Download PDF
ads:
KATIA ADRIANE OLIVEIRA DE ARAÚJO
ALTERNÂNCIA DO DATIVO EM INGLÊS:
EVOLUÇÃO DAS ANÁLISES E A RELAÇÃO ENTRE LÉXICO E
SINTAXE
PORTO ALEGRE
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIA E ANÁLISE LINGÜÍSTICA
LINHA DE PESQUISA: GRAMÁTICA, SEMÂNTICA E LÉXICO
KATIA ADRIANE OLIVEIRA DE ARAÚJO
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO DE MOURA MENUZZI
Dissertação de Mestrado em Teoria e Análise
Lingüística,apresentada como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2009
ads:
Para meu esposo e minhas filhas
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida.
Ao professor Doutor e meu orientador Sérgio de Moura Menuzzi, por toda a tranqüilidade,
solidariedade e paciência concedida durante os momentos mais difíceis desta trajetória, por todo
o conhecimento construído, tornando possível concluir este curso de mestrado.
Ao meu marido Éderson, pelo amor, incansável incentivo e apoio.
A querida Gislaine Moreira de Araújo, que por diversas vezes, me auxiliou no cuidado com
minhas filhas, tornando meus dias menos árduos.
As minhas filhas, Nathalia e Melissa por existirem, e por trazerem alegria ao meu dia-a-dia, me
fazendo renovar e querer ser cada vez melhor.
Aos meus pais e irmãos, que mesmo distantes, torceram sempre por mim.
Aos meus amigos mais próximos, pela compreensão.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para minha formação e para a
concretização deste mestrado.
Meu mais sincero Obrigado!!!
RESUMO
Com base em alguns dos principais trabalhos existentes na literatura gerativista sobre a
"alternância do dativo" do inglês, identificamos e sistematizamos neste trabalho as principais
restrições que, segundo a literatura, atuam na construção dativa (construção dativa
preposicionada ou a de objeto duplo), bem como algumas das principais propostas de análise.
Nosso intuito é mostrar como a evolução do estudo de uma construção particular envolve, muitas
vezes de modo indireto e não explícito, aspectos importantes, mais gerais, da teoria lingüística.
No caso particular deste trabalho, procuramos mostrar como o estudo da alternância nos permite
identificar, entre outras coisas: (a) concepções importantes da relação entre sintaxe e léxico, e (b)
os tipos de argumentação que podem ser utilizados para distinguir processos sintáticos de
processos lexicais, bem como processos lexicais de vários tipos entre si.
Quanto ao percurso das análises sobre a alternância dativa e as principais concepções teóricas
que foram discutidas, procuramos enfatizar o fato de que a gradativa evolução da teoria ao
longo dos anos. Tomamos como ponto de partida para nossa discussão sobre a alternância a tese
de doutorado de Richard Oehrle (1976). Oehrle toma como ponto de partida para sua discussão a
visão puramente transformacional” da alternância oferecida pelo “modelo padrão” da teoria
gerativa. Desta perspectiva, a alternância dativa é um processo “fortemente produtivo”: processos
transformacionais afetam constituintes sem ter acesso a propriedades léxico-semânticas
particulares deles. No entanto, por meio de uma análise detalhada da construção, Oehrle foi o
primeiro a demonstrar que tal visão estava equivocada: a alternância dativa é um processo “semi-
produtivo”, sujeita a diferentes restrições que parecem operar sobre subclasses lexicais de verbos,
fazendo que itens muito semelhantes em significado ora possam, ora não, aparecer numa ou
noutra das estruturas dativas do inglês.
As demais abordagens analisadas neste trabalho concentram-se na tentativa de localizar
adequadamente os fatores que regem a alternância, seja dentro do léxico, ou da sintaxe, ou na
relação entre os dois.
ABSTRACT
On the basis of some of the main works in the generative literature about the English
Dative Alternation, we try to identify and systematize the main constraints that act upon the
dative constructions, as well as some of the main proposals of analysis. Our aim is to show how
the evolution of the study of a particular construction may involve, sometimes in an indirect,
inexplicit manner, important general aspects of the linguistic theory. Here we intend to show how
the study of the dative alternation allows us to identify: a) important conceptions of the relation
between syntax and lexical, and (b) the types of argumentation that can be used to distinguish
syntactic processes from the lexical processes, and lexical processes of different kinds among
themselves.
As regards the succession of the analyses of the dative alternation, we try to emphasize
the fact that there is a gradual evolution of the theory throughout the years. We begin our
discussion with the doctorate thesis of Richard Oehrle (1976). Oehrle takes as a starting point a
“purely transformational analysis of the dative alternation, as might be provided by the
“standard model” of the generative theory. From the perspective of such an analysis, the dative
alternation should be a very productive process: transformational processes affect constituents
without having access to their particular lexical-semantics properties. However, through a very
detailed analysis of the alternation, Oehrle was the first to show that this view is inadequate: the
dative alternation is a semi-productive process, subject to different constraints that seem to
operate on lexical subclasses of verbs; in particular, even items that are very similar in meaning
sometimes can, sometimes cannot, appear in the alternation.
The other approaches that will be analyzed in this dissertation are all attempts to identify
the right place where different aspects of the construction should be accounted for – either within
the lexicon, or within syntax, or in the relation between both.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: Classe de verbos associados à alternância .............................................................. 61
QUADRO 2: Associação de sentido das construções ............................................................... 72
SUMÁRIO
1. CAPÍTULO1 – INTRODUÇÃO ........................................................................................... 11
2. CAPÍTULO 2 - UM "CLÁSSICO":
A ALTERNÂNCIA DATIVA SEGUNDO OEHRLE ............................................................. 17
2.1. Introdução .................................................................................................................. 17
2.2. A teoria de Oehrle ...................................................................................................... 20
2.3 As classes de verbos segundo Oehrle ......................................................................... 25
2.4 A ‘terceira leitura’ de give .......................................................................................... 27
2.5 Tempo e modalidade na alternância dativa ................................................................ 31
2.6 O domínio das "regras" da alternância dativa ............................................................. 36
2.6.1 Verbos com for .................................................................................................. 37
2.6.2 Verbos com to.................................................................................................... 40
2.7 Conclusão ................................................................................................................... 44
3. CAPÍTULO 3 - A ALTERNÂNCIA DATIVA NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA
E A RELAÇÃO ENTRE SINTAXE E SEMÂNTICA LEXICAL ......................................... 48
3.1. Introdução................................................................................................................... 48
3.2 Desenvolvendo a análise lexical: Pinker et al (1989) ................................................. 48
3.2.1 O problema da aquisição da alternância dativa ................................................. 48
3.2.2 Os estudos realizados por Pinker et al (1989) ................................................... 51
3.2.3 Os resultados obtidos por Pinker et al (1989) ................................................... 53
3.2.4 A proposta de Pinker et al (1989) ..................................................................... 56
3.2.5 Principais Conclusões ....................................................................................... 63
3.3 Adele Goldberg e a "Análise Construcional" ............................................................ 64
3.3.1 Discutindo a abordagem de Pinker et al (1989) ................................................ 65
3.3.2 O quadro teórico proposto por Goldberg .......................................................... 67
3.3.3 A "semântica construcional" da estrutura bitransitiva ...................................... 70
3.3.4 Sobre a relação com as paráfrases preposicionais ............................................ 77
3.3.5 Principais Conclusões ....................................................................................... 78
3.4 Um outro modo de ver a relação sintaxe/morfologia: Groefsema (2001) .................. 80
3.4.1 Problemas para análises "cegas-às-cores-lexicais" ........................................... 81
3.4.2 A análise de Groefsema (2001) ......................................................................... 84
3.4.3 Principais Conclusões ....................................................................................... 87
3.5 Resumo do capítulo .................................................................................................... 89
4. CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO ............................................................................................ 90
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 96
11
CAPÍTULO 1:
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem a finalidade de resenhar e discutir alguns dos principais trabalhos da
literatura gerativista sobre a "alternância do dativo" a conhecida construção do inglês pela qual
certos objetos indiretos regidos por to ou for, como Mary em (1a) podem se tornar objetos
diretos, como em (1b):
(1) a) John bought a house for Mary
b) John bought Mary a house.
"John comprou uma casa para Maria"
Pretendemos identificar e sistematizar as principais restrições que, segundo a literatura,
atuam na construção, bem como as principais propostas de análise. Nosso intuito maior,
entretanto, não é nenhuma contribuição particular ao estudo desta construção do inglês ou mesmo
à teoria gramatical. O que queremos é apenas utilizar nossa discussão da literatura sobre a
alternância dativa para mostrar como a evolução do estudo de uma construção particular envolve,
muitas vezes de modo indireto e não explícito, aspectos importantes, mais gerais, da teoria
lingüística. No caso particular deste trabalho, procuraremos mostrar como o estudo da alternância
nos permite identificar, entre outras coisas: (a) concepções importantes da relação entre sintaxe e
léxico, bem como (b) os tipos de argumentação que podem ser utilizados para distinguir
processos sintáticos de processos lexicais, processos lexicais de vários tipos entre si, etc.
Como veremos, a discussão sobre a "alternância dativa" em inglês focou desde sua
primeira análise detalhada, a tese de doutorado de Richard Oehrle (1976) principalmente nos
fatores semânticos que interferem nesta construção. Tentou-se especialmente definir as classes
semânticas de verbos e predicados que permitem ou não a alternância. Por isso, a construção
tornou-se um tema de muita importância para diferentes teorias sobre a relação entre léxico e
sintaxe, especialmente quanto ao modo como a semântica lexical é refletida ou não pela
sintaxe.
12
Esta questão – isto é, a questão relativa ao modo como a semântica lexical é refletida pela
sintaxe está presente no estudo gerativo da sintaxe desde seu início. Isto é verdade
especialmente da idéia de que a sintaxe é o resultado parcial de certas informações de significado
lexical, como a semântica dos argumentos dos verbos ainda que estas informações recebam
algum tipo de "tradução" em informações lexicais sintáticas como a "subcategorização". Embora
o léxico não conste de modo muito claro em Syntactic Structures (CHOMSKY, 1957), obra que
iniciou a gramática gerativa, aparece como componente fundamental da gramática na primeira
grande síntese da gramática gerativa, isto é, em Aspects of the Theory of Syntax (CHOMSKY,
1965).
Em Aspects, surge pela primeira vez de modo explícito a idéia de que o significado,
especialmente aquele que é determinado por propriedades lexicais, é representado num nível
gramatical abstrato, chamado de estrutura profunda. Isto é, aqui surge a idéia de que a semântica
lexical é, parcialmente, a responsável pelos "níveis iniciais" da sintaxe. Em Aspects, a estrutura
profunda seria uma expressão das relações de constituência unindo núcleos e seus dependentes
(complementos e adjuntos) e seria gerada por regras sintagmáticas (que, mais tarde, vieram a ser
substituídas pela chamada "Teoria X-barra"). Esta "estrutura inicial" poderia, então, sofrer vários
tipos de modificação, em particular pelo deslocamento de constituintes, resultando num outro
nível de representação gramatical chamado de estrutura superficial, mais próxima do modo como
as sentenças são pronunciadas.
O exemplo mais conhecido de relação transformacional entre "estrutura profunda" em
que a "semântica lexical" é parcialmente expressa pela sintaxe – e "estrutura de superfície" é o da
voz passiva: a "estrutura profunda" em (2a) permitiria a identificação do "sujeito profundo", o
agente, e do "objeto profundo", ou paciente; e a "estrutura superficial" em (2b) seria a
responsável pelas "funções gramaticais de superfície":
(2) a) Eu despedi o Léo.
b) O Léo foi despedido (por mim). (CHIERCHIA,1990,p.154)
13
Usando termos contemporâneos, pode-se dizer que a idéia que está por trás desta análise é
a seguinte: é na estrutura profunda que residem as "relações gramaticais profundas", isto é, as
funções gramaticais de sujeito e objeto tais como determinadas pela semântica. Estas relações
estão em algum tipo de associação fixa com os papéis semânticos dos sintagmas nominais (SNs)
que ocorrem numa sentença isto é, papéis como agente, paciente, instrumento, etc., que são
determinados pela semântica lexical do verbo. Como, na estrutura profunda, existe algum tipo de
relação fixa entre "função gramatical profunda" (sujeito, objeto direto, etc.) e "papel semântico",
o resultado é que sentenças que compartilham os mesmos papéis semânticos para SNs possuem
"a mesma estrutura profunda", embora possam diferir quanto à estrutura superficial, precisamente
pela possível ocorrência de regras de transformação. Assim, sentenças passivas e ativas de um
mesmo verbo, por exemplo, possuem a "mesma estrutura profunda" porque são ambas expressão
da "mesma semântica lexical".
Esta é a concepção que tem acompanhado, mais ou menos, a evolução da teoria gerativa,
mesmo em suas versões mais recentes, e é ela que normalmente se ensina ao linista aprendiz
que estudo teoria gerativa; e é ela que encontramos em diferentes manuais consagrados, como
Radford (1988), Raposo (1992), Haegeman (1994) e Mioto et al. (200...).Como veremos, o
estudo da alternância dativa cedo colocou em questão qualquer versão mais simples desta idéia, e
a problematizou profundamente a partir do final da década de 1980.
Nesta dissertação de mestrado, fazemos uma revisão de alguns dos principais estudos
sobre a alternância do dativo do inglês, partindo da clássica tese de doutorado de Richard Oehrle
(1976), cujo objetivo maior foi investigar se as variantes da construção dativa remetem ao mesmo
significado ou não, e se apresentam ou não proposições com o mesmo valor de verdade. Veremos
que uma conclusão geral a que chegou Oehrle foi a de que a relação entre a semântica das
construções dativas é profundamente afetada pela semântica dos verbos, e que esta relação não é
nada simples contrariamente ao que poderia sugerir a "visão padrão" que acima mencionamos.
A partir de Oehrle , acompanhamos a evolução dos estudos sobre alternância dativa discutindo
especialmente os famosos artigos de Pinker et al (1989) e de Adele Goldberg (1992), todos
explorando, de modos diferentes, aspectos importantes da construção tal como foram
identificados por Oehrle especialmente, procurando explicar as muitas conexões descobertas
por ele entre a semântica lexical dos verbos e as estruturas dativas. Encerraremos nosso percurso
com a discussão de um artigo menos conhecido, mais importante na perspectiva que
14
gradualmente se apresentará nesta tese: como veremos, o que está em questão é o gradual
desaparecimento de fronteiras claras entre sintaxe e léxico, e o artigo final, de Groefsema (1992),
é especialmente radical quanto a isso.
No caso da alternância dativa, uma vista superficial dos fatos poderia sugerir que o quadro
geral da relação entre léxico e sintaxe, como o indicamos acima, poderia fazer sentido:
aparentemente, exemplos como (1) acima ou (2) abaixo sugerem que não há diferença de
significado entre uma ou outra estrutura das estruturas dativas do inglês:
(2) a) John gave a book to Mary.
b) John gave Mary a book.
"John deu um livro a/para Maria."
No entanto, como a literatura sobre estas construções logo observou, em outros casos tão
corriqueiros quanto (1) e (2) percebe-se claramente efeitos de interpretação acompanhando a
mudança da estrutura sintática. Os dois exemplos abaixo são apresentados por Green (1974) para
mostrar isso:
(4) a) I threw the ball to John.
I threw the ball to the other side of the field.
b) I threw John the ball.
*I threw the other side of the room the ball.
"Eu joguei a bola para John/o outro lado do campo."
(4) a) Teaching French to the students.
"Dar aulas de francês aos alunos"
b) Teaching the students French.
"Ensinar francês aos alunos"
Os exemplos em (3) são claros: a construção preposicional é compatível com uma
interpretação em que o objeto direto seja simplesmente uma meta locativa; a construção dativa,
por outro lado, exige um "recipiente", isto é, uma "meta" que não seja puramente locativa. Os
exemplos em (4) mostram uma diferença mais sutil que Oehrle estudará detalhadamente: a
15
construção dativa em (4a) não tem como inferência necessária o fato de os alunos terem
aprendido francês, mas a construção com objeto duplo em (4b) sim.
Estes e outros efeitos foram observados por Green (1974) e analisados com grande
profundidade por Oehrle, que expressou dúvida sobre alguns julgamentos e chegou a sugerir que,
de fato, em algumas sentenças a alternância não parece levar a condições de verdade
radicalmente distintas. Ainda assim, mostrou que, mesmo nestes casos, sempre efeitos sutis
que podem ser demonstrados.
Pinker (1989) concorda com Oehrle quanto à intuição de uma mudança semântica poderia
ser fraca em alguns casos. Observa especialmente que, embora haja mudança de significado, ela
não é do tipo que se esperaria na concepção corrente na década de 80 sobre as diferenças
semânticas relevantes à sintaxe: como mencionamos acima, estas diferenças seriam codificadas
em termos de "papéis semânticos" como agente, paciente, meta, beneficiário, etc. Porém, aponta
Pinker, quando dativização dos verbos isto é, quando se passa de uma construção de dativo
preposicionado para a construção com dois objetos, normalmente o troca de papéis
semânticos dos argumentos: afinal, num exemplo como em (4) acima, John é a meta e the ball o
tema nas duas estruturas.
Esta observação sugere que, quando se deixa de lado observações introdutórias, a
relação entre semântica lexical e sintaxe não pode ser tratada por uma "teoria do significado
lexical" tão redutora quanto a que está por trás da teoria dos papéis temáticos. (Ver também
Levin e Rapaport Hovav, 2007 para discussão deste ponto).
Esta discussão preliminar tem como intenção apenas indicar as questões que irão orientar
a discussão neste trabalho de mestrado. Aqui, partimos da observação fundamental de Green
(1974), depois investigada profundamente por Oehrle (1976), de que a alternância dativa do
inglês revela uma relação complexa entre sintaxe e semântica dos verbos. Existindo esta relação
de natureza empírica entre forma e significado em um certo tipo de enunciados, torna-se
altamente relevante investigar o que envolve a semântica destes enunciados, exatamente porque
isso pode revelar como se dão as interações entre forma sintática e os aspectos estruturais do
significado. Este é o tema deste nosso trabalho: procurar compreender, pelo estudo das análises
da alternância dativa, como os fatos desta construção podem elucidar a relação entre sintaxe e
léxico – ou, mais especificamente, semântica lexical.
16
No próximo capítulo, fazemos uma leitura sistemática da tese clássica de Oehrle, tentando
apreender, do conjunto de sua obra, aqueles aspectos que serão fundamentais para artigos
importantes na literatura a partir dos anos 80. No capítulo 3, dedicamo-nos à discussão do que
chamamos "literatura contemporânea" nesta dissertação representada especialmente pelos
artigos de Pinker et al (1989), Goldberg (1992) e Groefsema (2001). Como ficará claro pela
discussão especialmente de Groefsema (2001) (ver também Levin e Rapaport Hovav, 2007),
estamos justificados a ver nesta literatura as principais questões contemporâneas relativas ao
papel da semântica lexical na alternância dativa: a discussão gira em torno das descobertas
principais de Oehrle, tal como posteriormente discutidas por abordagens como a de Pinker et al
(1989) e de Goldberg.
No capítulo 4, encerramos este trabalho com uma ntese geral dos principais pontos
relativos à relação entre sintaxe e semântica lexical, e de nossa apreciação pessoal do debate
procuramos indicar as razões pelas quais acreditamos que a visão de Goldberg nos parece a mais
interessante.
CAPÍTULO 2:
UM "CLÁSSICO": A ALTERNÂNCIA DATIVA SEGUNDO OEHRLE
2.1 Introdução
Um dos trabalhos mais importantes sobre a alternância dativa, tendo contribuído
decisivamente para a descoberta dos principais fatos relativos a este fenômeno, é a tese de
doutorado de Oehrle , escrita em 1976. O principal objetivo de Oehrle era investigar se
realmente havia uma "regra de transformação" derivando, em inglês, estruturas da forma em (1a)
a partir das estruturas "mais básicas" em (1b):
(1) a. NP
i
– V – NP
j
– NP
k
b. NP
i
– V – NP
k
– P – NP
j
, em que P = to ou for.
A estrutura em (1a) é chamada de "construção (dativa) de objeto duplo", e a estrutura em
(1b), de "construção (dativa) preposicional". A alternância entre ambas é exemplificada por pares
de sentenças como as seguintes:
(2) a. John gave a book to Mary.
“John deu um livro para a Mary.”
b. John gave Mary a book.
“John deu a Mary um livro.”
(3) a. John bought a car for Mary.
“John comprou um carro para a Mary.”
b. John bought Mary a car.
“John comprou para Mary um carro.”
18
O ponto de vista do estudo de Oehrle, como o próprio trabalho enfatiza reiteradamente,
deve-se ao fato de que, até a metade da década de 70, haver uma tendência predominante, dentro
da gramática gerativa, para lidar com pares de sentenças relacionadas semanticamente através de
uma análise transformacional. A razão disso era histórica. O modelo padrão não dispunha de uma
visão articulada do léxico, e pensava-se que o "significado estrutural" da frase era resultado das
regras sintagmáticas, responsáveis pela "estrutura profunda" da frase. O resultado disso é que
similaridades de significado entre frases baseadas no mesmo "lexema cleo" (por exemplo, a
similaridade entre a ativa e a passiva de um mesmo verbo) eram representadas por meio de uma
"mesma estrutura profunda". As "transformações" eram, então, as regras que modificavam esta
estrutura profunda, criando estruturas de superfície diferentes, mas com significados similares.
Ao final da década de 60, entretanto, Chomsky e seus orientandos, especialmente
Jackendoff, perceberam que havia problemas com a visão do modelo padrão. Entre estes
problemas, como Chomsky (1970) mostrou, estava o de conceber regras de derivação lexical
(como a nominalização) como sendo "processos sintáticos produtivos" do mesmo tipo que regras
de estrutura sintagmática ou transformações. Estas últimas regras normalmente não faziam
menção a "exceções lexicais" (por exemplo, não verbo que não possa ser o núcleo de um
sintagma verbal; e não constituinte que, sendo dominado pela oração ou pelo sintagma verbal,
não possa ser interrogado, isto é, transformado em um sintagma WH). Mas processos de
derivação, embora sejam "regras" e se apliquem a vários itens lexicais, são também cheios de
exceções e não completamente produtivos.
Por exemplo, nominalizações com –ção em português podem surgir de verbos
intransitivos (malhar
malhação), verbos transitivos (destruir
destruição), bitransitivos (doar
doação), etc. Mas exceções: surgir não deriva *surgição; criticar não deriva *criticação;
dar não deriva *dação. Para lidar com este tipo de regra, semi-produtiva, Chomsky (1970)
introduziu a idéia de que existiam "regras de redundância lexical" – regras que operavam
associando entradas lexicais e sendo sujeitas a exceções. Assim, o "componente lexical" da
gramática deixou de ser um mero depósito de palavras e passou a ser visto como um sistema mais
articulado.
Assim, na metade da década de 70, a gramática gerativa dispunha de dois mecanismos
para descrever relações de sentido entre frases como as da alternância ativa/passiva e as da
19
alternância dativa: regras transformacionais ou regras lexicais. Oehrle analisa as duas hipóteses.
Na da hipótese transformacional, as sentenças (2a) e (2b) acima têm em comum uma estrutura
profunda, assim como as sentenças em (3a) e (3b); e as sentenças (b) destes pares são derivadas
por transformação das sentenças (a). Na segunda hipótese, todas as quatro sentenças acima têm
estruturas profundas distintas. Os verbos give e buy possuem ambos dois frames de
subcategorização distintos, correspondentes as estruturas em (1a) e (1b). Estes frames são
relacionados entre si e por isso as duas construções compartilham muitos, mas não todos, os
seus elementos de significado – por uma "regra de redundância lexical".
1
Formuladas as duas possibilidades, Oehrle levanta duas questões centrais: a) qual seria o
modo apropriado de explicar a relação entre pares de sentenças como as da alternância dativa? b)
princípios gerais que nos capacitam a decidir qual o modo mais adequado de explicar um
fenômeno como a alternância dativa numa gramática se por meio de uma regra
transformacional, ou se por meio de uma regra de redundância? Se tais princípios, eles devem
ser descobertos – pois, Oehrle reconhece, Chomsky tem razão ao dizer que:
In general, it is to be expected that enrichment of one component of the grammar will
permit simplification in other parts. Thus certain descriptive problems can be handled
by enriching the lexicon and simplifying the categorical component of the base, or
conversely; or by simplifying the base at the cost of greater complexity of
transformations, or conversely. The proper balance between various components of the
grammar is entirely an empirical issue. We have no a priori insight into the “trading
1
Como dissemos, as "regras de redundância lexical" são regras do léxico: elas usam algum tipo de informação de
uma entrada lexical e dão como resultado algum outro tipo de informação lexical (para a primeira versão detalhada
das regras de redundância, ver Jackendoff, 1975). Por exemplo, poderíamos dizer que, no dicionário do inglês, existe
a seguinte regra de redundância:
Regra de Redundância - Alternância Dativa (RR-DA):
X, [+V, -N], ... , +[__ NP
1
to NP
2
]
X, [+V, -N], ... , +[__ NP
2
NP
1
]
A regra diz: se um item lexical X que é verbo (i.e, [+V, -N]) e possui o traço de subcategorização +[ __ NP
1
to
NP
2
], então X também possui o traço +[__ NP
2
NP
1
]. Esse tratamento parece ser quase como se fosse um tratamento
transformacional; a diferença é que é uma regra do léxico; pode-se, portanto, anotar cada entrada lexical que sofre ou
não a regra. Como anotamos isso é uma questão de produtividade: se a regra é muito produtiva, e as “exceçõessão
em menor número que os casos a que a regra se aplica, então anotamos as exceções. Digamos que esse fosse o caso
da Alternância Dativa. Então, a regra acima vai se aplicar a todo verbo que possui o traço +[__ NP to NP]; e os
verbos que não sofrem a regra são marcados com o traço –[RR-DA]. Com isso, não é preciso repetir na entrada
lexical dos verbos a propriedade redundante +[__ NP
2
NP
1
]; somente as exceções são marcadas.
20
relation” between the various parts. There are no general considerations that settle this
matter (1972, p.13).
2
Como veremos, Oehrle fornece uma variedade de considerações que tendem a relevar
diferenças de significado entre as duas construções dativas portanto, dentro da perspectiva
teórica que se colocava na década de 70, considerações que favorecem a postulação de regras de
redundância lexical para dar conta das alternâncias dativas. Em sua tese, estas considerações
aparecem em três etapas:
(1°) começam com a discussão das propriedades semânticas das construções dativas, em
que Oehrle busca isolar e caracterizar as propriedades semânticas dos verbos que nelas ocorrem;
(2°) seguem com a discussão das predições sintáticas que resultariam de uma
“transformação do dativo” (isto é, de uma regra transformacional que derivasse a estrutura de
duplo objeto a partir das estruturas preposicionais com for e to);
(3°) finalmente, Oehrle avalia as duas hipóteses antes mencionadas: a da análise
transformacional e a da análise baseada em regra de redundância lexical.
O trabalho de Oehrle praticamente encerrou a idéia de que a alternância dativa poderia
ser uma regra transformacional produtiva, razão pela qual boa parte da literatura posterior
dedicou-se a explicar a natureza das restrições lexicais descobertas por Oehrle. Por isso, esta
dissertação deter-se-á basicamente na primeira etapa da tese de Oehrle: nosso foco no presente
capítulo será o de identificar as principais observações de Oehrle acerca das propriedades dos
verbos que participam da alternância dativa em inglês.
2.2 O método de Oehrle: as condições de verdade de give
O método adotado por Oehrle é o d’ “a postulação de condições de verdade, cuja
satisfação é essencial para a verdade da sentença à qual são atribuídas” (1976, p.15).
2
“Em geral, espera-se que o enriquecimento de um componente gramatical permitirá a simplificação das outras
partes [da gramática]. Assim, certos problemas descritivos podem ser tratados por meio do enriquecimento do léxico
e da simplificação do componente categorial de base, ou inversamente; ou, ainda, por meio da simplificação da base
ao custo de uma maior complexidade das transformações, ou inversamente, de novo. O equilíbrio apropriado entre os
vários componentes da gramática é essencialmente uma questão empírica. Não temos qualquer insight apriorístico
sobre qual deve ser a relação apropriada entre as várias partes [da gramática]. Não considerações gerais que
possam resolver esta questão...”
21
Segundo Oehrle, este método se baseia na idéia de que, “entre nossas habilidades
lingüísticas fundamentais, está a de reconhecer a verdade ou a falsidade de uma sentença numa
dada situação”, capacidade que fornece “o solo fundamental para a semântica”(Oehrle,p.15). Por
exemplo, pode-se utilizá-la para estabelecer uma condição mínima para a sinonímia: se duas
sentenças A e B são sinônimas, então elas devem ter o mesmo valor de verdade. Assim, é
possível demonstrar que duas sentenças que parecem sinônimas não o são na verdade, pois não
possuem o mesmo valor de verdade.(Oehrle,p.16)
Método semelhante pode ser utilizado para identificar os elementos que compõem o
“significado” particular de palavras e expressões: os elementos componentes do “significado” de
um verbo, por exemplo, serão aquelas condições de verdade encontradas nas frases em que o
verbo ocorre e que se pode demonstrar serem independentes das demais expressões que ocorrem
na frase.
Vejamos agora como Oehrle se utiliza deste método para estudar a alternância dativa do
inglês, iniciando por sua análise do verbo give, que, segundo o autor, é o caso prototípico da
construção: give apresenta muitas das propriedades semânticas encontradas nos outros verbos da
alternância. Oehrle começa por observar que as frases em que give ocorre podem apresentar
ambigüidade múltipla, como no seguinte exemplo:
(1) Nixon gave Mailer a book
“Nixon deu um livro para Mailer”
Temos na sentença do inglês, segundo o autor, três interpretações ou leituras:
1
a
. - de transferência de “propriedade”: o livro pertencia a Nixon e passou a pertencer a
Mailer;
2
a
. - de transferência de “custódia”: o livro apenas estava com Nixon, que o passou a
Mailer;
3
a
. - nenhuma “transferência de posse” envolvida: Nixon fez alguma coisa que serviu de
motivo para o livro escrito por Mailer.
22
Em termos de “condições de verdade”, Oehrle diz que a primeira leitura parece exigir,
para que a frase seja verdadeira, que as seguintes condições se apliquem:
a. Imediatamente antes do momento de referência (o momento em que o fato ou evento
descrito pela frase ocorre), Nixon possuía um certo livro;
b. No momento de referência, Nixon age de uma maneira tal que o resultado é a
transferência de propriedade do livro para Mailer, isto é, a partir do momento de referência é
Mailer quem possui o livro.
Utilizando-se de uma notação lógica, Oehrle formaliza estas condições de verdade do
seguinte modo (em (3), 1976, p.20):
(2) Sendo t
0
= o momento de referência, n = Nixon e m = Mailer,
a. antes de t
0
, O(n,b) – em que “O(x,y)” significa “x possui y”;
b. em t
0
, A(n) em que “A(x)” significa “x executa uma ação intencional dentro de
um conjunto de convenções sociais”;
c. em t
0
, M(A(n), O(m,b)) em que “M(X,Y)” significa “o evento X faz com que o
evento Y se realize”, ou ainda “X causa Y”.
Na segunda leitura da frase (1), o livro muda de mão sem a relação de propriedade ser
afetada. Segundo ele, os exemplos abaixo são ocorrências em que apenas esta segunda leitura é
possível:
(3) I gave John my bicycle for the afternoon.
“Eu dei minha bicicleta para o João por uma tarde”
(4) I gave John my telephone number.
“Eu dei o número do meu telefone para o João”
De acordo com Oehrle, a segunda leitura de (1) e as interpretações de (3) e (4) –
poderiam ser caracterizadas basicamente com as mesmas condições expressas em (2) acima,
23
salvo pela “relação de posse” envolvida. No caso da primeira leitura de (1), a relação é de “posse
permanente”, ou “propriedade”, expressa pelo predicado O(x,y) em (2a). No caso da segunda
leitura, e das interpretações de (3) e (4), trata-se de uma relação de “posse temporária”, ou
“custódia”, nos termos de Oehrle. Para expressar esta diferença, portanto, é necessário substituir
o predicado “O(x,y)” em (2a) por um outro predicado, correspondente a x tem a custódia de y” –
por exemplo, “C(x,y)”.
Mas o que é importante para Oehrle é que este método de caracterização da semântica de
give permite ver o que há de comum entre as duas primeiras leituras da frase (1): ambas
dependem das condições descritas em (2), salvo que a relação expressa em (2a) deve ser
generalizada para expressar alguma “relação de posse”, como em (5) abaixo:
(5) Condições de verdade das duas primeiras leituras de give:
Sendo t
0
= o momento de referência, n = Nixon e m = Mailer,
a. antes de t
0
, R(n,b) em que “R(x,y)” é alguma relação de posse (por exemplo,
“O(x,y)” ou “C(x,y)”);
b. em t
0
, A(n) em que “A(x)” significa “x executa uma ação intencional dentro de
um conjunto de convenções sociais”;
c. em t
0
, M(A(n), R(m,b)) – em que “M(X,Y)” significa “o evento X faz com que o
evento Y se realize”, ou ainda “X causa Y”.
Finalmente, chegamos à análise de Oehrle para terceira leitura da sentença (1). Nesta leitura,
a sentença é compatível com uma situação na qual Mailer escreveu um livro que ele não teria
sido capaz de escrever se não fosse por Nixon, ou seja, Nixon, ou algo que ele fez, deu a idéia do
livro a Mailer. Esta leitura é, na verdade, um caso particular de um conjunto de interpretações em
que uma variação considerável na relação que se estabelece entre o objeto indireto e objeto
direto de give na construção com objeto duplo. Assim, enquanto na terceira leitura de (1) a
relação entre Mailer e o livro é algo como “x é autor de y” ou “x escreveu y”, na frase abaixo a
relação seria algo como “x é editor de y” ou “x publicou y” (exemplo (17) de Oehrle , 1976,
p.28):
24
(6) A series of accidental circumstances gave Knopf & Co. ‘The Magic Mountain’
“Uma série de circunstâncias acidentais deram à (editora) Knopf & Co. (os
direitos à publicação de) ‘A Montanha Mágica’.”
Assim, pode-se dizer que, nestas leituras, a relação específica entre os objetos direto e
indireto de give não apenas não é uma “relação de posse” comum, como também parece depender
de nosso conhecimento de mundo. Além disso, Oehrle também observa uma outra propriedade
semântica mais importante para a alternância dativa: nas duas primeiras leituras de give uma
relação mais ou menos específica de "posse” (“propriedade” ou “custódia”) entre o sujeito e o
objeto que é “transferida” para o objeto indireto; mas nada disso acontece na terceira leitura de
(1), ou em (6). Segundo Oehrle, nestas últimas não há, na verdade, relação entre o sujeito e o
objeto direto, mas simplesmente uma relação do tipo causal entre o sujeito e a relação que se
estabelece entre o objeto indireto e objeto direto. Assim, Oehrle propõe que as condições de
verdade da terceira leitura de (1) se limitem ao seguinte (cf. (12), 1976, p.26):
(7) Condições de verdade da “terceira leitura” de give:
Sendo t
0
= o momento de referência, n = Nixon e m = Mailer,
em t0, S(n, R(m,b)) em que “R(x,y)” expressa uma relação abstrata de “posse”
que inclui “O (x,y)”, “C(x,y)”, mas também “x é autor de y” e “x é editor de y”; e
“S(x,Y)” “x causa, de algum modo, Y”.
Comparando-se (5) com (7), conclui-se que o que de comum entre as três leituras de
give é que, em todas, o sujeito de algum modo “causa” uma “relação de posse” (suficientemente
abstrata) entre o objeto indireto e o objeto direto. E o que de comum entre as duas primeiras
leituras, por oposição à terceira, é de que nas primeiras também uma “transferência” da
posse do objeto direto: de “possuído” pelo sujeito, ele passa a “possuído” pelo objeto indireto.
Esta “transferência” não é encontrada na terceira leitura de give.
Feita esta análise, Oehrle faz uma nova observação fundamental: via de regra, a
construção de dativo preposicionado não se aplica na terceira leitura; ou seja, a terceira leitura
é possível de modo regular com a construção de objeto duplo. Portanto, tem-se o seguinte
25
contraste entre a construção dativa com preposição e a construção dativa de objeto duplo
(exemplo (8b) criado a partir da descrição de Oehrle, 1976):
(8) a. Nixon gave Mailer a book
Leituras: - 1a. leitura, de transferência de propriedade = ok.
- 2a. leitura, de transferência de custódia = ok
- 3a. leitura, de “causação abstrata” = ok
b. Nixon gave a book to Mailer
Leituras: - 1a. leitura, de transferência de propriedade = ok.
- 2a. leitura, de transferência de custódia = ok
- 3a. leitura, de “causação abstrata” = impossível
A descoberta deste contraste mostra que o método utilizado por Oehrle a descrição das
condições de verdade oferece um recurso importante para compreender as relações de sentido
das sentenças, incluindo as relações envolvidas na alternância dativa. No que diz respeito a estas
últimas, indica que é importante entender as circunstâncias em que a terceira leitura se torna
possível, pois é ela que revela uma restrição nas possibilidades de alternância. Assim, Oehrle
passa a estudar a terceira leitura de modo mais detido.
2.3 Sobre a noção de “posse” envolvida na alternância dativa
Percebendo que muitos dos verbos que participam das construções dativas estão
relacionados à idéia de “posse”, Oehrle procura entender, então, qual o elemento lexical comum a
estes “verbos possessivos” (do inglês possessional verbs). O problema é que a análise mostra
que conceitos distintos de posse são necessários. Em inglês, os “verbos possessivos” podem
apresentar, entre outras, as seguintes distinções: posse alienável vs. posse não-alienável; posse
temporária vs. posse não-temporária. Destas, a discussão de Oehrle parece indicar que apenas a
primeira é pertinente para a alternância dativa.
Uma relação de posse não-alienável é aquela que não possui a propriedade da
transferência, como por exemplo em John has a headache”, e uma relação de posse alienável é
26
aquela que possui a propriedade da transferência, como por exemplo em “John has a car”. Como
os exemplos mostram, o verbo have pode expressar tanto uma relação de posse alienável quanto
uma relação de posse não-alienável. O verbo own, por outro lado, expressa relações de posse
alienável, seja de objetos abstratos, por exemplo em The Random House owns the rights of The
Magic Mountain’”, seja de objetos concretos, como em John owns a beautiful mansion by the
sea”.
A distinção entre verbos que expressam posse alienável e posse não-alienável é
importante para a alternância dativa porque, como vimos antes, a existência de um processo
“transferência” é um elemento central da alternância: no caso de give, a construção com dativo
preposicionado é possível quando “transferência de posse” (nas duas primeiras leituras);
quando não “transferência”, tem-se somente a construção de objeto duplo (na terceira leitura).
É claro que, para haver transferência, é preciso não apenas que haja uma “relação de posse”, mas
também que a posse seja “alienável”.
Nesta perspectiva, os verbos ou usos em que a relação de posse entre objeto indireto e
direto é não-alienável poderão ocorrer na construção de objeto duplo. O exemplo (1) abaixo
mostra que, quando a posse é alienável, as duas construções são possíveis; os exemplos em (2)
e (3) atestam a restrição no caso de posse não-alienável:
(1) a. Mina gave a book to Mel.
“Mina deu um livro para Mel.”
b. Mina gave Mel a book.
“Mina deu a Mel um livro”.
(2) The movie gave me the creeps. (OEHRLE, 1976, p.66)
*The movie gave the creeps to me.
“O filme me deu arrepios”.
(3) He gave me a terrible insomnia.
*He gave a terrible insomnia to me.
“Ele me deu uma insônia terrível”.
27
Os exemplos (2) e (3) não envolvem movimento em direção a um alvo: giving someone
the creeps significa fazer com que alguém tenha sentimentos de medo e repulsa; significado
semelhante vale para giving someone a terrible insomnia. Assim, nestes exemplos, nem the
creepsnem a terrible insomniasão transferidos para um alvo/recipiente. Na verdade, o que
ocorre é o contrário, eles provocam uma mudança de estado no possuidor.
2.4 A ‘terceira leitura’ de give
Observou-se que sempre que a terceira leitura prevalecia, o objeto direto não era uma
expressão referente comum (isto é, uma expressão que denota um objeto concreto, como um
livro, um apartamento, etc.); ao contrário, denotava algo mais abstrato, como uma idéia, por
exemplo. Isso vale para a “terceira leitura” de give:
(1) Nixon gave Mailer a book.
“Nixon deu um livro a Mailer.”
Em (1), não há, na verdade, transferência do objeto “livro” para Mailer, e sim Nixon faz
algo que “causa” em Mailer a idéia a partir da qual ele escreve o livro.
Sendo essa leitura, segundo Oehrle, puramente “causativa”, não se tem o papel de agente
para o sujeito de give. Assim, o autor observa que esta leitura, na verdade, impõe menos
restrições selecionais ao sujeito de give, que poderia ser inanimado, como em “O incidente deu
um livro a Mailer”, ou ainda em:
(2) Interviewing Nixon gave Mailer a book.
“A entrevista com Nixon deu a Mailer um livro.”
Esta diferença crucial entre a terceira leitura e as outras duas parece se correlacionar com
uma outra diferença, aquela relativa à “ausência de transferência” na terceira leitura: não
“transferência” justamente porque não nenhuma “relação de posse” entre o sujeito e objeto
direto antes de
t
0.
No caso das primeiras duas leituras, temos uma relação de posse pré-
estabelecida, o que conduz naturalmente a uma limitação do sujeito: o sujeito tem que ser “algo
28
que possa possuir”, isto é, precisa ter os traços “animado” e “referencial”. Assim, verbos com os
quais não há “transferência de posse” são também verbos em que não há relação pré-estabelecida
entre o sujeito e o objeto direto conseqüentemente, o conjunto de restrições selecionais sobre o
sujeito é menor, e este pode ser, então, animado ou inanimado.
A discussão desta terceira leitura de give permite a Oehrle identificar uma outra fonte de
informação semântica pertinente à alternância dativa: a semântica do objeto direto. Assim,
segundo ele, investigando a variação selecional do objeto direto pode-se descobrir um modo mais
preciso de caracterizar as relações envolvidas na terceira leitura, isto é, nos casos em que não
existe uma relação de posse entre sujeito e objeto, e sim em que se estabelece um outro tipo de
relação. Dentro desta caracterização geral, Oehrle identifica três casos particulares:
(i) O caso dos predicational nouns, ou nomes predicacionais: Quando a ação da frase
não é expressa pelo verbo, mas pelo substantivo núcleo do objeto direto. Nestes casos, a relação
que objeto direto tem com o sujeito não é de posse, mas é antes uma outra relação segundo
Oehrle , provavelmente uma relação temática, como no seguinte exemplo:
(3) John gave the table a kick.
*John gave a kick to the table
“John deu um chute na mesa.”
Como podemos ver, o substantivo kick “chute” é que denota, na verdade, a ação descrita
pela frase, isto é, a ação de chutar, cujo sujeito é John. Assim, a relação que existe entre o sujeito
e o objeto direto de give é a relação temática de agente, ou seja, John é agente de do substantivo
kick. Como Oehrle observa, uma frase como (3) não denota uma “transferência de agentividade”;
antes, o segundo objeto, the table, mantém com o substantivo kick uma outra relação temática – é
o paciente da ação de chutar. Confirma-se a observação de Oehrle : como não “transferência
de posse” em (3), a frase não pode ser expressa pela construção de dativo preposicionado. Outros
exemplos que Oehrle analisa do mesmo modo são os seguintes:
(4) Gibson gave the rope a pull.
Gibson deu um puxão na corda.”
29
(5) The doctor gave Jack a shot.
“O doutor deu uma injeção em Jack”
Em relação à última frase, Oehrle,p.64 observa que não corresponde a “The doctor shot
Jack”; antes, (5) é parafraseável com a seguinte frase:
(6) The doctor gave Jack an injection
“O doutor deu uma injeção em Jack”.
Assim, embora o substantivo shot em (5) não corresponda à ação descrita pelo verbo to
shoot, ainda assim pode ser analisado como denotando uma ação, de “injetar medicação em
alguém”. Como em (3) e (4), o sujeito de (5) é o agente da ação, e o objeto indireto o paciente;
logo, não “transferência de posse” e a frase não pode ser expressa pela construção de dativo
preposicionado.
Oehrle observa que no caso dos substantivos predicacionais, existe um matching
principle, ou “princípio de associação” regular (1976,p.48), que controla a relação entre os
argumentos do substantivo predicacional e os argumentos do verbo. Retomando o exemplo citado
acima: John gave the table a kick. Nota-se que o agente do substantivo kick ao sujeito do verbo
give; e o sujeito de give, em outros usos deste verbo, é o agente (por exemplo, em John gave a
book to Mary). Portanto, um "matching" dos agentes do nome predicacional e do verbo give.
Oehrle sugere que isso pode ilustrar um princípio geral: a strong claim here would be that these
relational expressions are constrained in their distributions by principles of control, similar to
those that apply to headless gerunds" (1976, p.56).
3
(ii) nomes relacionais: Um “nome relacional” é um substantivo que denota um ser, um
objeto, etc., mas que é em si incompleto e que só pode ser definido por sua relação com outros
seres ou coisas. São exemplos de nomes relacionais mãe, filho, chefe, amigo, etc. Estes
3
“uma hipótese forte aqui seria a de que estas expressões relacionais são restringidas em sua distribuição por
princípios de controle semelhantes àqueles que se aplicam aos gerúndios sem núcleo.”
30
substantivos, denotando eles mesmos uma “relação”, não podem ser “possuídos” no sentido que
outros substantivos concretos são possuídos. Assim, a frase “Aquela pessoa é a mãe de Maria”
não expressa uma “relação de posse” entre Maria e aquela pessoa diferentemente de “Aquela
mansão é a casa da Maria”.
O exemplo que Oehrle discute com relação aos nomes relacionais é o seguinte:
(7) The concert tour gave Stravinsky a new patron.
“O concerto deu a Stravinsky um novo patrocinador.”
Embora se possa dizer tanto The concert tour has a patronquanto Stravinsky has a
patron o que sugeriria uma “relação de posse” , a frase em (7) não expressa uma
“transferência de posse”, e sim uma relação causativa entre o concerto e o fato de ter surgido um
novo patrocinador para Stravinsky. Para Oehrle , patron patrocinador” é um nome relacional
como amigo ou chefe portanto, não denota uma “pessoa possuída por” Stravinsky, mas antes
denota uma “relação” entre uma pessoa e Stravinsky. Do mesmo modo, dada a análise sugerida
por Oehrle , espera-se que frases como (8) e (9) abaixo também possam ter uma leitura
causativa, e não de “transferência de posse”:
(8) Mary gave Bill a new friend.
*Mary gave a new friend to Bill
“Mary deu a Bill um novo amigo.”
(9) The company gave Bill a new boss.
*The company gave a new boss to Bill
“A companhia deu a Bill um novo chefe.”
Ainda de acordo com Oehrle , nenhuma das frases em (7), (8) e (9) poderia ser expressa
pela construção de dativo preposicionado, exatamente pelo fato do objeto direto ser um nome
relacional, incapacitando assim o sujeito/agente da propriedade de poder transferir algo. Nesse
caso, não havendo “transferência de posse”, não é possível ter a sentença na forma dativa
preposicional.
31
(iii) posse inalienável: Finalmente, o terceiro caso em que a semântica do substantivo
núcleo do objeto direto impede a “transferência de posse” havia sido discutido por Oehrle ,
qual seja, os casos de “posse não-alienável”. Estes incluem vários tipos de substantivos: os que
denotam representações mentais, como idéias, desejos, sentimentos, etc., mas também partes do
corpo, por exemplo. Daí por que, por exemplo, uma frase como (10) abaixo tenha,
necessariamente, que ser interpretada como (11) isto é, com leitura causativa, e não de
“transferência de posse”:
(10) Dr. Jones gave Max an ugly appearance.
“Dr. Jones deu ao Max uma aparência horrível”
(11) The operation gave Max an ugly appearance.
“A operação deu ao Max uma aparência horrível.”
É claro que an ugly appearanceé uma expressão com uma interpretação inalienável:
uma operação não pode transferir a “posse” de uma aparência, e o que há novamente é uma
relação de causa entre a operação e a aparência de Max. E, do mesmo modo, o que em (10) é
uma relação de causa entre algo que o Dr. Jones fez por exemplo, a operação que ele conduziu
em Max – e a aparência de Max. Nenhuma das duas frases poderia ser expressa com a construção
de dativo preposicionado.
Assim, Oehrle mostra claramente, com estes exemplos, que, para haver “transferência de
posse” no sentido pertinente, é necessário que o sujeito possa “ter posse” do objeto direto.
Qualquer outro tipo de relação semântica entre o sujeito e o objeto direto de um verbo
bitransitivo do inglês impedirá a “transferência de posse”. Por isso, na terceira leitura de give, a
construção de dativo preposicionado não se aplica.
2.5 Tempo e modalidade na alternância dativa
32
O último aspecto semântico da construção com duplo-objeto analisado por Oehrle é a
importância de noções relativas a tempo e modalidade. Segundo Oehrle, estas noções são
importantes porque permitem identificar as propriedades semânticas envolvidas nos casos de
dativos com for em inglês.
Oehrle discute várias construções e vários tipos de verbos a fim de mostrar o conjunto de
noções temporais e modais relevantes. Ilustraremos isso com alguns casos apenas. Começaremos
pela discussão sobre a importância das noções temporais. Em nossa síntese do trabalho de Oehrle
até aqui, vimos exemplos em que os verbos dativos denotam processos pelos quais o sujeito do
verbo "causa uma relação de posse" entre o objeto indireto (o "possuidor" ou "recipiente") e o
objeto direto (o "possuído" ou "tema"). Do ponto de vista temporal, esta "relação de posse" é
estabelecida no mesmo momento t
0
em que o sujeito faz algo para causá-la; e pode ou não
perdurar por algum intervalo de tempo a partir de t
0
. Os exemplos abaixo mostram isso:
(1) a. John gave Max a used copy of Aspects.
“John deu a Max uma cópia usada de Aspects.”
b. John gave Max a kick.
“O João deu um chute no Max.”
Em (1a), a relação de posse de Max com o livro se estabelece no momento t
0
em que John
lhe o livro, e se estende para o futuro (por um intervalo de tempo que permanece
indeterminado até que a relação de posse seja desfeita). Em (1b) John faz uma ação em t
0
(chutar)
e o resultado é uma relação entre Max e esta ação Max é o paciente do chute; mas esta relação
perdura apenas por t
0
(embora seus efeitos possam se estender no tempo). Esquematicamente,
temos as seguintes relações temporais:
(2) a. em (1a): ........................t
0
............................> linha do tempo
|
ação de John
|
R(max,book)..................>
33
b. em (1b): ........................t
0
............................> linha do tempo
|
ação de John
|
R(max,kick)
Mas outras relações temporais entre a ação do sujeito e a relação entre objeto direto e
objeto indireto são possíveis. Oehrle menciona o verbo forgive "perdoar" como exemplo em que
a relação entre objeto direto e indireto (de "responsabilidade") é anterior à ação de perdoar e
perdura até ela; a partir do perdão, a relação deixa de existir:
(3) a. God will forgive my sins.
“Deus perdoará meus pecados.”
b. God will forgive me Harry´s sins.
“Deus me perdoará pelos pecados de Harry.”
Esquematicamente, temos a seguinte representação para (3a):
(4) ........t'...................................t
0
............................> linha do tempo
| |
| ação de Deus
| |
R(eu,pecado)............> –R(eu,pecado)
Finalmente, Oehrle observa que a relação temporal entre a ação do sujeito e a relação
entre objeto direto e indireto pode ser "orientada para o futuro". Neste caso, entretanto, intervêm
noções de "modalidade" relativas às intenções do sujeito, a possibilidade ou necessidade da
relação entre objeto direto e indireto, etc. Para ilustrar isso, vejamos o caso de offer:
(5) a. John offered a cigarette to Max
34
“John ofereceu um cigarro para Max.”
b. John offered Max a cigarette.
“John ofereceu a Max um cigarro.”
O problema aqui, segundo o autor não está na relação entre o objeto indireto e o objeto
direto (isto é, na relação de "posse ou uso" entre Max e o cigarro), mas sim em como expressar a
modalidade de offer: oferecer um cigarro a alguém o implica que esta pessoa virá a ter o
cigarro no futuro; antes, esta é apenas a intenção de quem oferece. Assim, Oehrle propõe que
offer possui algo como (6) em suas condições de verdade:
(6) Condições de verdade de "NP
i
offer NP
j
NP
k
":
i) em t
0
, àR(NP
j
, NP
k
) em um t' posterior a t
0
,
em que "àP" significa "É possível que P";
ii) em t
0
, M(NP
i
, [àR(NP
j
, NP
k
) em um t' posterior a t
0
]),
em que "M(x, Y)" significa "x (faz algo que) causa Y".
Ou seja: quando uma pessoa X oferece algo Y a alguém Z, o que X faz é causar a
possibilidade de que Z venha a ter ou usar Y no futuro; mas não que Z necessariamente tenha ou
use Y no futuro. Um caso que envolveria necessidade futura, segundo Oehrle , seria o de promise
"prometer": nesse caso, a condição (6ii) seria algo como "NP
i
se compromete que
necessariamente R(NP
j
, NP
k
) em um t' posterior a t
0
". Com base em (6), pode-se esquematizar as
relações de tempo e modalidade das frases em (5) como segue:
(7) ...........t
0
..............................................t'...................> linha do tempo
| |
ação de John----------causa-----------> |
R(Max,cigarrete)
De acordo com Oehrle , o conjunto de relações temporais e de modalidade "orientadas
para o futuro" que acabamos de apresentar ajudam a entender os verbos dativos com a preposição
for e, especialmente, o significado da construção com duplo objeto com estes verbos. Segundo
Oehrle, duas observações são importantes: (a) com dativos com for e, especialmente, nas
35
construções correspondentes com objeto duplo, a relação entre objeto direto e indireto nunca é
implicada; e (b) o verbo sempre denota uma relação entre o sujeito e o objeto direto. Oehrle
exemplifica isso com (8):
(8) John baked Mary a cake. (cf. John baked a cake for Mary)
“John assou um bolo para Mary.”
Em (8), definitivamente John assou um bolo e, em segundo lugar, John pretende que
Mary coma o bolo, mas isso não acontece necessariamente. Mais formalmente:
(9) Condições de verdade de "NP
i
bake NP
j
NP
k
"
i) em t
0
, B(NP
i
, NP
k
),
em que "B(x,y)" significa "x cozinhou/preparou y"
;
ii) no intervalo t
0
...t
n
, I (NP
i
, [R(NP
j
, NP
k
) em um t’ posterior a t
0
] ),
em que "I(x,Y)" significa "x tem a intenção de que Y aconteça"
e "R(x,y)" é alguma relação pertinente (no caso de bake, a relação
é "x comer y")
Como o exemplo mostra, existe uma natureza dupla nas relações entre NPs estabelecidas
por verbos dativos com for: uma relação específica entre o sujeito e objeto direto (que é a
denotada pelo verbo) e esta é diferente da relação que se pretende estabelecer entre o objeto
indireto e o objeto direto; esta última, por sua vez, não é uma relação acarretada e sim objetivada
pela ação do sujeito do verbo.
Além disso, Oehrle mostra que as relações temporais entre a relação denotada pelo verbo,
a relação objetivada pelo sujeito e a intenção do sujeito determinam a escolha de uma ou outra
das construções dativas. Considere os exemplos abaixo:
(10) I baked a cake for Max, but now that you're here, you may as well take it.
(11) *I baked Max a cake, but now that you're here, you may as well take it.
“Eu assei um bolo para Max, mas agora que você está aqui, pode pegá-lo
também.”
36
O que o exemplo (11) mostra é, para o uso adequado da construção com duplo objeto, é
necessário que: (a) no momento t
0
em que se dá a relação entre o sujeito e o objeto direto (isto é,
a relação de "assar" entre o falante e o bolo), haja também a intenção, por parte do sujeito, de
estabelecer uma relação entre o objeto indireto e o objeto direto (isto é, a relação de "comer"
entre Max e o bolo); e (b) que esta intenção perdure após o momento t
0
em que o bolo foi assado
– isso explica por que o fato de outra pessoa comer o bolo não é compatível com a construção de
objeto duplo em (11). Por outro lado, (10) indica que, na construção preposicional, a intenção do
falante de que Max coma o bolo não perdura após o momento em que o bolo foi assado por
isso, o fato de uma outra pessoa comer o bolo não afeta a aceitabilidade de (10).
A conclusão, portanto, é: assim como a construção com objeto duplo difere
semanticamente da construção preposicional com verbos que selecionam to, o mesmo acontece
com verbos que selecionam for; em particular, com estes verbos, as duas construções diferem
com relação a aspectos temporais e de modalidade.
2.6 O domínio das "regras" da alternância dativa
Até aqui, vimos apresentando os principais elementos da análise de Oehrle. Procuramos
mostrar que, para Oehrle , a alternância dativa está profundamente ligada às características
semânticas dos verbos. Agora podemos, seguindo o raciocínio do autor, mostrar as razões pelas
quais ele acredita que a alternância - ou as alternâncias, que formula regras diferentes para os
verbos com to e com for - não pode ser descrita em termos de algum aspecto, fator ou efeito
semântico único. Esta conclusão, como veremos, é de grande importância para compreender o
modo como as diferentes análises da alternância dativa vêm se apresentando na literatura.
Pela discussão que apresentamos antes, se pode ver que não parece possível formular
uma análise única da alternância com verbos com to e com verbos com for: os que selecionam to
e que podem participar da alternância têm como propriedade semântica característica envolverem
alguma noção de "transferência de relação (de "posse")", como discutimos antes; já os verbos que
selecionam for não apresentam esta propriedade, ainda que envolvam uma certa idéia de
"transferência" - com estes verbos, o que o sujeito faz tem como objetivo "causar" uma relação
37
(de "posse", mas também de "benefício", como veremos) entre o objeto direto e o indireto. Além
destas diferenças entre as duas "regras" da alternância dativa, Oehrle aponta mais duas razões
para concluir que as "regras" não podem ser descritas em termos de algum aspecto, fator ou efeito
semântico único:
1) a alternância dativa opera sobre diversos domínios semânticos mesmo dentro das
classes de verbos com to e for -- de modo que, mesmo no interior de cada "regra" é preciso
trabalhar com diferentes aspectos do significado dos verbos;
2) a alternância dativa não é condicionada apenas por aspectos semânticos - alguma
propriedade morfológica também parece ser importante para as duas regras.
Vejamos agora uma síntese dos argumentos de Oehrle para estas conclusões.
2.6.1 Verbos com for
Oehrle , adotando uma sugestão de Williams (1974), propõe que o que caracteriza a
interpretação dos verbos que selecionam for em qualquer das duas estruturas dativas é o fato
de que a "relação dativa" está no domínio de um "operador de intenção". No caso da construção
de objeto duplo, a análise é a expressa em (9) da seção anterior. Para frases com a construção
preposicional, como (1) abaixo, Oehrle apresenta a análise em (2):
(1) John baked a cake for Mary
(2) NP
i
bake NP
k
for NP
j
i) em t
0
, B(NP
i
, NP
k
)
ii) em t
0
, I(NP
i
, [ H(NP
j
, NP
k
) em t' > t
0
])
em que 'B(x,y)' significa "x cozinha/assa/prepara y", 'H(x,y)' significa "x tem y", e 'I(x,Y)'
significa "x tem a intenção de que Y". Segundo Oehrle, a análise em (2) conta de dois
acarretamentos de (1): o de que João preparou um bolo (cf. (2i)) e de que João tinha a intenção de
que Maria "tivesse" (neste caso, comesse) o bolo. Mais importante é que, com o "operador de
intenção", a sentença não acarreta necessariamente que Maria de fato "veio a ter" o bolo
(diferentemente de, por exemplo, John gave a cake to Mary).
38
Assim, na análise de Oehrle , o que caracteriza as estruturas dativas com verbos que
selecionam for é um aspecto semântico, o "operador intencional", que impede o acarretamento
encontrado com verbos que selecionam to. Por outro lado, diferença semântica entre as duas
estruturas dativas, mesmo com os verbos que selecionam for. Oehrle descreve esta diferença
assim: "Eu sustento que, no caso de dativos com for, a intenção é assertada somente em t
0
,
enquanto que, com a estrutura de objeto duplo correspondente, a intenção vale não apenas em t
0
,
mas também subseqüentemente" (p.108). Isso é exemplificado por (3) e (4) (que repetem (10) e
(11) da seção anterior):
(3) I baked a cake for Max, but now that you're here, you may as well take it.
(4) *I baked Max a cake, but now that you're here, you may as well take it.
Oehrle se pergunta, então, se o esquema semântico que propôs é realmente capaz de
caracterizar todos os verbos que selecionam for e que apresentam a alternância dativa. Estes,
segundo Green (1974), incluem as seguintes classes:
(5) i) Verbos que denotam atos de criação:
make, cook, roast, knit, draw, etc.
ii) Verbos que denotam atividades envolvendo seleção:
buy, find, get, choose, pick out, save, etc.
iii) Verbos que denotam performances artísticas:
sing, recite, play, dance, etc.
iv) Verbos que denotam algum tipo de obtenção:
earn, gain, win
v) Construções benefactivas, como em Rob me a bank.
Oehrle aponta que pelo menos três das classes acima colocam problemas para a análise
apresentada em (2), especialmente com respeito ao tipo de relação que se estabelece entre objeto
direto e indiretoque até aqui tem sido caracterizada como uma "relação de posse". No caso das
construções benefactivas como Rob me a bank, na verdade não qualquer relação entre os dois
objetos – certamente não é o caso que, se alguém rouba um banco para mim, eu passo a possuir o
39
banco! O que uma construção benefactiva expressa é que o objeto indireto vai se beneficiar de
algum modo da ação expressa pelo predicado, mas este "beneficiar-se de algum modo" envolve
várias relações indiretas. Oehrle conclui que "uma caracterização unificada requereria um grau de
abstração tão grande que pouco conteúdo sobraria para a noção envolvida"; por isso, ele propõe
que a construção benefactiva seja tratada como um "caso idiossincrático" da alternância dativa
(p.111).
Mas isso não é suficiente, que as classes em (5iii) e (5iv) colocam problemas
semelhantes: segundo Oehrle , difícil ver em que sentido se pode dizer que a intenção de
que o objeto indireto 'possua' o objeto direto" (p.114) em frases como (6):
(6) Pinza sang us the Catalogue Aria.
“Pinza cantou-nos uma ária do Catálogo.”
Estes casos parecem ter afinidade com os da construção benefactiva, especialmente na
versão preposicional (Pinza sang the Catalogue Aria for us), salvo talvez pelo fato de que aqui a
"relação de benefício" para ser mais estreitamente limitada.
Para Oehrle , a impossibilidade de relacionar de modo claro estes casos com alguma
"relação de posse" indica "nenhuma caracterização semântica uniforme pode ser dada para o
domínio da alternância dativa envolvendo for" (p.116). Mas a falta de uma análise semântica
unificada não é tudo: Oehrle ainda mostra que as condições semânticas não são suficientes para
explicar as restrições encontradas. O argumento é baseado nos exemplos abaixo, em que verbos
com significados similares diferem entre si quanto à possibilidade de ocorrer na construção de
objeto duplo (p.121):
(7) a. John got/obtained/procured a ticket for Mary.
b. John got/*obtained/*procured Mary a ticket.
“John conseguiu/obteve/procurou um ticket para a Mary.”
(8) a. Brahms wrote/composed a concert for Joachim.
b. Brahms wrote/*composed Joachim a concert.
“Brahms escreveu/compôs um concerto para Joachim.
40
(9) a. Wright built/erected a house for Robie
b. Wright built/*erected Robie a house
“Wright construiu/ergueu uma casa para Robie.”
Seguindo Green (1974), Oehrle assume que a restrição manifestada nestes exemplos não
é de natureza semântica, mas "de forma"; especificamente, ele propõe a seguinte condição
morfológica sobre a alternância dativa ((47), p.124):
(10) A alternância dativa não se aplica se o verbo em questão possui a estrutura
morfológica [Prefixo=Radical].
O ponto fundamental da observação é que este tipo de restrição sendo diferente das
restrições semânticas antes observadas mais uma vez mostraria que as condições que atuam
sobre a alternância dativa com verbos que selecionam for são de natureza diversa; portanto, não é
possível formular uma "regra unificada". E, segundo Oehrle , o mesmo pode ser demonstrado
para a alternância dativa com verbos que selecionam to.
2.6.2 Verbos com to
A diferença básica entre verbos com to e verbos com for, como podemos ver, é que
com for "a intenção" de que o beneficiário venha a entrar em alguma relação com o objeto
direto; com verbos com to há, de fato, um processo de "transferência". Entretanto, Oehrle
enfatiza que, tal como acontece com verbos com for, também com verbos com to as estruturas
dativas não são equivalentes semanticamente. Isto se manifesta, por exemplo, no fato de que, das
duas sentenças abaixo, somente (1) é ambígua:
(1) The doctor gave Mary an attractive skin
(2) The doctor gave an attractive skin to Mary
“O doutor deu a Mary uma pele atraente.”
41
(1) pode significar tanto a transferência física de um objeto alienável (por exemplo, de
algum tipo de pele de animal que se usa para confeccionar um cinto) quanto a causação de uma
relação de posse inalienável (no caso de uma cirurgia plástica), em que não "transferência de
posse"; (2), entretanto, só possui a primeira interpretação.
Mas a diferença não pode ser simplesmente que a construção com to é compatível com
a "interpretação de transferência física", enquanto que a construção com objeto duplo é
compatível tanto com esta quanto com uma interpretação de "causação de posse" mais geral. Os
exemplos em (5) e (6) abaixo indicam que, mesmo com verbos em que a única interpretação
possível é de "transferência física", como (3) e (4) mostram, ainda assim diferença entre as
duas estruturas:
(3) John sent the ball back to the pitcher.
(4) John sent the pitcher back the ball.
"John enviou a bola de volta ao arremessador"
(5) With one stroke of the bat, John sent the ball back to the pitcher.
"Com uma só tacada, John enviou a bola de volta ao arremessador"
(6) *With one stroke of the bat, John sent the pitcher back the ball.
Aparentemente, (6) indica que, para a construção de objeto duplo, ainda que
pragmaticamente se trate de uma transferência sica, a estrutura pode veicular
lingüisticamente o conteúdo "não físico", "não dinâmico", da transferência isto é, seu resultado.
O mesmo parece ser indicado pelo contraste em (7) e (8):
(7) John threw the ball to the catcher, but the throw went wide.
(8) *John threw the catcher the ball, but the throw went wide.
“John arremessou a bola ao atacante, mas a bola voou longe.”
Para (7), o que importa é que houve um movimento ou "transferência física", não tanto o
resultado – tanto que a bola pode ter chegado no lugar errado. (8), por outro lado, indica que, para
42
a construção de objeto duplo, o que importa é o resultado: a construção é ruim se a bola não
chegou até John – isto é, se o resultado não foi a "relação de posse".
Em termos gerais, pode-se dizer que: (a) na construção com to, o foco está no "caráter
dinâmico" do processo, mais do que no resultado – isto é, a "relação de posse"; e (b) na
construção com objeto duplo, acontece o contrário o que importa é a causação de uma "relação
de posse". Oehrle procura formular de modo mais preciso a correlação entre as duas construções
dos verbos que selecionam to do seguinte modo ((63)-(64), p.133):
(9) Se o conjunto de condições de verdade atribuídas a um verbo contém as
proposições em (a) e (b) abaixo, e R e R' são idênticas ou R' é subordinada a R,
então o verbo possui a "propriedade de transferência".
(a) antes de t
0
, R(NP
i
, NP
k
);
(b) em t
0
, R(NP
j
, NP
k
),
onde NP
i
, NP
j
e NP
k
são como em (10) abaixo.
(10) Um verbo que ocorra na estrutura [ NP
i
V NP
k
to NP
j
] ocorre também na
estrutura [ NP
i
V NP
j
NP
k
] somente se possui a propriedade de transferência.
Como se vê, a idéia de Oehrle é que, na construção com a preposição to, as relações R e
R' sejam parte do significado verbal, que pode ter elementos adicionais modalidade, intenção,
etc. Mas são estas duas relações que asseguram que o verbo expressar, em algum sentido, uma
"transferência de posse", e é isso que permite o verbo ocorrer também com a estrutura de duplo
objeto.
Oehrle reconhece, entretanto, que esta análise não é suficiente para definir o domínio de
aplicação da regra. Um dos principais problemas, mencionado antes, inclusive com relação aos
verbos com for, é o de que é difícil de circunscrever precisamente que tipo de relação são as
relações R e R', bem como a relação que entre as duas. Em primeiro lugar, embora ambas as
relações tenham, intuitivamente falando, a ver com alguma noção de "posse", não é uma noção
de "posse" fácil de caracterizar. Por exemplo, é preciso entender "posse" num sentido tão amplo
que possa incluir, por exemplo, "responsabilidade por uma tarefa":
43
(11) John assigned the cleaning of the latrine to Arnold.
(12) John assigned Arnold the cleaning of the latrine.
“John atribui a limpeza da latrina a Arnold.”
Além disso, embora a idéia de "transferência" seja parte dos significados envolvidos,
também é difícil caracterizá-la. No caso mais simples em que "transferência" pode ser tomada
literalmente a "relação de posse" que entre sujeito e objeto direto simplesmente "passa" a se
dar entre objeto direto e indireto: John gave Bill a book.
Não é exatamente isso o que acontece em (11) e (12), por exemplo: se João dá a tarefa de
limpar o “toilete” ao Arnold, não significa que João tinha esta tarefa. Ainda assim, pode-se
concluir que João tinha a "responsabilidade de atribuir tarefas", a qual a "responsabilidade por
uma tarefa" está subordinada. Portanto, este caso também está previsto em (9) acima. Mas,
Oehrle se pergunta, e quanto a (13) e (14) abaixo:
(13) John read the paragraph to Edward.
(14) John read Edward the paragraph.
“John leu o parágrafo para Edward.”
Qual a relação que John tem com o parágrafo? E qual a relação que Edward tem? Além
disso, e principalmente: certamente não são relações idênticas ou "subordinadas". Diante da
generalidade do problema, Oehrle conclui:
However this paticular problem is to be dealt with, it should be clear that the
'transferrance property' that we have tried to define is not a single concept but a
collection of concepts (...) [O]ur attempt to characterize the domain [of the rule with to
verbs] in terms of certain properties of the sets of truth-conditions assigned to various
verbs fails to achieve the desired generality, and we are left with a set of distinct cases
which might have been some other set altogether (1976, p.136).
4
4
Seja lá qual for o modo como este problema particular precisa ser resolvido, deveria estar claro que a 'propriedade
de transferência' que nós estamos tentando definir não é um conceito único, mas uma coleção de conceitos (...) Nossa
tentativa de caracterizar o domínio [da regra com os verbos com to] em termos de certas propriedades das condições
de verdade atribuídas aos diferentes verbos fracassa em alcançar a generalização desejada, e o que nos resta é uma
série de casos distintos, acidentais, que poderia ser constituída de conjunto completamente diferente de casos.
44
Assim, Oehrle parece concluir que, em relação à semântica da alternância dativa, a
situação é a seguinte: parece haver um tipo "básico" de significado por trás da construção (que é
o dos "verbos de transferência") e, provavelmente, algum tipo muito geral de "processo de
associação" deste significado básico com outros significados; mas sua investigação não foi capaz
de revelar que "processo de associação" é este; por isso, parece ser aleatória, arbitrária, a
associação entre tipos semânticos de verbos e as classes de verbos que entram ou não na
alternância.
Finalmente, Oehrle nota que, tal como com os verbos com for, também no caso dos
verbos com to
uma caracterização puramente semântica do domínio da regra é improvável porque
propriedades semânticas em geral não fornecem condições suficientes de operação da
regra: a alternância dativa com to parece estar sujeita à mesma restrição
morfofonológica que a alternância dativa com for (1976, p.137).
Assim, os verbos em (15) são exemplos de itens que, em princípio, qualificariam para a aplicação
da regra e, no entanto, não o fazem exatamente por causa da condição formulada em (10) da
seção 2.6.1 acima e repetida abaixo como (16):
(15) return, transfer, convey, deliver, reveal, explain,
report, submit, restore, exhibit
“retornar, transferir, entregar, revelar, explicar,
reportar, submeter, restaurar, exibir.”
(16) A alternância dativa não se aplica se o verbo em questão possui a estrutura
morfológica [Prefixo=Radical].
Portanto, também para os verbos com to, a principal conclusão de Oehrle é: a alternância
dativa não não pode ser formulada em termos semânticos unificados, como também não pode
ser formulada apenas em termos de condições semânticas.
45
2.7 Conclusão
Neste capítulo, procurou-se fazer uma apresentação dos principais aspectos da construção
chamada de "alternância dativa" do inglês, a partir do estudo profundo dedicado a ela por Richard
Oehrle , em sua clássica tese de 1976. O objetivo desta apresentação detalhada era o de
identificar, por meio da argumentação e das conclusões do autor, aqueles pontos principais que
vieram a ter importância na literatura mais recente sobre a construção; mais especialmente,
aqueles pontos que fizeram da alternância dativa uma das construções mais importantes na
discussão sobre o modo como a sintaxe e a informação semântica dos itens lexicais se
relacionam.
Como veremos no próximo capítulo, muito do que a literatura mais recente sobre a
alternância dativa tem discutido foi apontado por Oehrle. Listemos apenas algumas das
observações, idéias e sugestões de Oehrle que serão retomadas a seguir e discutidas à luz da
relação entre sintaxe e léxico:
- a descoberta de que, de algum modo, o "foco de significado" da construção dativa
preposicional está no "caráter dinâmico" do "processo de transferência", enquanto que o "foco de
significado" da construção com dois objetos está "resultado do processo", isto é, no
"estabelecimento de uma relação de posse";
- a conclusão de que a tentativa de uniformizar completamente a noção de "relação de
posse" envolvida no significado das construções dativas tende a levar a um "esvaziamento" do
conceito e que, portanto, é preciso admitir que não se está tratando de um conjunto de fatos
semânticos totalmente unificados;
- a idéia de que, ainda assim, parece haver um tipo "básico" de significado por trás da
construção (encontrado nos "verbos de transferência") e, provavelmente, algum tipo muito geral
de "processo de associação" deste significado básico com outros significados;
- por outro lado, Oehrle reconhece que sua investigação não foi capaz de revelar que
"processo de associação" é este e que, por isso, aparentemente é preciso aceitar que a relação
entre classes semânticas de verbos e o conjunto de verbos que entram ou não na alternância pode
ser, num certo grau, arbitrária – isto é, sem uma "explicação natural";
- finalmente, a conclusão de que, ainda que profundamente envolvida com a semântica
dos verbos, a alternância dativa não pode ser um processo "puramente semântico"; afinal, está
46
sujeita a restrições que não são semânticas especificamente, a "restrição morfofonológica" que
vimos nas seções 2.6.1 e 2.6.2.
Como veremos, todas as observações voltarão à tona na literatura seguinte e serão
analisadas precisamente como elementos fundamentais para a compreensão da relação entre
léxico e sintaxe.
CAPÍTULO 3:
A ALTERNÂNCIA DATIVA NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA
E A RELAÇÃO ENTRE SINTAXE E SEMÂNTICA LEXICAL
3.1 Introdução
Como foi mencionado no capítulo anterior, o estudo de Oehrle (1976) tinha como questão
principal saber que tipo de regra é a alternância dativa do inglês: uma "regra transformacional"
(como na análise que a construção recebeu no modelo padrão), ou uma "regra de redundância
lexical", baseada em alguma, ou algumas, propriedades particulares de certas classes lexicais de
verbos. O trabalho de Oehrle indica, como procuramos mostrar, que a regra aparentemente não
pode ser formulada apenas em termos dos esquemas sintáticos do inglês: ela parece ser também
sensível a características semânticas e morfológicas dos verbos – razão pela qual Oehrle concluiu
que deve ser expressa por algum tipo de "regra lexical".
Neste capítulo, o objetivo será oferecer uma perspectiva das alternativas de análise que se
encontram na literatura corrente. Procuramos identificar como estas alternativas ora seguem, ora
desenvolvem, aspectos da "análise lexical" sugerida por Oehrle e outros lingüistas.
Especificamente, serão discutidos trabalhos que procuram refinar o "tratamento lexical"
(PINKER et al, 1989) desenvolvendo o conjunto de "mecanismos lexicais" disponíveis, bem
como trabalhos que, ao contrário, procuram atribuir um poder mais significativo seja às
"estruturas sintático-semânticas" envolvidas na alternância (GOLDBERG,1992), seja ao modo
como interagem com o léxico (GROEFSEMA, 2001).
3.2 Desenvolvendo a análise lexical: Pinker et al (1989)
O artigo de Pinker et al (1989) trata da aquisição da alternância dativa do inglês,
procurando esclarecer tanto os mecanismos presentes na gramática adulta quanto o modo como
as crianças identificam estes mecanismos. Do ponto de vista da análise da alternância, a principal
contribuição do artigo é propor que são dois os tipos de "regra lexical" envolvidos na alternância
48
um de caráter mais geral e outro de caráter mais limitado. Esta dicotomia será importante para
os trabalhos que discutiremos adiante (Goldberg, 1992; e Groefsema, 2001), os quais procuram
ver nela uma divisão qualitativa nos processos envolvidos divisão que, sustentam, a análise de
Pinker et al (1989) não captura adequadamente. Em resumo, Pinker et al (1989) concebem a
alternância dativa como sendo regida por dois tipos básicos de processos lexicais; Goldberg
(1992) e Groefsema (2001) vêem esta divisão como resultado da interação entre a informação
lexical e o conteúdo semântico das estruturas dativas. Vejamos, então, a perspectiva de Pinker et
al (1989).
3.2.1 O problema da aquisição da alternância dativa
O ponto de partida do artigo de Pinker et al (1989) está no fato de que a aquisição da
alternância dativa do inglês parece colocar um "paradoxo da aprendibilidade" (ingl. learnability
paradox; termo de Baker, 1979). As sentenças que a criança ouve como input freqüentemente
poderiam levá-la a uma generalização mais ampla do que a utilizada pelos adultos. Além disso,
não correção sistemática por parte dos adultos (citando Brown & Halon (1970), Pinker et al
(1989) assumem que não papel significativo para a "evidência negativa"). O resultado disso é
que a experiência lingüística, aparentemente, não é suficiente para que a criança descubra a
"regra" da alternância. Para ser mais específico: se a criança busca estabelecer algum tipo de
"regra produtiva" que relacione as estruturas bitransitivas com as preposições to e for, como em
(1a), a estruturas com dois objetos correspondentes, como em (1b), o que a faria retroceder no
caso de "supergeneralizações" como em (2a,b)?
(1) a. John told a story to Mary [estruturas preposicionais]
“John contou uma estória para Mary.”
Alice baked a cake for David
“Alice assou um bolo para David.”
b. John told Mary a story [estruturas com dois objetos]
“John contou a Mary uma estória.”
49
Alice baked David a cake.
“Alice assou para David um bolo”.
(2) a. John whispered a secret to Sue
“John sussurrou um segredo para Sue.”
Max washed the car for Kate
“Max lavou o carro para a Kate.”
b. *John whispered Sue a secret
“John sussurrou para Sue um segredo.”
*Max washed Kate the car
“Max lavou para Kate o carro.”
Depois de discutir a bibliografia da década de 80 sobre o problema posto pela aquisição
da alternância dativa e as possibilidades de análise nela encontradas, Pinker et al (1989)
concluem que há duas "saídas" para o problema: (a) a hipótese do "conservadorismo" das
crianças: As crianças não buscam uma regra produtiva, apenas reproduzem o que encontram no
input; quando escutam um verbo em ambas as estruturas, aprendem duas entradas para ele
(BAKER. 1979; FODOR, 1985). (b) a hipótese da "produtividade limitada por critérios": As
crianças fazem uso de uma "regra produtiva", mas esta regra na verdade sofre certas restrições e
se aplica apenas a certas subclasses de verbos definidas com base em critérios semânticos,
sintáticos, morfológicos, etc. (PINKER, 1984; RANDALL, 1987; GRIMSHAW, 1989; etc.).É
claro que apenas a última solução, a hipótese da "produtividade limitada", é compatível com a
análise de Oehrle (1976) e com qualquer outra análise que proponha algum tipo de "processo
regular" associando as duas estruturas ainda que sujeito a restrições e exceções. É esta a linha
de explicação que Pinker et al (1989) seguirão em seu artigo.
As principais restrições estudadas pelos autores, na perspectiva da aquisição, são as que
foram identificadas por Oehrle (bem como por Green, 1974). A primeira é aquilo que Pinker et al
(1989) chamam de "restrição morfofonológica", isto é, a restrição segundo a qual a construção
com dois objetos é possível com verbos que possuam estrutura morfofonológica "nativa",
50
"não-latina". Lembrando: os "verbos nativos" do inglês são monomorfêmicos e, fonologicamente,
são monossilábicos ou polissilábicos com acento inicial; "verbos latinos" são polimorfêmicos,
formados por per-, con-, -mit, -sume, etc., e polissilábicos com acento final. Os exemplos abaixo
ilustram a restrição:
(3) a. John told/reported the news to Bill.
John told/*reported Bill the news.
“John contou/reportou as notícias para Bill.”
b. Kate showed/demonstrated the technique to Alan.
Kate showed/*demonstrated Alan the technique.
“Kate mostrou/demonstrou a técnica a Alan.”
A segunda restrição, que Pinker et al (1989) chamam de "restrição semântica", refere-se
ao fato de que o primeiro objeto de verbos que ocorrem na estrutura com dois objetos deve ser
um "possuidor prospectivo". Isto é, a estrutura com dois objetos deve poder ser interpretada como
uma "transferência de uma relação de posse":
(4) a. I sent a package to the boarder/the border
I sent the boarder/*the border a package
“Eu enviei o pacote ao hóspede/a fronteira.”
b. John bought/washed a car for Mary
John bought/*washed Mary a car.
“John comprou/lavou um carro para Mary”
Conforme os autores apontam, na perspectiva da aquisição estas restrições devem
aparecer de modo diferente conforme se adote a "hipótese do conservadorismo" ou a "hipótese da
produtividade limitada", que somente a última as toma como "generalizações" que a criança
deve identificar. Se a hipótese do conservadorismo estiver correta, nem crianças nem adultos
devem usar um verbo com a estrutura de dois objetos se esta não aparecer no input. Isto é, nem
51
crianças nem adultos apresentarão "usos produtivos", "inovadores", da estrutura com dois
objetos. Por outro lado, se a hipótese da produtividade limitada está correta, tanto crianças quanto
adultos apresentarão "usos produtivos" e "inovadores", sendo que a criança o fará de maneira
mais ampla, e os adultos, de acordo com os critérios da gramática adulta. Isto é, as crianças
primeiro aprenderiam a "regra geral" e, depois, identificariam os critérios adicionais que a
limitam.
O artigo, então, procura responder a três "questões críticas": (a) em que medida as
crianças supergeneralizam a estrutura com dois objetos para verbos que não são utilizados deste
modo pelos adultos? (b) são "psicologicamente reais" isto é, são realmente parte da
competência dos adultos as restrições à aplicação da "regra de dativização" acima
mencionadas? (c) as crianças seguem alguma restrição no processo de aquisição e, se o fazem,
quais são as restrições que seguem e quando o fazem? Como se vê, o artigo estuda questões
muito importantes sobre a natureza e o papel das condições identificadas por Oehrle .
3.2.2 Os estudos realizados por Pinker et al (1989)
A fim de responder as perguntas acima colocadas, os autores desenvolvem dois tipos de
estudo: a) um estudo detalhado da fala espontânea das crianças que aprendem inglês como língua
nativa, e do input que recebem dos adultos; e b) um conjunto de três estudos experimentais por
meio dos quais procuram verificar a "produtividade criativa" da alternância dativa tanto por
adultos quanto por crianças.
A) Estudo da fala espontânea das crianças
Foram analisados os registros de diálogos espontâneos de cinco crianças: 3 crianças
gravadas por Brown e seus estudantes (Adam, no período dos 2;3 isto é, 2 anos e três meses de
idade – aos 5;2); Eve (de 1;6 a 2;3), Sarah (de 2;3 a 5;1); e 2 crianças gravadas por MacWhinney:
Ross (de 2;7 a 6;6) e Mark (de 1;5 a 4;7).
Este estudo procura responder a duas questões gerais (cf. p.210-211): (a) Quando as
estruturas preposicionais e de dois objetos surgem na fala das crianças? Como alguns teóricos
(por exemplo, Stowell,1981)presumem que as estruturas de dois objetos são "altamente
marcadas" do ponto de vista dos universais lingüísticos, poder-se-ia esperar que são difíceis de
52
ser adquiridas e, portanto, aparecem tardiamente na fala das crianças. (b) Que tipos de verbos são
usados nestas estruturas? Esta questão é importante para determinar se as crianças usam a
estrutura de modo indiscriminado, ou se seguem certos critérios na aplicação da "regra de
dativização".
Além destas, o estudo tenta ainda responder a questões diretamente relacionadas ao
"paradoxo de aprendibilidade" colocado pela alternância dativa. (c) As crianças utilizam a
estrutura de dois objetos com verbos que não aparecem nesta forma na fala de seus pais? (d) Que
tipos de erros cometem em particular, violam restrições que supostamente se aplicam ao uso
adulto? (e) Quão comuns são estes erros – pode-se dizer que, de fato, as crianças são "produtivas"
mais do que "conservadoras"? (f) evidência na fala das crianças para a restrição
morfofonológica que atua sobre a alternância dativa?
B) Estudo experimental 1, com adultos
Participaram do teste 64 adultos entre 17 e 41 anos de idade, todos universitários, os quais
foram expostos a verbos criados, na forma da estrutura bitransitiva preposicional. Os “sujeitos”
tinham como tarefa avaliar a aceitabilidade de sentenças, contendo estes verbos, na forma da
estrutura de dois objetos.
Este estudo procurou testar se os adultos realmente utilizam as restrições postuladas – isto
é, a restrição semântica do "possuidor prospectivo" e a restrição morfofonológica sobre os
"verbos latinos". O intuito, portanto, era verificar se estas restrições possuem mesmo “realidade
psicológica" na gramática adulta.
C) Estudos experimentais 2 e 3, com crianças
Participaram do experimento 2 dezesseis crianças, todas falantes nativas de inglês
americano, estudantes de uma escola particular de Cambridge. Quinze delas possuíam idades
entre 6;3 e 8;6, e uma tinha idade de 5;0. o experimento 3 contou com trinta e duas crianças,
todas falantes nativas de inglês. Estes sujeitos foram divididos em dois grupos: o mais jovem,
com dezesseis crianças com idades entre 5;8 e 7;6, e o grupo mais velho, com 16 crianças com
idades entre 7;6 e 8;11.
O estudo 2 parte dos resultados do estudo da fala das crianças (ver abaixo).
Especialmente, leva em consideração que: (a) as crianças ocasionalmente supergeneralizam a
53
alternância dativa, mas isso é raro; e, quanto às restrições encontradas na fala adulta, (b) parecem
respeitar a restrição morfofonológica num sentido trivial, que não usam verbos latinos
(portanto, não é possível saber se a restrição é parte de sua competência ou não); além disso, (c)
também o status da restrição semântica é incerto além das substituições lexicais compatíveis
com a "restrição da transferência de posse", também apresentam usos em que as estruturas de
dois objetos não respeitam esta restrição, embora estes usos sejam limitados (restringem-se à
expressão de relações benefactivas/malefactivas).
O objetivo do estudo 2 era o de verificar que estruturas bitransitivas a criança produz em
condições fortemente estimuladas. As estruturas estimuladas foram as com dois objetos, com
significados e formas verbais criadas, isto é, inexistentes no input da criança. O objetivo era
verificar se a criança faz "uso produtivo", "inovador", da alternância dativa em contextos
apropriados, e se este uso segue as restrições encontradas na gramática adulta em particular, a
restrição morfofonológica.
O experimento 3 procurou observar o comportamento das crianças em circunstâncias mais
naturais do que as do experimento 2. Os objetivos eram: (a) replicar os resultados do primeiro
experimento com crianças, mas sob condições experimentais "mais naturais"; (b) verificar se a
"produtividade" das crianças é também regida pela condição semântica do "possuidor
prospectivo"; e (c) procura verificar se a "produtividade" das crianças é de fato baseada no seu
"conhecimento do inglês" – isto é, se depende de algum "processo" específico associando as duas
estruturas bitransitivas, ou se depende simplesmente de alguma outra habilidade que as faz
utilizar estruturas sugeridas pelo experimento.
Para o objetivo (b), o teste procurou variar sistematicamente a animacidade do recipiente,
partindo da suposição de que a hierarquia "criança < ser animado < objeto não-animado" tem
alguma relação com as preferências infantis na atribuição de "posse". com relação ao objetivo
(c), o teste procurou estimular não apenas a produção de estruturas com dois objetos (que
presumivelmente pertencem ao "conhecimento gramatical prévio" da criança), mas também a
produção de uma estrutura que não existe em inglês (em que o recipiente é o objeto direto e o
tema é marcado com a preposição of, como em I norped the mouse of a ball).
3.2.3 Os resultados obtidos por Pinker et al (1989)
54
A) Resultados do estudo da fala espontânea das crianças
Em resumo, os resultados deste estudo foram os seguintes:
(a) Usos gramaticais de ambas as estruturas aparecem na fala das crianças por volta do
segundo ano de idade, e nenhuma precede a outra de modo sistemático;
(b) "Usos produtivos" da construção com objeto duplo aparecem depois; limitam-se a
substituições lexicais (por exemplo, say por tell) ou à expressão de relações
benefactivas/malefactivas (You ate me my cracker); não caracterizam, portanto, uma "extensão
indiscriminada" das estruturas de dois objetos;
(c) Embora haja "usos produtivos", são, entretanto, raros, tanto em termos absolutos
(apenas 22 exemplos) quanto em relação aos usos gramaticais;
(d) A grande maioria dos "usos gramaticais", em particular das estruturas de dois objetos,
correspondem a enunciados (95%) e verbos (86%) encontrados na fala adulta;
(e) Verbos latinos, e especialmente com prosódia latina, são raros tanto na fala infantil
quanto adulta.
B) Resultados do estudo experimental 1, com adultos
Segundo os autores, os resultados deste estudo podem ser sintetizados assim:
(a) Os adultos julgam, com verbos novos, a estrutura preposicional (com ambas as
preposições) significativamente mais aceitável do que a estrutura de dois objetos;
(b) Também julgam, com tais verbos, as estruturas de dois objetos mais aceitáveis quando
os verbos são "possessivos", por oposição a "verbos não-possessivos"; além disso, este fator não
é relevante para as estruturas preposicionais exatamente como a hipótese da "produtividade
limitada" prediz;
(c) também um resultado significativo para a "restrição morfofonológica", embora
curiosamente limitada a uma subclasse dos verbos criados que aparecem com a preposição to (a
classe cujo significado verbal tinha a propriedade de "transferência de posse" como elemento
inerente).
C) Resultados de estudos experimentais 2 e 3, com crianças
Os principais resultados do experimento 2 foram os seguintes:
55
(a) As crianças produziram estruturas de dois objetos "inovadoras", ainda que sob
condições bastante "indutoras";
(b) A proporção de estruturas de dois objetos (estimuladas por estas mesmas estruturas)
foi menor com "verbos criados" do que com give, mas ainda assim bem acima de zero; (c) As
crianças foram capazes de produzir estruturas de dois objetos para verbos criados que
escutaram na estrutura preposicional;
(d) As crianças também se mostraram sensíveis à condição morfofonológica: sob
condições apropriadas, produziram mais estruturas de dois objetos com verbos criados
monossilábicos do que com verbos polissilábicos;
(e) Mas efeito do input: as crianças produzem mais estruturas de dois objetos quando
são estimuladas por estas estruturas, e o mesmo ocorre com as estruturas preposicionais.
Já em relação ao experimento 3, os resultados podem ser resumidos assim:
(a) As crianças produziram estruturas com dois objetos em circunstâncias "mais naturais",
ainda que com verbos criados e sem estímulo direto do input;
(b) Em contraste, estruturas que não pertencem à gramática adulta (estruturas com tema
acompanhado de of), embora estimuladas pelos procedimentos, praticamente não foram
produzidas;
(c) Os resultados confirmaram a "hierarquia de posse": mais estruturas dativas foram
produzidas quando o recipiente era a criança do que quando era um ser animado, e mais foram
produzidas com estes do que com objetos inanimados;
(d) Finalmente, os resultados indicam novamente (ainda que de modo fraco) o
favorecimento dos verbos monossilábicos sobre os polissilábicos.
D) Conclusões a partir dos resultados
A partir dos resultados acima resumidos, Pinker et al (1989) concluem que:
(a) As crianças são "produtivas" em seu uso das estruturas de dois objetos, contra a
"hipótese do conservadorismo estrito"; produzem estas estruturas mesmo quando jamais as
escutaram e mesmo quando não recebem condições especiais de estímulo;
56
(b) Esta "produtividade" das crianças é baseada em seu conhecimento gramatical do
inglês, como o mostram tanto o contraste entre as estruturas com dois objetos e a estrutura com of
quanto a sensibilidade à condição semântica do "possuidor prospectivo".
(c) Também a favor da "produtividade gramatical" das crianças está o fato de que são
sensíveis à restrição morfofonológica;
(d) Por outro lado, é preciso admitir que a "produtividade" observada ocorre tendo como
pano de fundo algum tipo de "estratégia conservadora", que as crianças normalmente preferem
produzir verbos e estruturas argumentais que escutaram no input.
3.2.4 A proposta de Pinker et al (1989)
Das duas hipóteses testadas, a do “conservadorismo estrito” das crianças e a da
“produtividade limitada por critérios específicos”, os autores concluem somente a hipótese da
"produtividade limitada" é compatível com os dados e com a observação de que a alternância
dativa é parte da "competência gramatical" dos falantes do inglês inclusive, das crianças, e não
simplesmente um conjunto de estruturas aprendidas "de cor". Mas é preciso enfrentar os
problemas que a hipótese da produtividade limitada enfrenta com os dados da aquisição. Em
particular, é preciso responder a duas questões: (a) por que a regra de dativização adulta é sujeita
a limitações que parecem tão idiossincráticas (por exemplo, tell vs. say, ou throw vs. pull), e
como as crianças são capazes de descobri-las, mesmo quando supergeneralizam (como no caso
de tell/say)? (b) e, de um modo mais geral, "por que razão uma regra gramatical como a
dativização seria restringida pela [condição da] posse prospectiva e pela [condição da]
morfofonologia nativa? Uma regra irrestrita daria mais poder expressivo ao falante e seria mais
fácil de aprender e representar" (PINKER et al, 1989, p. 240).
Para responder a estas questões, Pinker et al (1989) propõem uma nova análise da
construção uma análise que resgata certos aspectos da proposta de Oehrle (1976), mas inova
em outros, reconhecendo maior complexidade no sistema de "regras lexicais".
A) Regras que alteram a estrutura de argumentos e restrições semânticas
Segundo os autores, a dativização parece colocar problemas conceituais se concebida
como uma operação sintática arbitrariamente restrita pela semântica; mas e "se [ela] fosse uma
57
operação que muda a estrutura semântica? Então sua sensibilidade a condições semânticas seria
natural" (p.240). Em resumo, a proposta é a seguinte: (a) cada uma das estruturas bitransitivas
possui uma "representação léxico-semântica" básica própria (portanto, não são completamente
equivalentes); (b) esta é mapeada em uma "estrutura sintática" particular por meio de "regras de
associação" (ing. linking rules) entre argumentos semânticos e funções gramaticais/posições na
estrutura sintática; e (c) existe uma operação que converte uma representação semântica em outra
quando há compatibilidade do verbo com as duas.
Em termos mais objetivos, a proposta é composta dos seguintes elementos:
(a) A estrutura preposicional tem como representação léxico-semântica algo como "X
causes [Y to go to Z]", isto é, ela expressa "causação de deslocamento". E as regras de
associação pertinentes ligam o "agente causativo" à função sintática de sujeito; o "elemento
afetado", ou "tema", à função de objeto direto; e o "locativo" ou "caminho direcional" a alguma
função oblíqua apropriada (p.240).
(b) A estrutura com dois objetos possui a estrutura léxico-semântica "X causes [Y to
have Z]", isto é, expressa "causação de uma relação de posse". E as regras de associação ligam,
como antes, o "agente causativo" à função de sujeito, e o "objeto afetado" à função de objeto
direto. Nesta estrutura, entretanto, quem é afetado é o argumento que passa a ter a "posse"
("recipiente" ou "beneficiário"). Além disso, uma quarta regra de associação mapeia a "coisa
possuída" em um segundo objeto (e não em um PP, porque a estrutura semântica não mais
envolve um "caminho direcional").
(c) A "regra de dativização" é, como Oehrle sugeriu, uma "regra lexical": opera sobre
representações léxico-semânticas. Tem como input a representação léxico-semântica da estrutura
preposicional e, como output, a representação léxico-semântica da estrutura de dois objetos. Não
informação sintática na regra as duas estruturas sintáticas são completamente previsíveis a
partir das regras de associação entre papéis semânticos e funções sintáticas.
Uma das conseqüências da análise (cf. p.241-242) é a seguinte: como o output da regra é
uma representação semântica que especifica uma "relação de posse", somente verbos cuja
semântica inerente é compatível com alguma noção pertinente de "posse" permitirão a aplicação
da regra. Isso explica contrastes como os abaixo:
(1) a. I bought a car to Mary.
58
I bought Mary a car.
“Eu comprei um carro para a Mary.
b. I drove a car to Chicago.
*I drove Chicago a car.
“Eu dirigi até Chicago.”
(2) a. I sent a letter to John.
I sent John a letter
“Eu enviei uma carta para John.”
b. I sent a letter to the post off.
*I sent the post office a letter.
“Eu enviei uma carta para o correio.”
Outra conseqüência é que, como a regra de dativização não "cria" uma estrutura sintática
nova, mas mapeia entre si duas estruturas léxico-semânticas independentes, a análise prediz que
estas podem existir sem que a alternativa correspondente exista. De fato, Green (1974) e Oehrle
(1976) mostraram justamente isso: não apenas estruturas preposicionais sem a estrutura de
dois objetos correspondente, como o contrário também é possível – quando a semântica da
estrutura é compatível com a (transferência da) relação de posse, mas não com uma interpretação
de "deslocamento espacial":
(3) a. Mary's behavior gave John an idea .
*Mary's behavior gave an idea to John.
“O comportamento de Mary deu a John uma idéia.”
b. That remark might cost you your job.
*That remark might cost your job to you
“Aquele comentário pode lhe custar seu emprego.”
59
c. The bank charged me $25.
* The bank charged $25 to me.
“O banco cobrou me 25 doláres.”
Nos termos dos autores, a conclusão é que
[v]iewing the dative as an operation on lexico-semantic structure (...) solves four
problems at once. It explains why different arguments get mapped onto the syntactic
surface object positions in the two structures; (...) why the interpretation of a single verb
can change when it undergoes the alternation; (...) why verbs which (...) are
incompatible with causation of change of possession cannot be transformed into taking
the double object form; and, symmetrically, (...) why certain verbs can only exist in the
double object form (1989, p.242)
.
5
B) Restrições semânticas adicionais e os tipos de "regras" de dativização
Como os autores observam, a possibilidade de expressar uma "relação de posse" não
pode ser a única restrição semântica, que verbos cuja semântica parece "compatível com a
causação da mudança de posse" e que, ainda assim, não alternam:
(4) a. *John pulled Bill the box. (cf. John threw Bill the box.)
* “John empurrou a Bill a caixa.”
b. *Sam shouted John the story. (cf. Sam told John the story.)
“* Sam gritou a John a estória.”
c. *Becky credited Bill the money. (cf. Becky promised/sent Bill the money.)
“*Betty creditou a Bill o dinheiro.”
5
“vendo o dativo como uma operação na estrutura léxico-semântica (...) resolve quatro problemas de uma vez.
Explica por que diferentes argumentos são mapeados em posições de objeto na superfície sintática nas duas
estruturas; (...) por que a interpretação de um verbo pode mudar quando este ocorre na alternância dativa; (...) por
que os verbos que (...) são incompatíveis com causação de mudança de posse não podem ser transformados para a
forma de objeto-duplo, e simetricamente, (...) por que certos verbos podem existir somente na forma de objeto-
duplo”.
60
d. *Irv chose her a dress. (cf. Irv found her a dress.)
“Irv escolheu para ela um vestido.”
Para explicar estas restrições adicionais, Pinker et al (1989) propõem um "refinamento"
da análise lexical, agora distinguindo dois tipos de "regras lexicais". A regra de dativização
"opera em dois níveis" como uma "regra geral" (ing. broad-range rule) que cria a possibilidade
de associar as duas representações semânticas e como um conjunto de "regras limitadas
lexicalmente" (ing. narrow-range rules), que são de fato as responsáveis por especificar que
classes particulares de verbos realmente dispõem da alternância na língua.
Nos termos dos autores,
[a] broad-range rule is a property-predicting regularity, not an existence-predicting
regularity. (...) Specifically, [a double-object form] must be cognitively compatible with
causation of change of possession; this is a necessary condition on such forms.
However, it is not a sufficient condition (...) Let's say that each speaker also possesses a
set of 'narrow-range' dative rules. Each narrow-range rule incorporates some version of
the (...) broad-range rule, but applies only to narrow sets of verbs with similar kinds of
meanings (...) The narrow-range rules are existence-predicting: if a verb falls into a
[lexical class of verbs] that a narrow-range rule applies to, it automatically gets assigned
a double-object structure (1989, p.241).
6
Para Pinker et al (1989), o que diferencia as "classes lexicais" de verbos que realmente
apresentam a dativização daquelas que poderiam apresentá-la não são seus elementos de
significado lexical mais amplos isto é, o "tipo geral de evento" a que os verbos se referem
(causação de transferência física, de posse, ou de informação, p.ex.). Antes são "aspectos mais
específicos dos eventos", que definem subclasses lexicais, razão pela qual classes muito
semelhantes em significado especialmente em relação ao "tipo geral de evento" – podem diferir
com relação a alternância:
6
“uma regra de larga amplitude é uma regularidade capaz de predizer propriedades [de uma construção], mas não de
predizer a existência [da construção]. (...) Especificamente, [uma forma de objeto-duplo] deve ser cognitivamente
compatível com causação de mudança de posse; esta é uma condição necessária em tais formas. No entanto, não é
uma condição suficiente (...) Digamos que cada falante também possua um conjunto de regras dativas de “amplitude
limitada”. Cada regra destas incorpora alguma (...) regra de amplitude maior, mas se aplica somente à classes
restritas de verbos com tipos de significado semelhantes (...) As regras de amplitude restrita são "preditoras de
existência": se um verbo cai numa [classe lexical de verbos] a qual se aplica uma regra de amplitude restrita,
automaticamente torna-se associada à estrutura de objeto-duplo.”
61
Quadro: Classe de verbos associado à alternância
Classes de verbos com a alternância Classes de verbos sem a alternância
verbos que expressam inerentemente "atos de
dar": give, pass, hand, sell, lend, feed, etc.
verbos de "satisfação" (ing. fulfilling: X a
Y algo que Y merece ou precisa): present,
credit, entrust, supply, etc.
verbos de causação instantânea de movimento
balístico: throw, toss, flip, kick, shoot, etc.
verbos de causação contínua de movimento
acompanhado: pull, carry, push, lift, lower,
haul, etc.
verbos de 'tipo de mensagem' (distinguidos
por algo como 'força ilocucionária'): tell,
show, ask, write, quote, etc.
verbos de comunicação de proposições ou de
atitudes proposicionais: say, assert, question,
think, doubt, etc.
verbos de instrumento de comunicação: radio,
e-mail, telephone, fax, telegraph, etc.
verbos de modo de falar: shout, scream,
murmur, whisper, grunt, bark, etc.
verbos de obter: get, buy, find, steal, order,
win, earn, grab, etc.
verbos de escolher: choose, pick, select,
indicate, prefer, designate
Fonte: (Ver Green 1974,Pinker 1989)
Finalmente, os autores sugerem que as distinções entre estas classes não são acidentais,
mas provavelmente também dependem de aspectos de significado das subclasses. Por exemplo:
since the double-object dative involves an actor acting on a recipient causing him to
possess something (...), we would expect that verb subclasses which suggest that the
action inherently involves the possessor as causee in some direct fashion would be more
likely to enjoy dativization (PINKER et al, 1989, p.244).
7
Assim, verbos como throw to X exigem que se mire em direção ao recipiente
simultaneamente à causação do movimento, enquanto a ação em verbos como pull to X podem
ser iniciadas sem ter o recipiente em mente. De modo similar, quando alguém pergunta (ing. ask)
7
“uma vez que a alternância dativa de objeto-duplo envolve um ator atuando sobre um recipiente, fazendo com que
este possua algo (...), poderíamos esperar ser mais provável que a dativização aconteça com as subclasses de verbos
cujo significado sugere que a ação envolve inerentemente um possuidor afetado pela causação.
62
uma questão, o que torna isso um ato de perguntar (ing. ask) é o modo como o ouvinte hipotético
deve reagir, mas quando alguém grita (ing. shout) uma questão, o que torna isso um ato de gritar
nada tem a ver com o ouvinte (p.244-245).
Uma conseqüência final importante desta abordagem é que ela admite um certo grau de
arbitrariedade e idiossincrasia no funcionamento da alternância dativa. Isso resulta da hipótese de
que as regras que realmente definem a alternância operam sobre classes limitadas de itens
lexicais. Assim, não precisam ser "aprendidas em seus termos motivadores" por todos os falantes;
podem ser simplesmente regras arbitrárias, aprendidas de cor, como resultado de um processo
diacrônico, por exemplo (cf. p.245). Ou seja, como os processos mais comuns do léxico, também
no domínio das alternâncias verbais se espera algum grau de variabilidade, arbitrariedade e
idiossincrasia – como Chomsky (1970) argumentou.
C) A restrição morfofonológica e a natureza das "regras limitadas lexicalmente"
Ainda é preciso uma extensão adicional da análise para tratar da "restrição
morfofonológica". Para Pinker et al (1989), o que acontece é que, quando a criança escuta um
verbo alternar e formula, com base nisso, uma "regra limitada lexicalmente", ela não apenas
inclui na "regra" a estrutura semântica gramaticalmente relevante do verbo: ela também "registra"
aspectos significativos de sua morfofonologia. Em outros termos: "regras limitadas lexicalmente"
associam itens lexicais não apenas em termos de sua estrutura semântica, mas também formal.
Esta visão das "regras limitadas lexicalmente" prediz, corretamente, que a restrição
morfofonológica encontrada na dativização em inglês pode se aplicar a algumas das subclasses
alternantes, mas não a outras: a subclasse dos verbos de "posse futura", por exemplo, possui itens
que seguem o padrão morfofonológico latino assign, guarantee, bequeath, prescribe; ainda assim
estes verbos seguem a alternância.
Mas, os autores se perguntam, por que as "regras limitadas lexicalmente" (ing. narrow-
range rules) seriam potencialmente sensíveis a propriedades morfofonológicas de raízes e
radicais? Aqui, talvez, seja o ponto mais fundamental da proposta: Pinker et al (1989) consideram
que as regras que mudam a estrutura de argumentos são inerentemente regras do componente
morfofonológico, ou lexical propriamente dito – isto é, do componente onde "formas mínimas" se
associam a informações sintáticas e semânticas inerentes. Estas regras são, portanto, formalmente
capazes de afetar tanto a estrutura semântica quanto a estrutura mórfica de um "item lexical".
63
Assim, embora a regra de dativização do inglês não seja, na verdade, uma "operação
morfofonológica" no sentido de ter algum tipo de reflexo morfofonológico sistemático, é
formalmente o tipo de regra que poderia incluir tais operações morfofonológicas esta é a
natureza de uma "regra lexical". Por isso, pode ser condicionada por fatores similares.
3.2.5 Principais Conclusões
Em resumo, as principais conclusões de Pinker et al (1989), em termos teóricos em
particular, sobre a relação entre semântica lexical e sintaxe – são as seguintes:
(a) O fato de que, ao menos aparentemente, há um componente comum de significado
tanto aos verbos que entram na alternância quanto ao resultado da alternância (o uso do verbo na
forma com dois objetos) indica que se trata de um processo relacionando um certo tipo de
estrutura léxico-semântica a outra; especificamente, o processo produz, para verbos que possuem
a estrutura léxico-semântica "X cause [ Y to go to Z]", uma estrutura "X cause [ Z to have Y]".
(b) A sintaxe manifesta este processo relacionando significados lexicais apenas
indiretamente e como reflexo, por meio de regras de associação entre funções semânticas e
funções sintáticas (em particular, recipientes de movimento são manifestados por PPs, sujeitos de
eventos causados são objetos diretos, e objetos de relações de posse também).
(c) O fato de que a alternância dativa é um processo "semi-produtivo" – isto é, de que não
se aplica a todos os verbos e classes verbais que, em princípio, seriam compatíveis com ele (isto
é, que possuem "X cause [Y to go to Z]" em seu significado básico) indica que há, na verdade,
dois níveis de descrição do processo: o geral, mencionado na conclusão (a), e regras lexicais
"mais particulares".
O processo mais geral apenas indica a possibilidade de um verbo, ou uma certa classe
verbal, possa entrar na alternância; são as "regras lexicais mais particulares" que definem que
classes realmente alternam. Estas "regras lexicais mais particulares" são "arbitrárias" no sentido
de que se referem a aspectos mais particulares, imprevisíveis, da semântica dos verbos. Por
exemplo, há regras particulares para certos tipos de "verbos de comunicação" e para certos
"verbos de causação de movimento", mas aparentemente nada, em princípio, impediria que
outros verbos de comunicação e causação de movimento pudessem também alternar.
64
(d) Finalmente, Pinker et al (1989) tomam o fato de que algumas das "regras lexicais mais
particulares" são sensíveis a aspectos da forma dos verbos (a "restrição morfofonológica"), e
outras não, como mais um indício de se trata de um processo no domínio do léxico apenas
"regras lexicais" diriam respeito à "forma da palavra".
Como se vê, em completa oposição à análise gerativa padrão da qual Oehrle partiu, e
seguindo muito das conclusões a que ele chegou, Pinker et al (1989) concluem,
fundamentalmente, que a alternância dativa é um processo "exclusivamente lexical".
3.3 Adele Goldberg (1992) e a "Análise Construcional"
O ponto de partida do artigo de Goldberg são exatamente as conclusões do artigo de
Pinker et al (1989) que discutimos na seção anterior.
8
Goldberg discute, especialmente, as
seguintes conclusões deste artigo (p.37-38): (a) A "construção bitransitiva" (ing. ditransitive
construction, termo usado por Goldberg para a estrutura com dois objetos) pode ser utilizada de
"forma produtiva", mas sua produtividade não é plena - em particular, nem todos os verbos
compatíveis com uma interpretação de "transferência de posse" podem aparecer na estrutura. (b)
A alternância dativa envolve um conjunto de "regras léxico-semânticas" sensíveis a aspectos
mais particulares dos significados verbais. A possibilidade de uma interpretação de "transferência
de posse" é uma condição necessária, mas não suficiente, para o uso da construção bitransitiva;
antes, os mecanismos que realmente autorizam este uso são regras dirigidas a classes lexicais
mais limitadas, definidas por critérios morfofonológicos e semânticos específicos, não-gerais.
Embora Goldberg siga várias das conclusões de Pinker et al (1989), ela procura evitar a
decisão radical de que se trata de um processo "exclusivamente lexical", buscando resgatar um
papel mais significativo para o "componente sintático" na análise da alternância. Em particular,
ela argumenta que as restrições semânticas associadas ao uso da construção bitransitiva são
melhores analisadas como diretamente associadas à construção em si, e não com a estrutura
léxico-semântica de verbos. Como veremos, uma conseqüência desta abordagem, entretanto, é
8
Goldberg (1992) refere-se ao artigo por "Goldberg et al.", seguindo a ordem alfabética dos autores do artigo. Nesta
dissertação, referimo-nos ao mesmo artigo por "Pinker et al (1989)." por duas razões: Steven Pinker é o autor mais
conhecido e mais citado entre os autores do artigo; e, principalmente, é o principal proponente da teoria apresentada
no artigo – como suas obras de 1990 e, mais recentemente, de 2008 deixam claro.
65
que é preciso adotar uma concepção de "sintaxe" diferente daquela adotada pelas abordagens
gerativistas mais comuns.
3.3.1 Discutindo a abordagem de Pinker et al (1989)
Uma das idéias de Pinker et al (1989) que Goldberg adota (1992, p.38-42) é a de que a
construção está associada a "subclasses semânticas de verbos estritamente definidas". Em Pinker
et al (1989), isso tem a ver com o papel "preditor de existência" (ing. existence-predicting) das
"regras de amplitude restrita" (narrow range rules), por oposição ao papel "preditor de
propriedades" (property-predicting) da "regra de amplitude larga" (broad range rule): esta seria a
explicação para o fato de que classes de verbos muito semelhantes podem diferir quanto à
construção bitransitiva (p.40-41), como a lista abaixo mostra:
As classes que permitem a estrutura bitransitiva (GOLDBERG,1992, p.39):
1. verbos de "dar": give, pass, hand, sell, trade, etc.
2. de causação instantânea de movimento balístico: throw, toss, kick, shoot, etc.
3. de "enviar": send, mail, ship, etc
4. de causação contínua de movimento acompanhado em uma direção deiticamente
especificada: bring, take.
5. de "posse futura": offer, promise, bequeath, guarantee, assign, etc.
6. de mensagem comunicada: tell, show, ask, write, cite, etc.
7. de instrumento de comunicação: radio, e-mail, fax, telephone, etc.
8. de criação: bake, make, build, cook, fix (sth to eat), pour (sth to drink), etc.
9. de "obter": get, buy, find, order, grab, earn, etc.
Classes que não permitem a estrutura (GOLDBERG, 1992, p.41):
1. verbos de "cumprir": present, credit, entrust, concede, etc.
2. de causação contínua de movimento acompanhado realizado de uma maneira
determinada: pull, carry, push, lift, lower, etc.
3. do modo de falar: gritar, shout, scream, whisper, etc.
4. de proposições e atitudes proposicionais: say, assert, question, claim, doubt, etc.
66
5. de "escolher": choose, pick, select, favor, indicate, etc.
Goldberg também aceita que as classes de verbos podem ser definidas por critérios
morfofonológicos como a "restrição da forma morfofonológica nativa" (1992, p.41). Além disso,
também parece admitir alguma variação e arbitrariedade lexicais no uso ou não da alternância, ao
observar, junto com Pinker et al (1989), que a semântica do verbo pode não permitir uma
identificação clara de suas classes semânticas (um exemplo seria bequeath, que ora dativiza em
alguns dialetos, ora não, cf. p.42-43).
O que Goldberg rejeita na análise de Pinker et al (1989) (p.44-54) é a idéia de que a
alternância entre estrutura preposicional e estrutura bitransitiva seja o resultado de uma regra
léxico-semântica que produz uma "mudança conceitual gestáltica" no significado do verbo isto
é, no modo como ele codifica a perspectiva do evento. Como vimos, a análise de Pinker et al
(1989) se baseia na idéia de a regra de dativização se aplica a verbos cuja estrutura de evento
básica é (1a) e fornece a eles uma nova estrutura, (1b), cf. (1c):
(1) a. [X cause [Y to go to Z]] "X causa Y a ir para Z"
b. [X cause [Z to have Y]] "X causa Z a ter Y"
c. Regra de Dativização ["broad-range rule"]:
Se um verbo possui uma entrada lexical com a representação (1a),
também pode possuir uma com a representação (1b)
Segundo Goldberg, essa regra enfrenta muitos problemas. O primeiro é que, concebida
como a regra que deriva estruturas ditransitivas de estruturas preposicionais, ela cria uma
assimetria entre as duas estruturas. Mas pouca evidência para isso: nenhuma das estruturas
precede a outra na aquisição; além disso, assim como expressões que ocorrem na estrutura
preposicional, há as que aparecem apenas na bitransitiva, como os exemplos abaixo mostram (cf
1992, p.44-3):
(2) a. Her mother allowed Jane a candy bar.
b. *Her mother allowed a candy bar to Jane.
“A mãe dela permitiu que Jane comesse um doce.”
67
(3) a. The music gave him a headache.
b. *The music gave a headache to him.
“A música deu uma dor de cabeça nele.”
(4) a. Jane refused Fred a kiss.
b. *Jane refused a kiss to Fred.
“Jane recusou-se a beijar Fred.”
Um outro problema apontado por Goldberg (1992) é que muitos dos verbos que aparecem
em ambas as estruturas não possuem os significados básicos postulados. Alguns não significam
"[X cause [Y to go to Z]]" na estrutura preposicional (verbos de criação como bake, make; de
"posse futura", como promise, offer; de permissão, como permit, allow; de rejeição, como refuse,
deny). E muitos verbos não possuem o significado "[X cause [Z to have Y]]" na estrutura
ditransitiva: Joe baked Sally a cake "não significa, sob qualquer interpretação plausível, 'cause to
have'". (Talvez, seja útil observar que o problema já havia sido notado por Oehrle ; por isso, ele
sustentou que a noção de "relação de posse" pertinente não poderia ser assimilada àquela
expressa pelos itens lexicais do inglês, como vimos.)
Goldberg indica um terceiro problema: "em geral, não é claro que os significados dos
verbos mudem" (1976, p.45). Por exemplo, não parece ser muito intuitivo dizer que dois
sentidos para o verbo send em I sent a package to him e em I sent him a package.
3.3.2 O quadro teórico proposto por Goldberg
A principal proposta de Goldberg (1992) não apenas rejeita a abordagem "exclusivamente
lexical" de Pinker et al (1989), mas também muda significativamente a concepção de "sintaxe" tal
como vista pelas abordagens gerativista. Seguindo Fillmore (1987), Goldberg propõe (1992,
p.45-48) que o significado de uma expressão se deve à "sobreposição" dos significados das
palavras com o significado da construção isto é, a própria construção imporia "uma certa
interpretação à cena descrita" (p.45). Assim, "o significado de 'X cause Z to have Y' pode ser
diretamente atribuído ao esquema [Suj Verbo Obj Obj2]" e "as regras léxico-semânticas de
68
amplitude restrita de Pinker et al (1989) podem ser reinterpretadas como classes de verbos
estritamente definidas e convencionalmente associadas à construção" (p.46). Esta é uma
concepção de sintaxe muito diferente daquela que é consagrada pela abordagem gerativista,
incluindo o modelo padrão – isto é, o modelo que serviu de referência para a discussão de Oehrle.
A abordagem gerativista enfatiza a tese da "autonomia da sintaxe": regras sintáticas, como por
exemplo, as de estrutura sintagmática e as transformações do modelo padrão, não são recursos
que se refiram a informação semântica dos itens lexicais. Numa concepção como a sugerida
acima por Goldberg, estruturas sintáticas são essencialmente como itens lexicais: são padrões de
forma inerentemente, convencionalmente, relacionados com um significado particular. É claro
que isso permite uma nova visão do que acontece na alternância dativa.
Algumas das principais conseqüências são as seguintes:
(a) Uma vez que tanto a estrutura preposicional quanto a estrutura bitransitiva são
associadas com um significado próprio, não há mais uma relação de precedência entre elas e,
portanto, não é necessário formular uma regra que derive uma da outra: "Pode-se ver a
alternância como o resultado da sobreposição semântica entre as duas construções. É um fato do
mundo que causar o movimento de algo para um lugar esteja sistematicamente relacionado com
causar o recebimento de algo por alguém" (p.46).
(b) Não "proliferação dos sentidos dos verbos": "throw não adquire o significado de
'cause to receive' quando usado bitransitivamente; throw significa simplesmente 'jogar'. A idéia
de recepção causada é contribuição não do verbo, mas da construção" (p.46).
(c) Condições semânticas sobre as construções podem ser formuladas independentemente
do significado dos itens lexicais; no caso da alternância, independentemente do significado dos
verbos – uma diferença significativa em relação à proposta de Pinker et al (1989). Assim,
Goldberg argumentará que certas condições semânticas da alternância podem se referir aos
argumentos da construção bitransitiva (ao sujeito e ao objeto direto), e não ao significado dos
verbos. Mesmo a participação de um verbo em uma das "classes restritas" pode depender mais
dos argumentos do que do próprio verbo: por exemplo, segundo ela, fix ou pour só seriam
"verbos de criação" com certos objetos diretos: John fixed me a dinner/*the car; John poured me
some drink/*water.
(d) Segundo Goldberg, a análise construcional é mais parcimoniosa: elimina a
necessidade de uma regra lexical vinculando as duas estruturas como bem como de "regras de
69
associação" (ing. linking rules) mapeando funções semânticas a posições gramaticais (p.47).
Entretanto, ela também reconhece que é necessário estipular algum mecanismo arbitrário de
associação entre as "subclasses lexicais" de verbos e a construção ditransitiva, já que esta
associação não é completamente previsível (p.48, 52).
(e) Finalmente, por postular uma associação direta entre construção sintática e "esquema
de significado", a abordagem construcional permite explicar por que verbos de "dar" são
percebidos como mais "básicos" à construção (cf. p.54): a semântica lexical destes verbos
incluiria aspectos de significado semelhantes aos da semântica da construção e seria, portanto,
não apenas redundante com esta mas mais direta e intimamente associado a ela (p.48).
Tendo apresentado o quadro geral da abordagem construcional, Goldberg passa então a
apresentar argumentos mais detalhados para ela. Antes, porém, faz uma breve digressão sobre a
semântica do objeto direto na construção ditransitiva, com o intuito de mostrar que, mais do que
um "possuidor", ele é, semanticamente um "recipiente". (p.49-50): isto é, a "estrutura conceitual"
da construção seria, segundo Goldberg, algo como:
(1) [X cause [Z to receive Y]]
(vs. "[X cause [Z to have Y]]", em Pinker et al, 1989)
Goldberg oferece três argumentos para esta revisão. O primeiro é que muitas extensões
metafóricas da construção não preservam a inferência de que o recipiente vem a "possuir" a
entidade transferida após recebê-la ("" abaixo significa "não implica"):
(2) John gave Mary an insult
"Mary has/possesses an insult"
“John insultou Mary Mary tem/possui um insulto.”
(3) John gave Chris a punch
"Chris has/possesses a punch"
“John deu um soco em Chris Chris tem/possui um soco.”
Note-se que a exemplificação de Goldberg recorre aos casos da construção que, nos
termos de Oehrle , envolvem "nomes predicacionais". Estes casos, para Oehrle , realmente não
70
poderiam envolver "transferência de posse" razão pela qual não seriam compatíveis com a
construção preposicional.
O segundo argumento de Goldberg para (1) é "rápido e rasteiro": esta estrutura poderia
ser o início de uma explicação para a sintaxe da construção bitransitiva, que, segundo rios
autores (JAKOBSON, 1938; LANGACKER, 1987; RICE 1987), "recipientes de força ou efeito"
seriam argumentos naturalmente associados com a posição de objeto direto. Como todos os
argumentos "rápidos e rasteiros", este não nos parece muito convincente. Finalmente, o terceiro
argumento é o de que, tomando a construção como a expressão de uma "transferência", concebe-
se a cena descrita como "dinâmica", e não "estática". Para Goldberg, esta idéia parece mais
adequada intuitivamente ao significado da construção bitransitiva. Mas deve-se observar que,
embora seja claro que o "evento causador" tem que ser dinâmico, o mesmo não se pode dizer da
"situação causada" – e é isso o que a proposta de Goldberg sugere.
Em resumo, a nosso ver, não se pode dizer que seja conclusiva a argumentação de
Goldberg para a idéia de que a construção bitransitiva envolva mais uma "causação de um evento
de receber" do que uma "causação de uma relação de ter". Vejamos, então, seus argumentos mais
específicos para a abordagem construcional da alternância dativa.
3.3.3 A "semântica construcional" da estrutura bitransitiva
Goldberg desenvolve dois principais argumentos para atribuir a semântica de "causação
de evento de receber" à construção, e não diretamente aos verbos: (a) é possível reconhecer um
"significado central" na construção, e os demais significados que adquire admitindo, portanto,
que a construção é polissêmico são melhor explicados como "extensões do significado básico"
da construção do que um "significado básico comum geral e indiferenciado" que estaria presente
em todas as manifestações da construção (tese da análise de Pinker et al, 1989); (b) há restrições
semânticas específicas sobre o sujeito e o objeto, e as exceções a essas restrições são melhor
explicadas como resultado das extensões metafóricas da construção do que por meio da hipótese
de "significado básico comum indiferenciado" que exigiria eliminar a postulação destas
restrições.
A) O significado central e o caráter polissêmico da construção
71
Para Goldberg, há um problema fundamental em se presumir que a construção bitransitiva
possui um significado único em particular, o significado de "transferência de posse": embora
em seus usos mais comuns (por exemplo, com os verbos de "dar") ela implique transferência de
posse, isto não acontece com outras das classes de verbos, que implicam outras "relações". Este é
caso dos verbos de criação (bake, make, etc.), verbos de compromisso ou obrigação (promise,
guarantee, etc.), de posse futura (bequeath, assign, etc.), de permissão (permit, allow, etc.), de
"recusa" (refuse, deny, etc.). Para Goldberg, tentar encontrar o elemento comum destas várias
"relações de posse" praticamente esvaziaria esta noção de qualquer conteúdo semântico.
Assim, Goldberg acredita que a construção bitransitiva é um caso de "polissemia
construcional", em que "uma mesma forma é associada com sentidos relacionados, mas
diferentes". Esta análise permitiria capturar de modo mais natural a relação entre os vários
sentidos da construção, bem como permitiria reconhecer que há um "sentido mais central", a
partir do qual os demais são, de algum modo, derivados. Especificamente, o sentido central seria
justamente a expressão de um processo em que um agente causa a transferência bem sucedida de
um objeto a um recipiente.
Goldberg oferece dois argumentos para sustentar a hipótese de que o sentido de
"transferência física" é "mais central". O primeiro é o de que "este [sentido] envolve a idéia de
uma "transferência concreta", por oposição aos demais sentidos da construção, que são em geral
"transferências metafóricas ou abstratas (no sentido de potenciais)". Normalmente, sentidos
metafóricos ou abstratos se desenvolvem, diacronicamente, a partir de significados mais
concretos. O segundo argumento é o de que uma tendência entre os falantes em interpretar
verbos desconhecidos que ocorrem na construção como tendo de significa de transferência física
isto é, como give (1992, p.54).
Goldberg compartilha com Pinker et al (1989) a idéia de que diferentes classes de verbos
se associam a construção de modo mais ou menos arbitrário (o que, no artigo de Pinker, é
expresso pelas narrow-range lexico-semantic rules). No caso da concepção de Goldberg, essa
idéia aparece de modo diferente: embora haja relação entre os vários sentidos da construção, eles
não são "predizíveis" por meio de alguma "regra geral" associando significados: "não se pode
prever a partir da gramática do inglês que verbos de criação ocorrem na construção; além disso,
também não é predizível que expressões bitransitivas com estes verbos implicarão intenção de
transferência, e não transferência real ou benefacção geral”. Mas, concebendo a relação entre o
72
"sentido central" e os "sentidos particulares" como uma relação de "extensão de significado"
por processos como a metáfora e a metonímia, a abordagem de Goldberg permite ao menos
buscar uma motivação específica para as extensões encontradas.
Assim, ela propõe que as relações que associam o "significado central" da construção
bitransitiva com outros sentidos são também encontradas em outros domínios do inglês. Alguns
exemplos destas relações seriam os seguintes (cf. fig.1, p.56):
QUADRO 2: Associação de sentido da construção bitransitiva
Sentido (B):
Sujeito tem a intenção de (causar) Obj1
receber Obj2
Classes:
(iv) verbos de criação: bake, make, build, etc.
(v) verbos de "obter": get, grab, earn, etc.
Sentido (A), central:
Sujeito causa com sucesso Obj1 receber
Obj2
Classes de verbos:
(i) verbos de "dar": give, pass, hand, etc.
(ii) verbos de causação instantânea de
movimento balístico: throw, kick, toss, etc.
(iii) verbos de causação contínua de
movimento com direção especificada
deiticamente: bring, take
Sentido (C):
Sujeito assume, reconhece, cria, etc.,
condições de Obj1 receber Obj2
Classes:
(vi) verbos de "dar" com condições de
satisfação associadas: promise, owe, guarantee
Fonte: Goldberg,p.56
De acordo com Goldberg, a relação entre os sentidos A e B é uma associação entre
intenção e realização, a mesma que é encontrada no uso do presente progressivo, nos exemplos
(1a,b) abaixo; e a relação entre os sentidos A e C é uma associação entre condições de satisfação
e realização, encontrada na leitura causativa de (2a,b,c):
(1) a. Not right now, I'm working.
“Agora não, estou trabalhando.”
b. Tomorrow, I'm working all day.
“Amanhã estarei trabalhando o dia todo.”
73
(2) a. She ordered him out of the house.
“Ela ordenou que ele saísse de casa.”
b. She asked him into the room.
“Ela pediu que ele entrasse na sala.”
c. She invited him out of her cabin.
“Ela o convidou para sair da cabine.”
B) Exceções às restrições semânticas como resultado de extensões metafóricas
Embora algumas restrições semânticas sobre os argumentos da construção bitransitiva
sejam encontradas na maioria de seus usos, elas não foram incorporadas nas "análises
abstracionistas" porque há subclasses de verbos que não as apresentam. Para Goldberg,
entretanto, estas subclasses resultam justamente de "extensões metafóricas" da construção
bitransitiva em cujo caso certos aspectos do "sentido literal" da construção podem ter sido
abandonados. São duas as restrições discutidas por Goldberg: a condição da "volicionalidade"
sobre o sujeito da construção (1992,p.58-61), e a da "animacidade" e da "voluntariedade" (ingl.
animacy e willingness, respectivamente) do objeto (p.61-62).
A primeira condição seria responsável, por exemplo, pela impossibilidade de frases como
(3) e (4); por outro lado, a existência de casos como (5) e (6) parecem contrariar a generalização
(razão pela qual Pinker et al (1989) presumem que o sujeito de verbos bitransitivos deve ser um
cause, e não um agent):
(3) *John threw the outfielder the ball he had intended the firstbaseman
to catch.
“John arremessou ao defensor a bola que ele tinha intenção que o jogador da
primeira base pegasse.”
(4) *John took Sam a package by leaving it in his trunk where Sam
later found it.
*“John levou ao Sam um pacote, deixando o pacote em sua mala, onde Sam o
encontrou mais tarde
74
(5) The medicine brought him relief.
“O remédio trouxe alívio para ele.”
Goldberg sustenta, entretanto, que os casos excepcionais em (4) e (5) resultam da
metáfora abaixo, pela qual a "causação de um efeito" é concebida como a "transferência do
efeito". Esta metáfora seria independentemente atestada por exemplos (6) e (7):
Metáfora: Eventos de Causação são Transferências
Domínio de origem = Tranferências: Sujeito faz Obj1 receber Obj2
Domínio-alvo = Causações: Sujeito é a causa do Obj1 ser afetado por Obj2
Correspondências: Sujeito = Agente = Causa;
Obj1 = Recipiente = Paciente;
Obj2 = Tema = Efeito/Estado.
(6) The unforeseen circumstances laid a new opportunity at our feet.
“As circunstâncias imprevistas nos trouxeram uma nova oportunidade.”
(7) The document supplied us with some entertainment.
“O documento nos forneceu alguma diversão.”
A mesma extensão metafórica explicaria exceções como (8) e (9) à condição da
animacidade/voluntariedade do objeto direto -- restrição que seria responsável pela
inaceitabilidade de (10) e (11) (cf. p.61-62):
(8) The paint job gave the car a higher sale price.
“A pintura valorizou o preço do carro.”
(9) The music lent the party a festive air.
“A música deu a festa um ar de festividade.”
75
(10) He sent who/*where a letter?
“Para quem/para onde ele enviou a carta?
(11) *Sally burned Joe some rice.
"Sally queimou o arroz para Joe"
9
Segundo Goldberg, várias subclasses de verbos cuja participação na alternância
também parece se dever a outras metáforas encontradas em inglês. Seriam exemplos os verbos de
comunicação e os que envolvem o que Oehrle chamou de "predicational nouns", ou seja, nomes
predicacionais.
Os primeiros participariam da alternância devido à "Metáfora do Conduto" (Reddy
1979), pela qual a comunicação é concebida como a "viagem" (da informação) por um certo
trajeto que vai do estímulo ao receptor. Esta metáfora é encontrada nas expressões em (12) e (13)
e explica a construção bitransitiva em (14)-(16) (cf. p.63):
(12) He got the ideas across to John.
“Ele passou as idéias dele para John.”
(13) Jo received the information from Sam.
“Jo recebeu a informação (através) de Sam.”
(14) She wired Joe a message.
“Ela telegrafou uma mensagem ao Joe.”
(15) She quoted Joe a passage.
“Ela citou uma passagem ao Joe.”
(16) She gave Joe her thoughts on the subject.
9
Goldberg observa que (12) é aceitável em inglês se Joe gosta de arroz queimado – em cujo caso seria um recipiente
voluntário.
76
“Ela contou ao Joe suas idéias sobre o assunto.”
Metáfora: Comunicação é Transferência
Domínio de origem = Tranferências: Sujeito faz Obj1 receber Obj2
Domínio-alvo = Comunicação: Sujeito comunica Obj2 para Obj1
Correspondências: Sujeito = Agente = Falante/Emissor;
Obj1 = Recipiente = Ouvinte/Receptor;
Obj2 = Tema = Informação.
Quanto às estruturas bitransitivas com "predicational nouns", são possíveis, segundo
Goldberg, em função da metáfora pela ações intencionalmente dirigidas a outra pessoa podem ser
concebidas como "objetos transferidos":
(17) He caught the kiss she threw him.
“Ele pegou o beijo que ela atirou para ele.”
(18) She threw a parting glance in his direction.
“Ela lançou um olhar na sua direção.”
(19) Bob got/received a slap/kiss/smile from Jo.
“Bob recebeu um sorriso da Jô.”
Metáfora: Ações dirigidas a alguém são Transferências
Domínio de origem = Transferências: Sujeito faz Obj1 receber Obj2
Domínio-alvo = Ações dirigidas: Sujeito performa Obj2 dirigida a Obj1
Correspondências: Sujeito = Agente = Ator;
Obj1 = Recipiente = Paciente;
Obj2 = Tema = Ação.
77
Em resumo, o que Goldberg defende é que a abordagem construcional é uma forma mais
natural de explicar as propriedades da construção bitransitiva, especialmente o caráter semi-
produtivo da regra isto é, porque se aplica somente a algumas das classes de verbos que
potencialmente seriam compatíveis com ela. Na abordagem construcional, esta propriedade
resulta do fato de que são estas as subclasses para as quais existem "processos de extensão de
sentido" – como as metáforas acima apresentadas.
3.3.4 Sobre a relação com as paráfrases preposicionais
Para Goldberg, a abordagem funcional coloca de outro modo a questão da relação entre a
estrutura bitransitiva e suas paráfrases preposicionais com to e for: não se trata de saber por que
uma regra lexical ou sintática se aplica a certos verbos ou não. Para a abordagem funcional, a
questão é: qual a relação que entre as semânticas destas construções independentes, de modo
que as classes de verbos associadas com uma podem se sobrepor às classes associadas com a
outra?
A análise sugerida por Goldberg (e desenvolvida em artigos posteriores, como em
Goldberg,2002) é, em resumo, a seguinte: (a) o sentido central da construção [ Suj V Obj
PP
trajeto
] é o de causação de movimento, como em He kicked the ball to the endzone; (b) a
construção é utilizada com verbos bitransitivos, especialmente os de "transferência de posse",
porque existe uma metáfora pela qual se pode compreender "relações de posse" em termos
espaciais: "posse é compreendida como estar localizado perto (...) e transferir a posse de um
possuidor, como movimentar o objeto possuído para longe ("afastar") do possuidor". Esta
metáfora seria ilustrada pelos exemplos (1) e (2) abaixo, e explicaria porque a construção
preposicional pode ser utilizada sem implicar movimento físico, como mostram os exemplos (3)
e (4)
(1) They took his house away from him.
“Tiraram a casa dele.”
(2) He lost his house.
“Ele perdeu a casa dele.”
78
(3) Suddenly several thousand dollars came into his possession.
“De repente ele tomou posse de muitos doláres.”
(4) She gave her house to the Moonies.
“Ela deu a cada dela para os Moonies.”
3.3.5. Principais Conclusões
Em resumo, as principais conclusões de Goldberg – especialmente quanto ao que a
alternância dativa pode indicar sobre a relação entre a semântica lexical dos verbos e a sintaxe
podem ser resumidas do seguinte modo:
(a) A semântica associada à construção bitransitiva é melhor analisada como diretamente
relacionada com a construção como um todo, isto é, como o frame [Suj V OD1 OD2], do que
com alguma estrutura léxico-semântica "abstrata" encontrada nos significados de verbos
particulares, ou de classes particulares de verbos. Esta é uma hipótese que distingue radicalmente
a abordagem funcional das concepções gerativistas da sintaxe: nestas últimas, estruturas e
processos "puramente sintáticos" não mencionam ou operam sobre informações semânticas.
(b) De modo paralelo, a relação entre a construção bitransitiva e suas paráfrases
preposicionais não resulta de uma "regra gramatical" associando as duas estruturas. Não resulta,
em particular, de uma regra transformacional. Na abordagem construcional, o que é,
simplesmente, uma sobreposição entre a semântica e a pragmática das duas construções. Como
conseqüência, também uma sobreposição nas classes de verbos que aparecem numa ou noutra
estrutura. Note-se que este modo de ver a "alternância" também difere fundamentalmente da
concepção de Pinker et al (1989), para quem a relação entre as duas estruturas também é uma
"relação de significado": mas é uma relação de "derivação de significado" representada uma
"regra lexical" (ou melhor, por um conjunto de "regras lexicais particulares" que são
possibilitadas por uma associação de significado mais geral).
(c) Para Goldberg, o fato de que muitos dos verbos que entram na alternância possuam
um componente de significado em comum não se deve ao fato de que essa é uma "condição" para
"sofrerem a aplicação de uma regra". O que o explica é o fato de a própria construção possui um
79
"significado central": ela descreve uma cena de transferência envolvendo um agente volicional,
um tema e um recipiente voluntário. Verbos cujo significado é compatível com esta cena podem
ocorrer no frame sintático da construção bitransitiva. O fato de que a própria construção possui
um "significado central inerente" explicaria porque este significado é compartilhado pela maioria
dos verbos que aparecem na estrutura mas não por todos. Na análise de Pinker et al (1989),
todos os verbos que aparecem na estrutura devem compartilhar o mesmo componente de
significado (a estrutura léxico-semântica "X cause [Z to have Y]").
(d) A "semi-produtividade" da alternância dativa, para Pinker et al (1989), é resultado da
existência de dois níveis de "processos lexicais": os verbos podem ou não, em princípio, entrar na
alternância se compartilham um elemento de significado comum; mas entram ou não, realmente,
na alternância como conseqüência de terem certos elementos de significado mais particulares que
os colocam em classes mais restritas de verbos; e as regras que, realmente, criam novas entradas
lexicais são as que mencionam estes aspectos mais particulares de significado. Nesta análise, a
relação entre o processo geral e as regras lexicais particulares pode ser, em princípio, arbitrária.
A explicação de Goldberg para a "semi-produtividade" da alternância é bem diferente.
Para ela, diferentes classes de verbos não participam da alternância porque compartilham um
"significado básico comum". Antes, isso vale apenas para os verbos que são "prototípicos" da
"cena de transferência" estes participam da alternância porque são compatíveis com o
significado inerente da construção. Outras classes verbais – por exemplo, certos verbos de
comunicação e os verbos de criação participam da alternância porque o significado central da
construção pode ser estendido por processos como metáforas e metonímias.
Nessa visão, o que se espera é uma explicação mais natural entre para cada classe
particular de verbos que entra na alternância: se não são verbos de transferência, deve haver
algum processo metafórico, etc., independentemente encontrado na língua e que se aplica aquela
classe. Isso também ofereceria uma explicação mais natural para eventuais "desvios" da
"semântica prototípica" da construção como, por exemplo, nos casos em que o sujeito não é
animado nem volicional.
Como se vê, a hipótese de que a construção bitransitiva possui um "significado central"
permite a Goldberg sugerir caminhos pelos quais certos aspectos da construção receberiam uma
explicação mais natural do que na análise "radicalmente lexical" de Pinker et al (1989). Mas,
seguindo a abordagem construcional, é preciso repensar completamente a natureza da sintaxe. Ela
80
não seria simplesmente um conjunto de padrões de forma resultante de certos processos
gramaticais (modelo padrão da gramática gerativa), nem apenas uma combinação disso com
algum tipo de "projeção das informações lexicais" (como é no modelo de Princípios e Parâmetros
e, possivelmente, na concepção por trás do artigo de Pinker et al, 1989). Na visão construcional,
estruturas sintáticas podem estar inerentemente associadas a um significado particular
exatamente como uma palavra. Ou seja, o resultado básico desta concepção é, num certo sentido,
resgatar um papel mais importante para a sintaxe na análise da alternância dativa, ao mesmo
tempo em que apaga um pouco as distinções entre sintaxe e léxico.
3.4 Um outro modo de ver a relação sintaxe/morfologia: Groefsema (2001)
Muitas das análises da alternância dativa, inclusive as que vimos até aqui, assumem que
ela pode ser explicada por aspectos não-particulares do significado dos verbos aspectos que
definem "subclasses" verbais, como o tipo de processo que denotam (de "causação contínua
deiticamente definida" vs. "causação contínua", cf. Pinker et al, 1989) ou seu conjunto de papéis
temáticos (se possui "agente, tema e meta/beneficiário" vs. "agente, tema e meta", simplesmente,
cf. Jackendoff 1990).
Segundo Groefsema (2001), estas análises compartilham o que se pode chamar de
hipótese da "gramática cega às cores lexicais": os processos gramaticais seriam "cegos" a
aspectos específicos, particulares, dos itens lexicais, e "enxergariam" apenas elementos
conceituais mais gerais, comuns a vários itens lexicais e, portanto, a classes de palavras. (A
imagem da "cegueira à cor lexical" é de Pinker, 1989, p.277).
O principal objetivo do artigo de Groefsema (2001) é rejeitar a hipótese da "gramática
cega às cores lexicais". Segundo Groefsema, "para compreender a alternância dativa é preciso
levar em conta aspectos específicos das representações conceituais dos verbos que normalmente
são tidos como idiossincrasias irrelevantes para a gramática" (2001, p.526). Evidentemente, esta é
uma proposta radicalmente diferente de todas as que discutimos até, todas expressando, de algum
modo, a idéia de que "subclasses léxico-semântica" de verbos são elementos fundamentais na
explicação da alternância. Groefsema (2001) enfatiza o papel das informações idiossincráticas
dos verbos, isto é, aquelas informações que são específicas a cada item lexical. Isso indica que os
81
mecanismos pelos quais ela concebe a relação entre léxico e sintaxe são bastante diferentes das
concepções que vimos até aqui.
Em termos gerais, a linha de análise adotada por Groefsema (2001) é bastante próxima à
de Pinker (1989) e Pinker et al (1989). Em especial, Groefsema (2001) também assume que as
duas estruturas dativas do inglês codificam uma "perspectiva gestáltica" diferente do evento na
estrutura bitransitiva, o "argumento afetado" pelo evento é o recipiente; na estrutura
preposicional, o "argumento afetado" é o tema. Para Groefsema (2001), entretanto, restrições
semânticas mais específicas da alternância não tem a ver com a associação arbitrária ou não
de diferentes classes verbais com as estruturas dativas. As restrições adicionais resultam do fato
de a semântica inerente das estruturas dativas interagir com representações conceituais
"coloridas" dos verbos isto é, com representações contendo a idiossincrática específica a cada
verbo. Esta interação é regida por uma condição a "Condição do Efeito Único" que dá um
papel fundamental para a informação lexical "colorida" na explicação de quais verbos podem ou
não ser utilizados numa ou noutra das estruturas dativas. Vejamos, então, a concepção de
Groefsema (2001).
3.4.1 Problemas para análises "cegas-às-cores-lexicais"
Groefsema (2001) procura detectar problemas nas análises "cegas-às-cores-lexicais" em
particular, nas análises de Pinker (1989) e Pinker et al (1989), e de Jackendoff (1990).
Uma primeira objeção à análise de Pinker et al (1989) diz respeito ao grau de
"arbitrariedade admitido" pelas chamadas "regras léxico-semânticas de amplitude restrita".
Embora estas sejam concebidas para explicar quais subclasses de verbos entram na alternância,
ainda assim não são suficientes para isso. Pinker et al (1989) precisam recorrer a chamada
"restrição morfofonológica" para excluir alguns verbos que pertencem às subclasses
especificadas, mas não se apresentam na construção bitransitiva, como donate, contribute (verbos
de "dar") e report, announce (verbos de "mensagem comunicada").
A presença desta condição, como vimos, é utilizada por Pinker et al (1989) como
argumento adicional para o caráter "lexical" das "regras de amplitude restrita". Entretanto, como
Pinker et al (1989) observam e Groefsema (2001) reitera, a restrição morfofonológica não se
aplica a todas as subclasses: são insensíveis a ela as classes de verbos de "posse futura"
82
(recommend, guarantee), malefactivos e de "impedimento de posse (futura)" (deny, refuse), de
"instrumento de comunicação" (telegraph, telephone). Pinker et al (1989) tomam isso como mais
um efeito da relativa arbitrariedade dos processos lexicais; já Groefsema (2001), como uma
admissão de que a teoria não é explanatória o suficiente.
Além disso, Groefsema (2001) argumenta que a análise de Pinker et al (1989) também
não oferece uma explicação mais detalhada para o que distingue as subclasses que podem ou não
participar da alternância. Por exemplo, segundo ela:
Pinker (1989, p.273) diz que o que distingue verbos como throw (...) de verbos como
pull (...) é que os primeiros são achievements e não activities, e o ato de atirar/jogar
precede o movimento no tempo, enquanto que verbos como pull envolvem causação
contínua de movimento. Entretanto, Pinker não explica por que esta diferença (...) faz
com que se use verbos como throw com a estrutura de dois objetos, mas não verbos
como pull (2001, p.529).
10
Com relação à análise de Jackendoff (1990), a argumentação de Groefsema (2001) é mais
específica. Jackendoff não concebe a construção bitransitiva como derivada por meio de
diferentes regras léxico-semânticas. Para ele, verbos como give possuem duas representações
léxico-conceituais que diferem entre si apenas por um aspecto: uma delas marca o argumento
meta também como um "beneficiário", isto é, como "positivamente afetado" pela ação. verbos
como donate não possuem esta última estrutura semântica e, por isso, não aparecem na
construção bitransitiva. E a alternância ocorre porque as duas estruturas conceituais de verbos
como give são mapeadas (por meio das regras de associação e da hierarquia temática) em
esquemas sintáticos diferentes, sendo que a construção bitransitiva corresponde à estrutura
conceitual com o meta/beneficiário.
Groefsema (2001) argumenta, entretanto, que não é possível explicar os efeitos de
significado da alternância dativa em termos das distinções temáticas entre "beneficiário" e
"paciente", ao menos tal como Jackendoff a caracterização destes dois papéis sendo o
beneficiário o argumento que é "positivamente afetado" pela ação, e o paciente o argumento que
é "negativamente afetado". Por exemplo, a análise de Jackendoff prediria que Sam é um
10
Na verdade, Pinker et al (1989, p.244-245) procuram oferecer uma explicação para esta diferença; mas não
procuram explicitá-la, nem sugerem que seja uma explicação geral. Aliás, vimos antes que assumem que o fato de
uma subclasse de verbos ser ou não interpretada como uma "transferência de posse" pode ser um "acidente histórico"
na evolução da língua (cf. p.245).
83
argumento "positivamente afetado" em (1) (2001, p.531) ocorrendo como o objeto direto do
verbo, ele deve ser um "beneficiário":
(1) The Inland Revenue gave Sam a tax demand for 10.000 pounds.
"A receita federal deu ao Sam uma multa de 10.000 reais"
Mas os testes fornecidos por Jackendoff para identificação de pacientes e beneficiários,
na verdade, indicam que Sam é o "paciente" em (1). Como observa Groefsema (2001), (2)
abaixo, que seria o teste para identificação de um beneficiário, só pode ser interpretada
ironicamente; e (3), que é o teste para pacientes, é perfeitamente aceitável:
(2) What the Inland Revenue did for Sam was give him a tax demand for
10.000 pounds.
"O que a receita federal fez para o Sam foi dar-lhe uma multa de
10.000 reais"
(3) What the Inland Revenue did to Sam was give him a tax demand for
10.000 pounds.
"O que a receita federal fez com o Sam foi dar-lhe uma multa de
10.000 reais"
Groefsema (2001) demonstra, ainda, que a sentica de give deve ser neutra em relação a
como o objeto é afetado pela ação: give é compatível com efeitos negativos, como em (1)-(3); e é
também compatível com efeitos positivos, como em (4), ou neutros, como em (5)-(6):
(4) a. Harry gave Sam a book.
"Harry deu ao Sam um livro"
b. What Harry did for Sam was give him a book.
"O que Harry fez pr'o Sam foi dar-lhe um livro"
(5) John gave Mary a questionnaire.
84
"John deu à Maria um questionário"
(6) ??What John did for Mary was give her a questionnaire.
"O que John fez para Maria foi dar-lhe um questionário"
??What John did to Mary was give her a questionnaire.
"O que John fez com a Maria foi dar-lhe um questionário"
Groefsema (2001) conclui que os efeitos da alternância dativa não podem ser
caracterizados em termos de "afetação positiva" ou "negativa" do argumento meta – portanto, não
pode ser caracterizado pela distinção temática entre "beneficiários" e "pacientes".
3.4.2 A análise de Groefsema (2001)
Como já dissemos, Groefsema (2001) compartilha com Pinker (1989), Pinker et al (1989),
a idéia de que as duas construções não diferem com relação à situação descrita, mas em relação à
perspectiva da situação: a estrutura preposicional tem foco nos efeitos sobre o tema, enquanto que
a estrutura bitransitiva tem foco nos efeitos sobre o argumento meta (ou possuidor, cf. abaixo).
Uma razão geral para este modo de abordar o problema seria o fato de vários predicados diferem
precisamente pela perspectiva com que descrevem o evento: precede vs. follow, come vs. go,
bring vs. take.
A fim de expressar esta idéia geral para os "verbos dativos", Groefsema (2001) propõe
uma análise que segue a proposta por Pinker (1989) e Pinker et al (1989) com relação à semântica
das estruturas alternantes: são "estruturas de causação de movimento e de posse". Mas ela
adicionando um componente conceitual ao esquema geral: um traço responsável pela idéia de
"afetação" de um argumento ("X afetar Y"). Além disso, para Groefseman (2001) é importante
lembrar que os verbos podem especificar, em sua estrutura conceitual, o resultado particular do
modo como o sujeito afeta o argumento afetado ("X ficar (de modo) W"). Assim, a análise
léxico-semântica das duas estruturas, segundo Groefsema (2001), é a seguinte:
85
(1) a. NP
x
V NP
y
to NP
z
Estrutura conceitual:
[X CAUSAR [Y IR [PARA Z]]]
[X AFETAR Y]
[Y FICAR W]
b. NP
x
V NP
y
NP
z
Estrutura conceitual:
[X CAUSAR [Y TER Z]]
[X AFETAR Y]
[Y FICAR W]
Quanto à distribuição das duas estruturas sintáticas, a hipótese fundamental de Groefsema
(2001) é a de que um verbo ocorrerá numa ou noutra estrutura sintática se satisfizer a condição
abaixo (a formulação a seguir é adaptada da p.536):
(2) Condição do Efeito Único:
Um verbo poderá ocorrer numa ou noutra das estruturas sintáticas em (1a,b) se: (a)
sua representação conceitual (seu 'significado') contiver a estrutura causativa
correspondente e (b) também especificar um "efeito único" sobre o argumento
afetado Y – isto é, se W for um "efeito único".
Groefsema esclarece o que entende por "efeito único":
A combinação verbo/estrutura sintática codifica um efeito potencial ou real sobre Y que
não é codificado por nenhuma outra combinação verbo/estrutura sintática (em que
'efeito' é compreendido como o modo pelo qual Y muda de estado como um resultado
da ação) (2001, p.536).
O ponto importante acerca da "Condição do Efeito Único" é que ela difere drasticamente
das demais abordagens. Nas demais análises, um verbo é autorizado a ocorrer numa ou noutra das
estruturas pelos componentes de significado que ele compartilha com outros verbos dporque
86
as demais abordagens presumem que é preciso lidar com "subclasses verbais". Para Groefsema
(2001), um verbo é autorizado a ocorrer numa ou noutra estrutura se diferir, quanto ao efeito que
expressa sobre o argumento Y, de verbos similares. É isso o que a condição em (2) afirma.
Vejamos agora como Groefsema (2001) utiliza esta condição na análise de casos particulares.
Uma das classes verbais analisadas por Groefsema é a dos verbos de "dar":
especificamente, a autora discute o fato de que verbos como give, pass, hand, lend e sell podem
ocorrer com ambas as estruturas (2001, p.537-538), enquanto donate só ocorre com a estrutura
preposicional (2001, p.541-542). A questão é: por quê?
Para Groefsema (2001), todos os verbos de "dar" podem ocorrer com a estrutura
preposicional porque possuem um "efeito único" sobre o argumento tema nesta estrutura (isto é,
NP
y
no esquema em (1a)). Por exemplo, quando alguém dá algo a outra pessoa ("gives something
to somebody"), a coisa dada se torna propriedade de quem a recebe, mas não é necessariamente
"transferida fisicamente" (por exemplo, "Meu pai me deu um apartamento"). quando alguém
passa algo a outra pessoa ("pass something to somebody"), a coisa passada é transferida
físicamente, embora sua posse não seja necessariamente transferida. Assim, give e pass diferem
em seus efeitos sobre o argumento tema isto é, têm "efeito único" sobre ele. Logo, ambos
podem ser usados com na estrutura [NP
x
V NP
y
to NP
z
]. E do mesmo modo donate: quando
alguém doa algo a outra pessoa ("donates something to somebody"), a coisa doada se torna posse
sem transferência física necessária, como acontece com give; mas uma coisa doada não é uma
coisa dada: uma doação possui um "caráter social" particular .(p.542)
Por outro lado, apenas give e pass podem também ocorrer na estrutura bitransitiva, donate
não. Groefsema (2001) sustenta que isso acontece porque apenas give e pass possuem um "efeito
único" sobre o argumento possuidor nesta estrutura (isto é, NP
y
no esquema em (1b)); donate
não. A diferença entre give e pass novamente diz respeito à diferença entre "transferência de
posse" e "transferência física": a pessoa a quem se algo é "afetada" de modo diferente da
pessoa a quem se passa algo. (Lembremos aqui que Oehrle caracterizou esta diferença em termos
de "posse" versus "custódia temporária".) Por outro lado, Groefsema (20010 afirma que donate
não difere de give quanto ao efeito sobre o recipiente: com ambos os verbos, o recipiente é um
"possuidor" com as mesmas características de significado. Isto é, "a forma com dois objetos de
donate não codificaria um efeito único sobre o recipiente e, por isso, donate não aparece nesta
forma" (GROEFSEMA, 2001, p.542).
87
Notemos, antes de mais nada, que falta um detalhe nesta análise. Pelo raciocínio acima,
também give não poderia ser usado com a construção bitransitiva que seu efeito não é
distinto do efeito de donate. O que é preciso adicionar à análise de Groefsema (2001) embora
isso pareça ter ficado despercebido da autora é que give é, em algum sentido, um verbo "mais
básico" que donate e, portanto, tem preferência de uso quando ambos "expressam o mesmo
significado".
Groefsema propõe análises semelhantes para outras classes de verbos, como por exemplo
no caso das diferenças entre tell e verbos de "modo de dizer", como shout, scream e whisper
(2001, p.540 e 542-543). Todos estes verbos diferem com relação aos efeitos da ação sobre
aquilo que é dito, gritado, sussurrado, etc. Entretanto, nenhum dos verbos de "modo de dizer"
difere de tell com relação aos efeitos sobre o recipiente presumindo que o que importa em
relação ao "recipiente" são os "efeitos de conteúdo comunicados". Nas palavras de Groefsema:
Quando alguém grita (berra, sussurra, etc.) algo para alguém, o recipiente [, como no
caso de tell,] potencialmente vem a ter uma representação mental de algo que foi
comunicado verbalmente. Entretanto, o modo pelo qual a mensagem é comunicada não
adiciona nada ao efeito da comunicação no recipiente" (2001, p.543
).
Assim, os verbos de "modo de dizer" e tell possuem "efeitos únicos" sobre o que é dito.
Mas os primeiros não possuem um "efeito comunicativo único" sobre quem recebe a mensagem;
portanto, só ocorrem com a estrutura preposicional, enquanto tell ocorre com as duas. Observe-se
que, como no caso de give e donate, aqui também é preciso dizer que tell é um "verbo mais
básico" que os demais verbos de "modo de falar".
3.4.3 Principais Conclusões
Como vimos, a conclusão mais importante de Groefsema (2001) parece ser a de que os
componentes específicos, idiossincráticos, de significado dos verbos têm um papel importante no
modo como estes são utilizados sintaticamente. Nos termos da autora, "(...) é possível explicar os
fatos da alternância dativa se levar em conta não apenas certos aspectos do significado de um
verbo que são compartilhados por grupos de verbos, mas também aspectos idiossincráticos da
conceptualização do evento que é expressa pelo verbo" (2001,p.526).
88
Do modo como Groefsema vê sua proposta, o saldo positivo é essencialmente com
relação à "simplicidade" da teoria: "(...) Isso elimina a necessidade de distinguir várias classes
limitadas para as quais é preciso formular regras específicas relacionando-as à estrutura
bitransitiva" .Isto é, nesta análise não se precisa de "regras" para obter os efeitos sobre cada
classe: a semelhança de significado com relação aos efeitos sobre o recipiente é justamente o que
bloqueia o uso da construção bitransitiva.
A nosso ver, entretanto, a proposta de Groefsema (2001) tem repercussões mais
profundas: parece-nos que o modo como ela concebe a relação entre sintaxe e léxico é bastante
diferente do modo como Pinker et al (1989) ou Goldberg a concebem.
Nestes dois últimos trabalhos, como na maioria dos trabalhos sobre a relação entre sintaxe
e léxico, um item lexical é suficiente para um item lexical ser usado numa estrutura sintática se
seu significado for, em algum sentido, "compatível" com a estrutura. No trabalho de Pinker et al
(1989), esta compatibilidade se expressa pelo fato de que as estruturas dativas são, na verdade,
"projeção" das informações de significado dos verbos (por meio das regras de associação entre os
papéis léxico-semânticos dos argumentos e suas funções sintáticas). No trabalho de Goldberg,
esta compatibilidade é expressa pelo fato de que ou o significado dos verbos tem sobreposição
com o significado da construção, ou há algum "processo de extensão de significado" uma
metáfora, uma metonímia, etc. que torna o significado da construção compatível com o
significado de uma classe de verbos.
Na proposta de Groefsema (2001), entretanto, a "compatibilidade de significado" entre
verbo e construção não é uma condição de uso suficiente do verbo na construção; além disso, é
preciso que o verbo "adicione um componente de significado" à construção que nenhum outro
verbo adiciona. Isto é: para Groefsema (2001), um verbo pode ser usado em uma estrutura
sintática se ele for capaz de expressar algo que não pode ser expresso de outro modo. Esta é uma
concepção bastante radical da relação entre sintaxe e léxico: por ela, a sintaxe não deve
"enxergar" apenas "informações gramaticalmente" pertinentes dos itens lexicais; deve também
e principalmente – "enxergar" as informações "exclusivas" de cada item lexical. A fim de
expressar esta concepção, seria necessário um tipo de gramática bem diferente daquele que é
descrito, por exemplo, nos manuais de gramática gerativa, em que a sintaxe "enxerga"
propriedades lexicais comuns a classes de itens.
89
3.5 Resumo do capítulo
Neste capítulo, nosso objetivo foi oferecer uma perspectiva das alternativas de análise da
alternância dativa tal como evoluíram na literatura a partir do trabalho clássico de Oehrle .
Especialmente, procuramos identificar como estas alternativas ora seguiram, ora desenvolveram,
as observações que Oehrle originalmente utilizou para sustentar que a alternância dativa era
essencialmente resultado de uma cooperação íntima entre sintaxe e léxico, mais do que
simplesmente um processo sintático. Lembremos que o argumento principal de Oehrle , neste
sentido, é que a semântica lexical dos verbos é fundamental para compreender as diferentes
restrições apresentadas pela alternância. Assim, nosso foco neste capítulo foi procurar realçar,
justamente, como a questão da relação entre sintaxe e léxico evoluiu no estudo da alternância
dativa.
Em resumo, procuramos mostrar que, a partir de Oehrle, surgem pelo menos três
perspectivas diferentes neste sentido.
Há aqueles que vêem processos como a alternância dativa como sendo essencialmente um
"processo lexical", tendo a sintaxe o papel secundário de apenas "projetar" as informações
lexicais pertinentes. Esta é a posição de Pinker et al (1989).
aqueles que vêem na alternância dativa mais um argumento para demonstrar que a
divisão entre sintaxe e léxico é menos fundamental do que a teoria gerativa tem assumido: em
particular, contrariamente à tese da "autonomia da sintaxe", estes lingüistas sustentam que
processos como a alternância dativa revelam que é preciso dizer que estruturas sintáticas possuem
"significado inerente", exatamente como as palavras. Esta é a posição de Goldberg (1992).
Finalmente, vimos uma posição ainda mais radical: não apenas a proposta de Groefsema
(2001) é compatível com as idéias de Goldberg, mas exige um aprofundamento da relação entre
sintaxe e léxico. Para ela, a sintaxe deve ser capaz de "enxergar" informações "exclusivas" de
cada item lexical, o que exigiria rever a concepção corrente de que a sintaxe do lida com certos
aspectos mais gerais da informação de significado dos itens lexicais.
No próximo capítulo, gostaríamos de encerrar nosso trabalho discutindo brevemente e de
modo mais crítico as diferentes posições acima resumidas.
90
CAPÍTULO 4:
CONCLUSÃO
Analisamos, ao longo deste trabalho, alguns dos principais estudos sobre a alternância
dativa do inglês, tendo-nos concentrado especialmente nos trabalhos de Oehrle (1976), Pinker et
al (1989), Goldberg (1992) e Groefsema (2001).
Em relação ao percurso das análises sobre a alternância dativa e as principais concepções
teóricas que foram discutidas, procuramos enfatizar o fato de que a gradativa evolução da
teoria ao longo dos anos. Oehrle toma como partida para sua discussão uma visão “puramente
transformacional” do processo a análise que parecia mais plausível na perspectiva do “modelo
padrão” da teoria gerativa. Desta perspectiva, a alternância dativa deveria ser um processo
“fortemente produtivo”: processos transformacionais afetam constituintes sem ter acesso a
propriedades léxico-semânticas particulares deles. Oehrle foi o primeiro a demonstrar, por meio
de uma análise detalhada da alternância dativa, que aquela visão estava equivocada: a alternância
dativa é um processo “semi-produtivo”, sujeita a diferentes restrições que parecem operar sobre
subclasses lexicais de verbos, fazendo que itens muito semelhantes em significado ora possam,
ora não, aparecer numa ou noutra das estruturas dativas do inglês.
A partir de Oehrle , o que se vê na literatura é uma discussão sobre o quanto da
alternância dativa é de responsabilidade da sintaxe, o quanto é de responsabilidade do léxico
especialmente, da semântica lexical dos verbos e o quanto é resultado do modo como sintaxe e
léxico interagem.
O próprio Oehrle é o primeiro a suspeitar que a alternância dativa seja um processo
relacionado a regras lexicais chamadas então de “regras de redundância” (cf. CHOMSKY,
1970; JACKENDOFF, 1975). Mas, na falta de uma teoria desenvolvida dos diferentes processos
lexicais especialmente os relacionados com a semântica lexical dos verbos Oehrle pode
apenas desenhar o argumento a favor de um tratamento lexical. Ainda assim, seu trabalho de
análise dos dados da alternância foi decisivo para definir as principais questões envolvidas no
estudo da dativização, tendo contribuído com a descoberta de muitos dos fatos principais.
A partir de Oehrle, como dissemos, as abordagens concentram-se na tentativa de localizar
adequadamente os fatores que regem a alternância, seja dentro do léxico, ou da sintaxe, ou na
91
relação entre os dois. Vimos que o trabalho de Pinker et al (1989) exemplifica, nesse sentido,
uma tese radicalmente lexicalista: na análise que estes autores propõem, o que importa é a
informação de significado que vem do verbo, portanto uma informação lexical. Em termos mais
objetivos, a proposta é composta dos seguintes elementos:
a) a estrutura preposicional tem como representação léxico-semântica algo como:
X causes [Y to go to Z]
“X causa Y a ir para Z.”
b) e a estrutura com dois objetos, algo como:
X causes [Y to have Z]
“X causa Y a ter Z.”
A "regra de dativização" seria portanto uma "regra lexical", operando sobre
representações léxico-semânticas: tem como input a representação léxico-semântica da estrutura
preposicional e, como output, a representação léxico-semântica da estrutura de dois objetos.
Muito importante para nossa discussão é que não informação sintática na regra: as duas
estruturas sintáticas são completamente previsíveis a partir das regras de associação entre papéis
semânticos e funções sintáticas. O processo todo se dentro do léxico. Somente depois do
processo ter finalizado dentro do léxico, é que teremos reflexos sintáticos, por meio das regras de
associação (ing. linking rules).
Um outro ponto muito importante do estudo de Pinker et al (1989) é em relação à
restrição morfofonológica e a natureza das "regras limitadas lexicalmente". Para Pinker et al
(1989), o que acontece é que, quando a criança escuta um verbo alternar e formula, com base
nisso, uma "regra limitada lexicalmente", ela não apenas inclui na "regra" a estrutura semântica
gramaticalmente relevante do verbo: ela também "registra" aspectos significativos de sua "forma"
isto é, sua morfofonologia. Em outros termos: "regras limitadas lexicalmente" associam itens
lexicais não apenas em termos de sua estrutura semântica, mas também em termos de sua
estrutura formal. O fato de o processo poder ter reflexos morfofonológicos torna-se, portanto,
mais um atestado de que a alternância dativa é uma operação lexical.
92
Com Goldberg (1992), temos uma tentativa de reequilibrar a divisão de tarefas entre
léxico e sintaxe; seu esforço é de trazer o processo mais para dentro da sintaxe, ou seja, de dar à
sintaxe uma maior responsabilidade pelas propriedades da alternância. Por exemplo, para
Goldberg, o fato de que a grande maioria das subclasses de verbos apresentarem uma restrição de
animacidade no recipiente é um sinal de que esta é uma propriedade inerente à construção. Por
outro lado, a ausência desta restrição em algumas poucas classes verbais sugere a ela que não é
possível tratar estes casos como sendo exatamente do mesmo tipo dos "casos centrais" – para ela,
o fato de que certas restrições sobre a construção possuem exceções localizadas indica que estas
exceções são, na verdade, "adaptações", "extensões" do "significado central" da construção. Isso
parece oferecer uma explicação natural para os diferentes comportamentos das "subclasses
verbais". E, principalmente, permite à Goldberg sustentar aquela que é a tese mais inovadora de
seu trabalho: a de que uma associação direta, convencional, entre estrutura sintática e
significado.
É importante, para nós, observar que esta proposta de Goldberg só é possível se adotamos
uma concepção de sintaxe muito diferente daquela que estava subjacente à análise do Oehrle, por
exemplo. Na verdade, a concepção de Goldberg é muito diferente da concepção “padrão” que se
tem da sintaxe em gramática gerativa. Na grande maioria dos modelos gerativistas, os
instrumentos de descrição sintática são necessariamente independentes da semântica: isso vale
tanto para os princípios de estrutura sintagmática (sejam eles as regras de reescrita, sejam os
princípios X-barra) quanto para os processos transformacionais. Ambos os tipos de instrumentos
são tidos por "operações formais”, isto é, que mencionam e manipulam apenas "informação
sintática" das expressões lingüísticas, e não componentes de seu significado.
Para Goldberg e para a abordagem construcional, como vimos, os mecanismos de
descrição sintática tem uma utra natureza: podem estar inerentemente associados a um
significado particular exatamente como uma palavra. Isto é, são similares a um “item lexical”
no sentido de serem um “padrão de forma convencionalmente associado a um significado
específico’. Em outros termos: nesta visão, não existe “sintaxe pura”, isto é, não sintaxe sem
significado. Isso, como procuramos mostrar, permite a Goldberg resgatar um papel mais
importante para a sintaxe na análise da alternância dativa. Por outro lado, também tem como
resultado que as fronteiras entre sintaxe e léxico ficam menos claras: afinal, a sintaxe deixa de ser
93
um conjunto de “processos de manipulação de informação” e se torna um conjunto de “estruturas
associadas a um significado na memória”.
Finalmente, Groefsema (2001) utiliza a alternância dativa para propor ainda uma outra
possibilidade de conceber as relações entre sintaxe e léxico. Vimos que, segundo esta autora, para
compreender a alternância dativa seria preciso levar em conta aspectos específicos, particulares,
das representações conceituais dos verbos aspectos que normalmente são tidos como
idiossincrasias destes verbos e que, por isso, são irrelevantes para a gramática. É esta idéia que
está por trás da metáfora discutida pelo artigo, segundo a qual "a gramática seria cega às cores
lexicais".
Sua linha de análise segue Pinker et al (1989) em assumir que as duas estruturas dativas
(preposicionada e de objeto-duplo) codificam "perspectivas diferentes” de um mesmo evento
que pode ser ora visto como uma causação de movimento, ora como uma causação de posse. Mas
há uma diferença muito importante entre a análise de Groefsema(2001) e a de Pinker et al (1989)
Para estes últimos autores, a sintaxe apenas "enxerga" aspectos gerais do significado dos itens
lexicais e “projeta” esta informação em estruturas sintáticas. Para Groefsema (2001), o que
acontece é que a semântica das estruturas dativas interage com representações conceituais
"coloridas" dos verbos – isto é, com representações que incluem informação idiossincrática
específica a cada verbo. Vimos que a possibilidade de um verbo ocorrer ou não numa estrutura
dativa – segundo Groefsema (2001) – depende precisamente desta informação idiossincrática ser
diferente das informações de qualquer outro verbo. É isso o que a "Condição do Efeito Único"
exige.
O ponto importante acerca da “Condição do Efeito Único” é que ela difere drasticamente
das demais abordagens: nas demais análises, um verbo é autorizado a ocorrer numa ou noutra das
estruturas pelos componentes de significado que ele compartilha com outros verbos dporque
as demais abordagens presumem que é preciso lidar com "subclasses verbais". Para Groefsema
(2001), um verbo é autorizado a ocorrer numa ou noutra estrutura se diferir, quanto ao efeito que
expressa sobre o objeto direto, de verbos similares. Isso significa que a sintaxe deve ser capaz de
"enxergar" não aspectos gerais da informação lexical para os quais, normalmente, a concepção
tradicional é a de que há um mapping regular com a sintaxe; a sintaxe deve ser capaz também de
"enxergar" aspectos particulares, não-compartilhados e não-gerais da informação lexical. Mas é
claro que aqui se trata de informação que não pode ter um mapping regular com a sintaxe e,
94
ainda assim, a sintaxe a "enxerga". Esta é uma concepção ainda mais radical que a de Goldberg.
Certamente, é uma concepção que merece reflexão, se o objetivo é entender qual é, de fato, a
divisão entre léxico e sintaxe.
Queríamos encerrar este nosso trabalho com uma apreciação de cunho mais pessoal, indo
um pouco além do que acreditamos tenha sido nossa contribuição mais concreta. Esta, achamos, é
modesta mas útil: procuramos apresentar detalhadamente a discussão de uma construção
particular a alternância dativa do inglês procurando: de um lado, (a) exemplificar o tipo de
argumento que a lingüística tem utilizado para distinguir processos sintáticos e processos lexicais,
especialmente aqueles que tratam da manifestação de estruturas relacionadas semanticamente; de
outro, (b) identificar as concepções que surgem da natureza do léxico, da sintaxe e da interação
destes dois componentes, suas hipóteses e conseqüências para a análise.
Quanto à nossa avaliação pessoal das propostas que discutimos, queríamos apenas apontar
aquela que nos parece o caminho mais interessante. A nosso ver, de todos os trabalhos, o mais
interessante quanto à discussão e à descoberta de fatos importantes além do fantástico trabalho
de análise de Richard Oehrle é o de Pinker et al (1989): o estudo descritivo e experimental
profundo da aquisição da alternância dativa, a nosso ver, oferece dados fundamentais para a
compreensão de certos aspectos desta "regra". Em particular, demonstra que o que está por trás
da construção o processos "semi-produtivos", que têm uma certa realidade geral, mas que
também dependem muito do input para a criança. O fato de que a tendência maior da criança é
usar nas diferentes construções apenas verbos que ouviu nelas, na maior parte do tempo evitando
generalizações, é sinal de que realmente muito de "aprendizagem", especialmente do tipo
lexical, no processo.
Por outro lado, é nossa opinião que a principal fraqueza do trabalho de Pinker et al (1989)
é admitir que a relação entre uma subclasse verbal e o padrão da alternância em que entra pode
ser arbitrário. Como Goldberg indica, isso provavelmente é incorreto por duas razões: (a) porque
presume que é possível identificar um núcleo de significado comum a todas as ocorrências das
construções dativas, quanto a diversidade de classes e efeitos semânticos sugere que esta idéia é
difícil de se confirmar; e (b) e porque não reconhece que muitas das subclasses verbais que
participam da alternância o fazem por meio de "processos de extensão de significado" que são
visíveis em outros fenômenos da língua.
95
Com isso, estamos indicando aquela abordagem que nos pareceu a mais interessante: a
teoria das construções de Goldberg, a nosso ver, parece ser a que oferece, em tese, explicações
mais naturais para as várias propriedades da alternância dativa. O artigo particular que
resenhamos aqui não oferece uma argumentação tão detalhada quanto a do artigo de Pinker et al
(1989). Especialmente, o uso das metáforas para motivar as "classes excepcionais" da estrutura
bitransitiva – que, para Goldberg, são aquelas que se afastam do "sentido central" da construção –
poderia ser, a nosso ver, mais profundo, menos intuitivo. Goldberg tem desenvolvido desde o
artigo vários trabalhos e livros sobre a teoria das construções e, em particular, sobre a alternância
dativa. Portanto, acreditamos que a análise tenha progredido mas não pudemos estudá-la nesta
pesquisa.
Finalmente, queríamos ainda dizer que, das várias análises que discutimos, a que mais nos
"perturbou", pelo seu potencial revolucionário é quase como advogar que a completa
indistinção entre sintaxe e léxico – foi a proposta de Groefsema (2001). Seu estudo extremamente
interessante merece atenção e pesquisa mais intensa. Tal como é apresentada no artigo que
discutimos, entretanto, a discussão dos fatos é bastante preliminar e se limita a um conjunto
pequeno de exemplos. Mas é uma hipótese que precisa, diferentemente das outras, de muito
estudo descritivo para ser corroborada: afinal, é preciso demonstrar que, para cada verbo que
aparece numa das construções dativas, é preciso encontrar um "efeito único" semântico. A nosso
ver, o número de casos estudados por Groefsema (2001) no artigo não é suficientemente
significativo para dar o suporte necessário à sua tese.
96
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Baker, C.L. Syntactic theory and the projection problem. LI 10.533-81, 1979
Brown, Roger, and Camille Hanlon. “Derivational complexity and order of acquisition in child
speech”. Cognition and the development of language, ed. by John R. Hayes,155-207. New
York:Wiley, 1970..
Chomsky, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, mass: MIT Press, 1965
Chomsky ,N.(1970). “Remarks on Nominalization”, 1970. In Chomsky, Studies on Semantics
in Generative Grammar, Mouton, 1972.
Fillmore, Charles J. Stanford Summer Linguistics Institute lectures, 1987..
Goldberg, A.E. “The inherent semantics of argument structure: the case of the English
ditransitive construction”. Cognitive Linguistics 3±1, 37±74, 1992.
Goldberg, Adele E.. “Surface Generalizations: An alternative to alternations”. Cognitive
linguistics. 13-3:327-356, 2002.
Green, Georgia M. Semantics and Sintactic regularity. Bloomington: Indiana University Press,
1974.
Grimshaw, Jane. Remarks on dative verbs and universal grammar. Paper presented at the 10
th
Annual Boston University conference on Language Development, October 25-27, 1985.
97
__________. “Getting the dative alternation. Functional heads and clausal structure” (MIT
Working Papers in Linguistics, 10*, ed. By Itziar Laka and A. Majahan. Cambridge, MA:
Department of Linguistics and Philosophy, MIT, to appear, 1989.
Groefsema, M. “The real-world colour of the dative alternation”. Language Science 23(2001)
525-550, 2001.
Gropen, J., Pinker, M. Hollander, R.Goldberg and R. Wilson. “Learnability and Acquisition of
the Dative Alternation in English”, Language 65, 203-257, 1989.
Jakobson, Roman. 1938. Russian and Slavian Grammar Studies :1931-1981, Linda R. Waugh
and Morris Halle (eds). Berlin: Mounton de Gruyter,1984.
Jackendoff R.S. Sematic Interpretation in Generative Grammar. MIT Press, 1972.
Jackendoff, Ray. “1975. Morphological and Semantic Regularities in the Lexicon”. Lg.51.639-
71, 1975..
Jackendoff., R. Semantic Structures. MIT Press, Cambridge, MA, 1990.
Langacker, Ronald. Foundations of Cognitive Grammar Vol.1. Stantford: Stanford University
Press, 1987..
____________Grammatical Ramifications of the Setting/Participant Distinction. BLS 13.
Berkeley: Berkeley Linguistics Society Inc. (ANO)
Oehrle, R.T. The Grammatical Status of the English Dative Alternation. MIT dissertation,
Cambridge, MA, 1976.
__________. “Review of G.M. Green: Semantics and Syntactic Regularity”, Language 53, 198-
208, 1977.
98
Pinker, S. Language Learnability and Language Development. MIT Press, Cambridge, MA,
1984.
________. Learnability and Cognition. MIT Press, Cambridge, MA, 1989.
Pinker, Steven. Learnability and Cognition: The Acquisition of Argument Structure.
Cambridge, mass: MIT Press/Bradford Books, 1989.
Rice, Sally. Participant and Non-participants: Toward a Cognitive Model of
Transitivity.UCSD dissertation, 1987.
Stowell, Tim.1981. Origins of Phrase Structure. Cambridge, MA:MIT dissertation
Williams, E.S. Rule Ordering in Syntax, unpublished Ph.D. dissertation, MIT, 1974.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo