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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
NEY MATOGROSSO:
SENTIMENTO CONTRAO
transgressão e autonomia artística
FLÁVIO DE ARAÚJO QUEIROZ
Fortaleza
2009
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FLÁVIO DE ARAÚJO QUEIROZ
NEY MATOGROSSO:
SENTIMENTO CONTRAO
transgressão e autonomia artística
Tese apresentada ao Curso Pós-Graduação em
Sociologia do Departamento de Ciências Sociais
e Filosofia da Universidade Federal do Ceará
como parte dos requisitos para obtenção do título
de doutor.
Orientador: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus
Júnior
Fortaleza
2009
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FLÁVIO DE ARAÚJO QUEIROZ
NEY MATOGROSSO:
SENTIMENTO CONTRAO
Transgressão e autonomia artística
Tese apresentada ao Curso Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Ciências
Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará como parte dos requisitos para
obtenção do título de Doutor.
Aprovada em: _____ / _____ / 2009.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________
Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará - UFC
________________________________________________
Prof. Dr. Gilmar de Carvalho
Universidade Federal do Ceará - UFC
________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale
Universidade Federal do Ceará - UFC
_______________________________________________
Prof. Dr.Gisafran Mota Jucá
Universidade Estadual do Ceará - UECE
_______________________________________________
Prof. Dr. gia Maria de Souza Dabul
Universidade Federal Fluminense - UFF
Este trabalho é dedicado em especial à minha
preciosa e querida mãe Terezinha Araújo e ao
artista Ney Matogrosso.
AGRADECIMENTOS
À sutileza das essências femininas em minha vida. A elas o meu total respeito,
admiração e gratidão. Sem elas minha alma se fragmentaria ainda mais. Agradeço ao
amor de minha mãe, Teresinha Marinho de Araújo Queiroz, parte integrante de mim,
responsável por meu equilíbrio nessa exisncia. Seu amor eternizou-se em mim. Às
tias Judith e nica pelas preces cósmicas. Agradeço à Dona Mazé, nossa guard do
lar, que sempre me chamou de Doutor, antes mesmo de eu pleitear o título junto à
Universidade. Às minhas amigas de vida e de academia: Monalisa Dias, pela docilidade
de uma pisciana; Vanessinha, por ser “leve como leve pluma”; Francisca, responsável
por minha decisão de tentar o ingresso no doutoramento, uma companhia singular nesse
tão delicado trajeto. À jornalista Denise Pires Vaz, por sua sensibilidade feminina ao
adentrar no universo do artista Ney Matogrosso. A todas as minhas informantes e as fãs
do cantor Ney Matogrosso, em especial à senhora Lúcia Furtado, que disse-me ser Ney
Matogrosso um sentimento contramão. Sua fala contribuiu para construção do tulo da
presente pesquisa. À senhora Elke, pianista, que ao oferecer-me um café em um final de
tarde em sua residência percebeu em mim uma tristeza no olhar e falou-me então sobre
a importância de viver o tempo presente com intensidade e amor.
Ao meu caríssimo orientador e amigo Prof. Dr. Ismael Pordeus Júnior, que muito mais
que suas pertinentes observações em torno da tese, mostrou-me como podemos nos
conduzir com mais liberdade e autenticidade pela vida. Ao Prof. Dr. Gilmar de Carvalho
por atender ao convite para compor a banca examinadora da presente tese e por sua
singularidade dentro do universo acadêmico. Ao Prof. Dr. Alexandre Fleming pelas
pertinentes observações tecidas em torno dessa pesquisa durante exame de qualificação
e, sobretudo, por sua coerência ao sugerir novos rumos em torno do saber científico. À
Prof. Dr. gia Dabul, pela leitura de minha pesquisa e pelas reflexões em torno do
público contidas em sua tese. Ao Prof. Dr. Gisafran Mota pela apreciação de minhas
reflexões. Ao professor e amigo Rui Barbosa nior pela revisão de texto e abstract. Ao
secretário Aimberê pela presteza ao tratar dos assuntos da pós-graduação A Marcondes
Chaves Almeida, aglutinador de fãs de Ney Matogrosso, pelas possibilidades abertas.
Ao Dr. JoPolicarpo de Araújo Barbosa, ex-militante potico, médico sanitarista, pela
entrevista concedida. As primas e irmãs Janaína e Ludmila Teles. Ao pesquisador
Delano Pessoa pelas discussões acerca da autonomia e da liminaridade. A todos os
meus entrevistandos, que representaram um público implícito do cantor Ney
Matogrosso entre militares de alta e baixa patente. Aos homens que se denominaram
gays, transformistas, homens que fazem sexo com outros homens, e,em especial, ao
Senhor Breno Freitas por me proporcionar um encontro entre almas, estabelecendo-me
um elo comigo mesmo.
Ao amigos: Alexandre Cavalcante pelos diálogos acerca do fazer artístico; Pedro
Manoel pela sempre disponibilidade, Roberto Souza pela acessória informática; Mário
Sena pela singularidade e liberdade do pensar e do agir; Jean Carlos pela catalogação
das fontes de pesquisa e sabedoria de viver; Ari Filho pela lealdade; Alan Bizarria pela
elaboração e apoio da apresentação de tese, Hilton Junior pela cumplicidade; Elvis pela
chamada intensa à vida; Romell, pelos momentos de escuta e companhia; ao meu dileto
amigo e irmão Assis Coelho pelo incentivo dado a minha pesquisa, sobretudo pela
preciosa recepção em maio de 2009 no Serhs Natal Grand Hotel, onde possibilitou-me
momentos de diálogo com o artista Ney Matogrosso.
Agradeço ao tempo, talvez ao destino ou ao alinhamento dos planetas, que no dia 17 de
outubro de 1981 me conduziu ao Ginásio Coberto Paulo Sarasate em Fortaleza para
assistir ao show do artista Ney Matogrosso. A partir desse acontecimento, tive o
impulso necessário para realizar a presente pesquisa de doutoramento. Por fim,
agradeço ao artista Ney Matogrosso por sua singular contribuição ao cenário da música
brasileira e por todas suas recepções concedidas a minha pessoa em seu camarim, em
especial a sua delicadeza e simplicidade ao receber minha dissertação de mestrado na II
amostra de Cinema Mix em Fortaleza, em 08 de setembro de 2008 e aos diálogos
informais no Serhs Natal Grand Hotel durante os dias 06 à 08 de maio de 2009, onde
tive a oportunidade de entregar em mãos a presente tese de doutoramento.
Autonomia
(Cartola)
É impossível nessa primavera/ Eu sei/
Impossível pois longe estarei/ Mas pensando
em nosso amor/ Amor sincero/ Ai se eu tivesse
autonomia/ Se eu pudesse gritaria/ Não vou,
o quero/ Escravizaram assim um pobre
coração/ É necessária a nova abolição/ Pra
trazer de volta a minha liberdade/ Se eu
pudesse gritaria amor/ Se eu pudesse brigaria
amor/ Não vou, não quero/ o, não quero.
(MATOGROSSO, 2006).
RESUMO
O presente trabalho aborda a trajetória artística do cantor Ney Matogrosso no período
compreendido entre os anos de 1975 a 1983, dentro de uma perspectiva de
entendimento da construção da autonomia artística do cantor em relação à censura
moral do regime militar e ao cerceamento da indústria fonográfica e da dia. Dessa
maneira, observar-se-á a construção social do corpo transgressor do artista, que rompeu
com um referente cultural do que naquele momento significava ser “macho” e com o
eminentemente instituído; tendo, dentro de uma pluralidade de princípios e
comportamentos, sido posto em uma condição de liminaridade artística frente aos
poderes instituídos.
ABSTRACT
The present work makes an analysis of the artistical career of the singer Ney
Matogrosso, between 1975 and 1983, by trying to understand the development of his
artistic autonomy process in such an adverse context as that of the military regime and
its moral censure, the limiting record companies and media as well. In this perspective
the transgressive body of the singer and also its social construction will be analyzed.
The body language and behavior of the singer have broken away from all cultural
references and values of machismo at the time. He has also broken the rules of social
customs, and consequently he has been put in a liminar condition in relation to the
establishment, in despite of belonging to a society rich in multiplicity of principles and
behaviors.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................13
1 “CATANDO CARAMUJO NA BEIRA DO RIO”: ARTE E FAZER
ARTÍSTICO................................................................................................21
1.1 “Um cara meio estranho”: Ney de Souza Pereira - formação e
dilaceração do habitus.................................................................................22
1.2 “Sou um ator que canta”: Ney Matogrosso - o fazer artístico...............33
1.3 O que me salva é a minha insensatez”: o campo artístico e a subversão
da indústria fonográfica...............................................................................45
1.4 “Ai, se eu tivesse autonomia!”: Mozart, Beethoven, Flaubert, Manet,
Ney – rumos e sentidos para uma autonomia artística................................55
1.5 “Condenado a viver perto da loucura”: Ney pessoa, persona uma
condição liminar..........................................................................................71
2 SOU QUEM TEÇO A MINHA RENDA”: POR UMA AUTONOMIA
ARTÍSTICA - UM CORPO QUE TRANSGRIDE....................................81
2.1 “Água do u - Pássaro”: A Continental Discos S/A e o espírito do
acontecimento.............................................................................................83
2.1.1 “Homem de Neanderthalno Hotel Nacional – um ser irreal..............................
86
2.1.2 O retorno a São Paulo e o estigma de ex-Secos & Molhados..............................
92
2.1.3 “Por onde anda Ney Matogrosso?” Dívidas, fracasso, silêncio............................
95
2.2 “Bandido” - o bicho homem” virou gente. O fim do estigma?.........100
2.2.1 Um “bandido” que não mata, na Lemos de Brito...............................................
104
2.2.2 Ney no Teatro Ipanema - a reconquista de seu público em meio a uma censura
moral.............................................................................................................................
109
2.2.3 Pecado” com Emilinha Borba, Moreira da Silva, Caetano, Chico e Milton a
popularização de uma estrela.......................................................................................
113
2.3 “Feitiço” - Ney está nu! A personificação do atentado à moral e aos
bons costumes............................................................................................121
2.3.1 A WEA e a ascensão da popularidade do artista junto ao público e a
mídia.............................................................................................................................
126
2.3.2 Ney na Galeria Alaska - Uma exuberância subversiva entre o glamour e o
underground gay..........................................................................................................
130
2.2.3 Ney no Teatro Pixinguinha e a censura da mídia................................................
136
3 “LOUCO E SOLTO GRAS A DEUS”: AUTONOMIA ARTÍSTICA
UMA RELATIVIDADE...........................................................................142
3.1 Seu Tipo”: a reinvenção de um corpo rumo a uma autonomia
artística......................................................................................................143
3.1.1 A estréia no Teatro Carlos Gomes e as diversas tonalidades do amor................
146
3.1.2 A “Mato Grosso Produções Artísticas” o fim dos empresários?......................
148
3.1.3 Sujeito Estranho” - um artista relativamente autônomo entre a WEA e a
Ariola............................................................................................................................
153
3.2 Ney Matogrosso”: a consagração face ao blico e à mídia.............159
3.2.1 O disco de ouro e a estréia no Canecão: aplausos!..............................................
160
3.2.2 Se eles querem, eu quero o dobro”. O retorno ao Maracanãzinho e o Especial da
Rede Globo...................................................................................................................
176
3.2.3 A estréia no Teatro do Anhembi-SP: ingressos esgotados e prorrogação..
181
3.3 “Mato Grosso”: um espetáculo de milhões para milhões....................183
3.3.1.A volta ao pantanal mato-grossense e a apresentação em Montreux..................
184
3.3.2.A estréia no interior paulista: uma inversão de ordem...............................
189
3.3.3.A apoteose no Morumbi - a retomada do fenômeno de massa e a relatividade de
uma autonomia artística................................................................................................
194
4 “MAGIA, SONHO E FANTASIA”: A MULTIPLICIDADE DE UM
PÚBLICO NA CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA...............................201
4.1“O ódio atinge generais, soldados rasos”: o olhar implícito dos militares
– uma análise discursiva do poder sob a ótica Habermasiana...................202
4.1.1 “Antes ele se vestia como Carmem Miranda, aspecto assim de gay”.................
204
4.1.2 “Cantando fino, é coluna do meio, um imoral, homossexual nojento”...............
205
4.1.3 “Ney mato fino e não Ney Matogrosso, pois o era pederasta”?......................
206
4.2 “Não existe pecado debaixo do equador”: o público feminino...........214
4.2.1“Existe um sentido potico em sua arte. Ney é desacato, sentimento
contramão”...................................................................................................................
216
4.2.2 “Já tive desejos eróticos, fantasias amorosas com Ney, meu fauno liberto”......
218
4.2.3 “Acendo um incenso, faço uma prece, peço paz e vem. Ney é luz, amor”.........
220
4.3 “Um pecado suado, rasgado, a todo vapor”: o público gay................221
4.3.1 “Antigamente ser fã do Ney era sinônimo de ser gay”.......................................
224
4.3.2 “Ney era força, pois era difícil ser gay, íamos pras boates depois do show”......
225
4.3.3 “É um mito dizer que artista não tem preconceito”.............................................
226
5 NOS VERDES MARES, CALMA LAMA”: UM BLICO ÁVIDO
POR NEY EM FORTALEZA...................................................................233
5.1 “Bandido”,Bandoleiro”,Seu Tipo”:do streap-tease ao paletó.......235
5.1.1 “Estilhaços de vidro, gente ferida, cortada, parecia cena dos Beatles”...............
238
5.1.2 “Fui fugida do marido. Gente gritando, querendo rasgar o Ney, derio”...........
240
5.2 “Homem com H”: O show do ano. O Paulo Sarasate pede bis..........246
5.2.1 “Luzes se apagaram, Ney surgiu. Pessoas tentavam subir o alambrado
desesperadas”................................................................................................................
248
5.2.2 “Vi Ney saindo em um Galaxie e os bailarinos em um ônibus, pulei e peguei na
o de um”...................................................................................................................
249
5.3 “Por debaixo dos pano”: a festa..........................................................251
5.3.1 “Pára, pára tudo, pára atrás. Fitou a platéia, sério. Aqui era mais quente”....
253
5.3.2 “Todo mundo ficava querendo pegar nele, chegar perto”...................................
253
SENTIMENTO CONTRAMÃO”: CONCLUSÃO.................................256
REFERÊNCIAS........................................................................................259
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA...........................................................269
13
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objeto a trajetória artística do cantor Ney Matogrosso
no período compreendido entre os anos de 1975 a 1983. Essa trajetória aqui analisada
aponta, em primeira instância, para a construção social de um corpo transgressor e para
o processo de legitimação da autonomia artística do cantor em relação à censura moral
intensificada durante o regime militar, bem como as relações de poder estabelecidas
pelo setor empresarial e pelo mercado fonográfico, enquanto tentativa de manipulação
da obra do artista.
Em segunda instância, tratarei, ao longo do trabalho, da hostilidade de cunho
homofóbico existente em relação à conduta transgressora do artista para com as normas
e padrões morais da época. Essas presentes, em aspecto geral, na cultura brasileira dos
anos 70, nas instituições militares, em alguns setores da mídia e da própria classe
artística. Analisarei, ainda, a relão entre o artista e seu público, no tocante ao seu
processo de recepção.
Em
estudo anterior
1
, quando então fora analisado o caráter transgressor do
grupo musical Secos & Molhados frente ao regime militar, refletiu-se sobre o “lugar
social” de seus três integrantes, demonstrando a pluralidade de valores existentes no
interior do grupo. Dessa maneira, a presente tese é um aprofundamento da análise
acerca do princípio de autonomia artística do vocalista do grupo, Ney Matogrosso.
Sete meses após a dissolução do grupo, precisamente em março
de 1975, o
ex-vocalista dos Secos & Molhados, Ney Matogrosso, iniciou o percurso de sua carreira
solo com o lançamento do LP Água de Céu-Pássaro e a estia do show Homem de
Neanderthal, no teatro do Hotel Nacional, cidade do Rio de Janeiro. O cantor continuou
a transgredir, por meio de seu comportamento cênico andrógino, as normas e condutas
morais inerentes à cultura brasileira, intensificadas durante o regime militar, em que
predominam os padrões machistas.
Dentro desse contexto político e social, no qual estava inserido, o cantor
passou a construir sua autonomia artística no campo da arte, frente à censura moral do
regime, assim como sua autonomia em relação às imposições de ordem mercadológica,
a que a instria fonográfica tentava submeter os artistas, em clara manipulação do seu
1
QUEIROZ, Flávio de Araújo. Secos & Molhados: transgressão, contravenção. 2004. 169p. Dissertação
(Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004.
14
fazer artístico. Ressalto, ainda, que no início dos anos 70, era o momento de
implementação e alargamento das multinacionais no Brasil. No mercado fonográfico
isso foi representado pela vinda de rias gravadoras estrangeiras, tais como a Phillips,
WEA, Sony, entre outras.
A projeção de Ney Matogrosso no campo musical deu-se nesse período de
expansão do mercado fonográfico. Desse modo, o artista passou a sofrer não
imposições oriundas dessa lógica de mercado, como também vetos de natureza moral
pelos órgãos de repressão e censura do regime militar. Seus espetáculos passaram a ser
proibidos para os menores de dezesseis anos e posteriormente para os de dezoito. Houve
também casos de censura em relação a alguns locais das apresentações.
Com o decorrer dos anos, as regularidades de tais medidas de veto tenderam
a se intensificar. O espetáculo Bandido, foi vetado em sua estréia no Teatro Ipanema, no
Rio de Janeiro. Tento tido sua estréia na penitenciária Lemos de Brito. O LP Feitiço,
lançado em 1978 foi censurado e recolhido do mercado, em função da nudez do artista
na parte interna do LP, e teve sua temporada transcorrida no Teatro Alaska, localizado
na controversa Galeria Alaska
2
.
O período acima mencionado, que inclui os três primeiros espetáculos do
artista em sua carreira solo, Homem de Neanderthal (1975), Bandido (1976/77) e
Feitiço (1978/79), constituiu-se na fase em que o cantor encontra-se em uma condição
de liminaridade artística frente aos órgãos de repressão e censura do regime militar, a
alguns setores da imprensa, sobretudo os setores que se encontravam sob tutela do
governo e, por fim, em relação indústria fonográfica. Na verdade essa condição de
liminaridade é notória na carreira solo do artista desde sua saída do grupo musical Secos
& Molhados. Segundo Victor Turner (1974), tal categoria, compreendida como liminal
experience, teria similaridades com o que nós ocidentais vislumbramos por experiência
estética. Nessa “experiência de liminaridade”, teoria central de análise estudada por
Turner, em sua obra O Processo Ritual, a questão estética está intimamente ligada a
uma experiência de um espaço e de um tempo diferenciados do cotidiano. Esse é o
momento entendido como betwix (sic) e between.
A partir do ano de 1979, quando se deu o icio ao processo de abertura
política com o movimento de anistia aos exilados políticos do regime militar, foi
2
A Galeria Alaska fica situada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. O local era freqüentado à época
por um publico considerado “marginalizado” socialmente como: homossexuais masculinos e femininos,
prostitutas, michês, garotos, garotas de programa.
15
paradoxalmente o momento em que o cantor apresentou-se com uma imagem mais
intimista. Sem pinturas e vestido com um distinto terno branco, estreou em fevereiro de
1980 no Teatro Carlos Gomes o espetáculo intitulado Seu Tipo.
Desse ponto em diante, o artista iniciou um lento processo de distanciamento
de sua condição de liminaridade artística, na tentativa de tornar-se um artista autônomo.
A criação da Matogrosso Produções Artísticas (1979), seu contrato com a gravadora
Ariola e a estia do espetáculo Ney Matogrosso (1981), foram fatores importantes
dentro desse processo de construção da autonomia artística do cantor, como ficará
demonstrado ao longo desse estudo.
Para análise mais detalhada acerca da tentativa de autonomia artística do
cantor Ney Matogrosso, faz-se pertinente a compreensão do pensamento do sociólogo
alemão Norbert Elias, quando, em sua obra Mozart: Sociologia de um gênio, refletiu
acerca da tentativa do músico Wolfgang Amadeus Mozart de tornar-se umartista
autônomo” em meio a uma sociedade cortesã. Na Alemanha no século XVIII, surgiu a
figura do “escritor autônomo” de modo apenas experimental, pois havia um mercado
livre formado por um grupo de burgueses instruídos, com renda suficiente para comprar
e produzir livros. No campo da música, essa realidade não existia. Assim sendo, Mozart,
ao tentar sua autonomia, depara-se com uma estrutura social adversa ao seu intuito.
O cantor Ney Matogrosso, em seu intento de tornar-se um artista autônomo,
envolve-se em disputas não somente com a censura moral do regime militar, mas
também com as gravadoras, que, naquele momento, tentavam cercear sua liberdade de
expressão artística em função da lógica de obtenção de lucros no mercado fonográfico.
Esse embate, entretanto, é bem mais abrangente e pressupõe uma hostilidade enraizada
em uma tradição homofóbica, presente na cultura brasileira, em que estava inserido o
campo da arte.
Nesse sentido a reflexão acerca do princípio de autonomia dos campos e a
luta em seu interior, faz-se pertinente por meio da teoria dos campos, concebida por
Pierre Bourdieu. O fazer artístico do cantor Ney Matogrosso inserido no campo da arte
gerou uma disputa dentro do próprio campo, o que, de certa forma, simboliza as teorias
de automação dos campos de Bourdieu. Percebe-se, de tal modo, a existência de dois
pólos dentro de um campo, confirmando, assim, a teoria de Bourdieu da não total
autonomia dos campos, com a subdivisão de campos em subcampos.
Da mesma maneira, quando o filósofo alemão Jürgen Habermas analisa as
patologias sociais dentro dos preceitos da Teoria da Modernidade, ele aponta para o
16
conflito entre o sistema e o mundo vivido. E é exatamente sobre essa transformação da
subjetividade em intersubjetividade expressiva que se o confronto entre sistema e
mundo vivido. Dessa forma torna-se notório esse embate surgido entre o mundo vivido
do artista Ney Matogrosso dentro da esfera da arte - subjetividade/intersubjetividade - e
o sistema propriamente dito, o poder vigente do regime militar.
Ney Matogrosso transita por esse contexto durante o peodo do regime
militar, em meio a um universo social e potico em que os setores culturais
encontravam-se sitiados, vigiados, sob justificativa de uma possível subversão política
do regime vigente. Constrói-se, a partir de então, no bojo dessa realidade do mundo
vivido, uma gama de sentidos em um horizonte no qual os sujeitos se encontram, se
entrelaçam e se embatem.
Para tanto, foram utilizadas as seguintes fontes impressas: jornais com
circulação local
3
(O Povo e Tribuna do Ceará), jornais de abrangência nacional
4
(Jornal
do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo, Jornal da Tarde e Diário de São Paulo),
jornais alternativos
5
(Opinião e O Pasquim), revistas de circulação nacional
6
(Veja,
Visão, Manchete). Ainda entre as fontes impressas foram analisadas duas produções
bibliográficas acerca da trajetória do artista: Ney Matogrosso: um cara meio estranho,
da jornalista Denise Pires Vaz, e Ney Matogrosso: ousar ser, do jornalista Be
Fonteles.
O distanciamento dessas obras em relação ao percurso do artista
proporcionou uma análise contextual, em que foi possível demarcar uma percepção até
então não obtida nos jornais e revistas, visto o caráter midiático imbuídos em seus
textos. A seleção de depoimentos colhidos por meio dessas obras nos permitiram
3
O critério de seleção adotado para a realização da pesquisa nos jornais O Povo e Tribuna do Cea deu-
se a partir do relato de serem os dois maiores jornais em circulação/tiragem no Estado do Ceará no
período referido: 1975-1982, bem como seu caderno ligado às questões culturais. Fonte localizada no
setor da hemeroteca da Biblioteca Pública Menezes Pimentel em Fortaleza (pesquisa diária).
4
Os jornais de circulação nacional foram adquiridos por meio de pesquisa encomendada a redação do
jornal Folha de São Paulo via Internet, endereço eletrônico: www.folhadesaopaulo.com.br intitulada: Ney
Matogrosso apresentações 1975-1982 (a redação selecionou as matérias nos referidos jornais a partir da
temática acima solicitada).
5
Diz-se dos órgãos de imprensa (especialmente jornais e revistas) editados por grupos independentes dos
interesses dominantes e que constituem, em relação às fontes tradicionais de informação, uma opção para
o público leitor, em termos ideogicos, formais ou temáticos (KUCINSKI, 1991). Os jornais alternativos
Opinião e O Pasquim são de arquivo particular. Estes Jornais terão um sentido de compreensão da
maneira como a imprensa alternativa abordava os aspectos culturais, que se tratava de um jornal onde
predominava questões de natureza político-econômica (pesquisa nos semanários entre os anos de 1975-
1978).
6
As revistas a serem pesquisadas tiveram o mesmo critério de seleção dos jornais locais. Fonte localizada
na Biblioteca Pública Menezes Pimentel (pesquisa diária).
17
entrecruzar dados e dessa maneira aprofundar e ampliar a alise acerca das
informações extraídas dos jornais e revistas .
No que se refere às fontes audio-visuais, utilizamos recursos de arquivo
particular, pertencentes ao autor dessa tese, e provenientes, com direitos reservados, das
emissoras de televisão Globo, Record, Educativa do Rio de Janeiro, Tupi de São Paulo,
Bravo-Brasil e Muti-show, que compreenderam no primeiro momento, as entrevistas
concedidas pelo cantor Ney Matogrosso à Rede Globo e às demais emissoras. Foram
observados, durante a análise dessas entrevistas, os aspectos pertinentes ao momento de
acontecimento de seu primeiro espetáculo Homem de Neanderthal (1975), ao último
analisado Matogrosso (1982). No segundo momento, analisamos alguns trechos de
apresentações, de modo a compor uma análise da performance, do ritmo, do gesto e do
canto do artista.
Tendo a compreensão de que as gravações visuais de espetáculos já se
constituíram em si mesmas uma interpretação e não mais a representação do discurso
vivo como nos assinala Zumthor (1997), visto que tais imagens, já teriam sido alteradas
pelos cortes, ângulos, como pelo sentido de quem as produziu, entendemos que o canto
gravado, o qual analisaremos nessa pesquisa é “vago” em relação à sua expressividade,
peculiar ao tempo e espaço social em que foi produzido. A ação de tais imagens seria
“irrecuperável” em sua íntegra, bem como em sua dimensão de totalidade. Logo, a
performance estaria também comprometida no sentido de sua integridade visual.
Dentro do universo virtual, que hoje se apresenta como uma nova fonte de
pesquisa realizamos consulta sistemática de caráter meramente informativo nos sites
oficiais do cantor Ney Matogrosso (MATOGROSSO, 2006), Secos & Molhados
(SECOS & MOLHADOS, 2006), no web club Flores Astrais (UBATUBA, 2006).
Dentro do aspecto informativo encontrado nesses sites, estes nos informaram a
discografia, as letras das composões, bem como parte das imagens anexadas na
presente tese referentes à trajetória do artista e aos diversos momentos carreira solo.
Ainda dentro do universo virtual recorreu-se ao Orkut
7
, um site de
relacionamentos muito difundido, no qual encontramos oito comunidades relativas ao
cantor Ney Matogrosso. Dentre as oito duas foram selecionadas por sua organização e
7
Orkut é uma comunidade on-line desenvolvida para promover a interação entre as pessoas, estabelecer
relacionamentos e criar comunidades em torno de interesses comuns. Desde seu lançamento em 2004, o
orkut cresceu incrivelmente em todo o mundo. Freqüentemente recebemos comentários de nossos
usuários sobre como o orkut se tornou importante em suas vidas (se você for um deles, conte-nos a sua
história).
18
propósito claro de intercâmbio entre seus membros. A partir dessas duas comunidades
estabelecemos contatos com seus membros admiradores do cantor, realizando dessa
maneira diálogos com o público feminino e gay do artista. Esses diálogos foram
estabelecidos por meio de correio eletrônico, com o formato de entrevistas, a partir de
um roteiro de questões previamente elaboradas, que se estenderam de acordo com a
disponibilidade de respostas de cada entrevistando.
Para realização dessas entrevistas, delimitamos como sujeitos de investigação
dez senhoras representando o público feminino e dez senhores representando o público
gay que se auto-intitulavam fãs e admiradores do cantor. Esses entrevistandos são
residentes nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, com idade acima de 50 anos.
Essa faixa etária foi assim delimitada em função da possibilidade de haver presenciado
aos espetáculos do período analisado, nominalmente os anos de 1975 a 1982. No que
tange às entrevistas realizadas na cidade de Fortaleza com oficiais militares e fãs do
cantor, foram entrevistados dez oficiais do sexo masculino e dez fãs do artista de ambos
os sexos. Tais entrevistas foram gravadas em suas residências e posteriormente
transcritas.
As entrevistas com fãs do cantor na cidade de Fortaleza deram-se a partir do
Senhor Marcondes Chaves de Almeida, aglutinador de fãs do cantor e contatos por mim
estabelecidos, a partir de conhecimentos de fãs do artista durante as apresentações do
cantor na capital cearense entre os anos de 2001 a 2008. Delimitamos, portanto, como
sujeitos de investigação dez fãs, residentes em Fortaleza, com idade superior a 40 anos,
faixa etária escolhida em função da maior possibilidade de presença nos espetáculos do
período entre os anos de 1977 a 1983.
As entrevistas com os oficiais militares das Forças Armadas Brasileira,
residentes na cidade de Fortaleza, deram-se a partir do primeiro informante o Tenente
Afonso Cardoso. Delimitamos como sujeito de investigação dez militares de baixa e alta
patentes, com idade acima de 75 anos, por encontrarem-se na ativa no período de 1975 a
1983. Tendo sido empregado o mesmo procedimento metodológico que com os demais
entrevistandos.
Ressalto que, nessas falas acerca do artista Ney Matogrosso, o que está
enunciado é aquilo que, inexoravelmente, está impresso na memória afetiva desses
indivíduos e neles se inscreveram de forma a se perceber as possibilidades de
transgressão bem como de repressão. Essas falas introduzem circunstâncias que
permitem extrair uma visibilidade sobre a trajetória do cantor Ney Matogrosso, que
19
estão vedados aos arquivos analisados, pela própria condição em que se encontravam
naquele momento de repressão e censura do regime militar.
Por meio desses documentos, pode-se construir o argumento de que o artista
Ney Matogrosso buscou concretizar sua autonomia artística dentro do cenário da cultura
brasileira enfrentando uma censura de natureza moral por parte dos órgãos de repressão
e censura do regime militar, como também opondo-se aos mecanismos de imposição da
indústria fonográfica, antecipando-se à essa lógica de mercado em sua tentativa de
tornar-se um artista autônomo. A tentativa de tornar-se um artista autônomo dá-se a
partir de tais pressupostos. É dentro dessa perspectiva que o argumento central dessa
pesquisa investigativa será conduzido.
No primeiro capítulo, procurar-se-á analisar o fazer artístico do cantor Ney
Matogrosso a partir da formação de seu habitus primário, secundário e a dilaceração
desse próprio habitus. Dessa maneira compreender-sé-á dentro lógica da indústria
fonográfica as regras impostas por esse mercado e a subversão dessas mesmas
executadas pelo cantor. Para tanto, compreender-sé-á o lugar social do cantor em sua
tentativa de tornar-se um artista autônomo, dentro da condição de liminaridade artística
entre a pessoa de Ney de Souza Pereira e do personagem Ney Matogrosso. Far-se-á a
partir de então um estudo comparativo entre outros momentos análogos das produções
culturais. Na música, com Mozart e Beethoven, e na literatura, com Flaubert, os quais
também buscavam, cada qual dentro de seu contexto de época, sua autonomia artística.
No segundo capítulo, analisar-se-á, por meio de recursos áudio-visuais,
fontes impressas e entrevistas a trajetória do artista no período compreendido entre os
anos de 1975 a 1978. Ressalto que nesse período o cantor se encontrava em uma
condição de liminaridade artística frente as gravadoras e ao regime militar. Dessa
maneira, nos será possível melhor compreendermos os níveis e critérios de censura
moral exercidos pelos órgãos de repressão do governo militar no campo da música, bem
como o cerceamento das gravadoras.
No terceiro capítulo, trabalhar-se-á no mesmo sentido do anterior, no
período compreendido entre os anos de 1979 a 1982, quando se deu a retomada do
cantor enquanto fenômeno de massa. Dessa forma, será analisado o momento em que o
artista distancia-se de sua condição de liminaridade artística, em uma tentativa de
tornar-se um artista autônomo frente aos poderes instituídos. A performance, o gesto, a
20
poesia, o canto, enfim o corpo do artista, são compreendidos nesse capítulo como
elementos de transgressão, dentro desse processo de construção da autonomia artística.
No quarto capítulo, proceder-se-á a análise da relação entre o artista e a
multiplicidade de seu blico, concentrado nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
Far-se-á, portanto, uma análise discursiva do poder por meio da fala dos militares que
representavam naquele momento um blico implícito do cantor. Analisar-se-á o
público feminino por meio da fala de suas fãs e admiradoras e, por último, analisar-se-á
a percepção do público gay acerca do artista Ney Matogrosso. Ainda nesse capítulo, ao
analisar o público implícito do artista formado pelos militares, abordam-se questões
relativas à construção de um corpo que transgride as normas e condutas morais
instituídas no seio social circunscritas na cultura brasileira de caráter homofóbico.
No quinto e último capítulo, far-se-á uma análise dos espetáculos do artista
apresentados na cidade de Fortaleza entre os anos de 1977 a 1983), em que se tentará
compreender o comportamento do público, sendo feito um estudo comparativo entre o
público estudado no capítulo anterior, que apresentava-se de maneira mais amena nos
espetáculos do cantor, e um blico existente na cidade de Fortaleza, que comportava-se
de maneira mais intensa - aqui denominado público ávido. É dentro desse esforço de
entendimento e análise acerca da trajetória do cantor Ney Matogrosso que está
circunscrita esta tese. Em nenhum momento ela se pretende acabada e magistral no
sentido de fechamento acerca do assunto. Coloca-se, sim, como uma contribuão
acadêmica para a compreensão e entendimento acerca do comportamento transgressor e
do processo de construção e busca pela autonomia artística do cantor Ney Matogrosso.
21
1 CATANDO CARAMUJO NA BEIRA DO RIO
1
”: ARTE E
FAZER ARTÍSTICO
Não me considero, nunca me considerei um cantor. Sou um ator que canta.
Quando preencho fichas em hotéis não tenho coragem de colocar profissão
cantor. Coloco ‘artista’(PEREIRA, 1981).
O presente capítulo tratará do fazer artístico do cantor Ney Matogrosso, em
seu processo de criação e execução, inserido dentro de um contexto cio-político-
cultural da década de setenta, tendo por base a indústria fonográfica, o regime militar e
o ambiente artístico da época. Procurar-se-á enfocar a cultura brasileira de uma forma
mais ampla dentro de uma rede de relações com as questões de natureza político-
ideológica.
Para tanto, serão empregadas algumas percepções acerca da Cultura
Brasileira defendidas por Bosi (1992), quando esse compreende que não existe uma
cultura brasileira homogênea, com o papel de matriz de nossos comportamentos e dos
nossos discursos. A admissão do seu caráter plural é, no entanto, passo decisivo para
compreendê-la como um “efeito de sentido” que resulta em um processo de múltiplas
interações e oposições no tempo e no espaço. A cultura brasileira, segundo o autor, é
heterogênea, plural, mas não caótica.
Far-se-á, a partir de então, uma análise da formação do habitus do cantor,
bem como da dilaceração desse mesmo habitus em relação às normas e condutas morais
da época, enfocando a pessoa de Ney de Souza Pereira e o processo de construção da
persona artística do artista Ney Matogrosso em sua busca pela concretização de sua
autonomia artística frente à indústria fonográfica e em relação ao regime militar.
1
O título sugerido no capítulo I dessa tese de doutoramento_foi retirado da letra da música Homem de
Neanderthal, composição de Luiz Carlos, parte integrante do LP Água do Céu - Pássaro, lançado pela
Continental Discos S/A em março de 1975. Foi assim escolhida pelo autor em função da letra abordar os
primórdios de uma civilização, representando a construção de um ser irreal, enquanto personagem
incorporado pelo cantor no espetáculo Homem de Neanderthal. “Catando caramujo na beira do rio”,
significa o reiniciar do fazer artístico do cantor, após sua saída do grupo Secos & Molhados, dando a idéia
de início, do princípio do acontecimento, enquanto um artista que iniciava sua carreira solo,
rudimentarmente catando caramujo, tecendo artesanalmente seu fazer artístico.
22
Procura-se, pois, dessa maneira compreender a condição de liminaridade em
que o cantor (viu-se) encontrou-se em alguns momentos de sua trajetória artística. Esta
compreendida a partir da inserção do cantor no campo artístico e da luta gerada em seu
interior íntimo. Para tanto, recorrer-se-á à teoria desenvolvida por Pierre Bourdieu
acerca do princípio da autonomia dos campos que tipo de campo e a luta gerada no
interior deles.
Essa condição de liminaridade deu-se também com a pessoa de Ney de
Souza Pereira ao romper com os laços familiares e colocar-se “à margem do processo
social”. Assim, o processo de autonomia artística do cantor Ney Matogrosso - será
compreendido por meio de vários momentos ao longo da história quando outros artistas,
músicos, compositores e escritores tentavam serem autônomos em relação às normas e
condutas morais de sua época, tais como Mozart, Beethoven, Flaubert, Manet, dentre
outros.
1.1 “Um cara meio estranho”: Ney de Souza Pereira - formação e
dilaceração do habitus
Ney nasceu muito magrinho, com 1,5 Kg e 50 cm. Parecia uma tripinha!
Naquele tempo, em Bela Vista, não existia hospital e nem qualquer tipo de
recurso, e a gente contava com os médicos militares. Recém-nascido(com
seis dias), o médico disse que precisava tomar uma rie de injeções, porque,
de outro modo, não sobreviveria. Aquele período foi muito difícil, mas
depois o Ney começou a se desenvolver e, apesar de sempre magro, teve
muita saúde (BEITA DE SOUZA PEREIRA,1992 apud VAZ, 1992, p.287).
Ney de Souza Pereira nasceu em de agosto de 1941 na cidade de Bela
Vista, no Estado de Matogrosso do Sul, fronteira com o Paraguai, em uma família de
seis iros. Seu pai era militar da Força Aérea Brasileira e sua e exercia a funções
relativas ao lar. Ney tem descendência de argentinos e paraguaios, pois seu bisavô e avô
eram argentinos e sua bisavó era de origem indígena paraguaia, o que lhe conferiu uma
multiplicidade étnica. Ney relata: “Meu bisavô e meu avô eram argentinos, minha
bisavó era índia, eu nasci no mato e, em Bela Vista, existia uma mistura com o
português, o castelhano e o guarani (VAZ, 1992, p. 202).
23
As mudanças juntamente com a família para outras cidades eram constantes,
em decorrência das transferências ocorridas pela profissão de militar exercida por seu
pai. Até completar 17 anos, viveu no seio familiar e entre as cidades de Bela Vista
(MS), cidade do Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Campo Grande (MS). “Saiu de Bela
Vista com dois anos, viveu no Recife até os três, na Bahia até os seis, no Rio de Janeiro
até os quatorze, indo depois para Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, de onde
partiu aos dezessete anos, sozinho, para não mais voltar” (VAZ, 1992, p. 36).
Ainda em sua infância percebeu bem as fronteiras entre o mundo
“marginalizado” da favela e o mundo socialmente aceito, quando residia na cidade do
Rio de Janeiro no bairro de Moça Bonita. A jornalista Denise Pires Vaz comenta esse
episódio:
Desde muito cedo, ele percebeu que gostava mais da ‘estética moral’ do lado
considerado marginal, fora de esquadro, por achá-lo mais sincero. Com dez
anos, morando em Moça Bonita, no Rio, se sentia seguro na estação de
trem, quando voltava da escola, ao perceber a presença de um bandido
perseguido pela polícia, que vivia por alí e era como um amigo a lhe dar
proteção: olhando para ele, sabia que estava limpo e que, com ele por perto,
corria tudo bem. Não tinha medo de andar mesmo de noite da estação. A
linha de trem representava a divisão entre dois mundos: de um lado, a classe
média, onde vivia e não gostava; do outro, a favela, que adorava e para onde
fugia na primeira oportunidade(VAZ, 1992,p.21-22).
Em seu retorno ao Mato Grosso do Sul onde sua família passou a residir na
cidade de Campo Grande, permaneceu dos quatorze aos dezessete anos, passando esse
período de sua adolescência por momentos de solidão, pois permanecia horas seguidas
no mato, seminu e acompanhado por seus cachorros. “A vila militar onde a família foi
morar era recém-construída num pedaço da floresta, e ele diariamente, mal chegava do
colégio, entrava no meio da mata, tirava a roupa e ficava andando de uma às seis da
tarde. Ele e onze cachorros” (VAZ, 1992, p.158).
Em janeiro de 1959 aos dezessete anos, saiu definitivamente de Mato
Grosso e seguiu para a cidade do Rio de Janeiro, onde ingressou no serviço militar. Me
alistei na aeronáutica como voluntário para sair de casa. Em 1959 não se saía de casa
aos 17, e sim aos 21” (MATOGROSSO, 2003). Ney fala sobre o que representou sua
saída definitiva da cidade de Campo Grande (MS) para servir as forças armadas. “Tive a
lucidez de me mandar cedo de casa (o núcleo da coisa organizada) e viver frontalmente
contra o que aquilo tudo representava” (VAZ, 1992, p. 151).
24
Fonte: Vaz(1992) Fonte:Vaz(1992)
Figura – 1 Ney, 17 anos Figura – 2 Ney, 18 anos(Aeronáutica)
Sua sda de Mato Grosso deu-se efetivamente por questões de natureza de
divergência familiar. O núcleo familiar de Ney de Souza Pereira foi sempre movido por
um constante conflito entre ele, seu pai e sua mãe, que se mostrava segundo relatos do
cantor dividida emocionalmente entre os dois. Em relação a esses desafetos com o pai o
artista declara:
O teste era ele e eu o desafiei. Eu o desafiaria as autoridades? Eu não
desafiaria o poder constituído? Como, se eu tinha desafiado o maior poder
presente na minha vida, que era ele? E entendi também a minha mãe
depois. Entendi que ela não tinha ficado do meu lado o tempo todo, como eu
imaginava. Vendo com distanciamento, percebi que não. Ela fazia o jogo
muito mais dele do que o meu, embora ela tivesse uma preferência por mim
que era explícita, talvez por eu ser o foco da atenção negativa dele. Talvez
por isso ela tentasse me defender dele, mas a balança pesava mais para ele.
Na verdade, ela me defendia dele, mas ela gostaria que eu me submetesse a
ele para a paz reinar na casa. Ela só me protegia dele para eu não ser
massacrado totalmente. Ela queria que a paz se fizesse. Eu optei pela paz da
seguinte maneira: sai de casa. Eu sabia que, se continuasse ali, eles
inevitavelmente se separariam e seria por minha causa. Eu não queria
carregar essa culpa. Saí de casa consciente de que estava saindo para que eles
continuassem vivendo a vida deles, sem a minha interferência. Acho que foi
a coisa mais certa que fiz. A partir daí, ele começou a me olhar diferente. Eu
parti para não depender e nunca mais pedir um centavo a ele. Foi uma opção
da minha vida. Eu achava que, nos piores momentos, não poderia recorrer a
ele, já que tinha optado por uma vida independente. Acho que o fato de eu ter
vivido independentemente do meu pai, e ele saber que havia momentos muito
difíceis e eu nunca ter recorrido a ele, fez com que ele me olhasse com outros
olhos e ter respeitado a minha individualidade. (FONTELES, 2002, p.155)
25
Dessa forma, torna-se pertinente compreender como a pessoa de Ney de
Souza Pereira, logo ao romper com os laços familiares, acabou por produzir o que
Bourdieu (1997), designou por habitus dilacerado. No entanto antes de
aprofundarmos essa questão devemos primeiramente entender a noção e a evolução
do conceito de habitus em relação ao mundo social dos indivíduos. O habitus
primário e o habitus secundário.
Pierre Bourdieu (1992) acredita na possibilidade do conhecimento científico
do mundo social, que, segundo o autor, tem uma gica e estruturas possíveis para a
construção de modelos e teorias, e essas teorias são validadas na pesquisa empírica,
assim, desenvolveu uma teoria da ação. Segundo essa teoria, o pensador compreende
a ação social como uma prática que se desenvolve a partir de escolhas, mas que são
limitadas dentro de um campo de possibilidades. As ações dos indivíduos não estão
numa área infinita de liberdade, existem limites sociais, regras que devem ser
seguidas. O mundo social exerce sobre os indivíduos um tipo de coerção que faz com
que sejam compelidos a serem habitantes de uma época e é indutora de determinados
papéis sociais.
O social, para Bourdieu (1992), é histórico, plural, dependente de instâncias,
de fazeres sociais. Para a construção de uma teoria prática, de uma sociologia relacional,
o autor encontra a mediação entre o sujeito e a história, na noção de habitus, pois a
partir dela pode ser apreendida a dinâmica da sociedade, que funciona graças a
introjeção e internalização de valores por parte dos indivíduos. Então, segundo
Bourdieu, habitus define-se por:
Sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas
estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do
conjunto de práticas e das ideologias características de um grupo de agentes.
Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos
favoráveis que lhes propiciam uma posição e uma trajetória determinadas no
interior de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa uma posição
determinada na estrutura da classe dominante. (BOURDIEU, 1992, p.191)
A formação do habitus decorre primeiramente da posição de classe,
sofrendo posteriormente inflncia de outras áreas. Assim, sua estruturação está ligada
às diferentes posições ocupadas pelos indivíduos, ou pelos grupos sociais na hierarquia
social.
De fato, as distâncias sociais estão inscritas nos corpos, ou, mais exatamente, na
26
relação com o corpo, com a linguagem e com o tempo e outros aspectos estruturais da
prática que a visão subjetiva ignora.” (BOURDIEU, 1990, p.155)
O habitus é o fundamento maislido da integração dos segmentos ou
grupos sociais. Nesse sentido, a maneira como os indivíduos agem não está
desconectada do lugar que ocupa na hierarquia social. Por isso, tanto a formação
como as transformações do habitus estão relacionadas com as condições de
existência dos agentes.Bourdieu (1990) nos afirma:
O habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas de produção de
práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas. E,
nos dois casos, suas operações exprimem a posição social em que foi
construído. Em conseqüência, o habitus produz práticas e representações que
estão dispoveis para a classificação, que são objetivamente diferenciadas;
mas elas só são imediatamente percebidas enquanto tal por agentes que
possuam o digo, os esquemas classificatórios necessários para
compreender-lhes o sentido social. Assim, o habitus implica o apenas um
sense of one´s place, mas também um sense of other´s place(BOURDIEU,
1990, p.158).
O habitus corpo e sentido às práticas sociais através da incorporação da
visão de mundo, dos valores e das regras, no decorrer do tempo. Sua formação dá-se
pela interiorização dos determinismos sociais. Na medida em que se repetem as
experiências pontuais e concretas, essas acumulam-se e estruturam-se em
disposições gerais. Agentes de um mesmo segmento social, vivendo as mesmas
condições de vida, tendem a incorporar as mesmas disposões que, ao
introduzirem-se, transformam-se em verdadeiros traços de personalidade, em outras
palavras, em uma segunda natureza, profunda e durável.
A vivência das mesmas condições objetivas organiza um sistema de
disposições duráveis que tendem a produzir estruturas geradoras. Esse sistema de
disposições, isto é, o habitus sistematiza as formas de agir, pensar e perceber dos
sujeitos, dando unidade e homogeneidade às práticas dos diversos grupos sociais.
O habitus é um mecanismo estruturante que opera no interior dos agentes.
Não é algo explicitamente expresso, nem estritamente individual, porém se constitui
um valor determinante na conduta dos agentes. Habitus, conceito chave na teoria de
Bourdieu, é aquilo que reside dentro do agente, em aberto. Sérgio Miceli sugere essa
reflexão na introdução da obra de Pierre Bourdieu Economia das Trocas Simbólicas:
27
O habitus constitui um princípio gerador que impõe um esquema durável e,
não obstante, suficientemente flexível a ponto de possibilitar improvisações
reguladas. Em outras palavras, tende, ao mesmo tempo, a reproduzir as
regularidades inscritas nas condições objetivas e estruturais que presidem a
seu princípio gerador, e a permitir ajustamentos e inovações às exigências
postas pelas situações concretas que põem à prova sua eficácia (MICELI,
1992, p. XLI).
Enquanto conceito que possibilita uma explicação articulada entre o
individual e o social, a noção de habitus sofreu modificações ao longo da obra de
Bourdieu. Hoje percebe-se um espaço para inovação, contrariando algumas críticas,
que atribuem ao autor uma postura teórica que visa à reprodução, negando, por assim
dizer, a mudança. Foram atribuídos outros aspectos à concepção de habitus, no sentido
de conter a transformação, ou seja, a dinâmica social:
O habitus é constituído por um conjunto sistemático de princípios simples e
parcialmente substituíveis, a partir dos quais uma infinidade de soluções pode
ser reinventada, soluções que não se deduzem diretamente de suas condições
de produção. (BOURDIEU, 1983, p.106)
O habitus mantém com o mundo social, do qual ele é produto, uma
verdadeira cumplicidade ontológica (social), pois ao sujeito autonomia de uma
intensidade sem intenção, e de um donio prático das regularidades do mundo que
permite avançar rumo ao futuro, de modo que ele possa construir sua própria história.
Este é o produto incorporado da prática histórica, estando assim presente na
produção de práticas individuais e coletivas.
Portanto, o habitus, enquanto capacidade geradora de práticas, disposição
adquirida socialmente em um processo de construção pode conter uma parte de
inventividade e adaptabilidade que permite uma coexistência entre aspectos de
permanência, improvisação e transformação.
O habitus é o produto de uma experiência cumulativa, que está sempre se
reestruturando, inicialmente nas primeiras experiências compartilhadas na família,
espaço de interiorização de condicionamentos (lição de moral, conflitos, preocupações,
gostos etc.). Depois, essa reestruturação dá-se na escola, nos grupos profissionais, que
se somam, à estrutura inicial. Portanto, pode-se dizer que o habitus é elaborado de
28
forma lenta no transcurso da hisria. Sendo transmitido tanto pela primeira educação,
sob responsabilidade da família, quanto pela educação formal a cargo da escola ou de
outros grupos. Neste sentido, assinala Bourdieu:
O princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, destas
orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação”, e muitas
vezes consideradas efeitos da tomada de consciência”, não é outra coisa
senão o habitus, sistemas de disposições inconscientes que constitui o
produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar
geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro
objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via,
carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas (BOURDIEU, 1992,
p. 201-202).
Dessa maneira, a formação do habitus primário e secundário do cantor
dentro do seio familiar e, já em uma parte de sua formação escolar, estando na condição
de filho de militar, residindo em uma vila militar, gerou dentro desse próprio habitus, o
chamado habitus dilacerado, compreendido por Pierre Bourdieu, ao romper com o seio
familiar aos dezessete anos para prestar serviço militar no Rio de Janeiro, entre os anos
de 1959 e 1960. Mais à frente, esse mesmo habitus dilacerado vem novamente à tona,
quando Ney ingressa como vocalista no grupo musical Secos & Molhados.
Passado os anos de 1959 e 1960, prestados ao serviço militar, Ney de Souza
Pereira, recebeu um convite de um primo que trabalhava no Hospital de Base na cidade
de Brasília, para trabalhar no laboratório de anatomia patológica do mesmo hospital,
chegando a Brasília no ano de 1961, aos 20 anos de idade. Ney atesta esse episódio:
Eu fazia minas de biópsia, o que foi importantíssimo, por ser meu primeiro
contato com a morte. Trabalhava diariamente ao lado dela. No começo, me
deprimia muito. Eu tinha total aversão. Quando vi o primeiro morto, quase
desmaiei. Mas o pensei em desistir e sair correndo, porque estava . Eu
acordava às 6 da manhã para estar às 7h30 no laboratório de anatomia
patológica e trabalhar até as 6 da tarde, batendo ponto. Devo reconhecer que
eu era o funcionário público mais estranho do hospital (MATOGROSSO,
2003).
Tempos depois, pediu transferência do setor de anatomia patológica, para
trabalhar no setor psiquiátrico ou com as crianças que se encontravam em fase terminal
em decorrência do câncer. Foi transferido pelo diretor do hospital para o setor de
recreação infantil, onde passou a fazer atividades lúdicas com as crianças.
29
Eu estava enjoado do cheiro de formol e queria trabalhar com loucos ou com
crianças. Surgiu uma vaga para recreação com crianças, onde trabalhei dois
anos. Foi a primeira vez em que tive prazer de trabalhar. Eu era o brinquedo
delas. Era hippie, ia cheio de colares, elas adoravam. Ao mesmo tempo, esta
foi também uma experiência muito dura. Havia crianças terminais e, muitas
vezes, eu chegava procurando por elas e elas não estavam mais vivas.
Alguma coisa me dizia, que eu podia fazer algo por elas. Aprendi que havia
urgência na vida, e que as coisas tinham que ser feitas diariamente, a todo
momento. Também descobri que é preciso estar disponível para o seu
semelhante. (MATOGROSSO, 2003)
Paralelo a seu trabalho desenvolvido no hospital ingressou em um coral de
música erudita, onde passou a cantar os clássicos.
Dos sete anos passados em Brasília, pelo menos quatro foram bastante
musicais e, sem dúvida alguma, um estágio para o futuro cantor - na época,
ainda um aspirante a profissão de ator. Achava sua voz muito esquisita para o
canto, mas, procurando preencher o tempo que lhe sobrava do trabalho no
hospital, acabou entrando para o coral do colégio Elefante Branco. (VAZ,
1992, p. 46)
A partir de então, foi convidado para participar de um festival universitário
promovido pela Universidade de Brasília, em que formava um quarteto vocal com três
outros cantores. Sob protestos de sua professora de canto, que elogiava sua voz especial
e entendia que Ney deveria cantar clássicos, e não MPB, Ney participou de tal festival,
cantando MPB.
Na ocasião, Paulo Machado (compositor), o convidou para cantar música
popular. Ia acontecer uma apresentação, na Universidade de Brasília, de
músicos da cidade para um grupo de universitários mineiros. Dessa
apresentação na Universidade surgiu um novo grupo, que em pouco tempo, se
tornou bem conhecido na cidade: Lena, Glorinha, Tião e Ney. (VAZ, 1992, p.
46)
Passado esse período dos festivais em Brasília, em meados de 1966, Ney
começou a fazer algumas apresentações em uma boate, portanto, sem maiores
pretensões de seguir a carreira de cantor.
Ney acabou convidado para se apresentar numa boate. Na estréia, nervoso e
cheio de medo, foi encorajado pelo dono do lugar com doses de conhaque.
Passado o trauma inicial de se apresentar sozinho, terminou fazendo uma boa
temporada na boate, apesar de não gostar de cantar em lugares fechados, com
pessoas bebendo. (VAZ, 1992, p. 47)
30
Após essa tentativa de cantor de MPB, Ney decide o mais cantar e
retornar a cidade do Rio de Janeiro em busca de novos horizontes. Em meados de 1966
sai de Brasília e segue para o Rio onde passa a viver da venda de seu artesanato,
aderindo dessa forma aos ideais de contracultura, fomentado pelo movimento hippie da
época.
No Rio de Janeiro, depois que pedi licença do hospital, virei um
"hippão".Vivi disso durante muitos anos. As boutiques compravam minhas
coisas, e vendiam muito caro. Uma americana quis me levar para os Estados
Unidos, porque achava que eu podia ganhar muito dinheiro com aquele
trabalho. O movimento hippie era algo latente, pulsando em mim. Quando
falou-se no movimento hippie e seus significados, uma explosão atômica foi
detonada dentro de mim. Todos os anseios, os sonhos de liberdade,
fraternidade, união entre as pessoas, o ter preconceitos, detonaram o que
existia comprimido em mim. Nunca mais pude voltar a ser o mesmo. Eu
acreditei de fato. Encarei o movimento como uma alternativa para a
humanidade. Sabemos hoje, que essa alternativa foi manipulada,
transformada em moda, em consumo. Mas o espírito que se desenvolveu a
partir do movimento hippie nunca mais se afastou de mim. Esta pessoa que
está aqui é o resultado provocado por um pavio que acendeu dentro de mim,
explodiu, e me revelou. (MATOGROSSO, 2003)
Durante esse mesmo período de sua aproximação aos ideais de contracultura,
retoma suas atividades no teatro, tendo sua primeira experiência profissional nesse
campo da arte. Recebendo um convite da cantora e compositora Luli, o cantor foi
morar em sua residência no bairro de Santa Tereza-RJ, onde passa a ensaiar algumas
músicas despretensiosamente com a compositora. Ney declara:
Eu pedi uma licença lá no serviço público e vim para o Rio de Janeiro, onde
continuei a fazer teatro. Fiz uma peça infantil; um musical com a Regina
Duarte que foi minha primeira experiência profissional. Nesse meio tempo,
eu fazia meus objetos na casa da Luli, que tinha um quintal onde eu podia
fazer muita sujeira, porque tinha muita cola, muito verniz... E quando ela não
estava dando aula de violão, a gente cantava junto. Ela tinha saco de tirar as
músicas naqueles tons estranhos que eu cantava. Exercitei muito isso com a
Luli. Foi através dela que surgi como cantor. (FONTELES, 2002, p.96)
Nesse mesmo período quando transcorria o ano de 1971, Luli apresentou
Ney a João Ricardo que na época intentava formar um grupo musical que mais tarde
seria conhecido nacionalmente como Secos & Molhados. Ney declara ao jornalista
Bené Fonteles:
31
[...] quando o Luiz Fernando, o companheiro dela, foi a São Paulo fazer a
fotografia de “O Diamante cor-de-rosa” com Roberto Carlos, a Luli
conheceu o João Ricardo e compuseram o “Vira”. Eles ficaram amigos.
Quando ela chegou ao Rio de Janeiro, me disse: “Olha, tem um grupo em
São Paulo que está precisando de um cantor que tenha seu timbre de voz,
mas você tem que ir para São Paulo”. o João Ricardo veio ao Rio de
Janeiro e me fez o convite. Três dias depois, eu estava em São Paulo com
poucas coisas que tinha, que cabiam dentro de uma sacolinha que eu mesmo
tinha feito. Tudo que era meu estava ali dentro.... E fui também sem grandes
expectativas. O que acontecesse seria mais uma experiência. Claro que eu
gostaria que desse certo. Se não desse, também teria vivenciado aquilo e teria
sido engraçado. Só que o Secos & Molhados aconteceu desde a primeira vez
que a gente se apresentou. (FONTELES, 2002, p.96)
A continuidade da formação do habitus secundário do cantor, entre os anos
de 1959 a 1971, que implicaram no serviço militar, no funcionalismo blico, a
inserção no campo artístico, por meio do teatro e posteriormente no canto do coral em
Brasília e o seu ingresso no grupo musical Secos & Molhados que se deu no final de
1971, gerou o que Bourdieu entendeu por habitus dilacerado. Na verdade, são estruturas
entrelaçadas na formação do habitus secundário do artista.
Tais circunstâncias deram-se paralelamente, de maneira imbricada, gerando
o habitus dilacerado, a partir da negação do artista a aderir à causa paterna, não
seguindo nem a carreira militar nem o serviço público. A declaração do artista ainda no
período da formação de seu habitus secundário atesta essa ruptura, apontando para o
habitus dilacerado. O artista afirma:
Me tornei uma pessoa muito contrária a preconceitos. Sempre que avistava
um preconceito, me manifestava contra. No ginásio, havia um menino
japonês, que era homossexual, que todos infernizavam. Eu não tinha, ainda, a
minha sexualidade definida, mas o defendia. Andava com o menino apenas
para desafiar aquelas pessoas. (MATOGROSSO, 2003)
Essa noção acerca do conceito e da evolução do habitus, refletida por
Bourdieu, seja na formação do habitus primário e do habitus secundário, está contido na
discussão proposta por Norbert Elias em sua obra A Sociedade dos Indivíduos,
enquanto estruturas contínuas, como estruturas múltiplas na formação do indivíduo que
se entrelaçam na existência social. Elias (1994, p.27) pontua essa relação entre os
indivíduos da seguinte maneira: “Ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente,
conforme sua constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena,
com suas fuões mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num
32
ser mais complexo”. Dessa maneira, Elias proe uma reflexão entre a pluralidade de
pessoas e a pessoa singular, à qual chamamos de “indivíduo”, e da pessoa singular com
a pluralidade, o que o autor vem a conceber como o habitus dos indivíduos.
A teoria da violência simbólica de Bourdieu (1998), fundamentada na
Filosofia da ação e na economia das trocas simlicas, permite-nos compreender
através de uma análise materializada da ordem simbólica, que as construções sociais
naturalizadas, legitimam as relações de dominação, como também nos permite ver que
os mecanismos sociais dessa construção (Estado/família) estão costurados diretamente
no habitus, sendo legitimador de identidades.
Nesse momento, a chamada fidelidade à causa do pai
(Estado/Igreja/Instituições) é rompida pelo artista Ney Matogrosso. Quanto maior a
obtenção de êxito para com o projeto paternal, maior o fracasso pessoal-ideológico.
Inversamente à essa questão, quanto maior o fracasso para com o projeto paternal,
exercendo a morte simbólica do desejo inconsciente do pai, maior a obtenção de êxito
para com o projeto pessoal-ideológico (BOURDIEU, 1997).
Bourdieu (1997) atenta para esse fator de repressão e censura, valendo-se da
teoria do mito do pai dominado, representado pelo Estado autoritário. Os fatores de
repressão e censura do regime militar, provocaram a dilaceração de tais
comportamentos no campo moral, impostos ao indivíduo pelos militares, viabilizando
dessa forma todo um processo de transgressão comportamental fomentado pelo artista
Ney Matogrosso em seu fazer artístico.
No ano de 1982 o artista em entrevista concedida a Jornalista Ana Maria
Bahiana do Jornal O Globo, onde trazia a seguinte manchete: “Não quero apenas
aplausos, mas mexer com a cabeça das pessoas”, demonstrava essa ruptura com a causa
paterna, a dilaceração do habitus. Ney afirma em entrevista:
Minha mãe me a maior força. Quando ela pode, ela me acompanha nas
excursões. Meu pai é mais na dele (o pai de Ney é militar reformado). Ele
diz que me acha um grande artista e eu sei que isso é muita coisa pra ele.
Quando eu era menino e dizia que queria ser artista, pintor, cantor, ele me
proibia, porque dizia que ser artista não era coisa de homem. E eu lutei muito
para mostrar a ele que uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Acabei
saindo cedo de casa e rompendo com esse esquema dele, de vez. Hoje, eu sei
que ele me aceita. Viu dois shows meus e achou bonito, o que para ele, deve
ser uma coisa muito difícil. (BAHIANA, 1982)
33
A jornalista Denise Pirez Vaz em seu livro Ney Matogrosso: um cara meio
estranho no ano de 1992, aborda a questão da ruptura do artista para com o projeto
paternal, dando visibilidade ao que Bourdieu compreendeu como vindo a ser o habitus
dilacerado. Momento esse quando o cantor Ney Matogrosso rompe com a causa paterna
e ingressou no conjunto Secos & Molhados. Denise Pirez afirma:
A primeira vez que o pai o viu na televisão, também ficou muito chocado:ele
usava uma calça enorme de odalisca, e o pai pensou que estivesse de saia. Era
demais. De saia , pintado, cantando fino e rebolando, não dava realmente
para um pai militar agüentar. se recuperou do susto e criou coragem para
assistí-lo ao vivo no Homem de Neanderthal, sua primeira apresentação
individual. Antes tomou remédio para o coração, mas, no final do show, falou
para a filha que o acompanhara que o achava um grande artista. (VAZ,
1992,p.52)
Ao se indagado pela Revista Diálogo Médico no ano de 2004, acerca desse
episódio o artista Ney Matogrosso declarou:
Diálogo Médico: E como ele reagiu quando você começou nos Secos &
Molhados?
Ney Matogrosso: Eu o avisei antes. Falei que iria fazer uma coisa que o
sabia direito o que era. Sempre soube que iria enlouquecer no palco, mas o
sabia o quanto o grupo escandalizaria o Brasil. Então, antes que qualquer
coisa acontecesse, eu falei e disse: Tô aí num grupo. Acho que vai ser
escandaloso. Vocês se preparem”. Era preciso avisar porque ele era militar,
era chefe de segurança de Ilha solteira nos anos 70, sabe o que é isso? O
curioso é que tempos depois ele me disse que a única coisa que o deixou
chocado foi a vez em que me viu na televisão usando uma calça de odalisca
com elástico na cintura. Parecia que eu estava usando uma saia.(RAMALHO,
2004)
O artista Ney Matogrosso não somente “traiu” a causa paterna por não
corresponder aos anseios dessa chamada causa paterna a que atribui Bourdieu, mas
também transgrediu ao romper com as relações de dominação morais costuradas no
próprio habitus, promovendo dessa maneira o habitus dilacerado.
1.2 “Sou um ator que canta”: Ney Matogrosso - o fazer artístico
Quando eu vou a um hotel e tenho que preencher uma ficha nunca boto
‘cantor’. Eu boto ‘artista’. Todas as manifestações artísticas me atraem, todas
elas. Então dentro dessa minha visão da coisa ampla das artes, tudo que me
34
for possível eu fazer eu farei. Não acho que porque eu sou cantor eu tenha
que ser exclusivamente cantor. Sou um ator que canta. O teatro, a iluminação,
me interessam muito. Eu tenho muita intimidade, contato com o teatro. A
iluminação, a luz é o espírito do acontecimento. (MATOGROSSO, 2000)
O artista Ney Matogrosso não teve influência musical de seus ascendentes,
no sentido de influenciar seu percurso artístico dentro do campo da música. Dentro do
seio familiar do cantor, contou apenas com a presença de seu avô materno que à época
tocava violão, mesmo assim segundo o próprio artista seu convívio com ele fora muito
restrito. Suas inflncias musicais começaram ainda na infância, quando ouvia de forma
indireta os LP’s de 48 rotações colocados por seu pai. No reperrio, os cantores
consagrados junto ao público e a mídia da Música Popular Brasileira à época como:
Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Ângela Maria,
entre outras vozes de repercussão nacional. A jornalista Denise Pires comenta:
Quando pequeno, o pai enchia sua paciência, nos finais de semana, de tanto
ouvir aqueles discos de 48 rotações, com as grandes vozes da época:
Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Dalva de Oliveira,
Ângela Maria. Mas não pertenceu a chamada família musical; o único que
tocava violão e cantava era o avô materno, com quem não manteve muito
contato. (VAZ, 1992, p. 46)
No entanto, apesar dessa influência recebida por esses cantores e cantoras,
sua maior referência deu-se por meio de duas cantoras de grande renome junto à mídia e
ao público da época: Carmem Miranda e Elvira Pagã. Essas duas cantoras tiveram
grande influência em sua formação artística, o que se deu ainda em na infância, quando
escutava suas vozes pelo rádio ou quando ia assistir aos programas de auditório na
Rádio Nacional em companhia de sua mãe. Esse episódio é comentado por Denise
Pires:
As referências artísticas mais enlouquecidas, e que fizeram mais sua caba,
foram todas as mulheres. Primeiro, Carmem Miranda, por quem ficava louco
na infância ao ver suas fotos. Encantou-se também com Elvira Pagã e suas
estranhas vestimentas. Essas mesmas vozes eram escutadas pelo rádio e, às
vezes, ao vivo, quando ia à Rádio Nacional com ae assistir aos programas
de auditório. (VAZ, 1992 p. 46)
35
Na época, década de 40, vivenciávamos a chamada Era do Rádio
2
, em que
as atenções do mercado fonográfico estavam voltadas para a Rádio Nacional
3
, já que o
advento da televisão
4
só chegaria ao Brasil em 1950. Por meio daquele veículo de
comunicação de massa eram lançados talentos da Música Popular Brasileira. Naquela
época, entre os anos de 1948/49, o cantor era algumas vezes levado à Rádio Nacional
por sua mãe e, em uma dessas visitas, deparou-se com Elvira Pagã, encantando-se ao
-la. Segundo o artista a exótica imagem da atriz, veio a influenciar seu
comportamento estético no palco. Ney comenta o episódio, afirmando:
Pirei com aquela mulher, que parecia ter saído do meio da mata. Aquilo era
tudo que eu carregava na minha caba como símbolos da floresta, e
sintonizou com um lado meu exótico. Nunca mais esqueci aquela imagem e,
certo modo, a reproduzi muitos anos depois. Embora não considere meu
corpo bonito, aprendi que ele possui ângulos favoveis, e passei a utilizar o
artifício de mostrá-lo de determinadas maneiras. Nunca alguém vai me
flagrar relaxado no palco: estou sempre colocado, porque descobri que, se
você entra numas de que seu corpo é bonito, você passa essa sensação para as
pessoas. (NEY, 1992 apud VAZ, 1992 p. 109)
Pararelo a essas percepções acerca das grandes divas da Rádio Nacional,
essa sensibilade artistica do cantor apontava para as artes plásticas, apresentando dessa
maneira, seus primeiros sinais no campo artístico dentro das concepções do desenho e
da pintura. Ney declara:
Antes de cantar, eu desenhava bem. Aos 9, 10 anos eu era capaz de desenhar
o retrato de qualquer pessoa. Nessa época, senti que ia estudar pintura, mas
meu pai vetou totalmente. Ele não queria que eu fosse artista. Mal sabia ele!
Cantar no circo, fazer teatro no colégio eram coisas que eu fazia escondido.
Eu passava o dia inteiro desenhando. Uma tia - que era uma pessoa muito
rígida - foi a única a me estimular artisticamente. Ela trabalhava no Palácio
do Catete e me enviava pilhas de papel. Eu ficava o dia todo desenhando,
2
O rádio foi lançado no Brasil por um grupo de intelectuais que via no veículo a possibilidade de elevar o
nível intelectual do país. Edgar Roquette Pinto era médico e antropólogo, fundador do Instituto Nacional
de Cinema Educativo. Os primeiros aparelhos de Rádio eram chamados rádios de galena de escuta
individual, feita através de fone de ouvido. Em 1926, foi inaugurada a Rádio Mayrink Veiga, contratando
o cantor Silvio Caldas. Na década de 30, o rádio despertou sentimentos que variavam do fascínio a
rejeição, possuindo em seu quadro artistas populares como Carmem Miranda, entre outros. Em 12 de
setembro é fundada a Rádio Nacional-RJ.
3
A Rádio Nacional foi fundada em solenidade oficial no pequeno auditório da mais recente emissora do
Rio de Janeiro, localizada no edifício da Praça Ma nº 7 na noite do dia 12 de setembro de 1936,
contando com a presença de ministros de Estado, embaixadores, acadêmicos, senadores, deputados,
prefeito do Distrito Federal e figuras representativas do grandmonde carioca (SAROLDI, 2005, p.50).
4
A TV Difusora foi inaugurada em São Paulo em 18 de setembro de 1950. Em 1951 surgia a primeira
emissora carioca, a TV Tupi Canal 6, também dos Diários Associados. Em três anos São Paulo ganharia
mais dois canais, de outros grupos, enquanto o Rio de Janeiro implantava sua segunda emissora em 1955,
a TV Rio Canal 13, com estúdios no antigo Cassino Atlântico, no posto 6 (SAROLDI, 2005, p.145).
36
enquanto todos estavam brincando. Desde muito novo, eu era introspectivo.
Certa vez desenhei um nu para a minha professora de artes, no colégio, cheio
de orgulho. Levei uma bronca na frente da turma. Fui chamado de imoral.
Era incompreensível uma professora de artes achar que um nu feminino feito
por uma criança de 13 anos era imoral. Não falei mais com ela. Ela o pediu
desculpas, mas sei que se arrependeu. Um dia lhe cedi o lugar no trem e
senti, pelo seu olhar e sorriso, o seu arrependimento. (MATOGROSSO,
2003)
No início da adolescência do cantor seu campo literário, foi regado por
leituras que iam desde as concepções acerca da ciência esotérica, representadas por
autores consagrados à época como Losang Rampa até leituras ligadas diretamente ao
movimento de contracultura como o autor Aldous Huxley e os poetas beatniks. O cantor
comenta:
Eu li Losang Rampa em minha adolesncia, depois Herman Hesse,
Castañeda...Li “As portas da percepção”, de Aldous Huxley, no qual o autor
defendia que o ácido lisérgico poderia ser usado pela humanidade e que seria
de extrema valia. E eu gostava daqueles beatniks todos... Aquela geração
beat, eu achava todos interessantes, porque era uma mentalidade semelhante
a minha. (FONTELES, 2003, p.169-70)
Passadas as décadas de quarenta e cinqüenta, nas quais o cantor recebeu as
inflncias bases dos cantores e cantoras da Rádio Nacional, segue rumo a capital do
Brasil, Brasília. Em meados dos anos sessenta, precisamente no ano de 1961, após ter
servido à Aeronáutica, entre os anos de 1959 e 1960, Ney parte do Rio de Janeiro para
Brasília, onde foi trabalhar no Hospital de Base. A jornalista Denise Pires Vaz relata:
Recém-saído do quartel, com dezenove anos, morou com uma tia em
Copacabana, enquanto procurava alguma coisa pra fazer. Um primo médico,
que vivia em Brasília, chamou-o para lá. Atraído pela possibilidade de
mudança, chegou a Brasília sem saber fazer nada, e acabou aprendendo
anatomia patológica. (VAZ, 1992, p.70-71)
Ao chegar a Brasília, Ney de Souza Pereira, aos vinte anos, depara-se com
uma cidade cosmopolita, imbuída em uma multiplicidade de referências cio-
culturais. Ele relata à jornalista Denise Pires: “Brasília no início dos anos 60, era mais
louca que qualquer cidade que já conheci. Permitia-se tudo, talvez pelo fato de ninguém
possuir um passado ali dentro: todo mundo estava chegando” (NEY, 1992, apud VAZ,
1992, p.71). Em depoimento ao jornalista Bené Fonteles Ney afirma: “Brasília foi
37
importantíssima na minha vida, foi o momento de decisão”. Era dono do meu nariz,
independente (NEY, 2002 apud FONTELES, 2002, p.88).
No início dos anos sessenta o campo musical no Brasil estava sob a
inflncia da Bossa Nova, no entanto esse movimento musical era restrito a alguns
centros urbanos como a cidade do Rio de Janeiro, sendo sua repercussão restrita a
jovens de classe média. No entanto, em 1963 com o surgimento da banda de estilo
musical rock-pop britânica intitulada The Beatles, a indústria fonográfica brasileira
volta sua atenção para essa promissora fatia que o mercado internacional apresentava.
Na época esse movimento ficou conhecido como a “febre da juventude”, “Beatle
mania”, pelo impacto que esse movimento musical causou no mercado e no público.
Desse modo, ao chegar à cidade de Brasília em 1961, aos 20 anos de idade, o
cantor esteve próximo a todo o movimento da Bossa Nova, sem em muito o influenciar,
e assistiu ao nascer do fenômeno de massa dos Beatles. Entretanto, ao contrário de um
grande percentual de jovens pertencentes a sua geração, que foram influenciados pelo
fenômeno de massa do rock britânico representado pelo conjunto musical The Beatles,
Ney deixou-se seduzir por artistas que na época eram considerados por alguns setores da
mídia e indústria fonográfica pertencentes à cultura underground daquela época, menos
difundidos pela indústria fonográfica e pela dia. Entre esses artistas citamos: Janis
Joplin, Jemmy Hendrix, os Rolling Stones que despertaram a atenção do cantor naquele
momento. Essa influência é atestada pelo próprio artista em entrevista ao jornalista
Bené Fonteles:
Bené Fonteles: E a música, o que você ouvia?
Ney Matogrosso: Janis Joplin e Jimmy Hendrix era os de que mais gostava.
Gostava também dos Rolling Stones.
Bené Fonteles: E os Beatles?
Ney Matogrosso: Eu gostava mais dos Rolling Stones, pois os achava mais
rebeldes [...] Mais tarde, prestei atenção no John Lennon. Achava o discurso
dele interessante, mas não a ponto de me guiar [...] o que me interessava
mesmo era a música brasileira e a música latino-americana (NEY, 2002 apud
FONTELES, 2002, p. 170).
Durante esse momento de contato com a música estrangeira, a música
produzida e voltada para a juventude, o cantor entra no campo artístico por meio de seu
canto em um coral de música clássica. Ney afirma:
38
Em Bralia, nos anos 60, comecei a cantar com um coral grande, de 40, 50
pessoas. Cantava-se de Villa Lobos à Brahms, em alemão, frans,
italiano...Fui levado por amigos e descobri um universo. Como eu não teria
que cantar sozinho seria uma voz numa multidão, tive coragem de entrar.
Pensei: ‘Ninguém ouvirá a minha voz’. (MATOGROSSO, 2003)
Nesse momento dá-se um fator diferencial no início da carreira artística do
cantor, quando sua voz de contralto é percebida pelo maestro durante o exercício de seu
canto no interior do coral.
No entanto havia trechos em que os tenores não cantavam, a dos contraltos,
em que eu, de brincadeira, começava a cantar. Eram trechos dificílimos para
os homens cantarem, uma oitava acima do que as mulheres cantavam. Eu
fazia isso facilmente. Certa vez, o maestro percebeu e parou o ensaio. Falou
que eu tinha uma voz rara, como poucas no mundo. (MATOGROSSO, 2003)
Durante essa fase de atuar no coral cantando clássico, Ney passou a
participar de festivais de Música Popular Brasileira, ainda na cidade de Brasília,
passando a viver o dilema entre o canto clássico e o popular. Naquele momento existia
esse embate dentro do campo da música entre o erudito e o clássico. O cantor comenta
esse episódio:
Eu estava morando na casa da professora de canto do coral, que alugava
quartos. Ela tinha grandes esperanças de me transformar em um grande cantor
clássico. Quando me chamaram para cantar popular, começamos a ensaiar no
piano da casa. Certo dia, enquanto eu estava ensaiando, ela chegou e disse: '
Vo não se respeita, canta este repertório que não significa nada.' Existia
uma rivalidade entre a música clássica e a música popular. (MATOGROSSO,
2003)
Paralelamente à essa formação clássica que o artista estava absorvendo por
meio do coral, houve o convite para cantar MPB em meio a um festival de estudantes
universitários. Durante a apresentação, deparou-se com um blico de conduta
supostamente politizada, onde prevalecia o conceito de arte engajada, ligados aos ideais
de esquerda, no intuito de contrapor-se ao regime militar. Em função dessa suposta
politização e por o artista não corresponder às expectativas em torno da arte engajada, e
tendo um comportamento atípico no palco - sobretudo por sua tonalidade de voz,
contralto, um timbre alcançado mais facilmente por vozes femininas - gerou um
comportamento hostil em parte do público, chegando a ser agredido verbalmente por
39
um desses estudantes que expressou-se com palavrões de cunho eminentemente
homofóbico. O artista comenta o episódio:
Os estudantes da universidade de Brasília iam organizar um show para os
estudantes mineiros, que iam estudar lá. Um dos organizadores, Paulo
Machado, que me conhecia do coral, fez o convite para cantar música
popular. Pensei: 'por que o? Nessa época, Nara Leão e Elis Regina eram o
máximo. E eu, com aquela voz estranha, fui o primeiro a me apresentar.
Quando comecei a cantar, um cara gritou 'bicha' e mandei parar tudo.
Caminhei até a beira do palco, o encarei e perguntei o que ele havia gritado.
Ele se calou. Mandei a música recomeçar, e cantei. (MATOGROSSO, 2003)
Após a apresentação do festival o cantor, abriu novas perspectivas em sua
nascente carreira de cantor, passando então a receber convites para apresentações em
diversos espaços da cidade. Nesse momento o fazer artístico do cantor aflora em
diversos segmentos da arte: teatro, desenho, canto. O cantor comenta:
Depois do Festival, surgiram vários convites. Me convidaram para cantar em
boite, o que não gostei de fazer. Cantei em um programa de televisão
completamente alternativo. Trabalhava depois que se encerrava a
programação, a partir de meia-noite. nhamos dois dias da semana para
produzir. Cantávamos coisas da época... Edu Lobo, Chico Buarque... Foi
que eu entendi que ia me dedicar à arte. Percebi então, que podia viver com
muito pouco e que esse muito pouco não me deixava infeliz. Me apaixonei
por Brasília. A cidade era muito estranha para mim, porque enlouquecia as
pessoas, que piravam porque não davam conta de conviver com a solidão.
Nessa solidão, todas as minhas tendências artísticas afloraram. Talvez para
me defender da solidão, fui fazer teatro, comecei a cantar, retomei o desenho.
(MATOGROSSO, 2003)
Por volta do ano de 1968, Ney de Souza Pereira recebeu, antes de ingressar
de fato no campo artístico, talvez a última influência musical em seu processo de
construção artística, quando foi então convidado para atuar como vocalista no grupo
musical Secos & Molhados. Essa influência veio de um movimento musical de cunho
eminentemente nacional, refiro-me ao Movimento Tropicalista da Canção. Nesse
período Ney se dividia entre Brasília e Rio de Janeiro. Em Brasília ainda era veiculado
ao serviço público e no Rio vivia da venda de seu artesanato nas ruas e praças da
cidade, em um estilo de vida hippie. Quando em Brasília foi assistir um show
promovido pela Rhodia e assimilou naquele momento os ideais do Tropicalismo, com a
ruptura estética proporcionada por Caetano Veloso. Ney diz:
40
Quando vi Caetano Veloso em Brasília, com aquele cabelo enorme e
cacheado, todo vestido de cor-de-rosa num show da Rhodia com Gil...Quando
vi aquilo... Imagina! Eu, aquele garoto, lá de Brasília, cheio de sonhos na
década de 60. Aquela imagem me provocou uma coisa que eu não sei te dizer
o que era, mas disse pra mim mesmo: ‘Se eu fosse artista, eu queria ser
alguma coisa assim, provocar nas pessoas o que ele me provocou’. Eu o
queria ser o Caetano Veloso. Prestava muita atenção nele e no Tropicalismo e
não achava que a causa dele ter sido exilado tinha sido política. Pra mim,
era também comportamental. (Ney, 2002 apud FONTELES, 2002, p. 157)
Dessa maneira tal movimento musical, sobretudo com a ruptura estética de
gêneros, presente na performance do cantor Caetano Veloso, veio a contribuir mais a
frente para o comportamento em cena do artista Ney Matogrosso, sobretudo no aspecto
comportamental, transgressor das normas e condutas morais do momento intensificadas
pelo regime militar. Segundo Ney Matogrosso o advento do movimento tropicalista no
final dos anos 60, propiciou seu surgimento artístico, bem como assegurou sua
permanência artística no cenário da Música Popular Brasileira durante os anos 70. Sem
esses antecedentes, compreende o cantor, que não teria sido possível sua existência
enquanto artista. Ney declara:
Caetano Veloso foi o primeiro artista que agiu profundamente no
comportamento desse país, e talvez por isso tenha sido enredado em
armadilhas mais palpáveis. Apesar de o saber aque ponto isso gera uma
ação - o que seria meu ideal artístico e humano-, sinto que vou fundo em
muita gente. Mas sei também que nada disso me teria sido permitido se não
existisse antes o Caetano, que abriu caminho para eu chegar escancarando e
transbordando sexualidade. Isso tudo faz com que minha ligação com ele seja
muito forte, porque, além da enorme admiração que sinto pelo artista, sou
eternamente grato ao Caetano por ter possibilitado a minha manifestação
artística nessa encarnação. Sem ele, isso não seria possível, porque apareci
num momento ainda muito careta, no qual a repressão podia tudo: se o
houvesse essa primeira abertura feita pelo Caetano, eles teriam me capado e
me jogado no mato. (NEY, 1992, apud VAZ, 1992, p. 105)
Nesse momento em que desenvolve-se o movimento tropicalista no Brasil no
final dos anos sessenta, é um momento de grande efervescência potico-cultural. Em
Paris deu-se o Maio de 1968, onde um grupo de estudantes iniciaram um movimento de
protestos poticos que alastrou-se por outros países. No Brasil estávamos a vivenciar o
período do regime militar, no qual, em 1968, decretou-se o AI-5
5
. A partir da imposição
5
O Ato Institucional foi decretado em 13 de dezembro de 1968, pelo então Presidente da República
Federativa do Brasil, General Costa e Silva. O art. 5 º previa a suspensão dos direitos políticos. I-cessação
de privilégio de foro por prerrogativa de função; II-suspensão do direito de votar e de ser votado nas
eleições sindicais; III-proibição de atividade ou manifestação sobre o assunto de natureza política; IV-
41
de tal Ato, a disputa potico-ideológico intensifica-se entre os ideais de esquerda, em
prol da revolução socialista, e o pensamento da direita do Estado Nacional, em
combate” à ameaça vermelha”, para garantir a soberania nacional, a ordem e o
progresso. O regime militar, direciona, então, suas forças de repressão e censura em
direção aos setores ligados à cultura em geral: cinema, teatro, literatura, meios de
comunicação de massa, produções musicais, acadêmicas, intelectuais, entre outros
setores da sociedade civil organizada (FAUSTO, 1984).
Aderir aos ideais de esquerda, engajando-se politicamente ou aderindo aos
ideais da contracultura, com o movimento hippie, eram duas possibilidades existentes,
dentre outras, naquele momento que encontrava a juventude de contrapor-se ao regime
militar. O cantor Ney Matogrosso admite ter simpatizado por alguns segmentos das
esquerdas, entretanto nunca aderiu nem se vinculou a qualquer partido ou mesmo
movimento. Ney diz:
Eu sempre me identifiquei com as idéias revolucionárias, como a Revolução
Cubana. Com a União Soviética, sempre tive muita desconfiança. Mas me
identifiquei muito com a Revolução Cubana. Fiquei muito chocado com o
golpe militar em Brasília, onde morava com um primo que me chamava de
comunista. Eu não era comunista, absolutamente... A minha simpatia foi
sempre com a esquerda, mas sabia que ela também não estava preparada pra
entender um tipo de manifestação como aquela que eu propunha. A esquerda
não tinha e ainda não tem uma mentalidade aberta. (NEY, 2002, apud
FONTELES, 2002, p.169)
A jornalísta Denise Pires Vaz, comenta esse momento da juventude durante
o regime militar e particurlamente o cantor Ney Matogrosso, vislumbrando as
possibilidades de contrapor-se ao regime militar.Denise Pires, comenta:
Hippie ou guerrilheiro. Nos idos dos anos 60, essas foram as duas únicas
opções vislumbradas por Ney para contestar o golpe de 64. A política nunca
havia feito sua cabeça, e ele não conseguia como o consegue até hoje
participar dela. Meio anarquista, jamais acreditou em governos, e , sim, na
capacidade de cada pessoa perceber os limites individuais, incluídos
direitos e deveres. Plenamente consciente da utopia dessa convicção, Ney,
resolveu reagir contra o sistema de uma maneira, para ele, mais harmônica e
revestida de tanta seriedade quanto a guerrilha: aderiu de corpo e alma à
filosofia hippie.(VAZ, 1992, p.69)
aplicação, quando, necessário, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de
freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado
(FAUSTO, 1984
).
42
O produtor musical Marco Mazzola comenta esse momento dentro de uma
mesma perspectiva, quando afirma: “Debaixo da ditadura feroz, os jovens brasileiros ou
iam militar na potica, e alguns se sacrificavam na luta armada, ou – uma outra vertente
viravam hippies e psicodélicos um termo que aludia a viagem provocada pelo ácido
lisérgico, LSD (MAZZOLA, 2007, P. 54).
Ao chegar no Rio em 1966, Ney de Souza Pereira aderiu aos ideais da
contracultura e assimilou, de forma mais concreta, a filosofia hippie de viver fora do
sistema de produção capitasta. Nesse momento o cantor afirma ter passado a viver da
venda de seu artersasnato em praças e ruas da cidade do Rio de Janeiro. Ney comenta:
Desde o início, eu me senti inteiramente atraído pelo movimento hippie.
Acompanhava o que acontecia no mundo, e percebia que aquilo não era uma
bobagem. Foi o último movimento da humanidade em direção a uma
mudança. Existia uma filosofia de vida que, na prática, se manifestava numa
fraternidade entre as pessoas.Havia uma proposta bastante espiritualizada,
que procurava desenvolver e liberar não apenas o corpo, mas o
espírito.Tomava-se droga para se conhecer profundamente
.
O sexo, passou a
ser vivido naturamente. ( NEY, 1992, apud VAZ, 1992, p.69-70 )
Quando estava no Rio vivenciando o estilo de vida hippie, foi residir com a
cantora e compositora Luli, a convite dela mesma. Ney conheceu-a quando, ainda em
Brasília, levou uma encomenda de Lena, sua amiga dos Festivais de Brasília, para Luli
no Rio. A partir de então o cantor tornou-se seu amigo e plantou a semente de seu
futuro artístico, pois foi Luli que o apresentou a João Ricardo idealizador do grupo
musical Secos & Molhados. Ney comenta:
Luli era uma amiga compositora, que morava numa casa em Santa Tereza. A
conheci em uma das vezes em que vim para o Rio de Janeiro. Lena, uma
cantora de Brasília, a conhecia e me pediu para lhe entregar uma carta. Luli
me fazia cantar feito um louco, numa garagem da sua casa. Eu adorava cantar
com Luli, porque ela era a única pessoa que realmente acreditava que eu
pudesse ser um cantor. Embora eu soubesse que tinha uma voz rara, não tinha
coragem de cantar sozinho. Eu tinha vergonha. (MATOGROSSO, 2003)
No Rio de Janeiro Ney ocupava nos fundos da casa de Luli localizada no
Bairro de Santa Tereza um quarto onde foi transformado em um ateliê para confecção
de suas peças de artesanato. Paralelamente à produção de suas peças, que vendia nas
ruas do Rio e a alguns amigos, o artista atuou em sua primeira peça de teatro ao lado da
43
atriz Regina Duarte. Ney comenta: “Fiz uma peça infantil; um musical com a Regina
Duarte que foi minha primeira experiência profissional (NEY, 2002 apud FONTELES,
2002, p.96). Nesse momento o artista Ney Matogrosso dividia-se entre as artes cênicas e
a possibilidade de cantar incentivado pela cantora e compositora Luli. A que então
Luli apresenta-lhe ao idealizador do grupo musical Secos & Molhados, João Ricardo.
Denise Pires comenta o episódio:
Na época, ela (Luli) já transava música e começou a instigá-lo (Ney) a
continuar cantando. Luli sentia que a voz de Ney possuía alguma coisa a mais
e, sempre que podia, tocava violão pra ele cantar. Ney, por sua vez, gostava
de cantar com ela, e achava o máximo encontrar uma pessoa que se
dispusesse tirar uma música no tom adequado para ele. Anos depois, seria a
mesma Luli que o apresentaria a João Ricardo, detonando toda a história do
Secos & Molhados. (VAZ, 1992, p. 48)
Ao ser apresentado pela cantora e compositora Luli a João Ricardo, Ney
Matogrosso muda-se do Rio de Janeiro para a cidade de São Paulo no final de 1971,
onde passa a ensaiar durante um ano como vocalista do nascente grupo musical Secos &
Molhados, que viria a se transformar em um fenômeno de massa em meados de 1973.
Denise Pires comenta:
João Ricardo veio ao Rio conhecê-lo no icio de dezembro de 71, escutou-o
cantar e o convidou para ir para São Paulo. Cinco dias depois, Ney chegava
de malas e cuias à casa de João Ricardo. Na realidade, mais cuias que malas,
porque ainda vivia à maneira hippie e possuía muito pouca coisa para levar na
mudança. (VAZ, 1992, p. 53)
Chegando à cidade de São Paulo Ney Matogrosso continua a viver da venda
de seu artesanato, inicia os ensaios com o grupo musical Secos & Molhados e passa a
fazer parte do elenco da peça “A Viagemno Teatro Ruth Escobar. Ney diz:
Quando os Secos e Molhados surgiram, estava a fazer uma pa chamada «A
Viagem», uma adaptação dos «Lusíada, um espetáculo com 70 atores, com
uma banda em cena. Eu fazia parte do coro, era um marinheiro. A maior parte
do espetáculo estava no escuro; quando a banda tocava, ficava a dançar para
ninguém, mas para mim. Essa foi a referência que trouxe para os Secos &
Molhados. Quando comecei a mostrar a minha dança, ela tinha sexo,
explicitamente. Até então a sexualidade masculina tinha de ser vetada,
escondida. O homem o podia ter sexualidade, não podia ser sensual, esse
era o papel das mulheres. Essa foi a grande barreira que os Secos derrubaram
no Brasil: os homens também são sexuais. (MATOGROSSSO, 2003)
44
A partir de seus referencias da contracultura e de sua experiência como ator
de teatro, Ney Matogrosso leva para o interior do conjunto Secos & Molhados seu
princípio de criação e autonomia artística, o que gerou a luta no interior do grupo. Ney
diz:
Eu queria liberdade total e absoluta. Quando uma amiga, - Maria Alice,
mulher do Paulinho Mendonça, autor da letra 'Sangue Latino' - me enviou uns
vidrinhos de purpurina de todas as cores antes da estréia do Secos e
Molhados, resolvi usar para pintar olhos e boca. Mandei fazer uma calça de
cetim branca, amarrada abaixo da virilha - como se usava - e usei na caba
uma grinalda de noiva. Eu queria provocar impacto nas pessoas. No dia
seguinte, comecei a ganhar coisas do elenco da peça 'A Viagem': pedaços de
pano, broches, estrelas. Passei a utilizá-las e, ao mesmo tempo, ampliei meu
movimento. Passei a me mexer cada vez mais. (MATOGROSSO, 2003)
Esse princípio se torna mais tido quando esse delimitou seu espaço dentro
do grupo, pois, como Ney não exercia a função de compositor e instrumentista, não
desejava ser apenas um crooner do nascente conjunto. Ney comenta esse episódio no
sentido de sua performance em cena, um ator que canta:
Não queria ser ‘crooner’ de um conjunto. Perguntei aos responsáveis do
projeto qual era o meu espaço e eles responderam que havia aquele metro
quadrado. Questionei-os novamente se poderia fazer o que quisesse naquele
metro quadrado. A resposta foi... «Tudo!». Aí comecei a pirar... vinha do
teatro, que era ator onde, por acaso, tudo o que tinha feito referia-se ao
musical, onde tinha de cantar, dançar, interpretar. Simplesmente trouxe para
o palco, para a música, a informação/formação que o teatro tinha oferecido.
(MATOGROSSO, 2003)
Essa atitude do artista Ney Matogrosso, inerente ao seu princípio de
autonomia artística (QUEIROZ, 2004), ao romper com o instituído, gerou
automaticamente uma disputa no interior do grupo musical Secos & Molhados,
sobretudo, em função da pluralidade de conduta e valores de seus integrantes. João
Ricardo idealizador do conjunto era à época um estudante de jornalismo ligado aos
ideais de esquerda. Gerson Conrad era estudante de arquitetura e ligado aos ideais
pacifistas. Ney Matogrosso teve em sua formação o teatro e era ligado aos ideais da
contracultura com o movimento hippie. Tais contradições dinamizaram a pluralidade, a
heterogeneidade e a multiplicidade do Secos & Molhados,gerando uma luta no interior
de seu campo.
A disputa no interior do grupo nos remete ao pensamento de Pierre
Bourdieu, acerca do princípio de autonomia dos campos e a luta em seu interior. “A luta
45
permanente no interior do campo é o motor do campo. Vê-se de passagem que não
nenhuma antinomia entre estrutura história e o que define que considero como a
estrutura do campo é também o princípio de sua dinâmica” (BORDIEU, 1983, p. 157).
Dessa maneira criaram-se pólos antagônicos no interior do Secos & Molhados.
Em estudo anterior (QUEIROZ, 2004), compreendeu-se que uma vez
ocorrida tal divergência no interior de seu campo, prevalece o princípio de autonomia
artística de Ney Matogrosso, oriundo dos ideais da contracultura, fazendo do Secos &
Molhados um grupo de conduta politizada, porém, não partidária. Dessa forma, a
performance e os referenciais do teatro e da contracultura levados pelo cantor Ney
Matogrosso para o interior do grupo prevalecem na concretização do comportamento
estético do conjunto. Essa estética do conjunto atraiu uma diversidade de blico (
inclusive o infantil), o que de uma certa maneira serviu como mecanismo para driblar a
censura, evitando que o grupo fosse vetado integralmente pelos órgãos de repressão e
censura do regime militar.
As premissas levantadas acerca do campo artístico e da disputa em seu
interior serão abordadas com mais profundidade no item subseqüente, quando tratar-se-
á da estrutura do campo artístico em relação ao mercado fonográfico e ao regime
militar. Nesse momento o artista Ney Matogrosso permanece em uma condição de
liminaridade dentro do campo da arte, em busca da concretização de sua autonomia
artística frente à indústria fonográfica, a alguns setores dadia e ao regime militar.
1.3 “O que me salva é a minha insensatez”: o campo artístico e a
subversão da indústria fonográfica
Passei por seis gravadoras, mas consegui isso, essa liberdade, essa autonomia
artística que poucas pessoas têm. Então, eu dificultei a minha vida, mas eu
olho para trás e acho que foi perfeito. Eu lutei por ideais, eu não me submeti,
eu não cedi, sabe, não cedi ao dinheiro. Na verdade era isso, as pessoas
diziam assim: se você ceder, você vai ganhar dinheiro. Então, eu prefiro
menos dinheiro, mas eu quero a minha independência intelectual, artística.
Eu participo de tudo, eu escolho a capa do disco, eu que escolho a seleção de
fotos. (NEWS, 2008)
Vo conhece algum presidente das gravadoras no Brasil que o seja
estrangeiro? Como podem esses caras entender a nossa cultura? Como
podem ter sensibilidade para compreender as letras de nossas músicas? Sabia
que o único país que recebe incentivo fiscal das vendas de música é o Brasil?
46
Sabia que aqui no Brasil se paga para tocar em rádio, enquanto na Alemanha
as rádios pagam para executar as músicas (MAZZOLA, 2007).
Nesse item, tentar-se-á compreender a inserção do cantor Ney Matogrosso
dentro do campo das artes, bem como a interferência do regime militar e da indústria
fonográfica nesse mesmo campo de análise. Assim, pretendemos compreender, dentro
desse processo, a construção da autonomia artística do cantor em função do campo
artístico no qual estava inserido, do regime militar e do mercado fonográfico. Para isso
nos apoiaremos em
Bourdieu (1983), quando esse começa seu estudo sobre campo,
afirmando que para construir a noção de campo é preciso passar para além da primeira
tentativa de alise do “campo intelectual como universo relativamente autônomo de
relações específicas. Nesse momento, o autor aponta para uma problemática contida na
teoria marxista, que ignorava o campo de produção como espaço social das relações
objetivas. A partir de tais pressupostos, podemos entender o campo enquanto fator de
repressão e censura.
O campo exerce uma censura sobre o que ele verdadeiramente gostaria de
dizer sobre o discurso louco, ídios logos, que ele gostaria de deixar escapar e
impõe-lhe que deixe passar apenas aquilo que é conveniente, que é dizível.
Ele exclui duas coisas: o que não pode ser dito, dada a estrutura da
distribuição dos meios de expressão, o indizível; e o que poderia muito bem
ser dito quase demasiado facilmente, mas que é censurado, o inominável
(BOURDIEU, 1983, p.109).
O fazer artístico do cantor Ney Matogrosso inserido no campo da arte gerou
uma disputa dentro do próprio campo, o que de uma certa forma simboliza as teorias de
automação dos campos de Bourdieu (1993), quando esse compreendeu que a luta
existente no interior do campo é o princípio gerador desse próprio campo. Dessa
maneira, o cantor Ney Matogrosso em sua busca por tornar-se um artista autônomo
dentro do campo artístico, deparou-se com adversidades oriundas desse mesmo campo
no qual estava inserido.
Deste ponto em diante, torna-se notório que dentro do processo de seu fazer
artístico, este veio a sofrer pressões por setores ligados a esse mesmo campo, como, por
exemplo, a arte engajada com as chamadas músicas de protesto, bem como as músicas
de caráter ufanistas ligadas aos ideais de ordem e progresso do regime militar. Deste
modo, percebemos a existência de dois los dentro de um campo, confirmando, dessa
47
forma, a teoria da não total autonomia dos campos de Bourdieu, com a subdivisão de
campos em subcampos.
Para entendermos esta questão com maior clareza, precisamos compreender
a noção de campo e aparelho elaboradas por Bourdieu. Para tanto, sistematizaremos
esses campos, denominando de campo I o campo político, representado pelo Estado
brasileiro durante o regime militar (1964-85) e de campo II o campo da arte, no qual
está inserido o artista Ney Matogrosso. No campo II, estavam inseridos também artistas
engajados aos ideais de esquerda
6
da época, como Geraldo Vandré, Chico Buarque,
entre outros, os cantores ufanistas, como Dom, Ravel, os cantores considerados
“bregas”, como Waldick Soriano, Odair José, entre outras tendências e estilos musicais
que formavam o campo artístico àquela época, nos anos setenta.
Dessa forma, formaram-se los opostos dentro do campo arte, visto que
existiam outras forças dentro do mesmo campo, as chamadas forças antagônicas, que
emergiram da luta dentro do próprio campo da arte. A partir das noções de campo e de
aparelho, pensadas por Bourdieu, levantamos a possibilidade que em um determinado
período do regime militar, sobretudo relativo à censura moral, o campo I (Estado
Militar) poderia dentro de uma determinada circunstância ter se tornado um aparelho
perante o campo II (Artes). Bourdieu quando indagado sobre a diferença entre um
campo e um aparelho, nos afirma:
A não de aparelho reintroduz o pior dos funcionalismos: é uma máquina
infernal, programada para realizar certos fins. O sistema escolar, o Estado, a
Igreja, os partidos políticos, não são aparelhos, mas campos. No entanto, em
certas condições, eles podem funcionar como aparelhos. Um campo se torna
aparelho quando os dominantes possuem os meios de anular a resistência e as
reações dos dominados (BOURDIEU, 1983, p.106).
A partir dessa análise diferencial apresentada pelo autor, levantamos a
possibilidade de que o campo I (Estado Militar), poderia naquele momento dentro de
uma certa instância, ter exercido em algumas situações perante o campo II (Artes), a
função de aparelho, para assim exercer seu poder de repressão e censura no interior
desse campo. Assim sendo, o campo I poderia ter transferido de forma estratégica para
o campo II a função de hostilidade e censura para com a própria arte. Possibilidade esta
levantada a partir da constatação do embate existente no interior do campo I com os
6
Para examinar com profundidade a diversidade do campo artístico da década de setenta ver (ARAÚJO,
2002).
48
pólos antagônicos entre os artistas engajados e os artistas que desenvolveram seu
trabalho sem vínculos político-ideológicos aos ideais de esquerda.
Talvez quando os militares inseridos no campo I perceberam a existência de
pólos antagônicos dentro do campo II, minimizaram dentro de uma certa instância a
repressão aos setores ligados a cultura. Dessa forma puderam agir com maior
intensidade na esfera do campo político com perseguições , exilamentos, entre outras
medidas de repressão aos militantes poticos de esquerda contrários ao regime militar.
De tal modo o campo I delegou, dentro dessas circunstâncias, ao campo II a função de
hostilidade e censura entre os próprios artistas engajados aos ideais de esquerda e
artistas não engajados a tais ideais, acirrando assim, ainda mais, o antagonismo entre
esses pólos.
Para entendermos esse momento com maior clareza vejamos a inserção de
segmentos da direita e da esquerda nesse campo, com a declaração do General Antônio
Bandeira e com o Manifesto do Centro Popular da Cultura da União Nacional dos
Estudantes (CPC da UNE). O General Antônio Bandeira
7
em entrevista publicada no
Jornal Diário do Nordeste no tocante a questão entre política, cultura e censura
declarou:
A hidra não tinha olhos para canções. Eles não tinham importância. O
ministro ficava muito irritado quando os militares punham os dedos nessas
besteiras. Os cabeludos não incomodavam muito porque estavam isolados. A
população estava com o regime, não com eles. (CARVALHO, 1997, p.07).
Hollanda (1992), ao destacar o “patrulhamento” político-ideológico das
esquerdas sobre as produções artísticas, no sentido de “engajamentoda arte à potica
como uma das estratégias de combate” à ditadura militar, aborda as organizações de
esquerda, sobretudo os Centros Populares de Cultura - os CPC. Assim a autora
demonstra por meio de relatos e análises as concepções de esquerda de então que
tentavam colocar a arte a serviço da política. Agindo dessa maneira, entendiam os
membros ligados aos CPC´s estarem contribuindo para uma conscientização político-
social das massas, dos operários, do povo brasileiro em geral e, por conseguinte,
contrapondo-se ao regime militar.
7
General Antônio Bandeira dirigiu o Departamento de Polícia Federal durante o Governo Médici
(1969/79). A hidra” era o serviço de informação dos militares durante o regime militar. Era assim
denominada em função da serpente de sete cabeças da mitologia grega.
49
Essa tentativa de engajamentoda arte por parte de alguns segmentos da
esquerda nos anos 60 e 70, sobretudo para com as relações entre cultura e política, está
expressa no anteprojeto do Manifesto do Centro Popular da Cultura da União Nacional
dos Estudantes (CPC da UNE) de março de 1962:
O que distingue os artistas e intelectuais do CPC dos demais grupos e
movimentos existentes no país é a clara compreensão de que toda e qualquer
manifestação cultural pode ser adequadamente compreendida quando
colocada sob a luz de suas relações com a base material sobre a qual se
erigem os processos culturais de superestrutura. (...) não ignorando as forças
propulsoras que, partindo da base econômica, determinam em larga medida
nossas idéias e nossa prática, não podemos ser vítimas das ilusões infundadas
que convertem as obras dos artistas brasileiros em ceis instrumentos de
dominação, em lugar de serem, como deveriam ser, as armas espirituais da
libertação material e cultural do nosso povo. (...) os membros do CPC
optaram por ser do povo, por ser parte integrante do povo, destacamentos de
seu exército no front cultural (HOLLANDA, 1992, anexo 1).
Em estudo anterior (QUEIROZ, 2004), compreendeu-se que esse
patrulhamento” exercido pelas esquerdas sobre a cultura, dentro de uma perspectiva de
engajamento das produções artísticas, foi sendo intensificado à medida que
aumentava as perseguições do governo militar em relação às atuações poticas das
esquerdas. José Policarpo de Araújo Barbosa
8
,
ex-militante do MDB Jovem e MR-8,
afirma que o “patrulhamento das esquerdas foi tão maléfico quanto censura que a
direita exerceu sobre a cultura.
Flávio Queiroz: Existia realmente um ‘patrulhamento’ das esquerdas sobre a
cultura?
Policarpo Barbosa: O ‘patrulhamento da esquerda foi tão maléfico à arte
quanto a questão da censura exercida pela direita. que a censura tinha um
aspecto positivo, por conta que ela estimulava a rebeldia. s, os Stalinistas
da época tínhamos pouquíssima ligação com a cultura, era um tolhimento
muito grande dessa coisa cultural. Na verdade, nossa participação cultural era
tolhida pelo próprio reacionarismo do movimento. Por exemplo, grupos de
8
Jo Policarpo de Araújo Barbosa, 48 anos, ex-militante do MDB Jovem (1973-76) e MR-8 (1977-81),
médico sanitarista, Secretário de Saúde de Cascavel - Ce, Professor do Núcleo de Saúde Coletiva (UFC),
residente em Fortaleza-Ce. Foi selecionado à época como informante chave durante pesquisa
investigativa de mestrado 2003, dentro dos demais entrevistados na categoria de militante político de
esquerda por ter militado no início da década de setenta, anos de existência do Secos & Molhados 1973-
74 e atualmente na pesquisa de doutoramento entre os anos de 1975-1983. Os demais militantes
entrevistados tiveram suas atuações políticas durante a década de sessenta e no referido período 1973-74
encontravam em estado de clandestinidade, em exílio político, impossibilitados dessa forma de serem
precisos acerca do momento político no Brasil, como também com objeto em estudo. A entrevista com o
referido informante foi realizada a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas, onde foram
destacadas as relações entre política e cultura nos anos 70 e a inserção social do grupo musical Secos &
Molhados.
50
teatro nós chamávamos de ‘viado’, ‘baitola’, entende? Nós os
discriminávamos. Então isso era uma coisa horrorosa da esquerda, o
cerceamento. Os movimentos culturais tinham que ser ‘engajados’, ou o cara
tinha um discurso politizado ou a gente procurava dizer: ‘porra nós em plena
ditadura e esses baitolas com frescura’ (BARBOSA, 2003, p. 3).
Bourdieu (1983) nos afirma que a diferença entre os campos e os aparelhos é
bem percebida nas revoluções. A partir de então, percebemos que a tomada do poder
pelos militares em 31 de Março de 1964, nos possibilitou compreender essa distinção,
essa alise, visto que uma ação potica pode se sentir segura de produzir efeitos
desejados quando lida com aparelhos.
Partindo do pressuposto que o Estado Militar, dentro de suas devidas
proporções, tornou-se um aparelho para exercer sua pretensa moralização para com a
cultura, delegando para alguns setores da esquerda o trabalho de patrulhamento da
arte, criaram-se, os chamados los dentro do próprio campo da arte. Assim, a censura
foi exercida também pela esquerda no sentido de exigirem um engajamento político aos
ideais de esquerda em detrimento do regime militar. A direita nesse momento se valeu
do “patrulhamento potico-ideológico já existente dentro de alguns segmentos das
esquerdas para com as questões culturais.
Todo esse acirramento político-ideológico entre esquerda versus direita e a
multiplicidade de tendências musicais dentro do campo artístico, gerou a luta no interior
desse próprio campo, chegando o artista Ney Matogrosso em meados de 1975, início de
sua carreira solo, ser alvo de uma carta manifesto elaborada pela própria classe artística,
no sentido de uma pretensa moralização do fazer artístico do cantor. Denise Pirez
comenta: “As reações, porém, não partiam somente do poder oficial. Em Brasília, soube
da existência de cartas de alguns artistas pedindo para ele ser proibido de se apresentar
em lugares públicos, por constituir uma vergonha para a classe” (VAZ, 1992 p. 32).
Segundo Araújo (2002) naquele momento, anos setenta o campo da música
vivia uma verdadeira “guerra” em seu interior. Da mesma forma que existiu uma
censura dentro do seio militar, existiu, dentro do meio artístico, um momento em que
todo artista disparava pronunciamentos pejorativos através da imprensa em relação a
outro artista. Esse momento o autor apontou como a era do piche, que representava uma
censura partindo do próprio meio artístico.
Mesmo entre os próprios artistas da nossa música popular a pichação parecia
não ter limites: Waldick Soriano pixava Gilberto Gil, que pixava Wilson
Simonal, que pixava Nara Leão, que pixava Tim Maia, que pixava Raul
51
Seixas, que pixava Egberto Gismonti, que pixava Paulinho da viola
(ARAÚJO, 2002, p. 67).
Além dessa luta no interior do campo artístico, existia dentro das próprias
gravadoras um departamento ligado aos óros de repressão e censura do regime
militar, para assim exercer o poder de veto nas canções, interferindo dessa maneira no
fazer artístico do artista. O produtor musical Marco Mazzola comenta esse episódio,
citando a Gravadora Phillips
9
:
A Philips tinha um departamento especializado na liberação junto à censura,
ao qual todas as letras tinham de ser entregues imediatamente para que eles
acelerassem o processo de aprovação e iniciassem o trabalho de produção.
Sendo a maior gravadora, com cast milionário, a companhia necessitava
dessa agilidade para poder colocar os discos à venda. Caso a censura não
aprovasse a letra, tínhamos que pedir uma nova revisão, com a modificação
feita pelo artista. Era uma agonia o prazo de espera para a provação.
Passavam-se as vezes 15 dias e não recebíamos o resultado. Havia ocasiões
em que o disco já estava pronto e, no último momento, tínhamos que mudar a
letra e submetê-la outra vez à censura. Foi um momento difícil para a criação
artística (MAZZOLA, 2007, p.57).
Nos anos setenta a instria fonográfica nacional vivia um momento de
abertura para o mercado internacional com a vinda das multinacionais para o nosso país.
Era um momento de fusão, de possibilidades que se abriam no mercado. Mazzola atesta
o momento:
As grandes gravadoras assolavam cada vez mais o nosso mercado com a
música pop internacional, o que, na época, era muito mais lucrativo que as
despesas com material gráfico,ster, músicos, tapes, era tudo custeado pela
matriz no exterior. As majors, as multinacionais, dominavam o mercado e
não precisavam prestar contas a curto prazo à matriz. Aí, claro, que fica mais
fácil, investe-se pesado na música internacional, botando-as para tocar nas
rádios, e o retorno financeiro vem muito rápido, o que é diferente de investir
num cara novo, gastar na produção, incluindo aí estúdio, músicos e promoção
de marketing. Os contratos eram de, no mínimo, três anos e, muitas vezes,
um artista novo tinha em seu contrato clausuras para uma opção de mais dois
discos, podendo o contrato se estender até cinco anos. Foi também em 1976,
como havia previsto, que deixei a Polygram e assumi o cargo de vice
presidente na Warner, que, mais tarde, passou a se chamar WEA discos, uma
fusão dos labels: Warner/Eletric/ Atlantic (MAZZOLA, 2007, p. 83- 84 e
93).
No entanto havia um sentido, ou melhor, a vinda das gravadoras
internacionais para o Brasil no início dos anos setenta era na verdade o que podemos
9
A Gravadora Phillips localizava-se na Avenida Rio Branco, 311 - RJ.
52
chamar de um “mal necessário”, pois dessa maneira a MPB, poderia conquistar uma
projeção no mercado internacional com maior autonomia e assim conquistar uma fatia
desse mesmo mercado. Mazzola nos afirma:
O Brasil o tinha bons estúdios. As taxas de importação chegavam a quase
200% e isso inviabilizava qualquer negócio desse tipo. Além do mais, ter um
estúdio para alugá-lo não pagaria o investimento. Ou seja, eram muitas as
dificuldades se fôssemos pensar apenas por esse lado. Mas havia o outro, o
que um estúdio de alta tecnologia poderia propiciar para a MPB
(MAZZOLA, 2007, p. 189).
O cantor e compositor cearense Ednardo Sousa
10
esclarece em entrevista a
Revista Bula, como se deu o processo de instalão das multinacionais em nossa
indústria fonográfica nos anos setenta durante o regime militar em detrimento das
gravadoras nacionais. O cantor esclarece:
Durante a ditadura militar, a indústria fonográfica atual foi implantada por
empresas multinacionais, obteve regalias bastante significativas, tais como
isenção de impostos e outras benesses governamentais, com o poder destas
corporações, as gravadoras nacionais foram sendo aniquiladas ou compradas.
No período da distensão veio a farra de distribuição de concessões de
emissoras de dio e TV, como moeda de troca para aprovações de projetos
governamentais. Formaram-se monopólios e oligopólios, entre parlamentares
do Congresso, senadores, deputados, amigos de políticos, fortes grupos
econômicos que começaram disputar o jabá das gravadoras e foi virando uma
bola de neve. A música começou a ser entendida nesta espécie de negociação
como comercial ou jingle, os espaços foram leiloados para quem der mais. A
nivelação pela disponibilidade de pagar misturou o trigo e o joio e foi
instituída a ditadura econômica, que é resultado destes e outros tipos de
realidades cruéis extremamente prejudiciais à música brasileira (A
FIDELIDADE, 2004).
Ednardo Souza continua seu relato a Revista, narrando a realidade da
indústria fonográfica no Brasil no ano de 2004, que segundo o cantor concentrou ainda
mais o mercado com o passar dos anos nas mãos das multinacionais detendo noventa
por cento do mercado nacional, o restante fica a cargo de um mercado misto e
individual da indústria nacional de discos. O cantor continua esclarecendo:
As maiores empresas da indústria fonográfica no Brasil, atualmente em
número de quatro mega-corporações: controlam quase noventa por cento do
mercado do disco e execução pública, têm matrizes no exterior e suas
atividades não se limitam apenas ao meio musical, e como qualquer empresa
10
Ednardo Souza, cantor e compositor cearense, 60anos, natural de Fortaleza-Ce, residente em Fortaleza-
Ce.
53
deste tipo, busca lucro, prestígio da marca, competição de mercado, remessas
de lucros e cuidam de suas ações nas bolsas mundiais. Empresas de capitais
mistos, representadas, interligadas, meios de comunicação, grupos
empresariais, religiosos, são dezenas e têm sete por cento do mercado do
disco e execução pública. Matrizes no Brasil e outras não se sabem.
Gravadoras nacionais; selos individuais; artistas independentes; são centenas
e têm três por cento do mercado do disco e execução blica. Matrizes no
Brasil, seus proprietários são geralmente pessoas da área artística, ou
interligada diretamente à produção empresarial artística (A FIDELIDADE,
2004).
Em página seguinte o cantor prossegue com a explanação acerca do processo
de implantação das gravadoras no Brasil nos anos setenta até chegar aos anos oitenta,
demonstrando os mecanismos de funcionamento em relação às normas e regras do
mercado fonográfico. Ednardo Souza contextualiza:
Aqui no Brasil gravadora é “parceira” no direito autoral de execução pública,
pois as associações que contam com a presença maciça das gravadoras
majors e suas editoras detêm mais de 60% do poder de voto no Ecad para
qualquer decisão, de forma que recebem este direito de execução pública na
mesma proporção. E entra novamente o jabá como vilão, pois se a
indústria que o pratica detém quase 90% do mercado de discos e execução
pública, a maior parte da arrecadação de direitos de execução pública,
uma meia volta e retorna aos mesmos. bastante tempo o Ecad era
desorganizado e existia muita corrupção em seu quadro, no início dos anos
80 o governo brasileiro chegou a formar o CNDA (Conselho Nacional do
Direito Autoral) numa tentativa de regular a esculhambação generalizada,
veio o governo Collor que o extinguiu (A FIDELIDADE, 2004).
Durante esse período de estruturação das grandes gravadoras
(multinacionais) no Brasil é o momento em que entra nesse cenário a figura do produtor
musical, tornando-se presença indispensável dentro desse nascente mercado. O
produtor musical Mazzola comenta acerca da importância do produtor no campo do
fazer artístico, mediador entre o artista, a gravadora e o mercado. Mazzola esclarece:
O produtor, figura que começou a ganhar importância na indústria da música
nas duas últimas décadas, funciona como uma espécie de intermediário entre
o artista, o mercado e a gravadora, harmonizando idéias do compositor com
as tenncias da moda e as expectativas do público. Com a sofisticação da
indústria, os produtores passaram a se especializar em determinados gêneros
e acabaram se tornando verdadeiros co-autores dos discos que produzem
(MAZZOLA, 2007, p. 216).
54
Dentro desse processo de estruturação da indústria fonográfica no Brasil nos
anos setenta e oitenta, existe a tentativa de independência da criação, do livre fazer
artístico, do princípio de criação da obra do artista, enfim, uma busca pela autonomia
artística. Essa busca é intensificada em função de naquele momento o Brasil estar
inserido em um regime militar, o qual exercia medidas de repressão e censura em torno
da cultura. Essas medidas levaram alguns setores dentro do campo artístico-cultural a
desenvolverem formas, métodos, maneiras, estratégias para driblar tais censores.
No entanto essa busca pela autonomia não é inerente, exclusivamente, ao
artista em evidência, mas a todos os envolvidos no processo de construção em torno de
uma obra. No processo desse fazer artístico, a tentativa de independência, de criação
estende-se a outros elementos envolvidos no processo de elaboração de criação de uma
obra, especificamente dentro do campo da música, entre técnicos de som, mixagem,
produtores de discos, os músicos que elaboram os arranjos e algumas composições,
entre outros. São diversos segmentos envolvidos, buscando firmar-se autonomamente
dentro de suas respectivas funções. O cantor busca sua autonomia, pom o produtor
musical também procura a sua, assim como os músicos, técnicos e assim por diante.
Existia naquele momento, na cada de setenta, no seio da indústria
fonográfica uma tentativa de manipulação das gravadoras juntamente com os seus
produtores em estipular normas e regras dentro do mercado fonográfico. Dessa maneira,
a relação entre o cantor e o produtor musical poderia ser controversa, o que gerava uma
impossibilidade de desenvolverem o processo do fazer artístico. Acerca dessa questão o
cantor Ney Matogrosso responde à indagação do jornalista Bené Fonteles em seu Livro
Ney Matogrosso: ousar ser. Ney esclarece:
Be Fonteles: E nesses seus discos, que na maioria eram conceituais, as
gravadoras e os produtores não queriam impor as questões de mercado?
Ney Matogrosso: Desde o meu primeiro disco, eu mesmo chamei o produtor
que queria. A partir daí, fiquei com fama de temperamental. Mas sabia o
que queria. Logo depois disso, quando mudei de gravadora, fui trabalhar com
o Mazzola. Durante muito tempo, ele foi uma pessoas que deu espaço para eu
realizar as minhas coisas com liberdade; embora algumas vezes eu tenha
concedido, pois confiava nele. Mas foi só para ele que concedi; depois nunca
mais. Agora faço o que quero mesmo. Não tem essa de concessão. Eu
canto só o que eu quero. As gravadoras só vão ver o que fiz depois de pronto.
Eu conquistei essa liberdade criativa (FONTELES, 2002).
55
A inserção do artista Ney Matogrosso no campo musical representou
naquele momento uma subversão da ordem natural da indústria fonográfica em função
da sua não submissão às normas e aos padrões estabelecidos por tal mercado, que
muitas vezes impunha ao artista o repertório a ser gravado visando uma maior
vendagem do produto no mercado da música. Em outras ocasiões as gravadoras estavam
atreladas ao poder do Estado ou submissas em relação ao poder censório do regime,
eram rias as possibilidades. Sobre esse contexto entre artista e gravadora Ney
comenta:
Quando escolho músicas aceito sugestões, mas nunca abro mão da última
palavra, sou eu quem decide. Não sei guardar nada pra depois. O que tenho
de falar eu falo na hora. Bato muito a boca, lavo muita roupa suja mesmo,
não tenho medo de falar mal de gravadora. Por mais amigos que todos sejam,
sei que se trata sobretudo de uma relação comercial. Eu interesso a eles na
medida que dou lucro, ninguém vai se lembrar de mim e me proteger quando
eu estiver velho e sem voz (PEREIRA, 1981).
Em fuão desse permanente conflito com diversas gravadoras durante sua
trajetória, o cantor Ney Matogrosso passou por seis gravadoras. O artista afirma em
entrevista concedida ao Jornalista Roberto D’Ávila, exibido pela TVE-RJ: “Com as
gravadoras foram seis trocas, eles desejavam vigiar a música e o artista e eu não me
submetia, eu sou um artista brasileiro e sinto orgulho por isso” (D’ÁVILA, 2003).
Quando o artista afirma que “eles desejavam vigiar a música e o artista”, certamente
esse se refere às multinacionais que se instalaram no Brasil nos anos setenta, bem como
aos óros de repressão e censura do regime militar.
O cantor e compositor Ednardo Sousa, complementa a fala do artista Ney
Matogrosso, quando afirma em entrevista concedida ao autor dessa tese que: seria
ingênuo desconsiderar que existem normas de praxe na indústria fonográfica as quais
independem da vontade dos artistas, e é quase impossível desconhecê-las”
(SOUSA,2004). Essas normas às quais o cantor Ednardo se refere, são exatamente as
imposições que a indústria fonográfica impunha ao artista acerca do repertório a ser
gravado, entre outras questões de natureza mercadológicas. No item subseqüente
aprofundaremos melhor essa discussão em torno do mercado fonográfico, quando será
discutido o processo de autonomia artística do cantor Ney Matogrosso.
56
1.4 “Ai se eu tivesse autonomia”: Mozart, Beethoven, Flaubert, Manet,
Ney - por uma autonomia artística
Ainda estou trabalhando, porque sinto que compor me cansa menos que
descansar. Hoje há uma apresentação da ópera de Hasse, mas como Papa não
quer sair, eu não posso ir. Felizmente conheço quase todas as árias de cor, de
modo que posso vê-la e ouvi-la em casa, na minha cabeça (MOZART, 1791
apud ELIAS, 1995 p. 97).
Passei por esse período da ditadura no Brasil e ignorava essa gente. Eu
ignorava que existia um governo. Eu vivia o contrário que eles permitiam,
porque dentro de mim eu não considerava aquilo como autoridade, falo em
um sentido muito pessoal, individual. Com as gravadoras foram seis trocas,
eles desejavam vigiar a música e o artista e eu não me submetia, eu sou um
artista brasileiro e sinto orgulho por isso (NEY, 2003 apud D’ÁVILA, 2003).
Nesse item será apresentada uma breve analogia entre o músico Wolfang
Amadeus Mozart e o artista Ney Matogrosso, no sentido de melhor compreendermos o
“lugar social” ao qual ambos estavam inseridos em buca de sua autonomia artística.
Dessa maneira intentamos compreender o anseio inerente ao artista de tornar-se
autônomo, independente em seu fazer artístico, no seu ato de criar de tecer sua arte, de
construir. A busca por uma autonomia nos mais diversos campos da arte é parte
integrante da própria condução do artista, inerente à sua essência e à própria condição à
qual o artista está submetido dentro do campo artístico.
Wolfang Amadeus Mozart, nasceu em 27 de janeiro de 1756 na cidade de
Salzburgo- Aústria. Foi educado na tradição da chamada música de corte, dentro de uma
concepção onde os músicos eram considerados e tratados como trabalhadores manuais.
Cabia a esses músicos produzir música para entretetimento da corte, dentro de seus
respectivos interesses e conveniências. Mozart tentou emancipar-se da sociedade
cortesã que lhe impunha um comportamento musical a ser seguido, na busca de se
tornar um músico aunomo.
Dessa maneira Mozart inicia uma “luta” com a aristocracia, seus patronos e
senhores, no que, segundo Elias (ELIAS, 1995) o músico teria fracassado” em seu
intento de autonomia por ousar dar um passo a frente, dentro de uma sociedade cortesã
que não estava preparada para tal comportamento. Dessa maneira, Mozart foi rejeitado
pela aristocracia de Viena, vindo a falecer com o sentimento de sua existência social ter
sido carregada de um vazio de significado.
57
No entanto, continua o autor em alise acerca da vida social de Mozart,
embora esse artista fosse dependente e subordinado à sociedade da corte, a consciência
de seu talento musical fez com que ele se sentisse igual, senão superior, a eles. Mozart
rompe com tal modelo social e antecipa-se à forma de produzir música à época.
Segundo Elias, o projeto de Mozart em tornar-se um artista relativamente autônomo ao
romper com a carreira de músico da corte fracassou, porque ainda não havia dentro de
tal sociedade, uma estrutura social adequada para receber um artista autônomo no
campo da música.
O cantor Ney Matogrosso, nasceu no Estado do Mato Grosso do Sul, na
cidade de Bela Vista, fronteira entre Brasil e Paraguay, em 01 de agosto de 1941. Seu
ingresso no cenário artístico se deu por meio do grupo musical Secos & Molhados em
maio de 1973. Logo no interior do grupo o artista começou a impor seu espaço,
expressando o seu princípio de autonomia artística (QUEIROZ,2004). Ney Matogrosso
teve uma formação ligada às artes cênicas antes de ingressar no grupo, daí então,
segundo o artista, não gostaria de ser apenas um crooner do conjunto, já que não
compunha e não tocava nenhum instrumento.
Assim sendo o cantor começou a criar um estilo próprio dentro do grupo,
incorporando um personagem com pinturas faciais inspirado segundo o artista no teatro
Japonês de Kabuk. Essa atitude do artista no interior do conjunto aponta para um anseio
de liberdade artística em relação aos demais membros, resultando tal postura no
desfacelamento do grupo, em função de uma pluraridade de comportamentos no interior
do grupo e ,segundo o cantor Ney Matogrosso, foi intensificada essa divergência em
função de fatores financeiros gerados pelo trabalho do conjunto (QUEIROZ, 2004).
Rompido com o grupo em agosto de 1974 o cantor Ney Matogrosso, parte
para sua carreira solo em março de 1975, dando continuidade dessa maneira ao seu
processo artístico em busca de uma autonomia frente às normas e condutas morais
intensificadas pelo regime militar de então e às imposições do mercado fonográfico. O
artista conduz-se dentro do universo da música como um transgressor do que está
instituído, dentro de uma perspectiva comportamental, trazendo para dentro do cenário
cultural uma discussão entre o masculino e o feminino na cultura, tendo em vista seu
comportamento andrógeno, ambíguo em cena.
Ney Matogrosso conseguiu tornar-se um artista relativamente autônomo em
relação às regras e às normas da indústria fonográfica e dos padrões morais do regime
militar por, na época, ter existido uma estrutura social que possibilitava essa relativa
58
autonomia aos artistas ligados ao campo da música. O que na verdade aproxima esses
dois artistas Mozart e Ney, dentro do campo da música em momentos tão distantes, sob
o ponto de vista da autonomia artística, é o movimento realizado para assim tornarem-se
independentes dentro de um contexto social e potico adverso.
Embora esses artistas não estivessem inseridos na potica no sentido
tradicional do termo, conduzindo-se por meio de um comportamento político partidário
de confronto ideológico dentro do campo da música, eles transgrediram as normas e
condutas morais estabelecidas em suas respectivas épocas. Mozart confrontou-se com a
sociedade da corte de Viena, Ney com o poder de um estado militar autoritário. Na
verdade esses dois artistas se contrapuseram às estruturas de poder de suas épocas, por
meio de um outro viés: o da transgressão comportamental das normas e condutas
impostas.
Dentro dessa perspectiva de compreensão desses dois mundos sociais no
qual estavam inseridos esses artistas, far-se-á uma rápida contextualização dentro do
processo histórico.
Na sociedade de corte do século XVIII, nos campos da literatura e da filosofia já se
encontravam uma certa autonomia artística, pois esses tinham uma maior liberdade
em produzir suas obras em função do advento da imprensa que estabeleceu novas regras
no mercado, proporcionando a esses campos das artes uma maior independência.
No campo da música a produção artística dos músicos dava-se sob o controle
da corte e estava atrelada diretamente ao gosto dos círculos aristocráticos. Dessa
maneira os músicos tinham pouquíssima liberdade de criação em seu fazer artístico.
Sobre esses aspectos Norbert Elias nos fala:
Nos campos da literatura e da filosofia era possível, na Alemanha da segunda
metade do século XVIII, liberar-se do padrão de gosto aristocrático-cortesão.
As pessoas que trabalhavam em tais setores podiam chegar ao seu público
através dos livros. Com respeito à música, a situação ainda era muito
diferente naquela época especialmente na Áustria e em sua capital, Viena,
as pessoas que trabalhavam nesse campo ainda eram fortemente dependentes
do favor, do patronato e, portanto, do gosto da corte e dos círculos
aristocráticos. Na geração de Mozart um músico que desejasse ser
socialmente reconhecido como artista sério e, ao mesmo tempo, quisesse
manter a si e à sua família, tinha que conseguir um posto na rede das
instituições da corte. Não tinha escolha (ELIAS, 1995 p.17 -18).
59
Dessa maneira estabeleceu-se a “luta” de Mozart em busca de sua liberdade,
independência em relação aos padrões ditados pelo establishment” cortesão
11
, em que
prevaleciam as determinações dos aristocratas, patronos e senhores, onde em consenso
ditava as regras de produção das artes, sobretudo no campo musical. Mozart era na
verdade um burguês outsider
12
a serviço da corte, lutando para compor, produzir sua
música de maneira livre, autônoma, fora dos interesses e vontades da aristocracia,
portanto, Mozart perdeu essa batalha, em função da forte estrutura social adversa a essa
forma de conduta dentro do campo da música. Elias aborda:
A vida de Mozart ilustra nitidamente a situação de grupos burgueses
outsiders numa economia dominada pela aristocracia de corte, num tempo
em que o equilíbrio de forças ainda era muito favorável ao establishment
cortesão, mas o a ponto de suprimir todas as expressões de protesto, ainda
que apenas na arena, politicamente, menos perigosa, da cultura. Como um
burguês outsider a serviço da corte, Mozart lutou com uma coragem
espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e senhores. Fez isto
com os seus próprios recursos, em prol de sua dignidade pessoal e de sua
obra musical. E perdeu a batalha (ELIAS, 1995 p.16).
Na segunda metade do século XVIII a trajetória de Mozart campo da música,
reflete nitidamente o controle e o poder da sociedade de corte em relação a obra do
artista. No entanto alguns anos depois, final do século XVIII, a geração seguinte de
Mozart, representado pelo Músico Beethoven, nascido quase 15 anos após Mozart, já
encontrou um campo bastante mais flexível dentro da sociedade de corte para produção
de suas obras. Elias nos afirma:
Beethoven nasceu em 1770, quase 15 anos depois de Mozart. Conseguiu, não
com facilidade, mas com muito menos problemas, aquilo por que Mozart
inutilmente lutou: libertou-se, em grande parte, da dependência do patronato
da corte. Foi, assim, capaz de seguir a própria voz em suas composições – ou,
11
Para examinar essa questão com maior afinco ver de Norbert Elias: State Formation and Civilization,
Oxford 1982, cap. 1 {ed. Brás. : O processo civilizador Formação do Estado e Civilização. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Nessa obra o autor examina com profundidade a estrutura do conflito de
padrões entre a corte e os grupos burgueses da segunda metade do Séc. XVIII, discutindo os conceitos
de “civilidade”, civilização”, “cultura”, que intensificam o embate entre os círculos do establishment
cortesão e os grupos burgueses outsiders.
12
As palavras establishment e established são utilizadas, em inglês, para designar grupos e indivíduos que
ocupam posições de prestígio e poder. Os ingleses utilizam os termos para designar a “minoria dos
melhores” nos mundos sociais mais diversos: os guardiãs do bom gosto no campo das artes, da excelência
científica, da boas maneiras cortesãs, dos distintos bitos burgueses. Na língua inglesa, o termo que
completa a relação é outsiders ,os não membros da “boa sociedade”, os que estão fora dela.Ver ELIAS,
Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena
comunidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2000.
60
mais exatamente, a ordem seqüencial de suas vozes interiores, e o o gosto
convencional de seus fregueses. Beethoven teve muito mais oportunidades de
impor seu gosto ao público musical. Diferentemente de Mozart, foi capaz de
escapar à correção de ter de produzir música na situação de subordinado a
um empregador ou patrono muito mais poderoso; ao invés disso, pôde
compor música, se o exclusivamente, mas pelo menos até certo ponto,
como artista autonomo(como chamaríamos hoje em dia) para um público
relativamente desconhecido (ELIAS, 1995 p.43).
No decorrer das demonstrações feitas por Norbert Elias é citado pelo autor, a
título de ilustração das diferenças entre Mozart e Beethoven, um trecho da carta escrita
por Beethoven para seu amigo Wegeler em 1801:
Minhas composições me renderam bastante; e posso dizer que recebo mais
encomendas do que me é possível satisfazer. Além disso, para todas as
composições posso contar com seis ou sete editores, ou até mais, se quiser; as
pessoas não vêm mais me propondo acertos, eu defino o pro e elas pagam.
De modo que você pode ver que me encontro numa boa situação
(BEETHOVEN, 1961 apud ELIAS, 1995, p.43).
Dessa maneira percebemos que o processo de produção musical passado
aproximadamente 20 anos entre as gerações de Mozart e Beethoven, final do século
XVIII e início do século XIX, se de forma mais sutil entre a sociedade de corte e os
artistas, apontando para uma maior autonomia artística. Dessa forma esses artistas,
tornaram-se um tanto mais independentes do controle da aristocracia em uma lógica de
mercado que se encontrava ainda em fase de formação.
Não há dúvidas, ao menos se levarmos em conta parte significativa da
historiografia artística, que existiu um período inicial da formação do campo
europeu onde os artistas e escritores dispuseram de grande autonomia de
criação, experimentação e consagração interna, desligada das demandas
ideológicas da Igreja e do poder político estatal, e ainda não suficientemente
sujeitas ao poder econômico e às regras da lógica de mercado (FREITAS,
2002).
Na primeira metade do século XIX foi o momento de estruturação do
mercado no campo das artes. No entanto, já na segunda metade do século XIX a relação
que se estabelece entre as produções artísticas e o controle social, estão bem
consolidadas. As regras ficam claras. Os campos da produção cultural passaram, a partir
de então, a ocupar uma posição significativa no campo do poder, e vice-versa.
Os próprios campos da arte, música, literatura são regidos em real homologia
às regras dos espaços sociais desse mesmo poder. As produções artísticas nesse
61
momento encontravam-se livres do controle social do Estado e da Igreja, porém agora
estariam submetidas à uma lógica de mercado em que prevaleciam o lucro sobre as
produções culturais, seguida da idéia de uma arte pura (FREITAS, 2002).
No entanto, esse período segundo (FREITAS, 2002) não pode ser
considerado em forma de bloco monotico, foi marcado por produções de obras
desligadas referencialmente a tudo que o fosse propriamente artístico, bem como
marcou a consolidação da idéia de uma arte pura, deslizada para fora da história e de
todas as impertinências da sociedade burguesa. Para isso, já na segunda metade do
século XIX, explicita o autor, se nomeou, ora como ofensa, ora como bandeira a se
defender, como arte pela arte, espécie de baluarte da autonomia simbólica da forma
sobre o tema, como na pintura de Manet ou na escrita de Flaubert” (FREITAS, 2002).
Em As Regras da Arte, o sociólogo francês Pierre Bourdieu aborda a história
literária francesa da segunda metade do século XIX, tentando compreender as regras e
padrões vigentes da época que regiam os escritores e as respectivas instituições
literárias. Nessa obra o autor questiona as regras de uma arte pura, desmistificando
dessa maneira a teoria do gênio criador, apresentando os fundamentos para uma teoria
da produção artística. Para isso Bourdieu centra sua análise na obra literária A Educação
Sentimental de Gustave Flaubert e a pintura de Manet, juntamente com os
impressionistas e alguns outros literatos franceses como Zola, Nerval, Gautier,
Baudelaire e os irmãos Goncourt. No entanto o autor o aniquila o criador sob o efeito
das determinações sociais que pesam sobre ele, e de reduzir a obra ao meio que a viu
nascer.
As regras da arte permite compreender o trabalho específico que o artista
deve realizar para se constituir em sujeito de sua própria criação dentro de um universo
literário que contempla a disputa entre escritores, críticos e editores, em um espaço que
o autor atribui como sendo um campo relativamente autônomo quanto às determinações
exteriores. Pierre Bourdieu, afirma:
A história da qual tentei reconstituir as fases mais decisivas, por uma série de
cortes sincrônicos, leva a instauração desse mundo à parte que é o campo
artístico ou o campo literário tal qual conhecemos hoje. Esse universo
relativamente autônomo (o que significa dizer também, é claro, relativamente
dependente, em especial com relação ao campo econômico e ao campo
político lugar a uma economia às avessas, fundada, em sua lógica
específica, na natureza mesma dos bens simbólicos, realidades de dupla face,
mercadorias e significações, cujo valor propriamente simbólico ao valor
mercantil permanecem relativamente independentes. Ao fim do processo de
especialização que levou ao aparecimento de uma produção cultural
62
especialmente destinada ao mercado e, em parte como reação contra esta, de
uma produção de obras “puras”, e destinadas à apropriação simbólica, os
campos de produção cultural organizam-se, de maneira muito geral, no
estado presente, segundo um princípio de diferenciação que não é amis que a
distância objetiva e subjetiva dos empreendimentos de produção cultural com
relação ao mercado e à demanda expressa ou tácita, distribuindo-se as
estratégias dos produtores entre dois limites que, de fato, jamais são
atingidos, a subordinação total e cínica à demanda e a independência absoluta
com respeito ao mercado e as suas exigências (BOURDIEU, 1996).
Essa busca está presente na própria trajetória da história da arte, quando os
artistas buscavam libertar-se do julgo das instituições e do domínio do mercado da
época, onde prevalecia o lucro sobre as produções culturais e a iia de uma arte pura.
Para exemplificar bem essa questão, percebermos como se davam essa relação entre o
artista e mercado cultural de então, citamos o pensamento do escritor Flaubert em
relação a esse mercado estabelecido na segunda metade do século XIX. O escritor
Gustave Flaubert declara:
Somos operários de luxo. Ora, ninguém é bastante rico para nos pagar.
Quando se quer ganhar dinheiro com a pena, é preciso fazer jornalismo,
folhetim ou teatro. A Bovary custou-me trezentos francos, eu paguei, e
jamais receberei um centavo deles. Atualmente, chego a poder pagar meu
papel, mas não as diligências, as viagens e os livros que meu trabalho me
exige; e, no fundo, acho isso bom (ou finjo achá-lo bom), pois o vejo a
relação que há entre uma moeda de cinco francos e uma idéia. É preciso amar
a Arte pela própria Arte; de outro modo, a menor profissão é preferível
(FLAUBERT, 1871 apud BOURDIEU, 1996, p. 61).
Essa declaração do escritor Gustave Flaubert, reflete o sentimento que
prevalecia entre os artistas da época ligados ao campo literário em relação ao mercado
cultural. Existia uma grande insatisfação desses artistas em relação ao mercado, o que
gerava uma tentativa cada vez maior de tornarem-se independentes das imposições e
regras mercadológicas. Após a geração de Flaubert, esse grau de autonomia se
concretiza de maneira mais consistente, em função do princípio de autonomia dos
campos que se tornaram mais visíveis na primeira metade do século XX. Acerca dessa
autonomia dos campos e subcampos, Bourdieu nos afirma:
O grau de autonomia de um campo de produção cultural revela-se no grau
em que o princípio de hierarquização externa aí está subordinado ao princípio
de hierarquização interna ao princípio de hierarquização interna: quanto
maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é favovel aos
produtores mais independentes da demanda e mais o corte tende acentuar-se
entre os dois los do campo, isto é, entre o subcampo de grande produção,
63
que se encontra simbolicamente excluído e desacreditado (BOURDIEU,
1996, p.246).
Estabelecendo-se com mais afinco os níveis de autonomia artística no
interior dos campos e subcampos, abre-se, a partir de então, um contexto propício na
segunda metade do século XX, a partir da década de cinqüenta, para a estruturação de
uma sociedade voltada para um consumo exacerbado, em função do alto
desenvolvimento tecnológico dentro dos países ditos “industrializados” da época,
sobretudo os Estados Unidos, o que veio a fomentar o surgimento dos chamados
movimentos de contracultura em meados da década de sessenta.
Morin (1986) aponta para a crescente penetração da cultura de massas
13
durante os anos de 1960-65 no mundo ocidental na vida quotidiana, nos lares, na vida
conjugal, na família, etc., como o fator preponderante no desencadear de uma crise
social, transformando a “mitologia da felicidade” da cultura de massas em uma
problemática da felicidade, com o advento dos movimentos de contracultura. Dessa
forma, a verdadeira crise cultural eclode nos anos de 65-75, dando início aos
movimentos de underground, de contracultura, ou mesmo de “revolução cultural”.
Segundo Morin (1986) a partir da década de sessenta, precisamente no ano
de 1967, a libertinagem, que na época da cultura de massas era cultivada no consumo e
para o consumo, por meio do erotismo imaginário e da publicidade, sai do leito que lhe
fora destinado, onde era prudentemente mantida e contida. Ela se desencadeia (onda de
choque) na reivindicação ilimitada do desejo e do prazer, desdenhando qualquer tabu.
Expande-se (onda larga) na liberação dos costumes e no enfraquecimento das proibições
erótico-sexuais na vida e nos espetáculos.
Os movimentos de contracultura
14
espalharam-se de maneira exorbitante por
todo o mundo. Brandão (1990) aponta para os movimentos de contracultura como um
fenômeno nascido nos Estados Unidos da América, ao final da década de cinqüenta, a
partir da inquietação da juventude frente à guerra fria e ao consumismo exacerbado dos
13
Entenda-se por “cultura de massao incessante desenvolvimento tecnológico o qual atingiu os
países industrializados a partir da década de cinqüenta, sobretudo os Estados Unidos da América com a
larga expansão dos meios de comunicação, passando a atingir milhares de pessoas, influenciando o
consumo dos bens materiais produzidos por tais países, dando origem a chamada “sociedade de
consumo” (MORIN, 1986).
14
Carlos Alberto Pereira, define a contracultura como “a cultura marginal”, independente do
reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é uma anticultura (PEREIRA, 1983).
64
americanos, a chamada cultura de consumo. Essa inquietação e rebeldia da juventude
americana refletiram-se na universidade por meio de um grupo de estudantes ligados à
literatura em que objetivavam oferecer um estilo de vida alternativo à cultura de
consumo materialista em que se encontrava fundada no consumismo da sociedade norte
americana.
Surge a partir de então a expressão em inglês beat generation, surgida a
partir dos poetas e escritores Jack Kerouak, Willian S. Burroughs, Allen Ginsberg,
Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Gary Synder, entre outros em que contestaram a
sociedade civil americana, o conhecido american way of life. Esses escritores e poetas
conseguiram, por meio de sua sensibilidade literária, captar esse momento, esse anseio
de liberdade, de mudanças poticas sociais, o desejo de sintonia com a natureza, com o
universo, com Deus, contido no inconsciente coletivo, não da juventude norte
americana, como também em outras localidades de nosso planeta. A geração beat foi
precursora do movimento hippie
15
surgido na década vindoura.
Dessa maneira no início dos anos sessenta, uma gama enorme de jovens
norte americanos movidos e influenciados pelos ideais “beats”, iniciaram uma jornada à
deriva pelas estradas da América do Norte. Os jovens norte-americanos buscavam
alternâncias não para suas formas de inserções sociais, questionando o estilo de vida
americano imposto pela cultura de consumo. Portanto, esses jovens também ansiavam
por mudanças para outras localidades do mundo, como, por exemplo, os países na época
denominados e classificados como países de terceiro mundo, por estarem em condição
de donio potico e econômico pelos países intitulados de primeiro mundo.
A partir de então, surgem os movimentos culturais da juventude dos anos
sessenta, ficando conhecidos como contracultura, por colocarem em “xeque” os
conceitos culturais, políticos e econômicos vigentes. No Brasil essa mentalidade se
concretiza de forma consistente no final dos anos sessenta e início dos anos setenta,
quando se instauram no seio da juventude influência os movimentos de contracultura,
com o estilo de vida hippie.
15
Hippie - membro de um grupo não conformista, caracterizado pelo rompimento com a sociedade
tradicional, em especial no que diz respeito à aparência pessoal e os hábitos de vida, e por um enfático
ideal de paz e amor universal (PEREIRA, 1983).
65
Paralelo ao movimento da contracultura, foi outorgado no Brasil em
dezembro de 1968 o Ato Institucional número cinco - AI-5
16
, o que resultou em um
impacto direto nos setores ligados a cultura. A partir daí a produção cultural desses
setores passaram a ser cerceadas, censuradas e vetadas em sua liberdade de expressão e
criação, pelos órgãos de repressão e censura do regime militar. Setores como o cinema,
teatro, literatura, meios de comunicação de massa, produções musicais, acadêmicas,
intelectuais, entre outros setores da sociedade civil organizada, são penalizados com
vetos (FAUSTO, 1984).
Percebe-se, em meados da década de 70, s-AI-5, momento spido do
regime militar em função da repressão exercida pelo poder censório sobre a cultura,
sobretudo uma tentativa de adestramento e disciplinarização do corpo social. Nessa
época, o era permitido socialmente ao sexo masculino mostrar os pés, nem muito
menos os ombros, através de suas vestimentas. Essas normas e condutas morais
começaram a serem rompidas a partir dos ideais da contracultura, com o movimento
hippie, em que sugeria ao modelo social vigente paz e amor.
É dentro desse contexto político-cultural no final dos anos sessenta e início
dos anos setenta, entre um regime militar vigente e os ideais da contracultura que o
artista Ney Matogrosso busca sua autonomia artística frente às imposições da indústria
fonográfica. O cantor declara sua adesão aos ideais da contracultura: Não queria
participar da sociedade e, conseqüentemente, me coloquei à margem. Marginal por
opção mesmo, e não por contingência da vida. Resolvi viver o que era de verdade pra
mim, e isso me deixou extremamente feliz” (VAZ, 1992, p. 75).
A classe social do cantor, oriunda dos padrões de classe média, filho de
militar, prestando aos dezessete anos o serviço militar, tornando-se funcionário público
no Hospital de Base em Brasília e mais tarde artesão, adotando o estilo de vida hippie
no Rio de Janeiro. As pressões sociais sofridas pelo cantor, por não se submeter aos
padrões impostos pela indústria fonográfica e ao comportamento moral intensificado
16
O Ato Institucional foi decretado em 13 de dezembro de 1968, pelo então Presidente da República
Federativa do Brasil, General Costa e Silva. O art. 5 º previa a suspensão dos direitos políticos. I-cessação
de privilégio de foro por prerrogativa de função; II-suspensão do direito de votar e de ser votado nas
eleições sindicais; III-proibição de atividade ou manifestação sobre o assunto de natureza política; IV-
aplicação, quando, necessário, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de
freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado
(FAUSTO, 1984
).
66
pelo regime militar, formam o contexto dentro de seu processo de autonomia artística
frente ao poder instituído.
O artista Ney Matogrosso mostrou-se indisciplinado em relação ao cenário
da musical da época, quando gradativamente rompe com as imposições da indústria
fonográfica. A lógica do mercado determinava que o artista devesse, em primeira
instância, gravar o long play em comum acordo aos interesses de mercado da gravadora,
passando conseqüentemente pelo processo de divulgação nas emissoras de rádio e TV,
para em uma etapa final estrear o espetáculo. O cantor Ney Matogrosso subverte essa
ordem natural estipulada pelo mercado fonográfico. O artista declara:
Eu entrego pronto e a gravadora não sabe nem do que se trata. Alcancei essa
liberdade, coisa muito rara no universo artístico. Hoje, ou as pessoas são da
Globo e se submetem ao comando da empresa, ou ao gosto de uma
gravadora. Não vim a este mundo para agradar a uma gravadora. Tô aqui pra
me satisfazer artisticamente e oferecer coisas interessantes. Meu único
termômetro é agradar ao público (RACY, 2008, p. D11).
Esse anseio por uma autonomia artística é inerente a geração de artistas à
qual pertenceu o cantor Ney Matogrosso, influenciados pelos ideais da contracultura,
oriundos de um período pós movimento tropicalista da canção, que se deu em meados
dos anos setenta. O cantor e compositor Ednardo pertencente a essa geração de artistas
pós tropicalistas, aborda essa delicada relação entre artista e gravadora:
O Artista é o lado mais sutil da engrenagem, oferece suas obras,
interpretações e idéias, sem as quais nenhuma gravadora existiria. Quando é
aceito, faz e ao mesmo tempo não faz parte das gravadoras, não é empregado
nem executivo, seu contrato é temporário por obras gravadas ou anualmente
dependendo da vontade dos contratantes e resultados de vendas. A não ser no
caso específico do artista ser dono de sua própria gravadora, editora e voz.
Paradoxalmente, somos a parte mais importante e dispensável do sistema,
não é preciso grandes exercícios para entender esta vulnerabilidade e o que as
gravadoras buscam em cada caso. Neste universo coexistem interesses
diferentes o artista pode ser manipulado em sua vontade servindo de
marionete, ou respeitado como mestre em sua arte (A FIDELIDADE, 2004).
O cantor continua sua explanação abordando a inserção do artista no
mercado fonográfico e a busca por sua autonomia artística.
Flávio Queiroz: Caro Ednardo, atualmente você grava o que entende?
67
Ednardo Souza: No contexto da década de setenta os primeiros artistas que
estabeleceram suas próprias editoras e selos de gravação em 1975 foram:
Milton Nascimento, Fernando Brant, Ednardo. E isto foi muito difícil na
época. As gravadoras das quais éramos contratados entenderam que não
poderiam mais controlar todo o processo e isto nos custou aborrecimentos e
dificuldades no trato cotidiano entre artista/gravadora. Hoje em dia é bastante
normal que artistas tenham seus próprios selos e editoras, fomos pioneiros
também neste aspecto, mas em compensação foram criados outros “filtros”
sutis e com eficiência maquiavélica” de controle, o que nos leva a ver que
guardando devidas proporções alguns fatos mudaram, mas não de todo,
algumas mudanças deram melhor autonomia aos artistas, e outras em grande
parte, são ainda impossíveis dizer à priori que foram boas ou o para a
música brasileira. Sempre gravei o que acredito, desde meu primeiro disco ao
mais recente, durante estes 32 anos de carreira artística, nunca permiti ou abri
espaço para que departamentos artísticos e de marketing de gravadoras
passassem por cima e manipulassem repertório de composições e
interpretações de meus discos. Tenho consciência que custou bastante em
termos de ônus de visibilidade no cenário artístico brasileiro, em
compensação mantenho íntegra minha obra, isto não preço que compre
(SOUSA, 2004).
Essa autonomia à qual se referem o artista Ney Matogrosso e o cantor e
compositor Ednardo ao longo de seus relatos em relação ao mercado fonográfico é
eminentemente relativa dentro do processo que envolve a indústria da música. Existem
outros elementos que influenciam diretamente esse processo de autonomia do artista.
Como discutimos o produtor musical é um desses elementos de significativa
expressão dentro desse processo de construção do fazer artístico. A Revista Veja em 21
de abril de 1982, publicou matéria intitulada “Turma do Toque de Ouro”, focando a
importância dos produtores de discos. Pretendemos com essa alise tornar mais tida
essa questão da relatividade da autonomia do artista. A revista aborda:
Nos anos 60 bastava ter talento para fazer um disco, o artista entrava em
estúdio de gravação, passava ligeiras instruções sobre cada canção ao
maestro e soltava a voz pelo microfone. Hoje, o talento de um cantor é
apenas o instrumento de trabalho de um personagem novo e cada vez mais
importante, o produtor. Com o poder de decisão às vezes maior que o do
próprio artista, ele agora começa a sair do anonimato e ser reconhecido pelo
público. Um memorando interno da gravadora Som Livre decidiu, dois
meses, que o nome de seus produtores deve figurar em letras grandes na
contracapa de todos os discos. Segundo o departamento de vendas, depois
dessa medida, os discos que levavam a assinatura do produtor Guto Graça
Mello garantiram uma vendagem extra de 10.000 cópias. (MAZZOLA, 2007,
p. 168).
68
Essa relatividade é percebida e abordada pelo produtor musical Marco
Mazzola, quando indagado sobre o papel do produtor no contexto da música brasileira,
esse responde:
Acho que a coisa ainda é muito de patota, tirando alguns produtores que tão
aí no mercado. E acho que a culpa também é do artista. Todo artista acha que
pode fazer tudo sozinho, acha que um amigo pode produzir um disco. Isso é
um erro. Mas o relacionamento entre produtor e artista deve ser profissional.
Toda vez que você tenta ser muito amigo do artista, vo perde no lado
profissional, porque a gente sabe que, realmente, o artista tem um ego grande
(MAZZOLA, 2005 apud MOURA, 2005).
A influência do produtor musical em relação à obra do artista é mencionada
no depoimento do produtor Marco Mazzola, quando esse sugere o reperrio a ser
gravado pelo cantor Ney Matogrosso. Mazzola narra:
Em 1977, tive meu primeiro encontro com Ney Matogrosso, na Warner. Em
1978, com postura de uma grande estrela, Ney continuava em ascensão com
seus shows. Fechou contrato conosco, na WEA, e começamos a pensar em
seu primeiro disco para a gravadora. Era Feitiço que incluía grandes sucessos
como Tic tac do meu coração, Bandolero e Não existe pecado ao sul do
Equador esta última gravada em Los Angels, com a fina flor da dance
music. A canção, entre as muitas de Chico Buarque que Ney gravou, ficou
eternizada em sua voz. Em 1981, tive que colocar à prova um pouco da
minha certeza nas opiniões que sugeria a ele. Estávamos escolhendo o
repertório e sugeri a ele a gravação de Homem com H. Ele relutou muito e
disse que eu não podia estar falando rio. Disse que não sabia cantar forró e
que não gravaria a música de jeito nenhum. Pelo crédito que eu tinha
conquistado com ele, fiz um pedido: “Ney, se você o gostar do que eu vou
fazer, não se preocupe, prometo que não coloco no disco”. Ele respondeu:
“Então eu aceito” (MAZZOLA, 2007, p.111- 115).
Sobre esse episódio o cantor Ney Matogrosso confirma essa parceria entre
artista e produtor, demonstrando dessa maneira a inflncia exercida por outros setores
dentro do campo artístico, em um processo gerador de uma relatividade autônoma. Ney
diz:
Quando comecei minha carreira solo, logo o disco, chamado Feitiço, fiz
junto com Mazzola. Dali pra frente, fizemos muitas coisas juntos, por
exemplo, Homem com H, que entrou no meu disco, porque o Mazzola
insistiu muito, pois eu achava que eu não sabia fazer forró. Fizemos muitas
coisas boas. O Mazzola foi uma espécie de ancora para mim, pessoa em que
eu confiava muito, tanto é que eu sai de uma gravadora por causa dele. A
gravadora me dispensou porque ele saiu e eu reclamei muito. Éramos muito
amigos, porém teve um momento em que eu parti para novas experiências,
69
novas coisas em minha vida, mas em nenhum momento deixei de admirá-lo
(MAZZOLA, 2007, p. 117).
O anseio por tornar-se um artista autônomo é inerente ao artista desde os
mais diversificados momentos da hisria da arte. Assim procuramos demonstrar nas
análises desse item, quando abordamos o desejo de autonomia artística de vários artistas
como de Mozart, passando por Beethoven, Flaubert, Manet até chegar ao cantor Ney
Matogrosso, perpassando pelo cantor e compositor Ednardo e por último trazendo toda
uma relatividade dessa mesma autonomia demonstrada pelo produtor musical Mazzola
no seio do campo artístico.
Nos movimentos musicais anteriores ao surgimento do artista Ney
Matogrosso no cenário da musical brasileiro, como a Bossa Nova e o Tropicalismo,
existiam o anseio por parte desses artistas em terem uma maior autonomia, ora em
função de um novo estilo musical a ser difundido, ora por uma ruptura de padrões
vigentes do poder instituído. Podemos falar em uma autonomia de estilo musical entre
os “bossanovistas”, em que inauguraram um novo modo de se produzir música, uma
outra tonalidade.
No tropicalismo uma autonomia por parte dos artistas envolvidos no sentido
de uma ruptura de gêneros, de estilo musical, uma mistura de ritmos em que houve o
poder de veto em suas canções. Porém o que acentua a busca por uma autonomia o
artista Ney Matogrosso dentro desses diversos processos de autonomias é exatamente o
desafio empreendido por esse artista, o somente frente ao regime militar, mas também
dentro de uma sociedade que naquele momento mostrava-se rigorosamente intolerante
com traços homofóbicos para com o comportamento andrógino do artista em cena.
Sobre essa questão a informante Lúcia Furtado
17
, explica o que é ser um
artista autônomo sob o ponto de vista das artes plásticas, acentuando o processo de
autonomia do cantor Ney Matogrosso no campo musical e a hostilidade de caráter
homofóbica sofrida por esse artista. Quando indagada sobre o que é ser um artista
autônomo, respondeu: “Falo sob o ponto de vista das artes plásticas, não das ciências. É
o espaço conquistado pelo artista para poder criar, produzir livremente, sem pressões
dos modismos do mercado. É ter seu próprio traço, personalidade” (FURTADO, 2004
p. 1).
17
Lúcia Furtado, psicóloga e artista plástica, 58 anos, natural de Juiz de Fora-MG, residente em o
Paulo-(SP). Contactada a partir da comunidade Ney Matogrosso.
70
Continuando com as questões, perguntamos se ela se considerava uma artista
autônoma, ao que respondeu: “Muitas vezes temos que nadar contra a corrente mesmo,
o se deixar levar pelo dinheiro fácil. Infelizmente no início de minha carreira me
submeti, fiz exposições para projetar-me no mercado e outras para vender bem. Elas não
expressavam minha arte, apenas uma necessidade do momento”.
Em última análise indagamos se a informante considerava o artista Ney
Matogrosso como um artista autônomo.“Nesse aspecto, sim, o vejo como um artista
autônomo, entre poucos da MPB, porque ele se conduz de forma original nesse mercado
de mercenários ávidos por dinheiro”. Continua em complemento no final da fala: O
Ney não se rendeu aos caprichos e imposições da máquina”.
Retomando mais a frente à questão, a informante acrescentou a seguinte
reflexão: Na verdade, Flávio, a autonomia é relativa, todos nós artistas buscamos isso,
porém nem todos conseguem. Todos almejam serem independentes, livres em seu criar.
No fundo todos querem ser autônomos”. Por fim, a informante finalizou com uma
percepção do caráter homofóbico sofrido pelo artista Ney Matogrosso em sua trajetória
artística:
E fazendo uma análise mais aprofundada sobre essa questão da autonomia do
Ney que é o cerne de tua questão, o elemento principal de teu trabalho, existe
um elemento a mais no Ney em relação aos outros artistas em relação a
autonomia. Ele teve que lutar contra um governo e uma sociedade altamente
preconceituosos, melhor dizendo, via em artistas como Ney como diabólicos
à sua moral. Ney mexeu exatamente com essas questões de gênero em sua
forma ambígua de ser de se apresentar perante o público. Isso podia ter
acontecido com Caetano, Gil, mas eles eram casados tinham filhos e no palco
não eram tão agressivos, provocativos quanto ao Ney. Ney dançava, cantava
fino, se pintava era tudo mais forte. Para o Ney não tinha salvação era
chamado de “gaymesmo, não tinha piedade, clemência. Era hostilizado, eu
lembro desse preconceito por parte dos ridículos “machões” de plantão,
quanta bobagem. Os que mais atacavam eram os metidos a esquerda, eram
uns frustrados, infelizes com sua própria sexualidade talvez. Não sei como o
regime militar não deu fim no Ney por tamanha ousadia, provocação, ele
escapou, Flávio, escapou de ser morto mesmo, daí davam como desaparecido
como tantos outros e pronto ficava por isso mesmo. Mas, ele era uma
pessoa pública e talvez por isso não aconteceu. Tinha um amigo de meu pai,
um velho militar que sempre dizia que ele deveria ser eliminado, um doente
mental não tem outro nome o. Lembro disso, essa era a palavra que ele
usava, eliminado, dá até arrepios só em falar, nossa! (FURTADO, 2004 p. 3 e
4).
Como ficou demonstrado essa autonomia do cantor Ney Matogrosso é
relativa dentro de todo essa rede social que envolve o fazer artístico. A engrenagem da
indústria fonográfica é bastante complexa, daí vir a envolver várias questões de natureza
71
econômica dentro de uma lógica de mercado das gravadoras. No depoimento da senhora
Lúcia Furtado, embora essa considere o cantor Ney Matogrosso autônomo, é notório a
condição relativa dessa autonomia explicitada pela informante, sob o ponto de vista das
artes plásticas. Essa autonomia artística à qual nos referimos está diretamente
relacionada com uma condição liminar na qual esteve inserido o cantor Ney Matogrosso
no transcorrer de seu percurso artístico. Examinaremos essa condição liminar no item
subseqüente.
1.5 “Condenado a viver perto da loucura”: Ney pessoa/persona uma
condição liminar
Quantos personagens podem conviver num artista? Na Grécia antiga a
resposta a essa questão seria extremamente fácil. Mil máscaras, mil faces.
Hoje, quantas personalidades são necessárias para transformar Ney
Matogrosso, um artista tímido e simples, num fauno liberto e carismático no
palco? Quando o artista rompe dentro de si mesmo a ditadura do ego, e se
permite a liberdade total, irmã siamesa da verdade, a identificação de seu
público é imediata. Por tudo isso faz a platéia delirar. Nem ele mesmo
compreende esse processo e muito menos consegue explicar como se a
metamorfose.”(PEREIRA,1982 a)
Nesse item procurar-se-á entender a condição de liminaridade artística na
qual se encontrou o cantor Ney Matogrosso, a partir do momento em que a pessoa de
Ney de Souza Pereira incorpora o personagem Ney Matogrosso, ao ingressar como
vocalista no grupo musical Secos & Molhados em meados de 1973. Ao romper com o
grupo em agosto de 1974 o artista depara-se com mais um momento dessa liminaridade,
passando a ser uma constante nos diversos outros contextos de sua carreira solo,
iniciada em março de 1975.
A partir de então o artista encontra-se em uma condição liminar, não
somente na relação de ambigüidade entre a pessoa e o personagem incorporado, mas
também em relação ao regime militar e à indústria fonográfica. Dessa forma o cantor
manteve-se nessa liminaridade entre os anos de 1975 a 1981, quando então funda a
Matogrosso Produções Artísticas e retoma sua projeção nacional enquanto femeno de
massa, passando a ocupar ginásios e estádios de futebol nas realizações de seus
espetáculos.
72
Essa condição liminar ao qual esteve inserido o cantor durante seu percurso
artístico, intensificou sua busca em relação ao processo de autonomia artística, frente ao
regime militar e mercado fonográfico. Para entendermos esse estado liminar entre a
pessoa/persona do artista Ney Matogrosso em relação a esses poderes instituídos,
recorreremos a algumas categorias de análise, teorias e conceitos que envolvem a
questão da liminaridade, da experiência liminar, liminal experience.
No âmbito das ciências sociais existem dois conceitos centrais acerca da
idéia de liminaridade. O primeiro conceito é fundado na tradição antropológica, em que
estão inseridos os estudos de
Arnold
Van Gennep, Victor Turner, Mary Douglas, Max
Gluckman e Edmund Leach, os quais nos levam aos ritos de passagem e aos costumes
exóticos” de grupos tribais. O segundo refere-se à idéia, à noção de individualidade,
percepção central da tradição clássica dos estudos sócio-históricos das grandes
civilizações, encabeçados por pensadores como Maine, Morgan, Sabine, Tocqueville,
Max Weber e de Louis Dumont (DA MATTA, 2000).
O conceito de liminaridade compreendido por Van Gennep (1978:37), torna-
se evidente, quando esse vem a perceber em sua obra Os Ritos de Passagem, que esses
ritos se constituem de uma série de etapas classificadas como: “... ritos preliminares os
ritos de separação do mundo anterior, ritos liminares os ritos executados durante o
estágio de margem e ritos pós-liminares os ritos de agregação ao novo mundo”. Mais a
frente nos estudos empreendidos pelo antropólogo Victor Turner (1974), a idéia de
liminaridade é ampliada, quando este compreende esses ritos de passagem como dramas
sociais, conceito desenvolvido pelo autor ao longo de seu estudo em O Processo Ritual.
Esses dramas sociais ou ritos de passagem defendidos por Turner, são
caracterizados por momentos de suspensão da vida cotidiana. Nesses momentos, atores
sociais constroem formas simlicas de interação no interior da estrutura que compõem,
onde esse processo de inversão da ordem estabelecida dá-se de maneira desarmônica.
Tal categoria, compreendida por liminal experience, teria similaridades com o que nós
ocidentais vislumbramos por experiência estética.
Essa experiência liminar, teoria central de análise estudada por Turner, a
questão estética está intimamente ligada a uma experiência de um espaço e um tempo
diferenciados no cotidiano. Dessa maneira os ritos iniciam com a separação da vida
cotidiana, tendo sua fase liminar, e terminal com o retorno da vida cotidiana. Esse é o
momento entendido como de betwix (sic) e between, possibilitando por meio dessa
condição liminar a transformação, a criatividade e a livre expressão.
73
Acerca dessa idéia de liminaridade fundada na tradição antropológica
moderna nos estudos de Gennep e Turner, onde apontam para a compreensão dos rituais
de passagem dentro de um processo social de interação e interdependência é realizada
uma reflexão crítica pelo Antropólogo Roberto da Matta. Essa crítica realizada pelo
antropólogo em forma de conferência e posteriormente publicada na revista Mana em
fevereiro de 2000, tendo como título Individualidade e liminaridade: considerações
sobre os ritos de passagem e a modernidade, procura entender como essa “passagem”
pode ser descoberta entre a tradição antropológica e a idéia de individualidade, áreas
aparentemente tão distantes até então, segundo justificativa do antropólogo.
Dessa maneira, Roberto da Matta, tenta estabelecer um elo crítico entre dois
conceitos das ciências sociais. A idéia de liminaridade fundada em um conceito
engendrado pela tradição antropológica dos estudos detalhados, em geral auto-contidos
e referidos e sobre a idéia de individualidade, que é uma noção central da tradição
clássica dos estudos sócio-históricos das grandes civilizações. A pretensão do
antropólogo é indicar como uma passagem pode ser descoberta entre essas duas áreas
conceituais, quando, então, especifica certos aspectos ainda não discutidos dos ritos de
passagem.
Dessa forma o antropólogo tece crítica à iia de liminaridade defendida por
Turner, afirmando que a liminaridade dos ritos de passagem está ligada à ambigüidade
gerada pelo isolamento e pela individualização dos noviços, e que, portanto, a
experiência de estar fora-do-mundo é que engendra e marca os estados liminares.
Portanto, para Roberto da Matta é a individualidade que engendra a liminaridade e não
ao contrário como entendeu Turner (DA MATTA, 2000). O antropólogo afirma em sua
crítica:
Meu ponto central, então, é que a liminaridade dos ritos de passagem está
ligada à ambigüidade gerada pelo isolamento e pela individualização dos
noviços. É, portanto, a experiência de estar fora-do-mundo que engendra e
marca os estados liminares, não o oposto. Em outras palavras, a liminaridade
e as propriedades nela descobertas por Turner o têm poder em si mesmas.
Mas é a sua aproximação de estados individuais que faz com que os noviços
se tornem marginais. É, em uma palavra, a individualidade que engendra a
liminaridade. No fundo, os ritos de passagem tratam de transformar
individualidade em complementaridade, isolamento em interdependência, e
autonomia em imersão na rede de relações que os ordálios, pelo contraste,
estabelecem como um modelo de plenitude para a vida social (DA MATTA,
2000).
74
Seguindo o propósito de utilizarmos a idéia de liminaridade de modo
estratégico, podemos localizar esses momentos de liminaridade junto ao artista Ney
Matogrosso durante as situações mais distintas. Tais situações já foram percebidas
durante pesquisa investigativa de campo e não apenas aquelas que mais correntemente
concebemos como construtivas dentro do campo teórico. Com efeito reporto-me às
afirmações de nossos entrevistados e, sobretudo, pela própria concepção do artista e
declarações da mídia da época. Tanto os informantes, a mídia e o próprio artista em
depoimentos e afirmações colhidas pronunciavam-se acerca da condição do cantor Ney
Matogrosso de estar fora, out”, na contramão, fora de qualquer esfera de classificação,
posição essa também compartilhado pelo artista. Ao longo desse trabalho isso ficará
demonstrado.
A idéia de liminaridade é aqui entendida como uma condição permanente e
inerente não somente ao percurso artístico do cantor durante os anos de 1975 a 1981,
quando então afasta-se desse estado limiar, retomando sua condição artística enquanto
fenômeno de massa. Essa mesma condição de liminaridade artística presente na
trajetória do cantor é uma condição inerente à pessoa de Ney de Souza Pereira, ela
apresenta-se antes mesmo do surgimento do personagem Ney Matogrosso ao ingressar
no grupo musical Secos & Molhados.
Aos dezessete anos o cantor rompe com os laços familiares, saindo de sua
cidade natal no Estado de Mato Grosso do Sul, para então prestar o serviço militar na
aeronáutica no aeroporto do Galeão - RJ, aderindo mais a frente aos ideais da
contracultura até ingressar como vocalista no grupo musical Secos & Molhados. Esses
dois momentos de transição do artista ao sair de casa para prestar o serviço militar,
aderir aos ideais da contracultura até ingressar no grupo, são momentos de liminaridade
que antecederam outros momentos dessa condição liminar em sua carreira. Na verdade
são momentos liminares, pois houve isolamento do cantor o que produziu condições de
liminaridade.
No início de sua trajetória, quando atuou como vocalista do grupo musical
Secos & Molhados, o artista Ney Matogrosso esteve em mais uma condição limiar, em
função da criação do personagem criado durante sua atuação no palco. Dessa maneira
pode o cantor preservar sua identidade por meio das pinturas e adereços inerentes ao
personagem incorporado. Segundo o artista, as máscaras desenhadas em seu rosto foram
em primeira instância, inspiradas no teatro de kabuki.
75
Durante esse período, compreendido entre os anos de 1973-74, o cantor não
concedeu entrevistas, já que o personagem por ele incorporado não podia falar o
personagem não fala (QUEIROZ, 2004). Assim, o cidadão Ney de Souza Pereira não
mostrava sua verdadeira identidade diante da dia e público, seu verdadeiro rosto ficou
preservado por detrás das pinturas exóticas e esdrúxulas que construiu ao longo de sua
atuação no grupo. Sobre a criação do personagem Ney declara:
[...] pensava em desenhar no meu rosto uma máscara. Fui numa casa de
maquiagem para teatro e comprei potes de tinta branca e preta. Me inspirei
nas imagens no teatro "kabuki", que para mim eram muito fortes, e com as
quais tive contato no bairro da Liberdade, quando morava em São Paulo.
Passei a me apresentar mascarado, porque tinha muito medo da exposição.
Ouvia dizer que artista não podia andar na rua. Eu tinha pavor de perder esse
direito. Na medida em que fui observando o aumento da receptividade ao
Secos e Molhados, fui fechando a máscara no meu rosto. Eu não permitia que
publicassem fotos minhas sem a pintura. Foi uma atitude. Me tornei destaque,
sem querer destaque algum. Eu gerava, naturalmente, muita curiosidade nas
pessoas (MATOGROSSO, 2003).
Esse momento limiar é comentado pelo artista em fevereiro de 1974, quando
ainda vocalista do grupo musical Secos & Molhados. O cantor afirma em entrevista:
Eu sou uma iia apenas e é por isso que algumas pessoas me estranham. Costuma me
chamar de andrógino, de ambíguo. Não entendem que não me limito a cantar. Eu me
permito botar tudo que sinto pra fora no palco” (TRANSGRESSÃO, 1974, p. 6).
Ao sair do grupo a imprensa notifica essa passagem da seguinte forma:
Durante esse tempo todo o cantor se escondeu atrás do Soldado da pocia da
Aeroutica, do funcionário público, do artesão da Praça da República paulista. Aque
deixou de ser Souza Pereira e adotou o Matogrosso sobrenome de seu pai”. Ney
complementa: “Olha eu queria mesmo era me chamar B 250. pensou um cantor com
número de computador em vez de nome?” (AUTRAN, 1975).
Essa notificação por parte da imprensa aponta para uma condição de
liminaridade do artista que antecede ao momento em que incorporou o artista Ney
Matogrosso, ao ingressar no grupo musical Secos & Molhados. São momentos
liminares inerentes ao mundo social do cantor desde quando esse saiu de casa aos
dezessete anos, serviu a aeronáutica, passando pelo funcionalismo público em Brasília,
sendo artesão no Rio aderindo aos ideais da contracultura em estilo de vida hippie até
76
ingressar como vocalista no grupo Secos & Molhados e incorporar o personagem vivido
pelo artista Ney Matogrosso.
A saída do grupo Secos & Molhados que deu-se, por questões de
natureza ideológica e culminou em desentendimentos de ordem financeira (QUEIROZ,
2004), no icio de sua carreira solo, quando preparava-se para estrear com o espetáculo
Homem de Neanderthal em março de 1975 no Hotel Nacional RJ, o artista declara
acerca da incorporação de seu novo personagem e sua individualidade, com a
intensificação da dicotomia existente entre a pessoa de Ney de Souza Pereira e o
personagem Ney Matogrosso. Ney afirma ao Jornal O Globo: Eu gosto mesmo é de
bater perna na praia. Sou uma pessoa normal, não ando com pena na cabeça. São duas
coisas distintas. Agora vou pintar os olhos e a boca: quero mais a expressão do meu
rosto e menos a scara” (AUTRAN, 1975).
Após o encerramento do espetáculo Homem de Neanderthal, o artista estréia
o show seguinte intitulado Bandido em 1976. Esse momento o cantor se despe mais e
mais de seu personagem em aproximação da pessoa de Ney de Souza Pereira. Essa
proximidade iremos aprofundar nos capítulos seguintes, quando estaremos estudando a
trajetória do artista. Nesse período, quando transcorria o ano de 1976, em matéria
publicada no s de junho em que dizia: Durante muito tempo, Ney Matogrosso se
escondeu atrás de uma maquilagem carregada e agressiva. Daqui pra frente, porém, todo
mundo vai ver Ney de cara lavada, sem nenhum tipo de máscara”. Em seguida o artista
comenta a questão, anunciando seu intuito de aproximação entre o personagem e a
pessoa: “Acho que não queria me expor tanto, preferindo ser mais personagem do que
eu mesmo. Mas, agora, estou a fim de me mostrar como sou. Quer as pessoas gostem ou
o” (RITO, 1976).
Essa fase de aproximação entre a pessoa e o personagem durante as
apresentações do cantor se deu de forma gradativa até este sair de uma condição limiar
imposto pelos poderes instituídos á época, como o regime militar e a indústria
fonográfica e o sentimento homofóbico imbuído na cultura brasileira. Aqui chegamos a
compreensão de que existiu um condição liminar ao qual o cantor esteve submetido
desde que ingressou no grupo musical Secos & Molhados, perpassando pelo início de
sua carreira solo em 1975 até chegar no ano de 1979, quando o cantor entra em outra
fase de sua carreira. Nesse período compreendido entre os anos de 1975 a 1979 houve
diversos outros momentos liminares dentro do próprio percurso do artista.
77
Em outubro de 1979 quando estreou o show intitulado Seu Tipo, é mais um
momento dessa condição de liminaridade que atravessou o cantor rumo à tentativa de
concretização de sua autonomia artística. Esse espetáculo foi o que mais aproximou a
pessoa de Ney de Souza Pereira do artista Ney Matogrosso enquanto personagem
incorporado em suas apresentações ao vivo. Nesse espetáculo o cantor apresentou-se
pela primeira vez para seu público e dia totalmente sem pinturas e adereços. O artista
tinha como indumentária básica um terno de tonalidade clara. Ney explica:
No tempo do Secos & Molhados, eu usava uma pintura que era uma
verdadeira máscara e o motivo era um só: medo. Medo do público, de suas
reações, de ser identificado. Foi uma época de pavor pra mim. Eu ouvia falar
que o público agarrava os artistas, rasgava suas roupas, ficava horrorizado.
Mas fui me acostumando, me descontraindo e percebendo que tinham se
estabelecido relações, entre mim e o público, que independiam da forma
como eu chegasse a ele. Hoje, se faz a distinção entre o meu trabalho, os
adereços que uso e a minha pessoa. Hoje me apresento de rosto descoberto,
certo do que estou fazendo e mostrando (ROSA, 1979).
No ano de 1980 o cantor funda a Matogrosso Produções Artísticas,
passando a auto-empresariar seus espetáculos, afastando-se dessa maneira de uma
condição liminar na qual se encontrava perante a dia. No ano de 1981 estreou o
espetáculo intitulado Ney Matogrosso em Julho de 1981 no Canecão-RJ e gravou o
especial denominado Grandes Nomes para a Rede Globo de Televisão que teve como
título Ney de Souza Pereira. Propositalmente, coincidentemente ou não, esse especial
Grandes Nomes representou o momento mais significativo de aproximação entre o
personagem e a pessoa.
Dessa maneira, o cantor distancia-se de sua condição de liminaridade
artística em relação ao regime militar e, sobretudo por superar as regras do mercado
fonográfico, retomando sua condição enquanto fenômeno de massa perante o público e
a mídia, concluindo assim uma etapa dentro de uma condição liminar ao qual esteve
submetido perante esses segmentos sociais citados no período compreendido entre os
anos de 1975 a 1980. O diretor do especial Daniel Filho da Rede Globo de Televisão e
posteriormente o próprio cantor declaram a respeito dessa transição e do especial que
representou um divisor de águas na carreira solo do cantor:
Existem diferenças fundamentais entre Ney Souza Pereira que o nome
ao programa e Ney Matogrosso. Na entrevista, por exemplo, quem aparece
78
é o Souza Pereira, calmo, sem maquiagem, roupa discreta, voz pausada,
pensamentos curtos e claros. Quem estará no vídeo no dia 4 de setembro é o
outro: livre, solto, com requebros marcando as frases, esbanjando
sensualidade (FILHO, 1981).
Realmente o meu nome o tem nada a ver com o programa. Mas é uma
regra. Então, vá, lá. Tudo o que será visto não é próprio do Souza Pereira,
mas do Matogrosso, que, na verdade, é uma manifestação de um outro lado
da minha personalidade. Eu procuro, na minha vida, me comportar
livremente, mas o Matogrosso leva isso às últimas conseqüências em seu
comportamento nico. Não digo que ele seja personagem, que faz parte
de mim. Talvez a melhor definição é que ele é o Souza Pereira acintosamente
solto, liberto (NEY, 1981 apud FILHO, 1981).
O que observamos é que dentro da própria mídia existe uma notificação
acerca dessa transição, que vem à tona de forma acentuada. Isso é percebido por meio
do largo contingente de matérias acerca da dualidade existente entre a pessoa de Ney de
Souza Pereira e o personagem de Ney Matogrosso, bem como a maneira que é tratada a
questão como sendo essa fase vivida pelo artista como um divisor de águas, um
interstício. Nesse momento a sensibilidade dos meios de comunicação se faz notória.
Essa polêmica é refletida diretamente nos principais veículos de comunicação de massa,
sobretudo na imprensa escrita. O jornal O Globo notifica:
O Globo: Existe diferença entre o Ney de Souza Pereira e o Ney
Matogrosso? E o assédio na rua,como é?
Ney Matogrosso: São a mesma pessoa, mas com comportamento diferente.
Como pessoa, sou tão ousado quanto artista, mas meço os limites. Existe toda
uma situação preparada para isso, as luzes estão em cima de mim e as
pessoas saíram de casa e pagaram para me ver ousado, e me cobram isso.
Quanto mais ousado, mais elas querem. Na rua, é muito estranho, porque saio
muito e algumas pessoas acham que me reconhecem, mas não tem certeza;
outras acham que eu o andaria na rua e as que me reconhecem e tem
certeza se aproximam de uma forma tranqüila, não me incomodam, acho até
muito bom. As pessoas que falam comigo é em tom carinhoso, sinto que
gostam de mim além do artista, é uma coisa de energia que passa no olhar
(PENTEADO, 1981/A).
Em matéria publicada na Folha de São Paulo aos 23 de junho de 1981, diz:
Nei,(sic) pelo menos, é , de perto, a antítese da imagem que passa como artista. Na
verdade, Nei Matogrosso com toda a carga de irreverência e ousadia aparece no
palco.O Nei do dia-a-dia (o Nei de Souza pereira) é, principalmente, tranqüilo
(CAMBARÁ, 1981). O Estado de São Paulo publica aos 28 de agosto de 1981: “Quem
diria que aquele tranqüilo magricela (como ele se descreveu), levemente agressivo (que
pode ser interpretado como efeito de sua timidez), quem diria que ele é o mesmo Ney
que no palco do Anhembi faz um show daqueles, hein?”(MELLO, 1981).
79
O
Jornal da Tarde aos 12 de setembro de 1981 em matéria intitulada “Sou
um ator que canta” por Edmar Pereira, enaltece a dualidade do artista, distinguindo a
pessoa/persona. Logo no início da matéria o cantor declara: “Os meios de comunicação
nunca falaram de uma pessoa, eu, mas da imagem Ney Matogrosso” (PEREIRA, 1981).
Segue matéria:
Entre as palmas vermelhas e orquídeas roxas da ampla suíte presidencial do
Brasilton Hotel, a atmosfera é de uma agitada e carinhosa festa familiar. No
centro dela, Ney Souza Pereira, 40 anos, recebe sua mãe dona Nilza, seu
irmão, sua irmã, seu cunhado, seus sobrinhos pequenos. Estranhos são
proibidos de subir ao apartamento, telefonemas são filtrados com cuidado
(“ou do contrário Ney não teria um minuto de paz”, explica uma
funcionária). Lá em cima, o massagista japonês trabalha sobre seu corpo
magro. Censura seu excesso de cigarros (único vício já que não bebe álcool e
nunca se droga). Uma contração, um estalido, Ney Souza Pereira solta um
grito. Desafinado, mas o se preocupa. Sabe que isso não irá acontecer
quando voltar a ser Ney Matogrosso. Embaixo, na rua, um grande ônibus
negro aguarda enquanto vai recebendo seus passageiros habituais:
músicos, bailarinos, técnicos de luz e de som, algumas inevitáveis e
freqüentemente desejáveis tietes. Meia hora depois a caravana desembarca no
Palácio de Convenções Anhembi. Muito magro, quase afogado por um
grosso cachecol, Ney é observado com intrigada curiosidade pelos primeiros
espectadores enquanto caminha calmamente para o grande camarim onde se
transformará em Ney Matogrosso. Este personagem que dentro de duas horas
levará ao delírio uma platéia de mais de quatro mil pessoas, vão nascer aos
poucos, diante do espelho (PEREIRA, 1981).
Em matéria recente publicada pelas revistas Top Magazine e Rolling Stones
respectivamente nos meses de março e maio de 2008, abordam como se deu essa
dualidade entre a pessoa e o personagem do cantor ao longo de seu percurso artístico.
Lívia Breves: Sua performance no palco é sempre uma surpresa. Você é uma
pessoa totalmente diferente desta que estou conversando agora. A
maquiagem e o figurino ajudam vo a incorporar?
Ney Matogrosso: Não ter rosto me liberta. Inicialmente, era uma afronta à
ditadura. Hoje em dia, é mais um recurso de palco mesmo. Acho que a
platéia gosta e um ar mais intimista. Eles se libertam ali também, junto
comigo.
Lívia Breves: As pessoas devem estranhar quando encontram esse Ney
recatado. Como elas reagem?
Ney Matogrosso: Muitas ficam surpresas, mas eu mesmo também me
impressionei com essa versatilidade. No começo, cheguei a achar que sofria
de dupla personalidade, era bipolar ou algo assim. Mas, depois, percebi que
era apenas aquela situação que me permitia o tal comportamento. No palco,
eu interpreto, estou fazendo um espetáculo, e fora dali eu sou o Ney, uma
pessoa comum. Acho engraçado jamais conseguiria ser assim. Algumas
pessoas imaginam que eu fico em casa maquiado e vestido com figurino.
me perguntaram até como eu fazia para tomar banho devido à quantidade de
acessórios que eu supostamente usaria (BREVES, 2008).
80
Márvio dos Anjos: Você deu uma entrevista dizendo que se achou
esquizofrênico, que tinha dupla personalidade uma separação entre seu eu
pessoal e sua personalidade artística.
Ney Matogrosso: No transcorrer da minha vida, perdi esse medo. O tempo
foi passando, e vi que aquilo lá é uma manifestação artística exaltada e que
não tenho nenhuma necessidade daquilo na minha vida particular. Não
preciso daquilo pra viver (ANJOS, 2008).
Chegado ao ápice do espetáculo Ney Matogrosso no final do ano de 1981,
quando o artista recebe diversas homenagens e prêmios da crítica de melhor show,
retoma o lugar no ranking enquanto fenômeno de massa. Esse novo momento da carreia
do cantor lhe assegura a conclusão de uma etapa concluída dentro de sua condição de
liminaridade artística pelo qual esteve submetido entre os anos de 1975 a 1980. Essa
nova fase não implica o fim da condição de liminaridade do artista. Representa sim o
fim de um ciclo dessa liminaridade. Esse momento representou o fim de uma condão
liminar nos períodos acima citados, porém outras liminaridades surgiram em outras
perspectivas, visto que essa condição liminar é inerente ao percurso do artista como
compreendemos e analisamos acima.
A ascensão do cantor dentro do cenário da MPB, da mídia e ao público
continua com o show subseqüente Mato Grosso (1982). Nesse período o cantor
legitima-se ainda mais a sua condição enquanto fenômeno de massa, exibindo seus
shows em estádios de futebol para um blico de 70 mil pessoas, como se deu sua
apresentação no Estádio do Morumbi São Paulo em dezembro de 1992, em manchete no
Jornal da Tarde Ney, delírio no Morumbi. O ídolo, numa festa para 70 mil pessoas”
(PEREIRA, 1982 b). Outro fato é a projeção da carreira do cantor no exterior, como em
Montreux, na Suíça e Portugal, fruto do espetáculo Mato Grosso.
Esses dados apontam para um nova condição liminar com a qual o cantor i
se deparar. Dessa maneira entendemos que existem períodos de liminaridade na
trajetória do artista, existindo momentos específicos dentro dessa mesma condição de
liminaridade. Essas particularidades serão por nós analisadas nos capítulos subseqüentes
de número três e quatro, quando será analisada minuciosamente a trajetória do cantor.
Esse será o nosso próximo passo.
81
2 “SOU QUEM TEÇO A MINHA RENDA
1
”: POR UMA
AUTONOMIA ARTÍSTICA - UM CORPO QUE
TRANSGRIDE
Para fazer o que queria Ney Matogrosso, deixou o Secos e Molhados quando
estava a caminho de institucionalizar-se como a mais fulgurante estrela do
show business nacional. E, em algumas semanas, quando seu lançamento
como atração individual tinha ambições de atingir até o seleto grupo das
grandes atrações internacionais, Ney tornou a dizer não. Dessa vez ao
faraônico empresário George Ellis que, segundo o vasto noticiário sobre o
relacionamento entre os dois, teria gasto quase um milhão de cruzeiros na
promoção da “nova imagem do cantor”. Boa parte desse dinheiro - quase Cr$
300 mil é herança em dívidas assumida por Matogrosso num acordo que
lhe devolveu a absoluta liberdade de fazer o que quiser. (A ESTRÉIA,
1975)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 3 – Ney Matogrosso, camarim Hotel Nacional-RJ. Show Homem de Neanderthal - Março/1975.
O presente capítulo tem por objetivo analisar o percurso artístico do cantor
Ney Matogrosso, no âmbito de sua busca por sua autonomia artística frente à censura
moral do regime militar em sua atuação no palco e ao mercado fonográfico dentro de
1
O título sugerido no capítulo de número um dessa tese de doutoramento: “Sou quem teço a minha
renda”, foi retirado da letra da canção Idade de Ouro, composição de Jorge Omar e Paulo Mendonça,
parte integrante do LP Água do Céu - Pássaro, lançado pela Continental Discos S/A em março de 1975.
Idade de Ouro (Jorge Omar e Paulo Mendonça). Eu um dia me estrepo/ Nas pontas da minha vida/ Uma
prece uma prenda/ Sou quem teço a minha renda/ Eu sou a Virgem Maria/ Sou a cor de maravilha/ Sou
quem sou e não sou nada/ Um história contada/ Espero ainda a idade do ouro/ Aquele velho tesouro/
Eu quero ainda/ Um Deus á toa e uma vida boa (MATOGROSSO, 2006).
O recorte da letra foi assim
selecionado em função do significado que este possibilita no sentido de alusão ao princípio de autonomia
artística do cantor, inerente ao artista Ney Matogrosso desde quando atuava como vocalista do grupo
musical Secos & Molhados. Na verdade o título desse capítulo sugere a autonomia do fazer artístico do
cantor, tecendo seus rumos seus caminhos dentro do universo artístico, a busca por sua autonomia
artística. Sugere a independência desse artista frente às normas da indústria fonográfica e dribles feitos
em relação aos órgãos de repressão e censura do regime militar.
82
uma perspectiva de inversão da lógica desse mercado. Em estudo anterior (QUEIROZ,
2004), compreendeu-se que essa tentativa de tornar-se um artista autônomo se
encontrava presente no cantor desde os idos de 1973, quando o cantor atuou como
vocalista do grupo musical Secos & Molhados.
Dessa maneira, constata-se, então, a partir do princípio de autonomia dos
campos (Bourdieu, 1983), que esse anseio por tornar-se um artista autônomo é notório
desde o icio da carreira do cantor tendo gerado uma disputa no interior do campo
artístico. O princípio de autonomia dos campos e a luta em seu interior, criou los
antagônicos no interior do Secos & Molhados, esse momento compreendemos como a
manifestação do princípio de autonomia artística do cantor Ney Matogrosso em fuão
de divergências de cunho ideológico com os demais membros do conjunto. Essa
manifestação por sua autonomia dentro do grupo implicou na ruptura do cantor Ney
Matogrosso com o grupo em agosto de 1974.
Intentou-se, naquele momento, compreender a pluralidade de valores entre
os integrantes do conjunto. As contradições contidas no interior dos Secos & Molhados,
por meio das diferentes tomadas de posões e atitudes de João Ricardo, Ney
Matogrosso e Gerson Conrad, nos levaram a entender o lugar social de seus integrantes,
dentro do princípio de sua pluralidade de comportamentos no interior do grupo.
João Ricardo, criador do grupo por meio de sua fala politizada, passava para
a grande dia uma proximidade dos ideais de esquerda e tentava engajar politicamente
o conjunto. Gerson Conrad, por meio de sua política de cunho pacifista, exercia uma
conduta politizada, porém não-partidária. Ney Matogrosso, adepto aos ideais da
contracultura, oriundos de seu estilo de vida hippie, levou para o interior do conjunto o
princípio de autonomia artística, quando esse, logo no início de sua formação, criou um
espaço singular por meio de sua formação teatral e de cantor lírico, conduzindo o
comportamento estético do grupo em função de suas pinturas e indumentárias. Em
seguida, o artista anuncia sua saída do Secos & Molhados e delineia sua carreira solo,
fazendo notório seu princípio de autonomia e dando continuidade a essa busca por ela
agora frente a uma indústria cultural, a qual examinaremos a seguir.
No transcorrer desse capítulo, serão analisados três momentos da carreira
solo do cantor Ney Matogrosso, compreendidos entre os anos de 1975-79, quando ele
continua desafiando as normas e condutas morais do regime militar, intensificando,
assim, os vetos dos óros de repressão e censura dos militares ao seu trabalho. A
83
regularidade de tais medidas de censura colocaram o cantor em uma condição de
liminaridade artística perante o regime militar, o mercado fonográfico e alguns setores
da mídia que naquele momento exerciam uma censura moral de cunho homofóbico
sobre o cantor. Analisar-se-ão os espetáculos Homem de Neanderthal, que estreou em
março de 1975 no Hotel Nacional-RJ, o espetáculo Bandido, que estreou em outubro de
1976 na Penitenciária Lemos de Brito-RJ, bem como o show Feitiço que teve sua
estréia no polêmico Teatro da Galeria Alasca
2
, em janeiro de 1979.
As premissas acima levantadas nos possibilitam melhor compreender o
princípio contestador de um artista que transgrediu não somente as normas e condutas
morais intensificadas do regime militar, as imposições da indústria fonográfica, mas
também os padrões da grande dia, que expressou-se muitas vezes de maneira
homofóbica em relação à sua atuação em cena. Entretanto, essa transgressão estendeu-
se a um conceito moral da época referente ao que viria a ser o “macho”, em que
predominava um ímpeto de natureza homófoba em relação aos artistas que romperam
com as barreiras entre o universo masculino e feminino. Essa dimensão estará presente
no decurso desse texto.
2.1 “Água do u - Pássaro”: A Continental Discos S/A e o espírito do
acontecimento
Em março de 1975, o cantor Ney Matogrosso lançou pela gravadora
Continental o long play Água do Céu - Pássaro
3
,
o primeiro de sua carreira solo. Um LP
2
A Galeria Alaska localizava-se no Bairro de Copacabana, era ponto de encontro de homossexuais
masculinos, femininos, garotos de programa (michê) e prostitutas. Dentro da Galeria existia o cine gay,
transformado em um Teatro e inaugurado pelo artista Ney Matogrosso em fevereiro de 1979, onde este
apresentou o show Feitiço.
3
Músicas LP Água do Céu-Pássaro: Homem de Neanderthal (Luis Carlos Sá), O Corsário (João Bosco e
Aldir Blanc), ucar Candy (Sueli Costa e Tito de Lemos), Pedra de Rio (Luli, Lucinha e Paulo César),
Idade de Ouro (Jorge Omar e Paulo Mendonça), Bôdas (Milton Nascimento e Ruy Guerra), Barco
Negro(
Piratini e Caco Velho adaptação D.J. Ferreira), Coubanakan (Moises Simon e Sauvat- Chamfleury),
América do Sul (Paulo Machado).Músicos: Jorge Omar (Violão e viola),
Marcio Montarroyos
(Trompete, flugelhorn, piano na faixa Barco Negro
e berrante), Chacao
(Percussão), Sérgio Rosadas
(Flauta, flautim, sax tenor),
Claudio Gabis (Guitarra), Bruce Henry (Baixo elétrico e acústico), Elber
Bedaque, (Bateria), Guilherme Vaz (Piano acústico e piano sintetizador).Ficha Técnica: Produção
fonográfica: Gravações Elétricas-Discos Continental. Coordenação de produção: Sidney
Moraes.Produção: Billy Bond.Técnico de Som: Vinícius Marcus. Estúdio: Vice-Versa. Assistentes:
Renato Viola e Wilson. Mixagem: Vinicius Marcus e Billy Bond. Capa: Rubens Gerchman. Fotografia:
Luis Fernando. Arte final: Oscar Paolillo (MATOGROSSO, 2006).
84
confeccionado em papelão cru, em que o artista apresentava-se de forma exótica, com
seu corpo macérrimo e seminu. Via-se o cantor envolto em chifres de carneiro tortuosos
e bizarros, presos as suas costas, uma grande crina de cavalo na cabeça, pêlos de
macaco pendurados na cintura e nos ombros, dentes de boi nos punhos, boca e olhos
pintados acentuadamente de cor preta. O resultado dessa imagem nos remetia a um ser
irreal, emergido de nossos antepassados, que era o intuito do artista: atingir essa
dimensão irreal.
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 4 – Ney Matogrosso capa LP Água do Céu - Pássaro, 1975.
Foram reunidos nesse trabalho músicos de primeira grandeza dentro do
cenário da Música Brasileira daquele momento, tais como Jorge Omar, Márcio
Montarroyos, Chacao, Sergio Rosadas, Claudio Gabis, Bruce Henry, Elber Bedaque e
Guilherme Vaz. As canções iam desde o som da provocante rumba de Coubanakan,
perpassando por compositores já consagrados de nossa MPB como Milton Nascimento
e João Bosco ao fado português Barco Negro de Pirtinie e Caco Velho. Em relação à
estética de seu primeiro trabalho solo, Ney comenta para Carlos Gouvêa, crítico de arte
da Folha de São Paulo:
Sobre seu novo LP, acabou ficando aborrecido com a capa: “Eu queria que
ela tivesse um aspecto artesanal e para isso o papel deveria ser em Kraft.
Perdeu toda a textura artesanal, mas gosto do trabalho que foi feito. Ninguém
mandou em nada, fizemos tudo em conjunto, eu e meus músicos.
Aconteceram uns probleminhas na mixagem que não chegaram a afetar a
qualidade do disco.(GOUVÊA, 1975)
85
Juntamente com o LP Água do Céu - Pássaro, acompanhava um compacto
com duas músicas gravadas na Itália com músico Astor Piazzola “As Ilhas” e “1964
II”. O Jornal O Estado de o Paulo atesta esse acontecimento: Ney viajou rapidamente
a Roma para gravar um compacto com Astor Piazzola que é vendido acoplado ao LP
(A ESTRÉIA, 1975). A parceria com Astor Piazzola gerou grande polêmica na
imprensa, sobretudo a escrita, por ser esse o primeiro movimento feito pelo cantor fora
do Brasil após sua saída do grupo Secos & Molhados. Isso gerou uma especulação em
torno da formação de seu novo público e de uma possível carreira internacional, sendo
em alguns momentos citados exemplos como à cantora Carmem Miranda que efetivou
projeção internacional. O Jornalista Carlos Eduardo Camarez, comenta:
Em cima de todas essas preocupações Ney colocou a firme disposição de
assumir suas raízes sul-americanas, seu sangue de índio e latino. Para esse
repertório, Ney preparou uma interpretação mais áspera e visceral, que pode
até afastar alguns de seus fãs de antes. Este risco ele corre com serenidade
afinal, outro público pode ser conquistado. E é assim, amparado por uma
eficiente estrutura profissional, que o felino Ney começa a sua lenta
caminhada pela América do Sul, rumo aos grandes centros da música pop do
mundo. tem alguns shows marcados, para o segundo semestre deste ano,
em vários países da América do Sul e também em Portugal. Mas rejeitou um
convite do empresário de Piazzolla para uma temporada na Itália, no começo
do ano. (CARAMEZ
, 1975)
Logo em seguida, o cantor Ney Matogrosso tece o seguinte comentário
acerca de sua parceria com o Astor Piazzola.
Nos primeiros vinte dias, tocávamos sete horas a fio, das cinco da tarde até
meia-noite. Agora ensaiamos numa base de cinco horas por dia. As músicas
tinham que ser fortes, cheias de garra e adaptáveis aos falsetes de sua voz. E
não poderiam ser uma simples continuação do processo iniciado com os
Secos & Molhados; mas uma quebra brusca desse processo poderia
prejudicar. E além do mais, tudo muda, e isso é o grande barato da vida.
(NEY, 1975 apud CARAMEZ, 1975)
Finalizando essa especulação da dia acerca de sua projeção no exterior o
artista declara: “Quero ir devagar e com bastante confiança. Antes, vou transar meu
lugar, meu país, mostrar aqui o que realmente sou – uma coisa verdadeira que as
pessoas gostem. Dessa troca de energias sai a força para crescer e cantar mais.
(
NEY,1975 apud CARAMEZ, 1975).
86
Logo após a gravação do LP Água do Céu- Pássaro e do compacto gravado
com Astor Piazzola, o cantor finca sua projeção nacional por meio da gravação do
primeiro clip da televisão brasileira, exibido em abril de 1975, pela Rede Globo de
Televisão no Programa do Fantástico. Em entrevista concedida à repórter Lívia Breves,
o artista relembra esse momento.
Lívia Breves: Você fez o primeiro clipe da televisão brasileira, como foi
isso?
Ney Matogrosso: Tudo começou quando o Fantástico me convidou para
fazer esse trabalho. Aceitei na hora. Filmamos em três locações: um
helicóptero sem portas, um campo enorme todo de capim e numa pedra perto
do mar. Entrei no clima total, fiquei amarrado no helicóptero pelos ares,
vestido com peles e usando chifres pela plantação. Acho que me convidaram
por saberem que eu gostava de fazer imagens fortes. (NEY, 2008 apud
BREVES, 2008)
A veiculação do video clip em cadeia nacional pela Rede Globo de
Televisão, obteve grande alcance de blico, visto a grande penetração de massas que a
emissora detinha à época. Esse fato possibilitou ao artista Ney Matogrosso uma maior
inserção dentro da dia, que passou, a partir de então, a tecer mais matérias a respeito
de seu novo espetáculo intitulado Homem de Neanderthal, nosso próximo foco a ser
analisado.
2.1.1 “Homem de Neanderthal” no Hotel Nacional – um ser irreal
Após o lançamento do LP, segue-se o momento mais esperado pela mídia e
público, a estréia do show intitulado Homem de Neanderthal
4
, nome de uma canção do
repertório do LP. Sua estréia se deu de forma suntuosa, vistos a riqueza do cenário e
4
Músicas Show Homem de Neanderthal: Homem de Neanderthal•Bodas•Açúcar Candy•Idade de Ouro•
Tercer Mundo•No Colo da Tarde•América do Sul•O Corsário•Pedra de Rio•1964 II•As Ilhas•
Coubanakan•Barco Negro. Obs: As músicas podiam sofrer algumas alterações no decorrer dos shows.
Banda: Claúdio Gabis Guitarra e bandolim.Jorge Omar Violão e Viola.Chacal –Percussão.Elber
Bedaque Bateria.Bruce Henry Baixo.Guilherme Vaz piano.MárcioMontarroyos Trompete.Sérgio
Rosadas Flauta e Sax. Produção: Cenografia - Vicente Pereira.
Guarda Roupa - Ricardo Zambeli.Luz -
Nando Cosac.Contra Regra - Luiz Clericuzzi.Direção de Arte - Rubens Gerchman.Produção - Arte Final -
Silvia Roesler (MATOGROSSO,2006).
87
figurinos, no Teatro do Hotel Nacional-RJ, em quinze de março de 1975, às 21 horas.
Alguns dias após a estréia o cantor Ney Matogrosso declara a sua pretensão de tornar-se
um ser irreal na construção de seu personagem, o Homem de Neanderthal:
Estou melhor mais livre, mais solto. Estou recomando me mostrando.
Quero fazer um espetáculo total: teatro, cinema, show, uma coisa . Quero
atingir as pessoas emocionalmente, sexualmente. No palco, gosto de me
transformar em outras coisas. Pretendo ser uma coisa irreal, onde as pessoas
possam ver e encontrar mil coisas em mim. Nunca ensaiei as coreografias de
minhas músicas. Procuro naquele momento transmitir com o corpo o que
estou sentindo. É tudo muito instintivo (NEY, 1975 apud CAPARELLI,
1975).
Uma superprodução que envolveu, à época, a cifra de um milhão de
cruzeiros, financiados pelo empresário George Ellis, tinha como cenário uma floresta
que remetia ao pantanal mato-grossense, porém de vegetação ressecada, uma natureza
morta. Palhas, ossos, cis, cordas, chifres, madeiras e uma águia empalhada, pairando
sobre o interior do palco, compunham o cenário do espetáculo. O Jornal O Globo atesta:
Um milhão de cruzeiros foram gastos na montagem de um espetáculo que
será apresentado apenas duas vezes. Tudo isso para o lançamento nacional de
Ney Matogrosso, em sua primeira aparição em palcos cariocas, desde que
deixou o Secos & Molhados. No Hotel Nacional, sábado e domingo, Ney
pretende provar que sua voz, extensa e estranha, tem fôlego bastante para se
manter sozinha. Com ou sem penas na caba (AUTRAN, 1975).
O repertório do espetáculo era marcado pelas canções do LP Água do Céu -
Pássaro: O Corsário, Homem de Neanderthal, Açúcar Candy, Pedra de Rio, Idade de
Ouro, Bôdas, Barco Negro, Coubanakan e América do Sul, acrescidas de No colo da
Tarde, Tercer Mundo do repertório do segundo LP do Secos & Molhados, 1964 II e As
Ilhas, gravadas em parceria com Astor Piazzola. O Estado de o Paulo anuncia:
“As
Ilhas” e 1964 II” também fazem parte do espetáculo, “Tercer Mundo”, de Cortazar e
João Ricardo, única lembrança do seu trabalho com o Secos e Molhados (A ESTRÉIA,
1975).
O show tinha em sua abertura a música Homem de Neanderthal. No
momento inicial do espetáculo Ney entrou arrastando-se lentamente pelo chão do palco
até atingir seu centro. No site oficial do artista encontramos a seguinte menção a estréia
do referido espetáculo:
88
Um forte cheiro de incenso. De repente tudo se apaga e entram em cena os
músicos. O holofote acompanha algo que se arrastava pelo chão, como um
bicho. Era Ney que entrava em cena cantando “Homem de Neanderthal”, que
falava de um homem primitivo que vivia a beira de um rio.
(MATOGROSSO, 2006)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 5 – Ney Matogrosso show Homem de Neanderthal, Hotel Nacional-RJ, Março/1975.
Ao atingir o centro do palco, agora em posição ereta e envolto com pêlos de
macaco que cobria seus ombros, nos punhos, pulseiras de dentes de boi; nas costas,
tortuosos chifres de carneiro e uma saia couro de bode retalhada, assemelhava sua
imagem à de um ser primitivo. Próximo à uma ossada de boi colocada em frente à
platéia, o artista fazia o público entrar em delírio, quando com seu timbre de voz aguda
lançava os primeiros versos da canção Homem de Neanderthal (NEANDERTHAL,
1975).
Eu sou o homem de Neanderthal/ Catando caramujo na beiramujo/ Na beira
do rio/ Eu vivo apenas com os meus próprios meios/ Eu vivo em penas com
os meus sentimentos/ Nasci de um povo primitivo/ Eu sou o homem de
Neanderthal/Catando caramujo na beira do rio (NEY MATOGROSSO,
1975).
Outro momento marcante do espetáculo ficou a cargo da interpretação de
América do Sul de Paulo Machado. O artista apresentava-se com suas indumentárias
que remetiam a um ser primitivo, acrescido de um tacape segurado por sua o
esquerda. Sobre o palco que lembrava uma natureza já morta, o artista movia-se aos
acordes da canção, parecendo ser parte integrante daquele grande cenário em que
89
tentava despertar uma natureza, uma América, onde lançava através dos versos da
canção o despertar da América Latina (NEANDERTHAL, 1975).
Deus salve a América do Sul/ Desperta oh claro e amado sol/ Deixa correr
qualquer rio/ Que alegre esse sertão/ Essa terra morena esse calor/ Esse
campo essa força tropical/ Desperta América do Sul/ Deus salve essa
América central/ Deixa viver esses campos molhados de suor/ Esse orgulho
latino em cada olhar/ Esse canto essa aurora tropical (NEY MATOGROSSO,
1975).
Neste instante, faz-se necessário lembrar que o ato perfortico, por meio de
sua gestualidade, procura restabelecer um elo, um laço, uma ligação que foi rompida
pela linguagem. Uma grande parte do comportamento estético de Ney Matogrosso foi
mostrada diretamente na esfera do simbólico, o que resultou, automaticamente, em uma
rebelião da ordem social e estética. Foucault nos elucida:
Microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise
quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na
medida em que a consideração do poder em suas extremidades, a atenção de
suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a
investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle
detalhado, minucioso do corpo gestos, atitudes, comportamentos, bitos,
discursos (FOUCAULT, 1996, p.12).
Dessa maneira o gesto é compreendido pelo autor como sendo parte de um
processo semiótico, porém, por outro lado, representa uma ameaça ao espírito, ao
sentido, à moral, à ordem. É uma relação de controle dos gestos, das atitudes, do corpo.
A performance do artista Ney Matogrosso nesse espetáculo subvertia a ordem natural da
indústria do show business, por meio de uma exuberância que se diria subversiva à essa
mesma ordem que tentava manipular e impor regras, normas e interesses de uma lógica
do mercado cultural ao público .
O cenário do show remetia ao pantanal de Matogrosso, terra natal do artista.
As canções perpassavam ora um viés que chamava a atenção para as questões do
momento político em relação aos países latino-americanos (América do Sul,
Coubanakan e Bodas), ora um outro com músicas de caráter afetivo como Pedra de Rio,
O Corsário, Açúcar Candy, Idade de Ouro, Barco Negro. Esse espetáculo foi marcado
por um sentimento de encontro das raízes do cantor com o pantanal mato-grossense.
90
Dessa forma foi possível estabelecer nesse espetáculo um elo entre o requinte estético
que havia no cenário e o figurino com a natureza do pantanal.
É sugerida, nesse show, uma harmonia da performance do artista com o
próprio cenário. Canevacci (1992, p.144), compreende assim a cultura visual, em que o
instrumento é o corpo, e a melodia, a alma. “O corpo do ator torna-se uma caixa
harmônica dissonante, uma inovação dramatúrgica que impulsiona para a frente as
possibilidades dos modelos imagináveis.” De uma certa forma, o caráter performático
de Ney Matogrosso remete à idéia do Teatro Antropológico, difundido em todo o
mundo pelo diretor dinamarquês Eugênio Barba, com a montagem do espetáculo
Oxyrhincus Evangeliet. “Esse tipo de teatro sempre foi baseado sobre o ator, isto é,
sobre sua capacidade total de gestualidade, vocalização, dança etc., capacidades
exprimíveis pelo corpo humano. A invenção corporal do ator cria signos”
(CANEVACCI, 1992, p. 141).
Dessa maneira, mesmo com caões mais sutis, que tratavam de uma
temática afetiva, e canções que abordavam o universo político, o show configurou-se
pela imagem relacionada ao primitivo, ao exótico e ao irreal, em fuão da performance
do artista remeter-nos a um ser ilusório, através de suas indumentárias, bem como das
músicas predominantes Homem de Neanderthal e América do Sul. Sobre a concepção
do show o site oficial do artista nos informa:
Na opinião da maioria dos críticos, este foi, sem dúvida, o melhor e mais
impressionante espetáculo apresentado no Rio naquela época. A reação do
público era de elogios. Na saída do Hotel Nacional (RJ), todos se
apresentavam surpresos com a alta qualidade do show de Ney Matogrosso,
que pela primeira vez se apresentava sozinho, desde a extinção dos Secos e
Molhados. Foram três meses de trabalhos intensos. Ney nesse tempo fez
aulas de canto, expressão corporal e ensaiava sete horas com os músicos. “Eu
queria fazer um trabalho sério, como foi feito, e, por isso, me dediquei a esse
show vivendo cada minuto em função dessa idéia” (MATOGROSSO, 2006).
Após a estréia no Teatro do Hotel Nacional-RJ, o artista leva o espetáculo
para o Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro. A revista Veja notifica esse espetáculo
em matéria realizada por José Márcio Penido:
Está inaugurada a primeira temporada do ex-solista do ex-conjunto Secos &
Molhados. O Teatro é o Tereza Raquel, no Rio. Feixes de palha, ossos,
cordas e cipós forram o chão e paredes, colunas e corredores, como se todo o
espaço fosse uma selva ressecada, defunta, definitivamente estéril. Neste
inspirado cenário, criado por Vicente Pereira, move-se Ney Matogrosso, o
91
único sobrevivente, o derradeiro homem ou o último bicho. Rodeado de
espelhos e de luzes, ele se maquila com vagar, aspira seguidas vezes um
inalador, bebe um preparo à base de mel e suco de limão, e, finalmente, já de
pé, veste uma a uma as sete peças de seu traje. Da cintura despeçam tiras
desiguais de pêlo de macaco. Enormes dentes de boi chocalham nos punhos.
Tortuosos chifres de carneiro, com asas bizarras, brotam das costas. Seminu,
o corpo marrimo felinamente se contorce ao som do canto de invisíveis
pássaros. Os lábios, pintados de preto, estão cerrados. Mas os olhos,
aureolados também de negro, luzem com a perigosa iminência do bote. E este
não tarda. Rastejante, Ney Matogrosso desliza sinuoso pelo palco, finca as
garras no microfone e começa a cantar (PENIDO, 1975).
A matéria publicada na revista veja segue fazendo uma análise da vida
pessoal do artista, enaltecendo o momento de seu novo espetáculo:
No mais, pouca coisa mudou na vida de Ney Matogrosso. Dirige a mesma
perua Brasília, veste as simplíssimas roupas de sempre e, amigo fiel, protege
e abriga um pequeno grupo de velhos companheiros. alegres, carinhosos e
debochados como ele. Ney gosta da fama mas é o primeiro a não levá-la a
sério. “Olha a meia do pop star”, ele exclama, exibindo o tecido furado aqui e
ali. Toda noite, depois do espetáculo, fãs pacientes aguardam a saída do
ídolo. E, para que ninguém o perturbe no camarim, uma atenta e esperta
legião de improvisados fiscais barra sistematicamente os passos de quem
ousar penetrar no santuário do superstar. Relaxado, brinca com os técnicos e
músicos. Parece feliz. “E estou. Às vezes a gente merece, né?Sem vida.
Afinal, ele está fazendo o que quer. E oferece o que seu público deseja e
merece receber de ponta a ponta, um espetáculo de primeira categoria.
(PENIDO, 1975)
Após temporada no Teatro Tereza Raquel, Ney apresenta-se na cervejaria
Canecão, sem muitas especulações da mídia, restringindo-se a uma breve temporada.
Nilton Caparelli jornalista da Folha de São Paulo afirma que Ney está curtindo” sua
temporada no Canecão, comentando sobre a reação do público ao espetáculo. Ney
confirma: “É outra platéia, um pessoal que fica um pouco incrédulo com o que está
vendo” (CAPARELLI, 1975).
Durante as temporadas realizadas na cidade do Rio de Janeiro no Hotel
Nacional, no Teatro Teresa Raquel e em seguida no Canecão, foi acompanhado por
críticas bem agudas por parte da mídia, muitas vezes no sentido desestabilizar o artista.
Em entrevista recente a Revista TOP Magazine, o cantor comenta esse episódio de
restrições da dia com críticas contundentes.
Lívia Breves: Como lida com as críticas?
Ney Matogrosso: acreditei nos críticos, hoje o penso assim. No único
momento que precisei deles, todos me viraram as costas. Foi quando fiz meu
primeiro show da carreira solo e eles acabaram comigo. Fiquei péssimo. Mas
92
ganhei bastante com isso, pois sei que dependo deles, adquiri uma liberdade
enorme ( NEY, 2008 apud BREVES, 2008)
A partir de então, entende-se que foi dado mais um momento de
liminaridade na carreira do cantor, quando esse tenta se desvencilhar do estigma de ex-
Secos & Molhados, em uma tentativa de busca por sua autonomia artística dentro de sua
carreira solo. Esse intento de desvencilhar-se efetivamente da imagem de ex-Secos &
Molhados faz-se notório em várias entrevistas concedidas pelo cantor à época, em
função da dia veicular a imagem do artista ao grupo. Em uma tentativa de ruptura
com a sua imagem ainda ligada ao conjunto, Ney declara à imprensa carioca:
Olha, eu agora estou em outra. Numa muito diferente do que eu estava no
Secos & Molhados. Naquela época as pessoas curtiam a gente por causa da
novidade. Agora que essa novidade passou eu vou saber quem é que curte
realmente o meu trabalho. (NEY,1975 apud ROMERO,1975)
Tentando demonstrar junto à dia e ao público sua nova fase e autonomia
artística, o cantor declara para o jornal O Globo: “Eu sempre quis ter uma roupa com
chifres. E agora, que estou sozinho, vou fazer tudo o que quero. o tenho que ficar
preso a limites. Ninguém me ordens, porque sou bastante tinhoso para isto, e não
adianta imposições” (AUTRAN, 1975). Concluindo suas apresentações no Rio de
Janeiro o artista segue com o espetáculo para a cidade de São Paulo, onde as
especulações da mídia se intensificam em relação ao estigma de ex. Secos & Molhados.
2.1.2 O retorno a São Paulo e o estigma de ex-Secos & Molhados
O cantor Ney Matogrosso estréia o espetáculo Homem de Neanderthal em
São Paulo no Teatro 13 de Maio
5
em temporada realizada entre os dias dez a vinte e
dois de junho de 1975. Essa temporada em São Paulo repercutiu na mídia paulistana,
como sendo um retorno do cantor às origens de sua carreira, pois foi em São Paulo que
5
Os ingressos para o show de Nei Matogrosso, no teatro Treze de Maio, custam Cr$ 40,00 e Cr$
25,00(Gouvêa, 1975).
93
se deram as primeiras apresentações do grupo musical Secos & Molhados. Essa
associação representou o reacender do estigma de ex-Secos & Molhados.
O Estado de São Paulo noticia em caixa alta, a seguinte manchete: A
ESTRÉIA: a estrela está de volta com seus trapos e peles. Logo em seguida segue em
letras menores, porém ainda em destaque: “Para uma temporada de 12 dias, Ney
Matogrosso estréia esta noite no Teatro 13 de Maio. Um show com instrumentistas do
seu recente LP e duas exigências que ele considera fundamentais: muita liberdade e
nenhuma espécie de rótulo”. Em seguida segue matéria acerca do espetáculo relatando:
O show o mesmo estreado no Hotel Nacional do Rio, e visto em seguida no
Teatro Tereza Raquel e na cervejaria Canecão. A única diferença foi criada
por sua estrela: ao invés do traje de chifres e pêlo de macaco, Ney
Matogrosso vai se vestir com crina de cavalos em sua temporada paulista, a
partir de hoje às 22 h no Teatro 13 de Maio. Acompanhado pelos mesmos
oito instrumentistas de suas apresentações anteriores e do recente LP,
Matogrosso canta 12 músicas (A ESTRÉIA, 1975).
A Folha de São Paulo noticia por meio de matéria realizada pelo jornalista
Carlos Gouvêa no dia dez de junho de 1975, quando se deu a estréia do show Homem
de Neanderthal no Teatro 13 de Maio em São Paulo:
Vestindo um conjunto de jeans com uma camisa de gola olímpica por baixo,
Ney Matogrosso, sem as penas, chifres e plumas que o consagram, olha o
cenário de palha, flores e sacos de aniagem, no teatro Treze de Maio, onde se
apresenta hoje, às 21 horas, em estréia paulista, nos novos passos de sua
carreira. Calmo e pedindo para que não gravasse a entrevista, ele vai falando
de seu show e dos problemas que tem encontrado em sua nova fase, agora
sozinho. No Treze de Maio, Nei Matogrosso deverá ficar em temporada até o
dia 22 e depois pretende viajar por sete cidades do Norte do Brasil, pois
detesta o Frio. (GOUVÊA, 1975)
Em resposta a essa expectativa criada por parte da mídia paulistana, bem
como a menção feita em relação ao retorno do artista a cidade de São Paulo, o que
remetia ao tempo que atuou como vocalista do grupo Secos & Molhados, o cantor
declara ao Estado de São Paulo:
Quero fazer o que me der na cabeça. Não quero compromissos definitivos,
eles prendem e limitam. Que as pessoas esperem tudo de mim, que botem na
cabeça que eu vou ser sempre fora dos trilhos. As pessoas ficam exigindo
definições, colocando rótulos. Mas meu show não é um trabalho feito sobre
uma idéia. As coisas estão lá de um jeito, como poderiam estar ao contrário.
Querem que tudo tenha um significado, mas eu não estou ligando pra isso.
94
Canto do jeito que eu sinto, visto as coisas que gosto. Minha única
preocupação é fazer o que tenho de fazer. (NEY, 1975 apud A ESTRÉIA,
1975)
Somado a essa exploração elaborada por alguns segmentos da imprensa
paulista do retorno do cantor Ney Matogrosso a São Paulo, o que reforçou a discussão
do estigma ex-Secos & Molhados, o artista atravessou uma hostilidade de cunho
homofóbico dentro do âmbito social. Em matéria publicada no jornal O Globo, o cantor
Ney Matogrosso menciona esse episódio:
Eu ia alugar um apartamento incrível, de
quatro quartos com uma vista maravilhosa, mas quando o dono soube que era pra mim,
o quis alugar. Disse que o queria orgias e entra e sai a noite inteira(NEY, 1975
apud AUTRAN, 1975).
A jornalista Margarida Autran correspondente do jornal O Globo, rebate a
hostilidade desprendida por parte do locador em relação ao suposto comportamento
desviante” do artista, fazendo menção a um termo usado aquela época como ria
referente ao universo gay enrustido”. A jornalista afirma: “O clima que observo
desmente as expectativas do locador ranzinza. Estou diante de um moço tímido, que até
bem pouco tempo ‘era enrustido’, queria só absorver.” (AUTRAN, 1975)
O movimento de intelectuais, artistas, amigos, enfim pessoas ligadas a
cultura naquele momento eram socialmente associadas a pessoas drogadas, marginais,
desocupados, entre outros adjetivos de cunho pejorativo. O jornalista Nilton Caparelli
da sucursal do Rio comenta esse episódio em especial para a Folha de São Paulo,
entendendo ser esse movimento algo natural, peculiar ao meio artístico.
O movimento é grande na casa de Ney: ”Eu tenho um ritmo mais lento, mas
agora as coisas aceleraram muito e às vezes fico um pouco confuso”.O entra-
e-sai não é de fãs. São amigos a procura de ajuda: vendem artesanato, pedem
financiamento para seus trabalhos. O relacionamento parece ser franco e
bom. E Ney ajuda. No momento ele está sem dinheiro: do seu show no Hotel
Nacional recebeu 11 mil cruzeiros. (CAPARELLI, 1975)
Esse período compreendido como um momento de liminaridade artística em
que se encontrava o cantor, não somente em relação às gravadoras e ao regime militar,
mas também ao eminentemente instituído no âmbito social. O artista passa nesse
momento a vivenciar o drama do artista estigmatizado, não apenas por ser
95
compreendido pela dia como ex. Secos & Molhados, mas, sobretudo, por questões de
natureza eminentemente moral.
Ainda no sentido da construção de sua autonomia artística, o cantor Ney
Matogrosso torna a declarar em entrevista a Folha de São Paulo sua intenção de o se
deixar rotular por normas e conceitos morais estipulados pela mídia e blico. Dessa
maneira o cantor reafirma seu anseio de liberdade dentro do campo artístico, dando
continuidade a tentativa de desvencilhamento da imagem de ex-Secos & Molhados. Ney
declara:
Eu deixo tudo acontecer. Esse show é a nova abertura pra mim em São Paulo,
mas assim mesmo não quero determinar rumos e não procuro me enquadrar.
As pessoas é que procuram um reconhecimento especial. Elas colocam
trilhos na vida da gente, nos rotulam, mas eu não me importo, quero viver ao
vento, ao sabor do vento (NEY, 1975 apud GOUVÊA, 1975).
2.1.3 “Por onde anda Ney Matogrosso?” Dívidas, fracasso, silêncio
Por onde anda Ney Matogrosso”? Com essa indagação a jornalista e crítica
de música Ana Maria Bahiana do jornal O Globo, editou ampla matéria sobre o artista
em que faz um balanço de um ano de sua carreira solo, insinuando um certo fracasso do
artista, permeado por dívidas entre as indefinições de sua carreira e seu estado de saúde.
Por onde anda Ney Matogrosso? Depois da estréia explosiva no Hotel
Nacional no início do ano, depois da temporada luxuosa e multicolorida no
Canecão, depois do festejado álbum solo, todos esperavam a eclosão
definitiva de Ney como estrela do show-business brasileiro. Mas nada disso:
em seu lugar, um silêncio constrangedor e muitas histórias de dívidas e
fracassos. Desaparecido e quase ignorado, Ney brilhou rapidamente em Belo
Horizonte, no início de setembro, aparecendo de improviso ao lado de Fagner
num concerto bonito e comovente. Depois, mais silêncio. Ney Matogrosso
está com hepatite, mas não parece. Queimado do sol, bem disposto,
aborrecido de ter de ficar na cama. Também não parece um homem derrotado
e abatido que deveria ser depois de tantas dívidas e confusões (BAHIANA,
1975).
96
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 6 – Ney Matogrosso e Fagner, Belo Horizonte, Dezembro/1975.
Após a temporada em São Paulo o artista inicia um momento de liminaridade
artística, passando por um período afastado da mídia, o que trouxe especulações por
parte da mesma em torno de seu fracasso na estréia de sua careira solo. Em destaque no
jornal O Estado de São Paulo, lê-se a manchete: “Devo uma fortuna. Mas nunca dormi
tão bem”. Em seguida a essa manchete, segue declaração completa do cantor:
Devo uma fortuna, mas nunca dormi tão bem. Não admito que interfiram nas
minhas idéias e o Ellis queria me transformar em cantor de g-fino, de
coluna social, e eu vou morrer pobre. Não tenho nada, até um dinheiro que
tinha guardado para comprar um sítio estou investindo agora no espetáculo (
NEY 1975, apud , A ESTRÉIA, 1975).
Em letras garrafais em título de manchete o jornal O Globo anuncia o
desabafo de Ney: “Eu passei por coisas que teriam pirado qualquer um. Mas não pirei”.
Segue matéria em que o artista declara: “Chegou uma hora em que eu senti claramente
que existiam forças me empurrando para baixo, muita gente torcendo para que eu me
afundasse de vez. Ou talvez não, talvez seja a minha paranóia” (NEY, 1975 apud
BAHIANA, 1975).
Vejamos o depoimento do artista a respeito desse episódio de crise
financeira, que envolve o setor empresarial em sua dívida de 300 mil cruzeiros à época
para com o ex- empresário George Ellis. Nesse momento se a primeira tentativa de
Ney rumo à sua autonomia artística frente ao mercado fonográfico e do show business,
por meio de seu “auto-empresariamento.
97
Estou pagando, parceladamente, mas estou. O que eu entendo por empresário
é arriscar tudo junto com o artista, mas não, tudo o que eles querem são os
20% de nossos lucros, arriscar eles não arriscam nada. Com o último
empresário tive essa dívida de 300 mil, mas serviu de lição, pois cheguei a
conclusão queo preciso de empresário. Vou arcar com tudo sozinho,
monto o show de acordo com as minhas possibilidades e pronto, eu o sou
Cleópatra (NEY, 1975 apud GOUVÊA, 1975).
A partir de então o artista inicia seu processo de autonomia perante seus
shows, em uma tentativa de se auto-empresariar. A Folha de São Paulo anuncia: “Ele
está montando uma pequena agência com um contador, um secretário e um advogado
para cuidar de seus negócios”. Ney reafirma: “É o suficiente para ficar livre de
empresário fixo e posso negociar meus shows com todos” (NEY, 1975 apud GOUVÊA,
1975).
Nesse momento em que encerrava-se a temporada do espetáculo Homem de
Neanderthal no final de 1975, houve uma tentativa de parte da dia, bem como cantor
de explicar o porquê do fracasso de tal empreendimento. Vejamos o depoimento do
artista mostrando sua percepção para com o setor empresarial, bem como sua tentativa
de se auto-empresariar. Ney declara:
Eu sai da mão do Ellis devendo uma loucura. Porque a produção que ele
fez era uma coisa cara mesmo, uma coisa de luxo. Depois que eu sai do Ellis
eu não queria que a produção desse trabalho ficasse uma coisa decadente,
sabe? Eu queria manter o vel. Então parti para a auto-empresagem, que
aliás ainda acho que é a solução ideal, tentando manter o espetáculo no
mesmo nível, com meus músicos, o cenário e tudo. Mas eu era muito
inexperiente. Esse meio é de bandidos, você sabe, não é? E as pessoas que
trabalham comigo eram tão inexperientes quanto eu, daí perdemos muitas
oportunidades que hoje eu vejo que poderiam ser muito boas ( NEY, 1975
apud BAHIANA, 1975).
A partir desse depoimento do cantor se faz notório que o fracasso de tal
investimento o se deveu ao público, nem muito menos a falta de seu talento, visto que
houve receptividade por parte do público. Essa realidade ficou comprovada por meio
das bilheterias, embora tenha havido uma redução de seu blico, que ficou bem mais
restrito e seleto em função da redução dos locais de apresentação nos quais realizaram-
se as apresentações do show Homem de Neanderthal.
Alguns setores da dia chegaram a atribuir o fracasso do espetáculo
diretamente ao empresário do cantor George Ellis. Esses setores entenderam ser o
98
empresário inexperiente dentro do setor de música e ter elaborado um projeto ousado
em relação a sua produção. Dessa maneira veio o empresário a visar lucro imediato em
cima da obra do artista em evidência, já que do extinto Secos & Molhados o cantor Ney
Matogrosso era o que mais prometia em termos de projeção e lucro.
Desde que saiu do grupo Secos e Molhados, em que era a grande estrela ele
vem encontrando uma série de dificuldades. Alguns chegaram a comentar
que o responsável pela queda de popularidade de Ney Matogrosso era seu
antigo empresário, George Ellis, que não tinha prática no ramo artístico. Mas
nem quando Ney resolveu ser seu próprio empresário as coisas deram certo
(SASTRE, 1976).
Com o grupo Secos & molhados que assumiu contornos enquanto femeno
de massa, os locais das apresentações eram em grandes espaços, com estimativa de um
público de 15 mil pessoas. Em sua carreira solo as apresentações foram revertidas para
pequenos espaços. Esse fato repercutiu diretamente no aumento do preço dos ingressos.
Além disso, o empresário George Ellis havia investido grandes cifras nessa produção,
daí ser necessário o retorno imediato do investimento. O artista percebe que a
inviabilidade de seu espetáculo deveu-se exclusivamente a questão de ordem financeira
ao qual estava submetida à indústria do show business. Sobre esse momento o artista
declara:
O público era sempre ótimo, o era esse o problema. As platéias estavam
sempre boas, e havia sempre uma agitação...não sei...uma expectativa em
relação a coisa que eu fazia...não sei bem devido a que, porque todo mundo
conhecia bem meu trabalho....Mas no fim, com as despesas, a bilheteria
acabava empatando. Ou nem isso (NEY, 1975 apud BAHIANA, 1975).
O depoimento do senhor Ítalo Maciel
6
, acerca da apresentação desse
espetáculo, comprova de forma bastante sucinta todas as premissas acima discutidas em
6
A entrevista com o Senhor Ítalo Maciel, foi realizada a partir de um roteiro de questões previamente
elaboradas, via correio eletrônico, onde foram destacadas as relações entre política e cultura nos anos 70
acerca da trajetória do cantor Ney Matogrosso e sua inserção social no universo gay. Os entrevistados são
admiradores do artista Ney Matogrosso e estão dentro da categoria de homens que se relacionam
afetivamente com outros homens. Suas falas e depoimentos serão analisados em maior escala nos itens e
capítulos subseqüentes. A identidade dos informantes foram preservadas, adotando assim nomes fictícios,
como pressuposto metodológico adotado no decorrer da pesquisa investigativa. Qualquer semelhança
com nomes reais é uma questão totalmente de mera coincidência, sem nada ter intencionado o
99
torno das possibilidades de estréia desse show, sobretudo a questão dos elevados custos
que envolveram essa produção.
Flávio Queiroz: O senhor havia mencionado, em fala anterior, o show
Homem de Neanderthal, ao qual assistiu no Rio. Poderia detalhar alguns
aspectos desse show?
Ítalo Maciel: Ih! Nossa Flávio, esse show do Ney foi assim uma coisa
estranha, enigmática. Tinha muita expectativa em cima de sua estréia sem o
Secos & Molhados. Era ele e pronto. Os jornais todos criticando e
duvidando do Ney enquanto cantor, dizendo que ele sabia rebolar e não
cantar. Bem, sabe como é jornalista, diziam isso de forma disfarçada, mas
queriam mesmo eram destruir o Ney. Eu ainda tenho uma reportagem da
época que diz isso que te falo, depois te envio. Sim fui a esse show aqui no
Rio mesmo em um teatro chiquérrimo, super fino. Querido, quanto luxo,
nossa! O show era impecável. Cenário, figurino, cortinas, cores, tudo, um
luxo mesmo. O Ney “tava” lindo, lindo, fabuloso. Fiquei paralisado as
pessoas estarrecidas, meio que duras, acho que impactadas. A casa “tava”
lotada, lembro que o preço do show foi bem alto e minha prima muito do
Ney, bem mais que eu, não pode ir por conta do preço, mas daí contei tudo
pra ela e tirei fotos claro. Mas o Ney sobreviveu a tudo isso aí, a essa falta de
respeito desses jornalistas hipócritas que tratam o artista brasileiro com
descaso. O Ney provou isso, que é um artista da melhor qualidade. A prova
“tá” aí até hoje. Abraço,
Flávio,
e até breve (MACIEL, 2008).
Em última instância, acerca de tal momento, o artista Ney Matogrosso faz
uma análise durante o ano transcorrido, bem como ensaia novas perspectivas diante de
incertezas e anseios de sua carreira solo.
Eu estou só querendo ver o que vai vir. Pode ser uma explosão de novo, ou
uma explosão em outro sentido. Mas eu sinceramente não me importo.
Sinceramente. Porque eu não levo isso a sério a esse ponto. Se eu vir que o
dá mais pra eu me divertir cantando, se ficar uma coisa mais dolorosa do que
boa, eu paro logo com a cantoria. Não é importante a esse ponto, ao ponto de
eu sacrificar tudo por isso. Eu já fiz muita coisa antes de cantar. O importante
é viver muito. Atualmente cantar, é o que eu mais gosto. Mas amanhã pode
não ser. Amanhã eu posso querer largar tudo, sei , sem fazer demagogia,
largar tudo e cuidar das plantas que eu adoro. ( NEY, 1975 apud BAHIANA,
1975)
O espetáculo Homem de Neanderthal ficou basicamente restrito ao eixo Rio-
São Paulo, em função de fatores econômicos relativos ao deslocamento da produção. A
complexidade de cenários e figurinos, além dos músicos, técnicos de som, camareiro, e
demais setores que envolvem a uma grande produção artística, inviabilizou a tur pelo
pesquisador. Ítalo Maciel, 62 anos, arquiteto, paisagista e colecionador da carreira do cantor Ney
Matogrosso, natural de Florianópolis-SC, residente no Rio de Janeiro.
100
Brasil. O show foi apresentado no Rio, em São Paulo e em algumas capitais brasileiras.
Acerca dessa questão Ney afirma:
As gravadoras duvidavam de meu trabalho. Não se interessavam por mim,
porque me lançar sozinho significava arriscar dinheiro. Eu viajava com
uma equipe de dezessete pessoas e as despesas eram imensas. Cantei em
algumas capitais brasileiras, mas não ganhei dinheiro, apesar de ter sempre
os teatros lotados. ( NEY, 1975 apud SASTRE, 1976)
Dessa maneira o espetáculo Homem de Neanderthal limitou o cantor no
sentido de reconquista de seu público. O amanhã de Ney não foi certamente cuidar de
plantas, como afirmou em entrevista a Ana Maria Bahiana. Entretanto, no ano seguinte,
1976, o artista foi cuidar de um “jardim” bem maior, os “jardins” de seu espetáculo
seguinte Bandido. A partir desse show, nosso próximo objeto de análise, o artista
reconquista seu público que o legitimou perante a mídia.
2.2 “Bandido” - o “bicho homem” virou gente. O fim do estigma?
Em matéria realizada pela jornalista Isa Cambará, publicada em abril de
1976 na Folha de São Paulo, anuncia a despedida da temporada do show Homem de
Neanderthal no Museu de Arte Moderna em São Paulo e o início de uma nova fase na
carreira do artista. Ney declara a jornalista: “O show desta semana é a despedida do
“bicho homem”. As pessoas agora vão ter que curtir a pessoa e não mais o
personagem”. Segue matéria: O show que ele está fazendo essa semana, no Museu de
Arte Moderna, é a despedida do “bicho homem Nei Matogrosso. As pessoas, agora,
o ter que curtir a pessoa e não mais o personagem. Dará certo? Ney responde: “Acho
que sim, embora seja um cantor mais para ser visto do que ouvido” (NEY, 1976 apud
CAMBARÁ, 1976).
É divulgado em manchete: Nei Matogrosso seus planos incluem carreira de
ator. Segue destaque: O cantor e dançarino anuncia uma sua nova fase, “mais natural,
mais calma e mais espontânea”.
As fotos mostram um Ney Matogrosso diferente: cara lavada, nada de
fantasias, olhar tranqüilo. O ex-Secos e Molhados (expressão que ele detesta)
parece ter se transformado. A vedete teria dado lugar ao cantor? Tudo indica
101
que sim. Ney responde ao estigma do ex-Secos e Molhados: Não entendo
gente que se refere a mim ainda como Nei Matogrosso, o ex - “Secos e
Molhados”. Será que isso ainda é notícia? Para mim, não é mais. O conjunto
aconteceu. Agora estou noutra. Estou caminhando. Não sei em que
direção, mas caminho. Parado é que não fico (CAMBARÁ 1976).
Nesse momento da carreira solo do artista é o momento em que passa a
existir uma aproximação entre o um ser irreal e um ser real próximo de uma realidade.
A construção de uma imagem de um artista próximo ao real ao natural, e não mais ao
bicho-homem. O episódio é relatado:
Isa Cambará:Não ser reconhecido é desagradável?
Ney Matogrosso: Não, não é. Quando começaram a ser divulgadas as minhas
fotos, ao natural, pensei que passariam a me reconhecer. Isso não aconteceu e
foi bom. Rua não é palco. E o meu narcisismo se satisfaz com o palco.
Isa cambará: Hoje, parece estar muito distante dos tempos da “androginia”. O
rosto que parecia de uma moça nos tempos do “Secos e Molhados”, está
completamente barbado.A roupa é a mais comum. Na rua, é impossível
reconhecer o rapaz baixo e magro o “andrógino” que escandalizou tantos,
alguns anos atrás.
Ney Matogrosso: Quanto a esse negócio de “androginia”, nunca levantei
bandeira. Foi uma coisa jogada em cima de mim. Se acabou, foi porque as
mesmas pessoas se esqueceram disso. Resolveram deixar de agredir . Era eu
ou eles. E eu tinha que estar do lado do Nei Matogrosso porque gosto muito
de mim. Acho que as pessoas têm a obrigação de gostar de si mesmas. Esse
é, sem dúvida, o primeiro passo (CAMBARÁ 1976).
Esse processo de arrefecimento do personagem incorporado pelo artista Ney
Matogrosso durante seus espetáculos, teve início em sua parceria com o cantor e
compositor Raimundo Fagner, em um especial ainda no ano de 1975. Nesse momento o
cantor apresentou-se pela primeira vez para uma platéia ao natural, ou seja, sem
pinturas, sem seus habituais adereços e fantasias. Ney declara a repórter Isa Cambará:
É bom lembrar que a apresentação que fiz, no ano passado, com Fagner, em
Minas Gerais, deu o maior ibope. E não houve “mis-en-scène”. Só eu, ele e o
microfone. Por isso, pretendo, de agora em diante, fazer meus espetáculos
mais em cima do cantor. Toda essa parafernália visual vai desaparecer, por
uma única razão: agora, estou mais calmo, mais relaxado. E isso,
naturalmente, tem que se refletir no meu trabalho. Antes, eu era uma pessoa
tensa, assustada com o sucesso, que me pegou de surpresa. Tinha receio de
assumir que era cantor. Agora sei que gosto e vivo do canto. O que não
significa que vou morrer cantando. Se quero dançar uma sica, é claro que
vou dançá-la. E nunca me apresentaria com uma roupa de andar na rua. Palco
é palco. Eu já estou até bolando uma roupa, roupa mesmo, não fantasia , para
minha próxima apresentação. O que vai acontecer é que as pessoas vão ver a
minha cara, o Nei, quando eu estiver no palco. Vão sentir o ser humano, que
esteve escondido até hoje atrás de fantasias. Por medo, por defesa, por
timidez. Mas, é evidente que não vou me limitar a cantar no sentido
tradicional da palavra. Logo eu, que sempre quis ser ator, vou dispensar um
palco?( NEY 1975 apud CAMBARÁ, 1976).
102
Entre os meses de abril de 1976 data da última apresentação show Homem
de Neanderthal até setembro de 1976, o cantor Ney Matogrosso dedicou-se ao seu novo
trabalho, entre a escolha do repertório e as gravações em estúdio de seu segundo álbum
solo intitulado Bandido. Lançado em outubro de 1976 pela Continental discos S/A, o
cantor apresentava-se na capa do LP Bandido
7
caracterizado com vestes que nos remete
a um universo de “marginalidade”, o ser irreal do bicho homem, o Homem de
Neanderthal cedeu lugar ao ser real, de carne e osso, onde prevaleceu a imagem de um
cigano, um aventureiro latino-americano.
O artista trajava um chapéu de couro preto, lenço vermelho e branco caindo
pela orelha esquerda, olhos contornados de lápis preto, barba cerrada, adereços de ossos
e prata espalhados pelo pescoço e braços que acompanhavam a um punhal travado na
madeira onde se encontrava escrito na parte superior a palavra: Bandido. Na contra-capa
do LP o artista apresentava-se com o mesmo figurino, acrescido de um punhal segurado
por sua mão direita e uma fogueira que aparecia ao fundo da foto.
7
Músicas: Bandido Corazón (Rita Lee), Aqui e Agora (Luli), Cante uma Canção de Amor (Odair José),
Paranpanpan (De Carlo), Gaivota (Gilberto Gil), Usina de Prata (Rosinha de Valença),Trepa no Coqueiro
(Ary Kerner), Pra Não Morrer de Tristeza (João Silva e Caboclinho), Mulheres de Atenas(Augusto Boal e
Chico Buarque), Airecillos (Marlui Miranda).Grupo Terceiro Mundo: Jorge Olmar (Viola
eViolão),Roberto de Carvalho (Guitarra e Teclados Elber), Berloque (Bateria), Marcelo Salazar
(Percussão),EliasMizrahi(PianoMoogeBandolim),JorgeCarvalho(Baixo)ParticipaçõesEspeciais:GilbertoG
il(ViolãoemGaivota),RosinhadeValença(ViolãoemUsinadePrata).MúsicosConvidados:RayArmando(Perc
ussão),OberdanMagalhães(Sax),Papão(PercussãodeEfeito),GastãoeCharles(PercussãoAdicional),Lourenç
oBaeta(FlautadePan),JacquesMorelembaum(Cello),SilvioSolis(Harpa),PauloFreitas(Charango),SergioSall
es(SurdoePandeiro),PauloFreitas(FlautaKena),AbelFerreira(Clarineta),EdsonMaciel(Trombone),DavidSio
n(PercussãodeEfeito),MarcioMontarroyos(Trompete).FichaTécnica:ProduçãoFonográfica:DiscosContine
ntal.Produção:GuilhermeAraújo.SupervisãoMusical:RosinhadeValença.Arranjos:JorgeOmareJorgeCarval
honafaixaGaivota.CapaLayOut:OscarPaolillo.CapaArteFinal:WalmirTeixeira. Foto: MartaViana.
103
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 7 - Ney Matogrosso capa LP Bandido, 1976.
A jornalista e crítica de arte Ana Maria Bahiana, realiza extensiva matéria
com o artista no Jornal O Globo. A matéria é aberta de forma íntima ao universo do
artista afirmando: “A conversa não podia ser mais fracionada: começou num jantar em
casa com o empresário Guilherme Araújo, continuou no carro de Ney e foi acabar na
sala da minha casa”. Ana Maria continua falando dessa intimidade agora em relação ao
trabalho do artista: “Nunca antes vi Ney falar tão à vontade de si mesmo, esclarecer tão
claramente suas intenções, seu trabalho, seu jeito de ser. Seria, teoricamente, uma
conversa a respeito de seu disco novo, “Bandido”, que deve sair a qualquer momento,
mas foi muito mais (BAHIANA, 1976). Ney declara acerca de seu mais novo trabalho:
Eu gostei muito de fazer esse disco. Este, especificamente. Está uma coisa
bem leve, mas caprichada. Uma coisa até para as pessoas dançarem, por que
não? Acho tão bom dançar, tão bonito...Acho que não desmerece em nada
fazer um disco pra dançar. O que não quer dizer que seja um disco feito de
qualquer maneira. Um disco pode ser leve, mas caprichado, feito com
cuidado. ( NEY, 1976 apud BAHIANA, 1976)
Nesse trabalho Ney grava ícones de nossa MPB como Chico Buarque de
Holanda- Mulheres de Atenas, Gilberto Gil - Gaivota, Rita Lee Bandido, bem como
nesse processo de aproximação e reconquista de seu público, grava uma composição de
um compositor considerado popular pela dia e público, Odair José, intitulada Cante
uma Canção de Amor. Ney declara ao Globo o porquê da gravação dessa música e a
reação do compositor e cantor Odair José ao saber que Ney intencionava gravar sua
música. Ney afirma à jornalista Ana Maria Baihana - Jornal O Globo: “gravei porque
me disse coisas, achei bonita. O Odair não queria acreditar, ficou todo encabulado”(
NEY, 1976 apud BAHIANA, 1976).
Dando continuidade à entrevista concedida por Ney Matogrosso à jornalista
Ana Maria Bahiana, acerca da contrução seu novo espetáculo, o artista aponta para suas
intenções em relação a sua estréia:
Ana Maria Bahiana: Quando começa esse trabalho:
Ney Matogrosso: Quero começar nos primeiros dias de novembro. Não
importa por onde. Parece que não datas nem em São Paulo. Eu queria
começar por Belo Horizonte .(só quero fazer o Rio depois, no fim). Mas não
quero nem saber. Se o der, vou estrear mesmo em Mato Grosso, que
104
aliás tem muito a ver. Parece que tem um cinema onde eu posso fazer o
show. E olha que eu vou mesmo.
Dessa maneira, o show Bandido que ainda se encontrava em fase de
elaboração passou a ter uma possibilidade de circular por outras capitais do país fora do
eixo Rio-São Paulo, em função de sua simplicidade de cenário e figurino. Ney afirma:
Eu quero tudo muito, muito simples. Um cenário bem despojado, que eu possa carregar
pra todo lado, porque eu quero fazer o Brasil todo, principalmente o Norte e Nordeste
(BAHIANA, 1976).
A jornalista Denise Pirez Vaz em seu livro Ney Matogrosso: um cara meio
estranho, comenta a respeito desse momento da carreira do cantor, quando esse estréia
Bandido e segundo análise e percepção da autora, o cantor deixou de ser considerado
perante a mídia e o público como o ex- Secos & Molhados. Vejamos a afirmação:
Bandido ocupa um lugar um especial no coração de Ney, talvez por significar
tantos começos: o personagem virou gente, o artista deixou de ser
considerado um ex-Secos e Molhados e adquiriu identidade própria, e o
homem decidiu dirigir sua carreira profissional pelos rumos da contestação
(VAZ, 1992).
Na verdade compreende-se que a partir de então, com o show Bandido esse
estigma de ex-Secos & Molhados certamente arrefeceu. Porém não em todos os setores
da dia e blico, não teríamos como averigüar isso com precisão. Ao certo podemos
afirmar que o espetáculo configurou-se como um divisor de águas, no entanto ficaram
ainda seqüelas entre alguns setores da mídia e público de um artista estigmatizado.
Percebemos isso durante nossas entrevistas, quando o artista é associado ao grupo e ao
meio de nossas análises com a imprensa escrita, que entre um relato e outro relembram
a imagem do cantor do extinto grupo, geralmente quando o artista apresenta um novo
trabalho.
2.2.1 Um “bandido” que não mata na Lemos de Brito
Com matéria publicada no jornal O Globo em vinte e um de outubro de
1976, a jornalista Ana Maria Bahiana, anuncia a apresentação do cantor na penitenciária
Lemos de Brito. Alguns meses depois o artista Ney Matogrosso em entrevista à Folha
105
de São Paulo comenta o sentido do espetáculo Bandido com a sua terra natal Mato-
Grosso, afirmando ter gostado de fazer um bandido que não mata em sua apresentação
na penitenciária, afirmação essa que intitulou nosso item.
“Bandido”, o novo disco de Ney Matogrosso, está pronto e será lançado a
qualquer momento. Mas, ao vivo, o cantor poderá ser visto no Rio dentro
de alguns meses. Apenas para os detentos da Penitenciária Lemos de Brito
ele se apresenta em um show hoje à noite (BAHIANA, 1976).
Bandido é um nome forte e me lembra do lugar onde nasci em fronteira no
Mato Grosso, que é uma zona brava mesmo, onde todo mundo anda armado
e matando as pessoas a troco de nada. Achei legal fazer um bandido que não
mata (NEY, 1977 apud OLIVEIRA, 1977).
A apresentação do artista na penitenciária, na verdade, configurou-se como
uma prévia do que viria a ser depois de alguns meses o segundo espetáculo da carreira
solo do cantor intitulado Bandido. Nessa apresentação na Penitenciária o cantor Ney
Matogrosso, limitou-se a cantar apenas sete caões das dezessete que viriam a compor
o espetáculo final de Bandido. O convite feito ao artista para apresentar-se na
Penitenciária Lemos de Brito, deu-se após pesquisa desenvolvida pela direção em
função do Festival de Música que ocorreria em tal casa de detenção. Realizada a
pesquisa, os detentos elegeram o artista Ney Matogrosso para abrir o Festival, por esse
representar a liberdade para eles. A jornalista Denise Pires Vaz, menciona em seu livro:
Por que Ney Matogrosso? perguntou um repórter aos presos da Lemos de
Brito, no Rio, durante a cobertura do Festival de Música da penitenciária, em
1977. “Porque, para nós, ele representa a liberdade”, explicou um deles. A
entrevista focalizava o fato de Ney ter sido o artista escolhido para participar
daquele festival, numa pesquisa feita anteriormente entre os presos... As
horas passadas no presídio revelaram-se significativas por uma rie de
fatores. Afinal, foi lá a estréia do Bandido, com os mesmos figurinos e
repertório que o público veria depois. Lá também rolaram vários papos
interessantes, relacionados a sua concepção de vida e à atitude assumida
profissionalmente - um rapaz, por exemplo, lhe disse que não adiantava ficar
preso ali, porque o espírito era livre. A escolha de Ney Matogrosso para se
apresentar num presídio adquire um significado quase simbólico (VAZ,
1992, p.19-20).
A apresentação do artista na Penitenciária Lemos de Brito, foi fruto de duas
circunstâncias momentâneas. A primeira oriunda da dificuldade de realização do show à
época em circuito comercial, tendo em vista as dívidas do artista, que se encontrava
naquele momento em uma condição de liminaridade perante a dia e ao público. A
106
outra circunstância, por nós percebida, foi mencionada pelo próprio cantor, quando esse
afirmou em entrevista que era um desejo seu de cantar em uma penitenciária. Vejamos a
fala de Ney a respeito desse momento: “O espetáculo nesse local foi maravilhoso, era
um sonho antigo e não perderia essa oportunidade de aceitar o convite. Achei tudo
excelente” (MATOGROSSO, 2006).
A partir dessa inusitada estréia, o espetáculo ganhou espaço notório dentro
da mídia em função do impacto provocado pelo local de sua apresentação, bem como o
figurino usado pelo cantor na incorporação de seu personagem que aproximava-se do
universo dos detentos, o Bandido. Era um bandido que o matava, incorporado pelo
artista Ney Matogrosso, entre outros bandidos que se encontravam ali detentos. O corpo
de um bandido enquanto personagem entre o corpo dos detentos. Ambos os corpos eram
transgressores em sua essência. O corpo transgressor do artista em cena que transgredia
aos padrões morais da época, com suas pinturas e indumentárias e o corpo dos detentos
que transgrediram as leis sociais. O sociólogo francês Jean Duvignaud em sua obra
Sociologia do Comediante nos leva a reflexão desses corpos:
Muitas vezes comentem-se contra-sensos em relação ao termo corpo, tais
como: confundir comportamentos intencionais psíquicos e mecânica
filosófica, regulamentar os estados de alma por uma consciência desprendida
do ser corpóreo, desprender os símbolos e os sinais da realidade existencial
que implica. Esquecem que o corpo é uma linguagem em potência, um centro
dinâmico de comunicações diferidas, mas sempre exprimíveis. O corpo não é
mais um objeto, mas uma abertura, uma comunicação, ele é aquilo que faz a
ficção existir durante toda a representação, como modo de participação
coletiva (DUVIGNAUD, 1972, p.214-215).
Pensando juntamente com Duvignaud, onde esse compreende o corpo não
como sendo mais um objeto dentro da engrenagem de representação e sim como uma
abertura durante o ato de representar, fazendo a ficção se tornar possível, realidade.
Dessa maneira o corpo do artista Ney Matogrosso durante sua performance na
apresentação na Lemos de Brito, passa a ocupar um espaço enquanto uma linguagem
“marginal” para os presidiários. Artista e detentos passam a falar, a expressar os
mesmos digos de conduta do universo underground, “marginal” ao qual estão
inseridos dentro daquele mesmo contexto, embora momentâneo.
Reforçando essa idéia da personificação desse corpo transgressor, enquanto
um corpo que torna possível a transformar a ficção em realidade dentro do ato de
representar, o artista Ney Matogrosso nos fala sobre o significado simbólico da
107
apresentação de Bandido na Lemos de Brito: Bandido é um nome forte e me lembra do
lugar onde nasci em fronteira no Mato Grosso, que é uma zona brava mesmo, onde todo
mundo anda armado e matando as pessoas a troco de nada. Achei legal fazer um
bandido que não mata” (NEY, 1977 apud OLIVEIRA, 1977).
Após a apresentação numa penitenciária e o espaço notório reconquistado
junto à dia, as expectativas do artista em relação à comercialização do espetáculo se
fizeram a partir de então mais plausíveis. O espetáculo seguiu para as cidades de Belo
Horizonte e São Paulo, agora em circuito comercial. A primeira apresentação foi em
Minas Gerais, no início de novembro de mil novecentos e setenta e seis e a segunda no
Teatro Municipal de Santo André-SP, em 18 de novembro, onde permaneceu em cartaz
por quatro dias. A Folha de São Paulo atesta esse momento da realização do show bem
como da dificuldade de realização do espetáculo em circuitos comerciais:
Ney Matogrosso não é mais personagem. Ney Matogrosso virou gente, agora
é pessoa. O anúncio advertência?- é do próprio Ney Matogrosso, que está
em São Paulo para lançar seu novo LP, “Bandido”, e fazer um show em curta
temporada que começa hoje em Santo André, no Teatro Municipal, e vai a
domingo. São Paulo mesmo depois do carnaval, com o mesmo show
também “Bandido e numa sala vaga, raridade que ele e seu empresário
Guilherme Araújo não conseguiram achar agora (MERLIN, 1976).
A concepção do show foi surgindo naturalmente, fluindo como o leito de um
rio, nas palavras de Ney. Primeiro com a composição de Rita Lee Bandido Corazón
composta especialmente para o cantor, segundo por sua apresentação na penitenciária
Lemos de Brito. Denise Pires Vaz comenta:
No Bandido, a história se modificou e Ney Matogrosso, pela primeira vez,
virou gente. Relaxou da carga massacrante que se havia imposto de
corresponder à expectativa das pessoas, e decidiu curtir sua relação intensa
no palco. Resultado: a expressão agressiva e séria do Homem de Neanderthal
cedeu lugar ao riso e à alegria, e a maquilagem, em vez de ser empregada
para esconder o rosto, passou a destacar determinados pontos, como olhos e
boca, facilitando uma melhor visão de uma face aentão camuflada. Lenço
amarrado na testa, chapéu, Ney surgia com uma calça vermelha, peito e
braços enfeitados por uma afinidade de penduricalhos, e a disposição de
liberar o enorme prazer que sentia ao pisar no palco. Na segunda parte do
show, trocava a calça vermelha por uma branca, iniciando um ritual que se
tornaria presente em quase todos os espetáculos: a mudança de roupa em
cena. que, no Bandido, essa mudança foi total, incluindo até a troca do
tapa-sexo preto por um branco, o que ocorria atrás de um biombo da altura da
cintura. Nunca mais Ney tirou o tapa-sexo em cena, apesar de muitas vezes,
por causa dos efeitos de iluminação, as pessoas pensarem que estava
inteiramente nu (VAZ, 1992).
108
No entanto, durante as primeiras apresentações do espetáculo Bandido,
ainda em fase de elaboração, o artista foi alvo por parte da chamada intelectualidade das
esquerdas ligadas a grande mídia de vários preconceitos de caráter homofóbico. O
artista fala sobre esse episódio:
Não tinha mais nenhum sentido continuar carregando aquela carga. A
mudança veio de dentro de mim, um processo que leva as pessoas, por
exemplo, da frieza ao bom humor, da personagem à pessoa. De repente, eu
me vi badalado pelos preconceitos dos intelectuais. E eu o tenho
preconceito por eles, estou com os pés na terra. Entendi que não preciso
assumir uma postura, dirigir o meu trabalho. Tudo pode sair naturalmente,
bem feito, mas divertido. Aberto, para chamar o público pra a mesma
abertura (NEY, 1976 apud MERLIN, 1976).
Em matéria publicada na Folha de São Paulo intitulada O espaço de Ney
Matogrosso, é percebida a hostilidade de cunho eminentemente homofóbico contra o
artista. O texto sugere um posicionamento e cuidados a serem tomados por parte de Ney
Matogrosso perante o mercado fonográfico e a mídia para que este não venha a cair no
popular. Isso se deveu por naquele momento o cantor ter gravado no LP Bandido a
canção do cantor e compositor Odair José, considerado, à época, pela crítica musical
como um cantor “brega”, ligado às camadas sociais menos favorecidas economicamente
e culturalmente. A partir de então, levantou-se toda uma polêmica entre MPB e música
cafona” na grande mídia.
Essas questões levantadas pela mídia e intelectuais da época entre o que viria
a ser classificado como artistas populares, engajados, artistas de elite eram sempre
presentes, estavam na pauta das discussões, na ordem do dia, digamos assim. Esta
efervescência cultural se dava por conta de uma complexidade cultural ao qual
estávamos submetidos, com o patrulhamento ideológico por parte de alguns segmentos
das esquerdas dentro dos mais diferentes linhagens da cultura. A Folha de São Paulo
tece crítica de cunho homofóbico ao cantor Ney Matogrosso:
Sua figura no início era como a de certos animais: asquerosa. Não pelo fato
de posar de andrógino, mas por causa daquelas plumas rabugentas que usava,
mostrando aquela barriga peluda em requebros que, antes de serem sensuais,
eram apenas grotescos. Depois, a gente foi se acostumando com aquela
extravagância comercial. Só que de repente de tanto ser imitado por calouros
aflitos do Chacrinha, ele antes tão ímpar, se tornou vulgar. Ney Matogrosso
hoje é muito mais povão do que ele próprio imagina. Parece sem sentido mas
ele, mesmo com toda a pluma, com toda a dança, com todos os agudos
109
afeminados, está muito próximo de Odair José, que sempre foi um careta
(SOARES,1977).
Após todas essas considerações de cunho homofóbico tecidas pela Folha de
São Paulo acerca da performance do artista, a matéria é encerrada, arrefecendo o tom
homofóbico em que sugeria alguns cuidados a serem tomados para que o exótico
pássaro (Ney) não se torne um mero papagaio repetidor.
Em suma compreendemos que essa estréia do artista apresentou-se como
uma possibilidade de estabelecer contrapontos em sua recente carreira solo. O artista
passou do luxo, do glamour de seu primeiro espetáculo Homem de Neanderthal, para
um espetáculo simples, quase que artesanal em comparação ao primeiro, onde
prevaleceu um ser real, um personagem oriundo de uma realidade social, o Bandido. No
espetáculo anterior o artista manteve-se distante da crítica, mesma postura que tomou
diante do público durante as apresentações. Homem de Neanderthal foi um show
distante, chegando quase a uma perfeição técnica na performance do artista em cena,
onde o personagem restringia-se apenas a cantar e não se envolver com o público. Em
Bandido o oposto se estabelece, o cantor fica exposto ao público, a partir de então
contrapontos são estabelecidos.
2.2.2 Ney no Teatro Ipanema - a reconquista de seu público em meio a
uma censura moral
Em meio a essas turbulências e especulações da dia, o cantor Ney
Matogrosso continuidade às apresentações do show Bandido
8
no Teatro Ipanema-RJ
em temporada durante a segunda quinzena de janeiro de 1977 e a primeira quinzena de
fevereiro. Finalizado a temporada no Teatro Ipanema, o espetáculo segue para o Teatro
8
Músicas show Bandido Teatro Tereza Raquel-RJ Janeiro de 1977: o Vicente, Sangue Latino, Cante
Uma Canção de Amor, Postal de Amor, Pra Não Morrer de Tristeza, Gaivota, Com a Boca no Mundo,
Mulheres de Atenas, Aqui e Agora, Bandido Corazon, Usina de Prata, Airecillos, Retrato Marrom,
Paranpanpan, Trepa no Coqueiro, Seu Waldir, América do Sul. Obs: As músicas podiam sofrer algumas
alterações no decorrer do show. Banda-Grupo Terceiro Mundo: Roberto Carvalho (Teclados e Guitarra),
Jorge Omar (Violão, Viola), Elber Bedaque (Bateria), Jorjão (Baixo), Marcelo Salazar (Percussão).
Produção: GAPA Figurinos - Bill & Koury, Iluminação - Efeito Ltda Som - Val & Val, Direção de Cena -
Luiz Clericuzzi (Luizinho) Administração - Valéria Goalves, Supervisão Geral - Carmela Buss
(MATOGROSSO, 2006).
110
Carlos Gomes-RJ e, logo em seguida, estreou no Teatro Bandeirantes SP
9
. Em São
Paulo houve problemas com a censura no que diz respeito ao limite de idade imposto ao
público, isso implicou no adiamento do show para o dia seguinte, o espetáculo
permaneceu em cartaz por dois meses.
A revista Veja, datada de dois de fevereiro de 1977 publicou chamada em
seu espaço designado a eventos culturais, intitulada Show, em que trazia como destaque
do assunto o adjetivo “ousadias”. Em seguida dá-se ampla matéria acerca do show
Bandido em cartaz no Teatro Ipanema-RJ:
Diante de um espelho oval, Ney Matogrosso se contorce em poses sensuais,
retirando os berloques e as poucas peças de vestimenta que lhe cobrem o
corpo num inesperado streap-tease aos 35 anos de idade, animado pelo
bolero de Boneca Cobiçada”. Nem Elvira Pagã teria tanta coragem. É
verdade que um biombo esconde boa parte de seu corpo, mas o que resta
visível e entusiasma metade da platéia: Assobios partem delirantes e uma voz
feminina uiva galanteios ardorosos. muito humor e bem temperada dose
de malícia neste show, com gosto de teatro de revista. Do fundo do palco por
exemplo, pode-se recolher ainda a lembrança de uma inevitável escada,
vitrina preferida das vedetes brasileiras. É impossível dissociar os falsetes de
Ney Matogrosso da mesma técnica de canto de Araci Cortes, intérprete
máxima de 300 revistas. (SANTOS, 1977a)
Em sua temporada no Teatro Carlos Gomes no Rio de janeiro com
capacidade para mil e duzentas pessoas teve casa lotada durante todo o mês de março
quando esteve em cartaz. Dessa forma o artista legitima seu espaço dentro da dia e
entre o público, dando continuidade a seu processo de autonomia artística. A Folha de
São Paulo atesta:
Para os que consideram uma audácia o uso de maquiagem, requebros e
roupas exóticas por parte dos homens, as apresentações do cantor Ney
Matogrosso, no Teatro Carlos Gomes, no Rio, tem surpreendido, mas
agradado. O comportamento de Ney ele mesmo explica: Não há nada demais
na maquiagem, requebros e roupas diferentes das tradicionais. Apenas
acredito que as pessoas devem ser livres no seu comportamento. E quem
disse que homem não pode se pintar, por exemplo? Ele acredita firmemente
nessas palavras e toda noite, dois meses, se expõe para a platéia carioca,
disposto a ouvir qualquer crítica que parta de seu público. (SANTOS, 1977b)
Em continuidade dessa mesma matéria publicada na Folha de São Paulo,
entende-se o momento de confiabilidade e entrega entre a platéia e o artista. Nesse
9
O Teatro Bandeirantes na cidade de São Paulo localiza-se na avenida Brigadeiro Luis Antonio, 1411. Os
ingressos do show de Ney Matogrosso foram vendidos ao valor de 70 cruzeiros e 50 estudante à época,
tendo início às 21 horas. O show foi eminentemente proibido pelos órgãos de repressão e censura do
regime militar(censura prévia) para o público menor de dezoito anos.
111
sentido percebemos a construção dessa realidade entre e artista e público na busca pela
autonomia artística almejada pelo cantor. Vejamos essa passagem na Folha de São
Paulo:
Em “Bandido”, o que surpreende é o streap-tease com o fundo musical de
“Boneca Cobiçada” em que o cantor, protegido por um biombo pequeno,
muda completamente de roupa. Como auxiliar, um grande espelho para Ney
se certificar de que está como pretende. No final do espetáculo de hora e
meia, ele desce até a platéia para brincar com alguns dos presentes,
invariavelmente homens acompanhados de suas respectivas mulheres. O
pessoal entende a brincadeira e aplaude. É assim toda noite, talvez porque
respeitem a intenção que Ney Matogrosso coloca em seu trabalho, ou seja, “a
de que é importante ser como se quer, ter liberdade para se comportar”
(SANTOS, 1977 b).
A temporada carioca do show Bandido no Teatro Tereza Raquel e Carlos
Gomes, somaram dois meses e meio, tendo a casa lotada todos os dias nos dois teatros.
Na última apresentação no Teatro Carlos Gomes, os ingressos se esgotaram e houve
tumulto na bilheteria por parte de fãs que não conseguiram entrar no Teatro. A Folha de
São Paulo atesta esse
episódio: O sucesso de seu show no Rio de Janeiro ficou 2 meses
e meio em cartaz com casa lotada todos os dias e no último espetáculo as pessoas que
o conseguiram entrar chegaram a quebrar a bilheteria” (OLIVEIRA, 1977).
O show Bandido tanto em sua estréia no Teatro Ipanema em janeiro de 1977,
Teatro Carlos Gomes em março, e no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, em abril,
tiveram sua liberação condicionada a uma censura moral no que diz respeito ao limite
de idade imposto ao seu público, sendo tais apresentações eminentemente proibidas
para menores de dezoito anos. Na cidade de São Paulo, porém, a censura prévia foi mais
rigorosa, impondo ao artista a mudança no repertório do show, bem como o adiamento
de sua estréia.
Em matéria publicada na Folha de São Paulo são apontadas algumas
mudanças no repertório do show, pressupondo terem sido tais mudanças em função de
uma censura prévia ocorrida no dia da estréia do espetáculo na cidade. Naquele
momento era comum vermos artistas redefinirem seu repertório em função dos vetos
empreendidos pelos órgãos de repressão e censura do regime militar. Dessa maneira,
conseguiam esses artistas driblarem a censura e assim não terem seus espetáculos
vetados na íntegra.
112
A Folha notifica: “Na temporada paulista ele (Ney) deixará de cantar “Trepa
no Coqueiro” e “Aqui e Agora”, para incluir no espetáculo Me Rói”, de Luli e
Lucinha, e “As três Caravelas de Gil e Caetano. No Bandeirantes Ney fica dois
meses. A Folha de São Paulo continua notificando tais medidas de censura em relação a
apresentação do cantor na cidade de São Paulo:
Ney Matogrosso acredita que suas apresentações em São Paulo também seo
bem concorridas. “Aqui ninguém pode negar, é a capital do Brasil, o lugar
onde corre bastante dinheiro e as pessoas podem ir ao teatro com mais
facilidade. Estou confiando nessa temporada paulista” (N.M). Uma única
coisa o preocupa: a censura. No Rio, ela fez com que o espetáculo fosse
proibido para menores de dezoito anos. Ney gostaria que seu show fosse
livre. Ontem à noite, o espetáculo foi visto pelos censores paulistas que iriam
decidir para que a faixa etária ele será liberado. Ney sofreu algumas
interferências: um tape de televisão foi recolhido e ele nunca aparece no
vídeo de corpo inteiro. (OLIVEIRA, 1977)
O show que iria acontecer no dia treze de abril de 1977, foi adiado para o dia
quatorze, em função dos vetos de natureza moralizante realizados pelos órgãos de
repressão e censura do regime militar. Em suma, o espetáculo Bandido deveria passar
pelo crivo de uma censura prévia para posteriormente ser liberado para o público
paulista. Tal apresentação prévia do artista para a censura deveria ter sido realizada no
dia doze, uma terça-feira, no entanto, para maiores rumores e especulações da dia,
essa apresentação foi adiada para o dia treze e a estréia do show que deveria ser dia
treze foi conseqüentemente adiada para o dia quatorze. A Folha de São Paulo notifica
esse episódio:
O show Bandido de Ney Matogrosso teve sua estréia adiada de ontem-
como anunciaram todos os jornais de São Paulo - para hoje às 21 horas no
Teatro Bandeirantes. Os motivos do adiamento não foram devidamente
explicados pelos produtores do espetáculo. Uns falavam em atraso da
montagem do equipamento, outros diziam que a apresentação para a censura
que deveria ter sido feita na terça-feira acabou o acontecendo forçando o
atraso no início do espetáculo para o público. De qualquer maneira o show
foi visto ontem à noite pelos censores e sua estréia es confirmada para a
noite de hoje, a partir das 21 horas no Teatro Bandeirantes. que para
permanecer uma cena em que o cantor faz um strip-tease, o espetáculo teve
que ser proibido para menores de dezoito anos. (NR, 1977)
Em matéria publicada na Folha de São Paulo em dezessete de abril de 1977,
a jornalista e crítica de música Maria José Arrojo, descreve o cenário e o figurino do
show Bandido em cartaz no Teatro Bandeirantes-SP.
113
Uma árvore estilizada, um espelho e mais uma espécie de cabide com todas
as penas e fantasias que Ney Matogrosso iria utilizar no espetáculo formam o
cenário. Uma tocha é acessa solenemente por um dos músicos e apagam-se
todas as luzes, deixando o palco totalmente escuro por poucos segundos.
Quando volta a iluminação um verdadeiro delírio. Encostado na árvore está a
figura esguia e agressiva. A “estrela da noite”.Vestido com uma calça tipo
jeans muito justa, botas, meias de lurex, túnica de cetim e ainda um chapéu
de palha mais pra coronel nordestino do que para bandido. Aos primeiros
acordes de São Vicente, começa a tirar os primeiros “uis” e “lindos” da
platéia. E sua dança toda rebolante e cheia de maneirismos, que chega ao seu
auge no strip-tease” (ARROJO, 1977).
Para melhor pontuar essa questão da censura versus a tentativa de autonomia
do artista, apoiar-se-á, como já analisado, no pensamento de Pierre Bourdieu, acerca do
princípio de autonomia dos campos e a luta em seu interior. Uma vez consolidada essa
divergência no interior do campo da arte, prevalece o princípio de autonomia artística
de Ney Matogrosso em relação à censura moral do regime militar, à mídia, bem como
ao cerceamento da indústria fonográfica. Esse período foi compreendido como uma
condição de liminaridade artística que se encontrava o cantor frente a esses poderes
constituídos.
Dessa forma, o artista não se deixa vetar em sua íntegra pelos órgãos de
repressão e censura do governo militar nem por alguns setores da mídia que, naquele
momento, exerceram também uma censura moral ao cantor. O desenvolvimento da
autonomia artística do cantor Ney Matogrosso se dá a partir de tais pressupostos,
passando pelo enfrentamento da censura moral do regime militar e da dia, sua
popularização frente à dia e ao público até chegar ao momento da abertura política no
Brasil, no qual o artista legitima mais uma etapa de seu processo de autonomia artística.
Esses serão os nossos próximos passos de investigação.
2.2.3 “Pecadocom Emilinha Borba, Moreira da Silva, Caetano, Chico
e Milton – a popularização de uma estrela
Nesse item tentar-se-á analisar a tentativa do cantor Ney Matogrosso em
afastar-se da concepção fomentada pela dia de um artista voltado para um blico
pertencente a uma elite cio-econômica. Essa imagem do cantor foi construída pelos
meios de comunicação de massa a partir de seu espetáculo anterior, onde teve uma
114
produção requintada em termos de cenários e figurinos, realizada por seu ex-empresário
George Ellis, o qual restringiu o público do artista em função dos preços elevados dos
ingressos de suas apresentações. Um espetáculo que custou milhões em sua produção e
levou ao endividamento do artista, como já foi analisado nos itens anteriores desse
estudo.
A partir do espetáculo Bandido, foi viabilizada uma maior aproximação do
cantor com seu blico, no sentido da reconquista desse último. É exatamente dentro
dessa perspectiva que nossa análise será conduzida, no momento em que o cantor
aproxima-se de seu blico, legitimando-se perante ao mesmo e à mídia pela
popularização de sua imagem. A matéria abaixo citada, realizada por Ana Maria
Bahiana, demonstra a tentativa de desvinculamento do artista de sua imagem construída,
ansiando dessa maneira sua popularização perante o público e a mídia. Ney afirma:
Eu estava me tornado uma coisa de elite, uma coisa fechada. Não eu mesmo,
essa nunca foi a minha intenção. Mas aquele primeiro disco, aquele primeiro
trabalho todo estava conduzindo para isso. Eu estava virando a Maria Callas
da América Latina, uma transa que não tem nada a ver. Qualé, gente? Eu sou
do fundão de Mato Grosso, fui criado em Padre Miguel, minha transa é
povo mesmo, povão, na terra. Adoro a rua, me misturar com as pessoas...
é isso que eu sou, não um bicho raro, uma diva latino americana (NEY, 1976
apud BAHIANA, 1976 ).
O Show intitulado Bandido, ao contrário do espetáculo anterior considerado
por Ney e pela crítica um espetáculo de elite, apresenta-se extremamente o oposto.
Bandido foi idealizado por Ney de forma simples no que diz respeito à sua produção,
sobretudo em seus cenários e figurinos. Sobre essa passagem de seu novo espetáculo
Ney Matogrosso declara ao Jornal O Globo:
Na época em que fiz o primeiro disco....meu Deus, acho que foi a época mais
doida da minha vida! Havia uma expectativa massacrante em cima de mim.
Em cima de todos os três ex-Secos & Molhados é verdade. E quem não
correspondesse a essa expectativa dançava. Como dançou. Mas, em cima de
mim, era ainda maior. Afinal, eu era o estandarte, não é? Foi uma barra sair
dos cafundós do Judas e virar sucesso nacional. De repente eu tinha de ser
absolutamente perfeito, o deixar absolutamente nada a desejar....Aquele
show do Hotel Nacional foi uma morte pra mim. Enquanto estava no palco
até que nem. Mas eu morri, antes e depois. E todo o resto dos shows, tudo,
era eu brigando com o público, querendo provar que eu era eu, que eu podia
fazer o que eu quisesse. Sabe o que acontece agora? Eu me sinto muito mais
à vontade. Eu me sinto realmente livre para fazer o que quiser. Não preciso
provar mais nada a ninguém Eu quero tudo muito, muito simples. Um
cenário bem despojado, que eu possa carregar pra todo lado, porque eu quero
fazer o Brasil todo, principalmente o Norte e Nordeste. Umas tábuas e um
pano vermelho, no fundo, e só. Um cabide pra eu pendurar meus troços, um
115
baú pra eu guardar as coisas e um espelho. Eu quero me arrumar em cena, me
curtir, me vestir em cena. Mostrar pras pessoas que sou eu mesmo, não sou
nada de mais, mostrar como se faz a mágica. Ficar bem perto das pessoas. Eu
vou usar meu brinco de argola que eu uso desde os Secos & Molhados, que
eu curto muito, nunca me separei dele. (NEY, 1976 apud BAHIANA, 1976).
Em julho de 1977 o cantor grava seu 3º e último long play pela Continental
Discos S/A intitulado Pecado
10
. A gravação do LP se deu em função do cumprimento de
contrato estabelecido entre a gravadora e o artista. O repertório desse trabalho já era
parte integrante do espetáculo Bandido, que estava sendo apresentado no eixo Rio-São
Paulo. Durante os meses de abril, maio e junho o cantor estava em temporada no Teatro
Bandeirantes, em São Paulo, devido à grande receptividade por parte do público, essa
permanência na cidade, resultou na gravação de um especial para Rede Bandeirantes de
Televisão.
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 8 - Ney Matogrosso, capa LP Pecado, 1977
Dessa maneira o espetáculo Bandido foi divulgado em rede nacional, por
meio do especial Metamorfose passando, a partir de então, o artista a ter uma maior
penetração nas camadas menos favorecidas. Logo em seguida ao especial, o cantor Ney
Matogrosso inicia pela primeira vez em sua carreira solo uma turnê pelas Regiões Norte
10
Boneca Cobiçada (Bolinha-Biá), Metamorfose Ambulante (Raul Seixas), Desafinado (Tom Jobim-
Newton Mendonça), Da cor do pecado(Bororó), Com a boca no mundo(Rota Lee-Luis Sérgio-Lee
Marcucci), Tigresa (Caetano Veloso), San Vicente (Milton Nascimento-Fernando Brant), Sangue
Latino(João Ricardo-Paulinho Mendonça), Postal de Amor (Raimundo Fagner-Fausto Nilo-Ricardo
Bezerra), Retrato Marron(Rodger Rogério-Fausto Nilo).Produtor Fonográfico-Discos Continental,
Dirão Artística-Cesare Benvenuti, Direção de Produção-Guilherme Araújo,Coordenação de Produção-
Sidnei Santoro, Arranjos-Jorjão, Jorge Olmar, Túlio Mourão e Grupo Terceiro Mundo, Técnicos de Som-
Marcus Vinícius e Renato Viola, Mixagem-Marcus Vinícius, Efeitos Especiais-Wagner Aparecido
Tavares, Adm. de Repertório-Odair Corona, Corte-Milton Araújo, Fotos Capa-Vania Toledo, Direção de
Arte-Oscar Paolillo, Arte Final-Walmir teixeira, Estúdio Vice-Versa(16 canais) S. Paulo.Gravação e
Mixagem-20 de jul a 03 ago de 1977.
116
e Nordeste do Brasil, construindo dessa maneira sua popularização perante o público e a
mídia nas diversas regiões do Brasil.
O especial do cantor Ney Matogrosso intitulado Metamorfose, foi
transmitido pela Rede Bandeirantes de Televisão em 14 de junho de 1977, ás 21 horas,
contou com a participação de cantores da MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque
de Holanda, Milton Nascimento, Emilinha Borba e Moreira da Silva. As participações
dos convidados se deram em forma de depoimento, bem como fazendo dueto com o
cantor em alguns momentos do espetáculo. Dessa maneira as participações desses
artistas, contribuíram para a popularização do cantor, pois se tratavam de personalidades
consagradas dentro do cenário da MPB, tendo grande penetração na mídia e em diversas
camadas populares, sobretudo a cantora Emilinha Borba e o sambista Moreira da Silva,
que atingiam em grande escala camadas menos favorecidas da população.
O especial Metamorfose
11
é iniciado ainda com o artista no camarim
preparando-se para entrar em cena, ao mesmo tempo que concede entrevista. O artista
pinta-se, veste-se, coloca pulseiras, lantejoulas sobre o corpo construindo dessa forma o
personagem que entrará dentro de instantes em cena. O espetáculo é iniciado com a
interpretação da canção Metamorfose Ambulante do compositor Raul Seixas. Em
seguida são apresentadas entrevistas com o público do cantor durante a entrada do
espetáculo, intercaladas com entrevistas do artista gravadas em seu apartamento no
Leblon e no interior do Teatro. Essas entrevistas passaram a serem revezadas com as
apresentações do repertório durante o decorrer do especial, sempre de forma alternada.
Os depoimentos do público são vários, destacamos dois deles. O primeiro de
uma fã com faixa etária próxima aos 30 anos, esta quando indagada pela repórter se o
cantor Ney Matogrosso assustaria a classe média? Esta responde a repórter da Rede
Bandeirantes: “...de uma certa forma sim, ele foge aos padrões e valores da classe
dia. A mesma pergunta é feita a um senhor de faixa etária entre 60-65 anos, este
afirma: “....a maioria não pega o profundo do Ney Matogrosso. Ele quer se mostrar, se
11
Músicas Especial TV Bandeirantes: Metamorfose Ambulante, San Vicente, Mulheres de Atenas,
Gaivota, Usina de Prata (vídeo-clip), Coubanakan (participação especial da cantora Emilinha Borba), Na
subida do morro (vídeo-clip com participação especial do sambista Moreira da Silva), Desafinado (vídeo-
clip gravado com o grupo Terceiro Mundo no apartamento do cantor), Da cor do pecado (vídeo clip
gravado no Teatro Bandeirantes), Bandido Corazon, Tigresa (vídeo-clip gravdo no Teatro Bandeirantes
com participação especial do cantor e compositor Caetano Veloso), América do Sul. O especial consta
ainda com uma entrevista concedida com o cantor no camarim, os depoimentos dos cantores e
compositores Milton Nascimento e Chico Buarque de Holanda, entrevistas com o público do cantor na
entrada e saída do espetáculo, bem como imagens de encerramento onde vemos o cantor conceder
autógrafo ao público presente.
117
libertar, libertação. Eu sou gente, você tem que me aceitar como eu sou”. Durante a
exibição dessas matérias é mostrada simultaneamente a reação do cantor Ney
Matogrosso quando assiste ao depoimento junto com a banda terceiro mundo com cenas
gravadas em seu apartamento. Ney afirma: “Ele saca mesmo”! ao mesmo tempo em que
olhava para o televisor onde era transmitido o depoimento do entrevistado.
Essas duas falas apontam para o sentido da percepção do povo acerca do
trabalho do artista dentro de uma tentativa de aproximação do cantor com seu público.
A própria forma que é configurado o especial, denota essa perspectiva de
popularização do cantor por meio das entrevistas feita a populares, aos s, admiradores,
público presente ao espetáculo e com o próprio artista. Dessa maneira a popularização
do cantor Ney Matogrosso vai sendo construída junto à mídia e ao público
gradativamente ao longo do especial em comunhão entre a fala do cantor, depoentes e
por parte da produção do espetáculo.
Enquanto depoimento antes do cantor Ney Matogrosso interpretar a canção
Mulheres de Atenas (Augusto Boal e Chico Buarque) o cantor e compositor Chico
Buarque de Holanda declara: Eu acho Ney Matogrosso um intérprete fantástico,
fabuloso. Ele interpreta como se fosse um ator em cena no palco. Eu acho que ele é o
maior show-man do Brasil. Sinceramente”. Em seguida o cantor e compositor Milton
Nascimento declara: O Ney é um dos poucos intérpretes sérios que no Brasil. É o
ator e também um autor, colabora com as coisas que a gente faz”.
Essas declarações não pontuam a dimensão do cantor Ney Matogrosso no
sentido do ator que canta por meio da sua performance em cena, bem como apontam
para um caráter eminentemente popular de seu trabalho quando os depoentes afirmam a
singularidade do artista Ney Matogrosso enquanto intérprete no Brasil. A dimensão
geográfica do Brasil e a penetração do artista nas camadas menos favorecidas
popularizam o cantor por meio dos depoimentos.
Continuando esse caráter popular contido no especial Metamorfose, o cantor
gravou um video clip em pareceria com o sambista Moreira da Silva. Ney canta Na
Subida do Morro, tendo como cerio montado no interior do Teatro Bandeirantes um
típico boteco que simbolizava o morro carioca, o universo da malandragem. Sentado a
frente de Moreira da Silva entre garrafas de cerveja e malandros vestidos a caráter ao
redor da mesa, Ney mostra-se vestido de terno claro e chapéu cantando defronte ao
sambista os versos da canção: Na subida do morro me contaram, que você bateu na
118
minha nega”. Moreira da Silva responde no mesmo tom: Você mesmo já sabe que eu
fui malandro malvado, mas nunca abusei da mulher de um amigo”. Nesse ar de
malandragem os dois cantores vão dando continuidade a parceira, onde demonstram
intimidade e familiaridade com os problemas do cotidiano, do subúrbio, do morro.
Anteriormente ao espetáculo, o cantor havia expressado à imprensa seu
desejo em livrar-se de uma concepção criada pela mídia que o associava a uma elite,
ansiando dessa maneira que seu trabalho tivesse uma maior penetração nas camadas
menos favorecidas da população. O artista afirmou em entrevista que nasceu em
Matogrosso e passou parte de sua infância no subúrbio do Rio em Padre Miguel, sendo
dessa maneira um artista mais próximo ao povo e não das elites. Como demonstrado
o cantor declarou: “Eu sou do fundão de Mato Grosso, fui criado em Padre Miguel,
minha transa é povo mesmo, poo, na terra. Adoro a rua, me misturar com as
pessoas... é isso que eu sou, não um bicho raro, uma diva latino-americana”.
(NEY,
1976 apud BAHIANA, 1976)
Reiterando essa fala onde o cantor procura embasar suas referências no
povo, Ney, ao ser indagado sobre sua infância no Especial da Rede Bandeirantes,
explicou que passara parte dela no Rio dividido entre o bairro de classe Média no qual
residia com sua família em Padre Miguel e a favela, onde fugia para brincar. O cantor
declarou:
Foi uma infância comum, jogava futebol,brigava, ia pra escola, fugia de casa,
sabe? A favela me atraia muito. Eu ia muito pra favela. Porque era assim: tinha
a estrada de ferro a Central do Brasil, do lado de era a classe média e do
lado de lá a favela. Eu vivia fugindo pra favela, porque era muito mais
interessante do que do lado de cá”.
Esse depoimento do artista antecede ao video clip gravado juntamente com o
sambista Moreira da Silva. Dessa forma podemos perceber o intuito da montagem do
espetáculo no sentido de popularização do artista junto ao público e a mídia.
Continuando o especial o artista Ney Matogrosso recebe o cantor e compositor Caetano
Veloso, expressão consolidada à época no cenário da MPB. O encontro entre os dois
cantores se dá de forma intimista, ambos sentados em banquinhos em um simples
cenário montado no interior do Teatro Bandeirantes.
O cantor Caetano Veloso canta A tua presença (Caetano Veloso), paralelo a
canção é mostrada cenas dos dois cantores na praia pegando sol, caminhando,
119
conversando. Após esse momento os dois cantores cantam juntos Tigresa (Caetano
Veloso), já gravada por Ney e parte do repertório do espetáculo Bandido, em cartaz
naquele momento em São Paulo - Teatro Bandeirantes. Diálogos vão sendo tecidos no
decorrer do encontro dos artistas, abordando questões acerca da receptividade do
público, aproximando-os do universo mais real, mais humano, tirando-os de uma
condição de distanciamento da platéia, conduzindo-os dessa maneira a uma
popularização de seu trabalho. No final da canção Caetano Veloso beija Ney
Matogrosso. Beijo esse censurado, captado apenas pela lente dos fotógrafos, como
mostra a foto abaixo:
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 9 – Ney Matogrosso e Caetano Veloso, Especial Metamorfose TV Bandeirantes, junho/1977.
O canto, o gesto, o ritmo, enfim o ato performático de Ney Matogrosso no
especial Metamorfose, como já sugere a própria etimologia da palavra de certa forma,
ocupou um lugar dentro do princípio de restauração do espaço cênico que não pode ser
dito através da palavra, da linguagem, em função da censura moral que esse espetáculo
foi acometido pelos órgãos de repressão e censura do regime militar e da dia,
sobretudo no corte dado a cena da troca de afeto entre os dois artistas. Zumthor (1997,
p. 33), nos afirma: [...] a performance é a ação complexa pela qual uma mensagem
poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida”. O que é gerado,
produzido por meio do gesto, traduz a essência do poema. Zumthor (1997, p. 207) nos
elucida essa questão ao apontar o gesto como o fundador de uma temporalidade: “O
gesto gera no espaço a forma externa do poema. Ele funda sua unidade temporal,
escandindo-a de suas recorrências”.
Tal ato performático dos artistas, por meio do beijo, incomodou os órgãos de
repressão e censura do regime militar, bem como uma censura interna da própria mídia
120
de caráter moral. Apesar de o entenderem o sentido da troca de afetos dentro do
contexto da apresentação, deu a perceber, para alguns agentes oficiais da censura e da
mídia, o perigopolítico que estava implícito naquele gesto que sugeria uma homo-
afetividade, um ato pacifista contra o poder em si. Dessa forma a cena do beijo foi
cortada.
Agora no palco dentro do espetáculo o cantor Ney Matogrosso prepara-se
para receber uma das cantoras mais renomadas da Rádio Nacional, Emilinha Borba. O
artista apresenta-se de costas para platéia envolto com uma jaqueta de pelos de macaco,
uma calça jeans colada em seu corpo, cantando a melodia da canção Coubanakan. Ao
perceber a presença de Emilinha Borba, o cantor vira-se para a plaia exibindo seu
peito e braços coberto de balangandãs a cantora vem aproximando-se lentamente do
artista, com trejeitos caribenhos sob a melodia da canção vestida com uma larga saia
preta e vermelha, uma pintura sensual, encenado os primeiros versos de Coubanakan.
Ney Matogrosso cede o espaço principal do palco a cantora, onde essa fica
sendo cortejada pelo artista sob a dança sensual peculiar ao tom do espetáculo. Após a
primeira parte da canção a cantora abre espaço para Ney o qual, por meio de sua
interpretação, retira gritos e sussurros da platéia que no momento fica ainda mais
eufórica. A canção é finalizada com fusão de vozes e estilos de Ney e Emilinha em que
dizem: “minha Coubanakan”.
A participação de Emilinha Borba no especial Metamorfose, é de suma
importância no sentido da concretização da popularidade do cantor Ney Matogrosso.
Embora passada a efervescência da época de ouro do rádio, a cantora Emilinha Borba
ainda contava com grande popularidade junto ao público e a mídia. Popularidade essa
que dava uma maior visibilidade do cantor Ney Matogrosso junto à dia, visto o
caráter de difusão entre o público. A multiplicidade de público do cantor passa a tomar
um sentido mais amplo, sobretudo no que diz respeito a faixa etária. Essa análise iremos
exercer no capítulo de número quatro, quando estudaremos a multiplicidade do público
do cantor.
Aproximando-se ao final do especial o artista Ney Matogrosso canta
Bandido Corazón, trajando calça vermelha colada ao corpo, botas pretas até os joelhos e
chapéu preto. A canção em seus primeiros versos, sugere uma “marginalidade” presente
no “macho” latino-americano, que na interpretação do cantor adquire uma certa
insinuância, um ar de deboche, um duplo sentido, uma paródia a concepção de
“macho”, “marginal”.
121
Bandido, bandido coran/ No deja de te amar/ Bandido, bandido Corazón/
No puedo controlar/ Quero te pedir minhas desculpas/ Isso sempre acontece/
Tenho um coração que é desvairado/ E nunca me obedece/ Eu já sou um cara
meio estranho/ Alguém me disse isso uma vez/ Meu coração é de cigano/
Mas o que salva é a minha insensatez/ Eu que sempre fui chegado ao
romance e aventura/ Eu talvez seja condenado a viver perto da loucura/ Por
isso quero te pedir minhas desculpas/ Eu canto mais uma vez/ Meu coração é
desvairado eu sei/ Mas o que estraga é a sua timidez. (NEY
MATOGROSSO, 1976).
O especial é finalizado com o artista cantando América do Sul e em seguida
é mostrado o artista sem pinturas e na figura de Ney de Souza Pereira, concedendo
autógrafos ao público presente. Mais uma vez é mostrada a popularização do cantor
junto ao seu público, onde lentamente a estrela cede lugar ao artista. O processo de
popularidade do artista junto ao público e a mídia são continuados com o espetáculo
seguinte Feitiço, foco de nossa próxima análise.
2.3 “Feitiço” - Ney está nu! A personificação do atentado à moral e aos
bons costumes
A temporada do show Bandido foi encerrada no dia 02 de dezembro de 1977
em um show realizado na cidade do Rio de Janeiro, no Morro da Urca , na Concha
Verde, dentro de um propósito de popularização desse trabalho. O jornal atesta esse
momento: “Depois de sucesso comprovado e público adoidado pelo Brasil afora, Ney
Matogrosso termina seu show Bandido neste fim de semana na Concha Verde do Morro
da Urca. Cenário para uma autêntica festa de despedida de um espetáculo exemplar”
(DUTRA, 1977).
O trabalho seguinte do artista intitulou-se Feitiço
12
,
um long-play com 10
músicas de compositores nacionais. Tal LP foi mixado nos EUA com moderna
12
Músicas:Bandolero(Lucinha),MalNecessário(MauroKwitko),DosCruces(C. Larrea),Fé Menino(Gilberto
Gil),Não Existe Pecado ao Sul do Equador(Chico Buarque e Rui Guerra),Sensual(Belchior e
Tuca),Rejeição(Ricardo Pavão),Angra(João Bosco e Aldir Blanc),O Tic-Tac do Meu Coração(Alcyr
Pires Vermer e Walfrido Silva).Grupo Terceiro Mundo: Elbert (Bateria, Timbales e Rotonton), Jorjão
(Baixo Acústico e Elétrico),Ary(Guitarra e Bandolin),Jorge Omar(Viola, Violão de 12, Guitarra),Túlio
Mourão(Fender Rhodes e Órgão),Cidinho (Percussão).Músicos Convidados: Dalivo (Violino em
Bandolero), Mitch Holder (Guitarra Base e Solo), Don Grusin(Harp e Moog)Nivaldo Ornelas (Flauta
Doce em Bandolero),Eric Bulling (Arranjo de Teclado e Guitarra em Bandolero),WB (Cordas) Marcio
Montarroyos (Trompete em Dos Cruces),Celso e Jorjinho (Flautas em Mal Necessário),Regina, Mariza e
122
tecnologia, contando com a colaboração de músicos americanos e do produtor Mazzola,
que formou uma parceria duradoura com o cantor Ney Matogrosso na nova gravadora, a
multinacional WEA.
Hoje, chega as lojas de todo o país o quarto Lp de Ney Matogrosso, Feitiço,
mixado nos estúdios da Warner, em Los Angeles. Feitiço é um Lp
tecnicamente perfeito. E isso não se deve apenas a parafernália sonora que
André Midani colocou à disposição do cantor em Los Angeles. Nem aos 36
canais em que ele foi mixado ou a participação de músicos e arranjadores
norte-americanos. O mais importante é que, pela primeira vez, Ney
Matogrosso consegue separar o cantor do show-man, obtendo, num disco, o
mesmo rendimento de seus shows. Esta é, inegavelmente, a conseqüência
mais positiva de sua transferência para a Warner. Na nova gravadora, Ney
conseguiu desligar-se durante cinco meses das apresentações ao vivo,
dedicando-se integralmente à preparação do novo disco. Foi também na
Warner que ele encontrou Mazzola, o produtor de Feitiço, a quem é
atribuída, pelo próprio Ney, uma participação especial no trabalho.
Resultado: Feitiço, é um disco impecável, mostrando Ney Matogrosso no
melhor de sua forma. Sua voz nunca esteve tão cristalina e nunca, ele, usou
tão bem (LACERDA, 1978).
Lançado em julho de 1978 o long play Feitiço trazia uma imagem dual do
artista. Na capa do LP, o cantor mostrou simplesmente seu rosto em closet, sem
pinturas, peito nu ao lado de rosas brancas. no encarte, o artista mostrou-se seminu,
deitado sobre um fino véu de noiva, envolto por rosas brancas, com boca e olhos
levemente contornados. Dessa maneira o cantor anunciou a possibilidade de
sensualidade ao sexo masculino, que nos anos 70 era permitida apenas ao sexo
feminino.
Evinha (Vocal em Menino),Jeff Porcaro (Bateria em o Existe Pecado),Jay Gradon(Guitarra Solo e
Base; arranjo de Base em Não Existe Pecado),David Foster(Fender Rhodes em Não Existe
Pecado),Paulinho da Costa(Congas em Não Existe Pecado),John D'Andrea(Sax e Arranjo de Orquestra
em Não Existe Pecado),David(Trumpete em Não Existe Pecado),Max So(Trombone em Não Existe
Pecado),Maurício Heinhorn(Gaita em Sensual),Ubirajara(Bandolim em Rejeição),Joah, Cosne e
Arlindo(Vocal em Rejeição),Mu(Piano em O Tic-Tac do Meu Coração),Pepeu(Bandolim em O Tic-Tac
do Meu Coração),Abel Ferreira (Clarinete em O Tic-Tac do Meu Coração).
123
Fonte: Matogrosso site oficial (2006). Fonte: Matogrosso site oficial (2006).
Figura10-Ney Matogrosso, capa LP Feitiço, 1978 Figura 11-Contra-capa LP Feitiço,1978
Essa sensualidade esteve sempre presente nas imagens dos elepês do cantor,
portanto, a foto do encarte de Feitiço, tornou bem mais acentuada essa sensualidade
devido ao tom provocativo que sugeria a nudez do artista, rompendo dessa maneira com
as fronteiras de gênero. Com a dimensão estética do corpo masculino, por meio de sua
nudez, o artista fez vir a tona toda uma discussão referente a um referencial do que
vinha a ser “macho” naquele momento. O jornalista Marco Antônio de Lacerda em
matéria publicada no Jornal da Tarde retrata esse momento:
Ney Matogrosso continua sendo completamente diferente de tudo o que
na música brasileira, no show-bizz brasileiro. Aí esele de volta, em disco e
show, e em sua estranha dualidade: o garotão que anda apressado pelas ruas
do Leblon e a “ave rara do paraíso”, sobrevoando os sonhos eróticos de uma
enorme platéia, sempre atenta ao próximo palco em que ela vai pousar. Não
causaria espanto algum se Ney fizesse parte da tripulação da nave-mãe, no
grand-finale de “Close Encounters”. Ou se fosse descoberto, um dia, na selva
amazônica, entre felinos de dentes afiados. Ambos os personagens convivem
bem, numa relação de dependência como a que existe entre os dois lados de
uma mesma moeda. Talvez porque ambos escolheram a vulnerabilidade
como única forma de tornar-se sensíveis à realidade. E ser vulnerável, neste
caso, é apenas um outro jeito de dizer que Ney Matogrosso nunca teve nada a
perder. Daí, sua confiança sem limites no tipo de arte que faz: um movimento
eterno de ilusões e fantasias sensuais, cujo objetivo mais alto é fascinar as
pessoas. O que mais pode um artista fazer por seu público, além de fasciná-
lo?(LACERDA, 1978).
Logo nos primeiros dias do lançamento do long-play Feitiço em julho de
1978, intensificaram-se os vetos de caráter moral pelos órgãos de repressão e censura do
regime militar em relação ao novo trabalho do cantor. A censura recolheu o LP do
mercado por entender que tal nudez representava um afronto a moral e aos bons
costumes da época. Após negociações entre a gravadora e a censura, o long-play voltou
124
a circular no mercado, porém seguramente lacrado em envelopes plásticos. Esse
episódio é atestado em matéria publicada no jornal O Globo:
Pensando bem, o que mais resta a Ney Matogrosso? A capa dupla do último
Lp, aberta de par em par na vitrina de uma popular loja de departamentos
carioca, dava a resposta: nu entre u e rosas brancas, Ney oferecia sua
beleza felina, angulosa e sensual à curiosidade pública. E como! “Ordens
superiores” exigiram que a “ofensa á moral e aos bons costumes” fosse
removida da vitrina. Com negociações, o display voltou, mas agora
pudicamente semi-oculto só pode ser vendido em envelopes de plásticos
lacrados (BAHIANA, 1978 a).
Sobre a nudez do artista e veto da censura de maneira bita ao LP, a
senhora Joana Albuquerque
13
nos fala desse momento em entrevista concedida:
Quando o Ney lançava um disco novo, antes ficava tocando na rádio bem
muito a música principal no caso era o Bandoleiro. Eu ficava ligando pra
loja todo dia pra saber se tinha chegado, porque passava um tempinho pra
chegar aqui em Fortaleza primeiro era no Rio e São Paulo e depois vinha
pra cá, antes era assim. Às vezes custava muito pra chegar e quando tinha um
amigo por agente pedia pra trazer logo. Eu estava em casa ouvindo o rádio
e anunciou que o LP “tava” a venda. Vixe Maria! Deixei tudo e corri pro
Center Um, é o novo! Eu morava perto, fui andando igual a uma doida, não
troquei nem a roupa. Quando comprava um disco do Ney sabia que algo ia
acontecer de diferente na minha vida. Ficava o tempo inteiro ouvindo, como
dizia o povo até furar o disco. Cheguei na loja e tomei foi um susto, tinha era
um monte de gente já comprando, e eu perdendo. Tinha uma moça lá pedindo
pra fazer uma fila, mas eu nem liguei, entrei e peguei logo o meu disco. Ai
tomei outro susto, pois o disco tava fechado com um plástico, achei esquisito.
Eu disse: valha, que diabo é isso!? Perguntei pra atendente da loja e ela disse
que era assim mesmo, já tinha chegado desse jeito. Fui pagar o disco,
derrubei o dinheiro todinho no chão de tão nervosa, sai da loja, sentei num
banco e abri. Meu Deus do céu! Eu quase morro criatura! Dei foi um pulo e
gritei: O Neytá” nu! O Neytá” nu! As pessoas ficaram olhando sem
entender nada. Foi à coisa mais linda que já vi. O Ney tava deitado assim de
lado em cima de um monte de rosas brancas e um u de noiva estendido
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 04).
O cantor Ney Matogrosso em entrevista a Ana Maria Bahiana - jornal O
Globo, comenta o epidio de censura em relação à nudez de seu corpo, afirmando que
o ato da censura seria usado para divulgar mais seu novo trabalho.
Censura? Acho ótimo. É promoção, divulga mais ainda. Eu nem dou bola.
Nesse país, sabe o que acontece com o que a censura implica? serve de
promoção, divulga mais ainda. É ótimo. Eu sei que sou um mistério para as
pessoas, e que isso as fascina. Sei que elas não conseguem me pegar, me
rotular, dar um nome... acho ótimo. Acho ótimo que até elas se grilem
13
Joana Albuquerque, 58 anos, casada, dentista, natural de Fortaleza-Ce, residente em Fortaleza.
125
comigo, que fantasiem, porque sei que, assim, de algum modo, eu toquei em
alguma coisa adormecida dentro delas, alguma coisa esquecida, que elas nem
consideravam (NEY, 1978 apud BAHIANA, 1978 b).
As reações por parte do público em torno desse controvertido encarte foram
múltiplas, indo desde as expressões de idolatria até as de cunho homofóbico. Houve um
sentimento de hostilidade em relação a esse trabalho por uma parte de um blico
opositor à performance do artista dentro de um aspecto moral, bem como de total
receptividade e idolatria por parte de alguns admiradores. Isso se fez notório, quando
realizávamos entrevista com a senhora Joana Albuquerque, quando essa pediu uma
pausa e retirou dois elepês de sua discoteca e afirmou: Olha , Flávio, a ruindade que
fizeram. Pode? Eu dei uma festinha aqui e fizeram isso com meu disco”
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 03).
O long-play apresentado pela Senhora Joana Albuquerque, se encontrava
danificado sobre o rosto e próximo aos órgãos genitais do cantor. Os olhos apareciam
riscados de tinta vermelha, bem como parte lateral de suas nádegas que se encontravam
sutilmente descobertas. Os olhos do cantor Ney Matogrosso estavam pintados de
vermelho ofuscando totalmente a visão, bem como as nádegas que foram cobertas pela
mesma tinta vetando parcialmente sua nudez.
O encarte ainda trazia palavras com sentido pejorativo de ataque à conduta
moral do artista como pederasta”, “viado sujo”, “mata esse baitola”, “bicho
asqueroso”, sem vergonha”, “cabra safado”, toma jeito de homem”, escrito de caneta
esferográfica vermelha com um X” em cima de toda a imagem seminua do cantor e um
chifre desenhado na parte superior da cabeça do cantor. Essa violação a imagem do
artista, apontava para uma tentativa de censurar aquela nudez atentatória à moral e aos
bons costumes.
Ai, Flávio, quando vi, eu morri de ódio. Quase me acabo de chorar. Eu na
hora, queria saber quem foi aquele monstro que fez isso, pra eu matar.
Mas tu me acreditas que até hoje eu nunca descobri. E sabe o que foi que eu
fiz ? Fui na loja e comprei mais dois (risos). Um eu pedi pra meus amigos
escreverem sobre o Ney e o outro eu guardei na minha colão. E o que
“tava” com os nomes feios eu escondi, não mostro pra ninguém. Deus me
livre de alguém ver isso do Ney. Eu “tô” te mostrando, Flávio, porque você é
um rapaz educado que compreende, um estudioso dele. É por isso. Agora,
esse outro aqui, a diferença. Ah, esse sim! Quantas palavras lindas que
disseram do Ney. Ah! Isso sim, é a verdade e não aquilo lá de gente doente e
ruim, maldosa, sem educação, desclassificada, invejosa, sem composturas,
sem Deus e amor no coração. Isso é falta é de Deus (ALBUQUERQUE,
2006, p.04 e 05).
126
O outro LP em que a senhora Joana Albuquerque me apresentou, tinha
descritas em caneta esferográfica de cores, azul, dourada e preta os seguintes adjetivos e
frases: “exuberante”, “lindo”, “bonito”, “divino-maravilhoso”, “fantástico”, “tesão”,
“jóia rara”, “Ah! Se caísse na minha rede”, talentoso”, “bravo”, “fabuloso”, “arrasou
Ney”, “escândalo”, audacioso e genial”, “Isso sim é que é ser subversivo”, “vamos
fugir?”, “casa comigo”. Essas frases, adjetivos, palavras, quase todas eram
acompanhadas de desenhos de corações e desenhos de bocas pintadas com batom
impressas por meio de beijos dados sobre a imagem do cantor.
Acerca da questão da assimilação do público do cantor Ney Matogrosso,
iremos dar um tratamento mais aprofundado no capítulo de número quatro, quando
estaremos analisando a multiplicidade do público do artista. Será analisado um público
implícito representado pelos militares, um blico ligado ao imaginário feminino e por
último o público gay do artista centrado no eixo Rio-São Paulo.
2.3.1 A WEA e a ascensão da popularidade do artista junto ao público
e a mídia
Após três elepês lançados pela gravadora Continental o cantor Ney
Matogrosso, realiza sua primeira troca de gravadora, passando da Continental discos
S/A para a multinacional WEA, dando assim continuidade ao seu processo de
autonomia artística frente a esse mercado fonográfico. O jornalista Marco Antônio de
Lacerda faz uma breve menção à transição das gravadoras no caderno de cultura do
Jornal da Tarde: Um cantor que trocou os “maus tratos” da Continental, sua primeira
gravadora, pelo conforto de uma multinacional. Ney diz: “adoro ser bem tratado.
(LACERDA, 1978)
No final dos anos setenta no Brasil são estabelecidas várias multinacionais
no setor fonográfico, advindas da expansão do mercado internacional em função da
chamada “onda” das discotecas. Isso refletiu diretamente em nosso mercado, decorrente
do projeto de expansão da música norte-americana em busca da fatia do mercado de
outros países. O resultado dessa penetração no mercado nacional deu-se com o aumento
exorbitante das vendas do produto musical americano, a inauguração de uma discoteca
carioca no bairro da Gávea e o lançamento de uma novela acerca da tetica no horário
127
nobre da Rede Globo de Televisão. Todas essas execuções foram para atender a
demanda desse movimento musical que se estabeleceu no mercado nacional, tendo
como público alvo a juventude. O produtor musical Marco Mazzola, comenta esse
evento em seu livro autobiográfico Ouvindo Estrelas:
Nelsinho montou a discoteca Dancin´Days, num shopping da Gávea, zona sul
do Rio de Janeiro. Algum tempo mais tarde, e muito no embalo dos inúmeros
sucessos de As Frenéticas, Nelsinho resolveu reabrir a casa no alto do morro
da Urca, que veio a ser batizada de frenetic Dancin´Days Discothèque. O
sucesso foi tremendo. A direção da Central de Novelas da Rede Globo,
vendo o que estava acontecendo, convidou as Frenéticas para fazer a abertura
que receberia o nome de Dancin´Days (MAZZOLA, 2007, p. 97).
Esse período ficou denominado pela grande dia como a “febre das
discotecas”, vinda dos Estados Unidos e que assolou todo o Brasil de forma bastante
contundente. Esse período representou um momento de dificuldade para o mercado
fonográfico nacional, pois a música internacional predominou em nosso mercado,
ofuscando dessa maneira a vendagem de long-plays de artistas da MPB. No entanto, o
mercado nacional reage adaptando-se a essa penetração da música americana e cria a
partir de então uma “versão” nacional para a chamada febre” das discotecas
(MAZZOLA, 2207).
É dentro desse contexto que o artista Ney Matogrosso dá início ao seu
processo de auto-empresariado, concomitantemente com a ascensão de sua
popularização e autonomia frente à indústria fonográfica e público. A partir de então, o
cantor passou a penetrar maciçamente numa fatia de público vindo das camadas menos
favorecidas, pois os setores da classe média, sobretudo da juventude, estavam mais
voltados naquele momento para o fenômeno das discotecas.
A jornalista Ana Maria Bahiana, tenta compreender esse momento de
transição da carreira do cantor analisando a nova formação de platéia que se a partir
de então em torno do artista em matéria publicada no Jornal O Globo:
Ana Maria Bahiana: Suas platéias são cada vez mais populares, as filas de
trabalhadores e domésticas para obterem um autógrafo seu no lançamento do
disco (na mesma loja de departamentos que exibiu a controvertida capa).
Logo você que no icio de sua carreira , durante o início de sua carreira solo,
parecia se inclinar tanto para o lado das elites, da sofisticação? Logo você, o
homem do nu, do corpo exposto, da dubiedade, da sensualidade.
Ney Matogrosso: Olha, eu o tenho assim dados para teorizar em cima
disso, pra explicar. Mas acho que quem tem problemas com o corpo, sexo,
moral, essas coisas, é a classe média. O povo não. O povo sempre me tratou
128
com muito carinho, sem grilos. O povo está muito preocupado com coisas
mais sérias (BAHIANA, 1978 b).
Essa ascensão da popularização na trajetória do cantor refletiu diretamente
no tipo de matéria veiculado pela mídia. As relações sociais dentro do cotidiano do
artista, passaram a serem exploradas pela dia, devido à nova formação de platéia
oriunda de camadas sociais menos favorecidas. O jornalista Marco Antônio de Lacerda
atesta esse episódio, quando realizou matéria acerca da privacidade do cantor mostrando
sua intimidade, sua forma de lidar com o cotidiano em seu apartamento no Leblon.
Ao meio dia muito antes de Ney Matogrosso acordar, o telefone tocou
incontáveis vezes em seu apartamento. O último a chamar foi Márcio Braga,
presidente do Flamengo, convidando Ney para assistir Botafogo e Flamengo,
no Maracanã. Pouco antes tinha sido Kiki Karavaglia, confirmando sua festa
de aniversário para aquela noite e insistindo para que Ney não deixasse de
comparecer. Agora é a vez de uma moça, que prefere o revelar o nome, e
que diz estar esperando o cantor, sem falta”, para tomar licor de morango
em sua casa. Até às 3 da tarde, o telefone toca pelo menos mais uma centena
de vezes, uma legião de pessoas que se anunciam invariavelmente como
“amigos íntimos” de Ney. Todos os chamados são pacientemente atendidos
por Luizinho, secretário do cantor, que já mandou mudar três vezes o número
do telefone. Inutilmente. O novo mero ainda não consta da lista telefônica,
mas caiu misteriosamente na mão do povo, de Ipanema à Baixada
Fluminense. Às 3 da tarde, Ney Matogrosso acorda numa gigantesca cama,
capaz de abrigar confortavelmente dezenas de pessoas. Dona Joana, a
cozinheira, vai, então, enfrentar seu teorema diário: Quantos sucos de fruta
levar ao quarto? Ney garante que, no inverno, ela nunca teve que preparar
mais de seis. “Agora no veo...” A essa altura, o expediente começou no
apartamento 104 do velho prédio à beira-mar, na praia do Leblon
(LACERDA, 1978).
A matéria continua mostrando essa popularização na vida social do artista
agora de forma mais próxima com a presença de fãs que chegam até o apartamento do
artista e amigos próximos freqüentadores do apartamento 104 no Leblon:
A Campainha também não deixa por menos. É apertada por gente das mais
diversas camadas da população do Rio de Janeiro. Uma fã, que soube que a
motocicleta de Ney tinha sido roubada, veio trazer outra, novinha em folha,
de presente. Um amigo, convidando para ir à praia. Uma frenética. Uma
delegação do gay-power, oferecendo um relógio-despertador de presente,
“como recompensa por sua incansável batalha....”. Uma vizinha, a Frenética
Lidoca, que entra apressada pela casa, pedindo uma chícara de fubá e alguns
grampos emprestados. O economista Seninho e o compositor Paulinho
Mendonça. Um costureiro. Mais uma Frenética (indignada com a censura,
que acaba de proibir duas músicas das meninas: “Lesma Lerda” e “Desacato
à Autoridade”). O ex-Secos & Molhados rson Conrad, logo seguido pelo
empresário Guilherme Araújo, um estudante de Letras, uma repórter e um
fotógrafo. E mais uma Frenética. As pessoas se acomodam numa grande sala
que, como o resto da casa, é uma viagem por diversos estilos da história da
129
decoração: plantas, móveis barrocos, artesanato chinês e indiano misturam-se
a gatos, tartarugas, peles, objetos de arte, quadros eróticos. E almofadas.
Sobre os móveis, dezenas de caixas de diversos tipos e tamanhos,
escondendo esmeraldas, ametistas, rubis e diamantes: falsos. Por toda a casa,
surpresas esperam os mais curiosos. Algumas, inesquecíveis. Depois da
meia-noite, por exemplo, balançam-se coqueiros, caem pitangas
(LACERDA, 1978).
Continuando esse processo de ascensão de sua popularização frente à mídia
e ao público, o artista declara em manchete à Folha de São Paulo: Eu o sou uma
estrela”. Dessa forma o cantor tenta desmistificar os resquícios da construção de sua
imagem relacionada ao universo das celebridades artísticas. Mais à frente o artista põe
em questão o que venha ser uma estrela, mostrando seu princípio de autonomia artística
presente desde sua saída da cidade de Bela Vista no Estado de Mato Grosso do Sul,
citando sua passagem pelo grupo Secos & Molhados até seu embate as imposões do
mercado fonográfico dentro da busca por sua autonomia artística. Vejamos as
declarações do artista em torno da construção de sua auto imagem agora de caráter
popular, bem como sua tentativa de tornar-se um artista autônomo:
As pessoas finalmente entenderam que estou aqui para cantar. O resto – com
quem ando, como durmo não é importante. Embora goste de brilhar, não
sou uma estrela, mas um artista. E, afinal, quem é Estrela? Quem anda de
óculos escuros para o ser reconhecido? Eu sempre fiz o que quis. Com
dezessete anos, sai de casa para não ter que dar satisfações a ninguém. E olha
que isso ocorreu em 59 e não em 70, quando cair na estrada virou moda. Por
isso, não seria agora, aos 37 anos, que eu deixaria de impor a minha vontade.
Não quero ficar somente cantando. Sempre fui muito livre e essa
obrigatoriedade de gravar, de fazer shows faz com que eu me sinta preso. E
eu não gosto de me prender a nada. Tenho 37 anos e a liberdade de afirmá-
los. Não tenho medo da velhice, porque quando o corpo começar pesar, a
mente, com certeza, continuavoando num plano tão alto quanto o de hoje
(CAMBARÁ, 1978).
Dentro dessa perspectiva de popularização perante a dia e ao público, o
artista inicia de fato o processo de seu auto-empresariado, passando a participar
efetivamente nas tomadas de decisões relativas ao universo do show business. Atitudes
como o contrato e pagamento de seus músicos, aluguel de espaços para realização de
seus shows, bem como os demais encargos que envolvem a indústria da música são
agora acompanhados pelo artista. Essa transição deu-se de forma gradativa juntamente
com seu empresário Guilherme Araújo. Vejamos esse momento de transição em matéria
publicada no Jornal da Tarde:
130
Um artista que acabou convertendo-se numa fonte de sucesso e altos lucros:
seu último show rendeu sete milhões de cruzeiros o próprio Ney quem
paga os seis músicos do Terceiro Mundo, som, iluminação, aluguel de teatro,
20 por cento do empresário e passagens de avião e hotel para as 13 pessoas
que integram a troupe). Essa ascensão é atribuída também à eficiência de um
competente empresário: Guilherme Araújo (LACERDA, 1978).
O processo de auto-empresariado do cantor Ney Matogrosso analisaremos
com maior afinco no capítulo de número três. No transcorrer desse estudo abordaremos
o caráter parcial da concretização de sua autonomia artística frente às gravadoras com a
fundação da Mato Grosso Produções Artísticas, bem como a sua retomada de lugar
enquanto fenômeno de massa, perante o público e a dia.
2.3.2 Ney na Galeria Alaska - Uma exuberância subversiva entre o
glamour e o underground gay
Tanto a divulgação do LP Feitiço como o espetáculo que levou o mesmo
nome, foi pensado de forma estratégica pela nova gravadora do artista. Esta incluiu
especiais para TV e uma turnê pelas principais capitais das regiões do Norte e Nordeste
do Brasil, seguindo depois para o eixo Rio-São Paulo. O Jornal da Tarde noticia em
relação a esse episódio:
A partir de hoje, Matogrosso volta novamente à estrada para cumprir um
extenso roteiro de lançamento do disco nas principais cidades brasileiras. A
campanha planejada pela Warner, inclui ainda uma maratona de gravações:
Fantástico, Brasil-Pandeiro, Globo de Ouro, especiais e entrevistas. A
aventura termina em setembro, quando, finalmente, estréia o novo show, com
o mesmo nome do álbum. Outra maratona: Feitiço entra em cartaz em
Manaus e faz uma escalada por todo o país, com temporada no Rio e em São
Paulo (LACERDA, 1978).
Após curta temporada na cidade de Manaus, o espetáculo Feitiço percorreu
as Regiões Norte e Nordeste. A exemplo de apresentações feitas no Nordeste durante o
segundo semestre de 1978, destacamos a cidade de Fortaleza, visto o caráter de
popularização analisado em item anterior, inerente a esse momento da carreira do
artista. O espetáculo foi realizado no Centro de Convenções entre os dias 10 a 13 de
Outubro de 1978, após a temporada o artista, juntamente com o jornalista Luiz Cruz,
131
visitou uma penitenciária feminina. O colunista Edmundo Vitoriano do Jornal O Povo
atesta esse episódio: Ney Matogrosso, na foto com Luís Cruz da biblioteca Circulante,
visitou o presídio feminino e foi homenageado pelas detentas” (VITORIANO 1978).
Ao contrário de outros espetáculos em que o artista estreava seu espetáculo
no eixo Rio-São Paulo, Feitiço delineou o caminho inverso estreando em Manaus e em
seguida contemplando as principais capitais das regiões Norte e Nordeste, que sempre
ficavam por serem as últimas na transcorrer da turnê pelo país. Isso atesta o caráter da
popularização desse artista, em função da penetração obtida pela grande mídia nas
diversas regiões do país.
A única apresentação no ano de 1978 do show Feitiço na cidade do Rio de
Janeiro deu-se em show beneficente na favela do Vidigal, com fins meramente
filantrópicos, tendo sido pouco foi divulgado pela dia naquela ocasião. A jornalista
Leda Nagle, atesta esse acontecimento, afirmando. .... na sua única apresentação
carioca, subiu o Vidigal com renda destinada aos moradores da favela que, em mutirão,
estão construindo com o dinheiro a infra-estrutura do morro.”(NAGLE, 1979)
Após o término da turnê pelas regiões Norte e Nordeste, o artista inaugura o
Teatro da Galeria Alaska
14
-RJ, abrindo temporada oficial do espetáculo Feitiço em
Janeiro de 1979. Antes de se transformar em um Teatro, no espaço da Galeria Alaska
funcionava um cinema pornô, freqüentado por um público predominantemente
homossexual. O local era conhecido entre os freqüentadores como sendo um espaço de
encontro entre homossexuais masculinos. Nelson Mota, jornalista de O Globo, comenta
a esse respeito: Seu show que inaugura uma ampla e simpática casa de espetáculo onde
funcionou anos a fio o temido e lendário cinema Alaska reserva poucos, raros mesmo,
espantos ao seu fiel e crescente público (MOTTA, 1979).
A repórter Leda Nagle atesta esse acontecimento acerca da inauguração do
Teatro da Galeria Alaska, em matéria publicada no Jornal O Globo:
Vestido de ouro e prata, entre bananeiras e purpurina, Ney Matogrosso
estréia, hoje à noite, com um show chamado “Feitiço, um novo teatro no
Rio: o Teatro Alasca. Durante os três últimos meses, Ney enfeitiçou platéias
do norte, nordeste e interior paulista com sua voz rara de tenor branco e com
a atraente flexibilidade de seu corpo bonito. Esse mato-grossense tinhoso e
teimoso chega ao Rio em pleno verão, para fazer um show leve, alegre,
14
A Galeria Alaska fica situada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. O local era freqüentado à época
por grupos sociais estigmatizados entre: homossexuais masculinos e femininos, prostitutas, travestis,
transexuais, michês (garotos de programa) entre outros grupos sociais que eram postos à margem do
processo social. O show Feitiço de Ney Matogrosso inaugurou o Teatro Alaska onde permaneceu em
temporada de 03 a 23 de janeiro de 1979, sempre às 21 horas.
132
despretensioso. “Feitiço” foi um show concebido para clube e como tal
funcionou. Visitou também alguns estádios com capacidade para três mil
pessoas (NAGLE, 1979).
Ney Matogrosso ainda em entrevista à jornalista Leda Nagle tenta justificar
o porquê da inauguração do Teatro da Galeria Alaska em função de ser um espaço
alternativo de circuito underground.
se fala no teatro Alaska (em forma de Arena, 400 lugares) como parte de
um templo alegre. Ele ri. Templo por quê, tem santo? Mas fica sério para
explicar que, ao decidir fazer a temporada, ele tinha duas opções. O Teresão,
“sem ar condicionado”, um desrespeito ao público e ao artista” e um teatro
novo, com ar condicionado, para ser inaugurado no veo( NAGLE, 1979).
O espetáculo Feitiço foi concebido dentro de uma perspectiva que remetia os
tempos áureos da década de quarenta de nossa música com os musicais produzidos em
estilo de Teatro de Revista, tendo como cenário bananeiras e bananas, apontando para o
clima tropical de nosso país. Ney Matogrosso vestia-se com uma folgada calça de cetim
de tonalidade amarelo escura, com lantejoulas na cabeça, relembrando um clássico
cantado por Carmem Miranda O tic-tac do meu coração. A outra parte do espetáculo o
artista aparecia cantando Não existe pecado debaixo do equador de Chico Buarque de
Holanda e Rui Guerra trajando calça, luvas e boina de couro preta, visual associado à
chamada cultura do couro à época, ligado ao movimento gay-power. O episódio é
descrito:
A roupa foi concebida por Ney e montada no corpo dele por Ricardo
Zambelli, o mesmo executor de todas as outras criações de Ney. O cenário,
de Fernando Pinto, também foi imaginado por Ney e revive o estilo teatro de
revista, entre 1.500 bananas (na noite de estréia a maior parte delas será de
verdade, a porque não bananas de plástico em número suficiente no
mercado) envoltas em muita purpurina. Pena que Ney teve uma tarde para
conhecer o palco e suas escadas, mas ele tem certeza que vai “deitar e rolar”.
Na segunda parte, ele vem em preto e prata. O teatro de revista será anulado
pela iluminação e Ney estará sentado numa cadeira preta que repete o
tacheado em prata da camiseta cavada e da roupa de couro. Ney vai entrar e
sair do palco sem falar palavra. A idéia, pelo menos, é esta. Se o público falar
com ele, certamente vai responder, como das outras vezes, em outros shows.
isto. Ney diz: “Primeiro porque eu o tenho nada de importante a dizer.
Depois, porque o que eu tenho a fazer é chegar, cantar e ir pra casa. O que eu
estou cantando é o meu texto, é o que eu tenho a dizer” (NAGLE, 1979).
133
Sobre a moda da época das roupas de couro, oriundas do estilo de vida gay
norte-americano, vindo da cidade de São Francisco, representados pelo movimento gay-
power, o senhor Marcos Alcântara
15
nos narra esse momento nas apresentações do
artista no Teatro da Galeria Alaska.
Flávio Queiroz: Lembra em especial da temporada do show Feitiço em 1979
no teatro da Galeria Alaska? Marcos Alcântara: Eu ia pro Rio cuidar de uma
cliente chic, depressiva, tomava todas as bolas pra curar a deprê, era assim da
pá virada mesmo, louca. Em seu apartamento no Leblon, enquanto trabalhava
ficava ouvindo uma música do Ney que foi uma paixão, um caso de amor
que me fez sofrer muito, mas passou. Acho que ajá morreu. Pelo menos
pra mim ele já morreu, não tive mais notícias. A música tinha tudo haver com
o que eu estava passando era Mal Necessário. Lindíssima, não esqueço nunca
essa música. Ela faz parte de minha vida, era do tempo da Galeria. Era
uma turma bem grande quando saíamos no Rio pra cair na noitada. O tempo
que muito lembro do Ney era das roupas de couro que todo mundo usava, era
assim como uma moda. Um amigo que se foi da “maldita”, imitava muito
bem ele em um bar da lagoa e outro em uma boate ali pelo baixo e usava
as roupas de couro, era a onda o barato da época, agente curtia muito. À
Galeria ia na folga do domingo, pois sábado o salão era lotado e terminava
tarde da noite, às vezes, o último cliente. Fui assistir ao show do Ney, pois
era louco por ele, queria ser assim como ele, estrela. Mais eu era estrela no
meu salão. Quando chegamos os ingressos haviam acabado, mas no outro
domingo fui mesmo sozinho. Lembro dele cantando com uma calça preta de
couro colada, achei linda e mandei fazer uma pra mim igualzinha, daí só saia
com ela, era linda, me sentia (ALCÂNTARA, 2006).
A roupa de couro preto à qual a jornalista Leda Nagle e de nosso depoente se
referem, está ligada a movimento gay-power. Apesar do artista Ney Matogrosso em sua
trajetória artística o ter tomado posições a respeito das questões do movimento gay,
este mantinha vínculos de cordialidade e admiração com os respectivos representantes
do movimento daquele momento, como nos mostra o Jornalista Marco Antônio de
Lacerda em reportagem sobre o cotidiano do artista em seu apartamento no Leblon-RJ,
“ (...)
uma delegação do gay-power, oferecendo
um relógio-despertador de presente,
como recompensa por sua incansável batalha(...)” (LACERDA, 1978)
Para melhor compreendermos essa significação do cantor Ney Matogrosso
dentro do universo gay, estabelecido a partir das relações sociais na Galeria Alaska,
durante a temporada de seu espetáculo Feitiço em tal espaço, observemos o depoimento
15
Marcos Alcântara, 66 anos, cabeleireiro e maquiador, natural de Petrópolis-RJ, residente no Rio de
janeiro.
134
do senhor Afonso Souza
16
, residente na cidade do Rio de Janeiro e então freqüentador
da Galeria.
Flávio Queiroz: Lembra em especial da temporada do show Feitiço em 1979
no teatro da Galeria Alaska?Afonso Souza: Assisti a muitos shows do Ney
Matogrosso. E esse da Galeria Alaska, “tôlembrando agora mesmo, porque
havia me indagado. Lembro de uma temporada dele no Teatro de que
antes era um cinema pornô, encontro casais de gays da pegação forte mesmo.
Aquele espaço funcionava como um espaço de resistência e de subversão
contra os caretas, ou melhor, falsa-moral. Era o espaço dos gays, dos
travestis, das prostitutas, dos michês, ladrões, marginais, enfim de todos os
segmentos sociais marginalizados, que viviam a sombra, afinal estávamos
dentro de uma ditadura militar. A galeria era ao mesmo tempo glamour e
underground, pois tinha a festa, mas tinha polícia, ladrão, tinha tudo naquele
pedaço. Todos muito discriminados nessa época, como ainda são hoje, porém
hoje essas questões estão mais arejadas, concorda, Flávio? Você como
intelectual percebe isso? O fato de Ney ter feito essa temporada na Galeria
Alaska, abriu portas e lembro que gerou muita discussão, sobretudo na
imprensa e entre nós freqüentadores. Eu era freqüentador nas sextas e
sábados, no finalzinho dos setenta e te falo que o Rio era uma outra coisa,
não tinha essa violência que hoje tem aí. Claro que boa parte dela vendida
pela mídia, mas era uma outra coisa. Se o Rio fosse Galeria Alaska e
arredores seria luxo, um grande baile gay.... pra mim “tava” ótimo não
precisava dessa coisa de garota de Ipanema, calçadão de Copacabana, coisas
do tipo criadas pela mídia e distribuídas pro mundo como cartão postal do
Rio, é ridículo. (SOUZA, 2006).
Flávio: Fale-me, por gentileza, sobre o show Feitiço da Galeria Alaska.
Afonso Souza: Te falo, que esse tempo era algo assim ontológico e a
presença de Ney Matogrosso na Galeria foi algo inesquecível, pois houve
uma maior circulação de pessoas, de gente, ampliou a freqüência, misturou as
tribos. Do show lembro quase nada, lembro mais assim de tudo da Galeria.
Ficou mais interessante ver tanto a “bicha louca” acompanhada de sua
melhor amiga, aquelas dondocas socialites e ver também jornalistas e
intelectuais para ver o Ney. O público de Ney sempre foi e ainda é, creio eu,
bastante eclético, porém muito seleto, pessoas de gosto. Tinha uma coisa
assim de dizer que Ney o era um artista intelectualizado, umas bobagens
dessas. Ney está acima disso tudo. Gosto muito de você, acho sua pessoa
simpaticíssima, apesar de nos falarmos por e-mail, bem maneiro. Abraço
amigo da terra da luz. Fortaleza é ótima pra curtir as férias, passar o verão, as
praias são lindas. Lembro de Canoa Quebrada em 79 em meus tempos meio
hippies, um escândalo (SOUZA, 2006).
O depoimento do senhor Afonso Souza, levanta uma série de questões
acerca do universo gay. o se adentrará com profundidade nas questões desse
universo, apenas intenta-se com isso contextualizar um período para situar-se melhor no
espaço da Galeria Alaska, na qual o cantor Ney Matogrosso realizou temporada com o
16
Afonso Souza
,
62 anos, artista plástico e arquiteto, natural de Niteroi-RJ, residente no Rio de janeiro.
135
espetáculo Feitiço. A fala do depoente nos fez intitular o item quando esse nos afirmou
que a Galeria Alaska era ao mesmo tempo glamour e underground.
Após uma semana em cartaz do show Feitiço no Teatro da Galeria Alaska, a
revista Veja publicou uma matéria enfocando o polêmico espaço, bem como o público
homossexual freqüentadores assíduos da Galeria Alaska, que o senhor Afonso Souza
intitulou como sendo um espaço underground, mas com glamour.
A procissão contrita percorreu a Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de
Janeiro, com suas corolas de negro chispando “aleluias contra o mal. O
pecado mora ali, acreditam certas famílias cariocas. Reinam os
homossexuais, às vezes correndo espavoridos da polícia da delegacia em
frente. Na semana passada, por exemplo, Ney Matogrosso inaugurou o
Teatro Alaska ex-cinema com o show Feitiço. Sua platéia na quarta-feira
passada recebeu as Frenéticas, um travesti, os atores do grupo Asdrúbal, um
decorador da alta sociedade, os freqüentadores do Sótão e uma enorme
maioria de casais homossexuais......... rapazes de shorts seguiram de mãos
dadas para os programas de sempre na galeria: dançar na discoteca tão
onde Mick Jagger e Rod stewart passaram noites tomando Cointreau com
gelo – ou caminhar rumo ao cinema Holiday, pra namorar assistindo as
loucuras de “Orca”, a Baleia Assasina” (SANTOS, 1979).
Ainda sobre essa bipolaridade, essa multiplicidade que reunia a Galeria
Alaska, dentro de um contexto de marginalidade social, pelo qual apresentava-se em
alguns momentos como caso de polícia, o ex-transformista Virgílio Lopes
17
, narra bem
aquele momento da Galeria de então:
Flávio Queiroz: Lembra em especial da temporada do show Feitiço em 1979
no teatro da Galeria Alaska?Virgílio Lopes: Querido, assim de cara eu não
lembro do show de Ney lá na falecida, porque geralmente quando Ney
estreava eu também estreava, aproveitava a onda e ia.... aumentava a
freqüência nas boates claro, entende? Assim não podia assistir ao seu show.
O que posso te falar o que lembro é que nesse show de Ney na falecida,
triplicou o meu público a casa ficava lotada era ótimo, lembro muito disso do
show de Ney mesmo, não. A Galeria era muito sucesso, rasgação total, barra
pesada. Rolava de tudo desde o garotão surfista até uma traveca assim
enorme, morta linda. Era loucura aquilo lá, muita fechação, tinha de tudo
totalmente eclético.
Flávio Queiroz: Pode especificar um pouco mais?Virgílio Lopes: Shows do
Ney por incrível que pareça só assisti a um no Canecão muito lindo o que ele
cantava Homem Com H. Tudo que peguei do Ney em meus shows foi pela
televisão e revistas. Depois do show do Ney todos os gays, entendidos, o
17
Virgílio Lopes, 52 anos, ex-transformer, estilista, natural de Niterói - RJ, residente no Rio de Janeiro.
136
pessoal mais caba feita, da cuca legal, iam para a boate e o meu show
realmente começava. Eu fazia o Ney, lá pelas madrugas, eu entrava todo
coberto de pena, pintadíssimo cantando Bandido e Bandoleiro, arrasando
mesmo. Depois cantava Coubanakan e terminava cantando América do Sul
fazendo um strip tease maravilha, bem chic. Depois quando terminava o
show e ia pra casa às vezes pintava a polícia e dava porrada na gente mesmo,
por preconceito, era barra. s éramos muito discriminados por eles. Eu era
muito novo uma tinha uns 19, 20 anos. O proprietário da boate um velhote
com sotaque italiano, pagava bem e a casa “tava” sempre lotada, bem
freqüentada. Agora faz um tempo que não faço Ney. Tenho vontade de
fazer novamente, mas agora tô” noutra, “tô” trabalhando de designer. O
corpinho aqui ainda podendo, não como essas coisas de padaria, nem de
churrascaria. Vo um cara legal Flávio, vou te enviar umas fotos pra vo
ver que o corpinho da linda aqui tá em cima (LOPES, 2007).
Sobre o controvertido episódio da temporada do show Feitiço, na Galeria
Alaska, o artista Ney Matogrosso em entrevista tenta amenizar o estigma de tal espaço,
a partir da condição de liminaridade que se encontrava naquele momento perante o
público e dia. Ney declara: Não gosto de lugares específicos, acho que as pessoas
devem se misturar. Meu público é muito família. As mães me adoram. Quero mostrar
que aqui o tem marginal.” (SANTOS, 1979)
O artista continua tentando desmistificar o estigma sobre a Galeria Alaska
declarando ao jornal O Globo. “Por que não? Por que, de repente, a Galeria Alaska não
pode ser freqüentada por famílias? Quem disse que lá só pode ir marginal? Eu vou fazer
o espetáculo lá; nem me ocorreu que pudessem pensar isto ou aquilo.” (NAGLE, 1979)
Ney justifica o porquê de estar na cidade do Rio em pleno verão e, sobretudo o porquê
de estrear o show na Galeria Alaska: Este show é algo assim como a entressafra. Não é
exatamente um show para teatro. Vou fazer essa temporada de 03 de janeiro ao dia 23
porque adoro trabalhar no Rio, no verão. A galeria Alaska é verão.” (BURGOS, 1979)
Esse período em que o artista encontrou-se em condição de liminaridade
artística perante os órgãos de repressão e censura do regime militar e alguns setores da
mídia é arrefecido mais à frente após o enfrentamento do artista diretamente com essa
censura vinda por parte da mídia, objeto de nossa próxima análise no item que se segue.
2.2.3 Ney no Teatro Pixinguinha e a censura da mídia
Após a estréia do show Feitiço na cidade de Manaus, percorrer as Regiões
Norte, Nordeste, algumas cidades do interior paulista, bem como a sua bem sucedida
137
temporada no Rio de Janeiro, na Galeria Alaska, o cantor Ney Matogrosso estréia o
espetáculo Feitiço na capital paulista, abrindo temporada no Teatro Pixinguinha
18
:
Depois de viajar pelo Norte e Nordeste e interior de São Paulo, e realizar
uma temporada com muito sucesso assim consagrada pelo público e crítica
carioca – no Teatro Alaska, “Feitiço”, show de Ney Matogrosso, estréia hoje,
em S.Paulo, às 21 horas, no Teatro Pixinguinha. Para uma pequena parcela
do público paulista, este show não pode ser considerado uma estréia, que
no final do ano passado, Ney se apresentou durante três dias no teatro-
discotheque Aquarius, com o mesmo espetáculo que agora retorna, para ficar
até 10 de junho (O FEITIÇO, 1979).
Com a manchete publicada em 01 de junho de 1979, intitulada: Ney,
babados e requebros, menção feita, a temporada de seu show Feitiço no Teatro
Pixinguinha o jornalista JoPaulo Borges articulista do caderno de cultura do Jornal
Ultima Hora comenta o show do cantor em São Paulo:
Nove e vinte. O show começou. O canhão de luz mostra o ídolo por inteiro.
Lá está ele, no alto de uma escadinha de madeira: um cigano cheio de
moedas na cabeça, no pescoço, a calça de cetim vagamente à Carmem
Miranda, coberta de babados e mais babados. Dorso nu, bem maquiado,
acima de tudo malicioso. Nem precisou cantar para ser recebido com um
‘gostoso’ vindo lá do meio da platéia (BORGES, 1979
).
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 12 – Ney Matogrosso show Feitiço, Teatro Pixinguinha-SP, 1979.
18
O show Feitiço permaneceu em cartaz entre os dias 30 de maio a 10 de junho no Teatro
Pixinguinha. Os ingressos foram vendidos ao preço de 150 cruzeiros, quarta, quinta e domingo, e 200
cruzeiros, às sextas e sábados.
138
Em outro momento do espetáculo o artista aparece para a platéia do Teatro
Pixinguinha com indumentárias que remetem ao movimento gay-power, com calça de
couro preto, luvas e quepe.
estava o moço: camiseta prateada que mal escondia uma de suas marcas
registradas, os pelos no peito magro; calças pretas de couro coladas no corpo;
luvas e um quepe igual aos usados pelos oficiais da temível SS nazista,
também negro. Ah, sim, o cinturão. Este depois que Ney jogou as luvas para
trás, foi tirado lentamente. Àquela altura, esclareça-se, um frisson percorria
por inteiro a espinha da platéia. Bem, em seguida, livre do cinturão, Ney
desabotoou as calças e deslizou sua mão esquerda pelo baixo ventre. Aí, as
luzes se apagaram. Quando se acenderam, estava, na sua o, a banana.
Depois, como se estivesse adorando alguma divindade erótica, descascou-a e
mordeu-a com força...E o Pixinguinha entrou em transe (BORGES, 1979).
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 13 – Ney Matogrosso show Feitiço, Teatro Pixinguinha-SP, 1979.
Durante a temporada do cantor na cidade de São Paulo, a censura vinda de
alguns setores da mídia em relação ao cantor é intensificada. Essa conduta da dia
paulistana já havia se dado nos espetáculos passados do cantor na cidade, quando então
foram apresentados os espetáculos Homem de Neanderthal e Bandido,analisados
anteriormente. No entanto, essa censura que geralmente vinda com mais intensidade e
afinco por parte da mídia paulistana, teve nesse espetáculo Feitiço, sua origem na cidade
do Rio de Janeiro, quando a imagem do artista fora eminentemente proibida de ser
veiculada no Jornal do Brasil. Em entrevista com o cantor é esclarecido:
Última Hora: Dizem que você está tendo um probleminha de censura no Rio.
Conta pra gente o que é?
Ney Matogrosso: Ah! pouca coisa, o que está acontecendo de fato é que
existe uma lei no Jornal do Brasil que o pode ser publicado nada a meu
respeito, nem sobre o meu show, meu disco, fotos, nada mesmo.
Última Hora: Mas como é que surgiu isso?
139
Ney Matogrosso: Existe um editor que acho que me odeia. Ele resolveu
que o podia e baixou uma portaria dizendo exatamente isso.
Ultima Hora: E como você ficou sabendo?
Ney Matogrosso: Do mesmo jornal veio uma moça aqui em casa me
entrevistar. Conversamos bastante, fizemos fotos, uma entrevista grande.
ela procurou o pessoal que trabalha com a minha produção e disse que não ia
sair, que eles não tinham deixado. E a matéria realmente não foi publicada.
Acho que ela realmente tentou fazer a matéria sair.
Última Hora: Como é que você vê isso?
Ney Matogrosso: Acho a maior palhaçada que podia existir. No momento em
que a imprensa uma pequena abertura, luta tanto por liberdade de
expressão, ela mesma age como se não fosse nada disso. A imprensa é louca
quer uma coisa e faz outra. É muito engraçado. Eles não sabem o que
querem. Mas pense um pouco, o JB, não é o único que existe e mesmo que
fosse... Não estou nem ligando pra isso, podem até morrer (QUAL..., 1979).
Sobre esse episódio, após treze anos transcorridos de tal censura velada no
Jornal do Brasil, podemos ter acesso ao nome do referido editor, a quem o artista Ney
Matogrosso se referiu na época em que foi vetado. Tratava-se de Walter Fontoura,
editor chefe do Jornal do Brasil à época. A jornalista Denise Pirez Vaz em seu livro Ney
Matogrosso: um cara meio estranho, lançado em 1992, trata essa questão em suas
entrelinhas em torno da censura ao artista intensificada pelo corpo editorial do Jornal do
Brasil. Denise Pires Vaz aborda:
Durante mais de dois anos o nome e a foto de Ney estiveram proibidos de
sair no Jornal do Brasil, porque um editor - que ele nunca viu e de quem nem
sequer lembra o nome - o considerava travesti. A pessoa era Walter Fontoura,
então editor-chefe do Jornal do Brasil (VAZ, 1992, p. 87).
A jornalista dá continuidade sobre o ato de censura vindo do Jornal do
Brasil, tornado explícito o sentimento de hostilidade e censura do editor chefe do JB,
Walter Fontoura, em relação ao artista Ney Matogrosso. A autora afirma que em
entrevista recente concedida pelo editor acerca do episódio, este confirmou
tranqüilamente o veto ao artista Ney Matogrosso. Walter Fontoura declara:
Não gostava do cantor e das suas músicas. Para o meu gosto, não se tratava
de um artista. Posso estar certo ou errado, mas não reconhecia nele méritos
para sair no Caderno B. Detestava ouvir voz de mulher num homem. Naquela
época, eu também não gostava de outros artistas, que com o tempo aprendi a
admirar, como Milton Nascimento. Mas em relação a Ney Matogrosso,
continuo não gostando (WALTER, 1992, apud VAZ, 1992, p. 87).
140
Com esse episódio da censura interna no JB, fica demonstrado que a censura
o se limita unicamente uma instituição militar, oriunda dos órgãos de repressão e
censura do regime militar à época. Na verdade ela está difundida em diversas outras
instituições, incutidas no seio social. Em especial a censura advinda da imprensa nesse
momento da carreira do cantor, foi de cunho eminentemente homofóbico, levando-se
em conta a própria declaração do Senhor Walter Fontoura, quando afirma claramente
que detestava ouvir uma voz de mulher em um homem.
Os meandros da censura eram complexos à época. Ao passo que arrefeceu-se
o poder de veto dos órgãos de repressão e censura do regime militar, vindo com a
abertura política em 1979, e depois com a anistia ampla e irrestrita, a censura
permaneceu, sobretudo, a de natureza moral em alguns segmentos da imprensa. Ney
afirma em entrevista a Folha de São Paulo a contradição de tal “abertura” potica
Folha de São Paulo: Ney tudo isso tem um significado maior?
Ney Matogrosso: Tem sim, claro que tem. Com essa história de abertura,
com esse arremedo de liberdade que inventaram pra gente. O povo está indo
com uma enorme sede ao pote. E faz bem. tinha de ir com muita sede
mesmo, depois de quinze anos de repressão desenfreada (CHRYSOSTOMO,
1980 b).
Com essa fala o artista Ney Matogrosso sintetizou sua percepção em relação
à abertura política no Brasil iniciada a partir de 1979, com o movimento de
redemocratização potica. A abertura potica se deu de maneira gradativa, seus
resquícios de repressão e censura permaneceram em alguns setores da imprensa, bem
como em diversos segmentos sociais. Vejamos esse episódio dentro da dia que
envolveu naquela ocasião alguns artistas dentro do aspecto de uma censura moral.
Dessa maneira percebemos a continuidade dessa censura interna dentro de alguns
veículos de comunicação de massa, contraditoriamente ao processo de abertura política.
Nos meses de maio e junho de 1979, período da temporada do cantor Ney
Matogrosso na cidade de São Paulo, a Revista Interview, realizou uma seqüência de
entrevistas com o cantor Ney Matogrosso, a atriz Betty Faria e Ionita Sales Pinto.
Entrevistas essas realizadas pelos jornalistas Cláudio Scheder, Marília Gabriela
Cochrane, Antônio Bivar Battisteti e Vânia de Toledo. Após publicação dessas
entrevistas o promotor público Élio de Souza Ferreira, denunciou artistas e jornalistas,
por entender que o conteúdo de tais matérias, fazia apologia ao homossexualismo”, por
141
esses relatarem experiências pessoais em acintosa ofensa aos costumes e à moral
pública, assim procedeu o promotor.
Por sua vez o juiz da 25° Vara Criminal da capital paulista, Homero
Benedito Ottoni Netto, rejeitou a denúncia feita pelo promotor Élio Ferreira. O Jornal da
Tarde anuncia: Homero Benedito Ottoni, rejeitou ontem a denúncia formulada contra
quatro jornalistas da revista “Interview”, que eram acusados de prática de crime previsto
no Artigo 17 da Lei de Imprensa: ofender a moral blica e os bons costumes” (JUIZ,
1980). Em justificativa de sua rejeição a denúncia, o juiz Homero Ottoni, declarou que
o existia proselitismo do homossexualismo no relato do cantor Ney Matogrosso.
Homero Ottoni declara ao Jornal da Tarde:
Trata-se de entrevista mantida com artista popular, pública e notoriamente
conhecido por suas tendências sexuais, responsável até pela popularização da
expressão andrógino. Sua presença constante nos lares, através da televisão,
impede que qualquer pessoa alegue ignorância quanto à sua duvidosa
masculinidade. O relato de suas experiências pessoais não pode ser elevado à
condição de proselitismo do homossexualismo, da mesma forma que não se
pode entender como pregação da criminalidade as entrevistas realizadas com
criminosos, onde estes também relatam seus casos pessoais e a sua própria
vida
criminosa (JUIZ, 1980).
Dessa maneira fica demonstrado a censura ainda vigente dentro da mídia de
cunho moral, com características predominantemente homofóbicas em relação ao artista
Ney Matogrosso. A abertura política proporcionou uma maior desenvoltura na condição
de liminaridade que se encontrava o cantor naquele período frente ao regime militar
como já analisamos. No entanto, a censura interna dentro dos meios e comunicação,
contraditoriamente ao processo de abertura política, intensificou-se frente ao artista,
mantendo-o dentro de uma condição ainda de liminaridade artística.
Essa censura de cunho moral por parte de alguns setores da mídia ao artista
Ney Matogrosso, deixando-o em uma condição de liminaridade artística é estendida por
mais uns dois anos aproximadamente. No final do ano de 1979 o artista grava novo LP
intitulado Seu Tipo e funda em 1980 a MatoGrosso Produções Artísticas S/A, afastando-
se a partir de então da condição de liminaridade artística imposta pela mídia,
concretizando assim, parte de seu processo de autonomia artística frente a indústria
fonográfica, mídia e público. Essas questões aqui levantadas serão analisadas no
capítulo seguinte.
142
3 “LOUCO E SOLTO, GRAÇAS A DEUS”: AUTONOMIA
ARTÍSTICA UMA RELATIVIDADE
Ardente-1979 (Joyce)
Sou ardente não vou negar/gosto de me secar ao sol/aprecio qualquer
paixão/qualquer coisa como brincar/e o meu corpo é que nem farol/indicando
o que pode entrar/apontando uma dirão/pra quem quer se queimar/procuro
alguém o singelo quanto eu/que não se esconda das coisas naturais/não
tenha medo do fogo/nem do vento que carrega/pois afinal os elementos são
todos iguais/o é preciso fugir você vai ver/a tempestade não vai lhe
machucar/se o coração é quem manda/ a natureza quer apenas lhe fazer
aproveitar/e mostrando que eu sou ardente como você/sou demente, mas
quem não é?/eu aprendo qualquer lição/na versão que você quiser/sonhador
desses sonhos meus/amoroso e fatal demais/louco e solto graças a
Deus/quero arder sempre mais. (MATOGROSSO, 2006)
O presente capítulo tratará do processo da autonomia artística do cantor Ney
Matogrosso, ao qual está inserido a própria relatividade dessa autonomia, dentro de uma
tentativa por tornar-se independente das imposições do mercado fonográfico. Essa
relatividade é notória, visto os diversos setores que envolvem tal mercado, como
produtores, músicos, técnicos de gravação, empresários, entre outros setores que fazem
parte desse amplo mercado. Procurar-se-á dessa maneira enfocar a relatividade dessa
autonomia, inserido dentro de um contexto de época de uma forma mais ampla, que nos
remete obrigatoriamente a uma rede de relações que envolvem questões de natureza
político-ideológicas daquele período, bem como questões que tocam diretamente os
rumos do fazer artístico do cantor.
Para tanto, serão analisados dentro da trajetória do cantor os espetáculos Seu
Tipo (1979/80), Ney Matogrosso (1981) e Mato Grosso (1982), onde o artista caminha
em busca de sua autonomia artística com a criação da
Mato Grosso Produções
Artísticas (1980), o contrato com a Ariola Discos no ano vindouro e a projeção de sua
carreira no exterior, em Montreux. Estes fatores a pouco mencionados, resultaram na
conquista do primeiro disco de ouro de sua carreira solo, bem como a retomada do
cantor enquanto fenômeno de massa com o espetáculos apresentados no Canecão-RJ e
em seguida no estádio do Morumbi-SP, para um público estimado em 70 mil pessoas.
Durante esse momento da retomada do cantor enquanto fenômeno de massa, estaremos
compreendendo com maior nitidez a relatividade dessa autonomia artística, assim
pretendemos demonstrar ao longo desse capítulo.
143
3.1 “Seu Tipo”: a reinvenção de um corpo rumo a uma autonomia
Com o lançamento do LP Seu Tipo
1
em outubro de 1979, inicia-se um novo
momento na carreira solo do artista, por meio de um corpo reinventado. A reinvenção
desse corpo é percebida em primeira instância na capa do long play, onde o artista
apresenta-se com uma imagem mais introspectiva, trajando uma colada calça jeans ao
corpo de tonalidade azul escura e camiseta regata branca. Ao contrário de trabalhos
anteriores o cantor mostra-se sem nenhum tipo de pintura facial e recursos cênicos. O
repertório do LP é voltado para o universo das paixões, dos amores, dos afetos e
desafetos. Músicas como Falando de amor, Seu Tipo, Dor Medonha, Encantado versão
de Nature Boy, dão uma conotação romântica a esse novo trabalho do cantor.
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 14 – Ney Matogrosso capa LP, 1979
A revista Veja publica: “Seu Tipo” é um disco calmo, suave, romântico.
Pelas letras das músicas do novo disco, Ney Matogrosso mostra-se de fato à caminho de
um novo caminho - o de um Ney romântico” (ECHEVERRIA, 1979). Em entrevista
concedida ao Jornal da Tarde o artista comenta essa sua nova fase:
1
Músicas: Seu Tipo (Luís Carlos Goes e Eduardo Dusek), Dor Medonha(Fátima Guedes),Último Drama
(Mauro Kwitko),Ardente (Joyce),Encantado-Nature Boy(Eden Ahbez versão:Caetano Veloso),Falando de
Amor(TomJobimeViníciusdeMoraes),CachorroViralata(AlbertoRibeiro),Me Rói(Luli e Lucinha),Trapaça
(HermanTorreseSalgadoMaranhão),TemGenteComFome(JoãoRicardoeSolanoTrindade),RosadeHiroshim
a(ViníciusdeMoraeseGersonConrad).Músicos:Bateria:PaulinhoBraga,Baixo:JamilJoanes,Percussão:Chi-
coBatera,Guitarra:HélioDelmiro,FenderRhodes:MiguelCidras,PianoYamaha:LincolnOlivetti,Trombones:
EdMaciel,JoãoMaciel,Macaxeira,SaxAlto:RicardoPontes,SaxTenorSolo:OberdanMagalhães,ArranjodeBa
se:HélioDelmiro,ArranjodeMetais:LincolnOlivetti.FichaTécnica:DireçãoArtística:Mazola,AssistentedePr
odução:AlexandreAgra.Base:WaldirPinheiro,Orquestra:VitorFarias,Detalhes:AnibalFilho,Vocal:Mazola,
AuxiliaresdeGravação:RafaelAzulayeAnibalFilho,TécnicodeMixagem:Mazola,AuxiliardeMixagem:Anib
alFilho,ForçanoTrabalhoTécnico:Dudu,AjudaTécnica:VitorFarias.Estúdios:TransaméricaRio.Foto:Tripo
LayOuteArteFinal:OscarPaolill.Coordenação:Leonardo Netto.
144
Jornal da Tarde: Seu novo LP, Seu Tipo: um disco romântico, com músicas
que falam de amor, numa capa em que ele parece dispensar aquela euforia de
cores e fantasias que tão bem caracterizam toda uma época. Como explicar a
mudança?
Ney Matogrosso: Eu não mudei de repente. Venho me transformando
muito tempo. O mais correto seria dizer que nunca parei de viver e que meu
trabalho está intimamente ligado a minha vida. Sabe, o povo sempre me
permitiu tudo e, se pareço mais calmo agora, é porque estou passando por um
processo muito particular e que se reflete nitidamente no meu trabalho. Eu
acho que o barulho foi uma manifestação típica de nossa época em que as
pessoas o podiam falar. Agora, essa fase está ultrapassada, e elas têm
outras válvulas de escape. Talvez a tenham-se tornado mais exigentes na
questão musical. A diferença é que me permiti falar de amor. Amor sempre
foi um tabu pra mim. Eu podia afalar em paixão, mas em amor nunca.
Então, quando idealizei esse novo disco, me propus falar sobre todas as
tonalidades do amor. E olha que ser romântico é difícil, é preciso tomar
muito cuidado para o escorregar e ficar meloso. Acho que tudo é uma
questão de tempo, de amadurecimento, e agora, aos 38 anos eu diria que
estou vivendo momentos de introspeão. (NEY, 1979)
Essa nova fase da carreira do artista é percebida como um momento de
desvencilhamento de sua imagem anterior, outrora extravagante em cena, em que
prevaleciam as pinturas faciais e corporais, bem como os figurinos ousados apontando
para uma ruptura de gêneros. Também percebe-se nessa fase o momento em que o
artista preserva sua imagem perante a dia, no sentido do estigma do artista
“marginalizado” face a alguns setores dos meios de comunicação de massa,decorrência
de suas performances. O artista declara, então, ao Jornal da Tarde:
Por natureza, sou do tipo que não admite limites. Quero tudo aberto pra mim
e para todos, para que haja constantes mudanças. E tudo que acontece à
minha volta me estimula a criar. Fazendo uma rápida retrospectiva, diria que
sempre fui rebelde, que me coloquei contra a moral estabelecida, contra
costumes estabelecidos, acontra o sistema em que a gente vivia. Acho que
meu comportamento sempre foi bastante coerente, e que sempre transmiti
essa idéia geral no meu trabalho. Para mim tudo é permitido. Por isso não se
surpreendam se retomar minha imagem antiga, ou se chegar a cantar
paradinho. ( Ney..., 1979)
No ano de 1979 nove, ano do lançamento do LP e de espetáculo Seu Tipo,
iniciou-se no Brasil o processo de redemocratização com o movimento de anistia ampla
e irrestrita dos exilados políticos do regime militar. Seqüencialmente a esse processo de
abertura potica, deu-se o arrefecimento, em linhas gerais, da censura imposta pelos
145
órgãos de repressão do regime, sobretudo em relação aos setores culturais
( KUCINSKI,1991).
Entretanto, contraditoriamente a esse contexto de abertura política, de
minimização do poder censório em relação à cultura, o artista Ney Matogrosso,
diferentemente de seus três primeiros espetáculos da carreira solo, Homem de
Neanderthal (1975), Bandido (1976-77) e Feitiço (1978-79), nos quais apresentava-se
para seu público e para a dia desafiando normas e condutas morais do regime militar,
apresenta-se em seu novo trabalho, Seu Tipo (79-80), com uma imagem mais intimista,
mais recatada que não apontava para uma transgressão de caráter estético das normas
nem das condutas morais de então.
Ney Matogrosso declara em entrevista a Folha de São Paulo: “O que eu fazia
é permitido e eu não gosto do permitido” (SOARES, 1979). Diga-se que o permitido
a que o cantor se refere é, sobretudo, a conduta moral, a natureza estética, a ruptura de
gêneros, a fusão entre os universos masculinos e feminino, que nortearam seus trabalhos
anteriores.
Ainda no ano de 1979 o Jornal da Tarde em matéria publicada em três de
novembro, anunciou a nova temporada de shows do artista a ser iniciada em fevereiro
de 1980 na cidade do Rio de Janeiro. A matéria editada pelo Jornal da Tarde enfoca a
natureza sutil do espetáculo em que o cantor explora mais a voz do que o corpo e as
roupas exuberantes, tão peculiares aos espetáculos anteriores. O Jornal da Tarde publica:
Como das outras vezes, o disco será acompanhado de um show no teatro
provavelmente em fevereiro. Desta vez, no entanto, ele não vai centralizar o
espetáculo nas roupas, nem no corpo, se bem que diga que também não
pretende cair no lado oposto. (Ney, 1979)
Sobre o polêmico espetáculo anunciado em alguns segmentos da dia o
artista sintetiza ao Jornal da Tarde “.....é lógico que não vou negar a importância de meu
corpo. Mas também o vou me esconder” (Ney..., 1979).
A polêmica na dia continua em relação à valorização do canto do artista e
à amenização de sua performance no espetáculo Seu Tipo:
um problema, se é que se pode chamar assim. Talvez seja apenas uma
característica inseparável do trabalho de Matogrosso, por mais que ele
pretenda chamar a atenção para a voz: sua teatralidade, independente da
146
densidade dramática da música que esteja cantando, é sempre, ou quase
sempre próximo do bufônico (SILVA, 1980).
3.1.1 A estréia no Teatro Carlos Gomes e as diversas tonalidades do
amor
Conforme anunciou o Jornal da Tarde na entrevista com o artista, Ney
Matogrosso estréia o show Seu Tipo no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro,
precisamente em 27 de fevereiro de 1980. Pela primeira vez desde o início de sua
carreira, em meados de 1973, ainda como vocalista solo do extinto grupo Secos &
Molhados, o artista ainda não havia feito nenhuma apresentação em seus shows
desprovido de pinturas, adereços e indumentárias exuberantes, peculiares aos
personagens que incorporava.
Nesse novo espetáculo Ney Matogrosso apresentou-se com um discreto
terno claro, tendo gestos e performances comedidas. Ney declara ao Jornal O Globo:
Vou usar um terno, sim, feito pelo Hugo Rocha. Mas, o terno pra mim, é mais uma
fantasia”
(CHRYSOSTOMO, 1980a). O artista continua essa afirmativa declarando ao
Jornal da Tarde que o uso do terno em seu espetáculo tem o intuito de uma fantasia. Ney
declara:
Todo mundo se espanta por me ver de terno. Mas que horror. Eu uso um
terno como uma fantasia, da mesma forma como uso uma roupa cheia de
penas, couros. Eu sou uma pessoa como qualquer outra, que muda todo dia.
Amanhã eu posso deixar o terno de lado e voltar numa imagem mil vezes
mais louca do que a que exibia antes. O que de estranho nisso? (NEY
MATOGROSSO, 1980).
O show Seu Tipo foi caracterizado por um aspecto intimista, contido. Uma
fase introspectiva do artista, destoante de sua trajetória contestatória, bem como do
momento político de abertura, que se iniciava em nosso país. O Jornal do Brasil atesta
sobre esse espetáculo: Correto e bem comportado. Parece engraçado, mas é a
147
impressão que fica do espetáculo Seu Tipo. Agora tudo parece um recital (DUTRA,
1980).
Sobre o lançamento do Show Seu Tipo no Teatro Carlos Gomes-RJ, a Folha
de São Paulo publica crítica editada por José Antonio Silva, demonstrando o caráter
dúbio contido no espetáculo por meio das indumentárias do artista. Na primeira parte do
espetáculo o artista entra em cena vestido com um singelo terno branco, no decorrer do
espetáculo o terno é retirado simulando um strip-tease em que aparece uma sensual
malha colada ao corpo do cantor. A Folha descreve:
O novo show de Ney Matogrosso, em cartaz no Teatro Carlos Gomes, no Rio,
desde 27 de fevereiro e até o final de abril, pretende marcar uma nova fase na
carreira do cantor. “Seu Tipo” o nome do espetáculo, mostra um Nei de terno
tropical branco, muito discreto. Em “Coração Aprisionado”, de Luli e
Lucinha (a segunda música depois de “Seu Tipo”, de Dusek e Luis Carlos
es) ele exibe ao tirar o paletó, em vez da esperada camisa social, uma
blusa “frente única”. O que é apenas o início de um lento strip-tease parcial,
que culmina com o peito nu, uma malha moldada ao corpo, dos pés à
cintura, e botas. Tudo muito, muito branco. O repertório é variado em
gêneros e autores. Há desde a Rita Lee, de “Doce Vampiro”, até Jobim e
Vinícius “Falando de Amor”, passando por “Ardente” de Joyce. Nei canta
também Ary Barroso (em “Rio de Janeiro”), mais Luli e Lucinha (em
“Napoleão”), Balada da Arasada”(de Ângela Ro Ro), Marina Marinheira”
de Geraldo Vandré, “Tem Gente com Fome” (de João Ricardo e Solano
Trindade). Afinal, ele quer mostrar que não é só o artista dos passos ousados,
rebolado, olhares significativos, muita pintura e outras bossas. Quer mostrar,
como se fosse preciso, que é um ótimo cantor. (SILVA, 1980)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 15/16 – Ney Matogrosso show Seu Tipo (1980), Teatro Carlos Gomes-RJ
Ney Matogrosso em entrevista a jornalista Cleide Maria Jornal do Brasil
comenta a estréia do show Seu Tipo no Teatro Carlos Gomes- RJ. Ney declara: “Quem
espera encontrar o exótico, vai ter o cantor. Sei que muitos sentirão falta da ave rara.
148
Quando eu era uma alegoria, ficava mais fácil me aceitar. Agora, verão a pessoa mesmo
e terão de se definir. Ou gostam ou não gostam (MARIA, 1980)”. Em seguida a
jornalista descreve a estia do show:
Noite de estréia no Teatro Carlos Gomes. Fila que se alonga ao lado de fora.
Casa lotada até domingo. Calor insuportável do lado de dentro, mesmo no
hall de aspecto melhorado com a providencial colocação de uma passadeira
vermelha. As 50 mil ventarolas; encomendadas pela produção, não chegaram
a tempo de serem distribuídas para o público. Entregadores de corbeille
tropeçam nos degraus repletos de gente. “Só os grandes astros da música
têm seus camarins cobertos de flores-comenta alguém da produção. Ney
Matogrosso ainda caminha pelo palco verificando a iluminação. Pouco
depois es no camarim, sob a tenda de cetins azuis e listrados. Es
completamente calmo, mesmo a poucos minutos de subir no palco. Fuma,
toma água de coco. Ainda de calça e camiseta, enquanto o terno de panamá e
a malha estão dependurados, prontos para serem usados, ele parece o se
dá conta do tempo. Luiz Clericuzi, seu administrador, vindo da porta do
teatro, diz que o é mais possível segurar o público. “Vou abrir a portaria,
Ney, está na hora de se preparar” (MARIA, 1980).
3.1.2 A Mato Grosso Produções Artísticaso fim dos empresários?
A partir da estréia do show Seu Tipo, em fevereiro de 1980, é dado, de fato,
o início da autonomia do artista frente ao mercado fonográfico e às grandes produtoras
de espetáculos ligadas à modalidade do show business. No final do ano de 1979 e início
de 1980 é criada a Matogrosso Produções Artísticas
2
, uma firma concebida e fundada
pelo próprio cantor, com a exclusiva finalidade de gerenciar os rumos burocráticos e
financeiros que envolvem seus trabalhos no âmbito o mercado cultural.
A Matogrosso Produções Artísticas passou a representar esse momento
dentro do lento processo de concretização da autonomia artística do cantor frente à
indústria fonográfica e do show business. A partir de então, o artista passou a auto-
empresariar-se e a dirigir seus espetáculos, com o suporte de profissionais ligados ao
setor cultural e burocrático.
Como foi abordado, o anseio de tornar-se um artista autônomo
manifestou-se logo no início carreira artística de Ney Matogrosso, quando este ainda
2
A Mato Grosso Produções Artísticas é atuante no circuito cultural até os dias atuais, com 29 anos de
existência. Localiza-se na mesma cidade e endereço. Avenida de Ataulfo Paiva, 650. Leblon. Rio de
Janeiro-RJ.
149
atuava como vocalista do grupo musical Secos & Molhados (1973-74). Naquele
momento, demonstrando seu princípio de autonomia artística o cantor rompeu com o
grupo por questões de natureza financeira e ideológica, seguindo carreira solo.
A continuidade desse princípio de autonomia manifestou-se mais uma vez,
quando o cantor tentou auto-empresariar-se, logo em seu primeiro trabalho solo o LP
Água do céu-pássaro (1975), e no espetáculo denominado Homem de Neanderthal
(1975). A Folha de São Paulo notifica esse anseio do artista em sua primeira tentativa de
auto-empresariado: Ele (Ney) está montando uma pequena agência com um contador,
um secretário e um advogado para cuidar de seus negócios (GOUVEIA, 1975). Ney
comenta:
É o suficiente para ficar livre de empresário fixo e posso negociar meus
shows com todos. O que eu entendo por empresário é arriscar tudo junto com
o artista, mas o, tudo o que eles querem são os 20% de nossos lucros,
arriscar eles não arriscam nada. Com o último empresário tive essa dívida de
300 mil, mas serviu de lição, pois cheguei a conclusão que não preciso de
empresário. Estou pagando, parceladamente, mas estou. Vou arcar com tudo
sozinho, monto o show de acordo com as minhas possibilidades e pronto, eu
não sou Cleópatra. (GOUVÊA, 1975)
Essa primeira tentativa foi frustrada, em fuão do volume de dívidas
acumulado pelo artista com o seu primeiro empresário, George Ellis. Seguidos os anos
de 1976 e 77 com o espetáculo Bandido e os anos de 1978 e 79 com o show Feitiço, o
artista firmou parceria na montagem desses dois outros espetáculos com o empresário
Guilherme Araújo, vinculado à produtora Gapa. Dessa maneira, o cantor Ney
Matogrosso contrariou, naquele momento, suas próprias expectativas e anseios de auto-
gerenciar os rumos de seus negócios, assim como a produção de seus espetáculos. Tal
possibilidade só se concretizaria em 1980, com a criação de sua própria produtora.
Uma matéria publicada no Jornal O Globo, em 27 de fevereiro de 1980, por
Antônio Chrysóstomo, traz a seguinte manchete: ‘Seu Tipono Teatro Carlos Gomes. A
fase azul de Ney Matogrosso. Logo em seguida, segue o subtítulo que anuncia: Ney:
além de cantor, agora, o seu próprio empresário. O Globo notifica esse momento:
Queixando-se de estar a cada dia mais magro e cansado pelo excesso de
trabalho, Ney Matogrosso desce a escadinha que liga o palco à platéia do
Teatro Carlos Gomes, onde autoproduz o seu quarto show individual, “Seu
Tipo”, que estréia hoje e deve permanecer em cartaz até o dia 27 de abril. A
exaustão do superstar, sua afirmativa de que, se pudesse, este seria o último
150
show de sua carreira isto dito em tom de brincadeira, naturalmente é
determinada, entre outros motivos, pelo fato de “Seu Tipo ser também a
estréia da empresa Matogrosso Produções, através da qual passará à
autogerência de todos os seus negócios. Quem dirige é o próprio cantor, que
por enquanto não necessidade de contratar alguém para isso.
(CHRYSOSTOMO, 1980a)
Sobre a direção do espetáculo feita pelo próprio cantor, Ney declara em
entrevista ao jornalista Antônio Chrysostomo do jornal O Globo:
Acho que um diretor, no tipo de show que monto anualmente, não é
indispensável. Eu mesmo penso em tudo e, quando parto para a montagem, já
estou com tudo na cabeça. Então, um diretor seria mais um técnico que
executaria um projeto já estabelecido. (CHRYSOSTOMO, 1980a)
Em matéria publicada em A Folha de São Paulo, em março de 1980,
percebe-se a ruptura do artista com o modelo pré-estabelecido pela indústria fonográfica
da época, bem como com seus meandros dentro do setor empresarial. A Folha comenta:
Cansado de ser explorado pelos empresários e produtores”, Ney resolveu
fundar sua própria firma, a Matogrosso Produções, com uma numerosa
equipe que inclui administradores, produtores executivos, divulgadores e
vendedores de shows, todos contratados sob salários fixos mensais. Neste
ponto, seu raciocínio – baseado na certeza de ser uma das maiores bilheterias
atuais de espetáculos ao vivo no Brasil. (CHRYSÓSTOMO, 1980b)
A Folha continua a matéria colhendo o depoimento do cantor acerca de tal
momento, onde demonstra uma parte do comportamento do setor empresarial em
relação ao show business no Brasil. Ney afirma:
Meu último empresário, o Guilherme Araújo, por exemplo, apenas me
emprestava o capital aplicado inicialmente nas minhas montagens. Depois eu
tinha de lhe devolver tudo, até o último centavo, antes de comar a tirar o
meu, sobre o qual ele ainda tinha 20%. Se dividíamos o lucro por que não
havia também divisão do dinheiro investido? (CHRYSÓSTOMO, 1980b).
A lógica do mercado fonográfico e das produtoras do show business era
contrária ao que se propunha a Matogrosso Produções Artísticas. Geralmente, o artista
montava o espetáculo com o empréstimo concedido pelo empresário, pagando, logo nas
151
suas primeiras apresentações, o dinheiro investido pelo empresário. Depois de sanada
essa dívida entre o artista e a produtora do evento, as bilheterias seguintes passavam a
serem divididas entre os dois.
A Matogrosso Produções Artísticas passou a inovar dentro desse modelo
do setor empresarial, alterando, assim, a lógica do mercado naquele momento, em que
prevalecia o monopólio das multinacionais, que ditavam as normas e as regras da
indústria cultural, representadas pelas grandes gravadoras e produtoras de espetáculos,
ligadas ao show bussines. O Jornal O Globo releva essa mentalidade empresarial da
época, apontando para os riscos do auto-empresariado do artista:
O risco da nova empreitada de Ney só o é grande exatamente por se tratar
dele, sabidamente uma das maiores bilheterias de espetáculos ao vivo no
Brasil, pois o investimento no Carlos Gomes é alto: como o teatro está em
péssimo estado de conservação, só na pintura da parte interna e na reforma de
poltrona quebradas, a Matogrosso Produções gastará Cr$ 300 mil, sem
retorno, fora Cr$ 1,6 milhão investidos até agora no espetáculo propriamente
dito os elevados custos de manutenção a partir da estréia. (CHRYSOSTOMO,
1980 a)
A matéria segue reforçando a insatisfação do artista com o setor empresarial
e sua conseqüente ruptura com o mesmo. Dessa maneira, o cantor anuncia sua intenção
de investir em outros setores no campo das artes, como cinema e o teatro. Ney
Matogrosso declara ao Jornal Globo:
Decidi enfrentar a barra de trabalho, preocupação e responsabilidades da
firma própria porque acho que sempre fui explorado pelos empresários. O
Guilherme Araújo, por exemplo, praticamente , me emprestava dinheiro
para as montagens de meus shows. Se ficava em um milhão, eu tinha a
obrigação de primeiro pagar todo o investimento, até o último centavo, para
depois começar a ganhar o meu, sobre o qual ele ainda tinha percentagem.
Ora, se a gente dividia os lucros, o podia dividir também o investimento?
Eu tinha um contrato com o Guilherme Araújo e uma agenda imensa, anual,
de shows em todo o Brasil. Depois, quando resolvi partir para minha própria
firma, também estava com tudo organizado na cabeça. Não era agora, com
minha produtora, que eu ia deixar a peteca cair. Mas, se tudo correr bem,
dentro de três anos, em 1983, eu paro definitivamente com os shows. Tenho
muita vontade de fazer cinema, teatro, me dedicar a outros ramos criativos.
Teatro principalmente. (CHRYSOSTOMO, 1980 a)
152
Na verdade essa passagem do artista financiado pelo setor empresarial para o
artista autônomo, que autogerencia os rumos de seus empreendimentos no campo
artístico, é fruto de um conjunto de fatores ligados a esse momento de autonomia na
carreira do cantor em relação ao mercado fonográfico e ao setor empresarial. A
jornalista Cleusa Maria, em matéria publicada no Jornal do Brasil, atesta a
multiplicidade de fatores desse momento, com a criação da Matogrosso Produções
Artísticas:
Muitas mudanças nesse momento. A saída da produtora Gapa, de Guilherme
Araújo, à qual esteve ligado durante alguns anos. A ida para a gravadora
Ariola, em novembro, quando completa três anos de contrato com a WEA.
Carmela saiu da Gapa, onde trabalha, para criar, com Ney, a Matogrosso
Produções Artísticas. Ela forma com Luiz Clericuzi, Valéria Gonçalves, um
boy e um secretário a equipe que cuida do novo escritório. A firma funciona
na Avenida Ataulfo de Paiva e ainda está sendo mobiliada, detalhes com os
quais Ney não se envolve. “Ele não é muito presente no escritório. Vai lá pra
passear”. É difícil, para Carmela, pesar lucros e investimentos da produtora.
Até agora foram investidos CR$ 1 milhão 600 mil na produção de Seu Tipo,
mais cerca de CR$ 200 mil empregados na limpeza e arranjo do teatro.
(MARIA, 1980)
O Jornal do Brasil continua matéria explicitando, com a fala de Guilherme
Araújo, ex-empresário do cantor, uma parte da visão do setor empresarial naquele
momento. O Jornal do Brasil relata:
Mas show de Ney Matogrosso é sempre um bom negócio. Bandido deu
muito dinheiro, empregado para pagar dívidas. Feitiço foi o que mais rendeu.
Deu até pra comprar um triplex com muitas varandas, no Leblon, onde Ney
mora. Talvez por isso comentam pelos corredores do teatro Guilherme
Araújo tenha ficado tão aborrecido com a perda de seu contratado. O que se
diz é que essa seria a sua melhor “conta” (MARIA, 1980).
Segue matéria com fala de Guilherme Araújo que declarou em entrevista ao
Jornal do Brasil:
Ney Matogrosso era um dos meus melhores negócios. Não o melhor
– explica Guilherme Araújo. Para ele, o grande negócio é aquele feito na base da
honestidade e respeito de lado a lado.” (MARIA, 1980).
Em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo, Ney Matogrosso possibilitou
uma visão mais ampla de sua tentativa de tornar-se um artista autônomo, quando
afirmou a prioridade de alguns percursos a serem seguidos em sua carreira, no sentido
153
da independência financeira. Dessa maneira, afirma o artista que, por meio de sua
independência, poderia atuar em outros ramos do setor artístico.
Esse anseio de autonomia, inerente ao artista desde os tempos do Secos &
Molhados, intensifica-se e toma uma dimensão mais concreta quando esse se negou a
participar do musical Evita”, montado na cidade de São Paulo, alegando o desejo de
sua independência financeira. A Folha de São Paulo aborda esse momento:
Folha: Você foi convidado a fazer o “Che”, personagem do musical “Evita”,
que vai ser montado em São Paulo. Por que o aceitou, se pensa tanto em
teatro?
Ney: Não aceitei por uma questão muito simples. Preciso de dinheiro para
fazer minha independência, principalmente agora que montei essa firma. E o
que me dá dinheiro mesmo é show individual. Disco nunca me rendeu grande
coisa. Meu dinheiro vem daqui, do palco, suado, noite, após noite. Os
produtores de “Evita” não iam poder pagar o que ganho, numa noite, num
show meu. Então, teatro fica pra daqui a três anos, quando eu tiver tudo
organizado pra chegar lá. (CHRYSOSTOMO, 1980a)
A tentativa do cantor Ney Matogrosso em tornar-se independente ficou clara
que era em relação ao setor empresarial, conseqüentemente, ficaria também
independente das gravadoras, pois, desse modo, teria autonomia para gravar o repertório
desejado e assim produzir seus espetáculos com liberdade e autonomia. Analisaremos
essa questão com mais profundidade nos itens subseqüentes desta pesquisa.
3.1.3 “Sujeito Estranho” - um artista relativamente autônomo entre a
WEA e a Ariola Discos Ltda
Concluída sua temporada em abril de 1980 no Teatro Carlos Gomes-RJ, o
cantor entra nos estúdios de gravações da WEA para cumprimento do seu contrato com
a gravadora, entre os meses de abril e maio do mesmo ano, para gravar o sexto Lp de
sua carreira solo, terceiro e último pela WEA, intitulado Sujeito Estranho
3
.
3
Músicas: Napoleão (Luli e Lucinha); Ando meio desligado (Sergio Dias Baptista, Rita Lee e Arnaldo
Dias Baptista); Sujeito estranho (Oswaldo Montenegro); Não Há Cabeça (Angela Ro Ro); Coração
Aprisionado (Luli e Lucinha);Balada da Arrasada ngela Ro Ro); Um Índio (Caetano Veloso);O Seu
Amor (Gilberto Gil);Barco Negro (Piratini e Caco Velho);Rio de Janeiro (Ari Barroso); Doce Vampiro
(Rita Lee).Músicos:Viola de 12 e Guitarra solo-Rick; Acordeão-Chiquinho;Fender Rhodes-
Marcinho;Baixo-Jorjão;Bateria-Jurim;Percussão-Cidinho;Coro-ZéLuis, Flávio, Marcio, Regininha, Luana
e fabiola;Arranjos-Jorjão.Fichatécnica:ProduzidoporMigueCidras.Direção de produção Guti. Assistente
de produção - Gregório Gomes Nogueira.Técnico de gravação - Claudio Farias.Auxiliares de gravação -
Lacir, Magro e Flavio.Assistência técnica - Dudu Marques.Auxílio técnico – Augusto.Mixagem - Claudio
154
A gravação desse long play se deu exclusivamente no sentido do
cumprimento de contrato fincado entre artista e gravadora, pois o repertório desse Lp
era parte integrante do show Seu Tipo. O Lp foi lançado oficialmente em agosto de
1980. O Jornal da Tarde, em matéria publicada em 28 de agosto de 1980, anuncia o
lançamento oficial do LP Sujeito Estranho pela WEA, bem como sua passagem pela
Argentina e turnê pelo Brasil, com previsão de chegada em novembro em São Paulo:
Sujeito Estranho é o sexto Lp de Ney Matogrosso e o último que sai com o
selo WEA. Reunindo todas as músicas que o cantor apresenta no show Seu
Tipo (título de seu penúltimo disco), atualmente excursionando pelo Brasil,
depois de ter passado pela Argentina, e com previsão de chegada em São
Paulo em novembro, quando ficará em cartaz por três semanas, no TUCA.
(NEY MATOGROSSO, 1980)
Conforme anunciou o Jornal da Tarde, o show Seu Tipo estreou em São
Paulo no Tuca, em novembro de 1980, precisamente no dia 5, entre controvérsias e
polêmicas presentes na grande dia em relação ao sentido introspectivo do espetáculo,
o Jornal da Tarde anuncia sua estréia:
Depois de dois anos ausente dos palcos de São Paulo, o intérprete Ney
Matogrosso estréia seu novo show hoje, às 21 horas no TUCA (rua Monte
Alegre 1024). Com músicas dos dois últimos elepês, “Seu Tipo” e “Sujeito
Estranho”, Ney ficará em cartaz até o dia 23 de novembro, de quarta a
domingo, às 21 horas. Neste espetáculo, longe das caras pintadas, das peles e
penas de aves, e de uma indumentária, senão exótica, pelo menos muito
interessante, Ney Matogrosso mostra seu corpo e sua voz, despojado de
adereços, simplesmente vestido numa malha branca colante e provocadora,
ou envolto em metros de tecido preto para interpretar “Barco Negro” de Caco
Velho. No repertório estarão incluídas canções como Um Índio”(Caetano
Veloso), “Balada Arrasada”(Ângela Ro Ro), “Falando de Amor”(Tom Jobim
e Vinícius de Moraes), “Seu Tipo”(Eduardo Duseke e Luiz Carlos Góes),
“Seu Amor”(Gilberto Gil), “Doce Vampiro”(Rita Lee) e Me Roi”(Luli e
Lucinha). (NEY MATOGROSSO, 1980b)
A Folha de São Paulo publica matéria relacionada à estréia do show com
percepção similar à do Jornal da Tarde no tocante à fase introspectiva do cantor. A
Folha de São Paulo comenta:
Farias e Miguel Cidras.Montagem-WanderleyLoureiro.Estúdio de gravação e mixagem -
TRANSAMËRICA (RJ).Gravado em abril/maio1980.Fotos -Vania Toledo.Arte e coordenação gráfica-
Ruth Freihof.Supervisão de capa - Leonardo Netto.Distribuido pela WEA Discos Ltda.
155
Depois de percorrer quase o Brasil inteiro e de ter se apresentado em Buenos
Aires com este show, Nei Matogrosso, agora chega a São Paulo, onde
estréia hoje no Tuca, às 21 horas, para ficar três semanas. Neste de agora, que
reúne músicas de seus mais recentes LPs, “Seu Tipo”, “Sujeito Estranho”,
Nei procura dar mais enfoque à sua voz, deixando de lado as plumas e os
rebolados exagerados. (D.S, 1980)
Sobre a permanente polêmica em torno do espetáculo, Ney Matogrosso
declara em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo a imprevisibilidade de seu novo
espetáculo, bem como o momento de sua carreira. O cantor afirma:
Isso não quer dizer que encaretei. É apenas uma fase da minha carreira. E as
pessoas tem gostado exatamente porque sabem disso e que posso mudar
novamente amanhã para outra faceta que nem imaginam. De modo que não
se surpreendem quando me em entrando no palco com um terno branco, de
colarinho e colete. Sabem que sou nada “sério”, no sentido sério da palavra, e
aguardam uma surpresa que vem logo a seguir durante o show (D.S, 1980).
Seguido a declaração do cantor a Folha prossegue com a matéria,
comentando o sucesso do artista na Argentina e a possível projeção de sua carreira no
exterior entre os países da Venezuela e México. A Folha aborda:
O sucesso obtido por Nei Matogrosso em Buenos Aires, meses atrás, fez com
que ele gravasse agora um compacto simples com duas músicas de seu antigo
repertório (“Bandido Corazón” e “Bandoleiro”) vertidas para o espanhol. Há
também proposta de uma nova temporada na Argentina com dez
apresentações e a idéia de prolongar a turnê por outros países da Arica do
Sul, incluindo Venezuela e México. Ele ficou surpreso com o sucesso de três
dias, em casa lotada (cerca de dois mil lugares) e do quanto os argentinos
conheciam o seu trabalho. Para aquelas apresentações, Nei montou um show
fazendo um apanhado geral de sua carreira, onde, durante uma parte, voltou a
mostrar o visual que costumava fazer aqui. (D.S, 1980)
A autonomia artística do cantor Ney Matogrosso é significativa perante o
setor do show business, com a produção de seus shows e sua projeção no exterior, como
ficou demonstrado a partir do advento da Matogrosso Produções Artísticas inserida no
mercado. No entanto o processo de autonomia artística do cantor frente às gravadoras
iria tornar-se mais perceptível um pouco mais tarde, quando o artista assina contrato
com gravadora alemã Ariola. A Folha de São Paulo, no dia 01 de março de 1980,
publica entrevista onde é demonstrada a possibilidade e ao mesmo tempo o anseio do
cantor rumo à concretização de sua autonomia frente ao mercado fonográfico:
156
Folha de São Paulo: Esse disco como deve ser feito. Até hoje o seu trunfo
tem sido show. Seria por que em disco nunca fez o que quis?
Ney Matogrosso: É sim. Tenho umas idéias muito pessoais sobre disco, que
nunca pude pôr em prática.
Folha de São Paulo: Há informações seguras de que você teria recebido uma
proposta irrecusável da Ariola – essa gravadora alemã que entrou no mercado
comprando todo mundo para largar a Wea-Discos e passar para ela. É
verdade? Nesse caso só faria o que quisesse nas gravações?
Ney Matogrosso: Dinheiro, , não é a questão fundamental, embora conte o
bastante. Quero mesmo é experimentar direito no disco. Mas oficialmente
ainda sou do cast da Wea-Warner. Por isto a respostas fica prejudicada.
Entendido?(CHRYSOSTOMO, 1980b)
Continuando esse processo de transição de gravadoras, onde se deu a
passagem do cantor da WEA para a mais nova gravadora dentro do mercado brasileiro a
Ariola Discos Ltda, de origem alemã, o Jornal da Tarde publica em 28 de agosto de
1980: “Em dezembro vence o contrato com a gravadora e ele vai para a Ariola, além de
ser uma faceta nova a compor sua carreira de intérprete que escapa de qualquer tentativa
de rotulação” (NEY MATOGROSSO, 1980). A Folha de São Paulo em matéria
publicada em 05 de novembro de 1980 comenta a transição entre as gravadoras:
Com muita calma que pretende gravar seu próximo LP, o primeiro que fará
na Ariola, com quem assinou recentemente, deixando a Wea. Segundo
adiantou, será um disco com temas sobre natureza, que curte muito. A
intenção é ir gravando fitas aos poucos e deixando no estúdio. pelo meio
do ano que vem dará um balanço em tudo e concluio LP. Para fazer uma
espécie de anúncio do próximo disco, ele lançará, no começo do ano, um
compacto simples, com “Folia no Matagal” e “Seu Valdir” (D.S, 1980).
Em entrevista ao setor de música da Revista Amiga, publicada em 07 de
Janeiro de 1981, o cantor mostra-se satisfeito com sua mudança de gravadora,
salientando suas vantagens contratuais. A Revista anuncia: “Satisfeito com a sua ida
para a Ariola, principalmente pelas vantagens contratuais, Ney não guarda nenhum
ressentimento da WEA e sabe que terá uma luta bastante árdua daqui pra frente” (NEY
MATOGROSSO, 1981). Acerca de sua nova gravadora o cantor declara a revista:
Uma gravadora nova, porém muito estimulante, porque esno mercado pra
valer e o para contar estórias. Eu nunca tive vergonha de pedir dinheiro
para gravadora e acho que essa sacudida que a Ariola deu no Brasil foi um
alerta para todas as concorrentes de que precisa prestar mais atenção e dar
mais condições para os artistas. Sei que com isso o trabalho aumenta, mas
fico muito gratificado. (NEY MATOGROSSO, 1981)
157
Mesmo inserido de uma forma mais independente no show business ,
atuando com a Matogrosso Produções Artísticas e seu contrato com a nova gravadora a
Ariola Discos, o artista continua com problemas com o setor empresarial. O ponto
crucial dessa problemática refere-se à produção de espetáculos e deu-se a 7 de
dezembro de 1980, quando o artista deveria apresentar o show Seu Tipo no ginásio de
esportes Castelo Branco, na cidade de Araraquara, interior paulista. O Jornal O Estado
de o Paulo publica o fato em destaque no caderno de cultura, chamando a atenção do
leitor para a questão de ordem financeira e judicial. Segue matéria:
Um público de aproximadamente 1.600 pessoas o chegou nem a entrar no
ginásio de esportes de Araraquara, na noite de domingo, onde o cantor Ney
Matogrosso iria apresentar o show “Seu Tipo”. O espetáculo estava marcado
para às 21 horas, mas o cantor já se encontrava no local pouco depois das 20
e, ao olhar para o público que se aglomerava na parte externa,
aproximadamente umas 800 pessoas, à espera da abertura do portão, disse
para um grupo: “Não canto para menos de mil pessoas”. Em seguida,
acompanhado por elementos de uma firma de promoções artísticas de Marília,
retirou-se pela porta dos fundos, sem que o público percebesse. Com a
notícia que o cantor fugira, houve um princípio de tumulto, contido pelo
grande número de policiais. As primeiras 40 pessoas que correram aos
guichês conseguiram a devolução do dinheiro (300 cruzeiros), mas os 250
mil cruzeiros arrecadados com a venda de ingressos durante a semana, em
vários pontos da cidade, desapareceram. O sargento Vidal, encarregado do
policiamento fez questão que Santo José de Souza, único representante da
Firma Reasom, encarregada da divulgação do show, assinasse um
compromisso de devolução do dinheiro, o que deve ser feito na próxima
sexta-feira. (CANTOR, 1980
)
O Estado de São Paulo com a manchete empresário quer processar Ney
Matogrosso, publica, em 03 de janeiro de 1981, sua versão sobre o incidente na cidade
de Araraquara-SP.
O cantor Ney Matogrosso iria realizar um show no dia sete de dezembro, no
Ginásio de Esportes “Castelo Branco”, em Araraquara, mas recusou-se a
entrar no palco, alegando que o faria o show para menos de mil pessoas.
Segundo o sargento Vidal, da PM da cidade, o cantor, em companhia de seus
empresários, abandonou o ginásio com o dinheiro da venda dos ingressos.
Terminado o prazo concedido para o empresário Ernesto Ferrari, da firma
Ney Matogrosso Produções e Profitel, voltar a Araraquara para devolver o
dinheiro dos ingressos a quase 800 pessoas que ficaram sem assistir ao show
do cantor no início de dezembro em Araraquara, o proprietário da firma
Atanalu Confecções ameaça recorrer á justiça para que o cantor pague os
prejuízos causados a sua empresa e ao público. (EMPRESÁRIO, 1981)
A matéria segue mostrando declarações feitas pelo empresário da firma
Atanalu Confecções no sentido de tomar medidas previstas em lei para o ressarcimento
158
do dinheiro investido por sua empresa na produção do espetáculo. Segue declaração do
empresário:
O empresário Ernesto Ferrari ficou de devolver o dinheiro dos ingressos;
porém até agora ele não deu sequer satisfações. Por isso, contratei um
advogado para defender os meus direitos e os de quase 800 pessoas que
adquiriram ingressos e que até agora não tiveram seu dinheiro de volta.
explicou o proprietário da empresa particular do espetáculo. (EMPRESÁRIO,
1981)
A Revista Amiga, em 07 de janeiro de 1981, publica matéria sobre esse
incidente, apontando para uma negligência por parte dos organizadores do evento em
Araraquara-SP.
Em seu apartamento (ainda em reformas), um triplex no alto Leblon, Ney
Matogrosso descansa e recebe massagens após cumprir a primeira etapa do
tour de final de ano, iniciado em novembro no interior paulista e que
terminará no final de fevereiro, abrangendo todo o sul do país. Logo no início
da viagem Ney encontrou problemas com seu show em Araraquara, onde não
realizou o espetáculo e foi acusado de ter fugido com 250 mil cruzeiros.
(NEY MATOGROSSO, 1981)
Em seguida a essa intervenção do corpo editorial da Revista Amiga, o artista
apresenta uma outra versão sobre o episódio de Araraquara, contradizendo algumas
matérias que saíram na mídia, que apontavam para descaso do artista. Ney declara a
Revista: Na cidade não tinha nada armado. O empresário confiou em algumas pessoas
que se comprometeram em fazer divulgação e no dia, às 9 horas da noite, havia 400
lugares vendidos para um local de 5 mil. Devolvemos o dinheiro de cada um”(NEY
MATOGROSSO, 1981).
Todas essa problemática acima levantada em torno da relação do artista com
o setor empresarial, demonstra que, mesmo após a criação da firma Matogrosso
Produções Artísticas, a autonomia artística do cantor ainda não era completa, pois,
mesmo com seu auto-empresariado, sua empresa deveria estabelecer relações
financeiras com outros setores do mercado, que impunham, dessa forma, à Matogrosso
normas e regras da instria cultural, fundadas nos princípios do mercado financeiro.
Esse será o próximo ponto a ser analisado com o espetáculo vindouro que o consagrou
perante ao público e à mídia.
159
3.2 Ney Matogrosso: a consagração face ao público e à mídia
O objetivo desse item é compreender o período em que o artista Ney
Matogrosso afastou-se da zona de interstício na qual se encontrava, uma condição de
liminaridade artística em relação à dia e ao público, até o lançamento do long play e
do espetáculo intitulados Ney Matogrosso. Por meio desses, o cantor atinge a
consagração pelo público e mídia, em decorrência da repercussão e penetração que o
espetáculo adquiriu em âmbito nacional, projetando, de tal modo, o cantor em nível
internacional.
Vários fatores levaram a essa consagração do artista naquele momento, o
espetáculo Ney de Souza Pereira no programa Grandes Nomes, veiculado pela Rede
Globo de Televisão, a premiação com o primeiro disco de ouro de sua carreira solo com
a vendagem de mais de 300 mil pias, bem como a grande aceitação do público na
estréia do espetáculo no Canecão-RJ. Dessa maneira, o artista afasta-se de sua condição
de liminaridade, aproximando-se de sua autonomia em face ao mercado fonográfico e
ao show bussiness.
Após esses fatos o artista volta, 8 anos depois de sua ruptura com o grupo
musical Secos & Molhados, que tinha assumido contornos de fenômeno de massa, a se
apresentar no estádio coberto do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Dessa maneira o
artista início ao processo de retomada do status anterior de fenômeno de massa,
quando, a partir dessa apresentação, esgotou-se a bilheteria do ginásio para um blico
estimado em 15 mil pessoas. A partir de então o artista passa a se apresentar em grandes
espaços, consagrando-se como fenômeno de massa.
160
3.2.1 O disco de ouro e a estréia no Canecão: aplausos!
Em maio de 1981, o artista Ney Matogrosso lançou pela gravadora Ariola
discos Ltda o seu novo long play, intitulado Ney Matogrosso
4
. Com contrato assinado
com a nova gravadora e a empresa Matogrosso Produções Artísticas o cantor inaugura
uma nova fase dentro de seu processo de concretização de sua autonomia face a ordem
imposta pelo mercado fonográfico e pelo show business. No entanto, antes do
lançamento oficial do LP, o cantor gravou um compacto simples com as músicas Folia
no Matagal e Seu Valdir para fins de divulgação de seu novo trabalho pela Ariola discos.
Por questões de natureza moral a música Seu Valdir foi vetada pelos óros de
repressão e censura do regime militar.
Dessa maneira, apenas a música Folia no Matagal foi liberada para a
gravação e divulgação do Lp. A revista Amiga anuncia esse fato em relação à censura:
No primeiro disco gravado pela nova marca (compacto simples), Ney encontrou,
também, o seu primeiro problema. A música Seu Valdir, que inicialmente não obteve
parecer positivo da censura, levou ao recolhimento de alguns exemplares do disco das
lojas.” (NEY MATOGROSSO, 1981)
Passado esse entrave com a censura e com a posterior liberação da música
Seu Valdir, foi lançado oficialmente o LP Ney Matogrosso, entretanto a música outrora
vetada, não foi incluída nesse novo trabalho. Apenas Folia do Matagal permaneceu. O
LP trazia em sua capa a cabeça do artista
5
como se estivesse decepada, em cima de luzes
azuis de néon,as quais representam os contornos de uma metrópole, anunciando o nome
do cantor Ney Matogrosso.
Músicas:Deixaamenina(ChicoBuarque),EspinhadeBacalhau(SeverinoAraújoeFaustoNilo),Viajante(Terez
a Tinoco),Mata Virgem(Raul Seixas e Tania Menna Barreto),Homem Com H(Antonio Barros),Amor
Objeto(Roberto de Carvalho e Rita Lee),Vida-Vida(Moraes Moreira, Zeca e Guilherme Maia),De
Marte(Luli e Lucinha),Folia no Matagal(Eduardo Dusek e Luis Carlos es). Ficha Técnica: Direção
Artística: Mazola. Produção e Mixagem: Mazola.Projeto Musical:Fausto Nilo, Mazola, Ney Matogrosso,
Alexandre Agra.Estúdios de Gravação:Sigla e Transamérica-RJ.Técnicos de Gravação:Carlão (Sigla) e
Vitor (Transamérica).Auxiliares de Gravação:Serginho, João Ricardo, Eduardo e Nestor (Sigla) , Magro
(Transamérica).Auxiliares e Mixagem:Ney Matogrosso, Alexandre Agra.Auxiliares Técnicos de
Mixagem: Marco Aurélio, Carlos, Magro, Aníbal, Rafael
Azulay (Transamérica).EquipeTécnica:
Dudu,RicardoAugusto(Transamérica),Gordinho(Sigla).Montagem:WilsonMedeiros.LayOut:YukaParkins
on,LuisFernandoe Ney Matogrosso.Ilustração:Yuka Parkinson. Fotos: Luis Fernando (capa) e Wilton
Montenegro (encarte).Coordenação Gráfica:J.C. Mello.
5
Vale ressaltar que a arte nica desse trabalho de Ney Matogrosso o timo de sua carreira solo, remete
a concepção da capa do primeiro LP do grupo Secos & Molhados, onde aparece a cabeça decepada de
seus quatro integrantes servida em bandejas entre artigos de secos e molhados.
161
O rosto do artista apresenta-se sutilmente pintado, olhos contornados
levemente de preto e os lábios com batom de tonalidade vermelho-claro. Em cima de
sua cabeça, pairava uma grande águia de asas abertas, dando a impressão de estar
sobrevoando a cidade conduzindo o cantor. A Folha de São Paulo comenta em matéria
publicada em 16 de agosto de 1981 a concepção cênica do LP, chamando a atenção do
leitor para o caráter místico da obra: “Ney escolheu para a capa a figura do gavião real.
Não só pela ligação simples com a vida animal. também uma aproximação mística:
um simbolismo de espaço, altos vôos – um pairar acima de tudo, característica reforçada
por Leão, o signo forte” (TAIAR, 1981).
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 17 – Ney Matogrosso capa LP, 1981.
Esse trabalho do cantor foi produzido à época pelo produtor musical Marco
Mazola, tendo sido marcado por uma multiplicidade de ritmos como, Deixa a Menina
um samba de Chico Buarque, Amor Objeto uma canção pop de autoria de Rita Lee.
Músicas melódicas de ritmo lento como Viajante de Tereza Tinoco, Mata Virgem de
Raul Seixas e De Marte da dupla Luli e lucinha, somado a eufórica marchinha
carnavalesca Folia no Matagal de Eduardo Dusek e do forró Homem com H de Antônio
Barros. Essa última foi a música mais executada nas rádios, onde sugeria uma
ambigüidade em função da imagem do artista aproximar-se do universo feminino em
contrapartida a letra da música que remetia ao universo do “macho” nordestino.
A Folha de São Paulo publica: “Homem com H a caão está nas paradas de
sucesso, e para muita gente a música parece uma provocação. Ney declara a Folha: É
uma uma provocação bem-humorada: o tem nada de agressivo. As pessoas, a meu ver,
acham engraçado porque ainda tem aquela imagem de androginia no ar” (CAMBARÁ,
1981). Dessa maneira o long play do cantor ficou caracterizado por uma
162
heterogeneidade de sons e ritmos com grande aceitação e vendagem no mercado,
resultando dessa maneira no primeiro disco de ouro da carreira solo do cantor pela
gravadora Ariola. O Jornal da Tarde publica em 14 de agosto de 1981: “Em pouco mais
de um mês, com apenas um show no Rio, já vendeu mais de cem mil cópias. A Ariola,
sua atual gravadora até aproveitou o coquetel de anteontem para lhe entregar um disco
de ouro” (NEY, 1981).
A Folha de São Paulo aborda o assunto, em 16 agosto de 1981, com a
manchete: O imprevisível Nei. “Seu som e sua marca relata o momento do recebimento
do disco de ouro após entrevista coletiva concedida pelo cantor a imprensa no Salão
Topázio do Hotel Brasilton em São Paulo: Por isso, foi aqui que ele recebeu da Ariola,
ao final da coletiva, o primeiro disco de ouro, por seu último disco ter ultrapassado o
total de cem mil exemplares vendidos” (TAIAR, 1981).
Sobre o reconhecimento da mídia e da indústria fonográfica pela premiação
de um disco de ouro, o cantor demonstra um certo ressentimento com esses setores em
entrevista concedida à Rede Globo de Televisão, durante a veiculação de seu espetáculo
Ney de Souza Pereira no programa Grandes Nomes. Ney Matogrosso declara: “Não sou
uma avis rara, sou um cantor, embora somente esse ano, após sete de carreira, tenha
ganho um prêmio” ( NEY, 1981 apud FILHO, 1981, p.01).
Continuando esse reconhecimento ao talento do artista, foi publicada no
Jornal da Tarde matéria enaltecendo o fato de que há muitos anos nenhum outro cantor
brasileiro havia conseguido tamanha projeção, tornando-se, portanto, um astro apenas
por cantar, sem compor, sem tocar instrumento e sem apadrinhamento; de que o artista
foi construindo sua independência ao longo de sua carreira solo e que hoje canta o
que quer e como quer, após três mudanças de gravadoras. Comentando acerca de sua
relação com as gravadoras e repertório a ser gravado o cantor declara ao jornal fazendo
menção ao seu processo de autonomia artística:
Quando escolho músicas aceito sugestões, mas nunca abro mão da última
palavra, sou eu quem decide. Não sei guardar nada pra depois. O que tenho
de falar eu falo na hora. Bato muito a boca, lavo muita roupa suja mesmo,
não tenho medo de falar mal de gravadora. Por mais amigos que todos sejam,
sei que se trata sobretudo de uma relação comercial. Eu interesso a eles na
medida que dou lucro, ninguém vai se lembrar de mim e me proteger quando
eu estiver velho e sem voz. (PEREIRA, 1981)
163
O show levou o mesmo nome do LP Ney Matogrosso e estreou no início de
junho de 1981 na casa de espetáculos Canecão-RJ. Tal qual a capa do LP, o cenário do
espetáculo trazia a águia no fundo do palco em uma concepção mística:
Como a capa do seu último disco, o cenário do show de Nei Matogrosso, no
Canecão, é dominado por uma águia. Para o cenógrafo, Marcos Flaksman, a
ave tem imponência, a beleza, a agressividade e a agudeza do artista. Para
seu secretário, Luisinho, Nei é a própria águia: “Ele está sempre sobrevoando,
pairando sobre tudo e sobre todos”. Mas, para Nei Matogrosso, a águia tem
um simbolismo especial: é a mente humana em elevação, “procurando algo
que está acima de nós” (CAMBARÁ, 1981).
Segundo depoimento do próprio artista a concepção de tal espetáculo foi
direcionada ao público no sentido do entretenimento desvinculado de correntes político-
filoficas. Dessa forma, o trabalho do artista recebe críticas negativas por parte de
alguns segmentos de esquerda e da mídia que naquele momento ansiavam por ver um
comportamento em cena do artista mais politizado em relação às questões sociais. O
patrulhamento político-ideológico exercido por alguns setores da mídia e dos partidos
de esquerda, os à época chamados “inteligentistas”, era expressivo, pois exigiam um
engajamento do artista nas causas sociais. Ney declara sua intenção sobre a
montagem de seu novo espetáculo ao Jornal O Globo:
A minha intenção é fazer um show que divirta as pessoas, quero que vejam
um espetáculo bonito, bem feito, fazer o melhor. Penso que nos momentos de
crise, o povo merece um pouco de diversão. Existe uma parte da inteligentzia
que me cobra atitude, mas eu quero divertir as pessoas. Meu Deus! Não
preciso falar nada, as pessoas estão vendo, sentindo...Não é um trabalho
menor distrair alguém por uma hora, durante um dia! A inteligentzia quer
que eu fale de miséria, mas está tudo o claro, flagrante, todos sabem que o
País, que o mundo, que o planeta vai mal, está nos seus estertores. Quero
divertir as pessoas e sinto prazer quando termino um show e vejo o público
feliz. (PENTEADO, 1981a)
O primeiro passo dado pelo artista rumo à sua consagração face ao público e,
sobretudo à dia, deu-se em função da montagem desse seu novo trabalho. Devido à
grande projeção em âmbito nacional que alcançada pelo espetáculo, esse teve a faceta
de desvincular a atual da antiga imagem do cantor, a de ex-Secos e Molhados. Dessa
maneira o cantor liberta-se de forma significativa do estigma de ex-vocalista do grupo,
que foi por anos cultivada pela da dia.
164
A partir do espetáculo Ney Matogrosso, inicia-se a consagração popular e a
lenta retomada do cantor enquanto fenômeno comercial de massa, em razão da venda
inicial de mais de 300 mil pias de seu novo LP e o retorno de suas apresentações em
grandes espaços, com uma produção que incluía diretor, coreógrafo, cenógrafo,
bailarinos e uma banda de nove músicos. O cantor Ney Matogrosso declara ao Jornal O
Globo a ruptura com o estigma de ex-Secos & Molhados, bem como sua volta aos
grandes espaços:
A princípio, eu o sabia como seria. Mas, pela primeira vez, vou ter um
diretor Amir Hadad; um coreógrafo Ciro Barcelos; três bailarinos;
cenografia do Marcos Flaksman, e uma banda com nove músicos. Pretendo
fazer um espetáculo grande, para ser apresentado em locais grandes, com
grande público. Sempre tive muito pudor em utilizar os “Secos & Molhados”,
achava que estaria apelando. Mas cheguei à conclusão de que eu fui “Secos
& Molhados”, por isso vamos abrir um show com um número dessa época,
feito pelos dançarinos. Eu não estarei no palco nessa hora, mas é uma forma
de identificação. A partir daí, resolvemos fazer uma retrospectiva da minha
carreira, sem clima de “hora da saudade”, ou “Minha vida é assim”, pois
estarei com outras roupas. Vou intercalando músicas antigas com novas e
também com músicas que ouço no rádio. o tenho preconceito em cantar
nada que esteja no hit-parade. Somente pinto os olhos e a boca, porque são
dois pontos do rosto, no palco,que tem de ser realçados. Agora estou
voltando superfantasiado, utilizando esses detalhes como recursos, o
preciso mais me esconder de nada. (PENTEADO 1981a)
Em matéria redigida pela jornalista Isa Cambará da Folha de São Paulo, Ney
Matogrosso canta a imponência da águia, publicada em 23 de junho de 1981, é
apontada a ruptura do artista com o estigma de ex-Secos & Molhados. Em função da
menção feita ao grupo pelo artista em seu novo espetáculo, a Folha publica:
O espetáculo do Canecão que, como o disco, se chama simplesmente, “Nei
Matogrosso pretende ser uma retrospectiva de sua carreira, ”mas sem um
aspecto saudosista”. Pela primeira vez, depois da dissolução do conjunto, Nei
relembra, no palco, o conjunto “Secos & Molhados”. “Eu sempre evitei
relembrar o conjunto, pois isso me parecia uma tentativa de faturar com o
passado. Depois vi que era um preconceito. Afinal, eu fui um dos “Secos &
Molhados”. Assim, quando o Amir Hadadad (diretor do show) sugeriu que o
espetáculo fosse montado em cima dos meus melhores momentos, resolvi
reviver o início da minha carreira. fiz uma exigência, que a música
escolhida o fosse “O Vira”, que foi a marca registrada do “Secos”, pois
não sei se a minha cabeça agüentaria a pressão. Assim, a primeira música do
show é a mesma que abria os espetáculos do “Secos & Molhados”: “Mulher
Barriguda”. Ao contrário do que muita gente esperava, Nei não surge
rebolando em cena. Canta fora do centro do palco, onde brilham três
bailarinos, vestidos e maquiados à Secos & Molhados”, representando o
conjunto. Quando aparece, o traz no rosto a pintura que usava como
vocalista do seu ex-grupo, mas uma máscara” (CAMBARÁ, 1981).
165
Com esse espetáculo o artista chega segundo o relato de alguns setores da
mídia e de sua própria percepção ao requinte artístico em seus figurinos e cenários. A
Jornalista Denise Pirez Vaz relata em seu livro Ney Matogrosso um cara meio estranho:
“Corria o ano de 81, e o espetáculo, que levava apenas seu nome e é considerado hoje
por Ney como o ponto máximo de requinte em termos de figurinos e cenários, chegava
ao extremo de um filão exageradamente sexual” (Vaz, 1992, p.117). Continua descrição:
No palco, três bailarinos quase nus contracenavam com Ney em rios
momentos, como uma multiplicação da sua própria figura: o show começava
com os bailarinos dançando de tapa -sexo, com o rosto pintado de preto e
branco, relembrando a época do Secos & Molhados. Numa determinada hora,
o original surgia detrás dos três, o rosto pintado da mesma maneira, que
utilizando o recurso nico de uma máscara-retirada, ela deixava aparecer o
rosto apenas com a boca e os olhos pintados. A roupa, mais tarde, seria
retirada pelos bailarinos, culminando no tal strip-tease: deitado sobre as
costas de um dos bailarinos, Ney era despido pelos outros dois, ao som de
uma batucada, e ficava somente com um tapa-sexo tacheado (VAZ, 1992,
p.117).
Em matéria publicada acerca do novo espetáculo do cantor a Folha de São
Paulo descreve a indumentária do artista:
São dois figurinos, em que a ousadia é a marca maior. A primeira foi
chamada de “calça frente única”, pois tem aberturas estratégicas na parte de
trás. A segunda toda branca, é dominada por um arranjo de couro, em tiras,
que Nei usa hora na cintura, ora no dorso nu. Sua nudez, aliás, é quase
completa no final da primeira parte, quando ele faz um “strip-tease” mais
um no palco, mas desta vez, sem espelhos ou biombos. Tanta ousadia
gerou comentários na imprensa, do tipo “vamos ver onde o próximo
espetáculo vai acabar”, e “não precisava mostrar tanto”. Mas o público adora,
aplaude e pede bis (CAMBARÁ, 1981).
Sobre esse momento de concepção de figurino o artista declara a Folha:
“Mandei fazer uma roupa completamente desvinculada do espetáculo. É uma roupa que
o tem compromisso com nada. Se quiser modificá-la, amanhã, posso fazer isso, sem
susto. Quis mostrar que a atual fase da minha vida é de transformação, de passagem”.
(CAMBARÁ, 1981).
Tal espetáculo foi o primeiro da série de outros em que houve a participação
de um diretor em sua montagem e concepção. O show Ney Matogrosso teve em sua
166
direção o teatrólogo Amir Haddad
6
que acompanhava o artista desde os idos da década
de 60. O Jornal do Brasil relata esse encontro entre o cantor e o diretor em matéria
publicada em 05 de junho de 1981:
À primeira vista a reunião do cantor com o diretor poderia parecer inusitada,
mas o contato e a amizade dos dois é antiga, desde na montagem de O
Coronel de Macambira, no TUCA de São Paulo no final da década de 60,
quando o futuro Ney Matogrosso assinava os adereços da peça. Trabalhando
atualmente com o Grupo na Rua, Amir Haddad o encontrou
dificuldades em dirigir o ator-cantor, como ele o define. O diretor preferiu
defini-lo (espetáculo) como uma viagem. (ARAGÃO, 1981)
Em seguida a fala do diretor, em entrevista ao Jornal do Brasil, elucidando a
sua direção no tocante ao espetáculo, no sentido de exercer seu papel de provedor e não
propriamente dito de um diretor no sentido tradicional do termo. Amir Haddad declara:
Quando falo em dirigir o Ney Matogrosso fica a impressão e que digo pra ele
fazer isso ou aquilo. Não dirijo mais ninguém, a nação tem muitos
dirigentes. muito tempo que trabalho com a fertilidade das pessoas e Ney
é uma cornucópia infindável. A única coisa que fiz foi organizar a
criatividade e a fertilidade do Ney e por isso meu trabalho tem pouco em
comum com a idéia tradicional de direção. Cito, como, exemplo, de afloração
desta fertilidade, que ele tem, a sua procura maior do corpo. (ARAGÃO,
1981)
A Folha de São Paulo notifica esse trabalho reforçando a iia de criação
artística em matéria da Jornalista Isa Cambará, publicada em 23 de junho de 1981,
enfocando afinidade e a parceria feita entre diretor e artista fora do sentido tradicional
de direção:
Nei e Amir conhecem-se a muito tempo, mas essa é a primeira vez que
trabalham juntos. O convite partiu de Nei, “pois todas as vezes que nos
encontrávamos, durante meus espetáculos, Amir me dava uns “toquesque
coincidiam com meus pensamentos: senti que ele via além de outras pessoas”.
Convite feito, convite aceito, pois Amir é muito ligado em música e
movimentos, “e um espetáculo de Nei é isso tudo”. O diretor não gostou
de uma pergunta que lhe passaram a fazer, quase que obsessivamente: E
difícil trabalhar com Nei Matogrosso?”. Perguntavam como se a dirão
fosse o domínio de uma pessoa sobre a outra, como se a única linguagem
possível fosse a autoritária. E o que há entre eu (sic) e Nei é, principalmente,
respeito.” E foi justamente esse clima, na opinião do cantor, que possibilitou
o surgimento de um espetáculo bonito, sincero, aberto. A sinceridade
segundo ele mesmo, aparece até na roupa do ‘show’. A imagem está no palco.
É o resultado de nosso trabalho, pois quando comecei o tinha uma imagem
formada de Nei e acho que, se tivesse, o teria aprisionado. Meu trabalho foi
6
Durante a montagem de O Coronel de Macambira, no final da década de 60, no Tuca de São Paulo (na
qual Ney era uma das pessoas que confeccionava objetos de cena), ficou conhecendo Amir Haddad, que,
mais de dez anos depois, viria a ser seu primeiro diretor de show (VAZ, 1992).
167
criar condições para que essa imagem aflorasse no palco. E surgiu uma
imagem forte, poderosa, atraente, excitante. No fundo, a própria identidade
do artista, embora exista muito da minha expressão no espetáculo. que
essa expressão o
é ostensiva, pois o show, claro, é de Nei Matogrosso”
(CAMBARÁ, 1981).
Durante a estréia do espetáculo Ney Matogrosso em junho de 1981 no
Canecão-RJ o artista não somente conseguiu afastar-se do estigma passado, mas
também projetou novamente sua imagem perante alguns setores da dia que o
mantinha em um estado de anonimato, como o Jornal do Brasil, que por um período de
dois anos vetou qualquer menção ao cantor. Dessa maneira o artista ganhou outra vez
notoriedade e visibilidade de forma relevante na dia, reaparecendo como um novo
fenômeno de massa, fato esse que lhe foi atribuído no início de sua carreira quando
vocalista do grupo Secos & Molhados.
Sobre tal episódio o cantor declarou de forma contundente, em entrevista
concedida ao Jornal da Tarde em setembro de 1981, que de se mostrar para o
grande blico em sua íntegra, sem cortes oriundos dos óros de repressão e censura
do regime militar, nem tampouco de alguns segmentos da própria dia, por meio do
programa Canal Livre veiculado pela Rede Bandeirantes de Televisão em julho de 1981.
Os meios de comunicação nunca falaram de uma pessoa, eu, mas da imagem
Ney Matogrosso. Na televisão eu pude me mostrar como sou num
programa recente (o canal livre, da Bandeirantes), mas pelo menos desde 73
eu falo tudo. Se não publicavam era um problema de censura dos jornais,
nunca meu. Sei de jornais onde minhas fotos foram proibidas e de rádios que
passaram anos sem tocar meus discos por preconceitos pessoais dos seus
diretores ou donos. ( NEY, 1981 apud PEREIRA, 1981)
Em entrevista a Rede Globo de Televisão durante as gravações de seu
especial para a emissora intitulado Ney de Souza Pereira, o artista fala acerca de seu
sucesso quando ainda integrante do Secos & Molhados e do sucesso atual junto à mídia
e ao público, sobre seu amadurecimento artístico e tece um paralelo entre esses dois
momentos de sua carreira enquanto fenômeno de massa. Ney declara:
Com o Secos e Molhados, de repente, saí da margem, onde vivia por opção,
por não concordar com a sociedade estabelecida, e fui jogado no centro de
milhares de acontecimentos. Se fosse adolescente, teria pirado. O Secos e
Molhados foi um grande acontecimento na minha vida, mas não tenho
saudades. Hoje, de certa forma, acho que o sucesso é quase o mesmo, mas
como veio com calma, me deu tempo para digerir. Eu o me aflijo, porque
foi algo que veio paulatinamente. Além do mais, a minha idade me permite
168
encarar com mais tranqüilidade ainda tudo isso. Sou grato por ter 40 anos. As
pessoas, quando falam em idade, ficam muito preocupadas com o que o
tempo tira delas, sem parar pra pensar que ele enriquece tamm. Sou
daqueles que acreditam que o tempo traz sabedoria e conhecimentos da vida.
E isso estou sempre procurando. (NEY, 1981 apud FILHO, 1981)
Ainda sobre seu atual sucesso, o cantor tece uma rápida retrospectiva de sua
carreira solo declarando à Rede Globo de Televisão que se preparou para esse momento
de retomada como fenômeno de massa, pois segundo o artista tudo caminhou e foi
conduzido para esse acontecimento. Ney declara:
Tudo que está acontecendo acho uma conseqüência natural do meu trabalho
nesses últimos anos. Comecei no Teatro Ipanema, para 200 pessoas e, pouco
a pouco, isso foi se ampliando. Os meus espetáculos, em geral, são bastantes
representativos de como me sinto naquele determinado momento. Durante
dois anos fiz Bandido,uma coisa vigorosa: depois, Feitiço, um show de bolso,
pequenininho, miudinho, onde coloquei tudo que aprendi; Seu tipo, da minha
época introspectiva. Nessas fases todas eu percebia uma grande tendência de
aumentar o público, ampliar a faixa etária. Este novo espetáculo fiz
especialmente para grandes locais. Daí ter colocado mais gente na banda e
três bailarinos, para ter um visual bonito e grandioso, e poder ser visto a
distância. Estou conseguindo o meu objetivo, o que me deixa bastante
satisfeito. (FILHO, 1981, p.01)
Lentamente a imprensa escrita vai abrindo espaço para o artista dando uma
dimensão de “ressurgimento” do cantor, após um período de ostracismo perante esse
setor da mídia. Nesse momento os jornais de maior circulação em âmbito nacional,
começaram a demonstrar, por meio de suas matérias e manchetes, um certo anseio em
fazer “justiça” via reconhecimento do talento do artista.
Esse anseio de reconhecimento do talento do artista é refletido nas várias
matérias veiculadas pelos meios de comunicação da época, que apontavam para essa
consagração pública e midiática do artista. As seguintes manchetes assinalam: Ney
Matogrosso: se não quiser saber alguma coisa, não me pergunte. Eu falo tudo (Jornal
Globo em 31 de maio de 1981); A ousadia e a sensualidade de Ney Matogrosso no
Canecão (O Globo 05 de junho de 1981); Ney Matogrosso: um espetáculo de milhões
para contar seus oito anos de carreira (Jornal do Brasil 05 de junho de 1981);
Matogrosso canta a imponência da águia (Folha de São Paulo 23 de junho de 1981);
No Maracanãzinho, 15 mil pessoas cantam com Ney Matogrosso (O Globo 20 de julho
de 1981); Seu novo show, pronto para começar uma rotina: o sucesso (Jornal da Tarde
14 de agosto de 1981); O imprevisível Nei, seu som e sua marca (Folha de São Paulo 16
169
de agosto de 1981); Beleza, um superlativo no show de Ney Matogrosso (Jornal da
Tarde 21 de agosto de 1981); Ney, com música, alegria e deboche (O Estado de São
Paulo 28 de agosto de 1981); “Sou um ator que canta” (Jornal da Tarde 12 de setembro
de 1981)
7
.
Essa repercussão dentro dos jornais de maior circulação do país representou
sua consagração, sendo mais um passo de grande significação dentro de seu processo de
concretização de sua autonomia artística. Com sinalização positiva frente à indústria
fonográfica e ao show business, os encargos burocráticos com seus respectivos
investimentos e valores que envolvem a indústria cultural passaram a ter um espaço
significativo dentro da imprensa escrita. O Jornal do Brasil em matéria publicada em 05
de junho de 1981 anuncia em manchete: Ney Matogrosso: um espetáculo de milhões
para contar seus oito anos de carreira. Segue matéria publicada:
São oito anos de carreira focalizados ao longo de um show que dura uma
hora e 15 minutos, representando um investimento de Cr$ 9 milhões para a
temporada de três semanas no Canecão, seguida de espetáculos em São Paulo,
Porte Alegre, Curitiba. Salvador, Fortaleza e Recife. É o auge da carreira de
Ney Matogrosso, que retorna numa superprodução a cargo da Matogrosso
Produções Artísticas, envolvendo 42 pessoas, entre as quais nomes como os
de Amir Haddad (dirão), Marcos Flaksman (cenografia) e Ciro Barcelos
(coreografia). Para montagem do atual espetáculo cantor não mediu esforços
e a primeira providência, logo que o show foi pensado, era a de se conseguir
um lugar amplo. A iluminação e seus efeitos são assinados pelo cenógrafo
que criou um pássaro para compor o décor do palco, feito com lâminas de
plástico e purpurina. Confiante no show em que está investindo todo seu
dinheiro e mais alguns empréstimos, Ney Matogrosso, afirma: Com este
espetáculo estou retomando a fantasia e a pintura o para criar um
personagem que me defenda, mas porque minha noção de palco é hoje muito
teatral. Acho que meu ponto ideal, para o show ficar realmente bom, é de
normalmente um mês, até encontrar o ajuste na medida certa e com Amir
acho que posso encontrar isso antes. (ARAGÃO, 1981)
.
Durante a temporada do espetáculo Ney Matogrosso no Canecão, Rio de
Janeiro
8
,
que recolocou o artista dentro da mídia, é concedido ao cantor espaço para seu
7
Vale ressaltar que o número de matérias sobre o lançamento do LP e show do artista triplicou em relação
ao ano anterior. Em 1980 foram publicadas 13 matérias em 1981 foram editadas 34 matérias sobre o
percurso do artista e seu novo espetáculo.
8
Funcionando numa área de 3 mil 500 metros quadrados, com capacidade para 2 mil pessoas distribuídas
em 600 mesas, é administrado pela família Priolli, encabada por rio e seu primo Zeca. Na direção de
produção está Manoel Valença, o Maneco, que trabalha na casa desde a sua inauguração e supervisiona as
300 pessoas que formam o staff do Canecão, entre garçonetes, bilheteiros, seguranças, marcineiros,
técnicos de luz e de som. A fim de conquistar uma platéia mais jovem, o lugar criou mais de um ano
setores laterais de arquibancadas, permitindo a compra do ingresso avulso (atualmente Cr$ 700). Apesar
de afirmar que hoje em dia, o preço mínimo de um ingresso teria de ser de Cr$ 1 mil 200 para
acompanhar a correção. Em noites de estréia e temporadas boas, casa lotada todas as noites, previsão para
170
relato referente a esses setores burocráticos, espaço raramente concedido pelos meios de
comunicação de massa a artistas da Música Popular Brasileira. Questões dessa natureza
o eram comumente tratadas dentro dos cadernos ligados a cultura e artes dos
respectivos meios. O cantor relata ao jornal O Globo sobre seu auto-empresariado e
encargos financeiros ligados ao setor empresarial:
Esse show custa CR$ 1 milhão e 200 mil, cada apresentação. São 23 pessoas
trabalhando e eu pago bem, pois acho que só assim as pessoas trabalham bem.
Quando falo dessa quantia as pessoas pensam que estou milionário, mas
recebo menos que um terço pois, além da equipe, tenho todos os impostos a
pagar, inclusive à Ecad, que fica com dez por cento da renda bruta e, se paga
ou não aos compositores eu o sei. Economicamente eu estou bem, mas
foram sete anos de muita batalha, um trabalho louco e, quando começo, fico
um ano e meio direto, sem parar, muitas vezes atrês meses viajando, sem
sequer ver minha casa. É um dinheiro muito suado. (PENTEADO 1981a)
Esse debate acerca dos meandros financeiros que envolvem a indústria
cultural passou, a partir de então, a ser pauta nas discussões dentro dos diversos
segmentos da mídia. Em matéria editada no Jornal do Brasil em 05 de junho de 1981
pela jornalista Maria Helena Dutra com a manchete: Ney Matogrosso: um ótimo cantor,
um “showrazoável, são abordados os riscos que oferece a indústria de show business
em relação ao auto-empresariado do artista na montagem de seu espetáculo:
No mais caro investimento de sua carreira, um show de muitos milhões que
ele sozinho banca e apresenta agora no Canecão, Ney Matogrosso reafirma
sua condição de uma das melhores, privilegiadas e trabalhadas vozes de
nossa atual música popular brasileira. Até os mais conservadores, tipo
senhora paulista, batem caba e ouvidos para o seu registro raro, auxiliado
por imensa teatralidade. Um valor estabelecido e incontestável até este
momento, o que sempre faz um show até mal realizado de Ney ser muito
superior a eventos mais bem feitos por pessoas sem o seu incvel talento de
cantor e ator. E até que este não é exatamente o caso do atual espetáculo que
está em cartaz no Canecão. Que não pode ser chamado de ruim, mas que,
infelizmente, não passa dos arredores do razoável. (DUTRA, 1981)
Essa abertura com discussões polêmicas em torno do setor empresarial
versus artista é ampliada em matéria publicada na Folha de São Paulo pela jornalista Isa
Cambará, em 23 de junho de 1981, e intitulada Ney Matogrosso canta a imponência da
o atual cartaz, o Canecão trabalha com 80 garçonetes. Há pratos de filé (Cr$500) frango (Cr$380) e prato
com oito espécies de salgadinhos (Cr4 280 e Cr4 300). Normalmente a casa contrata o artista mediante
cachê e participação na bilheteria fornecendo a parte do som e iluminação, músicos e outros elementos
que se vão juntando naturalmente.Cuidando da parte da direção de cena, o homem que fica por trás dos
bastidores, encontra-se Carlos Raguzo, o seu Pepe, que cuida do som, da roupa, da luz dos artistas. É
quase a “mãe” dos artistas. Para os artistas e empresários, seu Pepe é a verdadeira alma do Canecão.
(ARAGÃO, 1981).
171
águia. Nessa matéria ressaltou-se a relação do artista Ney Matogrosso com o setor
empresarial dentro de uma perspectiva de sua autonomia artística. A edição traz em
destaque o seguinte chamado: “Para cuidar de seus necios, Ney, conta, tem que andar
de “chicote na mão”, brigando por seus ideais (CAMBARÁ, 1981). Em seguida vem o
relato do artista, reafirmando sua autonomia em relação ao setor empresarial. Ney
Matogrosso afirma:
Para segurar a barra, é preciso se ter muita disposição. Tem que ser homem
com H, senão viro boneco nas mãos dos outros. Vi que empresário nunca
resolve nada: leva seu dinheiro. E, como tenho cantado, eu sou é muito
homem seo não agüentaria. Na verdade, sete anos depois, todo mundo
sabe que eu canto mesmo. Porque se não fosse minha voz, eu não teria ficado.
Teria passado, como outros passaram. Foi difícil fazer entender que eu sou,
principalmente, um intérprete. Mas, todo mundo acabou percebendo. Afinal,
a unidade na minha carreira, de 73 até hoje, o foi o rebolado, mas a voz.
(CAMBARÁ, 1981)
O descontentamento do artista em relação ao setor empresarial e mercado
fonográfico são bem explicitados pelo cantor em matéria publicada na Folha de São
Paulo, quando declarou ao repórter que no momento canta o que gosta e não se
submete mais as regras do mercado que envolvem os trâmites do show business,
demostrando, assim, seu anseio de autonomia perante tais setores. A Folha publica: Ney
diz que adora o que faz, que canta o que gosta, sem se sujeitar as regras
mercadológicas do show-business, que se diverte muito divertindo as pessoas (TAIAR,
1981).
Esse descontentamento é reafirmado pelo cantor em entrevista ao Jornal da
Tarde em que o cantor fala de seu mal-estar com os setores burocráticos da indústria
fonográfica e do show business, fazendo uma breve reflexão de sua inserção nesse
mercado. Ney afirma:
O fato do meu trabalho gerar dinheiro provoca muita ambição, muitos ciúmes
e disputas. As pessoas ao meu redor acabam mostrando a sua pior face, isso
me irrita e me deprime. Eu adoro cantar, acho que gosto ainda mais de cantar
do que de fazer amor, mas tudo que cerca o ato de cantar me deixa mal. Essa
coisa de investimento, contrato, venda, não sei transar com nada disto, tenho
horror. Hoje, olhando, para trás, acho que dentro da mecânica da oferta e da
procura, do jogo de mercado e da relação com o público, eu fiz tudo certo. E
nada foi intencional ou planejado, foi tudo por intuição. O que eu concluo
dessas experiências é que o público me quer cada vez mais audacioso, que
me permite qualquer atitude no palco. (PEREIRA, 1981)
172
Após essa fala acerca da oferta e da procura do mercado, o cantor continua a
entrevista anunciando sua intenção em dentro de um tempo previsto sair do circuito
artístico, programando-se para ter uma vida paralela. O cantor declara:
Planejo uma vida paralela, não quero ficar nisso a vida inteira, fazendo shows
até os 70 que nem Sinatra. Meu desgaste é grande, eu não aguentaria.
Comprei o apartamento onde moro, no Rio (de três andares, no Leblon), e um
sítio no Interior. Lá estou formando um pomar. Também quero ter horta,
criar galinhas. Mas nada de desconforto. Quero mato, mas quero também luz
e água quente. Acho que ainda canto uns sete anos, tempo suficiente para eu
ter dinheiro para viver bem, embora sem qualquer deslumbramento pelo luxo.
Mas não é o caso de r dinheiro no bolso e cair fora, não. Eu dou muito
de mim em troca disto, o público está aí de prova. (PEREIRA, 1981)
Três dias antes da estréia do espetáculo Ney Matogrosso no Canecão o
Jornal O Globo publica matéria intitulada: Ney Matogrosso: se não quiser saber alguma
coisa, não me pergunte. Eu conto tudo. Tal edição enaltece o desempenho do artista em
cena, bem como chama a atenção para o momento de maturidade e liberdade do cantor
em relação a seu público e, sobretudo para com a dia, quando esse afirmou que a
partir de então não haveria mais limites impostos acerca de suas entrevistas concedidas
a imprensa, apontando dessa maneira para uma autonomia perante a mesma. O Globo
publica:
As vésperas de completar 40 anos (em agosto) e de estrear um novo show
(quarta-feira, no Canecão), Ney Matogrosso diz que não se comporta como
um quarentão, porque não acredita em modelos preestabelecidos para a idade.
E continua decidido a liberar seu sensualismo que, para ele, não é coisa só de
mulher e sim de homem também. No início, conta, tinha vergonha do próprio
corpo e achava tudo muito feio, a ponto de pintar o rosto para se esconder e
depois se cobrir com máscaras e capacetes. Agora, tendo percebido que é
aceito, só utiliza esses detalhes como recurso, não precisa mais se proteger de
nada. No espetáculo de agora, com o qual pretende divertir - para ele, um
“trabalho maior o público vai ver, através de uma retrospectiva de sua
carreira “sem clima de hora da saudade”, um Ney Matogrosso a descoberto,
“sem segredos e sem mistérios”. E que declara: “Se não quiser saber alguma
coisa, não me pergunte. Eu conto tudo”. (PENTEADO, 1981a)
A abertura vinda da imprensa não se limitou a explorar apenas o filão da
indústria fonográfica e os encargos financeiros que envolviam o show bussines daquela
época, até então não mencionados em tais veículos de comunicação. A partir da estréia
do espetáculo Ney Matogrosso no dia 03 de junho de 1981 artista ganhou outro
considerável espaço dentro da dia concedido apenas a alguns artistas que constavam
do ranking das melhores vendagens de long plays e espetáculos.
173
Em matéria publicada em 05 de junho de 1981 pelo Jornal O Globo
intitulada A ousadia e a sensualidade de Ney Matogrosso no Canecão, uma das páginas
do caderno de cultura foi dedicada à descrição detalhada sobre a estréia do artista no
Canecão. A jornalista Lea Penteado descreve o show do artista em suas três partes
fazendo relevância ao seu domínio de palco:
Às 21:50m quando as luzes do Canecão se apagaram, a banda Arte & Cia,
deu seus primeiros acordes de Mulher Barriguda” e três bailarinos com
rostos pintados no estilo dos Secos & Molhados entraram dançando da
mesma forma que popularizou Ney Matogrosso, o público delirou. A
vibração foi ainda maior quando ele surgiu com o rosto escondido por uma
máscara, vestindo calça de camurça coral, colete, cinto, bracelete e
gargantilha em couro fazendo o mesmo desenho com tachas e strass,
capacete em couro com penas, olhos pintados de preto e lábios vermelhos.
Depois do primeiro impacto com a ousadia de sua roupa, da música “Três
Caravelas” a “Cubanacã”, ele é dono absoluto do palco com movimento de
ombros e quadris. Em “Bandido Corazon”, mais uma participação dos
bailarinos atuando como acessórios de cena ao lhe oferecer e acender um
cigarro. A direção de Amir Haddad deixa-o solto, permite movimentos livres.
E é na metade do show que surge a o do diretor no número em que o
espetáculo atinge o clímax: um strip-tease. Auxiliado por três bailarinos, Ney
se desvencilha do capacete, do colete, das botas e, por último, da calça, que,
na verdade, é formada por duas perneiras. Apenas com um tapa-sexo
tacheado com strass, deixa aflorar toda a sensualidade. A cada movimento
mais ousado, instiga a platéia que revida com gritos, suspiros, assobios, e
aplausos. Homens e mulheres, igualmente, mantém os olhos fixos no palco
em que, quase totalmente despido, ele interpreta, Vida vida”, escorregando
por alguns degraus, contorcendo-se, fazendo movimentos eróticos.
(PENTEADO 1981b)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 18 – Ney Matogrosso – Show Canecão - RJ, 1981
Finalizando a primeira parte do espetáculo, o artista retira-se do palco onde o
som fica na responsabilidade da banda Arte & Companhia
9
, que na percepção do cantor
9
Banda Arte & Cia: Jorjão Barreto (teclados e vocal), Pisca (guitarra e vocal), Pedrão (baixo e vocal),
Gerson Borges (teclados, percussão, vocal), rgio Della Mônica (bateria), Chacal (percussão), Chico
174
foi a banda que melhor interagiu com ele no palco. Ney afirma: “Eles são o melhor
grupo com quem trabalhei. Não tocam apenas por obrigação: fazem vocal, brincam
comigo, me olham, enfim. Não é como o grupo anterior que após alguns anos comigo já
nem me sentia no palco (PEREIRA, 1981).
Enquanto o cantor troca suas indumentárias no camarim e prepara-se para a
segunda parte do espetáculo, a Banda Arte & Companhia dá continuidade ao espetáculo
por cerca de dez minutos, quando, então, o artista reaparece no palco de forma mais
contida tanto em seu figurino como no repertório. A jornalista narra:
Depois disso, encerra-se a primeira parte e o artista se retira do palco.
Durante alguns minutos, a Banda Arte & Cia faz um número instrumental.
Vestido de branco, calça mais comportada cobrindo as partes de seu corpo,
que, na primeira parte do show, estavam a mostra, colete em que se misturam
penas e strass, capacete que lhe cobre as orelhas, com uma lágrima de cristal
caindo entre as sobrancelhas, Ney volta ao palco para uma seqüência de
músicas menos agitadas. Mais romântico, começa com “Sujeito estranho”,
segue com “Ando meio desligado” e encerra com “Viajante”. Nessa música,
um momento em que Ney permanece estático na frente do palco, apenas
com um foco de luz em seu rosto, utilizando apenas sua expressão vocal.
(PENTEADO, 1981b)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 19 – Ney Matogrosso Show Canecão - RJ, 1981
.
Como parte final do espetáculo a jornalista conclui: “Colocando sobre a
calça uma espécie de couro franjada, Ney Matogrosso volta a agitar o público na
interpretação de ‘Homem com H’, ele desloca a saia para os ombros, deixa cair de um
lado ”. Continua: Sem o capacete, e ainda com saia colocada no pescoço, como se
fosse uma gola franjada, e um novo capacete branco acoplado a uma máscara, canta
Planeta Sonho”, procurando criar um clima espacial com seus movimentos no palco.
(PENTEADO,1981b)
Sá(sax-flauta),, Darcy Seixas(trombone) e Dom (trumpete).Bailarinos: Clemonth Aguiar Rosa, Aldo
Waterloow Ferreira e Marcos Wanderley (NEY, 1981).
175
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 19/20 – Ney Matogrosso – Show Canecão - RJ, 1981.
A dia passou a tratar das particularidades que envolviam os momentos do
show, discutindo a própria concepção do espetáculo em seu princípio de criação
artística. Como na matéria de Diana Aragão do jornal do Brasil, em que esta ressalta a
participação dos bailarinos no espetáculo, relação construída entre diretor e artista:
Estabelecido o roteiro, eles partiram para a “amarração” do show. A idéia do
diretor foi a de usar três bailarinos, apenas razoáveis, que tentam fazer a
ligação entre uma música e outra. Para treinar os bailarinos um outro amigo
do cantor foi chamado: Ciro Barcelos, tamm integrante dos Dizi-
Croquettes. Convidando três jovens de formação clássica Aldo Ferreira e
Clermont de Aguiar são do Teatro Municipal e Kiko Guarabira é da
academia de Lennie Dale, o criador dos Croquettes ele começou o ensaio
dos rapazes, que tem como tarefa básica a de fazer a ligação entre os quadros
de maneira visual. Eles atuam quase como camareiros de palco, pois
acendem o cigarro do cantor, pegam peças de roupa atiradas ao longe e
apóiam, literalmente, o cantor quando ele troca as calças e as botas em cena.
(ARAGÃO, 1981)
Em contrapartida a essa perspectiva, a jornalista Maria Helena Dutra Jornal
do Brasil, em matéria editada em 05 de junho de 1981 intitulada Ney Matogrosso: um
ótimo cantor, um “showrazoável, abre discussão acerca do espetáculo e da presença
dos bailarinos, provocando polêmica em torno do mesmo: O jornal publica:
O principal na derrubada é o trio de bailarinos que, à exceção do auxílio ao
cantor na retirada de roupas ou a ajuda na colocação de acessórios da
vestimenta, são presenças totalmente gratuitas no show. E na maior parte do
tempo apenas atrapalham. Principalmente no início, quando todos estão
ligados em ver Ney e são, porém contemplados com medíocre balé da trinca,
tipo caras e bocas em lugar de passos firmes, que supostamente deveriam
176
evocar o conjunto Secos & Molhados, mas nem na coreografia o lembra. E
durante todo o correr da apresentação apenas evocam aos tropeços e acabam
mesmo se tornando desgradáveis, pois parecem tentar fazer involuntária mas
triste caricatura do astro principal. Um dos poucos cantores desse país que
não precisariam de tal ajuda, mesmo bem-feita. É sem sentido, pois nem
representam qualquer coisa. Além desse peso muito presente no palco, Ney
luta também contra figurinos pouco inspirados na sua essência teatral. A
roupa inicial é feia e o efeito da calça frente única, depois de ser descoberto,
fica meio irrelevante. Mas ainda é melhor do que a final, com um colete
malajambrado e um capacete ou touca que em vez de ajudar a figura
longilínea de Ney apenas a achata. Enfim, coisas que podem ser bonitas em
fotos, mas que são deficientes como elementos teatrais. Apenas um acessório
branco de franjas que ele usa alternadamente na cintura, peito e ombros,
como pede o estilo de cada música, e que funciona como beleza e
dramaticidade, lembrando a inventividade dos Dzi Croquetes, grupo do qual
saiu o responsável pelos trajes do show. (DUTRA, 1981)
Existem contradições dentro da dia a respeito da performance do cantor
em seu novo trabalho. Em algumas matérias o cantor já aparece consagrado e em outros
sofre hostilidades. A crítica não é unânime em relação ao espetáculo Ney Matogrosso.
No entanto, a partir do retorno do cantor ao estádio coberto do Maracanãzinho, no Rio
de Janeiro, e do especial Grandes Nomes veiculado pela Rede Globo de Televisão, a
unanimidade da dia e do publico o consagram como o show do ano.
Ressaltamos o período compreendido entre oito anos que separaram a
apresentação do cantor no Maracanãzinho, quando ainda atuava como vocalista do
grupo musical Secos & Molhados que assumiu contornos enquanto fenômeno de massa,
para apresentação em 1981 com o espetáculo Ney Matogrosso. A análise do início da
retomada do cantor enquanto fenômeno de massa com o retorno do artista ao
Maracanãzinho, bem como a consagração do artista pela Rede Globo com especial
Grandes Nomes será o próximo passo de investigação no item que se segue.
3.2.2 “Se eles querem, eu quero o dobro”. O retorno ao Maracanãzinho
e o Especial da Rede Globo
Após finalizar temporada no Canecão onde permaneceu durante um mês
sempre com bilheteria esgotada, o cantor encerrou sua temporada no Rio de Janeiro com
show realizado no ginásio coberto do Maracanãzinho, em um sábado, 18 de Julho de
1981 às 21 horas, apresentando-se para um blico de quinze mil pessoas. O Jornal O
Globo publica:
177
Na despedida de sua temporada carioca, Ney Matogrosso se apresentou
sábado no Maracanãzinho, para uma platéia de 15 mil pessoas, repetindo o
mesmo show com que permaneceu no Canecão durante dois meses. Num
ambiente festivo, que lembrava um grande “happening”, platéia e artista, em
quase duas horas de vibração e envolvimento, se entenderam o tempo todo.
Até mesmo nos números mais ousados, como no do “strip tease”. No final, a
platéia exigiu e o artista deu extra. (PENTEADO, 1981c)
Essa apresentação no Maracanãzinho significou o início da retomada do
cantor enquanto fenômeno de massa em sua carreira solo. A repórter Lea Penteado do
Jornal O Globo, em matéria publicada em 20 de Julho, atesta esse momento com a
seguinte manchete: No Maracanãzinho, 15 mil pessoas cantam com Ney Matogrosso.
Segue reportagem detalhada da apresentação:
O diretor de marketing da empresa patrocinadora, Roberto Levacov, prefere
não declarar o montante do investimento. Mas se diz surpreso com a
receptividade do público – 15 mil pessoas – e por saber que o Maracanãzinho
não permitiu que todos os ingressos fossem vendidos por questão de
segurança. Por volta das 20h de sábado, o trânsito estava moroso nas
proximidades do Maracanã. Não havia saída de nenhum jogo clássico, nem
início um jogo noturno. Junto aos guichês, do Maracanãzinho algumas
pessoas ainda se comprimiam em busca dos ingressos que estavam
esgotados no dia anterior, restando uns poucos camarotes a Cr$ 2.500 e
cadeiras na pista a Cr$1.000. Dentro, as arquibancadas estavam totalmente
tomadas. Os portões foram abertos por volta das 19h e corria uma festa
paralela com vendedores ambulantes. Cento e vinte homens do batalhão de
choque da Polícia Militar e mais 60 agentes á paisana incumbiram-se da
segurança. (PENTEADO, 1981)
A matéria continua abordando as particularidades do show dentro do ginásio
a comar pelo camarim chegando até os primeiros momentos da abertura do espetáculo
no palco:
No camarim, desde às 20h, o artista estava pronto para entrar em cena. O
rosto pintado, delineando o contorno dos olhos com lápis preto e a boca de
batom vermelho. Os dedos cheios de anéis; nos braços muitas pulseiras,
braceletes; outros tantos colares; no peito nu, e de traje, apenas uma calça
atoalhada, azulão. Apesar de estar distante do público e do burburinho das
arquibancadas, Ney Matogrosso acompanhava todos os ruídos, procurava
identificá-los com expressões de ansiedade e estava profundamente agitado
apesar de manter aparência calma. Controlava tudo, desde o que o locutor
deveria dizer ao abrir o espetáculo “não precisa falar muito, diz apenas que
é o mesmo show do Canecãoaté o horário, quando um músico veio lhe
pedir para atrasar um pouco o eco do meu instrumento pifou e estou
esperando chegar um outro”. “Não podemos passar das nove e meia dizia
Ney. Esse público está desde as sete horas e acaba comendo vivo: Se eles
178
querem, eu quero o dobro”. Os bailarinos exibem sua agilidade esquentando
o corpo. Às 21:35m, ao som de Mulher Barriguda, Ney Matogrosso, surge no
palco. O delírio é total. (PENTEADO, 1981)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 21 – Ney Matogrosso e bailarinos – Show Maracanãzinho - RJ, 1981
O fascínio e a magia contidos nesse espetáculo causados pelo impacto de seu
canto, de sua pintura facial e, sobretudo, pela expressão corporal do artista são
abordados na descrição final da matéria, em que a repórter aponta para um clima de
festa e de sua impressão do espetáculo pelo comentário pelo artista que se a platéia
queria o espetáculo ele queria em dobro:
Dentro do clima de festa, a reverência ao artista é completa. Mesmo nos
números mais ousados como o “strip-tea-se” nenhuma agressão ou
provocação. Mais do que conseguir o respeito do público, Ney faz com que o
Maracanãzinho inteiro cante com ele as músicas finais do espetáculo
“Morena de angola”, “Homem com H”, “Planeta sonho” e “Folia no
matagal”. O público das arquibancadas dança; o das cadeiras de palco sob
nas cadeiras para ver melhor o artista, uma grande festa envolvendo todo o
Maracanãzinho. O show termina e Ney é obrigado a bisar mais um número.
Repete “Homem com H”. Em alguns trechos nem canta. O coro de 15 mil
vozes se encarrega de cantar por ele. Pouco antes das 23h o show acaba. No
camarim, uns dois quilos a menos, provocado pelo desgaste no palco. Ney
não consegue falar. Sua fisionomia é de felicidade. Ainda ecoa nos ouvidos
da repórter a frase dita pelo cantor antes de entrar no palco “se eles (público)
querem, eu quero o dobro” (PENTEADO 1981).
Após esse espetáculo realizado no Maracanãzinho, seu sucesso proporcionou
ao artista a gravação de um Especial para Rede Globo de Televisão, intitulado Grandes
179
Nomes - Ney Souza Pereira
10
.
Tal programa foi gravado no s de agosto de 1981 no
Teatro nix, no Rio de janeiro e exibido em setembro do mesmo ano.
A Rede Globo de televisão em boletim oficial anuncia o especial: “Uma voz
aguda e instigante conquistou o público de todo o Brasil. É a voz de Ney Souza Pereira,
mais conhecido como Ney Matogrosso, gravou um Especial dentro da série Grandes
Nomes, em agosto de 1981, direção de José Carlos Pieri” (FILHO, 1981).Continua
boletim oficial da Rede Globo apontando para a consagração do artista perante o
público e a dia:
Ney Matogrosso para milhões em 1981, este bem poderia ser o slogan do
cantor, senão o melhor – opinião compartilhada por grande número de
pessoas-, seguramente um dos mais controversos da Música Popular
Brasileira. Após o grande estouro do Secos & Molhados, em 1973, quando
apareceu com a sua voz aguda e instigante, foram oito anos em busca de um
trabalho de sucesso, mas com características pessoais. E isso está
acontecendo agora, quando Ney Matogrosso ganha o primeiro disco de ouro,
e com seu mais novo show, vem conquistando milhares de pessoas
diariamente, tanto no Rio como em São Paulo, onde lota o Anhembi,
várias semanas. E mais, nesta sexta-feira, ele estará em Grandes Nomes
Ney de Souza Pereira a partir das 9h da noite, mostrando o apanhado desse
trabalho, e que de certa forma, é a consagração de uma trajetória tão bem
conduzida. (FILHO, 1981, p.01)
O Especial foi ao ar no dia 04 de setembro de 1981 às 21:00 por meio do
programa à época intitulado Sexta Super. A série Grandes Nomes era apresentada uma
vez ao mês e trazia especiais de artistas renomados da MPB. O Especial Ney Souza
Pereira, tomou como base o show Ney Matogrosso. A Rede Globo de Televisão em seu
boletim esclarece ao público:
O espetáculo televisivo tomou como base o show Ney Matogrosso, que ficou
em cartaz no Canecão, Rio, com grande sucesso. O Show Ney Matogrosso
de certa forma é a base de Ney Souza Pereira, o espetáculo televisivo.
Apesar de não ser igual, ele serviu de ponto de partida. Os primeiros números,
Mulher Barriguda e três Caravelas são iguais a abertura do show; daí por
diante foram aproveitadas apenas idéias isoladas, entre elas a participação de
três bailarinos. Em Ney Souza Pereira, alguns momentos mais do que
especiais: sua interpretação intimista de Carinhoso, de Pinxinguinha, e o
10
Ficha técnica: Supervisão: Daniel Filho; Direção-Geral: JoCarlos Pieri; Assistência de Direção: João
Paulo Carvalho; Produção: José de Almeida; Cenografia: Marcos Flaksman; Iluminação: Henrique Leiner;
Roteiro: Luiz Carlos Maciel e Jo Carlos Pieri; Direção Musical: Guto Graça Mello; Arranjos: Banda
Arte & Companhia; Figurinos: Wagner Ribeiro(Ney Matogrosso e bailarinos) e Wandick Lorette(Marília
Pera); Supervisão de Figurinos-Marília Carneiro; Assistente de cenografia-Lia Penha; Assistente de
Produção-Jancileide Santana e Direção de imagens-Maucio Nunes.
180
alegre dueto que formou com Marília Pêra, sua convidada especial, cantando
Taí e Eu Dei. Na verdade, em Ney Souza Pereira, está a retomada da
proposta inicial da carreira do cantor: ousada, vibrante, extrovertida, onde
predominam cores, roupas sensuais e desafio. O programa, dividido em cinco
blocos, apresenta também Bandido Corazón, Bandoleiro, Folia no Matagal,
Amor Objeto, Deixa a Menina, Ribeirão, Viajante, Planeta Sonho, Morena de
Angola, Homem com H e Tic Tac do Meu Coração. (FILHO, 1981)
O encerramento do Especial contou com a participação da atriz Marília Pêra,
que fez dueto com o cantor em duas músicas pertencentes ao repertório de Carmem
Miranda Taí e Eu Dei. Sobre a escolha da atriz para participação no Especial, Ney
Matogrosso declara ao boletim da Rede Globo:
Foi o Pieri que sugeriu e achei ótimo, porque, até então, eu pensava em
cantores. Caetano, por exemplo, mas que não poderia fazer, porque havia
participado de outros. Quando pintou o nome de Marília, me pareceu
fantástico, porque ele é de teatro – e o meu trabalho tem uma transação
teatral muito forte e canta. de repente, ficou bonito. A gente criou um
quadro de teatro de revista, que está bem ligado ao meu estilo e que Marília
faz divinamente. Com Marília, cantando Taí e Eu Dei, Ney Matogrosso,
encerra o espetáculo. ( NEY, 1981 apud FILHO, 1981)
Após o Especial Grandes Nomes Ney de Souza Pereira veiculado pela
Rede Globo de Televisão, houve grande repercussão em outras emissoras de TV,
sobretudo as emissoras de cultura, como o caso da RTC Rádio e Televisão Cultura.
Tal emissora apresentou trechos do show do artista acompanhado de uma entrevista
feita com o cantor pelo ator Grande Otelo e com depoimentos de Chico Buarque de
Holanda, Caetano Veloso e da cantora Simone no programa intitulado Os Astros em 12
de dezembro de 1981 às 23:00 h. A Radio e Televisão Cultura programa Os Astros
anuncia:
Um “Show” de cores, luzes e dança, com a voz especial de Ney Matogrosso.
Descontraído, realista, humano, OS ASTROS desse sábado, dia 12 de
dezembro, ás 23 horas pela RTC Rádio Televisão e Cultura, vem revelar
muitas outras facetas de Ney Matogrosso. Coisas particulares e a escalada
para o sucesso, seu trabalho atual e os projetos para o futuro são a tônica
principal das entrevistas que Grande Otelo faz com Ney. Foram tomados
depoimentos de Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda e Simone, seus
grandes amigos. Entremeando as entrevistas, cenas de seu “show”,
apresentado tanto no Rio como em São Paulo, espetacular sucesso, com Ney
dançando e cantando com seu charme e perfeito domínio corporal. (ASTROS,
1981)
Com grande visibilidade dentro da dia após o encerramento da temporada
carioca com o show no Maracanãzinho e a gravação em agosto do Especial para a Rede
Globo, o artista estréia Ney Matogrosso em São Paulo no mês de agosto, seguindo
181
posteriormente em turnê pelo Brasil. O Globo anuncia: “Ney Matogrosso segue agora
para São Paulo, onde se exibirá por duas semanas no Teatro Anhembi, e depois
percorrerá as principais capitais do Norte e do Sul do país”(PENTEADO, 1981c).
3.2.3 A estréia no Teatro do Anhembi-SP: ingressos esgotados e
prorrogação
A estréia do show Ney Matogrosso em São Paulo deu-se no Palácio das
Convenções do Anhembi, no dia 14 de agosto de 1981. O Jornal da Tarde anuncia a
estréia do espetáculo, frisando o esgotamento dos ingressos dois dias antes do início da
temporada. Com a manchete: Ney seu novo show, pronto para começar uma rotina: o
sucesso, o Jornal da Tarde publica:
Aos 40 anos de idade, um corpo esguio, com uma tranqüilidade em termos
profissionais assegurada pelo sucesso que faz (no Rio seu show precisou ser
prorrogado três vezes, e aqui em São Paulo todos os ingressos já estão
vendidos), Ney Matogrosso parece estar de bem com a vida. Ney Matogrosso
ficaria em cartaz no Anhembi ao próximo dia 23, sempre com sessões
ás 21 horas e às 20 horas nos domingos. Mas como a procura pelos ingressos
se esgotou os lugares para essa temporada, o espetáculo foi prorrogado
para mais dois dias – 29 e 30. Os preços: Cr$ 600, 00, Cr$ 800,00 e
Cr$ 1.000,00. (NEY, 1981)
A matéria continua mostrando a autonomia do cantor quando esse comenta
seu amadurecimento durante seu percurso artístico, bem como a liberdade de criação de
sua fase atual. Ney declara:
Nada do que eu faço está desvinculado de mim. São sete anos, desde o
estouro daquele grupo até hoje. Nesse período de tempo eu amadureci, mudei,
mas nunca me senti inseguro, sozinho ou desacompanhado. Levo muito a
sério o meu trabalho. faço mesmo o que gosto. Esse show, por exemplo.
Pretendo que ele dure um ano, um ano e meio, que depois de São Paulo
vou viajar por 26 cidades. Se eu não gostar do trabalho, como vai ser possível
conviver com ele por tanto tempo? (NEY, 1981).
Em 16 de agosto de 1981, a Folha de São Paulo dedica uma página de seu
caderno de cultura e arte sobre a estréia do show Ney Matogrosso na capital paulista
com a seguinte manchete: O imprevisível Nei, seu som e sua marca. A matéria enalteceu
a performance do cantor aos 40 anos de idade, bem como a grande receptividade do
182
público na aquisição dos ingressos que se esgotaram, tendo sido por essa razão
prolongado a temporada no Palácio do Anhembi, em São Paulo. A Folha publica:
Parece mentira que Nei Matogrosso esteja completando agora 40 anos de
idade. O corpo, ágil e musculoso na medida certa, lembra logo o de um
desses jovens adeptos do “cooper”, que se alimentam de frutas e legumes
e acordam de madrugada para percorrer no mínimo cinco quilômetros em
marcha acelerada. Mas não o corpo de Nei se mostra jovem. O olhar, cuja
opacidade imposta pelos anos nem os melhores “Pitanguis” conseguem
remover, é muito vivo, flamejante, quando ele fala de seu trabalho, do seu
canto, da sua dança. O show de Nei Matogrosso será apresentado no Palácio
das Convenções do Anhembi, hoje e amanhã, às 21 horas e domingo, às 20
horas. O mesmo horário se repetirá no próximo fim-de-semana, quando a
temporada deveria se encerrar. Mas, como todos os ingressos foram vendidos
com antecipação, decidiu-se estendê-la até os dias 29 e 30. Mais uma prova a
reforçar a convicção de Nei de que seu maior público esmesmo em São
Paulo. (TAIAR, 1981)
O Estado de São Paulo segue a mesma linha de pensamento em matéria
publicada em 28 de agosto de 1981. Com a manchete O melhor de sua carreira,o
jornalista Zuza Mello afirma: Ney faz o melhor show de sua carreira, que vale
integralmente o dinheiro do ingresso, um “must como se diz na gíria mundana.
Dificilmente São Paulo assistialgo (sic) igual” (MELLO, 1981). Em mesma edição O
Estado publica a manchete Ney, com música, alegria e deboche. Luiz Carlos Caversan
editor da matéria, ressalta a receptivade do público e o momento de sucesso na carreira
do artista. O Estado publica:
Neste domingo deveria terminar a temporada de Ney Matogrosso no Palácio
das Convenções no Anhembi. Mas assim como aconteceu no Rio (ele lotou o
Canecão seguidamente e o Maracanãzinho em uma noite de euforia), não
poderá parar já: ingressos esgotados, críticas altamente elogiosas fizeram
com que ele ficasse mais, pelo menos até a primeira semana de setembro.
Ney, todos reconhecem, está no auge de sua carreira, com 40 anos e
consciente daquilo que quer, agora: “fazer as pessoas felizes”. Colocar o
corpo à frente do espetáculo, liberar emoções dele e da platéia como se
fosse um grande e carinhoso encontro. Brincar, com a música, o corpo, o
público; fazer um espetáculo disso tudo. (CAVERSAN, 1981)
O artista a respeito de sua fase e de seu espetáculo em São Paulo declara ao
Estado:
As pessoas estão muito carentes. Elas se sentem massacradas por todas as
dificuldades que enfrentam em suas vidas; procuram algo sem saber o que é,
sentem falta de afeto, carinho, emoção. E atualmente é isso que procuro
dar a elas. No palco, eu literalmente me entrego à platéia, proponho uma
troca a ela, jogo a minha emoção inteira e sinto o retorno, que vem farto.
Sabe aquela coisa da Emilinha Borba? Aquilo de ela colocar a sua verdade, o
que ela e sente quando canta, aquilo que deslumbra as pessoas? Isso que eu
amo em meu trabalho, o que gosto e quero fazer. Dar um pouco às pessoas,
183
fazer com que elas se sintam bem, fiquem alegres, emocionadas pelo menos
durante uma hora de espetáculo. É isso. (CAVERSAN, 1981)
A temporada do show que deveria terminar no final de agosto estendeu-se
por mais dois finais de semana de setembro no Palácio das Convenções do Anhembi-SP
também é descrita em matéria do Jornal da Tarde, em 12 de setembro de 1981, com a
manchete “Sou um ator que canta”, editada por Edmar Pereira, foram comentado os
bastidores do espetáculo começando pelo camarim até a entrada do cantor no palco:
Enquanto se despe , Ney mostra a Jorge, seu camareiro, a virilha machucada
pelo cache sex de tachas que usa no palco. E vai alinhado cremes, lápis,
batom, vitaminas. Nos cabides laterais, as roupas do show: a vermelha e
dourada, da primeira parte; a branca e prata, da segunda. O corpo magro
inclina-se para o espelho. Dois riscos de batom sobre as maçãs do rosto são
espalhados com os dedos. Traços feitos com cuidado em torno dos olhos,
sombra nas pálpebras, os lábios vermelhos de batom. Jorge apresenta as
pulseiras, correntes e colares, que ajuda a amarrar. Kiko Guarabira, 16 anos,
o mais jovem dos três bailarinos que participam do espetáculo, entra
rapidamente. Nu, Ney ajusta cachê-sex que Jorge tentou tornar-se mais
folgado. Em seguida, o camareiro apresenta a calça vermelha muito justa e
sem costas. “Essa roupa eu copiei dos trajes dos tropeiros de Minas Gerais”,
conta Ney, sem acrescentar que no agreste mineiro ela é usada sobre outra
calça comum. No palco, e apenas no princípio, um cinto de franjas disfarçará
a parte nua. Nenhum exagero: no palco, a cada peça que Ney dispensa
começando pelo colete trançado - o delírio da platéia aumenta. Sua nudez
quase total ao fim da primeira parte sesaudada com urros e alegre histeria.
Colares, pulseiras, roupas vestidas, os pés pequenos envoltos numa bota
vermelha de saltos pesados, um poncho sobre o corpo quase nu, Ney espera o
momento de entrar no palco. (PEREIRA, 1981)
Após encerrar temporada em São Paulo o cantor seguiu em turnê pelo Brasil,
iniciando pela região Nordeste, seguindo para o Norte e finalizando na região Sul do
país.A passagem pelo Nordeste, será em especial analisada na cidade de Fortaleza, no
capítulo de número cinco, quando será analisada a relação público-artista.
Concluída a tur do espetáculo Ney Matogrosso nas principais capitais do
país, o artista grava novo long play no ano seguinte e monta novo espetáculo intitulado
Mato Grosso. Este momento dentro da trajetória do cantor as questões a que lhe são
peculiares serão analisadas no item subseqüente.
3.3 “Mato Grosso”: um espetáculo de milhões para milhões
1
84
Posteriormente ao período da consagração do artista perante o público e a
mídia, com o retorno aos grandes espaços para realização de seus espetáculos e
conseqüentemente a conquista de sua relativa autonomia frente às gravadoras e ao setor
da produção de shows business, o artista chega ao ápice dessa fase com o espetáculo
seguinte intitulado Mato Grosso.
Com esse espetáculo o cantor superou seus limites anteriores, enquanto
fenômeno de massa, apresentando-se no estádio do Morumbi em São Paulo, em
dezembro de 1982 para um público de aproximadamente 70 mil pessoas. Nesse
momento o artista teve mais uma vez o reconhecimento diante da dia e do público,
levando-se em conta a grande mobilização de espectadores e repercussão na imprensa,
inclusive na imprensa internacional. Fato esse que assegurou ao artista uma turnê no
exterior, incluindo sua participação no Festival de Montreux, na Suíça.
o obstante toda consagração e destaque, que afastaram o cantor de sua
condição de liminaridade, a autonomia artística, buscada e construída ao longo de sua
trajetória, é entretanto ainda relativa dentro de um contexto que envolve a indústria da
música. Essas premissas levantadas serão objeto de análise e investigação desse item.
3.3.1 A volta ao pantanal mato-grossense e a apresentação em
Montreux
O posterior trabalho do cantor, e último de nosso estudo, foi lançado
oficialmente pelo selo da Ariola Discos Ltda., no final do mês de julho de 1982. O LP
intitulado Mato Grosso
11
trazia em sua capa a figura do cantor seminu, apenas com um
tapa sexo e alguns adereços indígenas de posição frontal em baixo d’água, deitado sob o
manguezal do pantanal mato-grossense, mas, segundo o artista, o título do LP não tinha
nenhuma relação com o estado de Mato Grosso. Ney declara ao jornal O Globo:
11
Músicas: Alegria Carnaval (J. Aragão e N. Barros),Uai, Uai(Roberto De Carvalho e Rita Lee),Por
Debaixo dos Panos(Ceceu),Tanto Amar(Chico Buarque),Primeiro de Abril(A. Brasileiro e Roderiki),Não
Faz Sentido(Pedrão, M. Sussekind e S. Araújo),Jonny Pirou (Johnny B. Good) Ch Berry (Vers: Leo Jaime
e T. Paes),Promessas Demais(Z. Barreto, M. Moreira e Paulo Leminsky),Aquela Fera (Sá e
Guarabira).
Ficha Técnica: Direção Artística e Mixagem: Mazola,Técnico de Gravação:Andy P.
Mills,Foto:Luis Fernando Borges da Fonseca,Coordenação Gráfica:J. C. Mello.
185
O Globo: O nome de seu novo disco é “Mato grosso”, mas as músicas não
tem nenhuma relação aparente com seu Estado de origem. Por que o título,
então?Ney Matogrosso: É “Mato grosso no sentido literal do termo: mata
espessa, mato grosso mesmo. Tinha na cabeça a imagem das florestas da
minha terra, com grandes árvores, ssaros, flores. que a gente foi
fotografar em plena estação das chuvas, o pantanal estava alagado, daí a
gente eu e o Luis Fernando, o fotógrafo - resolvemos curtir esse lado da
água mesmo, as algas...quer dizer, no fim o que está na capa do disco é mato
fino , e o o grosso. Mas o tem nenhuma relação com o Estado.
(BAHIANA, 1982)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 22 – Ney Matogrosso capa LP, 1982.
No encarte do LP em primeira página traz a foto do artista em foco
ampliada saindo de dentro d´água com adereços e pinturas indígenas. Em segunda
página, figuras do cotidiano do pantanal-matogrossense são presentes nesse ensaio
fotográfico, como a cachaça, a arara, cavalos, cachorros, meninos debulhando milho,
rodas de fazendeiros conversando no alpendre de suas tradicionais casas. Somado a todo
esse cenário existe a figura do avô paterno do cantor, montando em um cavalo saindo do
manguezal, e a imagem do artista sentado em nu natural sem exibir suas genilias com
um cigarro acesso à beira rio. Dentro desse mesmo contexto em contraste com o cenário
selvagem do pantanal, existe uma foto do cantor nos estúdios da gravadora Ariola entre
seu produtor musical Mazola e o técnico de gravação.
Como em seu trabalho anterior intitulado Ney Matogrosso que tinha a
música Homem com H de conotação ambígua, o LP Mato Grosso trouxe esse mesmo
sentido dúbio como marca, porém estendido a outras canções. Ney comenta em O
Globo: O repertório é o mais variado possível, exatamente como eu quis. Em comum
com o título, talvez só mesmo esse bom humor, esse lado meio de duplo sentido,
malicioso, porque mato grosso, assim, isolado, é um pouco malicioso, também
(BAHIANA, 1982).
186
Esse caráter dúbio é encontrado em algumas músicas como nas canções Por
debaixo dos panos um forde Cecéu que insinua em sua letra com uma certa malícia a
trama de interesses de nosso cenário político. Em Jonny Pirou uma versão da música
Johnny B. Good de Chuck Berry que sugere em sua letra uma relação afetiva entre um
executivo americano com um torcedor do Flamengo do Maraca. Por último temos a
canção Uai, Uai com melodia caipira composta por Rita Lee e Roberto de Carvalho. A
letra insinua sutilmente a desordem e o caos político reinante em nosso país naquele
momento.
A faixa Johnny B. Good de Chuck Berry com versão (Jonny Pirou) de Leo
Jaime e Tavinho Paes foi censurada. A Folha de São Paulo notifica: “Houve problemas
com a censura nessa faixa, que está proibida de tocar no rádio, na televisão ou em auto-
falantes” (SOARES, 1982). A faixa Uai, Uai também foi censurada, sendo proibida sua
execução em emissoras de rádio e TV. A Revista Veja notifica: “A melhor faixa disco,
porém, é Uai Uai, de Rita Lee, proibida pela censura para execução em rádio e TV
(SOUZA, 1982). Ney declara a Folha: “Esta música, por sinal, demorou muito a ser
liberada pela censura.(...) Não faço militância política, não quero o poder de manipular
as pessoas, eu quero apenas existir. (SOARES, 1982b)
A multiplicidade de ritmos e canções segue com Alegria Carnaval, um
samba de Jorge Aragão e Nilton Barros, o som pop de Primeiro de Abril de Annio
Brasileiro e Antônio Hernandes, Não Faz Sentido de Pedro Baldanza, Promessas
Demais de Moraes Moreira, o ritmo rumbeiro de Aquela Fera da dupla Sá e Guarabira e
a romântica caão intitulada Tanto Amar de Chico Buarque Holanda. A Folha de São
Paulo, em manchete na coluna disco/crítica, afirma que o cantor chegou à perfeição
muito tempo perseguida. Segue texto: Nei chegou a perfeição em seus últimos discos,
transformando-se num dos maiores cantores brasileiros.”(SOARES, 1982a)
Mesmo com o aumento de vendas após a entrada do cantor na Ariola Discos
Ltda., o que lhe assegurou uma relativa independência frente as gravadoras e ao show
business, o artista ainda se mostra descontente em relação à sua autonomia perante os
mesmos, sobretudo no que tange o número de elepês vendidos. O Jornal do Brasil
publica:
A gravadora WEA, que Ney trocou pela atual, Ariola, exibe números que
mostram, certo declínio do artista, em seus lançamentos de 78 (Feitiço 86 mil
245 Lps), 79 (Seu Tipo, 55 mil 346) e 80 (Sujeito Estranho, 42 mil 870). Mas,
no ano passado, com o estouro da regravação de Homem com H, essa
tendência modificou-se radicalmente. Foram vendidos 320 mil Lps e a
187
excursão mostro do cantor pelo país inteiro (90 shows) teve apoteoses
temerárias. (SOUZA, 1982b)
Sobre esse episódio, em entrevista concedida ao jornalista Dirceu Soares da
Folha de São Paulo, em 13 de novembro de 1982, Ney Matogrosso declara: Sobre as
gravadoras vou chiar sempre contra elas enquanto não for implantado o sistema de
numeração de discos. Enquanto isso não for feito, não há como controlar a vendagem
destes discos nas gravadoras” (SOARES, 1982b).
Acentuando essa questão da numeração dos elepês O Estado de São Paulo
publica que apesar da aparente distância do mundo financeiro e potico, o cantor Ney
Matogrosso esatento à vendagem de seus discos. Ney declara ao Estado de São Paulo:
Não estou contente com o número apresentado para o meu LP anterior. Mas não
como provar o volume de vendas. Enquanto não houver lei que nos proteja, fica muito
difícil. O ideal é que cada LP saído da fábrica fosse numerado”(COM A MAGIA, 1982).
A insatisfação do artista com o sistema de vendas é reafirmada e estendida
aos festivais de música, quando em entrevista ao jornalista Edmar Pereira Jornal da
Tarde quando o cantor afirmou que não participava de festivais de música, porque
segundo o artista não eram festivais de música, mas sim festivais promovidos pelas
gravadoras. Ney declara: “Que graça tem participar de uma coisa quando se sabe desde
o começo quais e quais gravadoras vão vencer, independente da qualidade das
canções?” (PEREIRA, 1982).
A relatividade dessa autonomia faz-se notória ainda quando o artista
demonstra que ainda tem um contrato a cumprir com as gravadoras, apesar de sua
liberdade de repertório gravando músicas de seu agrado e não impostas pelo mercado.
Dessa forma o artista declara ao Jornal da Tarde:
A única coisa que me dá prazer é o ato de cantar. O resto, as atribuições que
cercam o cantor não me dão prazer algum. Eu o quero depender disso o
resto da vida. Não quero ficar velho dependendo de um cachê da TV Globo,
por exemplo. No próximo ano, o darei nenhum novo show e gravarei
um disco novo porque tenho um contrato estabelecido com a gravadora. E
mesmo assim, farei o disco depois de esgotar, todas as possibilidades
desse show, para impedir que aconta o que aconteceu no ano passado no
auge do espetáculo, fui obrigado a parar
com o show, porque tinha que
gravar um disco. (NEY VOLTA, 1982)
Entre o período de lançamento do LP Mato Grosso e a montagem do
espetáculo que viria a levar o mesmo nome, o artista foi convidado a participar do
188
Festival de Montreux
12
,
na
Suíça. Como estava em período de montagem do show Mato
Grosso, não tendo ainda nada definido a ser apresentado, o cantor desembarcou na
Suíça para participar do espetáculo apenas como espectador. Fato esse que não ocorreu,
pois, convidado a participar, cantou duas músicas improvisadas. O Jornal da Tarde
publica: Esteve em Moutreux como espectador e acabou no palco, em noite muito
brasileira, pra cantar duas músicas”. Ney declara: “Tinha brasileiro demais na platéia,
o deu pra sacar como seria a reação dos suíços, eu me senti exatamente como num
show aqui. Mas eles não me viram direito, eu nem estava vestido ou maquiado”.
A matéria continua insinuando que a ida do cantor ao Festival com suas
indumentárias, poderia levar ao público a associar sua performance a imagem dos
travestis brasileiros, devido os figurinos usados pelo cantor em cena. O jornal publica:
Vai com essas roupas a Moutreaux e Paris. Sabe que o lado exótico é sempre uma
atração no estrangeiro. Um alerta (ou alarma?) poderão associar sua imagem,
especialmente em Paris, à exportação do homossexualismo brasileiro (vide travestis no
Bois de Boulogne)”. O cantor responde:
Vou fazer o que eu faço, sem nenhuma outra preocupação. Eles que
entendam como quiserem. Fui de rumbeira a Buenos Aires em 1980, na
época da mais sangrenta repressão. Acho que me deixaram fazer o show
porque o Figueiredo iria na semana seguinte e uma proibição pegaria mal.
Mas meu trabalho foi muitíssimo bem recebido e entendido, os argentinos
sacaram coisas sutis que muitos críticos brasileiros não percebiam. (NEY,
1982 apud PEREIRA, 1982)
Ao retornar da Suíça o artista empenhou-se na montagem do espetáculo
Mato Grosso afirmando que na próxima ida a Montreux iria participar efetivamente do
12
Montreux, Suíça: cidade com cerca de 22 mil habitantes, vista para os Alpes e banhada pelo lago
Leman, um lago que margeia, de um lado, a França, e de outro, a Suíça. A vista da chegada a Montreux é
a vasta plantação de vinhedos, em toda a sua extensão. Em julho, época do Festival de Montreux, a cidade
se veste de flores de todas as cores e os muitos patos e gansos do lago Leman, finalmente, respiram o
verão depois de um rigoroso inverno. No início do mês de Julho, ainda podemos ver o fim da neve, em
cima das montanhas. Mas no veo tudo é festa nessa cidade: esportes aquáticos, mochileiros dormindo
nos imensos gramados bem cuidados, pequenas bandas de jazz por todas as praças e acontecimentos
musicais no meio da rua. A cidade respira música. Pode acontecer de você entrar num bar de hotel e ter a
grata surpresa de ver Hancock com Etta James. A primeira edição do Montreux Jazz Festival aconteceu
em 1967, inspirado pelo suíço Claude Nobs, um cara que era filho de padeiro e gaitista amador de blues.
Inicialmente, era um pequeno evento de três dias focado no jazz, mas, posteriormente, no início da década
de 1970, abriu o leque incluindo soul, blues, gospel, rock, música africana, e passou a durar 15 dias.
Somente em 1978 foi criada a noite brasileira e a MPB passou a ter uma noite específica, geralmente com
lotação esgotada tanto que a apresentação acabou sendo ampliada. Nessas suas décadas de existência,
artistas de todo o mundo e de todos os estilos se apresentavam na cidade suíça. (MAZZOLA, 2007, p.
119-20).
189
espetáculo e não mais como espectador fazendo uma pequena demonstração de seu
trabalho. O cantor declara: “Que me aguardem próximo ano porque vou participar
mesmo” (PEREIRA, 1982).
3.3.2 A estréia no interior paulista: uma inversão de ordem
O espetáculo Mato Grosso foi projetado para atender a grandes espaços no
sentido da consolidação do femeno de massa atingido pelo artista em dois momentos
de sua carreira, um quando ainda integrante do grupo Secos & Molhados e o outro já em
sua carreira solo em 1981. O Jornal do Brasil, por meio do jornalista e critico de música
Tárik de Souza, publica em manchete: “Mato Grosso”, a volta de Ney ao sucesso de
massa. Segue matéria onde aponta as 88 mil pias vendidas do LP Mato Grosso
como a reedição agora mais madura do fenômeno de massa que foi o Secos &
Molhados.
Nessa mesma matéria o cantor expressa o anseio de realizar os espetáculos
em estádios ao invés de ginásios, evitando assim tumultos e superlotação. O jornal do
Brasil publica: “Os 88 mil Lps do novo disco, recém lançado, Mato Grosso, apontam
para uma reedição “mais madura e consolidada” do fenômeno de massa dos Secos e
Molhados” (SOUZA, 1982). Ney declara:
Os palcos terão de ser outros para evitar os
tumultos e superlotação só vou aceitar shows em estádios, invés dos ginásios” (SOUZA,
1982).
O espetáculo anterior do artista como foi analisado, já apontava para essa
chamada pela mídia de reedição” do fenômeno de massa do Secos & Molhados,
quando o cantor apresentou o espetáculo Ney Matogrosso (1981), em grandes espaços,
começando pelo Maracanãzinho, para um blico de 15 mil pessoas. O espetáculo
estendeu-se em turnê por Recife no Ginásio do Geraldão, para um público estimado em
27 mil pessoas, Salvador, no Ginásio do Balbininho, onde segundo o artista foi uma
apresentação contida em função da superlotação do ginásio, e encerrou-se em
Florianópolis, onde o cantor apresentou-se para um público de 55 mil pessoas. Ao todo
o espetáculo Ney Matogrosso contabilizou noventa apresentações por todo o país. O
Jornal do Brasil atesta:
A excursão monstro do cantor pelo país inteiro (90 shows) teve apoteoses
temerárias como do ginásio Geraldão em Recife, onde 27 mil pessoas
190
acotovelaram-se, gente se machucou. Lá, como no Balbininho, igualmente
superlotado na Bahia, Ney confessa que se apresentou contido:
“Normalmente eu gosto de provocar a platéia, tumultuar mesmo, mas senti
que qualquer agito que eu fizesse ali podia resultar em mortos e feridos”.
Mas a excursão terminou num confortável e plácido show aberto em
Florianópolis no pátio de um shopping center para 55 mil espectadores.
(SOUZA, 1982b)
Passado esse momento e próximo da estréia do espetáculo Mato Grosso, o
cantor comenta, em entrevista concedida ao jornalista Edmar Pereira do Jornal da Tarde,
sobre a expectativa criada pela dia em torno deu novo trabalho em função do sucesso
anterior. O cantor declara:
O sucesso do ano passado, o maior que eu tinha conseguido, me deixou
meio grilado. As pessoas me cobravam muito, diziam que eu havia ganho
todos os prêmios, o que eu iria fazer desta vez? Aos poucos fui deixando essa
responsabilidade de lado, ou do contrário não conseguiria fazer nada, ficaria
deitado eternamente sobre os prêmios. ( NEY, 1982 apud PEREIRA, 1982)
Essa perspectiva do artista de encontrar-se imerso no mercado enquanto
fenômeno de massa é expressa em entrevista concedida ao Jornal da Tarde, em 20 de
outubro de 1982, quando consolidava seus espetáculos em ginásios e com previsão de
apresentar-se no Estádio do Morumbi, em São Paulo, no mês de dezembro de 1982. Em
relação à sua popularização enquanto fenômeno de massa o cantor declara: Gosto de
ser popular e uma das coisas que mais curto é fazer shows para milhares de pessoas. Em
Florianópolis, consegui cantar para 55 mil pessoas; fiquei extremamente feliz com isso
(NEY, VOLTA 1982).
A Estréia do show Mato Grosso que iria consolidar o artista enquanto
fenômeno de massa deu-se, em primeira instância, no interior paulista, nas cidades de
Santos, Taubaté e Campinas. Ao contrário de espetáculos passados, que o cantor
costumava estrear no eixo Rio-São Paulo (a cidade). O Jornal do Brasil em manchete
anuncia: “Mato Grosso” a volta de Ney ao sucesso de massa, em matéria publicada
pelo jornalista e crítico de arte Tárik de Souza. Ele menciona: “Ney começa a excursão
deste ano testando o show” daqui a esta semana no interior de o Paulo”(SOUZA,
1982b).
Segundo o cantor essa estréia foi realizada no sentido de aperfeiçoar o show,
em uma inversão da ordem, fugindo dos circuitos tradicionais. O Jornal do Brasil
191
publica: Ao contrário do ano passado, quando o Ney Matogrosso estreou no Rio, no
Canecão, o show deste ano foi mostrado primeiro em Taubaté, Santos e Campinas, um
espetáculo em cada uma dessas cidades de São Paulo” (ARAGÃO,1982).
Ney declara ao Jornal do Brasil o intuito da estréia no interior paulista, bem
como a sua intenção em cancelar as apresentações em função da ausência de cenários e
figurinos. O cantor declara: Estreei lá para amadurecer o show. Mas tanto os cenários
como os figurinos - coisas do meu Brasil - não ficaram prontos e assim me senti
enganando as pessoas apesar do sucesso”. Continua o cantor em depoimento que ficou
devendo uma apresentação nessas cidades devido a não totalidade do espetáculo. E,
como os shows estavam todos vendidos, o deu nem pra cancelar” (ARAGÃO,
1982).
Apesar do espetáculo Mato Grosso ter sido apresentado em três cidades do
interior paulista a estréia oficial do show deu-se no Canecão, no Rio de Janeiro
13
. O
Jornal da Tarde, em edição de 20 de outubro de 1982, traz em manchete: Ney volta ao
palco. Com alegria e liberdade. Segue matéria:
Bonito, leve, solto e despreocupado. Com essas palavras Ney Matogrosso
define o seu novo show Mato Grosso. O espetáculo marcado para estrear hoje
à noite no Canecão do Rio, ao contrário dos anteriores de Ney, não tem
coreografia gida. Desta vez explica o cantor vai fazer o que quiser no
palco, sem marcações e direção”. Nesta sua nova apresentação no palco,
Ney promete simplicidade, liberdade e muita alegria. (NEY VOLTA, 1982)
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o artista diz-se cansado em função do
desgaste da turnê anterior e da montagem desse novo espetáculo, afirmando que o
pretende superar o espetáculo anterior. Sobre seu novo espetáculo o cantor declara:
O show sou eu, com minhas alegrias, dúvidas, palhaçadas e angústias. Digo
em tom de brincadeira coisas muito sérias. E as pessoas sabem disso. Uso
três roupas lindíssimas. A primeira mostra o equilíbrio dos adereços feitos
pelos índios, que são simplesmente maravilhosos. Na segunda parte, uso
branco. No final me visto de ouro, um dourado bem natural. (NEY VOLTA,
1982)
O Jornal do Brasil anuncia no Caderno B, em edição de 20 de outubro de
1982, a seguinte manchete: Ney Matogrosso no Canecão. Além do musical um visual
“Chocante”. A matéria editada pela jornalista Diana Aragão chama a atenção para um
13
O show mato grosso esteve em cartaz no Canecão de 20 de outubro a 07 de novembro de 1982 sempre
as 21:00 Horas.
192
espetáculo com bilheteria esgotada, em que se apresenta o cantor com características de
um “indígena rural em um primeiro momento e, posteriormente, romântico a
finalizar com a imagem de índio carnavalesco dourado que toca bumbo. Segue matéria
acerca da estréia:
Hoje, às 22 h, Ney Matogrosso inicia mais uma curta temporada no
Canecão (somente até o próximo dia 7). Na porta do Canecão, o movimento
da bilheteria e dos cambistas atesta o sucesso de público. Para o sábado,
dia 23, por exemplo, algumas das melhores mesas – 126, 124, 128 –
encontravam-se, na tarde de segunda-feira, com os cambistas, que pediam 5
mil, por pessoa, contra os Cr$ 2 mil 500 da bilheteria. E até o final da
temporada, quando a procura chega ao auge, o próprio Canecão deverá
subir o preço da entrada em mais CR$ 1 mil. (ARAGÃO, 1982)
A matéria continua descrevendo a primeira e segunda parte do
espetáculo, em que foi ressaltado o visual exótico do espetáculo. O Jornal do Brasil
publica:
De uma abertura no meio do cenário (ocupando toda a extensão do palco, o
nome Mato Grosso secundado por muita fumaça, sob apenas um foco de
luz Ney Matogrosso surgirá com um visual “chocante”: cachê-sexe , cocar,
colares, pulseiras, para uma primeira parte indígena-rural. No palco forrado
de juta, pois na maior parte cantará de pés descalços, ele iniciará o espetáculo
com Metamorfose Ambulante(Raul Seixas), passando pela emocionante
Notícias do Brasil (Milton Nascimento), Uai, Uai (Rita Lee- Roberto de
Carvalho), o forró eletrônico Primeiro de Abril (Antônio Brasileiro-Antônio
Hernandes) e encerrando essa primeira parte com Promessas Demais (Zeca
Barreto-Moraes Moreira-Paulo Leminski). A segunda parte é romântica, com
luz suave. Vestido apenas com uma calça branca, botas também brancas,
olhos pintados, ele interpreta Gilberto Gil, em Deixar Você, Chico Buarque
em Tanto Amar, e Sá e Guarabira, em Aquela Fera, as duas últimas do
recente LP. Nessa segunda parte, o cantor entrará pela passarela à direita da
platéia. (ARAGÃO, 1982)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 23/24 – Ney Matogrosso show Mato Grosso (1982), Canecão-RJ
193
Em segunda página a matéria continua abordando a terceira e última parte do
espetáculo, que, segundo a jornalista, é encerrado de maneira apoteótica. O Jornal do
Brasil publica:
Na terceira e última parte, com uma roupa das mais bonitas toda em
dourado brilhante, muitas penas que o espetáculo mostrará o cantor em
seu melhor momento, contando com a participação dos 13 músicos que
formam sua atual banda. A maliciosa Napoleão (Luli-Lucinha) e Debaixo
dos Panos (Cecéu). São contagiantes e o rock de Chucky Berry, em versão
de Leo Jaime e Tavinho Paes, Jonny Pirou, está ótimo. Tudo para o
apoteótico final com o samba Alegria Carnaval (Jorge Aragão-Nilton
Barros), mostrando o cantor integrado a banda, tocando um bumbo.A banda
também tem participação como coro. (ARAGÃO, 1982)
Concluída temporada no Canecão, o espetáculo Mato Grosso estréia em São
Paulo, capital. No entanto, antes mesmo da estréia, houve problemas com a censura,
quando esta vetou o “outdoor” que anunciava o espetáculo. O Estado de o Paulo
publicou em 13 de novembro de 1982: “Quanto à censura brasileira, o cantor achou
graça quando seu outdoor anunciando o espetáculo foi censurado”. Ney declara: Era
ridículo proibir uma foto
14
que já estava exposta em todas as lojas. Finalmente houve
bom senso e o liberaram” (COM A MAGIA, 1982).
Entretanto, apesar do espetáculo Mato Grosso em São Paulo ter tido esse
problema inicial com a censura, essa também teve a faceta de liberar oficialmente o
espetáculo para menores de dezoito anos. O Jornal da Tarde publica: “Hoje, Ney não
tem problemas com a censura em relação a seus shows: Mato Grosso é seu primeiro
espetáculo liberado para menores, com censura até 14 anos. Os outros eram até 18 anos”
(PEREIRA, 1982).
Na verdade, essa liberação ocorreu somente para efeitos legais frente os
órgãos de repressão e censura do regime militar, assim como para divulgação pela mídia.
Os espetáculos do artista que estiveram em cartaz durante os anos de 1975 a 1982,
oscilaram com censura para os limites de idade entre menores de dezoito e maiores de
dezesseis anos. Entretanto, mesmo com esse limite de idade imposto pela censura para
menores de dezoito anos, encontrava-se uma maneira para reduzí-los.
Esse drible dado nos órgãos de repressão e censura ficava a cargo dos
organizadores do espetáculo, sobretudo fora do eixo Rio-São Paulo e cidades do interior.
14
A foto que se refere o cantor que já se encontrava nas lojas é a foto referente a capa do LP Mato Grosso
a mesma veiculada no outdoor.
A capa do LP traz a figura do cantor seminu, apenas com um tapa sexo e
alguns adereços indígenas de posição frontal em baixo d’água, deitado sob o manguezal do pantanal
mato-grossense (Nota do autor).
194
Longe dos “holofotes” da mídia a censura de limite de idade dava-se de forma bem mais
maleável. O Jornal da Tarde continua a matéria tratando acerca da censura: “(...) mas
(censura) nas grandes cidades, porque no interior entra todo mundo, de qualquer
idade” (PEREIRA, 1982).
A estréia em São Paulo deu-se no Palácio das Convenções do Anhembi
15
. No
Jornal da Tarde de 13 de novembro de 1982 a manchete: Ney, em liberdade total.
Fazendo um show de caipira rico, descreve a estréia do espetáculo chamando a atenção
do requinte de figurinos e a presença de dois figurantes na apresentação da música
Johnny Pirou:
A entrada do cantor acontece em grande estilo: surge por trás do cenário, em
meio a muita fumaça, com a banda tocando todo vapor, para cantar
Metamorfose Ambulante. Na primeira parte ele veste apenas um tapa sexo,
um cocar, colares e pulseiras indígenas. Estes adereços ele vai alternando
durante a apresentação durante a apresentação das músicas, com Notícias do
Brasil, Uai, Uai, Primeiro de Abril, Promessas demais e o faz Sentido. Na
segunda parte ele volta com uma calça branca com linhas prateadas –como as
outras roupas do costureiro Markito e canta Deixar você, Tanto Amar e
Aquela Fera. E no final, de novo desnudado – uma tanga dourada, pulseiras e
cocar de penas -, uma seqüência de canções estonteantes, Andar com Fé,
Rosa de Hiroshima, Napoleão, Johnny Pirou. Esta canção com execão
proibida em rádio é apresentada com dois figurantes, um em cada lado do
palco, um vestido com o uniforme do Flamengo outro do Fluminense. Já com
a casa pegando fogo, Ney ataca o baião Por Debaixo dos Pano e o “golpe
de misericórdia”com o inspirado samba Alegria Carnaval. (MIGUEL, 1982)
3.3.3 A apoteose no Morumbi - a retomada do fenômeno de massa e a
relatividade de uma autonomia artística
Encerrando temporada do espetáculo Mato Grosso no Teatro Anhembi, o
artista preparou-se para apresentar-se no estádio do Morumbi, para um blico estimado
em 70 mil pessoas, uma empreitada ousada na época para cantores da MPB. Tais
eventos que envolviam grande contingente de pessoas, eram viáveis para atrões
15
Em São Paulo, Ney Matogrosso fica em cartaz de 13 a 28 de novembro de 1982, no Palácio das
Convenções do Anhembi, de quinta a sábado, às 21 horas e domingo às 20 horas, e é acompanhado por
Pisca (guitarra); Ricardo Cristaldi e Paulo Esteves (teclados); Pedrão (baixo); Sérgio Della Mônica
(bateria); Chacal e Sérgio Boré (percussão); Bangala e Lino Magrão, Nonó e Bocato (sopros). Ingressos a
Cr$ 2.500,00. Os ingressos estão praticamente esgotados para esse final de semana (COM A MAGIA,
1982).
195
internacionais, como foi a apresentação da banda inglesa Queen no estádio do Morumbi
e do cantor norte americano Frank Sinatra no estádio do Maracanã.
No entanto, o cantor Ney Matogrosso declara que sua apresentação no
Morumbi, foi um lento processo que se desenvolveu aos poucos, iniciado no
Maracanãzinho em um espetáculo para um público estimado de 30 mil pessoas. Uma
preparação segundo o cantor, para que dessa maneira pudesse vir a atingir um blico
maior, estimado em 80 mil pessoas no estádio do Morumbi. Ele explica:
Claro que a todo momento tento colocar um dado novo, mas sem agredir
ninguém. Se hoje posso, ou até sou obrigado, a ficar diante de cinco ou até 30
mil pessoas, como aconteceu no Maracanãzinho, é que venho preparando
eles para isso durante esse tempo todo. Hoje fico mais à vontade, posso
brincar, posso convidar as pessoas a se divertirem comigo durante uma hora
ou duas. Eu sei que exerço uma grande atração sexual, gosto disso, gosto de
sentir a platéia respondendo. Mas não tenho controle sobre essa atração a
ponto de poder manipular com ela, sei apenas que acontece e quando
acontece. (PEREIRA, 1981).
A Folha de São Paulo anuncia o espetáculo do cantor Ney Matogrosso em 18
de dezembro 1982. A Folha apresenta a seguinte manchete: Um show cercado de
cuidados”, onde é explorada a atitude ousada do artista juntamente com o investimento
do empresário Manoel Poladian em apresentar-se em um estádio de futebol com
capacidade para 120 mil pessoas. A Folha publica que Frank Sinatra, cantando no
Maracanã, foi tão bem produzido. Continua matéria afirmando que o público que for
assistir ao espetáculo no Morumbi será tratado com o respeito que merece.
A matéria ainda chama atenção para o fato do empresário Manoel Poladian
vinculado ao Studio Um ter sido o responsável pela formalização do projeto de levar um
grande cantor brasileiro a um estádio de futebol. Esse projeto segundo o empresário foi
pensado a partir do show realizado pela banda Queen no estádio do Morumbi, em São
Paulo e concretizado com o artista Ney Matogrosso.
Sobre a concretização de seu projeto escolhendo o cantor Ney Matogrosso
para iniciar uma série de outros espetáculos com atrações nacionais, o empresário
Manoel Polidian declara ao jornal A Folha de São Paulo: “Comecei a pensar nisso logo
depois que o grupo Queen cantou no Morumbi”. Quando indagado pela Folha porque
Ney Matogrosso para dar início a tal empreitada o empresário responde: Ele tem um
público grande, muito fiel. Além disso, é um excelente profissional. Ele nasceu para ir a
frente.” (TAIAR, 1982).
196
Acerca da apresentação do cantor no Estádio do Morumbi, o Jornal da Tarde
em edição publicada no dia 20 de dezembro de 1982, um dia posterior a realização do
show, anuncia a seguinte manchete: “Ney. Delírio no Morumbi
16
. O ídolo, numa festa
para 70 mil pessoas. Segue matéria:
Quando Ney Matogrosso pisou no palco envolto por uma nuvem de gelo seco
colorida pelos refletores e por sons melodiosos, seus 70.000 admiradores
começaram a se sentir gratificados por estarem no estádio do Morumbi,
sábado. Nesse clima de festa e de aplausos é que Ney Matogrosso fez sua
entrada triunfal. Praticamente nu vestido apenas com um cachesex e
ornamentado por numerosos aderos indígenas do Amazonas – ele deu
início ao espetáculo cantando Metamorfose Ambulante. Nas arquibancadas
repletas, as pessoas se comprimiam para dançar com alguma liberdade. Na
pista (ou seja no gramado do Morumbi), sem grande visual ao palco, o povo
se acotovelava e de vez em quando alguém desmaiava. (PEREIRA, 1982b)
Fonte: Matogrosso site oficial (2006)
Figura 25 – Ney Matogrosso show Mato Grosso (1982), Estádio do Morumbi-SP
O Jornal da Tarde prossegue com a matéria chamando a atenção para a
multiplicidade do público do artista, que percorre várias gerações, indo desde presença
marcante de uma senhora de 74 anos de idade, acompanhada de netos, até a presença da
cantora Wanderléia que exe o desejo de ter tido dentro do movimento musical da
16
“Mato Grosso no Morumbi – o show coma às 19 horas, com apresentação da banda Rádio Táxi. Ney
Matogrosso entra em cena às 20 horas. Os portões do estádio serão abertos às 15 horas. Os ingressos
custam: Cr$ 300,00 geral; Cr$ 500,00 arquibancada; Cr$ 1.000,00 cadeira; Cr$ 1.500,00 pista. A
CTMC colocou 500 ônibus para servir as pessoas que forem ao Morumbi, com saída do Anhangabaú. A
passagem custa Cr$ 100,00 (TAIAR, 1982).
197
Jovem Guarda, do qual participou, a presença de Ney Matogrosso. O Jornal da Tarde
publica:
A partir do momento em que o telão parou definitivamente de transmitir as
imagens do palco a multidão impaciente deu início ao empurra-empurra na
pista. Quem agüentou bem esse tipo de pressão física foi Ana Vendramelli,
74 anos, 16 netos, uma senhora baixa que se agarrava com força às grades
que dividiam a pista da área reservada para o palco. Tão animada quanto
Dona Ana, só que com mais espaço pra dançar o tempo todo, a cantora
Wanderléa cantou várias músicas de Ney Matogrosso. Wanderléa diz: Eu
fico imaginando se a nossa geração da (Jovem Guarda) tivesse tido um Ney
também. O Ney é um revolucionário maravilhoso e eu o amo de paixão.
(PEREIRA, 1982)
Em matéria publicada na Folha de o Paulo, em 20 de dezembro de 1982,
com a manchete: “Publico menor para as vozes de Ney Matogrosso” é anunciada, em
contrapartida ao Jornal da Tarde, uma platéia menor que a esperada para o show do
artista no Morumbi. O Jornal da Tarde apontou para um público de 70 mil pessoas, a
Folha estimou umblico de um pouco mais de 40 mil pessoas.
Reforçando as controvérsias entre os dois meios de comunicação, a matéria
veiculada por A Folha de São Paulo, continua apontando para a quebra de expectativas
gerada em torno do espetáculo, quando o mencionados problemas de natureza técnica
no transcorrer do mesmo. Foram indicados vários fatores como: o som que não atingiu a
todos os locais, o telão com falhas da transmissão da imagem e, sobretudo o excesso de
luz lançado pelos refletores do estádio sobre o público. A Folha ressalta que todos esses
problemas foram minimizados, em função do profissionalismo do artista Ney
Matogrosso. O jornal notifica:
Não foi propriamente um show à Frank Sinatra, como pretendia o empresário
Manoel Polidian. Houve falhas, uma delas (o excesso de luz sobre o público,
na hora mais quente) detectada pelo próprio Ney Matogrosso. Ney ressaltou
ao microfone “a luz corta o barato”. O som que chegava à geral, onde se
acomodava a maior parte do público, mais parecia uma emissão de rádio. E
essas pessoas estavam privadas inclusive de acompanhar a performance do
cantor. A derradeira falha da produção felizmente se revelou depois de ele ter
deixado o palco: um conjunto de belíssimos fogos de artifício brilhou no u,
ainda com os holofotes acesos. sim o barato foi cortado. Ainda assim,
quem foi ao estádio do Morumbi no sábado à noite para ver “Mato Grosso
não se arrependeu do esforço: Ney esteve exuberante, soltou-se inteiro no
palco e em nenhum momento deu mostras de temor diante da multidão de
mais de 40 mil pessoas. (TAIAR, 1982)
Independente das contradições existentes dentro da dia, o espetáculo
realizado no Morumbi consolida o artista enquanto fenômeno de massa, sendo, nesse
198
sentido, a crítica unânime em seus comentários e manchetes. No entanto, mesmo
estando no ápice de seu trajeto artístico, prevalecendo seu auto-empresariado pela Mato
Grosso Produções Artísticas, recebendo diversos prêmios da indústria fonográfica
(disco de ouro), congratulações de melhor “show do ano”, recorde de público entre
artistas da MPB e internacionais, projeção de sua imagem no exterior, entre outros
atributos que o afastaram de sua condição de liminaridade perante o público e à mídia, a
autonomia artística do canto faz-se notória, porém, essa permanece relativizada perante
os poderes instituídos.
Para melhor situar essa questão da relatividade da autonomia artística do
cantor perante tais poderes, atente-se, em especial, para a questão da continuidade dos
problemas entre o artista e as gravadoras, quando esse teve que interromper a turnê, para
gravar o disco seguinte, em função das imposições contratuais, bem como a
problemática surgida pela numeração dos discos, ambas já analisadas no início desse
item.
O espetáculo no Morumbi representa não somente a concretização do artista
enquanto fenômeno de massa, tal evento aponta também para o limite imposto pela
indústria do show bussiness à autonomia do artista, devido a impossibilidade da Mato
Grosso Produções poder empresariar sozinha tal evento. A firma do cantor não pôde à
época empreender o evento, devido aos elevados encargos financeiros que um
espetáculo de tal porte demandava. Dessa maneira teve de recorrer a outros setores do
amplo e disputado mercado do show business. Em referência a essa grande produção
envolvendo um investimento financeiro de alto valor, em que o pode ser bancado
exclusivamente pelo cantor, a Folha de São Paulo publica:
O estádio do Morumbi se transformou desde a última segunda-feira, num
verdadeiro acampamento. Quase 130 pessoas trabalham ali em tempo
integral, revezando-se em equipes: 45 montadores de palco, 25 carpinteiros,
15 técnicos de som e 32 técnicos de eletricidade. Doze caminhões servem de
transporte de material. E mais dez homens aplicam um impermeabilizante no
gramado, que acomodará cerca de 15 por cento dos 120 mil espectadores
previstos. (TAIAR, 1982)
Sobre esse grande investimento dentro do mercado de show business, o
empresário Manoel Poladian, diretor da empresa de eventos Studio Um e responsável
pela realização do espetáculo, declara ao jornal A Folha de São Paulo que no momento
ainda o pode fazer uma avaliação dos valores gastos. Segundo o empresário esses
199
números poderão ser avaliados alguns dias após o espetáculo, mas declara à Folha os
valores já investidos em tal evento:
É impossível pensar em custos agora, daqui a alguns dias. Foram gastos
CR$ 500 mil com refeições, CR$ 2,5 milhões com a impressão de ingressos
na Casa da Moeda e CR$ 5 milhões no revestimento do gramado. Os 800
seguranças custaram à Studio Um cerca de 4 milhões. O São Paulo Futebol
Clube, proprietário do estádio, deverá ficar com 10% da renda. (TAIAR,
1982)
Dessa maneira podemos observar as entrelinhas da produção de grandes
espetáculos, envolvendo trabalhadores, técnicos de som, músicos e todo um aparato
tecnológico para realização de tal evento. Isso nos mostra que a autonomia artística do
cantor é exercida dentro de algumas circunstâncias. A matéria continua mencionando os
encargos econômicos e os aparatos tecnológicos que um grande evento requer dentro do
universo do show business. A Folha de São Paulo publica:
O palco coberto onde Ney se apresentará tem dois elevadores, utilizados para
acomodar nas duas laterais (equivalentes em altura a um prédio de seis
andares cada uma) as 480 caixas de som e os 400 amplificadores de 400
watts por canal, o que equivale a um total de 160 mil watts. Do palco, que
tem 500 metros quadrados, saem três passarelas, em frente às quais ficaram
os jornalistas. Para a iluminação, serão utilizados 15 holofotes
“Supertrouper”, 800 spots, além dos holofotes do Morumbi e um anti-aéreo,
cedido pelo exército. Acima do palco um telão de 35 metros exibirá teipes
sobre os momentos que antecedem a entrada de Ney: ele saindo do hotel,
chegando ao estádio e preparando-se para cantar. (TAIAR, 1982)
Embora já patrocinando seus próprios espetáculos com recursos da
MatoGrosso Produções Artísticas, em alguns momentos da carreira do cantor ainda se
fez necessária a figura do empresário, em especial no espetáculo do Morumbi, em que
recorreu-se à produtora de eventos Studio Um, presidida, à época, pelo empresário
Manoel Poladian. Fica assim demonstrada a não totalidade dessa autonomia artística do
cantor, frente às imposições da indústria fonográfica e do show business.
Esse momento dentro do percurso artístico do cantor projetou-o em nível
internacional na mídia e frente ao público em alguns países como Suíça, Portugal,
França, Alemanha, Israel, Dinamarca. A Folha de São Paulo publica:
200
A caminho de Lisboa, onde tem contrato para quatro shows, Ney vê as
possibilidades se ampliarem. Ainda não decidiu nada, mas é possível que um
dia more seis meses no Brasil, seis fora. Tem convites para a Alemanha,
Dinamarca, França; e também para voltar à Suíça e à Israel, onde agradou
público e imprensa cantando em português.Uma semana antes da
apresentação em Israel eu já era capa de revistas, coisa que não acontece aqui.
Sei que agradei, e talvez a atração venha da estranheza. Nu, cheio de penas
no corpo, sou aquela coisa exótica que eles imaginaram. Mas destacaram
também a minha voz, trataram o trabalho com seriedade. Fora do Brasil isso
acontece em todo lugar. Aqui parece existir uma determinada faixa da
imprensa que não quer que certo. São uns três ou quatro veículos e falo
do Rio porque é lá que vivo sempre dispostos a menosprezar o trabalho do
artista e a dizer que ele o presta.”(NEY MATOGROSSO, 1983)
A conquista desse público no exterior, entretanto, não será objeto de análise
no presente estudo. Examinaremos, sim, nos capítulos subseqüentes a multiplicidade do
público do artista no Brasil. Estudo centrado nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e
Fortaleza, vislumbrando a relação estabelecida entre o artista Ney Matogrosso e seu
público no período de 1975 a 1982.
201
4 MAGIA, SONHO E FANTASIA: A MULTIPLICIDADE
DE UM PÚBLICO NA CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA
O objetivo desse capítulo é analisar a multiplicidade do público do cantor
Ney Matogrosso a partir de três perspectivas relacionadas à performance nica do
artista. A primeira análise diz respeito a um público implícito, já que não se fez presente
às apresentações do artista, mas que, no entanto, acompanhou-o pelos meios de
comunicação de massa e por meio dos serviços de inteligência vinculados aos órgãos de
repressão e de censura do regime militar. Refiro-me especificamente ao público
constituído pelos militares das Forças Armadas Brasileiras que estavam em atividade no
período de 1975 a 1982. Esse público mostrou-se, ao longo das entrevistas realizadas,
hostil ao comportamento do artista no palco, possibilitando, dessa forma, o
entendimento das patologias sociais” dentro dos preceitos da Teoria da Modernidade
de Habermas, entre o sistema e o mundo vivido.
O segundo público estudado é relacionado ao universo feminino, o mesmo
responsável pela formão de várias comunidades em sites de relacionamento, como no
Orkut, por exemplo, e a criação de vários outros sites relacionados à trajetória artística
do cantor, por exemplo, www.neymatogrossoumartista.com e www.loucospeloney.com,
onde predomina um sentimento de encantamento, carinho e gratidão em relação ao
artista, funcionando para troca de informações sobre o cantor, uma espécie de fã-clube
virtual.
O terceiro e último público analisado é referente ao público que, ao longo
das entrevistas, se autodefiniu como gay na orientação afetivo-sexual e no estilo de vida.
Esse participou ativamente da trajetória do artista, com presença nas apresentações em
clubes, teatros, ginásios, estádios de futebol e, sobretudo, durante as apresentações do
cantor dentro nos chamados circuitos underground da época, por exemplo no Teatro da
Galeria Alasca.
Esse público construiu uma relação de proximidade do percurso do cantor
durante os anos 70 e início dos 80, em função do comportamento cênico transgressor do
artista assemelhar-se ao estilo outsider de vida gay, dentro de uma perspectiva de
ruptura de valores e condutas morais referentes a uma sociedade com tros
homofóbicos, segundo relato dos próprios depoentes.
202
Dessa maneira, dentro de uma multiplicidade de público constituído pelos
militares, enquanto público implícito; pelos admiradores do cantor representado pelo
público gay e pelos fãs do artista representado por seu público feminino, no contexto
dos diversos momentos da carreira do artista, constituir-se-á o estudo desse capítulo.
4.1 “O ódio atinge generais, soldados rasos”: o olhar implícito dos
militares - uma análise discursiva do poder sob a ótica Habermasiana
Esse item tem como objetivo analisar o discurso de autoridade contido na
fala dos militares das Forças Armadas Brasileira, dentro de uma perspectiva discursiva
do poder. A partir de então será analisado o corpus, focando o lugar social dos
informantes e do investigador, período e circunstâncias que foram produzidas essas falas,
como também as descontinuidades e especificidades encontradas nesses relatos.
Dessa maneira tentar-se-á compreender o lugar de fala dos informantes, pois
durante o transcorrer das entrevistas, foi observado um expressivo diferencial entre o
relato de militares de baixa e alta patente. Será analisada também a fala informal dos
entrevistados, visto o rico conteúdo informativo contido nesses diálogos informais.
Esse rico conteúdo informativo encontrado na fala informal a que me refiro,
talvez se deva ao fato da ausência do discurso de autoridade, o que certamente arrefece a
força locucional da fala. Dessa maneira o relaxamento e desprendimento da fala
informal proporciona uma maior fluidez durante o diálogo, trazendo à tona questões nas
entrelinhas que provavelmente o discurso formal não revelaria.
Partindo dessas falas formais e informais dos militares e sua inserção no
contexo do artista Ney Matogrosso e da sociedade brasileira, faz-se pertinente
compreender a Teoria da Modernidade habermasiana. Esta procura explicar a gênese da
moderna sociedade ocidental, diagnosticando as suas patologias e buscando soluções
para a sua correção. Habermas faz uma importante distinção entre processos de
modernização e a modernidade cultural. A primeira enfatiza os processos de
racionalização ocorridos nos subsistemas econômico e político. A segunda alude à
autonomização, no interior do mundo vivido das chamadas esferas de valor: a moral, a
ciência e a arte.
203
Para compreender a importância desses dois processos é preciso retomar a
distinção entre sistema e mundo vivido, feita por Habermas. Os dois conceitos
correspondem a uma diferenciação das sociedades em duas esferas ou “mundos”: o
mundo da reprodução material (trabalho) e o mundo da reprodução simbólica
(interação). A própria diferenciação desses dois mundos é um dos traços constitutivos
da modernidade.
Habermas pretendeu desenvolver uma Teoria da Modernidade calcada em
um novo conceito de razão, a chamada razão comunicativa e em um novo conceito de
sociedade que integrasse o sistema ao mundo vivido. A Teoria da Modernidade é parte
integrante da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas. Ao lado de um conceito da
sociedade que associa a perspectiva intersubjetiva, interna do mundo vivido, à
perspectiva objetiva externa ou sismica e do resgate de um conceito de racionalidade
dialógica.
O primeiro conceito refere-se à maneira como os atores percebem e
vivenciam sua realidade social. O mundo vivido compõe-se da experiência comum a
todos os atores da ngua, das tradições e da cultura partilhada por eles. Os sujeitos de
uma deterinada comunidade humana se compreendem mutuamente a respeito do mundo
objetivo, social, e subjetivo à luz de um reservatório de evidências, istó é, de um
reservatório de interpretações”
(OLIVEIRA,1990, p.92).
Ele representa aquela parte da vida social cotidiana na qual se reflete o
óbvio”, aquilo que sempre foi o “inquestionado”. O mundo vivido apresenta, contudo,
duas facetas: a faceta da continuidade e das “certezas” intuitivas, do conjunto
pressuposto de convicções básicas não problematizadas (as evidências, crenças), a partir
de onde se forma o contexto de compreensão e a faceta da mudança e do
questionamento dessas mesmas certezas. Estas podem ser questionadas graças às
características da ação comunicativa. Essa discussão entre sistema e mundo vivido será
retomada ao longo desse item.
A primeira parte desse estudo acerca do olhar dos militares, enquanto público
implícito do artista Ney Matogrosso, deu-se no ano de 2003, durante minha pesquisa
investigativa de mestrado. A segunda parte teve continuidade no ano de 2006, já como
parte integrante da presente pesquisa de doutoramento
1
.
1
Foram realizadas quatro entrevistas com os militares no ano de 2003, estas não foram mencionadas na
dissertação de mestrado por questões de natureza metodológica. Intentei naquele momento, compreender
os veis de censura moral exercida pela direita, por meio de seus órgãos de repressão, para com as
204
4.1.1 “Antes ele se vestia como Carmem Miranda, aspecto assim de
gay”
O primeiro informante selecionado para uma análise discursiva foi o
tenente da reserva remunerada
2
do Exército Brasileiro, Afonso Cardoso
3
. Sentiu-se, logo
com esse primeiro informante, um certo receio em suas respostas, uma hesitação, diria
assim, que sugeria divagações e entrelinhas em sua fala. No que diz respeito à sua visão
acerca do grupo musical Secos & Molhados e do artista Ney Matogrosso dentro de um
contexto de censura do regime militar, o informante declarou:
Flávio: O Senhor lembra do grupo musical Secos & Molhados (Ney), como a
censura os percebia na época?
Tenente Afonso Cardoso: Não gostava do grupo nem das músicas. Agora o
Ney hoje está provando que tem coração muito bom, muita sensibilidade e
muito amor ao próximo, em ajuda aos necessitados, aos pobres. Hoje ele é
uma outra pessoa. Antes ele se vestia como Carmem Miranda, com trajes
diferentes, blusa fofa de cor, aspecto assim de gay. Pra gente que veio de
uma época de quartel, de conservatório, a gente aceita e não aceita.
(CARDOSO, 2003, p. 3)
Após a realização dessa entrevista, entrevistamos mais três outros militares,
um com mesma patente
4
de tenente e os outros dois de maior patente, na posição de
Capitão e Major do Exército Brasileiro, todos na reserva. A fala desses três outros
questões culturais em geral, a arte, a música, nas quais estava inserido o grupo musical Secos &
Molhados. Dentro de uma mesma perspectiva, tais entrevistas foram retomadas no ano de 2006 em
pesquisa de doutoramento, quando foram entrevistados sete militares. Ao todo foram entrevistados onze
militares de baixa e alta patente. Foram selecionados três desses entrevistados para a análise de suas falas.
O critério de seleção adotado na escolha dos informantes deu-se em função de uma maior consistência e
clareza em seus depoimentos acerca do tema em questão, as estratégias discursivas do poder, bem como a
censura moral exercida sobre a cultura. A identidade de nossos informantes foram preservadas, adotando
assim nomes fictícios, como pressuposto metodológico estabelecido em todo esse estudo. Qualquer
semelhança com nomes reais é uma questão de mera coincidência, sem nada nesse sentido ter sido
intencionado pelo pesquisador.
2
O termo reserva é usado pelos militares para designar um oficial que saiu do estado de vida profissional
sob a condição ativa e aposentou-se, passou para a reserva, a reserva remunerada, com remuneração,
renda.
3
Afonso Cardoso (in memorian), 82 anos, natural de Araré, Maranhão. Residente em Fortaleza Ce, foi
Primeiro Tenente da reserva do Exército Brasileiro, onde exerceu a função de regente da banda de música
da instituição. Foi combatente durante a 2° Guerra Mundial (1939-45). As entrevistas com os informantes
militares foram realizadas a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas, em que foram
destacadas as relações entre política e cultura nos anos 70 e a inserção social do grupo musical Secos &
Molhados. Tais entrevistas foram realizadas (gravadas) em suas residências, visto o avanço da idade dos
entrevistados, oscilado entre 78 e 83 anos. Posteriormente foram transcritas, analisadas e selecionadas
pelo pesquisador.
4
Baixa Patente: Soldado Recruta, Soldado Engajado, Cabo, Sargento, Sargento, Sargento, Sub-
Tenente, Tenente, Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel. Alta Patente: General de
Brigada, General de Divisão (Informante Tenente Afonso Cardoso).
205
informantes foram utilizadas no sentido de aprofundamento de nossas percepções em
torno do artista e da censura moral, porém não estão citadas no presente estudo, haja
vista a natureza confusa de seus depoimentos acerca do tema estudado.
4.1.2 “Cantando fino, é coluna do meio, um imoral, homossexual
nojento”
O segundo informante selecionado para análise, é o Tenente Walmir
Cordeiro
5
, este já como parte integrante de pesquisa de doutoramento. Após conceder
entrevista, perguntou, com um certo temor, se tinha falado demais na entrevista, se
levaria pra ele ver o resultado final do trabalho e se seu nome completo seria divulgado
nos meios de comunicação, pois temia complicações para sua vida. Esse afirmou em
fala informal impondo previamente a condição de seu nome não ser revelado nem seu
depoimento ser veiculado a nenhum meio de comunicação:
... estou muito bem assim
aposentado, bem mesmo, isso (reportagem) não vai tirar meu sossego não vai?... não
precisa falar minha identidade verdadeira (CORDEIRO, 2006, p. 1).
Após um diálogo informal que antecedeu os preâmbulos da entrevista, o
referido informante, dentro de uma fala formal, ao ser indagado acerca do trabalho do
cantor e a censura moral exercida sobre o artista nos declarou:
O Ney Matogrosso hoje tá mais parecido com gente, parece que ficou até rico,
mas continua assim meio pra e pra cá, o homem mesmo ainda não,
falta muito. Um cantor de cabelo grande, cantando fino, de saia, batom,
errado, muito errado. É coluna do meio, um imoral, homossexual nojento.
Tínhamos informações dele, devia ter sido logo cortado, assim evitava muita
indecência. Censura? Não sei nem o que diabo isso. Cumpríamos ordens dos
superiores e pronto. Isso é coisa pra desmoralizar a gente, não sou bobo o.
(CORDEIRO, 2006, p. 4)
Essa hostilidade oriunda do pensamento militar em relação a conduta moral
do artista é discutida pela jornalista Denise Pires Vaz, quando essa demonstra por meio
de documentos da época a afronta que o artista representava para com uma moral
instituída e intensifica pelos militares: “Considerado, durante uma reunião do alto-
comando da Marinha, uma ameaça ao pudor, Ney conseguiu evitar a mutilão de seus
5
Tenente Walmir Cordeiro, 79 anos, natural de Catolé do Rocha, Paraíba, residente em Fortaleza, é
Tenente da reserva remunerada da Marinha Brasileira, foi combatente da 2° Guerra Mundial.
206
espetáculos, beneficiado pelo fato de que eles nunca repetiam um comportamento
previamente ensaiado” (VAZ, 1992, p.98).
Acerca da afirmação do entrevistando Walmir Cordeiro de que, à época,
tinha informações sobre o cantor é relatada pelo artista como formas de ameaça e de
perseguição para o arrefecimento de seu comportamento estético no palco. O cantor
afirma: Recebei diversas ameaças e perseguições, telefonemas pedindo para baixar a
bola, mas isso apenas me motivava a ser mais ousado”. Continua declarando: “Eles não
podiam dizer que eu era subversivo, não falava, e nem falo, de potica no palco” (NEY,
2008 apud BREVES, 2008). Ainda no ano de 2008, o artista reafirma o depoimento em
entrevista concedida a Revista Rolling Stones:
Era guerrilha. E quanto mais recadinhos eu recebia do Cenimar [Centro de
Informações da Marinha], que era um órgão de repressão da mais alta
periculosidade. Diziam que eu tinha material subversivo em casa. fui
procurar o material subversivo. Morava num apartamento térreo de frente pra
rua, na época do meu primeiro disco. Entrava quem queria na minha casa. A
porta estava sempre aberta. Sabe o que era o material subversivo? Uma
agenda com fotos do Chile de Salvador Allende. Era um mundo de loucura.
Eu ignorava e pisava no acelerador. (NEY, 2008 apud ANJOS, 2008)
Em entrevista concedida ao jornalista Roberto D’ávila, o cantor afirma a sua
insubordinação ao regime militar afirmando que não considerava o autoritarismo do
governo como uma autoridade a ser respeitada. O cantor afirma:
Hoje, agora eu posso falar com tranqüilidade. Eu não tenho medo. A maior
autoridade na minha vida foi meu pai que eu contestei. Se eu contestei essa,
porque eu não contestaria a ditadura militar? Então essas outras eu nem
considerava, eu te digo que eu passei por esse período da ditadura no Brasil e
ignorava essa gente. Eu ignorava que existia um governo. Eu vivia o
contrário que eles permitiam, porque dentro de mim eu não considerava
aquilo como autoridade, falo em um sentido muito pessoal, individual. (NEY,
2003 apud D’ÁVILA, 2003)
4.1.3 “Ney mato fino e não Ney Matogrosso, pois não era pederasta”?
No entanto, esse receio presente na fala informal desses nossos dois
primeiros informantes de baixa patente em preservar sua identidade e a preocupação de
onde este relato seria disponibilizado não foi percebido quando entrevistamos militares
207
de patente mais elevada a de 1° tenente. Logo nos primeiros contatos pessoais feitos em
suas residências, quando tentávamos definir local, data e hora de nossas entrevistas, já
nos surgiam perguntas de natureza política-ideológica, no sentido de saberem o
posicionamento político do pesquisador. Era claramente notório em sua fala o discurso
de autoridade. O lugar da fala aparece como fator determinante de parecer de pontos de
vista mais consistentes e determinados, tanto na fala informal como formal dos militares
de maior patente.
Vale ressaltar que esses militares de maior patente já tinham informações
sobre minha pessoa dadas por outros militares entrevistados, como também tinham
conhecimento de que eu era filho de militar. O Capitão Marcos Antero
6
, logo ao ser
ligado o gravador de voz, já adiantou sua fala em um discurso informal: “Mas você
rapaz, não tem cara de comunista o, heim! Filho de militar é também gente boa.
(ANTERO, 2006, p. 1).
A fala informal desse informante foi cortada pelo próprio, mesclando dessa
forma a fala formal e informal durante o transcorrer da entrevista. Durante o discurso
formal, o indivíduo incorpora e constrói a instituição por meio de sua fala, sendo
passível de mudança. O fosso existente entre o discurso formal e informal dos
entrevistados está aqui colocado no sentido de perceber-se a perda da força locucional
no discurso informal. Isso é possível visto a ausência do discurso de autoridade em
tal fala informal, pode-se observar, dessa forma, suas descontinuidades e especificidades
contidas nessas duas falas. A informalidade constrói uma outra realidade, entendemos
aqui esses discursos como práticas sociais. Foucault nos faz refletir acerca dessa questão:
Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam
por vezes, mas também se ignoram ou se excluem. Deve-se conceber o
discurso como uma violência que fazemos as coisas, como uma prática que
lhes impomos em todo caso; e é nesta ptica que os acontecimentos do
discurso encontram um princípio de sua regularidade. (FOUCAULT, 1986, p.
52-53)
Após um diálogo informal que resultou um tempo 36 minutos, superando o
tempo da entrevista formal que teve uma durabilidade de 27 minutos, o General Marcos
Antero ao ser indagado sobre sua posição acerca do trabalho do cantor Ney Matogrosso
e da existência da censura moral, afirmou:
6
General Marcos Antero, 81 anos, natural de Iguatu - Ceará, residente em Fortaleza, é Capitão da reserva
remunerada do Exército Brasileiro, foi combatente da 2° Guerra Mundial.
208
Um homem que cantava se requebrando, o é certo, normal. Devia ter sido
dado um chamamento pra aprender, num instante ele tomava jeito de macho.
E a televisão ainda botava um sujeito desses, eu proibiria na hora, proibia e
pronto. Proibia tv, shows, tudo, merecia. Ele devia se chamar Ney mato fino
e não Ney Matogrosso, mais certo, pois não era pederasta, rapaz? Tava na
cara. Nunca dei ordens para subalterno nenhum meu cortar ninguém, viu?
Censurar, essas coisas todas que você me perguntou aí. Se isso foi feito que é
impossível, nunca tive conhecimento. Eu nunca fiz isso, embora alguns
patifes e afrescalhados merecessem. (ANTERO, 2003, p. 5)
Esse anseio de vetar o artista na televisão expresso pelo General Marcos
Antero em sua fala é relatado pelo artista em depoimento registrado no boletim da Rede
Globo de televisão, quando o artista gravava o especial Grandes Nomes Ney Souza
Pereira. Logo no início da carreira do cantor, em meados da década de 70, a veiculação
de sua imagem o foi vetada na íntegra nos meios de comunicação, mas sofreu uma
censura parcial, no que diz respeito a forma de sua atuação frente as câmeras.Ney afirma:
Logo que comecei a carreira, quando ia a um programa de tv, me diziam para
eu não olhar para as câmeras. Como não? eu pensava. Se eu queria olhar
para as pessoas que estavam em casa, isso seria possível através das
câmeras. E foi desobedecendo essa ordem absurda que consegui uma relação
boa com a TV. Eu não faço um espetáculo para as máquinas, mas para além
delas, dirigindo o meu olhar e a minha tensão para quem está em casa.
Mesmo assim, nunca me senti satisfeito com o que já apresentei em televisão,
porque sempre me pareceu que ela me restringia muito, não deixava mostrar
o que faço na verdade. (DANIEL, 1981)
A proibição das apresentações a que se referiu o General Marcos Antero,
manifestou-se em princípio de forma parcial, com a proibição da divulgação do
espetáculo nos meios de comunicação de massa e com mudanças de local das
apresentações. Mais adiante o artista sofre o veto íntegro, sendo proibido de apresentar-
se em Brasília. Denise Pires aborda:
Voltou a se apresentar em Bralia, sozinho, com Homem de Neanderthal e
o Bandido. Nas duas vezes, precisou enfrentar as dificuldades criadas para
impedir o sucesso dos trabalhos – desde a proibição de anunciar os shows em
rádio e televisão aa impossibilidade de realizar os espetáculos em vários
lugares desejados. Enquanto o Homem de Neanderthal ainda conseguiu
espaço num gisio inteiramente desconhecido, onde antes ninguém havia se
apresentado, o Bandido, proibido à última hora para o ginásio combinado,
teve de se contentar apenas com um clube. No Bandido, por exemplo, ele foi
aconselhado a o realizar a parte do show em que descia para junto das
pessoas, para mexer com elas, porque poderia ser perigoso. Decidiu não
mutilar o espetáculo, mas, quando desceu, viu um monte de homens vestidos
de terno, espalhados no meio da platéia, e que mal piscavam, olhando sérios
para ele. Nem precisava da confirmação, que viria depois, para saber que se
tratava dos famosos agentes do DOPS. Feitiço o show seguinte (79), não teve
209
a oportunidade de conhecer Brasília, que aconteceu durante o período de
três anos em que Ney foi claramente proibido de mostrar seu trabalho na
cidade. (VAZ, 1992)
Após a análise dessas falas de militares de baixa e alta patente sobre a
censura moral ao artista, percebe-se o que existe em comum entre elas é o repasse da
culpa” ao outro e a negação de tais atos de censura pelos mesmos. Os de baixa patente,
quando indagados sobre censura moral em relação ao cantor, sempre apresentavam o
álibi de que estavam cumprindo ordens, repassando a culpa” para seu superior. Suas
respostas vinham normalmente marcadas com expressões que apontavam para um o
envolvimento: “Em nenhum momento recebi ordens para..., Não tomei
conhecimento...”, s apenas cumpríamos ordens...”. Os de alta patente negam em
unanimidade a censura moral ao artista Ney Matogrosso, quando admitem, repassam a
tomada de decisão a outros oficiais. Apenas expressam o desejo de coibi-lo, vetá-lo,
associando a imagem do cantor a pederastia, homossexualismo, comportamento
desviante.
Entendendo os mecanismos da fala dos militares baixa patente numa
perspectiva Habermasiana, no sentido de sua recorrência, notar-se-á a transposição
dessa fala para o nível do discurso. Habermas, distingue dois tipos de discurso: o
discurso teórico, que tem o objetivo de fundamentar a verdade dos proferimentos
constatativos e o discurso prático, que põe à prova a correção dos proferimentos
regulativos. A ação comunicativa permite suspender, temporariamente, as pretensões de
validade. Nos contextos de fala “normais” e cotidianos, ela reforça e reafirma a validade
das normas existentes. Passando-se, contudo, para o plano do “discurso”.
O discurso teórico permite questionar a verdade afirmada sobre os fatos,
buscando elaborar, à base de argumentos mais convincentes e coerentes, uma nova
teoria. O discurso prático permite questionar a adequação às normas sociais, buscando
legitimar, no interior de um processo argumentativo que respeita os melhores
argumentos, a validade de um sistema novo, aceito por todos.
É nesse ponto que se encontra a racionalidade específica da ação
comunicativa, ou seja, na capacidade de passar da pura fala para o discurso, que se
radica na força do melhor argumento. Em suma, o mundo vivido constitui o espaço
social em que a ação comunicativa permite a realização da razão comunicativa, calcada
no diálogo e na força do melhor argumento em contextos interativos, livre de coação.
210
As estruturas do mundo vivido são as formas do entendimento possível: o
mundo vivo é o “lugar transcedental” de encontro entre falante e ouvinte, pois
o lugar onde ambos levantam pretenes de validade, e tem possibilidade de
testá-las, conseguindo, assim, um concenso fundado. Numa palavra, o mundo
vivido contitui o horizonte que os conceitos formais do mundo formam um
sistema de relações sobre o que se o entendimento. (OLIVEIRA, 1992,
p.93)
O conceito de sistema, adota a perspectiva do observador externo à
sociedade. Trata-se de um conceito que não se opõe ao de mundo vivido, mas que o
complementa. Com o auxílio desse conceito é possível descrever aquelas estruturas
societárias que asseguram a reprodução material e institucional da sociedade: a
economia e o Estado.
Trata-se, nesse caso, de dois subsistemas da sociedade que desenvolveram
certos mecanismos autoreguladores: o dinheiro e o poder, que asseguram a
“integração sismica” no interior do sistema, a linguagem é secundária,
predominando a ação instrumental ou estratégica. o sistema é regido pela razão
instrumental. Assim como o sistema diferencia-se na modernidade em dois
subsistemas, economia e Estado, também ocorrem diferenciações no interior do
mundo vivido.
Habermas distingue aqui três diferentes estrutura ou subsistemas: o cultural,
o social e o subsistema de personalidade, por sua vez regulados pelos mecanismos de
integração social (controle social, socialização e aprendizado). Esses mecanismos são,
segundo o autor, regulados pela ação comunicativa, dependendo da linguagem.
“A
hermeneutica considera a linguagem, por assim dizer, em ão, a saber, da maneira
como é empregada pelos participantes com o objetivo de chegar à compreensão
conjunta de uma coisa ou a uma maneira de ver comum”(HABERMAS,1989,p.41).
Dentro dessa perspectiva, a fala dos militares de alta patente adota o ponto
de vista do observador externo à sociedade, apresentando-se mais autônomos ao
assumirem suas responsabilidades em relação às tomadas de atitudes aos mecanismos de
censura. Alguns durante as entrevistas até admitem que naquele período possa ter
havido algum tipo de censura e veto ao artista Ney Matogrosso, entretanto, quando
admitiram possíveis práticas, teriam sido a partir de outro militar que naquela
circunstância executou tais medidas de ordem, em nome da moral e dos bons costumes.
211
Os
onze militares entrevistados foram unânimes em suas falas, sobre a
hostilidade em relação ao artista Ney Matogrosso, em função de um suposto
comportamento sexual “invertido”, de sua postura andrógina no palco. Suas afirmações
em relação ao artista estão no sentido de o perceberem dentro de uma perspectiva de um
conflito de nero, afirmando nossos informantes que o artista é de natureza
eminentemente masculina e não feminina.
A tentativa de enquadramento do artista na categoria gay é mencionada por
oito dos onze militares entrevistados, quando esses atribuem o termo gay, pederasta e
homossexual ao cantor. É o choque entre sistema e mundo vivido. A continuidade ou
mudança das normas que regem o mundo vivido como um todo depende da sua
aceitação, ou não, dessas normas e valores pelos atores envolvidos e atingidos. O
questionamento de sua validade exigiria a suspensão da comunicação cotidiana e a
instauração de um discurso prático que permitiria criticar, renegociar e finalmente
reinstaurar a validade de normas e valores.
Habermas, ao conceituar a sociedade, compondo-a em dois mundos, o
sistema e o mundo vivido, necessita também fazer a distinção entre modernização
societária e modernidade cultural. O processo de modernização societária refere-se às
transformações ocorridas no sistema, à modernidade cultural, às transformações
ocorridas no mundo vivido. A modernização societária apresenta-se sob dois aspectos: o
da diferenciação interna do sistema em dois subsistemas (economia e poder) e o da
racionalização interna de cada um desses subsistemas.
No primeiro caso, trata-se da constituição de uma economia de mercado,
baseada no princípio do lucro, na relação capital-trabalho, no cálculo de rentabilidade
etc.; no segundo caso, da constituição do Estado nacional legal, calcado em um sitema
jurídico, numa burocracia efetiva, em um exército e uma polícia etc.
A racionalização da economia e do Estado resultou na hegemonia da
racionalidade instrumental. A modernização societária significou, ao mesmo tempo, a
expulsão da racionalidade comunicativa do mundo do sistema e sua limitação ao mundo
vivido. A economia e o Estado asseguram a reprodução material e institucional da
sociedade moderna sem, contudo, admitir o questionamento dos princípios que regem
seu funcionamento.
A modernidade cultural refere-se às transformações ocorridas no interior do
subsistema cultural, pertencente ao mundo vivido. Aqui se observam os processos de
212
diferenciação e autonomização. No subsistema cultural ocorre historicamente
primeiramente uma diferenciação em três esferas: a científica, a ética e a estética, e
depois a autonomização dessas esferas, após a autonomização dessas esferas, isto é,
cada uma passa a funcionar segundo princípios próprios: verdade, moralidade,
expressividade.
Se a racionalização constitui o traço central da modernização societária do
sistema, a autonomização das esferas da ciência, da moral e da arte constitui o traço
central da modernidade cultural. Nas três esferas predomina a racionalidade
comunicativa. Em cada uma delas as pretensões de validade podem ser postas em
questão, suspensas temporariamente e reelaboradas no interior de um processo
argumentativo racional discursos.
A esfera da ciência, espaço privilegiado do cultivo da verdade, instaura
discursos teóricos quando as pretensões de validade das verdades afirmadas em suas
teorias são sistematicamente questionadas. A esfera da moral, espaço privilegiado do
cultivo das normas e princípios que regem a ação social, instaura discursos práticos,
buscando melhor adequação e legitimação das normas. A esfera da arte, na qual se
exprime a veracidade dos atores e sua subjetividade, permite transformação da
subjetividade em intersubjetividade expressiva.
E é exatamente sobre essa transformação da subjetividade em
intersubjetividade expressiva que se dá o confronto entre sistema e mundo vivido. Dessa
forma torna-se notório esse embate surgido entre o mundo vivido do artísta Ney
Matogrosso, dentro da esfera da arte: subjetividade/intersubjetividade, e o sistema
propriamente dito, o poder vigente do regime militar.
Posto esse confronto entre mundo vivido e sistema, produz-se um
desequilíbrio, que dentro da tentativa habermasiana de compreensão acerca da gênese da
modernidade ocidental (sociedade), surge assim as chamadas “patologias”. Dessa
maneira a transgressão comportamental do artista Ney Matogrosso, em relação às
normas morais de conduta do regime militar, apareceria como um fator de patologia”
social, na medida que essa disputa ia sendo lentamente acentuada.
A jornalísta Denise Pirez Vaz nos demonstra esse acirramento entre sistema
e mundo vivido por meio do limite idade imposto aos espetáculos do artista pelos órgãos
de repressão e censura do regime militar. Denise aborda:
213
Contraditoriamente, tornava-se mais abusado à medida em que ia sendo mais
proibido: seus shows começaram com uma censura para quatorze anos,
aumentada depois para dezesseis e, em seguida, para dezoito. Procurava
conscientemente ser subversivo, não através da política partidária, mas como
atuação (para ele) muito mais ampla e séria: tentava mexer com o
inconsciente das pessoas de uma forma subliminar que dissesse abaixo o
comportamento submisso e a repressão em cada um. (VAZ,1992, p.98)
O mundo vivido não pode ser transcendido, poderá sim ser ampliado, pois
ele representa uma forma de construção da sociabilidade. Tentando compreender as
patologias da sociedade, dentro da historificação da razão, Habermas buscou superar
o modelo da subjetividade, considerando que o homem pensa a partir do mundo
vivido, das tradições, da produção de sentidos. O que compreendemos acerca do
mundo da sociedade, da cultura, do indivíduo, parte de nossos conceitos pré-
formulados
que dispomos ou que iremos dispor mais adiante.
Dessa maneira, o artista Ney Matogrosso transita durante o período do
regime militar, dentro de um universo social e político em que se encontravam os
setores culturais sitiados,vigiados, sob justificativa de uma possível subverção potica
ao regime vigente. Constrói-se, a partir de então, dentro dessa realidade do mundo
vivido, todo um horizonte de sentidos onde os sujeitos se encontram.
Partindo do pressuposto que o mundo vivido é a mentalidade pela qual as
pessoas conhecem os objetos e agem sobre eles, podemos compreender que nada foi
executado despropositadamente, no âmbito artístico, por Ney Matogrosso no sentido do
embate com o regime. Indagado pela jornalísta Sonia Rancy sobre a sua performance
em cena em anos de ditadura militar, o artista responde que a agressividade no palco era
uma forma de autodefesa em função do momento que o país atravessava. O cantor
comenta acerca dessa consciência: “Se não fosse o que fiz, seria uma coisa tão agressiva
quanto. Tinha consciência do Ps em que vivíamos, do estado de calamidade daquela
ditadura nojenta” (RACY, 2008, p. D11).
Durante o governo do Presidente Médici, nos idos de 1974, o cantor foi
obrigado a apresenta-se previamente para uma junta de militares, ligados aos órgãos de
repressão e censura, como requisito obrigatório para liberação do espetáculo na cidade
de Brasília. Nesse sentido, torna-se notória a relação conflituosa entre o sistema e o
mundo vivido propriamente constituído. Sobre o episódio de censura o artista relata:
214
Foi um exercício de força, uma bela mostra da prepotência do poder. que
eles eram tão bobos que pensaram que eu ia repetir tudo o que aprontava no
palco. Imagina! Essa apresentação não teve nada a ver com o show que
aconteceu poucas horas depois. Apesar de eu estar pintado, quase não dancei
e me limitei praticamente a cantar as músicas previstas. No fundo, queria
deixar bem evidente o meu mau humor e a falta de vontade de fazer aquilo
(VAZ, 1992, p. 99).
O mundo vivido é a condição de possibilidades, é o horizonte não
expressamente articulado. A performance, a gestualidade, a teatralidade contida
implicitamente nas apresentações do artista em meados da década de 70 e por um bom
período de sua trajetória, indo a meados da década de 80, mostrava exatamente as
outras formas, as outras possibilidades, a multiplicidade, a pluralidade de contrapor-se a
uma moral e a uma conduduta impostas pelos militares à sociedade brasileira. Habermas
nos chama a atenção acerca das atitudes performativas dentro da esfera pública, dentro
do mundo vivido e do sistema.
A atitude performativa necessária para a interpretação admite, é verdade,
transições regulares entre as atitudes da primeira, da segunda e da terceira
pessoas; contudo, para fins de mediação, a atitude performativa deve ser
subordinada a uma única atitude, a saber, a atitude objetivante.
(HABERMAS,1989,p.44)
As expressões corporais contidas nas performances do artista , possibilitava
dizer o indizível através da gestualidade. O silêncio fala. O implícito torna-se explícito.
A trangressão enquanto patologia, surgida a partir do choque entre o mundo vivido e o
sistema, possibilita-nos entender que o mundo vivido é o mundo humano, estruturado
em nossas vidas, é a expressão do implícito embutido na vida.
4.2 “Não existe pecado de baixo do equador”: o público feminino
Recentemente, uma fã lhe escreveu, pedindo em casamento por uma
noite”. Com uma condição: que, antes, Ney a deixasse tirar, “bem
devagarzinho”, todas as pulseiras, brincos, anéis, maquilagem....“As pessoas
acham que eu fico fantasiado o dia inteiro. Já me perguntaram até como é que
eu faço para tomar banho. Uma fã, que soube que a motocicleta de Ney tinha
sido roubada, veio trazer outra, novinha em folha, de presente. (LACERDA,
1978)
215
O objetivo desse item é compreender o comportamento do público feminino
dentro de uma perspectiva “libertária”, que colocou o cantor em uma condição de
símbolo sexual dentro de alguns setores da mídia. Condição essa que se estende até os
dias atuais. A Folha de São Paulo publica: “Ney mexe com as mulheres, com a
sensualidade e imaginação de cada uma. E quando invadem seu camarim é, naquele
momento, um símbolo sexual, franco e declarado objeto de todas as fantasias”. O cantor
esclarece: “...ali eu sou aquilo que se mostrou no palco, uma energia e uma sensualidade
que eu exibo, provoco, uso. Sei que muita gente, através do que faço, libera o que pode”
(PRADO, 1982).
Esse anseio oriundo do universo feminino é reforçado em matéria publicada
na revista Diálogo Médico, onde foi enfocada a mudança de comportamento na vida
profissional e afetiva da consultora de marketing Arlete Barros. Ela relata que ouviu o
cantor pela primeira vez quando tinha dezessete anos, o que provocou um
desentendimento com sua mãe, por esta não reconhecer méritos no cantor. Mais a frente
desentendeu-se com o marido, por motivos de ciúmes, levando-a a uma ruptura conjugal.
Em seguida pediu demissão do emprego e criou o site www.loucospeloney.com
7
. Afirma
ainda que noventa por cento de suas despesas sejam em função do cantor, tendo
assistido cinqüenta e quatro vezes o espetáculo Cartola. Arlete Barros relata:
Cerca de 90% de minhas despesas do cartão de crédito são por causa do Ney.
Assisti 54 vezes ao espetáculo Cartola, de 2002, diz a consultora de
marketing Arlete de Barros. Ela tinha 17 anos quando ouviu Ney Matogrosso
pela primeira vez e nunca mais desligou a vitrola. Primeiro ela enfrentou a
resistência da mãe, que não gostava do cantor. Aos 23 teve que lidar com os
ciúmes do marido, que não deixava a assistir aos shows. “É lógico que eu me
separei dele”, relembra. Depois de discutir com a mãe, acabar um casamento
e criar um site (www.loucospeloney.com), Arlete pediu demissão do
emprego após ouvir Ney cantando Preciso me encontrar. “Eu não estava feliz
e a música foi uma mensagem”. Ainda por causa do ídolo, Arlete viajou pelo
Brasil todo e fez várias amizades. (RAMALHO, 2004, p. 42)
Além do depoimento da fã Arlete Sales, a senhora Maria Annia Bove
Louzada, 50 anos, também teve problemas com o marido em relação à admiração que
nutria pelo cantor. Em depoimento à mesma revista ela relata que durante turnê do
7
O site loucospeloney foi criado pela fã Arlete de Barros, consultora de marketing, residente na cidade de
São Paulo. O referido site tem por finalidade promover o diálogo virtual entre admiradores do artista, no
sentido de troca de informações e opiniões. Além de sua idealizadora o site conta ainda com a
colaboração de cinco fãs de São Paulo (quatro fãs do sexo feminino e um do sexo masculino) e uma fã do
Rio de Janeiro.
216
cantor, em um determinado momento do espetáculo, enquanto aplaudia o artista,
chamando-o de “lindo”, despertou ciúmes em seu esposo, ocasionando em um mal-estar
e repreensão. A relata: “Foi uma ciumeira. expliquei que eu amo o Ney do mesmo
jeito que amo meu marido, mãe e filhos. Quando estou triste, coloco uma música dele e
logo me sinto elevada novamente. O Ney é uma pessoa iluminada” (RAMALHO, 2004).
Tais pressupostos referentes ao público feminino acima citados, nortearam os
rumos das entrevistas acerca desse mesmo blico a ser analisado. Assim, serão
delimitados como sujeitos de investigação para realização das entrevistas, fãs do artista,
com idade acima de 50 anos
8
, localizadas a partir da comunidade Ney Matogrosso, no
Orkut.
4.2.1 “Existe um sentido político em sua arte. Ney é desacato,
sentimento contramão”
O contato com a primeira informante deu-se por meio da comunidade Ney
Matogrosso. A entrevistanda Lúcia Furtado
9
enfatizou a questão político-cultural dos
anos 70, bem como o sentido de liberdade que o artista emitia através de seu trabalho.
Flávio Queiroz: O que significa o artista Ney Matogrosso para você?
Lúcia Furtado: Naquela época questiovamos tudo, a direita, a esquerda, o
sistema, a caretice toda. Não agüentei o peso da barra, me refiro aos militares,
oprimindo a arte, a cultura, tudo. Fui para o Amazonas mais ou menos em 76,
77 e quem aliviava a barra era Ney. Eu me sentia mais livre, saber que
existia um artista naquele momento de tanta repressão e tortura que rebelava-
se de uma forma linda, sem pegar em bandeiras ou armas. Quando analiso o
conjunto da obra de Ney vejo que existe um sentido político provocativo em
sua arte só que as pessoas eram, e algumas ainda são, limitadas, tapadas
mesmo, para perceberem isso. Muitas pessoas na época ligadas à política
partidária de esquerda queriam uma postura mais engajada de Ney e
desconsideravam seu trabalho. Ney esacima disso tudo. Pra mim, Flávio, o
Ney se resume em uma única palavra: contramão. O Ney é contramão,
desacato, sentimento contramão. Ele sempre esteve e estará na contramão de
tudo, é o avesso. Vamos continuar conversando. Bjs. (FURTADO, 2006, p.2)
8
A faixa etária acima de 50 anos das fãs foi assim delimitada em função da possibilidade de alcance dos
shows no período a ser analisado (1975-82). As entrevistas com as fãs de Ney Matogrosso foram
realizadas a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas, em que foram destacadas as
relações entre política e cultura nos anos 70 acerca da trajetória do cantor Ney Matogrosso e sua inserção
social no universo feminino. Tais entrevistas se deram via correio eletrônico durante várias etapas.
9
Lúcia Furtado, psicóloga e artista plástica, 58 anos, natural de Juiz de Fora MG, residente em São
Paulo. Contactada a partir da comunidade Ney Matogrosso.
217
Esse sentido “político provocativo” que a entrevistada aponta no trabalho do
artista, assim como o patrulhamento político-ideológico das esquerdas da época no
sentido de um engajamento político nos ideais de esquerda em resistência” ao regime
militar, é também apontado na fala do artista. Em julho de 1978 ano do show Feitiço,
Ney comenta a questão relativa a cerceamento político-ideológico por parte de alguns
segmentos da esquerda cobrando o engajamento político de seu trabalho.
O jornalista Marco Antônio de Lacerda do Jornal da Tarde diz: “As críticas a
seu trabalho partem mais das chamadas “esquerdas”, que sempre cobram dele uma
posição mais potica”. Ney questiona logo abaixo: O que esperam de mim? Que eu faça
protesto social? Acho que não ficaria bem nem pra mim, nem pro Chico se, de repente,
eu resolvesse cantar Construção
10
, com quilos de maquilagem e até aqui de
pulseiras”(LACERDA, 1978).
Em entrevista mais recente no ano de 2002 concedida ao Jornalista Bené
Fonteles o artista volta a se expressar sobre essa problemática em relação aos partidos
de esquerda versus o desempenho de seu trabalho.
Bené Fonteles: “[...] você foi cobrado pelos radicais de esquerda?
Ney Matogrosso: Fui. Me mandavam recados, perguntando se eu estava
querendo informar ou apenas entreter as pessoas. Eu dizia: “Ah, vocês não
estão entendendo nada, sabe? Para eles se eu não falasse: ‘Abaixo a ditadura!’
e ‘Viva Che Guevara!’, não estava fazendo política. E eu não ligava para eles.
Assim como eu não ligava para direita, o ligava para a esquerda. Então
criei uma coisa dentro de mim de o estar apoiado em nada e estar
independente mesmo. Tinha que arcar com essa diferença e viver
independente no meio desse mundo, sem estar apoiado em nenhuma corrente
política, filosófica ou movimento musical. (FONTELES, 2002, p. 169)
Esse sentido político e provocativo apontado pela entrevistanda no fazer
artístico do cantor é comentado pelo próprio artista de forma objetiva quando indagado
10
O cantor Ney Matogrosso veio a gravar Construção do compositor Chico Buarque de Holanda 18
anos após essa declaração em que descartava a possibilidade de gravar construção, feita ao jornalista
Marco Antônio de Lacerda do Jornal da Tarde, em 13 de julho de 1978. No ano de 1996 o artista grava
pela gravadora Polygram com produção musical de Marco Mazzola o CD intitulado Um Brasileiro Ney
Matogrosso interpreta Chico Buarque contando com 17 música de autoria do compositor, entre elas como
primeira faixa a polêmica Construção. (Nota do autor). Músicas: Construção (Chico Buarque); Moto-
Contínuo (Edu Lobo e Chico Buarque); Cala a Boca, rbara (Chico Buarque e Ruy Guerra); Mil
Perdões (Chico Buarque); Valsinha (Chico Buarque e Vinícius de Moraes);MinhaHistória-
Gesubambino(DallaPallotino/Versão:ViníciusdeMoraeseChicoBuarque);Soneto(ChicoBuarque);RodaViv
a(ChicoBuarque);Corrente(ChicoBuarque); BomConselho (Chico Buarque); Partido Alto(Chico Buarque);
Homenagem ao Malandro (Chico Buarque); Até o Fim(Chico Buarque); Almanaque (Chico Buarque);
Acalanto para Helena (Chico Buarque); A Banda (Chico Buarque); Não Existe Pecado ao Sul do Equador
Chico Buarque e Ruy Guerra (MATOGROSSO,1996).
218
pela repórter Mariane Morisawa se considerava-se um provocador. O cantor responde:
Sou e serei até morrer. Acho que tudo tem que ser contestado. Os governos, a
organização humana. Tudo é contestável. Nada é satisfatório. Não existe mais diferença
entre esquerda e direita. A ideologia é a do mercado”(MORISAWA, 2008).
4.2.2 “Já tive desejos eróticos, fantasias amorosas com Ney, meu fauno
liberto”
O diálogo com a segunda informante foi viabilizado pela comunidade Ney
Souza Pereira Verônica Bezerra
11
aponta para o caráter sedutor que o artista provoca em
sua vida afetiva.
Flávio: O que significa o artista Ney Matogrosso para você? Como começou
a se interessar pelo artista?
Verônica: Quando Ney entra em cena é difícil de explicar, é choque logo de
cara, impacto. Ney representa um avanço para o universo de nosso cenário
cultural, ele será sempre vanguarda em suas atitudes. Aliás, Ney está presente
em mim em uma dimensão muito maior que é a dimensão do ser, da
sexualidade, do amor. Sou separada hoje, livre e confesso que quando mais
jovem, assim adolescente, tinha vários desejos eróticos, fantasias amorosas
com Ney, meu fauno liberto dos bosques do amor. Confesso que ainda hoje o
Ney mexe muito comigo, sinto-me muito atraída por ele. (BEZERRA, 2006,
p.1)
Essa dimensão encontrada na zona do desejo que o artista passa para suas fãs,
citada pela informante, é abordado pela Revista Diálogo Médico, quando essa publicou
matéria acerca da relação entre as fãs e o cantor enaltecendo o espaço da sensualidade
ocupado dentro do universo feminino.
Diálogo Médico: Ontem no seu show Vagabundo, com Pedro Luiz e a Parede,
sua fiel platéia de senhoras estava lá, delirando. Vo sempre mexeu com
elas, não?
Ney Matogrosso: Para minha surpresa, elas aparecem desde os Secos &
Molhados. Pelo fato da idade, achava que as senhoras seriam pessoas mais
formais e tradicionais e que me estranhariam. Mas não. Elas estão sempre em
meus shows.
Diálogo médico: Uma senhora lhe disse “você me acendeu para a vida. Até
assistir a um show seu eu achava que estava morta”.
Ney Matogrosso: Acho muito bom ser um veículo para esse tipo de
descoberta. Às vezes, não sabemos, mas estamos nos reprimindo. E poder
11
Verônica Bezerra, produtora cultural e design, 61 anos, natural de Vitória-(ES), residente no Rio de
Janeiro-(RJ). Contactada a partir da comunidade Ney Souza Pereira.
219
“desreprimir” alguém é, na verdade, a única grande contribuição que eu tento
transmitir nesses 31 anos de carreira. (RAMALHO, 2004)
Em matéria publicada na Revista Vogue Brasil, foi enaltecido o caráter da
hipersexualidade do cantor por despertar estímulos de sensualidade em uma senhora de
oitenta anos. A Vogue Brasil aborda:
Sexo, sexualidade e sensualidade, esses estímulos vitais, são, com perdão de
outras interpretações, alguns dos outros instrumentos de trabalho do homem
de voz cortante. A constatação de que a identidade livre criada a seu respeito
pelo público pode ainda incluir, com espontaneidade surpreendente, o desejo
(quase sexual, digamos) de uma senhora na casa dos 80 anos, depois de uma
apresentação no Nordeste do país. Ela a espectadora-tiete, insistentemente
tocava a perna do cantor, num misto de carinho e assédio, no melhor sentido
que a palavra puder ter. Foi, segundo o cantor, uma pessoa que se flagrou
“estimulada” depois de um show de Ney. A expressão verdadeira de Ney
jamais foi circunstancial. Ele admite ter sido, no passado, um ser
hipersexualizado que, não raro, desejava sua platéia. (RIBAS, 2000)
O artista declara a revista que naquela época, os anos 70, seu corpo, sua
sexualidade exacerbada exercida no palco era no sentido de desafio ao poder vigente do
regime militar, passado esse momento, hoje, segundo o artista, sua sensualidade em
cena é para divertir seu público. Ney declara: “Naquela época, eu usava o corpo e a
sexualidade para desafiar as instituições, para protestar, para agredir. Hoje, num outro
contexto, quando lanço mão dela, é basicamente para divertir as pessoas” (RIBAS,
2000).
A Matéria continua fazendo alusão aos apelos da mídia em relação a uma
sexualidade considerada meramente comercial para efeitos de mercado e comentando a
distinção feita pelo artista Ney Matogrosso ao usar sua sexualidade em cena. O
jornalista Sérgio Ribas aborda essa distinção entre a performance de Ney e o que hoje é
veiculado por parte da dia:
Eliminando qualquer deturpação libertária que sustente o
mundo dos falsos espetáculos de TV o artista diz que passado os anos se assustado
com os requebros, de qualquer gênero. Em seguida Ney Matogrosso comenta: “Não
nenhuma relação do que se hoje com que fiz no passado. Ou pelo menos torço para
que não haja. É uma sexualidade grosseira, vulgar, que, sinceramente, me deixa
chocado”(RIBAS, 2000).
220
4.2.3 “Acendo um incenso, faço uma prece, peço paz e vem. Ney é luz,
amor”
A terceira entrevistada a senhora lia Teles
12
, faz alusão a dimensão
religiosa que o artista representa em seu imaginário, estabelecendo dessa forma uma
relação de caráter sagrado para com o artista.
Flávio Queiroz: O que significa o artista Ney Matogrosso para você?
Júlia Teles: Às vezes acho que o único amor de minha vida foi mesmo o Ney.
Pra mim Ney significa ver a vida de uma outra forma, sem medo, preconceito,
de uma maneira mais leve, mais feliz. Recentemente desocupei um quarto de
visitas e fiz um cantinho assim de meditação, pois sou esotérica, adoro tudo
da Índia. Quando tenho que tomar uma decisão importante em minha vida,
me isolo em meu quartinho acendo um incenso, uma vela, coloco uma
música bem lenta dele, faço uma oração, uma prece e peço uma luz, paz uma
benção ao Ney, e vem, pois Ney é luz, amor, harmonia, daí relaxo e a solução
vem logo.Quando vou dormir também coloco o Ney é como um calmante,
melhor que tomar tranqüilizante. Quando precisar, Flávio ao dispor. Abraço
de paz e amor no coração. (TELES, 2007, p.4)
Essa mesma dimensão do sagrado relatado pela do cantor é também parte
integrante do universo do artista, chegando a ser um comportamento similar no sentido
do ritual, do sagrado. Em entrevista a Revista Diálogo Médico ao ser indagado se tinha
alguma religião ou filosofia o artista respondeu: “Não. Eu encosto a minha cabeça e
penso nas coisas. Tenho cristais e flores. E adoro acender velas. Quando estou com
qualquer coisa que não anda bem eu acendo uma vela e peço para que venha luz sobre
determinado assunto (RAMALHO,2004).
A fala das referidas informantes estão marcadas por anseios, desejos,
relacionados a um sentido de liberdade. Palavras como vida, liberdade, magia, ruptura,
transgressão, catarse, desafiador, desreprimir, entre outras ligadas ao sentido do livre
agir do indivíduo, são presentes em seus depoimentos. Nesse sentido, Cornelius
Castoriadis, em sua obra A instituição Imaginária da Sociedade, afirma acerca das
pulsões do indivíduo.
O imaginário age sobre um terreno onde existe repressão das pulsões e a
partir de um ou rios traumas; mas esta repressão das pulsões está sempre
presente, e o que constituiu trauma? Afora casos extremos, um acontecimento
é traumático porque é “vivido como tal” pelo indivíduo, e esta frase que
12
Júlia Teles, enfermeira, 55 anos, natural de Belo Horizonte, residente em Belo Horizonte. Contactada a
partir da comunidade Ney Matogrosso.
221
dizer no caso presente: porque o indivíduo lhe imputa uma significação dada,
que não é a sua significação “canônica”, ou de qualquer maneira, o se
impõe fatalmente como tal. (CASTORIADIS, 2000: 163)
O universo feminino acerca do artista Ney Matogrosso é regado por uma
multiplicidade de desejos e projeções. “O vocábulo fundamental que corresponde à
imaginação não é a imagem, mas sim o imaginário. Graças a esse mesmo imaginário, a
imaginação é essencialmente aberta, evasiva” (BACHELARD,2001,p.01). O estudo
acerca desse universo feminino aponta para rias dimensões a do sagrado, do profano,
da política partidária, colocando dessa maneira o cantor, não apenas como um
problematizador de identidades, mas, sobretudo como um artista que apresenta uma
função instigante em seus fãs, passando a despertar uma identidade própria nesse
público, independente da faixa etária dessas mulheres autodenominadas fãs do cantor.
4.3 “Um pecado suado, rasgado, a todo vapor”: o público gay
A sociedade organizada gostaria de ver os homossexuais sofrendo, porque
tem essa mentalidade de que homossexual tem que sofrer. Não tem que sofrer
não. Tem é que viver pra ser feliz dentro do possível, em qualquer
circunstância que se viva. (NEY, 2008 apud FONTELES, 2002, p.154)
O objetivo desse item é compreender a relação estabelecida durante a
trajetória do artista com o público gay, pois em alguns momentos o fazer arstico do
cantor confunde-se com o próprio universo gay, sobretudo dentro de uma perspectiva de
embate com diversos segmentos sociais, em função da transgressão comportamental que
esses dois universos representaram. Dessa forma compreender as particularidades do
universo gay é entender a produção da obra do artista em seu princípio de transgressão e
autonomia artística.
o intento com isso levantar nenhuma hipótese de que o artista tenha
direcionado intencionalmente seu trabalho para o público gay, em nenhum instante isso
é cogitado. Na verdade esses dois universos imbricaram-se, a performance do artista em
cena com o “glamour do universo gay. As fronteiras de gênero foram rompidas, o
masculino e o feminino deixaram de ser tão distantes. O jornalista Zuza de Homem
Mello
do Estado de São Paulo, em matéria publicada em vinte e oito de agosto de mil
222
novecentos e oitenta e um intitulada Ney Matogrosso:
O melhor de sua carreira,
abordou a questão.
Considerado o conjunto do que se vê e o que se ouve, dificilmente São Paulo
assistirá algo igual nesta temporada. Impecável em todos os detalhes, desde a
iluminação (onde não acontece aquele tolo pingue-pongue de cores ao ritmo
da música) aos figurinos. Na fortíssima projão que assume no palco, com
gestos, requebros, vôos e expressões, ele consegue embaralhar com total
dignidade o nu e o vestido, o masculino e o feminino. O estranho e o comum,
o claro e o escuro, o metal e o couro, a voz e o movimento, ou seja, como
conseqüência de tudo, a música com a dança. Ney faz o melhor show de sua
carreira, que vale integralmente o dinheiro do ingresso, um “must” como se
diz na gíria mundana. (MELLO, 1981)
Essa imagem andrógina do artista em cena, que contribuiu naquele momento
para a ruptura das fronteiras de gênero, influenciou toda uma geração de homossexuais
masculinos, formando, assim, um expressivo público de orientação gay, que teve
também uma função social de ruptura de tabus e condutas morais vigentes. O jornalista
Edmar Pereira do Jornal do Tarde em matéria intitulada Sou um ator que canta,
publicada em 12 de setembro de 1981, aborda a questão da ruptura de gêneros que o
artista desencadeia durante suas apresentações: O comportamento de Ney Matogrosso
no palco acelerou discussões sobre comportamentos na vida real. Estereótipos de
masculinidade e feminilidade perderam o sentido diante de sua ambígua presença
(PEREIRA, 1981).
Embora o cantor não tenha durante a sua trajetória se engajado politicamente
em nenhuma causa em defesa dos direitos” gay, esse teve o reconhecimento de
diversos segmentos dentro do público gay, no sentido do artista ter contribuído para a
ruptura de tabus e preconceitos em torno da temática. Em alguns momentos dessa
polêmica, quando indagado por setores da imprensa de sua não militância e
engajamento em prol do movimento gay, esse declarou que nunca levantou diretamente
“bandeira”, “estandarte” para tal movimento, pelo fato de tal atitude limitar seu campo
artístico, não fazendo sentido dessa maneira ser transformado em ícone do movimento
gay. Segundo o artista seu empenho era por algo bem maior e abrangente, seria referente
à liberdade do ser humano.
Eu acho ótimo ser símbolo sexual. Mas não sou estandarte de nada e nem sou
uma bandeira específica. Sou uma bandeira de comportamento, de liberdade
individual: quero ter o direito de ser o que eu quiser, da forma que eu quiser e
223
me mostrar como eu sou. Isso acho imprescindível a qualquer pessoa. Estou
mais preocupado com a liberação do ser humano. ( NEY, 1976 apud ACHO,
1976)
Essa postura de amplitude em relação a diversos assuntos, causas e
segmentos sociais é mantida pelo artista até os dias atuais. Em entrevista recente à
jornalista Sônia Racy do Estado de São Paulo, o artista declarou:
Sonia Racy: Já se engajou em alguma causa gay ?
Ney Matogrosso: Seria muito conveniente para o sistema eu ser um
estandarte gay. Nunca quis. Mas acho que só o fato de eu existir ajuda a
causa. Eu não preciso ser estandarte gay apenas: quero ter liberdade de
expressão em todos os assuntos que me interessam. Trabalho no combate à
hanseníase, quero ajudar a acabar com essa doença no País. Sou volunrio
dentro do movimento, que não acaba porque tem nenhum governo
empenhado. Na América Latina, a doença acabou. resta no Brasil e nisso
somos o primeiro do mundo. Temos ainda 43 mil pessoas com essa doença.
(RACY, 2008, p. D11)
É um fio tênue essa relação, pois o artista representou para toda uma geração
de homossexuais masculinos uma transgressão comportamental, colaborando dessa
maneira para ruptura de tabus e preconceitos existentes naquele momento contra a
forma de conduta relativa ao universo gay. Três gerações do público gay que admiram e
continuam a admirar o artista foram localizadas, por meio de sites de relacionamento.
A primeira dessas três gerações citadas acompanhou os espetáculos do cantor
durante a década de 70, se encontrando hoje na faixa de cinqüenta a sessenta e cinco
anos. A segunda passou a acompanhar o artista em meados da década de 80, se
encontrando hoje na faixa de quarenta a quarenta e cinco anos. E uma terceira geração
ainda admiradora do artista fruto das décadas de 90 e da atual década, encontrando-se na
faixa de vinte a trinta cinco anos.
Foram analisadas a primeira e segunda geração pelo fato desses indivíduos
terem estado próximos à trajetória do artista como admiradores e fãs entre os anos de
1975 a 1982, período em que se delimita a pesquisa. As entrevistas
13
com o público gay
13
A entrevista com os informantes abaixo relacionados foram realizadas a partir de um roteiro de questões
previamente elaboradas, via correio eletrônico, onde foram destacadas as relações entre política e cultura
nos anos 70 acerca da trajetória do cantor Ney Matogrosso e sua inserção social no universo gay. Tais
entrevistados são admiradores do artista Ney Matogrosso e estão dentro da categoria de homens que se
relacionam afetivamente com outros homens. Suas falas e depoimentos foram analisados no capítulo de
número 2, intitulado Sou quem teço minha renda: o princípio de autonomia artística - um corpo que
transgride, item 2.3. “Feitiço”: a popularização de uma estrela Ney está nu ! 2.2.3 Teatro Alaska,
glamour e underground gay. Dessa maneira no presente item será mencionado a passagem do artista com
224
vem no sentido de compreensão da sutil aproximação entre o comportamento do artista
no palco e o universo gay.
4.3.1 “Antigamente ser fã do Ney era sinônimo de ser gay
O diálogo com o primeiro informante o senhor Augusto Silva
14
, se deu por
meio do site de relacionamentos Orkut, pela comunidade Ney Matogrosso. Em primeira
instância a fala do informante aponta para o caráter transgressor do artista em função do
impacto provocado por sua postura estética em cena, por meio de suas indumentárias e
pinturas, chamando a atenção para o fato da associação feita entre ser fã do cantor como
um sinônimo de ser gay.
Flávio Queiroz: A quais shows assistiu do Ney?
Augusto Silva: Assisti a todos os shows da carreira solo de Ney Matogrosso
aqui em Belo Horizonte e somente a um, “Feitiço”, assisti no Rio de Janeiro.
Flávio: Assistiu a “Feitiço” na Galeria Alaska?
Augusto: o, mas me lembro da polêmica e tenho vários artigos da época,
foi o show Feitiço.
Flávio: Que polêmica foi essa?
Augusto: A polêmica gerada na época, show feitiço, lançado na galeria
Alaska se deve ao fato que lá era um point de encontros gays.
Flávio: No Rio assistiu ao “Feitiço” em que lugar?
Augusto: Assisti ao show em um segundo momento onde ele o apresentou no
teatro João Caetano, na praça Tiradentes. Eu, na época, estava de férias no
Rio, na casa de uma prima. Pedi a minha prima que me levasse, o que não foi
fácil, porque também a praça Tiradentes não tinha boa fama. heheheh.
Antigamente ser do Ney era sinônimo de ser gay, algumas pessoas
aceitavam bem e outras criticavam severamente. (SILVA, 2007, p.4 e 5)
O segundo informante, o Senhor Carlos Rodrigues,
15
cita em parte de sua
fala a mesma associação apontada pelo Senhor Augusto Silva, em que ser do artista
estaria diretamente ligado à condição de ser, homossexual, gay, “bicha”.
o show Feitiço na Galeria Alaska, em função dos entrevistandos terem vivenciado esse momento e ter
sido a Galeria um espaço destinado a encontros de homossexuais masculinos. A identidade dos
informantes foram preservadas, adotando assim nomes fictícios, como pressuposto metodológico adotado
no decorrer da pesquisa investigativa. Qualquer semelhança com nomes reais é uma questão totalmente
de mera coincidência, sem nada nesse sentido ter sido intencionado pelo pesquisador.
14
Augusto Silva, 47 anos, servidor público (Tribunal de Justiça) e colecionador da carreira do cantor Ney
Matogrosso, natural de Belo Horizonte - MG, residente em Belo Horizonte.
15
Carlos Rodrigues, 62 anos, chefe de cozinha, natural de o João Del Rey - MG, residente no Rio de
janeiro.
225
Flávio: A quais shows assistiu do artista Ney Matogrosso? Carlos Rodrigues:
A gente não podia dizer assim em casa que gostava do Ney, porque lá em
casa as pessoas tinham horror a ele, diziam que ele era um degenerado, uma
pouca vergonha. Os amigos sacaneavam. Se a gente dizia que se gostava do
Ney era porque também era bicha, um horror de ataque em cima da gente,
Flávio, você não faz não como era pesado tudo isso. Aqui no Rio a gente
aprende a ser estrela também. Lembro de vários shows seus desde o tempo
bombástico dos Secos. (RODRIGUES, 2006)
4.3.2 “Ney era uma força, pois era difícil ser gay, íamos pras boates
depois do show”
O terceiro informante o senhor Manuel Teixeira
16
aponta em seu relato para a
inflncia que o artista teve para sua geração no sentido de uma transgressão dos
costumes, bem como as dificuldades do estilo de vida gay.
Flávio Queiroz: A quais shows assistiu do artista Ney Matogrosso? Manuel
Teixeira: Lembro dele aqui no Rio bem na época do baratismo, do quente
da Galeria. Naquela época era meio que pecado gostar de Ney e freqüentar a
Galeria, era um pecado rasgado, suado mesmo. A barra era pesada, pintava
repressão, porrada mesmo em cima das “bichas”. A polícia chegava e
mandava cacete, era a ditadura. Tinha uns meninos lindos, e acontecia tudo
de bom, era maneiro as coisas. O Ney era um estrondo, dava liberdade pra
gente, muita gente tentava imitá-lo. A gente se sentia mais seguro, reforçado
com a presença do Ney ali por perto, entende? O Ney era assim uma força
para nós, como se ele dissesse: sou assim, desse jeito, os gays existem,
respeitem, pois era difícil ser gay. Depois do show íamos pras boates
entendidas aqui no Rio e a noite continuava. (TEIXEIRA, 2006)
Mesmo não se engajando em nenhum movimento social em relação aos
direitos gay, o artista representou um referencial para a geração citada pelo senhor
Manoel Teixeira, conforme depoimento acima citado. Acerca da questão, em entrevista
recente, o artista ao ser indagado sobre sua influência na Parada Gay do Rio e São Paulo,
declarou: “Olha, eu dei uma ajuda para que a coisa chegasse a esse ponto. Acho que
alguém tem que arrombar a porta e depois cada um que cuide de si. Esse papel coube a
mim, mas não fiz nada pensando” (NEY, 2008 apud ANJOS, 2008).
16
Manuel Teixeira, 59 anos, ex. seminarista, funcionário público, natural de Laranjeiras - RJ, residente no
Rio de Janeiro.
226
4.3.3 “É um mito dizer que artista não tem preconceito”
O quarto informante o senhor João Mendonça
17
atenta para a questão do
preconceito existente na classe artística, afirmando esse ser um mito, uma ilusão
desconsiderar esse preconceito. Quando indagado acerca desse preconceito existente no
seio da classe artística para com o cantor Ney Matogrosso esse nos afirmou:
Tinha preconceito e não adianta negar, porque o cara é estrela. As pessoas
gostavam de Ney, mas poucos expressavam por receio de serem também
rotuladas de “gay”, ouvir piadinhas, coisas do tipo. Reflexo do limite da
cultura brasileira, machista. Na verdade dentro do circuitão artístico, tinha
preconceito com o cara, isso é uma verdade, é preciso ser dita. Muito desse
preconceito vinha de nós mesmos que dizíamos sermos artistas e muitos gays
assumidos como eu. Falávamos assim: eu gostar do Ney imagina, o curto
Ney não, é profissional a relação. Trabalhar com o Ney podia, mas não
podia era dizer que gostava, era , compreende a diferença? É um mito dizer
que a classe artística os artistas são desprovidos de preconceito.
(MENDONÇA, 2006)
A jornalista Denise Pirez Vaz aborda essa questão da hostilidade da classe
artística em relação ao comportamento do cantor no palco, quando no início de sua
carreira solo o artista tornou-se alvo de uma política preconceituosa e discriminatória,
oriunda de alguns segmentos da própria classe artística. A jornalista relata: Ney soube
da existência de cartas de alguns artistas pedindo para ele ser proibido de se apresentar
em lugares públicos, por constituir uma vergonha para a classe” (VAZ, 1992, p.32).
Essa hostilidade presente na classe artística acerca do comportamento
estético do cantor em cena, aponta para outras vertentes onde também se encontravam
fragmentos desse preconceito. Este não se restrigiu apenas ao aparelho do Estado por
meio dos vetos feitos ao artista pelos órgãos de repressão e censura do regime militar.
Essa hostilidade contra a conduta transgressora do artista manifestou-se em vários
outros segmentos sociais, na classe artística, como ficou demonstrado, nos meios de
comunicação e em alguns momentos dentro de seu próprio público.
17
MENDONÇA, João, 57 anos, auxiliar de estúdio de gravação, natural do Rio de Janeiro - RJ, residente
em São Paulo.
227
Sobre essa repressão encontrada em outros segmentos sociais, o artista
declara à jornalista Lea Penteado do jornal O Globo: “...gostaria que as pessoas
percebessem que, apesar de toda repressão, não falo em repressão de Governo, mas da
sociedade, dentro disso tudo, a alma é livre, a nossa essência é a liberdade (NEY, 1981
apud PENTEADO, 1981a
).
Na imprensa escrita em meados dos anos 70, o cantor foi alvo de um boicote
oriundo de alguns setores no tocante à divulgação de sua imagem pela mídia. O editor-
chefe do Jornal do Brasil à época, Walter Fontoura, declarou: “Não gostava do cantor e
das suas músicas. Para o meu gosto, não se tratava de um artista. Posso estar certo ou
errado, mas não reconhecia nele méritos para sair no Caderno B” (VAZ, 1992, p. 87).
Na cidade de São Paulo, surgiram algumas outras menções ao artista de
caráter homofóbico. Em meados da década de 80 foi lançado pela indústria
automobilística, uma linha de ônibus que tão logo passaram a circular em vias públicas,
foram associados, por uma parcela da populaçãos, à imagem do artista. Esse fato deveu-
se a serem os veículos pintados com fortes cores em seu exterior e disporem de ar
condicionado em seu interior, os chamados “frescões”.
Dessa maneira os veículos foram associados à imagem do artista em sentido
pejorativo, soando, à época, como um deboche” por uma possível orientação sexual do
cantor. Sobre o episódio Ney comenta: “Pode me colocar de apelido nos ônibus
‘frescões’ (colorido por fora e refrigerado por dentro) pode inventar histórias que eu não
ligo, desde que eu represente um pouco de alegria, uma válvula de escape pra essa gente
(SOUZA, 1982)”.
Ainda sobre esse sentimento de hostilidade encontrado em alguns segmentos
da população, é citada pela jornalista uma outra expressão de caráter hostil detectada,
dessa vez, em parte do público do cantor. Denise Pires Vaz aborda essa questão,
indagando ao artista o porquê de algumas pessoas durante suas apresentações tentarem
agredi-lo. O cantor responde: Porque elas se reconhecem. Elas estão reconhecendo
uma coisa que existe nelas e que querem abafar e, então, me agridem. É apenas um
autoreconhecimento” (NEY, 1992 apud VAZ, 1992).
Essa hostilidade encontrada de maneira isolada em parte de seu público é a
mesma hostilidade encontrada na fala dos informantes de orientação gay, quando estes
afirmavam que na época gostar, ser fã do artista Ney Matogrosso, era sinônimo de ser
gay. Assim esse público gay foi estigmatizado, associado à imagem de “bicha”,
228
“homossexual”, por admirarem o cantor. O comportamento homofóbico é notório nesses
agressores.
Dessa maneira, a fala do artista que credita as agressões recebidas de alguns
indivíduos como provenientes de algum autoreconhecimento de sua imagem, do
personagem que o cantor incorpora em cena durante as apresentações, alcança uma
dimensão simlica. Nesse sentido esse mesmo autoreconhecimento passa a funcionar
como uma autocensura nesse público agressor.
Quando o cantor afirma à jornalista Denise Pirez que as agressões são em
função de um autoreconhecimento, declarando que
elas estão reconhecendo uma coisa
que existe nelas e que querem abafar e, então, me agridem”
(VAZ, 1992), tem um
sentido de uma sexualidade, de uma sensualidade, de uma homossexualidade que é
negada por esse público agressor, visto o caráter de liberação dos desejos que o cantor
proporciona em cena. São na verdade agressões de caráter eminentemente homofóbicas.
Sobre essas manifestações homofóbicas e repressões do público, o artista
comenta em entrevista com o diretor Daniel Filho, durante o especial Grandes Nomes
veiculado pela Rede Globo de Televisão em junho de 1981:
Fiz um espetáculo sem censura, como se estivesse no teatro. Aliás, acho que
não cabe a mim esse tipo de preocupação. o vejo nada demais em mostrar
meu corpo. Quem acha, precisa voltar à realidade. Que reprima a própria
sexualidade. Que reprima a própria sexualidade, tudo bem, não tem o
direito de tentar reprimir a dos outros. (FILHO, 1981, p.01)
Essas agressões de caráter homofóbico ficam mais contundentes quando o
cantor narra o episódio de sua apresentação em o Paulo com o show Homem de
Neanderthal, em que o cantor sofreu agressões por parte de seu público. O cantor
comenta o episódio em entrevista a Edmar Pereira do jornal da Tarde:
Subi no palco, eles me vaiavam possessos, me xingavam, não me deixavam
cantar. Então fiquei rebolando para eles durante uns cinco minutos. Me
atiravam bolas de papel molhado, latas de cerveja, o que podiam. Cantei
cinco músicas e ia saindo quando um disse que ia subir no palco para me
bater. Era o tempo do show O Homem de Neanderthal: eu segurei aquela
caveira de burro que brandia no final e desafiei suba mesmo seu
fascistazinho, que eu vou rachar a sua caba, sobe! Foi a maior agressão que
recebi, e nesse objetivo eu juro que não ponho os pés nunca mais. (NEY,
1982 apud PEREIRA, 1982a)
229
Esse comportamento homofóbico, encontrado em parte de seu público foi
relatado no início da carreira solo do cantor, quando segundo o próprio artista, esse
agredia o público para não ser agredido. Essa atitude segundo o próprio cantor, tinha
uma função de autodefesa. Dessa maneira a relação estabelecida entre artista e público
era em alguns momentos conflituosa. No entanto, em algumas outras circunstâncias essa
agressão por uma parte de seu público podia se dar de forma isolada, manifestando-se
como uma expressão de idolatria ao artista, mesclada de uma certa agressividade por
parte dos pretensos fãs.
Sobre esses episódios rotineiros no icio de sua carreira, Ney comenta: “Era
uma questão de conquistar respeito, se eu não agredisse, eles me agrediam (SOUZA,
1982 b)”. Durante um momento do espetáculo em São Paulo em que o artista fazia um
strip-tease, foi ameaçado por um rapaz. Ney comenta: “Ele disse que se eu continuasse
ele subia, eu falei para ele subir e ele veio mesmo, mas depois ficou sem graça, sem
saber como voltar para plaia (SOUZA, 1982 b)”.
O crítico musical Tárik de Souza, do Jornal do Brasil aborda essa questão da
hostilidade da platéia como sendo também uma expressão de idolatria, narrando o
episódio de uma fã na Bahia: No ano passado, na Bahia, uma mulher aproximou-se
dele para agarrá-lo, mas ficou indecisa. Quando a segurança entrou para tirar ela, foi
incrível: a mulher deu porrada em todo mundo, já pensou? (SOUZA, 1982 b)”
Existam várias expressões e formas de agressividade oriundas do público do
cantor, entretanto, essa hostilidade de cunho homobico de alguns segmentos de seu
público veio junto a um contexto sócio cultural no qual viamos na década de 70, em
função das normas e condutas morais intensificadas naquele momento pelo regime
militar.
Durante a investigação desse blico, construído pelo artista ao longo de sua
trajetória artística, foi percebido um público impcito formado pelos militares, que
cerceavam e hostilizava a imagem do cantor. Foi encontrado um público feminino em
que tiveram uma postura de enaltecimento da imagem do artista e uma aproximação de
natureza sensual e stica. Foi relatado um público gay cujo universo se identificava
com o do cantor em função das rupturas e quebras de valores.
No entanto, mesmo com essas percepções acerca da delimitão do
comportamento desses públicos, não podemos com isso fechar questões em torno dessas
percepções e relatos. Podemos encontrar comportamentos atípicos dentro desses
públicos analisados. Podemos ,sim, encontrar militares receptíveis ao trabalho do artista,
230
bem como podemos encontrar hostilidade no público feminino e gay. Isso não foi
relatado durante as entrevistas, no entanto, não se descarta essa possibilidade. Isso nos
leva a pensarmos, como mais uma forma de pluralidade e complexidade contido no
interior dessesblicos.
Durante as entrevistas realizadas com o público feminino e gay não foi
relatado nenhum sentimento de hostilidade em relação ao artista, entretanto no público
militar, foi encontrado esse sentimento de aversão e hostilidade em relação ao trabalho
do artista, em função da conduta transgressora do cantor aos padrões morais daquele
momento.
O que desejo dizer é que essa hostilidade presente no público dos militares,
que aparenta ser uma unanimidade entre os informantes, aparece de forma diluída e
isolada, nos espetáculos do cantor, geralmente vinda de indivíduos do sexo masculino
com características de agressões eminentemente de cunho homofóbico. Essa hostilidade
esteve presente de forma contínua durante as apresentações do cantor logo no início de
sua carreira solo. Passado alguns anos segundo o próprio cantor essa hostilidade foi
substitda pelo carinho e receptividade da platéia.
Dentro dessa perspectiva de recepção do público o posicionamento do cantor
é contundente e demonstra esse processo de assimilação foi conseqüência de uma
mudança de mentalidade do mesmo. O artista afirma que quem mudou foi o público e
o ele, no que se refere a seu comportamento em cena. Ney declara em entrevista no
ano de 1981 que no momento está mais sutil, menos agressivo durante as apresentações,
em função da mudança que houve em seu público durante os anos transcorridos. Ney
afirma:
O que faço hoje no palco é o que fiz sempre, que isso não choca mais
ninguém. Acho ótimo me apresentar assim, e o público também gosta.
Quanto mais louco eu ficar, mais loucuras eles querem. Atualmente a platéia
não só me permite como aexige de mim todas as audácias. Não fui eu, mas
o público quem mudou, ficou mais descontraído depois de tanta repressão.
( NEY, 1981 apud PEREIRA, 1981)
Nesse sentido, faz-se pertinente compreendermos esse blico como sendo
um público atomizado, quando o cantor Ney Matogrosso afirma que não foi ele quem
mudou, mas sim o público. Para Norbert Elias (1995), o público moderno é um
231
público atomizado
18
diferente do público da sociedade de corte que impunha padrões
e estilos à obra do artista. A concepção de público moderno entendida pelo autor
dentro dessa premissa refere-se a um público formado por indivíduos atomizados,
esses é que estariam submetidos ao artista. Dessa maneira o artista estaria sempre
independente, livre no seu fazer artístico, o público não exerceria nenhuma forma de
poder em relação a criação do artista. O público segundo Elias não teria o poder de
impor, determinar, nem influenciar acerca da produção do artista. Ainda sobre a
temática do público
19
em questão ver Jauss (1979), e Passeron (1991), que em suas
obras formularam as principais proposições acerca do processo de recepção,
pensando o público como atores sociais em interação, Dabul (2005).
No entanto independente da atomização desse público, onde esse não
inflncia o percurso nem a performance do artista, seu processo de recepção não se
de forma homogênea, ele é variável em relação às suas respectivas localidades. Pode
haver um blico situado em uma determinada cidade da Europa, onde hipoteticamente
existiria uma maior abertura para entendimento do comportamento do artista em cena,
por se tratar de uma cidade situada em um país desenvolvido dentro de um centro
cosmopolita e, mesmo assim, não se apresentar receptiva.
Como exemplo dessa possibilidade de “estranhamento por parte do público,
que possivelmente seria receptivo ao trabalho do cantor é citado a apresentação que este
faria no Festival de Montreux, na Suíça, quando os organizadores do Festival
entenderam que o artista seria de difícil assimilação para o público local.
E no próximo julho, as rias que para ele são imprescindíveis saindo do
Brasil. O plano de participar do Festival de Montreux foi arquivado e Ney vai
18
Para examinar essa questão com maior profundidade onde é discutido a atomização de um público
presente nas exposições das artes plásticas, ver: DABUL, gia Maria de Souza. O blico em blico:
práticas e interações sociais em exposições de artes plásticas. 252p. Tese (Doutorado em Sociologia)
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005.
19
A análise referente do cap. IV, onde estaremos examinando o público do artista Ney Matogrosso, se
dada ênfase a multiplicidade desse mesmo entre o público constituído pelos militares, feminino e gay. No
capítulo seguinte far-se-á um estudo com o público da cidade de Fortaleza onde encontraremos uma
avidez por parte desse mesmo em relação ao artista e demais localidades. Dessa maneira não será dada
ênfase por questões de natureza metodológica, na análise referente a esses públicos a um aprofundamento
de suas devidas recepções para com artista no sentido de uma discussão de caráter eminentemente teórico,
com autores ligados a questão da estética da recepção. Dessa maneira temos consciência de um maior
aprofundamento dessa questão e assim sugerimos como leitura a tese de doutoramento citada
Dabul(2005). Nosso campo investigatório por meio das entrevistas realizadas com o público do artista
Ney Matogrosso norteaos rumos de nossa análise no sentido da multiplicidade e do caráter ávido desse
público em questão. A essa possibilidade de entendimento nos detemos no momento.
232
apenas como espectador. Os organizadores do festival julgaram que o público
europeu o entenderia nada de Ney Matogrosso, que para eles foge demais
do convencional, de assimilação difícil. Ele (Ney) acha graça, meio surpreso:
“Pensei que na Europa nada mais representasse uma ousadia”.(PRADO,1982)
Paralelo a essa possibilidade de “difícil assimilação”, pode haver uma
receptividade mais favorável ao artista contida em um público situado em uma cidade
do Nordeste, como Fortaleza, embora ainda apresentasse traços ditos provincianos, sob
o ponto de vista de seus hábitos e costumes em relação a cidades mais desenvolvidas
como o Paulo, Rio de Janeiro e Montreux. Presume-se, teoricamente, que o público
de Fortaleza deveria ter um comportamento mais contido para com a performance do
artista em função desses fatores acima descritos. Averiguar as características desse
público será objeto de estudo do capítulo seguinte, quando tentar-se-á compreender o
comportamento do público de Fortaleza em relação com artista Ney Matogrosso.
233
V.“NOS VERDES MARES, CALMA LAMA
1
”: UM
PÚBLICO ÁVIDO POR NEY EM FORTALEZA
Meu público é heterogêneo, do adolescente às pessoas de cabeça branca.
Acho um barato atingir pessoas mais velhas que, teoricamente, me
rejeitariam. As pessoas de mais idade são como crianças, gostam ou não
gostam, ou se envolvem ou não se envolvem. A faixa média, de 30 a 40 anos,
é mais repressora. Não fui agredido diretamente, mas as pessoas dizem
muitas piadas e é muito estimulante. Como o que pretendo é uma grande
brincadeira, desde a hora em que entro até a hora em que saio do palco,
também faz parte dessa brincadeira que o público se manifeste. Eles me
dizem coisas e eu revido, faço poses bonitas ou engraçadas, jogo beijos, ou
qualquer outra coisa que me vontade de fazer, no momento. As únicas
vezes em que pintou alguma coisa desagradável o próprio público reprimiu,
vaiou o agressor e mandou-o embora. (NEY, 1981 apud PENTEADO, 1981a)
No presente capítulo tentar-se-á compreender a recepção do público do
artista Ney Matogrosso na cidade de Fortaleza no período compreendido entre os anos
de 1977 a 1983. Dessa maneira serão enfocadas a diversidade de nero, idade e estrato
social, como também a afetividade contida no comportamento desse mesmo público, a
partir da construção da imagem do artista elaborada pela imprensa local e, sobretudo,
por meio das entrevistas realizadas com fãs e admiradores do artista - presentes às
apresentações do cantor na cidade.
Para isso foram eleitos como sujeitos de investigação fãs
2
e admiradores do
artista, bem como pessoas que estiveram envolvidas direta ou indiretamente nos shows
do cantor na cidade. Dessa forma ao contrário do capítulo anterior em que foram
1
O tulo do capítulo: “Nos verdes mares, calma lama”, foi retirado da letra da música Retrato Marrom,
parte integrante do LP Pecado, lançado pela Continental Discos S/A em julho de 1977. Composição
elaborada pelo arquiteto e letrista cearense Fausto Nilo, em parceria com o também letrista cearense
Rodger Rogério. Foi assim escolhida pelo autor dessa tese em função da letra abordar um período de
repressão e censura do regime militar e pelo fato de, ao citar “....nos verdes mares”, os compositores
fazem alusão à terra da luz, a cidade de Fortaleza. Cidade essa onde o analisadas as apresentações do
artista Ney Matogrosso entre os anos de 1977 a 1983. Retrato Marrom (Fausto Nilo e Rodger Rogério).
Ai meu coração sem natureza/ se estanca essa tristeza que ilumina o escuro bar/ O nosso amor é um
escuro bar/ Suspiro azul das bocas presas/ O medo em minha mão/ O medo em minhas mão/ Que faz
tremer a tua mão/ Sacode o coração joga fumaça em meu pulmão/ Silente esquina do Brasil/ Nos verdes
mares calma lama/ Um desespero sem canção/ Guarda teu olhar de ave presa/ Na toalha de uma mesa/
Sem mirar a luz do sol/ Não calor na luz do sol/ O fim da festa é uma certeza/ Te vejo em minha vida
como um retrato marrom/ São lembranças perdidas de um passado, e tudo bom/ Brilha um punhal em teu
olhar/ Sinto o veneno do teu beijo/ Era moderno o meu batom.
2
Foram entrevistadas para análise do presente capítulo ao todo dez fãs do sexo feminino e dez fãs do sexo
masculino do cantor Ney Matogrosso, com idade entre 41 anos a 75 anos, residentes em Fortaleza. Essa
faixa etária foi assim delimitada em função do alcance possibilitado pela idade do(a)s fãs como público
dos espetáculos do artista na cidade de Fortaleza, que se deram entre os anos de 1977 a 1983.
234
delimitados como sujeitos de investigação um público implícito, constituído pelos
militares, um público de fãs e admiradores do artista constituído pelo universo feminino
e gay, demonstrando dessa maneira sua multiplicidade, o público estudado no presente
capítulo foi eleito dentro de um princípio de pluralidade construído por meio de uma
relação de afetividade, a que designamos como um comportamento ávido, estabelecido
entre o artista e seu público durante as apresentações do cantor em Fortaleza.
Esse critério utilizado para delimitar o campo investigatório, visa não apenas
demonstrar a pluralidade desse público, mas sobretudo, compreender o processo de
recepção do artista dentro de uma relação de afetividade estabelecida entre ele e a
platéia. Afetividade essa que percebemos como um comportamento ávido, que
presumimos, em primeira instância, existir em função da cidade de Fortaleza estar mais
distante dos órgãos de repressão e censura do regime militar centralizados, naquele
momento, no eixo São Paulo- Rio.
Outro ponto que procuraremos demonstrar em relação à avidez desse público
é o fato do público de Fortaleza estar localizado dentro de outro contexto sócio-
econômico e cultural do que o público do Rio de Janeiro e São Paulo. Dessa maneira,
esse público de Fortaleza tinha outras referências éticas e culturais em relão à conduta
cênica do artista. Procuraremos demonstrar isso ao longo desse capítulo por meio de
falas contidas na mídia, com os posicionamentos e declarações do cantor e, sobretudo,
por meio das entrevistas realizadas com o público do artista, em que essa avidez ficou
evidenciada.e
Analisar-se-ão cinco espetáculos do artista na cidade, a serem contados a
partir de sua primeira apresentação realizada em novembro de 1977, quando foi
apresentado o show denominado Bandido; a segunda deu-se em outubro de 1978, com o
show intitulado Feitiço; a terceira em julho de 1980, com o show Seu Tipo todas no
Centro de Convenções. A quarta apresentação em outubro de 1981, com o show que
levou o nome artístico do cantor Ney Matogrosso e a quinta e última apresentação em
janeiro de 1983, com o show que levou o sobrenome artístico do cantor Matogrosso,
ambas no Ginásio Paulo Sarasate.
235
5.1. “Bandido”, “Bandoleiro”, “Seu Tipo”
3
: do streap-tease ao paletó
Ney Matogrosso está na cidade apresentando o show que vem causando furor
por onde passa: “Bandido”. O pique é um “streape-tease” que faz em palco.
Centro de Convenções, 21 horas. Está hospedado no Savanah (GUTO a,
1977, p.08).
Nesse item analisar-se-ão as três primeiras apresentações do cantor Ney
Matogrosso, compreendidas entre os espetáculos Bandido, Feitiço e Seu Tipo. Nesse
sentido será observada a recepção do público em relação ao artista, a partir de
entrevistas realizadas com fãs e admiradores do cantor, bem como o tratamento de
alguns setores da mídia local para com a temporada dos shows do cantor na cidade.
A primeira apresentação do artista na cidade realizou-se entre os dias 12 e 15
de novembro de 1977, no Centro de Convenções, totalizando quatro apresentações de
sábado à terça-feira, prevista para às 21:00 horas. O show apresentado intitulava-se
Bandido, fruto do trabalho de seu segundo LP solo, lançado em 1976 pela gravadora
Continental Discos S/A, intercalado de músicas de seu terceiro LP solo e último a ser
lançado pela Continental em 1977, intitulado Pecado.
Aqui ressalto, que àquela época, os anos 70, era raro artistas pertencentes a
Música Popular Brasileira ou ao estilo pop, apresentarem-se na capital com temporada
de quatro dias. Geralmente as apresentações se limitavam a uma só, mesmo de
personalidades consagradas de nossa MPB como Roberto Carlos, Rita Lee, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, entre outros que se apresentaram na cidade. Houve casos em que
essas apresentações podiam se estender, no entanto o passavam de duas apresentações.
Fato inusitado ocorre com a apresentação do cantor na cidade, pois embora o
espetáculo tenha sido pouco divulgado junto à mídia
4
,
os ingressos esgotaram-se no
3
Os três primeiros espetáculos a serem analisados na cidade de Fortaleza, foram mantidos no item 5.1,
em suas respectivas denominações referentes ao título original do show, exceto o show “Feitiço (1978),
que foi alterado para “Bandoleiro”, faixa do LP Feitiço”. Esse procedimento foi realizado em função
desse espetáculo ter tomado notoriedade junto à mídia e ao público com essa denominação. Todos os
entrevistandos se referiram ao espetáculo Feitiço como Bandoleiro. Quando era vaga a lembrança dos
entrevistandos se referiam sempre a melodia da música Bandoleiro. A partir dessas percepções tomadas
junto às entrevistas com fãs e admiradores do cantor, tornou-se pertinente intitular o espetáculo como
Bandoleiro no estudo do item 5.1.
4
Na época referida os principais meios de comunicação de massa na cidade de Fortaleza eram divididos
por dois grandes grupos empresariais. O grupo Edson Queiroz ao qual pertenciam a TV e a Rádio Verdes
Mares e ao grupo Demócrito Rocha ao qual pertenciam a Rádio e Jornal O Povo. Por serem grupos
empresariais do setor de comunicação de massa, concorrentes dentro do mercado, quando um desses
grupos patrocinavam o show de um artista na cidade, o era concedido ao outro grupo concorrente
236
segundo dia de vendas para as duas primeiras apresentações do cantor. O Jornal O Povo
responsável pelo patrocínio do espetáculo veiculou uma entrevista juntamente com uma
foto do cantor apenas no dia 12 de setembro, dia de sua estréia na cidade.
A coluna semanal veiculada pelo Jornal O Povo no Caderno Fame intitulada
“Clube do Bolinha”, editada em 12 de novembro de 1977 pelo colunista social Guto,
divulga o show do cantor com a seguinte manchete: Ney Matogrosso está na cidade
apresentando o show que vem causando furor por onde passa: Bandido”. (GUTOa,
1977, p.08). O colunista continua a chamada com a informação sobre o streap-tease
realizado durante o show e o local de hospedagem do artista: O pique é um “streape-
teaseque faz em palco. Centro de Convenções, 21 horas. Está hospedado no Savanah
(GUTOa, 1977, p.08).
Após essa apresentação inicial para o espetáculo, segue entrevista com o
artista realizada pelo colunista Guto, do Caderno Fame do jornal O Povo, em que o
artista aborda a questão de sua não adesão aos movimentos da causa gay, conhecido
como o gay-power. Ney declara: “Não sou der, nem minha arte é estandarte de
movimento ou comportamento grupal de quem quer que seja, sou simplesmente um
indivíduo que leva a vida como deseja”
(GUTO b, 1977, p.12).
O colunista afirma ser esse o desabafo do artista que é considerado a estrela
máxima por muitos ligados as queses da causa gay, sendo Ney um dos principais
artistas brasileiros a influenciar o comportamento e aderência das pessoas ligadas ao
movimento gay-power. “Esse desabafo é do cantor Ney Matogrosso, artista considerado
por muitos como a estrela máxima e um dos principais representantes no Brasil do
comportamento e aderência dos qualificados com o “gay-power” (GUTO b, 1977, p.12).
A matéria continua explorando a ruptura do cantor com o grupo Secos &
Molhados. O artista declara:
Eu fui marginalizado. Passei então a receber tratamento
como se eu fosse empregado deles. Senti que tudo estava errado, e resolvi me afastar”.
Em seguida o cantor comenta acerca das dificuldades encontradas dentro do campo
artístico no início de sua carreira solo. Ney declara: Parei por alguns meses, depois
qualquer menção ao artista em suas mídias. Dessa maneira quando o cantor Ney Matogrosso apresentou-
se em Fortaleza em novembro de 1977, foi patrocinado pela Rádio e Jornal o Povo, a divulgação do
espetáculo ficou limitada a esses dois meios de comunicação de massa do grupo Demócrito Rocha.
Saliento que a divulgação desse espetáculo foi limitada não apenas no sentido dos dois meios de
divulgação de massa citados Rádio e Jornal O Povo, bem como a pouca menção e divulgação nesses dois
meios de comunicação. Dessa maneira, atribui-se esse fato a condição de liminaridade artística em que se
encontrava o cantor no ano de 1977 dentro de alguns segmentos da mídia.
237
comecei a procurar repertório, e partir para trabalhar sozinho. Fui infeliz nas primeiras
tentativas, inclusive com prejuízo de 350 mil” (GUTO b, 1977, p.12).
O colunista continua a matéria com o cantor ressaltando a reação de sua
platéia durante o início de sua carreira solo. Ney afirma: “Certa vez, em um teatro, vi
cerca de cinco mil pessoas chamando-me de ‘bicha’. Sei que estou, devido ao meu tipo
de trabalho, contra coisas estabelecidas”. O cantor continua declarando:
Como ser
humano, tenho o direito de ser como eu quero. E não vai ser essa sociedade falsa que
vai determinar o meu comportamento”. Por fim, faz a distinção entre a pessoa e o
personagem: Tudo que está no palco, não é mentira, é a continuidade da minha vida.
Se fora do palco não tenho o menor desejo de ser estrela, nos limites dele o existem
barreiras, me mostro despido de qualquer preconceito” (GUTO b, 1977, p.12).
No final da entrevista o colunista faz outra menção, em caráter chamativo ao
leitor e ao público, para a apresentação do cantor em Fortaleza a se iniciar no dia 12 de
novembro, estendendo-se até o dia 15 de novembro de 1977. O espetáculo reunia as
músicas dos dois últimos trabalhos do artista. O LP Bandido lançado em 1976 pela
Continental Discos S/A e Pecado lançado em 1977 pela mesma gravadora.
A partir de hoje, até a próxima terça-feira, às 21:00 horas no Centro de
Convenções Ney Matogrosso está apresentando o espetáculo “Bandido”, que
ele considera um musical teatralizado, no qual ele apresenta cerca de 18
músicas dos discos “Bandido” e “Pecado”. Acompanham o artista o conjunto
Mundo formado por Elber (bateria), Jordão (baixo), Aristides (guitarra),
Cidinho (guitarra), Jorge Omar (Violão) e Túlio Mourão (teclado) .(GUTO b,
1977, p.12)
No segundo dia de apresentação do cantor na cidade, dia 13 de novembro
1977, é apresentado um curto anúncio do show do cantor. “Ney Matogrosso continua
se apresentando no Centro de Convenções, a partir das 21 horas, com seus cantos e
danças que o tornaram um ‘superstar’ do Brasil” (GUTOc, 1977, p.39).
Em seguida ao breve anúncio do espetáculo, é veiculado um trecho da
entrevista concedia ao colunista social Guto do jornal O Povo, quando esse indaga ao
artista como esse se sente no momento, o cantor responde: Eu agora me sinto muito
mais a vontade para fazer o que quiser” (GUTOc, 1977, p.48). Quatro dias após o
término da temporada do artista na capital é publicado: “Quem não viu o show perdeu,
além do belíssimo repertório e da voz mágica de Ney um, streap-tease de verdade e
238
rias elucubrações eróticas. Numa delas faz amor com ele mesmo” (GUTO d, 1977,
p.08).
As matérias veiculadas pela dia apontam para um comportamento
inusitado do artista perante às normas e às condutas morais da época. A avidez e a
pluralidade do público do artista pouco é mencionada, esse comportamento do público
é percebido pela fala de nossos entrevistados. A mídia limita-se apenas em informar
o espetáculo cumprindo seus encargos enquanto patrocinadores e enaltecendo o caráter
transgressor do artista frente a um contexto de época.
5.1.1 “Estilhos de vidro, gente ferida, cortada, parecia cena dos
Beatles
A avidez e a pluralidade do público presente aos espetáculos do artista Ney
Matogrosso à época, veio à tona logo no contato com a primeira informante dentro da
categoria de fãs do artista e residentes na cidade de Fortaleza. A senhora Joana
Albuquerque
5
foi localizada por meio do senhor Marcondes Rosa
Almeida
6
, articulador
e agregador de fãs e admiradores do cantor Ney Matogrosso na cidade. Essa senhora
o apenas nos informa a avidez do público do artista ao transgredir as normas e
condutas morais, mas também nos informa a multiplicidade desse mesmo blico que
se manm fiel ao artista até os dias atuais.
Flávio Queiroz: A senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
5
Joana Albuquerque, 58 anos, casada, dentista, natural de Fortaleza e residente na cidade. A faixa etária
acima de 50 anos dos admiradores (as) do cantor Ney Matogrosso foi assim delimitada nessa primeira
parte do trabalho em função da possibilidade de alcance aos shows no período a ser analisado no item 5.1.
com os shows Bandido 1977, Feitiço 1978 e Seu Tipo 1980. As entrevistas com admiradores (as) do
cantor Ney Matogrosso em Fortaleza foram realizadas a partir de um roteiro de questões previamente
elaboradas, em que foram destacadas as relações entre política e cultura nos anos 70 , a inserção social do
artista Ney Matogrosso e a presença dos entrevistandos em suas apresentações na cidade de Fortaleza
entre os anos de 1977 a 1980. Tais entrevistas foram gravadas nas residências e locais de trabalho dos
informantes e posteriormente transcritas.
6
Marcondes Chaves Almeida, solteiro, 53 anos, bancário, natural de Pacajus - Cea, residente em
Fortaleza é aglutinador de admiradores do cantor Ney Matogrosso na cidade de Fortaleza, onde realiza
trabalhos e eventos acerca da carreira do artista. Tal grupo existe em caráter informal, construído a partir
de suas relações de parentesco e amizade estabelecidas durante seu acompanhamento da carreira do
artista durante suas apresentações em Fortaleza. O grupo organizado por Marcondes Almeida é formado
por quinze admiradores do cantor sendo dez do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Esclarecemos
que o referido grupo o possui nenhuma oficialização nem registro perante à mídia nem ao público,
restringindo-se a uma relação de amizade entre o organizador e os admiradores do cantor.
239
Joana Albuquerque: se vão anos, mas não pra esquecer. O show era
aquele lá que ele cantava o Coração do Bandido
7
, primeiro show a que assisti.
Fui para esse show grávida. Sentamos bem atrás, pois quase não encontramos
mais ingressos, estava tudo cheio. Houve confusão na entrada, quebraram
alguma coisa de vidro uma coisa assim. Muita gente chegou bem cedo já
tinha gente pra comprar ingresso ou ficar na fila pra pegar um lugar, mas
quando abriram os portões teve isso. Eu vi foi a zoada e muita gente
correndo pra entrar logo, eu, graças à
Deus, já tava dentro. Tinha um
momento que Ney fazia a troca de roupa, meu filho ninguém se segurava,
gente pulava no palco, gritava, berrava chamando ele de lindo.Gente de toda
a idade, rapaz, moça, senhora de idade. Ah! lembro de uma ma que
levou um choque porque parece que pegou em um fio, no aparelho de som
tentando subir no palco . (ALBUQUERQUE, 2006, p. 2)
O contato com o segundo informante o senhor Carlos Augusto
8
deu-se por
meio da senhora Joana Albuquerque, fã do artista e primeira informante, esse reintera a
fala da informante anterior acerca do tumulto na entrada.
Flávio Queiroz: O senhor lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Carlos Augusto: Comecei a assistir aos shows do Ney por causa da minha
esposa. O primeiro show que assisti foi no Centro de Convenções, ia por
ali pela BR, não tinha ainda o Iguatemi. Lembro que houve quebradeira na
entrada, estilhaços de vidro pelo chão, uma histeria, rapaz, gente ferida,
cortada, machucada por conta do desespero gerado, parecia cena dos
Beatles (risos). Do show mesmo lembro que chegava uma hora que ele
vinha até a platéia
9
, dançando, daí, rapaz, vem a parte mais capciosa (risos),
escolheu logo a minha fila pra parar e ficar cantando bem perto. Me deu um
branco, gelei. Em São Paulo assisti ao mesmo, mas o Ney e o público
(risos) eram bem mais calmos . (AUGUSTO, 2006, p.3)
7
A música à qual a senhora Joana Albuquerque se refere como Coração de Bandido, intitula-se
corretamente como “Bandido Corazónde autoria da cantora e compositora de rock Rita Lee. A música é
parte integrante do LP Bandido lançado em 1976 pela gravadora Continental Discos S/A. Bandido (Rita
Lee). Bandido, bandido corazon/ no deja de te amar/bandido, bandido corazón/no puedo controlar/quero
te perdi minhas desculpas/isso sempre acontece/tenho um coração que é desvairado/e nunca me obedece/
eu sou um cara meio estranho/alguém me disse isso uma vez/ meu coração é de cigano/mas o que me
salva é a minha insensatez/eu que semprre fui chegado ao romance e aventura/eu talvez seja condenado a
viver perto da loucura/ por isso quero te pedir minhas desculpas/eu canto mais uma vez/meu coração é
desvairado eu sei/mas o que estraga é a sua timidez.
8
Carlos Augusto, 63 anos, casado, bancário, natural de Crato-Ceará, residente em Fortaleza.
9
Pelas descrições fornecidas no depoimento do informante acerca do espetáculo do artista Ney
Matogrosso em Fortaleza, refere-se ao show Bandido realizado em Fortaleza no Centro de Convenções
em novembro de 1977. Em relação ao momento do espetáculo em que o artista descia a a platéia para
cantar, era referente à música Seu Valdir. “O grande momento era diante de um espelho oval, em que Ney
se contorcia com poses sensuais retirando os berloques e as poucas peças de vestimenta que cobria o seu
corpo, jogava beijos para a platéia que delirava a cada movimento, animado pelos tambores cantava o
bolero “Boneca Cobiçada”, ficando quase totalmente nu, atrás de um biombo, e em frente a um espelho,
fazendo o público correr na direção onde a imagem estava refletida procurando assim uma “visão mais
interessante”, foi um deliro total. Em seguida vestido com uma calça mais leve Ney desce para os
saracoteios de uma frenética rumba, entre as primeiras filas, inconquistável ele finge mandar beijos.
Abusava do jogo de cintura em sambas como “Trepa no Coqueiro” em “Seu Waldir” mais uma vez descia
e cantava no meio do público. ( MATOGROSSO,2006)
240
Embora a imprensa não notifique o comportamento eufórico do público,
esse é recorrente na fala desses dois primeiros informantes, quando a Senhora Joana
Albuquerque narra a quebra de vidros da entrada, fato esse confirmado pelo Senhor
Carlos Augusto. Esse ainda declara que assistiu ao mesmo espetáculo em São Paulo,
mas não viu a mesma euforia, presenciada por ele em Fortaleza. A partir de então,
detectamos um comportamento diferenciado entre esses públicos o que nos dará
subsídios para compreendermos a maior receptividade do público de Fortaleza nos
espetáculos do cantor.
5.1.2 “Fui fugida do marido. Gente gritando, querendo rasgar o Ney,
delírio”
A segunda apresentação do cantor em Fortaleza a ser analisada, foi realizada
no Centro de Convenções entre os dias 10 e 13 de Outubro de 1978, quando o artista
apresentou o show Feitiço. O anúncio veiculado pelo jornal O Povo dizia: “Ney
Matogrosso Mais ousado do que nunca no show Feito”. Dias 10, 11, 12 e 13 de
outubro no Centro de Convenções às 21:00 horas”. Continua abaixo: “Com o seu
conjunto . Mundo. Agressivo, desinibido, puro, malicioso, sofisticado. Ingresso único
CR$ 100,00. Apoio: Caderneta de poupança CREDIMUS. Imperial Palace Hotel e O
Povo” (FEITIÇO, 1978, p.19).
Fonte: Jornal O Povo (1978)
Figura 26 – Ney Matogrosso anuncio show Feitiço - Fortaleza, 1978
241
Ressalto aqui, que embora já transcorrido o período de um ano da primeira
apresentação do artista Ney Matogrosso na cidade, em novembro de 1977, quando o
cantor apresentou-se por quatro dias seguidos, abrindo assim a possibilidade de uma
maior extensão nas temporadas de outros artistas. O tempo de permanência desses
espetáculos, em âmbito geral, para artistas da MPB ainda permanecia curto, limitando-
se, quando estas assim se estendiam, somente a duas apresentações.
Nessa segunda apresentação do cantor, em cartaz por quatro dias, a imprensa
local o fez nenhuma menção a esse fato, limitando-se, em primeira instância, a
anunciar o espetáculo e abordar o estigma do ex-Secos & Molhados. Dessa forma, essas
matérias apontam para a condição de liminaridade em que o cantor se encontrava,
perante a dia local, em relação à construção de sua autonomia artística. O jornal O
Povo publica:
Foi como vocalista do grupo Secos & Molhados que Ney Matogrosso
despertou a atenção de todo o Brasil para a sua figura carismática e voz
incomum. Seu desligamento do grupo deu-se em conseqüência de
“incompatibilidade de nios”. Era um grito de liberdade que ele nscio
de sua capacidade, pois até hoje todo o trabalho que apresenta nos palcos é
fruto de sua crião e produção. (FEITIÇO, 1978, p.19)
A matéria segue apresentando as facetas do artista que reunia nesse trabalho
a versatilidade do palco somada à técnica de estúdio de quando gravou o LP nos
Estados Unidos. O jornal O Povo publica:
“Feitiçoo quarto LP de sua carreira solo e para Ney o primeiro que teve a
oportunidade de sentir a importância de um produtor na tradução de seus
desejos quanto ao resultado final do disco. Como cantor sempre se sentiu
aquém de suas reais possibilidades, considera esse disco uma etapa queimada,
a redescoberta de sua voz. Até então Ney era considerado um artista que
tinha seu maior rendimento no palco, a defasagem que existia entre seus
discos e o “ao vivoera uma preocupação constante para si.
(FEITIÇO, 1978,
p.19)
A fala do artista aponta para o processo de construção de sua autonomia
artística frente ao mercado fonográfico, quando esse reafirma a liberdade de criação em
sua carreira solo e do LP Feitiço terem-lhe proporcionado a utilização de tons graves em
sua voz, sobretudo na música Mal Necessário, usado em sua introdução. O cantor
declara: “Me desafiaram e eu aceitei o desafio. Toda minha carreira até então foi
242
calcada no agudo de minha voz, nesse disco uso com diferentes intensidades tanto o
agudo, como o médio e o grave” (FEITIÇO, 1978, p.19).
Tal qual o show anterior em que pouco a mídia enfocou a presença do
público, atentando mais para o caráter da divulgação, performance e desempenho do
cantor, as informações colhidas a respeito do comportamento do público ficaram a
cargo das entrevistas. A Senhora Mariza Dantas
10
, declarou que saiu escondida do seu
esposo para assistir ao show, informando ainda que durante o espetáculo presenciou o
delírio do público com pessoas tentando aproximar-se do artista em cena.
Flávio Queiroz: A Senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Mariza Dantas: Como alguém pode ter ciúmes de algo lindo como o Ney,
um doente mental como era o meu marido, o coronel. Fui ao show escondida,
fugida do marido, que Deus me perdoe, mas, graças a Deus, que se foi.
Peguei um táxi, antes da novela ainda lembro era a “das meias coloridas” , era
a moda e fui bater lá. Logo quando ele começava a cantar aquela música que
repetia: eu lá, lá, lá..... no cavalo...lá, alado
11
, dava vontade de voar
(Silêncio). Muita gente saia das cadeiras e começavam a gritar e correr pra
perto do palco, querendo ver ele mais de perto, tocar, rasgar as roupas do Ney,
delírio (olhos lacrimejam). No outro dia o coronel e eu brigamos porque ele
disse que como é que eu podia ir para um show de um né... posso dizer? de
um viado. Vixe Maria oh! coisa feia de dizer. Defendi logo o Ney, claro.
(DANTAS, 2006, p. 3)
O depoimento da Senhora Mariza Dantas, continua a apontar para o caráter
ávido do público em Fortaleza. No entanto, aqui acrescentamos à dimensão afetiva
dessas falas, em função desses depoimentos virem sempre acompanhados de suas
hisrias de vida. Também entrecortados por silêncio e, posteriormente, acompanhados
10
Mariza Dantas, prendas do lar e conselheira da comunidade Católica Shalom. Viúva, 78 anos, natural
de Baturité Ceará, residente em Fortaleza. O contato com a informante deu-se por meio de contato
pessoal estabelecido com o pesquisador no show Um canto em qualquer canto de Ney Matogrosso em 21
de setembro de 2006, Fortaleza, Centro de Convenções.
11
A novela à qual a entrevistanda se refere chamava-se Dancing Day´s, veiculada pela Rede Globo de
Televisão no segundo semestre de 1978 às 20 horas. A abertura era feita em uma danceteria no Rio de
Janeiro, onde existiam um grupo de jovens vestidos ao estilo da chamada “febre das discotecas”, oriunda
dos Estados Unidos. Eles apareciam expondo seus corpos macérrimos, vestidos com jeans e meias
coloridas que caracterizava o estilo das danceteria. (GLOBO,2008). A música à qual a informante se
refere é Bandoleiro, de autoria da dupla Luli e Lucinha, parte integrante do LP Feitiço lançado pela
gravadora WEA em Julho de 1978. Bandoleiro (Luli/Lucinha): Fossem ciganos a levantar poeira/ a
misturar nas patas/ terras de outras terras/ares de outras matas/ e eu Bandolero no meu cavalo alado/ na
mão direita o fado/ jogando sementes nos campos da mente/ e se falasses e magia sonho e fantasia/ e se
falasses encanto quebranto e condão/ não te enganarias não/ Fossem ciganos a levantar poeira...../ feitiço,
transe, viagem, alucinação, miragem. A música à que a entrevistanda se refere como a de melodia de
violinos é a canção Bandoleiro da dupla Luli e Lucina (MATOGROSSO, 2006). O espetáculo se refere ao
show Feitiço realizado no Centro de Convenções em Fortaleza em temporada de 10 a 13 de outubro de
1978.
243
de memórias afetivas dos entrevistandos, conduzindo-os a momentos de comoção ou
choro.
A terceira apresentação a ser analisada deu-se com o espetáculo Seu Tipo,
que permaneceu em cartaz por quatro dias no Centro de Convenções de 17 a 21 de
Julho de 1980. Doze dias antes da estréia do show Seu Tipo na cidade, precisamente no
dia 05 de Julho de 1980, o jornal O Povo apresenta manchete intitulada: “FM do Povo
apresenta: Ney Matogrosso” e traz o seguinte anuncio da estréia para o público leitor:
Ney Matogrosso vai abrir no próximo dia 17 a série de grandes shows promovidos
pelo Povo - Jornal, Rádio(FM DO POVO, 1980, p.16).
A matéria continua fazendo menção aos dias de apresentação do cantor na
cidade: “Ele estará no Centro de Convenções durante quatro noites - 17 a 20 - trazendo
os seus maiores sucessos musicais, ele que já é por si só, um autêntico sucesso” (FM
DO POVO, 1980, p.16). Abaixo do anúncio segue-se uma foto apresentando o local e os
dias do espetáculo do artista, juntamente com outras atrações como: Chico Asio,
Caetano Veloso, Alceu Valença, Fafá de Belém e Gal Costa, entre os meses de julho e
agosto de 1980. A partir do dia 06 de Julho, passa a ser veiculada no jornal uma foto
exclusiva, destacando o show do artista na cidade.
Fonte: Jornal O Povo (1980)
Figura 27/28 – Ney Matogrosso anuncio show Seu Tipo - Fortaleza, 1980
No dia da estréia do show, ocorrida em 17 de Julho de 1980, não foi
veiculada nenhuma matéria acerca do espetáculo, nem entrevista com o cantor. No
entanto, no dia seguinte, 18 de Julho, segundo dia de apresentação do artista na cidade,
foi veiculada grande matéria com a seguinte manchete: “Ney Matogrosso pensa em
deixar roda viva”, acompanhada de quatro fotos do artista, somando duas páginas do
244
jornal O Povo. O espaço concedido para divulgação do espetáculo Seu Tipo é
considerado extenso em comparação aos outros dois momentos em que cantor esteve
em Fortaleza, respectivamente com os espetáculos Bandido e Feitiço.
A matéria publicada no Jornal O Povo, aponta em primeira instância, para o
caráter contido do espetáculo e a autonomia do cantor em relação à instria
fonográfica, comentando ao longo da matéria o caráter introspectivo do espetáculo. Ney
afirma: “... quero parar para não perder o prazer, no show estou mais contido o que
serve para que eu, pelo menos, possa cantar melhor.” O Povo publica:
Segundo o próprio artista dentro de mais três anos ele deixará a roda viva de
que vem participando ultimamente, dando-se ao luxo e ao prazer de cantar
apenas por cantar, sem a obrigação de fazer shows e cumprir contratos com
shows. Ele esafim de continuar cantando, mas não obrigado. Ney e suas
idéias sempre inovadoras estão presentes nesta semana em Fortaleza, no
Centro de Convenções e numa temporada que promete ir até o dia 20, sempre
com a presença de um público considerável como foi a estréia. A promoção é
da rádio FM do Povo, integrando-se ao esquema de trazer até Fortaleza o que
de melhor em matéria de shows no país, e que anuncia para breve as
presenças importantes tais como Chico Anísio, Caetano Veloso, Alceu
Valença, Fafá de Belém e Gal Costa. (NEY MATOGROSSO, 1980c)
A matéria segue na mesma página do referido Jornal com o subtítulo de:
Ney de terno e gravata”, onde é colocado o estigma do ex-Secos & Molhados, a fase
intimista do cantor e sua projeção no mercado internacional. O Povo publica:
É em Fortaleza onde esse artista – ex-integrante do grupo Secos & Molhados
procura sempre inovar a imagem/visual de sua figura. Para quem
normalmente esperava dar de cara com o cantor de rosto pintado, ou trajando
vestes as mais audazes, essa faceta surpreende mesmo. Mas esses tempos
passaram. Sozinho, ele atravessou seis anos de carreira solo, inovando e
surpreendendo as multidões. A mesmo no estrangeiro, o fato se repete.
Num show na Argentina, o sucesso foi além de qualquer expectativa, garante
ele, a ponto de a Warner, gravadora ao qual está ligado até dezembro que
vem, imaginar ter sido ali o início de uma grande carreira internacional. Ao
contrário disso, Ney o está interessado em ganhar espaços
além das
fronteiras.
“O Brasil foi suficiente para elevar meu ego”, justifica. (NEY
MATOGROSSO, 1980c)
Em outra página dedicada ao cantor, a entrevista segue de maneira versátil
com o subtítulo de: Um cantor inusitado”, em que são abordados aspectos da censura
moral ainda vigente no país e a relação do cantor com o movimento gay-power.
Foi por causa do corpo de Ney Matogrosso, que ele nesses sete anos de
carreira artística enfrentou problema com a censura. Ney diz: “Não
propriamente a censura do sistema que isso nunca existiu comigo. Mas a tv
achou de inventar regras de pressão, censurando quando eu desejava cantar
245
sem camisa, um tipo de censura que tinha muito a ver com meu corpo”. A
pergunta de que ele teria assumido compromisso com o “gay-power” Ney diz:
“não assumi nenhuma bandeira, que me utilizem como defensor disso ou
daquilo tudo bem, mas que não coloquem estandarte na minha mão”. (NEY
MATOGROSSO, 1980c)
No terceiro dia de apresentação, realizada em 19 de julho de 1980, é
publicada uma ampla matéria acerca do artista. Aqui ressalto, novamente, que o espaço
atingido pelo artista na mídia é considerado raro, pois foram publicadas duas extensas
matérias, um espaço que naquele momento não era normalmente concedido a outros
artistas consagrados da MPB. Para exemplificar essa questão, apontamos para o
espetáculo do cantor Roberto Carlos que apresentou-se em Fortaleza no mesmo período,
tendo sido concedido a ele menores espaço e divulgação dentro do mesmo veículo de
comunicação.
Com a manchete: Ney Matogrosso: O Bandido faz novo gênero”. O Povo
publica: Seu novo estilo é sério. Quem quiser ver a estupenda mutação do Ney, vai ter
a oportunidade: ele está no Ceará, em Fortaleza, fazendo o show “Seu Tipo”. A matéria
continua: “É conferir, portanto, nessa oportunidade a nova imagem do artista. A fase de
plumas morreu definitivamente”. Segue a matéria com o subtítulo: Novo estilo”. O
Povo publica: Ney Matogrosso, 38 anos, chegou a essa capital e nos próximos dias fará
em Fortaleza quatro espetáculos, sempre às 21 horas. Os ingressos podem ser adquiridos
no Teatro José de Alencar das 14 às 19 horas (O BANDIDO, 1980, p.22).
Apesar de intimista e pouco aceito pela crítica e público do Sul do país, na
cidade de Fortaleza a receptividade do público tem um caráter diferencial em que o
público, mesmo se mostrando insatisfeito com modelo intimista do espetáculo Seu Tipo,
interage de forma mais intensa durante o show, como demonstra o depoimento da
Senhora Ivoneide Frota
12
.
Flávio Queiroz: A senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Ivoneide Frota: Estava no Rio e a convite de uma prima fui assistir a um
show em que ele aparecia de terno e gravata de verdade mesmo. Olha, Flávio,
pra mim foi um susto, um choque tão grande que eu pensei que tinha
comprado o ingresso do show errado e estava assistindo ao Roberto Carlos
(risos). Pensava que ele fosse aparecer pintado, de saia, rebolando, uma coisa
assim, mas foi exatamente ao contrário. Esse mesmo show logo depois do
Rio, assisti a ele também aqui em Fortaleza. Lembro dele com um terno
lindo, cantando lento, depois tirava o paletó e ficava com uma roupa colada
no corpo. A gente ia até perto do palco e tentava pegar no Ney. começava
12
Ivoneide Frota, 56 anos, nutricionista, casada, natural de Fortaleza, residente na mesma cidade.
246
o empurra, empurra, ia aumentando, aumentando, a pegar fogo. A
impressão que tenho hoje falando, é que aqui em Fortaleza, tanto o Ney
quanto as pessoas se soltavam mais, não sei porque aqui era assim mais,
animado. (FROTA, 2008)
Sobre o espetáculo Seu Tipo em Fortaleza, ressalto que entre as dez fãs
entrevistadas residentes na cidade, quatro assistiram ao espetáculo. Duas dessas fãs se
referem sutilmente ao show, se limitando a afirmar que não gostaram e nada afirmam
sobre o show. As outras duas acima citadas deram informações acerca do espetáculo,
lembrando sempre a estranheza e o descontentamento do novo estilo do cantor. No
entanto, mesmo com a indiferença dessas fãs em relação ao espetáculo, é notório em
suas falas o comportamento ávido do público, como ficou demonstrado por meio do
depoimento supracitado, principalmente em comparação a platéias de outras cidades.
Na verdade a memória dessas informantes é bem mais relevante acerca do
comportamento transgressor do público e do artista. A intensidade desses relatos
aumentará nos itens abaixo, quando o artista retorna com os dois shows subseqüentes,
na condição de fenômeno de massa, apresentando-se no ginásio coberto Paulo Sarasate,
para umblico estimado em 15 mil pessoas.
5.2 “Homem com H
13
– O show do ano. O Paulo Sarasate pede bis
O show do ano: Ney Matogrosso, dia dezessete de outubro às 21:00 horas no
Ginásio Paulo Sarasate, vonão pode perder, um patrocínio da tv e rádio
verdes mares, ingressos à venda na portaria do ginásio. Ney Matogrosso: o
show do ano.
(
O SHOW DO ANO, 1981)
O jornal O Povo noticia, em 14 de maio de 1981, a vinda de vários artistas
da MPB, entre eles o artista Ney Matogrosso, prevista segundo o jornal para os dias 28 e
29 de agosto do corrente ano. O Povo publica:
Até o final do ano o Jornal O POVO e a FM do POVO trarão a Fortaleza as
maiores expressões da MPB na atualidade. Com o fechamento de nossos
13
O show apresentado no ano de 1981 levava o nome do cantor Ney Matogrosso. Na cidade de Fortaleza
esse espetáculo foi apresentado pelos meios de comunicação de massa como sendo o show do ano e entre
os entrevistandos sempre era apontado como o espetáculo Homem com H. Por essa razão se fez pertinente
intitular no item 5.2 o show oficialmente denominado Ney Matogrosso, como sendo Homem com H o
show do ano, como ficou conhecido na cidade quando o cantor aqui se apresentou nos dias 17 e 18 de
outubro de 1981 no Ginásio Paulo Sarasate – ás 21 horas.
247
contratos essa semana, a agenda de shows ficou assim programada: dia 14/5:
A Cor do Som; dia 21/05: Elba Ramalho; Dia 29/6: Gilberto Gil; dia 16/07:
Ramalho; dia 30/07: Roberto Carlos, dias 28 e 29 de agosto Ney
Matogrosso; dias 11-13/9: Zizi Posse, Ângela Ro Ro ou Beto Guedes; dia
17/10: Alceu Valença”( CURTISOM,1981).
A partir do dia 03 de julho de 1981, o anúncio acerca do show do cantor Ney
Matogrosso, com data prevista, segundo o jornal, para os dias 28 e 29 de agosto no
Ginásio Paulo Sarasate, não é mais veiculado
14
. A foto do cantor é retirada de entre os
artistas que viriam a Fortaleza na temporada de férias promovida pelos Rádio e jornal O
Povo. Em contrapartida a promoção do espetáculo passa a ser feita pelo grupo
empresarial Edson Queiroz, concorrente do grupo Demócrito Rocha, proprietário do
jornal O Povo.
Em outubro de 1981, o grupo Edson Queiroz ainda não dispunha de um
jornal, vindo a fazê-lo mais a frente, no dia primeiro de dezembro, com a fundação
do Jornal Diário do Nordeste. À época o referido grupo dispunha de uma emissora de
televisão, a TV Verdes Mares, e da Rádio AM E FM Verdes Mares. Dessa maneira, o
espetáculo do cantor Ney Matogrosso passou a ser divulgado pela TV e pelo Rádio com
a seguinte chamada: O show do ano: Ney Matogrosso, dia 17 de outubro às 21:00
horas no Gisio Paulo Sarasate, você não pode perder, um patrocínio da tv e rádio
verdes mares, ingressos à venda na portaria do ginásio” (O SHOW DO ANO, 1981).
Nesse item, que pouco se falaacerca da imprensa escrita, em função da
troca de patrocinadores, acima explicada, deter-se-á nas entrevistas, essas, não
informarão sobre o contexto de época, mas também colocará luzes às entrelinhas dessa
passagem do artista pela cidade de Fortaleza, no tocante à retomada do status de
fenômeno de massa - o que reforça a idéia da avidez do público de
Fortaleza ,eminentemente transgressor, em seu comportamento frente ao artista em cena.
A Senhora Elke Vianna
15
contactada a partir da indicação da Senhora
Ivoneide Frota, nos chama a atenção para o estilo do artista, enquanto intérprete que
canta músicas populares e o líricas e aponta para a retomada do posto de fenômeno de
massa em espetáculo realizado no ginásio Paulo Sarasate, para um público de
aproximadamente 15 mil pessoas. Assim é explicitado o caráter transgressor e ávido do
público presente:
14
Os motivos da suspensão do patrocínio não foram averigüados nessa pesquisa investigativa por falta de
dados e, sobretudo, pela inviabilidade de recorrer à questão com o corpo editorial do jornal da época.
15
Elke Vianna, professora de piano, 82 anos, natural de Blumenau-SC, residente em Fortaleza.
248
Flávio Queiroz: A Senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Elke Vianna: Um tanto irrisória, em um grande espaço para milhares de
populares. Nas aulas de piano ensinava O Viajante
16
, daí ir assistir ao
espetáculo movida por esse fato. Meus alunos adoravam O Viajante e
pediam a partitura. Recordo que em uma certa hora, após cerrarem os portões,
estes foram rompidos pelos populares. Lembro de uma histeria na platéia,
existiam excessos. Aplausos que viravam gritos, uma espécie de comão
popular, pessoas descontroladas. Ao cantar O Viajante percebi algo inefável,
deslumbrei-me, tocou-me em um total enlevo, pensei porque ele não estava
cantando Handel, Mozart, pois sua voz é raríssima. Um desperdício cantar
MPB, perdão, mas minha formação é clássica. Flávio, vo carrega uma
tristeza no olhar, isso mostra o interior de sua essência. Os olhos são janelas
de nossa alma. Podemos ir tomar um café? Tenho sentido dores nas
articulações quando toco... (VIANNA, 2007, p.3)
5.2.1 “Luzes se apagaram, Ney surgiu. Pessoas tentavam subir o
alambrado desesperadas”
A segunda depoente, a Senhora Norma Gonçalves
17
, enaltece a sensualidade
do cantor, bem como a mudança de mentalidade que o artista provocou em sua vida a
partir do espetáculo de outubro de 1981 no Ginásio Paulo Sarasate. A informante narra
ainda seu acidente durante o transcorrer do espetáculo.
Flávio Queiroz: A Senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Norma Gonçalves: Assisti no Ginásio Paulo Sarasate, totalmente cheio.
Nunca tinha visto algo parecido. Ele cantava, com uma máscara, uma música
da época dos Secos & Molhados
18
, linda. Tinha uns rapazes, bem magros
como ele. As luzes se apagaram e Ney surgiu assim no meio da fumaça. As
pessoas ficaram loucas, tentavam subir o alambrado desesperadas. Teve uma
16
A música O Viajante, a que a senhora Elke Vianna se refere é na verdade “Viajante” de autoria de
Teresa Tinoco, parte integrante do LP Ney Matogrosso lançado em 1981 pela Ariola Discos S/A e décima
segunda música interpretada pelo cantor durante o espetáculo Ney Matogrosso. Viajante (Teresa Tinoco):
Eu me sinto tolo como um viajante/ pela tua casa/pássaro sem asa/rei da covardia/ e se guardo tanto essas
emoções/ nessa caldeira fria/ é que arde o medo/ onde o amor ardia/ mansidão no peito/ trazem o
respeito/que eu queria tanto derrubar de vez/ pra ser seu talvez/ mas o viajante é talvez covarde/ ou talvez
seja tarde/pra gritar que arde no maior ardor/ a paixão contida retraída e nua/ correndo na sala ao te ver
deitada/ ao te ver calada/ ao te ver cansada/ ao te ver no ar/ talvez esperando desse viajante/ algo que ele
espera também receber/ e quebrar as cercas/ com que insistimos em nos defender.
17
Norma Gonçalves, psicóloga, 48 anos, solteira, natural de Belo Horizonte - MG, residente em Fortaleza.
18
O show ao qual a senhora Norma Gonçalves se refere aconteceu na cidade de Fortaleza em 17 de
Outubro de 1981, às 21 horas, no Ginásio Coberto Paulo Sarasate. A música de abertura era Mulher
Barriguda de autoria de João Ricardo e Solano Trindade (O SHOW DO ANO, 1981). Músicas show Ney
Matogrosso: Mulher Barriguda; Três Caravelas; Coubanakan; Bandido Corazon; Ribeirão; Amor Objeto;
Bandoleiro; Deixa Menina; Instrumental da Banda (strip-tease do Ney); Vida Vida; Ando
MeioDesligado;MataVirgem;Viajante;MorenadeAngola; Homem com H; Planeta Sonho; FolianoMatagal
(MATOGROSSO,2006)..
249
hora que me aproximei do alambrado e no empurra-empurra uma ponta
entrou no meu braço, olha a cicatriz, guardo com o maior orgulho, ficou
linda, parece a inicial dele um N, não acha? Se eu tivesse perto dele, eu diria
obrigado, muito obrigado. Se eu não conseguir dizer, Flávio, você diz por
mim lega?. Sei que você esteve com ele várias vezes. Vi no jornal
19
(GONÇALVES, 2006, p. 2).
O Senhor Francisco Barros
20
, em depoimento, relata acerca do
comportamento hostil e homofóbico, instituído no seio da sociedade, em relação à
conduta do artista em cena. Demonstra também a multiplicidade e a avidez do público
durante essa apresentação na cidade:
Flávio Queiroz: O Senhor lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Francisco Barros: Vou te dizer que sou assim gay assumido, pode? Pode a
sair na entrevista, que não tenho vergonha não. Antes a gente não podia
dizer isso, se dissesse que gostava de Ney, chamavam a gente de bicha.
Lembro no show da música Planeta Sonho e as pessoas querendo ver Ney de
perto, pulando, empurrando, tentando ir pra frente do palco, uma loucura
geral. Depois do show, eu e meu caso fomos para a Navy, pois disseram que
o Ney ia aparecer lá. Alguns diziam que tinham visto o Ney, que pegaram na
mão dele, que ele tava com um garoto escândalo. Umas até diziam que o Ney
deixou a conta paga da sua mesa, eu não vi. (BARROS, 2006, p.3)
5.2.2 “Vi Ney saindo em um Galaxie e os bailarinos em um ônibus,
pulei e peguei na mão de um”
O Senhor Breno Freire
21
, reafirma a fala do senhor Francisco Barros,
apontando para o caráter homofóbico existente naquele momento por parte de alguns
segmentos sociais:
Flávio Queiroz: O Senhor lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Breno Freire: A primeira vez que assisti a um show, foi de Ney Matogrosso
aqui em Fortaleza no Gisio Paulo Sarasate, no dia 17 de outubro de 1981.
Era um sábado à noite, fui acompanhado de dois amigos. Um amigo dizia:
19
A foto do pesquisador com o artista que a senhora Norma Gonçalves afirma ter visto no jornal, é na
verdade a matéria veiculada pelo jornal O Povo acerca dos 30 anos de dissolução do grupo musical Secos
& Molhados, juntamente com entrevista com Flávio Queiroz cuja dissertação de mestrado versou sobre o
referido grupo. Acrescento ainda que no site de relacionamentos Orkut, na comunidade Ney Matogrosso
dispõe de uma foto do artista juntamente com o pesquisador Flávio Queiroz no camarim do Centro de
Convenções, após apresentação do espetáculo Canto em qualquer canto, em setembro de 2006 e uma
outra foto tirada durante o Festival de Cinema Mix, no Cine São Luiz, em setembro de 2008.
20
Francisco Barros, 55 anos, marceneiro e trabalhador autônomo, natural de Fortaleza, residente em
Fortaleza.
21
Breno Freire, 41 anos, solteiro, professor universitário, natural de Fortaleza, residente em Fortaleza.
250
hoje o dia está completo de manhã a praia, o Airton Senna foi campeão e a
noite é o show do Ney. Ao sair lembro que minha mãe me deu um Agnus de
Deus para me proteger. Antes ela havia me dado 500 cruzeiros para comprar
o ingresso, fui com um amigo do colégio comprar, fazia a oitava série
ginasial no colégio Ari de Cavalcante. Estudava à tarde e fomos após a
aula. Ney fez com que eu entendesse a vida de uma outra forma, me
libertasse o sei nem de que, talvez da condição de ter tido um pai militar e
ainda viver em um sistema militar repressor, machista. A pior ditadura foi a
que vivemos em casa, em nossa intimidade. O que marcou no show foi ver
Ney cantando Mulher Barriguda com três bailarinos, aquilo ficou pra sempre
em mim. No final do show vi Ney saindo do Paulo Sarasate em um Galaxie
preto, assim enorme muito chique e os bailarinos em um ônibus, uma euforia
louca, pulei e peguei na mão de um dos bailarinos. Foi ótimo. Lembro de
tudo assim detalhadamente do show, mesmo tendo 14 anos na época.
Aquilo tudo, o Ney, o show, os bailarinos, me chamaram para a vida. O show
foi repetido no domingo, teve um bis
22
. Domingo, fui pra missa, mas
pensava no show. (FREIRE, 2008)
A multiplicidade e avidez do público está presente ao espetáculo Ney
Matogrosso, ocorrido no Ginásio Paulo Sarasate em outubro de 1981, em que
detectamos uma diversidade de público, a partir da faixa etária e da classe social. A
presença do estudante secundarista Breno Freire, que na época tinha 14 anos, hoje com
41, do marceneiro Francisco Barros à época com 28 anos, hoje com 55 anos, da
nutricionista Ivoneide Frota com 21 anos, hoje com 48 anos e da professora de piano
Elke Vianna com 55 anos, hoje com 82 anos. Todos esses informantes foram unânimes
no que diz respeito ao comportamento “ávido” da platéia na cidade de Fortaleza.
O artista Ney Matogrosso, sobre essa questão do comportamento do público
entre as diversas regiões do Brasil, faz uma distinção entre as cidades do Rio de Janeiro,
São Paulo e Fortaleza, o que confirma a fala dos informantes, em declaração à jornalista
Lea Penteado do jornal O Globo:
O Rio é a cidade mais blasée (sic) que conho, as pessoas acham que sabem
de tudo e, por isso, não olham pra nada. São Paulo tem um público incrível
muito caloroso, apesar do frio que faz lá. Dizem que Curitiba é a cidade
padrão brasileira mas, se aquilo é padrão do povo brasileiro, não entendo
mais nada. Viajo pelo Brasil inteiro e sinto que o público de Curitiba é
distante; assiste impassível e bate muitas palmas, quando o show acaba. Mas
não existe envolvimento entre público e artista. Fora Rio e Curitiba, o resto
do Brasil é facílimo, as pessoas querem ser envolvidas. No Nordeste, então,
elas pedem: por favor, me envolva. Acredito que os nordestinos tenham
preocupações maiores do que perder tempo com preconceitos e discutir
comportamento, eles têm de lutar pela sobrevivência diária. (PENTEADO,
1981a)
22
O espetáculo do artista Ney Matogrosso foi estendido ao dia seguinte, domingo 18 de outubro de 1981,
em função do contingente de pessoas que não conseguiram assistir ao show, visto que o ginásio coberto
Paulo Sarasate atingiu sua capacidade máxima 15 mil pessoas (O SHOW DO ANO, 1981).
251
5.3. “Por debaixo dos pano” - a festa
Começo a ensaiar agora por enquanto, tenho a idéia central. Quero que
seja como um show de rock, com a banda toda – e estou com 12 músicos – se
movimentando no palco, com muito pique. Quero que as pessoas tirem um
pouco o foco da atenção de mim, que se soltem na platéia também, vejam
os músicos, participem. Acho que não é um show que quero fazer é uma
festa. (BAHIANA, 1982)
O show de Ney hoje ‘Mato Grosso’. Às 21 h estará subindo no palco armado
no centro do Ginásio Paulo Sarasate, com suas roupas extravagantes,
dançando e cantando, ele apresentará “Mato Grosso”, o show que faz a
divulgação do seu último disco, uma mistura de vários estilos musicais. O
revolucionário guerreiro de nossa música mais uma vez estará mostrando
todo o seu potencial. Ney diz: “Não é um show que quero fazer, é uma festa”.
(UMA FESTA, 1983)
Esse momento da trajetória do artista, estudado no capítulo anterior, é o
momento da retomada pelo cantor do posto de fenômeno de massa, visto o número de
espectadores que esse espetáculo obteve. A imprensa do sul do país entendeu como um
espetáculo feito para milhares”. Aqui na cidade de Fortaleza, o show foi apresentado no
Ginásio Coberto Paulo Sarasate, no dia 15 de janeiro de 1983, para um blico estimado
de 15 mil pessoas, intitulado pela dia local, como um espetáculo que tinha elementos
que levavam o público a uma festa.
Fonte: Jornal O Povo (1983)
Figura 29 – Ney Matogrosso anuncio show Mato Grosso - Fortaleza, 1983
Ao analisarmos a postura da dia e a fala de nossos entrevistandos,
encontramos no público presente ao espetáculo uma faixa etária e nível sócio-
252
econômico diversificados em meio a um comportamento ávido. Essa avidez veio a
corresponder aos anseios do artista e dos produtores do espetáculo que, naquele
momento, desejavam fazer do espetáculo Mato Grosso uma festa para público
presente. O jornal Drio do Nordeste notifica em matéria realizada:
Ele deve ter tomado muito cedo mel reforçado com geléia real e água de coco,
seu café da manhã, que o mantém em forma para os 60 minutos de show que
realizará logo mais. Este é o segundo ano consecutivo que o cantor apresenta
o resultado de seus lançamentos musicais em Fortaleza. Dessa vez serão
mais de 15 mil cearenses e turistas em passeio que assistirão ao show “Mato
Grosso, um espetáculo alegre, de sentido duplo de humor popular. Aqui Ney
inicia sua tournée pelo Norte e Nordeste, fazendo o seu contato com o
público, num momento que considera único em sua carreira. Ney pretende
novamente mexer com a platéia, colocar todos para cantar e dançar. De cocar,
colares e pulseiras e nos trajes que costumam marcar suas apresentações
desta vez trazendo menos roupa no corpo -, ele afirma que o show é um
“espetáculo alegre”, que mistura os mais variados estilos de música e tem
uma coreografia bem trabalhada. Durante quase todo o tempo que permanece
no palco, Ney corre de um lado para outro, rebola, dança, para em alguns
momentos para um breve descanso, quando canta sentado. A sua
sensualidade não escapa em nenhum segundo, seu corpo, seus gestos e sua
voz fazem todo um harmonioso vivo e cheio de graça. (UMA FESTA, 1983)
A Senhora Francisca Gomes,
23
recém-chegada a Fortaleza, à época
trabalhando como doméstica, aponta em sua fala para o comportamento intenso da
platéia nesse espetáculo.
Flávio Queiroz: A Senhora lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Francisca Gomes: Tinha acabado de chegar do interior e trabalhava na casa
da minha madrinha pra poder pagar os “estudoe comer, né? Fui sozinha
pro show eu era corajosa, não tinha medo, era do interior, mas era
danada.Peguei o ônibus e fui. O dinheiro eu juntei bem um mês, deixava de
sair pro parque pra juntar. Vi Ney bem dizer nu, com uma roupa de índio,
24
.
Teve uma hora que as pessoas correo pra ver ele de perto, gente caiu,
empurrando, uma confusão. Fiquei “inté” com medo. (GOMES, 2007, p.2)
23
Francisca Gomes, lojista, 47 anos, casada, natural de Trairí - Ceará, residente em Fortaleza. Foi
contactada a partir de contato estabelecido entre o pesquisador e o fã durante o show Cartola em Fortaleza.
24
O show ao qual a informante se refere, intitulava-se Matogrosso, foi apresentado na cidade de Fortaleza
no Ginásio Coberto Paulo Sarasate, em 15 de Janeiro de 198, às 21 horas. O figurino do artista remetia às
indumentárias indígenas, onde esse aparecia coberto apenas com um tapa sexo, oferecendo uma semi
nudez ao público (NORDESTE,2008). As músicas citadas pela informante são Homem com H de
Antônio Barros, pertencente ao LP Ney Matogrosso de 1981 e Por Debaixo dos Pano de Cecéu,
pertencente ao LP Matogrosso de 1982. Músicas do show Matogrosso: Metamorfose Ambulante;
Noticias do Brasil; Uai Uai; Primeiro de Abril; Promessas Demais; Não Faz Sentido; Deixar Você; Tanto
Amar; Aquela Fera; Andar com Fé; Napoleão; Por Baixo dos Panos; Johnny Pirou; Alegria Carnaval. BIS:
PorDebaixodosPano(MATOGROSSO,2006).
253
5.3.1 “Pára, pára tudo, pára atrás. Fitou a platéia, rio. Aqui era
mais quente”
Com o Senhor Fábio Braga
25
estabelece-se o contraponto de nível social no
público presente. De um lado uma garota vinda do interior em busca de crescimento
social, exercendo serviços domésticos em troca de seu sustento na capital, de outro um
jovem universitário de jornalismo de classe média que dispunha de passe livre nos
shows, em função da sua já então profissão de jornalista.
Flávio Queiroz: A senhor lembra das apresentações do cantor Ney
Matogrosso na cidade de Fortaleza?
Fábio Braga: O primeiro a que assisti foi o espetáculo Mato Grosso, lembro
que foi meu primeiro trabalho no jornal. Entrei pela ala da imprensa e tive
acesso privilegiado no ângulo das fotos que tirei. Teve uma hora em que ele
pediu pra parar o show, por conta de uma confusão que aconteceu. Ney parou
de cantar e disse: “pára, pára, ra tudo, para aí atrás”, ficou olhando sério a
platéia e depois continuou a cantar. Nossa que poder! (risos). No final do
show foi uma loucura. Assisti depois ao mesmo show em São Paulo, mas a
festa aqui era sempre mais forte. O show aqui era mais quente. (BRAGA,
2008, p.1)
5.3.2. “Todo mundo ficava querendo pegar nele, chegar perto”
Na terceira fala, apresentar-se-á o depoimento do Senhor Ivanildo Lima
26
, à
época cabo da Polícia Militar do Ceará, em que este reafirma a multiplicidade do
público presente ao espetáculo, bem como apresenta uma visão, dentro do contexto
corporativo da instituição militar à qual estava vinculado, do que nomeamos por avidez
de um público no presente estudo.
Flávio Queiroz: O Senhor lembra, quando em serviço, ter estado em alguma
apresentação do cantor Ney Matogrosso em Fortaleza?
Ivanildo Lima: O Ney Matogrosso que rebola (risos). Rapaz, voveio falar
com o “homi” certo. Eu tirei muito serviço como ali no PV, Castelão, Aécio
de Borba, Paulo Sarasate, tudinho, mas esse ai eu lembro e é por um
tiquim assim. Na entrada olhava pra ver quem queria entrar com bebida,
droga, arma, tudo. dentro era a segurança do povo e do cantador, quando
os “filhim” de papai queria botar boneco. A gente ficava pelas arquibancadas
e fazendo o cordão de segurança em frente ao cantador pra ninguém tentar
25
Fábio Braga, fografo e jornalista, solteiro, 48 anos, natural de São Paulo-SP, residente em Fortaleza-
(Ce).
26
Ivanildo Lima, 67 anos, sargento aposentado da polícia militar do Ceará, natural de Teresina,Piauí,
residente em Fortaleza. O contato com o Senhor Ivanildo Lima deu-se por meio do Tenente Walmir
Cordeiro, quando esse nos informou acerca de um amigo militar da polícia que trabalhava na segurança
de eventos da cidade na época.
254
pular. Todo mundo ficava querendo pegar nele, chegar perto, ficava tudo
querendo agarrar o homi”. Teve uma hora lá que o pau cantou, chega abriu
um buraco, a gente agiu logo e aí “má” o cantador gritou lá de cima pra parar,
e num é que parou? Não era qualquer um que falava assim com os “homi”
do Capitão o. O povo diz que ele é meio assim, pra e pra cá. Eu não
acho não, pois pra mim ele é muito macho.
27
(LIMA, 2007, P.1).
Com esse capítulo intentamos demonstrar a avidez do público de Fortaleza.
Ao contrário daquele do eixo Rio -o Paulo, estudado no capítulo anterior, que
mostrava-se mais contido durante as apresentações do artista, o público fortalezense,
por meio das entrevistas colhidas , mostrou-se não ter apenas admiração pelo cantor,
mas manter uma relação de idolatria. Esse blico demonstrou uma afetividade com o
artista no que diz respeito às suas respectivas hisrias de vida. Por meio de suas falas é
detectada uma afetividade, uma emotividade que passa pela questão pessoal e por suas
hisrias de vida.
Seus depoimentos são normalmente atrelados a um momento significativo de
suas vidas, seja por uma lembrança de um casamento, um nascimento de uma filha, uma
gravidez, uma festa de quinze anos, uma ruptura amorosa, a vinda de alguém do interior
para a capital. É, por excelência, um blico mais eufórico, que atua com mais
veemência durante as apresentações do artista.
No eixo Rio São Paulo, o público do mesmo artista mostra-se mais
intelectualizado em relação ao trabalho do cantor, é um publico, pode-se dizer, que tem
uma relação com o artista mais amena, não demonstrando maiores envolvimentos
durante as apresentações. Na verdade, o público do sul do país porta-se como
admiradores e autodenomina-se como tal. Não se autodenominando como fãs. Esse
público percebe uma função social em seu trabalho, além do mero entretenimento. No
eixo Rio - São Paulo, os admiradores do cantor Ney Matogrosso aparecem como
personagens dentro desse processo do fazer artístico, passando a iia de também serem
protagonistas dessa construção, desse sentido artístico.
Nas declarações do público do Rio de Janeiro e de São Paulo esse aparece de
forma mais contida, não existem relatos de tumulto ou de estilhaços de vidros nas
apresentações do cantor. Existe uma euforia sim, entretanto ela é mais contida. No
27
Os locais aos quais o informante se refere: PV significa Estádio Presidente Vargas, situado no bairro do
Benfica. Estádio de futebol Castelão fica situado no bairro Castelão. Ginásio de Esportes cio de Borba
anexo ao Estádio Presidente Vargas. Ginásio Paulo Sarasate, situado no centro com capacidade para 15
mil pessoas. O show do artista Ney Matogrosso ao qual o informante se refere deu-se no dia 15 de
janeiro de 1983, às 21 horas, no Ginásio Coberto Paulo Sarasate. O capitão a cujos homens ele se refere
é o capitão da Tropa de Choque que os comandava.
255
público da cidade de Fortaleza existe uma comoção, um devaneio em relação à imagem
do artista. Em suas apresentações na cidade relatamos fãs que desmaiam, choram
durante a apresentação do cantor, atiram-se sobre as grades de proteção do palco,
quebram vidraçarias durante a entrada para o espetáculo, entre outros comportamentos
de natureza eufórica que caracterizam a avidez desse público.
O sentimento do público frente à performance do cantor em cena abre
espaços para o comportamento ávido desse, ao qual preterimos classificar. Classificação
essa que não se enquadra dentro de uma concepção de cerceamento da conduta
transgressora do artista em cena, mas, pelo contrário, designa-se à liberdade e à
interação entre o artista e seu público. O que fica claro quando o cantor afirma que não
deseja aplausos, mas mexer com a cabeça das pessoas. A declaração do artista na
íntegra:
Não são aplausos que eu busco numa platéia. Eu vejo meu papel sobre um
palco como muito mais que apenas ganhar aplausos. Eu penso sempre que
estou ali com uma finalidade, para mexer com a cabeça das pessoas, fazer
algum bem a elas, servir para algo, para expressar alguma coisa que elas tem
dentro de si e, muitas vezes, não sabem. Ser aplaudido, ou não, não me
interessa. Fazer esse trabalho é que é bom. (BAHIANA, 1982)
256
“SENTIMENTO CONTRAMÃO”: CONCLUSÃO
Analisar a trajetória artística do cantor Ney Matogrosso, foi um exercício
instigante, tendo em vista sua importância social dentro do cenário da música brasileira.
Sobretudo na ruptura de normas e condutas morais que este obteve por meio de seu
comportamento transgressor no palco em meio aos princípios estético-comportamentais
do momento. Acredito que, em certa instância, tenha sido possível apreender alguns
desses elementos de natureza transgressora de sua tentativa de tornar-se um artista
autônomo. Elementos esses que procurarei apresentar agora nas considerações finais
desse trabalho investigativo.
Convém lembrar que o objetivo da pesquisa foi identificar o caráter
transgressor do cantor em sua busca pela autonomia artística frente ao mercado
fonográfico, à dia e à censura moral do regime militar. Para tanto, assumi como
hipótese a idéia de que a busca pela autonomia do cantor já existia desde o momento em
que era vocalista do grupo musical Secos & Molhados, entendida como um princípio de
autonomia inerente ao cantor, o que nos remete ao pensamento de Pierre Bourdieu
acerca da autonomia dos campos.
Essa busca pela autonomia artística, possibilitou a construção do corpo
transgressor do artista, não permitindo, dessa forma, que fosse vetado na íntegra pelos
órgãos de censura do governo militar, nem pela tentativa de normatização da arte
exercida pela indústria fonográfica e mídia. Assim, o artista legitima-se dentro do
campo da música como um cantor de conduta transgressora e politizada, mas, contudo,
apartidária.
Ao tentarmos compreender a trajetória artística do cantor Ney Matogrosso
sob o aspecto de sua conduta transgressora, muitas possibilidades surgiram no sentido
da compreensão desse percurso, haja vista a multiplicidade que o universo social do
cantor oferecia. A análise dessa trajetória foi pertinente, pois assim pudemos pensar
toda uma rede de relações sociais estabelecidas à época, sobretudo o caráter contestador
do artista frente aos poderes instituídos. Para tal intento, lançou-se o de leituras de
alguns segmentos da mídia, que apontavam para uma tentativa de classificação do
artista como um cantor com características andróginas, transgressoras às normas e
257
condutas sociais, o que ficou demonstrado durante o nosso percurso de análise e
investigação.
Nesse sentido, foi analisado o “lugar social” do artista, por meio de suas
posições e tomadas de atitude, com o intuito de compreender o significado social do
cantor. Dessa forma tentou-se entender a diversidade de comportamentos entre a pessoa
de Ney de Souza Pereira e o artista Ney Matogrosso. Dá-se, a partir de então, a
condição de liminaridade do cantor frente ao regime militar, à indústria fonográfica e à
mídia dentro do percurso de sua carreira solo, onde se estabeleceu a construção do
corpo transgressor do artista na busca por sua autonomia artística.
O cantor Ney Matogrosso manteve-se durante sua trajetória, em sua tentativa
de tornar-se um artista autônomo, numa condição de “fora” dos ideais da arte engajada,
“fora” da tentativa de disciplinarização do corpo, por meio da censura moral imposta
pelo regime militar, e “fora” do instituído naquele período, proporcionando, assim, uma
ruptura estético-comportamental. O artista conseguiu, portanto, traduzir, fazer vir à
tona, emergir o que é próprio do território do instituinte: não ter um nexo simbólico,
estar “fora” de uma linguagem classificatória, “fora” de qualquer esfera de
classificação, apresentando-se como elemento inominável.
A pluralidade de comportamentos do artista em cena e, sobretudo, a inlita
figura do personagem incorporado por Ney de Souza Pereira, romperam com as
fronteiras impostas entre o universo masculino e feminino. Dessa maneira foi gerada em
seu público masculino e feminino uma mudança de natureza comportamental, como
demonstrou-se ao longo do capítulo quatro e cinco, quando foram analisados a
multiplicidade e o caráter ávido do público do cantor.
A cada montagem de um espetáculo, é criado pelo artista um personagem
novo. Entretanto a singularidade desse personagem estava assegurada em função do
princípio de criação e autonomia do próprio cantor, que sugeria a cada um de seus
espectadores o despertar de suas próprias identidades, o delinear do seu próprio
percurso, no sentido de romper com os tabus e conceitos vigentes. Por meio de nossas
entrevistas com o público feminino e gay, ficou demonstrado de maneira contundente
essa liberdade que o cantor representou para os mesmos.
Na verdade, o artista legitimou-se para seu público como representante da
possibilidade de cada um construir uma identidade própria, por meio da singularidade
258
existente em cada indivíduo desse blico. O comportamento transgressor do artista em
cena, com sua singularidade, proporcionou a seu público a liberdade para vir a construir
sua identidade própria, no sentido de uma transgressão comportamental em seu
cotidiano, em suas relações sociais e pessoais.
A conclusão a que se chega a partir dessa pesquisa é de que o anseio do
artista na busca, no processo de construção de sua autonomia artistica é inerente à
própria condição de perceber-se enquanto artista. Esse anseio independe de época,
contexto sócio-econômico, lugar e formas de produzir arte. No seio do fazer artistico, no
ato de criar, de tecer sua arte, estão embutidos o processo de construção e a busca pela
autonomia artistica. Busca essa que, nos mais diversos campos da arte, é parte
integrante da própria condução do artista, inerente à sua essência é à própria condição a
que o artista está submetido dentro do campo artistico.
Nos diversos contextos de época, como ficou demonstrado no campo da arte,
os compositores Mozart e Beethoven, o escritor Flaubert, e na pintura Manet, buscavam
essa autonomia que, por sua vez, achava-se circunscrita dentro de um princípio de
relatividade, de acordo com cada realidade. No Brasil durante os anos 70, artistas
buscavam essa autonomia dando os driblesdevidos na censura do regime militar. O
fator diferencial na busca do cantor Ney Matogrosso por essa autonomia artística deveu-
se ao fato de a ambigüidade do artista em cena ter ido de encontro aos padrões de em
uma sociedade com traços notoriamente homofóbicos.
Durante o desenvolver das entrevistas realizadas, uma declarou que, para
ela, o cantor Ney Matogrosso se resumia em uma única palavra: “contramão”. O termo
contramão” não pressupõe apenas um sentido transgressor, contraventor, pelo qual se
conduziu o cantor no campo da arte. Não pressupõe apenas um movimento de fluxos de
dom e contra-dom, fluxos que se elaboram, inexoravelmente, em torno da vida social
dos indivíduos e da coletividade. Essa palavra aponta para algo bem mais amplo: um
“sentimentoimbuído no fazer artístico do cantor, inerente à sua própria trajetória, um
“sentimento contramão”. Estar na contramão, na década de setenta dentro do campo
artístico, era algo quase inevitável, para os artistas que se contrapuseram ao regime
militar, dentro das diversas possibilidades de suas atuações e manifestações artísticas.
Portanto, permanecer na contramão, como ficou demonstrado ao longo dessa tese, foi
um caminho escolhido pelo artista Ney Matogrosso. Foi na verdade uma opção política.
259
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