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LUCIANA SCHENKEL
A DEMANDA DO SANTO GRAAL E SEUS
ENTRECRUZAMENTOS
PORTO ALEGRE
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA
LINHA DE PESQUISA: RELAÇÕES INTERLITERÁRIAS E
TRADUÇÃO
A DEMANDA DO SANTO GRAAL E SEUS
ENTRECRUZAMENTOS
Luciana Schenkel
ORIENTADORA: Profa. Dra. Lúcia Sá Rebello
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, do Instituto de
Letras, da Universidade Federal de Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para
a obtenção de título de Mestre em Letras.
PORTO ALEGRE
2009
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AGRADECIMENTOS
- Esta dissertação é dedicada a minha orientadora, Lucia
Rebello, mescla de mestra rigorosa e mãe acolhedora. Agradeço a
ela por me introduzir no mundo da Literatura Comparada e por ser
minha condutora nessa travessia.
RESUMO
Este trabalho é um estudo comparativo entre dois romances de Chrétien de
Troyes, Lancelot ou o cavaleiro da Charrete e Perceval ou o Romance do Graal e A
Demanda do Santo Graal. Através desse estudo, pretende-se mostrar que a leitura
de cada romance, separadamente, pode levar a enganos interpretativos, uma vez
que não se considera o contexto geral em que as obras foram produzidas.
Dessa forma, neste trabalho busca-se uma leitura mais completa dessas
obras que se daria em três etapas: a leitura que cada autor fez do mito do Rei Artur,
que foi sendo aos poucos construído, a leitura do contexto medieval feita por cada
autor e as diferentes leituras que um autor leva a enxergar no outro, o que não seria
possível sem o cruzamento dos textos.
Para tanto, serão perseguidos nas obras o tratamento dado às mulheres e a
construção da figura do herói nos três romances. Através dessas linhas
investigativas pretende-se demonstrar não aquilo que as três obras possuem de
traços em comum, mas principalmente, o que possuem de diferente.
Primeiramente, será revisada a fortuna crítica a respeito da matéria da
Bretanha, buscando mostrar o que foi afirmado de mais relevante sobre esses dois
aspectos perseguidos, pelos principais autores que se debruçaram especificamente
sobre as obras estudadas e sobre esse conjunto de histórias que envolvem o rei
5
Artur e sua corte. Num segundo momento, será explicitada a teoria da
intertextualidade enfatizando a contribuição indispensável do olhar intertextual para
a análise das obras. A partir disso, será feito o cruzamento dos três textos para que
se comprove a mudança que a teoria da intertextualidade proporciona à leitura das
três obras.
Ao fazer uso das teorias da literatura comparada, particularmente a
intertextualidade, pretende-se demonstrar que A Demanda do Santo Graal é uma
continuação de Lancelot ou o cavaleiro da charrete e de Perceval ou o romance do
Graal, em que a presença dos elementos cristãos vai aumentando gradativamente, e
não seu oposto como afirma a maioria dos especialistas na matéria da Bretanha.
6
ABSTRACT
This work is a comparative study of two novels of Chrétien de Troyes,
Lancelot or the Knight of the chariots and Perceval or the Romance of the Grail and
The demand of the Holy Grail. Through this study it intends to show that the reading
of each novel, separately, can lead to misleading interpretations, since it is not
considered the general context in which the works were produced.
Thus, in this paper it aims a more complete reading of these works that would
be in three stages: the reading that each author has made from the myth of King
Arthur, which was built in phases, the reading of medieval context made by each
author and the different readings that one author leads to see the other, which would
not be possible without the crossing of the texts.
Thus, it will be pursued in the works the treatment directed to women and the
construction of the figure of the hero in three novels. Through these investigative
lines it intendeds to demonstrate not only what the three works have in common
features, but mainly, which are different.
Firstly, it will review the critical fortune on the matter of Britain, seeking to
show that the most relevant was said about these two important aspects pursued by
the major authors that focused specifically on the works studied and on the stories
involving the king Arthur and his court. Secondly, will be outlined the theory of
intertextuality emphasizing the indispensable contribution of the gaze to the
7
intertextual analysis of the works. From this, it will be the intersection of the three
texts to prove the change that the theory of intertextuality provides the reading of
three works.
By making use of the theories of comparative literature, particularly the
intertextuality, it intends to demonstrate that The demand of the Holy Grail is a
continuation of Lancelot or the Knight of the chariots and of Perceval or the Romance
of the Grail, in which the presence of Christian elements increasing gradually, and
not its opposite, as affirm the majority of experts in the matter of Brittany.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................... 9
1 AS VÁRIAS LEITURAS DA MATÉRIA DA BRETANHA. 20
2 UM OLHAR INTERTEXTUAL.............................. 28
3 O CRUZAMENTO DOS TEXTOS................................................................... 35
3.1 A condenação de Genevra...........................................................................
38
3.2 A absolvição de Guinevere.......................................................................... 51
3.3 Lancelot, Perceval ou Galaaz? ................................................................... 59
3.3.1 Filho de cavaleiro, cavaleiro é................................................................... 62
3.3.2 A santificação de Galaaz........................................................................... 73
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................
88
INTRODUÇÃO
[...] se vos preguntarem novas de mim, respondede-
lhis que rei Artur veo per ventura e per ventura se
partiu, e êle soo foi rei aventuroso.
A Demanda do Santo Graal
Segundo Ivo de Castro, poucas literaturas mundiais ignoram as lendas do rei
Artur. Embora seja sedutor afirmar que as lendas dos cavaleiros da Távola Redonda
pertençam à literatura francesa, ou ainda que tenham sua origem em territórios
bretões, é fato que a chamada matéria da Bretanha é universal. Não obstante o
nascimento das histórias do rei Artur ocorram a partir das lendas celtas, ainda que
haja uma grande influência da literatura francesa e um grande número de romances
que foram escritos em inglês medieval e traduzidos em toda Península Ibérica, é
preciso estudar a história da chamada matéria da Bretanha sob uma perspectiva
universal que amplie a análise dos textos.
Por isso é necessário que o pesquisador, interessado por esse ciclo de
romances e histórias que contam as lendas do rei Artur, olhe para além da literatura
nacional a que pertencem. Estudar essas histórias em cada literatura em que foram
criadas ou para qual elas foram traduzidas talvez não seja a melhor maneira de
abordar o ciclo Arturiano, embora isso o invalide análises que abordam o mito de
10
Artur dentro de uma literatura nacional, mas uma nova maneira de olhar para essas
histórias se faz necessária. Ampliar a visão crítica dessas histórias é o que busca
esse trabalho que se pretende comparatista.
Podemos considerar a matéria da Bretanha como o conjunto de histórias que
envolvem o Graal, a Távola Redonda, o rei Artur e demais cavaleiros que são seus
companheiros e se envolvem em aventuras de todo tipo. Essas histórias diferem
entre si de muitas maneiras: no desfecho das tramas, nas personagens envolvidas e
no tratamento dedicado às mesmas. Porém, a despeito dessas diferenças, as
histórias sobre o rei Artur sempre apresentam elementos em comum.
A figura do rei Artur, histórica ou não, apesar de um mito único, permitiu
inúmeras leituras. o essas leituras e o que de semelhante e diferente elas trazem
que se busca discutir nesse trabalho. Para além da discussão histórica da origem de
Artur, que será tocada no primeiro capítulo, a discussão será em torno das obras
que foram escritas a partir dessas primeiras referências a Artur, que misturam
história e ficção. Ao sair do domínio da história, muitas obras foram escritas
narrando os acontecimentos da corte de Artur e os feitos de seus cavaleiros.
Serão analisadas três obras significativas para as histórias do rei Artur. A
forma de escolha das obras a serem trabalhadas nessa pesquisa recaiu na sua
importância para a permanência das lendas. Por isso, a escolha de Lancelot, o
cavaleiro da charrete, Perceval ou o romance do Graal, de Chrétien de Troyes e a
Demanda do Santo Graal.
Megale, em sua obra A Demanda do Santo Graal, das origens ao códice
português, explicita o porquê da escolha dessas obras já que
dos romances de Chrétien de Troyes partem desdobramentos do gênero no
século XIII, dificilmente explicáveis sem referência, em particular, ao seu
11
Chevalier de la charrete e a seu Perceval ou Le Conte du Graal. (MEGALE,
2001, p. 39)
Perceval, uma das obras consideradas mais importantes do ciclo Arturiano e
a primeira em que aparece genuinamente o graal ainda que não associado a Jesus,
mas sim como um objeto mágico que representaria morte e nascimento, assim como
os rituais pagãos que ainda resistiam nesse estágio do cristianismo. Lancelot é a
obra em que podemos encontrar destaque para o adultério de Lancelot e Guinevere,
para que possamos compará-las a Demanda do Santo Graal, buscando a correlação
dos temas.
Segundo a crítica em geral, Chrétien é o maior autor da literatura Arturiana,
pois, embora tenha se utilizado do mesmo material que os demais autores que se
apropriaram dessas lendas, conseguiu, em finais do século XII, imprimir um estilo
próprio em suas histórias, dando-lhes um acabamento que falta às outras, e
contribuindo de maneira inegável para a permanência das lendas do rei Artur.
Não se sabe muito da biografia de Chrétien, apenas que ele teve uma forte
ligação com a corte de Champagne e que suas primeiras histórias são dedicadas à
condessa Marie de Champagne. Sabe-se, também, que, mais tarde, ele mudou seu
patronato, passando a servir a corte do conde de Flandres, quando, então, escreve
Perceval ou o romance do Graal, morrendo e deixando-o inacabado.
Embora Chrétien seja considerado precursor das histórias do rei Artur, é
consenso entre os estudiosos que outras fontes foram utilizadas por autores cujas
obras priorizam o graal como elemento ligado a Jesus e que dão destaque ao rei
Artur (personagem que pouco aparece nas obras de Chrétien). Robert de Boron teria
sido o primeiro autor a cristianizar o cálice sagrado, em 1199, e sua história mostra
pontos bem diferentes das histórias de Chrétien, o que nos leva à conclusão de que
12
sua fonte, mais cristianizada, é diferente do escritor francês, pois os romances de
Chrétien, embora apresentem um fundo pagão para o desenvolvimento de suas
histórias, segundo a crítica, em geral não apresentam um comprometimento de sua
narrativa com o cristianismo.
O que realmente encanta nas histórias de Artur é justamente sua múltipla e
diferente origem. Artur e seus cavaleiros eram personagens populares na época, e
as histórias a partir da Bretanha de língua céltica e de Gales tinham-se espalhado
por outros países. Não há por que discutirmos infinitamente qual a verdadeira
origem dessas lendas, se há ou não um fundo de verdade histórica nelas, se
podemos nos deleitar com mistério e beleza que essas lendas trazem desde
sempre.
Depois de Chrétien, as histórias vão aumentando. As obras são traduzidas
para todas as línguas do ocidente cristão, reescritas, fundidas, acrescidas em
número de personagens, influenciando muito a maneira de pensar (ou pelo menos o
conceito do que deveria ser o ideal) dos cavaleiros.
Estamos nos domínios da literatura e podemos começar a pensar no rei
Artur como um tema literário. Sendo assim, Artur passa da história ao mito e do mito
ao tema: “El mito, al pasar del dominio antropologico e historico-reliogioso al de las
escrituras literárias habria de ser definido más propriamente como tema” (TROCCHI,
2002, p.137).
Cria-se o chamado ciclo da vulgata francesa, na qual se inclui a La Quest del
Saint Graal
1
, o Parzival alemão, o La mort d’Artur, de sir Mallory, para citar os
mais conhecidos. O ciclo da vulgata francesa da Matéria da Bretanha compõem-se
1
Conforme Heitor Megale. A Demanda do Santo Graal: das origens ao códice Português. SP,Ateliê Editorial,
2001.
13
de cinco romances: Estoire du Estoire du Graal, Estoire de Merlin, Lancelot du Lac
(romance em três livros), La Queste del Saint Graal e La Mort le roi Artur. São
romances cíclicos e desenvolvem ordenadamente a sequência narrativa, o que não
significa que tenham sido escritos pelo mesmo punho ou mesmo nessa ordem.
Essa é a primeira prosificação das histórias que vinham por conhecimento
oral. Há, mais tarde, uma segunda prosificação que foi denominada como post-
vulgata da matéria da Bretanha. Essa post-vulgata é composta de três volumes:
Livro de José de Arimatéia, O merlin e A Demanda do Santo Graal. Essa é a
Demanda portuguesa, uma cópia única do século XIII, modernizada parcialmente,
que foi escolhida como objeto de estudo deste trabalho, por ser considerada uma
obra cristianizada, e que serviu aos ideiais cristãos.
Assim, será analisada A Demanda do Santo Graal, que é uma
tradução/adaptação da novela francesa La Queste del Saint Graal para a língua
portuguesa, sob uma perspectiva comparatista e intertextual que busque suporte em
outras literaturas para sua sustentação. A demanda portuguesa é a mesma da
vulgata francesa, porém acrescida de um resumo da Morte do Rei Artur, o que faz
dessa obra a mais completa da última parte da post-vulgata. Além disso, traz
recriações feitas pelo autor/tradutor, do ponto de vista de reaproveitar as lendas
pagãs como forma de passar os valores cristãos.
O manuscrito português encontra-se na Biblioteca Nacional de Viena
(catalogado com o número 2594) e contém várias redações feitas entre os séculos
XIII e XV. A versão será utilizada nesta pesquisa é uma versão atualizada para o
português contemporâneo realizada por Heitor Megale em 1988.
Essa obra é considerada marcada ideologicamente pela Igreja, pois é idéia
aceita que A Demanda do Santo Graal foi traduzida por um monge cistercense e que
14
contém em sua trama as pregações da Igreja medieval contra a mulher e sua
suposta e estreita relação com o pecado, entre outras indicações textuais que
apresentam características claras dos ideais cristãos. É consenso tratar-se de um
monge, porque apenas eles tinham conhecimento necessário para empreender um
trabalho como esse, uma vez que, segundo Duby, os clérigos foram os artesãos do
encontro entre a cultura erudita e a leiga, uma cultura que pode se chamar de
cortês.
Observemos o que diz Megale na introdução à sua edição da Demanda do
Santo Graal sobre Perceval, de Troyes:
Ainda que Chrétien tenha conduzido o herói Persival a uma dolorosa
confissão para um ermitão, não se pode dizer que sua obra tenha um
caráter místico ou cristão. (DSG, 1998, p. 3)
A afirmação é feita de forma solta e sem nenhuma explicação, e ainda que
admita que haja, sim, valores cristãos nos textos de Troyes, opta não considerar
essa obra como tendo caráter cristão.
Por serem obras de grande fôlego e trazerem retratados vários aspectos
importantes para o tratamento dos temas citados, será seguida uma linha
investigativa que perseguirá alguns temas nos três romances, para que o trabalho
não se estenda ad infinitum. Serão analisadas as situações que mostram o pecado,
o tratamento dispensado às mulheres e aos diferentes heróis e o tipo de tratamento
dado a essas questões nas obras de Troyes, a fim de apontar até que ponto o
tradutor modificou as lendas orais já existentes e os próprios romances de Troyes
que circulavam com muito apelo de público. Serão estudados, também, até que
ponto essas situações e outros pontos de confluência, ou não, entre as duas obras
faziam parte do imaginário da época, não sendo, apenas, obra da ideologia do
monge tradutor.
15
A primeira análise perseguirá o tratamento dispensado à rainha
Guinevere/Genevra, nas três obras, anjo em algumas, pecadora em outras, alvo da
fogueira em outras ainda. Esposa, adúltera, conquistadora? Como Chrétien nos
mostrou Guinevere? Que tratamento recebeu na obra traduzida para o português?
Que fatores levaram os autores, em diferentes contextos a modificarem ou não a
Guinevere conhecida das lendas orais? Ao observar a rainha que cada autor
construiu, não será possível deixarmos de analisar as relações entre erotismo e
pecado e as forma com que as mulheres aparecem na obra como um todo.
Ao se cruzarem os textos, também será questão de análise que tipos de
heróis destacam-se nas três obras? Comparando-se os três heróis, um de cada
obra, será possível perceber as relações de entre religião e cavalaria, além de
observar se a pureza do corpo é critério para se tornar herói nos romances
analisados.
Portanto, o foco deste trabalho será buscar apontar as modificações de
temas, de mitos, de personagens e de contexto, procurando revelar em que o olhar
intertextual modifica a análise das obras, não priorizando as relações com a história
e com a língua temas exaustivamente trabalhados. A questão da tradução,
embora não possa deixar de ser tocada, apontaria para um próximo trabalho que
seria a análise da obra original em francês buscando as modificações e as escolhas
estritamente textuais feitas na obra em tradução.
Dessa forma, pretendemos mostrar de que forma a leitura de uma obra
influencia a leitura da outra, procurando buscar elementos que comprovem que
Chrétien trazia em suas obras caracteres do cristianismo. Sabendo-se que suas
obras foram de ampla importância para as obras que vieram depois é de se esperar
16
que elas trouxessem em si elementos que estarão presentes nas obras
posteriores.
Procuraremos averiguar se essa influência cristã faz parte do contexto em
que ambas as obras estão inseridas ou são apenas uma questão de ideologia
seguida pelo monge. Encontramos ou não, na tradução do monge, elementos
presentes na obra de Troyes? É certo, como já foi afirmado, que Troyes foi o
principal escritor desse tema, sendo assim ponto de referência para as demais obras
que vieram, nas palavras de Ángel Rama, um criador de tradições. Afirma Rama:
O romancista existe dentro de uma literatura, falando abstratamente,
diríamos que ele nasce dentro dela, nela se forma e se desenvolve, com e
contra ela faz sua criação. E por isso mesmo é herdeiro de uma tradição e
criador de tradições. (RAMA, 1998, p. 63. Grifo meu)
muitos motivos que têm despertado o interesse dos leitores de todas as
épocas e, também, têm feito com que a comunidade acadêmica tenha dedicado uma
grande parte de seu tempo aos estudos sobre a realidade histórica de Artur e sobre
a literatura produzida sobre ele, seus feitos e seus cavaleiros. Afinal, o que pairava
como imaginário medieval e como contexto de produção das obras e o que, de fato,
é criação e invenção do autor da Demanda?
O aproveitamento das lendas do rei Artur foi muito mais uma questão de
contexto do que de ideologia. Uma vez que, ainda nas palavras de Ángel Rama,
um escritor vive dentro da corrente maior da cultura literária, nela se forma
ou se deforma, nela, contra ela, por ela vai criando, ao mesmo tempo que
cria a corrente que o leva. A arte não surge do nada: surge de outra arte.
(RAMA, 1998, p. 80)
Que motivos levam essas histórias à permanência no tempo? Que temas
foram modificados, quais permaneceram? Em que essas modificações contribuíram
para a o enriquecimento das lendas? Qual a relevância da repetição dos motivos
17
entre as obras, ou mesmo entre as diferenças apresentadas entre elas, que revelam
o contexto social da época em que foram escritas? Que importância social têm
essas histórias e qual é a relevância da matéria da Bretanha nos diversos
polissistemas literários, uma vez que sua permanência aparece registrada através
de inúmeras traduções das histórias, feitas para as mais diferentes línguas. Também
se pode comprovar a importância dessas histórias através da permanência dos
romances de cavalaria em momentos que esse tipo de história não correspondia, e
ainda hoje não corresponde, ao presente literário. Prova disso são as recentes
discussões e livros lançados em torno do best seller O Código da Vinci, de Dan
Brown, que centra sua narrativa na interpretação do quadro da Santa Ceia, pintado
por Leonardo da Vinci, e no fato de o Graal na verdade ser uma metáfora para Maria
Madalena e sua descendência como mulher de Jesus, e não um cálice onde teriam
sido recolhidas as últimas gotas de sangue do corpo de Cristo.
Para responder a essas perguntas, é preciso voltar-se ao que foi escrito
sobre as lendas do rei Artur. Quase todos os trabalhos feitos sobre esse tema têm
se mantido em nível de literatura nacional, ainda que não seja fácil dar uma
definição do termo literatura nacional, que “resulta práctico el uso de este término,
como abreviatura de algo más complicado (GUILLÉN, 1998, p. 299), usaremos
neste trabalho a idéia de literatura nacional como cada sistema literário em que a
obra é produzida, ou seja, na maior parte das vezes, as análises do mito do rei Artur,
têm se mantido dentro da literatura inglesa, da francesa e, com menos freqüência,
da portuguesa.
É importante ressaltar que da mesma forma que não uma origem única
para os personagens também não uma fonte única e nem uma homogeneidade
com relação aos nomes dos personagens. Assim, quando tratarmos da Demanda do
18
Santo Graal usaremos a grafia dos nomes tal qual aparecem na obra: Lancelote,
Genevra, Persival. Ao fazer referência aos personagens de Troyes, passaremos a
grafar: Lancelot, Guinevere e Perceval.
No primeiro capítulo, será revista grande parte da fortuna crítica dessas obras
do ciclo Arturiano, procurando trazer o que se tem discutido de mais importante
sobre o tema para, através das teorias da Literatura Comparada, propor uma nova
leitura desses romances no sentido de discutir o cânone interpretativo dessas obras.
No segundo capítulo, será explicitada a contribuição teórica da Literatura
Comparada para que, com esse novo olhar, se possa trazer uma contribuição às
pesquisas já feitas. Como aporte teórico, serão utilizadas várias teorias do campo da
Literatura Comparada, dando ênfase à intertextualidade para que se possa buscar
os elementos em comum nas três obras, mas, além disso, dar um passo além,
identificando aquilo que é diferente em cada uma e as conseqüências dessa
modificação para a obra e para o ciclo de histórias em geral.
No terceiro capítulo, será feito o cruzamento dos textos, apontando os temas
que se repetem, mas, principalmente, aquilo que cada autor traz de diferente em sua
obra, revelando como um autor leu o outro, como cada um interpretou as lendas que
circulavam bastante tempo, mostrando como o contexto de cada época
influenciou em cada obra. Também será analisado o que a leitura intertextual
propiciou. Que diferença entre ler apenas uma destas obras e lê-las juntas?
Como um autor leu o outro, se isso aconteceu e de que forma ocorreu.
Por fim, passando às considerações finais procura-se apontar os resultados
da pesquisa, explicitando as contribuições do olhar intertextual para a nova leitura
dada às três obras.
19
Passemos ao próximo capítulo para abordar as diferentes leituras feitas
sobre a matéria da Bretanha.
1 AS VÁRIAS LEITURAS DA MATÉRIA DA BRETANHA
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós
trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a
nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas
culturas que atravessaram. (Ítalo Calvino).
As histórias do rei Artur por serem tão conhecidas e pertencerem ao
imaginário de vários povos, vêm sendo estudadas por teóricos das mais diferentes
áreas e épocas. A fortuna crítica disponível é grande e interdisciplinar. Como trazer
uma contribuição diferente e significativa para um tema tão debatido? Para
responder a essa pergunta é necessário analisar o que de escrito sobre as
obras em questão e também sobre as lendas do rei Artur em geral. O que seria a
matéria da Bretanha e por que ela desperta o interesse de várias gerações?
As histórias da Bretanha o um “conjunto de aventuras de matriz céltica,
manuscritas nos séculos XII e XIII, cujo quadro convencional é a Bretanha insular ou
continental” (BOCCALATO, 1996, p.102). Tendo uma base pagã, essas lendas
foram aos poucos incorporando elementos do cristianismo e transformando-se a
ponto de quase apagar totalmente sua origem. Sobre o tema, diz Rey:
21
Pero es claro que el celtismo de Arturo y su Tabla Redonda (cuyo
significado es, como se sabe, ele centro de universo) está redibujado a
partir de los nuevos elementos de carácter cristiano que son agregados en
el correr de la Edade Media y que incluyen los conceptos del mundo
caballeresco de esa época. El santo Grial se sumaría entonces a la materia
de Bretaña, fundiendo el rito cristiano la última cena y la sangre de Cristo
con relatos celtas poblados de vasijas y calderos mágicos (...). (REY,
2003, p. 66)
Esse conjunto de histórias tem despertado o interesse de várias gerações de
leitores desde os primeiros relatos a respeito do lendário rei Artur. Em seus
primórdios, aparece em relatos históricos como um duque de guerra ou um rei
honradíssimo que teria vencido batalhas importantes para Bretanha e que, junto com
seus cavaleiros da Távola Redonda, se transformou numa das maiores lendas do
mundo ocidental.
Muito já foi pesquisado sobre a origem histórica do rei Artur, mas as supostas
provas de sua existência esbarram em problemas como a falta de relatos históricos
confiáveis, além de sua existência ter sido identificada em um período de
obscuridade dos registros da história da Bretanha.
O período histórico a que essas lendas remontam é o século VIII, no qual
temos informações relevantes, mas não comprovadas, do rei Artur como figura
histórica, vindas de um Bretão, Nennius. Artur é descrito como um comandante
militar que teria vencido 12 batalhas contra os saxões, sendo a mais gloriosa a de
Badon Hill. Uma outra referência ao Artur histórico são, do século X, as “Annales
Cambriae”, uma cronologia de origem galesa bastante sucinta, obra que registra
para o ano 516 a vitória de Artur contra os saxões e, em 537, registra a morte de
Artur e Medraut, o futuro Mordred, numa batalha. Nessas referências, Artur é sempre
referido como um chefe militar e não como um rei.
Não há, portanto, como buscarmos no aparato histórico embasamento para a
análise dessas histórias. Até mesmo porque, embora se localize o suposto Artur
22
histórico no século VIII, as lendas registram o cotidiano da Idade dia.
Aparentemente, esse anacronismo pode sugerir uma falha na composição das
histórias. No entanto, olhando-se a Idade Média um pouco mais demoradamente,
percebe-se que isso era muito comum, pois, segundo (PERNOUD), a Idade Média
dispensa a cor literária e a documentação histórica e não tinha nenhuma dificuldade
em imaginar Aristóteles, Enéias ou Heitor na sociedade medieval: a sua vitalidade
levava a melhor sobre as noções de tempo e espaço.
Dessa forma, não se pode procurar nas histórias ficcionais nada que
comprove a existência do rei Artur ou ainda cobrar que seus autores tenham
coerência histórica. Para além da figura histórica, ficamos com o mito que foi sendo
construído ao longo de todos esses séculos, uma vez que o imaginário popular
apoderou-se da figura histórica do rei Artur e, retirando-lhe todo o contexto real, deu-
lhe uma nova dimensão.
Abandonando um pouco do domínio histórico, chegamos a Geoffrey de
Monmouth e o primeiro relato a apresentar Artur como rei, em sua Historia Regum
Britaniae, escrito, entre 1135 e 1138. Geoffrey seria o último autor que diz estar
fazendo história, embora não nenhuma comprovação de suas afirmações. Ao
supostamente estar fazendo história, ele acaba por dar alguns dos últimos
elementos da futura lenda Arturiana. Estamos nos limites entre história e literatura e
podemos passar a considerar Artur como um mito, se levarmos em conta a definição
de mito como “ilustración simbolica y fascinante de una situación humana ejemplar
para um determinada colectividad” (TROCCHI, 2002, p.149).
Ao estudar a permanência dessas histórias que são contadas e recontadas,
muitas vezes com elementos diferentes, devemos tratá-las como mitos. Elas
conservam uma matriz única e que se revela presente no imaginário de muitos
23
povos. Em todo mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias
os mitos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de
todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.
(CAMPBELL, 2007, p. 15).
Segundo Lisa Block de Behar, a reflexão sobre os mitos é quase tão antiga
quanto os próprios mitos:
Las variaciones de su permanencia y repetición, los acontecimientos que
confirman la eternidad mítica y extienden las incontables elaboraciones que
procuran abstraer las formas estables de esa prolongación discursiva.
(BEHAR, 2003. p. 7)
Do ponto de vista de J. Manuel García Rey (2003), o mito é parte ativa dos
sistemas simbólicos que relacionam o homem com o mundo e com a linguagem. É
através do mito que o homem se abre ao mundo que o rodeia e, ao mesmo tempo,
consegue sair do particular para o universal. Portanto, quando se trata de mitos,
devemos buscar compreender o que é imaginário, aquilo que agrupa o que há de
particular nos “sonhos” dos homens para torná-los coletivos. Dessa forma, este
trabalho se inscreve no campo do imaginário coletivo, ou seja, esta pesquisa
buscará mostrar como o cotidiano vivido era representado na imaginação do homem
medieval.
Há alguma coisa no conteúdo dessas histórias que encontra aceitação e
reconhecimento em nossas almas desde sempre. Assim, podemos pensar que a
matéria da Bretanha possui elementos que correspondem ao imaginário dos mais
variados povos, das mais variadas culturas, em diferentes épocas e regiões.
Para que as obras tenham sobrevivido é necessário que fossem escutadas
e que provocassem reconhecimento em quem as ouvia. Elas tinham relação
com as preocupações das pessoas para quem elas eram produzidas, com a
sua situação real. Inversamente, elas não deixaram de influir sobre a
conduta daqueles que lhes davam atenção. Essa literatura foi aceita, sem o
24
que nada restaria dela (embora a realidade da transmissão manuscrita nos
leve a perguntar se a aceitação foi tão rápida). (DUBY, 1998, p. 59)
Do ponto de vista de Roberto Mello, o ramo da pesquisa histórica sobre o
cotidiano é recente, mas já existem boas obras que dão conta de explicar como era
o dia-a-dia do homem medieval. Por isso, o autor defende que mais importante que
saber como os homens viviam em épocas passadas é saber como eles pensavam e
representavam a realidade. Não que o contexto socioeconômico e político não sejam
importantes para a interpretação dos fenômenos que aqui serão tratados, mas a
idéia principal é traduzir os ideais, as motivações e as aspirações do homem
medieval que controlam os fatores anteriormente citados.
De todas as formas de registro ao alcance do historiador, a literatura torna-se
um dos melhores segmentos para as análises dos fenômenos do cotidiano e do
imaginário, pois nela não regras na criação do possível e impossível, sua
aceitação é medida pela identificação que o público tem com a obra, ainda mais em
se tratando da literatura medieval que, devido ao aproveitamento de fatos e lendas
transmitidos oralmente, transcende as questões de autoria e coloca nos escritos
feitos por autor, muitas vezes anônimo, essa relação com o público que comprova a
identificação com as “fantasias” descritas na obra.
A literatura medieval está fortemente ligada a sua época, inseparável das
realidades que constituíram a vida quotidiana do tempo. Todas as
preocupações contemporâneas: expedições militares, prestígio de um rei,
erros de um vassalo, lutas religiosas, foram rimadas, ritmadas, amplificadas,
reatadas, enfim, ao grande domínio poético da humanidade por estes
contadores incansáveis e seu blico sequioso de poesia. (PERNOUD,
p.117)
Dessa maneira, o que estas histórias nos passam é cotidiano do ambiente
medieval, ainda que de forma reconstruída e imaginada. É a representação do
cotidiano de reis, damas e cavaleiros, nobres, dos palácios, das cortes e das
florestas. Não aparece quase nada do cotidiano feudal. Mas devemos lembrar que
25
essas histórias prezam pelo fantástico e por todo tipo de coisa visível que possa
comprovar o mundo invisível (como Graal). O ciclo do rei Artur é o mais fantástico
das histórias da Bretanha. E mesmo que para o homem medieval algumas das
passagens dessas lendas pudessem ser muito fantasiosas, “toda efabulação por
mais fantasiosa tem uma base real. O cotidiano medieval foi filtrado para nos
mostrar uma visão ideal da sociedade” (MELLO, 1992, p.123).
O que temos, então, nessas obras, não é o cotidiano real da corte, mas, sim,
uma idealização dela e das relações que nela se desenvolviam. O que aparece o
os sonhos, as esperanças e aquilo que os homens da época imaginavam e
esperavam que acontecesse numa corte como a do rei Artur.
Assim como o aparecimento do Graal, a mescla com a cultura cristã é do final
do século XI. Os temas, como as personagens, não vieram agrupados desde as
origens das lendas. Eles pertencem a fundos míticos e folclóricos diversos, alguns
nascidos em lugares distantes, tendo sofrido migrações e, finalmente, a função com
o grupo Arturiano a partir de um determinado momento. Muitas vezes, os
personagens são trabalhados por inspiração dos autores, mas, outras vezes, são
trabalhados apenas por virem agrupados nas lendas. Quanto de inventividade do
autor está presente e quanto de material a tradição forneceu é uma questão
insolúvel.
Segundo Jean Frappier, na verdade o que importa não são bem os autores,
mas a matéria em si. Porém, mesmo em um momento coletivizador como foi a Idade
Média, no qual as questões de autoria não estavam bem definidas, além de o autor
que se propusesse a contar um história sobre Artur estar contando na verdade uma
história que havia sido contada muitas vezes e que era de domínio de muitos,
26
que se procurar a importância do olhar de cada autor que reflete de forma muito
particular o contexto da época.
Pode-se pensar que a matéria da Bretanha representava um dos imaginários
da era medieval, contendo histórias que facilmente chamariam a atenção das
pessoas, além de fazer parte da cultura e de se tornar veículo de fácil transmissão
de outras idéias. Portanto, os temas presentes nas histórias que aparecem nA
Demanda do Santo Graal e nas obras de Troyes estavam pairando de certa forma
na cabeça do homem medieval, pois o imaginário nada mais é que o sonho coletivo,
aquilo que em comum nos sonhos de uma civilização, de um povo, de uma
época.
Então nada mais simples do que aproveitar o que já estava presente de forma
consciente – ou talvez não – para introduzir uma nova maneira de enxergar o
mundo. O desejo da busca e da preservação das lendas antigas, aliado a uma forma
de a Igreja exercer um controle da cultura que existia independente da cultura
clerical, mostrando um pouco de tolerância com os pagãos e aproveitando para
cristianizá-los, talvez levasse ao aproveitamento dessas histórias tão antigas pelo
autor/tradutor da Demanda. Porém, fica a pergunta a ser respondida no término
desta pesquisa, qual seja, separar porque o imaginário e o contexto servem para
explicar a presença de diversos temas nas obras, mas não são levados em conta
para explicar a suposta ideologia católica presente na Demanda do Santo Graal?
Seria essa cristianização natural ou programada?
Essas questões podem ser interpretadas apenas através do levantamento
dos pontos convergentes e divergentes, mas devem ser apontados os motivos que
levaram Chrétien de Troyes a fazer uma leitura diferente das que já existiam e ainda
o que levou o tradutor/autor da Demanda a lê-las de maneira oposta. Este trabalho,
27
através da leitura intertextual, vai procurar apontar como as leituras de ambos estão
entrecruzadas, embora eles tenham posicionamentos completamente diferentes.
2 UM OLHAR INTERTEXTUAL
A concepção do intertexto somente possível a partir da quebra da
concepção ontológica monista e do advento de um pensamento relacional sistêmico
– representou um salto gigantesco para além do ponto-chave metodológico da
literatura comparada do século XIX, basicamente eurocêntrica: a relação binária
fonte-influência. Uma relação de dívida.
Com o questionamento ostensivo das bases que sustentavam a estrutura do
pensamento ocidental devido à própria globalização sócio-econômica, à qual o
Iluminismo serviu como suporte técnico-intelectual, surge a necessidade de uma
visão sistêmica dos processos culturais cada vez mais problematizados em sua rede
de interferências mais ou menos mútuas. Isso é embasado em um novo
direcionamento metafísico, que é justamente a relativização das categorias unitário-
ontológicas em seu estatuto de universais estáticos. A este desenvolvimento da
reflexão acerca da cultura como campo que engloba todos os aspectos do “ser
humano no mundo e através do mundo podemos chamar de pensamento relacional”
(EVEN-ZOHAR, 2005, p. 34).
O pensamento relacional soluciona questões epistemológicas na mesma
medida em que problematiza seus objetos de estudo. Sendo um foco, ele trará
novos ângulos para antigos objetos de estudo, assim como trará novos objetos à luz,
29
do mesmo modo que fará com que antigos objetos se desfaçam diante,
precisamente, dessa nova luz dada a cenários antigos.
dois possíveis caminhos para serem seguidos na análise dessas obras
através do olhar intertextual. Pode-se tanto buscar as semelhanças e diferenças
entre as obras, procurando observar como um autor leu o outro, quanto mostrar qual
a diferença entre ler apenas uma obra e ler as três obras em questão.
Lembrando que não basta ao comparatista apontar as semelhanças e
diferenças entre as obras colocadas em comparação, passamos do tempo de
buscar possíveis dívidas de uma obra a outra. Cabe-lhe, sim, buscar as diferentes
maneiras com que um tema ou um autor são lidos e tentar identificar os motivos que
determinaram as diferenças entre as leituras.
Falar em intertextualidade entre textos que trazem o mesmo tema parece
fácil, bastaria levantarmos os pontos de convergência para que declarássemos a
intertextualidade entre os textos, porém o verdadeiro comparatista não pode ficar
nessa primeira análise, até porque, conforme Dowe Fokkema afirma, análise e
interpretação são duas coisas distintas:
A análise textual determina os elementos que são portadores em potencial
de significado a serem compreendidos pelos intérpretes, mas não permite
uma ligação lógica entre esses elementos e uma decisão interpretativa. A
interpretação pode basear-se na análise textual, mas é mais que isso.
(FOKKEMA, IBSCH, 2006, p. 35)
Com a contribuição teórica advinda da semiologia de linha estrutural, foi
necessário um repensar sobre o objeto literário, assim, também pelas contribuições
de Bakhtin e J. Kristeva, o conceito de texto se amplia, através da intertextualidade.
Como diz Kristeva,
30
todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de
intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética
se lê, pelo menos, como dupla. (KRISTEVA, 1974, p. 64)
Ao comparatista não basta apontar relações, o que vale, nas relações de
intertextualidade, é buscar o que foi reaproveitado de um texto no outro ou, ainda,
conforme Jenny, indica buscar um alargamento para que se faça uma análise crítica
mostrando se houve dessimbolização e ressimbolização daquele tema, o que foi
modificado ou o, devido a causas que devem ser investigadas e interpretadas.
Conforme Tania Carvalhal, podemos optar por um roteiro de leitura intertextual para
os textos, sugerido por Michel Rifaterre,
contextualizando-os (isto é, situando-os no tempo e espaço de sua
produção) des-contextualizando-os (ou atribuindo-lhes um significado
simbólico ou metafórico que os faça ter sentido em qualquer tempo e
espaço) e re-contextualizando-os (isto é, reconstruindo um significado no
presente, relacionado com o mundo do leitor observador) para ler nele
outras obras. (CARVALHAL, 2003, p. 173)
Temos de pensar a intertextualidade, segundo Tania Carvalhal, como a
presença confessa ou inconfessa de um texto em outro, resultante de um processo
de leitura de um texto noutro. Embora o conceito de intertextualidade se desvincule
do estudo de fontes, ele acaba por reanimá-lo, pois acaba com a noção de dívida
existente nas relações entre os textos Como adverte Jenny, a intertextualidade
designa não uma forma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho
de transformação e assimilação de vários textos, separados, operados por
um centralizador, que detém o comando do sentido. (JENNY, 1979, p. 14).
O texto perde o caráter fechado e auto-suficiente, havendo assim uma quebra
na hierarquia dos discursos que resulta na descentralização do lugar privilegiado
reservado ao original, resgatando o valor da cópia em relação ao modelo. A
tradução também se insere nesse conceito, pois passa a ser uma conversa entre
textos, um texto sempre é outro texto. que nenhum texto surge do nada, ele é
uma mistura de outros textos.
31
Devemos considerar a estrita relação entre tradução e escrita. Não devemos
esquecer, ao lidar com A Demanda do Santo Graal, que ela é uma tradução que se
pode considerar como recriação, pois o autor imprimiu sua subjetividade ao texto
transformando-o. O conceito de tradução que tem se infiltrado no campo da teoria
literária
remete não apenas à prática usual da tradução, a transformação interlingual
de um texto a outro, mas também ao processo de leitura e reescrita de um
texto, aproximando-se do significado amplo de intertextualidade. (SOUZA,
1996, p. 36)
Assim, não há mais espaço para estudos baseados em fontes e influências
que mantenham o nível de hierarquização de uma literatura inferior em relação à
outra superior, nem espaço para leituras que considerem a tradução como uma
cópia menor e infiel, que esses estudos permanecem apenas na relação binária e
tratam as influências com determinismo e como uma relação de vida da literatura
inferior para com a superior. Os estudos passam a dar conta do texto como objeto
central e não mais da exterioridade. Instaura-se um espaço de interlocução propício
à troca efetiva de objetos simbólicos sem a priorização de um em relação a outro.
Segundo Tania Carvalhal, a intertextualidade coletiviza a obra, portanto,
existem elementos comuns entre os textos literários sem que haja uma
uniformização. A Demanda, mesmo que apresente personagens de outras obras do
ciclo Arturiano e tenha muito em comum nos episódios que são relatados em outros
livros que dão conta deste mesmo mito, não deve ser considerada devedora desses
outros textos. Ela dialoga com eles na medida em que “se constitui de outras
palavras além das próprias” (CARVALHAL, 2003 p. 135).
A escolha do olhar intertextual se deve ao fato de acreditar que a
intertextualidade deve ser a base do trabalho do comparatista. Cabe lembrar as
32
palavras de Jenny: “Fora da intertextualidade, a obra literária seria simplesmente
incompreensível, tal como palavra duma ngua ainda desconhecida” (JENNY, 1979,
p. 5)
Através do olhar intertextual é possível desmistificar a idéia de que uma obra
é cópia da outra ou subproduto de outra, analisar os supostos erros do tradutor,
explicar a questão da autoria e da originalidade pela visada comparatista para que
se possa ampliar a fortuna crítica dessas obras.
A informação que obtemos sobre contextos que nos são em geral
desconhecidos comprova que a noção do literário, em sua conformação e em sua
difusão, varia consideravelmente segundo o lugar e a cultura e, portanto, cabe aos
pesquisadores responder a essas variantes e facilitar o conhecimento do Outro,
próximo ou distante.
Em se tratando de uma pesquisa dessa natureza, é natural que façamos
referência à reflexão de Ángel Rama sobre as “elites culturais” no ensaio “Dez
problemas para o romancista latino-americano”
2
. Ali, o crítico uruguaio aponta a
incorporação social do escritor feita através do que ele designa como “confrarias” ou
grupos que o inserem na história cultural, chamando a atenção para a importância
“do conjunto dos intelectuais como grupo social”. Dessa forma, a visada
comparatista torna-se mais do que interessante para a leitura desses autores, torna-
se necessária, pois, ainda segundo Rama, mesmo o escritor que fomenta mais o
individualismo sempre funciona dentro de um determinado grupo social (RAMA,
1998, p. 55). Portanto, ainda que Troyes tenha dada uma roupagem própria e única
às lendas do rei Artur, não deixa, por esse motivo, de pertencer ao grupo social dos
2
RAMA, Ángel. In: Ángel Rama. Literatura e Cultura na América Latina. [Flávio Aguiar & Sandra
Guardini T. Vasconcelos, Orgs]. São Paulo, Edusp, 2001, p.47-110.
33
fixadores dessas lendas. Trata-se, portanto, de entender que as práticas literárias e
culturais têm na esfera social seu lugar específico de exercício e formas particulares
de organização.
Guillén (1985) já aludia a uma prática comparatista que se identificava como
tal na construção de conjuntos como objeto de estudo e no reconhecimento nele de
certos problemas pertinentes e específicos. Apontava, então, para uma vinculação
entre comparatismo e teorias literárias, como a partir de então se preconizou. Em
sua obra Múltiples Moradas
3
, afirma que, se fosse hoje escolher um título para o livro
precedente, daria preferência a outras palavras, ou seja, usaria “lo uno con lo
diverso”, o “lo diverso con lo uno”, que sugieren no vaivenes sino superposiciones;
no dialécticas sino complejidades” (GUILLÉN, 1998, p. 23.)
Como se pode perceber, o comparatista espanhol está propondo uma
compreensão mais sistêmica do literário e do cultural, pois, como dirá, ainda neste
último texto, que “lo historiable no es una serie de individualidades sino la sucesión o
la evolución de unos conjuntos” (GUILLÉN, 1998, p. 23.). Por isso, não tratará de
totalidades, mas de sistema, seja na acepção de Saussure (e podemos pensar com
ele em “polissistemas” na concepção de Itamar Even-Zohar), isto é, conjuntos de
elementos relacionados entre si e significativos por meio o da analogia, mas
principalmente da diferença.
Segundo Guillén será necessária certa perspectiva crítica para que o
comparatismo adote um ponto interno de observação dos muitos conjuntos, das
muitas “moradas virtuales” em que pode subdividir-se, isto é, organizar-se e
3
GUILLÉN, Claudio. Múltiples Moradas. Ensayo de Literatura Comparada. Barcelona: Tusquets,
1998.
34
manifestar-se a literatura. Julga-se, assim, serem as considerações de Claudio
Guillén pertinentes e esclarecedoras para os procedimentos críticos comparatistas.
Na perspectiva teórica que adota as zonas liminares que estão em
permanente reconstrução – uma fronteira gera outra fronteira –, os limites são
aliviados e o pesquisador pode estabelecer, a partir de critérios originários dos
objetos em estudo, conjuntos virtuais para análise. Esse procedimento permite uma
mobilidade maior nos estudos e recortes de acordo com a variedade de interesses.
Na prática, multiplicam-se os pontos de observação que podem ser, no caso
desta pesquisa, observados através da releitura da fortuna crítica, na medida em
que busca analisar com mais profundidade afirmações cristalizadas sobre as obras,
permitindo avaliar através da comparação do tratamento dado à mulher e ao herói
nas obras, as relações intertextuais. Esses pontos citados serão os conjuntos
virtuais, a serem observados pelo olhar comparatista.
3 O CRUZAMENTO DOS TEXTOS
Minha senhora de Champagne quer que eu
empreenda uma romance. Por isso, de bom grado o farei,
como homem que é seu todo inteiro em tudo que possa fazer
no mundo.
Lancelot, o cavaleiro da charrete
O que leva um autor a ler o texto ou textos anteriores? O que leva um autor a
aproveitar símbolos já utilizados e modificá-los? Por que Troyes construiu uma
Guinevere diferente da apresentada pela Demanda? Quais os motivos levaram ao
aproveitamento dos símbolos pagãos e das lendas existentes pelo autor da
Demanda? Sabemos que ele aproveitou os mesmos símbolos e idéias utilizadas por
Troyes, porém os dois constroem representações da rainha Guinevere muito
diferentes entre si. Na Demanda, ela aparece como qualquer mulher seria
considerada no período pela Igreja. Assim, também podemos perguntar por que
Troyes construiu uma personagem tão cativante e interessante?
Embora tenhamos muitos dados sobre todas as histórias do rei Artur, não
encontramos muitas referências a sua mulher. Seu caráter o é bem definido, ela
aparece em obras e lendas, das mais diferentes origens, retratada de muitas formas.
36
Entretanto, seu traço mais marcante de personalidade é o adultério, que aparece
bastante suavizado por Troyes em Lancelot, o cavaleiro da Charrete.
Segundo Jenny, também podemos procurar no texto marcas intertextuais
através da forma. Em seu texto A estratégia da forma, fala nas figuras de
intertextualidade. Uma dessas figuras se refere à troca de valores simbólicos é a que
mais se encaixa nos textos estudados, pois se trata de retomar símbolos utilizados
por um texto, em outro, com significações opostas no novo contexto. Dessa maneira,
não devemos apenas procurar por marcas que mostrem que os textos possuem
pontos de contato, mas sim procurar mostrar o que de diferente no
aproveitamento dos mesmos temas por autores diferentes.
Podemos encontrar muitos pontos de contato entre o Lancelot, o cavaleiro da
charrete e A Demanda do Santo Graal como, por exemplo, o tratamento dispensado
a outras mulheres na obra, que continuam sendo chamadas apenas de damas e ou
damizelas e têm comportamento muito semelhante nas duas obras. pensam em
casamentos e aparecem sempre para fazer companhia aos cavaleiros ou para trazer
notícias e informações, surgindo do nada. Essas damas que aparecem em ambas
as histórias têm, assim como os eremitas, apenas a função de dar a localização das
aventuras. As damas normalmente contavam sobre a origem as lendas. Além disso,
a presença feminina serve para tentar o cavaleiro, fazer com que eles possam
passar por alguma aventura, ou ainda cumprir o juramento de ajudar damas em
perigo.
A presença do fantástico é visualizada nas duas obras. Em Lancelot, por
exemplo, acontecem coisas como um leito pegar fogo, porque não era destinado ao
cavaleiro que nele se deitou, assim como, n’A Demanda, um assento da Távola
Redonda pega fogo, pois nele senta-se um cavaleiro indigno. Aparece, também, nas
37
duas obras, a questão dos caminhos que o cavaleiro tem que escolher e que sempre
apresentam algum tipo de dificuldade praticamente impossível de ser transposta,
mas que só será vencida pelo cavaleiro predeterminado.
Também se pode perceber, na obra de Troyes, a relação com as tradições
cristãs, como, por exemplo, a cena em que uma dama manda rezar uma missa
antes da partida dos cavaleiros aos quais ela tinha dado acolhida. Da mesma forma,
os cavaleiros recomendam-se a Deus em muitas passagens e juram por Deus e por
sua fé.
Os cavaleiros combatem, assim como na Demanda, sem conversar antes,
muitas vezes descobrindo depois que acabou de justar com um amigo. Assim como
muitos personagens da Demanda, os cavaleiros de Lancelot, que saem em busca
da rainha, também fazem juras e promessas difíceis de serem cumpridas, mas que
não podem ser evitadas.
Dessa maneira é possível observar pontos de contato entre os três romances
nos aspectos que serão analisados mais detalhadamente: o tratamento dispensado
ao feminino e a construção do herói de cada um dos textos, porém para que não se
fique repetindo questões que recebem tratamento semelhante nas três obras, deu-
se preferência a comparar a Demanda a Lancelot, perseguindo as diferenças e
semelhanças no tratamento do feminino e a Demanda a Perceval, observando a
construção do herói como ponto de contato entre as obras.
Passemos à análise da Demanda e do tratamento dispensado nessa obra à
rainha Genevra.
38
3.1 A CONDENAÇÂO DE GENEVRA
[...] e el-rei disse ca lhi pesava ende, mas pois se nom podia
vingar em Lançalot, vingar-se-ia da rãia.
A Demanda do Santo Graal
Em primeiro lugar, observemos como a rainha Genevra aparece na Demanda
do Santo Graal. Para analisar como a personagem é construída e para poder
perceber sua importância na novela, é preciso voltar a atenção para o adultério de
Genevra e Lancelote, além de analisar a posição da mulher no medievo, a questão
da misoginia e a pouca relevância da figura feminina na história da época.
As mulheres, na Idade Média, desempenham um papel irrelevante. Podemos
comprovar isso na Demanda do Santo Graal, pois poucas são as donzelas que
possuem nome e que são de fato importantes para o desenvolvimento da trama.
Algumas servem apenas de mensageiras, trazendo notícias e pressentimentos ruins;
outras existem exclusivamente para tentar e desviar os cavaleiros do caminho da
virtude. Sendo assim, não podemos deixar de voltar a atenção para a única mulher
que desempenha um papel de maior destaque na novela: a rainha Genevra. Embora
nem mesmo seja nomeada no começo da história, Genevra possui destaque na
trama na medida em que exemplifica o poder de destruição da mulher, já que suas
ações convergem para o mal.
Embora seja mais importante que as outras mulheres, sua notabilidade não
vai além da mesma idéia que cerca as demais damas, ou seja, a idéia de mulher
transmissora do mal e do pecado. Genevra representa a mulher vista da forma como
39
a Igreja a via, típica esposa traidora que leva um nobre cavaleiro a cometer o pior
dos pecados.
Para entendermos a total entrega de Lancelote a Genevra, é preciso buscar o
conceito de amor cortês, forma de amor que se caracterizava pela servidão do
homem a sua dama e pelo fato de esta dama ser casada, permitindo que houvesse
corte, mas sem os compromissos do casamento que não tinha a menor ligação com
o amor, já que este era antes de tudo um contrato entre as famílias nobres. O amor
cortês não tem em seu surgimento uma causa única, ele pode ter sua origem nos
“rituais populares celtas, religiões orientais, heresia albigense, filosofia platônica,
poesia árabe ou hispânica, ou mesmo o culto à virgem” (BLOCH, 1995, p.225).
Sendo o amor cortês também uma forma relativa de dar liberdade e uma
maior importância às mulheres, embora se possa discutir em que termos ocorreu
esse avanço na liberdade feminina, esse tipo de amor, de fato, era condenado pela
Igreja, pois, além de uma possível libertação feminina, poderia proporcionar ao
homem deleite com a beleza da mulher, prazer e contato com o corpo feminino, tudo
que levava ao pecado. O amor cortês seria, portanto, uma porta para o pecado da
carne.
No Ocidente, ao contrário, desde o princípio a filosofia do amor foi
concebida e pensada fora da religião oficial e, às vezes, frente a ela.
[...] O caso mais eloqüente é o do amor cortês’, visto pela Igreja não
com inquietação, mas também com reprovação. (PAZ, 1994, p. 38).
Muitas das cantigas de amor e em especial as de amigo comprovam que nem
sempre esses amores ficavam apenas no desejo e na corte. O amigo era o amante,
como nos mostram as Albas, que cantam o amanhecer dos enamorados, provando
que muitas vezes o desejo se concretizava e se tornava adultério, como o de
Lancelote e Genevra. Na passagem em que são descobertos compartilhando o
40
mesmo leito, Genevra diz a Lancelote: ai amigo! Estamos mortos” (DSG, 1998,
p.476).
Mas, se a Igreja não via com bons olhos esse tipo de culto à mulher, como
explicar o fato de um monge, ao traduzir a novela, permitir que esse tipo de amor
realizado permanecesse na Demanda do Santo Graal? Algumas explicações podem
ser encontradas no fato de que as histórias da matéria da Bretanha têm origem em
lendas antigas pagãs, transmitidas oralmente e de conhecimento popular, tornando
difícil para o tradutor apagar toda uma tradição oral na qual Lancelote figurava
como um grande cavaleiro. E também, se a idéia da Igreja era aproveitar as lendas e
histórias que faziam parte do imaginário da época, não faz sentido que o tradutor
transforme a lenda a ponto de o povo não mais reconhecê-la. Uma lenda que não
pode ser reconhecida imediatamente pelo povo não serviria aos propósitos da Igreja.
Um segundo ponto interessante é o fato de que esse adultério pode ter
permanecido para despertar o interesse dos leitores, pois uma história na qual não
existe amor, não atrai leitores. Assim, segundo Boccalato (1996, p. 117), “esses
encontros clandestinos dos amantes satisfaz o imaginário erotizado desses jovens a
quem as damas são inacessíveis”.
Também, como foi dito, o pecado era assunto recorrente para o homem
medieval que sentia necessidade de falar disso, ainda mais os monges, para os
quais o assunto era proibido. Por isso, o adultério pode ter permanecido para
denegrir a imagem das mulheres. Falar mal da mulher seria a forma que os monges
tinham de convencerem a si próprios de que o afastamento que precisavam manter
dela era verdadeiramente necessário e gratificante.
O pecado era visto e retratado das mais variadas formas. O homem medieval
comprazia-se em falar no pecado. Pinturas de mulheres, de animais, doenças
41
contagiosas, defeitos físicos que apontam aquele que erra, nada mais são que
maneiras se estar constantemente falando e pensando em pecado. Como não
pensar então que o monge, ao traduzir esta história, também não estivesse
impregnado de pensamentos tormentosos que voltavam sua mente para o estado
pecaminoso? E ainda mais, pode-se pensar que era prazeroso a esses monges que
se falasse de algo em que não podiam nem pensar, tendo para isso uma desculpa
de estar traduzindo uma obra e passar esse acontecimento como ensinamento.
A novela sugere que a importância do adultério muitas vezes parece mais
ligada à traição de Lancelote em relação a Artur do que propriamente de Genevra
em relação ao marido. Isso remete a duas questões: à amizade masculina e ao
ambiente do feudalismo vivido na Idade Média. A amizade entre os homens é reflexo
de uma sociedade viril e guerreira na qual o homem passa mais tempo ao lado do
seu companheiro de batalhas do que em casa ao lado da mulher. Portanto, o
homem freqüentemente está mais ligado ao amigo do que à própria esposa,
mantendo com ele laços mais verdadeiros de amor do que os fracos laços que
sustentavam os casamentos.
Da mesma forma, o feudalismo tem como característica a figura do senhor
como um centralizador, um senhor justo e nobre a quem os vassalos devem jurar
fidelidade.
O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de
fidelidade, por um lado, e de proteção por outro. Assegura-se devoção a
qualquer pessoa e espera-se dela em troca segurança. Compromete-se,
não a atividade em função de um trabalho preciso, de remuneração fixa,
mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca requere-se
subsistência e proteção, em todos os sentidos da palavra. Tal é a essência
do vínculo feudal. (PERNOUD, 1981, p. 31)
A exemplo de Mars, marido de Isolda e encarnação do marido traído, Artur é
bom e justo, pelo menos para os seus vassalos, pois é conhecido em todo reino por
42
ser um rei bondoso e venturoso. Cego à traição - e é essa característica que torna a
traição tão torpe e o amor tão perigoso e possível, ao mesmo tempo –, ele considera
inadmissível ter sido traído por aquele que era seu melhor amigo e melhor cavaleiro.
É arriscado que se mantenha um relacionamento quase que aberto aos olhos do rei,
mas, como não acreditava que Lancelote o pudesse trair dessa maneira, é ele quem
também possibilita o amor dos traidores, quando prefere não enxergar o que está
acontecendo. Mesmo quando lhe é revelado o adultério, Artur procura desculpar o
adúltero:
Por certo, se é que Lancelote ama Genevra, bem sei que não é por sua
vontade, mas a força do amor o força, que costuma fazer da pessoa mais
sensata do mundo sandeu e do mais leal cavaleiro desleal, e por isso não
sei que vos diga, porque não cuidava de maneira alguma que tão bom
cavaleiro como ele soubesse cometer traição. (DSG, 1988, p. 472. Grifo
meu)
A figura de Artur não sofre nenhuma mancha durante a narrativa e quando
algum personagem se refere a ele na novela é sempre nos melhores termos. Não
que ele não cometesse erros, pois até mesmo possui um filho bastardo que trata
como seu sobrinho, mas, em relação ao adultério, o na narrativa nada que
justifique uma traição, nem de Genevra, nem de Lancelote. Isso, de fato, não
poderia ocorrer, pois não havia nenhum motivo que justificasse ainda que de leve a
traição, senão a luxúria. Se Artur desse algum motivo para que Lancelote ou
Genevra o odiassem, o pecado não seria tão torpe quanto é. Mesmo depois que o
adultério é descoberto, a imagem de Artur não sofre nenhum arranhão, ele não é
identificado com a figura do homem traído que não consegue dominar a mulher, mas
apenas como um senhor traído por seu vassalo mais leal que foi corrompido pelos
prazeres da carne.
Ainda que seja de grande relevância para os acontecimentos, não é delegada
à Genevra quase nenhuma importância, embora fosse de se esperar que tivesse
43
pelo menos um pouco mais de relevo na história, o que não acontece. Além disso, o
que de fato acontecerá a ela, verdadeiramente não interessa, pois, sendo mulher,
não havia destino possível fora a condenação. Quando o rei Artur descobre que está
sendo traído, no mesmo momento fica claro que será julgada pelos homens mais
nobres do reino e está de antemão condenada. Antes mesmo que Genevra seja
julgada, Boorz, ao descobrir que o rei já sabe de tudo, sente pena da rainha que
será condenada, pois não há alternativa para as mulheres que pecam senão a morte
terrível, a morte na fogueira. Assim afirma Boorz: [...] Mas pela rainha, que será
por nós julgada de morte, muito me pesa [...]” (DSG, 1988, p. 477).
Já para Lancelote uma continuação da história na qual ele ainda consegue
se redimir dos seus pecados. Embora tivesse cometido adultério, Lancelote recebe o
conselho de um bom homem, um ermitão, para que desista de viver em pecado,
afirmando que ainda uma possibilidade de ser perdoado, ainda que tenha errado
durante tanto tempo:
[...] Este pecado, sem falha te impediu de acabar isto e outras coisas
muitas, e disto me pesa muito. Porém, como quer que erre até aqui, se te
quisesses corrigir e quisesses guardar de pecar mortalmente, ainda
poderias achar perdão e mercê daquele em quem está toda a piedade [...].
(DSG, 1988, p. 389)
Genevra, depois de salva da fogueira por Lancelote, é levada por ele para um
castelo, mas os amantes não ficam juntos. Como a mulher é propriedade do marido,
Genevra é devolvida a Artur, que, pressionado pela Igreja, a aceita de volta. Quando
o reino de Logres é destruído e o rei Artur morre, devido à guerra entre ele e
Morderete, Genevra foge, torna-se monja, mas não consegue se adaptar às
privações da vida santa e morre cinco dias depois de entrar para a vida religiosa,
pois no fundo não abandonou os costumes mundanos e continua amando Lancelote:
44
[...] ela, que sempre fora feliz com todas as alegrias do mundo, e teve de
sofrer as penitências da ordem, de que o tinha costume, caiu logo de
cama enferma, e todos os que a viam tinham muito cuidado com sua morte
e sua vida.
A rainha, embora no convento, não deixava de fazer grande pranto por
Lancelote [...]. (DSG, 1988, p. 508-509)
Genevra entra no convento não para expiar seus pecados, mas porque tinha
medo de ser morta pelo inimigo de Artur que vencera a batalha. No seu íntimo, torcia
para que Lancelote retomasse o reino de Logres e voltasse para buscá-la. Genevra
mostra que não se arrependeu de seus pecados e, até o fim, ela segue vivendo na
mentira e no adultério, mostrando que a mulher não tem capacidade de se salvar.
Lancelote consegue se entregar nas mãos do Senhor, arrepender-se de
seus pecados e entrar na vida religiosa com o coração puro. Lancelote, depois que
entra na ermida, vive ainda cinco anos de uma vida santa, cinco anos pagando pelos
seus pecados, vivendo na pobreza e na mais absoluta castidade. Genevra tem
apenas cinco dias para redimir-se e, uma vez que não entrou na vida casta de fato,
acaba morrendo sem poder alcançar a salvação.
Lancelote, por ser homem, tem força e firmeza para abraçar a vida religiosa
sem titubear, conseguindo redimir-se e salvar-se:
Quatro anos e mais ficou Lancelote na ermida de modo que ninguém
poderia suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em jejuar e em
velar, em fazer preces e orações e em mortificar seu corpo de todas as
maneiras. (DSG, 1988, p. 514)
Não há, na Demanda, possibilidade para que a mulher, por seus próprios
merecimentos, acabe por alcançar a salvação. A mulher é vista fisicamente como o
macho imperfeito, incompleto, pois se considera que ela o pensa e age de
maneira completa como o homem. A fraqueza sica “influencia sua alma e sua
capacidade de alcançar a compreensão do divino” (KAPLISCH-ZUBER, 2002,
p.143).
45
Essa constatação levou-me à separação de erotismo sublimado, que é o
erotismo que o se realiza, pois mais puro e mais santo é aquele que é tentado,
tem oportunidade de pecar e sublima esse desejo, e o erotismo concretizado,
quando não se resiste à tentação, cedendo ao pecado. Uma vez que a mulher, por
ser mais fraca, não tem condições de superar os desafios e as tentações, acaba por
concretizar o erotismo, transformando-se numa reprodutora do pecado. Por sua vez,
o homem, por ser mais forte, mais inteligente e mais confiável, consegue sublimá-lo,
tornando-se um ser capaz de vencer os obstáculos e alcançar a salvação, mesmo
com todas as tentativas da mulher para perdê-lo.
A idéia de mulher como ser inferior e mais fraca que o homem não é invenção
da era medieval, ainda que seja nela que aparecem mais claramente os
preconceitos em relação à mulher.
Desde a Antigüidade Tardia e os primeiros Pais da Igreja, o desequilíbrio
entre os sexos e uma tendência a favor do masculino, assim como a
constituição do feminino em conceito abstrato, marcaram o pensamento
ocidental; nós o herdamos. (KAPLISCH-ZUBER, 2002, p.138).
Segundo H. Bloch, vários textos comprovam, desde muito antes, que a
mulher era vista como faladeira, confusa, insatisfeita, ligada ao material e ao
mesmo tempo representante da metáfora. Metáfora porque não era possível
entender a mulher, era preciso buscar uma explicação através de metáforas, de
onde decorrem muitas outras idéias como a da mulher ser escorregadia com a
linguagem e, portanto, falsa e mentirosa.
Deparamos aqui com uma das pedras de toque do gênero que,
naturalmente, está latente muito antes do século XII e mesmo antes da
era cristã: a ligação do feminino com as seduções e ardis da fala. (BLOCH,
1995, p.24).
Além disso, o discurso da Bíblia também serviu para fundamentar a idéia de
que a mulher é inferior, uma vez que não descende diretamente de Deus, como
46
Adão, mas foi criada a partir dele, sendo, assim, natural que ela o sirva. A partir
desses discursos, a mulher passa a ser vista em oposição ao homem,
representando sempre o lado negativo, o canhoto, o errado
4
. Enquanto o homem é
geral, a mulher é particular, o homem é razão, a mulher, sentido, a mulher, em
decorrência de tudo isto, é considerada como um corpo, e o homem, que é a razão,
deve dominar esse corpo (KAPLISCH ZUBER, 2002). Todas as discussões que
envolviam a mulher sempre foram apoiadas em aspectos da natureza, como o fato
de a mulher ser mais fraca fisicamente e precisar ser mais ardilosa para se defender.
Fraqueza e qualidades negativas: por natureza, a mulher pode ocupar
uma posição secundária, procurar o apoio masculino. Homem e mulher o
se equilibram nem se completam: o homem está no alto, a mulher em baixo.
(KLAPISCH-ZUBER, 2002, p. 149).
Dessa forma, a mulher torna-se ao mesmo tempo material e figurativa e
passa, por isso, a ser aliada à poesia e à desconfiança com as palavras. A mulher é
um ser que seduz, senão pelo corpo, pela linguagem. Sendo a mulher um
instrumento pelo qual o pecado chega aos homens, nada mais natural de que a
salvação seja praticamente impossível de ser alcançada por ela.
Podemos começar a entrever os motivos que levaram à completa dominação
da mulher pelo homem, com o total apoio da Igreja. A mulher deveria ser dominada,
para, acima de tudo, não impedir a busca do homem pela salvação. Dessa forma,
fica claro por que a Igreja recriminava o amor cortês, pois “[...] a emergência do amor
é inseparável da emergência da mulher. Não há amor sem liberdade feminina” (PAZ,
1994, p. 66).
Claro que havia outros interesses, além do medo do pecado, que levavam à
dominação feminina, mas para o interesse dessa análise não serão levados em
4
Esse conjunto de oposições entre homem e mulher foi retirado das minhas anotações da disciplina
“Figurações de Gênero na literatura e no cinema”, ministrada pela professora Rita Terezinha Schmidt.
47
consideração outros motivos que não tenham explicação apenas pela religião. A
mulher, como porta de entrada para o pecado é apenas uma das formas pelas quais
ela foi vista na Idade Média. Várias outras interpretações são dadas a este ser
indecifrável, tais como considerá-las bruxas, ou adivinhas. Por outro lado,
paradoxalmente, o homem medieval tem de admitir fato o de que Jesus foi
concebido por uma mulher virgem, portanto, não pecadora.
Embora o culto à virgem Maria estivesse se difundindo e misturando ao
trovadorismo, isso não significava que a mulher seria absolvida, pois Maria era uma
mulher incomum e ideal, e se igualar a ela estava fora do alcance das mulheres,
mesmo que ela tenha se tornado um modelo a ser seguido.
O culto à Maria representa uma outra face do amor cortês, que esse se
caracterizava pela inacessibilidade da Dama, pelo fato de ela ser casada. Maria era
mais inacessível que as Damas, e esse amor por sua santidade, segundo Boccalato
(1996), nada mais é, que o mesmo jogo de desejo e inacessibilidade que constrói as
bases do amor cortês e do erotismo.
Dessa forma, torna-se um pouco mais fácil entender a mistura de culto à
mulher e ao mesmo tempo a misoginia. Para a Igreja, o amor cortês representava
um perigo, uma perigosa valorização da mulher, uma vez que, segundo H. Bloch, a
mulher deixa de ser aprisionada no conceito de “portão do mal” para ser presa ao
conceito de virgindade. Porém, dessa forma, ela se torna mais uma vez proibida ao
homem. Para sufocar uma possível mudança no estado de coisas da sociedade, a
Igreja aproveita-se da tradição desse tipo de amor e transforma-o num bem-
comportado culto à mãe de Deus.
O culto à Maria é uma forma de condenação ao amor cortês. Ao mesmo
tempo, é uma face desse amor, porque o amor é desejo de algo que está faltando,
48
muitas vezes, algo inacessível, que transforma o amor numa busca eterna. Nesse
sentido, Maria se torna a Dama a ser cantada. Ela não é casada, mas é mais
inacessível que as mulheres casadas. N’A Demanda do Santo Graal, a busca do
inacessível está representada em rios níveis, na dama casada, na virgem que
deve ser preservada, proibida pelas leis de Deus e da cavalaria, nas relações
incestuosas, nas quais a inacessibilidade da irmã se torna um grande atrativo, ou
ainda a mulher do rei.
Para H. Bloch (1995), essa contradição ao tratar do feminino, ora como “noiva
de Cristo”, ora como portão do diabo”, na verdade não é uma contradição, pois as
duas formas de tratamento da mulher são formas de reprimir o feminino. A virgem
imaculada na verdade é quase um homem, é uma forma de tornar a mulher
inalcançável, idealizada, um objeto a ser definido, assim como a própria corte da
dama casada a torna impossível e da mesma forma idealizada. Portanto, como foi
afirmado, a mudança que o amor cortês proporciona no tratamento das mulheres
deve ser olhada com maior atenção, pois, embora tenha havido uma maior liberdade
para mulher no local onde o amor cortês mais se desenvolveu, isso não significa que
a mulher tivesse passado a ser valorizada de fato.
Para Duby, o modelo de amor da idade média é amizade viril. A mulher era
algo além de uma ilusão, uma espécie de véu, de biombo, no sentido que Jean
Genet deu a esse termo, ou antes, um intermediário, a mediadora. Servindo a sua
esposa, era o amor do príncipe que os jovens desejavam ganhar. Dessa forma,
o que estou sugerindo, mais uma vez, é que a condenação e a idealização
simultâneas da mulher e do amor não são manifestações contrastantes do
mesmo fenômeno, lados opostos da mesma moeda. Elas absolutamente
não são opostas. (BLOCH, 1995, p.199)
49
Os dois tratamentos são uma forma de tirar a mulher da história e transformá-
la numa abstração. A mulher transforma-se num conceito difícil de ser definido. Nas
duas formas em que ela é vista, como diabo ou como santa, torna-se inacessível ao
homem, ficando de fora dos acontecimentos, como pode ser comprovado pela
pouca importância que a presença feminina tem na novela.
Pode-se pensar, entretanto, que o fato de a mulher ser condenada desde o
nascimento, caso conseguisse a salvação, esta se tornaria muito mais gloriosa,
devido à sua fragilidade, pois teria de superar mais obstáculos. Mas poucos são os
exemplos de mulheres que se salvam e, quando eles existem, servem para mostrar
que a mulher, se quiser lutar pela salvação, deve ser como a Virgem Maria, tornar-se
inatingível ao homem.
Enquanto a mulher é identificada com o pecado original, o homem pode ser
vencedor porque está capacitado para vencer suas fraquezas, principalmente as da
carne. Isso demonstra o quanto a vivência do erotismo era condenável,
principalmente para as mulheres.
O adultério de Genevra comprova que o erotismo deveria ser sublimado para
que a alma permanecesse pura, pois, uma vez que se sucumbisse aos desejos do
corpo, a salvação seria praticamente impossível.
A penitência, como foi dito, era corriqueira na época e, por isso mesmo, é
ambígua, pois seria, ao mesmo tempo, para todos aqueles que pecam, uma forma
de castigo para os pecados e uma saída. O pecador pode, através da peregrinação,
arrependimento e autopunição, encontrar a salvação. Resta então perguntar se essa
possibilidade de salvação se aplica a todos os pecadores de forma igual. Num
contexto de extrema rejeição da mulher, é mais que coerente que se encontre um
tratamento diferente para pecadores do sexo masculino e feminino. A salvação
50
poderia ser alcançada por homens e mulheres? Sim, mas para as mulheres isso
seria muito mais difícil que para os homens.
A salvação está muito mais próxima dos cavaleiros do que das damas, de
forma que a pouca importância das mulheres na trama se reflete também nessa
situação, pois não nenhuma passagem na novela na qual a mulher seja exemplo
de resistência ao pecado que culmine na sua salvação. algumas donzelas que,
por serem virgens, não aceitam que o cavaleiro lhes faça mal, ou, ainda, podemos
apontar a irmã de Persival, que é uma boa donzela, virgem e morre sem pecado,
mas de quem a novela não afirma que tenha sido salva ou tenha ido para a
companhia de Jesus.
Os homens estão mais preparados e capacitados para resistir às tentações
da carne por serem homens. Para eles, a busca da salvação será difícil, mas não
impossível; enquanto a mulher, por ser mulher, está condenada desde sempre.
Como um ser que já traz dentro de si o pecado pode resistir a ele?
A Demanda do Santo Graal permite-nos comprovar essa afirmação uma vez
que, no episódio mais representativo do pecado da carne, o adultério entre a rainha
e o melhor amigo do rei, Lancelote, a possibilidade de salvação se apresenta muito
mais clara e próxima dele do que de Genevra. Em toda obra, encontramos
passagens que nos mostram que Lancelote na verdade não tinha tanta culpa pelo
adultério. Às vezes, aparecem situações em que deseja parar de pecar, mas não
consegue abandonar a rainha. Fica claro que ele foi levado por ela a cometer esse
terrível pecado. Assim,
[...] para ele a salvação não está completamente perdida, pois embora seja
pecador, ele não traz em si o mal, mas o “pegou” de Genevra, já que o
adultério é um [...] crime considerado essencialmente feminino; uma
denúncia contra o homem é virtualmente impossível [...]. (ROSSIAUD, 2002,
p. 485).
51
Lancelote arrepende-se e é salvo, vai para a companhia de Jesus. Genevra é
condenada ao inferno, com suas artimanhas de mulher quase arrasta Lancelote para
o mesmo destino. é destacado, na Demanda, o lado maligno de sua
personalidade feminina. Não observamos, nessa obra cristianizada, o poder de
sedução da rainha, sua doçura, sua personalidade cativante. Na obra de Troyes, no
entanto, a rainha aparece como uma mulher com poder de decisão, diferente da
mulher que engana o homem, mas é, ao mesmo tempo, subjugada por ele.
Analisemos agora o tratamento dispensado por Chrétien de Troyes à rainha
Guinevere em seu romance Lancelot, o cavaleiro da charrete.
3.2 A ABSOLVIÇÃO DE GUINEVERE
Então a rainha [...] diz: - Vinde falar comigo nessa janela, à noite,
quando aqui dentro todos estiverem dormindo. [...] Só poderei
aproximar de vós a boca e as mãos. Mas, se vos apraz, até aman
ficarei aqui, por amor de vós.
Lancelot, o cavaleiro da charrete
Segundo Heitor Megale, os dois documentos mais expressivos da vida
sentimental e do mundo na Baixa Idade Média são as canções de Gesta e a rica
trovadoresca. Obras que trazem em si reflexões sobre o amor e a luta. Para ele, a
novela de Cavalaria seria uma mistura desses temas, na qual se cantaria o amor
cortês sem deixar de lado as ações guerreiras do cavaleiro. Na novela, diferente das
canções de amigo, o cavaleiro não aparece apenas como subjugado pela dama,
52
mas também como o cavaleiro que, fiel aos seus códigos de honras, irá se aventurar
e tornar-se matéria para as canções de Gesta.
O modelo mais esquemático do amor cortês é o homem jovem (solteiro) não
necessariamente novo, que assedia a dama casada, que lhe é, portanto
inacessível. Sendo o amor cortês era como uma prova, uma forma de
aprender a controlar o corpo e o desejo. O amor cortês é uma justa, mas
diferente dos duelos e dos torneios, opõe dois parceiros desiguais, um dois
quais está fadado, pelas leis da sexualidade, a cair, por isso que não se
concorda que o amor seria uma forma de liberdade feminina, pois ela
continuação sendo um troféu. O amor cortês era um jogo de homens, feito
por eles, pra eles. Servia pra controlar a juventude na corte. (DUBY, 1998,
p. 30)
Essa mistura de lírica trovadoresca e canções de gesta, aparece de forma
bem clara em Le chevalier de la charret,ou Lancelot, o cavaleiro da charrete, que é
um dos mais célebres romances Arturianos. Conhece-se muito pouco sobre a vida
de Chrétien de Troyes. Supõe-se que tenha nascido em Troyes, de origem
burguesa, tendo estudado os clássicos e aprendido grego. É quase certo que tenha
vivido na corte de Marie de France (1145-1198) e Philippe d'Alsace, conde de
Flandres, a quem dedicou sua obra Perceval, ou o romance do Graal, a primeira em
que aparece o Graal ligado às lendas do rei Artur. Também foi o primeiro a escrever
a história dos Cavaleiros da Távola Redonda, as chamadas histórias do ciclo
arturiano. Conjectura-se que talvez fosse um judeu que se converteu ao
cristianismo.
Suas obras mais conhecidas são: Érec et Énide, Cligès, Lancelot ou le
Chevalier de la charrette, Yvain ou le Chevalier au lion, Perceval ou le Conte du
Graal. Sabemos que Troyes foi um escritor e que circulava nos melhores lugares da
corte. Tem-se conhecimento que Marie de Champagne, filha de Leonor da Aquitânia
teria dado o assunto para o romance Lancelot, o cavaleiro da charrete ao escritor.
Na introdução dessa obra, como um cavaleiro encantado com sua dama, Troyes
afirma:
53
Minha senhora de Champagne quer que eu empreenda um romance. Por
isso, de bom grado eu o farei, como homem que é seu todo inteiro em tudo
que possa fazer o mundo. (Lancelot, o cavaleiro da charrete, 1998, p. 124)
Em seus romances anteriores, Troyes optou por celebrar o amor conjugal e
sem partilhas, muito aos moldes do amor tolerado pela Igreja, porém em Lancelot, o
Cavaleiro da Charrete, escrito em 1165, Troyes faz um elogio ao amor cortês,
mostrando que o cavaleiro que ama é obediente a sua senhora:
Lancelot e Meleagant ouviram essas palavras. Quem ama é obediente. De
pronto e de bom grado (pois é verdadeiro amigo). Lancelot faz como quer
sua amiga. (Lancelot, 1998, p. 165)
Esse é um dos primeiros pontos que distanciam o romance de Troyes da
Demanda do Santo Graal, pois o amor no qual a mulher domina o homem, não é
mostrado de forma positiva na Demanda. Pelo contrário, aquele que se deixa levar
pela mulher tem sempre o maior castigo. Chrétien utilizou-se da mistura do amor
cortês da lírica trovadoresca e das canções de Gesta, que cantavam os feitos dos
guerreiros.
Em Perceval, o cavaleiro da Charrete, já é, desde a primeira página,
perceptível que o tratamento dispensado à rainha será diferente daquele visto na
obra A Demanda do Santo Graal. Guinevere aparece como personagem importante
desde a primeira página da história, e Lancelot, personagem que título ao livro,
vai aparecer e ter revelado seu nome depois de quase quarenta páginas de
história. Na Demanda, isso só acontecia com mulheres que eram simplesmente
chamadas de damas ou donzelas e nunca tinham seus nomes revelados. Além
disso, na Demanda, Genevra aparece poucas vezes e no meio da trama, apenas
para cometer o adultério.
Na Demanda, o nome de Genevra é citado quando seu adultério é
revelado a Artur. Na obra de Troyes, Guinevere é citada desde o início e através
54
dela que a história é conduzida. A rainha é a personagem principal da história, está
no comando e em momento algum é julgada ou condenada pelo adultério que
comete. É por Guinevere e não pelo Graal que os cavaleiros fazem juras e resolvem
partir.
Na obra de Troyes, Guinevere aparece como uma mulher sensata, em quem
todos confiam, que conselhos e é ouvida por seu marido, algo impensável na
Demanda:
O rei está desesperado. Vem ter com a rainha.
- Senhora – diz-, sabeis o que o senescal me pede? Sua dispensa! E afirma
que não mais será de minha corte, não sei por quê. A vosso pedido ele fará
o que não quer fazer por mim. Ide falhar-lhe, minha senhora querida. Se por
mim ele não quer ficar, pedi por vós. (Lancelot, 1998, p. 126)
Outro ponto de divergência é a forma que os dois autores retratam o amor.
Podemos perceber que na Demanda o amor é tratado sempre como sofrimento:
Eu amo tanto um destes cavaleiros, que aqui estão, que, se não houver a
minha vontade, que não chegarei amanhã, antes me matarei com as
minhas mãos. (DSG, 1988, p. 157)
Na obra de Troyes, o amor é visto como aquilo que dá sustento ao cavaleiro,
aquilo que o leva a ir em busca de suas aventuras. A palavra amor aparece sempre
com letra maiúscula, como uma entidade que está governando as atitudes de
Lancelot. O código de honra dos cavaleiros, seus ideais também aparecem nesse
romance, a exemplo da Demanda, como mote para suas aventuras, porém é o amor
que leva Lancelot a não desistir de rever sua amada:
Cada qual parte para seu lado. O cavaleiro da charrete vai devaneando,
como homem que não tem força nem defesa contra Amor que o governa.
Esquece de si mesmo, não sabe se existe ou não. (Lancelot,1998, p. 134)
Além disso, em várias passagens, citam-se o amor e o desejo carnal de forma
muito natural. Muitos atos das personagens são conduzidos pelo desejo. Ao
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contrário da Demanda, as damas desejam os cavaleiros e são desejados por amor,
não de forma enganadora ou forçada, constituindo-se praticamente num crime. As
damas não correm riscos de serem atacadas, como acontece em muitas passagens
na Demanda, nem os cavaleiros de serem tentados por elas, apenas para serem
desviados do caminho. Além disso, a cena de amor entre Lancelot e Guinevere é
descrita, enquanto que na Demanda apenas se sabe que Lancelote e Genevra
cometeram adultério pela boca de outras personagens.
Na Demanda, Galaaz passa por uma provação, uma dama o tenta e ele
quase se entrega, porém resiste devido à pureza e o temor a Deus. Na obra de
Troyes, Lancelot sofre uma tentação, mas não resiste a ela por ser temente a Deus,
mas pelo amor que dedica à Guinevere.
As duas tramas terminam de forma muito diferente, mostrando que a
resolução dada ao adultério marca bem a diferenciação no tratamento dos temas.
Enquanto que na Demanda Genevra é quase queimada e, depois, vai viver num
convento, morrendo como pecadora sem ter conseguido arrepender-se de seu
pecado, em Lancelot, Guinevere termina a história com Artur, assistindo a um
combate e continuando o relacionamento com Lancelot.
Não diferença nenhuma no tratamento dispensado a Lancelot e Guinevere
em relação ao adultério, mesmo que essas diferenças entre o masculino/feminino
possam ser notadas em outras esferas da trama, como no que diz respeito às
decisões sobre o casamento. No que respeita às demais mulheres, também se
percebe que, embora não sejam denominadas, a exemplo da Demanda, Chrétien
não as mostra como portadoras de más notícias e veículo de transmissão do mal.
Em uma das cenas referentes à magia e a superstições, o autor não fala em bruxas,
56
mas, sim, em fadas, tirando a conotação de maldade, trazendo uma visão menos
distorcida da mulher.
para Lancelot, o tratamento dispensado é muito diferente do apresentado
na Demanda, pois na obra francesa é Lancelot quem sofre devido ao seu amor.
Embora não sofra castigo de Artur, é trancado numa torre por um outro pretendente
da rainha e passa muito tempo dado como desaparecido, sofrendo muitos castigos
físicos.
Não há, portanto, a mesma idéia de moralização passada na Demanda,
através do adultério. O que vemos em Lancelot, é a simples realização do amor
cortês, cantado nas cantigas. Guinevere se tem como boa esposa: “Quanto a mim,
não sou mulher perdida que se vende ou a quem deseja seu corpo”. (Lancelot,
1998, p. 177)
A rainha retratada na Demanda é apenas mais uma mulher como qualquer
outra, e era preciso marcar, através de seu comportamento, um exemplo de como a
mulher pode destruir o homem e de como o pecado da carne é destrutivo. Para
tanto, o autor precisou colher nas histórias orais e anteriores o caráter da rainha
mostrado de forma não tão positiva e simbolizá-lo através das idéias da igreja,
fazendo de Genevra um exemplo a não ser seguido.
É de se observar, porém, que, a despeito de todas as diferenças apontadas
nas duas obras em relação ao amor adúltero, os amantes não ficam juntos nos dois
romances. Na Demanda, por todos os motivos que já foram apontados, mas e em
Lancelot? Não deveria, nessa obra, o amor ter vencido?
Não podemos nos enganar com o modo com que Guinevere é tratada por
Chrétien, pois a história de amor dela nada mais é que a representação perfeita do
57
amor cortês. Sabemos que muitas dessas histórias retratadas em canções de amor,
de fato aconteciam e nelas um jogo, que, como foi dito, não prioriza a mulher,
mas sim a trata como intermediária numa relação de homens. É certo que Chrétien
não poderia condenar Guinevere, pois ele a retratou à semelhança de Marie de
Champagne, porém, nas entrelinhas de seu Lancelot, deixou transparecer o mesmo
jogo de retratava as relações entre homens e mulheres na idade média que
aparecem na Demanda.
O amor de Lancelot e Guinevere nada mais é que a corte de um jovem
cavaleiro, ou um cavaleiro solteiro, à mulher de seu senhor. Como o casamento
acabava com a condição de herói do cavaleiro, pois sendo casado ele não poderia
colocar-se em tantos combates e nem cortejar outras damas, podemos compreender
por que Lancelot não se casou com outra mulher e também não ficou com
Guinevere após a descoberta de sua traição. Embora a Guinevere de Troyes seja
muito mais bem tratada que a Genevra da Demanda ele não pode ir além do que
permitia o contexto da época.
Troyes, ao retratá-la em seu romance, dessimbolizou o caráter
transformado pela Demanda de Genevra. Apesar de utilizar-se de muitos temas
semelhantes e de pregar muitas vezes os mesmos ideais cristãos pregados pela
Demanda, ressimbolizou a rainha em virtude de sua amizade por Marie de
Champagne, princesa, filha de Leonor de Aquitânia, e também por valorizar em seus
romances o amor cortês, no qual uma, ainda que discutível e confusa, uma
relevância da figura da mulher. Assim, para Troyes, a rainha aparece muitas vezes
lembrando um anjo:
Este pente pertence à rainha. Crede bem no que te digo: estes cabelos que
vedes, tão belos, tão claros e luzentes, que permaneceram entre os dentes,
são da cabeleira da rainha. (Lancelot,1998, p. 143)
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Que figura da rainha teria permanecido para a posteridade? Do meu ponto de
vista, Chrétien cristalizou uma nova Guinevere em suas obras, mostrando uma
leitura para o caráter da rainha que pode ser encontrado em outras leituras
intertextuais da matéria da Bretanha, como filmes e livros mais recentes. A esposa
de Artur, tal como a conhecemos hoje, é a Guinevere que Chrétien construiu em
Lancelot. Mas por que Chrétien teria uma visão tão diferente apenas de Guinevere?
foi observado em outros momentos que os demais elementos do romance
não apresentam diferenças significativas em relação à Demanda. Resta-nos verificar
como Chrétien tratou das outras personagens em suas outras histórias. Haverá
diferenças significativas com relação à Demanda e ao Lancelot? A caracterização de
Guinevere foi a única diferença significativa entre as obras dos dois autores?
Observamos que, em relação ao feminino, não diferenças significativas
entre o tratamento da Demanda, de Lancelot e também de Perceval, pois a mulher é
vista da mesma maneira nas três obras. Sempre como o oposto do homem, como
ardilosa, faladora, causadora de discórdia e todo tipo de desventura para o
cavaleiro. Fica bem marcado nos três romances o papel da mulher como portadora
do pecado e da tentação. Apenas o tratamento dispensado à rainha é que é
diferenciado em Lancelot, o cavaleiro da charrete, em relação aquele encontrado na
Demanda. E com relação a Perceval, se o feminino não serve para buscarmos as
diferenças e releitura entre as obras, perseguiremos um novo fio condutor: o herói.
Como é o herói da Demanda e como é o herói de Percerval? Passemos, portanto, à
análise dos heróis nas três obras.
59
3.3 LANCELOT, PERCEVAL OU GALAAZ?
[...]- Em breve serei cavaleiro, se aprouver a Deus, e
penso que sim. Deveis servir damas e damizelas. Por
toda parte sereis louvado. Em caminho ou pousada,
não tenhais longamente companheiro de que não
pergunteis o nome, pois pelo nome conhecemos o
homem. Falai com homens probos, ide ter com eles.
Na igreja como no mosteiro, orai a Nosso Senhor. [...]
Perceval, ou O romance do Graal
Ao analisarmos Lancelot, o cavaleiro da Charrete, em relação à Demanda do
Santo Graal, tomou-se o fio condutor do tratamento da rainha e das mulheres, de
forma geral, para que se pudesse analisar com mais clareza as diferenças e
semelhanças entre as obras. Embora também se tenha observado em Perceval as
questões relativas ao tratamento do feminino, é na construção dos heróis que
buscaremos o ponto de encontro entre os três romances, já que em Perceval o herói
tem maior destaque. Na Demanda do Santo Graal e em Lancelot, há, da mesma
forma que em Perceval, uma importância destacada para os heróis.
Nas histórias do rei Artur nunca se começa uma refeição sem que seja
anunciada uma nova aventura. “A aventura é uma façanha que deve ser cumprida. A
aventura não era em relação ao tempo. Ela não deixava de existir enquanto não era
resolvida pelo cavaleiro certo. Muitas aventuras eram resolvidas apenas pela
presença do cavaleiro certo.” (MELLO, 1992, p. 70)
Como imaginar um herói nesse contexto, pois o cavaleiro que vai resolver a
aventura nem sempre é o mais corajoso ou o mais forte, mas sim aquele que está
determinado para cumprir aquela tarefa. O cavaleiro será escolhido conforme suas
qualidades intrínsecas e seu maior ou menor merecimento. As aventuras sempre se
relacionam com o código cavalheiresco, como donzelas a serem salvas, entre outras
60
regras. Mas não eram todos cavalheiros que podiam sair em aventuras, o rei o
deve se meter em aventuras porque ele é indispensável, também porque casado,
os solteiros tinham liberdade para participar das aventuras.
Essa idéia nos permite enxergar por que, embora as lendas digam respeito e
girem sempre em torno de Artur e de sua corte, na verdade, o rei não é o herói de
nenhuma das aventuras de seu reino e nem aparece como destaque nas obras
analisadas.
Podemos começar pensando em quem é o herói de cada romance. Segundo
CAMPBELL, o herói é aquele que conseguiu vencer suas limitações históricas
pessoais e locais e alcançou formas válidas e humanas, pois no mito as resposta
são encontradas pelo herói são sempre válidas para toda a humanidade.
três heróis diferentes nas três obras. Eles se constituem em diferentes
tipos de herói e, da mesma forma, os motivos que os levam em busca de aventuras
também são bastante diferenciados. Galaaz é sem dúvida o herói da Demanda? Por
que Galaaz e não Lancelot? Perceval é o herói de Perceval, ou o Romance do
Graal, mas recebe um tratamento bem diferente daquele recebido na Demanda,
sendo bem mais humano e passível de falhas, e Lancelot poderia ser considerado
um herói em Lancelot, o cavaleiro da charrete? E ainda, o Lancelote da Demanda é
o mesmo Lancelot de Lancelot, o cavaleiro da Charrete?
Para responder essas perguntas, seguiremos, como linha condutora para o
cruzamento dos três textos, o papel do herói. Para isso, teremos que separar dois
tipos heróis: aquele que se envolve em aventuras, que vive amores proibidos, que é
forte, belo e corajoso, características encontradas nos três heróis dos romances, e o
herói como aquele predestinado a resolver a aventura central das lendas do rei
Artur.
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Quem é o verdadeiro herói das histórias do rei Artur, que o próprio Artur
não figura como tal? Num primeiro momento, poderíamos pensar em Lancelot, herói
do Lancelot, o cavaleiro da charrete, como o herói supremo das aventuras do rei
Artur, por ser um grande cavaleiro, valente, cortês. Também podemos pensar em
Perceval, cavaleiro que apesar de se desviar em alguns momentos de suas tarefas
consegue cumprir com destreza a sua tarefa, conseguindo conquistar a amada e
depois ficando viúvo, no celibato. Ou devemos considerar Galaaz o verdadeiro herói
dessas lendas, uma vez que sem se desviar do seu caminho, mantendo-se sempre
firme cumpriu a aventura a qual ele foi destinado.
Na Demanda, muitos cavaleiros que saem em busca do Graal, mas
apenas os puros poderão chegar ao fim da busca. Nos três textos, observamos que
o herói do Graal precisa, antes de tudo, ser casto e levar uma vida dedicada a Deus
para que possa ter o merecimento de ver o Graal.
No romance Lancelot, no qual o Graal não aparece, Lancelot ainda assim não
figura como um verdadeiro herói, pois ele apenas é movido pelo amor, é por amor
que incorre em erros e é por amor que vence seus inimigos. Na Demanda, ele não
pode figurar como herói principal, pois não é puro o suficiente para poder participar
da aventura central da novela que é a busca pelo Graal. No Perceval, Lancelot
sequer figura. Embora saibamos que as três personagens são os de maior destaque
nas histórias do rei Artur e conheçamos a importância de cada um, os textos
mostram diferentes maneiras de ser herói. Mas, ao elegermos a busca pelo Graal
como aventura máxima da corte do rei Artur, deixamos Lancelot de fora, pois,
mesmo sendo muito capaz, está impedido pelo amor da rainha de ser o herói do
Graal.
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Dessa forma, para analisar a questão do herói faremos uma análise mais
aprofundada apenas da Demanda e do Perceval. Sem esquecer dos outros
elementos apontados e discutidos na comparação entre A Demanda e o Lancelot,
procuraremos indícios que aproximem ou afastem Perceval de Galaaz. Para tanto,
tentaremos responder à pergunta: Quem é o herói do Graal? Perceval ou Galaaz?
Observemos o herói Perceval, da forma como foi construído por Troyes em
Perceval, ou o romance do Graal, romance escrito posteriormente a Lancelot.
3.3.1 Filho de cavaleiro, cavaleiro é
- Cavaleiro? Não conheço ninguém assim
chamado! Nunca vi um. Porém sois mais belo
do que Deus. Gostaria de parecer convosco,
assim todo brilhante e afeitado!
Perceval, ou O romance do Graal
Chretién escreveu Perceval, ou o Romance do Graal sob outro patronato. Se
ao produzir Lancelot, Chretién cuidou da semelhança de Guinevere com a rainha da
França, agora, sob a proteção do Conde de Flandres, Chretién deixará transparecer
os valores de cavalaria que interessavam aos monarcas para manter a corte em
ordem. Além disso, Chretién criará um cavaleiro perfeito, cristão, dedicado aos
ideiais da cavalaria, como era, devemos supor, o conde de Flandres. Escrito em
1182, portanto alguns anos depois de Lancelot, é visível, em Perceval, uma
crescente cristianização dos elementos pagãos dos romances de Artur. Embora em
Lancelot também apareçam algumas citações aos valores cristãos, essas relações
não interferem no desenvolvimento da trama; em Perceval, os valores cristãos
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estão diretamente ligados às resoluções das aventuras e às respostas procuradas
pelos cavaleiros.
Existem numerosas versões sobre a origem de Perceval. Na maioria das
histórias, ele é de origem nobre, sendo filho de Pellinor, cavaleiro valoroso e rei de
Listenois. A sua mãe, habitualmente anônima, desempenha um papel importante na
história. Ela vai viver em uma floresta isolada, para impedir o filho de se tornar
cavaleiro. A sua irmã, portadora do Santo Graal é, ocasionalmente chamada
Dandrane. Nas versões da história em que Perceval é filho de Pellinor, os seus
irmãos são Tor, Agloval, Lamorat e Dornar.Perceval revela a face do herói guerreiro,
aquele que não é patrono das coisas que se tornaram, mas das coisas em processo
de tornar-se; (CAMPBELL, 2007, p.324). É necessário que Perceval saia em sua
aventura para contruir sua história, para que então haja o retorno e o crescimento do
herói.
Depois da morte do pai de Perceval, sua mãe leva-o para o isolamento da
floresta, fazendo com que ignore, até aos 15 anos, como se comportam os homens.
Um dia, ao brincar com dardos na floresta, o jovem Perceval encontra cinco
cavaleiros com armaduras tão brilhantes que os toma por anjos. Depois, adquire o
desejo de se tornar, ele próprio, cavaleiro e dirige-se à corte do rei Artur. Aí, depois
de se ter revelado um excelente guerreiro, é convidado a juntar-se aos Cavaleiros da
Távola Redonda.
Nos contos mais antigos, Perceval participa da busca do Santo Graal e, na
versão de Chrétien de Troyes, sua demanda é encontrar o Rei Pescador ferido e
solucionar seu problema. Ele encontra o Rei Pescador e observa o Graal, mas
abstém-se de pôr a termo a questão que iria trazer a cura do soberano, incorrendo
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num erro que o leva a peregrinar no pecado por um longo tempo. Percebendo seu
erro, esforça-se por voltar ao Castelo do Graal e terminar a sua demanda.
As histórias posteriores, principalmente a Demanda do Santo Graal, fazem de
Galaaz, filho de Lancelote, o verdadeiro herói do Santo Graal. Mas mesmo que o
seu papel tenha sido diminuído, Perceval mantém-se como uma importante
personagem e é um dos dois cavaleiros (juntamente com Boors) que acompanha
Galaaz ao castelo do Graal, terminado com ele a sua demanda.
No Perceval de Troyes ele é um gentil-homem gaulês, que vive com a mãe
viúva e, muitas vezes, é denominado apenas por filho da viúva. Estando Perceval na
floresta, avista um grupo de cavaleiros e a partir desse momento, decide tornar-se
cavaleiro, a despeito dos pedidos da mãe, que o havia levado para morar na
floresta para que ele não soubesse nada de cavalaria.
O medo da mãe de Perceval devia-se à morte prematura do pai de Perceval,
ele próprio cavaleiro. Mas o conto deixa claro que quem é filho de cavaleiro,
cavaleiro será, pois já traz em si os valores da cavalaria.
No início do romance, percebemos o quanto os valores cristãos farão parte da
trama. Mesmo o autor não tendo um comprometimento com a ideologia religiosa, é
em Perceval que Troyes deixa transparecer de forma mais clara seu envolvimento
com os valores cristãos comprovando que, assim como qualquer homem da Idade
Média, também sofreu influência do contexto em que estava inserido. Já nas
primeiras páginas do romance Perceval observa:
Por minh’alma, minha mãe e senhora diz a verdade quando afirma que os
diabos são as mais feias cousas do mundo, e ensina que eu faça o sinal
da- cruz para me proteger deles [...] (PERCEVAL, 2002, p. 26).
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Se na Demanda Persival aparece apenas como virgem, muito devotado a
Deus e o segundo na possibilidade de ver o Graal, sem maior aprofundamento, em
Perceval, o Romance do Graal, o personagem é mostrado de forma mais completa,
até mesmo por ser o personagem principal. Começamos a acompanhá-lo antes de
se tornar cavaleiro, sendo filho de uma viúva que tenta, em vão, mantê-lo afastado
das artes da cavalaria para impedir que tenha o mesmo destino do pai: a morte.
Assim que ele encontra com cavaleiros, mesmo tendo vivido a vida em uma
floresta, ele sabe que a cavalaria pode significar o bem, comparando os
cavaleiros a anjos:
Mãe, calai-vos! Pois vi hoje as mais belas cousas que existem, indo pela
Gasta floresta. Creio que são mais belos do que o próprio Deus e todos os
Seus anjos. (PERCEVAL, 2002, p. 30)
Sendo Perceval filho de cavaleiro não há como ele ter outro destino que não o
da cavalaria, está no sangue. Embora sua mãe tenha feito de tudo para que ele não
se tornasse cavaleiro, não pode lutar contra o destino. Aqui vemos mais uma marca
da presença dos valores cristãos: Caro filho, entrego-te a Deus porque tenho mui
grande medo por ti”. (Perceval, 2002, p. 30)
Depois que Perceval decide ser cavaleiro, vai a busca de aventuras que o
código de cavalaria prescreve a um bom cavaleiro e à procura do rei que sagra
cavaleiros. Nesse caminho passa por muitas aventuras e o comportamento que ele
apresenta é desde o primeiro momento muito diferente do que Galaaz apresenta na
Demanda, pois Perceval no início de seu percurso encontra uma dama e a beija
muitas vezes.
Segura-a deitada a seu corpo, malgrado a defesa que ela tenta para se
desvencilhar. Mas em vão. Queira ou não, o rapaz beija-a sete vezes a fio,
diz o conto. (PERCEVAL, 2002, p.34)
66
Em outro momento, Perceval sucumbe à beleza da mulher e afirma:
Se já descrevi a beleza que Deus pode colocar em corpo e rosto de mulher,
desejo faze-lo uma vez mais, sem mentir uma única palavra [..] |Deus a
fizera a Mais-que-Maravilha. Deus inda não havia feito nada igual. Nunca
mais criaria outra. (PERCEVAL, 2002, p. 48).
Desde o início de suas aventura, Perceval apresenta um comportamento que
não pode ser comparado ao de Galaaz, sempre evita o pecado, até em pensamento.
Deve-se ressaltar que ele ainda é virgem e que as tentações pelas quais tem
passado servem para fortalecer essa qualidade, de modo que Perceval é ainda
candidato à visão do Graal, pois
apresentam-lhe todo o preciso para uma noite de delícias (salvo o prazer
que uma donzela, ou uma dama se tivesse tal direito. Ele porém ignora
tais passatempos. Não pensa nisso, nem pouco nem muito.
Despreocupado, prontamente adormece. (PERCEVAL, 2002, p. 48).
Os feitos de Perceval têm, assim como os de Galaaz, grande repercussão.
Em um desses feitos envia à corte de Rei Artur um inimigo vencido por ele que
chega a Camelot no dia de Pentecostes. Estando nesse dia a corte toda reunida,
fica sendo de conhecimento de todos as maravilhas que o grande cavaleiro têm
feito.
Porém Perceval permanece durante certo período vivendo com Brancaflor,
donzela que salvara a vida e ajudara a recuperar seu castelo. Apesar de várias
referências terem sido feitas à mulher como pecadora, e como aquela que desvia o
cavaleiro do bem, não fica explícito, nessa passagem, que Perceval está se
desviando do bom caminho por viver com uma amiga:
Durante esse tempo, o cavaleiro que salvara o castelo e a bela Brancaflor,
sua amiga, vive junto dela bem à vontade e nos prazeres. Toda a cousa
seria sua sem disputa. (PERCEVAL, 2002, p. 62).
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Embora não fique claro no texto, é possível perceber uma clara desaprovação
ao fato de o cavaleiro estar desfrutando das delícias do amor enquanto deveria estar
cumprindo seu papel de cavaleiro, ainda que depois venhamos a saber, que apesar
de estarem juntos, não desfrutaram dos prazeres da carne. Ao compararmos a
escolha que Perceval fez depois que salvou o reino à escolha de Galaaz, na mesma
situação, percebemos que Galaaz não hesita em continuar servindo a Deus.
Enquanto Perceval aceita desfrutar do amor da donzela e ficar “reinando” no castelo
que libertara, Galaaz, não aceita ser coroado rei do povo que salvara e parte
imediatamente, pois tem compromissos com os ideais da cavalaria e de Deus.
A partir desse ponto é que Perceval, impulsionado pela preocupação com a
mãe viúva que ficara sozinha, sai em aventuras novamente e vai ao encontro do seu
destino.
Chega, no fim de um dia, a um castelo, cujo senhor é o rico rei Pescador,
paralítico das pernas. Após cear, Perceval passar um desfile do qual constam
uma lança cuja ponta sangra permanentemente, emitindo três gotas de sangue, e
um aparato de louça, cuja peça principal é uma taça ou um prato ornado de pedras
preciosas.
Perceval na Demanda e no romance de Troyes é digno de ver o Graal. Num
primeiro momento, pode parecer estranho que alguém que tenha vivido com uma
amiga possa ver o Graal, porém, mesmo na Demanda, o fato de os cavaleiros
possuírem amigas é considerado um fato normal. É possível constatar isso no
momento em que os cavaleiros juram a Demanda.
E depois que chegaram ao paço, cada um dos cavaleiros foi estar com sua
mulher ou com sua amante ou com sua amiga. E houve alguns que
combinaram com suas amigas de as levarem. (DSG, 1988, p. 47)
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Assim, mesmo que tenha uma amiga, Perceval pode ficar maravilhado com o
Graal. Porém, preso pela timidez e lembrando-se dos ensinamentos de seu mestre
de cavalaria, que o aconselhou a nunca falar demais, pois “quem fala demais faz
pecado” (PERCEVAL, 2002, p. 46) não fez perguntas sobre o que estava
acontecendo.
O jovem os viu passar, mas não ousou perguntar a quem apresentavam
esse Graal no outro aposento, pois tinha ainda na mente as palavras do
homem sábio, seu mestre de cavalaria. (PERCEVAL, 2002, p. 67).
Por isso, foi, conforme a trama do romance, condenado a cinco anos de
andanças sem rumo definido. Viveria esquecido de Deus até uma sexta-feira santa
em que se reconciliaria com o Senhor mediante uma confissão geral.
Se Perceval tivesse perguntado por que a lança sangrava e quem era o
personagem a quem se servia o Graal, o rei Pescador teria recuperado a saúde, e
seu reino devastado se teria tornado próspero. Também em Perceval é uma donzela
que se encarrega de explicar a Perceval os mistérios do que acontecera na casa do
rei Pescador. Assim a donzela explica:
Ah, infeliz Perceval, conheceste aventura ao não perguntar jamais
algo que teria feito bem a esse bom rei ferido! Prontamente ele teria
recuperado o uso dos membros, mais a terra. Tão grande bem teria
advindo! Porém fica sabendo que desventura virá, a ti e a outrem, por esse
pecado, fica sabendo bem! (PERCEVAL, 2002, p. 71)
Assim como na Demanda, uma donzela explica os acontecimentos e serve
também como portadora de notícias, pois é por essa mesma donzela que Perceval é
informado da morte de sua mãe.
Após o encontro com essa donzela, Perceval sai finalmente em peregrinação
para expiar o seu pecado. Devemos notar que o pecado que leva Perceval à
peregrinação não está relacionado ao pecado da carne, mas sim a um “fado” que ele
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deveria ter cumprido e não cumpriu. Iguala-se momentaneamente a Galaaz na
medida em que peregrina e durante a peregrinação seus feitos vão aumentando e
se tornado mais famoso. Afirma Sir Gawain ao saber que Perceval venceu em
combate um cavaleiro muito famoso conhecido por Orgulhoso da Charneca:
Em nome de Deus, Sire, quem é então esse jovem campeão que venceu
em duro combate um cavaleiro tão valente? o, em todas as ilhas do mar
nunca vi nem ouvi mencionar um cavaleiro que me bravura e cavalaria
valha o Orgulhoso da Charneca! (PERCEVAL, 2002, p. 78).
Não podemos esquecer que Perceval foi armado cavaleiro pelo próprio rei
Artur o que o deixa em vantagem em relação a Galaaz que foi armado cavaleiro, na
Demanda do Santo Graal, por Lancelote. Percebe-se então que Perceval é, no
romance de Troyes, um cavaleiro tão perfeito quanto Galaaz. O próprio rei Artur
afirma:
[...] juro que não descansarei e aposento esta noite e nem na noite seguinte
enquanto não o revir, enquanto não souber que ainda está vivo em terra ou
sobre o mar. E não esperarei para partir à sua procura. (PERCEVAL, 2002,
p. 78)
Depois de fazer uma pausa e contar as aventuras de Sire Gawain, nas quais
aparecem diversas alusões à mulher como veiculo do mal, volta o conto a falar de
Perceval que perdeu a memória de Deus e está cinco anos sem lembrar-se do
Senhor. Ao encontrar três cavaleiros, é lembrado de que dia é:
Que dia? o sabeis? É Sexta-feira sagrada, quando o homem deve
chorar seus pecados e adorar a cruz; pois neste mesmo dia foi vendido por
trinta dinheiros e crucificado Aquele que era puro de pecado. (PERCEVAL,
2002, p. 109)
Ao se dar conta de que passou cinco anos peregrinando sem louvar a Deus,
Perceval vai em busca de um eremita, um homem probo que possa ajudá-lo a
encontrar seu caminho. Chegando a uma capela, ele pode finalmente confessar-se e
70
pagar sua penitência. Assim que começar a contar suas desventuras, o eremita
explica o motivo pelo qual Perceval teve de passar por todas essas provações:
Irmão, o que te prejudicou é um pecado que ignoras. É a dor que fizeste a
tua mãe no momento em que a deixaste. Ela tombou por terra desfalecida,
na entrada da ponte, ante sua porta, e foi assim que morreu. Por esse
pecado que fizeste é que nada perguntaste da lança nem do Graal.
(PERCEVAL, 2002, p. 111)
O romance termina na página 151 sem nos revelar o destino de Perceval,
pois depois de encontrar o eremita e de se reconciliar com Deus, o conto, assim o
chama o seu autor, deixa de falar nele e passa a falar em Gawain.
Dessa forma, para Troyes, Perceval termina reconciliado com Deus e
arrependido dos seus pecados.
Então Perceval tomou consciência da Paixão e da morte que Deus sofria
naquela sexta-feira, e na páscoa comungou mui piedosamente.
(PERCEVAL, 2002, p. 112)
Depois de deixar Perceval em estado de reconciliação com Deus, segue o
conto falando de Sir Gawain e termina de forma abrupta na página 151, sem voltar a
falar de Perceval. O que temos, a partir desse trecho, é uma seqüência de Perceval,
feita pelos continuadores de Troyes. Nos trechos que se seguem, há um
crescimento nas referências feitas a Deus e também ao diabo e ao inferno. Na
continuação, Perceval aparece infeliz e volta a sair em viagem devido à saudade de
sua amada Brancaflor. Embora Perceval tenha conseguido se livrar de suas
desventuras por lembrar-se de Deus, não abandonou completamente os prazeres do
mundo, pois sente falta de sua amada e vai encontrá-la.
Perceval não encontra o sono. Pensa no frescor sua amiga, no amor que
leu em seus olhos, e a armadura de ferro, que seu espírito não abandona,
pesa-lhe sobre o coração. (PERCEVAL, 2002, p. 168)
71
Depois de voltar para sua amada, Perceval ainda o se sente realizado.
Poderia optar por ficar com Brancaflor e se tornar rei, mas ainda precisa cumprir sua
tarefa, pois se reconciliou com Deus, mas não realizou a tarefa destinada a ele,
aquela aventura que pode ser realizada por ele, o motivo pelo qual vive em
peregrinação. Perceval avisa à amada, quando esta pede que ele fique com ela em
seu reino: “- Agora não é possível, minha amiga, pois empreendi uma aventura mui
maravilhosa. Mas voltarei para vós assim que terminar (PERCEVAL, 2002, p. 169).
Sendo assim, Perceval segue em busca de Rei Pescador para encerrar a
aventura que o levou a peregrinar durante todo o romance. Através das repostas
que o Rei Pescador a Perceval, conhece-se a descrição do que é o Graal. Após
cumprir a etapa das perguntas, Perceval ainda deve vingar o Rei Pescador de um
inimigo para que este fique finalmente curado e finde a tarefa de Perceval.
sabemos que a melhor forma de se manter para igreja era virgem, em
segundo lugar viúvo e por ultimo casado. Logo depois que Perceval vinga-se do
inimigo do Rei Pescador, casa-se com Brancaflor, mostrando a mesma idéia
presente na Demanda. A idéia de que se não é possível controlar os instintos, é
melhor casar. Nos dizeres de Perceval,
o homem que vive santamente e guarda castidade tem proveito nisso. É
amado de todos e sua alma está tranqüila, como dizem os padres. Portanto
quero tomar mulher para evitar o pecado mortal que atormenta e destrói a
alma. (PERCEVAL, 2002. p. 215)
Perceval tem acesso às maravilhas do Graal, pois quando chegou de volta ao
castelo do Rei Pescador ainda estava virgem. Ele mesmo sabe que a castidade
está acima de tudo, como o topázio supera o cristal e o ouro fino a qualquer outro
metal (PERCEVAL, 2002. p. 224).
72
Brancaflor e Perceval decidem permanecer virgens e só se tocarem para
gerar ou evitar o pecado, sem buscar nas relações carnais o prazer. Ainda que herói
desse romance seja coroado rei do Graal, na versão de Troyes, sabemos que
Perceval não pode ser considerado o herói desse ciclo de aventuras e isso é dito por
Brancaflor:
[...] Bem sabeis que a castidade é coisa santa. Assim como a rosa é mais
bela do que as outras flores, também a virgindade supera todas as virtudes,
e quem a consegue guardar recebe dupla coroa perante Deus no santo
Paraíso. (PERCEVAL, 2002. p. 224)
Depois de cumprir sua aventura com o Rei pescador, Perceval não se
mantém virgem, pois o narrador conta que ele tem um filho.
Perceval depois do fim de suas aventuras, fica viúvo, porque é necessário
que ele abandone o pecado para que possa obter a salvação. Vai para um mosteiro
e leva consigo o Graal, vivendo na mais santa vida, tornando-se padre. Ao morrer,
levou para o céu o Graal e em seu epitáfio ficou a frase “Aqui jaz Perceval o Galês
que levou a termo as aventuras do Graal” (PERCEVAL, 2002. p. 246).
Ainda que tenhamos, nesse ciclo de histórias, diferentes tipos de heróis e que
eles tenham passado para o imaginário atual de diferentes maneiras, sabe-se que o
verdadeiro herói do Graal, só pode ser Galaaz, pois só ele reúne todas as condições
para isso. Observemos o tratamento dado a Galaaz, herói da Demanda do Santo
Graal, pelo tradutor da Demanda, buscando as qualidades que fazem de Galaaz o
herói do Graal. Galaaz é um herói que está além da vida: um santo que renuncia ao
mundo.
73
3.3.2 A Santificação de Galaaz
Vem adiante, sergente de Jesu Cristo, e veerás o
que tanto desejaste sempre veer.
A Demanda do Santo Graal
Ao contrário de Perceval, que passa por altos e baixos em Perceval, vemos,
na Demanda do Santo Graal, um herói que vai se dirigindo à perfeição dos santos.
Perceval, tanto na Demanda quando em Perceval, nos é mostrado como humano,
com suas imperfeições e dúvidas, muito embora sempre acabe por escolher o
caminho da correção. para Galaaz, não momento de dúvida, de hesitação,
pois, desde o início, ele é mostrado como um ser perfeito, comparável a Jesus
Cristo. Essa comparação cresce no decorrer da aventura e dessa forma é
necessário perguntar se Galaaz já apresenta esse ideal de perfeição, por que sai em
peregrinação?
Sabemos que cada cavaleiro que sai em busca do Graal também está
empreendendo uma viagem de autoconhecimento e de aperfeiçoamento. Dessa
forma, além da grande busca pelo Graal que é a Demanda do Santo Graal,
também, nessa grande demanda, pequenas buscas que cada cavaleiro vai fazendo
em seu caminho.
Por definição toda a demanda é uma aventura longamente contrariada, o
que provoca, ao longo de sua realização, uma errância. A narrativa então
arrasta o herói ou os heróis para fora de seu lugar, a corte, por diversos
antagonismos antes da conquista final consagrada por um retorno que
engrandece a comunidade curial que o vencedor representa. (MEGALE,
2001, p. 42)
74
A errância que a demanda provoca leva o cavaleiro a deparar-se com
diversas situações que podem ser pagamento de penitências, donzelas por salvar,
dívidas a serem cobradas, lutas entre cavaleiros pelos mais diversos motivos e
aventuras de todo tipo a que um cavaleiro pode ser exposto. Cada cavaleiro
peregrina e busca o Graal por um motivo ou necessidade diferente, e esses motivos
vão surgindo ao longo da narrativa, à medida que a aventura destinada a cada um
vai sendo revelada. Para Galaaz, porém, embora ele passe também por muitas
aventuras, não outro motivo para a busca que não seja a própria demanda pelo
Graal.
Assim, se os cavaleiros que estão peregrinando estão cumprindo alguma
penitência, como o que ocorre a Perceval, que havia se esquecido de Deus, ou
ainda cumprindo as designações do código da cavalaria, salvar donzelas, caso de
Lancelot, em Lancelot, que motivo levaria Galaaz a sair em peregrinação, que a
busca do Graal nada mais é que uma peregrinação pela própria salvação, como os
outros cavaleiros? Galaaz não teria certamente um pecado para purgar, já não
estaria, devido à sua perfeição de caráter, assegurada a sua salvação? Por que
Galaaz precisa passar pelas provações?
Há que se encontrar um motivo para que Galaaz saia em peregrinação.
Podemos buscar algumas respostas no nascimento de Galaaz. Já que ele não tinha
pecados da carne como os outros cavaleiros, podemos interpretar seu nascimento
como um pecado, pois, sendo bastardo, é preciso que ele prove que essa mancha
não tocou sua pureza. A sua condição de bastardo não impediu que ele fosse o
herói da novela, mostrando que, para Deus, nada é impossível e que, embora o
homem nasça em pecado, sempre a possibilidade de salvação se a vida for
vivida de forma correta e casta. Mesmo sendo Galaaz fruto do concubinato, uma
75
relação que era muito comum no seio das grandes famílias, ele não sofre nenhuma
discriminação em relação aos outros cavaleiros, permitindo que viva a maior
aventura do reino de Logres. Talvez porque “foi apenas no século XI que se
acentuou a distância entre concubinas e esposas, considerando-se bastardo o filho
concubinato” (ROSSIAUD, 2002, p. 485).
A bastardia não pesa tanto para Galaaz porque o concubinato não era
considerado um pecado tão grave e resistiu à instituição do casamento, tanto que
“nos séculos XII e XIV, os civilistas fazem dele um “quase-matrimônio”, e alguns
pensam mesmo que não deva ser submetido a nenhuma pena legal” (ROSSIAUD,
2002, p. 485).
Dessa forma, embora Galaaz não sofra com sua condição de bastardo,
parece-me que precisa provar a si mesmo que o traz em si o pecado de seu
nascimento e talvez precise ser melhor que Jesus Cristo que não tem a mancha do
pecado original, pois foi concebido por uma virgem.
Não seria, portanto, Galaaz mais venturoso que Cristo? O fato de ter sido
concebido em pecado empobrece de alguma forma a santidade de Galaaz? Parece
que não, uma vez que todo homem nasce em pecado e já que o pecado original é
transmitido pelo nascimento, Galaaz da mesma forma nasceria em pecado. O fato
de ele ser bastardo não parece denegri-lo, ao contrário, isso acaba por torná-lo mais
venturoso e serve para mostrar o quanto Deus é poderoso a ponto de fazer nascer a
mais santa criatura em pecado: “[...] Porque Deus que te fez nascer em tal pecado
como sabes, para mostrar seu grande poder e sua virtude [...]” (DSG, 1988, p. 27).
Outra questão que pode demonstrar que a bastardia não influencia as
qualidades de Galaaz é a de que o pecado, muitas vezes, é medido pela aparência
exterior das pessoas, pois muito se acreditou que a aparência é o espelho da
76
alma, confirmando se a pessoa é boa ou ruim. Por isso, um defeito físico é a
revelação de um defeito na alma. Mas, no caso de Galaaz, que nasce bastardo, o
pecado o atrapalha sua aparência física, que é belo, encanta a todos e
desperta amor nas donzelas.
Ao contrário de Perceval, que ao sair de para suas aventuras já encontra uma
donzela e a beija, Galaaz é exemplo de virtude e não sucumbe aos desejos da
carne. Mas devemos lembrar, no entanto, que a beleza de Galaaz é mais um de
seus dons e, além de mostrar que sua alma é limpa e bela, serve, mais uma vez,
para provar o quanto esse cavaleiro é especial. Sendo ele tão belo, torna-se ainda
mais difícil resistir às tentações da carne, uma vez que, com tal beleza, pode
provocar o desejo das mulheres, estando assim predestinado a sofrer tentações.
Isso pode ser comprovado na aventura pela qual Galaaz passa em casa de
rei Brutos, quando a filha do rei, uma jovem donzela de quinze anos, cai de amores
por ele de forma instantânea devido à beleza do cavaleiro, tornando-se uma grande
provação para Galaaz, que fica divido entre continuar limpo dos pecados da carne,
ou ceder à tentação e atender ao pedido da donzela que se mostra tão
desesperada.
E a filha do rei Brutos, que era muito formosa, olhou muito tempo Galaaz e
pareceu-lhe tão formoso e tão bem feito, que o amou entranhadamente,
como nunca amou tanto nada do mundo, que o tirava dele os olhos; e
quanto mais o olhava, mais gostava dele e mais o amava. (DSG, 1988, p.
97).
Galaaz é exemplo de virtude, bondade, beleza e cavalheirismo, e sua fé não
parece esmorecer nunca. No episódio acima, que poderíamos interpretar como uma
vacilação, a primeira vez que demonstra hesitação na sua resistência à luxúria, diz à
donzela: “– Ai, boa donzela! Tem um pouco de paciência e não te mates assim, que
farei todo o teu prazer” (DSG, 1988, p. 101). Neste momento, Deus interfere e
77
impede que ele caia em tentação, fazendo com que a donzela se suicide, mostrando
o quanto o justo, o que mantém uma vida limpa, é ajudado por Deus nas horas
derradeiras.
Podemos perguntar se Galaaz não pecou ao pensar em sucumbir ao desejo
da donzela. Ele também precisa passar por momentos de dúvida, e esse
acontecimento foi um aviso de que todos, mesmo os mais castos, são passíveis de
serem tentados e de cair em tentação. Depois do suicídio da donzela, Boorz explica
a Galaaz o acontecido: “– O diabo lhe fez fazer” (DSG, 1988, p. 102).
A sentença proferida por Boorz serve para engrandecer Galaaz que parece
ter cometido uma falha e, afinal, até mesmo Jesus Cristo foi tentado pelo demônio.
Sendo o diabo tão perigoso e astuto e inimigo tão grandioso, é possível que mesmo
o mais santo dos cavaleiros deva temê-lo, revelando que os que não levam vida o
santa como a de Galaaz devem temer ainda mais, pois não serão ajudados na hora
da provação. A tentação serve para mostrar-lhe que, mesmo sendo ele de vida casta
e pura, é preciso que não descanse nunca, que jamais abra passagem para a
entrada do mal. Daí, após o acontecimento em casa de rei Brutos, tornar-se ainda
mais atento e não se descuida, fazendo orações e se penitenciando sempre:
[...] Mas Galaaz não adormeceu, porque pensava em outra cousa muito
mais que ele, porque deitou-se e ficou o mais da noite em preces e de
joelhos e inclinado, rogando a Nosso Senhor com muitas lágrimas [...].
(DSG, 1988, p. 383)
Muitos motivos aproximam Galaaz de Jesus Cristo, como a capacidade de
cura e a humildade que ele demonstra, embora saiba que é o melhor e mais puro
cavaleiro de todo o reino de Logres. Galaaz cura algumas pessoas durante sua
peregrinação, mas a passagem mais emblemática é quando ele consegue curar
uma donzela leprosa que estava doente dez anos. Ao permitir que ela use a
78
estamenha dele, vestimenta áspera que servia de cilício, por estar em contato com
sua santa e limpa carne, consegue curar a donzela. Assim, “[...] a donzela que
vestira a estamenha ficou logo tão boa, como se nunca tivesse estado mal(DSG,
1988, p. 315).
A comparação a Jesus Cristo não pára por aí, pois Galaaz, muitas vezes, é
injustiçado, principalmente quando o tomam por covarde e mau cavaleiro. Em outra
passagem, quando está preso em um reino junto com Boorz e Persival, quando o
povo resolve fazê-lo rei, mesmo contra sua vontade, e, para isso, colocam uma
coroa em sua cabeça, pensando em matá-lo se ele não aceitasse, pode-se ver uma
referência à história bíblica.
Exemplo de humildade e lealdade a Deus, Galaaz não titubeia em abrir o
de sua honra, abandonando uma batalha para que pudesse fazer de Palamedes um
cristão. Como regra de cavalaria, os cavaleiros se enfrentavam na batalha até que
um se desse por vencido ou morresse. Abandonar a batalha configurava covardia e
era prova de cavalaria. Galaaz, porém, deixa de vencer Palamedes, que
estava praticamente vencido, propondo que se converta: “– Eu vos digo, disse
Galaaz, que se quiserdes deixar vossa lei e receberdes o batismo, vos perdoarei
quanto queixume de vós tenho e me tornarei seu vassalo [...]” (DSG, 1988, p. 431).
Com todos esses atributos, não é surpresa que Galaaz consiga atravessar
todas as aventuras sem cair em tentação, sublimando seu erotismo em nome de
Deus. Tanto Galaaz é afortunado, que o próprio narrador deixa uma advertência na
história, mostrando que será preciso encurtar os feitos do famoso cavaleiro:
[...] se vos contasse todas as maravilhas de Galaaz, e sobretudo a
derradeira parte do meu livro seria maior que as duas primeiras. Mas, sem
falha, o que deixo nesta derradeira parte está no conto do Brado. (DSG,
1988, p. 441).
79
A vida santa levada por Galaaz garantiu-lhe, muitas vezes, até a
sobrevivência, como é o caso da passagem em que rei Mars envenena Galaaz e um
companheiro dele. O companheiro morre porque era pecador, e a Galaaz nada
acontece porque Deus protegeu-o por ser ele limpo do pecado:
[...] Sabe que rei Mars te deu à noite mortal peçonha e aparecerá em teu
companheiro, pois o acharás morto, porque estava em pecado mortal, e tu
escaparás, porque o grande Mestre te achou em vida boa. (DSG, 1988,
p.367).
Mas Galaaz possui mais uma característica fundamental entre as que o
citadas durante A Demanda do Santo Graal. Ele é homem e por isso tem condições
de superar as vicissitudes e vencer o pecado. Para ele, a peregrinação é muito
difícil, mesmo que ele possua todas essas virtudes. Disso, podemos depreender o
quão mais difícil era para os demais cavaleiros alcançar a salvação, pois, além de
não viverem em vida tão casta quanto à de Galaaz, não possuíam suas outras
qualidades, como a humildade, a bondade das armas, a beleza e a coragem. Para
as mulheres, era praticamente impossível salvar-se, porque elas não possuíam boas
qualidades, intrinsecamente e, mesmo tentando lutar contra suas características,
quais seriam as suas chances de conseguir equiparar-se à Maria ou a Galaaz?
Como foi afirmado, o homem tem, por ser homem, muito mais chance de
salvar-se do que a mulher, mas, se ele sublima seu erotismo e vive na castidade
total, a sua salvação está praticamente garantida, mesmo que ele tenha sido
pecador anteriormente. Esse é o caso de Lancelot que, por mais que estivesse
enredado nos pecados da carne, ao afastar-se da vida mundana consegue salvar-
se. No momento derradeiro de sua morte, um arcebispo de vida tão santa quanto a
de Lancelote consegue enxergar em um sonho, como a sua alma subiu aos céus:
Estava, disse ele, em tão grande festa e em tão grande companhia de
anjos, que nunca vi tão grande alegria e com tão grande festa como vos
80
digo, a alma de dom Lancelote. Agora vamos ver se está morto. (DSG,
1988, p. 515).
Para aquele que consegue levar a vida sem pecado, as maiores maravilhas
estão garantidas, como Galaaz, que estava predestinado a alcançar o Graal.
Todavia, depois de todos os percursos passados pelos cavaleiros, Galaaz continua
tendo direito ao Graal?
Ao passar pela última provação, Galaaz mostra mais uma vez o quanto uma
vida limpa vale a pena, pois a entrada no paço venturoso é permitida a ele, a
Boorz que errou, mas que se guarda na mais pura castidade e a Persival que na
versão da Demanda é virgem. Mas a visão do Graal é permitida a Galaaz, pois
Persival tem uma amiga que o espera e Boorz tem a mancha do pecado da carne,
ainda que agora seja casto.
Ao chegar a Corberic, Galaaz recebe o prêmio que justifica toda a vida
dedicada a Deus e passa pela prova final de conseguir entrar no paço venturoso:
– Senhores, disse Galaaz, ora podeis ver as provas de nossas obras, Neste
paço nenhum cavaleiro pode entrar, se não se mantém como cavaleiro de
santa Igreja para Nosso Senhor. Se somos cavaleiros do santo Graal, as
portas se nos abrirão, se não o somos, não entraremos lá. (DSG, 1988,
p.444).
O último ato da biografia do herói é a morte ou partida. Aqui é resumido todo
o sentido da vida. Desnecessário dizer que o herói não seria herói se a morte lhe
suscitasse algum terror (CAMPBELL, 2007, p. 339), porém para quem vive em vida
casta além de não haver o medo um desejo pela morte; pois para esses a vida é
uma sucessão de tentações e a verdadeira vida é depois da morte ao lado de Jesus.
Nesse sentido, a tranqüilidade a respeito da morte serve como incentivo para que o
homem, sempre preocupado com a sua condição de mortal, acredite que a vida
casta é garantia de que a morte não seja sofrimento, mas, sim, um prêmio. Os que
81
vivem em vida são covardes e temem que, durante as aventuras, morram e
sofram na danação eterna. Pode-se ver que o prêmio de Galaaz, depois que ele
encontra o Graal, é a morte, o que se de forma tranqüila e no momento em que
ele deseja:
[...] – Senhor, a mim parece que vivi já muito neste mundo. Se vos aprouver,
levai-me logo. (DSG, 1988, p.466).
[...] Quando caiu no chão, a alma se lhe saiu do corpo e levaram-na os
anjos fazendo grande alegria e bendizendo a Nosso Senhor. (DSG, 1988, p.
468).
É interessante notar o quanto a morte de Galaaz e de Lancelote, na Demanda
do Santo Graal, é semelhante, mostrando mais uma vez que a castidade iguala os
homens na busca da salvação, sendo ele o mais santo cavaleiro ou um pecador
arrependido. Também em Perceval, a morte do herói é no mosteiro, na mais pura
castidade, conseguindo, dessa forma, ter também o seu lugar no céu:
A primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o túmulo. O herói,
que em vida representa a perspectiva dual, ainda é depois da morte, uma
imagem-síntese: ele apenas dorme e se levantará na hora que o destino o
determinar, ou está entre nós sob outra forma. (CAMPBELL, 2007, p.341).
Comparando os dois heróis desses dois romances, percebemos que eles
passam por várias aventuras e obtêm, de uma maneira ou de outra, o direito às
maravilhas do Graal, mas em ambas as obras fica claro que o só pode ter acesso ao
Graal, aquele que se mantém na castidade. Essa é chave para que consideremos
Galaaz como o verdadeiro herói do ciclo do Graal, pois foi apenas ele, entre tantos
cavaleiros, que se manteve casto durante a vida toda.
O que separa o pecador do bom homem é na verdade a peregrinação, o
sofrimento, a resistência, o arrependimento e a lealdade à castidade. Mesmo que ele
tenha uma mancha, assim que se arrepende, recebe de Deus uma nova chance de
conseguir a salvação. Dessa forma, podemos entender o que significa A Demanda
82
do Santo Graal para esses cavaleiros. Mais do que aventuras, mais do que honra,
mais do que reconhecimento, A Demanda é uma peregrinação em busca da
salvação de suas almas que implica a superação do erotismo e, portanto, do pecado
da carne. Coisa que Galaaz fez durante toda a sua vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deste modo como vos digo, morreu rei Mars
de Cornualha; e os ermitães ficaram na
ermida em serviço de Deus. E assim,
acabemos nós. Amém
A Demanda do Santo Graal
Não há sistema definitivo de interpretação dos mitos e jamais haverá algo
parecido com isso. (CAMPBELL, 2007, p. 367). As questões discutidas nesse
trabalho procuraram mostrar alguns aspectos do mito do rei Artur e de suas histórias
aliados a um pequeno panorama do pensamento medieval. Essas questões
demonstram a riqueza das obras e os motivos que levaram à permanência e à
discussão dos temas presentes nas mesmas. Desde os tempos de Chrétien de
Troyes até as releitura mais recentes como “As brumas de Avalon de Marion Z.
Bradley, até o recente Código Da Vinci”, o fascínio do Graal não está ligado a ele
mesmo, mas sim à sua eterna busca. Nas palavras de Ángel Rama
[...] as obras que sobrevivem mais tenazmente às ondas do tempo são
aquelas nas quais nos é revelada a natureza humana em uma determinada
circunstância histórica que é, por isso mesmo, circunstância de uma
realidade concreta que o homem manifesta. Seja pelo caminho da
exploração real de um determinado mundo, seja pela interpretação
simbólica, pelo uso do mito, sempre estamos no enfrentamento, na
descoberta do real. (RAMA, 1998, p. 94)
É possível que falemos numa evolução natural para a crescente cristianização
dos elementos desses romances. A mistura dos elementos pagãos e cristãos é que
84
torna essa obra tão especial. Enxergar a contradição, as várias idéias que coexistem
na novela, e no contexto histórico em que ela foi escrita, é a prova de que a literatura
nos brinda com boas histórias ficcionais, mas também com muito mais, nos
presenteia com a revelação do imaginário e com o pensamento de toda uma época.
O Graal, em princípio, não era um cálice, talvez fosse mais parecido com um
prato, ou uma vasilha em suas primeiras aparições na literatura medieval, às vezes,
até mesmo descrito como uma pedra mágica. Durante a busca, os cavaleiros vão
passando por muitas provações, assim como as que o homem passa na vida terrena
para poder alcançar o céu. Quem resistir a elas e conseguir manter o corpo puro,
afastado dos pecados da carne, terá chance de encontrar o Santo Vaso e ser salvo.
Chrétien de Troyes foi o autor que fixou a lenda do Graal, mas morreu
deixando seu Perceval inacabado, permitindo que a lenda fosse alterada e
reconstruída, incorporando cada vez mais elementos cristãos. Junto com a busca de
outras relíquias cristãs, a busca do Graal foi se tornando central na imaginação
cavaleiresca. A visão do Graal é uma amostra de que a possibilidade de salvação
realmente era muito pequena, pois dos mais de cem cavaleiros que saíram em
busca do Santo Vaso, apenas doze chegaram a Corberic e, dentre estes, apenas
Boorz, Persival e Galaaz conseguem entrar no paço venturoso. Eles só conseguiram
chegar até devido à sua pureza de corpo, pois Lancelot quando chega a Corberic
não pode entrar no paço, já que continua vivendo em pecado e depois que se
separa da rainha pode finalmente ter sua alma salva. De fato, isso mostra que
poucos poderiam empreender a demanda pela salvação da alma e alcançar o céu.
Cabe, neste momento, destacar que não apenas A Demanda modificou
símbolos pagãos e os reaproveitou, ressimbolizando-os, como também Troyes, ao
escrever seu texto, sofreu influência do contexto de sua época, suavizou as tintas do
85
adultério e “melhorou” a personalidade de Guinevere, retratada sem ternura em
outros romances do ciclo Arturiano e em mitos galeses, talvez devido a sua amizade
e proximidade com a rainha da França. Sabemos que não é possível recuperar a
intenção do autor, mas pudemos, através da comparação entre os dois textos,
perceber que mudanças foram feitas nos tratamentos dos temas que podem indicar
a motivação do autor.
O interessante dessa análise foi perceber que as três obras se equivalem em
muitos pontos, se cruzam em diversos temas, têm o mesmo tipo de tratamento
dispensado aos cavaleiros e mostram os mesmos códigos de honra e as mesmas
idéias cristãs. Se os textos dialogam, se podemos usar as teorias da
intertextualidade e o conceito de contexto para mostrar as semelhanças entre as
obras, por que não usá-las para mostrar o quanto as diferenças entre as obras
também marcam esse diálogo? A presença/ausência de determinados aspectos
cristãos/pagãos serviram para mostrar o quanto, na verdade, a mentalidade da
época é que está presente na obra.
Dessa maneira, o que observamos em geral, na crítica, é que a mentalidade
da época serve para explicar os ideais cristãos na Demanda:
[...] Se é verdade, como se diz, que o tradutor revela-se muito mais quando
deixa de ser literal, quer parecer-nos que o tradutor português impressiona
pela compreensão abrangente que revela ter da obra, da mentalidade da
época [...] (MEGALE, 2001, p. 385)
Mas o percebemos essa mesma utilização da mentalidade da época para
marcar na obra de Troyes, os mesmo ideais cristãos, ainda que não marcados tão
ideologicamente quanto na Demanda do Santo Graal.
Embora alguns autores, como Heitor Megale, defendam que a obra de Troyes
não é cristã, é inegável que o autor demonstra, em várias passagens, pontos
86
comuns de tratamento de temas e de utilizações das mesmas idéias cristãs
presentes na Demanda. Podemos perceber, claramente, que houve duas
modificações mais emblemáticas em relação à Demanda. O caráter da personagem
Guinevere e o tratamento dispensado ao amor e ao adultério e o desenvolvimento
do caráter do herói que vai da realização do amor (Lancelot) à total sublimação do
mesmo (Galaaz).
Observamos, dessa maneira, que o tratamento dado a Guinevere por Troyes
e a existência do fine amours em sua obra, explica a permanência do amor erótico e
realizado na Demanda. Esse é o motivo real e claro para a permanência do adultério
de Lancelote e Genevra na obra de ideologia cristã.
Assim também o tratamento dispensado ao herói carece da leitura das obras
em concomitância, pois é possível ver o herói de Lancelot, totalmente movido pelo
amor, o herói de Perceval, ainda envolvido pelo amor, mas indo em direção ao
aperfeiçoamento espiritual através do celibato e culminando em Galaaz, que mostra
a total sublimação do amor.
Somente uma análise intertextual permite perceber essas transformações e
concluir que a Demanda do Santo Graal nada mais que é a evolução de Lancelot e
de Perceval e não seu oposto, não sendo uma obra construída forçosamente para
transmissão da propaganda cristã. A demanda como
[...] toda obra literária é uma parole que se pronuncia e se desenvolve no
quadro de uma langue, ou, dito em termos da semiótica, é uma “mensagem”
que funciona dentro de um “sistema” que o torna compreensível e
transmissível, inclusive naquele caso em que a mensagem aspire a
introduzir uma modificação no código que o inspira. (RAMA, 1998, p. 122)
Dessa forma, podemos afirmar que a Demanda não poderia, dentro do
sistema em que foi criada, ter sido escrita de outra forma, pois, como vimos, ainda
que o autor busque o individualismo, ele estará fatalmente ligado ao contexto em
87
que está inserido. Assim, a cristianização do Graal não é, ao contrário do que alguns
pensam, absolutamente artificial (HOOG, 2001). Apesar de A Demanda do Santo
Graal sempre ser vista como uma cristianização forçada de lendas pagãs, podemos,
através de uma visada comparatista, evitar que cometamos enganos de
interpretação e que não venhamos a repetir discursos interpretativos já cristalizados.
”Tudo foi dito (todas as palavras estão habitadas, dirá Bakhtine), mas pode ser
redito diferentemente” (PERRONE-MOYSÉS, 1978, p. 63). Podemos perceber
através da leitura desses textos que
a intertextualidade deixa de ser aproveitamento bem educado, ou citação de
grande biblioteca, pra se tornar estratégia da mistura; e estende-se, para
fora do muro, a todo discurso social. (JENNY,1979, p. 41)
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