem uma aproximação maior com uma
possível verdade empírica. Seja através do diálogo com diferentes gêneros artísticos
ou meios tecnológicos, ou através de personagens, ou mesmo pela iminência da
morte, propõe-se um contínuo distanciamento àqueles que teriam sido a origem do
discurso, os portadores da experiência, do vivido revelado.
Surgem, a partir das transgressões às fronteiras genéricas, estruturas
híbridas que rejeitam a representação enquanto mistificadora, denunciam-se e
subvertem a lógica da representação tradicional: é como se a objetiva da narrativa
se deslocasse da representação, do “faz-de-conta”, e mostrasse os bastidores.
1
“A clareza se obscureceu” [as traduções de Le Camion, daqui em diante, serão referentes à:
DURAS, Marguerite. O Caminhão. Tradução de José Sanz. Rio de Janeiro: Record, 1987].
2
“— Durante noites e noites vivem com o telefone ligado. Dormem ao telefone. Falam ou calam-se.
Gozam-se um e outro” [as traduções de Le navire night, daqui em diante, serão referentes à:
DURAS, Marguerite. O navio night. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’água,
2002].
11
Durante uma filmagem, não se pode excluir, de qualquer que seja o ponto de vista,
as câmeras, os aparelhos de iluminação, os assistentes e outros objetos alheios à
cena. A exceção se configuraria apenas se a visão do observador coincidisse com a
objetiva do aparelho (BENJAMIM, 1994). Porém, nas narrativas de M. Duras, a voz
de um “narrador-diretor” exprime a presença dessa aparelhagem, deslocada da
objetiva da câmera, o que configura um caráter antiilusionista. O próprio texto acaba
por explicitar o processo de filmagem, e, por sua vez, pode igualmente denunciar-se
enquanto processo de escrita.
Na constituição de La maladie de la mort, fundem-se diferentes gêneros:
trata-se de um romance? De um filme? De um poema? De um intervalo entre eles?
Existem duas personagens “presentes em cena”, vous”[você] e elle”[ela], mais um
“narrador-diretor” que se põe alheio à diegese, mas, todavia, não se oculta: Je ne
sais pas"; Je ne le crois pas" (DURAS, 1984, p.15)
3
. A partir da voz desprovida de
corporeidade desse sujeito “lírico-narrador-diretor” é que são dadas as orientações
às ações dos “atores”, protagonistas da história entre dois amantes que buscam
entender a angústia dele enquanto portador da doença da morte. Condensam-se as
linguagens narrativas, poéticas, fílmicas, ao mesmo tempo em que anunciam o
desastre da representação.
Nos textos de Marguerite Duras, uma crise da representação seria
evidenciada pelo poder conferido à palavra. Num movimento que sugere uma
evocação à tradição oral dos contadores de histórias, permite-se que a palavra
assuma seu papel ilimitado de criação de imagens; pois, ao negar a representação,
ou, nesse caso, a encenação, o recurso imagético proviria da palavra pronunciada
em voz alta, rompendo expectativas do leitor/espectador. Dessa proposta à narrativa
oral, que não se sustenta na representação, “faz de sua ausência mesma uma
metáfora da anti-representação”, afirma André Vieira (2007, p.128). Assim, as
linguagens teatral e cinematográfica, por exemplo, são incorporadas ao longo da
narrativa, com o objetivo de desestabilizar o visível, subvertendo a condição do
imagético, negando a representação e potencializando o texto, o poder da palavra
em propiciar, à atividade do leitor, diferentes possibilidades de imagens.
3
Não sei”; “Não acredito”. [as traduções de La Maladie de la Mort, daqui em diante, foram retiradas
da edição bilíngüe publicada no Brasil: DURAS, Marguerite. A doença da morte. Tradução de Jorge
Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1984].
12
Existe, em Duras, um privilégio da escrita sobre a imagem. Pois a imagem
“pronta” limitaria o imaginário (a participação do público). Caberia, dessa forma, ao
escritor deixar em aberto o texto para a contribuição ativa do leitor/espectador na
construção das imagens, como um “filme esburacado” (GUIMARÃES, 1997, p. 204).
Considerar-se-ia que a narrativa de Duras, na impossibilidade de mostrar a imagem,
utiliza-se da palavra; a imagem inerte que, tal como a fotografia, produz a pressão
do indizível que quer se dizer (BARTHES, 1984, p. 35).
Assim, embora se pudesse facilmente separar os diferentes gêneros (e
mídias) dos quais Marguerite Duras se utilizou para compor seus trabalhos ao longo
de cinqüenta anos, a permanente reciprocidade da criação literária com o teatro e o
cinema (PINTO, 1996, p. 79) impede tal atitude. Justamente nos pontos de contato
entre os diferentes gêneros e mídias é que se presume a impossibilidade de total
expressão através de um único viés: aparecem, não obstante, gêneros híbridos, na
busca de uma completude possível para a narração da história. Esta dissertação
insere-se, dessa forma, nos estudos da Literatura Comparada: pois a esta área dos
estudos literários permite-se a aproximação da literatura com outros domínios de
expressão e conhecimento, a fim de estabelecer relações entre as manifestações da
literatura atual e os signos icônicos da modernidade.
A proposta de desenvolvimento dessa pesquisa parte de reflexões acerca de
conceitos de representação suscitados pelos próprios textos de Marguerite Duras
que compõem o corpus. Desse modo, percebeu-se então a necessidade em se
recorrer às origens da discussão sobre a arte das palavras, a partir das postulações
de Platão (em A República) e de Aristóteles (na Poética) sobre a mimese. Assim
sendo, ao relacionarem-se, na escrita de Marguerite Duras, questões próximas às
de Platão e Aristóteles, se estará construindo subsídios para a proposta posterior,
sobre a negação da representação.
Assim, o passo seguinte consistirá em estabelecer problemáticas existentes
em relação à negação da representação, detendo-se nos três textos de Marguerite
Duras que compõem o objeto dessa pesquisa: Le camion, Le navire night e La
maladie de la mort. Em comum, esses textos se apresentam enquanto narrativas
dentro de narrativas, equivalentes entre dois planos diegéticos (e imagéticos?),
como uma possível estratégia (a ser investigada ao longo da pesquisa) de negação
da representação. O princípio de auto-representação viria a se manifestar tanto ao
13
nível do enunciado, seja pela presença de um narrador-escritor, seja por outra figura
autoral, ou mesmo através da interpelação de um leitor fictício; quanto ao nível da
enunciação, considerando-se, por exemplo, a mise-en-abyme, a reduplicação, as
metáforas, figurações, intertextualidade e paródias, entre tantos. Ao recorrer à auto-
representação, o que é posto em evidência é a reflexão sobre a criação literária. O
escritor faz com que seu texto seja um espaço para reflexão sobre o seu papel de
escritor, a sua escrita, a sua idéia de literatura.
A última etapa da pesquisa visa a contemplar uma possível relação entre
estética e política. Com efeito, partindo-se de referências na escrita de Marguerite
Duras que carregam críticas explícitas sobre a esquerda francesa, acredita-se poder
reconhecer, no próprio projeto estético da autora, uma imbricação do seu modo
peculiar de ver o mundo e a arte. São nas referências explícitas em Le camion ao
Partido Comunista Francês, a Karl Marx, a León Trotsky, além do maio de 68 e a
primavera de Praga, que se crê poder identificar as posições políticas a
atravessarem, como um todo, a escrita de Duras. Dessa forma, poder cogitar sobre
os possíveis sentidos que há em uma estética que almeja negar a representação.
14
1 SOBRE REPRESENTAÇÕES
1.1 A Magia da Linguagem
— L’histoire se creuse de cavernes, s’approfondit.
Plus son décor grandit, plus elle s’obscurcit.
(Marguerite Duras, 1986)
O objetivo desse capítulo consiste em reconhecer, na escrita de Marguerite
Duras, um desejo nostálgico de retorno a antigos modelos de formas narrativas.
Embora evoque modelos ancestrais e repetidos, por vezes anteriores à própria
escrita, a aqui almejada linguagem mítica, transparente, dotada de poderes mágicos,
acaba por se apresentar como impossível no universo narrativo de Duras.
As antigas tradições das narrativas orais transmitiam, de geração para
geração, os mitos que compunham a história de cada comunidade. A palavra era um
ritual, dotada de poderes mágicos, em que se encerraria o intuito de manter vivas a
história e (intrinsecamente ligadas) a própria comunidade. Sobre a linguagem dada
pelo próprio Deus aos homens, era um signo das coisas absolutamente certo e
transparente: “Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim
como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a
influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da
similitude” (FOUCAULT, 1995, p.52). Dessa maneira, a relação entre significados e
significantes não se dava por uma simples convenção: as coisas tinham sua
significação porque se assemelhavam às palavras. O processo se daria de maneira
natural, não arbitrária.
Dessa forma, a relação entre linguagem e mundo condensava uma única
realidade. Falar sobre o mundo era afirmar o próprio mundo através da fala. E tal
deveria ser o poder da palavra mágica, permitida apenas aos iniciados dos segredos
obscuros, responsável por mediar as relações entre o visível e o invisível: “Abra-te
sésamo”, “Abracadabra”, exemplos de palavras proferidas em situações rituais pelos
15
iniciados e que permitiam a materialização do desejo evocado, de maneira análoga
à transformação do pão e do vinho em carne e sangue do Cristo. Régis Debray
lembra que “é na magia primitiva que não distinções entre a parte e o todo, a
imagem e a coisa, o sujeito e o objeto(1993, p.70). À linguagem se atribuía uma
origem divina, desde Adão e a encarnação do Verbo, o que, pela fé, lhe conferia as
funções de verdade, transparência, objetividade, equivalência, sendo a própria
critério de distinção entre a realidade circundante e o irreal.
G.D. :
C’est un film ?
M.D. :
Ç’aurait été un film.
(Temps.)
C’est un film, oui.
(Temps.) (DURAS, 1977, p.11-2)
4
No âmbito da fé, não a necessidade de provas, de veracidade, de lógica,
posto que ela só pode ser preservada pelo impossível (BLANCHOT, 1987). De modo
análogo, é por isso que, na escrita de Marguerite Duras, o que poderia ser um filme,
é o filme. O uso do verbo no modo condicional refere-se a um tempo lúdico, de
caráter especular, que sugere um retorno à linguagem não opaca; age como um
convite à imaginação, subentendendo-se a existência de um doncentre as duas
frases: “seria um filme logo é um filme” (DURAS, 1979, p.128-9). Trata-se de um
convite à história de um filme, mas não um filme projetado numa tela; partindo-se do
modelo do que seja um filme, a escrita de Duras convida para a leitura de um filme
imaginário a ser projetado na mente de cada leitor, sem mediação de atores,
diretores e equipe técnica, onde a própria palavra é encenada.
Remonta-se, portanto, à tradição do conto, à tradição das narrativas
populares e míticas, quando no ritual da narrativa, são as vozes dos sacerdotes, dos
profetas e dos vates as responsáveis por mediar o mundo sensível do
desconhecido, levando aos homens as verdades que lhes são ocultas. As palavras
rituais tornam-se presentes e vivas entre os interlocutores, como se se pudesse
presenciar a realidade então representada. Assim, a escrita de Marguerite Duras, ao
4
G.D.: É um filme? / M.D.: Poderia ser um filme. / (Pausa.) / Sim, é um filme. / (Pausa.)[Tradução
de José Sanz].
16
evocar esse passado ancestral, propõe-se “assistir com religiosidade a encenação
que se efetiva no texto, esta produção de uma narrativa” (ALAZET, 1992, p.43).
Afinal, as ações nessas três narrativas de M. Duras são ações retóricas: em
Le camion, lê-se o roteiro do que pode vir a ser um filme; em Le navire night, há a
leitura do filme cujo texto é construído a partir de um relato pessoal; e em La
maladie de la mort, um narrador-diretor que orienta as ações da história a ser
encenada. Constituem-se enquanto composições moldurais, histórias dentro de
histórias, responsáveis por personificar as figuras do narrador e do narratário,
tornando-as presentes no acontecimento narrativo, remontando-se, por fim, aos
modelos homéricos (Odisseu que narra sua trajetória aos feácios, narração essa que
é a própria história da Odisséia, mas que atinge talvez o maior exemplo com
Sherazade nas Mil e uma noites).
Os poemas homéricos situam-se nos limites entre as tradições orais e a
escrita das suas histórias. Nas culturas orais, não separação entre os mundos
reais do autor e do leitor, onde cantadores e ouvintes compartilham do mesmo
universo e vêem-no pelo mesmo prisma (SCHOLES & KELLOGG, 1977). Portanto,
não existe necessidade de mediação entre os mundos, pois não dúvidas e sim
cumplicidade entre a comunidade quanto às premissas de veracidade das histórias.
É necessário talvez questionar-se em relação às tradições orais de poesia, assim
como o fez Paul Zumthor (2000), sobre quais os efeitos exercidos pela oralidade
sobre o próprio sentido e, em contrapartida, sobre o alcance social hoje dos textos
que são transmitidos pelos manuscritos. Daí seria possível constatar uma busca
operada pela escrita de Duras, uma busca nostálgica de formas perdidas, anteriores
inclusive à própria escrita.
Se a poética da escrita pode ser econômica, como afirma Zumthor (2000), a
da voz, jamais. A voz carregaria consigo, em oposição à impessoalidade do texto
escrito, a própria existência de um corpo a falar, um corpo vivo em ação: seus
lapsos, interrupções, ruídos. Nesse sentido, é possível reconhecer, por exemplo, em
Le camion, certos “ruídos” do texto, constitutivos da moldura narrativa que remetem
ao processo de leitura do texto.
M.D.:
Vous voulez une cigarrette?
G.D. :
17
Ça depend desquelles...
M.D .:
Je ne fume que des Gauloises bleues...
(Temps)
Et vous?
G.D.
Moi, des Stuyvesant (prononciation à la française). Remarquez, c’est une
question d’habitude...
M.D. :
(Temps.)
C’est vrai (DURAS, 1977, p.28)
5
.
Os cigarros, a leitura, o cansaço, estão presentes no texto como que
buscando uma aproximação entre o texto e o seu leitor, embora não sejam
constitutivos do universo que é lido a história da mulher do caminhão. Em La
maladie de la mort, essa aproximação se através da utilização da segunda
pessoa pronominal, ao longo de todo o texto, como que se tratando de indicações
cênicas direcionadas ao próprio leitor. Por sua vez, em Le navire night, há a história
que se passa em Atenas, entre a escritora/cineasta e seu interlocutor, cujas vozes
confundem-se e despersonalizam-se ao contarem a outra história, a de Paris, em
que a narrativa distingue-se materialmente da moldura pelo uso do itálico, sem que
se confundam ambos os planos.
Na escrita de Marguerite Duras essas vozes assumem a própria narração do
processo de escrita, como que antecipando e desvelando as intimidades da
linguagem em seu aparecimento. As vozes surgem nessa escrita como uma busca
pela inocência perdida, quando ela ainda está exposta, é imediata e não pode voltar
atrás (BARTHES, 2004a, p.2-3). Há essa entrega inocente que a língua falada
oferece, as suas repetições e equívocos, a sua sinceridade, elementos que a escrita
tende a querer apagar. No entanto, eis que a teatralidade, o jogo, o peso do corpo
da língua falada, espontânea, viva, tal como são os mitos, a escrita pode tentar
apreendê-los: o que resulta em limitar-se a uma possibilidade de narrativa, adquirir
pontuação, assim suscitar lógicas estranhas ao mito, que concretizam o ritual de
embalsamento da palavra, um ritual cujo objetivo é mortificar a palavra para torná-la
imperecível.
5
M.D.: Quer um cigarro? / G.D.: Depende de que marca... / M.D.: Só fumo Gauloises azuis... /
(Pausa.) / E o senhor? / G.D.: Stuyvesants (pronunciando à francesa)... Olhe, é uma questão de
hábito. / M.D. (Pausa.) É verdade” [Tradução de José Sanz]
18
Dans le film, quelqu’un aurait dit :
C’est une femme comme ça, tous les soirs elle arrête des autos, des
camions. Et puis elle raconte sa vie à qui se trouve là.
Chaque soir, elle raconte sa vie pour la première fois. Elle est plus ou moins
écoutée, mais peu lui importe. (DURAS, 1977, p.64)
6
.
Falar para não morrer, falar para continuar existindo: é enquanto ato de fala
que as personagens de Duras se constituem. O próprio verbo falar torna-se, então,
intransitivo, a partir do momento em que o objeto do discurso não importa mais, mas
apenas a necessidade de contar e ouvir histórias. Em Le camion, são várias
histórias que atravessam a leitura, histórias errantes tais como o próprio caminhão
que erra por terras estéreis; ou histórias à deriva, perdidas e contraditórias, como a
experiência das personagens de Le navire night. Nesses textos, a própria reação
de falar de si caracteriza uma ficcionalização da identidade das personagens e,
por essa consciência, uma perda das possibilidades de apreensão de si mesmo.
os diálogos travados com elle”, em La maladie de la mort, não remetem a um
conhecimento exterior ao indivíduo; pelo contrário, o isolamento dos amantes no
quarto, e o vazio de identidades através dos dêiticos pronominais. A cabine, o
telefone e o quarto isolam os casais do mundo, onde cada personagem é levada a
expor-se ao outro; a trajetória das três narrativas de Duras é uma busca pela
descoberta de si mesmo, pelo autoconhecimento.
O isolamento ao qual a narrativa de Marguerite Duras submete suas
personagens acaba por constituí-las enquanto puros atos de fala. São, portanto,
vozes deslocadas, privadas de corporeidade. Como vozes em off, encontram-se
dissociadas de uma possível imagem suscitada pelo diálogo desses textos com a
linguagem cinematográfica. As vozes tornam-se independentes de um filme
imaginário, “ao mesmo tempo em que o ato de fala torna-se por si mesmo imagem
sonora autônoma” (DELEUZE, 2005, p.291). Dessa forma, esses filmes retornam a
sua matriz, o texto escrito, o roteiro, feito de diálogos e didascálias. E seria
justamente a partir desse ponto que seria possível reconhecer semelhanças entre a
escrita e os meios eletrônicos, auditivos e audiovisuais: a impessoalidade que tanto
a escrita quanto os meios de reprodutibilidade cnica carregam consigo, no que diz
6
“No filme, alguém diria: / É uma mulher assim. Todas as noites ela pára automóveis, caminhões. E
depois conta a sua vida a quem estiver neles. / Cada noite, ela conta a sua vida pela primeira vez. Ela
é mais ou menos ouvida, mas pouco lhe importa” [Tradução de José Sanz].
19
respeito à emancipação do corpo e da teatralidade presentes nas tradições da
oralidade.
As narrativas orais constituem-se enquanto processo, pois o sempre
presentes, precisam refazer-se a cada vez que o contadas; ou seja, a oralidade
faz dessas narrativas um corpo vivo, dinâmico. Retomar o que foi dito, de acordo
com Barthes (2004b, p.93), é sempre aumentar, dada a impossibilidade de anular,
apagar a fala anterior. Assim, em oposição estão a escrita e outros meios capazes
de uma projeção ao imperecível através da fixação; pois ao escrever (ou ainda
gravar, filmar, fotografar, etc.) a narrativa é como que podada da vivacidade que
constitui em potencial cada ato narrativo, ao se narrar a mesma história. Portanto,
cristaliza-se uma versão ou um ângulo jamais correspondente a um presente
dinâmico, mas sempre a uma imobilidade tranqüila, tornada possível pelo passado.
É assim que se torna possível um olhar nostálgico para as formas perdidas:
por ser irrecuperável, o passado pode ser idealizado. Esse passado cristalizado
pode ser visto como próprio da narrativa clássica em relação à morte, quando o
herói moribundo atinge uma possibilidade de visão plena do todo. É na hora
derradeira que o homem torna-se autoridade para narrar a sua experiência
concentrada em sua totalidade: “é no momento da morte que o saber e a sabedoria
do homem e sobretudo sua existência vivida e é dessa substância que são feitas
as histórias assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN,
1994, p.207). Narrar para não morrer: viria à mente do moribundo aquilo que valeria
a pena não se perder para sempre no esquecimento do fim da existência, e, de
alguma forma, através da sua palavra, vencer a morte e permanecer no mundo.
A experiência individual de cada ser, que marca a sua descontinuidade e a
sua solidão perante o mundo, é ameaçada pela convivência social que torna
possível, de certo modo, a experiência ser intercambiável. Seja contando algo que
foi, supostamente, a experiência de um outro, observada pelo narrador ou conhecida
por intermediários; ou ainda, narrando a sua própria experiência ou a de seus
antepassados: de qualquer modo, a narrativa nos moldes milenares carrega consigo
a transmissão de conhecimento. A autoridade do narrador é, portanto, o que pode
dar a autenticidade necessária para a narrativa fazer-se ouvida.
Porém, a possibilidade de apreensão de uma totalidade é negada a essas
personagens, em que predomina o caráter especulativo das ações, de forma a
20
abordar o desmoronamento das racionalidades e provocando uma angústia através
da impossibilidade de certezas, própria da escrita de Duras. Chaque nuit réclame
d’en mourir. Demande d’en mourir” (DURAS, 1986, p. 37)
7
. A própria literatura
reivindica a morte, necessita dessa promessa de morte; a morte tida como maior
esperança dos homens, visto que ao longo de uma existência ela é esse porvir. Mas,
como Blanchot (1997) propõe, há um paradoxo na “hora derradeira”, visto que
morrer é também perder a morte, é deixar de ser mortal para estar frente à
impossibilidade de morrer.
A escrita é análoga a uma “toalete dos mortos” para Roland Barthes (2004a,
p.1), um ritual de embalsamento para fazê-la eterna. Por esse viés, a escrita é
tomada enquanto premeditação de um assassínio, mais próxima de um sacrifício: ao
ser imolado, o ser deixa de ter a descontinuidade que lhe é própria e “é reconduzido
à continuidade do ser, à ausência de particularidade” (BATAILLE, 1987, p.84). As
descontinuidades que encerram cada existência são ameaçadas pelo desejo de
continuidade que tanto a morte quanto a reprodução contém e são aproximadas por
esse caráter:
Le corps est sans défense aucune, il est lisse depuis le visage jusqu’aux
pieds. Il appelle l’étranglement, le viol, les mauvais traitements, les insultes,
les cris de haine, le déchaînement des passions entières, mortelles
(DURAS, 1984, 21)
8
.
Em comum, o desejo e a violência da morte, o desejo e a violência do ato
sexual, o desejo e a violência que constituem a cristalização da palavra em escrita.
Em comum, a despersonalização (do cadáver, do amante e da escrita) própria do
erotismo, que carrega a tentativa de continuidade pela reprodução ou pela morte.
A ação de contar uma história remonta às antigas tradições quando
realizadas por mediadores, não sendo eles próprios origem do discurso. Assim
também é a escrita, que se a saber pela mediação da palavra, e não pelo autor,
origem que se apaga: a morte do autor é contrapartida do processo de escrita
(BARTHES, 2004b, p.58). Eis que tanto a escrita quanto o gravador ou as câmeras
7
“Cada noite reclama morrer desse desejo. Pede para morrer dele” [Tradução de Miguel Serras
Pereira].
8
O corpo é sem defesa alguma, é liso desde o rosto até os pés. Ele chama o estrangulamento, a
violação, os maus tratos, os insultos, os gritos de ódio, a descarga de paixões inteiras, mortais”
[Tradução de Jorge Bastos].
21
são desumanizadas, por abolirem a presença dos sujeitos das vozes, e por tornarem
indefinidamente possível a reiteração idêntica do mesmo até a sua abstração
(ZUMTHOR, 2000). Em Duras, esse jogo de mediações proposto pela sua escrita
reitera essa despersonalização, localizando a fonte do discurso não dentro da
própria história, mas fora dela, impessoal, e carregando o ônus que é constitutivo
dessa posição, a perda da onisciência do narrador.
Em Le camion, a “autora” se despersonaliza dessa categoria e, de fora da
história narrada, apresenta o roteiro daquilo que poderá vir a ser um filme. Então,
M.D., convertida em personagem, duplo de um narrador, es incumbida de ler o
roteiro do filme de ficção. Em Le navire night, o sujeito enunciador se manifesta
enquanto tal na introdução às narrativas (propriamente ditas) do livro. Manifesta-se
enquanto “escritora”, sendo ela mediação entre a história vivida por um outro, J.M., e
o texto da versão final, baseado na gravação do relato de J.M. no gravador. A voz do
sujeito, gravada, dissocia a voz da pessoa. Na história, a própria relação que se
estabelece entre J.M. e F. é intermediada pelo telefone; ou seja, as vozes são
despersonalizadas e perdem sua referência a qualquer certeza de identidade. O que
permite, inclusive, que as vozes que narram o Navire Night se tornem impossíveis de
serem atribuídas a alguém (ALAZET, 1992). em La maladie de la mort a
narrativa centra-se em duas personagens, vouse elle”, além de poder reconhece-
se a voz de um “narrador-diretor” que, embora se esquive, o se oculta, posto que
organiza e direciona as ações dos “protagonistas”. Mas, justamente, nesse sujeito
enunciador reconhece-se uma impossibilidade de domínio sobre o texto e sobre as
personagens (e, principalmente, sobre o que está atrás das máscaras das
personagens, ou seja, o leitor). Assim definem-se as personagens em La maladie
de la mort: um “eu” despersonalizado e posto como exterior à diegese; um “você”
que funcionaria como máscara a qualquer leitor que viesse a participar da mise-en-
scène da narrativa; e um elle”, um sujeito de quem se fala, e alheio à possibilidade
de compreensão e apreensão: Parce que vous ne savez rien delle vous diriez
qu’elle ne sait rien de vous. Vous vous en tiendriez là” (DURAS, 1984, p.20)
9
.
A escrita pode ser considerada como a projeção de uma imagem ao futuro. É
assim que, conforme Blanchot (1987, p. 226), a imagem continua afirmando as
9
“Porque você não sabe nada dela você diria que ela não sabe nada de você. Você permaneceria aí”
[Tradução de Jorge Bastos].
22
coisas em seu desaparecimento. O mundo, ao ser nomeado, mergulha em sua
própria imagem, dissolve-se na linguagem tornando-se sombra. A magia da
linguagem é, portanto, almejada pela escrita de Marguerite Duras, devido a sua
transparência; no entanto, essa busca é fadada ao fracasso, pois à palavra revela-se
o abismo intransponível entre a palavra e o referente empírico. Dessa forma, a
representação caracteriza-se pela impossibilidade de se recuperar o mesmo que se
perdeu, cuja presença resta como ruína do que é inatingível.
23
1.2 Vazio da linguagem
Elle vous regarde, elle répète: C’est curieux un mort.
(Marguerite Duras, 1984)
Pensar sobre representação é, de alguma forma, pensar sobre a opacidade
da linguagem. Considerando-se a busca de um além da verdade que as palavras
ocultam, esse capítulo tem por objetivo a discussão sobre conceituações acerca da
representação. Assim, recorreu-se às origens da discussão sobre a arte das
palavras, partindo-se das postulações de Platão (em A República) e de Aristóteles
(na Poética) sobre a mimese. As aproximações que podem ser feitas entre a
tragédia grega que é lida hoje e o roteiro de cinema, é que ambos corresponderiam
à versão escrita de uma arte que é cênica. Equivalência que facilitará o paralelo
proposto sobre Le camion, Le navire night e La maladie de la mort, de Marguerite
Duras, e as observações à tragédia.
Em A República, acerca dos modos imitativos, Platão aponta que um poeta,
para se referir aos acontecimentos, serve-se “[ou] de simples narrativa, [ou] por
intermédio da imitação, ou por meio de ambas” (PLATÃO, 1997, p.84). A narrativa
por meio da imitação (mimese) permite ao poeta assemelhar-se com o objeto
passível de ser imitado: “Aproximar-se de alguém na voz e na aparência não
significa imitar aquela pessoa com quem queremos nos assemelhar?” (ibidem). Por
sua vez, a simples narrativa (diegese) proposta por Platão estaria fundamentada
pela narração de acontecimentos sem a intervenção de discursos diretos, ou seja,
sem “simulação” da voz de outro.
Para Aristóteles haverá, tanto quanto para Platão, a distinção entre os dois
modos de imitação referentes à poesia. Sobre essa distinção, afirma-se na Poética:
“Com efeito, um poeta pode, pelos mesmos meios, imitar os mesmos objetos, seja
narrando-os como fez Homero, quer na primeira pessoa, sem mudá-la , seja
permitindo que as personagens ajam elas mesmas” (ARISTÓTELES, 1999, p.39).
Uma que adota a narração, de forma que se pode identificar o uso do discurso
indireto para exprimir a fala de personagens, construindo-se a figura de uma
24
entidade organizadora desse discurso (o narrador); e outra que faz uso da
encenação, a imitação propriamente dita, de forma que as próprias vozes das
personagens (ou seja, através do uso do discurso direto) encarregam-se de
organizar as ações.
Reconhece-se que ambos os sistemas, tanto o de Platão como o de
Aristóteles, concordam no essencial, tal como aponta Gérard Genette (1971): ambos
os sistemas reconhecem uma distinção entre o dramático e o narrativo. Entre narrar
e mostrar se colocaria a questão de gêneros para Platão: consistiriam, como
exemplos, a tragédia e a comédia como narração inteiramente imitativa, o ditirambo
como narrativa pela voz própria do poeta, e a epopéia como narrativa mista, por
utilizar-se de ambos os modos (observa-se que, em Platão, são consideradas
tênues as fronteiras entre a simples narração e a pura imitação).
Ao final da Poética, ao comparar a tragédia e a epopéia a mimese para
Platão em oposição à narrativa –, Aristóteles aponta que mesmo sem a encenação
do texto, “bastaria fazer-lhe a leitura para que se lhe destacassem as qualidades”
(1999, p.74). A leitura carregaria consigo esse poder imagético, que possibilita a
criação mental das imagens a partir da organização dos signos lingüísticos. Mas, se
Aristóteles visa a esse processo para o poeta compor a encenação, Marguerite
Duras estaria, pelo contrário, visualizando uma não-encenação do filme enquanto
finalidade em si. Seus textos híbridos diferenciam-se do roteiro “tradicional”
principalmente pela perda de sua funcionalidade. Se o roteiro é um gênero
dependente/submisso ao cinema, utilizado como ferramenta pela equipe de
produção, os textos de Duras emancipam-se: sua leitura desvencilha-se do filme e
assume sua própria carga poética.
O próprio texto dramático carrega consigo uma caracterização formal da
sua possibilidade de encenação, sendo o modo de enunciação o responsável pela
distribuição do “eu” entre as personagens: dessa maneira, “paradoxalmente, o texto
dramático não tem necessidade de atores para existir como representação e como
drama” (DUPONT-ROC; LALLOT, 1980, p.162). Seja Le camion, que assume a
estrutura de roteiro de cinema, no qual M.D. e G.D. lêem a história de um filme; seja
Le navire night, cujos diálogos preenchem o espaço noturno e seus silêncios com
as vozes que narram a história de um filme; seja La maladie de la mort, em que
25
vozes comandadas por um “narrador-diretor” movimentam-se por um espaço cênico:
as próprias vozes se encarregam então de narrar a encenação de cada texto.
Os limites entre a encenação e a narração situam-se de maneira ainda mais
tênue: assim como ambos reconhecem que as falas das personagens estão
incorporadas na epopéia, as artes cênicas, por sua vez, utilizam-se do ato narrativo
no interior da montagem dramática (de certa forma, em oposição aos postulados
aristotélicos, para quem a representação trágica realizar-se-ia com atores atuando e
não narrando). Em Édipo Rei, de Sófocles, por exemplo, qual é a ação que se
realiza em cena, senão a reconstituição de testemunhos desencontrados (ou seja,
narrativas) para que Édipo reconheça a verdade?
Quase sempre, não nos é exibida simples “ação” (no sentido bruto, como
Édipo arrancando os próprios olhos ou Clitemnestra assassinando seu
marido na sala de banho), mas o relato dessa ação. Assim, as ações usuais
das quais vemos a mímesis são alguém falando e alguém ouvindo [...] Em
todas as peças que chegaram até nós, a “ação” principal é uma
apresentação de atitudes, ou num monólogo (lírico ou retórico), ou numa
rápida conversa em staccato. Muitas peças [...] consistem quase
inteiramente de tais apresentações, explorando cada nuança filosófica e
emocional dos personagens e sua situação; a ão física é mínima
(McLEISH, 2000, p.19-20).
Como o espectador toma conhecimento das ações que se passam fora de
cena, sejam ações passadas ou simultâneas à encenação? Como se saberá da
consumação do patético (considerando a tragédia grega), a não ser pela narração
do acontecido através de alguma outra personagem em cena? Desconsidera-se que
monólogos e solilóquios também contam histórias, por exemplo, se forem reduzidas
a zero as funções narrativas que podem vir a permear o drama.
Ao privilegiar os diálogos nesses textos, apaga-se toda a narrativa, o que
restaria da narrativa mista (em relação ao tratamento de Platão), e a escrita de
Duras torna-se “qualquer coisa que pareça muito a uma peça de teatro ou se
aproxime de um filme (BORGOMANO, 1985, p.28)”. Assim posto, diante dos três
textos de Marguerite Duras abordados por esse trabalho, coloca-se em questão as
suas definições genéricas. o romances? Filmes? Peças teatrais? Poemas? Ou
intervalos entre os gêneros? Afinal, Paul Ricoeur (1994) lembra que a oposição
entre diegese e mimese é atenuada por Aristóteles, visto que não afeta o objeto da
imitação, ou seja, a tessitura da intriga. Tal oposição refere-se apenas ao modo se
26
encenado ou narrado –, o que não interfere na qualidade do trabalho de criação dos
poetas.
Vous la regardez.
Elle est très mince, presque gracile, ses jambes sont d’une beauté qui ne
participe pas à celle du corps. Elles sont sans implantation véritable dans le
reste du corps.
Vous lui dites : Vous devez être très belle.
Elle dit : Je suis là, regardez, je suis devant vous.
Vous dites : Je ne vois rien.
Elle dit : Essayez de voir, c’est compris dans le prix que vous avez payé.
Vous prenez le corps, vous regardez ses différents espaces, vous le
retournez encore, vous le regardez, vous le regardez encore.
Vous abandonnez.
Vous abandonnez. Vous cessez de toucher le corps (DURAS, 1984, p.21-
2)
10
.
As vozes dos textos de Marguerite Duras se situam entre narrar ou mostrar.
Assim, num primeiro momento, narrar implicaria mediar a visão daquele que narra
para com o seu interlocutor; enquanto que, ao mostrar, evita-se a mediação da
linguagem. Desse modo, Genette (1971) defende que uma obra constituída por falas
não é rigorosamente representativa, limitando-se a reproduzir um diálogo real ou
fictício. Isso porque o discurso direto, não sendo da ordem do “narrar”, constitui-se,
portanto, na ordem do “mostrar”. Ao passo que narrar seria privar as personagens
de voz própria, as falas cumpririam um papel de citação, de objetividade: deixariam
de ser mediação, para serem o próprio objeto.
Genette, para seu argumento, baseia-se no fato de que, das artes das
palavras conhecidas no mundo grego, Aristóteles exclui justamente aquelas em
que o poeta mantém um discurso em seu próprio nome, como os poemas de
Arquíloco, Safo e Píndaro: “o poeta deve falar o menos possível em seu nome, pois
não é nesse sentido que é um imitador” (ARISTÓTELES, 1988, p.47). Aristóteles
adota uma conceituação abrangente, em que a epopéia, o poema de cunho trágico,
o ditirambo e, na maior parte, a arte de quem toca a flauta e a cítara, todas vêm a
ser, em geral, imitações.
10
“Você a olha. / Ela é muito magra, quase grácil, suas pernas são duma beleza que não participa à
do corpo. Elas não têm uma implantação verdadeira no restante do corpo. / Você lhe diz: você deve
ser belíssima. / Ela diz: Eu estou aqui, olhe, estou na sua frente. / Você diz: Não vejo nada. / Ela diz:
Tente ver, está incluído no preço que você pagou. / Você pega o corpo, você olha os seus diferentes
espaços, você o revira, revira-o ainda, você o olha, olha-o ainda. / Você abandona. / Você abandona.
Você pára de tocar o corpo” [Tradução de Jorge Bastos].
27
Em contrapartida, Platão concebe a mimese a partir de uma idéia de
dramatização, de imitação de ações semelhante às realizadas por atores. Em A
República, afirma-se que, “se o poeta jamais se ocultasse, seus versos e suas
narrativas seriam criados sem imitações” (PLATÃO, 1999, p.85). Ou seja, Platão
concebe a mimese diria-se, um fingimento a partir do momento em que o poeta,
assumindo a voz de alguém como se fosse a sua, abre mão de um compromisso
com a verdade do enunciador. O enunciado marcando a sua enunciação a partir da
própria voz do narrador, sem que se passe um outro, seria essa a busca de uma
pretensa sinceridade que se evidencia na perspectiva de Platão.
A realidade não seria a materialidade empírica, sendo essa “mera imitação”
da realidade abstrata criada por Deus; e a poesia seria considerada imitação da
realidade em terceiro grau pelo poeta. As representações não estariam ocupadas
em representar as coisas como são, mas como se parecem, caracterizando-se pela
ordem da aparência: “os poetas criam fantasmas, e não seres reais”, afirma Platão
(1999, p.326). É desse processo de representação que decorre a condenação aos
poetas, que deveriam ser expulsos da cidade ideal por sugerirem as fraquezas
humanas em deuses e heróis. Afastada três graus da verdade, e podendo se
modelar a todos os objetos, as imitações seriam falaciosas, apenas sombras da
existência.
Justamente nesse ponto é possível cogitar sobre uma possível diferenciação
da mimese clássica e o conceito de representação, mais atual. Talvez se possa
conceber o êxito da representação, então, muito mais próximo de um estilo realista,
“verossímil” em relação à percepção da realidade (ocidental, contemporânea). O
pressuposto básico da arte mimética, para Robert Stam (1981), consiste na
existência de uma realidade anterior sobre a qual a obra de arte deve ser modelada.
O que se apresenta como problemático, a partir dessa afirmação, é a própria
percepção do real. A verossimilhança, pelo menos até a Idade Média, não se
propunha referencial, “mas abertamente discursiva” (BARTHES, 2004b, p.185).
Dessa forma, é a partir da analogia entre o signo e a existência prévia do sujeito que
a representação estabelece um sentido; embora considerando essa existência
prévia em um plano mais amplo de concepção da realidade, mais próximo não de
uma dita realidade empírica, mas da reiteração de modelos de representação.
Dessa forma é que a mimese clássica estaria calcada nos modelos estabelecidos
28
pelas tradições que constituíam, por sua vez, a verossimilhança, e não o real
empírico. Sobre a mimese aristotélica, Kenneth McLeish assinala:
O conceito de mímesis é o cerne da análise da estética de Aristóteles, não
simplesmente no drama, mas de todas as artes. Previsivelmente, a palavra
é um desafio à tradução exata. Ela significa pôr na mente de alguém, por
um ato de apresentação artística idéias que levarão essa pessoa a associar
o que essendo apresentado à sua própria experiência prévia (McLEISH,
2000, p.18).
Dessa forma, seria possível apreender a mimese enquanto analogia entre
uma presença e uma ausência, uma mediação responsável pelo processo de
presentificação do não presente. Por exemplo, deve-se lembrar que Aristóteles, de
antemão, imaginava ridícula uma tentativa de encenação da perseguição de Heitor,
exemplo retirado da Ilíada. Todavia, a narrativa abarcaria de forma mais adequada o
maravilhoso; “o irracional, origem do maravilhoso, é plausível na epopéia, porque
não se o ator” (ARISTÓTELES, 1999, p.69). Recorrendo às ausências que a
palavra abarca, em oposição às imagens, verifica-se ser na imaginação do
espectador ou do leitor que a história narrada consolida-se em coerência, refutando
vazios e imperfeições: a própria ilusão referencial provém de um processo de
racionalização do texto (SPAVIN, 2006) que provoca a sensação de uma apreensão
de sentido e, por vezes, a própria impressão de se alcançar a suspensão da
subjetividade do texto, no sentido de neutralidade da linguagem.
De modo contrário à leitura de McLeish, que enfatiza na mimese aristotélica a
analogia do ausente com o presente, Paul Ricoeur (1994) restringe essa leitura à
mimese platônica, mas não a estende à aristotélica. Isso se em função dos
diferentes graus que intermedeiam a obra de arte com o seu modelo ideal, na
concepção de Platão; ao passo que, para Aristóteles, a mimese tem apenas um
espaço de desenvolvimento, o fazer humano. Dessa forma, a mimese deixa de ter a
acepção de imitação, mais próxima da leitura platônica: a não ser se entendida
como uma imitação criadora, independente na necessidade de um real preexistente.
A poesia é um fazer:
E, se traduzimos mimese por representação, não se deve entender, por
essa palavra, alguma duplicação da presença, como se poderia ainda
entendê-lo na mimese platônica, mas o corte que abre o espaço de ficção.
O artesão de palavras não produz coisas, mas somente quase coisas,
inventa o como se. Nesse sentido, o termo aristotélico mimese é o emblema
29
dessa conexão que, para empregarmos o vocabulário que hoje é o nosso,
instaura a literariedade da obra literária. (RICOEUR, 1994, p.76).
A representação, por essa leitura, é responsável pela cisão nos eixos espacial
e temporal do real empírico. O espaço de ficção trata, sobretudo, de um tempo
suspenso, pode-se dizer irreal, como o tempo condicional que rege as narrativas
durasianas que se denunciam enquanto ficção mesmo. Em meio a essas diferentes
leituras sobre a mimese aristotélica, coloca-se em jogo o seu entendimento como
uma analogia sombria ou como um fazer poético, uma ação no mundo. Não é a cor
dos olhos dela que se coloca como uma fronteira intransponível entre os amantes de
La maladie de la mort: non, pas la couleur, non, mais le regard. / Le regard
(DURAS, p. 1984, p.25)
11
. A cor, que vai ao encontro da metáfora de Platão sobre o
terceiro grau da mimese, é situada ao oposto da práxis, pelo verbo substantivado. A
práxis, como Paul Ricoeur (1994) faz referência, pertence tanto ao campo do real,
ético, quanto do imaginário, poético, assumindo um caráter não apenas de ruptura,
mas de ligação: a ligação entre qualificações éticas que antecedem a obra (que
Ricoeur chamará de Mimese I), através da ão propriamente dita, de criação (a
função pivô, chamada Mimese II), para com o dinamismo da recepção, com o seu
poder de refiguração (Mimese III). Assim, é pela ética que se articulariam as
relações entre o que é interior e o que é exterior à obra. A realidade perpassada pela
linguagem se configura, dessa forma, não necessariamente pela História, mas pelos
valores veiculados através da significação que o texto carrega consigo.
Paradoxalmente, o ápice do estilo “realista” coincide, no século XIX, com a
dissociação entre a linguagem e a verdade. Naquele momento, Nietzsche
questionaria a própria condição da Verdade enquanto propriedade metafísica da
linguagem, ou seja, levantam-se os questionamentos sobre os elementos que
seriam responsáveis por atestar a veracidade. “Tanto a verdade quanto a mentira
nascem da linguagem, como uso social das palavras. Se a linguagem tem alguma
função, é em primeiro lugar a dissimulação” (LEFEBVRE, 2006, p.51). Assim sendo,
o sentido da linguagem não se constitui apenas pela concatenação de signos e
significações, o que o basta para explicar o discurso: “Nele intervém outros
elementos que fazem o sentido, a saber, os valores em normas admitidas em tal ou
11
“Não, não a cor, você sabe que esta cairia entre o verde e o cinza, não, não a cor, não, o olhar / O
olhar” [Tradução de Jorge Bastos].
30
qual sociedade, incorporados [...] em representações” (idem, p.52). Dessa forma, a
aparente neutralidade da linguagem, seu aspecto insidiosamente imparcial, por
vezes esconde os interesses que possam existir ao parecer servir sempre à
verdade. Nesse sentido, não se pode conceber as representações como verdadeiras
ou falsas. Vivemos em um mundo de representações; como buscar uma verdade (ou
mesmo uma mentira), se tudo for representação?
Para Emmanuel Lévinas, a função elementar da arte, que se encontra em
suas manifestações primitivas, consiste em fornecer uma imagem do objeto em lugar
do próprio objeto: “essa maneira de interpor entre nós e a coisa uma imagem da
coisa tem por efeito arrancar a coisa da perspectiva do mundo” (LÉVINAS, 1998, p.
61). A representação tende a passar-se pelo objeto, a colocar-se como o próprio
objeto: almeja ser a realidade do objeto, através de seu efeito de ilusionismo. Mas a
própria representação se afasta do referente, lhe traz uma modificação
essencial, que lhe é inerente e constitutiva. No que condiz à representação
tradicional em literatura, o processo imaginativo que parte da palavra para chegar à
imagem visiva forma-se a partir de um cinema mental ativado por cada leitor: o
significante (saussuriano) remeteria ao significado indissociável. Enquanto a escrita
seria a responsável pelo desenrolar da narrativa, a imaginação visual decorreria da
expressão verbal:
lemos por exemplo uma cena de romance ou a reportagem de um
acontecimento num jornal, e conforme a maior ou menor eficácia do texto
somos levados a ver a cena como esta de desenrolasse diante de nossos
olhos, senão toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem
do indistinto (CALVINO, 2006, p. 99).
Se do indistinto provém a imagem, é do indistinto que se alçaria a realidade
das coisas segundo Platão, em reflexão sobre a oposição entre aparência e
realidade. O invisível, porém, não implica a sua inexistência; mas, por fugir à
apreensão dos sentidos, abre-se para o ilimitado: “os homens recuaram da parte
obscura de si mesmos” (BLANCHOT, 1987, p.125). O que se percebe é uma
trajetória através da História que consistiu em rejeitar o inapreensível, cujo ápice
encontra-se no racionalismo europeu, reivindicador do cientificismo, do materialismo
e da lógica em uma busca da Verdade.
31
As experiências que são chamadas de “fenômenos”, todo o suposto “mundo
dos espíritos”, a morte, todas essas coisas tão familiares para nós foram tão
excluídas da vida, por meio de uma atitude defensiva, que os sentidos com
os quais poderíamos apreendê-las se atrofiaram. Sem falar em Deus.
(RILKE, 2007, p.78)
Evita-se, foge-se do que não se pode explicar, ou buscam-se explicações
para o inexplicável; assim evidencia-se a relação intrínseca que a arte sempre teve
com a morte. As origens da representação teatral remontam ao culto aos mortos,
assim como se almeja a permanência além da morte, uma busca pela continuidade
dos seres descontínuos, através da fixação da imagem e da palavra. “É somente
depois de terem inventado a escrita que a linguagem aspira a uma continuidade;
mas é também porque ela não queria morrer que decidiu um dia concretizar-se em
signos visíveis e indeléveis” (FOUCAULT, 2001, p.48). A escrita seria uma tentativa
de permanência após a morte, no sentido de um monumento. A linguagem, no
entanto, jamais poderá recuperar o vivido. A representação, em geral, jamais pode
exprimir uma experiência vivida, a ser vivida novamente. A representação – no caso,
a escrita – já é o atestado de óbito do vivido.
A representação, dessa forma, passa a ser tomada como uma presença
cadavérica: “O cadáver [...] traz em si seu próprio fantasma, anuncia seu retorno”
(LÉVINAS, 1998, p.72). Ou seja, retoma-se o signo saussureano, em que o
significante, presença em si mesmo vazia, carrega consigo apenas o intransponível
acesso ao referente, o significado, conceito abstrato de um referente dissolvido
pelas subjetividades que compartilham a mesma língua. A representação abre um
abismo que separa o representado do seu representante a morte, seu fascínio e
seu desejo. “A própria escritura [...] é violenta. É mesmo o que de violência na
escritura que a separa da fala, revela-lhe a força da inscrição, o peso de uma marca
irreversível” (BARTHES, 2004b, p.197). Apresenta-se o domínio da violência, da
violação, no sentido de uma dissolução das formas constituídas, como característico
ao erotismo; assim, reconhece-se, na escrita, o desejo de dissolução dos seus
elementos constitutivos, o apagamento dos sujeitos, da descontinuidade, num
mergulho à noite, à escuridão e à morte que essa proposta convida.
Elle dit: L’envie d’être au bord de tuer un amant, de le garder pour vous,
pour vous seul, de le prendre, de le voler contre toutes les lois, contre tous
32
les empires de la morale, vous ne la connaissez pas, vous ne l’avez jamais
connue? (DURAS, 1984, p.45)
12
.
"A violência do desejo torna impossível o que é desejado", lembra Blanchot
(2005, p.232). Diante da impossibilidade de recuperação do referente, evidencia-se
o vazio dessa presença; revela-se que, por trás do simulacro, não nada, o
vazio. “As mais mortais decisões, inevitavelmente, ficam também suspensas no
tempo de uma narrativa. O discurso, como se sabe, tem o poder de deter a flecha
lançada em um recuo do tempo que é o seu espaço próprio” (FOUCAULT, 2001,
p.47). Muito embora, reitera-se, o alvo do discurso permaneça na impossibilidade
de ser atingido. A materialidade significante possibilita a criação mental das imagens
a partir da organização dos signos lingüísticos, atribui sentido ao sujeito através da
língua, tanto pelo uso social das convenções lingüísticas, quanto pela memória
individual e coletiva: o signo pode ser interpretado em virtude da sujeição às
regras, convenções pré-estabelecidas. O que se encontra no extremo oposto da
palavra, o que se situa como seu contrário é, portanto, a própria imagem da morte.
L’histoire que relate Le navire Night m’a é racontée en décembre 77 par
celui qui l’avait vécue, J.M. l’homme jeune de Gobelins(DURAS, 1986, p.7)
13
. Ao
iniciar Le navire night com tal afirmação, a narradora dessa apresentação uma
escritora busca salientar que a história que seguirá não é simples invenção. Cabe
à narradora a função de reivindicar a veracidade da história, apresentando-a como
realmente vivida e contada para si pelo homem que a viveu: assume então como
determinante para sua narrativa os artifícios de afirmação da história enquanto
verdade. Mas mesmo a experiência do vivido não dá a J.M. a segurança de
apreensão da verdade, posto que qualquer realidade que venha a ser narrada se
torna produto da linguagem, sujeita aos seus arbítrios equívocos, lapsos e
esquecimento. A palavra, de qualquer forma, jamais poderá recuperar o vivido. A
representação, em geral, jamais poderá exprimir uma experiência vivida, a ser vivida
novamente. A representação no caso, a escrita é o atestado de óbito do
12
“Ela diz: A vontade de estar prestes a matar um amante, guardá-lo para si, para si apenas, tomá-lo,
roubá-lo contra todas as leis, contra todos os impérios da moral, você não conhece-a nunca, jamais
conheceu-a?” [Tradução de Jorge Bastos].
13
A história que O Navio Night relata foi-me contada em Dezembro de 77 por aquele que a vivera,
J.M., o homem jovem dos Gobelins” [Tradução Miguel Serras Pereira].
33
vivido. Marguerite Duras inclusive retoma círculos temáticos
14
(alguns de cunho
autobiográfico) em vários livros, embora em nenhum possa recuperar a Verdade.
Pelo contrário, a linguagem dissocia o significado do significante, e torna-se
imago mundi; a linguagem passa a re-presentar o mundo, no sentido de mediar as
relações entre o representante e o representado. Hegel teria feito referência às
representações enquanto mediações. O próprio cristianismo se definiria pela
multiplicação de representações, de intermediários (no mesmo sentido da
representatividade política), que, por exemplo, para judeus e muçulmanos o há
mediações entre Deus e os homens; tampouco para o budismo, que o tem como
representar nada, pois tudo é divino, tudo o que existe. Porém, através da Arte, o
cristianismo construiu a sua visão do mundo, e considerando o artista simples
instrumento da manifestação divina. A própria santidade da Bíblia se justificaria pela
inspiração do Espírito Santo; de maneira análoga, no mundo grego, o poeta o vate
nada afirmava em seu nome, afirmando ser mero intermediário inspirado pelas
Musas.
Por ironia, talvez, em Le navire night a narradora assume seu caráter de
intermediário entre o gravador e a escrita. A narração da história, então gravada,
adquire uma independência do enunciador e sua história é como que destruída,
para o aparecimento da escrita da história, mediada pela gravação que, de certa
forma, cristaliza uma outra possibilidade de história. “Après avoir lu ce devenir – écrit
par un autre de sa propre aventure J.M. est resté silencieux mais comme s’il avait
été à chaque instant au bord de parler(DURAS, 1986, p.8)
15
. A narradora propõe
um distanciamento àquele que teria sido a origem do discurso, o portador da
experiência, do vivido revelado; e este não o reconhece mais.
As mediações pelas quais a história é atravessada, a partir da sua própria
versão sobre os acontecimentos, levariam a história à modificação essencial, da
qual fala Lévinas (1998). A história do texto final, entregue à J.M. para a leitura, o
mais lhe pertence, mas se perde na sucessão de mediações: não mais re-presenta a
sua história (ou uma verdade), mas se coloca enquanto representação da gravação.
14
É possível reconhecer certos ciclos de reescritura na produção de Marguerite Duras. Tratam-se de
textos que recuperam universos narrativos de outros textos da mesma autora, por vezes recontando
a mesma história por enfoques diferentes (cf. PARAÍSO, 2002).
15
“depois de ter lido esse devir escrito por outro da sua própria aventura, J.M. ficou silencioso
mas como se estivesse a cada instante prestes a falar” [Tradução de Miguel Serras Pereira]
34
O vivido é destruído pela linguagem, tornando-se o vazio que a linguagem traz
consigo.
Liberta de uma “realidade” morta, a palavra emerge como uma nova
realidade, projeção do referente já abandonado. “Somente a morte me permite
agarrar o que quero alcançar; nas palavras, ela é a única possibilidade de seus
sentidos. Sem a morte, tudo desmoronaria no absurdo e no nada” (BLANCHOT,
1997, p.312). A palavra traz consigo a morte: a ausência do objeto “real”
potencializa os sentidos, nos remete a um impossível abstrato, ideal. Haveria, desse
modo, uma possibilidade de semelhança cadavérica com a imagem. Pois o cadáver
não é nem o vivo em pessoa e não é o mesmo que estava em vida. “A presença
cadavérica estabelece uma relação entre aqui e parte nenhuma”, como coloca
Blanchot (1987, p.258). O que já foi torna-se inacessível, emerge no lado obscuro da
vida. O vazio da linguagem corresponde à liberdade de possibilidades que se
estabelece para a subjetividade a partir do jogo cadavérico de significantes; torna-se
impossível iluminar essa escuridão, o que faz do lado obscuro da vida espaço
hipotético.
35
2 NO LIMITE OU NA ESSÊNCIA
2.1 Denúncia da linguagem
Il ne la voit plus contenir cette légende de la seule
héritière au nom inconnu, leucémique et bâtarde.
Celle de son désir.
(Marguerite Duras, 1986)
No anseio de superar as representações, a literatura de Marguerite Duras
volta-se para si mesma, para o seu próprio processo de escrita. Dessa forma, a
partir dos três textos de Duras que compõem o corpus dessa pesquisa, o objetivo
desse capítulo consiste em relacionar a escrita de Duras com uma busca por uma
possível verdade decorrente do uso das palavras.
Os poetas são acusados por Platão, na República, de serem simples
imitadores das aparências da virtude e de quaisquer assuntos sobre os quais
versem. Por estar a três graus distantes da Verdade, diz Platão que “o imitador não
tem nenhum conhecimento válido do que imita” (PLATÃO, 1997, p.330) e, portanto,
ao poeta não haveria respaldo para falar sobre coisas das quais não tem domínio.
Visto falar de muitas coisas, em nenhuma o poeta teria excelente conhecimento para
delas ter propriedade para falar. Dessa forma, os poetas são considerados por
Platão apenas como criadores de sombras, presos às ilusões da aparência e muito
distantes da essência das coisas, alheios à realidade. Talvez se possa reconhecer,
nesse ponto, uma das ambições da literatura moderna: ao buscar uma possível
realidade por trás das palavras, a literatura volta-se para a própria literatura.
O uso da linguagem faz com que haja um distanciamento da Verdade, como
acusa Platão. Entre o significante e o significado, o referente e a referência, entre o
que está presente e o que está ausente, projeta-se um abismo que se apresenta
como intransponível: o que é passível de apreensão é apenas o lado iluminado da
existência, sendo o âmbito noturno oculto, inacessível à racionalidade. A noite opõe-
se ao dia, quando “podemos, com efeito, falar de visão e de luz a propósito de toda
36
apreensão sensível ou inteligível. [...] Que ela emane do sol sensível ou do sol
inteligível, a luz, desde Platão, condiciona todo o ser” (LÉVINAS, 1998, p.53). Frente
à escritura de Marguerite Duras, submerge-se, então, no incógnito, no obscuro, nos
infinitos desconhecidos; seja a noite, o sono, o sonho, a morte, a doença da morte, o
fim, o mar, a mulher, o corpo da mulher:
Vous dites pour dormir sur le sexe étale, là où vous le connaissez pas.
Vous dites que vous voulez essayer, pleurer là, à cet endroit-là du monde.
Elle sourit, elle demande : Vous voudriez aussi de moi?
Vous dites: Oui. Je ne connais pas encore, je voudrais pénétrer aussi. Et
aussi violentemment que j’ai l’habitude. On dit que ça résiste plus encore,
que c’est un velours qui résiste plus encore que le vide (DURAS, 1984,
p.9)
16
.
Penetra-se nesse desconhecido, onde as formas das coisas são dissolvidas
na noite, diluídas no infinito. A representação, no que se refere à presentificação do
não-presente, torna-se a recuperação do irrecuperável, perdida em vaguidão.
Apenas metáfora sem referente, significante cujo significado se perdeu. “Na noite,
quando estamos presos a ela, não lidamos com coisa alguma. [...] No entanto, essa
ausência é, por sua vez, uma presença absolutamente inevitável” (LÉVINAS, 1998,
p.68). uma presença, e é justamente o enfoque nessa presença (já desprovida
de ausência) que permite falar-se de uma apresentação, antes que de uma
representação.
Almeja-se apresentar aquilo que tende a ser ocultado, o próprio significado, o
referido; para transpor o abismo, a linguagem volta para si mesma e evidencia os
próprios bastidores do processo de escrita. Elle aurait parlé le temps du parcours,
de temps en temps, voyez (DURAS, 1977, p.40)
17
. As narrativas de Marguerite
Duras suscitam o questionamento sobre a própria possibilidade de se narrar uma
história, visto que as ações que desencadeiam a diegese, nesse caso, seriam puros
atos de fala, constituir-se-iam como o relato do relato. Em Le camion, o texto do que
poderia ser um roteiro de cinema é lido por Marguerite Duras e Gérard Depardieu;
em Le navire night, o encontro entre a escritora/diretora e Jacquot Benoit na
16
“Você diz que para dormir sobre o sexo distendido, ali onde você não conhece. Você diz que você
quer experimentar, chorar ali, nesse lugar ali do mundo. Ela sorri, ela pergunta: Você quer também a
mim? Você diz: Sim. Eu não conheço ainda, eu queria penetrar também ali. E tão violentamente
quanto costumo. Dizem que isso resiste ainda mais, que é um veludo que resiste ainda mais que o
vazio” [Tradução de Jorge Bastos].
17
“Ela falaria do período do percurso, de vez em quanto, sabe?” [Tradução de José Sanz].
37
Grécia, entrecortado pelo texto que é transcrito a partir de uma gravação, para a
realização de um filme, em que J.M. conta a sua história de amor. Já em La maladie
de la mort, há um narrador-diretor responsável por orientar as ações da história a
ser “encenada”.
“A linguagem é, por natureza, ficcional”, afirma Barthes, (1984, p. 128). A
maneira que a escrita de M. Duras encontra para transgredir essa natureza da
linguagem é subverter os interditos de modelos convencionais em nome de uma
sinceridade desmistificadora em relação à arte mimética. O percurso empreendido
pelos textos de Marguerite Duras tende a mostrar o seu próprio processo de escrita.
Desejando não ser conivente com convenções ditas “realistas”, a escrita de Duras
assume uma postura auto-reflexiva, engajando-se para a desmistificação da arte e
assim voltando-se para a linguagem, com o objetivo de transcender às
representações.
Elle demande: Vous pleurez porquoi? Vous dites que c’est à elle de dire
pourquoi vous pleurez, que c’est elle qui devrait de savoir.
Elle répond tout bas, dans la douceur: Parce que vous n’aimez pas. Vous
répondez que c’est ça.
Elle vous demande de le lui dire clairemente. Vous le lui dites: Je n’aime
pas.
Elle dit: Jamais?
Vous dites: Jamais (DURAS, 1984, p. 44-5)
18
.
Il dit e elle dit”, construções recorrentes nos textos de Duras,
despersonalizam o “eu” e os sujeita à sua dissolução: os discursos são atribuídos a
outrem, não à unidade de um narrador. Roland Barthes (1974) lembra que a terceira
pessoa é uma não-pessoa, trata-se de um grau negativo de pessoa; e Michel
Foucault (2001) refere-se ao fato de que o “falar do outro”, sobre ele, é ausentá-lo,
mortificá-lo. Nesses textos de Duras, a voz dada ao outro – “Ele diz”, “Ela diz” – seria
suporte de um discurso alheio ao sujeito narrador: na auto-representação haveria
um descentramento, uma saída ao exterior da linguagem, uma suspensão da
subjetividade da língua, para uma maior proximidade ao espaço neutro. “O saber é
essencialmente uma maneira de o ser estar aquém. [...] O sujeito é o poder do recuo
infinito, o poder de achar-se sempre atrás do que nos acontece” (LÉVINAS, 1998,
18
“Ela pergunta: você chora por quê? Você diz que cabe a ela dizer porque você chora, que ela é que
deveria sabê-lo. / Ela responde baixinho, meiga: Porque você não ama. Você responde que é isto. /
Ela pede que lhe diga claramente. Você lhe diz: Eu não amo. / Ela diz: Jamais? / Você diz: Jamais”
[Tradução de Jorge Bastos]
38
p.55). Esse distanciamento seria posto como necessário para a apreensão do todo:
daí que a linguagem necessita se exteriorizar para poder apreender-se e buscar a
sua verdade.
Quando se pronuncia o enunciado “Eu falo”, é como se fosse a única
possibilidade de sinceridade da linguagem; pois ao dizer “eu falo”, nada mais digo
além de dizer que falo. Tal postulação seria análoga à afirmação de Godard, para
quem “o filme honesto deveria mostrar a câmera filmando-se a si própria diante de
um espelho” (STAM, 1983, p.31). Esse raciocínio aponta essa construção verbal
como o suporte de um discurso em que o discurso falta. Foucault trata esse vazio da
linguagem como “possibilidade de abertura absoluta por onde a linguagem possa se
expandir infinitamente, enquanto o sujeito o ‘eu’ que fala se despedaça, se
dispersa e se espalha adesaparecer nesse espaço nu” (2001, p.220). Assim é Le
camion, de Duras, cuja ação se estabelece pelo diálogo em que se conta uma
história, assim como também é Le navire night e La maladie de la mort, ao
remontarem ao próprio processo de escrita e mise-en-scène; nos termos de Jean
Ricardou (1971), é como se a narrativa deixasse de ser a escrita de uma aventura,
para se tornar a aventura de uma escrita. Assim, as histórias apresentam-se não
como percurso de heróis, mas como o percurso de narrativas, que ao se auto-
evidenciarem, desmistificam-se.
Escrever sem “escrita”, levar a literatura ao ponto de ausência em que ela
desaparece, em que não precisamos mais temer seus segredos que o
mentiras, esse é o “grau zero da escrita”, a neutralidade que todo o escritor
busca, deliberadamente sem o saber, e que conduz alguns ao silêncio
(BLANCHOT, 2005, p.303).
Eis que o paradoxo emerge da escrita de desmistificação ao privilegiar a
apresentação em detrimento da representação, uma vez que ela se coloca como
mais “realista” que a própria estética realista, denunciando a fragilidade da sua
pretensa objetividade. “A literatura é então a preocupação com a realidade das
coisas, com sua existência desconhecida, livre e silenciosa; é a sua inocência e sua
presença proibida, o ser que se revolta diante da revelação(BLANCHOT, 1998, p.
318). As rupturas que se operam dessacralizam as convenções miméticas, ao
revelarem-se enquanto construção. Elas querem negar a representação, mas,
efetivamente, negam modelos de representação existentes, emergindo em uma
ruptura no universo através do próprio movimento do trabalho (BLANCHOT, 1997),
39
que transformaria um desejo em realidade. Trata-se do movimento dinâmico que faz
de uma idéia mais um texto, uma outra possibilidade de representação, uma nova
materialidade que pode alterar a ordem e a percepção do conceito de literatura.
Em Outside, explica Marguerite Duras: “Digo Le camion tal como ouço a
escrita ao fazer-se. Pois é possível ouvi-la, antes de a inscrevermos na página”,
(1983, p.145). Assim, através da mostra do processo, seus textos acabam adotando
uma postura auto-reflexiva que desestrutura as convenções. Esses textos não
apenas Le camion, mas também Le navire night e La maladie de la mort
remontam ao próprio processo de escrita; e, ainda, ao propor o diálogo com outras
artes e diferentes domínios de expressão e conhecimento, estendem seu
questionamento ao próprio mundo, constituído de imagens e palavras, denunciando
a sua existência enquanto um mundo de representações.
A literatura auto-reflexiva age como um espelho, e o que vê? Nos três textos
de Duras, existe uma posição de diálogo entre a mulher e o homem, existe aquele
que fala e aquele que escuta, duplos do escritor e do leitor, engajados em cumprir
uma função de repetição e equivalência, embora reitere o mesmo diferente. “Uma
repetição não religiosa, sem regresso nem nostalgia, retorno não desejado; o
desastre não seria então repetição, afirmação da singularidade ao extremo? O
desastre ou o inverificável, o impróprio” (BLANCHOT, 1980, p.14-5). Assumindo um
papel que lhe é próprio, de organizador da narrativa, o narrador carrega ao mesmo
tempo essa função de diretor, a partir do momento em que ele cessa de dirigir-se a
terceiros. Ao dirigir-se a vous”, tem-se acesso às indicações que tendiam a ser
veladas para o “grande público”. Aos espectadores (e aqui talvez coubesse o termo
leitores-espectadores) destina-se a história pronta, fechada, ilusionista. Nesse
sentido, no entanto, a escrita de Duras assume o trágico desejo de Prometeu, que
levou aos homens o conhecimento que lhes era ocultado (como que proibido). Em
vez de referir-se a um terceiro, o narrador dirige-se ao seu próprio narratário, G. D.,
J. M., e mesmo vous”, os duplos do leitor-espectador, convidados a participarem
efetivamente da mise-en-scène do texto.
No caso, as fronteiras dessa dicotomia narração/encenação são rompidas
com Le camion, bem como em Le navire night e La maladie de la mort. Embora
se proponha um filme, que se constituiria a partir da mise-en-scène, sua natureza
cênica é contestada. Afirma a própria Marguerite Duras, em entrevista: “Le camion
40
não se baseia unicamente na fala; existe alguém que lê, alguém que escuta. [...] Em
geral, um texto se estuda, se monta e se representa. Ali ele é lido. E esta é a
incerteza. A representação foi eliminada” (DURAS, 1979, p. 111). No romance cuja
estrutura assemelha-se com um roteiro, caso de Le camion, tem-se a ausência de
personagens representados por atores em cena, tal como se imagina que seja na
montagem de um espetáculo teatral ou na produção de um filme. Constata-se,
através de sua leitura e das indicações cênicas, que Le camion não é
“dramatizado”, mas lido pelos duplos da própria autora, Marguerite Duras (M.D.), e
do ator Gérard Depardieu (G.D.). O texto alterna-se em dois planos: a câmara
escura, onde o texto é lido, e a imagem do caminhão percorrendo os subúrbios de
Paris, onde uma mulher viajaria na carona de um caminhão, e que falaria sobre os
mais variados assuntos ao motorista.
G.D.: [...]
Quand elle monte dans le camion, le principal est donc atteint?
M.D.:
Oui. Du fait qu’ils se trouvent enfermés dans un même lieu, pendant un
certain temps, incarcérés, voyez, verrouillés, dans un même lieu, un certain
temps, le principal est atteint. Ils voient le même paysage. En même temps.
A partir du même espace (DURAS, 1977, p.39-40)
19
.
Ressalta-se, inicialmente, a possibilidade de que dispõe o cinema, através da
sua técnica, de permitir a reprodutibilidade infinita de uma mesma imagem (no
sentido de uma espécie de armazenagem de fragmentos do tempo). Assim, o
“filmado” reproduz-se, infinitamente, porém referindo-se a uma “cena primordial”:
aquilo que é filmado independente das suas condições de produção, dos sentidos
em jogo é captado, tolhido, posto à parte pela película da câmera. Esse domínio
tecnológico acaba por permitir que se negue o tempo e propõe a destruição da
representação. Tanto no cinema quanto na literatura, o tempo suspenso, negado,
subvertido denuncia a sua representação: Ils n’auraient pu exister qu’en raison l’un
de lautre. / L’histoire est donc arrêtée(DURAS, 1977, p.67)
20
. No tempo de uma
19
“G.D.: [...] Então, quando ela sobe no caminhão, o principal foi conseguido? / M.D.: Sim. O fato de
eles se encontrarem fechados num mesmo lugar, durante um certo tempo, encarcerados, sabe,
aferrolhados, num mesmo lugar, durante um certo tempo, o principal é conseguido. Eles vêem a
mesma paisagem. Ao mesmo tempo. A partir do mesmo espaço” [Tradução de José Sanz].
20
“Eles poderiam existir um em razão do outro / A história fica então suspensa” [Tradução de José
Sanz].
41
viagem que a leitura na câmara escura apresenta, o caminhão atravessa as
estações, e, finda a viagem, acaba a leitura. Nada no passado de M.D., ou de
G.D., da mulher ou do motorista, nem nada que indique o seu futuro: as duplicações
são representações estéreis, que se representam uma à outra eternamente e sem
possibilidade de escapar.
Também as reduplicações aparecem em La maladie de la mort: o leitor
empírico evous”; “vouse “elle”, o casal e o mar: “L’idée vous vient que la mer noire
bouge à la place d’autre chose, de vous et de cette forme sombre dans le lit
(DURAS, 1984, p.32)
21
. O texto desnuda o “leitor-protagonista” frente à câmera e
frente ao seu duplo, por excelência o feminino: vouse elle”, um face ao outro, um
duplo do outro. A nudez do casal e o sexo expõem o desapossamento dos órgãos
que nessa busca pela continuidade para além de si mesmo. A fusão dos corpos,
a troca de fluidos, essa perda dos limites entre os seres encontra seu paralelo no
mar negro, ameaçador, que se move num exterior inalcançado, “semelhante ao
vaivém das ondas que se penetram e se perdem uma na outra” (BATAILLE, 1987,
p.17). Por fim, o diálogo travado com ellenão remete a um conhecimento exterior
ao indivíduo; pelo contrário, leva o “leitor-protagonista” a uma busca pelo auto-
conhecimento. Vousnão sabe, “ellemesmo não sabe, jamais se poderá saber o
seu ponto de vista: a aventura, em La maladie de la mort, é o sujeito penetrando
em um universo obscuro a fim de descobrir-se.
Representação da representação, as reduplicações se confundem e se
perdem em abismo; não representam mais algo, mas se auto-representam. “A
reduplicação é uma repetição bloqueada. Enquanto o repetido se dispersa no tempo,
a reduplicação está fora do tempo. É uma reverberação do espaço, um jogo de
espelhos sem perspectiva, sem duração” (KRISTEVA, 1989, p.220-221). Que tempo
e que espaços são esses, reduplicados, confundidos, repetidos entre si, num
movimento até o infinito? “Le temps ne passe plus” (DURAS, 1984, p.30)
22
: não seria
o caso de um tempo absoluto, suspenso, especular, vazio, irrepresentável?
Elle dit qu’elle l’aime à la folie. Qu’elle est folle d’amour pour lui. Qu’elle
est prête à tout quitter pour lui.
21
A idéia que vem de que o mar negro se move no lugar de outra coisa, de voe daquela forma
sombria na cama” [Tradução de Jorge Bastos].
22
“O tempo não passa mais” [Tradução de Jorge Bastos].
42
Par amour pour toi, je quitterais ma famille, la maison de Neuilly.
Mais il n’est pas nécessaire pour autant qu’on se voie.
Je pourrais tout quitter pour toi sans pour autant te rejoindre. Quitter à cause
de toi, pour toi, et justement ne rejoindre rien.
Inventer cette fidélité à notre amour* (DURAS, 1986, p.31-2)
23
.
A repetição é uma destruição do presente. Em Le navire Night há uma
repetição de texto em seqüência, diferenciado pelo itálico que marca a separação da
história com a da moldura narrativa. Essa repetição é marcada, nas duas vezes, por
nota de rodapé a diferenciar o “texto dito” [Texte dit] e o texto “lido num quadro
negro” [Texte lu sur un tableau noir]. Além disso, as vozes pronominais se
modificam: primeiro, em itálico, a predominância da primeira e segunda pessoas;
ao passo que, na voz distante de quem narra a história, predomina a terceira
pessoa:
Elle dit qu’elle l’aime à la folie. Qu’elle est folle d’amour pour lui. Qu’elle est
prête à tout quitter pour lui.
Par amour pour lui, elle quitterait sa famille, la maison de Neuilly.
Mais qu’il n’est pas necéssaire pour autant qu’il se voient.
Elle pourrait tout quitter pour lui sans pour autant le rejoindre.
Quitter à cause de lui, pour lui, et justement ne rejoindre rien.
Inventer cette fidélité à leur histoire ** (DURAS, 1986, p.32)
24
.
Aqui, a repetição revela um desejo de se apropriar das diferentes
possibilidades de se contar uma história. A imagem do duplo, para Janet Paterson
(1982), leva à confrontação de lacunas, de buracos e de incompletudes, ao mesmo
tempo em que leva à descoberta de novas direções e de relações insuspeitas. O
princípio de auto-representação vem a se manifestar ao nível do enunciado, seja
pela presença de um narrador-escritor, seja outra figura autoral, ou mesmo através
da interpelação de um leitor fictício. Poderia manifestar-se ao nível da enunciação,
considerando-se, por exemplo, a mise-en-abyme, a reduplicação, as metáforas, as
figurações, a intertextualidade e a paródia. O que é posto em evidência, na atividade
23
“— Diz que o ama até a loucura. Que está louca de amor por ele. Que está pronta a deixar tudo por
ele. / Por amor de ti, deixaria a minha família, a casa de Neuilly. / Mas nem por isso é necessário que
nos vejamos. / Eu poderia deixar tudo por ti sem que isso fosse ter contigo. / Deixar tudo por tua
causa, por ti, e justamente não ir ter com nada. / Inventar essa fidelidade do nosso amor[Tradução
de Miguel Serras Pereira. Fragmento do original em itálico].
24
“— Ela diz que o ama até a loucura. Que está louca de amor por ele. Que está pronta a deixar tudo
por ele. / Por amor por ele, deixaria a família, a casa de Neuilly. / Mas que isso não torna necessário
que se vejam. / Poderia deixar tudo por ele sem ter de por isso ir ter com ele. / Deixar tudo por causa
dele, por ele, e justamente o ir ter com nada. / Inventar essa fidelidade à história de ambos”
[Tradução de Miguel Serras Pereira]
43
da auto-representação, é a reflexão sobre a criação literária. Desdobrando-se em
elemento ficcional, o autor faz do seu texto literário um espaço para reflexão sobre o
seu papel de escritor, a sua escrita, a sua idéia de literatura.
A não-representação na escrita de Marguerite Duras, dessa forma, viria a ser
uma estratégia que busca uma poética que aproxime o autor de seu interlocutor.
Por este viés o sentido de representação explorado por Duras iria ao encontro do
que propôs Platão. Se for alargado o conceito platônico de mimese, ou seja,
imitação da realidade em terceiro grau pelo poeta, a representação por atores e
diretores, tal como aponta Duras, apenas aumenta a distância entre escritor e (a
realidade empírica do) público.
De fato, ao longo do texto, com esse dispositivo de criação de imagens
apenas com a narração no tempo condicional, Le camion propõe-se a bloquear
“aquilo que é tomado como a maior virtude do cinema: a sua força de representação,
seu poder propriamente imagético e libera-se o potencial do texto” (GUIMARÃES,
1997, p.72). Na medida em que se privilegia o potencial das histórias, a auto-
representação revela a sua impotência de apreensão de qualquer possibilidade de
totalidade: revela a sua condenação à incompletude e à fragmentação. Assim, a
escrita de Marguerite Duras, através das relações disjuntas que proliferam imagens
através da palavra, dos vazios, silêncios e ausência de imagens, acaba por conferir
“uma nova potência ao cinema e à literatura” (ibidem). Nessa perspectiva, destaca-
se a busca pela subversão da ilusão de realidade, provocada pela representação.
Em La maladie de la mort, a idéia de representação, referente ao caráter
imagético das narrativas, também é subvertido. As indicações descritivas não
permitem o desenvolvimento desse cinema mental; ao contrário, apontam para um
desastre da escritura: Ensuite c’est presque l’aube. Ensuite il fait dans la chambre
une sombre clarté de couleur indécise (DURAS, 1984, p.28-29)
25
. O presque
[“quase”] reitera a idéia de aube [“aurora”], que por si é um “quase”, um estado
de indeterminação entre o que não é mais noite, mas ainda o é dia. A expressão
sombre clarté [“sombria claridade”] encerra em si um oxímoro, cuja complementação
couleur indécise [“cor indecisa”] colabora para a disjunção da imagem, impossibilita
o êxito de uma leitura “objetiva”. Cette blancheur fait sa forme plus sombre, plus
25
Depois é quase aurora. Depois faz-se no quarto uma sombria claridade de cor indecisa. Depois
você acende as lâmpadas para vê-la” [Tradução de Jorge Bastos].
44
évidente que ne le serait une évidence animale brusquement délaissé par la vie, que
ne le serait celle de la mort” (DURAS, 1984, p.31)
26
. Os contrastes blancheur/sombre
[“brancura/sombria”], vie/mort [“vida/morte”], apontam para essa percepção às vezes
contrastiva, às vezes contraditória. As indicações temporais/espaciais são
insuficientes; não correspondem ao ideal de objetividade e aos detalhes descritivos
do romance tradicional do século XIX. O leitor não é situado; ao contrário, é
desnorteado: Vous regardez cette forme, vous en découvrez en même temps la
puissance infernale, l’abominable fragilité, la faiblesse, la force invincible de la
faiblesse sans égale(DURAS, 1984, p.31)
27
. Contrastes que se fundem, en même
temps [“ao mesmo tempo”], cuja fragmentação da imagem aponta para a
impossibilidade de representar: force invincible/faiblesse sans égale [“força
invencível/fraqueza sem igual”].
Como afirma Bataille, “o mundo do trabalho e da razão é a base da vida
humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda, ela
nunca é sem limites” (BATAILLE, 1987, p.37). Seria justamente no privilégio a esses
intervalos dos interditos que reconheceria uma postura contra-hegemônica e escrita
de denúncia, em que a própria linguagem se propõe a tirar máscaras e desvelar
seus mecanismos? Assim sendo, a auto-representação apresentar-se-ia como
possibilidade de saída ao exterior da linguagem para denúncia da falsidade que a
linguagem carrega consigo. Essas narrativas abdicariam de uma tentativa de ilusão
referencial - dum efeito de real barthesiano – para converterem-se em um ato de fala
puro que não representa nada (GUIMARÃES, 1997), visto que a realidade
representada passa a valer por si mesma, alheia à coerência do mundo.
O deserto circunda toda a possibilidade de linguagem, afirma Foucault (2001,
p.220). Da mesma forma, o caminhão roda por cenários desérticos e terras estéreis,
o navio Night atravessa o território noturno e insone de Paris ou a cidade de Atenas,
vazia durante a hora da sesta, cujo silêncio em pleno dia é como o da noite, tal como
a praia exterior ao quarto dos dois amantes. A auto-representação seria a
impossibilidade da dissimulação, que ocultaria o verdadeiro sentido, a essência da
metáfora. Auto-representar-se seria como evidenciar o vazio dessa presença; seria
26
“Essa brancura torna sua forma mais sombria, mais evidente do que seria uma forma animal
bruscamente deixada pela vida, do que seria a da morte” [Tradução de Jorge Bastos].
27
“Você olha essa forma, você descobre ao mesmo tempo o seu poderio infernal, a abominável
fragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual” [Tradução de Jorge Bastos].
45
revelar que, por trás do simulacro, não nada, o vazio. A narrativa dentro da
narrativa a mise-en-abyme sugere a desestabilização do mundo; seria
justamente como estar no abismo, onde não certezas nem orientação. As vozes
que narram os textos de Marguerite Duras o como vozes que ecoam no deserto,
embora não deixem de ecoar. “O interdito intimida, mas a fascinação introduz a
transgressão” (BATAILLE, 1987, p.64). Trata-se de uma promessa de liberdade que
a transgressão almeja; mas uma promessa que prevê o seu fracasso, pois “a
transgressão não é a negação do interdito, mas o ultrapassa e o completa” (idem,
p.59). Em outras palavras, a transgressão de categorias artísticas não nega o
posto, mas o suplementa, enriquece-o, amplia seus limites.
“A literatura aprende que não pode ultrapassar-se em direção ao seu próprio
fim: ela se esquiva e o se trai”, diz Blanchot (1997, p.316). Isso decorria da
impotência da literatura em atingir uma visão objetiva: ela “desejaria tornar-se
revelação do que a revelação destrói. Esforço trágico. Ela diz: o represento mais,
sou; não significo, apresento” (ibidem). A negação da representação não deixa de
ser uma representação; a narrativa que subverte categorias narrativas o deixa de
ser uma narrativa porque, ainda assim, ela mantém certos traços narrativos. As
mudanças que se colocam são as de uma revolução no interior do campo: propõem-
se mudanças nas regras do jogo, mas não se deseja abandonar o jogo. A literatura
permitiria o seu esgotamento, para renovar-se. “Assim, ao centro da literatura, a
escrita é a própria contestação” (RICARDOU, 1971, p.32).
46
2.2 Escrita em desastre
Voix off M.D. :
Elle aurait parlé une dernière fois.
Elle aurait dit s’être trompé durant toute sa vie :
avoir pleuré quand il fallait rire...
rire quand il fallait pleurer...
pleurer quand il fallait pleurer...
Elle dit encore :
Que le monde aille à sa perte.
Qu’il aille à sa perte.
Musique jusqu’à la fin.
(Marguerite Duras, 1977)
Esse capítulo tem por objetivo reconhecer na escrita de Marguerite Duras a
sua aproximação com o desastre: uma escrita de ruínas das formas repetidas e
milenares de narrativa, em que as certezas esvaem-se, os limites apagam-se, e a
apreensão da totalidade torna-se impossível. Diante da impossibilidade de exprimir
uma visão absoluta do mundo a ser representado, a escrita de Duras dialoga com
outras linguagens em uma tentativa de ultrapassar a condição de descontinuidade,
própria da existência.
O que narrar, o que escrever quando a experiência de mundo falta? As vozes
que provém da escrita de Marguerite Duras encaram a impossibilidade de
apreensão do inesquecível que aflora no momento derradeiro, ao passo que, em
alguns casos, parece ser a própria experiência que falta às personagens. “O
desastre inexperimentado, isso que se subtrai a toda a possibilidade de experiência
limite da escrita. Precisa-se repetir: o desastre des-creve” (BLANCHOT, 1980,
p.17). É nesse instante-limite que o escritor deixaria de recorrer à sua experiência
para interrogar a sua própria pena, indagar a própria linguagem.
As vozes narrativas do universo de M. Duras, privadas de corporeidade,
estariam da mesma forma privadas de experiência própria. "L’histoire est arrivée?
/ Quelquun dit l’avoir vécue en réalité, oui" (DURAS, 1986, p.25)
28
. Mas as
palavras estão distanciadas da realidade, o que invalida a autoridade que
28
“— A história aconteceu? / alguém que diz tê-la vivido na realidade, sim [Tradução de
Miguel Serras Pereira].
47
veracidade à narrativa. Em Le navire night, os primeiros diálogos travados pelos
amantes, através do telefone, implicam uma auto-descrição para o outro: projeta-se,
portanto, uma imagem de si, mas alheia a qualquer compromisso com a “verdade”.
— Il doute brutalement de l’un des termes donnés par F., la maladie. Il lui dit que là,
c’est trop. Il parle de strategème. Il lui dit qu’elle ment. / Que là, elle ment" (DURAS,
1986, p.40-1)
29
. Apenas através do discurso, alheio à sua corporeidade pelo fio
telefônico, não se poderá desmentir as descrições. As mediações que se colocam
entre o sujeito e a realidade por trás das palavras tornam-se abismais e
intransponíveis.
Em Le camion, apenas as referências a um exterior da diegese podem
sugerir uma corporeidade à leitora e ao seu interlocutor, visto que às personagens
são atribuídos os nomes de Marguerite Duras, a própria autora, e Gérard Depardieu.
São nomes que carregam consigo a sua significação, e que, portanto, poderiam
remeter à leitura biográfica; no entanto, no texto, as existências evocadas pelos seus
nomes apenas lêem, em uma sala fechada ao exterior, o texto que seria o roteiro do
que poderia vir a ser um filme. E, mesmo à caroneira da história lida, duplo da
escritora que o texto, é impossível atribuí-la uma história anterior à diegese ou
uma imagem: elle est entrée dans un processus de disparition d’identité. Non
seulement elle ne sait pas qui elle est mais elle cherche dans tous les sens qui elle
pourrait être" (DURAS, 1977, p.80)
30
. Dessa forma, narrar é abrir mão da própria
subjetividade, e se auto-representar é evidenciar que tais personagens o apenas
seres de papel.
no início de La maladie de la mort, evoca-se um vous”, o que exige a
participação do leitor, inserindo-o no interior da narrativa. É o leitor evocado que
deve preencher esse vazio do dêitico pronominal, significante vazio de significado.
Logicamente, vouscorresponde, no interior da diegese, a uma personagem; mas,
justamente por evocar a segunda pessoa pronominal, o “narrador” convida o leitor
empírico a participar da narrativa, a representar o seu papel, a vestir uma máscara.
Embora a máscara a ser vestida seja a sua própria. o se trata de representar,
29
“— Duvida brutalmente de um dos termos dados por F., a doença. Diz-lhe que isso é demais. Fala
de estratagema. Diz-lhe que ela esa mentir. / Que nisso, ela está a mentir” [Tradução de Miguel
Serras Pereira].
30
“ela entrou num processo de desaparecimento de identidade. Não apenas não sabe quem é, mas
procura em todos os sentidos quem poderia ser” (Quatrième project) [Tradução de José Sanz].
48
como no teatro: “o ator cinematográfico típico representa a si mesmo”, segundo
Walter Benjamin (1994, p.182). O leitor imerge na narrativa, na filmagem, mas não
deixa de ser ele mesmo: é um ator a representar-se, a se auto-representar.
Jamais vous ne sauriez, rien ni vous ni personne, de ce qu’elle pense de
vous, de cette histoire-ci. Quel que soit le nombre de siècles qui recouvrait
l’oubli de vos existences, personne ne le saurait. Elle, elle ne sait pas le
savoir. (DURAS, 1984, p.19-20)
31
.
O texto nega ao leitor o domínio sobre o texto, sobre si, sobre seu duplo,
sobre aquela voz. Dessa forma, a narrativa de Marguerite Duras rompe com o não-
comprometimento da ficção “tradicional”, no qual o leitor se coloca em um ponto de
vista privilegiado, externo ao universo diegético. Em La maladie de la mort, é
necessário imergir nesse campo de possibilidades e atuar. O ponto de vista,
fragmentado, não tem domínio sobre a totalidade da história: “vous” é apenas guiado
pela voz responsável por essa participação do leitor enquanto ator. Essa voz vinda
de um exterior é atribuída a um “narrador-diretor” que indica as ações (através do
imperativo), porém não interage comvous” e “elle”. É uma presença ausente,
enquanto ação no interior da diegese; ou seja, essa voz apenas dirige a cena e,
mesmo quando se revela através de uma forma pronominal, trata-se de uma não-
presença: Peut-être prenez vous à elle un plasir jusque-là inconnu de vous, je ne
sais pas (DURAS, 1984, p.15)
32
. A apreensão da totalidade não é permitida ao
“leitor-protagonista”, uma vez que tampouco o “narrador-diretor” tem esse domínio.
Além de dirigir a cena, que faz essa voz? “Vousnão estaria diante apenas de
uma câmera objetiva desumanizada, incapaz de ter um domínio análogo ao do
narrador heterodiegético do romance tradicional? A escrita do desastre não traz
consigo qualquer experiência de apropriação de um saber; trata-se da própria
subtração de possibilidade da escrita, onde ela encontra o seu próprio limite
(BLANCHOT, 1980, p.13). Dessa forma, as personagens do universo ficcional de M.
Duras são levadas à despersonalização e à dissolução. Nesses três textos de
Marguerite Duras, o que se pode verificar é um processo de dissolução da figura do
31
Jamais você saberá, nada, nem você nem ninguém, do que ela pensa de você, desta história.
Qualquer que seja o número de séculos que encubra o esquecimento das suas existências, ninguém
o saberá. Ela, ela não sabe sabê-lo” [Tradução de Jorge Bastos].
32
“Talvez você tire dela um prazer até então desconhecido pra você, eu não sei” [Tradução de Jorge
Bastos].
49
narrador na sua possibilidade perdida de onisciência da narrativa, na sua visão da
totalidade da existência. Parce que vous ne savez rien d’elle vous diriez quelle ne
sait rien de vous. Vous vous en tiendriez (DURAS, 1984, p.20)
33
. Essa
incapacidade de conhecer o outro, e sendo o outro um duplo de si, poderia remeter
a um auto-questionamento: seria possível ao sujeito auto-conhecer-se?
Em Le camion, apesar da referência inicial aos nomes de Marguerite Duras e
Gérard Depardieu, ao longo do texto predominam as indicações apenas com as
iniciais: M.D., G.D. Em Le navire night, as referências às personagens principais
são dadas apenas pelas inicias J.M e F. Por fim, em La maladie de la mort, as
personagens são referidas apenas pelo pronome. Essa dissolução poderia vir a se
exprimir, inclusive, no próprio desmembramento da voz narrativa em outras vozes,
que podem, através do diálogo com o outro, buscar a completude que lhes falta na
sua unidade. “— Un cloisonnement est franchi(DURAS, 1986, p.47)
34
: ou antes, o
que as narrativas de Marguerite Duras apresentam são transgressões que desafiam
a ordem estabelecida e sugerem um efeito de arrancar o homem da sua vida
cotidiana. Em La maladie de la mort, essa busca pelo rompimento da solidão
constitutiva da existência, pela continuidade do ser, se de maneira obstinada
através da relação sexual, que revela a tênue relação entre o ato sexual e a morte.
Essa possibilidade de continuidade do ser, sua libertação através da dissolução com
o amante, é constitutiva da categoria de erotismo abordada por Georges Bataille
(1987): o erotismo abre-se para a morte que é, por sua vez, a dissolução das formas
constituídas, dos limites, dos interditos sociais, do indivíduo.
O erotismo [...] é aos meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se
põe conscientemente em questão. Em certo sentido, o ser se perde
objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o objeto
que se perde. Se for preciso, posso dizer que, no erotismo, EU me perco.
Não é, sem dúvida, uma situação privilegiada. Mas a perda voluntária
implicada no erotismo é flagrante (BATAILLE, 1987, p.29).
A escrita durasiana, carregada de elementos característicos do erotismo,
exprime uma certa abdicação à unidade própria do sujeito que, ao se
despersonalizar voluntariamente, busca na comunhão com o outro superar a
33
Porque você o sabe nada dela você diria que ela não sabe nada de você. Você permaneceria
aí” [Tradução de Jorge Bastos].
34
“— Uma vedação foi atravessada” [Tradução de Miguel Serras Pereira].
50
condição da solidão inerente à existência. Em Le navire night, a própria relação
entre J.M. e F., através das madrugadas, exprime essa tentativa de “consolo de
solidão”, termo que Walter Benjamin (1995, p.80) utiliza para referir-se ao telefone.
Ou seja, essas personagens do universo ficcional de Marguerite Duras buscam
estratégias de fusão e dissolução do outro em busca de uma completude que lhes é
impossível. No caso da relação sexual, expressa entre os amantes de La maladie
de la mort, propicia-se uma tal fusão entre os seres, que, por instantes se pode dar
à existência uma sensação de eternidade, ao mesmo tempo que a efemeridade
dessa sensação mostra quão mortal é a condição humana (WEI, 2002). Dessa
aproximação entre a relação sexual e a morte, o que as torna mais próximas é a
violência que ambas carregam consigo: uma violência que abala os interditos, as
condições sociais, as formas previamente constituídas.
A fusão dos descontínuos, própria do erotismo, atravessa a escritura de
Marguerite Duras. Os próprios gêneros literários fundem-se nessa escrita,
interrompem suas limitações e abrem-se para a possibilidade de continuidade; a
poesia, o romance, o teatro, o cinema, enfim, deixam de coexistir nesses textos de
Duras para constituírem-se enquanto narrativas híbridas. “O cinema vem suprir esse
exagero silencioso ou precioso da palavra, sua fraqueza esticada em corda bamba
com o sofrimento”, assinala Julia Kristeva (1989, p.205). São nos pontos de contato
entre os diferentes gêneros e mídias que se presume a impossibilidade de total
expressão através de um único viés: aparecem, não obstante, gêneros híbridos, na
busca de uma completude possível para a narração da história.
Les dates se brouillent.
Le journal n’est plus tenu aussi régulièrement.
La chronologie n’est plus assurée (DURAS, 1986, p.42)
35
.
As personagens, longe de sobreporem-se a uma condição de enevoamento,
são envoltas por essa bruma: o desastre, desse modo, se manifesta como sendo o
contrário do absoluto, o que desorienta essa possibilidade de apreensão de uma
totalidade; o desastre priva o refúgio do ser que é o pensamento de morte
(BLANCHOT, 1980, p.10). Estar no desastre é estar após o perigo, mas continuar
sobre constante ameaça: as histórias de amor, a transfusão, as penetrações, as
35
“— As datas confundem-se. / O diário deixa de ser mantido com tanta regularidade. / A cronologia
deixa de ser segura.” [Tradução de Miguel Serras Pereira. Fragmento do original em itálico].
51
mise-en-abyme, a mistura de gêneros. Trata-se de uma ameaça silenciosa,
imemorial, em que a escuridão falta sem que a luz ilumine: pendant un certain
moment, la chose est sans ombre aucune (DURAS, 1986, p.52)
36
. Não sendo a
escuridão, resta a iminência do desastre, em que não há mais futuro (nem passado),
mas a contínua repetição estéril, pois resta apenas a suspensão do tempo em seu
contínuo retorno à própria linguagem.
O ato de escrever carrega em si um perigo, pois, de acordo com Jean-Claude
Carrière, o escrito, em oposição à voz, é tomado pelo documental, pela verdade,
como se fosse da natureza da escrita essa sinceridade. A esse respeito, é como se
a escrita carregasse consigo “um tipo de prestígio venerável que é, com freqüência,
sua única justificativa” (CARRIÈRE, 2006, p.138). Porém, esse refúgio é ameaçado
pela escrita durasiana: Ces propos nauraient jamais releve d’une connaissance
precise du problème abordé. Elle aurait des erreurs parfois enormes (DURAS,
1977, p.22)
37
. O texto de Le camion, por exemplo, diferencia-se do roteiro
cinematográfico “tradicional” principalmente pela perda de sua funcionalidade
38
. Se o
roteiro é um gênero dependente/submisso ao cinema, utilizado como ferramenta
pela equipe de produção, o texto de Duras emancipa-se: sua leitura desvencilha-se
do filme e assume sua própria carga poética. A partir das didascálias que o
indicações acerca de cenário, sonoplastia, iluminação e posição de câmera, o que
se sugere ao leitor, convertido em leitor-espectador, é justamente a projeção de
imagens num cinema imaginário.
Il lui demande plusieurs fois de lui donner le numéro de téléphone de sa
fille. Elle ne refuse pas.
Elle donne chaque fois un numéro de léphone. Dit chaque fois que
celui-ci est le vrai, le bon. Il téléphone.
Il tombe sur des cinémas (DURAS, 1986, p.55)
39
.
36
durante um certo momento, a coisa fica sem nenhuma sombra” [Tradução de Miguel Serras
Pereira].
37
“Essas conversas jamais se destacam por um conhecimento exato do problema abordado. Ela
cometeria erros, às vezes enormes” [Tradução de José Sanz].
38
Le camion foi publicado após o lançamento do filme de mesmo nome, no mesmo ano (1977),
tendo sido produzidos pela própria autora. Na edição do livro acompanham “quatro projetos” do filme
e uma entrevista à Michelle Porte sobre o filme.
39
Ele pede-lhe várias vezes que lhe dê o número de telefone da filha. Ela não recusa. / Dá-lhe uma e
outra vez um número de telefone. Diz uma e outra vez que esse é o verdadeiro, o bom. Ele telefona. /
Respondem-lhe de salas de cinema[Tradução de Miguel Serras Pereira. Fragmento do original em
itálico. Fragmento do original em itálico].
52
Em Le navire night, trava-se o diálogo dos amantes pelo telefone: C’est un
orgasme noir. Sans toucher réciproque. Ni visage. Les yeux fermés(1986, p. 27)
40
.
A paisagem noturna de Paris, insone, é o mar de tinta negra por onde avança cego o
Night, o navio Night, o filme sem imagens. Os olhos fechados são recorrentes
nesses textos como fonte de prazer, de renovação, de fantasia. É pelo fechar de
olhos que se assume um processo de abandono do mundo empírico e se deixa levar
pela imaginação, para além do esquecimento e da rotina, e o indivíduo imerge em si
mesmo, em seus pensamentos, seus medos e seus desejos. um paroxismo em
La maladie de la mort, posto que o texto conduz à atuação de uma personagem
como se fosse num palco justamente vous”: como aponta Carrière (2006), a
imaginação é um palco em que o ator em seu centro é o próprio sujeito, exercendo,
ao mesmo tempo, o papel de protagonista e público. No entanto vous”, aquele que
está tomado pela doença da morte, olha aquela que está nua no quarto e descreve-
a, passa as noites a observá-la:
Vous lui dites: Vous devriez être très belle.
Elle dit: Je suis là, regardez, je suis devant vous.
Vous dites : Je ne vois rien.
Elle dit: Essayez de voir, c’est compris dans le prix que vouz avez payé.
Vous prenez le corps, vous regardez ses différents espaces, vous le
retournez encore, vous le regardez, vous le regardez encore.
Vous abandonnez. Vous cessez de toucher le corps. (DURAS, 1984, p.21-
2)
41
.
Vousolha, mas não a vê; busca de todas as maneiras apreendê-la através
dos sentidos, da realidade e da materialidade do corpo dela La machine de chair
est prodigieusement exacte(DURAS, 1984, p.38)
42
embora se mostre, em função
desse excesso de objetividade, ineficaz. Vous”, na sua fixação, parece não
compreender que apenas a realidade é insuficiente, e o imaginário precisa
complementar a existência. É nesse sentido que se concebe a dissociação da
palavra, o narrado, em relação à imagem do filme: a imagem deixa de se perceber
40
“É um orgasmo negro. Sem tacto recíproco. Nem rosto. Com os olhos fechados” [Tradução de
Miguel Serras Pereira].
41
“Você lhe diz: Você deve ser belíssima. / Ela diz: Eu estou aqui, olhe, estou na sua frente. / Você
diz: Não vejo nada. / Ela diz: Tente ver, está incluído no preço que você pagou. / Você pega o corpo,
você olha os seus diferentes espaços, você o revira, revira-o ainda, você o olha, olha-o ainda. / Você
abandona. / Você abandona. Você para de tocar o corpo” [Tradução Jorge Bastos].
42
“A máquina de carne é prodigiosamente exata” [Tradução Jorge Bastos].
53
objetiva em relação ao mundo ela fala menos da coisa e mais de nós, segundo
Blanchot (1987) para se converter na visão singular de cada indivíduo. Le cinéma
n’arrive plus à repondre à la soif grandissante de connaissance de son spectateur.
Ce que le cinéma ne sait pas c’est que ce qui se passe au-dehors du cinéma rejoint
ce qui passe au-dedans du cinéma" (DURAS, 1977, p. 76)
43
. O desastre do filme é
justamente a realização das hipóteses do filme; eis a impossibilidade de realizá-lo
enquanto filme, posto que a imagem abdicaria, nesses textos de Duras, de atores
representando, aparelhagem, cenário, etc. O desastre do filme é a sua o-
encenação, o seu limite ao texto que, ao mesmo tempo, abre-se para o ilimitado. É
pelo texto que o filme se torna virtualidade, posto que as possíveis imagens a serem
projetadas não são mais dependentes de uma aparelhagem técnica, mas se
realizam na mente de cada leitor.
G.D.:
Ç’aurait été un film sur... l’amour ?
M.D.:
Oui. Sur tout.
Ç’aurait un film sur tout.
Sur tout à la fois:
Sur l’amour. (DURAS, 1977, p.41)
44
As narrativas de M. Duras suscitam o desejo de abarcar o todo: e o todo é
possível onde não nada. Nesse jogo de supressão de existência, resta o texto,
uma presença que resiste na ausência. Com efeito, a representação, longe de se
apropriar do designado, assume sua posição na sua ausência. Ou antes, seguindo
ainda o pensamento de Blanchot, a representação exige a morte do designado, pois
o evocado jamais será o próprio ser, mas mero simulacro, destituído desde o
princípio da coisa em si, tornando-se independente, embora vazio. “O ideal da
literatura pôde ser este: nada dizer, falar para nada dizer. [...] Se falamos das
coisas para dizer por que não são nada, pois bem, nada a dizer eis a única
esperança de dizer tudo delas” (BLANCHOT, 1997, p.312-3). E a escrita de Duras,
ao tentar superar as representações, evidencia justamente o vazio dessa presença;
e, em havendo apenas o vazio, esse espaço permite-se abarcar o todo.
43
“O cinema jamais chega a corresponder à sede crescente do conhecimento do seu espectador. O
que o cinema não sabe é que o que acontece fora do cinema junta-se ao que se passa no interior do
cinema” (Deuxième project) [Tradução de José Sanz].
44
G.D.: Seria um filme sobre... o amor? / M.D.: Sim, sobre tudo. / Seria um filme sobre tudo. / Sobre
tudo ao mesmo tempo: / Sobre o amor” [Tradução de José Sanz.].
54
Se do vazio, da escuridão que abarca ao mesmo tempo o todo, remete-se
novamente à constituição do signo lingüístico o significante proposto, o significado
interpretado –, a proposta de que vale a pena participar, criar a sua própria
imagem a partir da sugestão suscitada pela palavra. Através do que César
Guimarães (1998) chama de filme esburacado, têm-se imagens compreendidas
dentro de processos subjetivos e históricos, necessitando serem continuamente re-
significadas pelos sujeitos. Essa contínua invocação do leitor possibilitaria um
encontro de si mesmo com a sua própria consciência: “um encontro que tende
menos a uma falsa impressão do real que a uma impressão real da tensão existente
entre o mundo material e o mundo imaginário das obras de arte” (SPAVIN, 2006).
Na falta da experiência do narrador para se transmitir as histórias, é como se
ele buscasse essa experiência no leitor: ao preencher os vazios do texto, ao vestir
as scaras e embarcar num texto que não aponta o seu itinerário senão o
próprio texto –, o leitor é arremessado à deriva e exposto aos seus próprios terrores
e abismos. O desastre da escrita se manifesta, em Duras, entre outras maneiras, ao
privilegiar o leitor: segundo Janet Paterson (1982), é com o foco no local da
interpretação que as fronteiras esvaem-se, a atividade de leitura é abolida, e leitor e
narratário chegariam a se confundir. A atividade solitária de leitura assume uma
dinâmica mais ativa no texto, de participação do leitor empírico no próprio jogo
ficcional. “A errância, o fato de estarmos a caminho sem poder jamais nos deter,
transformam o finito em infinito" (BLANCHOT, 2005, p.137). Esse não-estar no
mundo que é a errância, próprio do desastre, abre vazios, vacilos, fissuras ao longo
do texto; e, como o protagonismo do jogo ficcional é lançado no local da
interpretação, se reforça o caráter plural de inúmeras possibilidades de leitura. A
busca por negar as representações teria em vista a potencialidade que o vazio
oferece, por abarcar o todo: a ilimitada possibilidade do vazio.
Le soir de son départ, dans un bar, vouz racontez l’histoire. D’abord vous la
racontez comme s’il était possible de le faire, et puis vous abandonnez.
Ensuite vous la racontez en riant comme s’il était impossible qu’elle ait eu
lieu ou comme s’il était possible que vous l’ayez inventée (DURAS, 1984,
p.54-5)
45
.
45
Na noite da partida, num bar você conta a história. Primeiro você conta como se fosse possível
fazê-lo, e depois você abandona em seguida você conta rindo como se fosse impossível que ela
tivesse acontecido ou como se fosse possível que você a tivesse inventado [Tradução de Jorge
Bastos].
55
O desastre da escrita situa-se pela iminência dos limites da representação;
vê-se que, ante a impossibilidade de representação da história “vivida”, em La
maladie de la mort, vous (re)nega-a. O silêncio que se estabelece pela voz da
personagem ao final do texto revela que a história vivida o lhe propiciou uma
experiência, um aprendizado, que lhe desse a autoridade de narrar sua própria
história. “O desconhecido da linguagem permanece desconhecido” (BLANCHOT,
1980, p.66), e restam ao final a passividade, o vazio, o esquecimento e o
espedaçamento da unidade do sujeito: como em Le navire night, l’explication est
perdue (DURAS, 1986, p.60)
46
; e em Le camion, "il y aurait eu plusieurs
explications ou Rien. Le désœuvrement (DURAS, 1977, p.39)
47
. Trata-se do
desastre da escrita, tendo-se em vista que a recuperação torna-se irrecuperável; a
narrativa torna-se impossível; a representação torna-se irrepresentável.
Nesses textos, o tempo limita-se às próprias narrativas: ao se separarem os
casais, um face ao outro, um duplo do outro por excelência o feminino –, suas
existências esfacelam-se e apagam-se por não terem um futuro para existirem. A
mulher do caminhão pode existir pela sua voz, que narra para o morrer; bem
como o motorista, análogo ao leitor, cujo porvir será seguir o seu caminho, percorrer
outras histórias. A história de amor entre F. e J.M. é ameaçada durante todo o tempo
pela iminência da morte dela; sua relação cega busca um amor além do convívio
empírico e a comunhão dos corpos. “— C’est qu’il refuse l’histoire mortelle pour
rester dans celle du gouffre général(DURAS, 1986, p.67)
48
. F. comenta em poder
fugir, abandonar tudo por amor a ele, porém não procurá-lo, assim como ele próprio
recusa a se virar para vê-la, resistir como não resistiu Orfeu. Dessa forma, ao ser
apagada da história, F., de quem apenas se imagina a sua morte, a própria história
de amor esvai-se, consumindo de igual modo J.M. Assim sendo, não razão para
a existência de um porvir.
A escrita de Marguerite Duras busca apagar a representação, negá-la, porém
restam-lhe as ruínas da representação. “A literatura, fazendo-se impotente para
46
“A explicação perdeu-se” [Tradução de Miguel Serras Pereira].
47
“As explicações seriam muitas [...] Nada. A ociosidade” [Tradução de José Sanz].
48
É então que recusa a história mortal para permanecer na do abismo geral [Tradução de Miguel
Serras Pereira].
56
revelar, desejaria tornar-se revelação do que a revelação destrói. Esforço trágico.
Ela diz: Não represento mais, sou; não significo, apresento” (BLANCHOT, 1997,
p.316). A literatura que descarta a distância entre o representante e o representado
não se quer enquanto mediação entre “alguma coisa” a ser contada e “alguém”. A
representação em essência é vazia, pois seu significado, sua presença, está em um
inapreensível. O desastre de certo tipo de escrita, denunciado pelo universo
durasiano, seria a explicitação de que a presença foi perdida, e cuja escrita é
apenas ausência. Ausência da mulher do caminhão, de F. e de elle”, que
condiciona a ausência das outras personagens. Na escrita de Marguerite Duras, a
impossibilidade das vozes de narrar estaria, possivelmente, na própria
impossibilidade de fazerem-se distantes do que poderia fazer parte das suas
experiências. Mas a própria natureza denunciada das personagens e de seu
universo impediria esse distanciamento.
57
3. Promessas de liberdade
3.1 Escrita subversiva
Vous lui demandez : En quoi La maladie de la
mort est-elle mortelle ? Elle répond : En ceci que
celui qui en est atteint ne sait pas qu’il est porteur
d’elle, de la mort. Et en ceci aussi qu’il serait mort
sans vie au préalable à laquelle mourir, sans
connaissance aucune de mourir à aucune vie.
(Marguerite Duras, La maladie de la mort, 1984)
Procura-se, a partir dessa reflexão, reconhecer a escrita de Marguerite Duras
enquanto uma escrita de transgressão, enquanto resistência a valores hegemônicos
no seio da sociedade burguesa. Sua escrita de transgressão iria em direção à
negação de modelos tradicionais de representação, a fim de denunciar a falsidade
que a linguagem carrega consigo. Assim, a escrita de Duras se auto-representa,
evidencia seu processo no sentido de desmistificar a arte, buscando sinceridade
para com o público. No entanto, que sentidos em uma estética que se propõe a
negar a representação?
O conceito de literatura, daquilo que podemos entender hoje como tal,
segundo Williams (1980), teria surgido no século XVIII e passado por um processo
de seletividade e autodeterminação. De um conceito mais abrangente de leitura de
textos impressos, o conceito de literatura cada vez mais foi adotando elementos
valorativos gosto, sensibilidade, saber decorrentes de determinadas posições
privilegiadas no processo de formação do campo literário. Assim, tem-se a
necessidade de conceber a literatura não à luz de valores eternos e universais, mas
como produto histórico de uma sociedade e ligada às relações de classes sociais.
Ou seja, a literatura foi definida enquanto instituição concomitante à ascensão da
sociedade burguesa:
58
A era burguesa e industrial obtém então as condições de aparecimento de
um novo sistema da literatura: divisão do trabalho, produção massiva de
bens, desenvolvimento do ensino, acesso de um público novo e anônimo ao
consumo cultural. A literatura torna-se o feito de grupos de literatos
independentes e especializados que se dão a eles mesmos seu próprio
código, suas regras de trabalho e seu funcionamento (DUBOIS, 2005, p.42-
3).
As obras literárias, de qualquer forma, não são inocentes, não passam
incólumes às ideologias em disputa na sociedade: as representações, constituídas a
partir de linguagens, são vinculadas a valores não apenas estéticos, mas também
extra-estéticos. Dessa forma, conforme Jan Mukarovsky (1977), os julgamentos de
valor, positivos ou negativos, embora possam se basear em elementos estéticos,
teriam sempre uma referência externa conforme as diferentes maneiras de encarar a
realidade. Assim sendo, “tudo na nossa vida cotidiana é tributário da representação
que a burguesia criou para ela e para nós, das relações entre ela e o mundo”, afirma
Roland Barthes (1989, p.161). Apesar disso, a sociedade burguesa engendra as
suas contradições em diferentes posições ideológicas, cada qual a produzir a sua
própria maneira de representar o mundo.
A burguesia, em sua ascensão, logrou êxito em desmistificar as relações
feudais, patriarcais e idílicas: “no lugar da exploração encoberta por ilusões
religiosas e políticas ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, direta e
seca”, revelam Marx e Engels (1998, p.10). Mas, ao mesmo tempo, uma vez
consolidada como classe dominante, tratou de criar seus próprios mitos. Roland
Barthes (1989) aborda essa problemática dos mitos da sociedade burguesa e as
suas conseqüências: trata-se, principalmente, do processo de inocentar a
linguagem, fazer parecer natural a História, as suas motivações e as suas intenções;
despolitiza a linguagem de acordo com as suas intenções.
Le camion é um texto explicitamente político. Seu lançamento se dez
anos após o afastamento de Marguerite Duras do Partido Comunista Francês,
tratando-se, portanto, da primeira manifestação da escritora sobre o assunto. Tendo-
se em vista o texto literário como um fazer ao mesmo tempo ético e estético
(RICOEUR, 1994), este capítulo pretende conceber o texto literário enquanto
produção de sentidos. Partindo-se disso, acredita-se que a partir de Le camion seria
possível buscar a visão do mundo que se manifesta na escrita de Duras: assim,
busca-se verificar no conjunto dos seus três textos selecionados nessa pesquisa,
59
essa relação entre uma visão política expressa nos textos e a busca estética pela
negação da representação.
M.D. :
Elle parle : elle dit au chauffeur :
Vous êtes du parti communiste français.
G.D. :
Il lui dit : ça ne vous regarde pas.
M.D. :
C’est ça.
Elle lui dit : vous savez, Karl Marx, c’est fini.
Elle dit toujours les prénoms : Marcel Proust. Pierre Corneille. León Trotsky.
Karl Marx...
... une manie...
Silence. (DURAS, 1977, p.47)
49
.
Eis que a escrita de Duras aspira contestar toda a forma de poder, e elege em
Le camion as figuras de León Trotsky, do Maio de 68 e da primavera de Praga
como avatares históricos de promessas de liberdade (interessa aqui, não
necessariamente as minúcias históricas ou os diferentes pontos de vista sobre a
História, mas o privilégio que Marguerite Duras a esses elementos da História da
esquerda no século XX). Em comum, esses três elementos situam-se a partir do
tempo hipotético que os circunda, que os torna possibilidades negadas, História em
potencial, tornando-as idealizadas e, portanto, permitindo leituras ilimitadas do que
poderia ter sido e não foi. Exemplo é o caso de Léon Trotsky, figura emblemática na
história da esquerda do século XX, que é considerado por muitos aquele que seria o
conseqüente sucessor de Lênin
50
. No entanto, ao passo que Joseph Stálin cada vez
mais ganhava poder e tornava-se líder da URSS, Trotsky foi gradativamente
perdendo espaço no governo soviético, até ser perseguido e, enfim, assassinado no
exílio.
Foi justamente através socialismo soviético de orientação stalinista que se
reprimiu violentamente a primavera de Praga, quando em 1968 a Tchecoslováquia
promove um movimento reformista liderado por intelectuais do Partido Comunista
Tcheco. Seu objetivo consistia em remover vestígios da política de Stálin (falecido
49
M.D.: Ela fala: ela diz ao motorista: / O senhor é do Partido Comunista Francês. / G.D.: Ele
responde: isso não lhe interessa. / M.D.: Exatamente. / Ela diz-lhe: sabe, Karl Marx acabou-se. / Ela
diz sempre os nomes de batismo: Marcel Proust. Pierre Corneille. Léon Trotsky. Karl Marx... / ... uma
mania... / Silêncio [Tradução de José Sanz].
50
Tal afirmação baseia-se no “testamento político” de Lênin, no qual estaria implícita uma preferência
por Trotsky para a liderança do Partido (cf. Carta ao congresso, 1922-3).
60
em 1953), tida como despótica e autoritária, para buscar um socialismo mais
humano. De modo resumido, os anseios da primavera de Praga eram na direção de
uma conciliação de ampla liberdade democrática e uma economia coletiva. No
entanto, essa liberalização proposta por Alexander Dubcek (primeiro secretário do
PC Tcheco) constituía-se aos olhos do Pacto de Varsóvia aliança militar formada
pelos países socialistas do leste europeu e URSS uma ameaça ao bloco socialista
por possibilitar a criação de uma nação capitalista no leste europeu. Restou,
portanto, apenas a idealização do que poderia ter sido e não foi...
Et puis, un jour, elle a vu.
C’était l’été.
Les pierrots, sur les chars, qui entraient à Prague.
(Temps.)
Vous vous souvenez peut-être ?
Ces hommes enfarinées, souriants, gentiment décervelés.
Ces nouveaux tueurs.
Ce résultat obtenu par la collusion entre le capitalisme et le socialisme.
(Pause.)
Depuis longtemps elle regardait sans voir.
Et puis, ce jour-là, elle a vu.
Silence (DURAS, 1977, p.45)
51
.
Estabelece-se uma leitura de equivalência pela ótica da escrita de Duras, em
que se igualariam o patronato e o proletariado, o capitalismo e o socialismo: Leur
peur identique. / Leur but identique. / Leur même politique : retarder à l’infini toute
revolution libre(DURAS, 1977, p.44)
52
. Inclusive a mulher do caminhão, em alguns
momentos, insinua o fim de Marx: possivelmente expressa, não em virtude de uma
desilusão com o teórico, mas com os comunistas de então, o PCF, os proletários.
Eles teriam perdido justamente aquilo que seria admirado na escrita de Marx pela
escrita durasiana: a possibilidade de vislumbrar um além da realidade, imaginar um
porvir, uma mudança, acreditar na Revolução, na dissolução das classes sociais, no
socialismo seguido pelo comunismo...
51
“E depois, um dia, ela viu. / Foi no verão. / Os homens nos carros de combate que entravam em
Praga. / (Pausa.) / Você se lembra, talvez? / Aqueles homens encasquetados, sorridentes, sem
cérebro. / Os novos assassinos. / Esse o resultado obtido pelo conluio entre o capitalismo e o
socialismo. / Resultado do qual estavam orgulhosos. / (Pausa.) / Havia muito tempo que ela olhava
sem ver. / E depois, naquele dia, ela viu. / Silêncio” [Tradução José Sanz]
52
“Seu medo idêntico. / Seu fim idêntico. / Sua mesma política: retardar até o infinito toda revolução
livre” [Tradução José Sanz]
61
O ponto de vista que a escrita de Marguerite Duras assume ao incidir sobre a
memória e a História Trotsky, maio de 68, primavera de Praga provoca um corte
na linha do tempo que abre um espaço de ficção. Efetivamente, o que se percebe, é
menos uma preocupação com os fatos acontecidos, mas com os que poderiam ter
acontecido, divisão esta reconhecida por Aristóteles ao diferenciar as narrativas
históricas das poéticas. A escrita de Duras, portanto, propõe a possibilidade de
imaginar diferentes sentidos para o curso da História, vendo nos silêncios e nos
apagamentos que a luta de classes produziu ao longo do tempo (a prevalência e a
permanência do discurso do vencedor) a própria riqueza da História. “Não tenho em
mim a lápide do pensamento totalitário, quero dizer: definitivo. Evitei essa chaga”,
escreve Duras (1989, p.7), em A vida material: esse modo de relativizar a História
é, pela perspectiva da escrita de Duras, à esquerda, o que alimentaria os sonhos e
permitiria resgatar as vozes irrecuperáveis pelo passado.
Estes textos de Marguerite Duras carregam vozes que se chocam, entram em
conflito e, por conta disso, seu diálogo – como sugere Blanchot (2005) é raro, nem
fácil e nem feliz. Essas vozes em oposição falam, mas não se entendem, não
síntese ou harmonia: elas falam, buscam no acaso do encontro apenas a
possibilidade de serem ouvidas. A disjunção está presente entre a mulher do
caminhão e o motorista; entre ellee vous”; e entre o casal protagonista do Navire
Night e a família dela. A luta de classes essa visivelmente marcada é
transcendida, na escrita de Duras, pela tensão entre o que está posto e o desejo de
mudança, o limitado e o ilimitado, a tentativa de apreender o real e a imersão no
mistério... Dessa forma, seria possível traçar, dentre as personagens desses três
textos de Marguerite Duras, aquelas que impediriam uma dissolução das formas
constituídas: seja através do desejo de conservar um poder, seja através do desejo
de apreensão da realidade pelo que lhe é empírico, ou ainda, através do desejo de
auto-legitimação uma superioridade em relação ao outro.
— Le père.
Le père, lui, ne léphone jamais. Il menace par l’intermédiaire des femmes
de la maison de Neuilly. Il faut que l’histoire ne s’étend pas au-delà des
coups de téléphone
(DURAS, 1986, p.57-8)
53
.
53
“– O pai. / O pai, pelo seu lado, nunca telefona. Ameaça por intermédio das mulheres da casa de
Neuilly. É preciso que a história não para dos telefonemas“ [Tradução Miguel Serras Pereira.
Fragmento do original em itálico].
62
A personagem do pai de F. em Le navire night apresenta-se como
ameaçadora à qualquer tentativa de subversão à ordem estabelecida. Ora, a Ordem
carrega consigo sentidos repressivos, como assinala Barthes (1989): pois trata-se
de uma função policial a que desempenha essa figura paterna, homem público,
importante, temível e venerado
(DURAS, 1986, p.57)
. Apesar da distância à história,
ninguém que seja ligado ao pai ousa desobedecer a suas ordens, limitando-se, no
máximo, às pequenas concessões transgressoras (os telefonemas, os passeios de
carro) que não ameaçam a Ordem. Inclusive essa história de amor do Navire Night,
tal como se desenrola, é possível – contraditoriamente – em virtude do capital
ilimitado do pai que permite as ligações telefônicas, o motorista de F., os presentes e
o dinheiro que ela manda para J. M. Embora deixe de ser contraditório a partir do
momento que se reconheça que as subversões abalem o status quo, mas não o
transformem contundentemente.
Os limites à manutenção da Ordem jamais são ultrapassados, embora sejam
ameaçados a todo o momento por F. e J.M. Além do pai, opõem-se aos telefonemas
a e de criação e o futuro marido. E, diferente do pai, que se mantém como que à
sombra dos acontecimentos, tanto a mãe ilegítima quanto o futuro marido entram em
contato com o jovem J.M., ora suplicando-lhe, ora exigindo-lhe que acabe o
relacionamento. Apesar de o casal protagonista atingir a plenitude da sua relação
pelo telefone, ainda assim a linhagem familiar, a herança e a doença bens
materiais e imateriais são os motivos explícitos ou implícitos para que se
impeça a história de ir além. Pour la première fois le mot est prononcé : folie
(DURAS, 1986, p.77)
54
, quando do contato do homem que se diz o futuro marido de
F. com J.M. A loucura, em princípio diametralmente oposta ao mundo da razão, é
tida como a síntese desse relacionamento. Talvez por isso, ainda com todas as
restrições, a história de F. e J.M. não toma conhecimento dos limites impostos pela
família dela: a falta de imagens, peculiar ao relacionamento de ambos, que mais
tarde carregará uma condenação à morte, abre-se por fim a um amor ilimitado além
de qualquer materialidade.
Por outro lado, em Le camion, além do motorista o marido da suposta filha
da mulher do caminhão: Il est du parti communiste français, son mari, ce qui vous
54
“Pela primeira vez é pronunciada a palavra: loucura” [Tradução Miguel Serras Pereira].
63
explique(DURAS, 1977, p.54)
55
. Tanto o motorista quanto o marido, eles precisam
da explicação, de entender a realidade e apreendê-la, dicotomicamente. Un militant,
c’est quelqu’un qui ne doute pas (DURAS, 1977, p.42)
56
, expõe G.D. Em Le
camion, a escrita de Duras busca endossar que, pelo seu ponto de vista, tanto
burgueses quanto proletários têm o mesmo modo de ver o mundo. O motorista do
caminhão é tida como uma personagem incapaz de ver além. Mesmo sendo filiado
ao PCF – o que deveria possibilitar ao proletário comunista uma visão questionadora
em relação ao mundo que lhe é circundante e assumir-lhe a direção sua alienação
é clara:
Voix off M.D. :
Elle parle encore. Elle dit:
Vous transportez quoi?
Voix off G.D. :
(Temps.)
Je sais pas. Des colis tout faits.
(Temps.)
C’est pour être embarqué.
Voix off M.D. :
Pour où ?
Voix off G.D. :
(Temps.)
Je ne sais pas. (DURAS, 1977, p.38)
57
.
A escrita de Duras se utiliza da personagem motorista para equiparar a
mesma hierarquia de sociedade/família burguesa (como em Le navire night) com a
hierarquia do PCF e sua orientação stalinista. Não como apagar a historicidade
do Maio de 68 da crítica presente na escrita de Duras. Teria sido por determinação
vinda de Moscou que o PCF orienta a finalização da greve, embora muitas das
bases de trabalhadores estivessem determinadas a manter a greve. Os sentidos que
a leitura dos fatos provoca, pela ótica da escrita de Marguerite Duras, concluem que
o socialismo (o que ele se tornou na prática soviética que lhe foi contemporânea)
deixou seu projeto de alternativa ao capitalismo para equivaler-se a ele, utilizar os
mesmos meios e a mesma lógica de dominação.
55
“Ele é do Partido Comunista Francês, o marido, o que exclarece as coisas” [Tradução José Sanz].
56
“Um militante é alguém que não duvida” [Tradução de José Sanz].
57
Voz em off de M.D.: / Ela ainda fala. Pergunta: / O senhor transporta o quê? / Voz em off de G.D.:
/ (Pausa.) / Não sei. Fardos prontos. / (Pausa.) / É para ser embarcado. / Voz em off de M.D.: / Para
onde? . / Voz em off de G.D.: / (Pausa.) / Não sei” [Tradução de José Sanz].
64
Pelo discurso do motorista do caminhão não é possível perceber qualquer
anseio de mudança, ou de modo mais contundente, uma Revolução. O militante
comunista do texto de Duras ainda está imerso em uma visão hegemônica da
burguesia. A escrita de Duras expõe o anseio material como única busca do PCF:
L’angoisse est celle de la classe ouvrière. / Seule, cette angoisse-là d’ordre
matériel, est digne d’être prise en considération (DURAS, 1977, p.45)
58
; mas
ideologicamente, apenas isso não se diferencia das representações propagadas
pelo capitalismo. O acesso aos bens de consumo permitiria a manutenção da ordem
e do sistema que uniriam interesses dos burgueses e dos proletários, adiando
sempre qualquer possibilidade de Revolução...
A necessidade de controle da Ordem também está presente na relação entre
os dois amantes de La maladie de la mort. A doença dele, a “doença da morte”,
parece consistir justamente em querer dominar os sentidos, buscar sempre uma
explicação calcada na pretensa racionalidade. Esse domínio hierárquico tenta se
dar, tanto em Le navire night quanto em La maladie de la mort, por intermédio do
pagamento impessoal e insensível em dinheiro, atitude que, como assinalam Marx e
Engels, é própria da era da burguesia. Em Le camion, ao contrário, não existe um
interesse entre o motorista e a mulher, como nos outros dois textos: a relação entre
o pai e a mãe legítima de F. Que la femme aimée par le père, la seule, avait été
celle-là(DURAS, 1986, p.49)
59
se resumirá à relação de patrão e empregada, por
bondade para ela não ficar longe da filha. A relação entre F. e J.M. é igualmente
compensada financeiramente: Elle le paye de lui donner tant de désir (DURAS,
1986, p.51)
60
. E assim como Elle e vous mantêm um contrato, ao qual ela deve
subjugar-se a ele, mediante pagamento:
Elle demande : Quelles seraient les autres conditions ?
Vous dites qu’elle devrait se taire comme les femmes de ses ancêtres, ce
plier complètement à vous, à votre vouloir, vous être soumise entièrement
comme les paysannes dans les granges après les moissons lorsque
éreintées elles laisaient venir à elles les hommes, en dormant cela afin
que vous puissiez vous habituer peu à peu à cette forme qui épouserait la
vôtre, qui serait à votre merci comme les femmes de religion le sont à Dieu –
58
A angústia é a da classe operária. / Esta angústia de ordem material é a única digna de ser levada
em consideração” [Tradução de José Sanz].
59
“Que a mulher amada pelo pai, a única, fora aquela” [Tradução Miguel Serras Pereira].
60
“Ela paga-o por lhe dar tanto desejo” [Tradução Miguel Serras Pereira].
65
cela aussi, afin que petit à petit, avec le jour grandissant, vous ayez moins
peur de ne pas savoir où poser votre corps ni vers quel vide aimer.
Elle vous regarde. Et puis elle ne vous regarde plus, elle regard ailleurs. Et
puis elle répond.
Elle dit que dans ce cas c’est encore plus cher. Elle dit le chiffre du
paiement.
Vous acceptez. (DURAS, 1984, p.10-1)
61
.
Aqui a submissão feminina, histórica, seja para com o marido ou para com
uma figura de devoção religiosa, deixa de ser parte de uma “superioridade natural”,
para evidenciar uma outra forma de dominação, orientada pela posse de capital. O
silêncio imposto à jovem de La maladie de la mort evidencia um desejo dele de
retorno a um tempo mítico, no sentido de que as relações hierárquicas da sociedade
não eram questionadas: “Há séculos as mulheres são informadas a respeito delas
próprias pelo homem, que lhes ensina que são inferiores a ele”, afirma Duras (1989,
p.41) em A vida material. É através da repetição que o discurso torna-se natural, os
hábitos culturais mitificam-se, e o domínio sobre o outro pode ser justificado: eis a
responsabilidade e o perigo das representações, ao intermediar os valores do
universo ético.
É por resistência ao hábito, aos interditos sociais, que se pode almejar a
negação da representação: para a busca de uma verdade além linguagem, em que
se pretenda superar os valores e os hábitos sedimentados ao longo da história, é
preciso recorrer ao caráter ilimitado da imaginação. Jean-Claude Carrière (2006)
exalta o poder da imaginação, que permite que se escape do laço monótono das
coisas vistas e ouvidas: é através da imaginação que se pode conceber tudo, reis
virando mendigos e vice-versa, o passado, o apocalipse ou o nada. Ao mesmo
tempo, essa possibilidade de imaginação de um outro universo, uma outra versão da
história, outros valores pode ser vista como ameaçadora à Ordem, sendo muitas
vezes tolhidas pelo tédio e pelo medo.
61
“Ela pergunta: Quais seriam as outras condições? / Você diz que ela deverá se calar como as
mulheres dos seus ancestrais, se curvar completamente a você, ao seu querer, ser-lhe
completamente submissa como as camponesas nas granjas após as colheitas, quando exaustas
deixam vir a elas os homens, dormindo isso para que você possa se habituar pouco a pouco com
essa forma que desposará a sua, que estará à sua mercê como as mulheres de religião estão para
Deus – isso pouco a pouco, com o dia crescente, você tenha menos medo de não saber onde colocar
o seu corpo nem qual vazio amar. / Ela o olha. E depois ela não o olha mais, olha além. Depois ela
responde. / Diz que nesse caso é ainda mais caro. Ela pergunta a quantia do pagamento. / Você
aceita” [Tradução Jorge Bastos].
66
O dio, essa sensação de vazio e impotência em relação ao tempo que não
passa, essa falta de interesse no jogo, é pautado pela monotonia, a repetição
contínua do mesmo, que provoca sono. Em La maladie de la mort, elle dort, le
sourire aux lèvres, à la tuer (DURAS, 1977, p.43)
62
: o sono é, segundo Blanchot
(1987), a capacidade de se retirar do ruído cotidiano, da preocupação cotidiana, de
si próprio, das coisas e do nada. Ou seja, o sono acaba por negar os sentidos e o
mundo ao redor, e transformar a noite em possibilidades. O amante, vous”, ignora
essas possibilidades que lhe estão além dos sentidos e da razão, ao passo que ela
imerge voluntariamente nos mistérios do inexplicável. É a maneira de ela repousar
da fatigue immémoriale herdada de suas ancestrais; “Ça se passait il y a des
années. Dans des temps anciens (DURAS, 1977, p.68), diz M.D. Essas
personagens femininas dos textos de Duras repousam da História, da história da
intolerância, buscam libertarem-se dos interditos que, segundo Bataille (1987), estão
atrelados ao surgimento da vida social humana.
C’est là que ce cette peur arrive.
Pas celle de la nuit, non, mais comme une peur de la nuit dans la clarté... le
silence de la nuit en plein soleil... le soleil au zénith et le silence de la nuit...
La peur... (DURAS, 1986, p.52)
63
.
Evoca-se esse medo que não é o medo da escuridão, do mistério, do
inapreensível; pelo contrário, é um medo de reconhecer que na própria razão
existem limites. A luz plena, privada de toda a sombra, é a experiência que o amante
de La maladie de la mort julga possível. No entanto, revela-se a esterilidade do
pensamento ao se apagar a face obscura da existência. Ça va être la fin, nayez
pas peur (DURAS, 1984, p.25)
64
, a moça diz ao amante: o medo é essa ameaça do
inapreensível que está por vir, além dos limites da razão, onde atinge o ilimitado
possível do pensamento (BATAILLE, 1960). Já em Le camion, M.D. e G.D. parecem
estar ameaçados pela luz que pode invadir a boléia do caminhão e a câmara escura,
La peur de la catastrophe : L’intelligence politique (DURAS, 1977, p.42)
65
. A
62
“Ela dorme, com o sorriso nos lábios, a se matar” [Tradução Miguel Serras Pereira].
63
“É então esse medo que chega. / o o da noite, não, mas como que um medo da noite na
claridade... o silêncio da noite em pleno sol... o sol no zénite e o silêncio da noite... / O medo”
[Tradução Miguel Serras Pereira].
64
“Isso vai ser o fim, não tenha medo” [Tradução de Jorge Bastos].
65
“O medo da catástrofe: o conhecimento político” [Tradução de José Sanz].
67
clareza proveniente da desmistificação é uma ameaça à Ordem e à rotina: no mito
da caverna de Platão, aquele que teve acesso à superfície seria morto ao tentar
conduzir outro acorrentado à luz do Sol. Ou seja, a escrita de Marguerite Duras
expõe o medo da verdade que implica uma mudança em conceber o mundo; esse
seria o medo do motorista do caminhão e também de vous”, o medo de inseri-los
em uma realidade para além dos limites da razão, do seu conhecimento ou do
ceticismo de cada um. Por sua vez, em Le navire night, na casa de Neuilly, é
sempre à noite que os amantes conversam pelo telefone. A família de F. tem medo,
e ela própria também, visto que, ao ligar, ela logo se anuncia: C’est moi F. jai peur
(DURAS, 1986, p.25)
66
; esse medo dela existe, mas o desejo é superior ao medo. É
o desejo de penetrar no desconhecido, de se dissolver na escuridão, de poder cerrar
os olhos e imaginar...
— Elle est surveillée.
Autour d’elle on se inquiète de ces coups de téléphone si longs, la nuit,
parce qu’ils la fatiguent beaucoup.
Des ordres sont donnés par le père pour que les dégâts de l’histoire sur la
santé de F. se limitent à ses coups de téléphone.
Pour que rien d’autre n’ait lieu. Rien em dehors de sés coups de
téléphone (DURAS, 1986, p.39-40)
67
.
A transgressão aos interditos não se caracteriza pela negação do que está
posto, mas se situa mais próxima de uma concessão necessária; trata-se de uma
outra face aos interditos para a perpetuação da Ordem. Assim como o tédio, o medo
está no limiar do interesse no jogo: pois o interesse implica transgredir essas
barreiras da Ordem. Uma mudança de fato a negação implicaria uma Revolução
que promova a construção de uma nova Ordem, a inversão de valores, ou ainda a
abolição da Ordem. A escrita de Marguerite Duras insere-se na busca por explorar
os possíveis de cada história, evidenciando assim o percurso do processo de
criação textual. Com efeito, ao denunciar-se enquanto texto ficcional, expõe a
negação a determinados modelos de representação, como se as destruísse para
transformá-las, assim constituindo uma nova existência que não é mais o que era.
66
“«Sou F. tenho medo.»” [Tradução Miguel Serras Pereira].
67
Ela é vigiada. / À volta dela as pessoas inquietam-se com esses telefonemas tão longos, à
noite, porque a fatigam muito. / São dadas ordens pelo pai a fim de que os estragos da história sobre
a saúde de F. se limitem a esses telefonemas. / Para que nada mais tenha lugar. Nada exceto
esses telefonemas” [Tradução de Miguel Serras Pereira. Fragmento do original em itálico].
68
De forma geral, em relação à escrita moderna, Roland Barthes aponta a existência
de uma dupla postulação:
o movimento de ruptura e o de um advento, o próprio desenho de
toda uma situação revolucionária, cuja ambigüidade fundamental é que a
Revolução deve tirar daquilo que quer destruir a própria imagem do que
quer destruir (BARTHES, 1974, p.167).
Essa dupla postulação engendraria a própria relação da linguagem entre as
palavras e as coisas, posto que a linguagem assim como a Revolução seria
ancorada através de movimentos de negação: no âmbito da linguagem, nega-se a
existência do ser para o advento da palavra. A própria atividade do escritor, para
Blanchot (1997), contempla as ações de negação e transformação pelo trabalho;
pois, o que era irreal, apenas um desejo, um ideal vazio, transforma-se em verdade
através de uma ação concreta no mundo. Decorre daí, portanto, o potencial da ação
de escrever como possibilidade de Revolução: o texto, então escrito, afirmaria no
mundo a presença de algo que não estava ali, e o afirmaria negando o que antes ali
se encontrava; através da transformação pelo trabalho, nega-se o estado passado
do mundo e prepara-se o seu futuro.
Pois é justamente, nesse sentido, que “a literatura se na Revolução, nela
se justifica [...] para dela obter a possibilidade e a verdade da palavra”. Segundo
Blanchot (1997, p.310), haveria, portanto, uma desestruturação de mundo sugerida
pela escrita de Duras de corrente da desmistificação. Discurso mítico
contemporâneo, tal como Barthes (1989) concebe-o, consolida-se no interior do
discurso burguês, ao passo que sua oposição seria a fala permanentemente política.
Trata-se da revelação da carga política do mundo, o desmascaramento, devido à
posição do discurso à esquerda, definido em relação aos oprimidos, cuja
incapacidade de mentir a sua condição evidencia a realidade que é carregada no
seu discurso. Mas a ação revolucionária ainda não é a Revolução. A esquerda
também não é a Revolução. Embora não seja motivo para deixar-se abater...
Não outra saída senão tentar as coisas, mesmo que feitas para
fracassar. Apesar de fracassadas, são as únicas que fazem avançar o
espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Tudo se
mantém: não poesia, autêntica, que não seja revolucionária (DURAS,
1977, entrevista, p.114-5).
69
Parece que a escrita de Duras denuncia isso que parece ser um “mito da
esquerda”. Ao mesmo tempo em que se denuncia a si própria, posto que a sua
escrita não é uma escrita de Revolução. Ela se desmistifica, mas não deixa de torna-
se mito por completo. Nega-se a Literatura, a ficção, mas ainda é Literatura, é ficção.
No entanto, o fracasso da escrita durasiana, contraditoriamente, logra o seu êxito:
romper continuamente os seus limites e rótulos, atualizando de modo permanente o
questionamento dos limites da arte e da literatura. Ao negar a linguagem e os livros,
nega-os para transformá-los em algo novo; quando aborda a pluralidade de escritas
da modernidade, ao buscarem o dinamismo que a época burguesa exige, rompendo
limites a fim de ampliar seus horizontes. É como se, a cada texto publicado, o
conceito de Literatura devesse ser revisto e ampliado, a fim de abarcar em si as
mais diversas possibilidades que a palavra pode abranger.
70
3.2 A presença do utópico
On ne pouvait pas savoir avant d’y
aller que c’était vide.
Avant de faire une chose, comment
savoir que ce n’était pas la peine de
la faire... ?
(Temps.)
Ceux qui n’y sont pas allés,
est-ce qu’ils le savent ?
(Marguerite Duras, Le camion, 1977)
A escrita de Marguerite Duras proclama o seu desejo de liberdade; ela busca
a transcendência aos limites, aos interditos, aos rótulos, aos gêneros, à realidade e
seus valores. O objetivo desse capítulo consiste em reconhecer as instâncias da
escrita de Duras em que se busca a negação da representação pelo rompimento
com os valores hegemônicos da sociedade burguesa. Seja através da voz ou do
silêncio, anuncia-se o desastre da escrita, a subversão de valores e a promessa de
liberdade.
Por de trás das representações expressa-se o desejo e a esperança de que
se possa alcançar a essência ou a verdade das coisas, dissimulada e ocultada, qual
uma máscara. Essa máscara corresponde aos hábitos, aos interditos, aos mitos, à
rotina, à hegemonia: todas essas categorias tendem a conservar o mundo como ele
se apresenta, ou seja, reiteram as representações que a sociedade burguesa cria de
si para si. É a Ordem que conserva o seu poder através do medo; seria preciso
perder o medo para desestabilizar o poder.
O medo coíbe a imersão no desconhecido, esse espaço obscuro e misterioso
em que as certezas esvaem-se. Jean-Claude Carrière (2006) revela a existência de
um poder quase assustador decorrente dos hábitos de percepção, ou seja, uma
rejeição secreta pelo fora do comum, de tudo que seja capaz de perturbar e
desconcentrar. Apenas desvencilhando-se da insistência do significado e do medo
que a ameaça, se poderá vislumbrar uma promessa de liberdade.
71
Superar esse medo inicial, como F. e J.M. o fizeram, é proclamar a sua
liberdade às amarras das convenções, sejam sociais, morais ou estéticas. Le
camion é um ato livre, é um ato contra todo poder” (DURAS, 1979, p.130): é assim
que Marguerite Duras se refere especificamente a Le camion, como poderia estar
se referindo, de certa forma, à sua obra de modo geral. Nesses três textos
abordados nesse trabalho, é articulada a linguagem sobre a liberdade tanto em nível
estrutural quanto temático, através das transgressões às quais se propõe. O poder é
a Ordem, é o controle, e, na escrita de Duras, o não-poder é o desastre.
Segundo Blanchot (1980), o desastre não é a escuridão; pelo contrário, é
reconhecido através da câmara escura em pleno dia, assim como o silêncio do dia
ao zênite como o da noite e a impossibilidade de ver o que está diante dos olhos. O
desastre não permite a experiência, desorienta o absoluto, impede que se apreenda
a sua manifestação. A clareza das coisas se apaga, sem que haja consolo; restam
apenas ruínas de verdades e certezas.
Esses períodos em que tudo passa a ser questionado (como fé, Estado,
História) seriam os momentos revolucionários, em que a liberdade absoluta torna-se
acontecimento: “nesses momentos, a liberdade pretende se realizar na forma
imediata do tudo é possível, tudo pode ser feito” (BLANCHOT, 1997, p.307). Trata-
se do momento de suspensão de valores e normas, e em que se manifesta o Terror,
tido como pura expressão da liberdade universal. Assim, a escrita de Duras iria ao
encontro dessa utopia que a transgressão promete, o terror anuncia, e a revolução
opera.
“Não há senão a utopia que faça avançar a idéia de esquerda”, diz Duras
(DURAS, 1979, p.130): as possibilidades de mudança em direção à uma liberdade
cada vez mais ampla se ancoram na presença do utópico; ou seja, a constante
necessidade de manter o desejo aceso. “Em seu sonho, nada, nada senão o desejo
de sonhar”, diz Blanchot (1980, p.75). Sonhar, projetar um futuro: parece ser esse
objetivo que a escrita de Duras busca através da negação da representação.
Negar a representação não significa, pelo viés estético da escrita de Duras,
negar os modelos consolidados. Significa, antes, alcançar uma sinceridade ao
desvelar as máscaras com as quais a linguagem se dissimula. Dessa forma, a
negação da representação, na estética durasiana, pretende superar a opacidade do
texto visando a uma cumplicidade com o leitor. Ora, o grande embuste que perpassa
72
a linguagem é a sua tentativa de passar-se por factual, objetiva, isenta de
interpretação: Roland Barthes (1989) chama de mito a essa linguagem que resiste a
morrer passando-se por natural, que se esquiva de revelar as impossibilidades de se
utilizar uma linguagem puramente instrumental, alheia à subjetividade. E, quanto
mais se busca apagar essa marca da opacidade da linguagem, mais ela se torna
vulnerável ao mito.
Assim, para libertar-se, a linguagem precisa desmistificar a si mesma: a
linguagem volta-se para a própria linguagem, se auto-representa ao mesmo tempo
em que deseja anular-se. A auto-representação presente nos textos de Duras
desautomatiza a leitura, a fim de que se promova a reflexividade sobre os seus
meandros de produção, ou seja, desestabiliza as expectativas do leitor e desloca o
sujeito de um mundo de certezas para um mundo de questionamento. Eis a
linguagem que, segundo Barthes (1989) se opõe ao mito: a fala permanentemente
política, devido ao seu engajamento em destruir as sólidas bases que formam e
mantém no poder as estruturas da sociedade burguesa.
Porém, destruir o que está posto não implica consolidar outra forma de poder,
na perspectiva da escrita de Duras, mas significa a destruição do mundo construído
em bases convencionadas. Que le monde aille à sa perte, c’est la seule politique
(DURAS, 1977, p.25)
68
. A liberdade está condicionada, nesse sentido, à
necessidade de se recomeçar, tentar tudo de novo. À imaginação cabe o papel
principal, para que se possa considerar a História a partir das inúmeras
possibilidades deixadas para trás, e prever outras inúmeras possibilidades futuras. O
tempo abre-se para o ilimitado; ou, como afirma Carrière (2006), milhões de anos
não dizem nada à percepção. O caráter hipotético com que se lida com certas
passagens do passado e se projeta para o futuro é levado ao paroxismo:
— Dit-il avoir menti?
Non. Il dit avoir confondu les moments, les jours, les lieux, ne pas avoir
de chronologie ne pas disposer ici d’une raison claire, ne pas en
entrevoir l’utilité.
Il dit qu’elle, de même que lui, aurait confondu entre sa propre image dans la
glace et celle de ce jeune homme entrevu place de la Bastille. Entremourir
et vivre. Entre son corps et le sien, inconnu. Entre l’inconnu du sien et tout
inconnu.
68
“Que o mundo se arruíne, é a única política” [Tradução de José Sanz].
73
Qu’elle, de même, de même que lui, n’aurait pas su si elle était celle de
histoire ou celle, em dehors, qui regardait l’histoire (DURAS, 1986, p.75-6)
69
.
O paroxismo se estabelece através da linha temporal que é transgredida por
incertezas, por erros, por mentiras, e manifestado através do tempo hipotético.
Assim, do mesmo modo que F. inventa e confunde a sua história, a mulher do
caminhão fala de assuntos dos quais não entende e, não entendendo, inventa a
história do universo como quem inventa uma história qualquer. A História e todo o
conhecimento que ela carrega são como que esvaziados, restando apenas as ruínas
do tempo. Como afirma Ítalo Calvino (2006), torna-se impensável uma totalidade que
não seja potencial, conjectural, multíplice.
A liberdade que a escrita de Duras proclama é consonante com o que diz
Lévinas (1998): trata-se da recusa do definitivo; e assim é em relação ao tratamento
à História e ao conhecimento. A recusa às fotografias e ao encontro narrada em Le
navire night; bem como a crítica ao motorista do caminhão por sua visão limitada,
maniqueísta e condicionada por outros lida em Le camion; e a própria doença da
morte que toma vousem La maladie de la mort: o as ameaças ao pensamento
definitivo, cristalizado e fechado que parecem motivar as mais variadas
transgressões nesses textos de Marguerite Duras.
“O ato de fala é sempre um ato de resistência”, afirma Gilles Deleuze (2005,
p.301). É através das vozes que narram e protagonizam as histórias de Marguerite
Duras que a escrita resiste à Ordem e busca subvertê-la. O próprio privilégio às
vozes marca um contraponto ao prestígio da escrita (apesar de recorrerem à
oralidade, ainda são textos impressos). Na relação entre a fala e a escrita, Ferdinand
de Saussure (1987) ressalta que, na percepção de modo geral, se acaba por dar
mais importância à representação vocal do signo do que ao próprio signo: logo, o
peso do registro documental, sua forma definitiva, faz com que se lhe atribua mais
valor, por assim dizer, em oposição à fala dinâmica e leve.
69
“— Diz que mentiu? / Não. Diz que confundiu os momentos, os dias, os lugares, não ter
cronologia não dispor aqui de uma razão clara, não entrever a sua utilidade. / Diz que ela, do
mesmo modo que ele, teria confundido entre a sua própria imagem no espelho e a desse homem
jovem entrevisto na place de la Bastille. Entre morrer e viver. Entre o seu corpo e o dele,
desconhecido. Entre o desconhecido do seu e todo o desconhecido. / Que ela, do mesmo modo, do
mesmo modo que ele, não teria sabido se era a da história ou aquela, do lado de fora, que olhava a
história” [Tradução Miguel Serras Pereira. Fragmento do original em itálico].
74
Estes três textos de Marguerite Duras recorrem à oralidade sem corpo, ao
mesmo tempo em que o texto impresso revela os espaços vazios na página entre os
diálogos. Os diálogos se contrapõem ao modelo tradicional de monólogo do
narrador, oferecendo mais que um ponto de vista sobre a história; isso quando não
se desvelam em um tempo presente, em que o ato de fala é o próprio
acontecimento. Nos três textos de Duras, os espaços em branco da página e a
multiplicidade de vozes abrem-se ao leitor para que jogue com hipóteses a partir dos
espaços vazios: a cabine vazia do caminhão, os telefonemas, a ameaça de um
plano exterior. Portanto, o diálogo é construído pelo acontecimento, em um presente
eternamente suspenso, narrativas hipotéticas suscitadas pelas personagens que por
vezes cumprem papel de narrador e de narratário, duplos da autora e de seu leitor.
A violência impressa no ato de fala expõe sua carga política, que aponta para
a desmistificação: Je ne connais pas encore, je voudrais pénétrer aussi. Et aussi
violentemment que j’ai l’habitude. On dit que ça résiste plus encore, que c’est un
velours qui résiste plus encore que le vide” (DURAS, 1984, p.9-10)
70
. A violência que
irrompe com as vozes e as transgressões cria o acontecimento que é sempre a
resistência. Trata-se, portanto, do ato político que subverte a hegemonia e a voz
às personagens déclassées”, fora-de-classe: são personagens cuja construção não
se situa na dicotomia da luta de classes entre burgueses ou proletários; ou antes,
problematiza essas relações sociais.
Em Le camion, a mulher e o motorista são personagens nômades, errantes,
que, por estarem em trânsito, não se encontram em lugar algum. Ela, a possível
louca sem identidade, e ele, o proletário comunista cuja identidade acaba por ser
questionada por ela, visto a alienação de que ela o acusa. Em Le navire night, não
é apenas a relação de amor entre a moça rica e o rapaz pobre; ela, F., a moça rica,
é também bastarda e está condenada à morte pela leucemia. A escrita de Duras
impede que a identidade das personagens seja definida apenas pela condição de
classe; ou, como G.D. se questiona, em certo momento de Le camion, se a
angústia material da classe trabalhadora é a única digna de ser levada em
consideração.
70
“Eu não conheço ainda, eu queria penetrar também ali. E o tão violentamante quanto costumo.
Dizem que isto resiste ainda mais, que é um veludo que resiste mais ainda que o vazio.” [Tradução
de Jorge Bastos].
75
Assim como F. é doente, “vous”, em La maladie de la mort também é. Neste
texto, tem-se aquele que paga, o que é tomado pela doença que desconhece; e ela,
a que aceita o pagamento e permanece junto a ele, embora afirme não se tratar de
uma prostituta. Ambos exilados, noite após noite, em um quarto junto ao mar.
Nenhuma das três histórias se restringe a algum espaço socialmente marcado: seja
a estrada, as paisagens estéreis, o museu ou o mar. Exceto em Le navire night,
quando a história alterna-se entre subúrbios e a mansão, expondo a luta de classes
que a escrita de Marguerite Duras acredita poder ser superada:
A destruição da sociedade de classes pelo amor ou pela morte é aqui
evocada. O desejo é aqui o equivalente do amor; o espírito e a matéria
fazendo-se uma coisa só. Estamos fora do mundo preferencial dos
sentimentos. Amamos aquilo com que nos ligamos pelo amor. Dizemos eu
te amo” a quem esconosco no momento da união dos corpos. Entrevistei
prostitutas e é isso que lhes dizem: “eu te amo” [...] Esta noção unitária do
amor e do desejo, este abandono total do modo preferencial de que já falei,
vale para todos os meus livros e todos os meus filmes (DURAS, 1969,
documentário sobre Détruire dit-elle).
O que a escrita de Marguerite Duras defende, portanto, é a tese de que só pelo
amor é possível superar a exploração do homem pelo homem. O estágio
revolucionário que transpassa essa escrita refere-se, antes de tudo, a uma mudança
de atitude individual: de acordo com a perspectiva teórica acerca do erotismo, trata-
se de uma renúncia deliberada, mas que poderia sustentar uma Revolução a
partir de uma renúncia social absoluta. As personagens de Duras apagam-se ao
longo dos textos: a mulher do caminhão não tem identidade, nem passado e nem
futuro, tal como o casal de La maladie de la mort. As certezas acerca da identidade
do motorista do caminhão são questionadas, e apagam-se pouco a pouco frente aos
questionamentos decorrentes do embate ideológico com a mulher. Por fim, as
imagens do casal de Le navire night também são apagadas, e pouco a pouco
apontam para o próprio apagamento da sua existência: o amor pode ser pleno se
permanecer na eterna iminência.
Essa fusão dos descontínuos proclama, no lugar de limites, barreiras ou
interditos, o privilégio aos elementos híbridos. A liberdade de união entre díspares
encontra eco através da escrita de Duras: em Le navire night, o próprio título
expressa essa fusão entre os termos em francês e o nome próprio em inglês; ainda
no mesmo texto, a relação entre os amantes de diferentes classes sociais e o
76
imbricamento de diferentes planos narrativos. Conforme Bernard Alazet (1992), o
texto híbrido, ao mesmo tempo em que recupera elementos romanescos de
produções anteriores, desenha contornos de uma nova escrita. Os três textos de
Marguerite Duras abordados constituem-se como híbridos entre a narrativa literária e
o roteiro de cinema, rompendo com a repetição de modelos consolidados para
aventurarem-se no desconhecido.
Contra qualquer forma de poder, a renúncia: tenta-se abrir mão da
individualidade, da solidão existencial. A despersonalização na escrita de Duras
dissocia o corpo da fala, as vozes se perdem em meio a outras vozes, emergindo
assim, dessas narrativas, o puro ato de fala que, como afirma Deleuze (2005),
expressa o amor inteiro ou o desejo absoluto. Para tanto, é preciso romper com as
representações e atingir uma essência ou verdade por trás das palavras, para que
se possa chegar a um grau zero da linguagem. Em princípio, apenas o grau zero da
linguagem poderia resistir aos mitos; no entanto, “o sentido nunca está no grau zero,
e é por isso que o conceito pode deformá-lo, naturalizá-lo” (BARTHES, 1989, p.153).
No entanto, Roland Barthes reconhece na linguagem poética uma possibilidade de
uma anti-linguagem: seu objetivo consistiria em destruir a mediação que é a
linguagem para se atingir a própria coisa, a essência de forma análoga ao silêncio.
Os três textos de Marguerite Duras revelam o silêncio existente através de
seus discursos. Através do poder de sugestão desses textos, especialmente no que
concerne à auto-referência e ao uso de um tempo hipotético, é como se nada fosse
afirmado, ou até mesmo nada fosse dito. Nesse sentido, sobre a escrita de Duras,
“seu discurso é o silêncio”, como afirma Blanchot (2005, p.223); trata-se de uma
recusa em falar, em que o discurso nada diz a não ser ele mesmo. Eis a
possibilidade de se alcançar o grau zero da linguagem, que pode levar ao silêncio.
Une autre fois vous lui dites de prononcer un mot, un seul, celui qui dites
votre nom, vous lui dites ce mot, ce nom. Elle ne réponde pas, alors vous
criez encore. Et c’est alors que vous savez qu’elle est vivante.
Le sourire disparaît. Elle n’a pas dit le nom (DURAS, 1984, p.26)
71
.
71
“Uma outra vez você lhe diz para pronunciar uma palavra, uma única, aquela que diz o seu nome,
você lhe diz a palavra, este nome. Ela não responde, então você grita ainda. E é então que ela sorri.
E é então que você sabe que ela está viva. / O sorriso desaparece. Ela não disse o nome.” [Tradução
de Jorge Bastos].
77
O silêncio da amante em La maladie de la mort é provocador, nega a
resposta ao amante e lhe retribui com um rápido sorriso. Julia Kristeva (1989) indica
que os prantos do homem respondem a esse silêncio adormecido da mulher. Os
olhos fechados e o silêncio da amante suspendem a relação dela com o universo
que lhe circunda, revelando-o entediante. Sua sonolência afirma o desinteresse, a
desatenção ao mundo. De fato, “Há algo de profundamente subversivo em não
querer exprimir nada”, afirma Régis Debray (1994, p.51): o silêncio provoca cada
pessoa em seu sono sensorial, desestabilizando os respectivos hábitos e
expectativas, visto que o silêncio não é natural. As indicações de silêncio nas
didascálias de Le camion parecem sugerir uma pausa no próprio ato de leitura,
como que para desautomatizá-la.
Como define Lévinas (1998), o sono é o acontecimento sem acontecimento,
negação do mundo. Em Le navire night, na medida em que o calor aumenta, o
silêncio se instala sobre Atenas no horário do meio-dia, no horário da sesta: La ville
se vide à l’heure de la sieste, tout ferme comme la nuit...(DURAS, 1986, p.52)
72
. O
mundo abandonado, esquecido perante o sono, na escrita de Duras não se
manifesta à noite, perante a ameaça do mistério. Antes, é a clareza, esse mundo de
certezas e de verdades que é abandonado e esquecido.
Silence. Et puis musique.
Un lieu sombre et clos. Les rideaux sont tirées. Des lampes sont allumées.
Tapis. Glaces. C’est un lieu de séjour. A travers un rideaux blanc, la lumière
du jour. Le lieu a donc été fermé au jour (DURAS, 1977, p.10)
73
.
A câmara de leitura (ou câmara clara) de Le camion também explora o espaço
diurno como se fosse noturno. A sala está escura, fechada, as mpadas acesas,
como se estivesse ameaçada pela luz do exterior. Essa luz traz a ameaça do
definitivo pelas pretensas objetividade e razão. Cabe ressaltar que, sobre a razão,
André Breton (1983) utilizou-se da expressão “venda fosforescente”: fosforescente,
pois não é fonte de luz e não ilumina; e venda, posto que mais cega do que revela o
mundo. Ou seja, por esse viés, a razão seria uma possibilidade reducionista,
72
“A cidade esvazia-se à hora da sesta, tudo se fecha como à noite...” [Tradução Miguel Serras
Pereira].
73
Silêncio. E depois, música. / Um lugar escuro e fechado. As cortinas estão puxadas. As lâmpadas
são acesas.Tapetes. Espelhos. É uma sala de estar. Através de uma cortina branca, a luz do dia. O
local, portanto, esteve fechado de dia” [Tradução José Sanz. Fragmento do original em itálico].
78
limitada e deformadora de apreender a realidade. Das personagens de Duras que
transitam pelos três textos abordados nesse trabalho, pelo menos o amante de La
maladie de la mort e o motorista do caminhão poderiam ser considerados tomados
pela venda fosforescente de Breton. Apenas renunciando a tomar representações
como verdade é que, como afirma D’Allonnes (1973), a criação se afirma como
reivindicação de liberdade.
A promessa de liberdade torna a revolução iminente; porém, a voz que
reivindica ainda não é a Revolução. Assim como o discurso de esquerda, que
também ainda não é a Revolução:
Engels não caracterizou, gratuitamente, a revolução socialista como o salto
do reino da necessidade para o reino da liberdade. A Revolução não
representa ainda o reino da liberdade. Ela, ao contrário, desenvolve ao mais
alto grau os traços de necessidade. O socialismo abolirá os antagonismos
de classe, ao mesmo tempo que as classes, mas a Revolução leva ao seu
auge aqueles antagonismos” (TROTSKY, 1969, p.196).
Essas reflexões de Léon Trotsky referem-se à sua previsão sobre a arte e a
literatura, quando da possível dissolução de classes sociais: o servindo mais a
interesses que competem na sociedade de classes, as querelas se dariam no plano
estritamente intelectual. De outra forma, em não havendo interesses ético-políticos
dissimulados na visão do mundo e da arte, esse discurso estaria mais próximo de
um grau zero. A linguagem neutra, indutiva e transparente, caracteriza-se
justamente por manifestar a ausência total de julgamentos, que não implica nenhum
refúgio ou segredo. Como afirma Roland Barthes (1974), uma linguagem saturada
de convenção só dá o real entre aspas; ou seja, para uma escrita libertária, é
contraponto necessário que se abra mão das artimanhas da linguagem.
Pela auto-referência expõem-se os antagonismos de classe, opera-se a
denúncia da linguagem. Desnudam-se os interesses, ameaça-se a Ordem: no
entanto, opera-se apenas uma transgressão ao que está posto. Acerca do romance,
Blanchot (2005) reconhece no gênero o seu caráter de exceção, posto que ele
afirma uma lei sempre comprometida, ameaçada de desaparecer por movimentos
futuros que possam deslocar os seus limites ou fixá-lo mais além. A transgressão, ao
contrário do que a Revolução almeja, força o que está consolidado a se reorganizar
para fortalecê-lo.
79
Na escrita de Marguerite Duras, portanto, é a presença do utópico, a revolução
impossível, o que ameaça constantemente a ordem que parece orientar a sua
estética. Seus textos abrem-se para as leituras ilimitadas, rompendo a percepção do
mundo acabado e estável. Nega-se, portanto, modelos consolidados de
representação, transgredindo-os através de inversões de valores e expansão de
limites do narrativo. A pretensão de sinceridade que a escrita de Duras propõe, no
sentido de alcançar o grau zero, é fracassada. A escrita não se trai, permanece
sendo escrita ainda que se exponha sua extenuação. Sua saída, portando, seria o
silêncio absoluto: mas seria, também, deixar de resistir à morte, à petrificação dos
sentidos.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O que impulsiona o artista não é diretamente a sua obra, é a sua busca”, diz
Blanchot (2005, p.291). De fato, ao final dessa trajetória de leitura de Le camion, Le
navire night e La maladie de la mort, pôde-se verificar que as propostas da
estética literária de Marguerite Duras ancoram-se na ânsia de busca pelo misterioso
e pelo desconhecido. As impossibilidades e os limites da representação, nesses três
textos de Duras, são transpostos pelo silêncio e pelo fechar de olhos propostos ao
leitor. Seus textos não se limitam às cristalizações de gênero, mas, pelo contrário,
abrem-se para a criação de leituras ilimitadas.
O percurso dessa pesquisa inicia-se ao reconhecer na escrita de Marguerite
Duras, não uma iconoclastia, mas, pelo contrário, um desejo de retorno a formas
anteriores e ancestrais. A importância que a voz possui na escrita de Duras, como
foi visto, contrapõe-se à escrita, ao evocar uma almejada linguagem mítica,
transparente, dotada de poderes gicos. Ou seja, a magia que a linguagem
carrega consigo é o poder de recriar o mundo; não apenas mundos ficcionais, mas a
própria percepção de realidade e verdade no mundo ético se consolidaria a partir de
representações ideológicas. Eis, portanto, a necessidade que esse trabalho teve de
que, ao abordar esse poder mágico das representações, abordasse também o
caráter vazio da linguagem: apesar de todo o poder de construir mundos ou
manipular sentimentos, por exemplo, trata-se apenas de linguagem. Entre as
palavras e seu referente do mundo revela-se um espaço intransponível, onde se
instalam a subjetividade, a interpretação, os interesses.
É devido a crise da linguagem como propriedade metafísica da verdade, no
século XIX, que se evidencia a dissimulação como inerente à linguagem. Ou seja,
quando se fala sobre alguma coisa, trata-se de apenas uma imagem de um
referente, e não o próprio referente. Apenas a palavra mágica conseguia transpor o
abismo entre a palavra e o referente; logo, o modo que a escrita de Marguerite
Duras poderia se articular para lograr êxito seria transformando-se no próprio
referente: a linguagem volta-se para si mesma; distancia-se, como se visse diante
de um espelho. A auto-reflexividade expõe a intimidade da linguagem, sua
81
opacidade e sua manipulação. É através da auto-referência da linguagem que a
poesia quita sua dívida com Platão, que acusava os poetas de falarem de ofícios
que não dominavam.
Para Jean Ricardou (1971), a auto-representação é sempre uma atividade de
anti-representação; ou seja, a verdade que a linguagem recupera ao contemplar-se,
ameaça destruí-la. A sinceridade desmistificadora que a escrita de Marguerite Duras
se propõe depara-se com o desmoronamento da racionalidade, restando apenas
ruínas da experiência e a dissolução de limites e certezas. O desastre da escrita
revela a impotência da própria linguagem: na impossibilidade de assimilar a
experiência ou a totalidade, os textos de Marguerite Duras propõe um tempo lúdico,
hipotético, no qual a narrativa abre-se para o ilimitado das possibilidades.
Negar a representação é expor a linguagem e, portanto, o sujeito, a classe
social, ou a sociedade de forma geral a nu. É através da auto-representação que a
escrita de Duras questiona os interditos artísticos e sociais, transgredindo a ordem
estabelecida através da sua escrita subversiva. “Em uma sociedade que tende a
abolir toda a criação, a abolição dessa sociedade se converte na única criação
possível”, afirma Olivier Revault d'Allonnes (1973). De fato, a escrita de Marguerite
Duras alinha-se com a de outros escritores da modernidade que, de forma ou outra,
contestam modelos de representação da sociedade burguesa, calcados no projeto
iluminista cujo ápice teria se dado no século XIX. Ao negar a representação, o
desejo de liberdade da escrita de Duras busca a transcendência aos limites, aos
interditos, aos rótulos, aos gêneros e à realidade, rompendo com valores
hegemônicos da sociedade burguesa. A presença do utópico rejeita o pensamento
definitivo e deseja desestabilizar toda a forma de poder, proclamando uma revolução
que invocasse a despersonalização voluntária em direção a um amor absoluto.
Elle dit: c’est la nouvelle situation politique de l’homme.
Il demande : Rapport à Dieu ?
Elle dir : oui :
Rapport au vide.
Regardez. (DURAS, 1977, p. 23)
74
.
Em existindo Deus, ou seja, tendo-se fé em um deus criador, onisciente,
onipresente, justo e soberano, é possível estabelecer distinções claras entre a
74
“Ela diz: é a nova situação política do homem. / Ele pergunta: / Refere-se a Deus? / Ela diz: sim: /
Refere-se ao vazio” [Tradução de José Sanz].
82
verdade e a mentira, o bem e o mal. No entanto, análogo à “morte de Deus” com o
advento da modernidade, na falta dessa entidade superior que tudo sabe e tudo
entende, a realidade é hipotética e a fé fragmentada. “Ce premier mot, ce premier cri
on ne sait pas le crier. Autant appeler Dieu. C’est impossible. Et cela se fait
(DURAS, 1986, p.11)
75
. Testemunha-se a impossibilidade de se apreender a
realidade e de narrá-la. A posição ocupada por Deus está vazia, os valores o
subvertidos e as individualidades movem o mundo.
É nesse sentido que Marx e Engels (1998) utilizam a expressão “tudo que é
sólido desmancha no ar”: a solidez das verdades e certezas desmorona. No entanto,
a dinâmica da era burguesa é, como afirma Marshall Berman (2007), construir para
logo em seguida por abaixo e construir de novo, continuamente. O mesmo acontece
com as representações que são transgredidas, mas cuja transgressão se petrifica
em Lei. Trata-se de um contínuo ciclo de romper limites, cuja essência é, ela própria,
romper outros e outros limites.
75
“Essa primeira palavra, esse primeiro grito, não sabemos gritá-lo. É a mesma coisa que chamar por
Deus. É impossível. E faz-se” [Tradução Miguel Serras Pereira].
83
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