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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA SOCIAL
ÁLBUNS DE FAMÍLIA: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA NOS ANOS
DOURADOS
MÁRCIA ELISA LOPES SILVEIRA RENDEIRO
Rio de Janeiro
2008
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MÁRCIA ELISA LOPES SILVEIRA RENDEIRO
ÁLBUNS DE FAMÍLIA: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA NOS ANOS DOURADOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Memória
Social.
Orientadoras: Prof
a
. Dr
a
. Leila Beatriz Ribeiro
Prof
a
. Dr
a
. Vera Dodebei
Rio de Janeiro
2008
i
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MÁRCIA ELISA LOPES SILVEIRA RENDEIRO
ÁLBUNS DE FAMÍLIA: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA NOS ANOS DOURADOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Memória
Social.
Aprovada em _____/______/_____
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Profa. Dra. Leila Beatriz Ribeiro
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_________________________________________________________
Profa. Dra. Vera Dodebei
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Mauad
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Lissovsky
Universidade Federal do Rio de Janeiro
ii
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Ennes e Sebastiana,
que na simplicidade de seus princípios,
me apoiaram de forma incondicional.
Ao meu marido, Rogério, parceiro e
cúmplice de todas as horas.
Ao meu filho Estêvão, motivo maior da
minha alegria e do meu amor.
v
AGRADECIMENTOS
Quando o número de amigos é grande, agradecer é coisa trabalhosa,
privilégio de poucos, que me orgulho de exibir. Dito isso que eu consiga fazer
justiça a todos que me ajudaram a caminhar.
Agradeço a dedicada orientação de Leila Beatriz Ribeiro que facilitou
minha jornada disponibilizando sua biblioteca particular, seu tempo, sua
sensibilidade acadêmica e sua generosidade.
Agradeço à Vera Dodebei pela sofisticada e criteriosa visão sobre o
conjunto do trabalho.
Agradeço à Carmen Irene Correia de Oliveira, amiga inspiradora que
me fez acreditar que era possível e me honrou todo o tempo com a sua
lealdade, com seus livros e com o seu enorme coração.
A Alexandre Rodrigues Alves que atendeu a todos os pedidos de
socorro, sanando vidas que iam da linguagem virtual ao mundo das letras,
agradeço pelo exercício da paciência e por encher de inteligência e bondade o
meu caminho.
À Mireile Soares, “mãe do Caio”, pela amizade, cumplicidade e
carinho.
Agradeço à Selma Regina de Moraes, amiga de todas as horas, irmã
eleita, fonte permanente de luz.
À Valéria Wilke por sua simplicidade, delicadeza e palavra amiga.
Aos amigos do ensino público, minha maior referência de credibilidade
e compromisso, meus parceiros de mais de vinte anos de profissão, pelo
incentivo e apoio constantes, em particular aos professores: Gerson, Alice,
Eilimar, Teresa AKiko, William, Gilvan, Regina, Solange, Ângela, Vilma, Luís
Carlos, Yone, Jorge Alberto, Anna Martha e Cosme.
Às diretoras da E. M. Levy Miranda,Eliane e Conceição, que toleraram
meus horários atrapalhados e reconheceram o esforço para conciliar todas as
tarefas.
Aos “guardiões da memória” que abriram a porta de suas casas e de
seus acervos, disponibilizaram seus sentimentos e idéias, confiaram emoções
e imagens: Ricardo Fernandes Rendeiro, Ocirema Rodrigues Alves e
Margareth Martins Amorim.
A todos os colegas do mestrado pela força e pela parceria.
Agradeço às alunas-amigas Lioara e Fernanda pela torcida e por
partilharem comigo sua juventude e energia.
Agradeço à Cláudia Guaranys, Rosely Manzano, Robson Rendeiro,
Manuela Huesca, Renato Rendeiro, Nathércia Rendeiro e Reinaldo Rendeiro,
extensão da minha família, pelo apoio de todos os momentos.
“O homem que cavalga longamente por terrenos
selváticos sente o desejo de uma cidade.
Finalmente, chega a Isidora, cidade onde os
palácios têm escadas em caracol incrustadas de
caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição
binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro
está incerto entre duas mulheres sempre encontra
uma terceira, onde as brigas de galo se degeneram
em lutas sanguinosas entre os apostadores. Ele
pensava em todas essas coisas quando desejava
uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus
sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o
possuía jovem; em Isidora, chega em idade
avançada. Na praça, o murinho dos velhos que
vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado
deles. Os desejos agora são recordações.”
Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis
i
RESUMO
O período conhecido como Anos Dourados no Brasil, na década que se seguiu
ao fim da Segunda Guerra Mundial, entre inúmeros movimentos e eventos,
pode ser caracterizado também por uma crescente industrialização e o
aumento dos bens de consumo entre as camadas médias da população. Em
meio a esse cenário desenvolvimentista, fortemente influenciado pelo
american way of life, as famílias brasileiras intensificaram a sua ligação com a
imagem fotográfica. A câmera, mais compacta e mais acessível a grande parte
da população, foi rapidamente transformada na “máquina de tirar retratos”,
objeto de reconhecido valor dentro da sociedade. A presente dissertação
destaca as especificidades das fotografias de família produzidas nesse
período, procurando estabelecer relações entre as memórias individuais
erguidas pelos álbuns de família e o jogo de lembranças que recobre a
memória coletiva dos anos 50 no Brasil. Tratamos, em particular, da estreita
ligação entre as fotografias de família e a arte da narrativa, além do seu
significativo papel no campo da representação social. Como um monumento
de lembranças os álbuns configuram, ao mesmo tempo, uma coleção e um
patrimônio simbólico e, como tais, o capazes de acompanhar várias
gerações da mesma família e suas ramificações. Essas coleções fotográficas,
montadas ao longo do tempo, são mantidas graças à ação do guardião de
memórias responsável pela preservação do acervo fotográfico familiar. A
pesquisa, através da análise de retratos e de entrevistas com seus
colecionadores, procura apontar a relevância das fotografias de família dentro
do período estudado, considerando-as, sobretudo, como objetos de consumo.
No corpo dessa análise vislumbramos também uma “euforia fotográfica”,
prenúncio do processo que culminou na formação do mundo-imagem da
atualidade.
Palavras-chave: Fotografia; Álbuns de Família; Anos Dourados; Coleção;
Patrimônio simbólico.
ii
ABSTRACT
The known in Brazil as the Golden Years, at the decade that was followed by
the end of the Second World War, between uncountables gestures and events,
can be also pointed out for a growing industrialization and the increase of
*goods* among the medium strata of the population. In front of this
*development scenery*, hardly influenced by the american way of life, brazilian
families intensified their relation with the photografical image. The Camera,
smaller and more accessible for most part of population, was quickly
transformed into the “portrait machine”, an object of important value in our
society. The current dissertation point out the *specificness* of family
photographs produced at this time, looking for establishing relations between
the individual mamories raised by family albums and the game of recall that
recovers the blanket memory from the 50´s in Brazil. We dealed, in particular,
with the close connection between the family photographs and the art of
narrative, beside their significant role at the social representation area. Such as
memory monuments, the albums configure, at the same time, a collection and
a symbolic patrimony and, such as this, they are capable to attend many
generations of the same family and its branches. These photographic
collections, provided along of time, are kept thanks to the memory guardian´s
influence – who is responsable for the conservation of the familiar photograph´s
heritage. The research, making use of some analysis from portraits and the
enterviews with their collectors, intend to indicate the relevance of the family
photographs within the studied period, considerating them, mainly, as *goods*.
Inside the structure of this analysis we also have a notion that a “photographical
euphoria”, presage of the process that turned into the origin of the image-world
from nowadays.
Key-words: Photography; Family Albums; Golden Years; Collection; Symbolic
patrimony.
iii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
x
Fotografia 1- Retrato “7 carinhas” (1958) .............................. 29
Fotografia 2- Página de álbum “Imagens de 1958 e 1959” ......................... 30
Fotografia 3- Página de álbum “Imagem central de 1955” .......................... 30
Fotografia 4- Página de álbum composta de 17 retratos ............................ 31
Fotografia 5- Máquina fotográfica KAPSA .................................................. 39
Fotografia 6- Retrato “Colação de grau” ..................................................... 44
Fotografia 7- Retrato tradicional – Instituto de Educação ........................... 45
Fotografia 8- Retrato “de brincadeira” – Instituto de Educação .................. 46
Fotografia 9 – Retrato “Jubileu de ouro” ..................................................... 47
Fotografia 10 – Retrato “Mãe com 15 anos” ............................................... 53
Fotografia 11- Retrato “As Paulas” ............................................................. 57
Fotografia 12 – Retrato de casamento “Noiva na sala com TV” ................. 72
Fotografia 13 – Retrato de casamento “Noivos e árvore de natal” ............. 73
Fotografia 14 – Retrato de casamento “Noivos e seus presentes” ............. 75
Fotografia 15 – Retrato “Último retrato de solteira” ..................................... 77
Fotografia 16 - Retrato “Casamento no civil” ............................................. 78
Fotografia 17 – Retrato de casamento “Penteadeira” ................................. 79
Fotografia 18 Retrato de casamento “Tradicional................................... 81
Fotografia 19- Retrato de casamento “Noiva e mãe” .................................. 85
Fotografia 20 – Retrato de casamento “Noiva e pai” .................................. 86
Fotografia 21 – Retrato de casamento “Leitura de telegramas” ................. 86
Fotografia 22 – Retrato de casamento “Entrando na igreja” ....................... 87
Fotografia 23- Retrato de casamento “Carro enfeitado............................. 87
Fotografia 24 – Álbum de retratos “Minha Filha” ........................................ 101
Fotografia 25- Álbum de retratos “Nossas Núpcias” ................................. 101
Fotografia 26 – Álbum de retratos “Nossos Filhos” ..................................... 101
Fotografia 27 – Álbum de retratos “Recordações” ...................................... 101
Fotografia 28 – Álbum de retratos “Sem Título” .......................................... 103
Fotografia 29 – Página de álbum “Recordações da Lua de mel” ................ 105
Fotografia 30 – Página de álbum “Bodas de Prata” .................................... 105
Fotografia 31 – Página de álbum “Passeios do Casal” ............................... 106
Fotografia 32 – Página de álbum composta de 9 retratos .......................... 109
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
.....................................................................................................
11
2 MEMÓRIA E FAMÍLIA – AS FONTES E O TEMPO
...........................................
23
2.1 OS BAÚS ENCANTADOS – PRIMEIRAS LEITURAS ...................................... 24
2.2 LEMBRAR E NARRAR – A FIGURA DO NARRADOR ..................................... 35
2.3 AS MARCAS VISÍVEIS DO PASSADO OS ENTREVISTADOS E SUAS
LEMBRANÇAS ........................................................................................................
37
2.3.1 D. Cira e o relicário de memórias ........................................................ 38
2.3.2 Ricardo – a paixão e o ofício no cenário da fotografia ........................ 50
2.3.3 Margareth e o exercício de lembrar ..................................................... 55
2.4 ANOS DOURADOS – O PASSADO-PRESENTE ............................................. 59
3 MEMÓRIA E FOTOGRAFIA O MUNDO-IMAGEM
...........................................
67
3.1 A IMAGEM FOTOGRÁFICA .............................................................................. 68
3.2 A IMAGEM DE CASAMENTO ........................................................................... 70
3.3 RETRATO FAMILIAR – OBJETO DE CONSUMO ............................................ 83
3.4 A REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM IDEAL ...................................................... 90
4
MEMÓRIA E COLEÇÂO – O ÁLBUM DE FAMÍLIA
...........................................
95
4.1 A CONSTRUÇÃO DE UM BEM SIMBÓLICO – O ÁLBUM ...............................
96
4.2 MUSEU DA FAMÍLIA O ÁLBUM COMO MONUMENTO ............................... 99
4.3 EDIÇÕES E REEDIÇÕES – A COLEÇÃO QUE CAMINHA ............................. 107
4.4 IMAGEM E AFETO – O GUARDIÃO DA MEMÓRIA FAMILIAR ....................... 110
5
CONCLUSÂO
......................................................................................................
113
REFERÊNCIAS
......................................................................................................
123
ANEXO
....................................................................................................................
127
1 INTRODUÇÃO
Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo
existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto.
Susan Sontag
Eu me lembro bem, como se fosse hoje... Esse da foto, está tão
diferente... O tempo é implacável... Se não sou eu, é meu irmão, deixa ver de
perto... E o tio? Quase não mudou... Perdi a conta de quantas vezes frases
como essas cruzaram pelo caminho. Convidada em duas ocasiões distintas
para organizar fotografias em álbuns de família fui tomada de surpresa por um
serviço pouco comum, desafiador e repleto de sutilezas.
Historiadora por formação, com antiga e declarada paixão por
fotografias, procurei embasamento teórico para dar conta da empreitada. O
desafio era ainda maior do que aparentava. Embora tenha procurado atender
ao desejo de memória e de representação dos que me contrataram, descobri
que sabia muito pouco ou quase nada sobre leitura de imagens fotográficas,
conhecimento essencial para seguir no trato com fotografias. As pessoas
envolvidas mostraram-se satisfeitas com a disposição das imagens e as
trajetórias familiares esboçadas pelo meu trabalho. No entanto, o processo, em
princípio tão sedutor, havia provocado um grande desconforto; a experiência
com as fotos de família revelou (de forma contundente) que não bastava olhar
para ver. No contato com outros álbuns, mais antigos, descobri que no
universo das imagens familiares havia ainda uma série de perguntas à espera
de respostas, além de muitos sentidos imagéticos, entre eles, o narrativo,
capazes de estimular outras tantas investigações; questões que o simples
ordenar cronológico e estético não poderiam responder.
Curiosamente, nas longas conversas que cercaram a distribuição e o
ordenamento das imagens nos álbuns, vi meu interesse analítico aumentado
pela predileção que as fotos de família produzidas na década de 50
provocavam nos grupos familiares com os quais trabalhei. A mítica dos Anos
Dourados, evidenciada por essa predileção, parecia conferir importância aos
fotografados e seus descendentes.
1
Instigada por essas pistas, transformei esse interesse investigativo por
fotografias de família em um projeto de pesquisa e, em 2006, fui aceita pelo
Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Dois anos depois, aprofundadas as questões
corporificadas no projeto inicial, a pesquisa se consolida como Álbuns de
Família Fotografia e Memória nos Anos Dourados. Para melhor apresentá-la,
num exercício de rememoração individual, vale lembrar as raízes sobre as
quais foi erguido o trabalho em questão.
Para chegar ao objeto de estudo desta dissertação, partimos de uma
memória recortada, repleta de imagens em preto e branco, fotos do avô,
natural das Minas Gerais (um patriarca), fotos de tios, primos e da percepção
dos retratos postos no alto das portas, retocados, não por acaso, posicionados
nos lugares mais vistos e vivos das casas de interior. Partimos dos retratos de
família, emoldurados pelo tempo, dispostos em álbuns ou em caixas de
sapato, ordenados mesmo na desordem. Partimos dos rumores e sons
provocados pelo diálogo com as imagens daqueles que já se foram, vestígios e
restos que se misturam como cheiro e sabor. Ora, se a memória individual é
constituída de fragmentos, pedaços dispersos e está sujeita aos caprichos do
tempo, envolvida por olfatos, sabores e sons, como descrever a formação de
uma memória coletiva ao longo da história de uma sociedade?
É no entendimento desse processo de formação memorialista, na
análise da influência desse poderoso instrumento simbólico a fotografia no
papel especial dos álbuns de família, séries e coleções fotográficas espalhadas
pelo universo familiar ao longo do pós-guerra brasileiro e na
representatividade desse processo para a compreensão da sociedade
brasileira – que reside a pesquisa em questão.
Dito de outro modo: para apreender os sentidos vislumbrados em nosso
objeto de estudo, selecionamos como diretriz investigativa e cerne de nossa
busca no campo da Memória Social, as seguintes questões:
a) De que maneira a memória coletiva dos Anos Dourados se serviu das
memórias individuais edificadas pelos álbuns de família da década de 1950?
2
b) Qual o papel dos álbuns e de seus fragmentos fotográficos na
construção de um museu da família? Como são montados os acervos ou as
coleções desse museu?
c) Como e quando os álbuns de família configuram um patrimônio? Em
que categoria patrimonial os álbuns podem ser compreendidos?
d) Qual a representatividade das imagens de casamento produzidas na
década de 50? Que discurso visual elas encerram?
e) As fotos de família são objetos carregados de afeto. Para sobreviver,
como relíquias, precisam da proteção dos guardiões da memória familiar.
Quemo esses guardiões e protetores? Que camadas de memória revestem
essa proteção? Quais as especificidades dessa coleção e de seus
colecionadores?
f) Que experiências narrativas os álbuns de família podem deflagrar?
Qual a relevância dessas narrativas na construção e na permanência dos
grupos familiares?
Em busca das respostas a essas perguntas, propomo-nos a análise do
papel da fotografia no Brasil do pós-guerra como o elemento gerador de um
patrimônio simbólico e de sua relação com a representação, a narrativa e o
imaginário no campo da Memória Social.
Acreditamos que é possível traçar um perfil cultural construído a partir
do “valor do culto” ou do “culto à imagem” presente na trajetória da sociedade
brasileira desse período, indício de mudanças intensas epidas, nas quais os
grupos e as pessoas se viram forçadas a mudar, ajustar e reajustar seus
modos de vida, idéias e valores sucessivas vezes (SCHAPOCHNIK, 1998).
A antropóloga Mirian Goldenberg (1999) afirma que a simples escolha
de um objeto de estudo significa um julgamento de valor, porque por si
representa um privilégio na medida em que ele aparece como mais significativo
entre tantos outros sujeitos à pesquisa. Partindo dessa afirmativa, suscitamos
outras tantas questões que pudessem margear nosso trabalho com cuidado e
atenção. Como conjugar o valor dado ao objeto escolhido (a fotografia) com
suficiente distanciamento para garantir a qualidade da pesquisa?
3
Reconhecendo que a pesquisa no campo das imagens nunca isenta o
pesquisador de sua sensibilidade e emoção, como sobreviver ao risco da
sedução da imagem pela imagem? Vislumbramos que o rigor metodológico
indicado pela escolha das fontes, pelo cuidado com a abordagem e pela
análise dos dados pode a garantir a seriedade do trabalho como um todo.
A opção pela pesquisa da fotografia familiar, no cenário brasileiro da
década de 1950, revela a responsabilidade que recai sobre a análise das
fontes. De sua escolha e dos critérios adotados para a sua interpretação
depende o resultado da pesquisa. À sombra dessas considerações,
descrevemos a metodologia adotada, o caminho percorrido até às fontes, o
passo a passo da coleta de dados e as delicadezas do campo no qual
transitamos.
Os álbuns de família foram, desde o primeiro instante, nossa primeira
referência como fonte. Isso porque, pelas razões descritas, identificávamos
neles a existência das lembranças, do esquecimento, das narrativas, da
projeção e da disputa, entre outros elementos deflagradores da memória.
Talvez por isso, sistematizar um trabalho de investigação através desses
álbuns, construindo critérios de análise e interpretação visual a partir de um
objeto tão marcado pelo universo afetivo, tenha representado o primeiro
desafio da pesquisa. Os álbuns se apresentam como uma espécie de acervo
particular, arquivos pessoais que reúnem fotografias de família, legendadas ou
não, dos quais despontam a narrativa e o diálogo imagético. O acesso a esse
acervo serve em primeira instância para identificar o grupo familiar e, através
dele e de suas imagens, é possível passear por gerações, reforçando o sentido
de coesão, identidade e a idéia de “pertencer” a um grupo.
No projeto inicial, acreditávamos que a pesquisa poderia ser sustentada
apenas pela análise das imagens fotográficas, através de uma leitura rigorosa
dos álbuns pesquisados, e pelo rigor científico que deve envolver a
interpretação e a análise dos dados. Contudo, ampliamos a investigação com
depoimentos orais, entrevistando os proprietários dos álbuns, os responsáveis
pelos acervos pesquisados, também identificados como colecionadores. Esses
“guardiões da memória familiar”, com suas inúmeras camadas de memória,
passaram a integrar nosso objeto de estudo. Cabe destacar que o trabalho de
4
campo confirmou a relevância das entrevistas, na riqueza de seus significados,
e revelou o papel vigoroso da narrativa e da oralidade no estudo das imagens
fotográficas à luz da Memória Social.
Considerando as exigências do tempo e do espaço formulados para a
pesquisa, trabalhamos com dois tipos de fontes a visual e a oral. No âmbito
da visualidade, elegemos como fontes: a) cinco álbuns de família, compondo
duas coleções diferentes. Em ambas, foram consideradas as páginas editadas
entre 1950 e 1960, perfazendo um total de 48 fotos do período; b) quatro
séries fotográficas pequenas coleções não alocadas em álbuns, mas
separadas e organizadas por assunto; nesse caso, duas séries de casamento,
uma formatura e uma classificada como “vida profissional” (23 fotografias no
total); c) um grupo de “fragmentos de álbuns”, registros visuais do mesmo
período, de grupos familiares diferentes, deslocados de álbuns ou à espera de
um (12 fotografias no total). No que concerne à fonte oral, levamos para dentro
do campo de análise seis horas de depoimentos gravados com os proprietários
das imagens, os guardiões da memória ou responsáveis pelos diferentes
acervos; são eles: Ocirema Rodrigues Alves (D. Cira), Ricardo Fernandes
Rendeiro e Margareth Amorim.
Um pequeno diário de notas também acompanhou o processo de coleta
das fotografias e entrevistas; vale destacar que algumas dessas anotações,
aparentemente pitorescas e sem grande importância, revelaram-se muito úteis
no processo conclusivo de interpretação.
De outra feita, a coleta de imagens fotográficas revelou a existência dos
“baús encantados dos arquivos pessoais” (GRATÃO, 2005, p. 1.835). O
“encanto” produzido pelas imagens reforçou a importância dos depoimentos ou
testemunhos individuais no processo de seleção das fontes. Na voz dos
retratados, surgiu a hierarquia das figuras, a memória dos que foram
fotografados e os elementos silenciados ou ausentes da cena, compondo
algumas das entrelinhas do “texto-imagem” primeiro indício do “sentido” que
buscamos pesquisar. Outro indicador de grande importância no processo de
escolha das fontes foi a percepção dos elementos que poderiam servir como
instrumento revelador de sentido.
5
A percepção desses elementos precedeu a leitura da imagem e permitiu
apontar na fotografia, de imediato, suas possibilidades como mensagem,
indicando também suas limitações. Assim, antes de entrar no território da
abordagem direta, havia sido possível perguntar ao retrato: trata-se de uma
fotografia anônima? Foi produzida por um fotógrafo amador ou foi produzida
em estúdio por um fotógrafo profissional? Quem é o fotografado? É possível
identificar o fotógrafo? Da compreensão inicial dessas “frações do real”
ilumina-se o detalhe com vistas à compreensão do todo de que ele faz parte
(LEITE, 2001, p. 47).
Essas indagações acabaram por levantar a questão da autoria das
imagens. Nesse caso, o autor ou a “função autor” pode ter mais amplitude no
processo de composição dos álbuns de família, transcendendo ao fotógrafo ou
aos estúdios fotográficos. Por meio dessas primeiras indagações, podemos
apontar quase sempre a fotografia como “fruto de quem a produziu, mas
também de quem teve a vontade de guardá-la, de preservá-la”, estabelecendo
relações entre o “sujeito autor da unidade” e o colecionador ou proprietário dos
fragmentos, “sujeito autor do conjunto” (LACERDA, 1993, p. 43).
No corpo da pesquisa incluímos a percepção da fotografia como um rito
social, presente em todas as ocasiões, também compreendida como uma
espécie de registro cuja função é documentar todos os eventos familiares, o
que pressupõe que a imagem fotográfica é passível, portanto, de leitura e
decodificação.
De outro modo, valemo-nos da percepção da fotografia como
experiência, profundamente ligada à representação de um real, pressupondo a
imagem fotográfica como “construção de um espaço de memória”. Podendo,
nesse caso, ser vista também como mediação, elemento que propicia o
entendimento das variáveis e da “essência oculta do fenômeno” ou do sentido
estabelecido entre o visível e o imaginário (CIAVATTA, 2002, p. 66).
Sustentada por essas percepções, construímos uma proposta
metodológica marcada pela construção narrativa deflagrada pelas imagens dos
álbuns de família. E dentro desse pressuposto foi possível compreender:
a) a foto como mensagem, leitura e interpretação de um real;
6
b) a foto como mediação, experiência narrativa, leitura e interpretação do
imaginário.
No primeiro momento da análise, a intenção é promover a leitura da
fotografia como mensagem, identificando nela os espaços que permitem a
interpretação de um real, contudo, que se levar em conta que tomamos
esse real como algo construído, sobretudo, pelos atores sociais, os narradores
da imagem que será eternizada. Numa etapa posterior, propomo-nos à análise
da fotografia como mediadora, mensagem também, mas identificando suas
relações com a narrativa, a oralidade, a evocação, o imaginário e seu papel na
construção de uma memória social.
Embora o tenhamos adotado o todo de abordagem histórico-
semiótico, considerando em profundidade uma análise quantitativa das
fotografias aqui pesquisadas, identificamos a necessidade de leitura dos
espaços propostos por Ana Maria Mauad, recurso usado na interpretação das
fotografias de Canudos, farto material iconográfico que através de sua
investigação pôde revelar uma das representações do conflito e atuar como
uma visão significativa do evento, tal como descreve em seu artigo, o por
acaso chamado O Olho da História (MAUAD, 1993, p. 25-40).
A análise da historiadora partiu da fotografia como documento, mas foi
sustentada pelo desejo de “decifrar a realidade interior das representações
fotográficas, as finalidades para as quais foram construídas”, desmontando,
desse modo, construções ideológicas, “materializadas em testemunhos
fotográficos” construídos pela história oficial (MAUAD, 1993, p. 27). Para
descongelar a fotografia da sua condição documental, propôs um estudo mais
abrangente, tendo como eixo interpretativo as seguintes categorias:
o espaço fotográfico – tamanho da foto, tipo, enquadramento, nitidez;
o espaço geográfico – região, espaço físico;
o espaço do objeto o aparato logístico, objetos pessoais, interiores e
exteriores;
o espaço da figuração homens, mulheres, animais, fotos individuais ou
coletivas;
7
o espaço das vivências ruínas, mortos, leitura de expressões e
vivências representadas.
Esse tipo de embasamento serve, portanto, ao desvelo de uma rede de
significações, elevando a fotografia ao território da linguagem, transformando
todos em leitores, numa tentativa de “explicar” e “desvendar” o passado.
Ressaltamos que a fotografia vista por essa ótica torna-se “acessível ao
conhecimento científico”, podendo, desse modo, ser analisada como
linguagem no “seio de outros sistemas de signos” (BARBOSA, 2001, p. 665).
Consideramos os espaços propostos por Mauad o nosso ponto de
partida, mas erguemos a pesquisa pela fala dos nossos narradores,
privilegiando as memórias individuais na construção de uma memória coletiva.
Por esse viés analítico, empregamos a lógica de uma descrição oral dentro do
processo de rememoração, emprestando, nesse caso, mais valor ao que foi
dito sobre a imagem fotográfica do que a fotografia por si mesma – construindo
a partir desse narrar um sugestivo jogo de contrastes entre presente e
passado.
Do cruzamento obtido entre a leitura e interpretação das coleções
fotográficas produzidas na década de 1950 e a análise das lembranças que
emergiram nas entrevistas dos “guardiões da memória” resulta esta
dissertação.
No capítulo Memória e Família, apresentamos um pouco mais da
metodologia aplicada na pesquisa, procurando assinalar as relações entre as
fontes pesquisadas e a memória coletiva erguida sobre os Anos Dourados. Na
trilha aberta pelas memórias individuais procuramos identificar as marcas
visíveis do passado. Para tanto, valemo-nos da idéia do passado atualizado a
partir do presente, visão apoiada em Halbwachs e no clássico Memória
Coletiva, pelo qual o presente seleciona e cobre de significados a
rememoração.
A escolha do pós-guerra como recorte temporal pode ser, em parte,
justificada pela riqueza de elementos que ele confere, no que diz respeito às
mudanças e transformações provocadas pelo consumo, pelos ditames
econômicos de um período que se esforçava por se mostrar promissor, mas
8
também pelas mudanças impostas à vida doméstica, ao trabalho e ao lazer,
em decorrência de um futuro que parecia bater à porta, tal a velocidade com
que as imagens e as “novas” idéias de modernidade chegavam às casas.
No Brasil desse momento, assinalamos uma cada marcada pela
primeira pílula anticoncepcional; pelos Desfiles Bangu; pelo conceito de
“menina de família” e os desfiles de passarela; pela coluna social de Ibrahim
Sued, ícone do deslumbramento e da imagem do sucesso; pelo sucesso do
filme Juventude Transviada, marca registrada da contestação e rebeldia do
jovem norte-americano; pelos “cinqüenta anos em cinco” do presidente JK;
pela imagem de Neide Aparecida, então estreante na publicidade; pelo
sucesso de Chega de Saudade e Outra Vez, de Antônio Carlos Jobim e
Vinícius de Moraes, na batida do violão do baiano João Gilberto, fato que
desencadearia o movimento Bossa-Nova...
Através da posse do objeto “máquina fotográfica”, sonho de consumo de
uma época, renovado em formas e recursos até hoje, enxergamos as inúmeras
narrativas pessoais; importantes narrativas imagéticas que viriam a
transformar-se no legado de uma geração que demonstrava suas idéias, seus
projetos e suas ambições enquanto exibia-se em uniformes, trajes de festa e
poses previamente elaboradas.
Cabe lembrar que, durante o mesmo período, o desenvolvimento
tecnológico permitiu ainda mais a compactação das câmaras, criando
facilidades para seu uso e deslocamento. Da mesma importância para a
construção dessas narrativas, registramos o crescimento da televisão como
aparelho doméstico de primeira grandeza e a íntima relação entre as imagens
que dela emanavam e as fotografias produzidas no mesmo período,
reproduzindo a síntese de um imaginário social.
Ainda no mesmo capítulo, a partir das considerações produzidas
durante as entrevistas, procuramos evidenciar o diálogo entre as fotografias,
os guardiões e a memória construída por eles.
A seguir, no capítulo Memória e Fotografia, procuramos analisar as
raízes e a complexidade que deram origem ao mundo-imagem em que
vivemos, levando em conta a influência dessas informações sobre o período
9
estudado. Detivemo-nos na compreensão da imagem fotográfica como suporte
de memória, na trajetória da fotografia vista como documento, vestígio e traço
do real. Analisamos nesta etapa a representatividade dos retratos de
casamento e o processo de construção visual que eles encerram, tendo como
cenário a década dourada brasileira.
O desejo de memória move a construção identitária, estabelecendo a
sincronia entre o individual e o coletivo. Do ato contínuo de mostrar a foto,
cavoucar gavetas em busca do rosto semelhante ou diferente, do exercício
permanente de re-contar o passado sempre como novidade surge a
tradição. Seduzidos pelo recordar, mas libertos da obsessão pela “reprodução
mimética do real”, percebemos que, como mensagem, a imagem fotográfica
reúne interpretação-transformação; como experiência, agrega as idéias de
índice torna-se referência; ícone –, identifica pela semelhança e símbolo
adquire sentido (DUBOIS, 1993).
No universo desse “mundo-imagem”, do “ícone” e do “emblema”, o
papel da fotografia familiar e das coleções fotográficas se destaca. Crescemos
sob o imperativo da imagem dos nossos antepassados; na lembrança deles
visualizamos quem somos, o grupo a que pertencemos, a teia de identidade
cultural a que estamos presos.
No último capítulo, Memória e Coleção, investigamos a construção de
um bem simbólico: o álbum de família. Interessa-nos, sobretudo, descobrir de
que maneira se constituem os museus de família e qual o papel do acervo
fotográfico nesse “museu”.
É de todo importante reconhecer que as lembranças também são
objetos de partilha e que a manutenção da memória familiar, com suas
lembranças-heranças, produzem uma espécie de patrimônio simbólico, o que,
por sua vez, pressupõe uma espécie de gestão; nesse caso, a função fica a
cargo de um guardião da memória familiar. Lembramos que nada disso ocorre
de forma inocente ou isenta do contexto social.
O lugar privilegiado das fotografias de família e as peculiaridades desse
acervo que atravessa gerações forjam a existência de um guardião da
memória familiar. Espécie de colecionador que, ao preservar, editar ou reeditar
0
as páginas do álbum, sob o peso da responsabilidade na guarda de tão
precioso bem, pode ser imbuído de uma aura de poder o colecionador de
relíquias, aquele que se apropria da memória ou é possuído por ela, aquele
que reúne, protege e guarda o sentido da família.
Ainda neste capítulo, procuramos identificar a relação visceral
estabelecida entre a imagem fotográfica, a coleção e o colecionador. Sob a
forma de álbum de família, descortinamos como objeto de estudo uma coleção
de imagens fortemente marcada pelos valores de um grupo; espécie de
registro visual que assinala a importância na celebração dos ritos sociais,
cerimônias que prometem assegurar eternidade aos elementos da família e
aos que dela fazem parte.
Como prática memorialista, os álbuns de família se mostram envolvidos
pela experiência narrativa e, juntos, compõem uma crônica visual, um artifício
capaz de representar os indivíduos ou a imagem que eles constroem de si
mesmos, informando e projetando através dela seus anseios e esperanças.
Procuramos mostrar as especificidades das fotografias de família,
quando ordenadas e apresentadas em conjunto; coleções constituídas como
um bem, tratadas como herança e transformadas pelo passado re-inventado
em patrimônio simbólico.
Por força das próprias limitações e cuidados que cercam a pesquisa
acadêmica, nem todas as imagens digitalizadas puderam ser apresentadas no
corpo do trabalho, mas procuramos eleger os elementos mais representativos
em todas as coleções e as imagens capazes de assegurar a compreensão do
trabalho como um todo.
Por sua vez, as narrativas provocadas pelas entrevistas aparecem e
reaparecem, diluídas em todos os capítulos; julgamos que a força desses
depoimentos, coletados ao longo do processo, condensam a importância da
memória, espinha dorsal desta análise e, não por acaso, presente em todos os
títulos dos capítulos.
Por fim, todas as peças à mostra, montamos o quebra-cabeça em que
afinal se desdobra toda pesquisa acadêmica. Apresentamos na conclusão os
resultados das principais questões levantadas ao longo do processo, na
1
esperança de que o trabalho possa contribuir na imensa esfera que cobre o
tema fotografia e memória.
2
2 MEMÓRIA E FAMÍLIAAS FONTES E O TEMPO
Em Narradores de Javé, (2003), filme de Eliane Caf, dois irmãos
gêmeos discutem de forma pitoresca acerca de sua filiação. Eles defendem
que são filhos de pais diferentes e, numa cena curiosa, disputam a legitimidade
de seus argumentos em torno de uma pequena maleta, espécie de baú com
velhas relíquias, entre elas as fotografias de família. A essa filiação estaria
ligada uma possível descendência do fundador da pequena cidade de Javé.
Antônio Biá, o narrador, comprometido com a tarefa de contar a “verdadeira”
história do povoado e de seu “mito-fundador”, assiste atônito a uma disputa
que usa as velhas fotografias de família, como se as mesmas representassem
documentos ou provas de caráter irrefutável. Contudo, as fotografias não
provam nada e confundem ainda mais a construção narrativa de Biá, pois cada
imagem retratada sustenta uma memória diferente para cada irmão; indeciso
sobre em quem confiar, o narrador vai embora sem saber que “memórias”
evidenciam a verdade do passado da cidade de Javé.
Tomando essa cena de Narradores de Javé como ponto de partida,
investigamos a pertinência de expressões como “passado verdadeiro”. As
lembranças individuais o compõem verdadeiramente uma “memória
legítima”? Haverá, de fato, uma “falsa memória”?
Neste capítulo trataremos da construção memorialista a partir das
fotografias de família e das possibilidades narrativas deflagradas por elas.
Analisaremos o fenômeno do passado-presente, fruto de um culto à memória
que, na contemporaneidade, tem redirecionado o olhar da sociedade, fazendo
com que as suas atenções, até então voltadas para o futuro, se
deslocassem para o passado. Trataremos em especial do tempo em que as
famílias se retrataram ou ajudaram a retratar, da rememoração produtiva do
pós-guerra brasileiro e das relações entre o individual e o coletivo na formação
da memória dos Anos Dourados.
2.1 OS BAÚS-ENCANTADOS – PRIMEIRAS LEITURAS
3
Os primeiros álbuns a que tivemos acesso reuniam algumas
características comuns: haviam sofrido muito com a ação do tempo, tinham
folhas arrancadas, páginas soltas e quase sempre desordenadas. Ou, por
outra, o mau estado havia sido provocado por mudanças familiares, grandes
viagens e deslocamentos (e até incêndios) que determinaram uma perda
parcial do objeto. Curiosamente, esses restos, partes ou “fragmentos de
álbuns” eram guardados em caixas, grandes ou pequenas, e mesmo
desgastados eram cuidadosamente preservados e, muitas vezes, “escondidos”
dos outros membros da família.
Os cinco álbuns selecionados como fonte primeira, acrescidos de quatro
séries fotográficas, compõem três coleções distintas. A seleção das fotografias
e álbuns (coleções) foi determinada principalmente por imagens que
representassem os ritos sociais das famílias brasileiras na década de 1950.
Procuramos eleger como fontes fotografias de família de fácil identificação e,
preferencialmente, de acervos bem cuidados.
A primeira dessas coleções pertence a Ricardo Fernandes Rendeiro,
industriário e fotógrafo nas horas vagas. De seu conjunto de fotografias,
selecionamos as sete primeiras páginas de um álbum que pertenceu a seu
avô, editadas com fotografias produzidas durante a década de 1950. O álbum
em questão foi recuperado de um incêndio. A importância a ele devotada
estimulou sua escolha no início de nossas investigações.
A segunda coleção pertence a Ocirema Rodrigues Alves, a quem
aprendemos a tratar, ao longo da pesquisa, como D. Cira, professora
aposentada e fonte inesgotável de memória familiar. Essa segunda coleção
representa o material mais numeroso; é composto por quatro álbuns
organizados por assunto: “Minha Filha” álbum que pertenceu anteriormente à
mãe da colecionadora, com fotografias de D. Cira na infância e na juventude (o
álbum foi editado em 1952); “Minhas Núpcias” com as fotografias tradicionais
de seu casamento (1958); “Lembranças” com as fotografias da lua-de-mel
em Caxambu e as fotos do primeiro ano de casados, imagens produzidas pela
primeira mera fotográfica do casal (1958 e 1959) e Meus Filhos” imagens
familiares que acompanham a gestação e o nascimento de seu filho mais velho
4
(1959). Além dos álbuns, a colecionadora disponibilizou o acesso a três séries
fotográficas, outros três conjuntos de imagens separados e agrupados por
assunto, classificados como “formatura”, “casamento (fotos que não foram
selecionadas para o álbum de capa dura) e “vida profissional”.
No terceiro acervo trabalhamos com uma pequena série de fotografias
de casamento (1958) e alguns “fragmentos de álbuns” (1955 1958) cedidos
por Margareth Martins Amorim, cientista social e figura atenta às questões
pertinentes à memória familiar. Seu conjunto de fotos, menor em quantidade,
revelou um amplo aspecto qualitativo no que concerne à pesquisa de imagens
do período.
Ao longo desse processo, assumimos alguns compromissos com os
colecionadores, entre eles, o de cuidar para que as fotografias não fossem
danificadas com o manuseio, uma vez que todas as fotos coletadas precisaram
ser digitalizadas a fim de facilitar a pesquisa; além disso, nos casos em que foi
necessário o deslocamento, cuidamos em manter as fotografias conosco por
pouco tempo, evitando os riscos de circular em demasia com os pequenos
museus-portáteis que nos foram confiados. Curiosamente, mesmo com todos
os cuidados exigidos, os guardiões da memória familiar se mostraram solícitos
e interessados em facilitar o uso das imagens para o trabalho acadêmico; as
fotografias de família foram cedidas com gentileza, cercadas por lembranças,
explicações, minúcias de colecionador e, em todos os casos, com orgulho.
O acesso inicial aos acervos nem sempre é fácil, mas é franqueado
através da confiança no pesquisador e do desejo de “eternidade” do retratado.
O esforço em lembrar do passado revela a complexidade da fotografia e seu
potencial no universo subjetivo da memória. O retrato, sozinho, não diz muita
coisa, mas é um mar de informações se analisado à luz dos depoimentos
pessoais e dos outros retratos que o antecedem ou sucedem na coleção.
Uma das dificuldades maiores da leitura de articulações
sociais na imagem é como talvez em todos os processos
das ciências sociais chegar à compreensão do todo através
do fenômeno individual observável. O conhecimento prévio do
todo, da cultura ou do seu aspecto estudado, não pode ser
negligenciado. Longe de ser um resultado de abstrações, a
partir da imagem concreta, é a proposta que permite a leitura
dos casos individuais. Estes, muitas vezes, são reflexos
5
capilares do todo, que se exprimem em seus fragmentos
(LEITE, 2001, p. 44).
A primeira apreensão de sentido na análise interpretativa das imagens
aponta para o fato de que, ao recortar a experiência, as fotografias de família
evidenciam papéis sociais; nesse exercício de projeção, procuram representar
o grupo e o espaço mediador que ele deve ocupar entre o tempo e a
sociedade da qual ele é parte.
Na busca por um propósito elucidativo capaz de associar os grupos
familiares à construção de uma memória “coletiva” e “individual”, percebemos
que as fotografias funcionam como mensagens identitárias. Nesse contexto, o
que chamamos grupo corresponde a um conjunto de idades, ideais, algum
parentesco e objetivos comuns.
Dentro de uma mesma família, as pessoas podem e certamente têm
lembranças diferentes do mesmo fato, mas essas memórias são construídas a
partir de dados ou de noções comuns, pontos de contato estabelecidos pelos
ritos sociais. Reconhecemos, desse modo, que qualquer coleção de fotografias
de família, no bojo de sua construção memorialista, destaca as imagens
“seletivamenteconsideradas como as mais significativas. No cenário instituído
pelos ritos, os membros da família serão retratados como “seres sociais”.
Assim, de uma percepção inicial é possível compreender por que
algumas fotografias de casamento, batizado ou formatura saem dos álbuns,
ganham vida própria e são reproduzidas como forma de “lembrança” para os
membros da mesma família ou de outros grupos familiares. Imagens
representativas da dinâmica familiar, de sua permanência e coesão dentro da
sociedade.
Para Halbwachs (1990, p. 34), as lembranças estão em permanente
sintonia com o afeto; a memória individual estaria, portanto, enraizada dentro
de quadros diversos, aproximados por circunstâncias ou contingências
momentâneas. Para o sociólogo, a consciência o está fechada sobre si
mesma, não opera sobre o vazio nem de forma solitária assim como s,
nossas lembranças nunca estariam completamente “sós”.
6
Acerca das memórias de infância, ele afirma que as lembranças do
“tempo” de criança, quase sempre reconhecidas como de cunho estritamente
pessoal, podem parecer mais individuais do que são na verdade. Para
Halbwachs, o mundo da criança nunca está vazio das influências “benfazejas”
ou malignas” dos humanos (1990, p. 38). Ainda que a imagem guardada na
memória não exista senão para a própria pessoa, o conteúdo original dessas
lembranças está condicionado ao grupo a que ela pertence e que a levou a ter,
por exemplo, “medo de escuro” ou cultivou nela o hábito de “subir em árvores”.
As fotografias familiares, quando dispostas em álbuns ou ordenadas em
séries, compõem uma trajetória familiar; nesse processo de composição,
quase sempre vigora um recado destinado às próximas gerações: é preciso
cuidar para que os valores familiares não se percam, para que a “síntese do
grupo possa ser compreendida e eternizada.
A pesquisadora Myriam Moraes Lins de Barros (1989, p. 29-42) ressalta
a formação de uma identidade do grupo familiar através do que chama
“memória comum”. Ela destaca o papel dos avós como “mensageiros da
memória”, responsáveis pela representação da vida familiar, e aponta a
“recorrência das lembranças de infância” em seus discursos. As imagens
construídas por eles partem quase sempre de outras imagens: os retratos
antigos e recentes expostos pela casa.
A confirmação de verdade trazida pelas imagens baseia-se no
aprendizado da leitura das fotografias. Aquelas fotos que
trazem avós, bisavós, tataravôs, enfim, toda uma linha
genealógica mostra, de forma exemplar, como este
aprendizado é realizado e como é possível afirmar a realidade
dessas mesmas imagens. Nos antepassados descobrem-se
traços fisionômicos que estão presentes hoje em alguns dos
seus descendentes (BARROS, 1989, p. 29-42).
Inicialmente, o trabalho de campo revelou que quanto mais antiga é a
referência de infância presente na fotografia de família (um desbotado retrato
do a quando criança, a mãe revelada ainda menina), maior será o seu valor
como relíquia. Desse modo, não seria precipitado afirmar que, na segunda
metade do século XX, embora a primazia das fotos de casamento tenha sido
mantida, as fotos infantis passaram a ganhar cada vez mais espaço no cenário
das imagens familiares.
7
Vale destacar também que, em meados do mesmo culo, entre as
camadas populares, premidas pelas limitações impostas pelos custos da
fotografia, os álbuns de família reuniam as imagens “possíveis” de todos os
eventos. No processo inicial da pesquisa, através da coleta de dados e das
entrevistas, percebemos indícios de que a compactação das meras
fotográficas e um certo barateamento da produção permitiram que as famílias
aumentassem o número de registros fotográficos e favoreceram o surgimento
de um número maior de álbuns, cada vez mais específicos ou individualizados,
registrando de forma mais significativa aniversários, batizados, comunhões e
outros tantos ritos emblemáticos.
Por esse período, os retratos infantis reforçaram, de forma significativa,
seu valor como objetos de decoração e acabaram adquirindo status de “bens
de consumo”, como tão bem atestam as fotografias conhecidas como “sete
carinhas” imagens que requeriam uma produção especial, empenhadas em
mostrar ângulos e expressões diferentes do rosto da mesma criança ou
retratar dois ou mais irmãos. Essas imagens, à luz da leitura dos espaços dos
objetos e das vivências, mostravam crianças bem vestidas, sorrindo, de óculos
escuros ou ainda falando ao telefone (símbolo de modernidade para a época).
Além disso, os rostos ou “carinhas” eram dispostos de forma circular, envoltos
por efeitos que sugeriam uma infância feliz, marcada pela inocência e cercada
de promessas para o futuro.
Susan Sontag, em seu livro Sobre Fotografia (1990), aponta para o fato
de que, nas sociedades industrializadas, o tirar fotos dos filhos, sobretudo
quando pequenos, pode ser visto como indiferença paterna; indícios que levam
à compreensão do rito social de fotografar, considerado, assim, uma forma de
acompanhar a vida do grupo através de imagens, dar testemunho de sua
coesão, garantir a posse imaginária de um passado irreal, comemorar as
conquistas dos indivíduos, reafirmar simbolicamente a continuidade da família.
Nas três coleções estudadas ao longo da pesquisa, foi observada, de
imediato, a existência de um espaço relevante e sempre crescente para as
fotografias da infância, o que justifica que elas tenham sido o nosso ponto de
partida interpretativo. Tais imagens acabam por reforçar o modelo das famílias
8
erguidas na década de 1950, uma trama coletiva que, por força dos “novos
tempos”, impunha à sociedade de então a força dos “novos indivíduos”.
Fotografia 1 - Retrato; 18 x 24 cm; sentido vertical; Estúdio Perrotta; 1955;
coleção de Ocirema Rodrigues Alves
9
Fotografia 2 - Página de álbum; imagens de 1958 e 1959; composta de cinco
retratos 6 X 6 cm, no sentido horizontal; 2 lacunas ou vestígios de fotografias e 1
retrato 13 x 8 cm, no sentido vertical; fotógrafos não identificados; coleção de Ricardo
Fernandes Rendeiro.
Fotografia 3 - Página de álbum; imagem central de 1955, no sentido horizontal;
fotógrafo não identificado; coleção de Ricardo Fernandes Rendeiro.
0
Fotografia 4 - Página de álbum composta de 17 retratos, quatro deles no sentido
horizontal e os demais no sentido vertical; com destaque para as fotografias 3 x 4 cm
e os pequenos retratos de períodos diferentes, alocadas ao redor da foto-brinde de
1955; fotógrafos não identificados; coleção de Ricardo Fernandes Rendeiro.
Na análise da Fotografia 1, do acervo de D. Cira, estudamos um tipo de
retrato conhecido como “sete carinhas”, que, a julgar pelo espaço fotográfico,
remete de pronto a um fotógrafo profissional, habituado aos recursos de
enquadramento e à técnica fotográfica exigida para esse tipo de composição,
com ênfase nas expressões faciais e na circularidade dos sete rostos, todos
compondo uma única foto, mostrando que a imagem foi produzida em estúdio.
Vale destacar as expressões (no sentido horário): no alto, o sorriso alegre, o
terno e a gravata torta; o menino sério atende ao telefone; o menino dorme,
cochila, segurando o próprio rosto; o menino observa atento algo que está
acima dele, admiração e espanto ao sustentar mais uma vez o rosto; na
expressão seguinte, o olhar mais sério e o pedido de silêncio; acima dessa
carinha, a expressão de seriedade é ainda mais contundente; no centro, a
imagem conjuga o sorriso forte com o boné; diferenciadas expressões faciais
marcam o conjunto. O espaço geográfico ou físico, embora não inclua
nenhuma paisagem, não esconde a artificialidade do local.
1
No espaço dos objetos, ressalta o traje elegante (de festa) do retratado,
com destaque para a gravata borboleta e o chapéu, além, é claro, do objeto
“telefone”, ícone da modernidade tecnológica naquele período. Dos atributos
relacionados aos espaços de figuração e das vivências (sorrisos, poses e
gestos) resulta a imagem de um “menino feliz” as “carinhas”, que alternam
gestos adultos com “carinhas infantis”; evidencia-se a “alegria da casa a
representação visual de uma infância valorizada pelo afeto. A foto central
projeta a expressão adulta do menino. Cabe-nos perguntar: que razões
levaram o fotógrafo a escolher essa “carinha para ocupar um lugar de
destaque dentre as outras?
Na Fotografia 2, observamos a página do álbum de família do acervo
fotográfico de Ricardo Fernandes Rendeiro. Tomando a página, toda ela, como
objeto de nossa análise, as seis fotografias ali existentes, juntas, formam um
campo semântico. Nesse caso, de sua leitura é possível apreender, entre
outras informações, a representatividade da criança dentro da família, estando
ela no centro de todas as fotos.
Do espaço geográfico, seguindo a descrição do guardião, sabe-se que
as fotos são todas dos anos de 1958 e 1959. Uma diferença de meses revela
instantes diferentes do mesmo bebê. Em quatro fotografias (parte superior da
página), é possível perceber que foram produzidas no espaço interno de uma
mesma casa. Na parte inferior, duas fotografias aparecem separadas por uma
lacuna (vestígio de foto). Uma delas apresenta o bebê apoiado numa cadeira
de varanda, a outra sugere ter sido feita em um espaço exterior, um quintal ou
a mesma varanda. No espaço da figuração, além do próprio Ricardo
Fernandes Rendeiro (a criança), destacamos a presença de sua avó Julieta
Lopes Rendeiro, identificada na foto que ocupa a parte central da página em
questão.
No espaço das vivências, percebemos que duas fotografias foram
retiradas da página, pressupondo que seguiram outros rumos no circuito
familiar. Teriam sido “roubadas” por outros membros da família? Foram
danificadas por inadvertido manuseio? A entrevista com o responsável pelas
imagens mostrou que o fato representa um mistério até mesmo para ele, que
ao “tomar posse” do álbum, já o encontrou nesse estado.
2
Em outra página da mesma coleção Fotografia 3 é possível
identificar a presença de um retrato de aniversário, espécie de brinde ou foto-
cartão oferecido aos que compareciam ao evento. Propomos, neste caso, duas
leituras diferentes: uma para a fotografia da menina, feita de forma isolada das
demais, e outra para todo o conjunto formado pela foto da menina e pelos
outros retratos que compõem a página Fotografia 4.
a) Primeira leitura – Fotografia 3
O tamanho da foto (10 x 15 cm), a produção, marcadamente em estúdio
fotográfico, e a composição que reúne a imagem da criança a uma quadrinha
poética caracterizam o espaço fotográfico; a fotografia destaca a data do
aniversário (25/10/1955) e sugere um interessante jogo de contrastes entre
imagem e texto, formando uma única mensagem.
No espaço dos objetos, destacamos uma vez mais a presença do
telefone, recorrente nos retratos infantis produzidos em estúdio; na figuração,
destacamos a menina, cujas franjas e o sorriso sugerem a inocência dos cinco
anos; contudo, esses detalhes são minimizados pelo objeto telefone.
No espaço das vivências, vale destacar a presença dos pais, ausentes
na imagem mas presentes através dos versos: “Da mamãe sou o amor / Do
papai toda a esperança”. Ao transformar a imagem da filha em presente, os
pais consolidam no objeto sua própria memória, projetada como a de pais
modernos e amorosos. A julgar pelo destaque que a foto mereceu (no centro
da página do álbum), era vista como um “mimo” precioso, ao alcance de
poucos. Se o uso do telefone aponta como objeto de certa modernidade,
assinalando a “esperança” quanto ao futuro, o tipo de letra escolhido para
marcar o nome da criança, fonte que lembra as letras usadas em brasões
(diferente das letras da quadrinha) reforça a presença e o peso da tradição no
universo familiar. Indícios de um tempo que procurava conciliar o futuro,
irremediavelmente ligado à idéia de modernidade, com o passado, intimamente
associado à idéia de tradição. Para os padrões da época, quanto o terá
custado produzir e distribuir uma fotografia como essa? Indícios de sofisticação
e investimento na imagem.
b) Segunda leitura – fotografia 04
3
Pelo vs de análise que compreende a página como um todo
(Fotografia 4), identificamos 17 fotografias. Cabe destacar, a partir do canto
superior esquerdo, dois retratos 3 X 4 cm do bisavô do guardião; fotos
diferentes, a julgar pelo detalhe da gravata. Ao lado dessa fotografia, a imagem
de uma tia, na época ainda uma criança, identificada como “irmã de criação”
do seu pai; representada em três repetidos retratos 3 x 4 cm marcados pela
ação do tempo e por uma revelação, um deles assinala a idade que a
menina tinha quando foi fotografada (7 anos). ainda três retratos 3 X 4 cm
do pai de Ricardo; cada um deles aponta o pai do guardião em idades distintas
e mais duas fotos 3 X 4 cm de crianças em idades diferentes, dois irmãos de
Ricardo. que se considerar também a presença de foto-brinde (10 X 5 cm);
um retrato 8 X 6 cm mostrando a família em uma ceia natalina; outro retrato 8
X 6 cm marca uma imagem de lazer familiar; a figuração é desconhecida. Lado
a lado estão as fotos do avô e da avó. A fotografia da avó foi recortada,
evidência de uma possível tentativa de representar a proximidade do casal no
mesmo espaço. Identificamos ainda uma foto horizontal 14 X 9 cm, de bordas
levemente recortadas, e, por último, um retrato 13 X 8 cm do próprio Ricardo à
frente de uma árvore e com uma estrada ao fundo.
Chama a atenção, no processo de edição e reedição, marcante em
quase todos os álbuns de família, que a foto de aniversário assinalada pelo
ano de 1955 (Fotografia 3) esteja rodeada de pequenos retratos de períodos
tão diferentes. Uma das explicações para o fato, apresentada pelo guardião,
era de que o álbum, por si mesmo, representava um objeto valioso, cada
página deveria ter seu espaço físico rigorosamente aproveitado.
Há retratos, rostos repetidos, idades e gerações de parentesco
diferentes; membros da mesma família aparecem espremidos, dividindo
estreito espaço, sugerindo uma certa necessidade de representação. Por quê?
Uma das explicações se sustenta no fato de que as fotografias, na sua maioria
retratos 3 x 4 cm, eram muito populares dentro dos álbuns naquela época,
entre outras razões porque possibilitavam um exercício comparativo entre os
rostos pertencentes à mesma família. Esse desejo se revela ainda maior ao
considerar, sobretudo, que no mesmo grupo familiar havia predominância
4
masculina, sendo o próprio guardião o mais velho dos cinco irmãos
1
.
Curiosamente, a menina da foto de aniversário não pertencia a esse núcleo.
Ela não é reconhecida pelo atual dono do álbum. Os indícios apontam que ela
foi colocada ali pela a do proprietário, a primeira guardiã. Outro detalhe
instigante o os vestígios, lacunas ou buracos, sugestivos de fotografias
substituídas ou, mais de uma vez, “roubadas” do álbum.
Em nosso processo investigativo, descobrimos que muitas dessas fotos
ausentes de seu espaço original formam o que chamamos fragmentos de
álbuns, e é comum que circulem dentro da família das formas mais inusitadas
possíveis, como poderemos observar mais adiante.
2.2 LEMBRAR E NARRAR – A FIGURA DO NARRADOR
É estreita a ligação entre a narrativa e a fotografia. No cenário da nossa
investigação, que se considerar que o próprio álbum de família configura,
como coleção de imagens fotográficas, uma narrativa visual, repleta de
elementos biográficos e alusões ao tempo – passado e presente.
De outra feita, as fotografias deslocadas dos álbuns, como fragmentos
dele ou com vida própria (de produção independente), também são passíveis
de leitura e de seu texto-imagem é possível arrancar ou construir histórias. Mas
ainda uma outra e mais curiosa ligação a fotografia que deflagra a figura
do narrador, toda ela evocação e matéria substancial de lembranças.
Essa ligação estabelece, portanto, três formas de narrativas diferentes:
o álbum que narra pelo conjunto de sua composição; a imagem fotográfica que
sozinha pode se ramificar em histórias e possibilidades de leitura; e a narrativa
que surge estimulada pelas fotografias portadoras de sentido dentro dos
acervos pessoais.
A tradição narrativa acompanha e antecede a todas as fotografias de
família, além de auxiliar no processo de análise da leitura de imagem. Por ela é
possível perceber que um rosto nunca é apenas um rosto, a ausência da pose
1
Retratos 3 x 4, produzidos em estúdios ou por fotógrafos ambulantes, embora tivessem como
finalidade a identificação em documentos, eram (e ainda são) objetos “talismânicos”, presentes
nas carteiras ou pendurados nos espelhos dos automóveis. Sempre à vista, ao alcance dos
olhos, remetem de forma permanente ao universo familiar.
5
muitas vezes é a própria pose, o brinde dos noivos quase sempre vem seguido
de muitas histórias; assim como o batizado, o casamento, a cerimônia de
formatura e o aniversário revelam personagens, representam idéias,
constroem e reconstroem memórias.
Como categoria informacional, a narrativa integra o conjunto de análise,
mas faz mais do que isso: aponta caminhos para o pesquisador, sublinha o
“sentido” dos registros visuais presente no interior dos álbuns e evidencia o
papel construtor da imagem do indivíduo através das fotos de família.
A narração ato fictício ou real é a maneira de se contar
uma história. Fabulando ou não, produz-se uma outra forma
de falar sobre a realidade. [...], discursos variados que, de
acordo com o ponto de vista real ou imaginário carregam
e disseminam preceitos morais, normas, fatos etc. (RIBEIRO,
2005, p. 151-152).
Outras categorias informacionais também são reveladas no processo
inicial de leitura de imagens de arquivos pessoais; são informações essenciais
que dão origem às legendas, tornando possível uma descrição primária a partir
do local, das figuras retratadas, do evento e de sua data. Nesse caso, legendar
a foto de família reforça na imagem a idéia de registro documental. Embora
tenha caráter diverso da documentação escrita habitual, a legenda funciona
como um rastro de memória do evento, sendo apenas mais um (e não o único)
dos elementos que hão de interferir no processo de leitura da fotografia,
exigindo do pesquisador o mesmo esforço de relativização que os outros
elementos analisados.
As entrevistas, cuja proposta inicial era de que fornecessem apenas
consistência no processo de leitura e interpretação das imagens, acabaram
ampliando o campo de análise isso porque suscitaram no colecionador e
guardião da memória familiar o aparecimento de um narrador.
O roteiro das entrevistas foi dividido em duas etapas distintas: no
primeiro momento, os responsáveis pelo acervo responderiam às perguntas
mais objetivas, concentradas nas origens dos álbuns, no seu processo de
edição, na sua trajetória dentro do circuito familiar e na sua guarda e
preservação. No segundo momento, marcado pelo manuseio dos álbuns e das
6
fotografias, o entrevistado teria liberdade de lembrar e narrar o que quisesse,
como quisesse.
Desse modo, ficamos a meio-termo, com uma entrevista semidirigida,
entre a objetividade das perguntas e a subjetividade da memória. Deu-se,
portanto, uma produção generosa na arte da narrativa, produzindo outras
tantas imagens, evocadas pelas fotografias e pontuadas de silêncios, lágrimas,
risos e suspiros, dentro do possível, presentes na transcrição.
Inicialmente optamos por analisar os registros orais de D. Cira, Ricardo
e de Margareth na íntegra e em um único capítulo, como forma de identificar
os acervos a partir de suas especificidades; contudo, por força da articulação
entre as narrativas e as imagens criadas pelos entrevistados, suas lembranças
aparecerão e reaparecerão diluídas nos capítulos.
2.3 AS MARCAS VISÍVEIS DO PASSADO – OS ENTREVISTADOS E SUAS
LEMBRANÇAS
Seria possível afirmar que quem recorda refaz? Quem conta de fato
aumenta um ponto ou a fotografia pode aumentar o que contar?
Ao contrário do que possa parecer, o passado está sempre em
movimento; a ação de lembrar pressupõe que recordar é “refazer o vivido”,
transformar o que foi “a cada uso” (LEITE, 2001, p. 106).
Cada um dos entrevistados ofereceu, a seu modo, uma alternativa
transformadora do passado, cada narrativa obedeceu ao tempo exigido pela
memória individual e cada fotografia possibilitou o surgimento de outras tantas
imagens e de outras tantas histórias.
A mais longa de todas as entrevistas registrou um mosaico de memórias
vividas por uma legítima representante da década de 1950: Ocirema Rodrigues
Alves.
2.3.1 – D. Cira e o relicário de memórias
Fomos recebidos pela guardiã no seu apartamento na Tijuca, bairro do
Rio de Janeiro, cercada de álbuns e relíquias, com imagens minuciosamente
7
selecionadas e disponibilizadas para a entrevista. De prosa fácil e articulada, a
entrevista com D. Cira foi permeada de risos e lágrimas, algumas vezes
interrompida pelo telefone e para um cafezinho.
O meu nome, na certidão, nos documentos, é Ocirema Rodrigues
Alves, um anagrama de Américo; não existe Américo na minha família, mas eu
me chamo Ocirema; meu apelido é Cira, então, eu sou Cira para todo mundo,
um grupo ou outro é que manteve o Ocirema. Tenho 72 anos e dois filhos e
separei então um álbum da minha infância, mas que foi feito eu adulta. Não
adulta, quase adulta. Tenho um álbum do filho mais velho. Um do casamento.
Tenho grupos de fotografias da minha parte profissional, desde o tempo em
que eu entrei no Instituto.
2
De minha infância, primeira comunhão e essas
coisas... Mesmo o meu álbum, o primeiro, fui eu que dei pra minha mãe, tem
uma dedicatória do tamanho de um bonde, que eu fiz pra ela, quando eu tinha
17 anos, 1952, ela mesma montou e colocou as fotografias. Do Alexandre
(meu filho mais velho) não, eu já fiz com as fotos desta máquina de retrato. Ah,
esta máquina de retrato... Nós nos casamos e meu tio tinha dado de
presente uma toalha da Ilha da Madeira aonde ele foi e trouxe; depois, quando
chegou na época do casamento, ele resolveu me dar outro presente e
pegou um dinheiro e botou num
envelope
e nós não tínhamos máquina
fotográfica, nós levamos o dinheiro para Caxambu; fomos de ônibus pra lua-
de-mel e quando chegamos a Caxambu, na parada do ônibus, vimos a
máquina, na lojinha, porque agora tem rodoviária, mas naquele tempo o
tinha... Era uma rua do centro mesmo de Caxambu, perto do parque, o
ônibus parou e nós vimos a máquina
na
lojinha e eu disse para o Alberto: com
o dinheiro do tio Hermínio nós podíamos comprar a máquina e aí compramos.
Essa foi a primeira máquina fotográfica da família e foi comprada na
década de 50, maio de 1958, ela foi comprada dia 25 ou 26 de maio de 1958.
[Emocionada] Por isso é que eu tenho... [Chora...] Eu tinha, ele faleceu agora,
pouco tempo, um tio que gostava de fotografia, então ele era o único da
família que tinha uma máquina, então de vez em quando, o tio Zeca tirava
umas fotos e por isso, eu
que fui trabalhar quando tinha uns dezessete
2
Instituto de Educação, na Rua Mariz e Barros, na Tijuca, Rio de Janeiro; escola de referência
do curso Normal para formação de professores na cidade do Rio de Janeiro.
8
anos, eu tinha as fotos todas que o tio Zeca fotografava e depois eu comprei o
álbum, pra poder organizar essas fotos...
Fotografia 5 - Máquina fotográfica Kapsa, adquirida em 1958; fabricada por D.F.
Vasconcellos – São Paulo – Indústria Brasileira; imagem digitalizada por Rogério
Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de Ocirema Rodrigues Alves.
Guardada numa cristaleira, com o cuidado de quem protege uma
raridade, a câmera fotográfica (Fotografia 5) de D. Cira evidencia o apreço
pela primeira “máquina de tirar retratos da família”, presente de um tio por
quem a colecionadora mantém um grande vínculo afetivo. Objeto de grande
relevância no conjunto de sua coleção, a máquina vai adquirindo, com o
tempo, o status de relíquia, emblema do efetivo começo de sua vida de
casada.
Da apresentação à história da primeira máquina fotográfica (Fotografia
5) percebemos de imediato que as memórias de D. Cira transitariam entre o
espaço doméstico e a vida profissional, duas memórias distintas originando
uma só, permeada de afeto e referências familiares.
“Essa foi a primeira máquina fotográfica da família [...] foi comprada em
maio de 58, no dia 25 ou 26 de maio de 58.” Precisa na data, a guardiã
conjuga a emoção da viagem, a escolha de comum acordo com o marido pela
9
máquina, provavelmente o primeiro bem adquirido após o casamento, o
simbolismo do presente, tudo é parte de sua rememoração. Sua preocupação
com os detalhes faz surgir um relicário de lembranças, sobre o qual é possível
vislumbrar os “quadros sociais do passado”, os mesmos que, segundo Ecléa
Bosi (2004, p. 424), com suas “moradias, roupas, costumes e sentimentos”,
são capazes de reconstruir um período, além de revelar a “natureza íntima da
família”.
Vamos calcular aqui as idades das fotografias... Eu quero primeiro
mostrar as da minha infância, mas isso aqui foi em... Quarenta e? Ah, tem
legenda: lembrança da minha primeira comunhão. Essa aqui sou eu, e foi
engraçado que o Matheus, meu neto, disse assim: ‘Ih vó! É igual à Dafne!’
Dafne é minha neta, e eu disse, ‘Não sei, não...’ Tem essas aqui, eu
pequenina de anjo; nessa, eu de cigana, eu adorava carnaval, essas tranças
são postiças, eu aluguei para poder sair de cigana...
Do inventário de suas imagens, linearmente separadas para a
entrevista, retiramos substância para entender o “tempo cíclico”; os valores
familiares percorrendo o caminho de várias gerações, “a noção do tempo que
se repete”, marcando lugar na grande família social (BARROS, 1989, p. 29-
42). A despeito da ordenada seleção de imagens, as memórias de D. Cira
aparecem e reaparecem como peças de encaixe, alinhadas apenas pelo afeto.
Essas foram tiradas num estúdio fotográfico, um estúdio da Rua
Haddock Lobo que acabou uns oito anos atrás, o “Rio Foto”. Depois eu vou
achar a que estou com minha mãe, minha mãe e eu fantasiadas, você precisa
ver... Oh, essa aqui era uma professora que eu tinha no meu bairro que
dava aula de piano, Dona E. I. C. e no fim do ano ela fazia uma audição de
alunos, então somos s com ela, na sala dela, depois da apresentação. Nós
três (aponta a foto com as amigas) morávamos na mesma rua, éramos amigas
de infância... E esse uniforme... Ah, antigamente os colégios particulares
tinham esse uniforme formal como se fosse uma farda, tinha uns galões, era
uma escolinha qualquer do Estácio... Eu nasci no Estácio. Eu tenho essas
fotos aqui de “sete carinhas”... [Fotografia 1] Esse aqui é o meu primo, eu
deixei essas fotos separadas porque meu primo ele nasceu no dia em que eu
0
me formei, no dia da minha missa de formatura, eu tinha dezoito anos quando
ele nasceu, então essa fotografia é de 55.
“Ele nasceu no dia em que eu me formei.” A memória familiar erguida
pela guardiã percorre o caminho das associações e é sustentada pelos marcos
divisores (no caso, nascimento e formatura) que servem para referenciar a vida
de um e de outro membro da família.
Esse tipo de foto, as “sete carinhas” era muito comum. O Alexandre
tem, o André tem [...]. O estúdio deve ser o Perrotta, a minha família fazia as
fotografias todas no Perrotta, na Cinelândia...
3
Talvez tenha no carimbo...
Não, essa é de outro estúdio na Carioca, mas as do Alexandre são, estão
no quarto, na parede. E isso aqui deve ser da década de 50, isso, o ano é 51,
isso é minha formatura no curso de Teoria Musical da Escola Nacional de
Música. Essa igreja é a Igreja da Lapa, deixa ver, é, mas aqui tem São
Sebastião, mas não é a dos Capuchinhos, não, eu acho que é a Igreja da Lapa
mesmo, em frente à Escola Nacional de Música, no final do Passeio. Isso aqui
é a Escola Nacional de Música, é o palco, isso aqui é a colação de grau, eu
estou com o diploma na mão. Isso aqui são flores, são lírios e essa aqui é D.
Roberta, do curso de Teoria Musical. Aqui, todas as turmas reunidas da Escola
de Música. É, se usava muito chapéu, então essas fotos são meio que
avulsas, mas são da mesma década. Agora tem a parte profissional. Estão
todas separadas por assunto. Essa aqui é de quando eu entrei no Instituto,
com 13 anos, em 48, isso aqui deve ser 52. Essa aqui é da minha formatura de
ginásio, no Instituto de Educação. E o baile foi no ginásio, enfeitaram as
barras, botaram flores nas barras, é, é a minha turma. Essa colega aqui não foi
professora, ela é poeta.
D. Cira tem lembranças revestidas de idades e números, lembranças
que nomeiam, acentuam e detalham os fatos; camadas sucessivas de
memórias o desencadeadas pelo manusear de suas fotografias, a da
infância, a do trabalho e a da formação escolar. Com a naturalidade que marca
a arte da narrativa, as histórias vão sendo gravadas na memória do ouvinte, “a
experiência do narrador” é assimilada pelas imagens que ele cria, o que sugere
3
Mais adiante, no processo de digitalização das imagens, identificamos em outras fotografias
uma referência ao estúdio “Foto Perrotta Rio”, situado, naquele período, na Rua da Carioca, 55
– 1º. Andar – Rio.
1
que a mesma lembrança já foi contada e será recontada outras tantas vezes
(BENJAMIN, 1994, p. 204).
“Essa colega aqui o foi professora, ela é poeta”. Cabe-nos perguntar:
teria sido poeta desde então? “Professora” e “poeta”, podemos vislumbrar
nessas palavras duas formas distintas de realização e de valor social? Duas
lembranças diferentes, interferindo na composição memorialista da guardiã. No
tecido dessas considerações, compreendemos que a fotografia é o que
sustenta esse “narrar”, suas imagens suscitam na guardiã um passeio pelos
tempos idos, a possibilidade de re-visitar os seus, partindo do “hoje”, do que
eles significam para ela no presente.
52 anos que a minha turma do Instituto de Educação se encontra,
este ano eu não fui porque tinha operado catarata, mas eu paguei o almoço
e eles se reuniram, todo ano minha turma se reúne, todo ano, pode ser com
dez, quinze ou vinte pessoas presentes, depois você vai ver as fotos da minha
turma... Essa é do ginásio, deve ser de 52; não, é antes, de 51, e essas aqui
são de quando eu terminei o normal, uma foto na brincadeira e outra... Essas
aqui são fotos de um fotógrafo profissional que foi no Instituto para tirar de
todas as turmas. As turmas iam lá e faziam bagunça... Foi bom que eu lembrei
de tanta gente. Bom, são duas fotos da mesma ocasião, a turma, uma mais
tradicional e outra de brincadeira. Aqui são três (mostra duas fotos iguais da
turma). Essa eu nem sei porque é que eu tenho, acho que é uma prova do
fotógrafo e eu fiquei com uma a mais. Olha as tranças, a Noraide usava umas
tranças lindas... Essa menina também, essa eu não lembro mais o nome
dela, lembro de algumas... A minha turma era 1311, eu acho... Eu? Estou aqui,
essa era a minha colega, a Vilma, era do normal, eu continuei com a Vilma, as
outras se separaram, olha a Oneide... Ah, essa aqui eu fui reencontrar num
encontro de casais da Igreja, Alice, com o marido e depois... Bom, essa é a
minha colação de grau. Essa foto é a que Alberto pegou e mostrou ao
Matheus, olha aqui como era sua avó...
D. Cira elege, em meio às imagens do seu tempo de Instituto, algumas
fotografias que marcam o fim do curso Normal no ano de 1954.
2
Fotografia 6 - Retrato; 24 x 18 cm; sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; 1954; Cerimônia de colação de grau do curso normal, Teatro Municipal
do Rio de Janeiro; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
No espaço fotográfico, a imagem apresentada na Fotografia 6 revela
um retrato (24 x 18 cm); considerando o espaço geográfico, podemos afirmar
que o retrato foi produzido no ano de 1954, no espaço interno do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro; a lógica no espaço dos objetos compreende a
“colação de grau”: as becas, o relógio, a mancha na parede, a ponta de um
armário e de uma cadeira e o retrato do presidente Getúlio Vargas.
O espaço da figuração aponta a presença de 23 mulheres, identificadas
como formandas, e do próprio Getúlio, acentuado no espaço dos objetos como
um retrato que marca uma “imagem a mais”.
No espaço da vivência, seguindo o atributo cultural, a imagem sintetiza
o ato solene da colação. Expressões mais rias do que sorridentes perfilam a
formalidade do gesto, criado para eternizar-se na memória, tal como dita a
tradição. Relógio e retrato estão contrapostos, o “poder do tempo e o “poder
no tempo – 1954”.
3
No curso da narrativa, vislumbramos que o princípio da perpetuação é
levantado pelas reminiscências, lembrar para que os acontecimentos sejam
revividos pelas outras gerações: eis o propósito do narrador diante das
imagens da família, fundar a “cadeia da tradição” (BENJAMIN, 1994, p. 204),
traçar paralelos e sintonias que possam ir além dos traços genéticos,
aproximar o presente do passado.
“Todo ano minha turma se reúne” para cada ano uma fotografia, uma
imagem que torne possível a rememoração, a re-significação. Os laços são
mantidos, perpetuados, ainda que revistos pelo tempo presente: “eu continuei
com a Vilma, as outras se separaram”.
Fotografia 7 - Retrato; 24 x 18 cm; sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; 1954; fotografia identificada como “tradicional”; pátio do Instituto de
Educação, Tijuca, Rio de Janeiro; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
A Fotografia 7, um retrato de 24 X 18 cm, do ano de 1954, acentua a
necessidade social de marcar a conclusão do curso. A pose, certamente
repetida por outras tantas turmas, é parte do rito de despedida do Curso
Normal. Na figuração, 33 normalistas dividem a cena com a visualidade do
4
pátio interno do Instituto, com seus balaústres e pilastras, fazendo da própria
instituição um outro personagem em cena.
No campo dos objetos o uniforme se revela a primeira referência visual,
marcado pela gola, pequena gravata, o broche (atestando com três listras o
ano de conclusão), blusa branca de manga comprida, o cinto e, para quebrar a
homogeneidade da cena, o suéter, o sapato e a meia da formanda na primeira
fila. O rito de fotografar e o objeto fotografia estão intimamente relacionados
nessas imagens.
Fotografia 8 - Retrato; 24 x 18 cm; no sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; 1954; fotografia identificada como “de brincadeira”; pátio do Instituto de
Educação, Tijuca, Rio de Janeiro; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
A Fotografia 8, um retrato de 24 x 18 cm, do ano de 1954, revela uma
composição aparentemente desvinculada da pose habitual de uma turma de
normalistas apresentada na imagem anterior. A figuração é composta por 34
normalistas, portando objetos como um espanador, bolsa, pá de lixo, papéis e
canudos, vassouras e pastas, chama a atenção também os óculos e o
uniforme das normalistas com destaque para os cintos, sapatos e meias.
5
No espaço das vivências, destacamos a trama da “brincadeira”, criada,
como foi dito, a partir da narrativa da guardiã, como a foto da pose informal,
memória eleita sem pompa e solenidade. Cabe perguntar: de onde terão saído
todos os objetos presentes na fotografia? Quanto tempo terá sido necessário
para que a fotografia ganhasse a aparência de espontaneidade? Qual das
fotografias terá sido composta primeiro? A “tradicional” ou a de “brincadeira”?
Por que nem todas as alunas das fotografias 7 e 8 estão presentes na
fotografia 6, que traz a imagem da colação?
Fotografia 9 - Retrato; 25 x 20 cm; no sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; 2004; marco do Jubileu de Ouro das “normalistas” de 1954; coleção de
Ocirema Rodrigues Alves.
O retrato apresentado na Fotografia 9 sugere um contraponto entre
presente e passado e revela as novas possibilidades tecnológicas do mundo
virtual, com uma foto de 25 x 24 cm, impressa com recursos gráficos próprios
ao seu tempo, 2004.
Na leitura do espaço das vivências identificamos mais uma vez a
presença da tradição explicitada pelo significado de um “jubileu”, espécie de
celebração de caráter religioso que se expandiu como grandes comemorações
nos meios sociais. Nesse caso, “Jubileu de Ouro” carrega o peso da
6
rememoração de 50 anos de um evento que marcou a vida de todas as
pessoas presentes no retrato.
São duas fotos da mesma ocasião, uma tradicional e uma de
brincadeira” o que apreender dessa proposta de produção fotográfica? A
composição da imagem formal e informal do mesmo grupo acena com duas
possibilidades de leitura do mesmo fato, ambas reveladoras do significado e
sentido social do evento: a valorosa formatura no curso normal do Instituto de
Educação. Duas imagens que possam atender a demandas diferentes de
informação e memória.
Nesse caso, a fotografia tradicional será partilhada com os familiares,
registro da conquista e da elevação social; de outro modo, dispensada desse
compromisso, a fotografia “de brincadeira” poderá ter um destino diferente,
servindo aos interesses das memórias individuais. As integrantes do grupo,
através dessa imagem informal, supostamente “espontânea”, escolhem o
gesto ou a “pose” para serem lembradas pelas demais.
Em outros olhares, a memória da guardiã permite que ela transite em
vários espaços diferentes: “Olha aqui como era a sua avó quem a avó era e
quem a a é, eis o dispositivo de memória deflagrado pela imagem, a
fotografia que evoca a beleza do passado é a mesma que revela a maturidade
e a experiência do presente. Nesse caso, o retrato serve para imprimir
significado e valor à existência.
Essa aqui foi a da missa, que foi no pátio do Instituto, papai, mamãe
(olha o chapéu), meu primos, esses que eu digo que eles estão acima dos
50, a minha avó, Alberto, o tio dele era casado com uma prima minha, o tio
mais novo com a prima mais velha, foi assim que a gente se conheceu, esse é
aquele meu tio que faleceu, essas aqui são amigas de rua, vizinhas, primas da
mamãe, essa é minha prima, essa aqui é minha tia-avó, irmã do meu avô...
Esse é o meu tio que está com 89 anos e essa é minha tia que está com 91. E
essa aqui era a professora do primário da minha mãe, que foi quem orientou a
minha mãe pra me botar no Instituto de Educação pra fazer um curso, ela era
diretora de escola, aquela escola que tem na Gamboa (?), uma enorme, H. de
A. N., e a irmã dela também era diretora de escola, C. de A. N.
4
. Ela era
4
D. Cira revela desde o início da entrevista uma incrível memória para nomes, hábito comum
entre professoras, é capaz de citar o nome completo de quase todas as pessoas amigas que
7
imponente, no começo eu tinha medo dela, porque ela era muito rigorosa,
então eu tinha um pouco de medo da D. Hilda... Ela era muito correta.
“Foi assim que a gente se conheceu” a imagem do “tio mais novo” e
da “prima mais velha” deflagram a lembrança do primeiro encontro com o
marido, a lembrança que abre caminho para outras tantas lembranças, objetos
imagéticos que funcionam como uma janela aberta para o passado. Dito isso,
podemos afirmar que as fotografias são, quase sempre, objetos de melancolia
e, por esse princípio, fotografar é participar da mortalidade, da vulnerabilidade
e da mutabilidade de pessoas e fatos (SONTAG, 2004, p. 26). Contudo, assim
como cortar uma fatia da realidade ou “congelá-la” pode aplacar a dor
provocada pela ausência, pela perda dos que foram “levados pelo tempo”,
também pode testemunhar a dissolução provocada por ele.
“Ela era imponente, no começo eu tinha medo dela [...] ela era muito
rigorosa, ela era muito correta” Benjamin afirma que a sabedoria é o
conselho tecido na substância viva da existência (1994, p. 200); D. Cira
reconhece a imponência e o medo provocado por ela, mas associa o rigor à
correção e à honestidade e, por meio dessa imagem, “aconselha“ e valoriza o
saber de uma época marcada pela distinção social.
As narrativas suscitadas por essa primeira parte da entrevista servem
para acentuar a visão de alguém que viveu na década de 50; as marcas do
passado são, nesse contexto, interpretadas pela ótica de quem esteve presente,
foi, integrou e participou de um determinado tempo. As pistas que ora
investigamos foram deixadas por ela mesma, sua construção memorialista é
erguida como quem monta um relicário, cada peça que merecer um estudo
detalhado para ser integrada ao conjunto de sua coleção. Cabe lembrar que
outras tantas imagens e falas de D. Cira serão retomadas no curso da pesquisa.
2.3.2 Ricardo – a paixão e o ofício no cenário da fotografia
Entrevistamos Ricardo Fernandes Rendeiro, 49 anos, em sua casa, no
Encantado, bairro do Rio de Janeiro. Industriário por profissão, Ricardo
transformou a fotografia em seu segundo ofício, sendo muito requisitado como
identifica nas fotografias, espaço que se estende para além dos familiares.
8
fotógrafo nos fins de semana. Ao contrário da entrevista anterior, as
lembranças de Ricardo foram levantadas mais lentamente. O mais velho de
cinco irmãos, sério e muito tímido, pouco à vontade na pele de entrevistado e
mais acostumado a se “proteger” através da câmera fotográfica, o guardião foi
gradativamente construindo a sua rememoração.
Eu tenho este álbum muito tempo, este álbum foi do meu avô. Em
1970, ele estava internado numa clínica, nós não morávamos com ele,
morávamos perto, eu, minha mãe e meus irmãos (o meu pai não estava
mais conosco) e a casa dele pegou fogo, nós fomos avisados pela enteada
dele... Meu pai ficou sabendo e eu fui até com ele, na casa do meu avô,
para ver o que a gente conseguia salvar do incêndio, na verdade fomos pra
ver o que tinha sobrado. Por essa época, meu pai estava separado da
minha mãe, mas ele me chamou e eu fui a com ele. Meu pai foi ver o que
tinha restado e eu fui direto no local onde estava guardado o álbum, ele ficava
num lugar de guardar livros, numa estante e eu peguei o álbum... Eu também
peguei alguns livros, poucos livros, mas a minha preocupação era “pegar” o
álbum que tinha a história da família, o retrato dos meus avós, meus bisavós,
tios... Eu conheci poucos, alguns tinham falecido, mas eu queria guardar...
Eu tinha 15 anos nessa época, eu sou de 58, eu estou com 49, mas eu
conhecia aquele álbum, eu sabia onde estava guardado, de vez em quando eu
ia à casa do meu avô e via o álbum... Eu resgatei mesmo aquele álbum, foi a
única coisa que eu peguei da casa do meu avô. O meu pai pegou algumas
outras coisas, levou com ele, mas o álbum ele não se interessou em levar.
As imagens presentes nos álbuns de família podem servir como
orientação para a memória familiar, as fotografias expostas nesse cenário são
evidências de um grande investimento emocional e afetivo. Das primeiras
informações apreendidas na entrevista com Ricardo, predomina a relevância
do sentimento de “coesão e de “pertença àquela comunidade afetiva que
denominamos família” (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 457-459). De suas
lembranças, sobressai o desejo de “tutela” das imagens – “a minha
preocupação era pegar o álbum” –; investida nesse desejo está a intenção de
possuir o objeto álbum e, através dele, manter o vínculo com os familiares,
perpetuá-los.
9
“Foi a única coisa que eu peguei da casa do meu avô” é o valor
emprestado à peça o elemento capaz de transformá-la em relíquia; “pegar”,
“guardar”, “salvar”, “resgatar”, recuperar o que por direito é seu, sua identidade,
sua ascendência, seu passado.
Eu sempre fui desde pequeno ligado à fotografia, sempre gostei,
sempre li sobre o assunto, então a fotografia tem assim um valor referencial
mais alto do que as outras coisas, pelo menos pra mim. Foi por esse motivo
que, quando eu entrei na casa do meu avô, eu entrei pensando se o álbum
estava em condições ou se tinha queimado, eu também resgatei junto com
esse álbum uma outra fotografia que estava numa moldura; era do meu a e
da minha avó essa fotografia foi mais prejudicada pelo fogo, mesmo assim
eu trouxe pra casa. Estou até preocupado, porque andei procurando essa foto,
mas não encontrei...
É possível perguntar: que motivações teriam originado esse interesse
pela fotografia? Como se inicia a “carreira” de um guardião da memória
familiar? Partindo dessas questões, não seria equivocado pressupor que
“significados subjetivos” podem desencadear esse processo de busca e
pesquisa” por referências; em especial, nos momentos da vida em que o
adolescente ou o adulto procura “refazer o convívio com os familiares”
(BARROS, 1989, p. 29).
que se destacar também que não uma idade certa ou específica
pra iniciar a carreira de um guardião de memórias; ela pode começar tarde ou
cedo, conforme o jogo de circunstâncias sociais vigentes em cada grupo ou
para cada membro do clã familiar. A separação dos pais, a eminente perda do
avô e o desejo de afirmação, próprio da adolescência, podem ter estimulado a
busca por referências familiares através de imagens. Nesse caso, para
Ricardo, as fotografias de família serviriam como suporte de memória, âncora
afetiva, bússola e orientação.
Naquela época (década de 70), eu tinha curiosidade, lia sobre o
assunto, mas eu não tinha máquina, naquela época a fotografia era cara,
revelar, a própria mera era uma coisa muito cara, hoje em dia é mais
popular, mas eu não tinha nem mesada naquela época, então eu não tinha
nem condições de pagar pela revelação de um filme. [...] Eu salvei esse álbum
0
e levei pra casa da minha mãe, nessa época meu pai o vivia mais com
ela, quando eu casei levei o álbum comigo. [...] O meu pai nunca perguntou,
nunca reclamou por essas fotografias, eu nem sei se ele se lembra que eu
tenho essas fotos. Eu também não falo nada; como ele não pergunta, eu
também não fico fazendo propaganda, não, porque essas fotos, assim, a
pessoa acaba pedindo uma e eu tenho ciúme, que foi o único bem que eu
resgatei, eu não gostaria de perder nenhuma foto, hoje eu posso até fazer uma
cópia pra pessoa, mas é o meu registro histórico. É meu.
“Diz-me o que ocultou e dir-te-ei quem és”, é o que afirma Pierre Nora,
(apud VINCENT, 1992, p. 158); a memória familiar trabalha todo o tempo entre
o dito e o o dito; requer o cuidado de um detentor de segredos, alguém que
seja capaz de elucidar o papel da família na sociedade, aquele que dela mais
sabe também será capaz de melhor defini-la.
”O meu pai nunca perguntou, eu também não falo nada” as razões
que levam Ricardo a ocultar o álbum parecem passar pela ilusão da fotografia
como “prova” existencial; perdê-la pode significar abrir mão do próprio
passado.
“Eu não gostaria de perder nenhuma foto [...] É meu [...] Essas fotos
assim, a pessoa acaba pedindo uma, eu tenho ciúme. [...]” O depoimento
evidencia a posse, o álbum visto como um bem simbólico, parte de um
patrimônio ou, como no dizer de Miriam Moreira Leite (2001, p. 145), o apego no
trato das imagens, revelando que para Ricardo as lembranças das fotografias
podem “substituir as lembranças de pessoas ou acontecimentos”, aquilo que é
mutável pode ser substituído pela “imagem fixa”, uma vez que a fotografia pode
ser revista muitas vezes. A crença na possibilidade de conservar, reter e
aprisionar o tempo pode explicar o ciúme; um tempo em que ele não viveu
exatamente, mas no qual ele pode viver e reviver através dos “seus”.
Bom, eu consegui recuperar algumas fotografias do lado da família do
meu pai, da parte materna eu o tenho muita coisa, o, as fotografias ficam
numa gaveta com a minha tia; tem um tempinho eu pedi uma foto da minha
mãe emprestada, reproduzi e devolvi, foi só pra ter esse registro comigo. Eu fiz
várias cópias dessa fotografia da minha mãe, de quando ela tinha 15 anos, é
uma foto de 1952, ela ainda era solteira, ela estava muito bonita, sorrindo,
1
sentada num jardim. Eu reproduzi essa imagem e fiz uma cópia para cada um
dos meus irmãos. Todo mundo gostou.
Fotografia 10 - Retrato; 20 x 14 cm; no sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; 1952; identificada pelo colecionador como “minha mãe com 15 anos”;
coleção de Ricardo Fernandes Rendeiro.
A leitura da foto identificada como “Minha mãe lança luz sobre o
fascínio da fotografia como objeto de culto e disputa. No espaço fotográfico,
identificamos o gênero retrato, sabendo que foi produzida em cidade do Rio de
Janeiro, em 1952. Por descrição primária do guardião, identificamos no campo
dos objetos alguns elementos próprios de um jardim, entre eles vasos e
árvores; a elegância do traje e a pose sugerindo que ela estivesse sentada
sobre a grama apontam para a intencionalidade do retrato, com destaque para
os brincos e o relógio, marcadamente valorizados pela centralidade da figura.
Além da mãe, a cena compreende na figuração um outro corpo feminino,
vislumbrado pelos pés e parte de um vestido. Como teria sido conduzida essa
composição fotográfica? Com 15 anos em 1952, que expectativas e sonhos
envolviam o sorriso da retratada?
Benjamin afirma que cada um de nós é capaz de perceber que uma
imagem, uma escultura e principalmente um edifício “são mais facilmente
2
visíveis na fotografia que na realidade”, implícito nesse pensamento está o
valor do culto à imagem; dentro do mesmo princípio, afirma também que, com
o “aperfeiçoamento das técnicas de reprodução”, não podemos vê-la (a
fotografia) como uma criação individual, sendo ela “coletiva”, e, assim,
“precisamos diminuí-la para que nos apoderemos dela” (BENJAMIN, 1994, p.
104). No cenário das fotografias do guardião, o que parece único e individual
precisa ser repartido (de forma por ele determinada) e visto por todos para
ganhar sentido e significado.
“Eu pedi uma foto da minha mãe emprestada, reproduzi e devolvi, foi
pra ter esse registro comigo.” Por essas considerações entendemos que a
imagem da mãe foi “apoderada” por Ricardo; é possível vê-la (ae) melhor e
mais nitidamente através da fotografia e, uma vez reproduzida e devolvida à
sua origem, essa imagem pode ser transformada em objeto-presente,
reconhecendo que todos os irmãos, mais ou menos do que ele, também
devotarão a ela um valor de culto e de relíquia.
O entrevistado Ricardo, que se deixa revelar aos poucos nesse cenário
de lembranças, personifica o guardião por excelência; suas memórias revelam
que o colecionador deu origem ao fotógrafo. É ele o elemento que reconhece o
“valor” de uma fotografia e por isso se mostra capaz de zelar pela memória
familiar. A análise estimulada por sua atuação memorialista reaparece no
capítulo Memória e Coleção, promovendo a investigação sobre os meandros
da guarda e da preservação da memória familiar.
2.3.3 Margareth e o exercício de lembrar
Margareth Martins Amorim, moradora do bairro da Tijuca, no Rio de
Janeiro, é cientista social por formação, mãe, esposa, irmã e filha a maior parte
do tempo. A entrevistada nos procurou no icio da pesquisa, disponibilizando um
pequeno número de fotografias de seu acervo pessoal com imagens produzidas
na década de 1950. Como não se tratava de um álbum de falia completo e sim
de fragmentos de álbum, seis imagens de casamento e quatro de carnaval,
acreditamos inicialmente que o material oferecido o pudesse ser avaliado pelo
conjunto, oferecendo, portanto, poucas possibilidades de análise e caminhos
3
investigativos ledo engano. O estudo das imagens cedidas por Margareth feito
inicialmente de forma isolada e depois acrescido de seu depoimento, apontou a
dimensão dos perigos do pesquisador em uma análise precipitada.
Quando vo me falou da sua pesquisa eu fui atrás de umas fotos que
eu tinha guardado comigo, certa de que elas serviriam para você. Não são
muitas, não, mas meus pais se casaram em 1956 e as fotos são muito legais,
típicas mesmo do período. Recentemente minha mãe ficou doente, está com a
memória um pouco alterada... Eu até levei as fotos pra ela e pedi que ela
falasse sobre elas... Ela se recorda de coisas do passado com mais facilidade
do que das coisas do presente. Então, as fotos funcionam assim como um
bom exercício de memória... E ela estava tão bonita nas fotos... 'Eu mostro a
fotografia e pergunto: ‘Aqui, mãe, como foi essa fotografia? Você lembra de
quando tirou esse retrato?’
Das primeiras observações de Margareth fazemos ponte para o
pensamento de Benjamin. No clássico A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica (1994, p. 168), predomina um certo pesar do autor no
que tange à perda da “experiência da aura”, fato provocado pela
“reprodutibilidade técnica” por ocasião da “grande indústria”. A fotografia, e
mais adiante o cinema, elementos suscetíveis de reprodução, não ofereceriam
segundo ele, o princípio da “autoridade”, uma vez que estariam sempre sendo
reproduzidos e copiados. Curiosamente, transposta a barreira das dimensões,
a melancolia de Benjamin com a perda da autenticidade da obra se ajusta à
melancolia da filha que tenta “recuperar a aura” e a experiência da mãe
através das fotografias de família.
O exercício de lembrar estaria, assim, marcado pelo medo da morte,
pelas dores da perda, da solidão e da ausência, medos e melancolias cada vez
mais ancorados na sociedade contemporânea.
Você [a mãe] lembra de quando tirou esse retrato? Há que se
considerar que, nos dias de hoje, “tirar retrato” pode ser visto como uma
experiência corriqueira; no entanto, na década de 50, “tirar retrato” era algo
que envolvia um aparato especial, revelava de modo inequívoco a intenção de
registrar um fato, torná-lo ainda mais relevante através de imagens, deixar
visíveis para o futuro as marcas do passado.
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Tem também as fotos do meu pai... Ele adorava carnaval. Herdei isso
dele. Todo ano ele se fantasiava, desfilava no “Bloco das Paulas”, (Fotografia
11), era uma tradição: num dado momento o bloco posava para uma fotografia
oficial da brincadeira, que todo ano tinha um tema e uma fantasia diferente.
Pena eu não ter encontrado todas as fotos dele. Devem estar com a minha
irmã. Era um folião de primeira. É dele também a paixão que eu tenho pelo
Fluminense. Lembro que nós íamos ao Maracanã assistir aos jogos,
religiosamente. Ele também me levava para assistir ao futebol dele com os
amigos, ele não se importava que eu fosse menina e tinha todo cuidado
comigo. Eu lembro que para ir ao banheiro era uma operação de guerra, ele
ficava tomando conta da porta, essas coisas, mas fazia questão que eu o
acompanhasse. Eu lembrei de tudo isso quando comecei a selecionar as fotos.
Fotografia 11 - Retrato; 25 x 20 cm; sentido horizontal; fotógrafo profissional não
identificado; data aproximada: 1956; identificada pela colecionadora como “a foto
tradicional de carnaval do meu pai”; coleção de Margareth Martins Amorim.
Na Fotografia 11, um retrato de 25 X 20 cm, de fotógrafo não
reconhecido, produzida em 1956, identificamos um bloco de carnaval
denominado “As Paulas”, grupo ou pequena agremiação carnavalesca do qual
o pai fazia parte.
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No espaço dos objetos ressaltam, na leitura: a fantasia, supostamente
um vestido, acompanhado de acessórios como chapéu, sapato e meia, além
de relógios e óculos. Instrumentos variados (alguns identificados, outros não)
se insinuam dentro da imagem: pandeiro, tambor (grande e pequeno), bumbo,
sino e até uma frigideira. Brasão, flâmula ou alegoria ocupa a parte central da
imagem como uma apresentação formal do grupo. No espaço da figuração
contamos 28 integrantes, um deles, com a fantasia de cor diferente (?),
sustenta o nome do bloco. Quem sabe o líder?
No espaço das vivências, chama nossa atenção a visível organização
do bloco carnavalesco, a distribuição dos instrumentos entre os integrantes é
evidência de que havia papéis diferentes a desempenhar no conjunto; a
presença de 28 homens, uniformemente fantasiados, associada aos símbolos
apresentados na alegoria: luvas, cartola e batuta reforçam o caráter masculino
da brincadeira levada a sério. Tamanha organização e simbolismo são sinais
evidentes de tradição; nesse caso, a tradição do carnaval.
“Ele adorava carnaval. Herdei isso dele.” Pollak afirma que uma
permanente interação entre o “vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido”
(1989, p. 3-15). Na raiz do aprendizado de Margareth encontramos a
experiência vivida com o pai, e, na raiz do que foi transmitido a ela por ele e
por outros membros da família, antevemos as imagens fotográficas e as
narrativas deflagradas por elas. De todo modo, o que está em jogo na memória
é o “sentido da identidade individual e do grupo”, um sentido que possibilite
colorir o passado com as cores do presente.
“Todo ano tinha um tema e uma fantasia diferente.” Diferentes acervos
de fotografias familiares apontam a tradição do carnaval popular na década de
50 como algo que comportava de forma indissolúvel o registro fotográfico. A
experiência do retrato, sobre a qual voltaremos a falar mais adiante, revela
sobretudo o gosto pela tradição, presente na sociedade do período. Mesmo
que essa tradição (a fantasia) venha revestida de um certo grau de
modernidade (a fotografia). A imagem de todos os anos imprime a sua
distinção em fantasias diferentes; nesse caso, a crônica de uma experiência
coletiva (a festa carnavalesca) converge para a crônica de uma experiência
individual (o álbum de retratos).
6
“Eu lembrei de tudo isso quando comecei a selecionar as fotos.” É fato
que “a alma, o olho e a mão” estão inscritos na prática narrativa, posto que
narrar não é algo que se sustente apenas com a voz (BENJAMIN, 1994, p.
220). O gesto de selecionar, nesse caso, uma “coordenação da alma, do olhar
e da mão”, serve para definir também a narrativa fotográfica.
Outras fotografias e elementos narrativos disponibilizados por Margareth
aparecerão no próximo capítulo, contribuindo de forma consistente para a
análise das imagens de casamento produzidas no pós-guerra brasileiro.
2.4 ANOS DOURADOS – O PASSADO-PRESENTE
Não sei se eu ainda / Te esqueço de fato /
No nosso retrato / Pareço tão linda /
Te ligo ofegante / E digo confissões no gravador / É desconcertante /
Rever o grande amor.
Meus olhos molhados / Insanos, dezembros, /
Mas quando me lembro / São Anos Dourados
Tom Jobim / Chico Buarque
No trabalho de relacionar as imagens pesquisadas ao universo temporal
em que elas foram produzidas, descobrimos que o termo Anos Dourados é, no
mínimo, muito controverso. No Brasil, no que tange ao mundo cultural, a
expressão é comumente usada para designar o período que se estende do
final dos anos quarenta ao final dos anos cinqüenta e, no dizer de Renato
Ortiz, assinala um tempo marcado por uma grande “precariedade tecnológica,
financeira e empresarial” (2006, p. 97). A “improvisação” nos meios culturais,
sobretudo no rádio e na iniciante televisão, apresentava-se como uma
“exigência da época”, o que nos leva a pensar que as saídas adotadas pela
“criatividade” de nossos artistas tenham contribuído para dar ao período a
“aura” de ouro e riqueza que a imaginação pode sustentar e perpetuar na
memória. Dito isso, no caminho que evidencia uma formação memorialista,
podemos situar alguns acontecimentos “dourados por lembranças” e as
imagens que esses eventos produziram na sociedade de então.
No Brasil, entre o período que assinala a primeira Copa do Mundo
realizada depois da Segunda Guerra Mundial (1950) e a inauguração da
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cidade de Brasília, nova capital do país (1960), vislumbramos uma década
marcada por inúmeras e muitas vezes abruptas transformações.
O maior estádio de futebol do planeta havia sido erguido para ver
triunfar a seleção brasileira, mas testemunhou o silêncio e as lágrimas com a
vitória do Uruguai por 2 x 1, em 16 de julho de 1950. No mesmo ano, Assis
Chateaubriand inaugurou a primeira emissora de televisão da América Latina
a TV Tupi –, colocando as imagens geradas por esse meio de comunicação no
cenário da modernidade brasileira.
Em 1951 a campanha “O Petróleo é Nosso” movimentou o país.
Elizabeth Taylor ilustrava a propaganda do sabonete Lever, usado por “nove
entre dez estrelas do cinema”. A morte de Francisco Alves, em 1952, provocou
uma comoção nacional e a produção da primeira pílula anticoncepcional foi
notícia nos jornais. Vanja Orico fez sucesso no filme O Cangaceiro, de Lima
Barreto, premiado em Cannes o ano é 1953. Getúlio Vargas criou a
Petrobras, mas se viu mergulhado em inúmeras crises provocadas pela
crescente oposição. Em 1954, um atentado contra Carlos Lacerda acirrou os
opositores e levou Getúlio ao suicídio, o povo chorou e protestou pelas ruas da
Capital Federal.
“Os cães ladram e a caravana passa”, afirmava “de leve” o colunista
social Ibrahim Sued, ícone do deslumbramento que marcou o ano de 1955. Um
ano em que o Brasil teve três presidentes: Café Filho, Carlos Luz e Nereu
Ramos. O jornalista Davi Nasser fez sucesso com seus inflamados artigos
publicados na revista O Cruzeiro. O filme Juventude Transviada (título no
Brasil) projetou James Dean e a rebeldia da juventude norte-americana se
transformou em modelo para o jovem “moderno” do Brasil.
Em 1956, Juscelino Kubitschek prometeu 50 anos em cinco; a empresa
Novacap vida e avança com o Plano de Metas; Brasília se projeta como
futuro inevitável. Neide Aparecida sorri na TV. Em 1957, graças ao Sputnik, a
URSS dispara na corrida espacial com seu satélite artificial, inaugurando uma
nova era para o planeta. No Brasil, inauguramos a rodovia Rio-Belo Horizonte
no esteio das mudanças provocadas pela indústria automobilística.
Chega de Saudade, na voz de Elizeth Cardoso, na batida de João
Gilberto, entre a melodia do jovem Antônio Carlos Jobim e a poesia de Vinícius
8
de Moraes, reinventava o samba; 1958 marcava o surgimento de uma nova
bossa: a Bossa-Nova. Na Suécia, a seleção brasileira de futebol, que havia
perdido as copas de 50 e 54, surpreende com as pernas tortas de Garrincha e
a disposição do menino Pelé. Orfeu do Carnaval é sucesso em Cannes e em
Hollywood.
Em 1959, o Brasil se rendia aos encantos da diva Brigitte Bardot;
celebrava a vitória na prova máxima do turfe (época de glória para o Jockey
Club) e Maria Esther Bueno consagrava o tênis brasileiro.
A inauguração de Brasília em 1960 serviu para cristalizar a figura de JK
como o “Presidente Bossa-Nova”. A cidade, vista como o eldorado brasileiro,
transformou o velho Distrito Federal no Estado da Guanabara.
Esses fatos, uma vez interpretados de maneira articulada e dispostos de
forma linear, compõem, por assim dizer, uma parte da história da sociedade
brasileira, mas, como imagens fragmentadas, produzidas e reproduzidas no
imaginário popular, como restos e vestígios, adentram o terreno da memória
coletiva e, sensíveis ao tempo, reinventam o passado de forma singular.
Investigar essas “marcas” ou “vestígios do passado em fotografias de
família remete a outras questões, entre elas a de que na contemporaneidade, sob
a aparente ameaça do fim da história, o fim da obra de arte ou a morte do
sujeito”, a procura pelas tradições foi intensificada, um impulso que gerou a
presente “recodificão do passado” e acelerou os discursos de memória do final
do século XX (HUYSSEN, 2000, p. 10). No mesmo período, esse crescente
interesse pelo passado foi evidenciado nos inúmeros monumentos e obras de
arte que foram erguidos, a pretexto de rememorar o Holocausto, traço de uma
memória traumática, edificada entre as fronteiras da lembrança e do
esquecimento. Nesse caso, tomamos o Holocausto apenas como exemplo para
ilustrar a obsessão pela memória e a tensão entre memória oficial e sociedade,
fato que aponta a complexidade do que Huyssen chama rememorão produtiva.
Essa forma de “enquadramento da memória”, através de um trauma ou
de examinar o “mal do passado”, trabalha com a reconstrução dos fatos, as
reações e os sentimentos pessoais e opera sobre o ressentimento, o sentido
da identidade individual e coletiva (POLLAK, 1989, p. 3-15).
9
Não dúvida de que o mundo está sendo musealizado e
que todos nós representamos os nossos papéis nesse
processo. É como se o objetivo fosse conseguir a recordação
total. Trata-se então da fantasia de um arquivista maluco? Ou
há, talvez, algo mais para ser discutido neste desejo de puxar
todos esses vários passados para o presente? Algo que seja,
de fato, específico à estruturação da memória e da
temporalidade de hoje e que não tenha sido experimentado
do mesmo modo nas épocas passadas (HUYSSEN, 2000,
p.15).
Assim, no esteio dessa cultura de memória erguida e consolidada nas
sociedades ocidentais de fim de culo, erguemos (ou reerguemos) no Brasil a
memória dos Anos Dourados. Retomamos suas imagens e seus mbolos, que
“hoje parecem recuperar a aura de novidade; re-significando o antigo como novo.
Como cada lembrança suscita um esquecimento, não seria exagero
afirmar que aplacamos, com a memória dos Anos Dourados, o desconforto
provocado por outras lembranças e imagens sem tanta cor e deslumbramento.
Não por acaso, percebe-se no controverso cenário contemporâneo, do
universo cultural ao político, marcado pela descrença e o ceticismo, o
crescente interesse em “resgatar” o passado, a promessa em “reviver” antigas
tradições e um denotado saudosismo que remete ao suposto otimismo de
antes, conjugando a crença num futuro promissor, sempre associado ao
progresso e à felicidade como solução possível para todos. Pela ótica dessa
cultura de memória, difundida no presente, o passado-presente pode oferecer
mais possibilidades e – de forma paradoxal – mais futuro.
Ao pesquisar a fotografia no cenário da década dourada e o significado
dessas imagens para a sociedade de então, entramos no território da
memória-mítica. uma linha tênue que separa o “passado mítico” e o
passado real; isso ocorre porque fomos seduzidos pela idéia de “reciclar o
passado ou ainda como manifestação do desejo coletivo de “desacelerar o
tempo, uma vez que nossa sensibilidade temporal tem sido constantemente
afetada pela sobrecarga informacional, pela ansiedade e pelo medo”, tão
característicos da contemporaneidade (HUYSSEN, 2000, p. 23).
No Brasil, a rememoração produtiva dos Anos Dourados
(documentários, livros e minisséries) serviu para reforçar o mercado de
memória nacional, reivindicando do passado o que o futuro não nos concedeu.
0
Por outro lado, essa rememoração nos obriga a pensar que os acontecimentos
são produzidos por pessoas, personagens, atores sociais que circulam entre
os lugares, configurando espaços específicos de rememoração – os lugares de
memória e estabelecendo os contornos de um fenômeno que pode ser
compreendido como individual e coletivo.
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,
individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os
acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são
os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”,
ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São
acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou
mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim
das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses
acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os
eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma
pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por
meio da socialização política, ou da socialização histórica,
ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com
determinado passado, tão forte que podemos falar numa
memória quase que herdada (POLLAK, 1992, p. 200-212).
Assim sendo, herdamos as lembranças de um tempo em que, muitas
vezes, não vivemos, mas que foram impressas em nossa memória pelas
imagens produzidas pela família e pela sociedade da qual ela faz parte. Por sua
vez, essa rememoração produtiva estabelece uma rede discursiva entre
personagens políticos e artísticos (retratados pela história ou constrdos no
estímulo de uma memória oficial) e personagens anônimos, cujos rostos e
imagens só saem do anonimato no cenário específico dos álbuns de família. As
fotos do universo familiar cumprem, desse modo, importante papel mediador no
diálogo entre personagens tão diferentes, estabelecendo fronteiras ou nculos
entre o universo blico e o privado, eternizando imagens, identificando grupos
ou expressando valores pelos quais os sujeitos de ontem e de hoje se fazem
representar.
O trabalho de leitura das imagens revelou que, assim como números e
conjuntos de siglas e carimbos registram a nossa identidade civil, além de toda
uma documentação oficial exigida para transitar pelo mundo, também
formatamos em signos, emblemas, tradições, imagens e idéias a nossa
identidade cultural. É através dela que se desenha nossa percepção como
1
sujeito social, é dela que partem nossas principais referências, sejam elas
“tribais” ou “globais”. E se elas falam por nós, por nós também são modeladas,
revelando a dinâmica do homem que cria a si mesmo de forma incessante e
ininterrupta.
Como saber quem somos senão pelo que fazemos ou pelo que
possuímos (patrimônio simbólico acumulado ao longo da vida)? Como saber
quem somos senão pelas idéias que defendemos ou pelas imagens que
criamos de nós mesmos? E que sujeito é esse que se constrói na década de
50 no Brasil? Que papel deseja ocupar na sociedade? Que memórias serão
construídas a partir desse desejo?
Para tanto, vale lembrar que, se hoje a absorção das mudanças ocorre
de forma o rápida, assim como a nossa percepção do tempo precisa
acompanhar o ritmo intenso das informações, evitando que nos tornemos
excluídos, o espaço ocupado pelo homem da cada de 50 também exigia
dele habilidades e aptidões especiais, entre elas um certo talento para ser
retratado como moderno e visto como tal.
Stuart Hall (1998, p. 11-12) defende que a industrialização e o consumo
em massa provocaram, na segunda metade do século XX, o surgimento de um
outro sujeito – o sociológico.
Essa noção de sujeito trouxe em seu bojo a complexidade frente ao
mundo moderno, às exigências da vida na metrópole, do “viver junto”,
depender. Essa noção se configura a partir de valores, sentidos, símbolos, o
mundo cultural formado de forma interativa; desse modo, o “eu real” é
constantemente modificado pelo diálogo com os “mundos exteriores”, “o eu”
versus “a sociedade”, erguido entre o “espaço pessoal” e o “espaço publico”
forjando a existência de partes – “partes de nós”.
Essa noção de sujeito serve sobremaneira à compreensão da realidade
sociológica da década de 1950. Nela, sob o signo da esperança, as camadas
médias da população viviam os impasses de um capitalismo tardio, o desejo
de modernidade como apropriação de identidade e a projeção memorialista do
presente-passado como passaporte para o futuro.
O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades
culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus
significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui
para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares
2
objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A
identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora
médica, sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis
(HALL, 1998, p. 11-12).
A partir dessa base conceitual, podemos afirmar que, na década de
1950, a fotografia imprimiu o rosto do homem moderno, ainda que no Brasil
essa modernidade fosse tardia, estimulada pelo sonho de um progresso rápido
e de modernização. A identidade cultural no pós-guerra brasileiro forjou um
retrato em branco e preto, colorido de esperanças e promessa de realizações.
No Brasil, o sujeito sociológico de que falamos não foi desenhado ao
acaso; sua figura surge de uma “sociedade complexa”, na qual “a divisão social
do trabalho e a distribuição de riquezas delineiam categorias sociais
distinguíveis”, mantendo no entanto uma “heterogeneidade cultural”, com uma
“pluralidade de tradições” (VELHO, 2004, p. 16).
As transformações econômicas e as mudanças na sociedade desse
período estão vinculadas à mobilidade social o movimento dos indivíduos
entre grupos ou classes sociais –; nesse contexto, cabe situar a relevância de
camadas médias da população e seu papel como produtora de imagens e
como cronista de si mesma (JOHNSON, 1997, p. 37).
Considerando o período a que se refere à pesquisa, não é impreciso
afirmar que essas camadas médias da população eram basicamente formadas
por indivíduos em processo de ascensão social, reconhecidos por possuir
alguma mobilidade e alto grau de consumo. Além desses fatores, a
identificação desse grupo está atrelada a comportamentos, atitudes, valores,
todos norteados por um eixo central – a família.
Entre as imagens institucionais mais fortes na constituição do sujeito
sociológico da década de 50 está a família. Como instituição social, é definida
pelo que se espera dela “reproduzir e socializar os jovens, regular o
comportamento social, agir como grande centro de trabalho produtivo, proteger
os filhos e proporcionar apoio emocional aos adultos”; embora varie em suas
características estruturais em muitas sociedades, suas funções “são
razoavelmente constantes e quase universais” (JOHNSON, 1997, p. 107).
3
É esse o sujeito de que falamos, afetado diretamente pelas idéias
familiares, sobre o qual repousavam grandes expectativas, entre elas a de que
assumisse “papéis, responsabilidades e deveres de acordo com sexo e idade”,
da sua relação com outros grupos, individualidades e hierarquias (VELHO,
2004, p. 49).
Para o sujeito “moderno” retratado nas imagens produzidas nos Anos
Dourados, o poder assumia a forma de autoridade, o que, por sua vez, vinha
associada à “ocupação de um dado status social”, o “poder-sobre” (JOHNSON,
1997, p. 177). Influenciar pessoas através de uma imagem moderna, legitimar
seus sonhos com uma crença inabalável no futuro, projetar-se através da
interação com outros grupos e indivíduos; dessa atuação, repleta de
movimento e dinamismo, emergem as fotografias familiares que marcarão para
sempre os álbuns de família.
A construção da identidade desse sujeito sociológico, com todas as
suas variáveis, estava profundamente vinculada à idéia de trabalho, de grupo,
de religião e de pertencimento. Cada um desses núcleos identitários possui um
conjunto de ritos, exigindo desse mesmo sujeito constante adequação social
projeção. Assim, que imagens serão produzidas por esses sujeitos? Os
retratos familiares indicam que só quem tem o que rememorar pode pertencer.
Não por acaso, a partir da década de 80 inúmeras obras foram
lançadas trazendo à tona os costumes, as idéias e a visualidade desta época;
entre elas a minissérie Anos Dourados de Gilberto Braga, (1986) e os
documentários: Coisa Mais Linda de Paulo Thiago, (2005) e Vinícius de Miguel
Farias Jr, (2005). Em todos eles, identificamos o predomínio do retrato de uma
época historicamente conhecida pela industrialização e pelos novos hábitos de
consumo da sociedade brasileira. Assim, como um reflexo indireto desse
rememorar, as fotografias de família produzidas durante o mesmo período,
passaram a ganhar “status” e relevo no conjunto de imagens familiares.
4
3 MEMÓRIA E FOTOGRAFIA O MUNDO-IMAGEM
Nunca olhamos apenas uma coisa,
estamos sempre olhando para as relações
entre as coisas e nós mesmos
John Berger
No filme A Camareira do Titanic (1997), de Bigas Luna, Olivier Martinez
é um operário que vence uma corrida entre funcionários da fábrica em que
trabalha. Como prêmio, recebe uma passagem para a cidade de Southampton,
a fim de assistir ao lançamento do navio Titanic ao mar. No hotel em que fica
hospedado, conhece uma mulher que se diz chamar Marie e se apresenta
como camareira da embarcação. Ela pede ajuda ao operário, alegando que
não tem onde passar a noite. Assim, longe de sua esposa e de sua casa,
Martinez se envolvido por circunstâncias especiais a dividir um confortável
quarto de hotel com uma linda mulher. Contudo, ao contrário do que seria
previsível, nada acontece entre eles.
Desse encontro inusitado o personagem leva consigo uma fotografia o
retrato da bela Marie. De volta a sua cidade, os amigos exigem que ele conte a
viagem em detalhes, mas não muito que contar. Ou há? Ele mostra a
fotografia da camareira aos companheiros, que não acreditam que nada tenha
acontecido entre eles. Surge a notícia do naufrágio e, inseguro com os
rumores de uma possível traição da esposa enquanto esteve fora, Martinez
olha insistentemente o retrato de Marie. Fascinado pela imagem da camareira
que agora supõe morta, começa a narrar a “verdade” que todos querem ouvir.
E narra, detalhadamente, o romance que não houve. Cada detalhe da narrativa
é alimentado pela fotografia, emblema de uma noite de paixão “memorável”
entre o operário e a mulher desconhecida.
É uma imagem fotográfica, o retrato ampliado de Marie, usado como
cenário no teatro de lembranças de Martinez, o elemento que estimula a
memória mítica em torno da camareira, envolvida no trágico e também mítico
acidente do Titanic. O narrador é, ele mesmo, seduzido pelo que narra, e,
nesse cenário de verdades, mentiras e seduções, o retrato da mulher é a
5
prova, o vestígio ou o documento capaz de sustentar e legitimar as memórias
do personagem.
As lembranças construídas e re-construídas no filme com o estímulo da
fotografia servem para levantar algumas questões: de que maneira os retratos
“suportam a memória? Como as imagens o construídas? Quanto de
representação e simbolismo pode carregar uma fotografia?
Neste capítulo trataremos do jogo de composição que origina as
imagens fotográficas. No esteio dessa análise, investigaremos os retratos de
casamento produzidos no cenário social da década de 1950 imagens
sugestivas de uma “trama” singular, envolvendo as memórias e as fotografias
produzidas dentro do mesmo período.
3.1 A IMAGEM FOTOGRÁFICA
Vilém Flusser (2002, p. 78) chama “imagem” à “superfície significativa”
na qual as idéias se inter-relacionam magicamente. As imagens funcionariam,
portanto, como mediações mágicas entre o homem e o mundo. São idéias com
forma, representações da ausência ou da presença de uma realidade. A
invenção da fotografia (uma imagem técnica) no século XIX é, segundo ele, tão
importante quanto a invenção da escrita.
As imagens tradicionais desembocam nas técnicas e passam
a ser reproduzidas em eterno retorno. E os textos baratos
desembocam nas imagens técnicas para se transformarem
em magia programada. Tudo, atualmente, tende para as
imagens técnicas, são elas a memória eterna de todo
empenho. Todo ato científico, artístico e político visa a
eternizar-se em imagem técnica, visa a ser fotografado,
filmado e videoteipado. Como a imagem técnica é a meta de
todo ato, este deixa de ser histórico, passando a ser um ritual
de magia (FLUSSER, 2002, p. 18).
Para o mesmo autor, a idéia é o elemento constitutivo da imagem e a
marca inicial de sua composição. O que nos leva a pensar na fotografia como
um processo ideológico: imagens preestabelecidas por outras imagens, por
idéias que, por sua vez, o compostas ou formuladas através de “aparelhos
fotográficos”, espécie de brinquedos ou “objetos de jogar” com a capacidade
de traduzir “pensamentos conceituais” em fotografias (2002, p. 77).
6
Desta análise preliminar, avançamos na procura das funções e dos
espaços ocupados pela imagem fotográfica nos meios sociais.
Para tanto, é preciso decifrar as variadas formas de tratamento da
imagem no que tange à distribuição e à circulação da fotografia. Nos casos em
que a imagem é identificada como ícone a fotografia é vista como uma
“reprodução mimética do real”, um conjunto de informações visuais capaz de
funcionar como um espelho do mundo (DUBOIS, 1993, p. 53). Desse modo,
pela ótica de um discurso primário, a fotografia seria a “imitação mais perfeita
da realidade” e produzida como forma de garantir uma cópia do fato, o instante
roubado do real. “Acredite na fotografia”, parece afirmar a imagem ícone.
que se considerar também a concepção da fotografia como um
símbolo, uma “interpretação do real” com uma “realidade interna
transcendente”; uma imagem cheia de digos e sentidos a serem decifrados,
um emblema ou imagem-síntese. Por meio de seus texto e digos, a imagem
fotográfica pode revelar seu caráter ideológico. Como símbolo, a fotografia
afirma, categórica: eu represento.
Outra possibilidade interpretativa, ainda mais ampla, identifica a
fotografia como um índice, concebida como uma “afirmação da existência”; o
traço, a marca e o “depósito de um saber técnico” (DUBOIS, 1993, p. 50). Esse
saber indiciário alude ao “retorno” provocado pelas imagens fotográficas, o
“incômodo” com a presença do referente. Dessa forma, como índice, a imagem
refletiria a pergunta: onde estou na fotografia? O que estou fazendo nela?
Ao seguir esse eixo analítico, identificamos também o potencial da
fotografia como documento. É o caso de perguntar: o que transforma um
objeto em documento? O que seria necessário para transformar o “objeto
fotografia” no “objeto documento”?
O produto da relação entre objetos é o que significa. E essa
significação é circunstancial em favor da virtualidade e da
essência, sempre presentes ao objeto em questão. Os
atributos de prova, testemunho, são, portanto, circunstanciais,
embora sejam as características mais fortes do objeto
transformado em signo de memória e, por fim, documento
(DODEBEI, 2001, p. 65).
Visto assim, devemos considerar o jogo de circunstâncias que se move
em torno da imagem como o elemento capaz de elevar uma fotografia ao
7
status de documento. Nesse jogo residem a “intenção” e o “processo” que a
geraram.
Em um caminho paralelo à análise da imagem como documento, vale
destacar também a compreensão da fotografia como “obra” de ficção. Boris
Kassoy chama a atenção para a “natureza ficcional” da “trama fotográfica”.
Por esse postulado, a fotografia estaria alicerçada em um processo
marcado por um “antes” (a concepção da imagem), um “durante” (a elaboração
técnica do retrato) e um “após” (os usos e aplicações da fotografia) em todas
essas etapas vemos reforçado o caráter de criação e construção fictícia
(KOSSOY, 2007, p. 54).
Uma vez consideradas algumas das principais potencialidades do objeto
fotografia, vale seguir com a investigação no que concerne às imagens
construídas no Brasil do pós-guerra – período no qual pressupomos
consolidar-se o consumo generalizado das imagens fotográficas prenúncio
do “mundo-imagem” que nos transformou a todos em mercado e mercadoria
visual.
3.2 A IMAGEM DE CASAMENTO
Ao fim da Segunda Grande Guerra, o amor estava na visualidade das
telas do Brasil, tanto no cinema com os musicais recém-chegados de
Hollywood como na TV com a telenovela; no centro de quase todas as
tramas encontrávamos um casal apaixonado, eixo de uma possível família que
se iniciava. O amor idealizado nas telas exigia também a construção de uma
imagem ideal e, nesse cenário de idealizações e romances, coube à fotografia
a função de revelar o “belo”, expressar a imagem perfeita do “final feliz”
almejado por todos.
O trabalho de campo revelou que, no universo dos retratos de família,
as imagens de casamento ocupavam espaço para de significativo; uma de
suas funções era emprestar beleza às relações, compondo a melhor aparência
possível da família para a sociedade. O casamento está entre os ritos sociais
mais fotografados em todas as culturas. Durante o evento, as meras
promovem o que Susan Sontag chama “ascensão do valor das aparências”
8
(2004, p. 103). No cenário dessa cerimônia, a realidade não parece ser vista
como o mais importante, mas o “padrão de beleza” que todos os personagens
envolvidos precisam alcançar, em especial a noiva.
As imagens produzidas na ocasião servem, entre outras coisas, para
“tornar blico” um “ato privado”; traçar os limites entre o que seria “lícito” e o
“ilícito”, além de atender à necessidade de “fixar na memória coletiva a
lembrança da cerimônia” (LEITE, 2001, p. 112).
Vestido de noiva, véu, brindes, banquete, vestuário, presentes e
decoração, todos esses objetos e aparatos aparecem revestidos por uma
“aura” com profundo significado social; entre eles, e dos mais representativos,
está o retrato de casamento, produzido para ser a imagem legitimadora da
família diante da sociedade. É, por excelência, o retrato criado para a exibição.
Durante as entrevistas e no estudo dos acervos particulares que nos
foram confiados, as fotografias de casamento foram destacadas das demais
de modo simbólico, despontando como imagens carregadas de mensagens e
de especificidades. Ressaltamos sua presença em todas as famílias e entre
todas as camadas da população, evidência do apreço pelo caráter mágico e
religioso da festa e de sua cerimônia.
Nos dourados anos, até o início dos anos 1960 aproximadamente, o
casamento civil era dissociado da cerimônia religiosa. Assim, para os noivos
tradicionais a união desdobrava-se em dois momentos distintos: o evento no
cartório, na presença de um juiz e de alguns familiares, e a celebração na
igreja com toda a família e os amigos do casal. O casamento civil se realizava
primeiro, dia ou dias antes da cerimônia religiosa. Diferentes, mas não menos
solenes ou simbólicas, as imagens “registradas” nos cartórios funcionavam
como a garantia da lei, expressando a legalidade do ato e o marco identitário
da formação de um novo núcleo como parte da sociedade. Contudo, que se
ressaltar que a certidão de casamento expedida pelo juiz não garantia ao casal
o “direito divino” de consumar o casamento, fato que se dava após as
“bênçãos de Deus”. Em geral, os noivos voltavam para suas antigas casas e
aguardavam a cerimônia religiosa para seguirem juntos como casal.
Dentro da análise dos álbuns, a leitura específica dos retratos de
casamento mereceu um tratamento à parte na pesquisa, mas se tornou de
9
fato reveladora de sentido quando associada à narrativa dos entrevistados. As
lembranças de Margareth apontam algumas especificidades do evento no
período estudado.
Minha mãe não tem muitas fotos de casamento, acho que por conta
mesmo das despesas com o fotógrafo serem muito caras pra eles naquela
época. E o começo da vida deles foi duro. Eu sei de gente dessa época que
tem apenas um ou dois retratos da ocasião, mas não se podia era deixar de ter
um retrato. Eu me lembro de ter perguntado a ela: na hora dessa fotografia
você nem reparou a árvore de natal que aparece aqui? Ela me disse que não e
que nem ela e nem o fotógrafo se incomodaram com aquilo e que, afinal de
contas, as pessoas se casavam em maio ou em dezembro. Hoje até se casam
mais em dezembro, acho que por conta das facilidades financeiras, não sei.
Fotografia 12 – Retrato de casamento; 23 x 17 cm; sentido horizontal; 1958; Rio de
Janeiro; fotógrafo profissional não identificado; coleção de Margareth Martins Amorim.
0
Fotografia 13 – Retrato de casamento; 23 x 17 cm, sentido horizontal; 1958; fotógrafo
não identificado; coleção de Margareth Martins Amorim.
No retrato de casamento apresentado na Fotografia 12, produzido em
1958, identificamos a noiva no espaço interno de uma casa. Compondo um
quadro de objetos representativos estão: uma cortina estampada com folhas,
uma televisão (marca Zenith?), o móvel que a sustenta (cômoda?), um arranjo
de flores (possivelmente palmas), além do vestido da noiva e do buquê.
A noiva ocupa todo o espaço da figuração; sua centralidade na foto,
acentuada pela largura do vestido e pela forma como ele foi destacado, denota
que ela (a noiva) e ele (o vestido) representam a “razão” da fotografia. O olhar
da noiva não fita a câmera, evidência da orientação de um fotógrafo para
compor a pose que deve eternizar ou significar o “grande momento” de sua vida.
A Fotografia 13 estabelece, de pronto, um diálogo com a imagem
anterior. A leitura inicial do espaço fotográfico sugere que tenha sido produzida
no mesmo lugar da Fotografia 12; por causa da cortina acreditamos tratar-se
da mesma sala, vista por outro ângulo. Uma vez mais destacamos a presença
da cortina e das flores (as “palmas” agora aparecem à altura da cabeça dos
noivos). Chama a atenção também a árvore de Natal, cuidadosamente erguida
sobre uma caixa decorada com papel de presente. A árvore foi ornada de
bolas e enfeites; um deles mostra o rosto de Papai Noel, além de pequenos
1
fios e adereços que sugerem “neve”. O vestido da noiva contrasta com o terno
do noivo e a gravata de tecido luminoso. O champanha no canto esquerdo da
foto também representa um elemento de festa.
No espaço das vivências, reconhecemos a pose ou o gesto sugerido
pelo fotógrafo: o noivo vai mesmo beijar a noiva? Te finalizado o gesto?
Ainda que não tenhamos todas as respostas, o sorriso da noiva emblema a
felicidade do momento.
Por outro lado, o olhar de Margareth reflete a curiosidade estimulada
pelos objetos presentes nos retratos de casamento. De algum modo, estranhos
à cena, os noivos eram posicionados nos melhores ângulos da casa, junto a
vasos, plantas e outros elementos ornamentais. As imagens pesquisadas
apontam para omero de fotografias de casamento produzidas no espaço do
“lar”; percebemos através delas que as composições imagéticas nesse cenário
eram sempre mais usuais e mais numerosas do que as fotografias produzidas
no interior das igrejas, terreno do sagrado e até então mais reservado, um
espaço não tão devassado pelos fotógrafos da época.
Essa é uma das minhas fotos preferidas, a mãe e o pai sentados na
cama olhando os presentes. Olha a expressão dela! Eu brinco com ela e digo
“acho que você não estava muito contente com o que ganhou”, mas ela disse
que para tirar esse retrato o fotógrafo havia sentado na janela do quarto e ela
não sabia se sorria ou o quê, achando que o homem ia cair de lá. Era uma
fotografia muito comum, os noivos admirando os presentes espalhados sobre
a cama do casal (Fotografia 14).
2
Fotografia 14 – Retrato de casamento; 23 X 17 cm; sentido horizontal; 1958; fotógrafo
não identificado; coleção de Margareth Martins Amorim.
O espaço fotográfico do retrato de casamento apontado como uma das
“fotos preferidas” de Margareth mostra um enquadramento que apresenta
alguma inclinação; a fotografia sugere mesmo um movimento à esquerda de
quem vê, a visão do fotógrafo que tomamos como nossa.
No campo dos objetos, somos levados a identificar inicialmente os
presentes sobre a cama, entre eles um faqueiro, um aparelho de café, alguns
copos e outros objetos não identificados, sugeridos na cena como objetos
“quebráveis”, dada a presença da “palha” – elemento que servia para impedir o
atrito e a quebra no empacotamento de louças. ainda que se ressaltar uma
mesinha ao lado da cama com vaso, cinzeiro (?) e “toalhinha de mesa”; porta e
maçaneta também são identificados, além do vestido da noiva e o terno do
noivo, dessa vez destacando-se pelo detalhe do lenço branco.
O destaque da foto está nas os unidas do casal. Sinal de
cumplicidade e aproximação frente às exigências do ritual dos retratos? Os
dois olham e reconhecem os presentes. Outra pose orientada pelo fotógrafo?
Por que dessa vez a noiva não sorri? Segundo a guardiã, a mãe se mostrava
assustada com a posição em que se colocou o fotógrafo naquele momento.
3
Cansaço, estranhamento, expectativa... Que mistérios escondem essas
expressões separadas do tempo presente e recodificadas por ele?
Quando apresenta ou “narra” as imagens do casamento dos pais,
Margareth o faz de maneira tão precisa e delicada que parece ter estado
presente ao evento; desse modo, antecipa-se ao futuro, guardando as
menores palavras e gestos que não foram seus, experiência adquirida pela
narrativa de outra pessoa, a “lembrança eleita”, o retrato dentro do retrato,
deleite para os seus olhos, remédio para o esquecimento e a enfermidade que
marcam a existência da mãe no presente.
De outra feita, em entrevista com D. Cira, ao narrar a participação do
fotógrafo na composição de suas fotografias e na riqueza de detalhes com que
pontua suas lembranças, reforçamos a percepção do aparato visual exigido
pela construção memorialista dos casamentos de então.
Eu me casei em maio, a minha mãe fazia anos no dia 23 de maio, então
ela queria que a gente se casasse no dia do aniversário dela, tanto é que s
nos casamos no civil, no dia 23, na sexta-feira...
“Ela queria que a gente se casasse no dia do aniversário dela...” Dois
pesos para marcar o simbolismo da ocasião, o registro civil e o aniversário da
mãe. Ritos sociais se entrecruzam para impedir ainda mais o esquecimento
exercício de seleção, memória por excelência.
Esse aqui foi o último retrato de solteira, imagina só, o fotógrafo que fez
as fotos de casamento disse assim: você vem um dia aqui porque nós vamos
fazer a última foto de solteira e nós vamos lhe dar de presente... [risos] Eu nem
sei se ainda existe isso hoje em dia... E é essa a foto; eu adorava pois, essas
roupas de bolinha... (Fotografia 15)
4
Fotografia 15 – Retrato; 23 X 30 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios Laffe; coleção de
Ocirema Rodrigues Alves.
A leitura da Fotografia 15 revela o gênero retrato na sua amplitude. A
imagem foi produzida no ano de 1958, em um estúdio fotográfico identificado
como Stúdios Laffe, o mesmo que ficaria responsável pelas fotos de
casamento de D. Cira.
O retrato oferecido como presente aponta, no campo dos objetos, os
brincos, o cordão parcialmente oculto e o vestido com bolinhas, descrito por
ela durante a entrevista como o vestido de pois. No espaço das vivências, a
proposta do retrato, por si mesma, atesta o peso do simbolismo nas ações
demarcadas pela fotografia.
O último retrato de solteira, a última imagem a anteceder o rito do
casamento. O retrato para lembrar aos netos de uma vida “antes” e “depois”. A
fotografia individual, como despedida, antevendo as imagens de conjunto o
par que a partir de agora se constituiria.
Essa foto (Fotografia 16) é a que eu estou com a cara de apavorada,
parece que eu estou sendo condenada... [risos] Com medo do juiz... [risos] Ah,
mas eu acho bonitinho são os chapéus, as roupas eram muito lindas, olha só...
Tudo muito bonito. Essa é a foto tradicional, essa foto andou no porta-
retratos da minha mãe. Foi tirada antes, está vendo? (Fotografia 18) Tanto
5
que esse negócio de que o noivo não pode ver a noiva antes do casamento
não era tão levado a sério, oh, ele está sem aliança, está vendo? A gente
foi ver esse detalhe depois, a minha não aparece por causa do buquê...
Fotografia 16 – Retrato do casamento civil; 23 X 17 cm; sentido horizontal; 1958;
fotógrafo profissional não identificado; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
6
Fotografia 17 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
O retrato de casamento civil (Fotografia 16) configura a solenidade do
gesto que, como prática, antecedia à cerimônia religiosa. No campo dos
objetos da cena fotográfica destacamos uma grande mesa à frente do juiz,
óculos e caneta e o braço de uma cadeira, ricamente trabalhada. Uma cortina
e, possivelmente, uma janela também aparecem ao fundo, terno e gravata
estão presentes em todos os homens da figuração; e o vestido da noiva,
combinado com o chapéu e as luvas. Figuram na imagem os noivos, o juiz,
uma testemunha, a figura de uma mulher próxima ao juiz (uma funcionária do
cartório?); ao fundo, no canto esquerdo da foto, vislumbramos um rosto
masculino.
No espaço das vivências, a caneta na direção dos noivos soleniza o
evento; o juiz, de pé, acima da altura dos noivos, faz representar o poder e a
autoridade que o legalidade ao fato; na elegância dos noivos e da
testemunha, percebemos as referências de sobriedade exigidas pela ocasião.
Os retratos de casamento de D. Cira foram todos apresentados no bojo
de grandes e pequenas lembranças, tal como ocorreu na descrição da
Fotografia 17. Nela, a guardiã aponta a composição de um retrato produzido
no espaço interno da casa, mais precisamente no quarto dos noivos. No
campo dos objetos destacamos a penteadeira, o vidro de perfume e mais um
objeto não identificado, alojado no mesmo espaço. Nesse cenário, véu e
grinalda são valorizados pelo fotógrafo. Na figuração, a noiva se desdobra em
duas imagens; o efeito produzido através do espelho acentua o olhar da noiva
ao fundo. A orientação do fotógrafo insinua a existência de um roteiro na
produção das imagens.
Essas fotos foram feitas em casa para o álbum, e ele chegou não sei
quantas horas antes pra me fotografar. Eu segui as orientações do fotógrafo,
se usava aquela penteadeira, aquele negócio de botar perfume (ri e repete o
gesto), aquele vaporizador. Então ele fez eu tirar uma foto daquelas no banco
da penteadeira (Fotografia 17), tudo muito tradicional, porque os veis de
quarto eram completos: guarda-roupa, guarda-casaca, o guarda-roupa tinha
aquela parte do meio, aquela que ficava de modo geral para a mulher, e o
7
guarda-casaca era aquele do homem, sem a parte do meio, eram duas
portas; a cama, as duas mesinhas, a cômoda e a penteadeira. Isso tudo ficava
socado no quarto.
As fotografias de D. Cira transbordam em imagens superpostas,
formando lembranças em cadeias: “Essa é a foto que eu estou com cara de
apavorada, parece que eu estou sendo condenada, com medo do juiz” a
seriedade do gesto profundamente simbólico para o mundo civil; “Essa é a foto
tradicional” o reconhecimento do que deverá perdurar, fotografia que
pertenceu à mãe e retornou para ela, no circuito que marca o trânsito das
fotografias dentro do grupo familiar (Fotografia 18).
Fotografia 18 – Retrato de casamento; 22 X 30 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
Descrita pela guardiã como a foto tradicional de casamento, a imagem
apresenta no campo dos objetos o arranjo de flores sobre a mesa, a cortina ao
fundo, o buquê, além, é claro, do vestido da noiva, quase sempre o detentor da
maior atenção do fotógrafo.
Os noivos figuram no retrato aparentando seguir orientações precisas
do fotógrafo. Buquê e arranjo de flores aparecem alinhados na mesma direção.
8
A ausência da aliança na mão do noivo denuncia que a foto foi tirada antes da
cerimônia da igreja.
“Esse negócio de que o noivo não pode ver a noiva antes do casamento
não era tão levado a sério” evidência de que a crença popular poderia ser
preterida pelas exigências de produção na composição da imagem; “ele fez eu
tirar uma foto daquelas no banco da penteadeira, porque os móveis de quarto
eram completos” cartório, casa, quarto, os espaços eram definidos pela
tradição, expressa de forma contínua em cada pose para o retrato.
Eu casei na Igreja de Santa Terezinha, ali na Mariz e Barros. Eu fiz a
primeira comunhão lá, me casei e batizei os meninos lá... Na hora do
casamento, tinha aquelas pétalas de rosa, a gente olha e parece tudo
flutuando, que nada, aquilo bate na cabeça da gente, incomoda... [risos] o
tinha essa história de quinze pares de padrinhos e amigos e pessoas que você
daqui a um ano talvez o ver mais; eram tios, pais, os padrinhos. Meus
padrinhos foram papai e mamãe e os do Alberto a mãe dele como o tio.
A orientação religiosa seguida à risca e a essência da família compondo
a imagem do casal diante da sociedade. A supremacia dos laços de sangue e
o peso do compromisso “apadrinhar o casal”, um voto sagrado que garantiria
aos familiares o direito e o dever de acompanhá-los ainda mais, a partir de
então.
Desse relato apreende-se que as fotografias estavam carregadas de
informações, mensagens com destino certo. Imagens do casamento civil eram
criadas para serem projetadas no mundo civil; imagens da casa eram criadas
para o universo do lar; imagens da devoção dos noivos serviam como recado
para o mundo religioso, espaços que exigiam reconhecimento e distinta
separação, embora dissessem respeito ao casal como totalidade. Um discurso
visual capaz de criar uma imagem para cada gesto, definindo com elas os
valores e o papel da família que, naquele momento, marcava seu início como
grupo ou matriz social.
Como o retrato deve tornar pública a união, existe uma
preocupação que não é dos noivos, mas das famílias de
origem, de produzir um espetáculo para ser apreciado por
todos os conhecidos, parentes ou não, para reafirmar que se
realizou um “bom casamento”. O retrato é tirado quando o
casamento é consagrado pelas duas famílias, que muitas
9
vezes ainda são dois ramos da mesma família (LEITE, 2001,
p. 125).
Criação e recriação, a ausência do retrato nesse cenário seria a própria
ausência de memória, indiferença social imperdoável para qualquer casal,
qualquer que fosse a camada social.
0
3.3 RETRATO FAMILIAR – OBJETO DE CONSUMO
A análise dos retratos de casamento serve para contrapor as
lembranças narradas por seus personagens aos campos espaciais capazes de
promover sua leitura. Contudo, vale destacar que a tentativa de
“desmontagem” pede um entendimento do retrato como “gênero fotográfico”.
Nele residiria desde então a luta contra o esquecimento, o desejo de memória
e a intenção de capturar o tempo.
O retrato é, por excelência, uma espécie de “memória voluntária”, a
criação de um “objeto de consumo”, supostamente cheio de certezas, embora
repleto de ambigüidades (KOSSOY, 2007, p. 55).
Esse gênero específico de retrato que investigamos remete à idéia da
fotografia como parte de um processo de identificação. Mas será possível que
o retrato de fato identifique alguém? Não é verdade que as aparências
enganam?
Maurício Lissovsky, na compreensão de um dispositivo analógico de
identificação, afirma:
Mas, de fato, onde freqüentemente se enxerga o paradoxo das
aparências, existe apenas um aparente paradoxo; pois a
identificação o se restringe ao retrato, mas se compõe de
retrato e arquivo e do vocabulário que os liga e dispõe [...]. O
paradoxo se desfaz quando me dou conta que minha “carteira de
identidade” não traz o “meu” retrato, mas o retrato de um cidao
qualquer que, neste caso, sou eu (LISSOVSKY, 1993, p. 68).
Repleto de aparências e ambigüidades, os retratos, em particular os
retratos de casamento, podem ser mais reveladores pela intenção de suas
imagens do que pelas imagens em si. Nesse caso, podemos compreender a
fotografia como o produto das sutilezas existentes entre “o que foi dito” e “o
que se desejou dizer”.
Pedro Vasquez, em Olha o “Passarinho! Uma Pequena História do
Retrato afirma que, desde o início da segunda metade do culo XIX, a
“popularização do retrato” atingiu grandes dimensões; a sociedade, tal como
Narciso, precipitou-se numa “corrente de adoração às suas próprias imagens.
Os primeiros retratistas seguiam cegamente a escola da pintura, interessados
em acentuar e valorizar o “belo”. O passar do tempo trouxe a massificação dos
1
retratos e o tratamento das imagens tornou-se mais “fácil e superficial”, com
recursos e cenários artificiais; o que “se perdeu em qualidade artística” foi
compensado em “penetração popular” (VASQUEZ, 1983, p. 29-30).
A mera fotográfica transformou-se na “máquina de tirar retratos”;
“aperte o botão e nós faremos o resto”, dizia o slogan publicitário da Kodak de
George Eastman
5
. A popularidade do retrato permitiu que a prática chegasse
aos amadores sem muitos recursos e “com poucos conhecimentos técnicos”
(VASQUEZ, 1983, p. 31).
Essa vulgarização da fotografia ao longo de todo o século XX não
impediu que os fotógrafos mantivessem seus espaços profissionais. O período
consolidou alguma descontração nas imagens fotográficas, mas ainda não
havia o “hábito de botar chifrinhos” ou “empurra-empurra” (VASQUEZ, 1983, p.
30) que se vê em algumas fotos atuais.
O padrão dos retratos familiares da década de 50 evidenciava a avidez
por imagens que, de modo crescente, a sociedade demonstrava ter,
profundamente estimulada pela publicidade da época, seguindo os modelos e
modas das revistas e periódicos de então.
A análise contínua dessas imagens sugere que elas sejam
compreendidas de duas maneiras: a fotografia produzida como lembrança e a
experiência estimulada pelo “ritual” de se deixar fotografar. Pensando na
construção memorialista das famílias brasileiras na década de 1950 e nas
lembranças construídas pelas imagens da atualidade, o retrato de casamento
surpreende pelo frescor com que manifesta sua vitalidade.
5
George Eastman, o pesquisador que desenvolveu a câmera Kodak e a apresentou em 1888,
afirmava que “qualquer pessoa com mediana inteligência pode aprender a tirar boas fotos em
dez minutos“ (KOSSOY, 2007, p. 42).
2
Como se explica que, com o aumento das uniões consensuais,
com a equiparação dos papéis e as novas formas de
solidariedade conjugal, se mantenham e estejam mesmo se
desenvolvendo o comércio do vestido de noiva e de trajes de
cerimônias, as alianças, as lojas e listas de presente e os véus
continuem a ser exibidos em vitrinas, cortejos e fotografias?
Por que o ritual do retrato continua a registrar e em alguns
casos a substituir a lembrança do casamento, incluindo uma
simbologia a que os participantes não têm mais acesso
(LEITE, 2001, p. 119)?
Fotografia 19 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm, sentido horizontal; 1958; Stúdios
Lafffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
3
Fotografia 20 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 21 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
4
Fotografia 22 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm; sentido vertical; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 23 – Retrato de casamento; 18 X 24 cm; sentido horizontal; 1958; Stúdios
Laffe; coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
Na Fotografia 19 identificamos mãe e filha enquadradas pela lente do
fotógrafo para eternizar o momento. O sentido horizontal da foto revela a
5
intenção do fotógrafo, de comparar as duas figuras. No espaço dos objetos,
destacamos o vestido da noiva (véu e grinalda ganham relevo pelos detalhes
mais à mostra) e o traje da e da noiva (chapéu, brinco e a gola trabalhada
do vestido). No espaço das vivências, são acentuados os rostos em contraste
com diferentes olhares. O que parece revelar a expressão da mãe?
Contentamento ou tristeza?
No retrato de casamento apontado pela Fotografia 20, pai e filha
compõem a cena. O vestido da noiva e o terno do pai se contrapõem, com
destaque para o lenço e a gravata do pai. As duas fotografias dialogam no
espaço das vivências. A proximidade e a expressão de alegria do pai sugerem
grande cumplicidade. Formas distintas de expressão de afeto foram
imortalizadas pelo clic.
Na Fotografia 21, figura o casal ainda no espaço interno da igreja. O
retrato destaca o gesto da leitura dos telegramas. Essa leitura e a presença da
aliança no dedo do noivo são indícios de que a cerimônia já havia se realizado.
Além do traje dos noivos, os objetos que mais sobressaem são os papéis dos
telegramas e o buquê. Pétalas ainda na cabeça do noivo compõem o retrato
que assinala que os “ausentes” estavam presentes através da mensagem
telegráfica.
Fotografia 22: de braços dados, pai e filha entram na igreja. A noiva
olha para o chão, o pai parece fitar a câmera. No espaço dos objetos, uma vez
mais o contraste entre o vestido da noiva e o traje do pai (lenço e gravata se
destacam no conjunto). Separada do contexto em que estão as demais, a
imagem não parece ter muito o que dizer, mas, aliada à seqüência das outras
fotos, revela seu valor dentro da coleção. Vale lembrar que essa fotografia não
aparece na ordem apresentada no corpo do álbum, mas segue o ir e vir de
lembranças da narradora, idas e vindas que caracterizam o tecido da memória.
A Fotografia 23 apresenta o casal na saída da igreja. O sentido
horizontal da fotografia e os rostos alinhados contribuem para dividir a atenção
sobre a cena, roubada em parte pelo desejo de desvendar o carro e os
acessórios que ele esconde.
Objetos de grande significado visual cobrem o automóvel de detalhes:
pequeninas flores compõem três arranjos no vidro de trás do automóvel,
6
possivelmente um Chevrolet; uma lâmpada florescente afixada no teto do carro
(para iluminar o casal ou tornar a foto possível?); além de outros acessórios
não visíveis pela fotografia, mas rememorados pela guardiã (o banco todo
forrado de cetim branco).
No campo das vivências, o olhar dos noivos seria um olhar de
despedida? O carro decorado remete à antiga tradição de enfeitar pequenas
carroças que serviam para levar camponeses após o casamento. O olhar dos
noivos faz lembrar também as imagens cinematográficas, emblemas de “final
feliz”, tão comuns nos filmes dessa época.
O retrato com os pais, a entrada na igreja, o glamour do carro decorado,
a leitura dos telegramas, poses previamente calculadas e roteirizadas pelo
profissional; imagens que representam apenas uma parcela da gama de
fotografias exigidas para montar a “trama” e o álbum de casamento como um
todo. Uma história dentro das muitas histórias da família, criada, repetida e re-
significada inúmeras vezes através da fotografia. O retrato para oferecer como
“lembrança”; o retrato para “guardar” a lembrança, o retrato para
“experimentar” a lembrança e fixá-la na memória coletiva.
Na tentativa de desmontar as imagens como retrato e como experiência,
reconhecemos a predominância do caráter gico da fotografia. Espécie de
recurso que acenava com a possibilidade de fatiar o tempo, devorá-lo como
em um ato de “antropofagia visual”, o que faz lembrar a antiga crença da
imagem fotográfica como dispositivo capaz de roubar a alma das pessoas. O
desejo de “ter a alma roubada” demonstra alguma relação com o desejo de
memória que marcou os retratos de casamento mais solenes produzidos nesse
período, uma atmosfera “dourada” que perdura no circuito das fotografias
familiares até a atualidade.
3.4 A REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM IDEAL
7
É possível afirmar que todo o retrato é “uma representação de alguém
que sabe que está sendo fotografado”; desse modo, percebemos que a pose
não se separa dele, mesmo que disfarçadamente (LEITE, 2001, p. 97). Cabe-
nos então perguntar: o que ou quem os retratos representam? O que é
representar?
A idéia de representação remete inicialmente ao desejo de
“substituição” que precede a construção de todas as imagens fotográficas
substituir o ausente pelo “objeto portador de significado” (GINZBURG, 2001, p.
85).
Por outro lado, a representação também pode ser vista como a
“exibição de uma presença”, uma espécie de recurso para a “apresentação
pública de algo ou alguém” (CHARTIER, 1989, p. 20).
Ambíguas como a noção de representação, as fotografias de família
também se debatem entre tracejar a ausência ou ressaltar a presença,
chamando nossa atenção para o que “alguém determinou que deveria ser
visto ou desejou ocultar.
Nesse sentido, Boris Kossoy (2007, p. 146) refere-se à invenção da
fotografia como uma “máquina do tempo” pela qual os personagens entrariam
para “desaparecer” e “reaparecer”, como em uma viagem espacial. O destino
dessas viagens seria determinado pela imagem do passado, com seus
“cenários” e “situações” amplamente representados.
A vitalidade da fotografia no período estudado faz lembrar o paradoxo
em Benjamin apontado em Sob o signo do “clic”: fotografia e história em Walter
Benjamin; pois se a fotografia é a ‘conquista de uma sociedade onde a
experiência declina’, isto é, uma sociedade submetida ao choque e ao tempo
indiferente dos ritmos industriais, uma sociedade, portanto, que se torna cada
vez mais instantânea, a recuperação dessa experiência como experiência do
tempo pode se dar em um instante particular, destacado de uma série
supostamente homogênea, e no qual toda temporalidade está subitamente
implicada” (LISSOVSKY, 1998, p. 25).
Todos os retratos de família estudados ao longo da pesquisa, em que
pese a busca pelo gesto mais belo ou a pose mais elaborada, insistem em
apresentar um modelo de família afeita ao ideal de modernidade que parecia
8
marcar a sociedade brasileira do pós-guerra, em particular as camadas médias
urbanas, mais afeitas ao hábito de “tirar retratos”. E o que poderia ser descrito
como moderno nesse cenário?
Na década de 1950, a idéia de moderno se apresentava como um
projeto; para se sustentar como um ideal a ser alcançado, era necessário
promover o consumo, tarefa muito dependente da publicidade e das
estratégias de propaganda utilizadas então.
Os anúncios da época retratam bem essa ambigüidade entre
o mero existir e o se realizar. Eles diziam num tom
interpelativo: “Você quer ou não quer a televisão? Para tornar
a televisão uma realidade no Brasil, um consórcio rádio-
jornalístico inverteu milhões de cruzeiros. Agora é a sua vez –
qual será a sua contribuição para sustentar tão grandioso
empreendimento? Do seu apoio dependerá o progresso, em
nossa terra, dessa maravilha da ciência eletrônica. Bater
palmas e aclamar admirativamente é louvável, mas não basta
seu apoio só será efetivo quando você adquirir um televisor”
O consumidor não deve ser convencido pela qualidade do
produto, em contraposição ao dos concorrentes aliás, os
concorrentes ainda não existem –, mas por um discurso
pedagógico que se fundamenta na necessidade da
construção da modernização da sociedade brasileira. Diante
do vácuo existente, resta à vontade pioneira uma política de
convencimento que se distancia do cálculo metódico das
forças do mercado (ORTIZ, 2006, p. 60).
Ser moderno estava associado à incorporação do novo, mostrar-se à
frente do seu tempo; a tradição, por sua vez, estava vinculada ao peso da
representação do passado, algo que deveria acompanhar a família desde
sempre, lembranças renovadas por força da repetição. Essa primeira
interpretação sugere alguma incompatibilidade entre os dois conceitos mas
essa dicotomia deve ser examinada com cuidado, levando em conta a
trajetória da sociedade brasileira no pós-guerra, frente aos desafios impostos
pelo crescimento industrial e pela formação de uma cultura de massa.
Os anos 50 o marcados pelo crescimento urbano e pela
industrialização, que se apresenta de forma nunca vista até então; “democracia
e participação eram idéias fortalecidas nos discursos políticos”, mudanças no
lazer, no acesso à informação e no consumo eram facilmente observáveis, o
comportamento também sofreu mudanças significativas (BASSANEZI, 2001, p.
608). Contudo, a família brasileira desse período, representada em grande
9
escala nos acervos fotográficos pesquisados, correspondia ainda, no seu
aspecto jurídico em especial, ao “modelo patriarcal tradicional”, com “alguma
influência da sociedade burguesa européia do final do século XIX e início do
século XX”.
O padrão apreendido nos retratos de família informa a “subordinação da
mulher e dos filhos ao marido e ao pai”; observava-se ainda a aceitação social
das diferentes expectativas em relação aos membros femininos (predomínio do
padrão “do lar”) e masculinos (predomínio do papel de “provedor”) das famílias,
embora se ensaiasse uma participação mais ativa da mulher na sociedade
(BASSANEZI, 2001, p. 608).
Outro aspecto a considerar é que muitos parentes eram “incorporados
ao cleo familiar”; era comum a “tolerância com a poligamia masculina, a
intolerância com o adultério feminino, a tolerância com a bastardia”; essa
tolerância se estendia a outros espaços de atuação da sociedade, de tal forma
que era natural “a intromissão dos laços familiares na vida pública”, o que
explica o surgimento do “pistolão” e a intercessão do parentesco na
distribuição dos cargos públicos, quase sempre através do “favoritismo”,
“privilegiando a parentela” (RIOS, 1987, p. 463).
No cenário da cidade espaço por excelência da modernidade era
visível a influência do american way of life, o sucesso dos filmes norte-
americanos nas terras brasileiras era sempre crescente e os padrões de
comportamento oscilavam entre a ousadia urbana e a tradição familiar.
Para ser retratado como moderno, era preciso estar atento aos
movimentos da cidade, decifrar os novos códigos sociais que ela impunha
entre eles, o consumo da fotografia. Em contrapartida, ao atributo do moderno
estava ligada a representação de um passado tradicional, mediador de uma
nova era. A recorrente expressão popular “teu passado te condena”,o usual
na época, pode ser superposta pela expressão “teu passado te absolve”. Visto
assim, o passado é como um passaporte para o futuro, e quem aspira à
modernidade deve ceder ao peso da tradição ou reinventá-la, fotografar seu
presente, deixar visíveis as marcas do passado, fotografar para o futuro,
projetar ou “imaginar” para os que lhe sucederem.
Gosto também de lembrar as roupas bem compostas de meu
avô, sentado ao lado de minha avó, com um certo ar nobre,
0
marcado pela corrente de ouro do seu inseparável relógio. Ele
garantiu, sobrevivendo através daquela fotografia,
especialmente depois de morto, certa nobreza, que não sei
bem se algum dia ele, de fato, teve. Mostro a fotografia a um
amigo ou dependuro-a na parede da sala. Assim, reconstruo
tudo para manter intacta a história de minha família e eu
mesma não sucumbir ao esquecimento. Mostrando a
fotografia e, especialmente, contando o meu passado,
começo a montar tradição, memória. Esta narrativa deve
guardar beleza, vida e, principalmente a possibilidade de ser
repetida sucessivamente (THEODORO, 1998, p. 66).
A idéia de “montar tradição tornou-se usual entre os integrantes da
moderna nação brasileira que se formava na segunda metade do culo XX.
Nela, os “mais velhos” deveriam abrir espaço para os “mais jovens”,
empenhados em fotografar a si mesmos e encontrar espaços cada vez
maiores nos já tradicionais álbuns de família.
Quando percorremos as páginas dessas coleções fotográficas,
percebemos que na escolha dos elementos retratados e vinculados à idéia de
tradição está implícito um julgamento de valor: exibição e representação de
princípios. Tais imagens representam um “comportamento ou padrão
produzido por um grupo” como algo “especialmente digno de ser aceito”, algo
que sirva para “intensificar a consciência de grupo e sua coesão”. O termo
tradição também enfatiza as “noções de continuidade e venerabilidade”,
estando ligado ainda à “sabedoria coletiva” (SILVA, 1987, p. 1.254).
A fotografia da qual nos ocupamos na pesquisa, tramada para conciliar
família e sociedade, mostrou-se, tal como afirma Roland Barthes, “perigosa”,
repleta de funções e papéis a desempenhar: “informar, representar,
surpreender, fazer significar, dar vontade” (BARTHES, 1980, p. 48 – 49).
Essas imagens transitaram pelo simbolismo, atuando como fazem os
símbolos, “instrumentos por excelência da integração social”, tornando possível
“o consensus acerca do sentido do mundo social” (BOURDIEU, 2006, p. 10).
Não podemos ficar indiferentes ao fato de que o conceito tradição
aparece quase sempre associado à autoridade ou a algum tipo de poder. A
tradição representada nos álbuns atua como fonte legitimadora das ações dos
grupos; sua “quebra” pode parecer algo socialmente ameaçador por isso era
sempre necessário reinventá-la, renovando suas práticas e seus significados.
1
2
4 MEMÓRIA E COLEÇÃO – O ÁLBUM DE FAMÍLIA
Em algumas destas fotos, estou sozinha. Em outras, pai, mãe e eu aparentamos ser
eternos. Esta família, no entanto, já não existe, despediu-se para sempre. Eu, porém, sinto que
Carmen e Lino arfam ao meu lado, tomam café comigo. Em breve nos encontraremos. Acaso
no Hades, no purgatório agostiniano? Sinto saudades deles e não sei traduzir os sentimentos.
Consola-me pensar que, por onde andam, eles me fazem companhia.
Nélida Piñon
No filme Uma vida iluminada, de Liev Schreiber (2005), um jovem judeu
chamado Froer resolve percorrer as estradas da Ucrânia em busca de tudo
que possa estar relacionado aos seus ascendentes. O jovem é um metódico e
reservado colecionador. Sua coleção reúne peças de toda natureza, de
mechas de cabelo a restos de comida. Todos esses objetos são
meticulosamente organizados em sacos plásticos e com uma surpreendente
ordenação, capaz de levantar a sua árvore genealógica, criando um universo
particular de referências.
Froer vai até a Ucrânia instigado por uma velha fotografia do avô, antigo
refugiado judeu, com um passado à espera de desvendamento. A foto
amarelada parece ter sido tirada na cidade de Trachimbrod e traz também a
imagem de uma mulher desconhecida. Quem será a mulher ao lado do avô?
Como chegar à Trachimbrod, local que sequer aparece no mapa?
Em busca das memórias pessoais, a fotografia emerge como o ponto
alto da coleção de Froer, o elemento mágico, a peça mais emblemática da
narrativa. Aquela que dita os passos do personagem, o elo capaz de decifrar o
enigma que liga o presente ao passado. Nesse caso, a imagem fotográfica é
ela mesma um mapa.
Neste capítulo nos debruçamos sobre a relação das fotografias com o
mundo das coleções. Qual o valor desse objeto no corpo das peças que
compõem o museu da família? Como e quando o álbum de retratos se
configura como coleção?
3
4.1 A CONSTRUÇÃO DE UM BEM SIMBÓLICO – O ÁLBUM
Ao longo da pesquisa, no processo de leitura das imagens e durante a
análise das narrativas, vislumbramos no álbum de família a necessidade
utilitária que caracteriza a formação de uma coleção.
Gerações inteiras são moldadas à sombra das imagens dos familiares
que os antecederam, fotografias que acompanham em aparente silêncio a
trajeria de composão e muitas vezes de dissolução do cleo familiar.
Lugar de memória por excelência, o álbum de retratos da família é o objeto
“do lar e ele, tal como o vinho, cresce de valor à medida que envelhece.
Criado para eternizar, refúgio contra a acelerão do tempo, ele evidencia
também o desejo de guardar que acompanha o homem desde os tempos
mais remotos.
As lembranças vindas no rastro da fotografia representam mais um
objeto dentro do conjunto, o elemento com impressionante capacidade de se
multiplicar. A edição de um álbum de retratos oferece, antes de tudo, a
possibilidade de armazenar memórias de forma substancial. Contudo, é
preciso lembrar que um álbum de família nem sempre é composto apenas de
fotografias, embora elas reinem na primazia de seus espaços; é comum que
encontremos também restos ou vestígios de outros objetos, imbuídos de valor
afetivo, entre eles cartões-postais com dedicatórias específicas para algum dos
membros do núcleo familiar, pequenos bilhetes ou cartões, além de cartas,
pétalas de flores ou restos de folhas secas ou conservadas de modo
rudimentar pelo tempo e o peso das páginas; pequenas relíquias e delicadezas
que guardam alguma experiência e esperam, como uma deixa narrativa, o
momento certo para vir à tona.
Desse preciosismo no cuidado com a composição e a conservação dos
álbuns lembramos que os “temas” da figuração são, durante esse período,
sempre ou quase sempre determinados pelo universo feminino; “mães, tias e
primas” podem ser vistas como “agentes da imagem”, uma “tendência para a
fotografia amadora do século XX”, evidenciada de forma diferente do século
anterior (MAUAD, 2000, p. 147).
4
Em busca da gênese do álbum, esbarramos na idéia inicial que move
todo e qualquer colecionador o prazer. Nesse caso, a alegria provocada pela
posse do objeto, o elemento capaz de completar o indivíduo, ele todo uma
“coleção” de sentimentos e idéias.
Uma coleção começa a partir de três elementos. É uma série
infinita de objetos reunidos para um fim não funcional, mas de
estética sociológica, no sentido de um socius das coisas e não
de seres humanos. Uma coleção é uma instituição na
população dos objetos, pois ela tem uma estrutura, geralmente
linear, da série muitas vezes realizada na base da raridade dos
objetos sucessivos (MOLES, 1981, p. 137).
Dos três elementos citados, interessa-nos sobretudo o socius das
coisas” os objetos (fotografias) que se relacionam e dialogam dentro do
álbum (coleção), considerando também a importância das imagens que
formam a “população dos objetos” e o desejo de posse pela imagem rara e
valorosa para o grupo familiar.
Antes de seguir na direção da noção de patrimônio, cabe lembrar que os
acervos fotográficos nem sempre estão organizados em álbuns, mas isso não
impede que sejam tratados dentro da lógica das coleções. Caixas de sapato,
caixinhas decoradas ou amarradas com fitas ou barbantes também obedecem a
classificações pessoais, separação por assunto, interesses destacados em séries,
categorias de ordenamento com lógica própria instituída pelo colecionador. No
campo dessas observões, enxergamos as “sensibilidades temporais” que
marcam o desejo de delimitar “fronteiras esveis e a formação de um “mercado
de memórias” constantemente renovadas (HUYSSEN, 2000, p. 60).
Os álbuns que estudamos contribuíram para reforçar nossa
compreensão da capacidade dialógica das imagens, mediando diferentes
idades e tempos; além disso, indicaram o processo lento e delicado de
composição de um patrimônio. E em qual categoria patrimonial poderíamos
alocar os álbuns de família?
Em primeiro lugar, a definição de patrimônio, etimologicamente falando,
pode ser associada ao latim patrimonium e “próxima à idéia de uma propriedade
herdada do pai ou de outro ancestral” os conceitos de propriedade e
5
apropriação caminhariam juntos por essa definição. Contudo, apenas essas
combinações não parecem suficientes para acomodar as coleções de que
tratamos na pesquisa. Recorremos também ao sentido da palavra “alegoria”,
uma proposta de representação que, através de recursos dramáticos”, ilustra
uma história e cobre de significados a coisa representada e ausente. Dessa
“ausência dolorosa daquilo que ela espera recuperar”, a alegoria se aproxima de
nossos álbuns, dotados de coencia e continuidade, repletos de narrativa e do
desejo de guardar o tempo (GONÇALVES, 2002, p. 78).
De outra feita, a historiadora Mary Del Priore, em História do Amor no
Brasil, usa o termo “patrimônio simbólico referindo-se às implicações dos
processos de separação dos casais no final dos anos 50 e durante os anos 60.
O importante era não dividir os patrimônios: o material e o
simbólico. O patrimônio simbólico bem representado em
nomes de família tradicional, em posições de profissionais de
projeção, em carreiras públicas, enfim, no status que seguia
impoluto, sem a mancha do divórcio, do lar desfeito ou da
consciência pesada (DEL PRIORE, 2005, p. 304).
Plástica, portanto, a idéia de patrimônio simlico se aproxima e se
ajusta aos álbuns de família. Isso porque reconhecemos neles a
materialidade dos objetos que compõem uma colão (o patrimônio) e o valor
conferido às peças de acordo com os sentimentos e afetos a eles agregados
(o simbólico); valor que pode variar de acordo com a presea ou a ausência
dos familiares que eles carregam imageticamente. A junção desses dois
conceitos pesa na análise do objeto e influencia a construção memorialista
por ele desencadeada. A orientação que eles oferecem à meria vem
impregnada de valores, em particular o “valor de culto compreendido como
uma escie de relevância e afeto com que se destaca algum dos membros
dentro de toda a família.
Desse modo, o álbum pode ser visto como um “bem”, constituído para
funcionar como “veículo de qualificação social”; uma vez herdado, “adere ao
indivíduo ou grupo” (MENEZES, 1997, p. 4) e preenche de significados toda a
sua existência.
4.2 MUSEU DE FAMÍLIA – O ÁLBUM COMO MONUMENTO
6
A mãe guarda o primeiro dente-de-leite do filho, quando não faz dele um
pingente de cordão ou pulseira; a avó mantém o umbigo da criança em um
vidro ou uma caixa, o relógio dado pelo avô já não funciona mais, mas é
zelosamente guardado pelo neto que pretende passá-lo ao filho no futuro;
tomando essas ações como ponto de partida, podemos perguntar: qual o
sentido oculto na guarda e proteção desses objetos? Como manter a vida útil
das coisas, mesmo sabendo que o como evitar a ação do tempo sobre
elas? No curso da vida cotidiana de que lhes servirão esses objetos? Se as
coisas de fato acabam, e acabam, porque alargar seu tempo de vida? Apenas
para que se ofereçam aos olhos?
Sabemos que as peças de um museu não estão expostas ali para efeito
decorativo, revelam um processo de entesouramento a formação ou acúmulo
de tesouros patrimoniais consagrados ao olhar e ao entendimento da espécie
humana, considerando também e com o mesmo fim os acervos das bibliotecas
e arquivos. Essas peças, como um todo, aludem ao conceito de coleção que
une os acervos particulares (entre eles os acervos fotográficos pessoais) aos
museus e instituições “oficialmente” instituídos como lugares de memória.
É, portanto, possível circunscrever a instituição de que nos
ocupamos: uma coleção, isto é, qualquer conjunto de objetos
naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente
fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma
proteção especial num local fechado preparado para esse fim e
expostos ao olhar do público (POMIAN, 1984, p. 53).
A esta altura da análise, vale lembrar a construção memorialista de D.
Cira, cuja narrativa foi pontuada de objetos além da própria fotografia, a
começar pela máquina fotográfica, mantida com zelo e com cuidados
normalmente exigidos de quem conserva um acervo de raridades. “Olha esse
bolo! E outra coisa fantástica eram as toalhas bordadas na Ilha da Madeira
que se usava antigamente, são preciosas até hoje, estão aí guardadas.”
Em outro momento: “Aqui foi o dia do batizado do Alexandre, olha o
camisolão, essa camisola batizou o Alexandre, batizou o André, batizou as
minhas quatro sobrinhas de Niterói, batizou os filhos delas e está guardada
aí...”
7
A máquina fotográfica, a toalha da Ilha da Madeira e o camisolão usado
no batismo dos filhos, suas lembranças tracejam por outras materialidades
além das fotografias; reportam-se a peças de grande significado simbólico,
objetos que no conjunto podem ser identificados como integrantes de um
museu familiar. Prática comum em todos os núcleos, é hábito cultivado entre
todas as camadas sociais; guardar objetos que aparentemente não possuem
mais serventia, emprestando a eles o poder de marcar visivelmente o passado,
transformando a todos em emblemas de uma “memória afetiva da família”,
ligando “objetos de recordação dos indivíduos” ao universo de memória de
uma “sociedade mais ampla” (BARROS, 1989, p. 32).
O espaço ocupado pelas fotografias nesse museu da família é dos mais
valorosos um álbum de retratos com imagens de todos os ascendentes pode
ser mesmo a peça mais emblemática da coleção.
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Fotografia 24
Fotografia 25
Fotografia 26
Fotografia 27
Fotografia 24 Álbum de retratos “Minha Filha”; adquirido em 1954;
imagem digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de
Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 25 – Álbum de retratos “Nossas Núpcias”; adquirido em 1958;
imagem digitalizada por Ricardo Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de
Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 26 Álbum de retratos “Meus Filhos”; adquirido em 1959;
imagem digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de
Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 27 Álbum de retratos “Recordações”; adquirido em 1958;
imagem digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de
Ocirema Rodrigues Alves.
As Fotografias 24, 25, 26 e 27 mostram imagens digitalizadas dos livros
ou álbuns onde se concentra a maior parte das fotografias estudadas ao longo
da pesquisa. Todas elas integram a coleção de Ocirema Rodrigues Alves.
9
Os álbuns podem ser descritos como livros de capa dura, com folhas
finas e transparentes antecedendo às páginas de papel com uma gramatura
mais firme, nas quais são coladas ou afixadas as fotografias; alguns desses
livros contêm pequenos acessórios para dar suporte aos retratos. Os “livros”
maiores apresentam um pequeno cordão que parece ter a função de prender
todas as páginas, de acordo com o estilo de encadernamento. Os álbuns de D.
Cira aparecem sugestivamente intitulados: “Minha Filha”, “Nossas Núpcias” e
“Meus Filhos”; entre eles, de material diferente, mais “moderno”, destacamos o
pequeno (menor, mas não menos emblemático) “Recordações”. Todos juntos,
os álbuns em questão configuram visualmente um pedaço da coleção
fotográfica de D. Cira – a parte que nos coube estudar.
O álbum de Ricardo repete, em parte, o padrão dos álbuns de D. Cira
e, embora não tenha título, possui capa dura e uma bela paisagem, elementos
que servem para conferir beleza e tradição ao mesmo.
Fotografia 28 Álbum de retratos sem título; ano de aquisição desconhecido;
imagem digitalizada por Ricardo Fernandes Rendeiro de seu acervo particular.
00
O álbum de Ricardo (Fotografia 28) traz as marcas do tempo em sua
materialidade; indícios de que foi alterado (editado e reeditado) por outros
membros da família, além do primeiro e do último proprietários, por conta dos
diferentes estilos de composição entre as páginas. Os primeiros arranjos de
fotos demonstram o cuidado narrativo ao identificar o tempo, o ano em que a
imagem foi produzida; em páginas posteriores, esse cuidado não existe mais,
revelando o aumento progressivo da família e a vontade de preencher todos os
espaços com os rostos de um grupo cada vez mais numeroso, como atestam
as Fotografias 4 e 32.
Dentro do processo investigativo, cabe ressaltar que todos esses álbuns
foram adquiridos na década de 50, o que nos auxilia a -los também como
objeto de consumo: a imagem de um produto concebido para guardar imagens.
Cada um desses conjuntos de fotografias pode ser chamado também
“monumentos de lembranças”; percebemos que foi edificada uma memória
diferente. No caso de D. Cira, no álbum com o título “Minha Filha” (Fotografia
24), foi alocada a memória de infância e juventude. Em suas páginas cerram
fileiras as imagens da guardiã fantasiada para o carnaval, vestida com o
uniforme de seu universo escolar, além de várias referências dos bairros em
que morou. O álbum em questão é o primeiro da coleção e foi presente dela
para a mãe em 1952, gesto documentado em uma legenda na contracapa do
álbum. A oferta simbólica acentua o cuidado e o apreço que o objeto fotografia
merecia por parte dela, mesmo na juventude. Mas, de quem teria sido, de fato,
o presente? Da e que pôde, através dele, compor uma crônica visual da
única filha? Ou da própria filha, que encontraria no álbum a solução para os
seus primeiros anseios de colecionadora?
Em “Nossas Núpcias” (Fotografia 25), foram organizadas as imagens
de casamento, ocorrido no ano de 1958. Nele constam as imagens
esteticamente eleitas como as “melhores” para o álbum. Durante a entrevista,
a guardiã rememorou o evento, narrando o roteiro de produção das imagens,
montadas e orientadas por um fotógrafo profissional, árbitro dos retratos que
deveriam aparecer e da ordem em que apareceriam. As imagens que ficaram
de fora do conjunto de retratos de casamento acabaram por originar uma outra
01
série fotográfica: um grupo de imagens desprezadas pelo fotógrafo que
produziu e montou o álbum. Somos levados a perguntar: que critérios estéticos
guiaram o profissional na composição do “Nossas Núpcias”?
Em 1959, com a escolha de um álbum intitulado “Meus Filhos”
(Fotografia 26) D. Cira identifica a necessidade de continuar a coleção e
estabelece, sem perceber, um diálogo entre os “livros” – estruturando com eles
suas referências biográficas. Marca através deles o signo do “antes”
(configurado em “Minha Filha”), sua infância e juventude; o “durante” (“Minhas
Núpcias”), com a passagem para a vida adulta e o elo social representado pelo
casamento; e, mais adiante, o signo do “depois” (“Meus Filhos”), a maturidade
e o “tempo cíclico”, a necessidade de recomeçar.
Entre eles chama atenção o pequeno álbum “Recordações”
(Fotografia 28), montado todo ele com as fotografias produzidas pela primeira
máquina do casal (Fotografia 5). Um conjunto de imagens, em nossa
interpretação, marcadamente autoral, capaz de estimular na guardiã o
surgimento de um certo talento como fotógrafa.
Fotografia 29 – Página do álbum “Recordações”; fotografias da lua-de-mel em
Caxambu (1958); 2 fotografias no sentido horizontal e 1 no sentido vertical; imagem
digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de Ocirema
Rodrigues Alves.
02
Fotografia 30 – Página do álbum de retratos “Bodas de Prata” de D. Cira (esse álbum
não foi incluído no corpo da pesquisa); foto no sentido horizontal; imagem digitalizada
por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo pessoal de Ocirema Rodrigues Alves.
Fotografia 31 – Página do álbum “Recordações”, 3 fotografias no sentido vertical e 1
no sentido horizontal; imagem digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro; do acervo
pessoal de Ocirema Rodrigues Alves.
Na página do álbum apresentada na Fotografia 29 identificamos três
retratos, todos eles com 9 X 6 cm, datados de 1958 e reconhecidos pelo tema:
“Lua-de-mel em Caxambu”. Foram produzidos com a primeira câmera
fotográfica do casal (Fotografia 5) e, com exceção da imagem, à esquerda,
provavelmente feita a pedido deles por um outro hóspede do hotel, foram
produzidas pelo casal, fotógrafos amadores por excelência. A disposição das
03
fotos e a legenda identificando os espaços (Hotel Jardim, Lago e Piscina)
revelam a tentativa de uma crônica visual. Destaca-se a fotografia da guardiã
sozinha junto à piscina; a pose faz lembrar sobremaneira as capas de revista
popular produzidas nesse período.
A fotografia 30, embora tenha sido produzida em 1983, foi
especialmente incluída na pesquisa pelo sentido impresso na sua realização,
diretamente relacionado a um dos retratos apontados na Fotografia 29. Há um
diálogo entre as duas imagens que não passou despercebido. No espaço
descritivo do álbum de 25 anos de casados, a fotografia do noivo no mesmo
cenário (o mesmo lago e o mesmo banco) desponta como o rememorar da lua-
de-mel: a relação com a fotografia como instrumento que consagra a
lembrança e a revigora como experiência.
A Fotografia 31 apresenta mais uma página do álbum “Recordações”,
de D. Cira. Nela identificamos quatro retratos, duas imagens superpostas
legendadas como “Botafogo verão de 1959 e outras duas como “Clube de
Xadrez – outubro de 1959”.
A crônica visual aponta os passeios do casal em momentos diferentes,
assinalando uma vez mais o desejo de memória, agora manifestado com mais
liberdade, considerando alguma autonomia dada pela primeira máquina
fotográfica. As fotografias em questão possibilitam também a primeira identidade
visual do casal, agora visto como núcleo familiar independente dos demais.
A guardiã, autora das duas fotografias, evidencia com a composição das
imagens o exercício de memória, todo ele evocação, reconstrução e
lembrança. Uma vez identificado o significativo papel da fotografia dentro dos
objetos que compõem o museu da família, reconhecemos no álbum seu
caráter monumental.
A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu
modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha
e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que
lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente.
Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma
encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e
selecionado para fins vitais na medida em que pode, de forma
direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma
comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar.
04
Para aqueles que edificam, assim como para os destinatários
das lembranças que veiculam, o monumento é uma defesa
contra o traumatismo da existência, um dispositivo de
segurança (CHOAY, 2006, p. 18).
Edificado em páginas repletas de lembranças, os álbuns com seus pilares
fotográficos parecem dissipar a angústia provocada pelo medo da morte.
4.3 EDIÇÕES E REEDIÇÕES – A COLEÇÃO QUE CAMINHA
No entendimento da composição das coleções fotográficas como um
processo altamente seletivo e, por isso mesmo, indissociável da memória,
procuramos pontuar algumas possibilidades no campo das edições e
reedições desses monumentos. Tomamos nossas fontes como referência para
investigar os caminhos editoriais e o movimento que fazem as fotografias
circularem.
No esteio dessas considerações, podemos perguntar quando é que as
coleções terminam? Os álbuns de família, espécie de coleção dentro de
coleções, podem ser considerados completos ou finitos? Uma vez editada a
última página, ela simbolizaria o ponto final nas imagens da família? Ou seria
apenas mais um dos volumes de uma longa narrativa visual?
O impulso que move cada colecionador, em particular o de fotografias,
não parece ser outro senão a paixão pela memória; uma busca assim
motivada não parece se destinar a um fim. Dela se apreende que “um objeto
se torna desejável para o colecionador na medida em que seu meio social
assim o determina” ou, ainda, que “o valor e o prestígio de toda a coleção
derivam dos significados atribuídos pelo grupo” (COSTA, 2007, p. 35 ).
que se considerar também que os álbuns estudados foram todos
editados inicialmente na cada de 1950. No caso da coleção de D. Cira é
possível reconhecer volumes com conjuntos específicos de imagem.
Agrupados linearmente desde 1952, esses conjuntos apresentam estruturas
narrativas ordenadas por temas, tais como filhos e casamento, um formato que
se firma como tendência a partir do mesmo período. Álbuns temáticos,
05
mostrando trajetórias individuais e eventos específicos foram se tornando
possíveis com a popularização da fotografia e o acesso a ela por parte das
camadas médias da população. A fotografia amadora avança, os retratos
repetidos e as figuras sem correto enquadramento povoam os álbuns desde
então; a idéia de que é possível “brincar” com a máquina fotográfica parece se
disseminar, a despeito do preço da revelação e dos filmes ainda serem
considerados caros.
A coleção de imagens de Ricardo, ao contrário da de D. Cira, parece ter
sido formada sem tantos recursos e possibilidades. No mesmo álbum
identificamos a presença de vários membros da família em páginas editadas
sem tanta preocupação com seqüência ou linearidade. A coleção de
fotografias de Ricardo parece seguir a linha de composição das narrativas
visuais do final século XIX e início do século XX, reunindo no mesmo espaço
retratos de diferentes eventos familiares, alocando memórias dos ancestrais
(fotos desde 1955) e também as memórias mais recentes do mesmo grupo
(ação sugerida pelos retratos 3 X 4 cm de variadas décadas). As páginas finais
asseguram que todas as lacunas devem ser preenchidas, como forma de
assegurar participação em um espaço reconhecidamente dado como nobre.
06
Fotografia 32 – Página de álbum; 4 fotografias no sentido vertical e 5 no sentido
horizontal; imagem digitalizada por Rogério Fernandes Rendeiro de seu acervo
pessoal.
Na Fotografia 32 vislumbramos uma das páginas do álbum de Ricardo
Fernandes Rendeiro. Nela identificamos nove retratos 8 X 6 cm; oito dessas
imagens apresentam pequenas inscrições de caneta tinteiro registrando o ano
em que foram produzidas 1957. A página é uma das poucas dentro da
coleção a mostrar alguma seqüência, quebrada pela última fotografia, de
período mais recente não identificado. Há que se ressaltar também uma lacuna
na página, indício de alguma foto desalojada, em trânsito no circuito familiar.
Esse significativo traço de movimento indica que as fotografias podem,
vez por outra, ser deslocadas do seu lugar original. É o caso das fotos que
saem do álbum para ocupar outros espaços de representação, às vezes de
maior exposição. Dentro desse percurso, as fotos dos parentes mortos podem
alçar um lugar de destaque dentro das casas, ajudando a compor pequenos
altares fotográficos, lugares de evocação nos quais a fotografia cumpre uma
função quase sensorial.
4.4 IMAGEM E AFETO – O GUARDIÃO DA MEMÓRIA FAMILIAR
Na contramão dos tempos que anunciam a morte da narrativa, a
fotografia e a experiência por ela estimulada revigoram as histórias de família e
servem para reforçar a “atmosfera sagrada” que circunda o álbum de retratos.
A imagem de nosso pai caminha conosco através da vida.
Podemos escolher dele uma fisionomia e conservá-la no
decurso do tempo. Ela empalidece se não for revivida por
conversas, fotos, leitura de cartas, depoimentos de tios e avós,
dos livros que lia, dos amigos que freqüentava, de seu meio
profissional, dos fatos históricos que viveu... Tudo isso nos
ajuda a constituir a sua figura. Meu pai me ofereceu de si
muitas imagens até sua morte. Guardarei apenas a última, a
de suas horas derradeiras? Ou recuarei no tempo em busca de
imagem mais juvenil? Vejo que sua figura não cessa de
evoluir: ela caminha ao meu lado e se transforma comigo.
Traços novos afloram, outros se apagam conforme as
condições da vida presente, dos julgamentos que somos
capazes de fazer sobre seu tempo. Nos velhos retratos, o
07
impacto da figura viva vai-se apagando, ou vai sendo avivada,
retocada (BOSI, 1994, p. 426).
A “evolução” das figuras da família, imagens que parecem circular em
torno de todos e em todos os lugares de convívio do grupo, é parte de um
processo desencadeado pelo guardião da memória familiar, sobre o qual
repousa a responsabilidade de lembrar de modo permanente a relevância e o
papel do núcleo dentro do grande grupo social.
O guardião Ricardo legitima esse compromisso em parte da entrevista
que nos concedeu quando afirma: “eu tenho preferência pelas fotos dos meus
avós, até pra ficar pra minha filha, para os meus netos e bisnetos verem como
eram os avós e bisavós [...]. Tem fotos do meu pai ainda novo, ele novo, com
26 anos era careca, tem esse registro na foto, eu digo para os meus
amigos que eu estou no lucro, fiquei careca depois dos 45 anos. Por esse
álbum, que tem a data da foto que prova que ele estava com 26 anos e ele
era bem calvo, eu posso dizer que eu herdei isso, essa calvície, mas eu não
fiquei tão calvo quanto ele. Isso faz um histórico, talvez o meu neto possa ficar
calvo mais cedo [...]. Essas fotos são como se fosse assim um patrimônio,
como você ter um bem, uma casa, e eu tenho o álbum e a fotografia passa a
ser um bem, “meu” patrimônio [...]. É, eu tenho esse cuidado [grifo nosso].
“Até pra ficar pra minha filha, para os meus netos e bisnetos verem...”
Alguém deve continuar a tradição que ele mantém com tanto gosto, seguir o
rastro da evolução das figuras dentro da família.
O uso da foto como prova, do qual já falamos, aqui sobressai como uma
composição capaz de unir imagem e afeto. O mesmo objeto que atesta os
laços genéticos também se mostra valoroso pelos vínculos afetivos “eu
posso dizer que herdei isso, essa calvície”; a ironia celebra o parentesco, não
há como negar que seja filho dele e nem que ele seja o “meu” pai.
O que se percebe é que através dos retratos é possível examinar
constantemente toda a parentela, evidência do desejo de estabelecer com eles
uma intimidade capaz de romper as fronteiras da distância física e da morte.
08
Ao comparar o álbum com uma casa, Ricardo configura o que
chamamos patrimônio simbólico e atesta a importância da fotografia para o
colecionador de memórias.
No campo constitutivo da memória coletiva foi preciso reaprender a
“usar a palavra patrimônio”; pensando nele como os devotos pensam em
símbolos como “coroa, bandeira, comidas”, representações de uma identidade,
usados “para agir e não apenas comunicar”, considerando como patrimônio
aquilo que “de certo modo, constrói, forma as pessoas” (GONÇALVES, 2003,
p. 26 - 27).
Em que pesem as diferenças de ordem tecnológica e conceitual entre
as fotografias de família produzidas na década de 1950 e as que estão sendo
criadas na atualidade, a imagem parece estabelecer sempre um elo, uma
referência sobre a qual o indiduo que pertence ao grupoo pode se mostrar
indiferente. Nisso reside a função do guardião: cuidar para que a família se
reconheça nas fotografias, nutrir de imagens o banco de dados que assegura a
continuidade do núcleo familiar.
09
CONCLUSÃO
- E este?/ - Sou eu. / ... – Nessa foto eu tinha, deixa ver. Cinco anos. Seis. Sou eu
sim. / - Mas não tem nada a ver com o que você é hoje! / - Porque o que eu sou hoje é esse da
foto mais quarenta anos. Você não está fazendo a conversão visual. Põe quarenta anos nesse
da foto. / ... – Não, não, não. Não, não, não, não, não. A minha tese é que ninguém muda tão
radicalmente em quarenta anos a ponto de ficar com outro nariz. Não um nariz modificado pelo
tempo. Outra categoria de nariz, outro modelo. Em suma: minha tese é que esse da foto não é
você. / ... - Quarenta anos de impostura denunciados por uma foto. / ... - Só me diz uma coisa...
Que fim levou esse da foto? / - Você é que deve saber. O que você fez com ele? / - Sei lá. Sumi
com ele e tomei o seu lugar? / - Provavelmente. E esta outra foto quem é? / Eu, na minha
formatura. Ou era ele? / Não. Aí já era você. Olha o nariz.
Luis Fernando Veríssimo
O estudo sistemático de fotografias de família pode nos levar por
caminhos semelhantes aos dos replicantes, personagens do filme Blade
Runner (1982), obra de Ridley Scott.
Andróides, construídos ou programados para durar pouco tempo, os
replicantes são inseridos na sociedade por força de falsas lembranças. Um dos
elementos mais usados na construção do passado desses personagens é a
fotografia. E não se trata de uma imagem qualquer, ela tem gênero e
substância é a fotografia de família. A “prova” da experiência passada é
tratada no filme como um objeto que configura uma vida real.
Agimos como replicantes, tal como na obra cinematográfica, buscando
nas fotografias de família a certeza de que “pertencemos” a um grupo.
Extraímos das memórias dos “nossos” a nossa própria memória e, a partir
dela, tornamo-nos de fato seres humanos. Do que nos lembramos ou podemos
lembrar são erguidas as paredes e os pilares do edifício chamado “família”.
Assim, a escolha das imagens de acervos pessoais foi o ponto de
partida desta pesquisa que ora concluímos, fonte primeira que revelou maior e
mais amplo significado quando agregada à voz e aos sentimentos dos
proprietários dessas lembranças nossos “guardiões de memória” ou, dito de
modo muito simplista, “narradores de fotografias”. Da combinação desses dois
elementos extraímos um retrato dentro do grande álbum que compõe a
visualidade da década de 50, uma imagem de suas famílias e do jogo de
lembranças que estabeleceu a memória social dos Anos Dourados.
10
Dos cinco álbuns investigados, acrescidos das séries e dos fragmentos
fotográficos, contamos 83 fotografias identificadas como retratos de família.
Do detalhamento do processo de análise julgamos necessário destacar
que tomamos como ponto de partida a leitura das fotografias através dos
espaços: “fotográfico, geográfico, dos objetos, da figuração e das vivências”
estruturados pela historiadora Ana Maria Mauad; no corpo dessa leitura
consideramos todos os espaços, mas procuramos dar ênfase aqueles
diretamente relacionados aos objetos, à figuração e às vivências, acentuando
com eles a riqueza de detalhes que as fotografias do período mostraram
valorizar.
Embora tenhamos analisado todas as imagens técnicas, foi necessário
grande esforço seletivo para chegar às 32 imagens presentes no corpo da
dissertação incluindo as imagens dos álbuns e duas fotografias (uma do ano
de 1983 e outra de 2004, ambas diretamente relacionadas ao ano de 1958). O
critério de escolha primou pela relevância dada às mesmas durante a conversa
com os proprietários dos acervos fotográficos, considerando também o maior
número de dados ou “informações” por elas armazenadas.
Contabilizamos, aproximadamente, seis horas de entrevistas com
nossos “guardiões da memória”, dessas, três horas apenas com D. Cira e a
outra parte do tempo com Ricardo e Margareth. Não incluímos nesse
somatório as longas conversas pelo telefone, nas quais sanamos dúvidas ou
formulamos outras, tal o volume de histórias e dados que foram acrescentados
às imagens.
No caminho processual que se seguiu cabe voltar às questões
propostas na introdução. De que maneira a memória coletiva dos Anos
Dourados teria se servido das memórias edificadas pelos álbuns de
família da década de 50?
Nesse sentido, inicialmente é possível afirmar que fotografias e
entrevistas associadas forjaram o aparecimento de uma outra imagem um
retrato social mais amplo e figurativo. A fotografia de uma sociedade que não
se vê nos documentos oficiais nem no aparato burocrático, uma visualidade
presa à família e aos olhares construídos sobre ela.
11
As imagens disponibilizadas e “escolhidas” por D. Cira, Ricardo e
Margareth intercambiaram passado e presente, revelaram o desejo de
memória que recaía sobre os seus ascendentes, projeção do mesmo desejo
que ainda os alimentam e movem nos dias atuais.
Ao longo da pesquisa, em todas as falas e na identificação dos
registros visuais e descritivos atribuídos ao período, percebemos o uso
recorrente de expressões e significados (relacionados entre si) como:
esperança, progresso, otimismo, sonho, tradição, beleza, oportunidade,
mudança e conquista.
Essa rede de idéias, presente em todas as construções das memórias
individuais com as quais trabalhamos, serviu para reforçar a argumentação
estudada anteriormente em Halbwachs; segunda a qual a memória coletiva se
estabelece a partir das relações entre o indivíduo e o lugar que ele ocupa
socialmente. Desse modo, D. Cira “a professora”, Ricardo “o fotógrafo” e
Margareth “a cientista social” exercitam seu olhar em trânsito por espaços
diferentes; conjugando distintas experiências a professora aposentada é
também a dona-de-casa e a menina apaixonada dos anos 50, o fotógrafo e
industriário é também o rapaz apaixonado por fotografia e a cientista social é
também a mãe e a filha em todos eles reside o “testemunho”, o olhar que
fortalece ou debilita um acontecimento do passado.
Assim, em que pese o fato de que nem todos estivessem presentes
aos eventos retratados, as memórias individuais estabelecidas pelas
fotografias de nossos guardiões podem ser apontadas como exemplos de
imagens que contribuíram de forma valorosa para edificar a memória coletiva
do período estudado.
Os retratos de família investigados ao longo da pesquisa, produzidos
no cenário do s-guerra brasileiro pela ação, em particular, de camadas
médias urbanas da população, apresentavam várias evidências de uma
visualidade que seria, no passar do tempo, absorvida e impressa pelo
imaginário coletivo como sendo típica dos Anos Dourados.
Vale lembrar a presença de referências visuais do universo publicitário
da época em retratos como o de D. Cira ao lado da piscina em Caxambu
12
(fotografia 29), reconhecida também no cuidado com a pose na foto da mãe de
Ricardo (fotografia 10). Por outra, que se destacar como emblema do
caráter fotográfico, presente nos retratos de família dessa época, a solenidade
de algumas das imagens como as de formatura (fotografia 6), a produção e o
aparatocnico exigido pelas imagens de casamento (fotografias 18, 19, 20 e
21) e o movimento e o dinamismo sugerido em outras ocasiões (fotografias 8
e 11).
A junção desses elementos, aliada ao fato de que o período assinala
um acentuado processo de popularização da fotografia, movimento estimulado,
entre outras coisas, pela compactação das câmeras e pela sua chegada ao
mercado como objeto de consumo de uma parte mais ampla da população
explica a quantidade expressiva de imagens que passam a povoar os álbuns
de família editados desde então. Chamam a atenção o volume e o destaque
que são dados a essas fotografias dentro das coleções evidências do que
chamamos “euforia fotográfica” – uma combinação dos recursos para
materialidade das fotos com os desejos de projeção e de representação.
Outra singularidade do período é marcada pelo número significativo de
fotografias produzidas no espaço interno das casas, com uma figuração
predominante de pessoas e uma ausência quase absoluta de paisagens
naturais. O elemento humano, mesmo considerando que os álbuns de família
a ele dão primazia desde sempre, reina soberano nas imagens da época
nada de casas, prédios, jardins ou fazendas sem o personagem, o indivíduo ou
a pessoa. Ao contrário dos álbuns da atualidade no qual se reconhece como
comum a presença da paisagem de praia ou de um r-do-sol, belezas
naturais que podem aparecer e aparecem com freqüências sozinhas,
associadas apenas ao gosto estético do “dono” das fotografias.
Na década de 50 a popularização do “clic” entre as camadas médias
urbanas contribuiu para promover o amadorismo fotográfico, o bito de “tirar
retrato” passou a o se restringir mais ao universo profissional. Com a
máquina começou a ser possível “brincar” de fotógrafo, alternando as tramas
do gesto sério e do espontâneo, sendo formal e informal, cobrindo de novos
significados o antigo desejo de representação.
13
Essa perceptível revitalização da fotografia no período contribuiu para
apontar os paradoxos de uma sociedade marcada pela velocidade, pela
rapidez e pelo instantâneo dos ritmos industriais, uma sociedade, ao mesmo
tempo, suscetível à experiência do tempo sugerida pelo ato de fotografar.
Um jogo de circunstâncias que explica, em parte, as razões que
levaram o cenário cultural brasileiro, a partir dos anos 80, no esteio do “boom
de memória” que assolou as sociedades contemporâneas, a promover uma
rememoração produtiva, aguçando as lembranças de um período conhecido
como Anos Dourados.
Na contínua compreensão do processo que levou a essa visualidade,
própria do pós-guerra brasileiro, também perguntamos: qual o papel dos
álbuns e de seus fragmentos fotográficos na construção de um museu da
família? Como são montados esses acervos? Como e quando os álbuns
de família configuram um patrimônio? Em que categoria patrimonial os
álbuns podem ser inseridos?
Para tanto, vale lembrar que o retrato, gênero fotográfico de excelência
nos álbuns de família, revelou-se durante o mesmo período um objeto de
consumo muito desejado e, não raro, presente em todos os cenários e
camadas sociais. Esse olhar sobre os retratos trouxe consigo outros objetos
igualmente valorizados dentro do universo familiar, todos como parte de um
acervo ou coleção, configurando a noção de “museu de família” (a camisola do
batizado, a primeira câmera fotográfica, a toalha da Ilha da Madeira).
Ao longo da investigação, no diálogo com as imagens, os elementos
desse “museu” insistiam em aparecer, mesmo quando ausentes na fotografia
objetos cuidados como peças raras, impregnados de lembranças e, por isso
mesmo, tratados como relíquias.
O olhar sobre esses objetos emprestando a eles papéis tão
significativos e hierárquicos; o primeiro retrato, o vestido de noiva, a roupa do
batizado, entre outras coisas, revelou que eles são capazes de produzir uma
certa aura de nobreza e relevância.
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Outra visão sugerida pela pesquisa aponta também para o fato de que,
no correr desse rememorar, o passado se “glamouriza” e aproximar-se dele ou
conhecê-lo bem passa a ser um elemento de grande valor social. Fios
invisíveis parecem ligar os objetos desse museu a todos os membros da
família, estabelecendo assim uma memória oficial no universo particular. A
serviço dessa memória foram (e ainda o) criados os álbuns de família; um
exercício visual e narrativo capaz de determinar o lugar do indivíduo no corpo
social.
Tal como foi proposto por Maurice Halbwachs o que está em jogo não
é “reviver” nem retomar o passado “tal como foi”, mas estabelecer relações
entre o homem e a sociedade de ontem e de hoje, fazendo lembrar uma “ação
coletiva” capaz de garantir a criação de uma nova identidade.
As fotografias disponibilizadas e “oferecidas” à pesquisa foram tratadas
pelos guardiões como imagens “eleitas”, afetivamente marcadas por boas
recordações. Contudo, perguntamo-nos muitas vezes onde estariam
guardadas as recordações ruins. Em que parte do museu ficariam alocadas as
más recordações? E elas, certamente, também estiveram presentes. Com o
que não se desejou lembrar esbarramos algumas vezes, incômodos que foram
vislumbrados durante as entrevistas, presentes mesmo “dentro” das boas
imagens.
Os vestígios desse, tantas vezes doloroso, rememorar foram
reconhecidos em D. Cira, nas marcas da morte de um tio querido ou na
fotografia retirada do álbum para não “incomodar” um dos familiares com a
imagem do “desafeto”; em Ricardo, na dor pela ausência do pai, combatida
pelo desejo de posse de suas imagens; em Margareth, no desejo de
superação da enfermidade da mãe, angústia do presente. Todos esse sentidos
e sensibilidades, aguçadas no trato com as imagens, formaram um
emaranhado de sentimentos capaz de alternar boas e más recordações,
determinando memória e esquecimento.
Os retratos, por sua vez, continuaram demonstrando sua capacidade
de movimento, indo e vindo no circuito familiar, merecendo lugar de destaque
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dentro do acervo dos museus familiares ou ocultos por um calculado
esquecimento.
Ao longo da pesquisa, para falar do álbum, em particular, do álbum da
década de 50, foi preciso reaprender a usar a palavra patrimônio; retomando
as considerações que apontam a posse das fotografias como os devotos e
religiosos se apropriam de símbolos e representações de identidade, usando
os mesmos para agir dentro da sociedade e não apenas para se comunicar
dentro dela, considerando o caráter construtor do patrimônio, essencial para
formar as pessoas.
Desse conceito e percepção chegamos à idéia do patrimônio
simbólico, representado no cenário da pesquisa pela coleção de imagens
fotográficas dentro de um acervo particular. O legado simbólico dessas
imagens revelou o sentido da aquisição e da herança para cada um dos
membros da família.
Ainda no mesmo campo de observação, questionamos a
representatividade das imagens de casamento produzidas na década de
50. Que discurso visual elas encerrariam?
Nos retratos de casamento, produzidos nos Anos Dourados,
vislumbramos a tônica da visualidade do período, as marcas da tradição e da
modernidade como elementos inseparáveis, indissolutos na trama que compõe
um grupo familiar.
A memória do amor do casal sustentada pela fotografia é, ao mesmo
tempo, a memória de outras duas famílias que se renovam e se ampliam no
conjunto social. Junto ao casal, pais, irmãos, avós, tios e primos constroem
suas próprias lembranças e refletem em suas memórias individuais um “ponto
de vista” da memória coletiva.
Entre as camadas médias urbanas da população, a produção e o
aparato exigidos pelos retratos de casamento apontaram o crescimento dos
álbuns temáticos e individualizados a partir da segunda metade do século XX.
Tendência que viria a consolidar uma percepção da fotografia de família como
parte de um discurso visual, emblema de uma sociedade marcada pelas
aparências, indícios de que já flertava com o exibicionismo da atualidade.
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Os retratos de casamento analisados, reconhecidos desde o primeiro
instante como uma das partes mais significativas das fontes, acabaram por
revelar, no conjunto, alguma autonomia dentro da pesquisa, merecendo
destaque pelas possibilidades narrativas que traziam consigo.
De outra feita, percebemos que de forma generosa as fotos de família
são objetos carregados de afeto e para sobreviver, como relíquias, precisam
da proteção dos guardiões da memória familiar. Quais seriam, portanto,
esses guardiões e protetores? Que camadas de memória revestem essa
proteção? Quais as especificidades dessa coleção e de seus
colecionadores? E mais... Que experiências narrativas os álbuns de
família podem deflagrar? Qual seria a relevância dessas narrativas na
construção e permanência dos grupos familiares?
De nossa análise apreendemos que a sobrevivência das coleções
fotográficas dentro das famílias ou a permanência delas se tornou possível
graças à figura do “guardião”, responsável ou gestor da iconoteca da família,
um “dublê de arquivista”, identificado em nossos estudos como o narrador
capaz de atribuir uma ordem de pertinência e ao acervo.
Durante o trabalho de campo foi possível perceber a estreita relação
entre a experiência narrativa e a experiência fotográfica, sobretudo, no que
concerne à fluidez e à subjetividade da memória. Nesse caso devemos
considerar as diferenças no “contar” de nossos guardiões... A espontaneidade
e a bagagem de histórias de D. Cira; a dificuldade inicial (gradualmente
vencida) por Ricardo, ao tratar de um assunto que lhe é tão caro a fotografia
e, finalmente, a praticidade e a delicadeza do rememorar de Margareth. Das
sutilezas com que foram estabelecidas algumas diferenças no que tange à
forma com que cada um tratou as suas lembranças é possível destacar
também algumas semelhanças.
Nesse contexto, o estudo das fotografias de família não foi revelador
apenas de uma representação visual da cada de 50, mas, sobretudo, do
significado que essa representação tem para a atualidade, na montagem de
quadros sociais e na formação de um mercado de memória no Brasil.
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A subjetividade, presente tanto na fotografia como na memória, é um
traço revelador do caráter de trama e construção a revestir essas duas
instâncias. Na magia impressa nas fotografias de família percebemos, uma vez
mais, o caráter fetichista dos retratos, a dor reconhecida como comum diante
de retratos rasgados; uma postura que evidencia que as imagens têm em si,
mais do que muitas vezes somos capazes de reconhecer, elementos com os
quais as famílias erguem pequenos altares, celebrando e cultuando os “seus”
regularmente.
que se reforçar também que, como um monumento de lembranças,
os álbuns de família serviram para edificar a memória afetiva dos grupos
familiares. Esses monumentos foram erguidos através da ação circular entre a
memória do indivíduo e do grupo, uma espécie de movimento mediado pelo
afeto e marcado pela defesa contra a morte e o esquecimento.
A figura emblemática dos guardiões da memória deve-se às
delicadezas da arte narrativa fotográfica; o cuidado com as legendas, a
associação dos retratos, a composição de páginas ou na seqüência das
imagens; por suas mãos e palavras é tecida a lembrança que eterniza e
fortalece a unidade do grupo.
Tal como vimos no capítulo Memória e Coleção o guardião é o
colecionador por excelência; “suas” fotografias são presididas por uma “lógica
interna”, possuem repertórios, códigos, referências, indícios da identidade de
seu “dono” e se apresentam como uma “obra aberta”, uma “crônica familiar”.
É desse guardião, do tecido de representação impresso em suas
lembranças, das fotografias que marcam uma coleção sem data prevista para
terminar que chegamos à Álbuns de Família: Fotografia e Memória dos Anos
Dourados.
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