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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Patrícia Sampaio Pflaeging
A IDENTIDADE DO EU PÓS-CONVENCIONAL E OS DIVERSOS SENTIDOS DA
METAMORFOSE – A HISTÓRIA DE JOSÉ JUNIOR
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
PUC-SP
São Paulo
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Patrícia Sampaio Pflaeging
A IDENTIDADE DO EU PÓS-CONVENCIONAL E OS DIVERSOS SENTIDOS DA
METAMORFOSE – A HISTÓRIA DE JOSÉ JUNIOR
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia Social, sob a
orientação do Prof. Dr. Antonio da
Costa Ciampa.
São Paulo
2009
1
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Banca Examinadora
2
AGRADECIMENTOS
Ao meu muito estimado orientador, Prof. Dr. Anônio da Costa Ciampa, pela visão
de vida, experiência acadêmica e principalmente, pela confiança e paciência
durante a elaboração desta dissertação. Um mestre, na verdadeira acepção da
palavra, com quem aprendi para muito além das teorias. A minha profunda
gratidão por abrir a minha mente e o meu coração para a metamorfose humana.
Aos professores Doutores Odair Furtado e Juracy Armando Mariano de Almeida
pela preciosa contribuição durante o exame de qualificação.
Aos colegas do curso de Psicologia Social pelo incrível intercâmbio de idéias,
pelas muitas experiências compartilhadas e pelo inesquecível convívio durante
toda essa trajetória.
Aos professores de Psicologia Social da PUC-SP, que muito me ensinaram
durante o curso, especialmente Mary Jane Spink.
Aos meus queridos amigos que me ajudaram imensamente nessa jornada.
Um agradecimento muito especial aos meus pais e aos meus irmãos pelo amor,
pelo exemplo, pela paciência e pelo maravilhoso apoio durante toda a minha vida.
3
RESUMO
Patrícia Sampaio Pflaeging. A identidade do eu pós-convencional e os diversos
sentidos da metamorfose – A história de José Junior. Orientador: Antônio da
Costa Ciampa, PUC-SP, 2009. Dissertação. Mestrado em Psicologia Social.
O presente trabalho tem como objetivo compreender como se dá a
formação da Identidade do eu pós-convencional (Habermas), bem como,
entender como, ao longo do tempo, o eu pós-convencional lida com o fetichismo
de um determinado personagem. Nesse sentido, buscamos analisar como o
sujeito pós-convencional constrói seus múltiplos personagens, lida com as
identidades coletivas reconhecidas pela sociedade, mantendo a autonomia e
articulando um novo projeto de vida. Para isso partimos da Psicologia Social e do
sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação (Ciampa) como categoria central
de análise, propondo entender o fenômeno não apenas no seu aspecto
instrumental, mas sim, todo o contexto no qual o indivíduo está inserido. A
pesquisa foi realizada a partir da narrativa da história de vida do sujeito, focando
diversos momentos de sua trajetória. Desta forma, esta dissertação tece algumas
reflexões, assim como oferece subsídios para discutir a identidade do eu pós-
convencional, as possibilidades de emancipação e os diversos sentidos da
metamorfose.
Palavras-chaves: Identidade Pós-Convencional, Psicologia Social, Sintagma
Identidade-Metamorfose-Emancipação
4
ABSTRACT
Patrícia Sampaio Pflaeging. The post-conventional identity of the Self and the
various meanings of metamorphosis. – The story of José Junior. Mentor: Antônio
da Costa Ciampa, PUC-SP, 2009. Dissertation. Master in Social Psychology.
The goal of the present dissertation is to investigate the construction of the post-
conventional identity of the Self, proposed by Habermas, as well as understand
how the post-conventional identity leads with the fetish of the character. In this
context, we aimed to analyse how the post-conventional person builds his
multiples characters, leads with collective roles and maintains his autonomy in
order to articulate a new life project. For this purpose we used the Social
Psychology and the concept of identity-metamorphosis-emancipation, developed
by Ciampa, as the main category of analysis, considering to understand not only
the phenomenon in its instrumental aspect, but, also the context in which the
individual is placed. The research was carried through from the narrative of the
participant life history, focusing different moments of his path. This dissertation
presents some considerations on in order to offers subsidies to discuss the post-
conventional identity of the Self, his possibilities of emancipation and the various
meanings of metamorphosis.
Key-Words: Post-Conventional Identity, Social Psychology, Syntagma Identity-
Metamorphose-Emancipation
5
SUMÁRIO
Apresentação 07
Introdução 11
Metodologia 13
Abordagem Teórica 16
Capítulo 1. Modernidade 23
Capítulo 2. Identidade do Eu Pós-Convencional 26
Capítulo 3. Metamorfose Humana 32
Capítulo 4. José Júnior e seus múltiplos personagens 40
4.1. O fracassado briguento 42
4.2. O monge cósmico 46
4.3. O alquimista das polaridades 48
4.4. O artista disfarçado 52
4.5. O guerreiro empreendedor 56
4.6. O herói justiceiro 59
4.7. Coexistência de personagens 70
Capítulo 5. O fetiche do personagem 76
5.1. O executivo workaholic 83
Capítulo 6. Projeto de vida e novos possíveis personagens 91
Considerações Finais 94
Bibliografia 97
6
APRESENTAÇÃO – A pessoa que está por trás da dissertação
Antes de iniciar o projeto propriamente dito, gostaria de escrever, de
maneira breve e informal, sobre a) a pessoa que está por trás desta dissertação –
que sou eu, b) como surgiu a minha vontade de pesquisar sobre este tema e este
sujeito e c) como o curso de Psicologia Social está transformando a minha vida.
Há muitos anos, tenho um questionamento latente que não me deixa em
paz: será que a intenção da identidade pós-convencional é assumir múltiplos
personagens para, a partir dessa articulação de pluralidades, tornar a sua própria
identidade mais autônoma e, dessa forma, poder transformar a sociedade em que
vive?
Acredito que essa questão me move desde que entrei no curso de
Psicologia Social. Ou quem sabe, até mesmo antes disso. Com uma ressalva: é
claro que, naquela época, ainda não tinha estruturado a pergunta dessa maneira.
Apenas sentia que essa pergunta existia dentro de mim, mas ela não tinha forma,
não tinha textura e não tinha conteúdo. Ela apenas existia enquanto inquietação,
uma vez que eu ainda não tinha entrado em contato com conceitos como
identidade pós-convencional, identidade coletiva, identidade do eu, personagem,
papel, a vida-que-vale-apena-ser-vivida, entre outros que aprendi ao longo do
curso e das minhas leituras.
Já me defini e redefi “algumas muitas” vezes e, no início do ano, escrevi,
no meu blog,
1
os meus princípios de vida. Gosto muito mais de falar sobre isso
do que falar sobre os meus “predicados” e sobre os títulos que acumulei ao longo
da minha história, mas parece que a sociedade sempre me pede algum tipo de
referência, já que prefere me enquadrar em um determinado coletivo. Esse é um
dos motivos pelos quais resolvi escrever sobre a Identidade do Eu Pós-
1
www.patriciasampaio.com/meusprincipios
7
Convencional e, mais especificamente, sobre a identidade do José Júnior.
Gostaria de deixar claro que isso não significa que os personagens o
sujeito dessa dissertação construiu ao longo de sua história de vida não sejam
importantes. Muito pelo contrário. Como percebi através das minhas leituras e
entrevista com o sujeito dessa pesquisa, ele é um reflexo da sociedade, bem
como um agente de transformação do contexto no qual está inserido. Entretanto,
não recortei o sujeito sob o enfoque de uma determinada identidade coletiva ou
sob o enfoque de um determinado grupo. Em outras palavras, não tinha como
objetivo desenvolver uma dissertação sobre José Júnior, enquanto sujeito
emblemático que pode ser utilizado para o entendimento de um determinado
coletivo. O meu objetivo é compreender um indivíduo que assume múltiplos
papéis e personagens – e nesse sentido, também emblemático - e como ele se
utiliza da pluralidade de personagens para formar a identidade do eu pós-
convencional.
Vale ressaltar, aqui, que José Junior, o sujeito que escolhi para a minha
dissertação, inclusive já foi tema de uma outra dissertação do curso de Psicologia
Social da PUC-SP, desenvolvido pela Renata M. Brunetti (2007), cujo enfoque era
o “empeendedor social”. Em minhas conversas com o Ciampa, em algum
momento, ele me disse que José Junior já havia sido entrevistado para uma
pesquisa que abordava empreendedores sociais. A minha resposta imediata foi:
gostaria de abordar a identidade do José Junior para além de um determinado
papel. A sua multiplicidade de personagens permite uma análise com um esopo
mais amplo.
A minha proposta, aqui, é fazer o caminho inverso: não pretendo entender
o coletivo através de um sujeito. Com este trabalho, o meu objetivo é entender
como a identidade pós-convencional transita entre os diversos personagens, entre
os diversos papéis coletivos para poder, a partir dela, transformar-se em um eu
autônomo e, quem sabe, a partir daí, a partir dessa autonomia, atuar e
transformar o mundo em que vive. Compreender também, os diversos sentidos
que a metamorfose pode assumir ao longo deste processo.
8
Recentemente, escrevi no meu blog que algmas coisas mudaram a minha
vida, como, por exemplo, a internet, o teatro e a dança, mas que acredito que
apenas as pessoas têm o poder de mudar a minha vida continuamente. Posso
afirmar a mesma coisa sobre o curso de Psicologia Social. Cursar o mestrado em
Psicologia Social mudou a minha vida, mas a minha interação com o Ciampa me
transforma diariamente.
Assim como eu, muitos alunos passam por um processo de metamorfose
ao longo do curso de Psicologia Social. Como sou baiana, diria até: oxalá todos
passem por uma forte transformação. No meu caso, o curso me ajudou não só a
entender o meu próprio processo de metamorfose, como também a impulsionar a
minha emancipação.
Compreendo que um estudo acadêmico possui uma lógica e regras bem
herméticas, mas gostaria de deixar claro que não acredito na separação sujeito e
objeto, como também não acredito em regras, que dirá, herméticas. O mais
irônico é que aprofundei esse olhar durante o mestrado através da minha
interação com os professores e da leitura de vários autores. Autores como
Habermas, Ciampa, Bergman e Luckman e Anthony Giddens me mostraram a
dificuldade de sustentarmos, no mundo contemporâneo, modelos, fórmulas e
receitas fixas (como a receita de um projeto acadêmico). Essa interação tem me
estimulado a conviver com princípios e valores, que, na minha opinião, hoje me
ajudam bem mais a conviver com indefinições, incertezas, imprevisibilidades e
formas não pré-definidas.
Eu, enquanto pesquisadora, não faço parte do mesmo contexto social e
cultural do pesquisado, ou seja, as nossas histórias de vida não compartilham
similitudes no que diz respeito às identidades coletivas que cada um possui.
Entretanto, eu me sinto muito próxima ao sujeito, uma vez que o processo de
metamorfose e o próprio humano nos une. Neste sentido, temos muitas coisas em
comum, apesar de não fazermos parte de nenhum coletivo que seja comum a
ambos. Assim, não me vejo separada do meu sujeito de pesquisa, mas sim,
ligada a ele.
9
Já que não posso fugir das regras em um trabalho acadêmico, pelo menos,
queria deixar registrado o meu ponto de vista. Este trabalho possui um imenso
valor pessoal, mas tenho um desejo profundo que as minhas descobertas, que
serão aqui registradas, possam ajudar outras pessoas nos seus próprios
processos de metamorfose e que esses processos possam impactar e
transformar o contexto em que cada um está inserido.
Acredito firmemente que essa dissertação representa uma narrativa que
será reescrita várias e várias vezes, pois as dezenas de situações, que eu e o
próprio entrevistado ainda terão a oportunidade de viver futuramente, irão exigir
uma reinterpretação de tudo o que está sendo refletido aqui.
Como circulo em diversos grupos, cada um com um repertório e um jargão
próprio, vou me permitir utilizar a expressão de um outro grupo que não o de
Psicologia Social. Este trabalho representa uma versão “beta”, um “work in
progress”, da mesma forma que a minha vida e a história de vida do sujeito que
escolhi para essa dissertação. Como diria Carlos Drummond de Andrade: "O
problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta
nossa edição convincente."
Um abraço e boa leitura!
10
INTRODUÇÃO
Na modernidade, para que o indivíduo mantenha a identidade do eu
atônoma, ele tem que possuir uma identidade que se movimente
progressivamente, que mantenha a transgressão e a criatividade para que esta
não se cristalize ao longo do tempo.
Esse trabalho propõe uma reflexão sobre a formação da identidade do eu
pós-convencional que vivencia o processo de metamorfose e emancipação e tem
como objetivo a seguinte questão:
Compreender como se dá a formação da Identidade do eu pós-
convencional, bem como, entender como, ao longo do tempo, como o eu Pós-
convencional lida com o fetichismo de um determinado personagem e a
cristalização de sua identidade. Nesse sentido, buscamos entender como o
sujeito “pós-convencional” constrói seus múltiplos personagens, lida com as
identidades coletivas reconhecidas pela sociedade, mantendo a autonomia e
articulando um novo projeto de vida e projetando novos personagens.
Vale ressaltar que o nosso objetivo, através deste trabalho, foi o de captar
o processo de formação e desenvolvimento de uma identidade do eu pós-
convencional, independentemente das relações de classe social, trabalho,
gênero, religião, etnia, faixa etária etc. Entretanto, em momento algum, deixamos
de levar em consideração a influência do contexto social em que esse indivíduo
está inserido e como esse próprio indivíduo atua e impacta a sociedade em que
vive.
De uma forma geral, através do processo de emancipação, surge uma
"nova identidade" e, na medida que essa nova identidade se consolida, muitas
vezes pode ocorrer que a metamorfose se inverta. Segundo Ciampa (1987):
11
O movimento, que na origem era libertador, ao ser bem sucedido, de
certa forma, pode começar a tolher a liberdade individual de cada
um escolher quem deseja ser. Existe uma possibilidade que essa
“nova identidade”, para obter o reconhecimento do outro, torne-se
“convencional”.
Como os indivíduos não vivem isolados no mundo e as relações sociais
são normatizadas para integrar expectativas recíprocas, para poder agir, as
pessoas de um determinado grupo pedem uma definição do papel de cada um,
caso contrário, elas terão que lidar com a incerteza, com a insegurança de um
conteúdo que não é pré-definido. Em última instância, a sociedade tem medo que
o “outro” saia do papel e aí perde o controle. Nesse sentido, procuramos entender
como se dá o processo do sujeito dessa pesquisa para manter a sua criatividade,
a sua transgressão e a sua autonomia.
É importante esclarecer que este trabalho de pesquisa representa apenas
um olhar entre tantos olhares possíveis do sujeito pesquisado, e uma fotografia,
ou seja, representa a apreensão de um determinado momento, uma perspectiva
possível. Evidentemente contamos com um embasamento teórico que nos
suporta nas especulações e reflexões que são aqui apresentadas.
12
METODOLOGIA
A metodologia utilizada nesta pesquisa é a qualitativa do estudo de caso,
mediante a análise da narrativa da história de vida do sujeito considerado
emblemático, ou seja, aquele que consegue exprimir a consciência da Identidade
do Eu Pós-Convencional de uma forma melhor e de uma maneira mais precisa do
que a grande maioria das pessoas. Foi selecionado um sujeito considerado mais
emblemático para o estudo de caso aqui apresentado por ficar mais evidente sua
luta pela auto-emancipação e pela variedade de papéis e personagens
assumidos ao longo de sua história de vida.
A entrevista com o sujeito foi aberta e realizada pessoalmente no Rio de
Janeiro, onde mora o entrevistado. Os trechos desta conversa foram utilzados
nesta dissertação com o seu consentimento.
Uma vez que o sujeito é uma pessoa pública que atingiu uma determinada
notoriedade na sociedade brasileira, além da entrevista, estamos utilizando
diversas fontes secundárias, que incluem:
Levantamento e pesquisa bibliográfica contemplando o livro que foi
escrito pelo próprio sujeito. O José Júnior escreveu um livro (Da
Favela para o Mundo: a História do Grupo Cultural AfroReggae), no
qual narra a história dos 13 anos de trabalho do grupo que fundou
no Rio de Janeiro.
Leitura e análise de documentos produzidos pelo próprio sujeito da
pesquisa - Neste sentido, vale ressaltar que o sujeito desta pesquisa
publicou, durante dois anos, textos em um blog, no qual narra o seu
cotidiano.
Leitura e análise de documentos (artigos, matérias e vídeos)
produzidos sobre o sujeito – o sujeito já foi entrevistado por diversos
13
jornais e revistas locais e nacionais, além de participar de alguns
programas de TV de alcance nacional, como o Roda Viva e Jô
Soares.
Levantamento e análise de produção científica, ou seja, outras
dissertações de mestrado e doutorado, que abordaram o sujeito sob
a perspectiva de uma identidade coletiva.
Conforme citamos na apresentação, o sujeito desta pesquisa já foi
estudado anteriormente pela Renata Brunetti, em sua tese de doutorado na PUC-
SP (2007), mas ela conduziu a sua pesquisa sob o ponto de vista do
"empreendedor social". Adotamos aqui uma abordagem sob a perspectiva da
identidade do EU e não sob a perspectiva da identidade coletiva do sujeito.
Com relação ao sujeito, procuramos entender a sua história de vida e o
significado que ele atribuiu à mudança de vida que ele realizou, bem como o
projeto de vida ele está construindo diante dos novos personagens que ele
construiu e da realidade contemporânea em que ele está inserido neste momento.
Diante de tantos personagens vividos, procuramos compreender que
personagens o nosso sujeito ainda sonha em vivenciar.
Buscamos compreender o sujeito da pesquisa a partir de suas motivações,
seus desejos, levando sempre em consideração a imprevisibilidade de novas
possibilidades se configurarem. O estudo de uma história de vida é uma viagem
no tempo tanto no passado (história) quanto no futuro (projeto de vida) e isso
sempre pressupõe a abertura e a possibilidade de um encontro com a
imprevisibilidade.
A partir da análise da entrevista e dos dados coletados através de fontes
secundárias, realizamos uma interpretação através da qual buscamos uma
compreensão do tema sugerido.
O método de análise de história de vida indica-nos caminhos para
14
compreender a “identidade do eu pós-convencional” do nosso sujeito de pesquisa,
como veremos a seguir na fundamentação teórica, tal como propõe Habermas.
Para a compreensão dessa “identidade do eu pós-convencional”, partimos
de uma análise que valoriza as transformações, as metamorfoses e o projeto de
vida de nosso sujeito. Buscamos captar o sentido que está presente na vida do
nosso entrevistado, levando em conta a sua narrativa e a nossa interpretação
com uma das interpretações possíveis.
Como é comum na pesquisa qualitativa, existe sempre a possibilidade de
surpresa com a narrativa escutada. Como o nosso sujeito não segue regras
tradicionais e lineares, não foi um espanto perceber que ele escapou daquilo que
imaginamos encontrar.
15
ABORDAGEM TEÓRICA
Este trabalho parte de uma abordagem psico-social da Identidade como
categoria central de análise. Identidade será compreendida aqui na perspectiva
teórica desenvolvida por Antônio da Costa Ciampa que desenvolveu o
entendimento de identidade enquanto metamorfose em busca da emancipação.
Estamos considerando identidade como a construção permanente do "ser" ao
longo de sua vida. Entendemos que esta construção se dá pela relação dialética
de todos os fatores envolvidos: biológicos, psíquicos e sociais. Identidade
portanto, referir-se-á sempre a uma totalidade em permanente transformação.
Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade
é metamorfose. É sermos o Um e o Outro, para que cheguemos a
ser Um, numa infindável transformação (Ciampa, 1987).
Essa abordagem teórica se preocupa em conhecer como cada um de nós –
que nasce como ser apenas natural capaz de se metamorfosear, em ser também
histórico ao sofrer as determinações das constantes transformações sociais – se
constrói como indivíduo humano que, assim, ao mesmo tempo em que age como
ator social, vai se tornando autor de ações que podem determinar transformações
da sociedade.
Nesse sentido, trabalhamos aqui também com as noções de papel,
personagem e autor, na perspectiva teórica desenvolvida por Ciampa, na qual
somos personagens de uma história que nós mesmos criamos, fazendo-nos
autores e personagens ao mesmo tempo.
A personagem se refere à identidade empírica que é a forma pela qual a
identidade se expressa no mundo. Implica sempre na presença de um ator
desempenhando um papel social. A personagem ao mesmo tempo se confunde e
se diferencia do papel, isto porque o homem não ‘absorve’ passivamente o mundo
16
social (com suas instituições, papéis, e identidades apropriadas), mas apropria-se
dele de maneira ativa – somos também autores da nossa história.
Essa reflexão nos leva a compreender que a identidade implica uma
multiplicidade de papéis bem como um universo de personagens já existentes e
de outros ainda possíveis, onde a personagem ora confunde, ora se diferencia do
papel, visto que o sujeito não apenas absorve passivamente o mundo social (com
suas instituições, papéis e identidades) mas apropria-se dele de maneira ativa, ou
seja, cria sentido para o mundo em que vive. O mundo objetivo é apreendido com
plena significação subjetiva, atribuindo-lhes sentidos à realidade objetiva. É no
desenvolvimento de atividades que o homem vai construindo sua história. Traça
caminhos muda sua rota, altera sua “pré-destinação” pelas ações que realiza
junto a outros homens. Por isso, deve ser visto como “se fazendo”, e não como
algo “feito”, “acabado”.
A trajetória proposta por Ciampa consiste em ver a progressiva formação
da Identidade partindo do nome (do sujeito), já que este nome o representa e
implica portanto na predicação e personagens (conceito este extraído da metáfora
teatral) estabelecendo elementos de igualdade e diferenciação que se articulam.
O mundo objetivo é apreendido com plena significação subjetiva,
atribuindo-lhes sentidos à realidade objetiva. É no desenvolvimento de atividades
que o homem vai construindo sua história. A personagem está sempre
relacionada a um papel social, e este representa uma identidade coletiva, abstrata
e genérica; associada, construída e mediada pelas relações sociais. Nesse
sentido, os homens são ao mesmo tempo autores e co-autores, pois precisam do
outro para se concretizar.
A questão da identidade é complexa, uma vez que é múltipla, dinâmica,
num constante devir. É uma intrincada rede de representações, em que cada
personagem reflete tantos outros, todos constitutivos da identidade, ou melhor
dizendo, instituintes de um processo identitário, desaparecendo, assim, qualquer
possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas.
17
Através da articulação de igualdades (equivalências de fato) e
diferenças, cada posição minha me determina, fazendo com que
minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade, que se
realiza pelo desenvolvimento dessas determinações. Em cada
momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade,
manifesta-se uma parte de mim como desdobramentodas múltiplas
determinações a que estou sujeito (Ciampa, 1987)..
Tais personagens são fetichizados, modificam-se, apresentando-se como
misteriosos e fantasmagóricos, objetivando-se situações onde é quase impossível
o indivíduo atingir condições de “ser-para-si”, ocultando a natureza da identidade
enquanto metamorfose.
É assim que a identidade, considerada como um processo de constante
metamorfose, pode ser compreendida à luz da Psicologia Social, pois esta
apresenta a visão de ser humano como um ser ativo e em constante processo de
transformação. Transformação esta em que indivíduo e sociedade se constituem
reciprocamente, através de um processo dialético, um processo não linear em
que os fenômenos são considerados e analisados em seus movimentos
recíprocos e contínuos de interação
O que o indivíduo concretiza, vive, aquilo que tem sido e vivido
corresponde à objetividade da identidade. A subjetividade da identidade está no
"vir-a-ser" na forma de personagens possíveis, está na plasticidade.
O homem pode projetar um "vir-a-ser" baseado nas experiências passadas,
se de alguma forma, o sentido dessas pretende preservar, e nesse processo
procura criar condições objetivas que garantam a possibilidade de recriar no
futuro, essas experiências; caso contrário pode criar novas condições para sua
negação, conquistando assim, a superação.
A superação pressupõe a concretização, isto é, só se pode superar aquilo
que já foi concretizado, externalizado e, como foi dito, isso se dá pela atividade
18
mediante o exercício de reflexão. A identidade também é ocultação e revelação.
A revelação é condição para a ocultação. Perante determinadas condições
objetivas é revelada a uma dada pessoa uma personagem e ocultadas outras.
Neste tabalho, adotamos também, os referências teóricos desenvolvidos
pelo filósofo alemão, Jürgen Habermas. Para Habermas, a identidade não é uma
questão meramente técnica e objetiva que se possa controlar através de ações
estratégico-instrumentais que buscam fins, mas um processo de construção
simbólica, portanto, do mundo da vida (Lebenwelt). A identidade do Eu é,
segundo Habermas, o terceiro e mais sofisticado nível de desenvolvimento da
identidade, momento em que emerge “a pessoa”, capaz de distinguir “normas” de
“princípios”. O primeiro nível, o da identidade natural, é o nível em que a criança
identifica os limites entre seu corpo e o ambiente, porém, sem separar os objetos
físicos dos sociais. No segundo nível, o da identidade de papel, a criança
incorpora universalidades simbólicas e normas de ação grupal. A identidade do
Eu, e sob o ângulo cognoscitivo, é, para Habermas, “(...) a capacidade que tem o
adulto de construir, em situações conflitivas, novas identidades, harmonizando-as
com as identidades anteriores agora superadas, com a finalidade de organizar –
numa biografia peculiar – a si mesmo e às próprias interações, sob a direção de
princípios e modos de procedimentos universais”. (Habermas, 1983).
Um outro aspecto do pensamento de Habermas, importante para esta
pesquisa, é a crítica à identidade convencional partindo do sujeito cartesiano. O
filósofo, ao criticar a metafísica moderna, vale-se da chamada “guinada
lingüística” e, então, discute o sujeito a partir da “intersubjetividade”. Para ele, ao
recuperar a teoria da subjetividade de George Mead, o sujeito fala e age sempre
em diálogo com outros sujeitos que se mostram. Habermas propõe uma
sociedade autônoma marcada por “identidades pós-convencionais”.
Uma questão central no âmbito da Psicologia Social é como compreender
a interação indivíduo-sociedade. Pensar a identidade implica resgatar as
atividades e o processo de consciência do indivíduo. Implica nas mudanças
processadas em sua história pessoal e em suas relações.
19
Como apoio teórico para este estudo nos servimos também do conceito de
“emancipação”, tema que vem sendo tratado tanto por Jürgen Habermas, como
por Antônio Ciampa. Ambos localizam a importância de redefinir o sentido de
emancipação. Para Habermas, a redefinição de emancipação está ligada à “razão
comunicativa” e às “identidades pós-convencionais”.
Além de Ciampa e Habermas, as várias configurações de identidade
também habitam reflexões dos teóricos da modernidade, como Giddens (2002) e
Bauman ( que localizam o indivíduo no momento atual do mundo globalizado,
marcado por um capitalismo desorganizado, a fim de explicitar as novas bases
sobre as quais se articula o pessoal e o social na contemporaneidade.
Segue, aqui, uma breve descrição dos capítulos, apontando as idéias
centrais contidadas em cada um deles.
Capítulo 1 - A Modernidade
Neste capítulo apresentamos o processo de identidade abordando
aspectos contextuais, já que o processo deve ser entendido dentro do contexto
temporal em que está circunscrito. A discussão que propomos aqui exige o
entendimento do sujeito dentro do momento atual do mundo globalizado, marcado
por um capitalismo caótico. Essa contemporaneidade lançam novas bases sobre
as quais se articula o pessoal e o social e, por consequência, o proprio processo
de formação da identidade.
Capítulo 2 - Identidade do Eu Pós-Convencional
Neste capítulo, discutimos a apropriação que Habermas faz da psicologia
social de George Herbert Mead, tendo como motivação principal seu interesse em
compreender o Eu reflexivo, ou seja, um sujeito reflexivo e autônomo, que é
constituído socialmente, dentro de uma interação que é mediada simbolicamente.
Em última instância, um Eu que sabe, diante dele mesmo e dos outros, quem ele
é e quem ele quer ser.
20
Capítulo 3 - Metamorfose Humana
No capítulo 3, analisamos a questão da indentidade enquanto metamorfose
e emancipação, levando em consideração que esse é um processo complexo que
envolve, ao mesmo tempo, individualização e socialização, e no qual o indivíduo,
em suas relações intersubjetivas, se torna autor de suas ações. Também
discutiremos inúmeros conceitos que permeiam esse processo, tais como papel,
personagem e fetichização do personagem.
Um das discussões chaves desse capítulo é o fato de que em uma
sociedade complexa como a nossa, está cada vez mais complicado falar em
identidades que combinem papéis homogêneos e, com uma frequência bem
maior, o que encontramos são indivíduos com papéis diferenciados. Nesta
direção, também é preciso levar em consideração que, à medida que a
socialização avança, a identidade que era baseada numa identidade de papel, vai
se metamorfoseando como identidade do eu.
Capítulo 4 - José Júnior e seus múltiplos personagens
No capítulo 4, apresentamos José Júnior e seus múltiplos personagens,
através da descrição de sua história de vida, da sua caminhada desde a sua
infância até o momento atual. Destacamos a realização de seus projetos,
principalmente a fundação do Grupo Afroreggae, a pluralidade de interesses e a
sua capacidade de traduzir e mediar mundos.
Aqui, percebemos claramente que a identidade implica uma multiplicidade
de papéis bem como um universo de personagens já existentes, onde a
personagem ora confunde, ora se diferencia do papel e que o sujeito apropria-se
dele de maneira ativa, ou seja, cria sentido para o mundo em que vive. O mundo
objetivo é apreendido com plena significação subjetiva, atribuindo-lhes sentidos à
realidade objetiva. É no desenvolvimento de atividades que o José Junior vai
construindo sua história, mudando a rota, alterando sua “pré-destinação” e
inventando novos mundos.
21
Neste capítulo, também ressaltamos a identificação do José Júnior com a
divindade hindu, Shiva, e de como ele se deixar tocar pelo sofrimento, pelo
sombrio, pelas dficuldades, mas também como ele aprende com essas
emperiêncas e sabe transformar trevas em luz. A partr do abalo do mpacto
negativo, como ele foi capaz de transformar a sua realidade e fez como
emergisse uma experiência social inovadora.
Capítulo 5 – O fetiche do personagem
Neste capítulo, analisamos a manifestação do fetiche do personagem a
partir do momento em que José Júnior passa a assumir uma identidade
reconhecida pela sociedade. Como ele lida com seus múltiplos personagens
diante do fetiche do personagem.
Analisamos também o paradoxo com relação aos novos personagens
assumidos e, na medida que essas novas identidades se consolidam, como,
dialeticamente, ocorre a inversão do sentido da metamorfose. Ou seja, o
movimento, que na origem era libertador, ao ser bem sucedido, de certa forma,
começa a tolher a liberdade individual do José Júnior e impede que ele faça as
escolhas que gostaria de fazer.
Capítulo 6 – Projeto de vida e possíveis novos personagens
No capítulo 5, apresentamos o projeto de vida de José Júnior e alguns
possíveis personagens com os quais o sujeto ainda sonha. Como ele articula
novos conteúdos, busca manter a sua autonomia, sua transgressão e a
cratividade que são a base para o desenvolvimento da identidade do eu pós-
convencional.
22
1. Modernidade
Neste projeto, o contexto histórico tem como pano de fundo o mundo
contemporâneo, a modernidade como ela é vivida hoje: num turbilhão. O único
processo que aparentemente permanece na modernidade é a evolução contínua.
Assim, a modernidade é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade:
envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de
luta e contradição, de ambigüidade e angústia.
O desenvolvimento da modernidade acontece de forma dialética,
destruindo o antigo para construir o novo, pois está dentro do antigo o germe de
sua própria destruição. O desenvolvimento contínuo e a destrutividade moderna
causam um impacto sobre a vida do ser humano. O homem contemporâneo é
atingido em suas certezas e nas premissas que utiliza para construir opiniões e
seguranças.
São alguns elementos que caracterizam a sociedade hoje. “Todos nós
estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em
movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma
opção realista num mundo em permanente mudança” (Bauman, 1999).
As transformações ocorridas nesse mundo refletem diretamente nos atos
de escolha e tomada de decisão do indivíduo. O que se observa, nesse contexto
contraditório, é que da mesma forma que geram-se problemas, geram-se também
soluções; geram-se dependências, mas também desenvolvimentos; limites e
possibilidades, que repercutem na maneira de ser, pensar, sentir e agir e,
portanto, na autonomia. Sob uma determinada ótica, essas mudanças podem
favorecer e ampliar o exercício da autonomia dos indivíduos; por outra, pode
também dificultar, limitar ou impossibilitar este exercício. Para alguns é uma
liberdade excitante. Nós podemos escrever o script de nossas próprias vidas ao
invés de atuar em um que alguém escreveu para nós. Para outros é uma
insegurança terrível.
23
"A modernidade confronta o indivíduo comum à complexa variedade de
escolhas e ao mesmo tempo oferece pouca ajuda sobre as opções que devem
ser selecionadas" (Giddens, 2002). Dessa forma, podemos afirmar que a escolha
de uma atividade profissional ou a transição de carreira, é uma decisão
extremamente complexa atualmente equacionada de forma distinta do que se
passava no início do século XX.
Marcado por pressões de um mundo cada vez mais complexo e
desorganizado, a natureza dos problemas humanos se redimensiona, obrigando
todos a um investimento pessoal, por vezes demasiado pesado. Perdido e
premido por exigências do mundo, onde a divisão entre público e privado
manifesta-se com doses generosas de ambigüidade, a identidade do homem
transforma-se rapidamente, sem que a ciência e o universo consensual possam
dar conta dessas mudanças. O conhecimento científico retrata uma
provisoriedade sem precedentes, em que pese todas as revoluções científicas e
tecnológicas desse final de milênio.
A pergunta que se coloca agora é: quem é o homem da
contemporaneidade? O que faz esse homem? Como dar conta desse fenômeno
psicológico? Qualquer tentativa de esgotar esse tema seria pretensioso, já
teríamos que lidar com uma plasticidade ainda não totalmente conhecida. “O
mundo que se transforma gradativamente da familiaridade do lar e da vizinhança
local para um tempo – espaço indefinido – não é de modo algum um mundo
puramente impessoal. Vivemos num mundo povoado, não meramente um mundo
de rostos anônimos, vazios, e a interpolação de sistemas abstratos em nossas
atividades é intrínseco à sua realização. (Giddens, 2002)
Ciampa (1987) afrma que “Cada indivíduo encarna as relações sociais,
configurando uma identidade pessoal. Uma históriade vida. Um projeto de vida.
Uma vida-que-nem-sempre-é-vivida, noemaranhado das relações sociais.
A discussão de processos identitários abordando aspectos conceituais e
contextuais implica, primeiramente, na concepção da identidade, enquanto
24
categoria de análise, como uma construção social, marcada por polissemias que
devem ser entendidas circunscritas ao contexto que lhe conferem sentido. Isso
permite caracterizar a identidade enquanto uma processualidade histórica
vinculada ao conjunto das relações que permeiam a vida cotidiana. As várias
configurações de identidade habitam reflexões dos teóricos da modernidade,
como Giddens (2002) e exigem a circunscrição deste homem ao momento atual
do mundo globalizado, marcado por um capitalismo desorganizado, a fim de
explicitar as novas bases sobre as quais se articula o pessoal e o social na
contemporaneidade.
25
2. A IDENTIDADE DO EU PÓS-CONVENCIONAL
Desde a década de 70, Habermas vem desenvolvendo uma análise que
tenta vincular o desenvolvimento do indivíduo com a categoria da identidade do
Eu. A organização do Eu é simbólica, segundo Habermas, porque a criança
primeiro se integra num “universo simbólico” qualquer, pela apropriação de
generalidades simbólicas. Depois, a identidade do indivíduo é assegurada e
desenvolvida pela individuação, ou seja, através de uma crescente independência
em relação a essas generalizações simbólicas. Sua análise da dialética da
socialização e individuação é desenvolvida a partir da teoria de subjetividade de
George Herbert Mead.
A apropriação que Habermas faz da Psicologia Social de George Herbert
Mead é muito complexa, mas tem como motivação principal seu interesse em
compreender o Eu reflexivo e o papel constitutivo de comunicação neste
processo. Ou seja, tanto individuação quanto socialização são processos de
interação social mediados pela linguagem. O sujeito reflexivo e autônomo é
constituído socialmente e o arcabouço de nossa análise da subjetividade deveria
ser o “paradigma de interação mediada simbolicamente” (Habermas, 1988). A
partir da teoria de subjetividade de Mead, Habermas constrói uma compreensão
da gênese comunicativa e social do que pode ser chamado o Eu autônomo e
reflexivo.
Para Mead, como Habermas ressalta, “individuação depende (...) da
internalização das agências que monitoram comportamento, que migram, por
assim dizer, de fora para dentro” (1988). Individuação, nessa concepção, não é
visualizada como a auto-realização de um agente independente alcançada em
isolamento e liberdade mas como um processo de socialização mediado
lingüísticamente e a constituição simultânea de uma história de vida que é
consciente de si mesma. A identidade de indivíduos socializados se desenvolve
simultaneamente no médium de alcançar entendimento com outros na linguagem
e no médium de alcançar um entendimento intrasubjetivo com si mesmo sobre
26
sua história de vida. Individualidade se forma nas relações de reconhecimento
intersubjetivo e de auto-entendimento mediada intersubjetivamente.
A partir desse insight de Mead, Habermas constrói sua teoria de
subjetividade, que resgata a idéia de um Eu autônomo. Segundo Habermas,
Mead foi o primeiro de desenvolver um “modelo intersubjetivo do Eu produzido
socialmente”, um Eu que precisa do reconhecimento do outro porque foi gerado
como resposta às exigências do outro. Eu me torno como sou vivendo junto com
outros. O eu, que parece algo dado a mim como puramente meu, não pode ser
mantido somente pelo meu poder – não me pertence.
É importante frisar que, para Habermas, o significado da expressão
‘individualidade’ se refere a autocompreensão de um sujeito capaz de falar e agir,
alguém que se apresenta e, se for necessário, se justifica como uma pessoa
distintiva e insubstituível, diante de outros participantes em diálogo.
Independentemente do quanto é difusa, é essa autocompreensão que
fundamenta a identidade do Eu. Além do mais, essa individualidade deve ser
explicada em termos da autocompreensão ética de uma pessoa em relação a
outro, ou seja, uma conscientização ética de uma pessoa responsável, que está
situada dentro de um mundo de vida intersubjetiva e quer ser reconhecida como
alguém com uma história de vida mais ou menos estabelecida, contínua e
apropriada conscientemente. Em outras palavras, alguém que sabe, diante dele
mesmo e dos outros, quem ele é e quem ele quer ser.
Então, como essa pessoa é constituída? Não é necessário entrar nas
complexas e difíceis análises das teorias de subjetividade de Mead e de
Habermas. Entretanto, gostaríamos de apontar alguns aspectos centrais.
A gênese da subjetividade se dá pela interação mediada simbolicamente. A
subjetividade não é mais compreendida como um espaço interior de
representações, espaço esse que se apresenta quando o sujeito se desdobra,
como num espelho, sobre sua atividade de representar. Quando a subjetividade é
compreendida como um espaço interior de representações, é acessível ao próprio
27
sujeito somente como objeto, e o sujeito adota o papel de observador em relação
a ele mesmo. No modelo intersubjetivo , no entanto, o sujeito adota o papel de
falante numa relação social com um ouvinte. Dessa perspectiva social, o sujeito
se vê e se compreende como o alter ego do outro.
Autoconsciência é, então, constituída a partir da relação com o outro. Ou
seja, o Eu da autoconsciência é um objeto social . Dessa maneira, o que está
constituído é um “me”. Na atitude performativa esse “me” se apresenta como algo
co-construído na interação social mediada pela linguagem. Conseqüentemente,
autoconsciência não é um fenômeno inerente ao sujeito, mas um fenômeno que é
gerado comunicativamente.
Entretanto, é importante distinguir entre uma auto-relação originária, que se
constrói na comunicação ‘primitiva’, mediada pelos gestos vocais da criança
pequena, e a auto-relação refletida, que se constrói na comunicação
genuinamente lingüística. Ou seja, nossa individualidade, no sentido de um
domínio de representações e de uma autocompreensão. Utilizo os prenomes
pessoais “I” (eu), “me” (mim) e “we” (nos) em inglês porque são os termos
utilizados por Mead e por Habermas. ética atribuídos a um indivíduo, somente se
constrói na interação social mediada pela comunicação lingüística. Essa análise
explica, segundo Habermas, a constituição social da autoconsciência , ou seja, a
relação epistêmica do Eu com ele mesmo.
Contudo, Habermas argumenta que existe outra dimensão, digamos assim,
da individualidade, que está formada na interação social mediada pela linguagem:
a relação prática do Eu com ele mesmo. Em outras palavras, o agente que se
forma nesse processo social é um sujeito que conhece (knowing subject ) e um
sujeito que age (acting subject ). Essa segunda dimensão de agência é o que
monitora e controla o comportamento do indivíduo. Esses controles de
comportamento, que fazem parte do que pode ser chamada a personalidade do
indivíduo, também se constituem na relação interativa entre o Eu e o Outro, na
qual “uma nova agência” reflexiva está formada através da qual o Eu adota as
expectativas comportamentais do Outro. O principal mecanismo aqui é o de
28
adotar os papéis sociais do outro. Nesse processo, um segundo “me” está
constituído, mas, em vez de ser o lugar de autoconsciência , esse “me” é a
agência de autocontrole . Ou seja, auto-reflexão, que tem como tarefa mobilizar
motivos para ação e internamente controlar o comportamento do indivíduo. Nesse
caso, o Eu adota as expectativas normativas do Outro: normas sociais são
ancoradas no sujeito através de um processo de internalização de controles
sociais.
Segundo Mead, esse “me” se concebe como o “outro generalizado”, ou
seja, as expectativas de comportamento do meio social do sujeito, digamos
assim, migram de dentro da pessoa. A relação prática do Eu com ele mesmo é
constituída por um “me” que coloca limites, da perspectiva do “we” social, à
impulsividade e criatividade de um “I” resistente e produtivo. Dessa perspectiva, o
“I” parece, num lado, como a pressão de impulsos naturais e pré-sociais e, no
outro lado, como o ímpeto para a transformação inovativa de uma maneira de ver.
O “me” de Mead pode ser considerado uma consciência moral
convencional, uma força conservadora, dependente das formas de vida e
instituições praticadas e reconhecidas numa determinada sociedade. No entanto,
esse Self constituído convencionalmente é uma pré-condição para um “I”, ou seja,
um aspecto do Self que é não convencional, um Self que pode opor o “me”
convencional. Mas o “I”, essa fonte de inovações capazes de romper e renovar os
controles convencionais, que resiste às expectativas consideradas legítimas numa
determinada sociedade, na teoria de Mead, representa elementos da
personalidade que podem ser considerados parte da subconsciência. Ou seja, a
tensão entre o “me” e o “I “, no estágio da gênese do indivíduo que pode ser
chamado convencional, é resolvida pela supressão ou opressão do “I” pelo “me”.
Ou seja, a identidade convencional vence os aspectos não convencionais do Self
. Mas, sendo elementos subconscientes deste último, o conceito de “I” de Mead
não pode ser o Self como sujeito de ação responsável.
Para Habermas, a identidade convencional, representada pelo “me” da
teoria de Mead, é, na melhor das hipóteses, um substituto para o Self verdadeiro,
29
‘autêntico’. Por isso, Habermas desenvolve o conceito da identidade pós-
convencional, um Eu capaz de se distanciar das práticas e instituições
consideradas legítimas numa determinada sociedade para criticá-las e
transformá-las. Mas esse Eu, como qualquer outro, tem que ser constituído
intersubjetivamente, através de uma relação com outros numa comunidade. É
nessa relação que o Self se constitui sempre. Para o indivíduo ser capaz de
realizar sua identidade verdadeira, não pode se desvincular de uma comunidade.
Então, como a identidade pós-convencional pode se desenvolver, se a
internalização do “outro generalizado” numa comunidade qualquer resulta na
constituição de uma identidade convencional? A resposta que Habermas dá a
esse dilema é muito problemática, na minha opinião. Basicamente, ele diz que o
“I”, a fonte do potencial crítico do Self , digamos assim, projeta um novo contexto
intersubjetivo, possibilitando um novo “me” que reflete as normas dessa
comunidade projetada. Qual é essa comunidade? É uma comunidade ‘universal’
composta de todos os alter egos , ou outros, possíveis. Na sua relação com essa
‘comunidade universal’ projetada, o Self constrói uma identidade pós-
convencional onde o “me” convencional está substituído com um “me” pós-
convencional. É importante perceber que, para Habermas, o Self pós-
convencional é uma construção social como qualquer outro Self . Não é a
propriedade de uma subjetividade isolada; é um Self que depende do
reconhecimento de outros, tanto quanto qualquer Self . Esse Self recorre à
comunidade universal em duas dimensões: a moral e a ética.
A racionalidade do sujeito é resgatada tanto das tendências do
individualismo metafísico da modernidade quanto do contextualismo do “pós-
modernismo”. O Eu pós-convencional é um iniciador de ação que é atribuída
somente a ele, ou seja, um Eu autônomo. Mas a constituição desse Eu autônomo
é social. Como Habermas diz: Somente na medida em que nós crescemos dentro
desse contexto social é possível que nós constituímos como atores individuais
responsáveis; na internalização de controles sociais, desenvolvemos para nos
mesmos, separados dos outros, a capacidade ou de seguir ou de violar as
expectativas que são consideradas legítimas (Habermas, 1988).
30
Individuação, nesse sentido, não é a mesma coisa que a diferenciação
social causada pelos processos de modernização. Habermas argumenta que a
crescente fragmentação das sociedades contemporâneas sobrecarrega
identidades convencionais com exigências conflituosas, o que pode resultar na
desintegração dessas identidades. Mas isso é tanto um fenômeno de
emancipação quanto uma perda de identidade. Contudo, seu potencial
emancipatório pode ser realizado somente na medida em que indivíduos são
capazes de construir estruturas de identidade pós-convencional. E tal
possibilidade requer não um desengajamento de uma comunidade, mas uma
‘integração projetada’ numa comunidade maior.
31
3. Metamorfose Humana
Para melhor compreender a identidade enquanto processo e metamorfose,
cujo movimento é o aspecto central, recorremos à abordagem desenvolvida por
Antônio da Costa Ciampa, que nos auxilia na compreensão da subjetividade
enquanto totalidade.
Na formulação de Antonio da Costa Ciampa (1987), o conceito de
identidade está necessariamente vinculado ao sintagma identidade-metamorfose-
emancipação. Nesta linha, a identidade é norteada por uma concepção sócio-
histórica de homem, ou seja, a identidade é uma formação social que vai se
constituindo enquanto metamorfose do nascimento até a morte física do sujeito e
que acompanha o movimento histórico em busca da emancipação, que constitui o
humano concreto em individualidades e coletividades, articulando sociedade e
natureza como história. Logo, a identidade não é inata e pode ser entendida como
uma forma sócio-histórica de individualidade.
Como a identidade significa não apenas “o que sou”, mas “quem sou”
situado no tempo e no espaço sociais, ela constitui-se como uma experiência
cultural, onde a presença do outro é condição de possibilidade para a constituição
e afirmação da identidade enquanto singularidade. Logo, a identidade não é inata
e pode ser entendida como uma forma sócio-histórica de individualidade. O
contexto social fornece as condições para os mais variados modos e alternativas
de identidade. O termo identidade pode, então, ser utilizado para expressar, de
certa forma, uma singularidade construída na relação com outros homens.
De acordo com Ciampa, é muito comum, em nosso cotidiano, a seguinte
pergunta: quem é você? Esse questionamento indubitavelmente remete à
identidade. Por exemplo, a resposta à pergunta “quem sou eu?” seria
insatisfatória para a configuração de uma concepção sobre identidade, uma vez
que capta somente o aspecto representacional da noção de identidade (enquanto
produto), deixando de lado seus aspectos constitutivos de produção.
32
O contexto social fornece as condições para os mais variados modos e
alternativas de identidade. O termo identidade pode, então, ser utilizado para
expressar, de certa forma, uma singularidade construída na relação com outros
homens.
A identidade é o ponto de referência, a partir do qual surge o conceito de si
e a imagem de si, de caráter mais restrito. Seria mais sensato dizer que essa
singularidade, o reconhecimento pessoal dessa exclusividade, não é construída,
mas vai sendo construída, a fim de abandonar a noção de imutabilidade. A
identidade não se apresenta sob a forma de uma entidade que rege o
comportamento das pessoas, mas é o próprio comportamento, é ação, é verbo.
Não há uma separação, mas sim uma articulação, em que os limites, se é
que realmente existem, entre o social e o individual, que se confundem. Para
existir um, são necessários dois, não apenas do ponto de vista da concepção, da
genética, da sobrevivência, mas sobretudo em se tratando do homem ser
reconhecido como tal; o homem só se vê como homem se os outros assim o
reconhecerem. Sob essa perspectiva, é possível conceber a identidade pessoal
como, e ao mesmo tempo, social, superando a falsa dicotomia entre essas duas
instâncias.
Para explicar como se dá a apresentação da identidade enquanto
metamorfose, Ciampa vale-se de elementos da dramaturgia, tais como papéis e
personagens.
A identidade constitui-se de uma multiplicidade de papéis. Os papéis
sociais são impostos ao indivíduo, desde o seu nascimento e assumidos pelo
mesmo na medida em que se comporta de acordo com a expectativa da
sociedade. Na execução de um papel social, como o de pai, por exemplo, está
"introjetado" neste pai a dimensão social em sua totalidade, desde a formação da
palavra pai e sua suposta função, bem como a dimensão individual, que por sua
vez se constitui no social. Também, devemos levar em conta, que na presença do
filho, o homem se relaciona como pai; na presença de seu pai, comporta-se como
33
filho. Se for também professor do filho, o pai será pai e professor e aquele será
filho e aluno. O papel de pai, bem como o de filho, materializa a identidade como
totalidade e parcialidade, pois sendo expressão de uma parte, não revela a
identidade por inteiro.
Numa linguagem dramatúrgica, os atores sociais desempenham papéis
sociais determinados. Porém, eventualmente, alem de simples ator, cada um
pode construir sua personagem, com maior ou menor criatividade, tornando-se
assim também autor. Ciampa trabalha, assim, com a noção de personagem, que
não perde a relação com o papel, mas permite considerar as possíveis
variedades, sejam elas grupais, sejam individuais. Para Ciampa, a identidade se
expressa por meio de múltiplos personagens, e a articulação dessas personagens
é que vai compor a identidade do indivíduo.
A cada personagem materializado, a identidade tem assegurada sua
manifestação enquanto totalidade, mas uma totalidade que não se esgota nem
tampouco se resume a concretização de personagens. As personagens são
partes constitutivas da identidade e, ao mesmo tempo, configura-se como um
todo que se cria a si mesmo, enquanto fenômeno de uma totalidade concreta. A
identidade é ainda um universo de personagens já existentes e de outros ainda
possíveis.
A identidade é vista como totalidade não apenas no sentido da
multiplicidade dos personagens, mas também no que se refere ao conjunto de
elementos biológicos, psicológicos e sociais que a constitui. Não podemos isolar
de um lado todo um conjunto de elementos – biológicos, psicológicos, sociais, etc.
– que podem caracterizar um indivíduo, identificando-o, e de outro lado a
representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica, que
expressaria a sua identidade. Isso porque há como uma interpenetração desses
dois aspectos, de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo
anterior de representação que faz parte da constituição do indivíduo
representado. (Ciampa, 1987).
34
A natureza, a sociedade e o indivíduo não são vistas como algo pronto e
acabado, mas como elementos que estão em constante transformação. Na
verdade, o movimento é uma característica inerente a todas as coisas, a
identidade aí se inclui. “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto...
é metamorfose.” (Ciampa, 1987). Logo, ao invés de se perguntar como a
identidade é construída, seria mais sensato questionar como vai sendo
construída.
Ainda segundo Ciampa, a identidade é construída por elementos opostos,
ela é diferença e igualdade; objetividade e subjetividade, ocultação e revelação,
humanização e desumanização, mesmice e mesmidade, e, para compreendê-la,
é necessário articular essas dimensões aparentemente contraditórias a fim de
superar a dicotomia individual/social que constitui a problemática da identidade
desde a origem do termo. Identidade é ao mesmo tempo diferença e igualdade .
A palavra identidade evoca tanto a qualidade do que é idêntico, igual, como
a noção de um conjunto de caracteres que fazem reconhecer um indivíduo como
diferente dos demais. Assim, a identidade implica tanto no reconhecimento de que
um indivíduo é o próprio de quem se trata, como também pertence a um todo,
confundindo-se com outros, seus iguais.
A igualdade é expressa na história social compartilhada pela família, grupo
social, localização geográfica, condições econômicas, culturais. A diferença pode
ser entendida como a constituição da singularidade, a transformação da
significação social em sentido pessoal; e isso se dá pela atividade, através da
concretização de personagens. É nesse processo de externalização (atividade
humana) que a sociedade chega a se constituir como produto humano.
Ciampa recorre a Habermas e o seu conceito de identidade pós-
convencional para articular diferença e semelhança, distinguindo identidade do Eu
e identidade de papel. Para Ciampa, esta última é convencional, sempre que nos
referimos a alguém apenas como portador de um papel e que assume certas
convenções, como por exemplo, assumir que certas condutas são próprias de um
35
determinado gênero. Na verdade são convenções que vêm sendo abrandadas,
mas que ainda existem.
Para Ciampa (1987) a identidade é uma metamorfose porque estamos
inexoravelmente sujeitos a mudanças intrapessoais, paradoxalmente somos os
“mesmos” e somos “diversos” e as interações sociais permitem esta estranha
dinamicidade. Entretando, enquanto processo contínuo da identidade, a
metamorfose pode assumir diferentes sentidos.
Quando se dá como simples reposição, sem questionamento e/ou
responsabilidade por parte do próprio indivíduo, ou seja, sem autonomia, o sujeito
ao repor a identidade pressuposta fica prisioneiro de uma personagem que lhe foi
atribuída de modo heterônomo, permanecendo numa “mesmice” que, se não
chega propriamente a degradar, faz a pessoa acriticamente ficar “estagnada”,
impedida de novas experiências e relações que lhe garantam melhor qualidade de
vida. Porém, pode ocorrer a degradação quando um estigma, atribuído pelos
outros e incorporado pelo sujeito, é eficiente deteriorando sua identidade com
ações preconceituosas e discriminatórias que o prejudicam de forma significativa.
E, finalmente, a metamorfose pode ocorrer como superação, quando o sujeito
emancipa-se de valores estigmatizantes e preconceituosos impostos pela
sociedade e/ou apropriados pelo indivíduo, possibilitando assim um agir mais livre
e criativo para realização de suas metas e desejos, o que é a expressão da
“mesmidade”. A expressão da mesmidade pode ser entendida também como
autenticidade, que envolve auto-reflexão e autodeterminação.
Um fenômeno que funciona por meio da “re-posição” e que pode ser tanto
positiva quanto negativa, na medida em que tanto possibilitam um sentido de
direção para os indivíduos (no primeiro caso), como podem reduzir o indivíduo a
uma única personagem acabando com a articulação da igualdade e da diferença
(no segundo). Ciampa desvela com essas proposições um fenômeno inerente à
identidade: a aparência de “não-metamorfose”. Para explicar como ocorre esse
fenômeno ele recorre a explicitação do trabalho de re-posição, que cria a
aparência de não metamorfose e impede muitas vezes que vejamos as
36
metamorfoses da identidade; para ajudar a entender como ocorre esse processo,
Ciampa propõe dois movimentos na identidade, caracterizados como mesmice e
mesmidade.
A mesmice decorre da re-posição da identidade que pode se dar como
consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à repetição; é pré-
suposta como dada permanentemente e não como re-posição de uma identidade
que um dia foi posta. O que pode dar uma aparência de não metamorfose,
comumente observado quando olhamos para uma pessoa depois de algum tempo
e dizemos para nós mesmos: fulano não mudou nada, continua o mesmo! O que
sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação; e a plena concretização
da mesmice é aquilo que Ciampa chama de fetichismo da personagem, que vai
explicar a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de ser-para-si.
O mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não
superação das contradições), em que a própria atividade que serve de base para
a personagem deixa de ser desempenhada. Em seu livro, Ciampa cita: Severino
“é lavrador” mas já “não lavra”.
O conceito de “mesmidade”, que se refere à superação da personagem
vivida pelo indivíduo, pode ser compreendido como a expressão do outro “outro ”
que também sou eu. Que se torna possível a partir da possibilidade de formular
projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente
definidos, ou seja, pelo desenvolvimento de “identidade pós-convencionais” que
se definam “pela aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas no
próprio processo em que a identidade está sendo produzida, como mesmidade de
aprender (pensar) e ser (agir).” (Ciampa, 1997, 241)
Quanto maior o conformismo com as convenções sociais, mais as
identidades pressupostas são repostas, ou seja, são reproduzidas de forma a
consolidar uma tradição que vê como natural o que é social e conseqüentemente
histórico.
37
Entretanto, mesmo quando a identidade é percebida como estática,
parecendo não sofrer codificação, ela está sendo transformada à medida que,
através das ações do sujeito, ele “repõe” aquilo que a sociedade “põe” como
“correto”, ou seja, aquilo que as normas sociais e a ideologia dominante
estabelecem ser o mais adequado. Tal processo pode dar a impressão que a
identidade do sujeito permanece igual, sem transformação alguma, mas é o
trabalho da reposição que sustenta a mesmice.
Esta reposição ocorre quando há a reatualização da identidade
pressuposta, por meio de rituais sociais; no entanto, quando há esta reposição,
retira-se o caráter de historicidade da identidade. É o que Ciampa denomina de
identidade “mito”, em que apenas se reproduz o social sem questionamento e/ou
responsabilidade por parte do próprio indivíduo com relação a sua identidade.
Esta aparente não transformação da identidade impede a emancipação.
Em função disso, há uma tendência a idealizar os papéis - cristalizando a
noção de identidade. Espera-se que as pessoas ajam de acordo com os
predicados de sua identidade, ou seja, há padrões de conduta esperados para
mulheres e homens, jovens e velhos, deficientes e não-deficientes, alunos e
professores. Fugir a esses padrões – sócio-culturalmente determinados – significa
a possibilidade de sofrer sanções.
No mundo complexo em que vivemos, está se tornando cada vez mais
complicado falar em identidades que combinem papéis homogeneamente
definidos, e com uma frequência bem maior, o que econcontramos são indivíduos
que combinam papéis diferenciados.
Segundo Ciampa, “ser-para-si é buscar a autodeterminação. Procurar a
unidade da subjetividade e da objetividade, que faz do agir uma atividade
finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora de si e do
mundo”. Nesse sentido, ser-para-si é sair da mesmice, é a expressão da
autonomia em direção a mesmidade e à emancipação. Esta auto-determinação
nos possibilita sair do movimento de reposição e buscar o outro “outro” que
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também somos, ou seja, o “outro” que queremos ser pela superação da
identidade pressuposta. Desta forma, para que a identidade seja autodeterminada
como “ser-para-si, e não o ser–feito-pelo-outro” é necessário também que essa
nova identidade do outro “outro” que queremos ser tenha reconhecimento social,
de tal forma que a idéia de ser o autor da própria vida – e não apenas um ator que
simplesmente repõe os padrões coercitivamente impostos – precisa ser entendida
como possibilidade que sempre se dá, em última análise, como co-autoria
coletiva.
Por isso, só temos condições de avaliar se houve, ou não, a emancipação
a posteriori, pois não há a garantia de que um novo conteúdo identitário (ainda
que necessário) por si só irá dar condições emancipatórias ao sujeito. É através
do processo pelo qual esse novo conteúdo identitário do Ego é reconhecido pelo
Alter que esse sentido pessoal se estabiliza como significado socialmente
compartilhado, permitindo que se desenvolva uma nova rede intersubjetiva, em
que as relações entre Ego e Alter são transformadas pelo reconhecimento
recíproco de ambos como sujeitos autônomos.
39
4. José Júnior e seus múltiplos personagens
Ao analisarmos a identidade de José Júnior, entendemos que essa se
expressa por meio de múltiplos personagens e que é o jogo e articulação dessas
identidades que forncecem a ele a sua própria identidade: a identidade do Eu.
Diante de tantas realidades diversas e personagens múltiplos, uma pergunta que
não quer calar: por que e como? Qual a motivação para a construção de tantos
personagens e como transitar nestas diferentes identidades?
Para Ciampa (1987) o sujeito é o resultado da sucessão e coexistência de
diversos personagens criados por ele mesmo ao longo da vida. A identidade é um
produto da história desses personagens, de suas vidas e suas mortes, numa
processualidade e transformação.
De menino pobre a referência nacional, uma das coisas que impressiona
no José Junior é a sua identidade camaleônica, o seu trânsito entre os mais
variados personagens, o seu passeio entre diversas identidades coletivas e a sua
capacidade de viver em mundos diferentes e, muitas vezes, até opostos.
A identidade implica uma multiplicidade de papéis bem como um universo
de personagens já existentes e de outros ainda possíveis, onde a personagem
ora confunde, ora se diferencia do papel, visto que o sujeito não apenas absorve
passivamente o mundo social (com suas instituições, papéis e identidades) mas
apropria-se dele de maneira ativa, ou seja, cria sentido para o mundo em que
vive. Como nos ensina Ciampa (1987):
Somos personagens de uma história que nós mesmos criamos,
fazendo-nos autores e personagens ao mesmo tempo.
Durante a sua trajetória, José Junior já vivenciou vários personagens e
continua encarnando outros tantos. Ele mesmo se descreve de várias formas,
entre elas, fracasado, briguento, aprendiz. Várias são as suas inspirações, mas as
40
mais constantes estão relacionadas à religiosidade. Em suas falas,
freqüentemente recorre a arquétipos religiosos como Ogum, Xangô e Oxum.
Shiva, o deus hindu da transformação, com a qual se identifica enormemente, é
uma das suas citações mais constantes.
Diante da diversidade de papéis e personagens desempenhados por Junir,
percebemos que classificá-lo em uma determinada identidade coletiva, por muitas
vezes, significa limitar a riqueza da sua identidade individual. Ele mesmo revela:
Não gosto de ser identificado como empreendedor social. Na
verdade, eu não gosto de títulos. Quando eu chego em um hotel e
tenho que preencher a ficha, fico sempre em dúvida sobre o que
colocar lá.
No material que analisamos sobre José Júnior, entre os quais diversas
entrevistas concedidas por ele na mídia, o título mais comum atribuído a ele é o
de “empreendedor social”, já que é o fundador e líder do Grupo AfroRegaee. O
Grupo é uma organização não-governamental empenhada em dar oportunidade a
jovens que estejam na ociosidade, envolvidos direta ou indiretamente com a
criminalidade.
Além de “fundador, líder e empreendedor social, entre os seus diversas
predicados que são utlizados para descrevê-lo e que, comumente, aparecem na
mídia, encontramos: mediador de conflitos, escritor, autor e apresentador.
Como são muitos os papéis desempenhados, procuro, aqui, fazer, de
forma esquemática, um resumo dos principais personagens vividos no passado e
no presente por José Júnior. Esses personagens foram coletados através de
conversas com o próprio José Junior, suas entrevistas mais recentes para
diversos veículos de comunicação e do seu livro, lançado em 2003.
41
4.1. O fracassado-briguento
Junior nasceu em Ramos, um bairro de subúrbio do Rio, na época um local
tranqüilo. Hoje, o Complexo do Alemão, que fica lá, é o lugar mais temido do Rio
de Janeiro. Junior se mudou para o centro quando seu pai se separou da mãe.
Seu pai era uma pessoa que bebia muito, batia no Junior, e batia na mãe todos os
dias. Depois de cada surra, ela fumava. Isso o marcou muito, porque Junior nunca
bebeu um copo de álcool em sua vida e nunca fumou e nem usou droga. Sua
mãe, divorciada do pai, foi e é até hoje quem lhe dá apoio.
Foi criado no centro da cidade do Rio de Janeiro, numa área de
prostituição, jogatina, corrupção, criminalidade e tráfico. Junior considera que ter
nascido e crescido nesse meio marginal foi muito enriquecedor, pois, para ele, foi
nas ruas – e das ruas – que vêm sua cultura e sua ética. Ali cresceu e aprendeu
tudo o que sabe na vida, e orgulha-se disso:
A escola não forma ninguém como cidadão. Nunca formou e nunca
formará. O que te forma é tua casa, tua família, teus amigos.
Para Junior, a sua formação na rua foi importante e sempre aprendeu mais
pela cultura oral que escrita. Júnior afirma ter aprendido tudo o que sabe na
própria vida, já que nunca estudou. Nesse sentido, seu depoimento é um misto de
orgulho e ressentimento:
Você quer ver outra coisa que é um problema? Eu não estudei. O
que acontece? Quando tenho um pesadelo na minha vida, estou me
vendo numa sala de aula como aluno, eu estudando o dia inteiro, eu
fico na merda, isso é pesadelo. Quando eu sonho que estou numa
sala de aula, como aluno, pois a minha visão de uma sala de aula é
da década de 80, carteira. Não é essa sua universidade, onde se faz
pós-graduação, não é isso. Aí fico me vendo como aluno, eu tenho
pesadelo, eu passo mal.
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O primeiro ídolo do Junior foi seu cunhado. Era uma pessoa que era
viciada em heroína e era o próprio Junior quem pegava a droga pra ele nas
favelas. Com cerca de 12 anos ele freqüentou várias favelas para pegar droga
para o cunhado, sendo esse o o seu primeiro contato com a favela.
Junior cresceu em um lugar onde o clima era muito pesado, com muita
violência. Quando ele fez 17 anos, percebeu que tinha duas opções: ou seria
bandido, ou brigaria bem. Segundo ele, era como se fosse um vulcão e a coisa
simplesmente explodia dentro dele.
Para Junior, ele vivia num contexto de frustração, fracasso e utopia, mas,
ao contrário do que se imagina, ela acredita até hoje que esse contexto foi muito
benéfico, porque criou o que ele denomina de ”campo magnético em torno dele”.
Segundo ele, era da última geração que ainda brigava sem arma porque havia um
respeito pela pessoa que brigava sem arma. Ele conta:
Então eu briguei muito, fisicamente falando. Já encarei até seis,
sete, mas depois eu descobri isso até espiritualmente. Eu brigava
muito, era muito violento. “O cara podia estar armado, mas se você
chamasse para o mano a mano ele vinha. Tomei muita porrada. Meu
nariz é torto. Levei uma cabeçada que meu nariz veio parar aqui
(aponta para o meio da bochecha). Apanhei mas também bati muito.
E fui covarde, porque entrei para o box, então eu era uma máquina
de bater. E eu era muito forte e truculento”.
Nesta época, as pessoas confundiam muito a sua “truculência” com
banditismo, até porque ele bateu muito em bandido, mas também bateu muito na
polícia. Ele se diz fruto desse ambiente que freqüentou no passado. Até então,
sentia-se completamente fracassado:
Sempre fui um cara derrotado em minha vida. Tudo que eu fazia
dava errado. Era, digamos assim, um eterno perdedor.
43
Aos dezoito anos, percebeu que onde morava era o mais velho; os outros
estavam presos ou tinham morrido. Para ele, esse foi um sinal de que precisava
mudar. A partir desta consciência, Junior lança as bases para o seu processo
emancipatório.
Como vimos através da abordagem teórica de Ciampa (1987), na qual o
indivíduo, que nasce como ser apenas natural capaz de se metamorfosear,
também nasce como ser histórico ao sofrer as determinações das constantes
transformações sociais. Dentro dessa perspectiva, vemos que a identidade é um
fenômeno social, logo não é possível dissociar o estudo da identidade do Eu, do
estudo da sociedade.
É do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas
determinações e, conseqüentemente, emergem as possibilidades ou
impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade. O indivíduo constrói a
sua identidade humana, ao mesmo tempo em que age como ator social. Ele vai
se tornando autor de ações que podem determinar transformações da sociedade
as quais, ao se concretizarem, concretizam o processo histórico como síntese de
natureza e cultura.
É assim que a identidade, considerada como um processo de constante
metamorfose, pode ser compreendida à luz da Psicologia Social, pois esta
apresenta a visão de ser humano como um ser ativo e em constante processo de
transformação. Transformação esta em que indivíduo e sociedade se constituem
reciprocamente, através de um processo dialético, um processo não linear em
que os fenômenos são considerados e analisados em seus movimentos
recíprocos e contínuos de interação sujeito advinda deste movimento de morte e
vida, em que uma personagem é abandonada e outra surge, é que permite a
superação da identidade pressuposta e a concretização da identidade como
metamorfose em busca a emancipação.
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A partir de agora, vamos acompanhar o processo de transformação do
José Junior e o surgimento de múltiplos personagens que possibilitaram que ele
abandonasse o personagem fracassado-briguento e superasse uma identidade
pressuposta, afirmando, assim, a identidade do eu pós-convencional.
45
4. 2. O monge cósmico
Diante deste modelo visto em casa e na comunidade e, para não se
revoltar, Junior começou a se espiritualizar a partir dos 14 anos de idade. Ele
afirma:
Existia um fúria em mim, eu estava muito violento mas percebi que
todo mundo estava morrendo e eu comecei a me espiritualizar.
Nessa história de espiritualidade já aconteceu muito de policial e
bandido sacar a arma para mim, atirar, e o tiro não sair. Tinha uma
onda comigo muito forte, até hoje.
Segundo o próprio Junior, a sua história começou a virar na busca da
espiritualização, que demorou muitos anos. Junior conheceu uma pessoa que
chegou para ele e assumiu o papel de uma espécie de mentor espiritual. Esta
pessoa previu que ocorreria uma “coisa diferente” na vida dele e que ele não
deveria recusar.
Durante quatro anos, Junior procurou Deus em várias religiões. Freqüentou
o Candomblé, a Umbanda, Quimbanda, a igreja Messiânica, o Kadercismo e
Testemunha de Geová, aprendendo muito com todas elas e passado a respeitá-
las igualmente. Após entrar em contato com essas diversas correntes religiosas,
chegou à conclusão que “O Deus é o mesmo em todos os lugares”. A partir daí,
começou a se definir espiritualmente como “eclético” e, hoje, além das religiões
que citamos acima, freqüenta também a Igreja Universal, o Hare Krishna, o
Budismo. Ele alega:
Se me chamarem para a igreja Universal, eu vou feliz. Ultimamente
freqüento a Assembléia de Deus dos Últimos Dias, do pastor
Marcos, um cara polêmico mas um dos maiores mediadores de
conflito que eu conheço.
46
Junior possui seis tatuagens ligadas à espiritualidade. Por exemplo,
tatuado no braço direito, possui Ogum, que na tradição religiosa afro-brasileira do
Candomblé, é considerado um orixá guerreiro. Tatuado no seu braço esquerdo,
está Shiva, que na tradição hindu é o destruidor, que destrói para construir algo
novo, e o motivo pelo qual também é conhecido como "renovador" ou
"transformador".
Apesar de, freqüentemente, José Junior mencionar a sua ligação com a
espiritualidade, o monge cósmico talvez seja o personagem que Junior menos
mostra publicamente. Entretanto, a sua afinidade com o mundo espiritual é
bastante forte. Junior possui uma mente bastante especultiva e um interesse
natural por assuntos metafísicos. Ele relatou que possui uma abertura mediúnica,
já fez regressão para vidas passadas de forma espontânea, ou seja, sem ajuda
de nenhum profissional ou guia, e que já psicografou.
Até hoje, Junior costuma passar regularmente por fases de reclusão
voluntária, que considera absolutamente essenciais em sua vida. Segundo ele,
esse isolamento temporário, por livre e espontânea vontade, representa uma
oportunidade para que ele se re-energize e se conecte com a sua alma através de
mentalizações que reliza. As técnicas de mentalização utilizadas por ele foram
criadas pelo próprio Junior, ainda quando era adolescente.
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4.3. O alquimista das polaridades
Desde adolescente, Junior percebia que tinha alguma coisa diferente dos
outros. Cresceu no meio de bebida, drogas, crime e, todavia, ele nunca
expermentou bebida alcoólica, nem tabaco e nem droga. Ou seja, aprendeu pelo
oposto.
Como podemos perceber, Junior parece aprender através do oposto. Como
ele mesmo já afirmou várias vezes, ele reage aos impactos que sofre sempre pelo
oposto. Junior aprendeu e – parece aprender ainda – pelo oposto. Ele declara:
O surgimento do AfroReggae teve uma relação muito forte com
fracasso, utopia e uma dosagem profunda de espiritualidade.
Quando você mistura essas coisas é como um ritual de alquimia
onde a pedra fundamental pode se transformar em tudo aquilo que
você quiser.
E esta capacidade de aprender através das polaridades e de tranformar o
negativo em positivo, capacidade esta que Junior associa metaforicamente a
Shiva, dá subsídios para o surgimento de mais um personagem, o alquimista das
polaridades.
Ao longo de sua vida, uma das figuras míticas que mais inspira José Junior
é a divindade hindu, Shiva, deus da destruição e da transformação. Para Junior,
a sua história tem uma cara, a cara da “conexão Shiva”. Junior não nega o lado
sombrio e destrutivo no mundo em que vive, mas também sempre recorre ao seu
lado luz e transformador. Antes de fundar o AfroReggae, Junior se sentia um
fracassado:
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A gente era um bando de fracassados. Houve uma conspiração
astral para neguinhos se envolverem naquele momento. Se a gente
for pensar em produto, a gente foi trabalhar com um produto que
ninguém queria. Quem é a minha W/Brasil (agência de publicidade)?
É o cara que a gente tira do tráfico, que vira empreendedor e tira
outro sujeito do tráfico.
Junior é sempre muito direto ao falar sobre o movimento cultural que
organizou, que pare ele nasceu do ódio e não é fruto da consciência de um líder.
Quem deu à luz a essa proposta são os sobreviventes da chacina, são os filhos
da exclusão organizada de maneira global. Junior deixa claro que seu agir não é
fruto da consciência; antes, nasce da catástrofe e tem como origem e alimento o
ódio e a raiva. E o alquimista das polaridades fala:
Se não tivesse havido chacinas, se não tivesse morrido tanta gente,
não existiria AfroReggae. Quer dizer, vem de uma coisa ruim e vira
uma coisa boa. Não é que vem de uma coisa boa; vem de uma coisa
ruim, vem do mal, vem do ódio, vem de coisa ruim. Dizer que vem
do espírito positivo não é verdade! Vem com raiva, puto da vida,
entendeu, não aconteceu porque eu me conscientizei. Nem sei se
me conscientizei, nem sei quando me conscientizei. Sabe, esse
papo bonitinho, politicamente correto: ‘Não, porque, certo dia, eu
estava na minha casa e ...’ Mentira! Eu nunca pensei assim. Nem sei
se estou consciente, até hoje.
O orgulho e a auto-estima de Junior parecem vir exatamente daí, de sua
habilidade em trocar as polaridades, das trevas para a luz. O alquimista dos
opostos possui muita raiva e intensidade emocional. E é esta raiva profunda,
misturada com insatisfação, que gera uma força transformadora, movimenta as
suas pulsões e move José Junior. Na medida em que se sente insatisfeito e
revoltado, sento o impulso de remodelar a sua própria realidade e a realidade em
que está inserido. Sente a capacidade de realizar mudanças na sua própria vida e
no seu contexto. Ele conta:
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Quando fizemos esse movimento, queríamos apenas fazer um
barulhinho e acabou sendo um barulhão. O impacto na hora foi
muito maior do que todo mundo esperava. Se a gente queria atingir
10, atingimos um milhão. Ninguém estava preparado, ninguém
estava equipado, ninguém experiente, nem estrutura, nem
estratégia. A coisa aconteceu, muito porque tinha que acontecer,
nada acontece por acaso.”
Até hoje, José Junior admite que gosta de entender com seus erros e com
pessoas que fracassaram. Ele gosta de ouvir pessoas que falam de suas
experiências que não deram certo e de seus erros. Ele conta:
Gosto de ter a visão de quem é de dentro, como eu sou, focando,
por exemplo, no que deu errado. Eu, particularmente, gosto de
conversar com quem fracassou. Esse cara é muito mais generoso
em falar onde ele errou do que o cara que faz sucesso.
O movimento AfroReggae, com as características sociais que tem hoje, é
decorrente da indignação de Junior e de mais algumas pessoas diante de um
episódio ocorrido na favela Vigário Geral, em agosto de 1993, no qual vinte e uma
pessoas, entre elas crianças e idosos, foram mortas durante a represália de um
grupo de oficiais de polícia. Junior relata:
Na ocasião da Chacina da Vigário Geral, a indignação das pessoas
tomou proporções inimagináveis, principalmente, levando-se em
consideração que naquela época ainda não se falava em menores
de idade empunhando arma de fogo, jovens no tráfico e poder
paramilitar.
Inegavelmente, o alquimista das polaridades, é um personagem chave na
fundação do Grupo AfroReggae, juntamente com o monge-cósmico. Entretanto,
antes de explicarmos historciamente o surgimento do Grupo AfroReggae, vamos
50
continuar investigando os outros personagens que foram criados a partir do
processo de emancipação do fracassado-briguento.
51
4. 4. O artista disfarçado
No seu processo de espiritualização, em um determinado momento, Junior
parou com o boxe e foi estudar teatro, uma decisão bem peculiar para uma
pessoa que, até aquele momento, era bem violenta. Entretando, foi nesta troca,
que começou a surgir um novo personagem: o artista-disfarçado. Ele nos conta:
Trocar o boxe pelo teatro, isso na década de 80, os preconceitos
eram muito maiores do que agora.
No fim dos anos 80 e início dos 90, Junior trabalhou com animação de
festas infantis, fantasiado de super-herói, sendo sempre escalado para fazer o
papel do Batman:
Onde você viu o Batman no Rio de Janeiro por dois anos era eu
quem estava lá. Para mim foi importante porque foi o primeiro
contato maior com crianças e jovens.
Neste contexto, mais uma divindade do candoblé surge como referência
para Junior: Oxum. Ao contrário de Shiva, Ogum e Xangô, que são amplamente
aladeardos por Junior, a rainha das águas doces, como Oxum é conhecida, é
timidamente citada por ele.
Segundo a religião iorubá, a Oxum pertence o ventre da mulher, que, ao
mesmo tempo controla a fecundidade. Em um sentido mais amplo, fecundidade e
fertilidade são, por extensão, abundância e fartura, já que a fertilidade irá atuar no
campo das idéias, despertando a intuição e criatividade do ser humano, que
possibilitará o seu desenvolvimento.
Por diversas vezes, Junior é categórico em afirmar a importância da
intuição na sua vida, já que a sua história de vida também é feita de muito faro. A
sua caminhada vai acontecendo, sem planejamento e de forma intuitiva. Ele
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comenta que não planejou nada, simplesmente deixou fluir. Planejamento é
importante, mas nem tudo tem que ser planejado:
Não passamos do funk para o reggae de forma planejada. O
AfroReggae era um movimento que tinha tudo para dar errado e deu
muito certo. Eu acho que a intuição tem que ser a coisa mais
importante. Por mais que a gente viva num mundo ocidental, eu me
sinto mais oriental. Nem tudo tem um porquê.”
Ao longo de sua trajetória, Junior assume a intuição como uma poderosa
ferramenta, questionando, inclusive, metodologias e técnicas mais tradicionais:
Na verdade, quando a gente fala de AfroReggae, o AfroReggae é
uma instituição muito ligada à intuição, intuição mesmo. Tem
pessoas que querem muita a questão técnica e matemática. Estão
procurando a instituição errada. A gente não é assim. A gente
trabalha com intuição, a gente respeita muito a cultura local e
principalmente o saber popular. Então, essa metodologia, ela se faz,
às vezes, por toque. Tocar na pessoa, olhar no olho, e reconhecer
alguns talentos.
Antes de relatarmos, aqui, a atuação do artista-disfarçado, gostaríamos de
esclarecer alguns pontos sobre a concepção do que é ser artista. Entedemos
artista aqui não como o indivíduo que assume formalmente uma determinada
profissão, como, por exemplo, cantor, ator, pintor, escritor, mas como aquela
pessoa com uma capacidade de utilizar a sua intuição e o seu poder criativo na
personagem em que ele encarna. Neste caso, o artista deve ser entendido pela
manifestação do dom da criatividade, da sensibilidade, da intuição, da
comunicação, da beleza para transmitir alegria, arte e cultura.
Mas vamos ao artista-disfarçado. Este é um dos personagens menos
assumidas por Junior, já que, na sua concepção, este personagem não deu muito
certo. Exatamente, por esta razão, disfarçado. Ele fala:
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Brinco inclusive, às vezes minha esposa fala: quando vocês pegam
uma pessoa e a pessoa não tem talento para ser artista o que ele
vira? Vira coordenador que nem eu! Acaba assumindo um cargo de
gestão.
Entretanto, ao contrário da sua negação com relação ao seu lado artístico,
em função do fato de não ter assumido uma carreira formal de artista,
percebemos que este personagem sempre esteve presente na vida de Junior, por
vezes através do uso da intuição e da criatividade nas próprias atividades
culturais do AfroReggae, outras vezes, através de uma atuação mais formal ou no
trânsito no meio artístico.
Além de ser o produtor musical do Grupo AfroReggae, José Junior
escreveu algumas músicas para a Banda, como Conflitos Urbanos (letra e
música) e Capa de Revista. Ele nos conta em seu blog que, em diversas turnês
da Banda, consegue rascunhar umas letras a banda e pesquisar na área da
música.
Não é por acaso que um dos mentores de Junior foi o grande poeta baiano,
Waly Salomão, que faleceu em 2003. Ele relata:
O Waly, aquele fenômeno, fortalecia minha auto-estima e virou um
professor mesmo. Todo dia a gente se falava. Ele vislumbrou um
sucesso no Afro Reggae que ninguém enxergava. Quando eu ia a
eventos em que o Waly estava envolvido, com vários artistas como
Caetano, João Bosco, Daniela Mercury, jornalistas, ele falava assim:
“Você conhece o Junior, do Afro Reggae?”. Ninguém me conhecia. E
o Waly dizia “Como não conhece? Esse cara aqui é o maior
empreendedor social do Rio de Janeiro”. Mentira, não era, mas ele
dizia e me fazia acreditar nisso, que é uma técnica que hoje eu
repasso também.
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Junior alega que lê muitos livros, mas que se alguém disser algo que lhe
chame atenção, ele irá se lembrar. Como veremos adiante, o artista-disfarçado
não só gosta muito deler, mas também escreveu um livro. Durante o lançamento
do seu livro, o seu “companheiro de cabeceira” foi Memórias da Segunda Guerra
Mundial, de Winston Churchill, um livro de cerca de 1.193 páginas.
55
4.5. O guerreiro-empreendedor
Conforme já foi possível constatarmos, o processo emancipatório do
revoltado-fracassado resultou no desdobramento de vários personagens.
Entretando, como veremos agora, um dos personagens que foi gerado e que, ao
longo da vida do Junior, tem se mostrado uma dos mais atuantes é o personagem
do guerreiro-empreendedor. Vamos a ele.
Junior transformou a sua predisposição natural para a briga, a sua revolta e
a sua agressividade canalizando-as para a ação empreendedora, fazendo surgir o
personagem guerreiro-empreendedor. Este também pode ser relacionado a um
outro orixá, Ogum. Como já havíamos mencionado, Junior possui seis tatuagens
ligadas à espiritualidade e, uma das mais proeminentes, que está do lado
esquerdo de seu braço, é a tatuagem de Ogum.
No Candomblé e na Umbanda, Ogum é o desbravador de todos os
caminhos e senhor do ferro e do aço. O arquétipo de Ogum é o do guerreiro e da
ação, das pessoas que perseguem energicamente seus objetivos e não se
desencorajam facilmente. Daquelas que nos momentos difíceis triunfam onde
qualquer outro teria abandonado o combate e perdido toda a esperança. O
arquétipo das pessoas impetuosas e arrogantes, daquelas que se arriscam a
melindrar os outros por uma certa falta de discrição, mas que, devido à
sinceridade e franqueza de suas intenções, tornam-se difíceis de serem odiadas.
Foi como produtor de festas e eventos culturais, antes mesmo do
surgimento do AfroReggae, que Junior começou a dar vida ao guerreiro-
empreendedor, que é traduzido por Junior como Ogum. .
Durante alguns anos, Junior ganhava dinheiro produzindo festa funk.
Entretanto, em 1892, depois do arrastão na praia, o funk foi proibido no Rio de
Janeiro. Foi nessa época que ele conheceu Plácido, que tornou-se seu amigo e,
mais tarde, seria um dos co-fundadores do AfroReggae. Foi com o amigo que
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aprendeu muita coisa sobre a cultura afro-brasileira e começou a ter uma maior
consciência polítca.
Através da amizade com Plácido, Junior conheceu o reggae, ritmo que
antes considerava “coisa de maconheiro”. Nessa ocasião, como já havia vendido
um grande número de ingressos para uma festa funk, acabou trocando o estilo
musical da festa pelo reggae. A primeira festa de reggae que eles fizeram foi um
fracasso, já que as pessoas da comunidade queriam funk. Entretanto, ele não
desistiu e continuou a fazer festa de reggae. Junior nos conta:
Eu comecei a promover festa de funk, já promovia umas festas,
coisa pequena, 100 pessoas. E em 92 o funk ficou proibido por
causa do arrastão da praia do Arpoador. Já tinha vendido os
ingressos para minha festa e conheci o Plácido que curtia reggae, eu
não curtia reggae. Para mim, reggae era coisa de maconheiro, mas
ele me disse para trocar a festa por reggae e tal. Aí, comecei a tocar
reggae, a festa lotada, umas 300 pessoas, e todo mundo ficou meio
puto porque queria ouvir a batida do sintetizador, não aquela batida
do reggae. Então, só de raiva, resolvi fazer uma outra festa de
reggae, dessa vez oficial. Foi a maior festa de reggae do Rio.
Colocamos no lugar, no centro, pessoas de Belford Roxo, que é na
baixada Fluminense, da Barra, de Copacabana, Ipanema, Leblon.
Não sei como, mas as pessoas foram nessa festa.
Como o lugar era muito violento, Plácido e Junior colocaram na festa o
nome de um mantra – Loka Govinda – que quer dizer “O Mundo de Krishna”. Foi
nessa época que descobriu Shiva e várias divindades hindus que o acompanham.
Mais tarde, o regaee seria o embrião do Grupo AfroReggae, sobre o qual
falaremos em seguida.
Além de festas, José Júnior também levou peças de teatro para a favela.
Apesar da experência que havia adqurido em produzir grandes shows na favela,
Junior e seus amigos nunca tinham feito um espetáculo de teatro, mas decidiram
57
fazer a apresentação em Vigário Geral. A produção de festas foi ampliando o
escopo para uma produção cultural.
Foi o amigo Plácido que apresentou para o José Junior a questão política
de Bob Marley e Peter Tosch, além do grupo musical Olodum, um fator
fundamental na auto-estima negra na década de 80 e 90. A partir desta troca
intelectual foi que os dois resolveram criar um jornal chamado AfroReggae
Notícias que circulava em favelas.
Percebendo a falta de um veículo de comunicação que falasse da cultura
negra, eles começaram a produzir o AfroReggae Notícias, um jornal temático
sobre reggae e o movimento afro. Inicialmente, eles distribuíram o jornal na
favela de Acari, depois, no morro do Cantagalo. Ele lembra:
Fazíamos festas para descolar recursos para o jornal. Nós éramos
um grupo de inexperientes e fracassados, um pequeno grupo de
pessoas que viviam em situação de risco e violência mas com uma
diferença: tínhamos utopia. Isso foi há quinze anos e criamos um
tipo de interação para que nossas vidas pudessem mudar e,
gradativamente, conseguirmos alcançar novos espaços. E foi
exatamente nesta época que ocorreu a chacina em Vigário Geral:
nós entramos em Vigário, com o jornal, um mês após a chacina.
Vigário era a favela mais temida do Brasil, tinha um poder paramilitar
muito grande, os traficantes eram mitos. Era uma favela blindada,
conhecida como a Bósnia brasileira (Junior, 2003).
O guerreiro-empreendedor gosta das causas difíceis e duras. Ele próprio
conta que não teria dado certo se tivesse começado esse trabalho em outra
favela. Sentia-se motivado por essa favela, pequena, extremamente violenta, que
“quase chegou ao canibalismo, pessoas esquartejadas, era muito punk.”
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4. 6. O herói justiceiro
Inicialmente, Junior e Plácido não tinha como objetivo realizar um trabalho
de cunho social através do Jornal AfroReggae Notícias, Entretanto, com as
chacinas ocorridas na Candelária e em Vigário Geral, no mês seguinte, houve
uma mudanca de planos, como como o próprio Junior nos conta:
Não tínhamos o objetivo de fazer um trabalho social. Inicialmente,
nossa proposta era divulgar a cultura negra e suas várias
manifestações.
Logo após a Chacina que ocorreu em 29 de agosto de 1993, o AfroReggae
Notícias comecou a ser distribuído gratuitamente em Vigário Geral e em outras
favelas do Rio. O projeto foi ganhando simpatia, tornando-se um canal aberto de
debate de idéias e de problemas que afetavam a vida dos moradores das favelas,
que começaram a pedir mais que informação, elas também queriam formação e
qualificação. Foi a partir daí, que surgiu a idéia de unir a produção cultural com
ação social nas favelas. É neste processo, que aflora um novo personagem, o
herói-justiceiro, que teve sua origem na utopia que existia no revoltado-
fracassado.
A partir desse momento, ou seja, da Chacina do Vigário Geral, Junior, que
já tinha criado o Grupo Cultural, reforçou os aspectos sociais da ação do projeto.
Iniciou um programa para adolescentes e a Instituição passou a ter uma atuação
mais educacional, oferecendo aulas sobre ritmos e danças afro. Ele relata:
Aí teve a Chacina da Candelária, O José Henrique, Zé da UERJ, nos
procurou propondo uma caminhada até a Candelária. Perguntamos:
'por que? A gente não é nada.' Todo mundo ridicularizava esse Zé
mas fomos lá e fizemos a caminhada. Duas horas de caminhada e o
Zé começou a ir a eventos até que conheceu o Zuenir (Ventura) o
Zuenir tem um papel histórico em Vigário Geral. Fizemos um veneto
59
em outubro de 1993 chamado Vigário in Concert. Esse evento virou
histórico porque o Zuenir foi. Ele era editor especial do JB e estava
querendo fazer um livro. Eu nunca tinha ouvido falar em Zuenir. Se
você me perguntar se eu esperava que isso fosse acontecer eu diria:
o Afro Reggae entra onde ninguém quer entrar e tem um poder de
sensibilização muito grande. O Afro Reggae sempre teve uma
militância invisível muito grande (Junior, 2003).
O herói-justiceiro é o personagem que José Junior utiliza para questionar a
ideologia dominante e para transformar as condições sociais em que está
inserido. Ou seja, enquanto transforma-se a si mesmo, transforma as relações
sociais. Enquanto humanização, José Junior insere-se e define-se no conjunto de
suas relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas
relações. Ele conta:
Éramos umas vinte pessoas numa ideologia coletiva. A coisa
começa a dar certo quando passamos a dizer para os garotos que o
bem principal que eles tinham era a liberdade, o direito de ir e vir —
coisa que o traficante não tinha. Era difícil. A gente ensaiava na rua,
instrumentos emprestados, todo mundo voluntário, eu não sabia
tocar, quer dizer, eu comecei a ensinar para os caras coisas que eu
não sabia. Aprendemos ensinando. E sempre tinha tiroteio, polícia e
bandido. Chegou uma hora em que os bandidos não trocavam mais
tiros porque estávamos no meio do tiroteio ensaiando — mas a
polícia continuava atirando. Até que chegou uma hora que nem a
polícia atirava porque via a gente lá. Então, a primeira vez que essa
comunidade deu seu grito de liberdade foi quando a polícia percebeu
que tinha algo de bom ali acontecendo. Isso foi evoluindo até que
percebemos que não éramos divulgados na imprensa. Precisávamos
chamar a atenção de algum jeito.
60
Gostaríamos de ressaltar aqui que reinvindicamos a separação do herói-
justiceiro do guerreiro-empreendedor porque nem sempre estes dois personagens
co-existem, apesar de sua co-existência ser muito comum.
E se Ogum é o empreendedor, Xangô encarna o herói, pois além da sua
força, representa o grande orixá da justiça. E segundo a própria crença de Junior
esta é mais uma entidade que irá guiá-lo.
Xangô é um dos orixás mais respeitados no Brasil. Miticamente um rei, é
alguém que cuida da administração, do poder e, principalmente, da justiça. O
Orixá que decide sobre o bem e o mal e vive sempre castigando os ladrões e
malfeitores. Xangô é íntegro, neutro, indivisível, irremovível; com tudo isso, é
evidente que um certo autoritarismo faça parte da sua figura e das lendas sobre
suas determinações e desígnios. Suas decisões são sempre consideradas sábias,
ponderadas, hábeis e corretas. Para Xangô, a justiça está acima de tudo e, sem
ela, nenhuma conquista vale a pena.
Entretanto, em Xangô, a Justiça deixa de ser uma virtude, para passar a
ser uma obsessão, o que faz de seu filho um sofredor, principalmente porque o
parâmetro da Justiça é o seu julgamento e não o da “Justiça Divina”.
Quem tem a proteção de Xangô sabe: não há nada nem ninguém que
destrua um filho desse orixá. Podem até conseguir levá-lo ao fundo do abismo,
mas depois de algum tempo ele renasce com mais vigor e volta a enfrentar o
mundo de peito aberto e sem medo.
Sabemos que o herói é tipicamente guiado por ideais nobres e altruístas –
liberdade, fraternidade, sacrifício, coragem, justiça, moral, paz. Suas motivações
serão sempre moralmente justas ou eticamente aprováveis, mesmo que ilícitas. O
heroísmo é um fato profundamente arraigado no imaginário e na moralidade
popular. Feitos de coragem e superação inspiram modelos e exemplos em
diversos povos e diferentes culturas. Situações de guerra e de conflito são ideais
para se realizar feitos considerados heróicos.
61
No caso do Junior, a inspiração heróica surge a partir da problemática
imposta por um ambiente ou situação adversa, cuja solução exijiu e exige um
esforço extraordinário e um feito grandioso.
Para Junior, a sua grande motivação e que a motivação original do
AfroReggae é transformar pessoas:
O cara que ninguém quer trabalhar, que é visto como ocioso, um
caso perdido, é o cara que eu quero trabalhar. Só que hoje isso já
virou algo mais normal de ser aceito. Quando começamos ninguém
queria. Eu ouvia da mãe de traficantes: 'meu filho é caso perdido'. E
provamos que não. Não existe caso perdido.
O herói-justiceiro parece encontrar um sentido maior para a sua própria
vida quando ocupa uma posição lhe permite atuar como um canal da justiça e da
verdade, quando assume um papel de autoridade, a qual claramente tem uma
responsabilidade social. É por intermédio do AfroReggae que ele busca fazer com
que sua vida tenha um sentido especial. Não há dúvidas de que como agente de
transformação social, como alguém que está mudando o contexto das coisas,
Junior dá sentido a sua vida.
Além de Xangô, assciação feita pelo próprio Junior, gostaríamos de
estebelecer, aqui, uma relação do personagem herói-guerreiro com o super-herói
Batman, fantasia já usada pelo Junior na época em que trabalhava com animação
infantil.
Quando analisamos o referencial de um super-herói nos filmes, revistas em
quadrinhos e televisão, diferentemente de outros super-heróis, Batman não tem
nenhum poder sobre-humano, usando apenas o intelecto, habilidades
investigatórias, tecnologia e um físico bem-preparado em sua guerra contra o
crime. Batman não é uma sumidade e, em alguns casos, até é considerado um
anti-herói, acentuando ainda mais sua diferença em relação ao super-homem,
62
que é um exemplo para todos os outros super-heróis. Batman tem sido retratado
de certa forma defeituoso, até um pouco neurótico, implacável com os inimigos. É
um justiceiro que faz justiça com as próprias mãos, mesmo que tenha de ferir
pessoas inocentes ou culpadas. Além disso, Batman lida bem com o adversário.
Ele chega “de leve” primeiro, dá uma espécie de susto e conversa antes. Caso o
adversário não escute, ele mostra o seu poder.
E com as características de Xangô e Batman que Junior encarna o
personagem herói-justiceiro. A Chacina da Candelária foi o fato histórico que
desencadeou a primeira grande atuação deste personagem, mas que não parou
por aí. No personagem de herói-justiceiro que encarna o papel de mediador de
conflitos, Junior é uma peça-chave para transformar instituições já existentes.
Nesta função, ele parece compreender as suas responsabilidades morais e éticas
com a sociedade. Ele mesmo define:
O mediador interfere em beneficio não de si mesmo, mas da
coletividade. Qual curso tem para lidar com isso? Qual o salário que
se paga para este profissional? Quanto vale sua vida? Esta
constatação pode chocar as pessoas, mas os melhores mediadores
são aqueles que já foram traficantes. O mediador de conflito é o cara
que perdeu alguma coisa na vida ou foi bandido. É um cara que
corre risco de vida o tempo todo. Quando ele vai na guerra ele tem
que conversar com os todos os lados. Para ser claro, os dois
comandos do tráfico. Já mediamos com polícia, podem ser três
frentes. E te digo isso sem pudor, sem hipocrisia, não sei mediar
sem falar com o protagonista da guerra. Não tem acordo com o
tráfico.
Junior tem uma habilidade natural para mediar diferentes mundos e
estabelecer diálogos entre as diferentes comunidades. Por diversas vezes,
mediação siginifca enfrentar a violência e mediar risco. De um lado, temos os
agentes da ordem – a polícia – contra o outro lado, o tráfico e os traficantes. No
meio, encontramos os moradores da favela e os cidadãos comuns.
63
Traduzir e mediar mundos é um risco. A crença do movimento é que a
maneira mais eficiente de promover o desenvolvimento do país começa por criar
oportunidades para aqueles que estão em situação de risco pessoal, a fim de que
eles possam deixar de ser mais um número nas estatísticas de pobreza e
violência para se tornarem cidadãos que contribuem para a construção de
riquezas, e, na justa medida, possam também ter o direito de usufruir as mesmas.
Junior comenta:
Duas favelas estão em guerra, Comando Vermelho e Terceiro
Comando. É sentar com os chefes do tráfico e mediar aquela paz,
assim. Resumindo, é isso. Você corre todos os riscos, de bala
perdida, de ser mal interpretado, ser morto.
Na vida de José Júnior, narco cultura e a mediação de conflitos se cruzam
o tempo inteiro. E ele gosta de deixar bem claro que existe uma narco cultura
lícita e a narco cultura ilícita:
A ilícita você sabe o que é, tráfico e armas. Mas o que é lícito e o
que é neutro? Aquela senhora que vende quentinha na boca de
fumo, ela é bandida? Aquele comerciante que faz questão de botar
seu comércio perto da boca de fumo porque sabe que o traficante é
consumista e empreendedor, ele é bandido? Não, mas essa gente
vive do tráfico. E aquela criança que empina pipa. Quando roda para
a esquerda a polícia tá entrando, quando roda para a direita a polícia
está saindo, ele é bandido? Não e isso nem existe mais. A narco-
cultura pode ser boa ou ruim, ela é neutra, quem faz ela ficar boa ou
ruim são os protagonistas dela. “O Proibidão (músicas de apologia
às drogas) é ruim. Pegue os grandes sucessos cinematográficos dos
últimos anos Carandiru e Cidade de Deus, é narco cultura. O que o
Afro Reggae faz, toca e dança, é narco cultura. O que MV Bill,
Racionais, Rappa, é narco cultura.
64
Segundo ele, o AfroReggae já perdeu pessoas que saíram para o tráfico,
mas ele considera que ninguém é caso perdido, nem quem está preso. Junior
admite humildemente que o Afro Reggae já cometeu muitos erros, mas a
proporção de acertos é muito maior. Para o Junior, o maior patrimônio do
AfroReggae são as pessoas que trabalham juntas, pois, já ocorrerem algumas
casos, nos quais as pessoas sairam do AfroReggae, foram contratadas por outras
empresas para tentar replicar o projeto, mas nunca consiguiram.
Junior possui inúmeros casos de pessoas que se transformaram por causa
do AfroReggae. Por exemplo, o caso de um garoto que saiu do AfroReggae e foi
para o tráfico. Inconformado, Junior tentou convencê-lo que ele tinha um potencial
para a capoeira. Em 2002, o garoto já era tão bom nessa arte que foi contratado
pelo Cirque du Soleil.
Um caso histórico é o Carlos André Santos, que entrou no tráfico aos 15
anos de idade e se tornou "gerente" geral do Comando Vermelho dentro de
Vigário Geral. Em 2005, Carlos, que na época tinha 35 anos, pediu a ajuda do
José Júnior para deixar o tráfico e entrou no AfroReggae. Fato é que o
AfroReggae empregou várias pessoas que trabalharam para o tráfico e também
impediu que muitos entrassem.
Para Junior, a grande razão de ser do AfroReggae até hoje é a mesma:
tirar os jovens do narcotráfico e possibilitar outros caminhos ligados à arte e ao
empreendedorismo. Para ele, essa foi e continua sendo a motivação fundamental.
Antes o AfroReggae absorvia as pessoas dentro da própria ONG. Agora a
Organização possui parcerias com algumas empresas que estão recebendo ex-
criminosos e dando uma oportunidade. Conta Junior:
O Comando Vermelho detém mais de 50% das favelas do Rio. Mas
eu nunca tirei tanta gente do tráfico como agora. Estamos até com
um projeto de tirar 30 caras do tráfico, que não estejam devendo à
Justiça (acusados de crimes) e deixar que eles escolham o que eles
querem fazer. Não é tirar quem está beirando o tráfico, é tirar quem
65
está no tráfico. A gente comemora muito quando tira uma pessoa do
tráfico.
Nesta tarefa, José Junior e o AfroReggae contam com ajuda de várias
pessoas, como por exemplo, a inspetora Marina Magessi, chefe da Delegacia de
Entorpecentes do Rio de Janeiro. Para Junior, a convivência com ela tem sido
muito valiosa, uma troca muito rica que tem ensinado muito a ele. É ele que nos
conta:
A Marina me falou o seguinte: Junior, quando alguém quiser sair, me
dá o nome, a gente levanta a ficha dele e se a pena for pequena o
cara paga a pena. De outra forma é com ele mesmo. Não vou poder
absorver o cara no Afro Reggae nem facilitar a fuga dele, porque aí
eu seria conivente.
Junior realiza várias abordagens com os contraventores para tirá-los do
tráfico. Ele relata:
Eu aconselho e cabe ao cara fazer o que quiser. Mesmo o cara que
tá devendo pra cacete, matou, eu aconselho sair do tráfico. Sair é
sempre o mais fácil. Já influenciei muita gente, e só na conversa.
Muitas vezes converso com eles e não é só de bandidagem. Com a
molecada falo de futebol, mas com os caras mais velhos falo muito
de família, família é uma coisa importante na vida de todo mundo.
Junior recusa fortemente o instituído e, ao mesmo tempo, faz um uso
inteligente desse instituído. Ele é suficientemente inteligente para fazer uma
recusa do instituído e se valer dele de forma inteligente quando lhe convém. Mas,
quando faz uma mediação entre os traficantes para ajudar a acabar com um
conflito nas favelas, usa o tênis certo, de marca, de grife, valendo-se dos valores
instituídos, pois sabe melhor do que ninguém que esse é o imaginário das
favelas: quem trafica, e os próprios traficantes mesmo, fazem isso porque, no
entender de Junior, querem ter um tênis de grife. Então, ele exibe um, e é como
66
se dissesse: “vem cá meu irmão, vem para o movimento cultural que eu promovo
e você também terá seu tênis de grife.” É dessa maneira que o movimento cultural
que ele lidera compete com o tráfico:
Na sociedade consumista, tu vale o que tu veste, os produtos que tu
usa. Eu uso isso também ao contrário. Por exemplo, quando vou
mediar conflito, quando vou tirar pessoa do tráfico, eu me visto como
o sonho do cara, como é o sonho de consumo do bandido. Aí ele
diz, ‘quero ver qual o tênis que ele tem. Quero ver esse tênis aí. Ele
tem o tênis que eu quero, ele tem a calça que eu quero, a camisa
que eu quero e não é bandido!
Por várias vezes, Junior ressaltou a importância da marca Nike, ícone do
consumismo, durante a abordagem que realiza para tirar um traficante da vida
que ele leva. É o próprio Junior que fala:
O que interessa para fazer uma abordagem? Principalmente a
marca Nike. A Nike indiretamente tem um papel muito importante na
entrada dos jovens no crime. A Nike pode ser acusada de muitas
coisas, menos de racista. Quem faz campanha da Nike? Os negros.
Os Ronaldos, Michael Jordan, Tiger Woods. Quando o cara vê
esses esportistas se identifica pelo biótipo e até pelos estereótipos.
A primeira vez que pensei em roubar na minha vida, em 1985, era
porque eu queria um Nike. Hoje, 21 anos depois, vejo o cara com a
mesma vontade. As campanhas da Nike são muito bem feitas, mas
são campanhas que é o seguinte: ou você tem, ou você é um merda.
O cara é um merda a vida inteira dele, aí ele acha que com aquele
tênis ele vai ser aceito. Você vai a vários barracos e o que você vê
sempre é uma televisão e a um tênis Nike, mesmo que seja falso.
Isso está no imaginário. Hoje em dia posso me dar ao luxo de fazer
uma abordagem sem usar Nike porque já sou conhecido, mas nem
todos que fazem abordagem podem. Você tem que entender o
universo.
67
Junior alega que depois que o AfroReggae foi criado, ele nunca mais viu
ninguém morrer perto dele. Ele se orgulha muito disso, de sua intervenção e dos
resultados que consegue atingir. Ele fala:
A gente intervém muito. Isto eu tenho orgulho. Hoje dezenas de
pessoas do AfroReggae fazem isso voluntariamente, porque não
existe salário para quem faz mediação de conflito. Como eu vou
contratar uma pessoa: "você vai lá mediar uma guerra, que o salário
é esse", não existe. O cara tem que ser voluntário para fazer isso.
Ele corre um alto risco de vida. Agora, um outro detalhe, todo mundo
que faz mediação na AfroReggae teve perda. Ou perdeu parente, ou
perdeu amigo, ou sofreu de algum tipo de violência. A gente não tem
um mediador que nunca teve esse tipo de problema.
O herói-justiceiro é um personagem que tem a sua grande atuação na
sociedade, no mundo externo, mas que, em alguns momentos, aparece dentro do
próprio AfroReggae.
Uma das principais características do movimento AfreoReggae é a
diversidade nele presente. Diversidade de gênero, de camadas sociais, de
religiosidade, do lado sombrio e do lado luz. A convivência com a pluralidade e
com a diferença é motivo de orgulho para o Junior. Do movimento AffroReggae
fazem parte: homossexuais, heterossexuais, ex-policiais, ex-traficantes, ex-
presidiários, pessoas de diferentes religiões e crenças. Segundo relata Junior, lá
essa convergência é possível.
O Grupo AfroReggae tem um rígido código de conduta e seus integrantes
não podem fumar, beber ou usar drogas, bem como não podem possuir armas de
fogo e nem participar de nenhum tipo de manifestação violenta. O AfroReggae
não aceita apoio e nem toca em nenhum festival patrocinado por álcool ou tabaco
e inclusive já perdeu muitas oportunidades por não aceitar qualquer tipo de
patrocínio que envolva bebida ou cigarro, por exemplo. Eles já recusaram
68
patrocínio do Free Jazz quando o festival era o número um, já que na época era
patrocinado pela Souza Cruz, uma empresa do segmento de tabaco.
69
4.7. A coexistência de personagens
Os múltiplos personagens que estavam incubados na identidade de José
Junior e que vieram à tona, possibilitaram a Junior um movimento emancipatório e
o abandono do personagem fracassado-briguento, a qual ele estava preso desde
sua infância.
Identidade é totalidade que oculta a presença de múltiplos personagens,
que ora se conservam, se sucedem, ora coexistem, ora se alteram, gerando o
movimento (Ciampa, 1997).
Foi surgimento dos novos personagens, até então adormecidos, que
posibilitou a expansão da identidade de José Junior e, desde então, a
coexistência e alternância dos mesmos foi a tônica de seua vida. Em diversas
situações é possível perceber que o artista-disfarçado convive com o herói-
justiceiro, que por sua vez convive com o guerreiro-empreendedor. Neste sentido,
percebemos que Junior claramente passa a assumir uma série de novos papéis
que possibilitam esta coexistência.
É na coexistência do guerreiro-empreendedor, do herói-guerreiro e do
artista-disfarçado que José Junior vive um dos seus grandes papéis, o de
empreendedor social-cultural. Como empreendedor social, Junior foi o grande
fundador e desenvolvedor do AfroReggae. Já mencionamos as origens desta
ONG, mas agora, vamos entrar em detalhes sobre a Organização fundada por
Junior.
No dia 21 de janeiro de 2008, o AfroReggae completou 15 anos,
promovendo a transformação social através da arte e da cultura . Hoje a ONG já
possui mais de 70 projetos acontecendo em várias favelas e comunidades
fluminenses. São quatro núcleos de cultura fixos (em Vigário Geral, Parada de
Lucas, Complexo do Alemão e Cantagalo) que já beneficiaram direta e
indiretamente 10 mil pessoas no Brasil e no mundo. São 10 bandas de música e
diversos grupos de circo, de teatro e dança. O Grupo oferece formação artística e
70
cultural como alternativa para tirar do tráfico de drogas jovens moradores de
favelas. Trabalham com oficinas de música, capoeira, teatro, dança, histórias em
quadrinhos.
Atualmente, o AfroReggae atende cerca de duas mil pessoas das regiões
carentes do Rio de Janeiro e atrai jovens através de programas ligados à arte,
cultura afro-brasileira e educação. O AfroReggae nasceu como uma banda
musical que incorporou ações sociais, mas ampliou o seu escopo de atuação para
formar cidadões. Junior defende:
O cara não tem que ser artista. Se a gente formar só artista, o que já
é muito válido, vamos continuar fortalecendo o estereótipo que o
negro da favela só pode ser jogador de futebol e artista. Queremos
formar intelectuais. Porque eles não podem ser médicos,
engenheiros, jornalistas? Existe um movimento para desenvolver
isso e essa reflexão não é só do AfroReggae. Quatro instituições
com legitimidade e visibilidade, o Afro Reggae, a CUFA
2
, Nós do
Morro
3
e o Observatório de Favelas
4
se uniram em um grupo
chamado F4
5
. A gente se reúne toda semana e essas quatro
instituições estão nas quatro regiões do Rio de Janeiro e todas são
mediadoras de conflitos. Algumas são mais de mediação de
confronto, como CUFA e Afro Reggae.
2
Sigla que significa Central Única das Favelas. é uma organização que surgiu através de reuniões
de jovens de várias favelas da cidade do Rio de Janeiro. Desde 1998, a CUFA funciona como um
pólo de produção cultural e através de parcerias, apoios e patrocínios forma e informa jovens de
comunidades, oferecendo perspectivas de inclusão social.
3
ONG funda em 1986 no Rio de Janeiro e que tem o objetivo de criar acesso à arte e à cultura
para crianças, jovens e adultos do Morro do Vidigal e de outros locais no Rio de Janeiro.
4
Rede sócio-pedagógica constituída em 2001 no Rio de Janeiro como um programa do Instituto
de Estudos Trabalho e Sociedade (IETS) e com o apoio institucional da Fundação Ford. É
integrada por pesquisadores e estudantes vinculados a diferentes instituições acadêmicas e
organizações comunitárias. A instituição vem atuando como uma rede de formação de lideranças
comunitárias e seus principais coordenadores são moradores ou ex-moradores da periferia do RJ.
5
"F4 - Favela a quatro". Criado em 2008, o objetivo é unir forças para o desenvolvimento de uma
série de ações sociais em conjunto, sendo que cada instituição atua com o seu “expertise”. Na
primeira etapa do projeto, denominada Rebelião Cultural, foram escolhidos os presídios de Bangu
1,2, 3 e 4 e o Talavera Bruce (feminino). Ao final do projeto, o F4 promoverá a publicação de uma
pesquisa, um documentário e um livro refletindo sobre os resultados conquistados.
71
O slogan do AfroReggae – “Da Favela ao Mundo” – fortalece a idéia de
demonstrar a energia criativa, o talento e a esperança que emana das favelas do
Rio.
Em 2001, o AfroReggae criou o conceito Conexões Urbanas a fim de
eliminar fronteiras invisíveis da cidade. O projeto foi iniciado com um grande
circuito de shows e em suas 51 edições levou os maiores nomes da MPB, como
Caetano, Marisa Monte e Gilberto Gil, para cantarem nas principais favelas do Rio
de Janeiro com uma grande infra-estrutura de palco, cenário e figurino.
Ao longo dos anos, as conexões do Junior e do AfroReggae se
multiplicaram e hoje também dão nome para cinco programas de rádio, uma
revista e, mais recentemente, um programa de TV, como veremos em seguida.
Além disso, o AfroReggae já produziu cinco filmes. Um deles se chama Mediação
de Conflitos, que mostra protagonistas que negociam guerras no Rio de janeiro.
Talvez o flme que mais explique o movimento AfroReggae seja o
documentário “Favela Rising” dos diretores norte-americanos Jeff Zimbalist e Matt
Mochary, com Anderson Sá e Zuenir Ventura. O filme, que ganhou 24 prêmios
internacionais, inclusive pela Associação Internacional de Documentários e,
também, no Festival de Tribeca, nos Estados Unidos, foi semifinalista do Oscar
em 2006, retrata a vida de seu principal vocalista, Anderson de Sá, que antes do
AfroReggae atuava no tráfico de drogas.
Em outubro de 2008, Junior assumiu o comando do “Conexões Urbanas”,
um programa de TV do Grupo AffroReggae, que conta sempre com a presença de
artistas como Rappa, MV Bill, Gabriel o Pensador. O objetivo do programa,
apresentado pelo próprio José Junior e exibido no canal Multishow
6
, é dar voz a
pessoas que ainda são invisíveis, através da apresentação de projetos sociais
6
Multishow é um canal da operadora Globosat de televisão. No ar desde 1991, tem uma ampla
gama de estilos na programação na área do entretenimento. O programa Conexões Urbanas vai
ao ar às segundas-feiras, às 21h45.
72
tanto no Brasil quanto em outros países. Através deste programa, José Júnior e o
grupo AfroReggae pretendem conscientizar a população sobre a violência social e
buscar saídas para amenizar o caos em que vivemos.
E no comando do programa Conexões Urbanas, o herói-justiceiro e o
artista-disfaçado se articulam no papel de apresentador de TV. O programa revela
um entrevistador – o José Junior - que parece possui uma qualidade rara na TV
atual: ele deixa os outros falarem. O próprio Júnior destaca essa sua virtude e
acredita que escuta muito. Escutou o lado sombrio da vida e se aventurou a dar-
lhe luz e forma: é daí que nasceu sua ação política e a dos seus companheiros.
Escutou a calamidade da Chacina e escuta seus entrevistados, entre eles
pessoas de diversas classes sociais, inclusive algumas que possuem muito pouco
espaço na mídia, como prostitutas e ex-traficantes.
Esta mesma articulação e coexistência dos personagens herói-justiceiro e
artista-disfarçcado aconteceu em 2003 quando Junior escreveu e lançou o seu
livro “Da Favela para o Mundo”, no qual conta a história do AfroReggae e a sua
própria história.
O livro, que já está na sua segunda edição, resume os desafios
enfrentados pelo Junior e pelo Afro Reggae e tem como objetivo mostrar que na
favela ou no mundo, a dignidade é o melhor antídoto contra a irracionalidade dos
preconceitos. É a história da luta que se sobrepõe à violência, a exclusão, a
discriminação para propor opções para a maioria dos jovens atendidos pelos
diversos projetos mantidos pelo AfroReggae.
O livro é narrado pelo Junior em clima de contador de histórias e está
repleto de referências místico-religiosas, de letras musicais, de poemas e de fotos
de sua trajetória e do próprio AfroReggae. Nele, Junior busca provar que as
saídas para a violência, para o narco-tráfico são possíveis e que os jovens, que
fazem parte do AfroReggae, atuando em bandas musicais, rodas de capoeira,
oficinas de percussão e de samba, são um grande exemplo disso. Através dos
textos, entedemos que o espírito de coragem aliado a muito trabalho com
73
“originalidade dos métodos” é a base desta história de superação que se tornou
referência.
Encontramos no blog
7
de Junior, um relato que descreve como ele encara
esse novo papel, o de autor, até então, algo que não havia sido imaginado por
ele:
Tenho vivido algumas experiências novas como a de ser chamado
de “autor” e de “escritor”. Que doideira! Pra falar a verdade, não me
preparei para tal. Dar autógrafo já rolava desde de 2001, quando
lançamos o CD, mas escrever dizeres permanentes para pessoas
numa fila é algo que me deixa com uma certa expectativa. Algumas
pessoas me deram umas dicas do tipo: “escreve uma coisa padrão”.
Mas, eu sempre fico naquela pilha: imagina se duas pessoas que se
conhecem abrirem seus livros e descobrirem que escrevi a mesma
coisa pra elas? Todas as vezes que tenho que autografar um livro,
penso em Chico Xavier. Aquela expressão dele, com a mão na testa,
de óculos escuros, psicografando; sempre vem como um start
inspirador. Tem hora que saio escrevendo um monte de coisas. Olho
pra pessoa e sinto vontade de passar pra ela. Quando alguém me
pede pra escrever para uma outra pessoa que não esta ali é a
mesma coisa que dar um presente. Aí olho pra ela e tento identificar
esse indivíduo. Tudo isso eu uso como elementos pra fugir da
mesmice de um texto padrão ou pra fazer o tempo passar logo e
tornar aquelas sessões prazerosas.
É na articulação dos personagens artista-disfarçado e herói-justiceiro que
Junior acaba asumindo uma nova faceta na sua vida: a fama. Cada vez mais
Junior esté presente na mídia e nos veículos de comunicação de massa. Em
novembro de 2008, foi entrevistado pelo Jô Soares em seu programa, na TV
Globo e, em maio de 2007 participou do Programa Roda Viva, da TV Cultura.
7
Junior manteve um blog pessoal durante o período de janeiro de 2005 a dezembro de 2006. O
blog ainda está ativo, mas as postagens. O endereço para consulta é
http://afroreggae.blog.uol.com.br/.
74
José Junior já concedeu e continua concedendo inúmeras entrevistas. Nas
diversas entrevistas, o herói-justiceiro predomina, mas a sua desenvoltura e
capacidade de articulação são do artista-disfarçado. Neste sentido, percebemos
que Junior realmente se tornou uma celebridade, o que denota o crescimento,
cada vez maior, do personagem artista-disfaçado, agora, já não tão disfarçado
assim. Isso ficou patente quando Junior participou do “Por trás da fama”, do canal
Multishow. Este programa, que é dedicado a entender o que acontece nos
bastidores das vidas das celebridades, já entrevistou uma série de artistas
famosos como Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, Lenine, Ronaldinho
Gaúcho, Juliana Paes, entre outros.
Outra coexistência que deve ser mencionada é a do artista-disfarçado com
o guerreiro empreendedor. Este foi o caso da campanha publicitária do Instituto
Empreendor Endeavor
8
, na qual Junior foi um dos “garotos-propagandas”, ao lado
de grandes empresários como Luiz Seabra, fundador da Natura, Oskar Metsavah,
da Osklen, Luiza Helena Trajano, do Magazine Luiza. A ONG lançou, no final de
2008, o movimento Bota pra Fazer para despertar nos brasileiros a atitude
empreendedora e inspirá-los a tirarem suas idéias do papel e a criarem novos
negócios. A campanha publicitária, que foi veiculada em nível nacional,
apresentava comerciais de TV, peças para a internet (hotsite e banners),
anúncios para mídia impressa, pôsteres e rádio.
8
O Instituto Empreender Endeavor é uma organização sem fins lucrativos, que tem como missão
promover o desenvolvimento sustentável do Brasil, por meio do apoio a empreendedores
inovadores e do incentivo à cultura empreendedora, gerando postos de trabalho e renda.
75
5. O fetiche do personagem
Quando o personagem guerreiro-empreendedor passou a assumir o papel
do executivo que utiliza o figurino de guerreiro-justiceiro, José Junior deu um
passo na criação de mais um novo personagem, o do executivo-workaholic.
Primeiramente vamos analisar o guerreiro-empreendedor no papel de executivo e
no figurino de guerreiro-justiceiro e, posteriormente, a transformação para
executivo-workaholic.
No papel de executivo, o script é muito claro e permite que Junior transite
bem neste mundo: o Junior é plenamente capaz de pensar e articular como um
executivo, que veste o figurino de guerreiro-justiceiro.
Ana Maria Piumbini utiliza os arquétipos dos super-heróis para descrever as
diversas posições encontradas em uma organização e apresenta uma analogia
interessante, na qual o super-homem é o gerente da empresa e o Batman é o
presidente. Essa metáfora se encaixa bem para o Junior que, no seu papel de
executivo, assume o cargo de Coordenador Executivo (presidente) do
AfroReggae, mas que continua usando o figurino de Batman.
Batman é sempre bem-relacionado, com diversos amigos no poder,
convivendo intimamente em várias instâncias, desfrutando grande
prestígio, reconhecimento e status na sociedade em que vive.
Domina tecnologias de ponta, tem uma linha de comunicação direta
com os principais executivos e detentores do poder na cidade,
controla e manipula informações, muitas vezes sabe
antecipadamente de notícias que poderão mudar o destino de
milhares de pessoas, é considerado o salvador da pátria, trabalha
muito bem em equipe, quando lhe convém, sabe escolher com
primor os seus subordinados e parceiros; repare na dedicação
constante que Alfred lhe demonstra. Sempre fortalece laços e
parcerias, obtendo os melhores resultados, visando a estratégias de
76
longo prazo, tem um estilo de gestão sério, comprometido, obstinado
e focado em resultados. Pode até parecer anti-social a alguns,
porém mantém sua rede de networking ativa, muito bem-selecionada
e estruturada. É ou não é a descrição de um presidente ou diretor-
presidente de qualquer grande corporação? Batman é quem domina
sempre o lado intelectual, articulando com o poder e a tecnologia, e
comanda as soluções para os desafios e ameaças que possam
desestabilizar a ordem estabelecida (Piumbini, 2005).
Ainda, analisando a evolução deste super-herói ao longo do tempo,
percebemos que, além de melhorar a comunicação visual, ele ficou mais
inteligente, passou a fabricar tecnologia, melhorou o relacionamento interpessoal
com as camadas de poder, fidelizou seus empregados - o seu funcionário Alfred
nunca saiu de cena. Além disso, Batman conhece e estuda o inimigo antes
mesmo de ser chamado para entrar em cena e fazer seu serviço. Como um bom
consultor, ele não precisa puxar o saco para ser chamado para o trabalho. Ele se
vende pelo próprio trabalho bem-feito. E espera ser chamado para atuar porque
ele tem iniciativa e atitude.
Atualmente José Junior ocupa a posição de Coordenador-Executivo do
AfroReggae, uma verdadeira holding socio-cultural, cuja gestão é feita por um
comitê de sete pessoas. Há departamentos e setores específicos, e funciona
como um triângulo: no alto, o Grupo Cultural AfroReggae – uma ONG; e embaixo
a AfroReggae Produções Artísticas Limitada – uma empresa, e o GAS, o Grupo
de Ação Social – uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público). Tanto a empresa quanto a Oscip foram planejadas e estruturadas para
gerar recursos para o Grupo Cultural. Hoje, eles têm uma folha de pagamento
com 176 pessoas. A holding sociocultural possui departamentos e setores
específicos. A comunicação, coordenação de projetos especiais, o núcleo
comunitário de cultura, que conta com uma equipe técnica de serviço social,
psicólogo, pedagogo, mediadores de conflito e educadores sociais. Tem o
departamento artístico com dez bandas de música, duas trupes de circo, um
grupo de teatro, um grupo de dança. Hoje o AfroReggae está presente em quatro
77
favelas do Rio de Janeiro: Vigário Geral, Parada de Lucas, Cantagalo-Pavão-
Pavãozinho e Complexo do Alemão e desenvolve projetos também em mais
quatro: Morro do Estado, Honório Gurgel, Paciência e Parque Arará.
Com tanto sucesso, muitas oportunidades e convites começaram a surgir
para a ONG. Junior deixa bem claro que sabe exatamente para onde quer
conduzir a sua holding social:
O que eu mais recebo é convite pra montar núcleo do Afro Reggae.
Convite para quase todas as capitais do Brasil, França, Haiti,
Holanda... mas eu não quero ser o McDonalds abrindo franquias em
cada esquina. Tivemos um convite para abrir núcleos no Afro
Reggae em São Paulo no que depois viria a ser o CEU
9
. Disse que
poderíamos dar cursos, mas não montar um núcleo.
Em 1999, Junior e o AfroReggae começaram a viajar para o exterior e a
prefeita de Amsterdã convidou o grupo para montar um núcleo lá. Frente às
demandas de outras cidades e países, Junior criou um formato inovador para
levar o AfroReggae com um pouco de tudo que o Grupo oferece. Desde então, o
AfroReggae também presta consultoria no Brasil e no exterior e, além dos shows,
também leva as oficinas e workshops de percussão, teatro, grafite, basquete de
rua, dentre outros. Junior explica:
Através da tourne, o AfroReggae chega às cidades sempre quatro
dias antes do show com dois grupos, a banda e os arte-educadores.
A banda realiza uma divulgação em rádio, TV e Jornal. Os arte-
educadores fazem o trabalho social para pobres, ricos e polícia. Em
algumas cidades, a polícia não é incluída, mas eles sempre atendem
os pobres. Esse modelo foi testado na Inglaterra e deu certo. No
Brasil, já foi implementado em dezenas de cidades.
9
Sigla que significa Centros de Educação Unificados. Construídos pela Prefeitura da Cidade de São Paulo,
são espaços que unem educação, cultura, esporte e lazer, voltados para a comunidade.
78
Junior já levou a “metodologia” AfroReggae para a França, quando
ocorreram os levantes do subúrbio em Paris. O AfroReggae realizou uma turnê na
Inglaterra e, por noite, 1.200 pessoas compareceram ao Barbican
10
. Graças a um
acordo de seis anos do grupo com várias organizações e instituições britânicas,
inclusive o próprio Barbican, o AfroReggae tem garantida sua presença em
Londres até 2012, tempo durante o qual o grupo irá compartilhar com os londrinos
sua intenção de fazer da arte uma ferramenta para evitar o uso das armas.
Para levar o know-how do AfroReggae para o exterior, José Junior já viajou
não só para a Eutopa, mas também para a Colômbia (favelas em Cáli, Medelim e
Bogotá), para a Índia (Déli, Calcutá e Bombaim) fazer o mesmo.
E no papel de executivo, Jose Junior assume todas as funções de qualquer
presidente de uma grande organização: além de uma agenda extremamente
atribulada, cheia de viagens no Brasil e no exterior, ele gerencia projetos e
equipe, negocia patrocínios, dá palestras, articula alianças políticas, estabelece
parcerias com empresas privadas, planeja e implementa novos projetos e ações.
Enquanto executivo, Junior já implementou diversos projetos ambiciosos.
Em abril de 2008, o AfroReggae concluiu a construção do maior centro cultural
instalado dentro de uma favela, que ganhou o apelido no Rio de Janeiro de
“Guggenheim da favela”. Também está em funcionamento um centro multimídia
com tecnologia digital de ponta e um anfiteatro. Junior conta:
O prédio do “Guggenheim da favela”, custou quase 3 milhões de
reais e o AfroReggae fez questão de comprar quase todo material de
construção numa lojinha da favela. A idéia é fomentar novos
negócios nas comunidades em que atuamos e elevar a auto-estima
da gente da periferia e fazer o dinheiro circular.
10
O Barbican é um complexo cultural localizado no coração de Londres. Nele, é possível assistir peças
teatrais, filmes e shows musicais.
79
Entretanto, os projetos e o espírito empreendedor de José Júnior não
param por aí. Ele já planeja montar uma pousada no Complexo do Alemão, no
meio da favela, além de levar várias empresas para a favela. Ele também estão
ajudando outras pessoas a montarem um restaurante dentro da favela. Os planos
continuam. Em 2008, o AfroReggae diversificou ainda mais seus projetos com o
lançamento de uma grife de roupas criada pelo conhecido estilista paulista
Marcelo Sommer. Segundo Junior, a grife não terá loja própria e será distribuída
em multimarcas, mas ele está muito confirante no sucesso da grife:
Por que vai vender? O Afro Reggae, só no mês de dezembro, gerou
de mídia espontânea quase 10 milhões de reais. Só a Rede Globo,
no mês passado, deu para o Afro Reggae algo em torno de 20
milhões de reais em mídia — fora a mídia espontânea que tivemos,
abrindo Rolling Stones, não sei o quê... Imagina então quando
começarmos nós mesmos a usar os nossos produtos. E,
naturalmente, chamando figuras estratégicas, como o Falcão, do
Rappa, o Caetano, o Gil.
Atualmente, o AfroReggae quer virar uma empresa social, gerar lucro para
poder aplicar em outros investimentos. Atualmente, 30% de sua receita da
organização vem da venda shows, venda de CD, venda de filme, palestras e
workshops. Ele explica:
Esses trabalhos na mídia rendem recursos. Trabalho na Inglaterra
rende grana. Trabalho na Colômbia rende grana. Show rende grana.
A nossa meta é sermos um dia auto-sustentados. O AfroReggae já
patrocina Ongs de favelas de São Paulo, de favela do sul do país, de
favela em Belo Horizonte. Uma ONG patrocinando outra? A gente
faz isso. Com quê? Com o nosso dinheiro. Show, palestra, direitos
autorais, a gente vende produtos. Então a gente quer na verdade
inverter alguns conceitos. Fazer o dinheiro circular, tem que
democratizar. O que não dá é hoje você ser o protagonista de uma
80
ação e ser tratado como coadjuvante. Como acontece com o
carnaval do Rio. O carnaval do Rio é todo da favela. Todo mundo
ganha dinheiro às custas da favela. Todo mundo ganha dinheiro da
favela.
Diante da lógica sistêmica em que a sociedade está inserida, dificilmente
um grupo como o AfroReggae chegaria aonde chegou se não tivesse tantas
parcerias estratégicas. Hoje, a ONG tem parceria com grandes empresas, tais
como Natura, Petrobrás, Red Bull, Vale e Banco Real. Junior comenta:
Isso, para mim, é uma coisa muito legítima. Eu nunca poderia
imaginar, há 10 anos atrás, que eu teria parceria com essas
empresas. O AfroReggae é uma instituição que tem muita
visibilidade até, devido a parceria que ele tem com a TV Globo. A TV
Globo hoje é uma das principais parceiras do AfroReggae, fazendo
que cada vez mais o AfroReggae tenha uma visibilidade. Até mesmo
uma credibilidade muito grande em todo Brasil.
Ao analisarmos os movimentos de Jose Junior após a fundação do
AfroReggae, percebemos que ele é um grande articulador e a articulação que ele
promove tem como principal objetivo a busca de parceiros e patrocinadores.
.
Ele faz parceria com o Estado e com a sociedade civil, além de sempre
manter contato com a imprensa. Também já mencionada a criação da F-4 com
quatro grandes Ongs de favelas do Rio: AfroReggae, CUFA, Nós do Morro e
Observatórios de Favelas. José Junior tem a consciência que estas parcerias são
necessárias, já que, para ele, o AfroReggae sozinho não vai resolver nada:
Hoje, pela primeira vez, estamos próximos de um governo estadual.
O governador Sérgio Cabral quer mudar essa imagem negativa do
Rio e está buscando mudanças profundas. O PAC pode ser um dos
projetos mais importantes da sua gestão. Pode ser o começo de
uma nova história.
81
Além de uma relação com o poder público, com a imprensa, universidades
e outras organizações não governamentais, Junior possui relação com outras
organizações da sociedade civil, tais como a Fiesp. Ele nos conta:
Não tem uma vez que eu não tenha vindo para São paulo que a
Fiesp não invente algo para eu falar lá. Desde que eu conheci o
André Skaff (filho de Paulo Skaff, presidente da Fiesp) não teve um
dia que não nos falamos. O André virou um amigo. O pai dele, o
Paulo, disse: 'você mudou muito o meu filho'. Quando conheci o
André vi que ele tinha interesse no assunto. Perguntei para ele: você
conhece uma favela. Quer ir? Perguntei achando que ele não ia.
Isso foi numa terça-feira. Na sexta-feira ele estava pegando um
avião e me ligou. Fomos a Vigário geral, estava andando com ele na
favela e cruzamos com o chefe do tráfico. Ninguém precisa dizer
quem é o chefe, todo mundo reconhece. O chefe veio falar comigo
naquela hora perguntando se a minha proposta estava de pé. Ele
queria sair mas precisava de um trabalho. O André ouviu tudo isso.
Comecei a conversar mais com o André, hoje minha relação não
passa mais pelo André na Fiesp. Ele é do grupo Jovens
Empreendedores e ele organizou o jovens líderes, uma palestra no
Sauípe. Ele falou, que depois da palestra os caras iam vim fazer
perguntas. Não deu outra, os caras vieram falar comigo.
82
5. 1. O executivo-workaholic
Em novembro de 2008, a Revista Trip
11
, que concedeu a José Junior o
Prêmio Transformadores, fez a seguinte pergunta para ele: o que você faria se
voltasse a fracassar e ficar sem grana, por exemplo? A resposta dele foi bem
direta, como é de seu estilo:
Não sei, não sei o que faria se me fodesse de novo... uma coisa que
às vezes penso é sair do Rio e criar minhas filhas em outro lugar
porque não dou a elas a atenção que merecem por causa do meu
trabalho. Se fracassasse, acho que não moraria mais no Rio. Às
vezes, até penso se não seria bom fracassar, entendeu? Porque eu
também sofro muito, é muito trabalho, muito problema. A derrota
seria péssimo, claro, isso que eu faço, eu não faria mais.
A partir da análise da narrativa de José Junior, não há duvida de que ele
emprendeu um grande esforço para emancipar-se do revoltado-briguento e que a
construção de múltilos personagens abriu novas perspetivas de vida para ele,
inclusive uma grande valorização e projeção social. Basta que façamos uma
breve retrospectiva: um menino pobre do Rio de Janeiro torna-se um adolescente
revoltado e briguento. Em 1993, após ser impactado com a chacina da favela
Vigário Geral, resolve fundar uma ONG que, alguns anos mais tarde, projeta-se
no Brasil e em diversos outros países de vários continentes. Em junho de 2006,
Junior foi eleito um dos cem brasileiros mais geniais da atualidade, pela equipe de
repórteres e editores do jornal O Globo e, em janeiro de 2007, foi considerado
uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil pela revista "Isto É". Tudo isso
sem citar a sua indicação pelo Fórum Econônico Mundial de Davos como um dos
200 jovens líderes mais importantes do mundo e os diversos outros prêmios que
ganhou.
11
O Prêmio Transformadores, criado pela Revista TRIP em 2007, visa reconhecer a vida, o
trabalho e o legado de brasileiros que conseguem transformar a realidade do país.
83
Após tantas vitórias, conquistas e reconhecimentos, agora as pessoas
esperam de José Junior uma postura de vencedor, de alguém que chega para
dirigir e dominar as situações, que se impõe com muita segurança e autodomínio.
Elas sabem que as profundas ambições de José Junior, de se tornar um homem
respeitado, influente e muito bem-sucedido, foram alcançadas.
Quando analisamos a figura do herói, que muitas vezes também embute
um guerreiro
12
, sabemos que ele enfrenta uma autoridade injusta e se arrisca por
um princípio. Na competição, dá o melhor de si e se esforça não só para vencer
mas também para jogar limpo. Ele é duro o suficiente para não se deixar intimidar:
um poderoso soldado interior contra as exigências e intromissões dos outros.
Entretanto, vale a pena lembrar que o herói possui inúmeras qualidades,
mas também pode se tornar refém de suas próprias crenças. O herói, por vezes,
quer resultados imediatos e tem uma necessidade obsessiva de vencer. A partir
desta obsessão, o herói luta para ser fortes, para causar impacto no mundo, e
evita experimentar a incapacidade e a passividade. O herói, que embute o
guerreiro, é capaz de transformar o sacrifício em disciplina, já que certas coisas
devem ser sacrificados para que outras possam ser alcançadas.
Como vimos no personagem herói-justiceiro que coexiste com o guerreiro-
empreendedor, eles cobram coragem, força e integridade para o estabelecimento
de metas e perseverença até atingi-las. Sem sobra de dúvidas, ao construir esses
personagens, Junior defende uma causa e clama pela ética, estabelece metas e
se crê um agente de transformação num mundo injusto. Seus ideais são nobres e
a sua vontade de transformar as pessoas é genuína.
Entretanto, em nome da realização deste ideal, que parece cobrar um
preço cada vez mais alto, o guerreiro-empreendedor exacerba a sua atuação no
12
Note-se que neste parágrafo estamos mencionando os guerreiros e heróis de uma forma geral e
não os personagens do José Junior
84
papel de executivo e acaba criando um novo personagem, o executivo-
workaholic.
Cabe aqui uma breve definição sobre workaholic. Workaholic é uma
expressão americana que teve origem na palavra alcoholic (alcoólatra) e serve
para designar uma pessoa viciada em trabalho.
As pessoas viciadas em trabalho sempre existiram, no entanto, o número
de pessoas workaholics está crescendo em razão da alta competitividade,
vaidade, ganância, necessidade de sobrevivência ou ainda alguma necessidade
pessoal de provar algo a alguém ou a si mesmo.
Como resultado da influência de uma pessoa viciada em trabalho pode-se
perceber geralmente alguns fatos interessantes: o primeiro deles é que este tipo
de pessoa geralmente não consegue se desligar do trabalho mesmo fora dele,
acaba por deixar de lado seu parceiro, filhos, pais, amigos. Os seus melhores
amigos passam a ser aqueles que de alguma forma tem ligação com seu
trabalho.
De outro lado, este tipo de pessoa sofre por trazer para si uma qualidade
de vida muito má, pois as pressões do dia-a-dia e a auto-estima exagerada fazem
com que este tipo de profissional tenha insônia, surtos de mau-humor, atitudes
agressivas em situações de pressão ou desconformidade com os resultados.
Mas uma das mais severas consequências é o medo de fracassar. Este
medo condiciona e impulsiona o viciado a tentar cada vez mais forte e mais
concentrado na busca por resultados. A palavra fracasso causa arrepios neste
profissional.
O trabalho virou uma obsessão. Junior respira o AfroReggae e vive o
Afroreggae. Todo o resto da vida é praticamente "subordinado" em prol desta
ambição, que neste caso é extremamente poderosa pois envolve uma causa
social, um desejo nobre.
85
Neste sentido, Junior apresenta um utilitarismo para consigo próprio que
consiste em uma adaptação às circunstâncias, é o trabalho tolerado como um
‘sacrifício necessário’ e a conseqüente subordinação da vida pessoal à vida
profissional. É o próprio Junior que nos conta:
A coisa mais importante na minha vida é a minha causa. Depois a
minha mãe, que acreditou em mim, quando ninguém acreditava.
Depois a minha família.
Com uma agenda extremamente atribulada, recheada de viagens, reuniões e
projetos, Junior quase não encontra tempo para viver a sua vida pessoal. Aqui
vale lembrar a afirmação do Ciampa (1987):
Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma
identidade pessoal, uma história de vida, um projeto de vida. Uma
vida que nem sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais.
E como podemos ver na sua resposta à Revista Trip, o executivo-
workaholic elegeu uma única faceta da vida – o trabalho – que acabou
“colonizando” todas as outras atuações e vivências, tornando José Junior refém
deste aspecto. A exacerbação do executivo-workaholic acabou se tornando um
fetiche e empobreceu a possibilidade de ação autônoma do Junior, na medida em
que sua identidade passou a ser composta predominantemente deste único
personagem, que coloca todos os outros personagens em segundo plano.
Neste fragmento de sua trajetória, percebemos que José Junior, que até
então, havia superado as diversidades que lhe foram impostas através da sua
autonomia e emancipação do revoltado-briguento e construção de uma série de
personagens que ampliavam a sua identidade, acaba por restringir a sua própria
autonomia diante de um momento de vida que, a seu ver, exige que ele reduza a
sua identidade em prol de um objetivo, considerado por ele, maior: a sua causa
social.
86
Quando uma identidade fica muito restrita a um conteúdo que define um
determinado papel, essa convenção pode vir a determinar como o indivíduo deve
ser, restringindo, assim, a identidade numa forma convencional. Ciampa explica:
Quando ocorre a reposição da identidade pressuposta, da reposição
das personagens estereotipadas, retirando-se o caráter de
historicidade, e gerando-se, a identidade mito, tem-se o processo
chamado de mesmice (Ciampa, 1987).
A identidade mito, sustentada pelo personagem executivo-workaholic que
virou fetiche, é continuamente resposta através de mais trabalho, dentro da
necessidade de se evitar uma nova possibilidade de fracasso e no desejo de
realização de uma utopia.
Para que a mesmice não se reproduza ou manifeste-se de forma
continua, é necessário que se elimine a identidade pressuposta e
surja o outro "outro", que também sou eu, havendo a negação da
negação de mim, superando, então, a identidade pressuposta,
desenvolvendo uma identidade posta como metamorfose constante.
Neste sentido, havendo possibilidades de toda a humanidade
contida em mim concretizar-se (Ciampa, 1987).
O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação, e a plena
concretização da mesmice é aquilo que Ciampa (1987) chama de "fetichismo da
personagem":
A quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de 'ser-
para-si', ocultando a verdadeira natureza da identidade como
metamorfose e gerando o que será chamado 'identidade mito', o
mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da 'má infinidade' (a não
superação das contradições).
87
É voz corrente que o Junior é a peça fundamental do AfroReggae, que a
ONG não funciona sem ele, mas ele não cansa de afirmar que o Afro Reggae não
é uma pessoa. Apesar do Junior realmente aparecer na maioria das reportagens
sobre o Afro Reggae, é inegável que, cada vez mais, aparecem outros membros
do Afro Reggae, como o o Anderson, o Altair e o Johaimer.
Como expomos acima, hoje o AfroReggae é uma verdadeira empresa, que
trabalha de forma estruturada e planejada, conduzida por um comitê gestor.
Junior sempre teve, desde o início, a preocupação de estruturar o movimento
para que caminhe independente dele.
Desde o começo eu pensei em sucessor. Tem um cara que entrou
no AfroReggae com treze para quatorze anos, o Altair, que já está
preparado. Já é o cara. E é um cara melhor qualificado. Se eu
morrer ou sair do AfroReggae, ele assume, fácil. Tem 12 anos a
menos: mais energia. Eu o considero superior a mim de verdade,
numa porrada de quesitos. Não dá para ter uma instituição onde só
um rosto apareça. Quem não quebrou está quebrando. E é uma
estratégia, não pense que sou legal, não sou legal porra nenhuma, o
que sou é inteligente. Porque se eu ficar o tempo inteiro eu, eu, eu, o
grupo vai puxar o tapete, e é natural, como todos os grupos
boicotam os seus líderes. Você pode ter o poder central, mas tem
que permitir que todos apareçam.
Entretanto, apesar do Junior fazer questão de dizer que o AfroReggae não
é ele, a ONG parece girar em torno dele. A sua figura carismática, mas também
centralizadora, continua a ser o pilar da instiruição.
Além do fetiche do executivo-workaholic, também temos o peso do figurino
do herói-justiceiro. Da favela para o mundo é um título emblemático que resume a
emancipação de alguém que estava preso ao personagem fracassado-briguento e
que mostrou uma capacidade de produzir uma série de novos personagens a
partir do seu processo emancipatório. Junior diz:
88
Sei que estou fazendo uma história aqui no Rio de Janeiro, no Brasil,
que ainda vai ecoar muito. Estou entre os 200 jovens líderes mais
importantes do mundo, não fui a Davos porque não quis. Eu nunca
poderia imaginar, há 10 anos atrás, que nós iríamos ganhar um
prêmio Faz a Diferença do jornal Globo, como personalidade do ano.
Eu acho, também, que as pessoas estão mudando. Eu percebo essa
mudança e percebo em todos os setores.
Dentro da lógica do fetiche do excutivo-workaholic, Junior já possui uma
série de planos que reforçam e sustentam a reposição deste papel. Os planos em
si são extremamente ambiciosos
A nossa usina de novos empreendedores vai ser em Vigário Geral,
num centro de quase 4 milhões de reais que estamos tentando
construir. Vai se chamar centro cultural Waly Salomão e funcionará
24 horas por dia. No mundo, nenhuma ação cultural, educativa,
acontece na madrugada. E no mundo inteiro a violência é jovem e
noturna. As lan houses estão lotadas à noite e de madrugada.
Moleque tá ocioso. E nós temos condições de trabalhar com música,
circo, teatro de madrugada. Um centro de inteligência coletiva,
chamado Lorenzo Zanetti, foi inaugurado em janeiro e tem um viés
inédito. São três andares que custaram 400 mil reais, onde o
indivíduo vai aprender Word, Windows, Excel, mas vai trabalhar
também com Linux, ser qualificado em webdesign, aprender a
trabalhar com ilha de edição. Já temos o anfiteatro no morro do
Cantagalo, pegamos há pouco um espaço no Complexo do Alemão.
Ao analisarmos toda a trajetória de vida de Jose Junior e nos depararmos
com este fragmento de sua história, percebemos que desenvolver uma Identidade
Pós-Convencional não é garantia de uma emancipação plena ou definitiva do
indivíduo e vemos que a lógica sistêmica a cada instante oferece armadilhas que
impedem o movimento emancipatório.
89
À medida que a própria sociedade também está num processo de
transformação, cada vez mais rápido, cada vez mais amplo, uma identidade
definida de modo “convencional” pode se tornar uma “camisa de força” que inibe o
desenvolvimento crítico do indivíduo, que assume um “perfil” estático como
definição de sua identidade profissional.
90
6. Projeto de vida
Ciampa define identidade como processo de metamorfose, como
movimento das transformações que vão configurando nossas identidades, seja
como história de vida – um passado que se fez pela minha atividade –, seja como
projeto de vida – um futuro a ser buscado a partir de meu desejo –, ou seja,
desenvolver a competência de falar e agir com autonomia para afirmar quem sou
e quem gostaria de ser.
Voltemos, então, à resposta que o Junior deu à Revista Trip:
Às vezes, até penso se não seria bom fracassar, entendeu? Porque
eu também sofro muito, é muito trabalho, muito problema. A derrota
seria péssimo, claro, isso que eu faço, eu não faria mais. Aí, talvez
fosse virar monge hinduísta, pastor, sei lá...
A possibilidade de viver-uma-vida-que-merece-ser-vivida, só se torna
possível a partir do momento em que o indivíduo pode afirmar o 'eu' de si mesmo
e que pode ser reconhecido alguém que não se reduz a um personagem ou
subordina todos os outros personagens à lógica de apenas um. Uma identidade
do eu pós-convencioal é a expressão de uma pluralidade de personagens, que
por sua vez precisa ser incorporada na sociedade, com as metamorfeses que
ocorrem com o indivíduo.
Neste sentido, entedemos que a questão da emancipação, a favor da vida-
que-merece-ser-vivida é uma expressao da autonomia, dos projetos de vida
(futuro) e da criação. Aqui nos referirmos à emancipação como a decisão do
indivíduo sobre seus próprio bem-estar de uma forma autônoma e livre da
intromissão de interesses externos.
Ser autor da própria história e agir de forma autônoma é o propósito das
identidades pós-convencionais. Essa identidade pós-convencional somente torna-
se possível quando o indivíduo passa a atribuir às suas vivências um sentido de
91
auto-determinação e, principalmente, possa ser autor da própria história. Ao
analisarmos a história de vida de José Junior, percebemos claramente não só a
sua vontade, mas a sua capacidade de ser autor da sua própria história quando
ainda encarnava o personagem revoltado-utópico e na construção de múltiplos
personagens que demonstram a riqueza da sua identidade.
Entretanto, como acabamos de analisar, o personagem executivo-
workaholic tornou-se um fetiche. Personagens como o artista-disfarçado, o
monge-cósmico e o alquimista das polaridades permitiram uma ampliação de sua
identidade como personagem-autor e um acesso ao outro Junior, que não o
fracassado-briguento. Por sua vez, a subordinação destes mesmos personagens
ao executivo-workaholic acaba por se traduzir em uma opressão, bem como uma
redução da identidade.
Durante a entrevista, José Junior preferiu não falar muito sobre projeto de
vida futuro, alegando que seu futuro é o AfroReggae e justificando que a sua
intuição saberá conduzi-lo ao futuro.
Todavia, quase no final da entrevista, Junior falou sobre o Pastor Marcos
Pereira da Silva
13
, da igreja evangélica Assembléia de Deus dos Últimos Dias e
sobre a previsão feita pelo pastor. Ele disse a José Junior que um dia Junior
também seria pastor.
Junior, que se aproximou do Pastor Marcos há cerca de quatro anos,
atualmente freqüenta a Assembléia de Deus dos Últimos Dias, do próprio pastor.
Em 2008, Junior negociou a entrada do pastor no Complexo de Bangu com o
governador Sérgio Cabral Filho (PMDB) e o vice-governador Luiz Fernando
Pezão. No final de 2008, Junior entrevistou e mostrou o trabalho do Pastor
Marcos no seu Programa Conexõees Urbanas.
13
O Pastor Marcos Pereira da Silva ganhou fama por ajudar a tirar homens do tráfico e a salvar
pessoas prestes a serem executadas ou punidas por traficantes. Há quatro anos, o pastor estava
proibido de entrar em presídios no Rio de Janeiro por suspeita de ligação com o Comando
Vermelho, facção criminosa que domina importantes favelas na cidade.
92
A partir da resposta que o Junior deu a Trip, inferimos que o personagem
“líder religioso” está no radar do Junior ainda como um devaneio, uma
possibilidade distante, ou ainda, uma solução escapista ou como uma possível
evolução do personagem monge-cósmico.
É imperativo ressaltar que o personagem guerreiro-justiceiro já corporifica a
ajuda que Junior dá para várias pessoas em momentos de sofrimento, oferecendo
a elas uma perspectiva mais ampla do que lhes está acontecendo. Ao passo que
o monge-cósmico, apesar de ser um personagem cada vez mais esporádico e
extremamente abafado pelo executivo-workaholic, continua vivo e sendo evocado,
mostrando a genuína ligação que Junior possui com a questão religiosa-espiritual.
Também quero mencionar, aqui, um antigo projeto do Junior que foi
engavetado por falta de tempo: a elaboração de um livro de ficção. Junior iniciou o
livro há alguns anos, porém, em função de suas atividades no AfroReggae, não
conseguiu levar adiante a redação, que está parada mas não foi esquecida. A
trama do livro, bem como seus personagens, já foram desenvolvidos por Junior,
ou melhor, pelo artista-disfarçado que busca brechas no executivo-workaholic.
Curiosamente, o seu processo de emancipação se deu em razão do seu
sentimento de fracasso. A possibilidade da continuidade deste processo de
emancipação pode ocorrer em função da opressão do sucesso, cuja manutenção
exige uma cota de sacrifício muito alta, como vimos no próprio depoimento do
Junior.
Cabe ao José Junior, com a sua capacidade de agir de forma autônoma -
utilizar a reflexão para decidir de que modo ele irá resgatar a sua autonomia para
poder realizar uma nova emancipação.
93
5. Considerações finais
Através da emancipação do personagem revoltado-briguento e no
desdobramento de seus múltiplos personagem, José Junior nos mostra a sua
vocação para transitar em novos mundos, aprender com a vida, com a sociedade,
com as dificuldades e com os impasses, ao mesmo tempo que atua no contexto
em que vive e cria novas realidades.
Esta emancipação nos oferece elementos que demonstra que os indivíduos
podem ser muito mais do que o personagem estigmatizado que o aprisiona em
um determinado momento de vida e que ele pode superar essa identidade
pressuposta através da autonomia e do dizer eu de si mesmo. Aqui fica
caracterizado o mundo simbólico constituído por um universo de significados que
transforma o "ser" em humano. O homem não cria apenas o mundo; cria sentido
para o mundo em que vive. Com sua capacidade de autonomia, ele se torna
protagonista da sua própria história.
Outro aspecto que não podemos deixar de apontar é que o sujeito é o
resultado da sucessão e coexistência de diversos personagens criados por ele
mesmo ao longo da vida. A identidade é um produto da história desses
personagens, de sua criação e extinção, num processo contínuo.
A articulação dos mais diversos personagens caracteriza a identidade
enquanto movimento e plasticidade, pois se dá pelo ato de refletir do que tem
sido e do poder ser. José Junior assume a postura do homem que está disposto a
aprender mais, que está aberto para o inusitado e novos aprendizados,
Entretanto, ao analisarmos a trajetória de vida de José Junior além da
emancipação do revoltado-briguento, nos depararmos com um determinado
fragmento de sua história que nos leva a concluir que desenvolvimento de uma
identidade do eu pós-convencional não é garantia de uma emancipação plena ou
definitiva do indivíduo e percebemos que a lógica sistêmica a cada instante
94
oferece armadilhas que impedem o movimento emancipatório.
A emancipação do revoltado-briguento deu espaço para uma "nova
identidade" e, na medida que essa nova identidade vai se consolidando, o sentido
da metamorfose acabou se invertendo. O movimento, que na origem era
libertador, ao ser bem sucedido, de certa forma, começou a limitar a liberdade
individual de escolha do que se deseja ser.
Neste novo contexto, essa “nova identidade”, que tem como o intuito a
transformação da sociedade, a realização de uma utopia, bem como o
reconhecimento do outro, torna-se “convencional”, aprisionando o sujeito num
determinado personagem, o executivo-workaholic.
Nesse último caso, não se trata de fato de metamorfoses com sentido
emancipatório, pois, ainda que vejamos uma mudança, continua a existir uma re-
posição e não a superação de um personagem que, de alguma forma, oprime.
Claro que isso não significa que essa superação não poderá ocorrer a posteriori.
Como sabemos, metamorfose é um processo contínuo e não linear. A questão é a
abertura de uma brecha que possibilite a alterização do indivíduo, na qual ele
consiga atribuir outro sentido para a questão do trabalho e desenvolva uma
consciência de que existe a possibilidade se fazer outras escolhas que ainda não
foram pensadas.
A possibilidade de viver-uma-vida-que-merece-ser-vivida, só se torna
possível a partir do momento em que o indivíduo pode afirmar o 'eu' de si mesmo
e que pode ser reconhecido como alguém que não se reduz a um personagem ou
subordina todos os outros personagens à lógica de apenas um. Uma identidade
do eu pós-convencional é a expressão de uma pluralidade de personagens, que
por sua vez precisa ser incorporada na sociedade, com as metamorfoses que
ocorrem com o indivíduo.
Por último, ao longo de sua trajetória, percebemos em José Junior uma
grande pré-disposição para traçar seus próprios caminhos, mudar a sua rota,
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alterar sua “pré-destinação” através de suas ações e de sua interação junto a
outras pessoas.
Claramente Junior se mostra como “se fazendo”, e não como algo “feito”,
“acabado”. Apesar das armadilhas da sociedade sistêmica, ele já vislumbra
alternativas, mesmo que isso ainda ocorra em forma de devaneio ou solução
escapista. O embrião de um novo processo emancipatório está presente. Não lhe
faltam competência e criatividade para buscar brechas e formas alternativas que
irão construir novos personagens e reafirmar a identidade do eu pós-
convencional.
96
BIBLIOGRAFIA
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Jorge Zahar Ed., 1999.
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