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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
A lira assassina de Orfeu
(Bernardo Santareno e os intertextos de O inferno)
Fernanda Verdasca Botton
Tese apresentada ao Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de
Doutor em Letras.
Área de Concentração: Literatura
Portuguesa.
Orientador: Professor Doutor Francisco Maciel Silveira.
São Paulo
2008
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2
Ao esposo de minha alma, Flavio Felicio Botton e
ao filho que me traz sorrisos, Arthur Verdasca Botton.
Dedico
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3
Ao Prof. Doutor Francisco Maciel Silveira, à Profa. Dra. Flavia Maria Corradin e à Profa.
Dra. Lílian Lopondo, pelas sugestões e correções que tornaram possível este trabalho.
À Ana Cristina Verdasca Aceto e à Fabiana Felicio Botton pela colaboração nos momentos
certos.
À Therezinha E. C. Verdasca, à Neuza Maria Cavallari e à Marluce Minervino de Sousa
pela ajuda imprescindível.
Ao meu pai, Mario Martins Verdasca (in memorian) pelos ensinamentos eternos.
À minha grande família formada pelas famílias Verdasca, Botton, Aceto, Satti, Cavallari.
Agradeço.
4
Resumo:
Para compor o canto de morte do serial-killer Orfeu Wilson, o dramaturgo português
Bernardo Santareno traz à peça teatral O inferno uma discussão intertextual a tratar da
origem dos indivíduos criminosos. Essa tese tem como objetivo desvendar os intertextos
realizados por Santareno e estudar o pensamento de um psiquiatra dramaturgo que tenta
compreender a mente criminosa.
Palavras-Chave: intertextualidade; teatro português; Bernardo Santareno; O inferno
Abstract:
In order to compose the death song intoned by the serial killer Orfeu Wilson, the
portuguese play-wright Bernardo Santareno brings to his play O inferno an intertextual
discussion, dealing with the roots of criminals. This thesis aims at unveiling the intertexts
fulfilled by Santareno and to study the thoughts of the psychiatrist dramaturgist, who tries
to understand the criminal mind.
Keywords: intertextuality; portuguese drama; Bernardo Santareno; O inferno
5
Índice
INTRODÃO..............................................................................................................................................6
CAPÍTULO I- BIOGRAFIA IDEOLÓGICO-LITERÁRIA DE BERNARDO SANTARENO..........9
I.1- INFORMAÇÕES BIOBIBLIOGRÁFICAS.
.............................................................................................9
I.2 - A BIOGRAFIA INTELECTUAL DE UM DRAMATURGO PORTUGUÊS.
.................................................12
I.2.1- António Martinho do Rosário e Bernardo Santareno................................................................12
I.2.2- Bernardo Santareno: “agonismos” religiosos e políticos de um português-autor..................16
I.2.2.1- A promessa: premissas de um pensar religioso.....................................................................17
I.2.2.2- António Marinheiro (o Édipo de Alfama): as concepções grega e santareniana do
tgico. ..................................................................................................................................................35
I.2.2.3- A traição do Padre Martinho: o homem cristão e o homem comunista................................68
I.2.2.4- Português, escritor, 45 anos de idade: o homem comunista observa seu tempo...................99
I.2.2.5- Bernardo Santareno: ascese do português Antônio Martinho do Rosário..........................136
II – IAN BRADY E MYRA HINDLEY: OS PRIMEIROS DEGRAUS A
O INFERNO
DE
ORFEU E EURÍDICE...............................................................................................................................141
II.1- P
RIMEIRO DEGRAU
:
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE
I
AN
B
RADY E
M
YRA
H
INDLEY
.
...................142
II. 2 - S
EGUNDO DEGRAU
REALIDADE E FICÇÃO EM
O
INFERNO
.
....................................................152
III- TERCEIRO DEGRAU – A DESCIDA INTERTEXTUAL DE UM ORFEU AO
INFERNO...................................................................................................................................................170
III.1 - A SANGUE FRIO: DUAS MENTES ASSASSINAS TRAZIDAS À LITERATURA POR TRUMAN
CAPOTE.
..........................................................................................................................................171
III.2- T
ARTARUGAS E PÁSSAROS NA SELVA HUMANA DE
T
ENNESSEE
W
ILLIAMS
.
.............................183
III. 3- A
LBERT
C
AMUS
:
UM AUTOR A OBSERVAR UM TEMPO EM QUE OS CRIMES DE PAIXÃO
TORNARAM
-
SE FRASES QUE JUSTIFICAM OS CRIMES DE LÓGICA
.
......................................................194
III.3.1- Marquês de Sade: os crimes de paixão de um revoltado absoluto.......................................197
III.3.2 - A revolta absoluta do homem romântico..............................................................................215
III.3.3- Ivan Karamazov: revolta e contradição...............................................................................228
III.3.4- Os desdobramentos de uma teoria nietzschiana: os “supostos” super-homens do
século XX.............................................................................................................................................239
III.3.5- “Transmutão” de valores: dos crimes de paixão aos crimes de lógica...........................257
III.4- JEAN GENET: O LIRISMO DE UM LADRÃO.
...............................................................................265
III.5- LIBERDADE E RESPONSABILIDADE, SEGUNDO JEAN-PAUL SARTRE.
........................................276
III.6- N
AZISMO E CRIMINALIDADE
:
FATOS E PENSAMENTOS
.
............................................................295
III.6.1- Peter Weiss e seu Canto para as mortes de Auschwitz........................................................295
III.6.2 - Ezra Pound: a penalidade imposta a um americano que escolheu o fascismo...................306
III.6.3- Lazard e Rauschinig: o retrato do que foi dito pelos chefes do nazismo.............................313
III.6.4- Hitler por ele mesmo..............................................................................................................329
III.7- ARTE SEGUNDO JEAN COCTEAU.
............................................................................................341
III.8- POESIA E AÇÃO POÉTICA EM ARTHUR RIMBAUD.
...................................................................351
III.9- A
NDRÉ
G
IDE E A MAIS ESTRANHA DAS UNIÕES
.
......................................................................358
III.10- O
RFEU E
E
URÍDICE
:
SABEDORIA E ESCOLHA DE CAMINHOS
.
..................................................363
CONCLUSÃO: OS INFERNOS E O INFERNO SANTARENIANO. ...............................................376
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................................391
6
Introdução
No dia 07 de maio de 1966, o jornal Diário de Notícias divulga a reportagem acerca
do julgamento dos assassinos Ian Brady e Myra Hindley. Bernardo Santareno traz ao início
da peça O inferno um fragmento da reportagem em questão.
No que concerne ao enredo da peça O inferno, esse texto nos informa o nome dos
acusados e das vítimas, a condenação a que foram submetidos os assassinos e a observação
de que esse foi um dos mais atrozes processos já julgados.
Dois elementos importantes da construção dramatúrgica do enredo também nos são
revelados através desse fragmento. O primeiro deles é que Bernardo Santareno partiu de
dados reais para construir sua ficção. O segundo, é que o autor, por já ter informado a seu
público a condenação imposta aos acusados, não pretende trabalhar como ponto principal
de seu texto o clímax que seria a decisão dos jurados.
Após a leitura de O inferno, podemos perceber que os dados reais serão acrescidos
de ficção e intertextos. Além disso, é possível ver como objeto da peça um Santareno a
discutir não a justa ou injusta condenação dos réus, mas sim a origem de indivíduos capazes
de atos como os desses assassinos.
Com o intuito de compreender essa discussão proposta por Santareno, dividiremos
nosso estudo em três capítulos.
No primeiro, na tentativa de construir o somente uma biografia com datas, locais
e obras publicadas, mas principalmente uma biografia intelectual a reconhecer as
coordenadas políticas e religiosas que nortearam Bernardo Santareno, observaremos mais
7
minuciosamente, através de obras específicas, alguns fatos da trajetória dramatúrgica deste
autor.
Julgamos pertinente essa construção do perfil santareniano pelo que nos revela o
próprio autor no depoimento abaixo transcrito:
A obra de um dramaturgo autêntico terá de ser, em grande parte, o homem
que ele for. É claro que não me refiro a grosseiros aspectos biográficos;
penso na sua realidade interior, nas coordenadas éticas, políticas e religiosas
que o norteiam. (...) Aliás, se é autêntico, o dramaturgo não pode realmente,
mesmo que queira, sair de si, do seu mundo, das suas verdades, dos seus
obscuros movimentos de afectos e instinto. Pode sim alargá-los,
engrandecê-los, fazendo-os viver por personagens muito acima do homem
que ele é. (MEDEIROS, 1996, anexos).
1
Muitos são os autores que admitem trazer às suas obras a realidade interior do ser
humano que são. Bernardo Santareno, no depoimento acima, demonstra que ele é um
desses autores. Sendo assim, o poderíamos compreender a obra O inferno sem antes
melhor compreender o dramaturgo que a criou.
No segundo capítulo, compararemos a verdadeira história de Ian Brady e de Myra
Hindley com a história de Orfeu e Eurídice, os assassinos criados por Santareno. Através de
tal comparação, pretendemos compreender, posteriormente, porque Bernardo Santareno
trouxe a uma dramaturgia normalmente tão arraigada na terra portuguesa um texto a falar
de um julgamento ocorrido na Inglaterra com assassinos nascidos naquele país.
No terceiro capítulo, já com o perfil político e religioso de Santareno formado,
poderemos analisar com mais propriedade os fatores que o autor coloca como possíveis
elementos a construírem os assassinos. Para tanto, realizaremos, neste capítulo, um estudo
da intertextualidade construída por Bernardo Santareno na peça O inferno. Objetivamos,
através deste capítulo, compreender e explicar tanto o pensamento santareniano quanto o
1
O artigo aqui referido tem como título “De um certo teatro e de um certo público” e foi escrito pelo próprio
Bernardo Santareno em 1963 para a revista Autores.
8
pensamento de diversos autores que, literatos ou não, já tiveram como cerne de suas obras a
mesma pergunta feita por Santareno, ou seja, que estudaram as causas psíquicas,
genéticas e/ou sociais responsáveis pela existência de tais indivíduos.
Caberá à conclusão compreendermos não o texto dramatúrgico O inferno, mas
também quais são os fatores que, segundo o autor Bernardo Santareno e o psiquiatra
Antônio Martinho do Rosário, provocam os agonismos de seres humanos que vivem em um
tempo habitado por assassinos como Ian Brady e Myra Hindley e suas versões literárias
Orfeu e Eurídice.
9
Capítulo I- Biografia ideológico-literária de Bernardo Santareno.
I.1- Informações biobibliográficas.
António Martinho do Rosário, mais conhecido pelo pseudônimo de Bernardo
Santareno, nasceu em Santarém no dia 19 de novembro de 1920. Morreu no hospital Santa
Cruz, em Carnaxide Lisboa, em 30 de agosto de 1980.
No ano de 1950, aos 30 anos, Santareno licenciou-se em Medicina, especializando-
se em psiquiatria, pela Universidade de Coimbra. Como médico, trabalhou em vários
navios-hospital; como psiquiatra clinicou durante 17 anos na Fundação Sain e foi professor
no conservatório de teatro.
Na carreira literária, estreou com obras poéticas: A morte na raiz (1954), Romances
do mar (1955) e Os olhos da víbora (1957).
Como dramaturgo, em 1957, suas três primeiras peças teatrais foram publicadas em
conjunto: A promessa, O bailarino e A excomungada (sendo a primeira encenada neste
mesmo ano no Teatro da Bandeira, Porto). Após esta data, sua produção teatral foi
numerosa: em 1959, publicou O lugre e O crime de aldeia velha (ambas encenadas neste
mesmo ano, respectivamente no teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, e no teatro
Nun’Álvares, Porto); em 1960 António Marinheiro (representada em 1967, no Teatro
Municipal São Ls, Lisboa); em 1961 O Pecado de João Agonia e O duelo (representadas
respectivamente em 1965 e 1971, sendo a primeira encenada na cidade de Barcelona,
Espanha, e a segunda no Teatro da Trindade, Lisboa); também em 1961 escreveu para a
televisão a peça Os anjos e o sangue e, em 1962 publicou Anunciação.
10
De 1962 até 1966, o dramaturgo fez uma pausa na escrita de seus textos. O motivo,
segundo alguns críticos, foi uma necessária reflexão para encontrar novas formas teatrais.
Isto porque, se até 1962 o teatro de Santareno baseava-se no modelo dramático aristotélico
de composição, a partir de 1966, com O Judeu, Santareno opta por um teatro de modelo
narrativo. Acrescentamos que a mudança ocorrida em 1966 não foi apenas formal, mas sim
uma mudança temática, pois a partir deste momento, suas peças vinculavam-se mais
diretamente ao componente político e, por isso, eram mais propícias ao teatro narrativo de
influência épica.
Após a publicação de O Judeu (encenado somente em 1981, após a morte do autor),
outras narrativas dramáticas vêm a lume: O inferno em 1967 e A traição do Padre
Martinho em 1969 (esta última encenada em 1970, em Cuba).
Em 1974, após uma nova pausa (desta vez a durar cinco anos), Santareno publicou
Português, escritor, 45 anos de idade. A peça em questão foi escrita no período anterior à
Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974) e, por criticar o repressivo regime salazarista,
alcançaria grande êxito de bilheteria no teatro Maria Matos a partir de 5 de julho deste
mesmo ano. Também nesse mesmo ano, de 20 de setembro a 04 de outubro, Santareno
participou com Luiz Francisco Rebello de uma viagem de cunho político para Varsóvia
(Polônia) e para a União Soviética e, na volta, colaborou ativamente no processo de
transformação política e cultural advindo da Revolução dos Cravos. Ainda em 1974, o
dramaturgo escreveu três quadros para o teatro de revista: Os vendedores de esperança, A
guerra santa e O milagre das lágrimas.
Em 1979, Santareno publicou Os marginais e a revolução, título que engloba
tematicamente quatro peças de um ato: Restos, A Confissão (que sobem à cena em 79 e 80
respectivamente), Monsanto (escrita em 1974 e montada, integrando o espetáculo coletivo
11
Ao qu’isto chegou, pelo grupo teatral Barraca, em 1977) e Vida breve em três fotografias.
No ano seguinte, em 1980, ano da morte do dramaturgo, Santareno escreveu aquela que
seria sua última peça: O punho.
Além de poesia e teatro, Bernardo Santareno também escreveu críticas teatrais em
vários jornais e revistas dentre eles o Jornal de Letras e Artes e a Revista Autores e
publicou um livro de crônicas, Nos mares do fim do mundo (1959), onde reuniu as
impressões de viagem resultantes de sua experiência como médico de bordo: a primeira, em
1957, a bordo do arrastão David Melgueiro, e a segunda, em 1958, a bordo do navio
Senhora do Mar e do navio-hospital Gil Eanes.
12
I.2 - A biografia intelectual de um dramaturgo português.
I.2.1- António Martinho do Rosário e Bernardo Santareno.
Como dissemos, António Martinho do Rosário nasceu em Santarém no dia 19 de
novembro de 1920, e morreu no hospital Santa Cruz, em Carnaxide Lisboa, a 30 de
agosto de 1980. o dramaturgo Bernardo Santareno, pseudônimo do menino nascido em
1920 no berço da República (ou na tumultuada 1ª República que teve início em 1910), criou
outras datas que devem ser observadas.
Em 1950, aos 30 anos, o psiquiatra António Martinho do Rosário criou o nome do
dramaturgo que assinaria suas obras literárias: Bernardo Santareno. Anos mais tarde, o
próprio dramaturgo explicaria a razão deste nome: “Santareno porque nasci em Santarém...
Bernardo porque é um nome com algo de gótico, de ascético, que sempre me agradou
muito” (ibidem).
Observamos, na justificativa do autor quanto ao pseudônimo escolhido, dois fatos
que devem ser analisados. O primeiro é que o sobrenome adotado é topônimo do local onde
nascera o verdadeiro António Martinho do Rosário, sendo assim, o pseudônimo criado
explicita as raízes telúricas do dramaturgo. O segundo é que o nome criado, Bernardo
2
,
demonstra a intenção de que o escritor seria o responsável por, de maneira mística, dar uma
ascese espiritual ao homem que António Martinho era; ou seja, a criação do nome poderia
ser vista como uma tentativa simbólica a gerar uma espécie de personagem que, como diria
2
Salientamos que o nome Bernardo, na verdade, tem origem teutônica e não gótica como afirma Santareno.
13
o escritor em 1963, seria responsável por, através de suas obras, “alargar” e “engrandecer”
o homem comum.
Lembramos ainda que, ao denominar o escritor diferentemente de seu registro civil,
o autor não somente criou um novo nome, mas também optou por tirar de si aspectos
ligados ao antigo. Neste âmbito, acreditamos que o mais importante a ser salientado é que
Santareno escolhe substituir o sobrenome ligado diretamente a uma descendência católica,
do Rosário
3
, por um sobrenome de descendência ligada à terra onde nasceu, Santarém. Este
fato é importante, pois, como veremos, esta primeira escolha já reflete um dos pontos
principais da obra deste autor: o cepticismo quanto à religiosidade católica.
Porém, paradoxalmente, observamos que, apesar de o autor tentar tirar de sua
denominação o catolicismo, existe uma proximidade, mesmo que inconsciente, entre a
criação do pseudônimo e uma data relativa à religiosidade católica que ainda poderia estar
arraigada em sua personalidade. Aos trinta anos, o homem comum rebatizou-se Bernardo
Santareno, um escritor cuja denominação estaria associada a uma ascese espiritual e a uma
ligação com a terra; também aos trinta anos, segundo o Evangelho de São Lucas (3, 20-23),
Jesus teve sua ascese espiritual quando foi batizado por João Batista nas águas do rio
Jordão, passando a adotar, a partir desse momento, o sobrenome da terra de sua origem
espiritual de Nazaré. Sendo assim, mesmo conscientemente retirando a denominação
diretamente ligada ao catolicismo, a data da escolha de um sobrenome ligado à terra e a
própria escolha deste sobrenome acaba por refletir um autor que é, assim como o povo
português e como as personagens santarenianas, inerentemente voltado ao catolicismo.
3
O rosário é uma enfiada de 165 contas, correspondentes ao número de 15 dezenas de ave-marias e 15 padre-
nossos, para serem rezados como prática religiosa
14
Com relão ao momento histórico da criação do pseudônimo (1950), é importante
observar que esta ocorreu pós Segunda Grande Guerra, ou seja, no tempo em que as
designadas Forças Aliadas conseguiram derrotar os nazi-fascistas e, hipoteticamente,
consagrar a criação de uma nova era na qual estariam no poder regimes mais democráticos
de governo. Dizemos hipoteticamente, pois em Portugal Salazar representava desde a
década de 30 o homem forte a gerir a nação e, no contexto histórico do pós-guerra (portanto
após 1945), apenas procurou uma máscara política aparentemente mais democrática para o
Estado que governaria até 1968
4
.
No mesmo ano do findar da guerra, ocorreu em Portugal a Primeira Revisão
Constitucional e surgiu o MUD (Movimento de Unidade Democrática); além disso, o
governo extinguiu a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e, em 20 de outubro
desse ano, os tribunais militares especiais. Porém, este aparente momento de abertura
política era apenas uma encenação que tentava esconder símbolos de um fatídico porvir:
por ocasião do suicídio de Hitler, a bandeira nacional portuguesa ficou a meia haste e foram
criados mecanismos de repressão como a PIDE
5
e os tribunais plenários
6
. Além disso, nesse
4
No ano de 1968 Salazar sofreu um acidente que lhe ocasionou uma debilidade física e mental. A partir dessa
data, portanto, ele não mais governava de fato Portugal.
5
Na prática, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) foi criada como órgão substituto da PVDE,
que agia em Portugal desde 1930. Podendo deter quem quisesse sem culpa formada e sem mandato ou
fiscalização por até seis meses, a PIDE recorria a métodos extremos para extorquir e forjar confissões
daqueles que julgava contrários ao governo. Um dos sinais do obscurantismo desta polícia política era o seu
diretor, o capitão Agostinho Lourenço que, mesmo após 1945, ostentava no gabinete uma foto sua posto ao
lado de Kramer, um dos instaladores dos campos de concentração nazistas.
6
Os Tribunais plenários foram criados através do decreto-Lei nº35 044. Incumbidos de julgarem os “crimes
contra a segurança do Estado”, os tribunais plenários realizavam audiências praticamente vedadas ao público,
isto porque, antes de começar o julgamento, nos lugares da sala do plenário sentavam-se elementos da PIDE e
a pretexto de a lotação estar esgotada, a Polícia de Segurança Pública, à porta, impedia o acesso a familiares,
amigos e jornalistas. “No Plenário de Lisboa”, escreveu Alexandre Babo, “muitas vezes os réus foram
espancados pelos agentes da PIDE durante os julgamentos e arrancados dali à força, quando exigiam
apresentar as suas razões” (MATTOSO, s.d., p.273).
15
mesmo ano houve um processo eleitoral fraudulento
7
que sustentou Salazar como ditador
por mais vinte e três anos.
Apesar de ter criado seu pseudônimo em pleno regime ditatorial (1950) e, em 1957,
ter escrito suas primeiras peças, somente em 1966, por motivos que veremos em momento
oportuno, a discussão da política salazarista será mais proeminente na obra de Santareno.
Entre 1957 e 1966, utilizando-se de elementos do trágico, o foco principal das obras
santarenianas é a discussão da sexualidade e do sentimento do sagrado que permeiam a
terra portuguesa.
Para que possamos construir uma biografia intelectual de Bernardo Santareno, é
necessário salientarmos que vários críticos literários costumam dividir as peças produzidas
pelo autor em dois ciclos
8
.
Álvaro Cardoso Gomes explicita a “dupla faceta” do teatro de Santareno no título de
seu artigo acerca da produção deste dramaturgo: O trágico e o social no teatro de Bernardo
Santareno. O estudioso em questão salienta que estas duas faces manifestam-se de três
maneiras distintas: textos filiados “à tragédia clássica, porém com ingredientes próprios,
adaptados às condições portuguesas” (GOMES, 1977, p.10); textos de crítica social com o
objetivo da tomada de consciência dos espectadores, e textos em que “há a predominância
absoluta do político” (ibidem, loc. cit.).
Luiz Francisco Rebello explica o primeiro ciclo da dramaturgia de Santareno como
um teatro de “fusão dos temas de raiz popular com certas preocupações existenciais que
agitam a carne e o espírito do homem contemporâneo” (REBELLO, 1984, p.100); quanto
7
No ano de 1949 o candidato de oposição ao governo, Norton de Matos, desistiu de concorrer às eleições
dizendo que elas seriam fraudadas e, desse modo, Carmona é reeleito Presidente da República.
8
o cabe a este estudo observar os aspectos positivos e negativos da divisão feita pelos críticos citados.
Acerca da pertinência ou não desta divisão, vide o capítulo introdutório de: LOPONDO, 2000, p. 13 - 21.
16
ao segundo ciclo, na nota introdutória de publicação às obras completas de Santareno, diz o
crítico ser este
(...) caracterizável por um propósito de intervenção social mais acentuado,
uma definição ideológica mais definida, uma aproximação maior às formas
épicas do teatro em detrimento das formas dramáticas tradicionais
(SANTARENO, 1984, p. 09 – 10).
Porém, esta divisão em dois ciclos, como evidencia José Oliveira Barata em
História do Teatro Português, apenas é aceita como “conveniência metodológica” com o
intuito de compreender-se a obra de um
psiquiatra por formação profissional que “como
‘médico literário’ soube detectar, no agonismo de alguns ‘casosclínicos, a força dramática que
surge protagonizada em muitas das suas principais personagens”. (BARATA, 1991, p. 380).
Sendo assim, apesar de em momentos pertinentes nos reservarmos o direito de
utilizar a metodologia que divide a obra santareniana em dois ciclos, este estudo se
pautado principalmente pela análise das peças que possibilitem compreendermos as
angústias religiosas e políticas das personagens santarenianas e do próprio Bernardo
Santareno.
I.2.2- Bernardo Santareno: “agonismosreligiosos e políticos de um português-autor.
A dramaturgia produzida por Bernardo Santareno é composta por dezenove peças e
três quadros de revista. Porém, a fim de objetivar nosso estudo, restringiremos o corpus de
trabalho a obras cujas personagens possam, em um microcosmo literário, melhor
representar o essencial do pensamento santareniano.
Desta forma, delimitaremos nossa análise a quatro peças. A escolha dos textos a
serem analisados foi baseada na leitura atenta de toda a dramaturgia santareniana e,
17
posteriormente, na eleição dos que nos revelariam elementos essenciais para a construção
da biografia intelectual do autor.
Do primeiro ciclo da obra santareniana, as peças escolhidas foram: A promessa e
António Marinheiro. A primeira peça a ser analisada nos revelará a face católico-religiosa
desse dramaturgo português. A segunda, o diálogo que este autor trava com a tragédia
clássica e a diferença entre esta e a tragédia santareniana.
Do segundo ciclo, as peças selecionadas nos revelarão a face política de Santareno.
Em A traição do Padre Martinho, a proximidade entre as idéias cristãs e as comunistas. Em
Português, escritor, 45 anos de idade, um autor a manifestar explicitamente sua opinião
contrária ao governo ditatorial salazarista.
Importante evidenciar que mais do que r termo aos elementos essenciais de cada
peça, o nosso objetivo é compreender, através da análise que será realizada, o perfil
religioso e político de Bernardo Santareno para, a partir desse, melhor compreendermos o
psiquiatra-dramaturgo que criou a discussão existente na peça tema desta tese: O inferno.
I.2.2.1- A promessa: premissas de um pensar religioso.
Em 1957, as três primeiras peças de Bernardo Santareno vieram a lume, sendo que o
estudo de uma delas, A promessa, nos revelaelementos essenciais acerca do pensamento
religioso de Bernardo Santareno. Salientamos que esta peça, encenada em 1957 pelo grupo
de Teatro Experimental do Porto, teve suas representações proibidas passados dez dias da
estréia devido à pressão dos meios católicos integristas do norte, só voltando ao palco em
1967 (mesmo ano da escrita de O inferno).
18
O enredo de A promessa gira em torno de um juramento que os noivos católicos
José e Maria haviam feito num dia de tempestade: eles se casariam e permaneceriam em
castidade se Salvador, pai de José, voltasse vivo do mar. Um ano depois do prometido, com
um Salvador aleijado a viver com o casal, José é sacristão da igreja e encontra em Deus a
força para ser casto; Maria, porém, tal como uma Eva pecadora, não consegue afastar de si
os desejos carnais. Para completar o quadro dessa casa de família, Santareno traz a seu
texto um outro filho de Salvador e da já falecida Rosária, Jesus. Desprovido da sua visão
por uma promessa não cumprida pela mãe, Jesus tem, tal como um Tirésias trágico, sonhos
premonitórios. Perto da Páscoa, quando José e Maria fariam um ano de matrimônio, uma
rosa vermelha aparece no sonho e no quarto de Jesus, logo depois, um homem
ensangüentado é trazido por Maria do Mar para dentro de casa. Ele é António Labareda, um
contrabandista que incitará a chama dos desejos carnais de Maria. Dias depois, na
comemoração da ressurreição de Cristo, três velhas, assim como parcas a tecerem a anánkê
9
, visitam a casa e percebem em Labareda olhos de diabo (daqueles que fazem as raparigas
não terem mais sossego). As mulheres são caladas por Rosa, mãe de Maria, mas esta não
pode tirar da filha o desejo que ela nutre pelo estranho. José, acompanhado pelo padre
que esa visitar as casas para a cerimônia pascal, percebendo os desejos de Maria, diz a
todos que Labareda provém de uma terra de boras. As todos saírem, Maria beija
Labareda, mas, ao ser flagrada por Jesus neste ato pecaminoso (espécie de hybris
10
católica), mente ao cego. Mais tarde, cedendo a seus impulsos carnais, Maria vai encontrar-
9
Para melhor compreensão da influência da tragédia clássica na obra de Santareno, utilizaremos a partir deste
momento da análise termos pertinentes a esta fôrma teatral. Para facilitar o entendimento destes termos,
explicaremos brevemente nas notas de rodaas palavras utilizadas. Começamos com o termo anánkê, que
também pode vir designado como fatum, moira ou simplesmente destino. Este termo, na tragédia, refere-se a
uma fatalidade que esmaga o homem e reduz a nada sua ação.
10
Hybris é a palavra grega para orgulho ou arrogância funesta. É o crime de desmedida do homem que, indo
contra a ordem divina, age além dos limites da condição humana e enche de culpa todas as gerações
vindouras, filhas da estirpe que cometeu o crime.
19
se com Labareda. Porém, a caminho do encontro, ao passar pelo cemitério de seus
ancestrais, ela decide voltar para casa. José, todavia, desconfiado da mulher que perambula
pela cidade, vai atrás de Labareda e acaba por castrá-lo e matá-lo. Ao voltar para casa, José
expulsa Salvador e Jesus e, com ambos fazendo “ruídos de animais ferozes”
(SANTARENO, 1988, v. 1, p. 67), recebe fisicamente Maria como sua mulher. Na
madrugada desta mesma noite de domingo de Páscoa, José é preso. Na cena final, três
velhas, a profetizarem verbalmente um destino trágico a Maria, marcam a porta da casa de
Salvador com uma cruz pintada “com o sangue menstrual”, “Pela primeira vez florido”,
“Em útero virgem”. (ibidem, p. 73).
A relação direta com o enredo bíblico (realizada através do nome das personagens e
da castidade do casal Maria e José) e a crítica ao catolicismo revelam o o motivo da
Igreja ter proibido a encenação de A promessa, mas também um Santareno a conceber sua
dramaturgia como uma maneira de libertar os portugueses de uma religiosidade que ele
considera excessiva.
Inicialmente, observamos que Bernardo Santareno traz ao início de seu enredo
elementos que o revelam conhecedor das crenças bíblicas.
No texto de A promessa, a personagem de Salvador, pai de Jesus, foi salva de
morrer em uma tempestade marítima quando Maria e José fizeram a promessa de serem
castos como o foram a Virgem Maria e São José.
De acordo com o catolicismo, o nome Salvador seria utilizado tanto para Deus que,
através de Moisés, libertou o povo israelita do Egito (conforme o Êxodo, Antigo
Testamento
11
), quanto para Jesus que fora enviado por Deus a fim de remir os pecados dos
11
O livro bíblico “Êxodo”, pertencente ao Antigo Testamento, é narração deste Deus Salvador do povo de
Israel. Primeiramente, salientamos a passagem em que Iahwed apresenta-se a Moisés: “Eu sou Iahwed.
20
cristãos (conforme o Novo Testamento
12
). A ambigüidade deste entendimento onomástico,
porém, não é um paradoxo para os cristãos, pois para estes Deus (Iahweh
13
), Jesus
(Yehoshú´a
14
) e o Espírito Santo (o qual será o responsável pela fecundação de “Iahweh” /
“Yehoshú´a” no ventre casto de Maria) são um conforme o dogma da Santíssima
Trindade.
Sendo assim, ao colocar Salvador pai renascendo da morte pela castidade do casal
Maria e José, Santareno parece se apoiar, com pertinência, na idéia católica de “unoque
afirma que o Pai e o filho Salvador são um só ser.
Outro fato que nos revela um autor conhecedor do catolicismo é o vínculo que
Santareno constrói entre a personagem de José e a casa de Deus. No enredo de A promessa,
José é filho de Salvador.
Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai; mas meu nome, Iahwed, não lhes fiz conhecer. Também
estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a terra de Canaã, a terra que residiam como estrangeiros. E
ouvi os gemidos dos israelitas, aos quais os egípcios escravizavam, e me lembrei da minha aliança. Portanto,
dirás aos Israelitas: Eu sou Iahwed, e vos farei sair de debaixo das corvéias dos egípcios, vos libertarei da sua
escravidão e vos resgatarei com o braço estendido e com grandes julgamentos. Tomar-vos-ei por meu povo, e
serei o vosso Deus.” (Êxodo, 6, 2-8). Acrescentamos ainda a passagem em que o povo israelita passa pelo mar
em seco e os soldados egípcios são destruídos: “Os israelitas entraram pelo meio do mar em seco; e as águas
formaram como um muro à sua direita e à sua esquerda. Os egípcios que os perseguiam entraram atrás deles
(...) até o meio do mar. Iahwed disse a Moisés:´Estende a mão sobre o mar, para que as águas se voltem
contra os egípcios (...) Moisés estendeu a mão sobre o mar e este, ao romper da manhã, voltou para o seu leito
(...) E Iahwed derribou os egípcios para o meio do mar; e não escapou um deles. Naquele dia, Iahwed
salvou Israel das mãos dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos à beira mar.” (Êxodo, 14, 22-31).
12
Em várias passagens do Novo Testamento, os Evangelhos citam Jesus como o Salvador. Destacamos aqui
duas destas citações. Mateus refere-se à missão salvadora de Cristo quando narra a fala do Anjo do Senhor a
José: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado vem do Espírito
Santo. Ela dará à luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus
pecados”. (Mateus, 1, 20-21). Lucas fala de Jesus Salvador quando relata a palavra do Anjo do Senhor aos
pastores: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje
um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi.” (Lucas, 2,10-11).
13
No livro Êxodo, que compõe parte do Antigo Testamento, assim é relatado o encontro entre Deus (Iahweh)
e Moisés (Mos)– O Senhor disse: ‘Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi os seus
clamores por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da
mão dos egípcios e para fazê-lo subir do Egito para uma terra fértil e espaçosa, (...) Vai, pois, e eu te envio ao
faraó para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas’. (...) Moisés disse a Deus: ‘Quando eu for aos
israelitas e disser: O Deus de vossos pais me enviou até vós; e me perguntarem: ´Qual é o seu nome?’ Que
direi?’ Disse Deus a Moisés (...) ‘EU SOU me enviou até vós. (...) Iahweh, o Deus de vossos pais, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó, me enviou até vós. É o meu nome para sempre, e é assim que me
invocarão de geração em geração”. xodo, 3, 7-15)
14
O nome de Jesus (em hebraico Yehoshú´a) significa Iahweh salva.
21
A escolha feita por Santareno de colocar seu José diretamente ligado à casa de
Salvador pode ser explicada se resgatarmos a genealogia de José. Segundo a Bíblia, dentre
os ascendentes de José figuravam Davi (o rei que reuniu em aliança as tribos de Deus
15
),
Abraão (o pai da multidão que formará o povo de Deus
16
) e “Adão, filho de Deus.” (Lucas,
3, 38). Sendo assim, a concepção da personagem de Jo (filho de Salvador, que, segundo o
Antigo Testamento, é o próprio Deus) é uma imagem a refletir um dramaturgo conhecedor
da história bíblica.
Os fatos aagora apresentados revelam que Santareno é um autor que conhece os
elementos blicos. Contudo, se até esse momento da análise enfocamos um discurso a
concordar com o catolicismo, através da construção da personagem Maria, e dos
acontecimentos que esta construção provoca, Santareno mostra que a visão católica de
mundo pode, por muitas vezes, ser semelhante a uma visão trágica.
No Novo Testamento, o casal José e Maria teve a castidade como meio de
santificação, de glória por serem os escolhidos como pais terrenos de Jesus. Todavia, para o
casal santareniano a promessa de castidade (feita por ambos, mas colocada, agora, em
15
Davi foi o escolhido para reunir as tribos de Iahweh em aliança e reinar na terra santa de Jerusalém, onde
seria construído, por seu filho Salomão, o templo de Deus. Assim conta o evangelho os méritos de Davi: o
filho de Jessé, “se apoderou da fortaleza de Sião (...) estabeleceu-se na fortaleza, que por isso foi chamada de
Cidade de Davi. (...) Depois restaurou os contornos da cidade (...) Davi tornava-se cada vez maior e Iahweh
dos Exércitos estava com ele” (1 Crônicas, 11, 4-9). Davi reinou sobre Israel durante quarenta anos; em
Hebron reinou sete anos e em Jerusalém, trinta e três anos” (1Crônicas, 29-27).
16
O nome Abraão, pela assonância com ab hamôn, significa “pai de multidão”. Assim é explicada, no
Gênesis, a história da crença de que o povo de Abraão seria a raça eleita por Deus: “Iahweh disse a Abrão:
´Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti um
grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome” (12, 1-2) “(...) eis a minha aliança contigo: (...) eu te
faço pai de uma multidão de nações. Eu te tornarei extremamente fecundo, de ti farei nações, e reis sairão de
ti (...) e serei o vosso Deus” (17, 4 -8).
22
questão por Maria) prefigura-se como a hamartia
17
que conduzirá esta família cristã à
agonia de um enredo permeado de elementos do trágico.
A Maria santareniana, apesar de ser casada com José, sente-se uma “estrangeira”
(SANTARENO, 1988, v.01, p. 16) na casa em que habita. Como os evangelhos não
mencionam a casta de que provém a Maria bíblica, Santareno opta por acrescentar para sua
personagem uma genealogia que a fará passível de sofrer a agonia da tentação do pecado
(espécie de hybris católica).
Em A promessa, Maria é filha de Rosa e, apesar de não ser citado no enredo o nome
de seu pai, ela carrega na alcunha a mácula de ser do Mar(como diria a personagem de
Salvador: “Maria do Mar: (...) tu, rapariga, até no nome lhe pertences! (ibidem, p. 17)).
Segundo os dicionários de símbolos, “na antiguidade, a rosa era consagrada a
Afrodite (...) e era símbolo do amor e da simpatia, da fertilidade e também da adoração dos
mortos.” (LEXIKON, 1997, p.175); já “na iconografia cristã, a rosa é ou a taça que recolhe
o sangue de Cristo, ou a transfiguração das gotas deste sangue, ou o signo das chagas de
Cristo” (CHEVALIER, 2003, p. 788). Quanto ao mar, este é colocado não só como
(...) símbolo da energia vital e inesgotável, mas também do abismo que
traga tudo; nesse caso, o mar aproxima-se, na perspectiva da psicanálise,
dos dois aspectos da grande Mãe, que dá e tira, concede e castiga; na
qualidade (...) de figuras ocultas na escuridão, simboliza também o
inconsciente.” (LEXIKON, 1997, p.135).
Dentre as simbologias da rosa destacamos a mítica e a cristã por serem estas as mais
pertinentes ao entendimento do texto em questão. Aproximando a personagem de Maria de
uma ascendência da rosa mítica, Santareno coloca a mãe dessa, Rosa, a enxergar a
fertilidade como complemento do amor. Sendo assim, ao saber que a filha continua
17
Hamartia é a palavra grega para erro. Para Aristóteles, o herói trágico “não é mau nem perverso, mas cai no
infortúnio em conseqüência de qualquer falta(ARISTÓTELES, s.d., p. 258). Essa falta cometida pelo herói
põe em movimento o processo que o conduzirá à perda.
23
“purinha como os anjos do Céu” (SANTARENO,1988, v.01, p.24), Rosa lamenta que o
matrimônio do casal continue longe da fértil Primavera (ibidem, p.25) que deveria ser o
amor. Além disso, unindo a simbologia cristã à mítica, o autor traz a seu texto o cego Jesus
que, assim como um Tirésias
18
trágico, adivinha, ao sonhar com uma rosa encarnada e com
os cabelos da Morte, que Maria sofre as chagas da promessa de castidade e que, por sentir
desejos sexuais, e não mais querer cumprir o que prometera, morre um pouco a cada dia
como mulher cristã.
A Maria santareniana fizera a promessa pela vida de Salvador, porém, ao contrário
de seu esposo José, ela o quer que o retrato de seu matrimônio seja um quadro de
castidade (“Eu, sentada, assim...(...) com um grande manto azul de seda e uma grinalda de
açucenas na cabeça (...) Tu, aqui, por trás de mim, com um lírio branco na mão (...) tal qual
como S. José!...” (ibidem, p. 21)). O que Maria do Mar deseja é colorir o manto azul e o
lírio branco, símbolos cristãos de pureza, com o sangue vermelho da fertilidade e da
sexualidade, ela deseja “estar toda molhada de sangue (...) ter filhos, como as outras [ter]
um homem, como o das outras” (ibidem, p. 24 - 25).
O desejo de fertilidade (pertinente a uma descendente da simbologia mítica inserida
na rosa) e a impossibilidade de ver este desejo ser satisfeito (devido ao casamento com um
homem cristão que “quer ser santo” (ibidem, p.18) e que sua esposa como uma
descendente da rosa católica) fazem com que a Maria santareniana se sinta “Maria do
Diabo” (ibidem, p. 18), cujos sonhos parecem trazer (como ondas do inconsciente) o
18
Salientamos que, apesar de aproximarmos a figura de Jesus a de Tirésias, como analisa Domingos Pereira
Nunes, ao contrário das premonições do adivinho grego, as visões desta personagem santareniana
“configuram-se mais como maus presságios advindos de uma tradição cristã calcada nos sentimento de culpa
do que propriamente como previsões advindas de oráculos cuja finalidade última é aconselhar o herói,
previnindo-o ou guiando-o” (NUNES, 1999, p.27)
24
estranho que possibilitará que ela pinte de sangue o retrato de pureza que a promessa
católica lhe impingiu: António Labareda.
Assim como Maria, Antônio Labareda também está ligado ao mar: ele chega ao
povoado jogado pelas ondas deste e seus olhos, que possuem a cor do “mar verde” (ibidem,
p. 30), sofrem por uma chaga” muito funda que “não pára de sangrar” (ibidem, p. 28).
Os olhos de Labareda são verdes, pois verde é a “cor do reino vegetal, sobretudo do
desabrochar da primavera, da água, da vida, do frescor e da mediação entre o vermelho do
fogo do Inferno e o azul do Céu.” (LEXIKON, 1997, pp. 202 e 203). Ao ver os olhos de
Labareda, Maria sente, como frisa a rubrica escrita por Santareno, uma “profunda
inquietação, quase medo(SANTARENO, 1988, v.01, p.30). Podemos entender esse medo
observando que o mar, a simbolizar o inconsciente, trouxe-lhe a revelação de que chegou a
hora em que ela terá que encontrar a difícil harmonia entre o Inferno e o Céu pregados pela
sua sociedade católica.
António Labareda foi trazido pelo mar, mas o sitio que o originou foi outro. Ao
brincar com uma “maçã encarnada” (ibidem, p. 43), António deixa que as personagens de
Jesus, Maria e José expliquem ao padre de que terra ele vem. Jesus diz que “(...) ele não é
do mar: é dum sítio onde terra firme, terra boa pros homens lavrarem, onde nem
sequer há rochas... (...)” (ibidem, p. 45); Maria, que ele é duma terra onde as gentes
morrem sempre despidas (...)(ibidem, p. 45); José, que na terra dele existem “(...) cobras
(...) peçonhentas... que picam um homem à traição e logo o matam” (ibidem, p. 46).
Podemos perceber, pelas informões que Santareno expressou através de suas
personagens, que a terra que gerou António Labareda é, simbolicamente, ligada ao universo
bíblico. Na simbologia bíblica, a maçã encarnada tem significado dúbio: ela tanto pode ser
vista como símbolo da terra, e sua bela cor e doçura correspondem às tentações, (...) ao
25
pecado original”; como pode representar na mão de Cristo (...) a redenção do pecado
original (...) o regresso da humanidade ao Paraíso mediante Cristo.” (LEXIKON, 1997,
p.130).
Observando essas simbologias da maçã, podemos compreender as descrições que as
personagens santarenianas fazem do lugar de que provém o que brinca com a maçã,
António Labareda. Enquanto que para José, que é descendente de Salvador (ou, como nos
diz o Evangelho de Lucas, descendente de Adão), a terra de Labareda lembra o habitat da
serpente que tentou Eva a cometer o pecado original de comer o fruto proibido
19
; para
Maria e para Jesus, a terra de Labareda traz a lembrança do Éden e o desejo de retornar a
este Paraíso bíblico (Maria, o Paraíso em que “O homem e a mulher estavam nus, e não se
envergonhavam” (Gênesis, 2,25); Jesus, o Paraíso em que o “(...) semeador saiu para
semear” e a semente “(...) caiu em terra boa e produziu fruto (...)” (Mateus, 13,4)).
Portanto, enquanto para José, Labareda seria a serpente que provocou os homens e
os fez serem expulsos do Paraíso e habitarem em uma terra onde existe o sofrimento eterno;
para Maria e Jesus, o homem que porta a maçã seria aquele que possibilitaria o regresso ao
Paraíso bíblico (seja através do retorno ao homem primitivamente inocente o qual não
possui o pecado ou a culpa seja através de uma palavra crisque frutifica como as
sementes que caem em terra boa).
O padre, após observar o que ocorre na casa de Salvador, antes de ir à Igreja para
rezar a missa da noite de scoa (a comemorar a ressurreição de Cristo), conta ao casal
Maria e José uma história sobre promessas.
19
Salientamos que a tradição católica é que coloca a maçã como o fruto oferecido pela serpente a Eva. Nos
escritos bíblicos, o fruto não é especificado, apenas diz-se que Eva e Adão comeram o fruto da “árvore do
conhecimento do bem e do mal (...)” (Gênesis, 2,17).
26
Nesta espécie de parábola, um homem de aldeia serrana, “uma pobre terreola
corrida pelos ventos ruins, com o chão de rocha dura” (SANTARENO, 1988, v.01, p.48),
onde somente “florinhas rasteiras e humildes” nasciam, decide cultivar rosas para ofertar à
Virgem Maria. Desunhando-se “em regas e mais cuidados” (ibidem, loc. cit.) ele consegue.
Porém, a caminho da oferta, uma rabanada de vento faz as pétalas voarem pelos ares. Aos
pés da Santa, enquanto os mais humildes enchiam o altar com grandes braçadas de flores
campestres, ao homem orgulhoso coube colocar “seis caules secos, uma ou duas dúzias de
espinhos” (ibidem, p.48). O padre conclui seu ensinamento, dizendo que “(...) aquela terra
não era terra de rosas; mas de giestas, de alecrim, de tojo: eram estas, só estas florinhas
pobres!, que Deus pedia àquela gente. Rosas? Isso era ir contra a natureza humana, forçá-
la!...” (ibidem, p.49).
Apesar de escutar os ensinamentos do padre, José não compreende a alegoria
existente nas palavras deste e, como homem orgulhoso de sua religiosidade, vai à missa
pascal para louvar a ressurreição de Cristo. Maria, por sua vez, uma florinha pobre cujo
marido quer transformar em uma rosa mariana, deixa-se desfolhar pela rabanada de vento
que vem em forma de um beijo que António Labareda lhe dá.
Mesmo sendo desprovido da visão física, Jesus enxerga, “com seus olhos cegos
muito abertos” (ibidem, p.51), que Maria do Mar pecou. Tendo compreendido que os olhos
verdes de Labareda não são o símbolo do Paraíso edênico, Jesus o expulsa da casa cristã.
Na tentativa de compreender quem são, e portanto possibilitar a anagnórisis
trágica
20
, Jesus, Salvador e Maria do Mar conversam sobre o destino. Jesus diz a Salvador:
20
Anagrisis é a palavra grega que, na tragédia, significa o momento em que a personagem passa “da
ignorância ao conhecimento” (ARISTÓTELES, s.d., p.255). Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos
Literários, observa que a anagnórisis “assinala o momento da descoberta de um fato oculto, cuja revelação
altera substancialmente o destino das personagens.” (MOIS, 2002, p. 25).
27
“pregaram-me na cruz quando me batizaram, meu pai...(...)” (ibidem, p. 53). Salvador
confirma ao filho: “Cada um tem a sua cruz, meu filho” (ibidem, p. 54). Mas Maria do Mar
contradiz a ambos: “Eu sou livre, Jesus. Cá em mim ninguém manda. Livre! O meu destino
está aqui e aqui... (indica sucessivamente, a cabeça, o peito e as mãos)” (ibidem, p. 55).
Como podemos observar, as personagens de Jesus e de Salvador, porque se
reconheceram pertencentes a um cristianismo trágico em que o pathos
21
é presente,
parecem crer que a infelicidade que elas possuem é a cruz de sofrimento terreno que lhes
foi destinada. Maria do Mar, porém, ao acreditar que seu livre-arbítrio lhe direito de
escolher o caminho do designado “pecado”, mostra-se divergente da opinião dos dois.
Maria santareniana declara:
Não posso mais (...) não agüento: é superior ao meu poder... (Exaltação
crescente) Queres ver? (Tira, rapidamente, um dos sapatos) Dá-me cá a tua
mão Jesus... anda, toca aqui... (Executa) Não sentes? São pregos, pois! Eu
própria os preguei, com estas minhas mãos! (corre até uma gaveta, no
fundo do armário, e tira um cilício monástico que põe nas mãos de Jesus)
Sabes o que é isto? Cilícios... Tenho-os trazido aqui (indica a cinta), dia e
noite: a minha cinta é uma chaga viva (...) E por que faço tudo isto, Jesus?
Não, eu não sou santa (...) Aquele homem envenenou-me, gastou-me as
forças, eu não sou senhora de mim!... (...) O não gosta de mim. Bota-
me desprezo. (...) O Labareda gosta de mim (...) gosto do Labareda e hei-de
viver com ele: podes dizer ao Zé, ao teu pai, a quem quiseres...” (ibidem, p.
58 - 60).
Com sua declaração Maria mostra-nos que quer trazer para si as chagas de Cristo,
sofrer o pathos que os santos sofrem, ser descendente da rosa perfeita de um catolicismo
trágico. Porém, incapaz de ser santa, a Maria santareniana utilizou seu poder de escolha e
decidiu cessar o phatos cristão cedendo à tentação provocada por Labareda.
21
A palavra grega pathos significa sentimento, sofrimento. Segundo o Dicionário de Teatro de Patrice Pavis,
o pathos “provoca emoção (piedade, ternura, pena) no espectador (...) a tragédia recorre ao patético a partir do
momento que convida o blico a se identificar com uma situação ou uma causa cuja evocação perturbará o
ouvinte” (PAVIS, 2003, p. 280). Aristóteles observa o patético como a catástrofe e sobre este diz: “o patético
é devido a uma ação que provoca a morte ou sofrimento, como as das mortes em cena, das dores agudas, dos
sofrimentos e de outros casos análogos” (ARISTÓTELES, s.d., p. 255).
28
Observamos que a trajetória construída por Santareno para sua Maria é, até então,
uma trajetória de heroína trágica. A hamartia que ela possui não é fruto de sua maldade ou
de sua perversidade, mas sim de uma falta cometida: a de fazer uma promessa que estava
além de suas possibilidades. Além disso, sua hybris é o pecado cristão do adultério (seja
este cometido pelo beijo, seja pelo abandono, que tenciona fazer, da casa matrimonial).
Quanto à anagnórisis trágica, esta ocorre quando Maria, após sentir o pathos destinado aos
santos, reconhece não ser uma rosa cristã mas sim uma florinha pobre e pecadora (como
dissera o padre, uma giesta, um alecrim ou um tojo). Salientamos, porém, que Santareno
concede à sua heroína um elemento que não pertence aos heróis trágicos da antiguidade: a
posse de seu destino (seja esta advinda do livre-arbítrio pertinente a um pensamento
católico
22
, seja esta proveniente de seus instintos naturalistas).
Decidida a cometer a hybris católica do adultério, Maria do Mar sai da casa da
família cristã com o intuito de encontrar-se com Labareda. José, que voltara da missa a
celebrar a ressurreição de Cristo, ao saber que sua esposa fora se encontrar com outro, ao
invés de resignar-se com a cruz de seu sofrimento, decide renegar, como já o fizera Maria,
as crenças cristãs:
Cale-se, meu pai. Vossemecê não presta, pai. Não serve para nada. Para
nada deste mundo, ouviu? Aqui sempre fechado nesta casa (...) (Num urro
feroz, para a imagem do oratório). Acabou-se,acabou-se a promessa!
Mentiste-me, atraiçoaste-me, tu também. Vais ver, vais ver como eu sei
tirar a desforra! Tu, santa, tu também não prestas: és de barro, não falas,
não ouves... Mentideira! Acabou-se, já não te quero! Estás a ouvir-me,
santa? Olha, cuspo-te... (Executa) Enganaste-me... Não te quero ver mais!
(Atira, pela janela, a imagem para o mar.). Que te beba o mar ruim!...”
(ibidem, p.62).
Segundo Aristóteles, em Arte poética, “A peripécia é a mudança da ação no sentido
contrário ao que foi indicado e sempre em conformidade com o verossímil e necessário”
22
Esta diferença entre o pensamento trágico clássico e o católico será melhor explorada na análise da peça
António Marinheiro.
29
(ARISTÓTELES, s.d., p. 255). José santareniano, como observamos, tinha um vínculo
mais forte do que Maria com a casa de Deus (uma vez que ele era filho de Salvador, irmão
de Jesus e sacristão da igreja católica); neste momento do enredo, pom, ao invés de
colocar seu José optando por continuar com estes vínculos, Bernardo Santareno serve-se do
mecanismo da peripécia e coloca sua personagem seguindo um caminho contrário ao que
trilhara até então: Joserá, a partir deste momento do enredo, o que tamm está sujeito a
perpetrar, assim como sua esposa, a hybris católica do pecado.
Primeiramente, Jocomete o pecado de acusar Salvador (e indiretamente, como
vimos, os Salvadores bíblicos Pai e Filho) de o sair de seu mundo particular e,
conseqüentemente, não entender a fraqueza que permeia o mundo humano. Posteriormente,
o pecado de declarar que a imagem da Virgem Maria (que é feita do mesmo material que
fora feito o homem criado por Deus, o barro
23
) não é Santa, mas sim uma grande
mentideira. Por fim, ao atirar a Santa de barro para o mar (de onde, como é importante
lembrarmos, Salvador havia “renascido” pela promessa de castidade do casal católico
Maria e José), esta personagem santareniana comete o pecado de renegar o pensamento
religioso que até então pregara.
Neste momento do enredo, o raciocínio santareniano se afasta, mais uma vez, do
pensamento dos trágicos da antiguidade: José santareniano pôde enfrentar o pai Salvador e
a santa de barro não somente porque ele, homem comum, tentara elevar-se à categoria dos
23
Segundo o livro bíblico Gênesis, assim foi criado o homem: “Iahweh Deus modelou o homem com argila
do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gênesis, 2-7).
Lembramos, que o primeiro homem foi designado de Adão pois este nome vem da palavra hebraica ‘adamah
que significa “o que vem do solo”; a primeira mulher, porém, foi feita da costela de Adão e foi denominada
de Eva, em hebraico Havvah, cuja raiz é hayah que significa viver. Ao construir a relação metafórica entre a
santa feita de barro e o homem, Santareno não faz distinção entre a criação do sexo masculino e feminino,
mas sim entre o homem (gênero humano) e a santidade.
30
deuses, mas também porque os santos (ou, como veremos em momento azado, o que o
homem fez deles) rebaixaram-se à categoria do erro humano.
Servindo-se novamente do mecanismo da peripécia, Santareno reúne na noite do
domingo de Páscoa o casal Maria e José. Ao contrário do que dissera, Maria não fora capaz
de ir encontrar-se com Labareda pois, ao passar pelo cemitério, seus ancestrais e o mar lhe
chamaram de “Perdida” (SANTARENO, 1988, v.01, p.64). José, por sua vez, ao contrário
do homem calmo dos primeiros atos, numa violência animalesca, declara à esposa que
castrara Labareda e, esfregando “raivosamente” (ibidem, p. 66) as mãos ensangüentadas na
cabeça e no rosto de Maria, ordena que ela, “maldita” (ibidem, loc. cit.), beba o sangue do
morto. No desfecho da cena, “Boca na boca, olhos nos olhos: paixão crescente”, Maria e
José “rolam pelo chão” com ruídos de “animais ferozes”. (ibidem, p. 67).
Sábato Magaldi, em artigo intitulado O Português Bernardo Santareno, revela que
nosso autor possui uma mitologia própria, sendo que o que seduz o dramaturgo são “(...)
as emoções violentas, os encontros fatais, os presságios determinantes, os instintos
desencadeados. Tudo (...) numa atmosfera imantada, em que o homem comunga com a
natureza” (MAGALDI, 1989, p. 452
).
Ao fazer referência específica ao texto de A promessa, Magaldi observa: os noivos
Maria e Jo
(...) prometeram abster-se das relões carnais, se for salvo de possível
naufrágio o pai do futuro marido. O matrimônio baseia-se nesse absurdo,
até que o próprio mar traz a figura de António Labareda, contrabandista
salvo da perseguição policial. A provocação desse agente perturbador tinha
de romper o equilíbrio instável. Os sentimentos longamente represados
levam à suspeita de que a mulher seria adúltera e daí a consumação da
tragédia: o marido assassina o suposto sedutor e castra-o, quebrando com
espalhafato a promessa, a ponto de
atirar às
águas a imagem de Nossa
Senhora. a violência liberta das crenças asfixiantes”
(ibidem, p. 452 -
453).
31
Observando as opiniões de Magaldi, e comparando-as com a análise que até então
realizamos, devemos concordar com o estudioso que o português Bernardo Santareno a
violência como meio de libertar o homem de crenças asfixiantes (afinal, para libertar-se da
crença católica que sufocava Maria e, depois, a si mesmo, José, como bem observou
Magaldi, atirou a imagem da santa ao mar, castrou e matou Labareda). Porém, a concisão
da análise feita por esse crítico literário deixa de observar pontos importantes do
pensamento religioso do psiquiatra e dramaturgo português Bernardo Santareno.
Primeiramente salientamos que Santareno omite de seu texto o juízo de valor que
colocaria o abster-se de relações carnais, advindo de uma promessa, como sendo um
absurdo(ibidem, p. 452). Para o dramaturgo português, nesta primeira peça, muito mais
importante do que emitir um juízo de valor pessoal é interrogar, como conhecedor da
religiosidade bíblica, se os valores dessa sociedade portuguesa o são demasiado
orgulhosos para uma “pobre terreola” de florinhas rasteiras e humildes” (SANTARENO,
1988, v.1, p. 48).
Nesse sentido, lembramos que Santareno traz a seu texto o discurso do padre da
aldeia a querer explicar ao casal Maria e José, através de uma parábola, que a promessa por
eles feita é excessiva à capacidade da “natureza humana” (ibidem, p. 49).
Sendo assim, mais do que qualificar o abster-se das relações carnais, o que
Santareno quer, como nos parece mostrar a construção do enredo, é revelar ao povo
português que a religiosidade que deseja igualar o homem às figuras mártires do
catolicismo o é a que foi pregada pelos padres (ou em particular, pelo seu modelo de
padre); é sim um entendimento do cristianismo feito por pessoas que não compreenderam
as parábolas do messias Cristo e da sua Igreja.
32
Além disso, Magaldi qualifica A promessa de tragédia o porque as personagens
que compõe este enredo têm características advindas da fôrma grega, mas sim pelo
desfecho dado por Bernardo Santareno ao texto. Nesse sentido, lembramos que o ato de
atirar às águas a imagem de Nossa Senhora, bem como a castração e o assassinato do
suposto sedutor são fatos trágicos no sentido conotativo do termo (pois podem ser vistos
como fatos funestos e sinistros); porém para o casal santareniano, que consegue após esses
atos violentos libertar-se (como salientou o próprio Magaldi) de suas crenças asfixiantes, os
atos acima descritos são, simbolicamente, o possível renascer de uma espiritualidade
original: aquela desejada não só pelas personagens Maria e José, mas também pelo próprio
dramaturgo que se autodenominou Bernardo
24
.
Explicando esse nosso pensamento, devemos observar que a análise feita aeste
momento nos permite dizer que José, ao realizar o ato de jogar a imagem da Santa ao mar,
simbolicamente devolveu ao mar do inconsciente uma imagem de catolicismo que não mais
lhe serve: a de mártires sofredores que deveriam ser imitados.
Acrescentamos ainda que, ao castrar o suposto sedutor e utilizar o sangue desse
como sangue cerimonial de uma nova ceia pascal, o José santareniano não mais celebra a
ressurreição de um Cristo cujas chagas insiste em lembrar o pecado original cometido por
Eva e Adão (e pelos seres humanos que lhes são descendentes); o que ele celebra, em um
retorno à primitiva sexualidade, é uma Páscoa a trazer ao homem a ascese espiritual a um
Paraíso em que não é visto como pecador.
Concluindo esta nossa análise, não poderíamos deixar de chamar a atenção para o
fato de que António Labareda não é somente um contrabandista salvo por Maria de uma
24
Como vimos no início deste capítulo, segundo o dramaturgo Santareno, o nome Bernardo seria o
responsável por, de maneira mística, propiciar uma ascese espiritual ao homem António.
33
perseguição policial, ele é, como vimos, a personificação de um desejo dessa mulher que
quer unir, inconscientemente, o sangue vermelho da sexualidade com o Céu azul da
espiritualidade. Além disso, acrescentamos que esse homem é jogado pelo mar na vida de
Maria e que nos olhos dele o verde também pode simbolizar a “renovação anual da
natureza (...) a cor da esperança, da longevidade e da imortalidade.” (LEXIKON, 1997,
p.203), sendo assim, os olhos de António, ou a visão que eles possibilitaram ao casal Maria
e José, é luz a permitir uma renovação da própria maneira de ver a religiosidade.
Lembramos ainda que o nome de batismo de Bernardo Santareno também é
António e nos parece, pela análise até então feita, que tanto o “Antônio personagem
quanto o “Antônio ser civil revelam-se como agentes perturbadores a romperem o
equilíbrio instável que habita o inconsciente dos portugueses.
Nesse sentido, podemos dizer que António Martinho do Rosário, o psiquiatra por
profissão, parece ter criado o pseudônimo Bernardo Santareno para que esse pergunte,
através do enredo de A promessa, qual a concepção de religiosidade que seu povo quer ter:
a que observa a rosa e a maçã como símbolos unilaterais de santidade e de pecado ou
aquela que estes símbolos como formas de uma união a possibilitar uma ascese a um
mundo espiritual onde a sexualidade instintiva exista e possa ser aceita?
Em uma visão pessimista de mundo, pom, Bernardo Santareno nos responde a
questão proposta. Na última cena da peça, única realizada do lado de fora da casa de
Salvador, o amanhecer do dia traz dois grupos de personagens.
O primeiro grupo é composto por José, Maria, Rosa, Jesus e Salvador. Na soleira da
porta da casa de Salvador, José pede ao pai: “Quero que cuide de Maria do Mar, como se
ela fosse sua filha (...) Como se fosse sua filha de carne(SANTARENO, 1988, v.01, p.
72). Salvador, por sua vez, aceita o pedido do filho e, acolhendo em sua casa aquela que
34
antes se julgava uma estrangeira (ibidem, p. 16), origem a uma família
verdadeiramente humana, pois une carne e espírito.
Quanto ao segundo grupo, formado pelos moradores da aldeia, resta-lhes formas
diversas de manifestar o descontentamento com a atitude deste Salvador santareniano.
Dessa forma, enquanto homens e mulheres condenam o possível adultério de Maria e a
castração e assassinato perpetrados por José, o sargento do povoado prende aquele que
matou António Labareda. Concretizando uma nova forma de tragédia, Bernardo Santareno
ainda acrescenta a este segundo grupo três bruxas velhas (misto de moiras trágicas e beatas
religiosas) a pedirem o infortúnio daquela que acreditam ser pecadora: Maria terá como
destino ser bebida e cegada pelo mar ruim e, como uma marca de sofrimento eterno, uma
cruz de sangue assinalará não a sua redenção, mas sim sua condenação ao que as velhas
julgam ser o inferno.
Findemos a análise desta primeira peça de Bernardo Santareno traçando um perfil
inicial desse dramaturgo.
O estudo de A promessa nos mostrou um dramaturgo com profundo conhecimento
da religiosidade de seu país (das crenças bíblicas arraigadas nos portugueses). Porém, este
conhecimento (talvez porque aliado à sua profissão de psiquiatra) acabou por construir um
homem não a idolatrar a sociedade cristã, mas sim a revelar o motivo que leva suas
personagens (e poderíamos dizer, seu povo português e ele mesmo) a agonizarem: o ser
chamado de “humano”, porque cultiva uma religiosidade extrema, acredita-se pecador e, ao
ler as parábolas cristãs (ao que parece, na opinião de Santareno, erroneamente), crê que
será purificado se sofrer chagas semelhantes às dos santos; sendo assim, sujeito a uma
concepção católica de tragédia, este ser humano entende-se destinado a uma infelicidade
semelhante a do trágico grego.
35
Contudo, nosso “médico literário”, observa ser possível a alguns homens uma
ascese espiritual. Para tanto, estes devem libertar-se das crenças asfixiantes” voltando à
violência que lhes é instintiva e, dessa maneira, reconhecerem-se como seres compostos por
carne e espírito, mas não por aquilo que a sociedade católica de seu tempo ainda qualifica
unilateralmente de “pecado”.
I.2.2.2- António Marinheiro (o Édipo de Alfama): as concepções grega e santareniana
do trágico.
Em 1960, Bernardo Santareno trouxe a lume um texto a dialogar mais
explicitamente com a tragédia grega: António Marinheiro (o Édipo de Alfama). Com o
intuito de melhor compreender as coordenadas religiosas de Santareno, analisaremos esta
sua peça objetivando traçar as semelhanças e diferenças existentes entre as concepções
grega e santareniana do trágico.
As primeiras cenas de António Marinheiro (o Édipo de Alfama) apresentam a
costureira Amália: seu marido José fora assassinado três meses; na sala de sua casa, a
segurar tecidos, uma corda em forma de forca paira como mbolo de seu destino fatídico;
além disso, ao derrubar água quente na menina Aninhas e queimá-la, a própria Amália
acredita que suas mãos “estão amaldiçoadas” (SANTARENO, 1988, v.2, p.16).
A mãe de Amália, Bernarda, António, o assassino de José, como culpado da
infelicidade da filha. Amália, por sua vez, declara que sua infelicidade existia mesmo antes
de o marido morrer, pois este preferia ficar a beber na taberna a estar a seu lado.
António Marinheiro, após sair da prisão, decidido a pedir perdão à família do morto,
conhece Amália. Nesse primeiro encontro, Amália e António provam sentimentos
36
ambíguos: ela, ao aproximar-se do assassino do marido, sente-se, ao mesmo tempo,
“irresistivelmente atraída” (ibidem, p.31) e confusamente maternal” (ibidem, p.38); ele,
por sua vez, tem um “sentimento complexo de simpatia e culpa” (ibidem, p.31).
O segundo ato da peça ocorre na noite de Natal. Um ano após a morte de José,
Amália ainda está de luto pelo marido, mas sua face e a cantiga que sai de seus lábios
mostram que uma felicidade habita seu ser. Junto de Amália, estão a mãe e a vizinha
(Rosa). Nas conversas, enquanto a mãe reclama que a filha tirara da parede o retrato do
marido morto, a vizinha insinua que Amália está apaixonada por António. Bernarda se
apronta para ir à missa de Natal e convida Amália para acompanhá-la, porém, vendo
António do outro lado da rua, ela descobre que a filha prefere ficar em casa para recebê-lo a
ir à celebração Natalina. Movida pelo despeito, Bernarda convida António para entrar na
casa e, com raiva, sai para a missa deixando Amália, Rosa e António a conversarem. Rosa
vive maritalmente com Adolfo e com esse tem dois filhos, a relação entre o casal, porém, é
tumultuada por freqüentes e violentas brigas. Na sala da casa de Amália, enquanto Rosa
ouve a viola de Adolfo tocar uma música triste, Amália confessa a António que vive
perturbada por medos e sonhos estranhos. Ao ver Adolfo com outra mulher, Rosa vai ao
encontro do marido deixando Amália e António a sós. Na conversa do casal mesclam-se
medo, sensualidade”, “sentimentos nebulosos”, ar “maternal”, “grito de instinto”,
“melodia suave de amor”, “ciúme violentoque quer cortar o passado de António, “urro
dionisíaco”, “riso morto na boca”, “grito fundo de horror”, “mãos (...) sobre o ventre (...)
grito de luz,ntese súbita de todos os sentimentos confusos” (ibidem, p. 56 - 63). António,
estimulado pelas sensações, acaba por confessar seu amor por Amália dizendo que as
palavras que ela emite parecem lhe chegar através de um sonho, um “sonho bom (ibidem,
p. 64); Amália, por sua vez, abraça António e o embala a cantar “Dorme, dorme, meu
37
menino” (ibidem, loc. cit.). Um assobio invade a cena, é Rui, o amigo de António
Marinheiro que o chama. Com medo da separação, António pede Amália em casamento e
ela aceita a proposta.
Na mesma sala da casa de Amália, a corda em forma de forca sustenta, no terceiro
ato, um “pano de seda escarlate” (ibidem, p. 67). É verão, Amália, seis meses casada
com António, declara para sua mãe que nunca fora o feliz. Bernarda, porém, a cobrar da
filha que esta é pecadora, insinua que António irá embora quando souber que Amália tem
um passado que a condena (ou seja, quando ficar ciente que “a santinha tem uma perna
quebrada” (ibidem, p. 69)).
Presságios anunciam que o fatídico destino aproxima-se do casal Amália/António:
um almur (pássaro que, segundo os costumes gregos, traz mal-agouro) morre ao bater no
vidro da casa de Amália e Antônio, uma Louca pega o pássaro nas mãos e, trazendo-o para
dentro, fala de tristezas (passadas e futuras) de uma família cujo pai se afogou em um poço.
Amália contempla a luz que vem dos olhos verdes do almur. O amigo de António,
Rui, vem visitá-lo. Amália, ao vê-lo, fica com receio pois os olhos de Rui são da mesma cor
dos olhos do almur. Rui, em conversa com António, tenta lembrá-lo de como era feliz o
tempo em que ambos se prostituíam, traficavam e roubavam velhas ricas. António, porém,
diz ao amigo que esse tempo passou, pois agora encontrou um lugar em que ele se sente
protegido.
Amália, perturbada pelos gritos da Louca e pela imagem dos olhos verdes (do almur
e de Rui), acaba por confessar seu pecado: ela tivera um filho e o abandonara. A revelação
faz com que António também entre em estado de pavor; ele começa a fazer perguntas até
que, movido pelas respostas, chega à anagnórisis trágica: Amália e José são seus pais e,
portanto, ele cometeu os crimes de incesto e parricídio.
38
Os habitantes de Alfama ficam sabendo dos acontecimentos e, a gritos e pedradas,
começam a exigir a vida do casal incestuoso. Amália pede a Rui que leve António para
longe. Após os dois irem embora, ela, sozinha, enfrenta a crueldade da mãe e do povo que
exigem o suicídio. Amália expulsa a mãe de casa e, num misto de pavor e loucura, olha
para a forca pendurada no teto e repete que não é culpada e que quer ser feliz e continuar
viva. Exausta, Amália passa a delirar e vê o filho a lhe pedir um beijo, ela nega, mas depois
toma consciência do ocorrido e grita o nome de Antônio soltando “uivos de cio e desespero,
apaixonados.” (ibidem, p. 111).
Dialogando
25
com a tragédia grega Édipo Rei, a peça António Marinheiro (o Édipo
de Alfama) traz para o teatro moderno a situação-chave vivida na obra sofocliana: em
ambos os textos um Édipo, sem o saber, comete os crimes de parricídio e de incesto.
Porém as obras em questão, apesar de utilizarem a mesma situação-chave, revelam
diferentes concepções do “trágico”. O motivo, que explicitaremos na análise que se segue, é
o fato de que o dramaturgo grego e o português refletem em seus textos escolhas sujeitas ao
seu tempo e às suas crenças.
Inicialmente observamos que os dramaturgos escolhem diferentes cenários para seus
enredos. Sófocles refere-se a Tebas, cidade da Grécia, e Bernardo Santareno a Alfama, um
bairro de Lisboa, cidade de Portugal. A importância desta transposição pode ser
compreendida se estudarmos o título escolhido para cada um dos textos.
25
Segundo Bakhtin, na obra Problemas da poética de Dostoievski, uma das características da literatura
moderna é o dialogismo, ou seja, na modernidade, com freqüência, “o autor emprega a fala de um outro” na
construção do seu texto. Salientamos, porém que, sendo o objetivo desta nossa análise compreender o
pensamento religioso de Bernardo Santareno, omitiremos desta tese um possível estudo acerca dos
mecanismos que teriam sido utilizados pelo dramaturgo português em seu diálogo com a obra sofocliana.
Sugerimos, aos que querem compreender os mecanismos inseridos neste diálogo entre os textos referidos, a
consulta à dissertação A Reatualização do mito na dramaturgia de Bernardo Santareno: António Marinheiro
e O Inferno (Domingos Pereira Nunes).
39
Primeiramente devemos observar que o nome Édipo, título e denominação da
personagem principal da tragédia sofocliana, passa a figurar como subtítulo na
denominação do texto santareniano. Além disso, acrescido a este nome, encontramos não
mais um adjetivo de poder social (“Édipo Rei”
26
), mas sim uma locução adjetiva a
expressar o local de nascimento da personagem (“Édipo de Alfama”). Sendo assim,
enquanto a personagem sofocliana é o rei dos habitantes de Tebas, Santareno encontra em
Alfama, bairro pobre de Lisboa, seu “Édipo”: um homem comum, pertencente a uma classe
social menos abastada.
Observamos que, ao trocar o adjetivo monárquico pela locução adjetiva a expressar
um lugar habitado por pessoas humildes, Bernardo Santareno o infringiu nenhuma das
regras do clássico aristotélico (pois, para Aristóteles a personagem trágica imita “homens
(...) melhores do que o que são na realidade” (ARISTÓTELES, 1969, p. 242.)). Porém,
apesar de não transgredir diretamente o que foi dito pelo teórico grego, Santareno revela, ao
contrário do que foi colocado por Sófocles, que seus “homens melhores” não mais serão
reis ou rainhas, mas sim seres mais humildes de sua sociedade.
Devemos observar ainda que o tulo criado por Bernardo Santareno revela também
que sua personagem masculina não mais será denominada de Édipo, mas sim de António
Marinheiro.
Na língua original do texto sofocliano, o grego, o nome Édipo (Oidípous) significa
“pés inchados” e, segundo a personagem do mensageiro, Édipo foi assim denominado
porque foi encontrado com os tornozelos amarrados e o inchado, defeito que lhe ficou
desde a infância, sendo assim, o nome do rei “relembra esse infortúnio” (SÓFOCLES,
1990, p.72).
26
Em nossa análise, utilizaremos a tradução do grego realizada pelo helenista Mário da Gama Kury.
40
Quanto ao texto santareniano, o nome de António não se refere à etimologia que lhe
deu origem (no latim, Antonius, que significa “inestimável”), refere-se sim à crença
religiosa dos que o encontraram abandonado na noite de Santo António” (SANTARENO,
v.2, 1988, p. 94). Além disso, segundo a própria personagem-título, como “(...) qualquer
nome religioso tem que ter apelido (...) Foi o ti´Zé da Guia que se lembrou:
Marinheiro...António Marinheiro [porque] dentro de um barco que ele me tinha achado”
(ibidem, loc. cit.).
Porém, se o próprio texto santareniano revela o motivo que faria com que sua
personagem tivesse como nome António Marinheiro, trazemos ao nosso trabalho um trecho
da tragédia sofocliana que poderia nos dar outra explicação para o “apelido” dado a esta
personagem. Em Édipo Rei diz Jocasta:
Sobem à mente de Édipo, como soubestes,/ inquietações sem número (...) /
Se nada consegui com minhas advertências,/ volto-me a ti, divino Apolo
Lício,/ que em teu altar estás mais próximo de nós,/ prostrada e súplice com
minhas oferendas;/ peço-te que, purificando-nos da mácula,/ possa trazer-
nos afinal a salvação./ Todos nós (por que negar?) sentimos medo hoje,/
iguais a nautas ao notarem que o piloto/ perde o domínio do timão e
desespera. (SÓFOCLES, 1990, p.47).
Observando os versos citados, podemos acrescentar que Santareno pode ter dado a
“alcunha” de Marinheiro à sua personagem o porque António fora achado em um
barco, mas também porque o texto que lhe servira de paradigma
27
revela, neste trecho, que
as personagens pertencentes ao trágico sentem medo como os nautas/marinheiros que estão
em águas desconhecidas.
Para melhor compreendermos esta relação, acrescentamos que, como vimos na
análise de A promessa, dentre os símbolos atribuídos ao mar, figura-se “o inconsciente.”
27
Apesar de não ser o objetivo deste texto analisar os mecanismos intertextuais utilizados em António
Marinheiro, utilizaremos a nomenclatura pertinente à análise da intertextualidade. Sendo assim, estamos aqui
chamando o texto sofocliano Édipo Rei de paradigma, pois este será o texto modelo utilizado por Santareno.
41
(LEXIKON, 1997, p.135). Este simbolismo é extremamente importante, pois nos aponta
que as “inquietações sem mero” vividas na tragédia sofocliana foram “relidas” por
uma outra personalidade, não dramatúrgica, mas sim psiquiátrica, o Dr. Sigmund Freud.
Freud observou que um dos principais medos a assolarem nosso inconsciente é a não
superação do que ele denominou de complexo de Édipo.
Sendo assim, ao denominar sua personagem de António Marinheiro, Bernardo
Santareno imprime a esta os elementos que norteiam sua dramaturgia: a religiosidade cristã
(advinda do povo português), o trágico (advindo da tragédia clássica e do próprio trágico
que é a existência humana) e o estudo dos medos que habitam o inconsciente humano
(proveniente, possivelmente, da formação psiquiátrica de um homem que também tem
como nome António).
Salientamos, porém, que, se na peça de Sófocles as “inquietações sem número
assolam principalmente o filho da relação incestuosa, em Bernardo Santareno, uma outra
Jocasta, designada pelo dramaturgo do século XX como Amália, não mais se prostrará aos
deuses para purificar-se de sua mácula e conseguir a salvação; ao contrário disso, devido à
presença de António Marinheiro, ela será o principal nauta a lançar-se no mar de seus
próprios medos.
No segundo ato, Amália narra a António Marinheiro o sonho que a inquieta:
Todas as noites, António, todas as noites! Uma vez eu estava numa casa
muito grande, bonita... Um palácio como o dos reis! Com tectos todos de
oiro e as paredes de espelho. Tinha mais de mil salas, umas a comunicar
com as outras, cada qual mais rica... Mas, por mais que procurasse, não
achava a porta da rua; andei assim, perdida naquela casa, um dia, uma noite
inteira... Cada vez que me chegava às paredes todas de espelho pra ver
se dava com a porta, queres saber? Queres saber o que eu via?! Não, não era
eu que aparecia no espelho: eras tu, António. Tu inteiro, assim como agora
te vejo! Eras tu, mais de cem, mais de mil vezes, em cada parede, em cada
canto, em cada um daqueles malditos espelhos! (lágrimas, transida, a suar
de angústia) A certa altura, eu já não via mais nada cega, ceguinha de
todo! sentia o meu juízo correr, como o fim dum novelo que a gente
42
desenrola no chão; e, com todas as minhas forças, bati com as duas os
naquela parede, a ver se ela se abria, se me deixava fugir dali pra fora!...
(Aproxima-se de António: ternura e pavor). Quando olhei pro espelho
quebrado aos meus pés... não era eu, eras tu que lá estavas! (Acarinhando,
com as mãos, o rosto de António). Tinhas um grande golpe aqui... este olho
vazado... e o pescoço cortado separado da cabeça... Jesus, nem me quero
lembrar! (Tapa os olhos com a mão). (...) corria sangue – senti-o em minhas
mãos, ensopou-me os pés! – corria sangue verdadeiro de tuas feridas...
Eram rios de sangue a correr entre os bocados de espelho (...)”
(SANTARENO, v.2, 1988, p. 55).
Trabalhando primeiramente com a relação entre o paradigma sofocliano e o
intertexto santareniano, podemos perceber que o sonho de Amália a aproxima ainda mais
da possível comparação com a fôrma da tragédia grega.
Primeiramente salientamos que, no sonho de Amália, ela habita um palácio de reis.
Além disso, assim como na fábula sofocliana (e na própria teoria criada por Aristóteles
acerca da tragédia), o tempo no sonho é correspondente a uma revolão solar (“um dia e
uma noite inteira”). Por fim, e o que nos parece ser o mais importante de tudo, Amália
António no espelho e, como em um reflexo de sentidos, tem nos seus olhos a cegueira
edipiana e no seu juízo o correr d“o fim de um novelo”.
Antes de compreendermos o pensamento santareniano expresso neste sonho de
Amália, trazemos ao nosso trabalho algumas informações que, teorizadas pelo helenista
Jean-Pierre Vernant, nos ajudarão a compreender o pensamento trágico existente em Édipo
Rei.
Segundo Vernant, a tragédia surge na Grécia no fim do século VI a.C., sendo que
Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado
e, quando, na Ptica, procura estabelecer-se a teoria, Aristóteles não mais
compreende o que é o homem trágico que, por assim dizer, se tornara
estranho para ele.
(VERNANT, 1999, p.07).
A crítica que o estudioso moderno faz ao antigo baseia-se no fato de que a obra
aristotélica, escrita no século IV a.C., não o devido valor a um elemento que Vernant
43
julga ser fulcral para o entendimento do trágico grego: nas personagens deste trágico o
existia a categoria da vontade tal qual a conhecemos hoje.
Sobre este fato, salienta Vernant:
(...) a experiência ainda incerta e indecisa daquilo que na história
psicológica do homem ocidental, será a categoria da vontade (sabe-se que
não há na Grécia antiga um verdadeiro vocabulário do querer), na tragédia,
exprime-se sob a forma de uma interrogão ansiosa a respeito das relações
do agente e de seus atos: Em que medida o homem é realmente a fonte de
suas ações? No próprio momento em que sobre elas o homem delibera em
seu foro íntimo, elas não têm sua verdadeira origem em algo que não é ele
mesmo? A significação delas o permanece opaca àquele que as
empreende, uma vez que os atos tiram sua realidade não das intenções do
agente, mas da ordem geral do mundo à qual os deuses presidem?
(ibidem, p. 23).
Se aplicarmos estas observações de Vernant à peça Édipo Rei, perceberemos que
todas as ações das personagens principais são guiadas, na verdade, para que se cumpra o
que os deuses lhes destinaram.
Nesse sentido, observamos que Jocasta, no início da vida de Édipo, após ouvir do
oráculo que o filho tido com Laio assassinaria o próprio pai, comete a ação de entregar a
criança para ser exterminada por um pastor; porém esta entrega faz com que Édipo encontre
Pôlipo e Mérope e destes se considere filho legítimo. Posteriormente, já com mais idade,
Édipo, após visitar o oráculo de Delfos e escutar deste que cometeria os crimes de
parricídio e incesto, tem a ação de abandonar Corinto (tencionando afastar-se, portanto, do
que lhe fora destinado); porém, naquela que pensa ser a “sua” caminhada, encontra o seu
verdadeiro pai e, sem o reconhecer como tal, acaba cometendo o primeiro crime de sua
trajetória trágica. Finalmente, na entrada de Tebas, Édipo ouve o enigma da Esfinge e,
pensando ser um poderoso decifrador, decide enfrentar o mostro e interpretar a advinha que
lhe fora dada; pom mais uma vez, a ação de decifrar o enigma acaba sendo a
concretização do que os oráculos haviam previsto, pois, como prêmio, Édipo ganha o trono
44
de Tebas e a rainha desta terra como esposa (ou seja, sem o saber, Édipo comete o crime de
incesto do qual tencionara fugir). Sendo assim, por mais que Jocasta e Édipo tenham
pensado realizar ações próprias, estas eram, na verdade, presididas pelos deuses que faziam
dos humanos seus títeres.
Se adicionarmos a este pensamento expresso por Vernant o pensamento aristotélico
de que, na tessitura da tragédia grega, o autor deve observar que os elementos só devem ser
inseridos quando colaborarem com o entendimento da fábula
28
, podemos dizer que o
próprio Sófocles constrói o seu texto objetivando mostrar, através de cada diálogo a formar
o todo, a subserviência dos mortais ao destino que lhes fora impingido. Uma prova disso é
que, no final da peça sofocliana, o coro dos anciãos de Tebas, como a falar pela sabedoria
dos deuses, torna pública a regra do trágico grego dizendo: “Vossa existência, frágeis
mortais/ é aos meus olhos menos que nada/ Felicidade conheceis/ imaginada; vossa
ilusão/ logo é seguida pela desdita” (SÓFOCLES, 1990, p.83).
Ou seja, se o frágil e mortal Édipo cometera, no princípio da peça, a hybris de
pensar-se “rei ‘salvador’, (...) deus que tem nas suas mãos o destino de sua cidade”
(VERNANT, 1999, p. 67), homem que impôs “silêncio à Esfinge” (SÓFOCLES, 1990,
p.37), no desenrolar desta fábula, a luz do reconhecer-se irá aos poucos entrando na mente
desse mortal e acabará por fazê-lo ver, no findar da peça, que o “Destinolança “em
negros abismos” (ibidem, p. 87) os homens que ousam enfrentar os Deuses.
28
Expressa Aristóteles em sua Poética: “O que unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a
presença de uma personagem principal (...) Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da
imitação resulte da unidade do objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a
imitação seja una e total e que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a suspensão ou o
deslocamento de uma só, para que o conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente
podemos ajuntar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante
do todo”. (ARISTÓTELES, 1969, p.251)
45
Nesse sentido, podemos concluir que, como salientou Margot Berthold ao analisar o
teatro sofocliano, o autor de Édipo Rei “(...) dá aos deuses a vitória, triunfo integral, sobre o
destino terrestre (...) Pois em tudo isso não existe nada que o venha de Zeus (...)
(Berthold, 2000, p.110).
Acrescentamos ainda que, de acordo com a mitologia grega, o Destino é um deus
que “tem debaixo dos pés o globo terráqueo e nas mãos a urna fatal que encerra a morte dos
mortais” (VICTORIA, 2000, p. 36) sendo que, quem executa as ordens deste deus
impiedoso são as fiandeiras da vida humana conhecidas como Moiras. Essas, identificadas
com as Parcas romanas, são três:
Cloto segura na mão uma roca à qual leva presos fios de todas as
qualidades: de seda e ouro para os homens cuja existência de ser feliz, e
de e cânhamo para todos aqueles que são destinados a serem
desgrados” (ibidem, p.116).
Láquesis (ou Décuma) a volta ao fuso no qual os fios vão se enrolando e Átropos
(ou Morta) inspecionaria o trabalho e, “(...) valendo-se de uma tesoura muito comprida,
corta, repentinamente (...) o fio fatal. Jovens e velhos, ricos e pobres, pastores e monarcas,
nada escapa à divindade inexorável (ibidem, loc.cit.).
Essa explicação mítica do deus Destino e de suas fiandeiras nos possibilita melhor
compreender não só a nomenclatura dada ao topoi da tragédia, que se refere a uma
fatalidade que esmaga o homem e reduz a nada sua ação, designado como destino ou
moira, mas também o pprio sonho que atormenta a Amália santareniana.
Amália (uma Jocasta intertextual) tem como seu reflexo no espelho António (um
Édipo intertextual), porém, se tal qual as personagens trágicas ela não enxerga a verdade
dos acontecimentos (está “cega, ceguinha de todo” para a compreensão dos fatos), diferente
destas, o novelo da vida que possuí é desenrolado não por outrem (não pelos deuses, moiras
46
ou parcas), mas sim por si mesma (“o fim dum novelo que a gente desenrola pelo chão”
(SANTARENO, v.2, 1988, p. 55)). Ou seja, se na mitologia greco-latina e na própria
concepção da tragédia são os seres superiores quem regem a vida e o futuro dos seres
humanos, no texto santareniano será o próprio homem (simbolizado aqui pela primeira
pessoa do plurala gente) quem desenrolará o novelo da trajetória e do fim de sua vida.
Com o intuito de comprovar que a idéia aqui exposta não está alicerçada apenas em
uma palavra que compõe o sonho de Amália, trazemos outros fatos do enredo que,
adicionados a concepções cristãs de mundo, tornarão esta idéia mais compreensível.
Primeiramente salientamos que Amália é costureira. Ou seja, metaforicamente, ela
possui um trabalho que lhe dá a livre escolha de poder utilizar-se dos fios, modernamente
transformados em tecidos, como desejar a sua vontade.
Observamos ainda que as ferramentas deste trabalho de Amália são constantemente
trazidas ao texto como um elemento importante para o entendimento do enredo.
Lembramos que, no primeiro ato da peça santareniana, três meses após o assassinato
de seu marido, Amália “cose à mão um pano verde” (SANTARENO, v.2, 1988, p. 13) e,
conversando com a mãe, revela dois fatos importantes. O primeiro, dito em tom de
brincadeira, que a corda a sustentar os tecidos no teto servirá para que ela se enforque. O
segundo, em tom de tristeza, que suas mãos estão amaldiçoadas e destinadas a “cumprir um
fadário” (ibidem, p.16), pois seu “Deus não dorme” (ibidem, p.28) e, portanto, é sabedor do
mal que ambas fizeram.
no segundo ato, a transcorrer na noite de Natal, um ano após o assassinato de seu
marido, a costureira Amália acrescenta ao luto que vestira até então uma possível felicidade
que lhe parece ser oferecida: a vontade de viver com António Marinheiro e de cortar da
vida deste, com sua “tesoura (ibidem, p. 60), todos os anos que ele sentira a infelicidade de
47
não ter pai nem mãe, de ter que viver “no meio da gente tão suja, tão reles (...) que nada era
bastante nojento”, de ter todos os vícios e (...) inveja dos assassinos” (ibidem, p. 61), de
ser, portanto, como seu amigo Rui.
No último ato, seis meses após o casamento com António, “sobre o anel de corda
(donde (...) pende apenas um pano de seda escarlate, longo, a rasar o pavimento)” (ibidem,
p. 67), a costureira Amália, apesar de sentir-se adorada como uma “santa de altar” (ibidem,
p.68) e de viver com um homem com “mãos de seda fina” (ibidem, p. 69), terá de coser um
novo tecido de sua vontade: escolher se compactua com o verde que vem dos olhos do
almur e de Rui ou com a exigência de morte feita pelos habitantes de Alfama.
Podemos observar que os símbolos colocados por Santareno na construção de seu
trágico são diferentes dos símbolos utilizados não somente no trágico sofocliano, mas
também e principalmente na própria concepção do que, segundo Vernant, seria o trágico
grego.
Notamos que, assim como ocorrera no enredo de A promessa, em António
Marinheiro (o Édipo de Alfama) a presença da cor verde é constante. Para compreendermos
como esta cor é aqui utilizada, repetimos o simbolismo que ela possuiu na primeira peça de
Santareno. Conforme o dicionário de símbolos, cito aqui o de Herder Lexikon, o verde é a
(...) cor do reino vegetal, sobretudo do desabrochar da primavera, da água, da vida, do
frescor e da mediação entre o vermelho do fogo do Inferno e o azul do Céu.” (LEXIKON,
1997, p. 202 - 203).
Comparando Amália a Jocasta, teríamos que aquela vê em si uma hybris semelhante
à da rainha pagã: o ser superior (em Jocasta, os deuses, em Amália, o Deus) sabe que ela
cometera o erro de banir o filho da família que o gerou. Porém, se ambas possuem uma
mesma hybris, Amália, ao contrário de sua personagem paradigma, não estará sujeita ao
48
pensamento que rege o trágico grego (o de que os homens têm suas ões presididas, na
verdade, pelos deuses). Ao contrário disto, Amália (que por ser costureira reúne em si,
simbolicamente, Cloto, Láquesis e Átropos) cose o tecido verde de seu futuro e, desse
modo, mostra que terá uma nova oportunidade de escolher, num tempo católico, entre o
pecado do Inferno ou a redenção do Céu.
Para que melhor compreendamos essa construção feita por Bernardo Santareno, é
necessário acrescentarmos a este momento da análise considerações acerca da idéia
religiosa de livre-arbítrio e de como o homem escolhe sua condenação ou redenção final.
Cerca de cinco séculos antes da escrita de António Marinheiro, em 1486, o
humanista italiano Giovanni Pico della Mirandola, no texto intitulado Discurso sobre a
Dignidade do Homem, narra como o Deus católico concedeu ao ser humano o livre-arbítrio.
Segundo Mirandola, o homem possui um lugar muito especial dentro da criação e este fato
estaria indicado nas próprias palavras das Escrituras que atestam ter sido o homem o único
feito à imagem e semelhança do criador. Assim, narra o humanista, após “o sumo Pai, Deus
arquiteto” (MIRANDOLA, 2001, p. 52) ter criado o mundo com perfeição, não encontrou
bem maior a ser dado àquele que era sua imagem e semelhança do que a capacidade de
escolher. Desta forma, explica Pico della Mirandola, Deus, colocando o primeiro ser
humano
(...) no meio do mundo, falou-lhe desse modo: Ó Adão, não te demos nem
um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa
alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele
aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu
parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada
por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por
nenhuma limitação, determi-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo
poder eu te entreguei. Não te fizemos nem celeste nem terreno, nem mortal
nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te
plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido.
Poderás degenerar até aos seres que são bestas, poderás regenerar-te até às
49
realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.
(MIRANDOLA, 2001, pp.52 e 53).
Sendo assim, enquanto o homem da antiguidade clássica estava sujeito ao destino
que lhe fora traçado pelos deuses e, mesmo quando julgava esboçar sua vontade, na
verdade confirmava sua subserviência, o homem da era católica, segundo o humanista
do século XV, recebeu de seu Deus o livre-arbítrio, segundo expõe Mirandola, para
degenerar-se ou regenerar-se.
Portanto, na peça santareniana, apesar de ter cometido a mesma falha da Jocasta
sofocliana, a Amália, por ser católica (por habitar em uma casa cuja parede possui um
“nicho com a imagem de Santo António” (SANTARENO, v.2, 1988, p. 13)) será dada uma
chance de regeneração: comportar-se como mãe do filho que gerou.
Nesse sentido, salientamos que Bernardo Santareno freqüentemente insere nas falas
de Amália o tom maternal que Sófocles não utilizara em sua Jocasta.
Lembramos que, no final do primeiro ato, Santareno frisa com a rubrica que a
carícia que Amália faz em António é “confusamente maternal” (ibidem, p. 38). No segundo
ato, abundam expressões que demonstram que Amália António como sua criança: (...)
ele é ainda novinho (...) Um anjo (...) tem beicinhos de criança” (ibidem, p. 47), “o meu
rapazinho” (ibidem, p. 59), “eu nunca pensei em ti assim... como homem (...) Tu és um
rapazinho” (ibidem, p. 63), “Quem me dera que tu fosses pequenino, António! (...) (Amália,
sempre com a cabeça de António entre as mãos; a cantar devagarinho, em toada e jeito de
embalar) Dorme, dorme, meu menino(ibidem, p. 64), “Podia ser sua mãe...” (ibidem, p.
65).
Quanto ao terceiro ato, mesmo tendo casado com António, Amália ainda expressa
por ele, cada vez mais explicitamente, sentimentos muito mais maternos do que maritais:
50
Queria abraçar-te tanto, tanto, que tu...Queria poder ter-te aqui, dentro de
mim, como a gente tem Nosso Senhor quando comunga: que nada, nem
mesmo o que tu pensas, ficasse fora de mim!... Isto é esquisito, bem sei,
mas... (verdade feroz) eu gosto tanto de ti, António! (Muito doce, como que
iluminada) Que feliz é a mãe que traz o seu filhinho, o seu amor, escondido
nas entranhas! Ninguém lhe toca, ninguém lhe fala, ninguém o vê!...
(Violência crispada) Era assim... era assim que eu te queria, António! Quem
dera que tu ti fizesses pequeno, pequenino, até caberes todo aqui, no meu
ventre!...
(ibidem, p. 85)
Vejamos como esse tom maternal inserido em Amália a afasta do paradigma
sofocliano e a aproxima de uma interpretação psicanalítica do complexo de Édipo.
Primeiramente salientamos que em texto intitulado “Édipo sem complexo”, o
helenista Jean-Pierre Vernant reflete sobre a pertinência ou não da transposição da peça
sofocliana para a teoria psicanalítica construída por Sigmund Freud e propagada por outros
psiquiatras.
No referido texto, Vernant salienta que Freud, em obra intitulada A interpretação
dos Sonhos (publicada em 1900), vê (...) no amor da criança por seus pais, no ódio pelo
outro, o dos impulsos psíquicos que determinarão o aparecimento posterior das
neuroses” (VERNANT, 1999, p.53).
Além disso, salienta o helenista, para comprovar essa teoria, Freud na
perpetuação do sucesso da tragédia Édipo Rei não a manifestação de um pensamento grego
próprio do século IV a.C., nem as qualidades literárias do texto, mas sim “(...) a existência
(...) universal, na psique infantil de uma constelação de tendências semelhantes àquela que
conduz o herói à sua perda” (ibidem, p. 54)
29
.
29
Na obra A interpretação dos sonhos assim encontramos esse pensamento freudiano: Se Oedipus Rex
comove um auditório moderno não menos que o grego da época, a explicação somente pode ser no sentido de
que seu efeito o está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas que deve ser procurado na
natureza particular do material sobre o qual aquele contraste é exemplificado. Deve haver algo que torna uma
voz dentro de nós pronta a reconhecer a força compulsiva do destino de Oedipus (...) O Rei Édipo, que
assassinou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta, simplesmente nos mostra a realização dos nossos
próprios desejos de infância. Contudo, mais afortunados que ele, entrementes conseguimos, até o ponto em
51
Eximindo-se de analisar se a teoria de Freud é ou não correta no que se aplica à
psicanálise, o helenista Jean-Pierre Vernant objetiva, no referido texto, deixar claro que a
punição sofrida por Édipo não tem origem no desejo inconsciente de parricídio e incesto
que este sente, mas sim no pensamento próprio do século IV a.C. que vê nos deuses a
origem de toda ação humana.
Porém, se Vernant se exime de criticar diretamente a Freud, não faz o mesmo
quando se refere a um seguidor do psicanalista austríaco, Didier Anzieu, que, em 1966,
decide aplicar os conceitos freudianos inserindo-os diretamente na fábula construída por
Sófocles.
Apesar do texto de Anzieu ser posterior ao texto santareniano, traremos ao nosso
estudo algumas críticas proferidas por Vernant pois, se as idéias expostas por Anzieu não
encontram respaldo no enredo de Édipo Rei, algumas delas o encontrariam em António
Marinheiro (o Édipo de Alfama).
Vernant critica Anzieu quando este expõe que na peça sofocliana o casamento de
Jocasta com Édipo é movido pelo desejo sexual incestuoso que o filho nutria pela mãe.
De acordo com o helenista, o pensamento do psiquiatra em questão está errôneo por três
motivos: o primeiro é que Édipo Mérope e não Jocasta como sua mãe; o segundo, é que
Édipo partilha do leito da rainha não por atração sexual, mas sim porque adivinha o enigma
da Esfinge e Jocasta lhe é, assim como o posto de rei, um prêmio; o terceiro, é que Sófocles
apagou de sua tragédia “(...) tudo aquilo que, antes da revelação final, podia evocar nas
relações pessoais entre o marido e a mulher as ligações de um filho com sua mãe” (ibidem,
p. 69).
que não nos tornamos psiconeuróticos, separar nossos impulsos sexuais de nossas es e esquecer nosso
ciúme de nossos pais.” (FREUD, 1972, p. 278)
52
Porém, se o pensamento de Anzieu (e de Freud, através desse) não pode ser
aplicado ao cerne da tragédia sofocliana, ao enredo santareniano ele seria profundamente
pertinente. Para comprovarmos este fato basta lembrarmos que Bernardo Santareno não
concede a António nenhuma mãe que substitua o amor que Amália o lhe dera; além
disso, na noite de Natal, o pedido de casamento feito por António e aceito por Amália é
movido por sensações confusas de amor filial/maternal e pelo desejo de concretizar
instintos carnais de prazer; por fim, como vimos há pouco, o dramaturgo e psiquiatra
Bernardo Santareno frisa, por diversas vezes, o tom maternal em sua Jocasta.
Sendo assim, se o cerne do texto sofocliano não imprime nem a Édipo nem a
Jocasta a hybris incestuosa pensada por Freud, no texto santareniano essa é extremamente
presente.
Acrescentamos, contudo, que o próprio Jean-Pierre Vernant observa que Sófocles,
apesar de não ter colocado como centro de sua tragédia o desejo edipiano de incesto, já
percebe, através da fala de Jocasta, a existência deste entre os mortais. Diz Jocasta a Édipo
na tragédia sofocliana:Não deve amedrontar-te, então, o pensamento/ dessa união com tua
mãe; muitos mortais/ em sonhos subiram ao leito materno. / Vive melhor quem não se
prende a tais receios.” (SÓFOCLES, 1990, p. 67)
30
.
Vejamos agora a teoria criada pelo psiquiatra austríaco Sigmund Freud que, no final
do século XIX, observou psicanaliticamente este desejo incestuoso que muitos mortais
nutrem pelo leito materno.
30
Salientamos que esse sonho a que se refere Vernant é elemento fulcral para o pensamento freudiano do
Complexo de Édipo. Ao tratar desse sonho, Freud observa: “Hoje, da mesma forma que outrora, muitos
homens sonham em ter relações sexuais com suas mães, e mencionam esse fato com indignação e assombro.
Isto é nitidamente a chave da tragédia e o complemento ao sonho de o pai daquele que sonha estar morto. A
história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos.” (FREUD, 1972, p. 280)
53
Segundo Freud, o ser humano adulto possui dois princípios, o de “prazer” e o de
“realidade”. Durante o desenvolvimento humano, o tempo infantil é regido somente pelo
“princípio de prazer” e, por este motivo, nas três fases pré-edipianas, a criança sente
satisfação em sugar o leite materno (na fase oral), em controlar a retenção ou expulsão das
fezes (na fase anal) e em perceber a libido localizada nos órgãos genitais (na fase fálica).
Porém, com o intuito de disciplinar a criança e inserir no futuro adulto o “princípio da
realidade”, existirá, conforme a teoria freudiana, a manifestação psicológica do “complexo
de Édipo”. Neste momento do desenvolvimento psíquico infantil,
(...) o envolvimento íntimo do menino com o corpo da mãe leva-o a um
desejo incestuoso de união sexual com ela (e, como reação de ciúme,) (...) o
progenitor do mesmo sexo surgicomo rival na afeição do progenitor do
sexo oposto (EAGLETON, 2003, p.214).
Freud ainda afirma que a superação do “complexo de Édipo” ocorrerá quando o
menino sentir a ameaça de castração pelo pai e, identificando-se com esse, assumir o papel
simbólico de masculinidade empurrando o seu desejo proibido pela mãe para a ilegalidade
do inconsciente e tornando-se, na vida consciente, o patriarca de uma nova família.
Observando a relação existente entre Amália e António santarenianos, podemos
dizer que nessas personagens uma clara referência ao “complexo de Édipo” teorizado
por Freud, pois, como vimos, a união desse casal é uma amálgama de desejos sexuais e
sentimentos materno-filiais. Porém, salientamos que, como António ainda não conhecia
Amália, o crime de assassinato por ele cometido contra o pai o fora movido pelo ciúme,
mas sim porque António “não podia agüentar mais aquele ódio” (SANTARENO, v.2, 1988,
p. 33) que José lhe demonstrava no primeiro encontro.
Antes de compreendermos o caso clínico edipiano de António a ser analisado neste
divã dramatúrgico criado por Bernardo Santareno, compreendamos o caso clínico Amália: a
54
mulher que agoniza por sentir a hybris de ter cometido o pecado de renegar o próprio filho
e que deseja, como fiandeira do seu próprio destino, ter o livre-arbítrio de regenerar-se
desta escolha feita no passado.
Para isto, salientamos que ao sonho de Amália e ao tom maternal que essa usa para
falar com António, Bernardo Santareno adiciona em seu texto marcas temporais e de
cenário que reforçam a idéia de que a peça em questão constrói uma tentativa de
regeneração psíquico-católica dessa mãe santareniana.
Quanto às marcas temporais colocadas na peça, destacamos dois momentos que se
referem à possível regeneração através de um “novo nascimento do menino António.
Evidenciamos, primeiramente, que Santareno distanciou em três meses o assassinato de
José ao primeiro encontro de Amália com Antônio, sendo que, se somarmos a estes três
meses o tempo de seis meses (transcorridos do casamento de Amália e António até a
descoberta de que eles são, na verdade, mãe e filho), teremos um dramaturgo a construir
temporalmente os nove meses de uma estranha e nova gravidez. Além disso, o segundo ato
da peça santareniana transcorre na noite de Natal, noite não a lembrar o nascimento de
Cristo, mas também, na peça em questão, a marcar o momento em que a mãe Amália traz
para o seio de sua família (sem ainda saber, mas a pressentir) o filho que havia sido
renegado (possibilitando-lhe, portanto, um novo nascimento).
Quanto à marca de cenário que pode comprovar que Amália deseja tecer o caminho
de trazer de volta o filho banido, evidenciamos que o terceiro ato da peça santareniana terá
a seguinte imagem principal:
Sol-poente: far-se-á incidir sobre o anel de corda (donde, neste ato, pende
apenas um pano de seda escarlate, longo, a rasar o pavimento) um foco de
luz vermelha. Pretende-se assim sugerir o laço forca que serviu a Jocasta,
na tragédia de Sófocles, para consumar o seu suicídio (ibidem, p. 67).
55
Nessa rubrica, a explicar o cenário do terceiro ato, Bernardo Santareno explicita que
o laço da forca a pender sobre Amália tem como paradigma o laço que Jocasta utilizou para
cometer suicídio (ou como escrevera Sófocles, “a corda laço retorcido” (SÓFOCLES, 1990,
p.86) que estrangula Jocasta), porém, apesar de o dramaturgo português não ter explicitado,
o pano de seda escarlate que pende do laço e rasa o pavimento pode nos trazer a imagem de
um sangue que sairia do útero materno e concretizaria o (re)nascimento do filho António.
A lembrança é pertinente, pois, no final do segundo ato, António, infantil, diz a
Amália:
Tenho certeza que não é de agora a tua voz... Ouvi-a muitas vezes, antes de
te ver, Amália! Muitas vezes, muitas, muitas... escondida, como um fio de
água clarinha, no fundo da fala de outra gente, ou no vento, ou no mar (...)
era ela, era a tua voz, Amália! E eu ficava todo a tremer, alagado em suores
frios, com um gosto a sangue na boca (...) (SANTARENO, v.2, 1988, p.
64).
Ou seja, se interpretarmos as palavras de António como se elas pertencessem a
símbolos psicológicos, teríamos que esse sente a voz de Amália a falar-lhe pelas águas de
sua vida: pela água clara do líquido amniótico em que ele habitava quando feto, pela água
vento do tempo que o levou para longe de sua mãe, pela água mar de seu inconsciente que
lhe trouxera novamente à presença daquela que o gerou.
Além disso, o gosto passado de sangue na boca de António e o pano vermelho que,
no presente, sai do laço e rasa o palco no terceiro ato da peça poderiam simbolizar o
nascimento e o renascimento do filho de Amália.
Dessa forma, ao invés de utilizar a corda-forca para punir-se do erro, Amália, uma
Moira a tecer os próprios fios de sua existência, fará sair de seu útero não o pano de lã ou
cânhamo que marca os homens infelizes, mas sim um pano de seda escarlate e um homem
56
com “mãos de seda fina” (ibidem, p. 69). Homem cuja existência poderá ser, após ter tido o
amor materno-edipiano de sua mãe, feliz.
Porém, apesar de ter utilizado o livre-arbítrio católico na tentativa de regenerar-se e,
em um novo nascimento, possibilitar uma nova chance de felicidade a seu filho, Amália,
porque fez a regeneração através da carne e não do espírito, realizou uma escolha que não
será aceita pela sua sociedade católica.
Para melhor compreendermos a não aceitação da escolha de Amália, é necessário
que examinemos o pensamento do filósofo que primeiro teorizou acerca do livre-arbítrio:
Santo Agostinho.
Entre 394 e 395 da era Cristã, Santo Agostinho terminou a obra intitulada O Livre-
arbítrio. O texto patrístico em questão tem como tema exortar a bondade divina de ter
concedido ao homem a capacidade de decidir seus caminhos; além disso, observando a
existência do mal na humanidade de sua época, Agostinho tamm quer provar que, mesmo
quando o ser humano escolhe o caminho errôneo, o mal nasce desse ser e não de Deus que
lhe concedeu a chance de pecar e que o castigará pela falta cometida.
No capítulo 18 da terceira parte do referido texto, dentre as razões a explicar o
porqda escolha errônea feita pelo homem, o filósofo salienta que a expulsão de Adão e
Eva do Paraíso já mostrou “(...) a natureza corpórea ser de grau inferior à natureza
espiritual.” (AGOSTINHO, 1995, p. 135). Além disso, acrescenta Agostinho,
(...) quando a vontade esse bem médio adere ao Bem imutável, o qual
pertence a todos em comum, e o é privativo de ninguém, (...) quando a
vontade adere ao Sumo Bem, então o homem possui a vida feliz.” (ibidem,
p. 140).
Aplicando os ensinamentos de Agostinho ao texto santareniano, teremos que o povo
de Alfama, tal qual o pensamento agostiniano, condena Amália porque vê nela uma mulher
57
cuja natureza espiritual sucumbiu à natureza corpórea ao aceitar António como esposo.
Além disso, por ter praticado o pecado de incesto, Amália deve ser castigada pela falta
cometida, pois seus atos foram contrários ao que poderia ser designado como “Bem
imutável”. Por fim, acrescentamos que os habitantes de Alfama exigem que ela cometa
suicídio e mostre, dessa maneira, que aderiu, ao punir-se com a privação da vida, ao que
acreditam ser o “Sumo Bem” pregado pelo catolicismo.
É pertinente ainda trazermos a esta análise um outro pensamento agostiniano que
será de suma importância para compreendermos este povo que condena os atos de Amália:
a teoria da predestinação.
Santo Agostinho ensinou que Adão, antes da queda, tinha livre vontade e
teria podido abster-se do pecado. Mas como ele e Eva comeram a maçã, a
corrupção entrou neles e passou a toda a sua descendência, de modo que
ninguém, pelos próprios poderes, pode abster-se do pecado. (...) Mas, pela
livre graça de Deus, certas pessoas (...) são escolhidas para ir para o céu;
estes são os eleitos. Não vão para o céu porque são bons; todos s somos
inteiramente depravados, exceto quando a graça de Deus, que só é
concedida aos eleitos, nos permite ser de outra maneira. Não se pode dar
nenhuma razão que explique o fato de alguns serem salvos e o resto
condenado; isso é devido a uma escolha de Deus sem motivo algum. A
condenação é uma prova da justiça de Deus; a salvação, de Sua
misericórdia. Ambas revelam a Sua bondade. (RUSSEL, 1957, p. 69)
31
.
O pensamento agostiniano anteriormente exposto acaba por nos denunciar uma
proximidade entre o homem sujeito aos deuses trágicos e aquele que essujeito ao Deus
católico. Apesar de o homem católico ser dotado da categoria de vontade que faltaria ao
primeiro, não depende de suas decisões ele estar ou não entre os eleitos para a salvação (ou
seja, os atos do homem católico são por ele realizados, porém Deus já sabe qual é o destino
que a cada homem cabe).
31
Salientamos que essa teoria da predestinação invalida o livre arbítrio e, por ser considerada herética, foi
combatida pelo pensamento ortodoxo da Igreja.
58
Nesse sentido, é possível entender a fala dita por Amália em tom de “rugido feroz”
nos momentos finais da peça:
Pois então não sabe?! Deus sabe tudo, tudo!, diz você muito bem. Até sabia
ora, como a gente sabe que temos cinco dedos em cada mão, e dois beiços
na boca... , até sabia quem era este homem (indica António que se
contorce agonicamente) que me queria tomar por mulher! A sabia que...
(no vértice da tragédia, horrível, as mãos enclavinhadas no ventre;
aproximando-se de Rosa que, com receio e o espanto, tinha recuado) que eu
ia casar-me com meu próprio filho (SANTARENO, vol.2, 1988, p. 100).
Cabe a esse momento da análise compreendermos a primeira peripécia trágica que
Bernardo Santareno coloca em António Marinheiro: Amália acreditava em um livre-arbítrio
que a levaria à regeneração (ou seja, sem o saber, ela possuía uma religiosidade mais
próxima do humanista Pico della Mirandola); porém, o Deus de sua sociedade portuguesa
revela-se, agostinianemente, como um Deus que, apesar de oferecer a livre vontade aos
seres humanos, já os destinou à condenação ou à misericórdia.
Além disso, podemos também compreender a anagnórisis trágica que vem à
consciência de Amália quando ela corre para mirar-se no espelho de sua casa (e
indiretamente no que havia habitado seus sonhos): olhando para o seu reflexo trágico, ela
observa que “não mudou nada, nada” (ibidem, p. 99).
Sendo assim, podemos concluir que apesar de a Amália ter sido concedido o dom de
desenrolar o fio de sua própria vida, o Deus católico (de feição agostiniana), enquanto a
observava tentando regenerar-se do pecado cometido, já sabia, como os deuses gregos da
Antigüidade já sabiam acerca de Jocasta, que ela estava condenada à infelicidade.
Porém, servindo-se novamente do mecanismo da peripécia, o dramaturgo Bernardo
Santareno mostraque, por serem iguais, nem o pensamento trágico da antiguidade grega
nem o do catolicismo punitivo é o que guia as ações finais de seus heróis: Amália escuta os
apelos de ajuda de seu filho e, entre a cegueira trágica da vergonha a que António se propõe
59
e a morte clamada pelos habitantes de Alfama, escolhe dar a seu descendente e a si mesma
uma nova manifestação de vontade.
Ao fim do enredo, o desejo de vida é o que prevalece. Amália pede que os olhos
verdes de Rui levem Antônio de volta ao mar. Ela, por sua vez, viverá sabendo que
possibilitou uma chance de felicidade a Antônio, mas, em uivo de cio que manifesta a dor
da perda, mostra ter ainda em si desejos carnais pelo próprio filho.
Observemos, nesse momento da análise, o “caso clínico” edipiano de António
Marinheiro para melhor compreendermos o final escolhido por Bernardo Santareno.
Nascido em Alfama, um bairro de Lisboa, a personagem de António volta à sua
terra de origem para ser o agente perturbador a romper o equilíbrio instável que seria o
casamento de Amália e José. Nesse sentido, ao matar José e ao unir-se maritalmente a
Amália, António não somente revive a situação-chave da obra sofocliana, mas também
possibilita que Amália tenha a felicidade matrimonial e maternal que até então lhe fora
negada.
Além disso, ao cometer o crime de incesto, António acaba por ser um homem que
passa a viver em sua realidade o desejo que muitos tiveram em seu inconsciente: o de
“subir ao leito materno” (SÓFOCLES, 1990, p. 67). Sendo assim, regido pelo que Freud
denominaria, no século XX, de “princípio do prazer”, António tem no corpo de Amália o
aconchego maternal que teria um filho e, somada a esta satisfação, experimenta o desejo
carnal pertinente a uma sexualidade masculina já presente.
Acrescentamos ainda que, segundo o psiquiatra austríaco Sigmund Freud, dentre os
processos psicanalíticos que determinam a sexualidade do indivíduo, a superação ou não do
“complexo de Édipo” é o mais importante deles. Nesse sentido, salienta Freud, após
60
empurrar o desejo proibido pela mãe para o inconsciente, o menino terá no pai seu modelo
e, sendo assim, estará apto para assumir o papel masculino em uma nova família; porém,
(...) se o menino é incapaz de superar com êxito o complexo de Édipo, pode
ficar sexualmente incapacitado para esse papel: pode favorecer a imagem
da mãe acima das outras mulheres, o que para Freud pode levar à
homossexualidade (...) (EAGLETON, 2003, p.215).
Na peça santareniana, a relação entre António e Rui é permeada de referências
homossexuais. No primeiro ato, ao ver a proximidade entre António e Amália, Rui tem uma
“expressão crescente de náusea, de ironia ciumenta” (SANTARENO, v.2, 1988, p. 37).
Além disso, no segundo ato, António confessa que Rui era seu modelo ideal de conduta e,
quando ouve o assobio do amigo fica primeiramente exuberante” (ibidem, p.65) para,
posteriormente, movido por uma tentativa de não ceder a um passado libertino, pedir que
Amália seja sua mulher. Por fim, no terceiro ato, duas atitudes de Rui devem ser
salientadas. A primeira, ele sente um misto de “desprezo, ódio, ciúme” (ibidem, p.77) pela
união de Amália e António. A segunda, ele manifesta “uma alegria ferozmente livre”
(ibidem, p.101) quando percebe que o companheiro não pode pertencer ao mundo dos bons
e honestos, pois é, como ele, um enjeitado (aos quais cabe encontrar somente na lascívia da
prostituição e das drogas a felicidade que lhes é possível).
Observamos ainda que, apesar de a peça Édipo Rei não fazer referência ao
homossexualismo, esse é um elemento extremamente importante na história mitológica
grega da família de Édipo. Segundo a mitologia o pai de Édipo, Laio, ao tornar-se adulto,
desviou seu “comportamento erótico através de uma homossexualidade excessiva”
(VERNANT, 1999, p.183) que levou o jovem Crisipo a cometer suicídio; Pélops, mãe de
Crisipo, ao ver o filho morto, pediu aos deuses que maculassem a descendência de Laio;
61
sendo assim, a Laio foi imposta a pena de não ter filhos e, se os tivesse, de que seu
descendente cometesse o crime de parricídio e de incesto com a mãe.
Contudo, se Sófocles escolheu retirar de sua fábula a homossexualidade de Laio
(provavelmente porque esta não acrescentaria ao “todo” de sua ideologia de que os homens
devem ser subservientes aos deuses), Bernardo Santareno, ao trazer ao enredo de seu texto
trechos que ligam António a uma tendência homossexual, não o faz de modo que esse fato
acrescente ao entendimento do enredo.
Lembramos que no enredo santareniano, a separação de António e Amália ocorreu
por duas vezes. Na primeira, Amália entrega o filho para sua mãe abandoná-lo, pois essa a
convencera de que a sociedade católica de seu bairro não aceitaria uma mulher que tivesse
relacionamentos sexuais com um homem casado (como o era José). Na segunda, Amália
pede que Rui leve Antônio para longe, pois a sociedade exige, como expiação do pecado
carnal cometido, que ambos sejam mortos. Nos dois momentos, portanto, a separação entre
Amália e António não tem um mesmo enfoque. No primeiro momento a mãe renega o filho
por vergonha de ter gerado um bastardo. No segundo ela, regenerada do pecado de
abandono, o protege da pena de morte que a sociedade católica lhe quer impingir por ter
cometido os pecados de parricídio e incesto.
Sendo assim, a possível tendência homossexual que António tivera no passado não
pode ser proveniente, como o seria se aplicássemos a teoria freudiana diretamente à peça
santareniana, da proximidade amoroso-sexual entre filho e mãe. Outrossim, no futuro, a
união entre António e Rui não significa que Amália entregou o filho para um
relacionamento homossexual, abdicando dele como mulher, mas sim que ela viu em Rui o
único modo de o filho conseguir se afastar daquela sociedade católico-punitiva.
62
Lembramos ainda que Bernardo Santareno frisa, através das rubricas e das próprias
falas de Amália, que tanto Rui quanto o almur possuem olhos verdes. Além disso,
recordamos, mais uma vez, que a cor verde simboliza, não a mediação entre o azul do
Céu e o vermelho do Inferno, mas também a renovação da natureza. Desse modo, como
Bernardo Santareno não coloca em seu enredo qual seria o futuro de António, podemos
presumi-lo segundo os símbolos inseridos na peça. Por seguir os olhos verdes, Antônio te
seu livre arbítrio de escolher não entre o Céu e o Inferno católicos, mas também, e
principalmente, entre continuar com os pré-conceitos que sua sociedade católica quer
impingir-lhe ou renovar sua natureza. Essa renovação significaria escolher o caminho que
melhor lhe aprouver, mesmo que esse seja voltar a viver “no meio da desordem e com
gente suja e reles (...) com os gatunos, mulheres da vida, tipos com vício da morfina...”
(SANTARENO, 1988, v.2, p.60).
Salientamos ainda que o pensamento da sociedade portuguesa e de Bernardo
Santareno diferem quanto às personagens Amália e Antônio. Para a sociedade católico-
punitiva portuguesa, representada no texto pelos habitantes de Alfama, a Amália e ao filho
nunca será dada uma chance de regeneração. Para Bernardo Santareno, entretanto, Amália
terá o direito de expressar sua vontade de mudança: ela escolhe separar-se do filho e,
mesmo que sinta o desejo sexual por ele, permite que Antônio tenha, com míticas mãos de
seda, um futuro passível de felicidade.
Podemos agora, ao findar a análise de mais essa peça, desenhar outras linhas a
construírem o perfil religioso do dramaturgo português Bernardo Santareno.
Primeiramente, podemos dizer que Santareno revela, através do enredo de António
Marinheiro (o Édipo de Alfama) que o Deus do catolicismo, ao contrário dos deuses
pagãos, concede ao homem o dom do livre arbítrio. Porém, observa o dramaturgo, se a todo
63
homem católico existe a possibilidade de exercer sua vontade, somente alguns acreditam
que essa poderia influenciar o destino que terão. Sendo assim, no enredo dessa peça,
Bernardo Santareno traz à lume um povo português que, apesar de cultuar um mesmo Deus,
pode ser dividido em duas crenças: enquanto alguns católicos, por pertencerem a uma
crença mais punitiva (à feição do pensamento de Santo Agostinho), acreditam que a
vontade humana confirma a predestinação ao Céu ou ao Inferno; outros, por pensarem
de maneira mais humanista feição de Pico della Mirandola), crêem na capacidade de
regeneração ou degeneração do ser humano.
Nesse sentido, podemos melhor compreender a oposição trágica apresentada a
Amália, heroína da tragédia santareniana: enquanto a sociedade católica portuguesa
Amália como uma mulher cujos atos confirmam sua predestinação ao sofrimento, ela (e o
próprio dramaturgo), por acreditar em um Deus mais piedoso, crê que, apesar de pecadora,
possuiria (e possuirá) a capacidade de regenerar-se e, portanto, de mudar o destino de
infelicidade que lhe fora impingido.
Acrescentamos aqui que Arnold Hauser, ao teorizar acerca do motivo da
inexistência da tragédia na época medieval, grifa que,
(...) na Idade Média, ser um herói trágico envolveria ser um declarado
oponente de Deus e entrar em conflito com a ordem por ele estabelecida.
Mas nessa época, embora houvesse diferentes graus de distância d´Ele, algo
semelhante a um conflito direto com Ele era inconcebível. (HAUSER,
1993, p.106).
Podemos somar a esse pensamento de Hauser a informação de que, na época
teocêntrica medieval, a crença que o ser humano possuía em seu Deus tinha como princípio
que Ele, ser soberano, independente da felicidade ou da infelicidade vivida pelos mortais, é
sempre um ser justo.
64
Bernardo Santareno, porém, dramaturgo do século XX, observa que o pensamento
teocêntrico medieval, apesar de ainda persistir em Portugal, não pode mais impossibilitar a
existência da tragédia, pois, se a sociedade ainda acredita nesse Deus que predestina
determinados indivíduos à infelicidade, cabe ao dramaturgo revelar tragédias cujos atos das
personagens colocam em questão se a ordem que foi estabelecida é realmente justa.
Dentre as tragédias que poderiam ser contadas (ou recontadas), Bernardo Santareno
trouxe a António Marinheiro (o Édipo de Alfama) a fábula do incesto cometido entre mãe e
filho, pois essa traria a seu texto não somente um diálogo dramatúrgico entre a tragédia
grega e a tragédia santareniana, mas também um diálogo psiquiátrico entre o “complexo de
Édipo” teorizado por Freud e o caso português de uma mãe e de um filho a viverem um
relacionamento maculado pelo pecado.
No campo da dramaturgia, o autor português revelou pensar que o Deus cultuado
pelo seu povo é tão punitivo quanto aquele da tragédia grega. Porém, ao contrário de
Sófocles, que dá aos deuses o triunfo integral, Santareno mostra que duvida do que chamam
de justiça divina. Criando uma Amália (sua Jocasta intertextual) cujos atos são sempre
movidos, mesmo que inconscientemente, para a regeneração do pecado de ter abandonado
o próprio filho, o dramaturgo português acaba por clamar por um Deus no qual existisse o
sentimento de perdão.
No campo da psiquiatria, novamente o pecado carnal é o que faz as personagens
santarenianas agonizarem. Nesse sentido, podemos dizer que a formação psiquiátrica de
António Martinho do Rosário aproxima-se não do pensamento freudiano da existência
do desejo carnal incestuoso, mas também da idéia defendida por Freud de que todos os
distúrbios emocionais o ocasionados pelas repressões sexuais a que o ser humano está
65
sujeito (ou, como preferiria o psiquiatra austríaco: “todas as neuroses têm uma origem
sexual” (SARTRE, 2005, p. 204)).
Além disso, acrescentamos, Santareno traz ao seu texto uma discussão Naturalista,
pois a personagem de Amália sente um intenso desejo sexual por Antônio mesmo depois de
saber que ele é seu filho. Salientamos que esse tipo de pensamento será mais trabalhado na
análise de O inferno e dele falaremos, então, posteriormente.
Sendo assim, cabe neste momento do trabalho concluirmos novos traços a Bernardo
Santareno. Como ser religioso, apesar de ter nascido em uma sociedade que cultua um Deus
católico punitivo, Santareno acredita que suas personagens (podemos dizer, também seu
povo português e ele mesmo) têm o livre arbítrio de escolher um novo caminho: o de
encontrarem um Deus mais piedoso e que possa aceitar o homem não como eterno pecador,
mas sim como ser passível de regenerar-se ou degenerar-se conforme exijam as neuroses
que possuam.
Salientamos ainda, para termos uma conclusão mais completa, que o enredo de
António Marinheiro nos possibilita ver um Santareno a revelar, na construção da
personagem de Rosa, a hipocrisia de sua sociedade portuguesa.
A princípio, o casamento de Rosa pareceria ser o retrato do que fora, no passado, o
de Amália, pois Rosa sofre por causa do marido (que prefere a taberna à sua companhia),
mas não se separa desse que nessa união o seu fado e “cada qual é pro que nasce...”
(SANTARENO, v.2, 1988, p. 44). Posteriormente, porém, a relação de Rosa e do marido é
utilizada como exemplo para que Amália se aproxime sexualmente de António. Nesse
sentido, Rosa explica a Amália que a sexualidade é o que traz a união ao casal e, sendo
assim, Amália deve procurar nos homens não somente os “beicinhos de criança” (ibidem, p.
47) que esses podem lhe dar, mas também, e principalmente, alguém que “se apanha a jeito
66
uma fêmea que lhe agrade, trepa por ela acima, que nem um foguete! (ibidem, p.47). No
final do enredo, porém, Rosa (que entra na casa de Amália procurando ajuda, pois levara
uma surra do marido), quando fica sabendo das faltas cometidas pela amiga, abstém-se de
socorrê-la fingindo não sofrer das mesmas agonias sentidas por Amália.
Podemos observar que, no findar de tudo, Rosa mostra um Portugal a louvar uma
virtude que não existe em seu povo. Nesse sentido, lembramos ainda que, tanto em A
promessa quanto em António Marinheiro (o Édipo de Alfama), as velhas da aldeia e do
bairro de Lisboa exigem, respectivamente, de Maria e de Amália uma pureza religiosa que
elas mesmas não possuem, pois, após condenarem o pecado das personagens santarenianas,
elas utilizam bruxarias, prática condenável pela Igreja católica, para renegarem as
pecadoras.
Observamos, contudo que, após o término da análise de António Marinheiro (o
Édipo de Alfama), algumas personagens ainda permanecem ambíguas ao entendimento. São
elas: Rui e Bernarda.
A personagem Rui mostra, como já observamos, o mundo promíscuo a que António
pertencia antes de (re)encontrar a mãe Amália. Porém, a ambigüidade acerca do
relacionamento sexual entre Rui e António acaba por não permitir qualquer conclusão que
mostre se o pensamento do psiquiatra António Martinho do Rosário a respeito da
homossexualidade é semelhante ou não ao pensamento freudiano, para quem a
homossexualidade é fruto, principalmente, da não superação do complexo de Édipo”.
Salientamos, porém, que como o próprio Bernardo Santareno era homossexual (fato que
pode ter ocasionado a ambigüidade acerca desta questão), este tema é bastante freqüente na
sua dramaturgia. Sendo assim, na análise de O inferno voltaremos a discutir quais seriam,
67
segundo o psiquiatra António Martinho do Rosário, as possíveis causas para essa
“inversão”
32
sexual.
Quanto à personagem Bernarda, a ambigüidade desta não nasce no enredo, mas sim
no nome que lhe foi dado. Recordamos que o dramaturgo portugs explicou ter escolhido
para si o pseudônimo de Bernardo dizendo que este nome lhe era místico. Em António
Marinheiro, porém, o mesmo dramaturgo concedeu o feminino deste nome a uma mulher
que é ligada ao passado medievo-religioso português e que, por isso, culpa a filha por ter
ficado grávida de um homem casado, por sentir felicidade conjugal no segundo casamento
e pelo incesto cometido. Além disso, quando os habitantes do bairro exigem que Amália
cometa suicídio, Bernarda, concordando com eles, “nebulosamente aceita o sacrifício”
(ibidem, p.106). Sendo assim, ao criar uma personagem de conotação negativa e denominá-
la de Bernarda, Santareno acaba por ser incoerente com o motivo que ele mesmo dera para
escolher seu pseudônimo.
Acrescentamos ainda que, ao denominar o escritor com o pseudônimo de Bernardo,
o dramaturgo português retirou de si um nome que aparece nas duas peças até agora
analisadas: António. Observamos que tanto em A promessa, quanto em António
Marinheiro, o António ficcional é a personagem cuja presença perturba o equilíbrio
instável que seria a vida em família de Maria e de Amália. Sendo assim, o nome António
(Labareda e Marinheiro) acaba por representar indivíduos que propiciam uma nova
consciência nas personagens santarenianas: a de que o ser humano não é feito somente de
espírito, mas também de carne e de desejos que foram empurrados ao subconsciente. Desse
32
A nomenclatura “invertido” é utilizada por Freud para denominar os homossexuais no livro Três ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Na referida obra, Freud observa que existem três tipos de invertidos:
os invertidos absolutos (que têm por objeto sexual só as pessoas do mesmo sexo), os anfigenos (que vêem
tanto as pessoas do mesmo sexo quanto as do sexo oposto como objetos sexuais) e os invertidos ocasionais
(que, em certas condições externas, dentre as quais a inacessibilidade do objeto sexual normal, tomam como
parceiro pessoas do mesmo sexo).
68
modo, na dramaturgia santareniana até agora estudada, o autor português parece ter criado,
no dipsiquiátrico construído por sua escrita, um novo sentido para a denominação que
lhe fora escolhida por seus pais.
I.2.2.3- A traição do Padre Martinho: o homem cristão e o homem comunista.
Diferentemente das outras peças de Bernardo Santareno, A Traição do Padre
Martinho, escrita em 1969, não teve sua estréia em palcos portugueses, mas sim, no ano de
1970, no palco estrangeiro de um país comunista: Cuba.
O motivo de tal “mudança de cenário” justifica-se uma vez que a peça em questão é,
como veremos na análise, um texto a revelar não somente um autor contrário ao
capitalismo vigente em Portugal, mas também um autor a discutir se um homem religioso
pode estar próximo, em suas ações, das idéias comunistas.
Observemos resumidamente o enredo do texto em questão para melhor
compreendermos as idéias religiosas e políticas de Bernardo Santareno.
Um padre, amigo dos operários e dos camponeses, homem que bebe e trabalha com
os mais humildes como se estes lhe fossem iguais, recebe de seus superiores eclesiásticos a
ordem de deixar sua paróquia.
Forma-se então um conflito no pequeno vilarejo de Cortiçal. Este não é somente a
manifestação dos aldeões contra a transferência do padre Martinho, mas também, e
principalmente, um ato de coragem dos mais pobres que, através dos ensinamentos
pregados pelo padre, conscientizaram-se de que são capazes de lutar contra as injustiças
perpetradas pelos poderosos (membros do clero, Lavrador e Engenheiro).
69
Os representantes da Igreja, para justificarem seus atos, explicam que a
transferência de Martinho é necessária pois ele “(...) paroquiou esta terra como se não
houvesse hierarquia” (SANTARENO, 1973, p.24) e (...) transformou os homens de
Cortiçal, dantes mansos e humildes de coração, trabalhadores e obedientes, nessa alcatéia
de lobos insaciáveis e capazes de todas as torpezas...! (ibidem, p.82).
Martinho, que em seus sermões prega por uma “Terra oferecida a todos e não
apenas aos ricos” e por homens que sejam contrários à “escravatura mascarada” (ibidem, p.
10), afirma que “ser cristão não é sinônimo de ser defensor da ordem estabelecida” (ibidem,
p.26). Além disso, para convencer os membros da Igreja de que suas idéias são verdadeiras,
Martinho cita outros que, como ele, lutaram pelos mais humildes: homens santificados
pela própria Igreja (dentre esses, os papas Paulo VI e João XXIII, Santo Ambrósio e o
próprio Cristo) e homens por ela combatidos (principalmente o comunista Marx).
O Vigário, os Padres-secretário e o Bispo não aceitam como verdadeiras as
argumentações do padre Martinho e, por isso, continuam a exigir que ele seja desligado da
paróquia de Cortiçal.
Martinho, apesar de não compactuar com o ponto de vista de seus superiores, quer
acatar a ordem destes. Porém, os ensinamentos que o padre plantara em sua comunidade
haviam modificado o povo de Cortiçal que, unido em uma mesma luta, exige ter o direito
de escolher o pároco do vilarejo.
A pequena luta do vilarejo de Cortiçal coma a ser discutida pelos homens do
governo e estes aliados à Igreja, ao Lavrador e ao Engenheiro decidem fazer valer sua
opinião através da violência armada.
As rubricas trazidas ao texto, narram os atos de carnificina a serem encenados:
70
Ouve-se uma descarga de muitos tiros. A maioria dos alvejados atira-se
para o chão; outros correm descontrolados, cruzam-se, chocam-se. Gritos,
lamentos, uivos de dor dos feridos. Caído sobre o lote central das escadas,
bem visível para os espectadores, está o corpo morto de Rosa: Tem os olhos
muito abertos e os lábios afastados num sorriso. À frente, no primeiro
plano, outra mulher morta: Maria Parda. Ti Anica corre para Rosa e chora
convulsivamente, agarrada ao cadáver. Silêncio gélido, cortado pelo
badalar dos sinos e pelo pranto da Ti Anica e das mulheres, pelos
queixumes dos feridos. Entre estes braços e pernas uma cabeça
selvaticamente ensangüentada (...). Foco de luz sobre a casa do pároco: O
Padre Martinho (...) está de joelhos no meio do estrado, o rosto entre as
mãos, chorando horrorizado. (ibidem, p.167).
Após presenciar esta cena trágica, segundo o narrador da peça, Martinho teria
deixado o povoado para um futuro que nos será desconhecido. O próprio narrador, porém,
apesar de não saber ao certo o destino de sua personagem principal, depois de falar dos
diversos caminhos que poderia ter trilhado Martinho, julga como o mais verossímil que este
tenha se “despadrado” para poder continuar, como homem, sua luta ao lado dos que são
vítimas das injustiças sociais.
O breve resumo do enredo nos permite observar que a peça A traição do Padre
Martinho retrata dois embates que, apoiados em um mesmo eixo, objetivam discutir o
possível futuro de um homem português: Martinho.
Um dos embates é aquele cujos oponentes são duas facções da Igreja, uma
vinculada aos poderosos e a outra, representada por Martinho, mais próxima das
necessidades do povo. Complementar e paralelo ao primeiro embate, o segundo tem como
oponentes os proprietários dos meios de produção e os proletários. Ligando esses dois
“enfrentamentos” (e sustentando o cerne da peça) encontramos a discussão de como uma
idéia religiosa próxima a uma idéia política pode influenciar a escolha de uma personagem,
de um narrador e, com os votos desse (e do próprio dramaturgo Bernardo Santareno), de
uma nação que deve se empenhar em uma luta revolucionária.
71
Iniciamos nossa análise observando que Santareno, ao enfocar o embate entre as
duas facções da Igreja, traz a seu texto um fato histórico-religioso importante: o Concílio
Ecumênico Vaticano II.
Convocado pelo Papa João XXIII em 1962, este Concílio estendeu-se até 1965,
quando, já sob o papado de Paulo VI, foi concluído. Dentre as principais mudanças
advindas deste Concílio citamos que, a partir dele, alguns membros da Igreja declaram-se
formalmente pertencentes a uma instituição que deveria voltar-se não somente para a fé dos
indivíduos mais necessitados, mas também, e principalmente, para as realidades
econômicas, políticas e sociais a que estes estavam sujeitos
33
.
Na peça santareniana, existe somente uma referência direta ao Concílio em questão,
porém, esta nova idéia de Igreja por ele transmitida está presente, como veremos a seguir,
tanto nas citações que os membros do clero fazem das palavras dos papas que orientaram
esta assembléia católica, quanto nas idéias que Martinho faz de como deveria ser seu
sacerdócio.
No início do primeiro ato, Martinho afirma: “Ser cristão não é sinônimo de ser
defensor da ordem estabelecida. É esta a verdade conciliar.” (ibidem, p.26).
O Vigário, porém, indignado com a menção do Concílio, contesta o padre:
Ora já cá faltava o concílio. (...) O concílio serve de capa a todas as
tonterias, inseguranças e vaidades dos sacerdotes que, como o senhor, não
amam a hierarquia da Igreja, não querem ou não sabem adaptar-se e viver
num edifício que levou dois mil anos a levantar. (ibidem, pp. 26 - 27).
O diálogo retratado salienta um fato que será objeto de discussão em todo o enredo
desta peça santareniana, a existência de dois pensamentos antagônicos dentro de uma
33
Acrescentamos ainda que, no Concílio Vaticano II, a Igreja deliberou que a liberdade religiosa deveria
existir e que, a fim de propiciar o entendimento universal da palavra divina, as escrituras canônicas deveriam
ser traduzidas em vernáculos de diversos países.
72
mesma Igreja. De um lado, temos o pensamento do Vigário que defende a manutenção do
milenar “edifício” sólido que une o clero aos poderosos. Do outro lado, temos o padre
Martinho e, segundo este, alguns membros do Concílio que, observando a miséria a que
está sujeito o povo, desejam uma Igreja que lute pelos mais necessitados, mesmo que para
isto tenha que mudar uma hierarquia social existente.
Ainda no primeiro ato, este antagonismo existente na Igreja reaparece quando o
padre Martinho se reúne com o Bispo para discutir o papel do sacerdote e da Igreja frente
aos mais humildes. Neste momento do enredo, Santareno traz a estas personagens palavras
ditas pelos dois papas que, consecutivamente, dirigiram o Concílio Vaticano II: João XXIII
e Paulo VI.
Inserindo em seu discurso a carta Encíclica
34
Mater et Magistra, escrita por João
XXIII, Martinho diz ao Bispo: “Vivemos num país em que (...) às condições de extrema
miséria de muitíssimos se opõe, em gritante e ofensivo contraste, a abundância e o luxo
desenfreado de poucos privilegiados.”
35
(ibidem, p. 39).
João XXIII exerceu seu papado do ano de 1958 até 1963, sendo que a Encíclica em
questão foi escrita em 1961, um ano antes, portanto, do Concílio Vaticano II.
Tendo como objetivo discutir a questão social à luz da doutrina cristã, João XXIII,
na Introdução desta carta eclesiástica, salienta que o Cristianismo, como doutrina a unir o
34
Todos os trechos relativos às Encíclicas aqui referidas serão citados conforme estão na peça santareniana.
Assim o faremos, pois, na maior parte das vezes, o dramaturgo português Bernardo Santareno traz a seu texto
a citação exata da tradução divulgada pelo Vaticano. Porém, quando a tradução utilizada por Santareno for
diferente da tradução divulgada pela cúria romana, como ocorre neste momento, acrescentaremos, nas notas
de rodapé, os trechos conforme constam no sítio virtual oficial do Vaticano (www.vatican.va) acessado em
20/04/2006.
35
Mas, em alguns desses países, a abundância e o luxo desenfreado de uns poucos privilegiados contrasta, de
maneira estridente e ofensiva, com as condições de mal-estar extremo da maioria; noutras nações obriga-se a
atual geração a viver privações desumanas para o poder econômico nacional crescer segundo um ritmo de
aceleração que ultrapassa os limites marcados pela justiça e pela humanidade; e noutras, parte notável do
rendimento nacional consome-se em reforçar ou manter um mal-entendido prestígio nacional, ou gastam-se
somas altíssimas nos armamentos” (JOÃO XXIII, § 69).
73
espírito e a matéria, deve preocupar-se tanto com a salvação eterna do homem quanto com
as exigências terrenas dos povos.
Como primeiro argumento a justificar sua idéia, João XXIII observa que Cristo, na
hóstia consagrada, vem aos homens para dar-lhes alimento espiritual, porém, em vida,
querendo saciar a fome de seus seguidores multiplicou os pães para oferecer alimento a
seus corpos.
Como segundo argumento, João XXIII traz a seu texto as idéias de um de seus
antecessores, o papa Lo XIII que, na Encíclica Rerum Novarum, também defendeu os
direitos dos mais humildes. Ao fazer referência a esta Encíclica, João XXIII observa:
Enquanto alguns ousavam acusar a Igreja católica de limitar-se, perante a
questão social, a pregar resignação aos pobres e a exortar os ricos à
generosidade, Leão XIII o hesitou em proclamar e defender os legítimos
direitos do operário. (JOÃO XXIII, 1961, §16).
A Encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891, é fruto de um tempo em que a
acumulão de bens proveniente do capitalismo fez com que surgissem vozes sociais e
econômicas que defendessem o direito do trabalhador. Colocando o trabalho não como
mercadoria, mas sim como expressão direta do ser humano, Leão XIII ataca tanto a
concorrência liberal quanto a luta de classes marxista. Além disso, mesmo defendendo o
direito da propriedade privada, o papa indica, como o melhor caminho para a reconstrução
da dignidade humana, um Estado a intervir a favor dos direitos do proletário com o intuito
de promover a justiça e a eqüidade a todos os homens.
Na segunda parte da Encíclica Mater et Magistra, João XXIII, dizendo ter por
objetivo aclarar e ampliar a doutrina de seu predecessor papal, discute a socialização dos
bens materiais e a remuneração do trabalho. Neste momento de seu texto, o pontífice
reafirma o direito de propriedade privada defendido por Leão XIII, salienta, porém, que
74
(como nos mostra o texto citado por Martinho na peça santareniana) é necessário observar
que em alguns países as desigualdades sociais causam a abundância e o luxo de poucos e a
miséria e privação desumana de uma imensa maioria.
Sendo assim, apoiando-se na Sagrada Escritura e na opinião de Leão XIII, conclui
João XXIII, apesar de o Evangelho considerar legítimo o direito de propriedade privada,
Cristo e a Igreja pedem constantemente aos ricos que repartam seus bens materiais com os
mais necessitados, pois, somente desta forma, ao mesmo tempo em que a fome dos mais
miseráveis diminuirá, os mais ricos alcançarão os bens espirituais necessários para serem
recebidos no reino dos Céus.
Podemos observar que Bernardo Santareno, ao trazer para Martinho a citação de
João XXIII, revela em seu texto a existência de uma Igreja que se preocupa com a extrema
desigualdade entre as classes sociais, pois este antagonismo existente na sociedade do
século XX faz com que uma imensa quantidade de fiéis esteja sujeita a condições de
miserabilidade insustentáveis.
Salientamos, porém, que Santareno não trouxe à boca de Martinho o fato de que
essa nova Igreja, concebida no pensamento de Leão XIII (que ficou conhecido pelo
codinome de “Papa do Proletariado”) e de João XXIII (o “Papa Socialista”), ainda defende
o direito à propriedade e, condenando o socialismo radical e o marxismo, julga que a
eqüidade social deve ser fruto da caridade dos que, monetariamente mais abastados, gerem
o Estado.
A explicação dessa “lacuna” criada por Santareno pode ser entendida ao
analisarmos as citações das idéias do sucessor de João XXIII: Paulo VI.
As palavras de Paulo VI são trazidas à peça não só pela personagem protagonista do
padre Martinho, mas também por uma personagem que lhe é antagonista, o Bispo.
75
Analisemos como os pensamentos desse papa são enfocados no texto santareniano para que
possamos compreender esta cisão do pensamento eclesiástico.
No diálogo entre Martinho e o Bispo é este quem primeiro cita as palavras de Paulo
VI. No princípio da conversa que Martinho tem com seu superior, o Bispo lembra ao padre
que a obediência é a qualidade suprema que um sacerdote deve possuir; dessa forma, se a
Igreja crê ser melhor que Martinho deixe Cortiçal, assim deverá ser feito. O padre
Martinho, porém, acreditando ter lançado “os alicerces duma grande obra cristã” (ibidem,
p.37), apela a seu superior para que este o deixe ficar. Como resposta, o Bispo lembra que
Martinho, mais do que se preocupar com as almas dos fiéis, cuidou dos corpos destes e,
citando Paulo VI, observa:
A arte do apóstolo tem seus riscos. O desejo de nos aproximarmos dos
nossos irmãos não deve traduzir-se numa atenuão ou diminuição da
verdade. O nosso diálogo não pode ser fraqueza nos compromissos com a
nossa fé. (ibidem, p. 38).
Observamos que as palavras citadas pelo Bispo neste momento do enredo foram
retiradas, ipsis litteris, do parágrafo 50 da Encíclica Ecclesiam suam, de Paulo VI.
Escrita em 1964, portanto um ano antes do término do Concílio Vaticano II e cinco
anos antes da publicação de A Traição do Padre Martinho, esta carta pontifícia revela quais
deveriam ser os princípios do corpo eclesiástico na modernidade.
Paulo VI inicia seu texto observando que a Igreja católica deve renovar-se, pois,
devido ao progresso científico, técnico e social e aos novos pensamentos filosóficos e
políticos, alguns de seus membros afastaram-se da verdadeira doutrina pregada por Deus: a
Tradição e as palavras da Sagrada Escritura.
Como exemplo de Tradição, o pontífice invoca o Concílio do Trento para relembrar
aos membros da Igreja que, assim como na Contra-Reforma ocorrida no século XVI, a
76
renovação agora exigida à Igreja não tem como pressuposto mudança, mas sim
confirmação.
Através das Escrituras, Paulo VI prega a seus fiéis os exemplos que devem ser
confirmados pelos homens: o de Maria e o de Cristo. Maria é sagrada, pois, ao suportar seu
sofrimento terreno, tornou-se a Virgem Santíssima. Quanto a Cristo, os servidores da Igreja
devem nele se espelhar para aproximarem-se dos mais humildes e, aos que merecerem,
conceder o diálogo e fazer-lhes a vontade.
Salienta o papa, então, que os membros da Igreja não devem dialogar com os que
pregam sistemas subversivos. Nesse sentido, orienta a seus seguidores a se distanciarem e
condenarem todos os que pregam “os sistemas ideológicos negadores de Deus e opressores
da Igreja, sistemas muitas vezes identificados com regimes econômicos, sociais e políticos,
e entre estes de maneira especial o comunismo ateu” (PAULO VI, 1964, § 50).
Para finalizar a Encíclica, Paulo VI lembra que a caridade é um dos bens mais
valiosos dados por Deus, porém essa não dispensa os que pregam em nome de Deus
(...) da prática da virtude da obediência (...) Desse modo, a obediência
procede do motivo de fé, torna-se escola de humildade evangélica, associa o
obediente à sabedoria, à unidade, à educação e à caridade que regem o
corpo eclesiástico, e confere, a quem se conforma com ela, o rito da
imitação de Cristo: feito obediente até a morte. (ibidem, § 65).
Dessa maneira, ao trazer a seu discurso as palavras de Paulo VI, o Bispo da peça
santareniana parece querer relembrar ao padre que, segundo o desejo do sumo pontífice
Paulo VI, o diálogo da Igreja com os mais humildes não deve ser um diálogo através das
idéias comunistas que estas, condenadas pelo papa e pela Igreja, afastam os homens da
verdade maior pregada por Deus: a de obediência.
Sendo assim, através das palavras do Bispo, Martinho deve se recordar que a Igreja
do passado afirma (através das Sagradas Escrituras e do Concílio do Trento) e a do presente
77
reafirma (através de seu papa Paulo VI) que o dever de obediência a Deus é anterior ao
dever de ser caridoso para com os mais humildes.
Porém, com o intuito de refutar o discurso do Bispo e acreditando que a função
suprema do sacerdócio é propiciar aos mais humildes que se libertem da miséria material,
Martinho cita, em seu discurso de defesa, palavras que, também pertencentes ao papa Paulo
VI, reafirmam o quadro de desigualdades existente.
Em defesa de suas ações, cita o padre:
Em certas regiões, enquanto uma oligarquia goza de civilização requintada,
o resto da população, pobre e dispersa, é privada de quase toda a
possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade, e muitas vezes
colocada, até, em condições de vida e de trabalho indignas da pessoa
humana. (SANTARENO, 1973, p. 42).
As palavras citadas por Martinho pertencem à Encíclica Populorum Progressio do
Papa Paulo VI. Escrita em 1967, portanto dois anos depois do Concílio Vaticano II e dois
anos antes da publicação de A traição do Padre Martinho, esta carta pontifícia observa que,
devido ao sistema capitalista, é cada vez mais preocupante a diferença monetária existente
entre os ricos e os pobres.
Logo no início desta Encíclica é que encontramos a frase reproduzida por Martinho
na peça. Neste momento da carta, o sumo pontífice observa que as classes pobres tomam
cada vez mais consciência da sua imerecida miséria e, como reação ao abuso da posse e do
poder, os trabalhadores começam a exigir o direito de viver com dignidade.
Na carta, o papa observa que a Igreja, através do Concílio Vaticano II, lembrou ao
homem que
Deus destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e
de todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com eqüidade às
mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade.
(PAULO VI, 1967, § 22).
78
Além disso, acrescenta, “a propriedade privada não constitui para ninguém um
direito incondicional e absoluto [uma vez que] ninguém tem direito de reservar para seu uso
exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário” (ibidem, § 23).
Podemos dizer que a defesa de Martinho consiste em lembrar ao Bispo, assim como
havia feito Paulo VI, que as desigualdades sociais aumentam devido ao sistema capitalista,
pois, neste sistema, os bens que foram dados por Deus aos mais ricos estão sendo
erroneamente utilizados por estes que, ao invés de verterem a dádiva divina a todos, tomam
para si os frutos da riqueza como se estes lhe fossem exclusivos.
Desse modo, apesar de o Bispo e de Martinho citarem em seus discursos as palavras
de um mesmo pontífice, o papa Paulo VI, estas reverberam em cada um de maneira
diferente. O Bispo ouve o discurso papal e, seguindo o pressuposto da obediência, apenas
adquire a ciência do cada vez maior antagonismo entre as classes sociais. Martinho, porém,
talvez por estar mais pximo da situação de miséria a que está sujeita a maior parte da
população, acredita que a revelação feita pelo Papa não é meramente uma informação que
traz às consciências a injustiça, mas sim uma informação que traz o desejo de agir ou de
fazer agir para combater as desigualdades.
Sendo assim, cabe a esta parte da análise concluir que o embate eclesiástico trazido
por Santareno é aquele a retratar uma Igreja que, no século XX, posiciona-se de duas
formas antagônicas perante as desigualdades sociais: enquanto alguns membros defendem a
inação praticada nos séculos anteriores, outros desejam uma futura possibilidade de ação.
Na peça santareniana, a inação está representada pelo Vigário e pelo Bispo,
membros da uma Igreja que ainda compactua com o status quo e, portanto, prega a
obediência acima de tudo. Martinho, por sua vez, representa uma Igreja que se sensibiliza
79
com as desigualdades e que por isso quer modificar, ainda sem saber como, os desníveis
sociais.
Antes de concluirmos esta parte da análise cabe-nos, pom, observar que outros
dois trechos da Encíclica Populorum Progressio, escrita pelo Papa Paulo VI, foram
utilizados por Martinho quando fazia, na primeira cena da peça, seu sermão ao povo de
Cortiçal.
Naquela ocasião Martinho cita, primeiramente, uma fala de Santo Ambrósio que
também é citada por Paulo VI nesta Encíclica:
(...) não dás da tua fortuna – assim afirma Santo Ambrósio – ao seres
generoso para com o pobre, tu dás do que lhe pertence. Porque aquilo que te
atribuis a ti, foi dado em comum, para o uso de todos. A Terra foi oferecida
a todos e não apenas aos ricos (SANTARENO, 1973, p. 10).
Posteriormente, acrescenta o padre ao povo de Cortiçal:
Agüentem! Lembrem-se de Sua Santidade Paulo VI que, dirigindo-se a vós,
escreveu: Certamente situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando
populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência
que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a
possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e potica, é
grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade
humana’. (ibidem, p. 10 - 11).
Observamos que, ao citar as palavras do Papa de seu tempo (o papado de Paulo VI
tem início em 1963 e estende-se até 1978), Martinho revela a desigualdade econômica
existente. Salienta, pom, assim como lhe guia a Igreja, que por mais que haja injustiças o
caminho da violência nunca deverá ser utilizado.
As palavras trazidas por Martinho neste sermão ajudam-nos a compreender a atitude
que ele tomará após a conversa com seus superiores. Após ouvi-los e, através deles, à lei
suprema de obediência pregada pela Igreja, Martinho decide voltar para casa e abandonar a
paróquia não porque deseja obedecer ao Vigário e ao Bispo, mas sim porque acredita que,
80
por maiores injustiças que existam, a violência nunca deverá ser empregada para solucio-
las.
Porém, Santareno, nesta parte do enredo de sua peça, explora outro embate que, já
delineado nas linhas iniciais do texto, torna-se mais forte: o enfrentamento entre os mais
humildes, a pedirem a permanência de Martinho, e o Lavrador e o Engenheiro, a exigirem
sua partida.
Observamos que, a partir deste momento do enredo, Bernardo Santareno explora em
A traição do Padre Martinho o que Marx
36
e Engels
37
vêem como tragédia revolucionária:
“um texto cuja essência não pode radicar num conflito abstrato de idéias, mas num conflito
histórico, de classe.” (VÁZQUEZ, 1968, p. 141).
A pertinência de citarmos esta concepção do trágico para Marx e Engels situa-se em
dois fatos. O primeiro é que Antônio Martinho do Rosário, nome real de Bernardo
Santareno, inscreveu-se como membro da Juventude Comunista em 1941, sendo que, a
partir desta data, sempre militou no Partido Comunista português. O segundo, que
tentaremos provar a partir deste momento da análise, é que o texto escrito por Santareno
tenta trazer para a literatura as idéias do principal pensador do comunismo: Karl Marx.
Com o intuito de observar as idéias comunistas inseridas em A traição do Padre
Martinho, faremos uma comparação entre os elementos do enredo e algumas das principais
idéias de Karl Marx.
36
Nascido em Treves, no ano de 1818, o alemão Karl Marx objetivou estudar, na maior parte de seus escritos
filosóficos, a sociedade capitalista de seu tempo a fim de explicar não somente a formação desta, mas
também, e principalmente, como a extinguir para dar lugar a um sistema econômico que julgava ser mais
justo: o comunismo.
37
Ao lado de Marx, Friedrich Engels foi o grande pensador do Comunismo. Os dois filósofos eram muito
próximos, tanto que algumas obras de Marx tiveram como co-autor Engels. Dentre elas, citamos o segundo e
o terceiro volume de O Capital (que foram revisados e publicados por Engels quando Marx já era falecido) e
o Manifesto do Partido Comunista.
81
Iniciamos observando que Marx, em O Capital, divide a sociedade de seu tempo em
três grandes blocos:
Os proprietários de mera força de trabalho, os proprietários de capital e os
latifundiários, cujas respectivas fontes de renda são o salário, o lucro e o
rendimento do solo, isto é, os obreiros assalariados, os capitalistas e os
proprietários de terra (...) (HARNECKER, s.d., p.296).
No princípio de A traição do Padre Martinho, para apresentar a personagem
principal de sua peça, Santareno traz ao enredo tanto a voz dos humildes (Ti Anica, Rosa,
Maria Parda, Toino Geada, João Besoiro, Miguel e Ti Faustino), quanto a dos mais
abastados (Engenheiro e Lavrador). Observamos que os primeiros, ao falarem de Martinho,
salientam que o padre é uma pessoa boa, uma vez que se preocupa não somente em pregar
seus sermões, mas também em dividir seus bens materiais com os mais pobres e lhes
mostrar o que é justo e o que é injusto em relação às condições de trabalho a que estão
sujeitos. Os mais ricos, porém, vêem Martinho como aquele que estimula greves no vilarejo
de Cortiçal e ensina aos trabalhadores a morderem “os dedos de quem [lhes] deu o pão a
vida inteira” (SANTARENO, 1973, p. 16). Acrescentamos, que no desenrolar do primeiro
ato da peça, o Bispo culpa o padre por ter-se aliado aos mais humildes e, repetindo o
discurso dos mais abastados, diz que Martinho deve sair de Cortiçal, pois “atirou os
operários contra os patrões, os camponeses contra os donos da terra” (ibidem, p.39).
Sendo assim, se Marx assinalou que a sociedade capitalista é dividida em três
grandes blocos assalariados, capitalistas e proprietários de terra são estes que
aparecerão na luta de classes de A traição do Padre Martinho. Na peça, os assalariados
serão representados pelos operários e camponeses, os capitalistas pelo Engenheiro e os
proprietários de terra pelo Lavrador.
82
Acrescentamos que, ainda na obra O Capital, Marx salienta que o que distingue as
espécies econômicas entre si não é o que produz, mas como se produz. Nesse sentido, pode-
se dividir o desenvolvimento histórico da humanidade em cinco modos fundamentais de
produção: “o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o
socialismo.” (HARNECKER, p. 264).
No primeiro modo de produção, o “comunismo primitivo”, o homem tinha sua
economia baseada na caça e, como existia o trabalho em comum de todos, existia também a
propriedade comum dos meios de produção. No segundo modo, porém, as ferramentas de
pedra do comunismo primitivo deram lugar às ferramentas de metal, o que fez surgir a
divisão entre os diversos ramos da produção e, com esta, a possibilidade de se efetuar
intercâmbio de produtos e de se acumular riquezas; nesta época produz-se, com efeito, uma
minoria que, detentora das riquezas, coma a subjugar os demais convertendo-os em
escravos. no feudalismo”, a base das relões de produção é a propriedade do senhor
sobre os meios de produção e sua propriedade parcial sobre os produtores e sobre os servos
(estes, diferentemente dos escravos, não mais são passíveis de serem mortos pelos seus
senhores, mas podem ser comprados e vendidos por estes). No “capitalismo” inexiste a
propriedade sobre os produtores, assalariados e obreiros, porém os trabalhadores, carentes
dos meios de produção, que estão primordialmente nas mãos dos que detêm o capital ou o
latifúndio, para não morrerem de fome, “sentem-se obrigados a vender sua força de
trabalho ao capitalista e dobrar a cerviz ao jugo da exploração.” (ibidem, p. 265). Por fim,
no “socialismo”, não há mais exploradores e explorados, uma vez que “a base das relações
de produção é a propriedade social sobre os meios de produção” (ibidem, p. 267), além
disso, no “socialismo” somente os que trabalham é que conseguem participar da divisão dos
produtos essenciais para o sustento do homem.
83
Porém, se o desenvolvimento histórico da humanidade pode ser dividido em cinco
modos de produção, Marx observa que o trabalhador, a partir do momento em que começou
a existir a propriedade privada e que desta foi excluído, esteve sujeito a condições
desumanas de trabalho:
(...) a princípio por coação direta, sob a escravidão e, depois, por coação
indireta, através do monopólio dos meios de produção pelos senhores
feudais e pelos burgueses, sob o feudalismo e sob o capitalismo.
(KONDER, 1965, p.94).
No texto santareniano, a personagem do narrador, no primeiro ato da peça, explica-
nos como é construída a economia da cidade:
No Cortiçal, além da lavoura, existe uma fábrica. Uma só. De cortiça, é
claro, o resto são migalhas de terra, divididas e subdivididas pelos ditosos
aldeões que de seus paupérrimos pais herdaram. (SANTARENO, 1973, p.
12).
Também no texto santareniano, em vários momentos, o autor traz o retrato das
condições desumanas de trabalho a que estão sujeitos os que não donos dos meios de
produção. No sermão do padre, Martinho diz que os trabalhadores de Cortiçal “(...) sentem
fome legítima de alimento (...) Fome, sede, frio, impossibilidade econômica de dignamente
constituir família, condição irreversível de escravatura mascarada” (ibidem, p. 10).
O Narrador, por sua vez, explica que no vilarejo “trabalhadores rurais queixam-se
da vida: Pagam-lhes mal. E os operários da fábrica (...) também se queixam, trabalham
muito, a troco de pouco” (ibidem, p. 12).
Sendo assim, podemos perceber na peça santareniana a intenção de trazer ao palco o
retrato da sociedade capitalista descrita por Marx: os meios de produção estão
primordialmente nas mãos dos que detêm o capital ou o latifúndio e, por este motivo, os
operários e os trabalhadores rurais estão sujeitos a condições de extrema miserabilidade.
84
Acrescentamos que, segundo Marx, a propriedade privada foi a responsável por
retirar do proletário a capacidade de ter um pensamento dialético. Explica o filósofo alemão
que, ao ser excluído da propriedade dos bens de produção, o proletário passou a ser aquele
que realizaria somente um trabalho físico ou repetitivo e, portanto, estaria cindido do
trabalho intelectual que deveria ser realizado por outrem. Dentre os problemas que se
apresentam por essa cisão, ressalta Marx, existe aquele a questionar como o proletário
poderia realizar uma revolução sem possuir o pensamento dialético.
Na “Introdução” à Crítica da Filosofia de Hegel (1843), Marx observa que o
operário poderia realizar a ação de fazer a Alemanha renascer se conseguisse se unir ao
homem intelectual, pois, “assim como a filosofia encontra as armas materiais no
proletariado, assim o proletariado tem suas armas intelectuais na filosofia.” (MARX, 2005,
p. 156).
Além disso, no Manifesto Comunista (1848), salientam Marx e Engels:
Finalmente, nos períodos em que a luta de classe se aproxima da hora
decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de toda a velha
sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo que uma pequena fração
da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, a
classe que traz em si o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da
nobreza passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte da burguesia
passa-se para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses
que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu
conjunto. (MARX, 1998, p. 80).
Em A traição do Padre Martinho, como salientamos, Santareno não concede a
seu padre a ão contra os poderosos. Porém, se Martinho não age, suas palavras, “como
grito na consciência de toda a gente” (SANTARENO, 1973, p. 60), provocam a ação dos
trabalhadores: os operários fazem greve para que o Engenheiro sinta o prejuízo monetário
causado pela paralisação das máquinas na fábrica, os camponeses abandonam o campo para
85
que o Lavrador perca a colheita e ambos, unidos, através de uma pedra atirada na casa dos
poderosos, mostram que estão aptos a lutar por seus objetivos.
Observando a peça santareniana à luz das idéias marxistas, podemos dizer que
Martinho representaria aquele que, saído da classe dominante da Igreja, traria ao povo de
Cortiçal a sabedoria “intelectual de um tempo (nas suas citações do Concílio, das
Encíclicas e, como veremos, do próprio Marx e de seus seguidores). O povo do vilarejo,
por sua vez, simbolizaria os proletários que, após ouvirem as palavras de Martinho, podem
fazer uso das armas materiais que possuem para começarem sua luta contra os burgueses.
Sendo assim, podemos dizer que este momento da peça santareniana traz à literatura
o cenário, as personagens e o enredo pensados por Marx em sua filosofia. O cenário, um
vilarejo gerido pelo modo de produção capitalista. As personagens, os proprietários dos
meios de produção e os trabalhadores sujeitos a condições de miserabilidade. O enredo,
uma luta que, da união entre o que pensa e o que age, possa dar origem a uma revolução a
modificar uma história que dura séculos: a da exploração dos trabalhadores pelos patrões.
Salientamos, contudo, que se Marx divulgou seus pensamentos a partir da metade
do século XIX, ainda na época da peça santareniana, século XX, suas idéias seriam
combatidas pelos patrões que, ao se referirem aos comunistas, falavam de homens a serem
perseguidos e combatidos pelos órgãos governamentais da sociedade.
Ainda na metade do primeiro ato de A traição do Padre Martinho, o Engenheiro
revela ao Lavrador o que pensa da manifestação do povo de Cortiçal: “(...) a saída do padre
mais não era do que um pretexto: Ah, que os inimigos da nação e do cristianismo sabiam
fazer as coisas e o descansavam! Co-mu-nis-tas! Polícia! Aquilo era caso de polícia”
(ibidem, p. 53).
86
Neste momento do texto, às classes antagônicas que se enfrentam, burguesia e
proletariado, serão acrescidos, além das facções da Igreja que as apóiam, outros dois
conjuntos de personagens: os Policiais e o Deputado (que se somam aos poderosos) e os
Camaradas (que se aliam, através de Albino, ao povo mais humilde do vilarejo).
Cabe a este momento de nossa análise citarmos que, se Marx começou a divulgar
suas idéias desde 1843 (data em que escreveu o texto de Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel), somente em 1917, com a Revolução Russa, elas se manifestaram na construção de
uma nação a ser governada por um político pertencente a um Partido Comunista: Vladimir
Ilyitch Lênin.
Em Portugal, por sua vez, as idéias de Marx foram defendidas pelo Partido
Comunista Português, criado no ano de 1921. Salientamos, contudo, que a partir de 1927,
este partido é obrigado, em vários momentos da política portuguesa, a agir na
clandestinidade, uma vez que seus pensamentos eram contrários à ditadura salazarista que,
baseada nos ideais econômicos capitalistas, governaria a nação por mais de quarenta anos.
Na peça, a política de represália aos comunistas aparece, pela primeira vez, quando
o Engenheiro cita, ainda no primeiro ato, que a manifestação em Cortiçal deve ser
combatida pela polícia.
No segundo ato, o Engenheiro e o Lavrador, conjuntamente, exigem do Deputado
que extinga a “célula comunista” (ibidem, p. 127) que existe em Cortiçal; o Deputado, por
sua vez, resolve pedir ao governo que realize uma “intervenção armada” (ibidem, p. 129)
no vilarejo. Antes desta ação, porém, um Polícia tenta fazer com que Martinho delate seus
dirigentes; apesar de o padre nada dizer ao policial, Albino e João Besoiro são presos; além
disso, um Sargento, a mando do governo, ameaça atirar nos manifestantes que cercam a
casa em que esMartinho. Somente após todos os poderosos falarem no telefone com
87
“Vossa Excelência” (ibidem, p. 161 e seguintes) é que a ação de “cinqüenta guardas
armados” (ibidem, p. 166) restabeleceria aquilo que os órgãos do governo vêem como “a
ordem naquela freguesia” (ibidem, p.168).
Observamos que esta política repressiva contrária aos comunistas toma grande parte
do segundo ato da peça. Eximiremos, porém, nossa análise de estudar este momento de A
traição do Padre Martinho, uma vez que o próximo texto a ser inserido neste trabalho
Português, Escritor, 45 anos de idade melhor revelará todo o contexto histórico
português da luta entre um homem comunista e um governo capitalista.
Porém, se não cabe a este momento de nosso trabalho observar os atos do governo
português contra os comunistas, trazemos ao nosso raciocínio o diálogo entre o Camarada I
e o Camarada II para que possamos chegar ao objetivo da análise desta peça: compreender
como uma idéia religiosa pode influenciar a escolha político-econômica de uma
personagem.
No final do primeiro ato, em uma “reunião clandestina” (ibidem, p.69), o operário
Albino, trabalhador da fábrica de Cortiçal, pede ao Camarada I e ao Camarada II
orientações sobre como os operários devem agir.
Neste momento do texto, cada um dos dois Camaradas defende a união ou não da
causa comunista com a luta travada por um homem da Igreja.
O Camarada II tem a opinião de que a luta que ocorre em Cortiçal deve ser ignorada
uma vez que, como o pprio Marx revela, a religião é, por dois motivos, prejudicial ao
homem revolucionário: o primeiro, ela “é o ópio do povo” (ibidem, p. 71), o segundo, ela é
representada por uma Igreja que sempre se uniu aos poderosos.
O Camarada I, por sua vez, citando pensadores mais contemponeos –dentre eles, o
poeta Aragon (1897 1982) e o filósofo Roger Garaudy (nascido em 1913) tenta criar
88
uma ponte entre os pensamentos comunistas e os cristãos e, dessa forma, justificar que as
idéias marxistas podem ser adaptadas ao catolicismo.
Observamos, inicialmente, que a frase citada pelo Camarada II, a religião é o ópio
do povo”, pertence ao primeiro livro de Marx: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
(1843).
No início deste livro, salienta o filósofo: “No caso da Alemanha, a Crítica da
religião chegou, no essencial, ao seu fim; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a
crítica” (MARX, 2005, p.145).
Após esta frase inicial, o texto observará que a religião “é o ópio do povo” (ibidem,
loc. cit.). Salientamos que esta metáfora foi construída por Marx uma vez que, como ele
mesmo observa, o homem oprimido tem na promessa de uma felicidade pós-vida seu
suspiro de alívio para suportar as privações do mundo material; além disso, evidencia o
autor, o entorpecimento causado por um porvir próspero é acrescido de uma auréolaa
santificar todos os que conseguem resignar-se frente ao “vale de lágrimas” (ibidem, p.
146) a que estão sujeitos.
Marx observa, então, que cabe à História estabelecer a “verdade deste mundo
(ibidem, loc. cit.) e à Filosofia desmascarar “a auto-alienação humana nas suas formas não-
sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada.” (ibidem, loc. cit.).
Salientamos que, a partir deste momento, as idéias de Marx serão direcionadas a criticar as
idéias de Hegel e não as de um mundo religioso cristão. A justificativa para tal objetivo,
nos o próprio filósofo ao verificar que, na Alemanha, o sagrado da religião, após a
Reforma realizada por Lutero, não mais se apresenta como problemática principal da
miséria a que está sujeito o homem.
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Sendo assim, apesar de a frase “a religião é ópio do povo” ser uma das mais
conhecidas de Marx, este filósofo, pom, pouco falará, nesta ou em outra de suas obras
mais conhecidas, acerca daquela que designa como religiosidade sagrada.
Acrescentamos, contudo, um trecho de uma obra pouco conhecida de Marx, O
Comunismo dos observadores romanos (1847), que, apesar de não ter sido citada em A
traição do Padre Martinho, revela-nos por que o cristianismo deve ser abandonado pelo
homem comunista.
Diz Marx:
Os princípios sociais do cristianismo justificaram a antiga escravidão,
glorificaram a servidão medieval, estão prontos, se for necessário, a fazer
também a apologia da opressão do proletariado, estarão dispostos a simular
que dela se compadecem. Os princípios sociais do cristianismo pregam a
necessidade de uma classe dominante e de uma classe oprimida e limitam-
se a fazer votos piedosos de que a primeira seja caridosa para com a última.
Os princípios sociais do cristianismo põem no céu a recompensa de todas as
infâmias, e, desse modo, justificam que estas se mantenham na terra. Os
prinpios sociais do cristianismo explicam todas as baixezas de que os
oprimidos são vítimas por parte dos opressores ou como sendo uma justa
punição do pecado original ou então, como provas impostas aos eleitos pela
sabedoria do Senhor. Os prinpios sociais do cristianismo pregam a
cobardia, o desprezo de si, o envilecimento, a escravidão, a humildade,
resumindo, todas as características próprias da ralé; o proletariado não se
deixará tratar como a ralé, a coragem, a dignidade, o orgulho, o sentimento
de independência são-lhe ainda mais necessários do que o pão. Os
prinpios sociais do cristianismo são servis, e o proletariado é
revolucionário. (MARX, 1975, p. 205 - 206).
A pertinência de citarmos estas palavras de Marx reside no fato de que elas parecem
explicar grande parte das idéias de Santareno na peça objeto de nossa análise.
Observamos, primeiramente, que em A traição do Padre Martinho, a conversa entre
o Bispo e Martinho (e, como vimos na análise, a interpretação desta conversa à luz do
entendimento das Encíclicas) materializa uma Igreja que, como diz Marx, apesar de
denunciar a opressão sofrida pelo proletariado, limita-se a fazer votos piedosos de que a
classe social dominante seja caridosa com a classe oprimida. Sendo assim, se na teoria
90
marxista a Igreja é aquela que pede aos proprietários do capital e aos latifundiários que
sejam bondosos com os obreiros assalariados, na peça santareniana esta visão da Igreja
toma forma através do discurso do Bispo que vê como função do sacerdote apenas inspirar
a piedade dos mais abastados (dentre estes o Engenheiro e o Lavrador).
Além disso, salientamos que o Vigário justifica a inação da Igreja a que pertence
citando o pensamento do filósofo medieval Santo Agostinho: Deus introduziu a escravidão
no mundo como um castigo para o pecado: querer suprimi-la seria, portanto, erguer-se
contra a Sua vontade” (SANTARENO, 1973, p. 28). Salientamos que, ironicamente, estas
palavras de Santo Agostinho citadas pelo Vigário parecem refletir exatamente o fato
denunciado por Marx no texto supracitado, ou seja, a existência de uma igreja que
justificou tanto a escravidão quanto à servidão medieval como penitências a serem pagas
pelos cristãos descendentes do pecado original cometido por Ao e Eva.
Julgamos ser importante relembrar que o pensamento agostiniano de que os cristãos
sofrem pelo “pecado original havia sido objeto de outra peça santareniana, Antônio
Marinheiro. Porém, se naquele momento de sua trajetória dramática Santareno trouxe este
pensamento para enfocar a tragicidade de um homem católico que está sujeito a um
sofrimento espiritual, aqui o traz para criticar uma Igreja que também justifica o sofrimento
das desigualdades sociais através do mesmo argumento.
Sendo assim, se Marx utilizou seus escritos filosóficos para denunciar que os
membros da Igreja, apesar da compaixão demonstrada, não fazem mais do que pregar o
conformismo, Santareno, através de sua peça, criou personagens que, literariamente,
comprovam este pensamento filosófico.
Acrescentamos ainda que, se a Igreja denunciada por Marx prega que os mais
necessitados sejam subservientes e servis, Martinho será expulso desta Igreja, pois, como
91
salienta o próprio Vigário, (...) transformou os homens de Cortiçal, dantes mansos e
humildes de coração, trabalhadores e obedientes, nessa alcatéia de lobos insaciáveis e
capazes de todas as torpezas...! (ibidem, p. 82).
Sendo assim, se a Igreja personificada pelo Vigário e pelo Bispo é aquela que foi
criticada por Marx, o padre Martinho desta deverá ser expulso uma vez que não prega o
cristianismo da escravidão, da servidão, mas sim uma religião que, ligada aos proletários,
seja capaz de torná-los uma classe revolucionária.
Desse modo, podemos compreender o discurso do Camarada II. Esse personagem
defende que a causa marxista não pode ter como membro um padre ligado à Igreja católica,
pois, segundo ele, a Igreja a que Martinho pertence é, ainda no século XX, uma cópia fiel
da Igreja que fora, no século XIX, criticada por Marx.
Contudo, observamos que, segundo a visão santareniana, não seo comunismo o
responsável por afastar dos homens a religião, mas sim a Igreja que expulsará a figura
humana e religiosa dos que lutam pelos mais humildes.
Acrescentamos ainda que na igreja de Martinho e na casa em que ele mora não
existem objetos que simbolizam o catolicismo, contudo, na morada dos poderosos, rubricas
ressaltam a presença desses.
No Gabinete do Bispo, um “panejamento com as armas episcopais”
(SANTARENO, 1973, p. 34). Na sala do Engenheiro, junto ao retrato dele com a esposa,
vestidos em traje de “(...) grande gala, com ias, condecorações e o resto” (ibidem, p. 52),
encontramos “(...) uma imagem de Nossa Senhora de Fátima; por cima desta imagem, um
crucifixo de marfim e talha, o qual tem pendente de cada braço um terço branco.” (ibidem,
p. 53). No Gabinete do deputado da nação, a imagem de Nossa Senhora de Fátima também
92
está presente, porém, neste momento do texto ela divide a parede com “(...) uma cabeça de
um toiro bravo, outra de cavalo” (ibidem, p.122).
Observamos que, segundo mostram as rubricas inseridas ao texto, o Bispo ostenta
em seu Gabinete um distintivo a valorizar a nobreza da Igreja a que pertence. O
Engenheiro, por sua vez, possui em sua casa imagens sacras que, mais do que mbolos de
uma religiosidade espiritual, são ostentações monetárias e de poder. Já o Deputado, em seu
Gabinete, mostra não só a sua devoção à imagem da Virgem, mas também à ferocidade e à
força dos animais que ao lado dela estão.
Em contrapartida, na igreja em que Martinho prega e na casa em que habita,
Santareno não acrescenta nenhuma imagem de Santo. O motivo, o próprio dramaturgo nos
explicará através de algumas falas e ações inseridas no texto.
Logo no princípio da peça, o canto litúrgico e uma “luz focada, vinda de cima”
(ibidem, p. 09) delineiam um padre de feições um tanto grosseiras, mas
impressionantemente iluminadas de dentro, nos olhos” (ibidem, loc. cit.). Após esta
primeira aparição, o enredo acrescenta ao perfil físico de Martinho a missão de, tal qual
Nosso Senhor Jesus Cristo” (ibidem, p.21), trazer uma palavra que levará os homens não à
paz, mas à guerra (ibidem, loc. cit.). Porém, ao guerrear pelos mais humildes, os atos de
Martinho não são bem vistos por uma Igreja já estabelecida e, sendo por ela acusado, sente
medo e uma “(...) horrível angústia que o mantinha cravado na cruz.” (ibidem, p. 61).
Os elementos acima indicados mostram-nos um dramaturgo a construir um padre
que não necessita ter a seu redor objetos de adorno a representarem sua religiosidade, pois,
mais do que compor sua crença através de um cenário vão, Martinho a compõe trazendo
para si o próprio caminhar (iluminação, luta e sofrimento) da vida de Cristo.
93
Sendo assim, ao expulsarem Martinho de Cortiçal, a Igreja, os burgueses e o
governo estariam tirando de sua terra, segundo Santareno, um homem que, por seus ideais,
poderia ser a verdadeira expressão dos ensinamentos de Cristo.
Para compreendermos melhor esta idéia, citamos neste momento um pensamento de
Roger Garaudy, um dos autores trazidos ao texto por uma personagem que quer unir
comunismo e cristianismo: o Camarada I.
No final do primeiro ato, diz o Camarada I:
No mundo de hoje, há um ponto que é comum às esperanças de miles de
comunistas e de milhões de católicos: ‘construir o futuro sem perder coisa
alguma da herança dos valores humanos formada pelo cristianismo, ao
longo de dois milênios.’.” (SANTARENO, 1973, p. 71).
Observamos que, ao citar a expressão “valores humanos”, o Camarada I invoca,
principalmente, como já fizera em suas frases anteriores, o valor da generosidade do
homem para com seu próximo. Porém, se esta personagem ainda acredita que o pensamento
de generosidade é o mais importante para os cristãos, como também o acreditara Martinho,
o enredo até agora apresentado nos mostra que os superiores da Igreja que dirige o
cristianismo, a católica, observam que a caridade, mais do que maior valor humano a ser
fomentado, é um valor subserviente à obediência aos superiores e ao direito de propriedade
defendido, ao longo de milênios, pela Igreja.
Acrescentemos ao nosso pensamento um trecho de uma obra escrita por Roger
Garaudy em 1995, Rumo a uma guerra Santa? O debate do século. Observamos, antes de
tudo, que o trecho a ser inserido neste momento da análise é vinte e seis anos posterior à
escrita de A traição do Padre Martinho. Contudo, é pertinente a citação, pois ela nos
ajudará a compreender o pensamento de generosidade cultuado o somente pelo
Camarada I, mas também por Martinho.
94
Apesar dessa hegemonia milenar de uma ‘teologia da dominação’, milhões
de cristãos viveram, à maneira de São Francisco de Assis ou das atuais
‘teologias da libertação’, a mensagem libertadora de Jesus anunciada
prioritariamente aos pobres. Chegou a alcançar-se, na época do grande papa
João XXIII e do concílio do Vaticano II, a aurora dourada de uma grande
esperança: a de uma igreja aberta ao mundo e a suas angústias, de um
diálogo com a de todos os homens. Mas o peso da tradição imperial
romana fechou esse parêntese e restaurou o integrismo tradicional da
teologia da dominação contra as teologias da libertação. (GARAUDY,
1995, p.15).
Apesar de ser posterior à peça A traição do Padre Martinho, este pensamento de
Garaudy nos revela o que Santareno tentou mostrar em seu enredo: o Concílio Vaticano II
criou padres que, em uma releitura das palavras do evangelho, quiseram não se
compadecer com a miséria dos mais necessitados, mas também, e acima de tudo, lutar
contra essa miséria. Porém a Igreja, dando preferência não a este novo entendimento do
evangelho, mas sim a uma tradição imperial romana que a unia ao poder, expulsou os que
pensavam conforme a “teologia da libertação” e continuou a propagar a “teologia da
dominação”.
Portanto, neste momento da análise, podemos compreender qual seria, na visão da
Igreja que prega a teologia da dominação, “a traição” cometida pelo padre Martinho: assim
como vários padres de sua época, Martinho torna-se um traidor ao colocar sua luta pelo
findar da miséria acima dos interesses de uma Igreja que, séculos, está ligada aos mais
poderosos.
Observamos, ainda, que esta Igreja ligada ao poder fora combatida por outro
padre Martinho, de nome Lutero, que, no século XVI já criticava uma Igreja católica a
pregar muito mais a dominação monetária do que os valores da fé.
Além disso, acrescentamos que, se na Alemanha da época de Marx, esta Igreja não
mais tinha forte poder político, nos países em que a Contra-Reforma conseguiu limitar as
95
idéias protestantes, dentre eles Portugal, a Igreja Católica permaneceu, mais do que
instituição a propagar a fé, como aquela que, segundo Santareno, propaga a fé para
conseguir, na verdade, pregar a dominação monetária. Nesse sentido, se não cabe a Marx
fazer extensas críticas ao catolicismo, cabe a Santareno, como marxista a viver em um país
católico, observar, antes de tudo, que não podeexistir uma revolução sem que o povo de
seu Portugal se liberte do ópio religioso que mascara a política de desigualdades e de
dominação.
Portanto, a análise da peça A traição do Padre Martinho nos revela um dramaturgo,
Bernardo Santareno, que, além de conhecedor dos escritos bíblicos, fato que havíamos
observado nas obras anteriormente analisadas, também o é das Encíclicas da Igreja
Católica.
Sendo assim, ao criticar a Igreja, Santareno não o faz de maneira aleatória, mas sim
como um homem cujo conhecimento religioso se transforma em argumentos a mostrarem
que na instituição católica da Igreja ainda prepondera o pensamento dos poderosos que
pregam a teologia da dominação.
Além disso, sendo um homem ligado ao comunismo e, como nos mostrou a análise
da peça, conhecedor da filosofia marxista, Santareno construiu em A traição do Padre
Martinho um texto a retratar o a desigualdade social causada pelo capitalismo, mas
também uma possível revolta que, na terra portuguesa, poderia representar o início de uma
revolução a construir uma sociedade mais justa.
Porém, se as idéias santarenianas relativas ao conhecimento da religião e de
engajamento marxista nos parecem claras após a análise de A traição do Padre Martinho,
ainda existe uma outra idéia que permanece confusa, tanto no texto santareniano quanto, ao
que parece, na cabeça de um Antônio Martinho do Rosário que é comunista: o que a
96
personagem do padre Martinho deve fazer para transpor o desejo de desistir e continuar
lutando pelas idéias religiosas em que acredita?
A vontade de desistir que aqui mencionamos seria a segunda “traição” cometida por
Martinho: mesmo sabendo que suas idéias são justas, ele quer acatar as ordens da Igreja e
partir de Cortiçal abandonando a luta iniciada.
vimos que, seguindo o pensamento marxista, Santareno pode ter trazido este
desejo a Martinho para que ocorresse a união entre o homem que representa o intelecto e os
que representam as armas materiais. Notamos, contudo, que como Martinho quer desistir de
sua luta, as armas materiais dos trabalhadores não ferem somente os patrões, mas também a
Martinho, um padre que, por causa dos trabalhadores que acampam na porta de sua casa,
sente-se crucificado.
Em uma de suas conversas com Rosa, uma menina inocente que todos pensam ser
louca, este sentimento de Martinho é revelado. Diz Rosa ao padre: “Mas olhe que o povo
não o deixa sair daqui. Juro-lhe que não deixa! (ibidem, p.141). E a ela responde
Martinho: “Pois fazem mal: Estão a crucificar-me” (ibidem, loc. cit.).
Para compreendermos porque Santareno criou em Martinho esse sentimento,
trazemos à nossa análise os momentos finais do texto: segundo nota do Ministério do
Interior, o cerco dos trabalhadores à casa de Martinho teve
(...) início na última sexta-feira [quando a] população da freguesia cercou a
residência do pároco, ignorou as ordens da diocese, desrespeitou as
solicitações do vigário concelhio, chamando todos à revolta pelo repique
dos sinos (...) (ibidem, p. 167).
Observamos que, se Santareno construiu em sua personagem uma alusão à figura de
Cristo, é pertinente que o cativeiro deste padre comece no dia da semana em que aquele que
será o salvador dos homens foi crucificado.
97
Porém, se na Bíblia a crucificação do pregador não simboliza a morte, mas sim o
porvir feliz do renascimento no Céu, na peça, o cerco realizado pelos trabalhadores, que
para Martinho é o início de sua crucificação, esboçará uma dúvida santareniana acerca da
possibilidade que um homem tem de mudar ou não, na terra, o destino dos mais sofredores.
A Cortiçal, após alguns dias, o governo envia cinqüenta homens armados, estes
atiram contra os revoltosos e matam duas mulheres: Maria Parda e Rosa.
Maria Parda é uma personagem secundária, cuja única fala da peça revela que
Martinho lhe deu o cobertor quando ela estava com frio e, por este fato, o considera como
“um filho das [suas] entranhas” (ibidem, p.15). Rosa pode ser colocada entre as
personagens principais, pois, além de morar com sua mãe na casa de Martinho, é com ela
que o padre mais dialoga.
Lembramos que, nas duas peças anteriormente analisadas, A promessa e Antônio
Marinheiro, Bernardo Santareno também utilizara o nome Rosa para suas personagens. Em
A Promessa, Rosa era a mãe de Maria do Mar; em Antônio Marinheiro, a amiga de Amália;
em ambas, mulheres que ouvem os sofrimentos das personagens principais. A escolha do
nome Rosa para estas personagens é pertinente, pois, como observamos anteriormente,
“na iconografia cristã, a rosa é ou a taça que recolhe o sangue de Cristo, ou a transfiguração
das gotas deste sangue, ou o signo das chagas de Cristo” (CHEVALIER, 2003, p. 788).
Em A traição do Padre Martinho, Rosa também será a que sabe das chagas de
Martinho: os sonhos de um padre que quer lutar pelos mais pobres, o sofrimento daquele
que observa que sua Igreja é ligada aos mais ricos, a tristeza do que vê o homem comunista
como um “irmão” (ibidem, p. 138) que é renegado pela Igreja católica. Porém, ao invés de
apenas recolher os sofrimentos de Martinho, a Rosa inserida nesta peça será aquela que
98
também conclama o povo de Cortiçal para combater os poderosos e exigir que o padre
fique.
Rosa, por ousar agir contra os que detêm o poder, terá como punição a morte.
Martinho, porém, que confessara a Rosa seu desejo de desistir, ao ver que os poderosos
mataram àquela que recolhia seus sofrimentos, decide continuar.
Acrescentamos ainda que, segundo o narrador, o padre Martinho, após ver as mortes
de Maria Parda e Rosa, decide não mais ser padre, mas, ainda como homem de fé, lutará
pelo “reino de Deus na Terra” (ibidem, p. 172).
Desse modo, podemos concluir que, se Martinho, durante o enredo, exerceu duas
traições (uma contra a Igreja e outra contra o povo), no final do texto, a morte de Maria
Parda e de Rosa o fará observar, segundo o Narrador, que somente aquele que se desliga da
instituição da Igreja poderá lutar verdadeiramente pela tão almejada igualdade entre os
homens.
Observamos, contudo, que a expressão “reino de Deus na Terra” ainda nos mostra
que Martinho, apesar de ter escolhido se desligar da Igreja e realizar a “traição” para com a
“teologia da dominação”, mesmo não mais sendo padre, ainda está impregnado pela crença
da “teologia da libertação”.
Porém, se Martinho ainda esimpregnado pela crença cristã, o próprio Santareno,
assim como salientamos, prevê o que Garaudy mostrará, anos mais tarde, como fato: os
padres adeptos a este pensamento Conciliar terão que se desligar da Igreja para propagar
suas idéias.
Portanto, mais do que simplesmente aplicar uma teoria marxista a julgar a religião
como um mal, cabe ao dramaturgo Bernardo Santareno mostrar a seu povo no que acredita:
99
a Igreja deve ser criticada e combatida enquanto continuar sendo uma instituição
hierárquica que não luta pela verdadeira diminuição da pobreza.
I.2.2.4- Português, escritor, 45 anos de idade: o homem comunista observa seu tempo.
Após a proibição de A traição do Padre Martinho nos palcos portugueses, cinco
anos se passaram sem que viesse a lume nenhuma peça teatral de Bernardo Santareno. O
motivo de tão longa pausa, além da compreensível decepção que o autor enfrentara ao ver
seu último texto ser proibido pela censura de ser encenado em terras portuguesas, parece
ser também a descrença que Santareno manifestava quanto à possibilidade de suas obras
ajudarem efetivamente na luta contra a ditadura salazarista.
Em entrevista concedida ao jornal Drio de Lisboa em 1971, Santareno declarou
esta sua dúvida questionando:
Estou a escrever uma peça que se chama Português, escritor, 45 anos de
idade. Estou a escrevê-la lentamente, mais de dois anos, com curtos
períodos de entusiasmo, seguidos de longas pausas de desânimo. Valerá à
pena? (...) (MEDEIROS, 1996, anexos).
Poucos anos depois, por meio da personagem ficcional escritor”, Santareno traz a
lume uma possível resposta a esta sua pergunta:
Estou farto, cansado, já não acredito em nada
(...) Esperança, progresso, luta, futuro, beleza, camaradagem, povo, juventude... são papéis rasgados
para mim. Tiraram-me tudo. Já não posso mais...” (SANTARENO, 1987, v.4, p.27).
Com o intuito de compreendermos quais seriam os fatos que teriam causado essa
descrença, estudaremos a peça Português, escritor, 45 anos de idade, pois nessa as
personagens denominadas de “escritor quando menino”, “escritor quando adolescente”,
“escritor quando jovem, “escritor” e “autor” não são somente um retrato criado por
100
Santareno para uma personagem ficcional, mas também retratos sociais que, na ficção,
revelam situações verdadeiras enfrentadas por autores que viveram durante o período
salazarista.
Imprescindível observarmos, antes de iniciarmos a análise do texto em questão, que
Santareno, além de contar a história da vida da personagem “autor” (com seus medos,
paixões e desenganos), deseja também informar a seu público a “realidade de que ela
testemunho” (ibidem, p.139). Sendo assim, o resumo e a análise que faremos a seguir
enfocarão não somente acontecimentos biográficos de umautor” de 45 anos de idade, mas
também fatos que podem construir o que o autor Bernardo Santareno acredita ser a real
história de seu tempo.
Na primeira parte da peça, que tem início no final da década de 20, o enredo enfoca
a história de um português desde o seu nascimento até o momento em que se torna um
“escritor”
38
sem medo de lutar pela liberdade política de seu país. Na segunda, este mesmo
“escritor”, após o final da 2ª Grande Guerra Mundial (1945), debate-se entre a esperança de
mudança e a decepção de um Portugal ainda nazi-fascista. Observemos, a partir deste
momento, os principais acontecimentos de cada uma destas partes.
No início da peça, por ocasião do nascimento daquele que seria o “escritor”, o pai e
o avô declaram o desejo de que o novo rebento possa ser feliz vivendo numa época de
liberdade e de República. A avó do menino, porém, manifesta o medo proveniente de um
tempo de inseguranças.
38
Assim como fizemos com os elementos a comporem a tragédia, traremos às notas de rodapé algumas
explicações acerca dos elementos que fazem parte do teatro épico. Começamos com a característica de o
fornecer nomes às personagens. Esta característica, importante observar, já era utilizada no teatro de Gil
Vicente sendo que, tanto na contemporaneidade quanto na Idade Média, os nomes são eliminados em favor
das profissões ou papéis sociais que desempenham a fim de que, com a perda da individualidade, prevaleça a
crítica social (objeto principal da peça).
101
Nos anos seguintes, sons antagônicos embalam a infância do “escritor”. Se por um
lado os discursos do Regedor, do Pároco e do Presidente da Ação Católica a tornar
público que o povo deve apoiar o Presidente do Conselho, pois, se assim o fizer, a
“manifestação espontânea” (ibidem, p.16) será bonificada não pelo “abono de vinte mil
réis” (ibidem, p.17), mas também pela proteção que Nossa Senhora de Fátima aos
descendentes de Nuno Álvares e aos mais humildes. Por outro, existem vozes (dentre elas a
do pai) a manifestarem o descontentamento com um governo de “tiranos” (ibidem, p. 19)
que, através da GNR e da PIDE, utiliza a violência e a censura como instrumentos de
repressão.
Didaticamente, a voz do autor” vem ao enredo para esclarecer que esta
autobiográfica peça foi escrita para possibilitar que o público compreenda como “os alegres
votos de esperança” (ibidem, p.27), declarados na época em que nascera, acabaram por se
tornar gotas de chumbo” (ibidem, p.28) a preconizarem o momento em que o autor porá
“termo à vida, na cela da prisão onde cumpria pena por crime contra a segurança do
Estado.” (ibidem, loc.cit.).
Em cenas de “melodrama” (ibidem, p.31)
39
o “autorcoma então a mostrar os
sentimentais episódios da vida do escritor quando menino”: a prisão do pai, a PIDE
espancando o pai na frente do filho, as dificuldades econômicas enfrentadas pela família, as
numerosas prisões políticas que afastam o menino de seu pai e a reação do menino que,
com uma espingarda na mão, tenta ser o herói a lutar contra um governo que personifica o
mal.
39
A designação melodrama, no sentido específico aqui utilizado por Santareno, é proveniente do teatro do
século XIX. Neste tempo, a academia francesa e os críticos literários utilizavam essa nomenclatura para
referirem-se ao “espetáculo que exacerbava certos clichês para codificar o conflito entre o Bem e o Mal”
(VERDASCA, 2002, p. 228).
102
Tempos depois, já aos 16 anos, o escritor quando adolescente” ouve do “Reitor” da
escola que deve se alistar na Mocidade Portuguesa para cumprir a “missão salvadora que
Deus (...) confiou” (ibidem, p.38) a cada um dos jovens. Porém, ao invés de acatar a ordem,
o “adolescente” manifesta ao reitor, aos outros estudantes da escola e a si mesmo, que tem
orgulho de ser o filho do “Joaquim das bombas” (ibidem, p.46) e que, por isso, prefere
seguir o caminho de luta de seu pai a se tornar um homem que compactua com a política
ditatorial (vista, neste momento, não somente na figura do governo português, mas também
na do fascismo espanhol que trava uma guerra civil contra “os vermelhos” (ibidem, p. 40)).
Nos écrans surgem imagens-documentário
40
de batalhas da Grande Guerra
Mundial (1939–1945) e, junto destas, atores e atrizes, como “caricaturas da estupidez, da
frustração, da fealdade, do provincianismo ingênuo, da religião obscurantista” (ibidem,
p.49), seguram cartazes
41
de agradecimento a Salazar por este ter “livrado” (ibidem, loc.
cit.) os portugueses do “flagelo da guerra” (ibidem, loc. cit.) e propiciar “a conversão dos
comunistas, filhos do diabo” (ibidem, loc. cit.).
Na Universidade, o escritor quando jovemfinalmente se declara feliz por ter a
possibilidade de encontrar pessoas que, como ele, são contrárias ao governo. Porém, esta
felicidade momentânea é interrompida pela notícia de que a mãe dele está a perecer de
leucemia.
No leito de morte da mãe, o “escritor” ouve, pela primeira vez, que as opiniões dela
são divergentes das do pai: enquanto o pai acredita em uma vida de luta contra os burgueses
40
As imagens-documentário, segundo o teatro teorizado por Brecht, fazem parte de um cenário antiilusionista
que tira o público do refúgio ficcional construído em sua mente e o traz para os acontecimentos reais vividos
pela sociedade.
41
Os cartazes são também elementos cênicos que compõem o teatro épico de feição brechtiana. Porém, se em
Brecht as próprias frases escritas em cada cartaz já trazem ironia à peça, neste texto de Santareno a ironia será
conseguida através do contraponto criado entre os dizeres de cada cartaz e as figuras caricaturais dos atores e
atrizes.
103
e os fascistas, a mãe confessa que preferiria ter tido uma vida apolítica ao lado da família e
crendo em Deus. Como último desejo, a mãe pede ao filho que esse lhe traga um padre para
confessar os pecados cometidos. O “escritor quando jovem”, mesmo compreendendo que
“rezar é um escape para o medo” (ibidem, p. 53), realiza o desejo da mãe.
No funeral da mãe, o “escritor quando jovem” chora ao lado de uma “mulher
quando joveme, neste local inusitado, beija essa que será sua futura esposa e mãe de seu
filho.
Anos mais tarde, o escritor declara que é feliz por ter-se afastado da luta para
construir sua família. Sua mulher, porém, observa que o rosto amoroso que eles possuem
não pode sobrepor-se a “os rostos da fome, da miséria moral, da opressão...(ibidem, p.
64). Estimulado, então, pela esposa, o escritor comparece a uma conferência para operários
e nessa, realizando um discurso contra a censura, é preso pela PIDE. Na prisão, após ter
sido espancado, o escritor, transpondo seu medo de lutar contra o governo, em si,
mesmo sendo criticado pela voz desiludida do “autor”, aquele que pode ter o “grande papel
na libertação do povo português” (ibidem, p.65).
Na segunda parte do enredo, o cenário é formado por serpentinas e por uma Estátua
da Liberdade. Quanto às personagens que estão inseridas nesse cenário temos: “a menina
do vestido comprido”, “o palhaço rico”, “o palhaço pobre” e três “chipanzés” (o primeiro
com máscara de Hitler e uma suástica
42
, o segundo com máscara de Mussolini e um fáscio
43
e o terceiro com um grande ponto de interrogação e uma cruz de Cristo que lhe foi atada ao
42
A suástica (ou cruz gamada) foi utilizada por Hitler durante sua permanência no poder. No livro Minha luta
(1924), assim explica Hitler esse símbolo: “a suástica significa a missão da luta pela vitória do homem ariano,
simultaneamente com a vitória da nossa missão renovadora que foi e será eternamente anti-semítica.”
(HITLER, 2005, p.371).
43
O fáscio, símbolo utilizado por Mussolini durante seu governo, é composto por um molho de varas e uma
machadinha. Conduzido pelos oficiais que, na Roma antiga, acompanhavam os magistrados à frente das
tropas, o fáscio simbolizava as execuções da justiça.
104
pescoço pelo palhaço rico)
44
. Enquanto a menina, “como quem debita uma lição” (ibidem,
p. 74), fala trechos da Constituição Portuguesa, os “chipanzés” e o “palhaço rico”, citando
decretos-lei que cerceiam as liberdades que foram escritas na Constituição, espancam o
“palhaço pobre”, a “Estátua da Liberdade” e a própria menina.
A voz do “autor” vem ao texto explicar o motivo de a cena anterior ser inserida na
peça. Segundo ele, a cena, (...) um jogo teatral de verdades” (ibidem, p. 86), pertence a
uma das peças que escrevera e que nunca pudera ver representada “porque a Censura
sistematicamente as tem proibido”. Neste momento, o autor insere no texto um depoimento
que esclarece o que ainda o faz, mesmo após todas as derrotas, escrever peças teatrais:
Escrever é vital, digo, porque compensa um pouco a minha neurose e
porque pela minha imaginação, posso dizer o que eu quiser (...) sempre com
a minha imaginação com ela, por enquanto! posso sentir o meu
blico, o público português, auscultá-lo, acirrá-lo ou amarrá-lo, dizer-lhes
as coisas que ele sabe, soube sempre, mas não é capaz de exprimir. E
sobretudo, posso dizer-me, sofrer acompanhado! Sofrer acompanhado é
muito importante para um homem de teatro.(...) (ibidem, p.87).
Estabelecendo o tempo cronológico desta segunda parte, a personagem “autor
esclarece que reiniciará o enredo da história de sua vida no final da Segunda Grande Guerra
Mundial, época em que Hitler é derrotado pelas forças aliadas. Nesta época, salienta a
personagem, Salazar, apesar de manifestar seu apoio oficial aos aliados, ordena, “com o
coração afundado em tristeza” (ibidem, loc. cit.), que as bandeiras de Portugal fiquem a
meia haste em sinal de luto pela morte do chefe nazista.
44
Através das palavras de Anatol Rosenfeld, escritas para explicarem o teatro de Brecht, podemos
compreender os elementos díspares colocados no início desta segunda parte do enredo. Explica Rosenfeld:
“Entre os recursos satíricos usados encontra-se também o do grotesco, geralmente de cunho mais burlesco do
que tétrico ou fantástico. Não é preciso dizer que a própria essência do grotesco é ‘tornar estranho’ pela
associação do incoerente, pela conjugação do spar, pela fusão do que não se casa (...). Brecht (...) usa
recursos grotescos e torna o mundo desfamiliar a fim de explicar e orientar.” (ROSENFELD, 2004, p. 158).
Sendo assim, trazendo a seu texto as imagens grotescas, Santareno, à feição brechtiana, torna estranho o que é
encenado para, posteriormente, orientar politicamente os leitores/espectadores.
105
A vitória dos aliados contra o nazi-fascismo traz à família do “escritor” a crença de
que também o governo portugs poderá mudar. O pai do escritor manifesta, inclusive, que
todos têm que festejar, pois “acabaram-se os fascismos neste mundo” (ibidem, p.91).
Porém, abafando as esperanças de mudança, o presidente português, apesar de prometer
eleições livres, continua a impor a ditadura do medo que havia governado o país até então.
Através de projeções feitas nos écrans, são trazidas ao palco cenas de torturas
ocorridas, principalmente, na colônia penal do Tarrafal. O pai do escritor, dolorosamente,
conta o que lá sofrera e, indignado, diz que as ações do governo portugs contra os que lhe
fazem oposição são semelhantes aos maus tratos que os nazistas impunham aos judeus.
Debilitado, o pai é internado em um hospital. Nesse, ele divide o quarto com um
padre e, apesar de afirmar não crer em Deus, fica amigo do sacerdote ao perceber que na
caminhada de ambos existe a vontade pela liberdade do nosso povo” (ibidem, p.103). Ao
morrer, o padre tem uma mão agarrada ao crucifixo e outra às mãos do novo companheiro:
o pai do escritor. Tempos depois, debilitado pelas torturas sofridas em Tarrafal, o pai do
escritor, num “acto lógico” (ibidem, p. 112), enforca-se.
Através de imagens projetadas nos écrans, o escritor mostra mais uma vez que, no
ano 1958, nada mudou em seu Portugal pós-guerra: as prisões, as torturas, as greves
dominadas à força e as repressões sangrentas em território ultramarino ainda continuam.
A “mulher” do escritor preocupa-se com o filho deles, pois vê nesse uma pessoa que
não se interessa por política, que tem “um narcisismo, um exibicionismo exagerados”
(ibidem, p.119). Porém, por ocasião da candidatura do General Delgado à presidência da
República, o “escritorfica orgulhoso de seu rebento, que esse se une a ele vendo a
eleição como uma chance de mudança. Contudo, quando a oposição ao governo é
derrotada, o filho novamente se afasta dos ideais políticos da família, isto porque, enquanto
106
o “escritor” e sua “mulher” são contrários à guerra que Portugal trava nas colônias
africanas, o filho deles alista-se para lutar ao lado dos brancos que acreditam que “Os
Portugueses foram predestinados para difundir a cristandade” e que “Lisboa é a capital do
Império” (ibidem, p.131).
Na África, o filho, denominado então como João, escreve cartas a seus pais. Na
primeira, ele revela aos pais que quer abandonar o exército, pois se sente agoniado após ter
assassinado “dois terroristas” (ibidem, p. 132). Na segunda, porém, entusiasmado por ter
disparado “implacavelmente, (...) feroz, com prazer(ibidem, p. 134) contra os inimigos
negros e tê-los matado, confessa que acabou “por encontrar o caminho (...)” (ibidem, p.
135) de heroicidade que almejava.
Em cena, dois coros (um de brancos e outro de negros) discutem a quem pertencem
as terras africanas.
45
Enquanto o coro dos brancos clama para si o direito de governar as
colônias, os negros, apoiados por dados estatísticos a mostrarem que Portugal deixou as
colônias nas mãos de empresas francesas, inglesas e belgas, exigem a Independência.
Os negros atiram no filho do escritor. O menino morre. Uma voz marcial anuncia
que esse fora condecorado, a título póstumo, com a Cruz da Guerra de classe, porque,
no teatro das operações de Angola, prestou serviços que, muito justamente, devem ser
considerados extraordinários, relevantes e distintos” (ibidem, p. 136). O escritor,
entristecido não pela morte do filho, mas também pelo contexto em que essa ocorrera,
manifesta sua decepção: “Tudo acabou para mim. Não luto mais. Venceram eles.” (ibidem,
p. 138).
45
No teatro épico o coro geralmente é utilizado pelo autor para modelar as reações do público em face da
ação da personagem, ou seja, através do coro, o autor consegue distanciar o público do sentimentalismo que
seria evocado pela ação encenada chamando-o a uma visão crítica dos acontecimentos.
107
Porém, frente à desistência da personagem “escritor”, a “atriz” que interpretou sua
“mulher”, em uma atitude revolucionária, pede ao blico que realidade retratada na peça
sirva de estímulo para todos saberem que “A luta continua!” (ibidem, p.140).
46
O resumo anterior, com extensão proporcional a Português, escritor, 45 anos de
idade, possibilita observarmos, antes mesmo da análise propriamente dita, Bernardo
Santareno como um autor claramente contrário à política governamental vigente em
Portugal por quatro décadas.
Porém, como o objetivo deste estudo não é apenas identificar a opinião política de
Santareno, mas também compreendê-la frente aos acontecimentos de um tempo,
analisaremos o enredo confrontando-o com outros textos que retratam a mesma época. Para
tanto, iniciamos nossa análise delimitando o período histórico retratado em Português,
escritor, 45 anos de idade.
Observamos que o título da peça nos informa que a personagem “autor” tem 45
anos de idade ao escrever o texto, sendo assim, como a data colocada no final do enredo é
1974, podemos dizer que o nascimento desta personagem ocorreu entre 1928 e 1929 (época
que República Portuguesa estava perto de completar seu segundo decênio de existência).
Apesar de o enredo santareniano ter início no final dos anos vinte, julgamos ser
pertinente trazermos à nossa análise alguns fatos anteriores a esta época objetivando, nesta
pequena retrospectiva, melhor interpretarmos o que originou a esperança e o medo
manifestados na ocasião do nascimento do “escritor”.
46
Um dos principais elementos do teatro brechtiano é o distanciamento existente entre o ator e a personagem
que representa. Nesta cena, Santareno utiliza este recurso fazendo com que a atriz, no momento em que a
personagem mais sofre, distancie-se do papel que encena e mostre ao público que o objetivo do texto não é o
envolvimento sentimental, mas sim de engajamento e transformação política.
108
Historicamente, o período entre o final do século XIX e o início do XX marca a
decadência do sistema monárquico de governo em Portugal. Para melhor compreendermos
esta decadência é necessário citarmos dois fatos que o foram trazidos por Santareno a
suas imagens-documentário. O primeiro deles é que em 1890 ocorre o Ultimatum Inglês
fato que enfraquece o liberalismo monárquico uma vez que mostra uma possível perda da
soberania portuguesa em suas “terras além mar
47
. O segundo, ocorrido em 02 de fevereiro
de 1908, é o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe D. Ls Felipe, o que conota o
descontentamento dos portugueses para com o sistema de governo monárquico e uma
tendência de mudança política cultivada pela nação. A menção destes dois fatos é
importante para entendermos o desgaste da monarquia portuguesa e o que teria motivado o
movimento republicano.
Em 05 de outubro de 1910, após um Liberalismo Morquico que permanecia desde
1822, o Governo Provisório Republicano, presidido por Teófilo Braga, assume o poder.
Porém, nos dezesseis primeiros anos da 1ª República
48
, a inconstância fez parte do governo
português: neste período Portugal conheceu oito presidentes e cinqüenta mudanças de
chefes de governo.
Devido a esta instabilidade, em 28 de maio de 1926, ocorre o movimento militar
que instala uma ditadura em Portugal
49
. Gomes da Costa é feito presidente do ministério e,
como representante dos militares, passa a ser visto como um possível instrumento de
47
Assim explica José Hermano Saraiva o Ultimatum inglês: “Na mande 11 de janeiro de 1890, uma nota
inglesa exigiu do governo de Lisboa que, até a tarde desse dia mandasse retirar as tropas portuguesas que se
encontravam no vale do Chire. Um cruzador esperava a resposta. O Governo cedeu.” (SARAIVA, 1995, p.
343).
48
Cronologicamente teríamos como marco de início de cada República as seguintes datas: 1910 Teófilo
Braga assume o poder (Primeira República); 1933 data da promulgação da nova Constituição Política
(Segunda República), 1974 – Revolução dos Cravos (Terceira República).
49
O movimento tem início com a marcha que as Forças Armadas, lideradas por Gomes da Costa, faz sob
Lisboa. É importante salientar que o dirigente militar, não vendo concretizar as adesões esperadas, pensara em
se render momentos antes de o movimento sair vencedor.
109
“salvação nacional”. Contudo, a “ilusão de mandar” (MATTOSO, s.d., p.162) de Gomes da
Costa dura pouco, por se mostrar inviável para o bloco dos conservadores, quarenta e dois
dias depois de sua posse, os militares de direita radical o depõem, o prendem no Palácio de
Belém e, em 11 de julho de 1926, após períodos de prisão no Forte de Caxias e na cidadela
de Cascais, o exilam nos Açores.
Com a deposição de Gomes da Costa, dois nomes que se tornarão importantes na
política portuguesa assumem lugar no governo: Oscar Carmona e Oliveira Salazar.
Carmona, que exercia o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros na época em que
Gomes da Costa era presidente, assume, em 9 de julho de 1926, o cargo de chefe de Estado
(no qual será confirmado, através de eleições, em 1928 e permanecerá até 1951). Salazar,
que havia representado a pasta de finanças durante 13 dias no governo de Cabeçadas
(1926), assume interinamente o cargo de Ministro das Finanças em 1928 (cargo no qual
este professor de Finanças da Universidade de Coimbra, nascido em 1889 na cidade de
Vimieiro, ficará até 1968).
Como já observamos, o provável ano de nascimento da personagem “escritor”,
pertencente à peça Português, escritor, 45 anos de idade, é 1928. Sendo assim, esta
personagem teria nascido, historicamente, em uma época em que a instabilidade política do
início da República estava se dissipando e, graças a Oscar Carmona e a Oliveira Salazar,
dava lugar a um panorama mais estável de governo.
Bernardo Santareno, porém, com o intuito de inserir em Português, escritor, 45
anos de idade sua visão negativa acerca da política praticada pelos governantes que
assumiriam o poder a partir daquela data (principalmente acerca de Oliveira Salazar),
acrescenta à encenação, após retratar o nascimento de sua personagem, elementos que, em
conjunto, denigrem o governante: se, por um lado, projeta no palco a imagem de uma
110
“Grande concentração de povo que aplaude o governo” (SANTARENO, 1987, v.4, p.15),
por outro, a desmente com gargalhadas irreprimíveis de escárnio.
Historicamente a imagem projetada no palco pode retratar o final de 1929, época em
que o então ministro das Finanças, Antônio Oliveira Salazar, com o intuito de fortalecer o
governo português, cria uma ditadura financeira que, segundo o historiador José Hermano
Saraiva, apesar de sacrificar o liberalismo, consegue fazer com que o orçamento do
governo fique equilibrado, “o escudo estabilizado e a administração financeira
disciplinada” (SARAIVA, 1995, p.357). Bernardo Santareno, porém, mais do que
apresentar a imagem projetada no palco como uma fonte documental de informações acerca
dos possíveis fatos que poderiam ter estimulado a manifestação em questão, a utiliza para
revelar, através das “gargalhadas uníssonas de escárnio” (SANTARENO, 1987, v.4, p.15)
que a acompanham, sua descrença no governo pós-1929.
Essa opinião contrária ao governo fica ainda mais hiperbólica se acrescentarmos à
nossa análise o modo como Santareno constrói os discursos do Regedor e do Presidente da
Ação Católica: estas duas figuras caricaturais repetem, como uma blague cômica
50
, a
expressão “manifestão espontânea” (ibidem, p.16 - 17) para salientar que o apoio ao
Presidente do Conselho não é sincero, mas sim comprado (seja pelo “abono de vinte mil
réis” (ibidem, p.17) oferecido pelo Regedor, seja pela promessa de proteção divina que a
igreja católica oferece aos que colaborarem).
Salientamos que, a partir de 1930, Salazar acumula ao cargo de ministro das
Finanças o de Presidente do Conselho
51
. Neste cargo, como observa o historiador Fernando
50
O efeito que torna a frase “manifestação espontânea” um dito espirituoso é, além das aspas colocadas nos
termos por Santareno, o número de vezes que as personagens em questão repetem a expressão: sete.
51
Salientamos que, para referir-se a Salazar, Santareno utiliza, ao longo da peça, várias nomenclaturas, dentre
elas destacamos a de Presidente do Conselho e de Ministro. Historicamente, Salazar ocupou a pasta do
111
Rosas, apesar de toda política salazarista estar pautada na “estratégia de conservação do
regime” (MATTOSO, v.07, s.d., p. 267), é inegável que, economicamente, Salazar se torna
o maior responsável por ações que beneficiam a populão em geral. Dentre essas, cita o
historiador, o então governante
(...) cria, em 1932, um subsídio de desemprego; contém os preços de
produtos alimentares básicos; ensaia os fundamentos da previdência social
e, sobretudo, pressiona o grande patronato em troco das elevadas taxas de
lucro que lhe assegura no sentido da adopção de uma política de
paternalismo empresarial, visível em muitas das principais grandes bricas,
com suas cantinas, creches, postos médicos, bairros sociais e sistemas
assistenciais privativos (ibidem, p. 247).
Acrescentamos ainda que este mesmo historiador observa que no período de 1926 a
1949, Salazar propicia espaço para
(...) o fomento industrial e para um moderado crescimento econômico, a
uma taxa anual média de 3% entre 1928 e 1938, pelo menos à luz dos
cálculos recentes de alguns economistas sobre a evolução do PIB (A. Bela
Nunes, Eugênia Mata e Nuno Valério, 1989, p.294 - 295). (ibidem, p.268)
Os dados assinalados mostram que, historicamente, existiriam motivos relevantes
que colocariam o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, como uma figura positiva ao
governo (e, portanto, uma figura que poderia receber o apoio espontâneo da população).
Bernardo Santareno, porém, ao invés de retratar imparcialmente o período político
observado (evidenciando, como Fernando Rosas, os pontos positivos e negativos da política
salazarista) prefere imprimir a seu texto, através da ironia, sua opinião unilateralmente
negativa acerca do homem forte do governo: Antônio Oliveira Salazar.
Salientamos ainda os discursos do “Pároco”, do “Regedor” e do “Presidente da
Ação Católica”, que são utilizados pelo dramaturgo com o intuito de denunciar a idéia
Ministério das Finanças de 1928 até 1940; sendo que, em 1929, acumulou a essa a das Colônias e Interior; em
setembro de 1930 acrescentou aos cargos já exercidos a função de Presidente do Conselho de Ministros, e, em
1932, assumiu a Chefia de Governo. Desse modo, apesar de utilizar nomenclaturas diversas para se referir a
uma personagem, o que pode confundir um leitor/espectador que não esteja familiarizado com as
denominações utilizadas na política portuguesa, Santareno o faz com pertinência.
112
cultivada pela propaganda governamental de estabelecer um vínculo entre Salazar e as
figuras religiosas importantes aos portugueses: Nossa Senhora de Fátima e Nuno Álvares.
A devoção a Nossa Senhora de Fátima é um dos costumes mais importantes do
povo portugs, isto porque, no dia 13 de outubro de 1917, a santa apareceu em terras
portuguesas para revelar seu “segredo”
52
a Lucia Santos, menina portuguesa que tinha na
ocasião 10 anos de idade. A comoção dos portugueses com respeito às revelações da
virgem fez com que, em 1928, o governo da 1ª República iniciasse a construção do
Santuário de Fátima no local da aparição; além disso, a igreja institucionalizou que todo dia
13 de julho, dia mundial desta santa, haveria missas votivas em todo território português.
O vínculo entre Nossa Senhora de Fátima e Salazar (apontado por Santareno em sua
peça) não foi estabelecido apenas porque ele, como grande parte dos portugueses, era
devoto da Santa, mas sim porque, em 1937, ao se dirigir para uma das missas votivas à
comemoração dos 10 anos da aparição, Salazar sofreu um atentado a bomba e, ao escapar
ileso, deu graças a Fátima por defendê-lo dos comunistas que tinham tentado matá-lo. A
fim de promover comoção no país, a propaganda política do então governante explorou as
mensagens de solidariedade, os cortejos, as manifestações e as missas Te Deum realizadas
pelo povo para a saúde de Salazar; além disso, o governante, para manifestar gratidão ao
povo, em uma de suas poucas aparições em público, agradeceu a Fátima pela lealdade dos
portugueses; sendo assim, a partir deste momento, a figura de Salazar ficou associada
diretamente à da santa.
52
O “segredo de Fátimarevelado nesta aparição é dividido em três partes. A primeira parte era a visão do
inferno; a segunda, de uma guerra pior do que a Primeira Guerra Mundial; e a terceira, divulgada pelo papa
João Paulo II na celebração do milênio, a visão do assassinato de um papa.
113
Em Português, escritor, 45 anos de idade, o autor real denuncia, através do “autor”
da ficção que o vínculo criado entre Nossa Senhora de Fátima e Salazar é utilizado
constantemente pelo governo para justificar a pobreza a que o povo está sujeito. Citamos
dois momentos em que este ponto de vista dos autores é colocado. No primeiro, diz o
“Presidente da Ação Católica”:
(...) ide vós também saudar e cantar louvores ao nosso santo Presidente!
Soides pobrezinhas, nada tendes para lhe dar? Pois dai-lhes os afetos do
vosso coração agradecido (...) Nossa Senhora de Fátima vos cobrirá com o
seu manto branquinho (...) (SANTARENO, 1987, v.4, p.17).
No segundo, diz o Bispo:
(...) porque, meus queridos irmãos, tima, o mistério de Fátima, é todo ele
um cântico de louvor aos humildes, aos pobrezinhos, aos que nada
possuem, aos que nada exigem do mundo, aos que atravessam este vale de
lágrimas com os olhos postos no Céu (...)
Louvado seja Deus que te fez
pobrezinho! Louvado seja Deus que te fez humilde e manso de coração (...)
Louvado seja Ele, mil vezes louvado, que te deu o dom bendito da
obediência! Obediência a Deus Nosso Senhor (...). Obediência à Igreja
Católica e aos seus ministros. Obediência dos filhos aos pais. Obediência da
mulher ao marido. Obediência do servo ao patrão. Obediência dos
governados aos governantes (...) Obedecei (...) e tereis conquistado o
Paraíso (...). (ibidem, p. 23).
Observamos que, enquanto a fala do “Presidente da Ação Católica” revela, através
da ironia, o fato de que o povo português deve esquecer sua pobreza para dar louvores ao
santo Presidente e a Fátima, a gradação construída na fala do “Bispo” denuncia que os
governantes portugueses, dentre eles Salazar, utilizavam o pensamento católico de
obediência para criar um povo que, na humildade da pobreza, louvasse Fátima e obedecesse
não só a Igreja, mas também, e principalmente, aos governantes que a ela estavam ligados.
Salientamos que este primeiro pensamento de que o povo se esquece de sua pobreza
para almejar ao céu e venerar os que foram escolhidos por Deus para governarem estava
presente em O Judeu. Nesta peça, denuncia o Cavaleiro de Oliveira:
114
Eis o povo de Portugal (...) enquanto reina Sua Majestade Magnífica,
Fidelíssima e Cristianíssima, El-Rei D. João, o quinto de seu nome... (...)
Reinado realmente magnífico, esplendoroso, de fausto nunca igualado (...)
Que importa viver a vida eterna na privança de todo o humano consolo, se
ela mais não é que uma feia passagem, um triste vale de lágrimas? O Céu, o
Céu, a Pátria Eterna! (SANTARENO, 1995, p.55).
Além disso, o segundo pensamento, que constrói um discurso exacerbado para
revelar uma igreja que prega obediência a si e ao governo, fazia parte da peça A traição
do Padre Martinho. Nesta, diz o padre que representa os interesses do governo:
Não discutas, não critiques: Confia na Santa Madre Igreja pela voz do
Bispo. Confia, entrega-te, obedece. Obedece, meu amigo! E deste jeito
trabalharás, da maneira mais segura, para a salvação da tua alma, que é o
único trabalho que verdadeiramente interessa e vale a pena (...) obedece ao
menos à ordem estabelecida, como é a tua obrigação! Cumpre bem os teus
deveres, aceita os sacrifícios que o Nosso Senhor te mandar de boa cara.
Assim, sem o saberes, agradarás a Deus. (SANTARENO, 1973, p. 49 - 50).
Ou seja, no teatro político do segundo ciclo de sua dramaturgia (do qual fazem parte
as três peças acima citadas), Bernardo Santareno denuncia que o governo salazarista, para
manipular o povo português, utiliza os valores religiosos de pobreza e obediência pregados
pelo catolicismo
53
.
Outra figura religiosa também constantemente utilizada pela propaganda política de
Salazar é, como revela o texto santareniano, Nuno Álvares. Historicamente, Nuno Álvares
Pereira está ligado ao reinado de D. João I (1385 – 1433). Em 1385, como chefe guerreiro
da Batalha de Aljubarrota, Nuno Álvares tornou-se, ao vencer os castelhanos e colaborar
com a ascensão de D. João I ao trono de Portugal, um herói e um símbolo do valor da
soberania portuguesa. Além disso, em 1415, lutando ao lado do Infante D. Henrique na
tomada de Ceuta, Nuno participou da batalha que se tornou o primeiro marco da expansão
53
No livro 100 anos de teatro português, Rebello expunha este fato: “A denúncia da superstição, da
intolerância, da discriminação e da repressão sexual, que percorria como um veio subterrâneo o corpo das
primeiras peças, explode irresistivelmente nas últimas e aponta, com dedo certeiro, o monstro em cujo ventre
se forjam: o fascismo.” (REBELLO, 1984, p.100)
115
portuguesa. Após Ceuta, Nuno renunciou a tulos e cargos, distribuiu seus bens e se
recolheu ao Convento do Carmo (o qual ele mesmo fundara e onde ficou até o ano de sua
morte, 1443). Em 1918, no período da 1ª República, por sua obra como guerreiro a
serviço da nação e de Deus, Nuno Álvares é beatificado.
Na época do Estado Novo (de 1933 até 1974), a fim de mostrar Salazar como um
homem santo a lutar por um Portugal soberano e grandioso, a propaganda política do
governo fazia diversas comparações entre este governante e Nuno Álvares. António Ferro,
exercendo então o cargo de Ministro da Propaganda Social, foi o responsável pela maior
comparação de todas: examinando os painéis de S. Vicente, Ferro, com o intuito de colocar
o governante como um herói predestinado à nação portuguesa, observou que, ao lado do
Infante de Sagres (D. Henrique, filho de D. João I) estavam pintadas as figuras de Nuno
Álvares e de Salazar.
Em Português, escritor, 45 anos de idade, Santareno ironiza a relação criada pelo
governo entre Nuno Álvares e Salazar através de diversos discursos. Dentre eles citaremos
os proferidos pelo “Pároco” e pelo próprio “Novo Ministro”.
Na primeira parte do texto, um pároco untuoso(SANTARENO, 1987, v.4, p.16)
incita o povo a receber o Presidente do Conselho como se esse fosse uma figura santa. Diz
o “Pároco”:
Vão, meus queridos irmãos, vão dar o contributo das vossas presenças a
esta justíssima ‘manifestação espontânea’! Peço-lhes eu, vosso pároco (...)
Nosso Senhor lhes dará cem alegrias por cada sacrifício! E peca todo aquele
que, podendo ir, não for. Pecado feio de ingratidão contra quem tanto bem
tem feito por vós, no plano material, como sobretudo no plano espiritual.
Sim, porque o Senhor Presidente tem sido o esforçado paladino da Igreja
Católica neste conturbado país! Tanto como Nuno Álvares, que é Santo!
Tanto? Mais, mais ainda do que ele (...). (ibidem, p.17).
116
Ou seja, ao construir um “Pároco” cuja aparência é de uma pessoa bajuladora e
cujas palavras são símbolos caricaturais de um homem corrupto, Santareno denuncia a
mentirosa e hiperbólica propaganda que transformara Salazar num defensor estrênuo que,
assim como o herói Nuno Álvares, luta pela religião e pela soberania da pátria portuguesa.
Ainda nesta primeira parte, diz ao povo a personagem “Novo Ministro”:
Hesitei muito em aceitar esse cargo. Muito, muitíssimo! Foram horas e
horas de insônia, de tremenda inquietação.(...) Tolhia-me principalmente a
vida quanto às minhas qualidades para o cabal desempenho de tão alta
missão. Mas venceu a minha ardente vontade de servir, de servir o País e
este grande povo de heróis, descobridores e apóstolos! Venceu o meu
humilíssimo orgulho de colaborar com um governo salvador, um governo
providencial como nunca a terra lusíada teve outro, um governo que hoje
constitui a maior e inexpugnável fortaleza do mundo ocidental e cristão
contra os bárbaros socialistas! Pensei, meditei, rezei e aceitei. Rezei sim,
meus senhores: Rezei aos pés de Nun’Álvares, (...) a espada e a cruz, eis o
nosso caminho, eis o nosso destino singular! Aqui estou, pois, para
servir.(...). (ibidem, p.24).
Observamos que o discurso de posse de Salazar tem um tom muito semelhante ao
construído por Santareno em seu texto dramatúrgico. Nesse, o governante primeiramente
faz questão de frisar que aceita o encargo” de gerir a nação uma vez que o “tão grande
sacrifício” é feito pelo seu “país como dever de consciência, friamente, serenamente
cumprida”; além disso, salienta Salazar, para tirar o país da crise, seu trabalho será norteado
por “(...) princípios rígidos (...) a fim de regularizar a nossa vida financeira e com ela a vida
econômica nacional”, sendo assim, conclui o governante, “Sei muito bem o que quero e
para onde vou (...) No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que
obedeça quando se chegar à altura de mandar”. (SALAZAR, 1961, discurso de 27 de Abril
de 1928)
54
.
54
Transcrevemos abaixo, na integra, o discurso a que estamos nos referindo:
Doc. 7 – discurso de Salazar
“Sei muito bem o que quero e para onde vou,
117
Ao compararmos o discurso original com o intertexto construído por Bernardo
Santareno, podemos notar que, apesar de as palavras não serem as mesmas, o conteúdo que
elas retratam é muito semelhante, ou seja, segundo os discursos a dúvida que o governante
tem em assumir o poder foi suplantada pelo dever de servir ao país. Santareno, porém,
acrescenta ao discurso original um elemento que explicará, pois será sublinhado durante
todo o enredo de Português, escritor, 45 anos de idade, o motivo principal que o leva a ser
contrário ao governo retratado: os princípios rígidos de obediência seriam impingidos,
contra os socialistas, pela espada, promulgada cristã, do governo de Salazar.
Na peça santareniana, os atos dessa espada repressiva utilizada pelo governo Salazar
são denunciados através de uma hiperbólica sanguinolência de sofrimentos. Salientemos
alguns destes momentos de denúncia.
Na primeira parte do texto, écrans mostram “(...) imagens duma carga da GNR e a
Polícia sobre uma multidão exaltada que foge e grita. (...)” (SANTARENO, 1987, v.4, p.
Agradeço a V. Ex.ª o convite que me fez para sobraçar a pasta das Finanças, firmado no voto unime do
Conselho de Ministros, e as palavras amáveis que me dirigiu. Não tem que me agradecer ter aceitado o
encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a
ninguém. Faço-o ao meu país como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido.
Não tomaria, apesar de tudo, sobre mim esta pesada tarefa, se não tivesse a certeza de que ao menos poderia
ser útil a minha ação, e de que estavam asseguradas as condições dum trabalho eficiente.
V. Ex.ª dá aqui o testemunho de que o Conselho de Ministros teve perfeita unanimidade de vistas a este
respeito e assentou numa forma de íntima colaboração com o Ministério das Finanças, sacrificando mesmo
nalguns casos outros problemas à resolução do problema financeiro, dominante no atual momento. Este
método de trabalho reduziu-se aos quatro pontos seguintes:
Que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes
seja atribuída pelo Ministério das Finanças;
Que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão direta nas receitas ou despesas do Estado,
serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;
Que o Ministério das Finanças pode opor o seu veto a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e
às despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;
Que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas
a reduções de despesas ou arrecadação de receitas, para que se possam organizar tanto quanto possível,
segundo critérios uniformes.
Estes princípios rígidos, que vão orientar o trabalho comum, mostram a vontade decidida de regularizar por
sua vez a nossa vida financeira e com ela a vida econômica nacional.
Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No
mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.”
(SALAZAR, 1961).
118
18); no meio desta multidão, uma mulher expõe o sofrimento de ter seu filho atingido por
balas (“Mataram-no! Mataram o meu filho! Agora... nunca mais o verei. Fiquei só... no
mundo... sem ninguém que me sede de água (...) Quem o matou?!”), e homens, ao lado
dela, denunciam que a violência utilizada pela Guarda Republicana tem mandantes cujo
dinheiro e força deixam “Os hospitais (...) cheios de feridos!(...) As prisões (...) cheias de
presos!(ibidem, p.19). Ainda nesta primeira parte, vários prisioneiros relatam os abusos
cometidos pela PVDE:
Interrogaram-me três dias e três noites (...) Dez dias e dez noites eu fiz de
estátua (...) Rasgaram-me a carne, quebraram-me os ossos. (...) Queimaram-me a pele, torceram-me
os testículos (...) Senti a morte (...)” (ibidem, p.35).
Na segunda parte do texto, às torturas narradas anteriormente, o autor acrescenta o
sofrimento trazido pela personagem “pai”:
Eu estive quatro anos no Tarrafal! E os que agüentaram dez e quinze
anos e os que morreram... Essa gente nova não sabe o que aquilo é..
(...) interrogatórios dias e noites seguidos, porradas, torturas, fome, sede,
calúnias... tudo agüentei. (...) O Tarrafal é o inferno (...)Sabem o que é uma
‘frigideira’?Não sabem, ouviram falar... São uns nichos de cimento armado,
sem janela, com uma fresta de trinta por quarenta centímetros por onde
entra a luz e o ar. Um homem metido ali dentro, com aquele calor maldito,
não tem outro remédio senão deixar-se assar vivo! (...). (ibidem, p.95).
Ainda nesta segunda parte, a personagem “autor resume como agem, no pós-
guerra, as ditas espadas do governo:
Passaram anos. Muitos anos. Estamos em 1958. A vida portuguesa
correu, neste longo período, mais ou menos como sempre tem corrido,
desde que comecei a contar-lhes esta história, a minha história. (...) Prisões
(Imagens: presos políticos). Torturas (Imagens: torturas nas prisões do
Estado) (...) Prisões (Imagens: movimento dos oficiais de 10 de abril de
1947; prisão de uma dezena de oficiais-generais do Exército e da Marinha)
(...) Prisões (Imagens: prisões nas ruas, luta com a polícia, prisões em
casa) Torturas (Imagens: interrogatórios, estátua, violências físicas, etc.).
(ibidem, p.113).
119
Os órgãos denunciados por Santareno como espadas repressivas do governo
realmente existiram na época salazarista. Comprovamos este fato trazendo a nosso texto a
data de criação de cada um deles e como eles eram constituídos.
Em 1930, o governo instituiu a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado)
que, treinada por agentes italianos e alemães, deveria reprimir os atos contrários ao Estado
e reorganizar a GNR (Guarda Nacional Republicana). Em 1936, o governo edificou a
colônia penal de Tarrafal para que nela fossem presos e torturados os que eram contrários à
política governamental. Em 1945, após a Segunda Grande Guerra, devido à derrota nazi-
fascista, a PVDE passou a ser denominada de PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do
Estado)
55
, porém a “espadadesta continuou a praticar os mesmos métodos repressivos
daquela.
56
Acrescentamos ainda que, apesar de na peça santareniana não ser retratada nenhuma
atrocidade proveniente da Mocidade e da Legião Portuguesas, o autor coloca estas duas
instituições como locais onde germinam os pensamentos fascistas cultivados por Salazar
(Na primeira parte da peça, estudantes que pertencem a estas instituições orgulham-se de
Portugal participar, ao lado de Franco, na luta contra “os vermelhos” (ibidem, p.40) que
acontece na Espanha).
Historicamente, Salazar criou, em 1936, estas duas instituições sendo que, enquanto
a Mocidade Portuguesa foi formada por crianças e jovens que aprendiam a amar e a
defender o símbolo “Deus, Pátria e Família”, a Legião Portuguesa foi composta pelos
55
A PIDE existirá até 1969 quando Marcello Caetano a substitui pela DGS (Direção Geral de Segurança).
56
Um exemplo disso é que em 1949, através do decreto-lei 37.447 (o qual transforma as medidas de
segurança em medidas de prisão), a PIDE passa a ter o direito de encarcerar, por até três anos, presos
políticos considerados perigosos.
120
“camisas azuis” e pelos camisas verdes” que, através da invocação da Cruz de Avis e da
batalha de Aljubarrota
57
, divulgavam conceitos nazi-fascistas na nação portuguesa.
Para melhor compreendermos o motivo que fez com que Bernardo Santareno
retratasse hiperbolicamente os atos de repressão utilizados pelo governo, trazemos ao nosso
texto palavras que ele mesmo proferiu em entrevista à revista Autores:
A peça é o meu grito, o veículo da minha raiva, o arranhar do meu
desespero (...) Ela vale um grito gritado até o fim. Um grito não
estrangulado pelas portas grosseiras e perversas da censura.(...)
(MEDEIROS, 1996, anexos)
58
.
Ou seja, segundo o próprio Santareno, o texto de Português, escritor, 45 anos de
idade é hiperbólico pois nele são retratados todos os atos atrozes que uma outra facção da
espada salazarista, a censura, não deixou, durante anos, que viessem a lume.
Na peça em questão, a personagem “escritorassim define a censura salazarista:
A Censura é, de fato, uma das instituições mais odiosas desse regime. Nos
jornais, escamoteia as poucas notícias verdadeiras realmente importantes
para o povo poder formar uma opinião; pelo contrário, impõe outras
viciadas pela mentira mais grosseira. A censura proíbe tudo quanto, de
perto e de longe, possa levantar a máscara caricaturalmente jovem que
cobre o rosto irremediavelmente velho do chamado Estado Novo. É assim
para os jornais, é assim para os livros, é assim para o teatro, é assim para o
cinema. A Censura corta, remenda, distorce... mente, mente, mente!(...).
(SANTARENO, 1987, v.4, p.68).
Em 1965, quando Bernardo Santareno tinha quarenta e cinco anos (assim como o
“escritor” de Português, escritor, 45 anos de idade),um importante fato político ocorreu em
sua vida: neste ano, Santareno tornar-se-á membro da direção da Sociedade Portuguesa de
Escritores (SPE), mesmo ano em que esta foi encerrada pela polícia repressiva do governo
salazarista (PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
57
Lembramos que o fundador da dinastia de Avis é o Rei D. João I que, por causa da bravura de Nuno
Álvares na Batalha de Aljubarrota (1385), conseguiu vencer os castelhanos e confirmar a soberania da pátria
portuguesa.
58
O referido artigo, publicado na revista Autores julho-outubro de 1974, tem como tulo “Sobre a mais
recente peça de Bernardo Santareno”.
121
A invasão da SPE foi realizada porque os escritores participantes desta entidade
haviam atribuído o Prêmio Camilo Castelo Branco ao escritor angolano Luandino Vieira
que, a cumprir uma pena de 14 anos de prisão no Tarrafal, era considerado pelo governo
como terrorista e, portanto, inimigo do Estado.
Podemos acrescentar que a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965
é um fato a consolidar o medo que a política repressiva do governo de Salazar exercia
nos autores que, desde 1933, quer através da Constituição Política do Estado Novo, quer
através do decreto-lei 22459 (11 de abril de 1933), deviam submeter seus livros e
espetáculos teatrais a uma censura prévia do governo.
O Judeu (primeira narrativa dramática produzida por Santareno) foi, como outros
textos escritos na mesma época, objeto de exame desta censura prévia e, em 21 de
dezembro 1966, teve sua publicação autorizada. Reproduzimos aqui o parecer do censor
que examinou o texto:
Embora as intenções do autor sejam claras, pois é nítido o objetivo de fazer
propaganda política indirecta sem se arriscar a produzir afirmações
pessoais, em meu parecer este livro, apesar de inconveniente, não deve ser
proibido porque não encontro nele razões bem fundamentadas que
justifiquem a proibição, que talvez fosse inoportuna e contraproducente.
(AZEVEDO, 1977, p.149).
O parecer do censor revela dois pontos a serem salientados, o primeiro é que ele
atesta que O Judeu tem “nítido objetivo de fazer propaganda política indirecta”, o segundo
é que designa a peça como “livro”.
Salazar, ministro das finanças desde 1928 e chefe de governo desde 05 de julho de
1932, referiu nas entrevistas que concedeu a António Ferro três grandes argumentos para
justificar as razões para a censura de textos: 1º) a necessidade de se evitarem “ataques
injustificados” à obra do governo; 2º) o interesse de se “moralizar” a imprensa, no âmbito
1
de “ataques pessoais e nos desmandos da linguagem”; 3º) o objetivo de se manter o debate
doutrinário, mesmo no terreno político, no campo da “doutrina pura, doutrina sem acinte,
doutrina com boa fé, de intuitos superiores e reformadores”, cortando-se pela raiz a
“doutrina com aplicação imediata, a doutrina subversiva, demasiado habilidosa, claramente
habilidosa”. (AZEVEDO, 1977. p.100)
O enredo de O Judeu está situado no século XVIII, tempo em que o Santo Ofício
fez com que vários portugueses, dentre eles o dramaturgo António José da Silva (mais
conhecido pela alcunha de O Judeu) e o escritor Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de
Oliveira), fossem perseguidos pela Inquisição Católica. Sendo assim, por distanciar-se
temporalmente de sua época, esta obra de Santareno não apresentaria, inicialmente, razões
para ser censurada.
Salientamos, porém, que uma leitura da peça em questão revela que Bernardo
Santareno construiu o Santo Ofício do século XVIII como uma alusão à política repressora
salazarista do século XX. Desse modo, através de um passado a refletir o presente,
Santareno realizaria, mesmo que indiretamente, o que Salazar designou por “ataques
injustificados” ao governo (ou, como poderia ter designado Santareno, um contra-ataque
“justificado” aos atos de repressão exercidos pelo governo dentre estes, os excessos
cometidos pela(s) Polícia(s) Política(s); a existência da censura “grosseira”, “perversa” e
“odiosa” de jornais e textos literários, e a invasão e fechamento da Sociedade Portuguesa de
Escritores).
Contudo, mesmo sendo possível ver O Judeu como uma peça a observar o presente
através do passado (a fazer “crítica indireta” ao governo), o censor permitiu que o texto
fosse publicado. O motivo para esta atitude pode estar na própria palavra utilizada para
designar o texto: “livro”. Ressaltamos que a peça pode ser assim designada uma vez que
123
essa, principalmente devido à extensão dos monólogos e do próprio texto, é mais propícia à
leitura do que à encenação. Desse modo, em uma época em que o índice de analfabetismo
em Portugal é próximo a sessenta por cento (AZEVEDO, 1977), O Judeu, assim como
outros livros que lhe são contemporâneos, não poderia causar grandes danos à ditadura
salazarista e, portanto, não seria necessário proibi-lo.
Salientamos ainda que os hipotéticos quarenta por cento que liam esta e outras obras
literárias contrárias ao governo, mesmo que concordassem com elas, não conseguiram
destituir Salazar dos cargos que exercia. O motivo, não cabe a este trabalho desvendar (uma
vez que não nos propomos a estudar os mistérios da longevidade da ditadura salazarista),
podemos presumir apenas que as palavras denunciadoras dos livros não conseguiam
sobrepujar o medo que os leitores tinham da política repressiva aplicada pelo governo.
Observamos que o ponto de vista que explicitamos neste momento é também
trazido pelo próprio Bernardo Santareno na peça Monsanto (1977). Nesta peça a
personagem do Sr. Silva, mesmo após ter lido escritos socialistas contrários ao governo
ditatorial, não consegue, devido ao medo de repressão advindo das ações da polícia
governamental, aderir à luta travada pela oposição.
Eu li, (...) li muito. O Alves Redol, o Ferreira de Castro, o Manuel da
Fonseca... Até o Marx.(...) Eu sei, soube sempre, que o mundo pode
melhorar (...) o mundo caminha para o socialismo. Mas a gente tem que
fazer qualquer coisa, tem que lutar, entende? Eu soube sempre isto, mas
nunca fui capaz de passar à prática, de sair pra fora dos livros, pra fora da
minha cabeça... Fui sempre um fraco. Tive sempre medo. Eu bem vi o que
aconteceu aos outros, lá no meu emprego. Presos, todos espatifados, as
famílias à míngua... Nunca fui capaz. (SANTARENO, 1987, v.4, p.196 -
197).
Acrescentamos ainda que na época em que a peça O Judeu foi examinada, década
de 60, o regime salazarista apresentava sintomas de estar enfermo, fato que pode ter
possibilitado a não proibição da obra pela censura.
124
Para comprovarmos esta enfermidade do regime, basta citarmos algumas
manifestações que, nesta década, criticavam mais ofensivamente o governo: em 1960 um
comunista desviou um avião da linha Casablanca e espalhou por Lisboa panfletos
subversivos; em 1961 ocorreu o assalto ao paquete Sta. Maria na América Central, o assalto
às prisões de Luanda, a tentativa de golpe de Botelho Moniz, a resolução da ONU
condenando a política africana de Portugal (não aceitando a nação pluricontinental e
plurirracial), a invasão da União Indiana em Goa, Damão e Diu e a revolta no quartel de
Beja; em 1962 importantes manifestações contra o regime ocorreram no Porto, Lisboa,
Almada e Barreiro, dentre elas, podemos citar a greve de estudantes da Universidade do
Porto, de Lisboa e de Coimbra e a criação da FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique); em 1963 criou-se o PAIGC (Partido Africano para a Independência da
Guiné Bissau e Cabo Verde) composto por guerrilheiros que, comandados por Amilcar
Cabral e financiados pelos russos, agiam em Angola, Moçambique e Guiné; em 1964,
houve uma greve de 10 mil pescadores no Algarve.
Mas também é verdade que estas e outras manifestações contrárias ao regime eram
combatidas violentamente pelo governo ditatorial: Salazar assumiria a pasta da defesa e
daria início à guerra colonial em Angola (1961), a PIDE prendia os contrários ao governo e
os assassinava (dentre eles o escultor José Dias Coelho, em 1961, e o general Delgado, que
concorrera à presidência em 1959 e fora assassinado em 1965), estudantes eram presos em
calabouços e, além da Sociedade Portuguesa de Escritores ter sua sede destruída (fato de
que já tratamos anteriormente), grande quantidade de livros foi proibida ou apreendida
59
.
59
Segundo Azevedo, no ano de 1965, de uma só vez, a editora Europa-América teve 73 mil livros
apreendidos e 23 títulos proibidos. A “caça” começou no dia 14 de Junho de 1965. Em dinheiro da altura, o
prejuízo andou pelo menos na ordem dos 700 contos. Para a grande maioria dos editores portugueses, nesse
tempo, tal situação era a ruína completa.
125
Ou seja, a enfermidade do regime salazarista da cada de 60 não poderia ser
diagnosticada como um estágio terminal da ditadura salazarista que, importante salientar,
duraria ainda até 1968 com um Salazar lúcido, de 1968 até 1970 com o ditador
mentalmente diminuído por ação de um hematoma cerebral e de 1970 a 1974, após
Salazar falecer, com Marcelo Caetano tentando salvar um regime já fadado ao fim.
Dentre as peças santarenianas a serem examinadas pela censura, somente três foram
objetos dos cortes da espada salazarista (A promessa, A excomungada e A traição do Padre
Martinho
60
). Sendo assim, a quantidade de obras mutiladas ou proibidas não colocaria
Santareno dentre os autores mais perseguidos de sua época.
Porém, assim como o medo habitava a mente dos leitores era ele também o
responsável por coibir os escritores de criarem livremente suas obras. Para melhor
observarmos este fato, trazemos a nosso texto depoimentos de três autores, dentre eles o do
próprio Santareno, que escreviam durante o governo salazarista.
José Régio (escritor, editor e diretor da revista Presença) em 1949, por ocasião da
Campanha para a Presidência da República do general Norton de Matos, candidato de
oposição ao governo Salazar: “Na luta que actualmente se trava em Portugal entre duas
formas de pensar e sentir, de governar e de serum poderoso elemento há com que jogam
os antagonistas: o medo” (AZEVEDO, 1977, p.77).
Ferreira de Castro:
Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no
que a censura proíbe, mas também no receio do que ela pode proibir. Cada
um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de
trabalho e essa invisível e incorpórea presença tira-nos toda a
espontaneidade, corta-nos todo o élan, obriga-nos a mascarar nosso
60
As peças citadas sofreram as seguintes restrições da censura: A Promessa foi proibida de ser encenada após
dez dias da estréia, A Excomungada foi mutilada de seus dois últimos atos e somente o primeiro (sob o tulo
de Irmã Natividade) pode ser publicado na segunda edição do texto, A Traição do Padre Martinho teve sua
estréia proibida em Portugal e, por este motivo, foi primeiramente encenada em Cuba.
126
pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: Eles
deixarão passar isto? (AZEVEDO, 1977, p. 12).
Bernardo Santareno, em 1976:
O teatro foi perseguido, absurdamente perseguido. Naquele regime havia
medo do teatro. s, os dramaturgos, não estávamos contentes com aquele
regime no qual passamos grande parte de nossa vida, e começamos a lutar
com nossa arma específica que era o teatro. Naturalmente, o regime não
aceitava isso e proibia as peças. Publicávamos, então, as nossas pas, pois
elas podiam ser lidas partindo do princípio de que as pessoas não liam um
texto de teatro com muito prazer, mas, com isso, acabou-se criando um
blico leitor de peças. (ASSUPÇÃO, 1986, p. 45).
As palavras dos três escritores, se analisadas em conjunto, podem criar um quadro
que reflete o dilema da produção literária de uma época ditatorial: com o intuito de manter
o poder, o governo salazarista empunha contra seus opositores a espada censória do medo;
esta espada não só proíbe os textos concluídos, mas também incute na mente de cada
escritor um mutilador interno a cercear a própria liberdade de criação; quanto aos que
vencem o medo externo e interno, resta-lhes mostrar as convicções que possuem em textos
que não mais habitam o tablado teatral, mas sim um palco de papel destinado a uma
pequena parcela da população.
61
Acrescentamos ainda que Santareno soma à repressão exercida pelas polícias
políticas e pela censura uma outra: a exercida através dos decretos-lei que anulam a própria
“Liberdade” promulgada pela Constituição.
Neste momento da análise não nos cabe comprovar a veracidade deste fato, pois o
próprio Santareno o faz em uma exaustiva listagem a constar leis e decretos numerados e
61
É importante observamos que várias peças de Santareno, mesmo as que não pertencem ao teatro narrativo,
foram primeiramente publicadas e anos mais tarde encenadas. Salientamos aqui algumas datas,
respectivamente, de publicação e de encenação que comprovam a veracidade desta afirmação: António
Marinheiro (1960/1967), O Duelo (1961/1971), O pecado de João Agonia (1961/1965), O Judeu
(1966/1981). Acrescentamos ainda as datas de publicação de textos que até hoje não foram encenados: A
excomungada (1957, versão completa ainda não encenada), O bailarino (1957), Os anjos e o sangue (escrita
para a televisão em 1961, mas que ainda não foi gravada), Anunciação (1962), O inferno (1967) e O punho
(1980).
127
datados. Evidenciamos, contudo, alguns dos decretos-lei trazidos ao texto por Santareno: o
de 22.469 (responsável por criar a comissão de censura), o de 22.468 (limitando a
liberdade de reunião), os de 35.042 e 35046 (os quais possibilitaram a polícia a
prenderem cidadãos sem estes terem culpa formada), o de25.317 (que proibia os que se
opunham ao governo de assumirem cargos públicos), os de outubro de 1949 (a proibirem os
cidadãos contrários à ordem social estabelecida de votarem) e o de 1933 (que proibia aos
Sindicatos a filiação em quaisquer organismos de caráter internacional).
Salientamos também que em Português, escritor, 45 anos de idade, Santareno
explicita, assim como o faz na entrevista concedida à revista Autores, que a política de
repressão exercida pelo governo salazarista (com sua polícia política, censura e
cerceamento das leis) está aliada à ideologia nazi-fascista cultuada no século XX.
No enredo da peça, após o final da Segunda Grande Guerra Mundial, em um circo,
três chipanzés vestem, respectivamente
(...) uma scara de Hitler, o outro uma de Mussolini e o terceiro, mais
pequeno, uma com um grande ponto de interrogação. O Palhaço Pobre vai
junto do Chipanzé-Hitler, reconhece-o e faz-lhe um grande manguito. O
mesmo para o Chipanzé-Mussolini. Junto do Chipan, o Palhaço Pobre
fia perplexo coçando a grenha. De bito, compreende, uma cambalhota
e afasta-se do Chipanzé fazendo três manguitos. (SANTARENO, 1987, v.4,
p. 74).
Apesar de a figura do chipanzé ser vista facilmente pelo leitor/espectador como uma
maneira cômica de ridicularizar os ditadores nazi-fascistas, é pertinente trazermos à nossa
análise uma possível intenção simbólica colocada por Santareno na escolha deste animal.
O dicionário de símbolos de Chevalier não faz referência direta ao chipanzé, porém
explica o significado do macaco: para o homem ocidental, “há um aspecto desconcertante
na natureza do macaco, o da consciência dissipada (...) é um animal irritável e tolo.”
128
(CHEVALIER, 2003, p.573), além disso, segundo a psicanálise, o macaco é uma imagem
de (...) insolência e de vaidade; (...) a caricatura do ego” (ibidem, p.576).
Ou seja, ao colocar Hitler e Mussolini como chipanzés, Santareno estaria não
tornando cômico o seu texto, mas também fazendo uma alusão ao fato de que estes homens
de ideais nazi-fascistas poderiam ser comparados a animais, pois seus atos os revelam como
seres cuja consciência, por egocentrismo e vaidade, cessou.
Quanto ao terceiro chipanzé, identificado inicialmente por um ponto de
interrogação, Santareno o vê não só como um animal vaidoso de consciência dissipada, mas
também como aquele que não assume as ideologias nazi-fascistas que possui.
Posteriormente, o autor faz várias referências a quem seria este “Chipanzé
Pequeno”, dentre elas a de que ele exerce o cargo de Senhor Ministro do Interior e Senhor
Presidente.
Observamos que Oliveira Salazar, nos 42 anos que participou do governo português,
desempenhou várias funções. De 1928 até 1940, ocupou a pasta do Ministério das
Finanças; sendo que, em 1929, acumulou a essa a das Colônias e Interior; em setembro de
1930 acrescentou aos cargos já exercidos a nomeação de Presidente do Conselho de
Ministros, e, em 1932, assumiu a Chefia de Governo cargo que exerceu ativamente até
1968, quando foi vítima de um acidente que diminuiu suas capacidades física e mental.
Sendo assim, como fizera em toda a primeira parte de seu texto, Bernardo
Santareno, também na segunda parte, tem como alvo principal de suas críticas o governante
Oliveira Salazar.
A veracidade das denúncias feitas neste momento pelo autor (de que Salazar sempre
cultivara os mesmos ideais nazi-fascistas de Hitler e Mussolini) é comprovada pela própria
história política do governo salazarista. Dentre os fatos que poderiam comprovar esta
129
proximidade, citemos dois que aparecem não na peça santareniana, mas também na
história de Portugal.
Ainda na primeira parte da peça, “o escritor quando adolescente” é testemunha do
discurso inflamado de alunos que vêem com bons olhos o apoio que o governo português
oferece a Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-39). Historicamente, este apoio é
verdadeiro e revela não somente a união entre Salazar e Franco, mas também a destes dois
governantes com Mussolini e Hitler pois, enquanto Salazar envia 8000 voluntários para
lutarem a favor de Franco no território espanhol, Mussolini envia aviões, blindados e tropas
de infantaria e Hitler, por sua vez, com a Divisão Condor bombardeia Madri e Guernica.
Além disso, na segunda parte do enredo, como observamos, o pai do escritor
compara os excessos de violência que os nazistas impunham aos judeus com as ações da
polícia portuguesa contra os que fazem oposição ao governo. Evidenciamos que a
comparação feita pelo pai do escritor é pertinente uma vez que a PVDE (Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado), criada por Salazar e chefiada por Agostinho Lourenço, fora
treinada por agentes italianos e alemães
62
.
Acrescentamos ainda que no circo, cenário da segunda parte, os Chipanzés Grandes,
hieráticos-mártires postos em retrato, observam com orgulho o “Chipanzé Pequeno” e o
“Palhaço Rico” destruírem, com a anuência de decretos-lei, as Liberdades Constitucionais.
62
Assim observa Álvaro Cunhal a proximidade entre Salazar, Mussolini e Hitler: “Salazar tinha como
inspiradoras as ditaduras fascistas da época. Ele próprio sublinhou a semelhança da ditadura fascista italiana.
Fez copiar a ‘Carta Del Lavoro’ para o Estatuto do Trabalho Nacional. Inseriria nos volumes de seus
discursos a sua própria imagem tendo na secretária um retrato de Mussolini, cujo ‘gênio político’ gabava.
Colaborou estritamente com Hitler apoiando-o durante a guerra. (...) Liquidou liberdades e direitos.
Perseguiu, fez prender, torturar com freqüência até a morte, condenar até 20 e mais anos de prisão e mesmo
assassinar friamente muitos dos que se opunham à ditadura. Criou uma polícia política toda poderosa (PIDE),
uma milícia fascista (a Legião Portuguesa), uma organização fascista para-militar da juventude (a Mocidade
Portuguesa). Ano ritual político copiou as marcas do fascismo: o braço estendido, o uniforme militarizado,
o boné e as botas”. (CUNHAL, 1976, p. 15)
130
Observamos que, na história italiana, Benito Mussolini funda o Partido Nacional
Fascista e, através deste, sobe ao poder com uma política centralizada, forte,
antibidemocrática e antiparlamentar. Além disso, como órgão a ratificar o poder
conseguido, o ditador cria um corpo militar responsável por fazer valer uma disciplina
rígida a lutar contra os líderes sindicais e socialistas (os Camisas Negras). Acrescentamos
ainda que o governo fascista de Mussolini proíbe greves e cria, para a manutenção do
poder, uma polícia secreta (OVRA), tribunais para crimes políticos e listas únicas de
candidato às eleições.
Na história alemã, por sua vez, após subir ao poder, Hitler dissolveu todos os
partidos políticos (exceto o Nazista), criou uma poderosa polícia política (a Gestapo) e
sancionou decretos responsáveis por prender em campos de concentração quaisquer
opositores ao seu regime (dentre estes, os comunistas que ele julgou culpados pelo atentado
de fevereiro de 1933 contra o Reichstag, e os judeus, vistos como povo a manchar a raça
pura germânica).
Salientamos, porém, que apesar de o chipanzé interrogação” ser, na peça
santareniana, menor do que o chipanzé Hitler e Mussolini, o regime salazarista, se
comparado aos outros, é o que maior longevidade alcançou, pois, enquanto os outros
ditadores ficaram no poder somente até o final da Segunda Grande Guerra (Hitler
cometendo suicídio em 1945 e Mussolini sendo executado nesse mesmo ano), Salazar fica
no poder, como vimos, até 1968.
Acrescentamos, contudo, que os atos violentos utilizados por esses ditadores não
findaram com o final de seus governos. Observando este fato, na peça O inferno, Santareno
propõe discutir, sete anos antes de Português, escritor, 45 anos de idade, as possíveis
origens de homens que, através do culto a um pensamento nazi-fascista, cometem
131
atrocidades. Todavia, se teremos que esperar a análise de O inferno para compreendermos a
procedência destes homens, um estudo da personagem do filho do escritor pode nos revelar
uma discussão acerca dos que, no momento da guerra, encontram o ambiente para
revelarem os instintos de violência que possuem.
Através das rubricas e das cartas a descreverem as ações do filho do escritor,
podemos acompanhar a transformação de sua personalidade.
Na primeira batalha, segundo as rubricas, o filho do escritor apanha a pistola-
metralhadora que lhe deram. Neste momento, ele tem medo da arma e apenas consegue dar
tiros qualificados como vacilantes” (SANTARENO, 1987, vol.04, p. 132). Movido então
pelo terror, o menino “puxa o gatilho e dispara em todas as direções” (ibidem, loc. cit.) e o
resultado desses disparos ele contempla horrorizado: dois mortos.
Na primeira carta, escrita a seus pais após um mês em terras africanas, o filho do
escritor retrata o sofrimento que sentiu ao matar os dois negros; além disso, para justificar-
se pelas mortes, salienta que se não tivesse puxado o gatilho, provavelmente ele é quem
estaria morto naquele momento.
Em outra batalha,
(...) ouve-se uma rajada de metralhadora (...) O Filho parece-nos agora
firme, ousado e decidido. Bem agarrado à sua pistola metralhadora, procura
descobrir os inimigos. (...) Então, num salto súbito, começa a disparar:
implacavelmente. Gritos de dor, corpos que rolam. Todos os negros estão
mortos e o filho ainda dispara: feroz, com prazer (...) o olhar cruel e
definitivo (...) (ibidem, p. 134).
Na carta a seus pais, o filho do escritor mostra-se orgulhoso por “limpar uma data
de terroristas” (ibidem, loc. cit.) das terras portuguesas e por, através desse ato, ter
encontrado o caminho para ser visto pelos outros soldados como um “herói” (ibidem, p.
135).
132
Sendo assim, Santareno retrata na personagem filho do escritor” um homem que,
ao ser submetido à guerra, deixa vir à tona suas características: primeiramente, ele mata
guiado pelo medo e pelo instinto de autopreservação; posteriormente, pelo instinto de
prazer pela violência e pelo egocentrismo de ser visto como herói.
Para que possamos melhor compreender essas atitudes que Santareno imprimiu ao
“filho do escritor”, acrescentamos que a mãe desta personagem, antes mesmo de ver o filho
ser submetido à guerra, observava nele “um narcisismo, um exibicionismo exagerados”
(ibidem, p. 119).
Desta forma, podemos dizer que o autor Bernardo Santareno, seguindo um
pensamento naturalista/determinista proveniente, talvez, da profissão de psiquiatra exercida
pelo homem Antônio Martinho do Rosário, coloca a personagem do filho do escritor
tendo suas anormalidades de conduta (entendidas aqui como o instinto de violência
proveniente da vaidade e exibicionismo exagerados) acordadas “em determinado momento
pela ambiência deletéria” (SILVEIRA,1994, p.100) da guerra.
Na terceira batalha retratada, o filho do escritor é atingido e morre. As palavras do
governo descrevem um jovem com “sangue-frio, agressividade, grande energia debaixo de
fogo (...) um exemplo raro de valentia (...)” (ibidem, p. 135 - 136), além disso, salienta o
pronunciamento do governo ditatorial, por sua coragem, João é digno de ser condecorado
com a “Cruz de Guerra de 1ª classe” (ibidem, p.137).
Neste momento julgamos ser pertinente acrescentarmos que, ao contrário das
demais personagens de Português, escritor, 45 anos de idade, a personagem do filho do
escritor é designada por um nome específico: João.
133
De origem judaica, o nome João (Yehokhanan) significa “Deus é gracioso”. Porém,
em Portugal, este mesmo nome está diretamente vinculado a monarcas que, no poder,
realizaram atos diretamente contrários ao povo semita.
O monarca D. João III (1521-1557) foi quem, em 1536, instaurou a Inquisição em
Portugal, além disso, em 1541, ainda sob a coroa desse rei, realizou-se na terra lusitana o
primeiro auto-de-fé a punir com a morte os que eram “acusados de judaísmo (...) feitiçaria e
depravação de costumes” (SARAIVA, 1995, p.182). Por sua vez, durante o reinado de D.
João IV (1640-1656), as cortes incentivavam o “ódio rácico-religioso nutrido contra os
judeus e os cristãos-novos” (SILVEIRA, 1992, p.63), segregando os que não acreditavam
na lei de Cristo e impedindo o acesso “a funções ou cargos de honras e responsabilidades
de todos quantos não tinham bem demonstrada a pureza em seu sangue” (ibidem, loc. cit.).
Por fim, como observa o próprio Bernardo Santareno através da personagem designada de
Cavaleiro de Oliveira em O Judeu, na vigência do reinado de D. João V (1706-1750), os
que estão no comando da Igreja Inquisitorial
São forças negras, vedadas à luz da razão”, forças que, com a anuência do
rei, nutrem “A paixão do mando absoluto, o ódio sectário, a crueldade
vestida de apóstolo, o desprezo aristocrático e não a miserirdia pelo
pecado, a fúria cega contra a raça dos judeus (...) E tudo o fazem em nome
de Nosso Senhor Jesus Cristo. (SANTARENO, 1995, p. 130).
Acrescentamos ainda que os monarcas D. João I (1385-1433) e D. João II (1481-
1495) não exerceram atos de violência racista contra os judeus. Lembramos, contudo, que
foi durante o governo destes monarcas que ocorreram fatos a estabelecerem o início das
conquistas portuguesas em África
63
e que, portanto, nestes reinados é que se estabeleceu o
63
Os portugueses conquistaram Ceuta em 1415, sob o comandado do monarca D. João I. Em 1482, sob a
regência de D. João II, o navegante português Diogo Cão iniciou a viagem em que marcos, designados como
padrões, asseguravam e comprovavam a prioridade portuguesa na posse das terras africanas.
134
pensamento, também racista, de que os colonizados deviam ser subservientes à católica
cunhada na heroicidade da coroa portuguesa.
Sendo assim, através do nome dado à personagem “filho do escritor” Santareno
pode estar denunciando que a história heróica de Portugal esconde, na verdade, outros
“João(s)” que, apoiados pela igreja, agiram com violência contra os que julgam ser de outra
espécie (judeus, cristãos novos ou negros).
Lembramos ainda que, no início da segunda parte de Português, escritor, 45 anos
de idade, o próprio Santareno, conforme observamos, já havia colocado simbolicamente as
características de vaidade e egocentrismo (apresentadas pela personagem João) também nos
ditadores Hitler, Mussolini e Salazar. Desse modo, a construção da personagem “filho do
escritor estaria ainda denunciando que os governantes de sua contemporaneidade não
poderiam ser vistos como heróis, pois eles são, na verdade, “forças negras” (ibidem, loc.
cit.) a trazerem, ao presente, a violência e a segregação racial cultivadas no passado
(sendo agora os segregados aqueles tachados de socialistas, comunistas ou terroristas).
Através do raciocínio acima, podemos melhor compreender a desilusão revelada
pela personagem “escritor” no final do enredo.
Observamos que toda a primeira parte da peça tem como objetivo mostrar como o
menino que nasceu no berço da República tornou-se um “escritor” sem medo de lutar
contra a ditadura. Nesse sentido, o enredo enfoca estágios da vida dessa personagem: é um
“menino” que viu seu pai ser preso e espancado, por diversas vezes, pela PIDE; um
“adolescente” que presenciou uma Mocidade Portuguesa a perseguir os comunistas; um
“jovem” que compreendeu que a igreja compactua com atos odiosos perpetrados pelo
135
governo e um “escritor” que viu, na manifestação escrita, sua maneira de libertar o povo
português do Mal que é o governo salazarista.
Na segunda parte do texto, a história de formação política do “escritor” lugar ao
retrato de um país que, mesmo após a derrota do nazi-fascismo na Grande Guerra
Mundial, ainda continua a permitir que seu governo perpetre as ações cruéis deste tipo de
política (ainda exerça censura a textos jornalísticos e literários, decretos que modificam leis
constitucionais, torturas em colônias penais e repressões armadas no Portugal continental e
além-mar). Porém, na luta travada contra o Mal que oprime seu povo, o “escritor” sua
derrota ao perceber que seu próprio filho se tornara um representante das “forças negras”
(SANTARENO, 1995, p.130) contra as quais lutara.
Sendo assim, ao dizer “Tudo acabou para mim. Não luto mais. Venceram eles”
(SANTARENO, 1987, v.4, p.138), o escritor” lamenta o somente a morte de seu filho,
mas também, e principalmente, a fatídica comprovação de que esse, ao ser condecorado
como herói de uma guerra fascista, fora produto passivo de um meio corrompido que,
apesar das lutas, não pode ser modificado pela vontade humana.
Nesse momento da análise, podemos também melhor entender a descrença que
vários autores portugueses, dentre eles o próprio Bernardo Santareno, manifestavam no
início dos anos de 1970.
Após quatro décadas de um governo que se declarava abençoado por Deus (na
figura de Nossa Senhora de Fátima e de Nuno Álvares), os autores (amedrontados pelas
espadas do presente: a censura realizada nos jornais e na literatura, as polícias políticas
criadas por Salazar, as prisões igualáveis aos campos de concentração nazis, os decretos-lei
a cercearem liberdades e a guerra no além-mar) mostravam o cansaço proveniente de uma
136
luta contra um meio corrompido que, naquela época, parecia ter-se sedimentado de maneira
atemporal na terra portuguesa.
Porém, se após março de 1974 (data assinalada no final da peça), a personagem
“autor” desiste de sua luta, cometendo suicídio na cela de uma prisão
64
, nesta mesma época
o homem-escritor Bernardo Santareno traz a seu texto uma “atriz” que, despindo-se da
personagem ficcional, convida os espectadores a utilizarem a história narrada como um
estímulo para a ação revolucionária transformadora. Ou seja, contra o determinismo social
que leva à desistência um “escritor” (que é o retrato da desilusão que abate a terra
portuguesa), levanta-se uma “atriz” a manifestar uma voz de luta iluminada pelo relato
teatral apresentado.
Neste momento fica claro o confronto não do “escritor” (personagem ficcional) com
a “atriz (personagem pseudo-real), mas sim de um Santareno que, ao analisar os
agonismos dos portugueses, e portanto, os seus próprios agonismos, debate-se entre um
homem incapaz de mudar a sociedade e outro que quer transformá-la e torná-la mais justa.
I.2.2.5- Bernardo Santareno: ascese do português Antônio Martinho do Rosário.
(...) alguns dramaturgos realizam a descida aos infernos, testemunham o
mundo tal como o em através das grades do seu rcere de angústia e
desespero, despem os homens dos adereços enfeitantes que a prática de
normas sociais seculares lhes emprestou, denunciam o desnaturado das
relações humanas mais aceites e, em gritos agônicos de linguagem
atomizada uivam a sua incapacidade de reajuntarem o que o uso, a mentira,
64
O suicídio da personagem “escritor” é trazido ao texto pela fala do “escritor” que, no início da peça, diz:
“Minhas senhoras e meus senhores: É com a mais profunda comoção que estou aqui junto de Vossas
Excelências, para lhes dar uma nova. Uma nova terrível, ainda mais terrível porque inesperada. Minhas
Senhoras e meus Senhores, o autor desta comédia acaba lamentavelmente de pôr termo à vida, na cela da
prisão onde cumpria pena por crime contra a segurança do Estado.” (SANTARENO, 1987, v.4, p.28).
137
a injustiça e o desamor separaram cruelmente.” (SANTARENO, 15 de
Fevereiro de 1973)
65
Aos trinta anos, Antônio Martinho do Rosário criou o dramaturgo Bernardo
Santareno e decidiu, a partir desse momento, que seria um autor cujas palavras construiriam
degraus de uma descida aos infernos para denunciar as normas sociais que trazem angústia
e desespero aos lusitanos.
A primeira norma a ser denunciada, como observamos na análise, prega uma
religiosidade católica que dignifica o sofrimento terreno. Podemos ver essa religiosidade
nas quatro peças estudadas. Em A promessa, o sofrimento levado às últimas instâncias é
representado por um casal que vive em castidade não só para agradecer que Salvador tenha
sido salvo, mas também, e principalmente, para se fazer espelho das chagas sofridas pelos
Santos e por Cristo. Em Antônio Marinheiro, uma mãe quer se regenerar por ter
abandonado o filho, contudo, habitando em uma aldeia de católicos punitivos, essa vontade
materna não é capaz de modificar uma predestinação que, aos moldes trágicos, conduz
certos homens à infelicidade. Em A traição do padre Martinho, os operários e os lavradores
sofrem pela miséria monetária, mas a Igreja confirma que esse sofrimento terreno é apenas
uma das provações que leva o homem obediente ao Céu. Português, escritor, 45 anos, por
sua vez, traz o retrato de um povo sofredor que acredita em Fátima e em Nuno Álvares
como modelos santificados de conduta.
A segunda norma credita a certas pessoas, mesmo após a queda da monarquia e à
extinção do feudalismo, um poder absoluto que parece lhes ter sido oferecido por Deus e
que, portanto, não pode ser discutido. Das peças que estudamos, Português, escritor, 45
65
O trecho aqui transcrito faz parte do espetáculo a homenagear os vinte e cinco anos de morte de Bernardo
Santareno. Designado como Bernardo, Bernarda (2006) o texto em questão trabalha não só com as palavras
que Santareno declarou à mídia, como é o caso do trecho acima, mas também com fragmentos das obras A
promessa, O bailarino, O lugre, Antônio Marinheiro, O duelo, O pecado de João Agonia, A anunciação, O
Judeu, Português, escritor, 45 anos de Idade, A confissão e O punho.
138
anos de idade e A traição do padre Martinho são as que retratam a presença desse
pensamento em Portugal. Na primeira, Santareno mostra o governante português Antônio
Oliveira Salazar colocando-se como o escolhido” por Deus para governar Portugal e,
portanto, como o homem que deve ser admirado e obedecido pelo povo lusitano de maneira
irrestrita. Na segunda peça, a Igreja confirma os senhores – denominados aqui como
Lavrador e Engenheiro como aqueles que possuem uma posição hierárquica estabelecida
por Deus.
A terceira norma trata da família construída conforme os moldes religiosos. Em A
promessa, esses moldes significam a valorização do espírito em detrimento da carne. Em
Antônio Marinheiro, a personagem de Rosa afirma que os laços do matrimônio são
indissolúveis e a mulher tem que estar a eles atada, mesmo que a união com seu marido se
transforme em um fardo. Além disso, observamos que, nessa peça, a família cristã é
ameaçada não pela presença da possível relação homossexual entre Rui e Antônio, mas
também pela presença psicológica do Complexo de Édipo. E em Português, escritor, 45
anos de idade o lema da Mocidade Portuguesa explicita a Família como um dos alicerces
básicos do governo salazarista.
Sendo assim, através dos textos estudados, podemos dizer que Santareno denuncia
três principais normas em seus textos: a religiosidade que prega o sofrimento humano, o
governo e a sociedade baseados no pensamento hierárquico-social opressor e a família nos
moldes católicos.
Essas três normas estão ligadas não ao pensamento portugs, mas também ao
governo salazarista que possuía na trilogia “Deus, Pátria e Família” o alicerce da ditadura
instaurada em Portugal a partir de 1933.
139
Todavia, a essa literatura que denuncia o sofrimento causado pelas normas a serem
seguidas, um problema se apresenta: como destruir a prisão em que os portugueses
habitam, se eles parecem aceitar a presença das grades desse cárcere?
A violência do uivo pode ser um dos caminhos a ser seguido. Ou seja, Santareno
mostraque os portugueses devem voltar à sua Natureza instintiva para destruírem as
crenças católicas que os asfixiam. Nesse sentido, Maria e José tornam-se animais ferozes
que copulam, e Amália, por sua vez, emitiria uivos de mulher desesperada no cio.
O outro caminho, trilhado pelo padre Martinho e pela personagem “escritor”, é a
defesa do Comunismo como sistema econômico a ser seguido. Nesse caso, a violência
também existirá, mas ela será fruto, não dos homens que desejam se libertar das normas
que os sufocam, mas sim dos que querem mantê-las.
Entretanto, descendo aos infernos do que atormenta os portugueses, Bernardo
Santareno parece se deparar com mais um obstáculo: ele também tem em si as chagas
sofridas pelos portugueses.
Nascido em Portugal, Antônio Martinho do Rosário recebeu de seu pai um
sobrenome ligado à religião católica. Além disso, como pudemos perceber na análise das
peças A promessa e A traição do padre Martinho não o nome, mas também o profundo
conhecimento da Bíblia, da patrística e dos documentos da Igreja vinculam nosso autor à
religião católica.
Contudo, aos trinta anos, denominando-se Bernardo Santareno, o escritor abdica
simbolicamente de seu sobrenome católico e escolhe, a partir de então, tornar-se um
homem que acredita na possibilidade de uma ascese mística e nas ligações telúricas com a
sua terra portuguesa.
140
Observamos que nas peças analisadas, diferentes formas de ascese do humano são
abordadas. Joe Maria, por exemplo, têm, no ritual da sexualidade feroz e na aceitação
dos desejos carnais, a elevação mística do sentido religioso do matrimônio. Antônio e
Amália, por sua vez, trazem, na união que possuem, uma regeneração” de indivíduos que
procuram o verdadeiro livre-arbítrio cristão. Martinho tem, na escolha que faz, uma nova
forma de pregar a vida religiosa virtuosa. A atriz que representa a personagem mulher do
escritor”, por fim, tem, no convite à luta, uma esperança de que a ascese almejada pelo
humano possa ser conseguida por vias políticas.
Em O inferno, a experiência ascética também será retratada. Contudo, como em
outras peças de Santareno, personagens que representam assassinos serão os que buscam
um novo sentido para a elevação do humano.
Sendo assim, podemos dizer que a dramaturgia santareniana nos mostra um homem
português que entende o inferno não como o tio que alguns habitarão no pós-vida, mas
sim a angústia e o desespero sentido por dois tipos de homens: os que aceitam as normas
asfixiantes e os que descem degraus a revelarem, a si e aos outros, as negras faces da
sociedade em que habitam.
Podemos agora construir, com mais propriedade, os traços do dramaturgo Bernardo
Santareno: homem com profundo conhecimento do catolicismo; homem que não acredita
na predestinação (seja ela o símbolo do pecado original cometido ou da hierarquia social a
ser cumprida); homem que vê, na volta à sexualidade instintiva e na ligação do ser com a
terra, uma forma de ascese; homem que encontra no comunismo a possibilidade de uma
elevação da sociedade. Dramaturgo português, enfim, que traz às suas peças o direito de
compreender o que traz agonia e desespero aos portugueses.
141
II – Ian Brady e Myra Hindley: os primeiros degraus aO inferno de Orfeu e Eurídice.
(...) teremos todos de descer aos infernos, degrau a degrau, sem medo nem
cobardias” (SANTARENO, s.d., p. 20)
No início do texto dramatúrgico de O inferno, Bernardo Santareno traz ao leitor a
informação de que a história escrita teve como ponto de partida um fato real ocorrido na
Inglaterra: o julgamento dos “amantes diabólicos” de Chester.
Por meio de um recorte jornalístico, o dramaturgo nos informa que Ian Brady e
Myra Hindley foram condenados, em 06 de maio de 1966, à prisão perpétua pelos
assassinatos de Edward Evans (17 anos), Lesley Ann Downey (10) e John Kilbride (12).
Além disso, como assinala a reportagem, o processo abordou um dos crimes mais atrozes
da história da magistratura, uma vez que as vítimas foram executadas, de maneira cruel, “a
sangue frio”.
Assim como Santareno o fez, nossa análise também partirá da verdadeira história
desses amantes diabólicos. Contudo, acrescentaremos ao fragmento jornalístico trazido pelo
autor outras informões que, veiculadas pelas mais diversas mídias
66
, mostram quem
foram e o que fizeram Ian Brady e Myra Hindley.
Sendo assim, iniciaremos um estudo que visa não somente observar o que é
realidade e o que é ficção nesse texto santareniano, mas também compreender,
posteriormente, porque Bernardo Santareno acrescentou ficção e intertextos a uma
realidade já tão atroz.
66
Além dos jornais da época, a internet apresenta mais de 34.400 sítios virtuais acerca dos dois assassinos.
Nosso estudo se baseará nas informações contidas na reportagem publicada no jornal português Diário de
Notícias (07/05/1966) e em algumas ginas eletrônicas que revelam outras reportagens a tratarem dos
assassinos Ian Brady e Myra Hindley.
142
II.1- Primeiro degrau: a verdadeira história de Ian Brady e Myra Hindley.
Ian Brady e Myra Hindley nasceram em Manchester, Inglaterra. Ele, no dia 02 de
janeiro de 1938. Ela, quatro anos depois, em 23 de julho de 1942.
Ian era filho de uma garçonete escocesa. Nunca conheceu seu verdadeiro pai e sua
convivência com a mãe resumiu-se, até os 16 anos de idade, a algumas visitas esporádicas.
Foi criado por pais adotivos em Gorbals, bairro pobre de Glasgow. Com o tempo, ganhou a
reputação de sádico por torturar outras crianças e animais somente “por divertimento”. Na
infância e no início da adolescência, arrombou casas e participou de roubos que lhe
custaram acusações em pequenos tribunais e a obrigatoriedade de viver, a partir de 1954,
com sua mãe e seu novo padrasto, Patrick Brady. A partir desse momento, Ian adotou o
sobrenome do padrasto e continuou com suas pequenas atividades criminosas movidas,
desde então, também pelo alcoolismo. Uma semana após completar dezoito anos, Ian Brady
foi condenado a dois anos de prisão por roubo. A penitenciária a que foi enviado ficava em
Borstal e fora construída para abrigar delinqüentes que possuíssem inteligência acima da
média. Algum tempo depois, por consumir e fabricar bebidas alcoólicas, Ian foi transferido
para uma prisão com regime mais rígido, em Hull. Em 1958, Ian foi libertado da prisão.
Nesse mesmo ano, porém, foi obrigado a pagar uma multa por dirigir bêbado; este foi, antes
das acusações de assassinato sofridas em 1965, o último registro de contravenção que teve
Ian Brady.
Myra Hindley era filha de Nellie e Bob Hindley. O pai, um ex-pára-quedista da
Força Aérea Real, era alcoólatra, vício que o faria, segundo testemunhas, espancar Myra
quando ela era apenas uma criança. Em 1946, aos quatro anos, após o nascimento de sua
irmã Maureen, Myra passou a ser criada pela avó, Ellen Maybury, no subúrbio industrial de
143
Gorton. Na escola, Myra sempre teve um rendimento considerado abaixo da média. Na
adolescência, trabalhou como babá e, aos quinze anos, a morte de um amigo fez com que
ela se convertesse ao catolicismo. Em 1965, mesmo ano em que fora acusada de
cumplicidade nos assassinatos cometidos por Ian Brady, os pais de Myra se divorciaram e
sua mãe casou-se com um homem chamado Moulton.
Ian Brady e Myra Hindley se conheceram em uma pequena indústria química, em
Manchester, no ano de 1961. Ele, então com 23 anos, exercia a função de controlador de
estoque desde 1959. Ela, com 18 anos, fora contratada para exercer a função de datilógrafa.
No primeiro encontro, o casal foi ao cinema e assistiu ao filme O julgamento de
Nuremberg. Após essa primeira experiência, Ian, com o objetivo de conquistar Myra,
dividiu com ela sua biblioteca pessoal: livros de Hitler, Sade e Nietzsche. Ela, por sua vez,
agradou a Ian ao descolorir os cabelos para ter uma aparência mais próxima a das mulheres
alemãs pertencentes à raça ariana.
Ainda no início do relacionamento amoroso, o casal fez fotos em que com capas,
chicotes e cães posava de formas obscenas. Ian tentou vender essas fotos, mas elas não
foram bem recebidas pelo mercado pornográfico.
No ano de 1963, cerca de dezoito meses após se conhecerem, Ian e Myra
começaram a cultuar assassinatos violentos como forma de expressar a profunda união
amorosa que tinham.
Em 1965, o casal foi denunciado pelo cunhado de Myra, David Smith, como
responsável pela morte de Edward Evans. Segundo David, ele e Ian tinham longas
conversas a falarem de homicídios cruéis. Em uma dessas, Ian teria dito ser capaz de
cometer tais crimes. Com o intuito de comprovar tal capacidade, Ian o fez presenciar a
morte brutal de Edward Evans.
144
O assassinato ocorreu no dia 06 de outubro de 1965. Nessa data, conforme
depoimento de David Smith, Ian Brady o convidou para beberem vinho na casa da avó de
Myra. Quando estava na cozinha, David ouviu gritos de Myra pedindo que ele ajudasse Ian.
Ao entrar no quarto, David viu Ian desferindo machadadas na cabeça de Edward e, depois,
estrangulando-o com um cabo elétrico. Também segundo David, Ian pediu sua ajuda para
limpar os indícios do assassinato e remover o corpo, ações que ele praticou com o intuito de
não desagradar o cunhado e, quando não mais julgasse correr perigo de vida, denunciaria o
assassino às autoridades policiais.
Às seis horas da manhã de 07 de outubro de 1965, David, que contara à sua
esposa o ocorrido, foi com ela até uma cabine telefônica para denunciar o crime à polícia.
David levava uma chave de fenda e uma faca que, segundo ele, o protegeriam caso Ian os
encontrasse.
Movido pela denúncia, o policial Bob Talbot realizou a primeira busca à casa de
Maureen. Myra atendeu à porta e, após o policial explicar as denúncias recebidas, o levou
até Ian. Parcialmente vestido, sobre o divã da sala, Ian permitiu que a casa fosse revistada.
Um dos quartos estava com a porta trancada e Ian só concordou em abrir o recinto após
discutir com o policial por alguns momentos. Nesse quarto, Talbot encontrou o corpo de
Edward Evans dentro de um saco de poliuretano.
Ian, ao ser interrogado pelo policial, admitiu ter cometido o assassinato. Declarou
também que Myra não tivera nenhum envolvimento com essa morte e acusou David Smith
de ser seu cúmplice.
Ian, acusado do assassinato de Edward Evans, foi preso nesta mesma mande 07
de outubro de 1965. Quatro dias depois, em 11 de outubro, os investigadores encontraram
145
no carro de Myra uma evidência que a ligava aos crimes: um caderno onde Myra anotara os
planos dos assassinatos cometidos pelo casal. Nesta mesma data, Myra foi presa.
Em 20 de outubro de 1965, os policiais encontraram dois bilhetes de Ian que os
levaram até um armário da estação de trem central de Manchester. Nesse armário, havia
duas malas a incriminarem ainda mais o casal. Em uma delas havia fotos em que uma
menina de apenas 10 anos de idade, Lesley Ann, aparecia nua; além disso, nessa mala
também havia uma fita que revelara gemidos a comprovarem que essa criança tinha sido
torturada pelo casal. Na outra mala, havia um caderno com o nome de John Kilbride e uma
foto em que Hindley e seu cão olhavam para o que parecia ser uma sepultura cavada em
uma charneca.
Pat Hodge, uma menina de apenas 12 anos de idade, revelou então à polícia que Ian
e Myra tinham o costume de levá-la a Saddleworth para passear. Essa informação fez com
que os investigadores descobrissem o local em que os corpos de Lesley Ann e John
Kilbride estavam enterrados.
Realizado na Corte da Coroa de Chester Assize, Inglaterra, e presidido pelo juiz Sir
Fenton Atkinson, o julgamento do casal de assassinos começou em 21 de abril de 1966.
Apesar de acreditar que o casal fora responsável por outros oito desaparecimentos ocorridos
em circunstâncias parecidas e na mesma época, a polícia, não conseguindo mais nenhuma
evidência de outras mortes, acusou Ian Brady e Myra Hindley do assassinato de Edward
Evans, Lesley Ann e John Kilbride.
No dia 06 de maio de 1966, ambos os réus foram condenados pela morte de Edward
Evans e Leslie Ann Downey. Quanto ao assassinato de John Kilbride, Brady foi condenado
como executor e Myra como cúmplice.
146
Pelos crimes cometidos, Ian Brady foi sentenciado a três “termos de vida
67
. Sua
companheira, Myra Hindley, a dois “termos de vida” e sete anos adicionais.
Nas duas semanas em que ocorreu o julgamento, os jornais divulgaram várias
notícias acerca dos assassinos. Nas reportagens, figurava a influência que Ian poderia ter
recebido de livros que possuía em sua casa (dentre eles, Minha luta de Hitler, livros de
Sade e aqueles em que Nietzsche expressava seu conceito de “vontade e poder”). Além
disso, os jornais salientavam que um dos fatos mais relevantes para a condenação dos
assassinos era a gravação magnética que trazia ao tribunal os gemidos que Lesley Ann
emitira ao ser torturada pelo casal. Acrescentamos ainda que os jornais observaram nas
reportagens o a brutalidade dos assassinatos, mas também o fato de que Myra era a
primeira mulher a ser acusada de crimes hediondos a envolverem crianças.
No início da pena a que foram sentenciados, Ian e Myra pediram ao Estado
permissão para se casarem; segundo o casal, o matrimônio serviria para que a união
amorosa que possuíam fosse fortalecida. A justiça inglesa não permitiu o casamento e, em
1970, o casal, que inicialmente parecia tão eternizado em seu pacto de assassinos, começou
a se afastar. Tentando diminuir seu período de permanência na prisão, Myra, além de
declarar remorso por suas atitudes, acusou Ian de ter ameaçado sua avó, sua mãe e sua irmã
se ela não o ajudasse. Ian, por sua vez, replicou as acusações de Myra com uma narrativa a
expor como ela participara ativamente de todos os crimes. A partir deste momento, toda e
qualquer correspondência entre ambos cessou.
67
Cada “termo de vida”, pela lei inglesa da época, durava dez anos, período que só poderia ser diminuído se o
assassino o fosse mais considerado perigoso para a sociedade. O jornal português Diário de Notícias”
explicita erroneamente em sua reportagem de 07/05/1966 que, na Inglaterra, a prisão perpétua não duraria,
geralmente, mais do que 14 anos. A informação contida no jornal português tem origem no fato de que a lei
inglesa permite que seus condenados à prisão perpétua reivindiquem o direito de soltura após terem cumprido
metade do tempo a que foram condenados. Salientamos que o caráter errôneo da informação jornalística
portuguesa é confirmado pela permanência dos acusados nas prisões inglesas: Myra permaneceu 36 anos na
prisão e Ian, após mais de 40 anos de sua condenação ainda está encarcerado.
147
Ainda nos anos 70, Myra pediu à opinião pública que a julgasse não pelo seu
passado, mas sim pela mulher arrependida que agora se tornara. Com esse apelo, Myra
conseguiu o direito de ser avaliada por especialistas que poderiam lhe conceder a liberdade
condicional. Nessa época, um psiquiatra, um capelão e médicos declararam que Myra não
era mais uma ameaça à sociedade, sendo assim, ela poderia ser posta em liberdade. Porém,
antes da prisão de Myra ser revogada, a BBC de Londres realizou uma votação pública para
observar o ponto de vista da população. A pesquisa revelou que o povo britânico não era a
favor da liberdade de Myra (66% acreditavam que ela nunca deveria ser libertada e somente
34% acreditavam em sua regeneração). Devido ao resultado dessa pesquisa, o governo
decidiu negar a liberdade condicional à assassina
68
.
Em novembro de 1985, dezenove anos após o julgamento, Brady, por ser declarado
insano, foi transferido da prisão para um hospital de segurança máxima. Neste local, ele
concedeu uma entrevista a repórteres de um jornal e confessou que também assassinara
Pauline Reade e Keith Bennett.
O corpo de Pauline Reade foi descoberto em 30 de junho de 1987, quase um quarto
de século após seu desaparecimento. Exames necroscópicos realizados durante um mês
revelaram que a vítima tinha sido estuprada e tivera sua garganta cortada por trás.
O corpo de Keith Bennett, apesar das buscas, nunca foi encontrado.
Em agosto de 1987, Brady enviou uma carta a BBC com informações acerca de
outros cinco assassinatos que teria cometido. Na carta, Brady reivindicou como suas
68
Observamos que o filme Longford (2006) retrata essa época da vida de Myra Hindley. Na película em
questão, Lorde Frank Longford pede que a justiça britânica conceda a Myra o direito de ser libertada e
novamente inserida na sociedade. Trazendo imagens de arquivo e de noticiários (inclusive entrevistas com os
pais das crianças que foram timas dos assassinos da charneca), o diretor Tom Hooper discute aqui a
possibilidade de regeneração dos indivíduos assassinos.
Salientamos que a película retrata fatos verídicos e,
sendo assim, Tom Hooper finda sua história com a opinião defendida pela maior parte da sociedade inglesa:
uma assassina como Myra jamais poderá se regenerar.
148
vítimas um homem e uma mulher assassinados em Manchester, uma mulher despejada em
um canal em Stockport e duas pessoas lançadas em um morro na Escócia. Nenhuma das
vítimas foi identificada, mas as informações de Ian fizeram que a polícia reabrisse dois
processos arquivados: o primeiro a tratar de Veronica Bondi, uma mulher de 55 anos de
idade que fora assassinada em Manchester no ano de 1963; o segundo acerca de Edith
Gleave, uma prostituta de 38 anos de idade que fora estrangulada no ano de 1965 em
Stockport.
Em 1990, o direito de soltura foi negado a Myra e a outros 270 prisioneiros que
reivindicavam ter cumprido a sentença mínima para os que foram condenados a “termos
de vida”. Em dezembro de 1997, em novembro de 1998 e em março de 2000, Myra
Hindley fez novas apelações para obter a liberdade; nessas, ela afirmava ser uma mulher
regenerada e ter cumprido o tempo estabelecido em sua pena. A suprema corte também
rejeitou esses três pedidos de soltura. Em 15 de novembro de 2002, aos 60 anos de idade,
Myra Hindley morreu de ataque cardíaco na prisão.
Atualmente, Ian está no hospital de Ashworth em Liverpool. Em 2006, ele abdicou
ao direito de reivindicar liberdade. Segundo Ian, ele deveria permanecer preso por ainda ser
uma ameaça à sociedade.
Após mais de quarenta anos do julgamento na Corte da Coroa de Chester Assize,
Inglaterra, Ian Brady cumpre pena pelos seguintes assassinatos: Pauline Reade (morta em
julho de 1963), John Kilbride (novembro de 1963), Keith Bennett (junho de 1964), Lesley
Ann Downey (dezembro de 1964), Edward Evans (outubro de 1965).
Observemos, no quadro a seguir, alguns fatos relacionados à história de cada uma
dessas mortes.
149
Pauline Reade (16 anos) Em 1985, Ian confessou esta morte, mas o corpo da menina
foi descoberto em 01 de julho de 1987. Assassinada em 12 de julho de 1963, Pauline foi a
primeira vítima do casal. Segundo Ian, nas proximidades da charneca, o casal encontrou a
adolescente e pediu para que ela os ajudasse a procurar um objeto perdido no chão, quando
ela iniciou a procura, ele bateu com uma no crânio dela. Os exames feitos no corpo da
adolescente revelaram que ela fora vítima de abuso sexual e atestaram como causa mortis
um corte de faca feito na garganta da menina. Importante salientar que os legistas frisaram
o fato de que o corte era tão profundo que fora capaz de quase decapitar Pauline. Após
dezenove anos do julgamento retratado em O inferno, Ian foi sentenciado a mais um “termo
de vida” por essa morte.
John Kilbride (12 anos) desapareceu em 23 de novembro de 1963. O menino fora
abordado por Myra em um mercado em Ashton-sob-Lyne. Myra pediu a John para ajudá-la
a carregar umas caixas até o carro. Brady estava sentado no banco de trás do carro e
segurou o menino enquanto Myra dirigia em direção à charneca. Lá, Ian estuprou John e,
após tentar em vão cortar o pescoço deste com uma faca, o estrangulou com uma corda.
Depois do assassinato, o casal enterrou o menino na própria charneca. O corpo de John foi
encontrado somente em 21 de outubro de 1965.
Keith Bennett (12 anos) teve relatado seu desaparecido da casa de sua avó, em Gorton, em
16 de junho de 1964, quatro dias após o seu 12º aniversário. Segundo Ian Brady, o menino
foi abordado em um elevador perto da estrada de Stockport, Ian então o levou de carro para
150
a charneca onde o estuprou antes de estrangulá-lo com uma corda. O corpo do menino
nunca foi encontrado pela polícia.
Leslie Ann Downey (10 anos), desapareceu em 26 de dezembro de 1964, em Manchester.
O casal levou Ann para a casa da avó de Myra. Lá, com uma mordaça na boca, Leslie Ann
foi obrigada a ficar nua e a posar para fotos pornográficas. Em quatro dessas fotos, Ian e
Myra colocaram a menina desnuda em pose de oração. Além disso, enquanto Ian tirava as
fotos, Myra gravava em uma fita cassete dezesseis minutos da conversa que mostrava as
vozes implacáveis de assassinos a acariciar sexualmente a criança, enquanto esta chorava e
pedia, insistentemente, que a deixassem voltar para casa.
Assim como Keith Bennett, Ann foi estrangulada com uma corda após ter sido violentada
por Ian. Porém, diferentemente do menino, o estupro e a morte de Ann também tiveram,
segundo revelaram as palavras ambíguas de Ian no julgamento do casal, a participação de
Myra. O corpo de Ann também foi enterrado na charneca.
Edward Evans (17 anos). Desaparecido em 06 de outubro de 1965. Antes de morrer
estrangulado, Edward teve sua cabeça brutalmente atingida por um machado. Em seus
depoimentos, Brady disse que Edward era homossexual e, após tê-lo conhecido na estação
de trem central de Manchester, este o acompanhara até a residência de Myra para um sexo
ocasional. Permanece ainda como uma incógnita a veracidade do depoimento de Brady
quanto à sexualidade de Edward, porém os exames realizados pelos legistas confirmam que
Edward tivera relações homossexuais antes de ser assassinado. O crime foi presenciado por
David Smith, marido de Maureen Smith que era a irmã de Myra. Aparentemente, o crime
151
fazia parte da iniciação de David no mundo de crimes criado por Ian e Myra.
No período em que esteve preso, Ian escreveu The gates of Janus. Publicado em
2001, o livro traz análises filosóficas e psicanalíticas que Ian Brady realizou de outros
assassinos em série. Segundo Colin Wilson, escritor do prefácio da obra em questão, Ian
não fez das páginas de seu texto uma confissão de culpa pelos assassinatos que cometera,
contudo, a leitura do livro possibilita, através das análises que Ian fez dos atos de outros
serial-killers, compreendermos quem foi o “assassino da charneca”.
152
II. 2 - Segundo degrau – realidade e ficção em O inferno.
Cerca de um ano após o julgamento de Ian Brady e Myra Hindley, Bernardo
Santareno publicou o texto O inferno. Logo no início dessa publicação, como já
observamos anteriormente, o autor utiliza trechos de um texto jornalístico para explicitar o
fato real que originou seu texto dramatúrgico. O primeiro trecho revela a pena a que foram
condenados os assassinos pela morte das três vítimas, além da idade e do nome de cada
uma delas. O segundo trecho acentua que os acusados foram reconhecidos não como
culpados, mas também como assassinos extremamente cruéis.
Além dos trechos citados no início da peça, outras informações nela inseridas
revelam um autor a retratar a verdadeira história deste casal de assassinos. Contudo, se
existe este vínculo entre os fatos ocorridos no mundo real e a história a ser encenada, o
estudo do enredo criado por Santareno nos mostrará um autor que trabalha com elementos
ficcionais que acabam por recriar, nos acréscimos ou nas modificações, a história dos
assassinos de Chester. Revelemos quais são estes elementos ficcionais para melhor
compreendermos porque eles foram inseridos em O inferno.
Na peça os assassinos não serão denominados como Ian Brady e Myra Hindley, mas
sim como Orfeu e Eurídice.
Os dicionários de mitologia, citamos aqui o de Mario da Gama Kury, narram a
história de Orfeu mítico, observando dois pontos principais: seu “canto melodioso que os
homens mais brutais se tornavam afáveis ao ouvi-lo” (KURY, 2001, p.292) e, “ sua viagem
ao inferno em busca de sua mulher Eurídice” (ibidem, loc. cit.). No capítulo destinado ao
estudo intertextual de O inferno, observaremos com mais profundidade o canto melodioso
de Orfeu e o inferno onde esse canto é entoado pela mulher amada. Cabe a este momento
153
da análise salientar apenas que Santareno escolheu para seu casal de assassinos o nome de
um dos mais conhecidos amantes da mitologia greco-latina: Orfeu e sua mulher Eurídice.
Os jornais ingleses, ao retratarem a história de Ian Brady e Myra Hindley, utilizam
para os serial-killers o cognome de “moors murders, cuja tradução seria “os assassinos da
charneca”; ou seja, o cognome escolhido por estes jornais enfatiza o local em que os corpos
de duas das vítimas de Ian e Myra foram encontrados. A reportagem do Diário de Notícias
de Portugal (07/05/1966), por sua vez, opta por designar o casal de assassinos como os
amantes diabólicos”, salientando assim não o local em que as vítimas foram enterradas,
mas sim a ligação amorosa existente entre o casal de assassinos.
Sendo assim, ao denominar suas personagens como Orfeu e Eurídice, Santareno
escolheu, seguindo a reportagem portuguesa, enfatizar o fato de que Ian e Myra formavam
um casal de amantes (termo aqui utilizado no sentido latino, ou seja, os que m amor um
pelo outro).
O jornal português Diário de Notícias não divulga, na reportagem a tratar do
julgamento de Ian Brady e Myra Hindley, como o casal se conheceu. Acrescentamos,
contudo, que Bernardo Santareno parece ter tido acesso a outras informações acerca dos
assassinos. Um dos aspectos que nos comprovam esse fato é que Santareno coloca em seu
texto que o casal, assim como ocorreu na realidade, encontrou-se pela primeira vez no
ambiente de trabalho de ambos.
Porém, nesse ambiente de trabalho, enquanto Eurídice, assim como Myra, exerce a
profissão de secretária, Orfeu, que na história real é apenas um controlador de estoque, na
ficção santareniana é um executivo que, ao contratar a secretária Eurídice para auxiliá-lo,
tem o poder de discutir com seu superior em condições de igualdade.
154
Salientamos que, segundo uma ambigüidade criada por Santareno em uma das
retrospectivas da peça, este poder que Orfeu exerce junto a seu chefe pode ter vindo de uma
relação homossexual entre ambos. Esclarecemos que a biografia de Ian Brady não faz
referência a relacionamentos homossexuais que ele teria tido em seu ambiente de trabalho.
Observamos, contudo, fato que estudaremos em momento azado, que este acréscimo feito
pelo dramaturgo português parece ter como objetivo relevar a influência nazista que os
jornais ingleses dizem existir no assassino Ian Brady.
Quanto ao início da vida das personagens real e fictícia, podemos observar que Ian é
filho de uma garçonete e nunca conheceu seu verdadeiro pai; Orfeu, por sua vez, segundo o
advogado de defesa, apesar de pertencer “a uma antiga e digna família de abastados
proprietários rurais” (SANTARENO, s.d., p.180), foi destinado à pobreza e à orfandade
após perder seus genitores na Primeira Grande Guerra Mundial.
Na infância e adolescência, tanto Ian como Orfeu cometeram crimes. Porém, no
caso de Orfeu, também segundo seu advogado, estes crimes são conseqüência não dos
maus tratos físicos e psíquicos recebidos de seus pais adotivos, mas tamm da influência
recebida dos meninos mais velhos com quem conviveu nas casas de correção em que esteve
preso.
Sendo assim, a história de vida de Ian, retirada não do jornal português que
serviu de inspiração para Santareno, mas também de outras fontes, nos mostra um homem
de classe social baixa que se tornou um criminoso atroz. a história contada no
julgamento criado por Santareno constrói um homem de uma classe social mais elevada
cuja criminalidade é produto do meio a que foi exposto em sua história de vida (família
esfacelada pela guerra, prisões desvirtuadas e ambiente de trabalho desregrado).
155
Observamos que também as histórias de Myra e Eurídice possuem divergências na
ficção e na realidade. Na ficção santareniana, omite-se o fato de que esta mulher pode ter
sofrido maus tratos na infância. Além disso, acrescenta-se a informação de que sua mãe
teria por profissão o strip-tease e a prostituição. Santareno também modifica os fatos reais
quando coloca Maureen como a avó de Eurídice, nome que, na realidade, pertenceria à irmã
de Myra (salientamos que o nome Maureen o é sequer mencionado na reportagem do
Diário de Notícias, o que comprova, mais uma vez, que Santareno não teve só essa
reportagem como fonte de seu texto).
Observamos que essas mudanças feitas pelo dramaturgo, de pouca importância,
acabam por refletir um fato que discutiremos posteriormente: Eurídice é, na ficção
santareniana, mais uma das vítimas do canto inebriante e melodioso entoado por um Orfeu
assassino.
Assim como ocorreu com Ian e Myra, o marco inicial da relação amorosa entre
Orfeu e Eurídice será um filme tematicamente ligado ao nazismo: O julgamento de
Nuremberg.
Dirigido por Stanley Kramer, o filme foi lançado em 1961. A hisria contada pela
película enfoca não o processo principal de Nuremberg (julgamento contra os líderes do
nazismo, ocorrido entre os anos de 1945 e 1946), mas sim um dos processos menores em
que os americanos julgaram, igualmente em Nuremberg, outros criminosos do nazismo
alemão.
No enredo, após três anos do final da Segunda Grande Guerra Mundial, Dan
Haywood (Spencer Tracy), um juiz aposentado americano, preside ao julgamento de quatro
juristas alemães que usaram seus cargos para permitir e legalizar as atrocidades nazistas.
156
No tribunal e fora desse, o juiz Haywood é submetido a histórias que indagam quem
seriam os culpados do extermínio de mais de 6 milhões de seres humanos durante o
domínio de Hitler em grande parte do território europeu.
A culpa pertenceria aos nazistas que aceitaram matar movidos pelo conceito de
“raça ariana” divulgado por Hitler? Pertenceria a todos os alemães que, mesmo não sendo
nazistas, aceitaram ouvir calados os gritos das vítimas? Ou a todas as nações que se
omitiram durante anos frente ao ódio racial que tomava conta do mundo?
O enredo ganha empatia e força em dois pontos: nas argumentações construídas
pelo advogado de defesa e nas imagens a retratarem os momentos de sofrimento e barbárie
a que foram sujeitos os inimigos do governo (no filme, representados pelos comunistas e
pelos judeus).
O advogado Hans Rolfe (Maximilian Schell) defende os acusados, especialmente o
juiz Ernst Janning (Burt Lancaster), tentando mostrar que os atos por eles realizados
sempre foram movidos pelo desejo de engrandecer o ser humano e a nação alemã.
Desse modo, ao aplicar a pena de morte a polacos, judeus e comunistas e a
esterilização de todos aqueles que eram considerados contrários à sociedade, o juiz Janning
teria como intenção maior fazer o necessário para pôr termo à fome e à miséria que
devastavam o seu país após a Primeira Grande Guerra Mundial. Comprova o advogado de
defesa que outras nações, dentre elas os Estados Unidos da América, também possuem leis
que permitem matar e esterilizar pessoas deficientes mentais ou criminosos quando as
julgam prejudiciais ao crescimento da pátria. Ou seja, o juiz Janning apenas teria feito o
que vários juristas fazem em suas nações: permitir algumas mortes para defender o bem
maior da nação.
157
Ainda como argumento de defesa, o advogado Rolfe observa que os países que
acusaram os alemães das mortes realizadas também matam seus inimigos. Para findar a
guerra, os aliados utilizaramsseis que devastaram Nuremberg, Berlin e toda a Alemanha.
Além disso, o número de crianças, mulheres e homens mortos em Hiroshima e Nagazaki
confirma a crueldade dos aliados. Ou seja, conclui Rolfe, como os americanos poderiam
julgar os alemães se o número de vítimas assassinadas pelos aliados é uma cifra que
concorre com os números de mortos nos campos de concentração nazistas?
Um diálogo entre os acusados salienta que os americanos atacariam os russos em
breve. Sendo assim, conclui um dos acusados nazistas, seria incoerente que os americanos
penalizassem os alemães se, como estes, também pretendem matar em nome de uma causa
maior: no caso, a dissolução do comunismo.
Como contra-argumento, o promotor observa que nenhum discurso racional pode
absolver os acusados, pois esses não foram responsáveis por mortes a serem
contabilizadas, mas também, e principalmente, por crimes atrozes contra humanidade. Com
o intuito de sensibilizar o tribunal, o Coronel Tad Lawson (Richard Widmark) traz à sua
acusação imagens que comprovam sua tese.
Essas imagens são de pessoas psicologicamente atormentadas por terem sido
submetidas aos maus tratos nazistas. Um comunista que perdeu sua mãe e a capacidade de
gerar filhos porque foi considerado deficiente mental. Uma alemã que, aos dezesseis anos,
enfrentou um julgamento por “corrupção racial”; após meses de processo, ela foi
condenada pelo estado a cumprir dois anos de prisão por crime de perjúrio e o judeu a
quem considerava como um pai foi condenado à morte, acusado de ter tido relações sexuais
com ela.
158
No tribunal, exibe-se um filme a mostrar as atrocidades que os aliados encontraram
ao chegarem aos campos de concentração de Dachau e Belsen Buchenwald. Crianças,
mulheres e homens com corpos, espíritos e corações destroçados. Seres humanos vivendo
em condições desumanas passando fome, frio e sendo torturados. Crianças judias cujos
números impressos nos braços serviriam de marca para a morte futura. Adultos aguardando
serem assassinados em grandes fornos ou em chuveiros que emitiam gases letais. Mortos
cujos objetos de valor foram usurpados para enriquecer o governo alemão, cujas peles
serviam de papel para desenhos nazistas, cujos corpos mutilados ainda permaneciam sem
sepultura. Dos cerca de seis milhões de mortos assassinados pelos nazistas, observa o
procurador, muitos estavam empilhados desnudos no terreno dos campos de concentração
e, para dar sepultura a todos, os aliados utilizaram tratores escondendo na vala comum a
vergonha de uma humanidade.
Após ponderarem os pensamentos e os fatos colocados pelo advogado de defesa e
pelo promotor, o juiz Haywood e seus assessores dão o veredicto final: o tribunal condena
os juízes nazistas à prisão perpétua.
A pena quer mostrar, diz o juiz americano, que o advogado de defesa tem razão ao
argumentar que os juízes nazistas não são os únicos culpados dos assassinatos cometidos,
porém perdoar seus erros seria permitir que novas cenas de terror habitassem outros
julgamentos. Conclui o juiz americano:
Os assassinos não são os únicos culpados. Contudo, devemos estar atentos
ao que diz o direito internacional. Qualquer pessoa que induza a outra a
cometer assassinato, qualquer pessoa que provê a outra de meios para
consumar um crime, qualquer pessoa que atua como cúmplice é também
culpada. (KRAMER, 1961, 163:10).
Sendo assim, apesar de os nazistas terem cometido vários crimes nos campos de
concentração, eles não podem ser os únicos responsabilizados pelas mortes realizadas
159
durante o domínio de Hitler. Os juízes alemães também são culpados, uma vez que criaram
e aplicaram leis que conferiram aos nazistas o direito de matar.
Porém, enquanto o juiz americano aplica a pena que considera justa, a película, ao
seu término, mostra que o passar do tempo revela que a impunidade ainda existe em nosso
mundo. Nos últimos momentos do filme, um letreiro informa aos espectadores que nenhum
dos nazistas condenados à prisão perpétua cumpriu mais do que doze anos de prisão. Além
disso, o canto nazista que ecoa nos letreiros finais colabora com uma idéia que foi
trabalhada freqüentemente durante os diálogos da película: as mesmas atrocidades
cometidas pelos alemães ainda continuam a ser realizadas por outros governos, dentre eles,
o americano, na Guerra Fria.
Devemos ainda salientar que, em determinado momento do filme, cidadãos comuns
confessam que se calaram, mesmo sabendo dos crimes que eram praticados pelos nazistas.
Sendo assim, Kramer nos alerta para um fato importante: aqueles seres humanos também
são culpados, pois compactuaram silenciosamente com a violência existente.
A moral presente na película cinematográfica nos traz, de forma trágica, piedade e
terror. Porém, a Ian e Myra (e a Orfeu e Eurídice), os sons e as imagens presentes no filme
acabaram sendo inspirações para uma nova composição de mortes a ser realizada.
O hino nazista presente em vários momentos da narrativa cinematográfica parece ter
embalado não só o primeiro encontro do casal, mas também seu modo de viver. Os
discursos do advogado de defesa podem ter não justificado o que os juízes alemães
fizeram, mas também ter impulsionado Ian e Myra a ficarem cada vez mais pximos da
ideologia nazista (ele, lendo o livro Minha luta de Hitler e ela pintando os cabelos para se
tornar mais próxima do ideal de raça ariana). Além disso, as imagens de pessoas torturadas
160
e de milhares de cadáveres mutilados podem ter se tornado modelo das atrocidades que
seriam realizadas nos assassinatos cometidos pelo casal.
Deste modo, a película O julgamento de Nuremberg foi, para o casal de assassinos,
uma sinfonia imagética de estímulo à violência.
Em 1965, quatro anos após assistirem ao julgamento dos criminosos nazistas, Ian e
Myra (respectivamente, Orfeu e Eurídice santarenianos) trariam à sua história de amor
outro julgamento: o dos “assassinos da charneca” (ou, na versão santareniana, o dos
“amantes diabólicos”).
É importante salientar que a reportagem publicada no jornal português Diário de
Notícias (07/05/1966) não traz nenhum dado que ligue Ian e Myra ao nazismo. Desse
modo, portanto, o filme O julgamento de Nuremberg não é citado na reportagem em
questão. Sendo assim, mais uma vez parece-nos claro que Bernardo Santareno utilizou a
reportagem portuguesa não como sua única fonte de informação, mas sim como texto
inicial de sua peça e, possivelmente, de sua inspiração.
Acrescentamos que o filme dirigido por Stanley Kramer pode ter sido uma outra
fonte de informação e de inspiração para o dramaturgo português. O principal motivo que
encontramos para formular tal idéia é que a peça santareniana, assim como o filme de
Kramer, traz à cena um julgamento que visa não só sentenciar os acusados, mas também, e
principalmente, discutir quem são os culpados pelas atrocidades cometidas.
Observamos ainda que Santareno pode ter-se inspirado na película em questão
quando trouxe a seu texto outros escritos a tratarem de julgamentos ocorridos contra os
nazistas. Deste modo, ao estudarmos a intertextualidade de O interrogatório (Peter Weiss)
e O julgamento de Nuremberg (Didier Lazard) trataremos novamente do estudo da película
americana.
161
Salientamos que a influência nazista que Orfeu teria tido é uma das forças-motrizes
a guiar seus assassinatos, fato que não se aplica a Ian Brady.
Como observamos anteriormente, os policiais londrinos descobriram o primeiro
corpo das vítimas de Ian devido à denúncia realizada pelo cunhado de Myra, David Smith.
Segundo David, Ian matara Edward Evans com o intuito de mostrar que era capaz
de cometer homicídios extremamente cruéis: Evans fora assassinado por golpes de
machado na cabeça e por estrangulamento com um fio de cabo elétrico.
O depoimento de Ian, prestado posteriormente à polícia, também relatou a crueldade
do assassinato, mas acrescentou ao processo o fato de que David era cúmplice nessa morte
cometida. Além disso, segundo Ian, Edward Evans era homossexual e o acompanhara
movido pelo desejo de realizar “sexo ocasional”.
Na peça santareniana, o cunhado de Eurídice é denominado como Joseph. Segundo
o enredo criado pelo autor portugs, Joseph o presenciou a morte de Edward Jones,
mas também foi co-autor desta.
Assim como na realidade, Edward fora assassinado por um estrangulamento e por
“catorze lacerações irregulares, com tamanhos entre uma e cinco polegadas, todas
distribuídas pelo o coiro cabeludo e pela face direita (...)” (SANTARENO, s.d., p. 35). À
ficção, contudo, Santareno acrescentou dois outros elementos. O primeiro, é que a vítima
recebera de Orfeu e de Joseph socos, pontapés e golpes de “stick”. O segundo, que todos
os atos cruéis foram embalados por xingamentos de “bicha” e por “uma das mais célebres
marchas cantadas pelas juventudes hitlerianas, no auge do nacional-socialismo(ibidem,
p.31).
162
Sendo assim, Bernardo Santareno escolheu não somente retratar em seu texto
dramatúrgico a crueldade do assassinato real, mas a hiperbolizou e a vinculou a uma
motivação nazista: exterminar um homossexual.
Esta opção de ligar o serial-killer Orfeu diretamente à sanguinolência nazista fica
ainda mais clara quando observamos como Santareno não só acrescentou à morte das outras
vítimas fatos que têm pequena ligação com a verdade, mas também que são, algumas vezes,
até contrários a esta.
Ao relatar o assassinato de Lesley Ann Downey, o jornal português Diário de
Notícias (07/05/1966) salientou a opinião do juiz responsável pelo caso: segundo Atkinson,
o casal mostrou-se extremamente cruel não por que sujeitou uma menina de dez anos a
ser alvo de fotos pornográficas, mas principalmente porque, de maneira sádica, o fez
movido por gritos dramáticos de uma criança implorando por piedade.
Assim como no julgamento real, a encenação santareniana traz ao palco estas
provas de crueldade dos assassinos: “uma série de (...) retratos, todos eles mostrando, em
atitudes mais ou menos pornográficas, uma rapariga de anos, despida e amordaçada”
(ibidem, p.90) e uma fita com a voz gravada minutos antes de uma criança morrer,
enquanto era sadicamente torturada pelos seus assassinos” (ibidem, p. 98).
Salientamos, porém, que Santareno acrescenta a seu texto um outro elemento que
teria movido o casal de assassinos. Tal motivação diz respeito à pose em que a menina Ann
fora encontrada.
Os jornais londrinos noticiaram que a polícia observou que em algumas fotos a
menina Ann fora obrigada a ficar nua em pose de oração. Segundo esses jornais, as
investigações acerca do caso permitiram concluir que esta posição a que a menina fora
submetida não era relevante para o julgamento do casal.
163
Bernardo Santareno, contudo, optou por acrescentar a seu texto que Ann fora
submetida à pose de oração porque o casal a teria matado por ela pertencer ao credo judaico
(ou, como diria Orfeu inspirado por Hitler, à raça judaica).
Ainda com o intuito de dar relevância a este motivo que teria feito o casal matar
Ann, Santareno traz a diversos momentos de sua peça o asco que o casal de assassinos teria
da menina por ela pertencer à raça judaica. Orfeu, por exemplo, chama Ann de “fedorenta
judiazinha, herdeira da semente podre duma raça suja” (ibidem, p. 67). Eurídice,
acompanhando o ódio do amado, refere-se à menina como uma pequena judia, pequena
mas minada pelos vermes podres da raça, da raça traiçoeira e servil, da raça piolhosa e
fedorenta: Uma pequena judia, uma cria dos abutres!” (ibidem, p. 116).
Portanto, ao acrescentar a crença judaica à personagem Ann, Bernardo Santareno
acrescentou a seus assassinos o perfil que mais motivou mortes na época nazista: o ódio aos
judeus.
Ao falar de John Kilbride, o jornal português apenas informou que Ian e Myra
declararam-se inocentes pela morte da criança de doze anos.
Os jornais ingleses, por sua vez, noticiaram que essa vítima fora atribuída ao casal
pois seu corpo, assim como o de Ann, estava enterrado na charneca.
Além disso, a imprensa inglesa divulgou uma hipótese criada pela polícia londrina:
John teria sido seqüestrado em um mercado e o casal de assassinos o teria levado à
charneca; neste local, o menino teria sido submetido a abusos sexuais e ao estrangulamento
que fora causa de sua morte.
Na peça santareniana, as investigações da morte de John também apontam o fato de
que ele teria sido vítima sexual dos assassinos, mas acrescenta uma inverdade acerca das
características físicas do menino: ele é um “pequeno negro” (ibidem, p. 96), “um negro...
164
arremedo de homem, carne maciça não assoprada pelo espírito, animal com força humana”
(ibidem, p. 116).
Para comprovar que Santareno acrescentou aqui uma característica física que
diverge da realidade, trazemos ao nosso texto as fotos das timas que levaram a
julgamento os “assassinos da charneca”.
Edward Evans John Kilbride Leslie Ann Downey
Acrescentamos às fotos anteriores outras que mostram as demais vítimas de Ian e
Myra. Salientamos que estas vítimas o aparecem em O inferno, pois seus corpos foram
encontrados após a realização do julgamento a que a peça faz referência.
Keith Bennett Pauline Reade
165
As fotos trazidas ao nosso texto comprovam que, dentre as vítimas atribuídas a Ian
Brady e Myra Hindley, não figura nenhuma que tivesse a tez negra. Sendo assim, na
realidade, o assassinato de John não tivera a mesma motivação que Santareno colocou em
sua ficção: exterminar outra raça perseguida pelos nazistas, os negros.
Os dados anteriormente relacionados nos permitem concluir que as vítimas de Orfeu
e Eurídice seguem um pensamento nazista que não guiou os assassinos Ian e Myra. Para os
“assassinos da charneca” as mortes realizadas eram formas de exercer sua crueldade. Para
“os amantes diabólicos”, mortes pautadas por um canto nazista a ser seguido.
Julgamos ser pertinente citarmos aqui o trecho da peça em que Orfeu declara
claramente quem são suas vítimas:
(Com náusea) E o que é que s matamos? Quem?! Três ratos de esgoto,
feios, inúteis, miseráveis: Aquele pobre Edward (indica o cadáver), um
baratíssimo homossexual, cuspido centímetro a centímetro, desde a cabeça
aos s! A Ann Gilbert, essa fedorenta judiazinha, herdeira da semente
podre duma raça suja! O John Huston, esfomeado e farroupilha, um negro
pequeno mas já hediondo, filho e neto de negros ainda mais repugnantes! ...
São estas as nossas ... vítimas! O mundo perdeu alguma coisa com a morte
destas três criaturas abjetas? Pelo contrário, Eurídice: Ficou mais limpo,
mais forte, mais puro! (...) (ibidem, p. 67)
Os pensamentos de Hitler serão estudados de forma mais minuciosa no capítulo
destinado à análise intertextual da peça santareniana. Cabe, contudo, a este momento da
análise, observarmos que o trecho anterior revela explicitamente que as timas dos
assassinos criados por Santareno foram escolhidas seguindo o conceito de pureza difundido
pela ideologia nazista.
Como estudamos, o primeiro encontro amoroso do casal Ian e Myra ocorreu à
luz da película cinematográfica O julgamento de Nuremberg. Sendo assim, a idéia
santareniana de ligar Orfeu ao nazismo pode ter relação com o filme assistido pelo
verdadeiro casal de assassinos.
166
Além disso, os jornais londrinos divulgaram em suas reportagens que Ian tinha uma
biblioteca pessoal de obras e, dentre essas, figurava o livro Minha luta, de Adolf Hitler.
Sendo assim, dessa informação divulgada pelos jornais londrinos, pode também ter surgido
o pensamento nazista que Santareno atribui a seu Orfeu.
Lembramos ainda que na biblioteca pessoal de Ian existiam outras obras: as que
divulgavam pensamentos atribuídos a Sade e a Nietzsche.
Tanto na realidade quanto na ficção santareniana, os crimes cometidos pelo casal de
assassinos têm um dado em comum: são de natureza perversa e sexual.
Na análise intertextual da peça O inferno, trechos de obras do Marquês de Sade
serão analisados com profundidade, cabe a este momento salientarmos apenas que este
autor francês assim como Ian e Myra (e Orfeu e Eurídice) observava o prazer como
uma satisfação erótica proveniente de violência e de perversão sexual. Sendo assim, ao
matar cruelmente suas vítimas e delas abusar sexualmente, o casal de assassinos poderia
estar sendo inspirado por escritos de Sade.
Devemos, ainda, considerar que para Sade “nenhum vínculo é sagrado” (SADE,
2006, p. 61) aos olhos das pessoas que seguem sua doutrina. Além disso, salienta o filósofo
a seus seguidores: “(...) fugi cuidadosamente do amor. Nele, de bom o físico (...)
diverti-vos, repito; mas não ameis em hipótese alguma.” (SADE, 1999, p. 113 - 114).
Como já observamos anteriormente, entretanto, nem os assassinos reais nem os da
ficção santareniana seguem tal idéia sadiana. Ian e Myra, durante o julgamento ocorrido na
Inglaterra, agem como mplices que se defendem mutuamente perante o júri. Além disso,
após serem presos, pedem ao Estado que a união amorosa de ambos seja fortalecida pelo
casamento.
167
Orfeu e Eurídice, por sua vez, trazem no nome mitológico o vínculo sagrado de
um amor eterno.
Outra obra que a imprensa londrina divulgou existir na biblioteca pessoal de Ian era
a designada The will to power (em alemão, Die wille zur macht; traduzida para o nosso
idioma como Vontade de potência). Observamos que a obra em questão foi publicada após
a morte de Nietzsche e a veracidade autoral desse escrito é duvidosa.
Em três de janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche foi acometido por uma crise de
loucura que duraria até sua morte, em 25 de agosto de 1900. Nesse período, o filósofo
viveu sob a tutela de sua mãe e, posteriormente, de sua irmã, Elisabeth Forster-Nietzsche, a
quem coube o espólio de seus escritos.
Elisabeth fora casada com Bernard Foster, cujos ideais anti-semitas levaram a
esposa a habitar numa colônia de raça ariana no Paraguai. Ao voltar à Alemanha para
cuidar do irmão adoentado, Elisabeth percebeu nos escritos deste a possibilidade de ligar a
filosofia nietzschiana à de Hitler.
Um ano após a morte do irmão, em 1901, Elisabeth publicou o livro Die Wille zur
Macht. Segundo ela, no prefácio que escreveu, o livro trazia escritos inéditos de Nietzsche.
Segundo estudiosos, dentre eles o professor alemão Karl Schlechta, o livro era não uma
compilação de aforismos inéditos do filósofo, mas também, e principalmente, uma série de
idéias adulteradas pela irmã com o intuito de tornar Nietzsche um divulgador de ideais anti-
semitas.
Frases de Nietzsche serão trazidas à obra O inferno pelo dramaturgo Bernardo
Santareno. Em momento azado, portanto, estudaremos mais minuciosamente as idéias do
filósofo. Cabe a este momento da análise salientar, contudo, que mesmo que o livro citado
168
pelos jornais londrinos não pertença à verdadeira obra de Nietzsche, o conceito de “vontade
de potência”, um dos mais divulgados de sua filosofia, foi amplamente utilizado por Hitler.
Sendo assim, mesmo que Nietzsche não tenha escrito textos a propagarem ideais
anti-semitas, Hitler e grande parte dos homens que possuem pensamentos nazistas, dentre
eles Orfeu, aplicaram a filosofia nietzschiana como justificativa para as mortes que
acreditavam purificar a raça superior a que pertenceriam (no entendimento dos nazistas, a
ariana).
Relembramos que, em 2001, no período em que cumpria a pena a que foi
condenado, Ian Brady escreveu o livro The gates of Janus. O título que o assassino da
charneca escolheu para sua obra é significativo.
Na mitologia Janus é um dos principais deuses romanos, ele possui Duas faces,
uma voltada para frente e outra para trás,(...) simbolizando sua sabedoria, como conhecedor
do passado e adivinho do futuro” (KURY, 2001, p.221). Além disso, por ser “o guardião do
universo,o abridor e fechador de todas as coisas” (ibidem, p.220), Janus é também “o deus
dos inícios”, e por isso ao recomeço de todo novo tempo foi dado o seu nome: Ianuarius
primeiro mês do ano.
Ou seja, na escolha do título de seu livro, Ian parece ver-se como um ser supremo
que é capaz não de analisar os crimes que cometeram outros serial-killers, mas também
de profetizar um novo tempo: tempo em que determinados homens têm o direito e o dever
de matar movidos por filosofias baseadas na superioridade de determinadas raças.
Salientamos que em 1967, o dramaturgo Bernardo Santareno já havia detectado este
pensamento de superioridade em Ian ao escolher um nome mítico para desig-lo na
ficção-realidade de O inferno: Orfeu.
169
Cabe aqui, não como frase a finalizar este capítulo, mas também como
pensamento a guiar nossa futura análise intertextual, uma das idéias divulgadas por
Nietzsche:
Livros há que possuem, para a alma e para a saúde, um valor inverso,
conforme deles se servem a alma inferior, a força vital inferior, ou a alma
superior e mais poderosa. No primeiro caso são livros perigosos,
corruptores, dissolventes. No segundo caso, apelos de arautos que
convidam os mais bravos a manifestar a sua bravura. (NIETZSCHE, 2007,
p. 61)
Ou seja, nos intertextos trazidos a O inferno, Santareno parece nos perguntar de
forma nietzschiana: Teria o assassino entendido os livros que leu? Seria ele uma alma
superior? Um arauto do porvir? Ou apenas uma alma inferior que corrompeu os livros
lidos?
A tentativa de responder a essas perguntas é o que nos move ao próximo capítulo: a
análise intertextual da obra O inferno.
170
III- Terceiro degrau – a descida intertextual de um Orfeu ao Inferno.
Bernardo Santareno traz a vários momentos de O inferno outros autores que
também abordaram crimes atrozes como o de Orfeu e Eurídice. Essa conversa intertextual
realizada pelo dramaturgo português ocorre de duas formas: através de elementos que
compõem a personagem Orfeu ou através de trechos que, entre aspas ou não, trazem obras
lidas pelos jurados ou pelo próprio criminoso.
Com o objetivo de transpor mais um degrau da descida aos infernos santarenianos,
destinaremos este capítulo de nosso estudo à análise de tais obras utilizadas pelo
dramaturgo português.
Salientamos que a peça teatral O inferno retrata as audiências do julgamento de
Orfeu e Eurídice, sendo que, em vários momentos do texto, fatos que poderiam ser narrados
pelos advogados, pelas testemunhas ou pelos acusados são trazidos ao palco através da
encenação de flashbacks. Além disso, a estas “idas e vindasdo enredo, o dramaturgo
acrescenta ao momento das audiências diversos pensamentos das personagens. Desse
modo, a peça, tal como foi construída por Santareno, não possui uma linearidade e,
portanto, não nos oferece o momento exato em que as intertextualidades teriam ocorrido na
vida de Orfeu ou na mente dos jurados.
Sendo assim, como o enredo criado pelo dramaturgo não nos propõe nenhuma
ordem formal para guiar nosso estudo intertextual, iremos organizá-lo conforme a época em
que os textos foram escritos por seus autores originais. Ou seja, iniciaremos o estudo com
textos escritos por autores contemporâneos a Santareno e chegaremos, ao final do capítulo,
aos textos de autores mais antigos e ao mito de Orfeu.
171
Ressaltamos que o estudo opta por não realizar a análise de textos relacionados
especificamente à área de biomédicas: Pavlov, Euziére, Prof. E. de Greef, Dr. A. Hesnard e
Stekel.
III.1 - A sangue frio: duas mentes assassinas trazidas à literatura por Truman Capote.
Publicado no ano de 1966, o livro A sangue frio de Truman Capote (1924-1984) foi
classificado pelo autor como non-fiction novel (ou seja, romance-documento ou romance de
não-ficção).
O livro em questão teria sua origem em uma pequena nota publicada em 1959 no
jornal The New York Times. Esta nota tratava do assassinato cruel cometido contra uma
família de quatro pessoas em Holcomb, interior do Kansas. Após ter consultado a Revista
New Yorker acerca da possibilidade de publicação de um texto escrito a partir da história
desse assassinato, Capote viajou até Holcomb com o intuito de realizar entrevistas que
revelassem fatos ligados ao crime.
Foram seis anos de pesquisa e de escrita até que o texto ficasse pronto. Em 1965, a
Revista New Yorker publicou a história que Capote escrevera sobre a família Clutter e os
assassinos Perry Smith e Richard Hickock. Um ano depois, cada um dos volumes
publicados comporia um capítulo da edição final do livro A Sangue Frio.
Na peça O inferno, quando Orfeu é levado ao banco dos réus para depor, o 8º jurado
trata do livro de Capote. O jurado em questão teria finalizado a leitura desta obra na noite
anterior ao julgamento de Orfeu.
172
Inicialmente o jurado observa que o livro é um relato “autêntico de um crime
verdadeiro” (SANTARENO, s.d., p.171) que ocorrera cerca de seis anos atrás.
Posteriormente, narra que a família Clutter fora assassinada “a sangue frio” (ibidem, loc.
cit.) por algozes que queriam roubar dinheiro, mas acabaram roubando vidas. Finalmente,
o jurado se mostra consternado com um mundo em que casos como esse, e como o de
Orfeu e Eurídice, são esquecidos pois já se tornaram comuns.
Acrescentamos que o jurado diz ter recortado, na época do crime, um fragmento
jornalístico que, publicado no jornal americano Garden City Telegram, tratava do
julgamento realizado. Salientamos, contudo, que o ato de recortar o referido texto do jornal
não foi obra exclusiva do 8º jurado, pois no livro de Capote o mesmo fragmento faz parte
do quarto capítulo.
Relata Capote em seu livro:
O Telegram de Garden City, na véspera do início do julgamento, publicou o
seguinte editorial: ‘(...) Desde que os quatro membros da família Clutter
foram mortos no outono passado, vários homicídios múltiplos do mesmo
tipo ocorreram em diversos pontos dos Estados Unidos. nos últimos dias
antes desse julgamento, pelo menos três casos de assassinatos em massa
chegaram às manchetes dos jornais. Em conseqüência, esse crime e esse
julgamento são apenas mais um de muitos casos parecidos sobre os quais as
pessoas leram e depois esqueceram...(...) (CAPOTE, 2006, p.336)
Lê o 8º jurado, em O inferno, o fragmento que havia recortado:
Desde que os quatro membros da família Clutter foram assassinados, no
outono passado, muitos outros crimes múltiplos foram cometidos nos vários
estados do ps. nestes últimos dias que precederam o julgamento, a
imprensa noticiou, pelo menos, mais três assassínios com estas
características. Por isso é que o processo Clutter não constitui senão um
caso no meio de tantos outros de que o público ouviu falar, para logo os
esquecer a seguir...(SANTARENO, s.d., p.173).
Podemos concluir, pelos fragmentos anteriormente expostos, que a reportagem
trazida pelo 8º jurado é a mesma trazida ao livro de Capote, uma vez que os fragmentos
173
possuem apenas pequenas divergências advindas, provavelmente, das diferentes traduções
do texto.
Sendo assim, é provável que o autor português tenha retirado tal trecho diretamente
do livro de Capote, mas tenha optado por colocar no enredo que o próprio 8º jurado o
recortara do jornal.
Após trazer a reportagem à lembrança, o 8 º jurado cita palavras do assassino que
cometeu o crime retratado por Capote: “São do Hickock, um dos assassinos dos Clutter, as
seguintes palavras: Sei muito bem que o inferno existe. lá fui. Talvez exista também o
céu. Pelo menos há muita gente rica a pensar que sim.’ ” (ibidem, p.172).
É pertinente observar que o jurado santareniano coloca que as palavras foram ditas
por um dos assassinos, e o que foram retiradas do livro que havia lido. Essa atitude do
jurado é compreensível uma vez que ele, assim como Capote, considera as informações que
compõem o livro como fatos reais que foram apenas escritos de maneira literária (ou seja,
como non-fiction novel).
No livro A sangue frio, este trecho citado pelo jurado é dito quando Hickock
presta seu segundo depoimento à polícia. Durante três horas, os policiais que entrevistam o
suspeito utilizam uma estratégia de investigação: falam de diversos assuntos com ele,
menos do crime de que está sendo acusado. Nesse caso, os policiais falam de
acontecimentos da vida do acusado, de sua história sexual e de sua filosofia religiosa.
Acerca deste último assunto é que o acusado afirma: “Sei que existe inferno. estive lá. E
talvez também exista um céu. Muita gente rica acha que sim.” (CAPOTE, 2006, p. 286)
Como podemos observar, Santareno trouxe a seu texto, salvo algumas divergências
de tradução, a exata frase do livro de Capote. Contudo, devemos salientar que, se a frase é a
mesma, a intenção que nela é colocada é diferente.
174
No livro de Capote, a frase expõe que a descrença religiosa de Hickock é movida
por uma questão social: acreditar na existência do céu seria um privilégio apenas dos mais
abastados, aos demais, restar-lhes-ia apenas a alternativa de conhecer o inferno (ou seja, um
lugar de privações, o que, no caso, significaria a prisão em que o acusado já cumprira pena,
ou os próprios momentos difíceis de sua vida).
Na peça santareniana, contudo, o acréscimo que o jurado faz às palavras de
Hickock imprime a essas um significado mais amplo:
O autor destas frases não existe; foi enforcado lá longe, no Texas. Mas
suas palavras minam-me dia e noite, como uma obsessão. Também o Orfeu
e a Eurídice, que estamos aqui a julgar, sabem que O inferno existe.
Também eles viajaram até lá. Viagem sem regresso. Orfeu e Eurídice
ficaram nO inferno (SANTARENO, s.d., p.172)
O trecho anterior nos revela que o jurado não mais aborda a questão religiosa
impressa no contexto em que estava inserida a frase original. Em Santareno, o significado
do inferno é expandido e torna-se um local, concreto ou não, para o qual todos os
assassinos viajam.
Para compreendermos essa idéia do 8º jurado, é necessário observarmos alguns
pensamentos que ele expõe durante o enredo. Segundo este jurado, ao avaliarmos a culpa
dos assassinos, devemos analisar não só o crime cometido, mas também outros fatores que
os levaram a ser pessoas cruéis: “hereditariedade, educação, ambiente sócio-familiar”
(ibidem, p. 149) e, principalmente, a sociedade, que é responsável pelo “inferno social em
que todos vivemos”(ibidem, p. 208).
Sendo assim, segundo o 8º jurado, para sabermos o que leva os assassinos ao
inferno, temos que observar suas raízes e a história de vida de cada um. Portanto, devemos
realizar um estudo da história dos assassinos de A Sangue Frio e uma comparação destes
com Orfeu e Eurídice para compreendermos os fatores que os levaram ao inferno.
175
No livro de Capote, dois são os responsáveis pela morte da família Clutter: Richard
Hickock (conhecido também como Dick) e Perry Smith. Dick e Perry conheceram-se na
Penitenciária Estadual do Kansas, um dos infernos que freqüentaram. Nesse local é que
ambos, vindos de mundos completamente diferentes, planejaram o crime que iriam cometer
contra os Clutter.
Dick tinha, na ocasião, 28 anos e fora preso por estelionato. Filho de uma família
unida, Dick, em sua infância e adolescência, tornara-se um excelente atleta e um aluno com
grande potencial acadêmico. Na época de cursar uma Universidade, porém, ele não pôde
concretizar o desejo de ser engenheiro, uma vez que seus pais não tinham dinheiro para
pagar seus estudos. Dick decidiu, então, casar-se. Ele tinha dezenove anos e ela, dezesseis.
Tiveram três filhos. Ele sempre trabalhara, mas o dinheiro não era suficiente para os gastos
que tinham. Sendo assim, começou a passar cheques sem fundo. Além disso, acrescenta a
mãe de Dick,
(...) o motivo para ele ter começado a fazer esse tipo de coisa teve a ver com
a batida. Ele sofreu uma concussão na cabeça numa batida de carro. Depois
disso, virou outra pessoa. Jogando, passando cheques sem fundo.
(CAPOTE, 2006, p. 210).
Segundo Dick, porém, falsificar cheques, roubar e furtar foram apenas maneiras que
ele encontrou para ganhar mais dinheiro.
Em 1958, aos 27 anos, Dick “foi condenado no tribunal do condado de Johnson por
arrombamento de uma casa e sentenciado a cinco anos na Penitenciária Estadual do
Kansas” (ibidem, p. 273).
Perry tinha 31 anos de idade quando conheceu Dick e o início de sua história de
vida fora bem diferente da do futuro companheiro de assassinatos.
176
Durante sua infância, Perry presenciou rias brigas de seus pais, até que sua mãe
resolveu abandonar o marido, levando consigo os filhos. Porém, ao invés de cuidar de
Perry, a mãe, tomada pelo vício do álcool, deixou-o em um orfanato católico. Nessa
instituição, Perry apanhava das freiras por constantemente urinar na cama. Aos oito anos,
em 27 de outubro de 1938, ele foi submetido à sua primeira detenção, fato que, depois
dessa idade, ficou corriqueiro na vida do menino. A violência a que esteve sujeito em sua
infância fez que Perry levasse para sua vida um sono minado por choros, delírios e
pesadelos (dentre eles, um em que chamava o pai constantemente: “Papai, estou procurando
você em todo lugar, onde é que você anda?” (ibidem, p.145)).
Aos dezesseis anos, Perry alistou-se na Marinha. Durante o tempo em que esteve
ligado a essa instituição, ele o só participou de batalhas, mas também conviveu
freqüentemente com homossexuais, tendo, inclusive, relacionamentos amorosos com esses
(“as bichas do navio não me deixavam em paz” (ibidem, p. 175)). Mais tarde, devido a um
acidente de moto, Perry foi afastado da instituição e ficou viciado em aspirina por causa das
dores constantes que sentia em suas pernas.
Na Penitenciária Estadual do Kansas, na época em que conheceu Dick, Perry
cumpria sentença por roubo, porém falava constantemente de um homicídio, contando
como, simplesmente por ter tido vontade, tinha matado um negro em Las Vegas – surrando-
o até a morte com uma corrente de bicicleta” (ibidem, p. 84). Segundo Dick, esses relatos
de Perry construíram uma imagem de um homem que “podia estar pronto para matar você
sem que vo percebesse olhando para ele ou ouvindo o que ele diz” (ibidem, p. 145).
Na prisão, Perry costumava dizer a Dick: “Acho que a gente deve ter algum
problema (...) talvez alguma coisa de nascença” (ibidem, p. 148). Acrescentava, então, a
esta observação, o histórico de sua família:
177
Sua mãe, uma alcoólatra, tinha morrido sufocada no próprio vômito. Dos
filhos dela, dois homens e duas mulheres, a mais nova, Bárbara, tinha
começado uma vida normal, casando-se e formando uma família. Fern, a
outra filha, tinha pulado da janela de um hotel de San Francisco. (...) E
havia Jimmy, o mais velho dos meninos Jimmy, que tinha induzido a
mulher ao suicídio e se matara no dia seguinte. (ibidem, p. 148)
Os fatos aagora apresentados nos fazem salientar que a observação de Perry não
condiz com a verdade, uma vez que Dick não estivera sujeito, como ele, a uma família
maculada por problemas.
Se compararmos Orfeu e Eurídice a Perry, veremos que, em Santareno, a família
desregrada ou ausente também tem parcela de culpa na formação dos assassinos.
Os mais diversos adjetivos demonstram, na peça santareniana, a perversão da mãe
de Eurídice. Edward a descreve como uma mulher que sempre está acompanhada por
amantes e que se veste exageradamente, como uma perua; Maureen, diz que ela sempre
viveu de “dar à perna nos teatros, e ceias, e admiradores” (SANTARENO, s.d., p. 148); o
advogado de defesa observa que ela trabalha como dançarina erótica. Além disso, Maureen
também diz em seu depoimento que Eurídice trazia para casa “homens duma noite”
(ibidem, p. 147). Ou seja, assim como Perry, Eurídice pode ter herdado de “nascença”
alguma coisa ruim.
Os pais de Orfeu, por sua vez, morreram durante a guerra e o caráter que eles
possuíam não é abordado no tribunal. Porém, se dos pais nada nos é informado, sabemos
que a tia de Orfeu é quem, na infância desse, lhe aplicara “castigos corporais e psíquicos,
gritos, humilhações constantes” (SANTARENO, s.d., p. 180). Sendo assim, a violência de
Orfeu também pode ter origem em seus próprios familiares.
Desse modo, para Perry, Eurídice e Orfeu, a hereditariedade pode ter sido um dos
elementos responsáveis por torná-los pessoas problemáticas.
178
Acrescentamos que esses três assassinos tornaram-se órfãos quando ainda eram
crianças. Como vimos, a mãe de Perry retirou o menino do pai, mas o cuidou do filho,
colocando-o em um orfanato. A mãe de Eurídice deixou a menina para ser cuidada pela
avó. Os pais de Orfeu faleceram. Sendo assim, a ausência da família pode ser um outro
fator responsável por tornar as pessoas assassinas.
Observamos que outras semelhanças ligam Orfeu a Perry. Assim como Perry,
Orfeu teve relacionamentos homossexuais os quais, no seu caso, começaram quando ele
freqüentou as primeiras casas de correção. Além disso, como o assassino criado por
Santareno, Perry Smith possuía cadernos onde anotava pensamentos; Perry denominava um
de seus cadernos de Diário Particular de Perry Smith, porém mais do que um diário, o
caderno era “uma antologia de fatos obscuros, (...) poemas e citações literárias (...) e
trechos de jornais e livros parafraseados ou citados” (CAPOTE, s.d., p. 190). Ademais,
Perry gostava muito de cantar, atitude que, se não é colocada diretamente em Orfeu por
Santareno, é conotativamente ligada à personagem pelo nome.
Salientamos que esses elementos que formam Perry podem ter inspirado Santareno
na criação de sua personagem, porém eles não são trabalhados, no livro de Capote, como
fatores responsáveis pelo comportamento do assassino.
Observamos ainda que os textos trazidos por Perry a seu caderno não falam de
violência, mas sim de possibilidades de vida; por outro lado, os textos transcritos por Orfeu
são notas a formar seu canto de morte.
Lembramos, contudo, que se as semelhanças entre Perry e Orfeu são muitas, a frase
trazida pelo 8º jurado ao julgamento pertence, no livro de Capote, a Hickock.
Como já abordamos, os genitores de Hickock são pais unidos e extremamente
preocupados com o filho. Sendo assim, a explicação de que sua crueldade assassina teria
179
origem na natureza dos pais ou na atitude desses abandonarem o filho não se confirma.
Devemos, portanto, observar outro fator que poderia ter tornado Dick uma pessoa cruel.
Como vimos, Dick e Perry se conheceram na Penitenciária Estadual do Kansas onde
cumpriam pena por estelionato. Na prisão, Perry contava a Dick como havia cruelmente
assassinado um negro. Segundo Capote, essa história de Perry, apesar de falsa, teria
estimulado Dick a tê-lo como amigo.
Também foi na prisão que Dick conhecera Floyod Wells, seu companheiro de cela.
Em uma das conversas que teve com Floyod, este havia mencionado que trabalhara para
a família Clutter e que o Sr. Clutter guardava muito dinheiro em um cofre da casa. Segundo
Floyod, ao denunciar Dick à polícia, o companheiro se interessara pelo assunto e planejara
um roubo à fazenda, além disso, também ameaçara “matar (...) os Clutter e mais qualquer
pessoa que estivesse por lá” (ibidem, p.209).
Esta vontade que Dick teria de assassinar a família Clutter também fora por ele
revelada a Perry. Quando os dois amigos se dirigiam à fazenda dos Clutter, Dick teria
salientado ao companheiro que “(...) qualquer um que eles encontrassem não viveria para
depor. ‘Sem testemunhas’, lembrou ele a Perry, pelo que pareceu a este a milionésima vez.
(ibidem, p.63).
Além disso, no tribunal, Perry acrescentou à intenção assassina do amigo uma
intenção de pedofilia: “depois que a família Clutter foi amarrada, Hickock disse (...) que
Nancy Clutter tinha um belo corpo e que pretendia violentá-la” (ibidem, p. 353).
Sendo assim, ao chegar à prisão Dick era capaz de roubar e neste local mostrou-
se também capaz de assassinar e estuprar (no caso, a ainda menina Nancy Clutter). Os fatos
colocados no livro de Capote não permitem que relacionemos o assassínio e estupro como
180
atos advindos da convivência com outros detentos, porém podemos dizer que, no meio
penitenciário, Dick sentiu-se à vontade para expor os desejos que possuía.
No julgamento de Perry e Dick, devido à Regra de M´naghten, o psiquiatra
chamado ao tribunal poderia somente observar aori se os acusados eram capazes ou não
de distinguir o certo do errado e, portanto, de saberem se o ato cometido era criminoso
perante a sociedade. Contudo, se ao júri o psiquiatra não deveria complementar sua opinião,
aos leitores Capote traz as explicações omitidas no tribunal.
Com relação a Hickock, o psiquiatra teria observado que esse possui uma
inteligência acima do normal e, portanto, seria capaz de compreender e aplicar as leis.
Acrescentaria ainda o médico que o acidente de carro que Hickock teria sofrido poderia lhe
ter deixado seqüelas, mas essas não seriam percebidas sem exames clínicos mais profundos
e, portanto, não se poderia avaliar se elas seriam as causas de seus atos assassinos.
Contudo, um fato importante a ser relevado, é que Hickock teria um sério distúrbio de
caráter proveniente de sua baixa auto-estima. Esse sentimento de inferioridade teria sido
supercompensado “por sonhos de tornar-se rico e poderoso” (ibidem, p. 364), sonhos esses
que o levaram ao roubo e ao assassínio.
Ao falar de Perry, o doutor Jones observa que o abandono e os maus tratos são
elementos importantes na análise da personalidade daquele. Contudo, acrescenta o doutor, é
fundamental salientar que Perry possui distúrbios que devem ser considerados.
Segundo o psiquiatra, Perry sofreria de uma orientação paranóide em relação ao
mundo, o que o faria sentir-se discriminado e injustiçado. Além disso, o acusado
apresentava também uma desconsideração da realidade e, portanto, valorizaria muito pouco
a vida humana. Salienta o doutor, enfim, que estes dois distúrbios poderiam ser os fatores
responsáveis pelo comportamento assassino de Perry.
181
Sendo assim, podemos concluir que Dick e Perry, quando se encontraram na prisão,
sofriam de um mal semelhante: o sentimento de inferioridade que os faria, como atitude de
superação, unir-se com o objetivo de cometer o crime contra os Clutter.
Talvez se inspirando no livro de Capote, Santareno também traz um psiquiatra ao
julgamento de Orfeu e Eurídice. Na terceira audiência, o professor Manchester afirma que
os réus não são anormais e acrescenta que Orfeu possui, inclusive, uma inteligência
superior, “de vel excepcional” (SANTARENO, s.d., p. 209). Contudo, observa o
psiquiatra, Orfeu e Eurídice seriam seres frustrados e esse aspecto seria um dos traços
fundamentais da mente dos criminosos.
Acrescenta o doutor que essas frustrações dos réus tiveram origem nas agressões
que eles receberam da própria sociedade em que viveram. Sendo assim, ao ouvirmos o
choro da criança Ann sendo abusada sexualmente pelo casal Orfeu e Eurídice, temos
também que ouvir, segundo o psiquiatra, o choro das crianças Orfeu e Eurídice que tiveram
sua infância destroçada por “abandono, miséria, sangue, guerra, morte, egoísmo e solidão”
(ibidem, p. 213).
Ao se conhecerem na vida adulta, continua o psiquiatra, Orfeu e Eurídice se
“encontraram na esquina da neurose e do crime” (ibidem, p.214) e decidiram alienar
“aquela mesma sociedade que antes os alienou a eles” (ibidem, p.216).
Sendo assim, conclui o psiquiatra, devemos entender que os assassinos não são
somente verdugos, mas tamm vítimas. Ou seja, “a história trágica e verdadeira de Orfeu e
Eurídice” (ibidem, p.217) nos mostra que “cada um de seus crimes vale uma catástrofe
interior, uma descarga de tensão intrasubjetiva, tornada aguda e insuportável(ibidem, p.
217).
182
Desse modo, podemos concluir, que tanto no romance de Capote quanto na peça
santareniana, os assassinos são responsáveis pelas mortes realizadas a sangue frio. Porém,
o olhar psiquiátrico e o enredo dos textos nos revelam que os assassinos foram pessoas
inferiorizadas pela sociedade em que viviam e que viram o crime como a forma de reverter
essa situação.
Sendo assim, nos tribunais literários de Capote e de Santareno, os verdugos são
também vítimas do inferno social a que estiveram sujeitos.
Podemos concluir que, ao trazer para o julgamento o livro de Capote, o jurado
quer nos mostrar que a hereditariedade, o abandono e o meio a que estão sujeitos os
homens podem ser fatores responsáveis pelas atrocidades cometidas em nosso mundo
contemporâneo.
Acrescentamos, ainda, que este jurado cita, em seus pensamentos, o fisiólogo russo
Ivan Petrovich Pavlov. Como já observamos, por ser estudioso ligado à área de biomédicas,
o texto deste autor não será analisado em profundidade. Julgamos, contudo, pertinente
salientar que o trecho trazido por Santareno à sua peça revela-nos que a doença do
assassino consiste em devolver a injúria a que foi submetido.
Sendo assim, segundo Pavlov (1849-1936), se o meio em que o homem vive for
modificado, os reflexos condicionados que os indivíduos apresentam podem ser extintos.
Ou seja, se a sociedade tornar-se mais digna, também se tornará digno o indivíduo que nela
habita.
Contudo, os livros A sangue frio e O inferno revelam assassinos de uma época já
acostumada a atrocidades e, portanto, de um tempo fecundo de casos como o de Perry,
Hickock, Orfeu e Eurídice.
183
Analisemos outras intertextualidades feitas por Santareno para estudarmos outros
destes casos.
III.2- Tartarugas e pássaros na selva humana de Tennessee Williams.
Thomas Lanier Williams III (1911-1983) adotou o pseudônimo de Tennessee
Williams quando iniciou sua carreira de escritor. Conhecido sobretudo por sua obra
dramatúrgica, Williams também produziu romances, novelas e poemas.
Em O inferno, Bernardo Santareno traz como intertexto uma das obras teatrais de
Williams: Bruscamente no verão passado, peça que teve sua primeira encenação americana
no ano de 1958, mesmo ano em que foi escrita.
O 8º jurado é quem lê, na terceira audiência de O inferno, o trecho que Orfeu havia
transcrito da peça de Williams para seu caderno de citações:
E o areal dir-se-ia vivo, literalmente vivo todo ele, com as tenras tartarugas
precipitando-se em dirão ao mar, enquanto os pássaros carnívoros, sem
quartel, pairavam e atacavam! Caíam a pique sobre as tartarugas recém-
nascidas, viraram-nas de patas para o ar deixando-lhes a descoberto as
regiões moles, as quais no mesmo momento dilaceravam e devoravam.
Sebastian calculava que apenas a centésima parte de um por cento das
pequenas tartarugas conseguia fugir e alcançar o mar... (ibidem, p.189).
69
Após a leitura desse trecho, acrescenta o mesmo jurado:
Entre Sebastian protagonista desta peça de Tennessee Williams
“Bruscamente, no Verão passado” e o Orfeu, réu deste julgamento,
uma diferença fundamental: É que o Sebastian sabia pertencendo à raça das
frágeis tartarugas, ao passo que nosso Orfeu escolheu-se pássaro
carnívoro... talvez para sobreviver. (Pausa breve) Mas o clima é o mesmo.”
(ibidem,
loc. cit.
).
69
A edição portuguesa que consultamos para realizar esta análise intertextual traz uma pequena diferença de
tradução. Nela o trecho “Caíam a pique sobre as tartarugas recém-nascidas, viraram-nas de patas para o ar
deixando-lhes a descoberto as regiões moles, as quais no mesmo momento dilaceravam e devoravam” foi
traduzido da seguinte forma: “Picavam sobre as recentes criaturas, viram-nas de patas para o ar deixando-lhes
a descoberto as partes moles, que dilaceravam e devoravam acto-contínuo.” (WILLIAMS, 1964, p. 23).
184
Na obra paradigma, o trecho transcrito por Orfeu faz parte da primeira cena e
pertence a uma das falas da Senhora Violet Venable. Vejamos o contexto em que a fala é
inserida na peça de Williams para compreendermos não só o assassino Orfeu, mas também
a intenção intertextual criada por Santareno.
Durante toda a primeira cena, Violet conversa com o doutor Cukrowicz e delineia a
esse, e ao público, a imagem que ela possui de seu filho Sebastian.
Único descendente de uma família burguesa, Sebastian era um rapaz casto que
dedicava sua vida a duas atividades: cuidar de seu jardim e escrever poemas. No jardim, ele
cultivava plantas selvagens, dentre elas, uma que se alimenta de insetos. Nos poemas,
expressava suas impressões acerca da vida e de vinte e cinco verões que passou em viagens.
Segundo Violet, os poemas escritos pelo filho deveriam ser publicados somente
após a morte dele e trariam a Sebastian a notoriedade cabida aos grandes poetas. Além
disso, como informa a orgulhosa mãe, o casto filho demorava “o prazo de uma gravidez”
(WILLIAMS, 1964, p. 20) para compor cada poema de verão.
O doutor Cukrowicz pergunta a Violet mais detalhes do perfil do filho. Como que
movida por um ato falho, Violet lhe descreve uma viagem que fez com Sebastian às
Encantadas.
Sebastian lera em um jornal uma reportagem acerca do arquipélago de Galápagos e
por uma curiosidade geográfica fora com a mãe conhecer as ilhas. Quando chegaram, era
época da desova das tartarugas marinhas. Tempos depois, ele convenceu a mãe a retornar à
praia para ver o nascimento das pequenas tartarugas, Sebastian ficou admirado com o
espetáculo que a natureza então apresentava: as frágeis tartarugas recém-nascidas eram
devoradas por negros pássaros carnívoros antes de chegarem ao mar.
185
Violet diz ao doutor que esta imagem ocasionou em Sebastian febres nervosas. O
filho, acrescenta a mãe, sempre procurara a Deus e nas Encantadas o encontrou como um
ser supremo “que mostra às pessoas uma face hedionda e lhe atira à cara palavras cruéis.”
(ibidem, p. 29).
Após essa narrativa, a senhora Venable diz ao doutor Cukrowicz que a loucura de
sua sobrinha Catharine é evidente uma vez que Sebastian não pode estar envolvido nos
acontecimentos que a prima lhe atribui (dos quais o espectador ainda não tem
conhecimento).
Nas demais cenas da peça, a imagem que a Senhora Venable construíra de seu filho
é pintada com outros traços.
Catharine chega à residência da tia e o doutor Cukrowicz começa a avaliar se ela é
ou não mentalmente capaz. Cukrowicz fica sabendo que no último verão a Senhora Violet
Venable adoecera e por isso Sebastian convidara Catharine para acompanhá-lo na
costumeira viagem. Após ser hipnotizada, Catharine oferece ao doutor mais detalhes do
passeio. Ela conta que na cidade praiana de Cabeza de Lobo, Sebastian lhe presenteou com
um traje de banho transparente. Segundo Catharine, ele a fazia usar este maiô para que a
aparente nudez do corpo feminino atraísse os homens que estavam na praia, sendo assim,
conclui a moça, como Violet fizera em outras viagens caberia a ela agora cumprir o papel
de “isca” (ibidem, p. 138) para Sebastian.
Quando o verão ficou mais quente e a praia mais repleta de pessoas, Sebastian
permitia que a prima usasse um maiô negro e ficasse distante dele. Narra Catharine que ela
ficava perto de uma pedra até as cinco da tarde “(...), hora em que ia ter com ele, perto dos
vestiários, já sobre a rua... Ele saía de lá sempre seguido” (ibidem, p. 138).
186
Ainda hipnotizada, Catharine salienta que, antes de irem embora, Sebastian
freqüentemente atirava gorjetas a jovens famélicos que trepavam na vedação que separava a
praia pública da particular.
Contudo, no dia em que os primos foram almoçar em um restaurante, Sebastian teve
uma atitude diferente para com os miseráveis. Enquanto os dois estavam comendo, os
mendigos começaram a fazer serenata com latas. Sebastian disse então à prima para não
olhar os monstrozinhos” que lhes pediam pão e explicou-lhe: “Os mendigos são uma
chaga social neste país. Se olhas para eles, ficas com nojo deste país. Eles estragam as
coisas belas que há nesta terra.” (ibidem, p. 143). Além disso, irritado, Sebastian exigiu que
o dono do restaurante enxotasse os meninos, o que foi feito pelos garçons munidos de paus
e caçarolas.
Conta, então, Catharine ao doutor como ocorreu a morte do primo. Sebastian saiu
do restaurante transtornado e os mendigos começaram a persegui-lo até que, como
“pássaros negros, esfaimados, vingadores” (ibidem, p. 155), conseguiram cercá-lo.
Quando chegamos ao sítio onde eu vira o meu primo Sebastian desaparecer
submergido pelo bando negro de pardais esfaimados, já ele... fazia nu,
quanto se pode estar nu contra uma parede branca e... O doutor não vai
acreditar, como ninguém podia acreditar, como ninguém no mundo era
capaz de acreditar numa coisa dessas, e eu o os censuro por isso!...
Tinham-lhe devorado partes do corpo! (...) Tinham-lhe arrancado ou
cortado pedaços do corpo com uma das mãos ou com facas, ou quem sabe
se com as latas denteadas com que faziam música, e com pedaços
arrancados tinham atulhado as bocas vazias, vorazes e cruéis. Agora não se
ouvia o mais pequeno som (...). (ibidem, p.156).
Diante das cenas narradas por Catharine, a mãe de Sebastian tem um colapso
nervoso e exige que a sobrinha seja submetida a uma lobotomia. O doutor, contudo, mesmo
sabendo que sua opinião poderá lhe custar a perda do investimento monetário que Violet
187
lhe prometera, observa que, no mundo em que vivem, deve-se considerar a possibilidade da
história contada ser real.
Como já vimos, Orfeu, personagem santareniana de O Inferno, transcreve em seu
caderno de notas a passagem em que a mãe de Sebastian narra o espetáculo da natureza que
horrorizou o filho: as recém-nascidas tartarugas sendo devoradas pelos pássaros negros.
Porém, se a Sebastian a visão deste devorar trouxe medo, a Orfeu trará um estímulo
para seu desejo assassino. Isso porque, como salienta o jurado, Sebastian sabe que
pertence à frágil raça das tartarugas enquanto Orfeu é um pássaro carnívoro.
Desse modo, a princípio, ao transcrever esse trecho da peça de Tennessee Williams,
Orfeu encontraria, segundo o 8º jurado, uma justificativa naturalista para sua sinfonia
assassina: os mais fortes devem subjugar e até matar os mais fracos.
Contudo, se observarmos a comparação Orfeu/ Sebastian em um sentido mais
amplo, outros fatores podem ter movido Orfeu a trazer tal trecho da peça de Williams a seu
caderno.
Em Bruscamente no verão passado, dois motivos parecem guiar o desejo que Violet
Venable tem de submeter sua sobrinha a uma lobotomia: ela não acredita na promiscuidade
do filho e não aceita a cruel história ligada à morte desse.
Contudo, apesar de não aceitar que o filho fora devorado por miseráveis, diante de
tantas viagens de verão (vinte e cinco ao todo), Violet escolhe narrar ao doutor exatamente
a imagem dos pássaros a matarem as pequenas tartarugas. Ou seja, a mãe, em um ato falho,
traz ao psiquiatra a informação de que inconscientemente reconhece como possível a cruel
história de morte contada por Catharine.
Podemos dizer, portanto, que o que a mãe de Sebastian quer realmente demover da
cabeça de Catharine, e de sua cabeça, parece ser o possível retrato de um filho promíscuo.
188
Ao juntarmos o acontecimento de Galápagos ao de Cabeza de Lobo temos que, na
peça de Williams, as tartarugas metaforizam Sebastian e os miseráveis, os pássaros negros.
Isso porque, se as tartarugas foram mortas pelos pássaros para lhes servir de alimento,
Sebastian também foi assassinado e serviu de refeição aos miseráveis, em um ritual
antropófago. Sendo assim, a crueldade assassina dos miseráveis teve como objetivo, tal
qual a dos pássaros, o saciar da fome.
Todavia, salientamos que os jovens famélicos não tinham a intenção inicial de
matar Sebastian, mas o fizeram porque esse teve uma mudança de comportamento em
relação a eles.
Como já observamos, era costume Sebastian dar gorjetas aos mendigos antes de sair
da praia. No restaurante, entretanto, quando esses mendigos lhe pedem pão, ele lhes nega,
designando-os como “chaga social” (ibidem, p.143) a poluir “as coisas belas que nesta
terra” (ibidem, loc. cit.). Isso nos leva a uma pergunta: o que fez com que Sebastian tivesse
essa mudança de atitude?
Encontramos a resposta em duas narrativas de Catharine. A primeira tem como
cenário a praia freqüentada pelos primos; nesse local Catharine vira Sebastian a sair sempre
acompanhado dos banheiros públicos e a dar aos “jovens famélicos sem eira nem beira (...)
gorjetas (...)” (ibidem, p.139). A segunda tem como cenário a própria mente de Sebastian a
escutar acusações dos mendigos: “viste como aquela matilha de garotos gritou coisas
odiosas a meu respeito aos criados” (ibidem, p.153).
Ou seja, o comportamento de Sebastian em relação aos mendigos depende do
contexto em que esses estão inseridos. Em um primeiro momento, ele se sente culpado por
seus encontros clandestinos e por isso compra o silêncio dos jovens famélicos através de
189
gorjetas. Contudo, posteriormente, Sebastian nega pão aos mendigos que estão no
restaurante por não saber que esses são os mesmos que estavam na praia.
Porém, ao ouvir o canto dos mendigos, Sebastian sente medo e julga ser esse canto
formado por palavras que o acusam a respeito do que fizera nos banheiros públicos.
Movido por uma culpa inconsciente, ele corre em uma fuga que o leva à morte.
Sendo assim, podemos dizer que Sebastian carrega uma culpa, a de ser
homossexual, e essa parece ter sido a causa indireta do seu assassínio.
Observamos que Catharine, ao narrar o que levara Sebastian a sair do restaurante
correndo, diz que “ele” escutara os mendigos a lhe ofender e não que os mendigos
realmente tinham dito estas frases. Ou seja, as vozes acusatórias ouvidas por Sebastian
podem ser apenas um delírio de sua mente.
Acrescentamos que, em outros dois momentos da peça, nos é revelado que
Sebastian ouve uma outra voz: a de Deus.
Violet Venable conta que o filho sempre andara “à procura de Deus” (ibidem, p. 25)
e que em Galápagos o encontrou com uma face hedionda que lhe atirava “à cara palavras
cruéis” (ibidem, p. 29). Catharine, por sua vez, revela que o primo constantemente dizia
ouvir vozes a exigir que ele fosse um “sacrifício a um gênero terrível de Deus.” (ibidem, p.
108).
Como observamos, em Bruscamente no verão passado, os acontecimentos de
Galápagos são metáforas do fatídico porvir. Desse modo, podemos dizer que as palavras
cruéis de Deus correspondem, na mente de Sebastian, aos gritos dos meninos e que o ritual
antropófago destes é a concretização do sacrifício exigido por Aquele.
190
Sendo assim, por mais que negue Violet Venable, o devorar das tartarugas pelos
pássaros negros possui um significado psicanalítico para Sebastian: é o retrato de um ser
que acredita ter sido sacrificado por sua homossexualidade.
Também como Williams, Bernardo Santareno, em O inferno, coloca o trecho do
devorar das tartarugas como um trágico porvir. Isso porque, para Orfeu, as imagens
assassinas de seu caderno, dentre elas a dos pássaros matando tartarugas, concretizar-se-ão
nos assassinatos perpetrados por este serial killer, dentre eles o de um homossexual.
Desse modo, podemos dizer que o trecho, transcrito por Orfeu, da peça de Williams,
pode ter dois significados. O primeiro, a visão naturalista do mais fraco sendo subjugado
pelo mais forte. O segundo, a visão psicanalítica de um ser superior a exigir um sacrifício, o
do homossexual Edward Evans.
Contudo, julgamos necessário observar que, na peça santareniana o sacrifício
exigido por Orfeu é paradoxal, uma vez que ele quer destruir algo que nele também existe:
a homossexualidade.
Para compreendermos esse paradoxo, devemos observar alguns pensamentos de
Freud em relação à homossexualidade e os aplicar aos casos de Sebastian e de Orfeu.
Segundo o neurologista e psiquiatra Sigmund Freud, a não superação do Complexo
de Édipo
70
pode originar os indivíduos homossexuais e os comportamentos paranóicos.
Visto como um mecanismo disciplinador da sexualidade, o Complexo de Édipo
defende a idéia de que a criança deve transpor três fases para alcançar a normalidade na
vida adulta. Guiada pelo “princípio do prazer”, a criança nutre-se do corpo materno e tem
com esse um envolvimento íntimo. Na primeira fase do Complexo de Édipo, contudo, essa
70
Em nossa Introdução já tratamos da teoria freudiana do Complexo de Édipo na análise da peça santareniana
Antônio Marinheiro. Neste momento da análise, portanto, nos restringiremos ao conteúdo específico que
explica, nessa teoria, a homossexualidade.
191
união nutricional deve se tornar um desejo de envolvimento sexual com o corpo feminino
(teríamos então, segundo Freud, o erotismo oral em primeiro plano). Nos meninos, caso
que nos interessa objetivamente, a segunda fase corresponde ao amor incestuoso pela mãe e
ao desejo de afastar o rival desse amor, o pai. Na terceira fase, movido pelo medo de
castração, o menino identifica-se com o pai e tem nesse seu modelo simbólico de
masculinidade.
Após essas três fases, explica Freud, a criança torna-se um sujeito dotado de gênero,
pois faz uma “escolha objetal (FREUD, 2002, p. 110) e, na superação do Complexo de
Édipo, empurra para o inconsciente seu desejo proibido.
Terry Eagleton, ao explicar esta teoria freudiana, acrescenta:
Se o menino é incapaz de superar com êxito o complexo de Édipo, pode
ficar sexualmente incapacitado para esse papel: pode favorecer a imagem
da mãe acima de todas as outras mulheres, o que para Freud pode levar à
homossexualidade (...). (EAGLETON, 2003, p. 215).
Algumas passagens da peça Bruscamente no verão passado mostram que a relão
que Sebastian tem com sua mãe se encaixaria nessa definição apresentada por Freud.
Violet Venable, ao descrever seu relacionamento com o filho, diz ao doutor: “(...) eu
era, na realidade a única que correspondia ao ideal que ele exigia das pessoas.”
(WILLIAMS, 1964, p.39). Catharine, ao explicar seus sentimentos por Sebastian, diz amá-
lo “da única maneira que ele aceitava ser amado: uma espécie de maneira maternal.”
(ibidem, p.107).
Desse modo, a valorização extrema da mãe pode ser uma das causas, se seguirmos o
pensamento freudiano, da homossexualidade em Sebastian.
Além disso, observamos que, na história de vida de Sebastian, há a total ausência da
figura masculina e, na falta desta, o poeta parece ter na figura feminina seu modelo
192
simbólico de sexualidade. Não sabemos como Sebastian se vestia ou agia, mas sabemos
que sua mãe e, na ausência desta, Catharine eram as responsáveis por serem a primeira
imagem dele junto aos futuros parceiros sexuais masculinos. Junte-se a isso a idéia de que,
dos relacionamentos homossexuais de Sebastian, nasciam poemas de verão e que o tempo
de cada uma destas produções poéticas é comparado a um período vivido só pelas
mulheres, os nove meses de gestação.
Sendo assim, ao invés de identificar-se com o modelo masculino e desse retirar seu
gênero, Sebastian projeta no feminino seu ideal e passa a ter como gênero psicológico a
figura da mulher.
Em O inferno, Bernardo Santareno não retrata como fora o relacionamento de Orfeu
com a mãe, portanto não podemos utilizar a explicação freudiana para compreendermos a
homossexualidade dessa personagem.
Podemos, contudo, dizer que Orfeu, ao perseguir homossexuais, encaixa-se na
explicação que o psiquiatra austríaco coloca para uma das doenças relacionadas a não
superação do Complexo de Édipo: a paranóia.
Segundo Freud, alguns indivíduos são totalmente dominados pelo inconsciente e por
isso possuem atitudes que são consideradas paranóicas: alucinações sistematizadas, mania
de perseguição, ciúme excessivo e mania de grandeza. Além disso,
A raiz de tais paranóias é por Freud localizada em uma defesa inconsciente
contra a homossexualidade: a mente nega esse desejo, transformando o
objeto amoroso em um rival ou perseguidor, reorganizando e
reinterpretando sistematicamente a realidade para confirmar essa suspeita.
(EAGLETON, 2003, p. 219 - 220).
Desse modo, podemos juntar caça e caçador na interpretação do trecho transcrito
por Orfeu em seu caderno de notas: Sebastian, tal qual caça, sente-se perseguido por ser
193
homossexual; Orfeu, por sua vez, nega seu desejo e, deixando de ser caça, torna-se, como
tentativa de fuga, o caçador a perseguir, como rival, o seu verdadeiro objeto amoroso.
Para finalizar nossa análise, observamos que a paranóia e a esquizofreniao graus
diferentes de uma mesma doença: a psicose. O indivíduo psicótico é aquele que rompeu
com o mundo exterior e construiu uma realidade alucinatória. No paranóico, essa realidade
construída sistematiza-se em alucinações que se repetem. No esquizofrênico, o desejo
inconsciente inunda a mente consciente com uma falta de lógica cuja linguagem, segundo
Eagleton ao explicar Freud, “(...) guarda uma interessante semelhança com a poesia”
(ibidem, p. 220).
Julgamos essa observação pertinente por dois motivos. O primeiro é que tanto
Sebastian quanto Orfeu escutam vozes em seus delírios alucinatórios (naquele, a de Deus;
neste, como veremos na análise do intertexto de Camus, as de filósofos e literatos). O
segundo é que ambas as personagens são ligadas à poesia (a cada verão, Sebastian produziu
um poema; e o nome escolhido por Santareno para designar seu serial-killer tem origem
mitologicamente poética).
Dessa forma, podemos concluir que, na selva humana criada por Tennesse
Williams, Sebastian torna-se caça por ser o mais fraco dos seres. Contudo, ao contrário dos
animais de Galápagos, a fraqueza deste humano não tem origem em seu corpo físico, mas
sim em sua mente: a psicose o faz poeta perseguido por um Deus cruel que não aceita seus
instintos homossexuais.
Em contrapartida, no meio criado por Santareno, a psicose leva o ser a uma outra
reação: entoando um canto de morte, Orfeu é caçador a perseguir no outro a fraqueza que
não quer para si e se torna, nesse momento, o mais forte dos animais.
194
Vejamos, na análise de nosso próximo intertexto, O homem revoltado (1951), como
outras notas poeticamente assassinas compõem o canto entoado por Orfeu.
III. 3- Albert Camus: um autor a observar um tempo em que os crimes de paixão
tornaram-se frases que justificam os crimes de lógica.
Albert Camus (1913 1960) era um escritor renomado quando publicou, em
1951, o ensaio filosófico O homem revoltado. Contudo, os elogiosos comentários que
foram destinados a livros como O estrangeiro (1942) e A peste (1947) mudaram de tom ao
tratarem daquela produção camusiana. Vários intelectuais franceses, encabeçados pelo
romancista e filósofo Jean Paul Sartre, censuraram Camus realizando um verdadeiro
linchamento literário. As críticas ocorreram pois na obra citada defendia-se que a violência
fascista de direita e a cometida pelos comunistas russos de esquerda eram igualmente
execráveis.
Nascido na Argélia, Albert Camus filiou-se ao Partido Comunista em 1935.
Todavia, em 1940, ano em que se mudou para a França, mais precisamente para Paris, ele
já havia se desvinculado deste partido. Anos depois, com a publicação de O homem
revoltado, o escritor de língua francesa
71
explica-nos a sua opção de se afastar do partido: a
rebelião comunista se transformou em um império de homens que se esqueceram das
verdadeiras origens da revolta.
71
Apesar de não ter nascido na França, adjetivaremos Camus como um escritor francês. Esta filiação à tria
francesa justifica-se principalmente por uma frase dita pelo autor quando esse, em 1957, ganhou o prêmio
Nobel de literatura: “Minha pátria é minha língua”.
195
Na peça teatral O inferno, o parágrafo introdutório do livro de Camus foi transcrito
para o caderno de anotações de Orfeu. Na terceira audiência, a voz do procurador traz aos
jurados e aos espectadores o pensamento de Camus copiado pelo assassino:
crimes de paixão e crimes de lógica. A fronteira que os separa é incerta.
Mas o código penal distingue-os, muito comodamente, pela chamada
premeditação. Este é o tempo da premeditação do crime perfeito. Os nossos
criminosos já não são aquelas crianças desarmadas que invocam como
desculpa o amor. Eles são pelo contrário adultos, e o seu álibi é irrefutável:
é a filosofia, que pode dar para tudo, até para transformar os assassinos em
juízes. (SANTARENO, s.d., p.192)
72
.
Após ler o parágrafo, o procurador da rainha faz ao acusado duas indagações. Na
primeira, pergunta a Orfeu se esse acredita que o crime de nosso tempo é premeditado e
perfeito. Na segunda, se o acusado ama Eurídice Oliver. As intenções do procurador ao
realizar essas indagações são claras: saber se os assassinatos cometidos por Orfeu seriam
classificados, segundo o pensamento camusiano, como “crimes de lógica” ou como “crimes
de paixão”.
Orfeu esclarece ao procurador que os crimes de lógica a que Camus se refere seriam
crimes políticos ou de guerra. Além disso, acrescenta o assassino com voz doce e firme, seu
amor por Eurídice é eterno e o rumor dos sangues” (ibidem, p. 194) é um complemento
para a união dos corpos dos amantes.
Sendo assim, enquanto o procurador da rainha acredita que o acusado cometeu um
“crime de lógica”, Orfeu coloca em sua defesa que os assassínios cometidos foram movidos
para o engrandecimento do amor.
72
Na tradução utilizada para esta análise encontramos o parágrafo colocado da seguinte forma: “Há crimes de
paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação.
Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças
desarmadas que invocam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia
pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes.” (CAMUS, 2005, p.13).
196
Observemos quais são os crimes de paixão” e de “lógica” colocados por Camus
para compreendermos qual das personagens santarenianas está com a razão.
No capítulo introdutório de O homem revoltado, mesmo capítulo em que consta a
frase utilizada por Santareno em O Inferno, esclarece Camus acerca do objetivo de seu
livro:
(...) trata-se de uma tentativa de compreender o meu tempo. Pode-se achar
que uma época que em cinqüenta anos desterra, escraviza ou mata setenta
milhões de seres humanos deve, apenas, e antes de tudo ser julgada, mas
também é necessário que a sua culpabilidade seja entendida (CAMUS,
2005, p. 14).
Com o objetivo de compreender esta culpabilidade, o autor francês observa que os
assassinos de seu tempo racionalizam os crimes que cometem. Acrescenta, ainda, que esta
racionalização ocorre quando os crimes de lógica usam a filosofia de épocas anteriores,
ainda guiadas pelos “crimes de paixão”, como álibi que justificaria, pelo menos em um
tribunal gerido por algozes, os atos sanguinolentos dos criminosos.
No segundo capítulo do livro, A revolta metafísica, Camus faz um histórico que traz
os principais pensamentos dos que cometeram crimes de paixão: Sade, os dândis
românticos (entre eles, o Satã de Milton, o herói byroniano e o atormentado eu-lírico dos
poemas de Lermontov), Ivan Karamazov e Nietzsche.
Em O Inferno, como já vimos, Orfeu copia trechos de vários autores. Quando é
inquirido sobre o motivo que o leva a fazer isto, diz Orfeu ironicamente:
Copiei-os aqui e além, duns livros que leio de vez em quando. Creio
que nunca me esqueci de escrever por baixo o nome do autor (...) Do
crime de plágio, pelo menos, não poderá este tribunal acusar-me.
(SANTARENO, s.d., p.185).
Observamos que Orfeu realmente coloca a autoria de cada frase transcrita. Contudo,
ele não cita as obras utilizadas como fonte. A observação é importante uma vez que a
197
leitura de O homem revoltado nos revela que o assassino copiou desta obra mais do que o
parágrafo inicial (a tratar, como vimos, dos crimes de paixão e de lógica). Orfeu também
trouxe ao seu caderno frases de Sade, Dostoievski e Nietzsche que haviam sido
transcritas por Camus nesse seu ensaio filosófico.
Dessa forma, para compreendermos o pensamento de Camus e o de seu “copista”
Orfeu (e de Santareno, por meio deles) teremos que subdividir o estudo de O homem
revoltado em partes a analisarem autores e frases que também foram citados em O Inferno.
Acrescentamos que, para uma melhor compreensão do texto de Camus, teremos que
trazer à nossa análise a obra original dos autores por ele citados. Contudo, como o escritor
francês, assim como Orfeu (e Santareno, por meio dessa personagem), não explicita a qual
obra pertence cada parágrafo citado, este trabalho de procura da fonte poderá ser, em alguns
momentos, infrutífero. Nessas ocasiões, como sabemos que a fonte de Orfeu (e de
Santareno) foi o livro O homem revoltado, nos restringiremos a analisar o raciocínio
colocado na obra de Albert Camus.
III.3.1- Marquês de Sade: os crimes de paixão de um revoltado absoluto.
Introduzimos nosso estudo acerca do Marquês de Sade (1740-1814) observando que
ele é o autor mais citado em O inferno. Uma frase retirada de um livro de Sade é
pronunciada por Orfeu quando esse quer iniciar Joseph no mundo do crime. Além disso,
vários pensamentos do autor libertino foram anotados por Joseph e Orfeu em seus cadernos,
pensamentos esses que serão lidos durante o julgamento. Por fim, também é o Marquês um
dos autores citados por Orfeu e Eurídice quando juram um pacto de amor e sangue.
198
Salientamos que tais frases de Sade, exceto uma, podem ser encontradas no livro O
homem revoltado. Desse modo, podemos usar a obra de Camus como base para nossa
compreensão dessa literatura libertina.
Contudo, por dois motivos específicos, iniciaremos este nosso estudo analisando o
livro A filosofia na alcova (1795). O primeiro deles é que o trecho retirado diretamente da
obra sadiana para compor o canto de morte de Orfeu pertence a esse livro. O segundo, é
que o pensamento de Camus acerca de Sade também tem como base a mesma obra.
Para aliciar Joseph a entrar no seu mundo de crimes, Orfeu retira um livro da estante
e lê a seguinte passagem:
Vamos resumir, que já é tempo: Deve o assassinato ser punido como crime?
Sem vida que não. A única punição verdadeiramente justa para um
assassino é aquela a que ele se arrisca por parte da família ou dos amigos da
sua tima. Perdoo-te – disse Luis XV a Charolais, acusado de ter morto um
homem sem motivação aparente, por puro divertimento mas perdoarei
igualmente àquele que matar a ti. (SANTARENO, s.d., p. 114 - 115)
73
.
Na obra santareniana, não menção ao nome do livro lido. Porém, podemos dizer
que se trata de A filosofia na alcova já que o trecho acima faz parte do libelo trazido por
Saint-Ange à alcova em que Eugénie recebe seus primeiros ensinamentos libertinos.
Intitulado como “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicano”, o
panfleto é um apelo para que os cidadãos continuem a lutar pelos ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade que guiaram a Revolução Francesa.
O escrito declara que essa revolução conseguiu fazer com que o rei tirano não mais
exercesse seu poder, contudo não destituiu da pátria francesa quem sustentava a monarquia
absolutista: os altares erguidos a Cristo e às superstições religiosas.
73
Na tradução que utilizamos em nosso estudo, a frase aparece da seguinte forma: É tempo de resumir. O
assassinato ser reprimido pelo assassinato? Não, sem dúvida. Só devemos impor ao assassino a pena que
podem incorrer por vingança os amigos e a família da vítima. Eu vos perdôo, disse Luís XV a Charolais que
matara um homem para se divertir, mas também àquele que irá matar-vos (...). (SADE, 2003, p. 169).
199
Sendo assim, salienta o libelo, se os franceses querem a verdadeira revolução
republicana devem lutar não somente contra o poder do cetro real, mas também contra o
incensório católico e suas diversas manifestações. Ou seja, explicita o escritor, o homem
que participou do progresso das luzes o pode negar “(...) que as religiões sejam o berço
do despotismo.” (SADE, 2003, p. 135).
O escrito observa ainda que a ausência de religião podetrazer aos homens a falta
de um padrão moral a ser seguido. Contudo, salienta o manifesto, um Estado republicano
que se serviu da guerra para obter o poder não pode exigir que seus indivíduos sejam
morais. A república, acrescenta o autor, precisa de atos de insurreição. A guerra foi o
primeiro desses e cabe ao cidadão praticar outros com o intuito de manter vivo o desejo de
liberdade almejado pelo republicano.
Nesta parte, o libelo analisa alguns atos ditos imorais como manifestações de luta
contra os falsos conceitos morais. Praticar o roubo seria, desse modo, uma forma de igualar
os bens monetários. Ser lúbrico com homens e mulheres, um dever dos poderosos para que
o governo não seja prejudicado por frustrações sexuais. Seguir os instintos sexuais sem
objeto definido, uma maneira de manifestar-se contra a prisão exigida pelo himeneu.
Realizar o estupro, a sodomia e a pederastia, formas de se mostrar que a sexualidade não
visa à procriação, mas sim ao deleite. Por fim, seguir todas as inclinações naturais que o
homem possui seria um modo de manifestar que se quer seguir o único objetivo almejado
pelas leis morais da natureza: o prazer.
Segundo o libelo, porém, é necessário questionar se a inclinação natural que os
homens têm de matar deve ou não ser cerceada no regime republicano. Em primeiro lugar,
observa-se que o assassinato é um ato cruel, uma vez que tira do homem a vida, “único bem
que recebeu da natureza, o único cuja perda é irreparável” (ibidem, p. 160). Porém, para se
200
julgar se esse ato é ou não crime, deve-se examinar atentamente as outras leis da natureza,
as leis políticas e as sociais.
No que concerne às leis da natureza, é necessário salientar que o homem faz parte
de um universo formado por outros animais e por vegetais e que, nesse sistema natural, a
eternidade é impossível uma vez que os seres precisam participar de uma renovação
constante. Sendo assim, ao matar um outro ser, mesmo que seja um outro homem, o
assassino estaria apenas seguindo uma das mais importantes leis da natureza, a da morte
como forma de movimento perpétuo.
Quanto às leis políticas, o escrito observa que o assassinato é uma das grandes
molas do poder conseguido pelos estados. Para compreendermos esse raciocínio, cita-se o
fato de que as nações poderosas somente foram elevadas a este posto após realizarem os
assassinatos em massa promovidos pelas guerras.
Enfim, ao abordar as leis sociais, o libelo informa que somente uma monarquia de
tiranos é que necessita de um grande número de escravos para sustentá-la; na república,
pelo contrário, os homens precisam ser cada vez melhores e não em maior quantidade. Ou
seja, assim como “é preciso podar a árvore quando ela se enche de galhos” (ibidem, p.168)
e assim proporcionar que os melhores ramos fortaleçam a planta, é necessário que o
republicano tire os seres inúteis à pátria para que essa se fortala com indivíduos bem
constituídos” (ibidem, loc. cit.). Desse modo, segundo o libelo, as leis sociais aconselham o
assassinato quando observam que “a espécie humana deve ser depurada do berço; só assim
ireis prevenir e suprimir de seu seio tudo aquilo que jamais seria útil à sociedade” (ibidem,
loc. cit.).
Portanto, conclui o libelo, o assassinato também é uma manifestação de revolta.
Sendo assim, não pode o estado democrático punir esse ato. Contudo, observa o panfleto,
201
os indivíduos próximos à vítima têm o direito de também assassinarem o assassino, pois
desse modo dariam vazão ao instinto de vingança natural do homem.
No livro sadiano, o libelo é trazido à alcova em que Eugénie recebe seus
ensinamentos libertinos. Após o quinto diálogo, tendo sido submetida às mais diversas
formas de sexualidade, a menina pede aos preceptores que digam algo que a console acerca
dos atos cometidos. Para provar que as lições recebidas são atos admissíveis em uma
sociedade que luta pela liberdade, tal qual a republicana, Saint-Ange apresenta o escrito.
Após a leitura, a menina observa que as palavras do manifesto são cheias de sabedoria.
Porém, acrescenta, os princípios divulgados nesse texto podem ser extremamente
perigosos.
Evidenciamos que os nomes das duas personagens envolvidas na leitura do libelo
são extremamente significativos.
Observemos o nome da mestra em libertinagem, ela se chama Saint-Ange. Nome
que seria dado a uma pessoa pura, consagrada e ligada a Deus. No texto sadiano, todavia,
este nome ganha um tom irônico: Saint-Ange é quem inicia Eugénie na sexualidade
libertina, além disso, essa mestra é quem traz à alcova o libelo que incita os revoltosos a
destruírem qualquer manifestação do Deus católico.
Quanto à menina que recebe seus primeiros ensinamentos libertinos, Sade a chama
de Eugénie. Observamos que o substantivo “eugenia” designa a ciência responsável por
estudar as condições mais propícias à reprodução e ao melhoramento genético da espécie
humana. Podemos dizer, iluminados pela leitura do libelo, que Sade conota
onomasticamente o que o manifesto explica de maneira política: o melhoramento da
espécie humana depende de os homens entenderem que a “liberdade libertina” tem como
base o direito que o ser humano possui de seguir seus instintos naturais.
202
Em O inferno, a frase do libelo é colocada quando Orfeu, tal como um preceptor,
quer iniciar Joseph num mundo de crimes. Salientamos que, nesse momento do enredo,
Orfeu sugerira a Joseph que ambos cometessem um assalto para conseguirem dinheiro.
Além disso, por causa dos planos do assalto a ser cometido, Orfeu falara de armas e de
assassinatos. O preceptor tira de sua estante, então, o livro de Sade e lê a frase do libelo que
estudamos. O intuito de Orfeu, nesse momento do enredo, parece ser o de mostrar a seu
iniciado que o assassino não deve ser punido pelo assassinato cometido. Sendo assim, na
obra santareniana, o trecho do libelo não possui o conteúdo político enfocado na obra
original.
Acrescentamos que Joseph, após escutar de seu preceptor a frase em questão, recebe
de Orfeu um caderno repleto de citações. Dentre elas, Joseph lê a seguinte frase: “Aceitai a
liberdade do crime, que é a única razoável, e entrai para sempre em insurreição, como se
entra no estado de graça”. (SANTARENO, s.d., p. 116).
Após essa leitura, Joseph pergunta a Orfeu se Sade não fora preso por dizer tais
palavras. Orfeu, por sua vez, responde a seu iniciado que o marquês estivera “enjaulado
anos e anos” (ibidem, loc. cit.) o somente por escrever, mas também por praticar esses
atos.
Como já observamos anteriormente, ao transcrever as frases para seu caderno, Orfeu
coloca a autoria das mesmas, contudo não diz a qual obra o texto pertence. A observação é
pertinente, que a frase em questão o pertence ao livro A filosofia na alcova.
Salientamos que ela consta, na verdade, do comentário de Camus acerca do libelo inserido
nesta obra sadiana:
‘Mais um esforço, se quiserem ser republicanos’ quer dizer: ‘Aceitem a
liberdade do crime, que é a única liberdade racional, e entrem para sempre
na insurreição, assim como se entra em estado de graça’. A submissão total
203
ao mal conduz, então, a uma terrível ascese, que devia horrorizar a
República das luzes e da bondade natural. Por uma coincidência
significativa, o manuscrito de Cento e vinte dias de Sodoma tinha sido
queimado no primeiro conflito da República, que não podia deixar de
denunciar essa liberdade herética, devolvendo às quatro paredes de uma
cela o correligionário tão comprometedor. (CAMUS, 2005, p. 58).
No livro de Camus, a frase que consta no caderno de Orfeu está assinalada por
aspas, o que nos diz que ela não pertence a Camus, mas sim, provavelmente, ao próprio
Sade.
Ao interpretar esse pensamento sadiano, Camus diz que a insurreição exigida pelo
autor libertino o é contra a política monárquica, mas sim a favor de uma ascese galgada
pela prática de costumes que eram considerados criminosos. Além disso, por pregar a
ascese através da perversidade, Sade prega a maldade natural, o que não é aceito no tempo
republicano em que viveu o autor libertino.
Acrescentamos que, no ensaio acerca de Sade, Camus diz que muitos estudiosos do
autor, dentre eles Pierre Klossowski, têm, acerca do libelo apresentado em A filosofia na
alcova, a seguinte opinião:
(...) esse libelo demonstra aos revolucionários que sua república se
estabelece com base no assassinato do rei de direito divino e que, ao
guilhotinarem Deus no dia 21 de janeiro de 1793, ficaram proibidas para
sempre a condenação do crime e a censura aos instintos maléficos. A
monarquia, ao mesmo tempo em que se mantinha, também mantinha a idéia
de Deus que criava as leis. (CAMUS, 2005, p.57)
A data citada, 21 de janeiro de 1793, corresponde ao dia em que o rei Luis XVI foi
guilhotinado. Entretanto, ao mencionar essa data, Klossowski acrescenta que o assassínio
do rei significou principalmente um marco temporal a diagnosticar o fim de um tempo: o de
um Deus soberano e irrefutável.
204
Como estudamos os conceitos colocados no libelo em questão, podemos dizer
que o comentário de Klossowski acerca desse texto de Sade é pertinente. No libelo, assim
como observou o crítico, o rei guilhotinado simboliza não a morte carnal da monarquia,
mas também, e principalmente, um caminho de liberdade a ser seguido pelos revoltosos: o
assassínio do teísmo e dos conceitos morais anteriormente ditados por uma sociedade
católica.
Contudo, devemos salientar que a revolta de Sade tem início muito antes dessa data.
Nascido na aristocracia francesa no ano de 1740, Donatien Alphonse François, mais
conhecido como Marquês de Sade, teve seus primeiros estudos junto ao tio, o abade de
Sade, um conhecido erudito e libertino. Já em sua vida adulta, entrou na escola de
cavaleiros reservada à nobreza francesa e, desse momento em diante, seguiu carreira
militar.
Data de 1763 sua primeira prisão. Por ordem real, Sade foi encarcerado na torre de
Vincennes, acusado de devassidão e de ter espancado uma meretriz em uma casa de
prostituição. A intervenção paterna fez que ele fosse libertado após quinze dias, porém, as
lesões corporais da meretriz foram tão graves que o marquês, já conhecido por seus
excessos, foi condenado ao exílio na Normandia.
Um ano depois, Sade recebeu autorização para voltar a Paris. Mas, em 1768, foi
encarcerado novamente por ter espancado uma mendiga em pleno domingo de Páscoa.
Após sete meses de prisão, o marquês pagou alta quantia e foi solto.
Em 1772, enfrentou novamente o rcere. Desta vez a condenação ocorreu por
Sade, durante uma orgia, ter obrigado mulheres a ingerir bombons de anis contaminados
por cantáridas, um afrodisíaco proibido. O objetivo almejado pelo Marquês era que as
mulheres soltassem gases e defecassem durante o ato sexual, porém algumas destas
205
mulheres foram internadas em estado grave de saúde. Pelo crime, Sade foi julgado e
condenado a cumprir pena de “morte por contumácia”, ou seja, um boneco que o
representava foi queimado em praça pública com o intuito de que todos soubessem que os
atos do marquês eram execrados pelo rei e pela nobreza.
Em 1777, por atos desonrosos à família, os parentes de Sade pediram que o rei o
encarcerasse novamente. O marquês foi, então, condenado à prisão perpétua. Durante sete
anos, ficou preso em Vincennes e, em 1784, foi transferido para a Bastilha. Em 1789, Sade
ameaçou matar todos os prisioneiros que com ele cumpriam pena e por este ato é internado
no hospício de Charenton.
Em 1790, teve sua liberdade concedida que, por causa da Revolução Francesa,
todos os que tinham sido encarcerados por ordem direta do rei receberam um alvará de
soltura.
Desse modo, como pudemos observar, mesmo antes de Luis XVI ter sido preso
pelos revolucionários (1789) e assassinado (1793), Sade já praticava atos libertinos que não
tinham relação alguma com a liberdade exigida pela República.
Além disso, Sade permaneceu preso durante vinte e sete anos, dos setenta e quatro
em que viveu. Sendo que suas prisões foram ordenadas por três regimes distintos de
governo: a monarquia absolutista, a república e o império.
Acrescentamos ainda, como foi salientado por Camus, que a maldade apresentada
por Sade horrorizava a época das luzes, que pregava a bondade natural do homem. Um
exemplo disso é que o manuscrito de Cento e vinte dias de Sodoma (1782) foi queimado
quando o governo republicano já estava no poder.
206
Observamos que a obra em questão foi escrita em plena monarquia absolutista.
Acrescentamos ainda que o texto fala de uma “sociedade do crime” que se reúne para
praticar atos que Sade já exercia nessa época: pederastia, sodomia e sadismo
74
.
Ou seja, o livro declara através da literatura o que Sade praticava em sua vida
pessoal: atos que o encontram adeptos nem no governo republicano, que queima o texto,
nem no monárquico, que prende Sade.
Salientamos que nessa obra, escrita treze anos antes de A filosofia na alcova, Sade
declarava não crer em Deus: “Deus é uma doença que devora os instintos, uma
superstição, um cancro que desfaz o cérebro” (SADE, 2006, p. 62).
Observamos que essa frase de Sade é trazida ao texto de O inferno através das
palavras do marquês copiadas por Joseph em seu caderno: Deus é uma doença; uma peste;
um peso pendurado ao pescoço do homem...” (SANTARENO, s.d., p.121).
Também em 120 dias de Sodoma, o marquês explica o motivo de sua descrença:
Que essas tolas criaturas se persuadam e se convençam (...) de que a
existência de deus é uma loucura que não tem, em toda a terra, vinte
sectários, hoje em dia, e que a religião que ele invoca não passa de uma
fábula ridícula inventada por velhacos cujo interesse em nos enganar é por
demais visível no presente. Em suma: decidi por s mesmas: se houvesse
um deus, e se esse deus tivesse poderes, como poderia permitir que a
virtude que o honra e que professais fosse sacrificada, como será o caso, ao
vício da libertinagem? Como permitiria, esse deus onipotente, que uma
criatura fraca como eu, que diante dele não passaria de um carrapato aos
olhos de um elefante, como permitiria, digo, que essa fraca criatura o
insultasse, o escarnecesse, o desafiasse, o afrontasse e o ofendesse, como
tenho o prazer de fazer a cada hora do dia? (ibidem, p.62).
74
Na última metade do século XIX, o psiquiatra Richard von Krafft-Ebing criou o termo sadismo observando
a vida libertina do marquês. Para Richard, e para a psiquiatria contemporânea, a palavra sadismo descreve a
excitação sexual proveniente do prazer ligado à dor de outrem.
207
Desse modo, através das próprias palavras de Sade, podemos perceber que a revolta
que ele manifestava era contra Deus e teve início não por causa de movimentos políticos,
mas sim pela própria existência de homens cuja natureza é dissoluta: os libertinos.
Somamos ainda à biografia de Sade que ele, no ano de 1801, em pleno império
napoleônico, foi preso por escrever obras pornográficas. Além disso, um ano depois,
acusado de seduzir jovens detentos, foi enviado novamente ao hospício de Charenton, onde
permaneceu internado até a data de sua morte (02 de dezembro de 1814).
Sendo assim, podemos concluir que Sade é preso, como se viu, por três tipos de
governo (a monarquia absolutista, a república e o império) não por suas opiniões
diretamente ligadas à política, mas sim por sua vida e literatura licenciosas.
Para explicar essa licenciosidade de Sade, observa Camus:
Sade irá negar Deus em nome da natureza (...) e fará da natureza um poder
de destruição. Para ele, a natureza é o sexo; sua lógica o conduz a um
universo sem lei, onde o único senhor será a energia desmedida do desejo.
Lá está o seu reino apaixonado, onde encontra suas mais belas
exclamações: ‘Que são todas as criaturas da terra diante de um único desejo
nosso!’ Os longos raciocínios nos quais os heróis de Sade demonstram que
a natureza tem necessidade do crime, que é preciso destruir para criar, que
se ajude, portanto a criar a partir do instante que o homem destrói a si
próprio, visam apenas criar liberdade absoluta de Sade, o prisioneiro, por
demais reprimido pela injustiça para não desejar a explosão que fará com
que tudo voe para os ares. É nisso que ele se oe à sua época: a liberdade
que reclama não é a dos princípios e sim a dos instintos. (CAMUS, 2005, p.
56).
Como nos esclarece Camus, para Sade, a destruição é uma forma de negar a Deus e
de aceitar como senhor a natureza e suas manifestações desmedidas de desejo.
Salientamos que a exclamação que Camus coloca entre aspas nessa sua análise
também é trazida ao caderno de anotações de Orfeu em O inferno.
Ainda mostrando a Joseph frases do marquês, Orfeu exclama:
208
Grande, divino Marquês! ‘Que valem todas as criaturas da Terra diante de
um de nossos desejos!’: Também é dele, isto. E como é belo, como é
verdadeiro... como é terrível! (Perdeu a habitual ironia metálica; fala
agora com paixão, quase místico, in tenebras.). Diante do meu desejo, do
meu êxtase... (SANTARENO, s.d., p. 116).
Nesse momento da conversa, Eurídice chega à sala e, corrigindo Orfeu, diz:
“(Interrompendo, com terrível doçura)... Do nosso desejo, do nosso êxtase...” (ibidem, loc.
cit.).
Atentamos que a frase dita por Sade tem, nesses trechos de O Inferno,
entendimentos diversos. Para Orfeu, que repete primeiramente a frase original de Sade, mas
depois a modifica trocando o pronome (“nosso” passa a ser “meu”), o desejo desmedido
não mais é somente uma manifestação da natureza, mas também de um homem que visiona
o poder. Para Eurídice, por sua vez, apesar da frase ser a mesma dita por Sade, a doçura da
voz revela uma mulher a acreditar que o desejo é guiado para o êxtase do amor, elemento
amaldiçoado pelo escritor libertino
75
.
Sendo assim, nesse momento de O Inferno, a liberdade dos instintos proclamada por
Sade é acrescida, em Orfeu, por um desejo de poder e substituída, em Eurídice, por um
desejo amoroso.
Salientamos que Orfeu, após dizer tais frases, revela ter matado uma “degradada
judia”, um “reles efeminado” e um “negro... arremedo de homemmovido pela “paixão”,
pelo desejo de conseguir lenha para atear” (ibidem, loc. cit.) fogo ao amor dele e de
Eurídice.
75
Em A filosofia na alcova, esclarece Dolmancé a Eugénie: “Oh, moças voluptuosas, entregai vossos corpos o
mais que puderdes! Fodei, divertivo-vos, eis o essencial. Mas fugi cuidadosamente do amor. Nele, só de
bom o físico (...) Diverti-vos, repito; mas o ameis em hipótese alguma (...) As mulheres não foram feitas
para um único homem: a natureza as criou para todos. Ouvindo apenas esta voz sagrada, elas devem entregar-
se indiferentemente a todos aqueles que as quiserem: putas sempre, jamais amantes.” (SADE, 2003, p.114)
209
Desse modo, evidenciamos que a questão amorosa também é trazida a Orfeu em seu
discurso, porém ele o faz apenas quando Eurídice está presente.
Atentamos para o fato que Sade havia colocado no libelo de A filosofia na alcova
que a república precisaria de homens que depurassem a espécie humana e, nesse caso, os
assassinos que cometessem seus crimes com esta finalidade não deveriam ser punidos, pois
estariam proporcionando à árvore da nação um crescimento mais fortificado.
Camus assinala em O homem revoltado que essa atitude sadiana representa um
“blanquismo moral (CAMUS, 2005, p. 59) em que um pequeno grupo de homens e
mulheres coloca-se acima de uma casta a ser eliminada (os miseráveis, os que acreditam no
amor e os que praticam atos religiosos).
Evidenciamos que este “blanquismo moral” também existe em Orfeu, porém as
vítimas deste assassino são determinadas, como observamos, segundo o pensamento
nazista. Dessa forma, Orfeu mata até aquele que seria um libertino aos olhos de Sade: o
homossexual Edward.
Nesse sentido, chegamos ao momento de analisar trechos acerca de Sade citados
pelos jurados.
Inicialmente, observemos o trecho que faz parte do caderno de Orfeu e que é lido
pelo primeiro jurado:
Sofro talvez ainda mais que vós, por causa da mediocridade dos crimes que
a natureza me deixa cometer. O mais que podemos, é ofender ídolos e
criaturas; mas a natureza não chega a ser atingida, e a ela é que eu queria
poder ultrajar. Queria perturbar os seus planos, contrair-lhe o ritmo, parar o
curso dos astros, afundar os glóbulos que flutuam no espaço, destruir tudo
quanto a favorece, proteger o que é funesto, edificar o que irrita... numa
palavra, insultá-la nas suas obras, suspender todos os seus grandes efeitos;
mas não sou capaz de fazer nada disto. (SANTARENO, s.d., p.188).
210
No livro de Camus encontramos um trecho pximo a este que foi transcrito por
Orfeu. Salienta Camus que Sade, ao refletir acerca de sua condição do universo, desabafa:
Abomino a natureza... Gostaria de atrapalhar os seus planos, interromper a
sua evolução, parar os astros, virar de cabeça para baixo os globos que
flutuam no espaço, destruir o que lhe serve, proteger o que lhe é nocivo; em
resumo: insultá-la em suas ações, e não consigo. (CAMUS, 2005, p. 62)
A partir do trecho acima, Camus observa que Sade sujeita a seus desejos libertinos
os servos. Contudo, como o libertino feudal está sempre à procura de novos servos para
satisfazer seus desejos de gozo e de destruição, ele acaba sendo também servo de seus
desejos; ou, como diria Camus, Sade realizou “uma corrida da servidão para a servidão e da
prisão para a prisão” (ibidem, loc. cit.). Deste modo, salienta o crítico francês, quanto mais
Sade exige liberdade, mais se torna servo de seus desejos libertinos insaciáveis e, portanto,
odeia a própria natureza que o fez escravo.
o primeiro jurado, ao ler este trecho do livro de Sade, explicita que escritos desse
tipo deveriam ser queimados e os autores que os realizaram, bem como seus leitores,
mereceriam a morte por divulgarem tais pensamentos.
Devemos esclarecer que esse mesmo jurado pede a pena de morte para Orfeu, pois
este é um “um piolho imundo”, um “escarro”, um “flagelo de Deus!”, enfim, “um membro
podre” (SANTARENO, s.d., 169) que mostra a progressiva efeminação deste decadente
país...” (ibidem, p. 171). Além disso, ao ouvir a fita que traz sons de Ann Gilbert sendo
abusada sexualmente, esse jurado apresenta “mais brilhantes os olhos cruéis, no rosto
lívido” (ibidem, p.101). Ou seja, o primeiro jurado quer extirpar da sociedade os
licenciosos, mas também é libertino em seus desejos: pede o assassínio de Orfeu por meio
da pena de morte e sente prazer no sofrimento de Ann.
211
Desse modo, podemos dizer que o jurado em questão e Orfeu se assemelham.
Ambos, movidos pelo desejo natural de violência, querem que o assassínio seja cometido (o
jurado pela mão do Estado, Orfeu pelas suas próprias mãos). Além disso, ambos têm um
desejo sexual perverso (o jurado ao sentir prazer quando ouve o sofrimento da menina e
Orfeu ao praticar a pedofilia em Ann e a sodomia em Edward).
Observamos, portanto, que a frase dita por Sade possui, novamente, um
entendimento diverso do que foi colocado. Em Sade, segundo Camus, a revolta é
progressiva e torna o libertino um homem preso a seus próprios desejos. Em Orfeu, por sua
vez, a revolta de Sade serve como justificativa para cometer crimes até mesmo contra os
que também são libertinos. No primeiro jurado, enfim, a hipocrisia da sociedade encarcera
os desejos, ou seja, o jurado em questão prende o libertino porque este manifestou em atos
os desejos naturais que ambos possuem.
Acrescentamos ainda que, em cerimônia natalina, Orfeu e Eurídice declamam Sade:
Orfeu
: ‘A solidão é o poder.’ Natal, Natal.... a festa da fraternidade humana
(Riso seco e doloroso) Também eu... também tu... nós, os solitários
malditos, também nós prestamos tributo à fraternidade do mundo: O terror é
a nossa homenagem! (Soltando-se de Eurídice, a correr dum lado para o
outro, apontando para as sepulturas:) Aqui... e além ... nós levantamos
monumentos em honra da amizade! Dois monumentos de osso e carne
podre! Dois sírios sangrentos, dois sacrifícios humanos em holocausto ao
amor do mundo!... Esta, a nossa força Eurídice!!! (Gritando como que a
chamar:) Ann!.. Sou eu, John!... (ibidem, p.154)
Camus conclui a análise da revolta de Sade observando que, depois que todas as
vítimas são massacradas em 120 dias de Sodoma, “os carrascos ficam um diante do outro
no castelo solitário” (CAMUS, 2005, p. 62) e percebem que:
212
(...) eles estão s, e uma lei os governa a lei do poder. que a
aceitaram quando eram senhores, não podem mais recusá-la se ela se voltar
contra eles. Todo poder tende a ser único e solitário. É preciso matar mais:
por sua vez, os senhores irão destruir-se. Sade percebe esta conseqüência e
não recua (...) ele aceitará a aniquilação pessoal. (ibidem, p. 63).
Em O inferno, o casal também diz estar só no castelo de morte construído, a
charneca em que os corpos das vítimas foram enterrados, mas ao invés de aceitar a própria
aniquilação, assim como o fez o libertino marquês, Orfeu e Eurídice invocam sacrifícios a
um novo deus a ser cultuado.
Ou seja, por ironia, Sade, o libertino que matou o Deus católico antes mesmo de
1793, que lutou em atos e palavras contra quaisquer manifestações religiosas, acabou se
tornando uma religião para os assassinos da charneca.
Enfim, conseguimos compreender os dois últimos pensamentos acerca de Sade
trazidos à peça O inferno.
Expressa o oitavo jurado:
jurado
(passando a mão pela fronte, pelas faces; fadiga)‘O sucesso que o
Marquês de Sade goza nos nossos tempos explica-se por um sonho que,
sendo dele, também é da sensibilidade contemporânea: a reivindicação da
liberdade total, e a desumanização operada a frio pela inteligência. A
redução do homem a objeto de experiência...’ ‘Com dois séculos de avanço,
embora em escala reduzida, Sade exaltou as sociedades totalitárias em
nome da liberdade frenética que a autêntica revolta não reclama.’
(SANTARENO, s.d., p. 117).
Em O inferno, Bernardo Santareno acresce ao parágrafo acima notas de rodapé.
Segundo o dramaturgo português, os trechos transcritos são pensamentos do próprio Albert
Camus.
213
Observamos que a informação fornecida por Santareno está correta uma vez que
podemos encontrar ambos os trechos na obra O homem revoltado
76
.
Os trechos citados se destinam, na conclusão do ensaio camusiano, a observar a
permanência do pensamento de Sade no século XX.
Primeiramente, o ensaísta francês ressalta que a liberdade total exigida por Sade tem
como herdeiros o os escritores, mas também homens cuja imaginação se excita nos
bairros nobres e nos cafés literários. A todos esses sucessores de Sade, o homem se
apresenta como objeto a ser estudado, como experimento de análise comportamental e
como item de uma monstruosa experiência: a de uma era de escravos submissos aos que
exercem a vontade de poder.
Posteriormente, Camus observa que a liberdade frenética exigida por Sade criou
sociedades totalitárias, isso porque o assassinato por instinto que Sade defendia acabou se
tornando justificativa para o assassinato legal. Ou seja, o crime que Sade coloca como fruto
do vício desenfreado se tornou hábito enfadonho.
Podemos concluir que, em O inferno, o oitavo jurado novamente coloca o objetivo
da peça santareniana: realizar um julgamento não para definir se Orfeu é culpado, mas sim
para estudar o motivo que tornou o assassínio atroz em um ato comum a ser julgado pela
hipocrisia de uma sociedade habituada à violência como manobra de poder.
Desse modo, pelo estudo da obra de Sade através de Camus, podemos dar mais um
passo na compreensão de O inferno: a revolta de Sade é um “crime de paixão” movido por
um homem que clama a liberdade de seus instintos naturalmente maléficos; a de Orfeu, um
76
O primeiro trecho aparece do seguinte modo no livro camusiano: “O sucesso de Sade em nosso tempo
explica-se por um sonho dele que afina com a sensibilidade contemporânea: A reivindicação da liberdade
total, e a desumanização friamente executada pela inteligência. A redução do homem a objeto de
experimento...” (CAMUS, 2005, p. 65). Quanto ao segundo, temos: “Com dois séculos de antecipação,mas
em escalada reduzida, Sade exaltou as sociedades totalitárias em nome da liberdade frenética que a revolta, na
verdade, não exige.”
214
“crime de lógica”, movido por aquele que invoca uma filosofia para justificar suas mortes
premeditadas.
Acrescentamos ainda que o enredo santareniano nos mostra que outros, dentre eles o
primeiro jurado, declaram ojeriza ao pensamento sadiano, mas são, contudo, piores do que
o libertino marquês, uma vez que querem assassinar o outro por um desejo que também
possuem (fato que já observamos na análise da peça de Tennessee Williams) .
O estudo feito nos mostra duas outras errôneas interpretações do pensamento
sadiano: a primeira, trata o marquês como um homem cuja revolta é política; a segunda,
como um ser movido por uma paixão amorosa.
A interpretação desses dois entendimentos nos é útil por fatores distintos.
Primeiramente, para compreender que os atos assassinos da modernidade não são movidos
como manifestações contrárias à miséria a que as pessoas são sujeitas (hipótese salientada
pelos advogados de defesa de Orfeu e de Eurídice e por nações totalitárias). Além disso,
para perceber que o nosso tempo não é mais movido por paixões amorosas extremas, fato
que estudaremos na próxima parte deste capítulo.
Cabe, para findar esta parte da análise, um pensamento de André Breton trazido ao
texto santareniano: em nosso tempo “(...) o homem consente em unir-se à natureza
através do crime; resta saber se esta não será, ao cabo e ao resto, uma das formas mais
loucas e indiscutíveis de amar...” (SANTARENO, s.d., 117).
Ou, se preferirmos a versão camusiana:
se pode compreender o pensamento de Breton a respeito de Sade:
‘Certamente, o homem não mais consente aqui em unir-se à natureza, a não
ser no crime; resta saber se essa não é ainda uma das formas mais loucas e
indiscutíveis de amar’. (CAMUS, 2005, p.117).
215
Como ponto final desta parte de nossa análise, observamos: a versão camusiana nos
revela não o texto, mas também um raciocínio que o explica. Segundo Camus, para
Breton, a apologia que Sade faz do assassinato é uma tentativa de mostrar aos homens que,
em um mundo sem significação e sem honra, só é legítimo o amor demonstrado pelo
simples desejo de existir. Ou seja, segundo o surrealista, os crimes do libertino são formas
que o homem encontra para dizer que ainda ama o próprio ser humano.
Na versão santareniana, contudo, temos que compreender que a frase se refere a
todos os indivíduos que são seduzidos pela forma mais louca de amar, amar o que o homem
tem de pior. Ou seja, como diria o quarto jurado envolvido pela bela figura de Orfeu, nos
fascinamos com “um anjo. Um anjo exterminador !!!... (SANTARENO, s.d., p.169).
Unindo os dois autores, o ensaísta e o dramaturgo, temos um veredicto parcial: os
julgamentos e as condenações existem porque não aceitamos, em Sade e em Orfeu, o lado
licencioso do homem seja este natural ou fruto de filosofias.
III.3.2 - A revolta absoluta do homem romântico.
No início do julgamento de Orfeu e Eurídice, a corte escolhe os que serão
responsáveis por analisar os atos de assassínio cometidos pelo casal. Nesse momento,
quatro mulheres apresentam-se como possíveis juradas. Uma delas, como salienta a rubrica,
é extremamente literária e, ao ver o casal, lembra versos pertencentes a um poeta
romântico: Mikhail Yurevitch Lermontov (1814 – 1841). Em tom declamatório, expressa a
jurada:
É muito bonita, esta Eurídice. Bem arranjada, poderia mesmo se tornar
fascinante!... (...) Como ela gosta do rapaz! O Orfeu domina-a inteiramente:
216
É o deus do seu prazer, anjo e verdugo, a sua tormenta...! Como nos versos
de Lermontov:
‘esta união breve e no entanto violenta
dum coração atormentado unido à tormenta...’. (ibidem
, p. 20).
Observamos que os versos declamados pela jurada também foram citados no livro O
homem revoltado de Albert Camus. Na tradução que utilizamos deste livro, os versos em
questão aparecem transcritos da seguinte forma: essa união breve porém viva / de um
coração atormentado unido à tormenta.” (Lermontov).” (CAMUS, 2005, p. 68).
Ou seja, mais uma vez, podemos dizer que a fonte intertextual usada por Santareno
pode ser o ensaio camusiano trazido, em outras ocasiões, às páginas de O inferno. Desse
modo, iniciamos o estudo desta citação através do pensamento exposto por Albert Camus.
Para Camus os românticos são, assim como Sade, revoltados absolutos. Segundo
aquele ensaísta francês, enquanto a negação irrestrita de Deus aparece, em Sade, por meio
da subserviência aos instintos sexuais; nos românticos ela é percebida pela escolha amorosa
que os autores fazem do satanismo.
O ensaio acerca dos românticos observa que esses não vêem Satã de forma negativa,
ao contrário disso, substituem a imagem medieval do ser “besta-fera de chifres” (ibidem, p.
68) por uma imagem diversa: Satã é “jovem, triste e encantador” (ibidem, loc. cit.), como
descreveu Vigny, ou “belo, de uma beleza desconhecida na terra” (ibidem, loc. cit.),
segundo as palavras de Lermontov.
Além disso, acrescenta o ensaísta, essa imagem de beleza atribuída a Satã ocorre
uma vez que o romântico vê neste ser o mesmo sofrimento que possui: ambos são inocentes
e culpam Deus-criador por fazê-los habitar em um mundo perverso.
A fim de esclarecermos esse pensamento de Camus, e o de Santareno por meio dele,
observemos o texto de Lermontov a que os autores fazem referência.
217
Mikhail Yurevitch Lermontov faleceu no ano de 1841, aos 26 anos. Apesar de ter
tido vida breve, o autor russo acrescentou à literatura uma quantidade significativa de
poemas, dramas e romances
77
. Dentre seus textos mais conhecidos, destaca-se a obra O
demônio (1838) que foi escrita e corrigida, segundo os biógrafos desse autor russo, durante
onze anos.
Lermontov inicia este seu poema narrativo apresentando seus dois personagens
principais: Satanás e Tamara.
Vagando na solidão do mundo, Satanás é um belo jovem que foi condenado a
sobrevoar eternamente nossa terra de pecadores. As sombrias rochas do Cáucaso e a
natureza plena de vida da planície trazem-lhe apenas um sentimento de desdém pela criação
divina. No seu rosto, tristeza e melancolia se fundem como quadros a revelarem um ser que
se lembra do passado, de um tempo em que ainda não tinha sido condenado a viver nas
trevas eternas, de uma época em que nele ainda não habitavam nem o mal, nem a dúvida.
Para descrever a beleza de Tamara, Lermontov metaforiza as qualidades da jovem
na perfeição da natureza e conclui:
(...) Depuis le jour où l'homme perdit le paradis, je le jure,/
jamais semblable beauté n'est éclose sous le soleil du midi.” (LERMONTOV, canto VII, Parte I)
78
.
Ao ver esse primor feminino, essa mulher cujas formas se igualam à perfeição do
paraíso perdido, o demônio vira docemente sua face e suspira lembrando de sua vida
celeste. Os olhos, as mãos, a boca de Tamara trazem a ele uma harmonia que há muito não
77
Aos dezessete anos, Lermontovhavia produzido duzentas poesias e três dramas. Nessa época, o caderno
escolar do adolescente era uma espécie de diário com versos repletos de reflexões. Lermontov indagava
acerca da vida e da morte, do mal e do bem, do sentido de existir; expressava o amor que o fazia sofrer e
falava de suas dúvidas sobre o futuro e o passado. Esses temas, tão caros aos românticos, repetiram-se em
suas obras posteriores: em seus livros de poemas (A previsão e O homem dos velhos tempos; ambos de 1832,
A Canção do Mercador de Kaláchnikov, Meditação, O demônio, O Poeta, As Três Palmeiras e Triste e
Enfadonho, todos publicados em 1838; em uma elegia A morte do poeta, de 1837; no romance Vadim, de
1832; no drama A Mascarada, 1832 e na obra autobiográfica Um herói de nosso tempo, 1840).
78
Como não encontramos este poema de Lermontov traduzido para o português, optamos por utilizar a versão
francesa. Essa versão pode ser encontrada em http://fr.wikisource.org/wiki/Le_D%C3%A9mon_(Lermontov).
218
mais habitava sua alma silenciosamente triste. E então, movido por uma agitação estranha,
ele se pergunta se aquele não seria um sintoma de regeneração.
Contudo, Deus não permite que as lembranças de uma época de felicidade retornem
à mente desse anjo caído: Tamara, acompanhada pelos seus, comemora a aproximação de
suas núpcias.
Trilhando uma das estradas da Geórgia, o noivo de Tamara faz a viagem para
encontrá-la. Nessa estrada, repousando numa capela, o corpo de um príncipe
desconhecido. Os viajantes cristãos que estão a caminho de batalhas ou de festas devem ali
parar e pedir em prece que a alma do príncipe os proteja. O jovem noivo, porém, sonhando
com a bela e futura esposa, desdenha o costume dos seus antepassados. Como punição,
poucos metros adiante, ele e sua comitiva sofrem uma emboscada armada por muçulmanos.
No local em que comemora suas futuras núpcias, Tamara percebe como pode ser
cruel a cólera divina. Seu futuro marido, mantendo sua palavra de cavaleiro, vem encontrá-
la, todavia, vestido de sangue, ele jaz no corcel que o conduz.
O demônio, vendo sua bela dama sofrer o mesmo mal que ele sofrera, tenta dar-lhe
palavras de consolo. Em um sussurro, ele revela à amada que as lágrimas são s, afirma
que elas não m o poder de reanimar o cadáver daquele que está longe; os que foram
iluminados pela claridade celeste, conclui o degredado, não entendem o sofrimento terreno,
pois só ouvem o concerto do paraíso.
Nesse momento, resplandecendo uma beleza imortal, uma “beleza desconhecida na
terra” (CAMUS, 2005, p. 68), o demônio fixa seu olhar sobre Tamara e lhe tem uma tal
paixão, uma tal tristeza, que parece da amada se apiedar. Ele não mais é um espírito
maldoso do inferno, nem o mártir do vício, é apenas aquele que será o hóspede das
219
pálpebras da amada até que o dia nasça, será aquele que habitará seus lios sedosos para
desabrochar neles sonhos de ouro (Canto XV, primeira parte).
Na segunda parte do texto, Tamara pede ao pai que a deixe sofrer em um convento.
habitando na cela solitária, a jovem sempre ouve uma voz a consolá-la. Seu coração é
invadido, então, por sentimentos profanos e sua alma, por mais que ela reze, parece
insenvel ao êxtase puro.
Uma noite, o demônio ouve vir da cela de Tamara uma música.
(...) Soudain au milieu de ce silence universel,
une harpe harmonieuse vibra et des chants sonores résonnèrent ;
ces sons semblaient se suivre
avec mesure comme coulent des pleurs.
C'était une mélodie si tendre,
qu'elle paraissait avoir été composée au ciel pour la terre. ”
(LERMONTOV, Canto VII, parte 2)
O som harmonioso da harpa invade o coração do demônio e faz de seus olhos
obscuros brotar um acompanhamento às lágrimas das cordas: o demônio chora.
Movido pela melodia e pelo sentimento, ele encontra forças, então, para entrar na
cela da amada. Contudo, quando chega ao aposento, o querubim que lá está a tocar harpa o
repele. Movido por uma indignação, o demônio afirma que Tamara lhe pertence e que, por
amá-la, ele é mais forte do que qualquer ser da esfera celeste. O anjo deixa o aposento.
No leito, Tamara, em um sussurro, pergunta quem esem sua cela. O demônio diz
ser aquele que ninguém ama, o que todos os seres crêem maldito, o inimigo do céu e da
natureza, o que foi escolhido para sofrer eternamente; todavia, acrescenta ele, se ela lhe
conceder amor, a dor constante que nele habita poderá cessar. Por temer as torturas do
inferno, Tamara duvida dos sentimentos do demônio. Ele, por sua vez, diz não haver tortura
onde habita o amor e jura pelo reencontro de ambos e pela separação que os ameaça
220
novamente, pela loucura dos espíritos tempestuosos e pelo que de mais sagrado na terra
(Canto X, parte 2) – que o amor é pleno em seu coração. Percebendo que a amada o aceita,
o demônio apóia docemente sua boca cheia de fogo sob os lábios trêmulos de Tamara. Um
grito terrível de sofrimento tira o silêncio da noite, o veneno mortal dos beijos do demônio
penetra no corpo da jovem.
No espaço azul do céu, um dos anjos de Deus agita suas asas de ouro para buscar a
alma da pecadora. Surgindo do abismo infernal, o demônio diz que essa alma lhe pertence.
O anjo, contudo, responde-lhe que o trunfo do mal já durou em demasia e que a alma de
Tamara pertence ao Paraíso, pois este é local destinado aos inocentes que amam e sofrem
por esse amor.
No final do texto, maldizendo os sonhos que tivera, o demônio se vê novamente
sem esperanças: ele terá que continuar a ser mal, pois a solidão lhe privará de qualquer tipo
de regeneração.
Ao comentar os textos do romantismo, Albert Camus observa que as personagens
deste tempo literário, por nostalgia a um bem impossível, sentem-se obrigadas a praticarem
o mal.
Podemos dizer que o enredo do poema de Lermontov mostra que a observação de
Camus é pertinente.
Nesse texto do Romantismo, o demônio sente nostalgia da época em que era um
anjo do céu, da época em que vivia o bem. Nesse sentido, Tamara é para ele a visão do que
perdera (as formas dela são comparáveis à perfeição do Paraíso, além disso, a dor constante
que nele habita cessará se ela lhe conceder o amor). Contudo, se o desterrado sente
saudades do passado e ao bem perdido quer retornar, o poder divino, representado pelo anjo
221
que leva Tamara, mostra-lhe que esta é uma ascese impossível. Sendo assim, cabe ao
demônio cumprir seu destino: praticar o mal na solidão da terra.
Acrescentamos que o ensaio camusiano nota ainda que os excessos cometidos pelos
românticos são ações provenientes da felicidade efêmera a que eles se sabem sujeitos.
Nesse momento, o escritor francês cita os versos de Lermontov, adicionando a eles a
seguinte explicação:
Se quer se sentir vivo, deve ser na terrível exaltação de uma ação breve e
devoradora. Amar o que nunca se verá novamente é amar no ardor e no grito para, em seguida,
magoar-se. Só se vive no e pelo instante (...)”
(CAMUS, 2005, p.68).
Ou seja, segundo Camus, ao romântico, assim como ocorreu com o demônio de
Lermontov, não é concedido o bem eterno e, portanto, o bem passageiro deve ser vivido ao
extremo e de maneira tempestuosa.
Como salientamos, os versos de Lermontov citados por Camus em seu ensaio são
ditos, na peça santareniana, pela terceira jurada.
Essa jurada em Orfeu uma beleza fascinante e cita os versos para dizer que o
assassino é anjo e verdugo da mulher que escolheu como objeto de sua paixão breve e
violenta. Vejamos se essa citação da jurada é pertinente.
Em primeiro lugar, evidenciamos que, no poema russo, o demônio adquire a beleza
extrema quando percebe que Tamara sofreu, como ele, uma ação da lera divina; desse
modo, em Lermontov, a beleza provém do reconhecer no outro o sofrimento que também
possuímos. Sendo assim, uma vez que a jurada santareniana coloca a beleza como um
artifício de sedução e não como um dom provocado pela compaixão, podemos considerar
impróprio, nesse ponto, o cotejo que ela realiza entre Orfeu e o demônio romântico de
Lermontov.
222
Além disso, acrescentamos que a jurada compara Orfeu ao demônio de Lermontov
dizendo que ambos provocam a paixão breve e violenta e se tornam anjos e verdugos de
suas amadas. Para a jurada, a comparação é pertinente, pois, segundo ela, eles são anjos
quando amam suas escolhidas e são verdugos quando as fazem compartilhar dos crimes
cometidos em nome desse amor.
Recordemos alguns dados do poema para analisar essa interpretação da jurada. No
poema russo, o demônio é designado como anjo, pois, segundo a crença bíblica, Satanás é
um anjo que caiu do céu quando se revoltou contra o criador. Além disso, de acordo com o
enredo do poema, o demônio sofre com o desterro celeste e a visão de Tamara, bem como a
convivência com ela traz-lhe a lembrança dos antigos tempos, dos tempos em que ainda era
querubim. Contudo, o poder de Deus-criador não permite ao demônio esse retorno à
felicidade celestial e, exigindo que a alma de Tamara habite o Paraíso, torna a união do
casal efêmera.
Analisando os elementos acima colocados e comparando-os à opinião da jurada,
podemos fazer algumas considerações.
Primeiramente, salientamos que o demônio criado por Lermontov é, como colocou a
jurada, um anjo pelo amor que sente por Tamara. Porém, o que a jurada não observa é que
este amor significa para o anjo caído do u, sobretudo, uma possibilidade de retorno ao
bem passado, de retorno ao anjo que o demônio já fora.
Além disso, a jurada salienta que a união do casal será breve, pois a paixão entre
ambos é tão violenta que os levará a cometer crimes, o anjo se torna, então, verdugo de sua
amada. Contudo, segundo o poema russo, a brevidade do encontro amoroso tem como
causa não o mal representado pelo demônio e sim a violência de um Deus-criador cruel que
não permite o retorno do degredado à felicidade.
223
Pelos motivos anteriormente assinalados, podemos dizer, portanto, que a opinião da
jurada acerca do demônio de Lermontov é pertinente apenas quando ela diz que o amor fez
do demônio um anjo.
No que concerne à interpretação do amor entre Orfeu e Eurídice, podemos dizer que
a jurada, mesmo sem ter ouvido ainda os acusados, traz ao tribunal elementos que Eurídice
revela em seu depoimento.
No breve depoimento da acusada, ela declara o extremo amor que sente por Orfeu.
No primeiro encontro de ambos, segundo Eurídice, o amor brotou do fascínio que ela sentiu
pela beleza de Orfeu. Nos meses seguintes, Eurídice percebeu que seria capaz de fazer tudo
que ele lhe pedisse. Dois meses depois de conhecê-lo, presenciara a briga que fizera Orfeu
matar Edward e compreendera, então, que seria sua companheira até nas culpas ao amado
impingidas pela sociedade.
Sendo assim, as palavras da jurada são pertinentes, pois ela, já no início do
julgamento, teria compreendido alguns elementos do amor vivido pela personagem
feminina do casal Orfeu e Eurídice.
Contudo, como objetivo desta parte da análise, devemos compreender não somente
se as palavras da jurada são ou não adequadas aos enredos enfocados, mas sim, e sobretudo,
se os crimes cometidos por Orfeu e Eurídice seriam ou não classificados, segundo o
pensamento camusiano, como “crimes de paixão”.
Lembramos que o procurador da rainha, após ler o trecho de Camus copiado por
Orfeu em um de seus cadernos, indaga ao assassino se este realmente ama Eurídice. Nesse
momento, Orfeu responde a todos que ama a companheira e acrescenta, olhando para
Eurídice, que esse amor é alimentado pelo “rumor dos sangues” e pela seiva “de chumbo”
(SANTARENO, s.d., p. 194). Desse modo, Orfeu quer fazer crer que os assassinatos
224
cometidos foram realizados em nome da paixão que ambos sentiam, paixão essa alimentada
pela violência.
Devemos aqui recordar que Camus, para explicar os crimes de paixão retratados
pelos românticos, assinala como exemplo o poema de Lermontov. Sendo assim, com o
intuito de compreendermos se o crime cometido por Orfeu pode ser visto como crime de
paixão”, devemos comparar o demônio criado pelo autor russo ao Orfeu santareniano.
No primeiro contato do casal, Orfeu realiza com Eurídice uma entrevista de
emprego. Nesse momento do enredo, a visão de Eurídice não traz a Orfeu, como trouxera
ao demônio criado por Lermontov, o êxtase provocado por um possível retorno ao bem
supremo perdido. Ao contrário disso, Orfeu mostra-se displicente com relação à futura
amada e só modifica sua atitude quando ela lhe revela chamar-se Eurídice. Ou seja,
enquanto a beleza de Tamara é capaz de trazer ao demônio uma volta ao paraíso, somente o
nome de Eurídice é que traz, nesse primeiro momento, fascínio a Orfeu.
Acrescentamos que o demônio criado por Lermontov se aproxima mais de Tamara
quando que esta sofre a cólera divina, ou seja, quando na dor dela o espelho de sua
dor passada. Orfeu, pelo contrário, não se aproxima de Eurídice pela dor que ambos podem
sentir, mas sim pela que podem causar. Ao verem o filme O julgamento de Nuremberg, o
casal terá sua primeira cumplicidade para os crimes infernais que cometerão.
Somamos ainda a esse cotejo, o canto inserido nas duas obras. Em O demônio, o
canto do querubim entoado na cela de Tamara é uma harmonia celeste que provoca uma
lágrima de amor no demônio e o faz ter coragem de se aproximar da amada. Em O inferno,
por sua vez, o canto a ser entoado é a melodia nazista que, tocada em uma vitrola, estimula
não só o amor de Orfeu e Eurídice, mas tamm o assassínio do homossexual Edward.
225
Por fim observamos que o demônio romântico criado por Lermontov é obrigado a
continuar realizando o mal, segundo Camus, pela impossibilidade de retorno ao bem
supremo. Orfeu, ao contrário disso, realiza o mal movido pelo prazer de habitar no Inferno
junto com Eurídice. Nesse sentido, devemos observar que no primeiro encontro do casal,
Orfeu deseja que Eurídice seja “bem-vinda ao inferno” (ibidem, p. 205), além disso,
quando entoam o fragmento pertencente à tábua órfica de Petelia
79
, Orfeu acrescenta,
embalado pelo canto nazista, que a boca de Eurídice o leva de volta ao inferno, “nosso
inferno... meu e teu... nosso...! (ibidem, p. 62).
Portanto, após analisarmos comparativamente a personagem de Lermontov e a
santareniana, podemos fazer uma primeira relação a distanciar os crimes cometidos por
Orfeu dos denominados “crimes de paixão” cometidos pelo herói romântico.
Acrescentamos que esse distanciar será mais explorado quando compararmos o mito de
Orfeu e Eurídice com a relação de Orfeu e Eurídice santarenianos.
Para findar essa parte de nossa análise, cabe observarmos que a mesma jurada cita,
ainda inebriada pela beleza de Orfeu, versos da peça Romeu e Julieta, escrita pelo
dramaturgo William Shakespeare (1564 – 1616).
Oh, o prestígio incalculável da beleza! Ninguém como Shakespeare o disse melhor
na fala da célebre Julieta:
‘ó coração de serpente sob um rosto em flor!
Jamais um dragão se ocultou em antro tão formoso!
Belo tirano! Angélico demônio!
Corvo com penas de pomba! Cordeiro voraz como o lobo!
Desprezível substância de aparência divina!
Exato contrário do que exatamente pareces:
Um santo maldito, um honrado vilão!
Que fazias nO inferno, ó Natureza,
Quando insinuaste a alma de um demônio
No parso mortal de tão doce carne?
Alguma vez um livro com tão vil matéria
Teve tão bela capa? Oh, porque havia de habitar a falsidade
79
Observamos que o texto aqui citado terá seu estudo ao analisarmos o mito de Orfeu e Eurídice.
226
Em tão suntuoso palácio?’(ibidem, p. 22).
Salientamos que, no ensaio camusiano acerca dO homem revoltado, o autor francês
não se refere a Shakespeare. Além disso, observamos que a terceira jurada não fará parte do
julgamento de Orfeu e Eurídice. Sendo assim, trabalharemos este intertexto somente
observando qual a intenção da jurada que o cita.
Nesse sentido, devemos considerar que os versos citados pela jurada têm como
objetivo mostrar, segundo ela mesma deixa transparecer, que todas as mulheres sentem-se
inebriadas por homens que as façam sofrer paixões extremas.
Na peça Romeu e Julieta (1595-1596), escrita por William Shakespeare, os versos
em questão são entoados por Julieta quando esta, a esperar por Romeu para a noite de
núpcias do casal, fica sabendo que o amado matou Teobaldo. Nesse momento, o coração de
Julieta sofre, pois o “verme” que matou seu primo é também seu amado esposo, ou seja, em
Romeu residem o mal e o bem: ele é um “demônio angelical. Corvo com plumas de
pombo! Carneiro de rapina, feito lobo” (SHAKESPEARE, 1998, p. 94).
Observamos que nos versos shakespeareanos existem elementos que servirão de
inspiração aos escritores românticos do século XIX. Em Shakespeare, o subjetivismo de
seres guiados pelo sofrimento amoroso, tão caro aos românticos, está presente. Além
disso, acrescentamos que Albert Camus considera como ponto essencial do romantismo um
elemento presente no trecho recortado pela jurada, a longa provação de injustiça que faz
desaparecer “definitivamente a distinção entre o bem e o mal” (CAMUS, 2005, p. 67). Ou
seja, nos versos de Shakespeare estavam presentes os elementos que guiam o poema de
Lermontov e os textos, poéticos ou não, de outros que dizem sentir segundo o veio do
romantismo.
227
Findamos esta parte de nossa análise evidenciando que essas manifestações da
revolta romântica o podem ser encontradas no tipo de amor pregado pelo assassino
Orfeu. Em Orfeu, o que rege as mortes não são, como analisamos, o amor extremo, mas
sim frases filosóficas e literárias que por ele são interpretadas, na maior parte do tempo,
erroneamente. Além disso, como nos mostrou o cotejo entre Orfeu e o demônio criado por
Lermontov, não podemos considerar o sentimento cultuado por Orfeu como um amor
verdadeiro e romântico, mas sim, como nos parece muito mais próprio, como uma manobra
de sedução para encontrar cumplicidade em seus assassínios.
Contudo, se não podemos aplicar os conceitos românticos a Orfeu, a Eurídice, como
diria a terceira jurada, por ser mulher, eles são justificativas mais cabíveis. Assim como
Julieta, Eurídice se mostra guiada pelo coração. Podemos fazer essa afirmação, pois, nos
lábios dela, frases completamente diferentes sempre entoam uma melodia amorosa. Ao
citar palavras de Sade, como vimos, Eurídice não se inspira na libertinagem, mas sim na
doçura de um desejo movido pelo êxtase do amor. Além disso, como veremos, para ela os
fragmentos da lâmina Petelia são o refrão de um amor que retorna eternamente à vida.
Destacamos ainda três momentos do texto santareniano que explicam a visão que
Eurídice tem de Orfeu. No primeiro encontro, ela o olha com admiração. Quando sabe que
Orfeu matará Edward, ela sente “algo profundo e terrível” (SANTARENO, s.d., p.28).
Após o assassínio do homossexual, o medo lhe traz um grito, mas o canto de Orfeu a
fascina e ela, em um beijo, declara seu amor extremo por este homem “irresistível”
(ibidem, p. 63). Desse modo, se utilizarmos as palavras da terceira jurada, as imagens de
anjo e verdugo se confundem na mente de Eurídice.
Todavia, recordamos, a opinião feminina é retirada do julgamento quando a corte
não permite às mulheres serem juradas. Além disso, acrescentamos, apesar de Camus usar a
228
palavra “homemcomo substantivo a definir a espécie humana, seu ensaio não apresenta
nenhuma personagem feminina como exemplo de revolta.
Portanto, para findar esta parte de nossa análise, cabe-nos apenas observar que os
crimes cometidos por Orfeu não podem ser classificados, segundo a nomenclatura
camusiana, como “crimes de paixão”; os de Eurídice, por sua vez, não podem ser julgados
como manifestações autônomas, mas sim como exemplos de um homem que domina uma
mulher através do sentimentalismo romântico.
III.3.3- Ivan Karamazov: revolta e contradição.
No final da segunda audiência, o depoimento de uma menina conta uma estranha
comemoração que Orfeu e Eurídice fizeram na noite de natal. Na charneca, o casal de
assassinos, entre abraços e beijos, entoa juras de amor permeadas por frases de Sade, Ivan
Karamazov e Nietzsche.
Dedicaremos esta parte de nosso estudo a analisar as frases atribuídas a Ivan
Karamazov, personagem do romance Os irmãos Karamazovi (1879), obra do russo
Dostoievski (1821-1881).
Iniciamos a análise observando dois pontos que julgamos essenciais para o
entendimento desse intertexto. Em primeiro lugar, salientamos que essas mesmas frases de
Ivan Karamazov também foram utilizadas por Camus em seu ensaio O homem revoltado.
Além disso, relevamos que essas frases são citadas pelo casal de assassinos como uma
espécie de oração que, acrescidas às frases de Sade e Nietzsche, guiariam o a uma
nova forma de comemorar a noite de Natal, mas também a um pensamento que justificaria
os assassinatos cometidos pelo casal.
229
Sendo assim, dividiremos o estudo deste intertexto em duas partes: a primeira a
observar o ponto de vista camusiano acerca da personagem Ivan Karamazov, a segunda a
verificar a obra Os Irmãos Karamazovi com o intuito de compreender a proximidade
existente entre esse personagem e os assassinos da charneca Orfeu e Eurídice.
Em O homem revoltado, Albert Camus diz acerca de Ivan Karamazov:
O mesmo homem que tomava partido da inocência de modo tão veemente,
que tremia diante do sofrimento de uma criança, que desejava ‘ver com os
próprios olhos’ a corça dormir perto do leão, a tima abraçar o assassino, a
partir do momento que recusa a coerência divina e tenta encontrar a sua
própria regra reconhece a legitimidade do assassino. (CAMUS, 2005, p.
77).
Podemos dizer que o trecho acima resume as principais idéias que Camus faz da
trajetória de Ivan no romance de Dostoievski. No início do enredo, segundo Camus, a
revolta de Ivan é guiada pela compaixão que ele sente pelos menos afortunados (as crianças
e as vítimas de assassinatos). Ao ver tal sofrimento, Ivan recusa o Cristianismo, pois
acredita existir no Deus dessa religião um discurso a pregar o infortúnio como elemento
necessário à criação. Nesse momento, preferindo o reino da justiça ao da graça divina, Ivan
nega o Deus assassino e pede um mundo em que os privilégios sejam dados a “todos ou (a)
ninguém” (ibidem, p. 76). Contudo, ao recusar uma imortalidade prometida aos virtuosos,
ao recusar a “dita” coerência divina, Ivan acaba por defender os viciosos e, em uma
incoerência humana, aquele que lutara contra o Deus assassino reconhece o assassinato
como legítimo.
Como foi citado, na peça de Bernardo Santareno, o casal de assassinos Orfeu e
Eurídice declama frases de Ivan que também foram trazidas ao ensaio camusiano.
Observemos tais frases para melhor compreender os pensamentos camusianos acima
expostos e, posteriormente, os de Orfeu e Eurídice.
230
Na retrospectiva VII, feita na segunda audiência, temos:
Eurídice:
Orfeu e
Eurídice visitam os lugares santos...
Orfeu
: As sagradas sepulturas (Eudice ri. A olhar profundamente para o solo:)
Esta terra pertence-nos... é nossa: fomos nós que a semeamos.
Eurídice:
(Num calafrio, encolhendo-se mais contra o corpo de Orfeu: recita
docemente.) ‘Sei apenas que o sofrimento existe, que não culpados, que tudo se
encadeia, que tudo passa e se equilibra...’ (Num impulso apaixonado, beijando
Orfeu na boca:) Ivan Karamazov, meu irmão, meu filho, meu amor...!
Orfeu:
(Grave e triste) ‘Tudo é permitido’. (Silêncio. Beija Eurídice) ‘Visto que
nem Deus, nem a imortalidade existem, o homem novo poderá ser Deus.’
Eurídice:
(terna, acariciando-lhe o rosto) Ivan Karamazov, meu bem, meu mal,
meu tudo...!
Orfeu: (...) Não ouves o canto de Dostoïevski? Não é o vento, é ele...!”
(SANTARENO, s.d., p. 153).
Assim como nas outras citações feitas em O inferno, Bernardo Santareno marcou os
trechos que pertencem a Ivan Karamazov por aspas. Todavia, a mesma observação que já
fizemos anteriormente, ao analisarmos trechos de Sade e de Lermontov, devemos fazer
aqui: estas frases trazidas ao texto santareniano podem ter vindo não diretamente da obra
original, mas sim do ensaio camusiano.
Na tradução que utilizamos da obra camusiana, o trecho citado por Eurídice aparece
inserido no seguinte raciocínio:
Suprimindo o sentido da vida, ainda resta a vida.‘Eu vivo’, diz Ivan, a
despeito da lógica’. E mais: ‘Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse da
mulher amada, da ordem do universal, persuadido pelo
contrário de que
tudo nada mais é do que um caos infernal, mesmo assim eu desejaria viver,
apesar de tudo.’ Ivan vai portanto viver e vai amar também sem saber por
quê’. Mas viver é também agir. Em nome de quê? Se não imortalidade,
não recompensa nem castigo, nem bem nem mal. ‘Acredito que não
virtude sem imortalidade.’E ainda: ‘Sei apenas que o sofrimento existe, que
não há culpados, que tudo
está interligado, que tudo passa e se equilibra.’
Mas, se não virtude, não há mais lei: Tudo é permitido’. (CAMUS,
2005, p.77).
231
Assim como Santareno, Camus coloca entre aspas as frases trazidas do romance de
Dostoievski, mas, ao contrário da obra santareniana, por se tratar de um ensaio, Camus
permeia as citações com comentários a explicá-las.
Segundo Camus, quando Ivan passa a não mais crer na imortalidade, a recompensa
e o castigo que seriam dados pelo Deus católico não mais existem na mente dessa
personagem, sendo assim, ações antes consideradas como positivas ou negativas não mais
carregam o entendimento de fazer o bem ou fazer o mal, mas seriam, outrossim, atos
praticados em um universo em que tudo se equilibra.
Acrescenta ainda Camus que o sofrimento é, para Ivan, um sentimento que provém
desse universo equilibrado e, portanto, não é mais possível existirem leis que atribuam
culpa às pessoas. Deste modo, observa o ensaísta, a lógica leva Ivan a uma conclusão
pertinente: se não há virtude, tudo é permitido.
Ao aplicarmos as interpretações de Camus à situação criada por Santareno,
podemos compreender o raciocínio de Eurídice e Orfeu.
Na charneca, local em que estão enterrados os corpos de Ann e Edward, a frase de
Ivan abranda em Eurídice o calafrio causado por um possível sentimento de culpa. Ou seja,
em Ivan, Eurídice encontra justificativa para os atos que cometera: os assassínios de uma
judia e de um homossexual não podem ser julgados como manifestações de maldade, pois o
ônus pelas mortes cometidas não existiria em um universo cujas ações são cometidas em
nome do equilíbrio.
Orfeu, por sua vez, completa a justificativa de Eurídice com o “tudo é permitido”,
proferido por Ivan. Sendo assim, pensando de maneira camusiana, podemos dizer que
Orfeu entoa a frase dita por Ivan com o intuito de trazer para si o direito de ser assassino, o
direito de que a sociedade reconheça como legítimas suas manifestações homicidas.
232
Lembramos que Orfeu acrescenta ainda a seu canto uma outra frase de Ivan: “Visto
que nem Deus, nem a imortalidade existem, o homem novo poderá ser Deus”
(SANTARENO, s.d., p. 153).
Salientamos que no ensaio camusiano essas palavras de Ivan são acrescidas das
seguintes idéias:
(...) pode-se viver mantendo-se permanentemente na revolta?
Ivan deixa que adivinhemos sua resposta: se pode viver na revolta ao
levá-la ao extremo. Qual é o extremo da revolta metafísica? A revolução
metafísica. O senhor deste mundo, após ter sido testado em sua
legitimidade, deve ser derrubado. O homem deve ocupar seu lugar. ‘Como
Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo se tornar
Deus’. Mas o que é ser Deus? É reconhecer justamente que tudo é
permitido; recusar qualquer lei que não seja a sua. Sem que seja necessário
desenvolver raciocínios intermediários, percebe-se assim que tornar-se
Deus é aceitar o crime (a idéia favorita, igualmente, dos intelectuais de
Dostoievski). (CAMUS, 2005, p.78).
Apesar de não encontrarmos em Orfeu discussões acerca da revolta contra o Deus
católico, fato que será abordado em momento azado, temos nessa personagem indícios de
que ele recusa, como diria Camus, “qualquer lei que não seja a sua”. Um exemplo disso é
que, no tribunal em que Orfeu é julgado, apesar das acusações serem comprovadas e de ele
ser tido como culpado de todos os atos, o há nessa personagem qualquer sinal de
arrependimento, ao contrário disso, ele permanece sempre com um rosto esfíngico de quem
não infringiu qualquer lei a ser seguida.
Relevamos, contudo, que se Orfeu não segue a lei divulgada pelo tribunal, uma
outra, a que ele tomou como “sua”, justifica os assassínios. Como já vimos, ao contrário do
serial killer Ian Brady, Orfeu segue um padrão nas mortes cometidas. Esse padrão é,
portanto, a sua lei a ser seguida, uma lei que extermina os que não pertencem à ovacionada
“raça arianapropagada pelo nazismo.
233
Sendo assim, Orfeu santareniano, que era deus mito pelo próprio nome, encontra
no nazismo (...) o homem novo (que) podeser Deus” (SANTARENO, s.d., p. 153), um
homem cujas ações podem decidir quem são os seres que devem morrer.
Neste momento de nossa análise, devemos salientar um ponto importante do ensaio
camusiano: segundo o escritor francês, Ivan sucumbe à “mente terrestre” (CAMUS, 2005,
p. 78) que possui e, por isso, ao ver que colaborara com a morte do próprio pai, enlouquece.
Na obra santareniana, o parricídio não é um crime cometido pelos assassinos da
charneca. Contudo, podemos dizer que a sanidade de Ivan também pereceria diante do
crime atroz cometido por Orfeu: nas mãos deste assassino sofrem os seres que mais
veementemente foram defendidos por Ivan contra a crueldade do Deus católico: as
criancinhas.
Passamos aqui ao segundo momento da análise deste intertexto: observar
comparativamente a personagem santareniana e a criada por Dostoievski para
compreendermos até que ponto Orfeu pode se considerar seguidor das idéias de Ivan
Karamazov.
Salientamos que não pretendemos aqui enfocar a grandeza da personagem criada
pelo romancista russo, empreita demasiada para nosso objetivo. Mas sim estudar, como já
observamos, de que maneira Orfeu seria um novo assassino incapaz de ser compreendido
pela mente terrestre” de Ivan Karamazov.
Na obra de Dostoievski, Os irmãos Karamazovi, várias discussões abordam a
inexistência da imortalidade e, por isso, da permissividade de todos os atos. Destacamos
aqui três momentos que julgamos importantes para compreender o sentido dessas idéias.
No capítulo VI do livro dois, Piotr Alieksándrovitch relata o discurso que Ivan fez
em uma reunião formada especialmente por senhoras. Segundo Piotr, Ivan disse que as leis
234
naturais não eram responsáveis pelo amor que cada ser tinha pelo outro, mas sim a fé que o
homem possuía na imortalidade. Sendo assim, se o homem perdesse essa fé, a força de
continuar a fazer o bem também seria perdida e, portanto, tudo estaria autorizado. Ou seja,
sem a imortalidade, concluiria Ivan segundo Piotr, a lei da natureza não só autorizaria, mas
também reconheceria o egoísmo do homem levado até a perversidade. Após a fala de Piotr,
Ivan confirma essas idéias como suas e acrescenta: “Não há virtude sem imortalidade”
(DOSTOIEVISKI, 1995, p.60).
No capítulo seguinte, encontramos o segundo momento importante para nossa
interpretação. Em conversa com Aliócha, Rakitin explana as idéias de Ivan e acrescenta
como essas foram entendidas por Dimitri.
Ouvi ainda pouco sua absurda teoria: ‘Se não imortalidade da alma,
então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido’. Lembras-te de
como teu irmão Mitia gritou: ‘Lembrar-me-ei disso!’ É uma teoria sedutora
para os tratantes(...). (ibidem, p.70)
O fragmento acima nos mostra que, segundo Rakitin, as idéias de Ivan ressoam em
Dimitri como uma permissão para atos viciosos, no caso, como o enredo nos acrescentará
mais tarde, para o assassínio do próprio pai.
No livro onze, encontramos o terceiro fato que guia nossa compreensão.
Smierdiákov, filho bastardo de Fiódor Karamazov, mostra as conseqüências do que fora
pensado por Ivan. Primeiramente, Smierdiákov diz confiar em Ivan como confiaria em um
Deus. Posteriormente, lembra a ele que o ouvira afirmar, por diversas vezes, que se o Deus
católico não existe, não virtude, portanto “tudo é permitido” (ibidem, p. 479). Por fim,
após confessar o assassínio de Fiódor, diz Smierdiákov a Ivan: “o principal, o único
assassino foi o senhor, e não eu, se bem que tenha matado.” (ibidem, p. 481).
235
Os trechos anteriores nos revelam não só as idéias de Ivan, mas também como elas
podem ser compreendidas. As teorias dele acerca da possível inexistência da imortalidade
fizeram com que Smierdiákov visse em Ivan um novo deus a ser seguido. Aplicando a lei
desse novo deus, “tudo é permitido”, Smierdiákov comete o crime de parricídio e realiza
em ato o assassínio que fora pensado por Ivan e por Dimitri. Sendo assim, retirado o
dever católico de fazer o bem, Smierdiákov mostra a verdadeira natureza de todos os
homens: o egoísmo levado à perversidade.
Acrescentamos ainda que os motivos que levariam os irmãos Dimitri e Ivan a
desejarem a morte do pai são o dinheiro (ambos desejam se apoderar da herança) e o amor
(Dimitri disputa com Fiódor o amor de Grúchenhka e Ivan vê na junção desta com o irmão
a possibilidade de casar com Catarina, sua amada que é noiva de Dimitri). Contudo,
Smierdiákov mata Fdor movido somente pelo dinheiro e pelas palavras de Ivan.
Antes de aplicarmos os raciocínios acima aos crimes cometidos por Orfeu e
Eurídice, observamos que na obra A sangue frio, Truman Capote insere um assassino que
também encontrou nas palavras de Ivan um credo de morte a ser seguido.
Lowell Lee estava trancado em seu quarto lendo o último capítulo de ‘Os
irmãos Karamazovi’. Assim que terminou, barbeou-se, vestiu seu melhor
terno e começou a carregar tanto um rifle semi-automático calibre 22
quanto um revólver Roger calibre 22. Enfiou o revólver num coldre de
cintura, apoiou o rifle no ombro e desceu até a sala de estar, que estava no
escuro, exceto pela luz trêmula da tela da tevê. Acendeu uma luz, fez
pontaria com o rifle e puxou o gatilho e atingiu a irmã bem entre os olhos,
matando-a instantaneamente. Atirou três vezes na e e duas no pai. A
mãe, com olhos arregalados, os braços estendidos, caminhou trôpega na
direção dele; tentou falar, sua boca se abriu e fechou, mas Lowell Lee disse:
‘Cale a boca’. E para assegurar-se de que iria obedecer-lhe, deu-lhe mais
três tiros. O sr. Andrews, porém, ainda estava vivo; solando,
choramingando, arrastou-se pelo chão na direção da cozinha, mas quando
chegou à porta o filho sacou o revólver e descarregou nele todas as balas,
depois recarregou a arma e tornou a esvaziá-la; no total, seu pai absorveu
dezessete balas. (CAPOTE, 2006, p.386)
236
O trecho anteriormente transcrito retrata não só a perversidade de um assassino que
matara os próprios membros de sua família, mas também a obra que, segundo os relatos de
Capote, o estimulara a realizar tais atos: Os irmãos Karamazovi.
Salientamos que Capote observa ainda alguns fatos do julgamento desse assassino.
Segundo o escritor, os psiquiatras que examinaram Lowell Lee tentaram convencer o júri
de que o assassino era capaz de “compreender a natureza de seus atos, que eram proibidos,
e que estavam sujeitos a uma punição” (ibidem, p. 389). Porém, considerando a si mesmo
como única pessoa importante, Lee justificou aos psiquiatras e ao júri que, no seu mundo,
matar os familiares era tão aceitável quanto matar um animal ou uma mosca, sendo assim
ele não acreditava em uma punição a ser cumprida.
Trouxemos o trecho acima à nossa análise com o intuito de mostrar o aumento
progressivo da violência guiada pelo discurso de Ivan Karamazov. Se no livro de
Dostoievski o assassínio contra o pai fora o resultado das idéias de Ivan, no de Capote (e na
realidade que este retrata) uma família inteira sofre com a lei que prevê que “tudo é
permitido”.
Finalmente podemos analisar o caso Orfeu e Eurídice. Assim como Smierdiákov e
Lowell Lee, o casal encontra nas palavras de Ivan Karamazov anuência para seus atos
homicidas. Contudo, ao invés de matar seus familiares, a violência do casal terá como alvo
os seres cujo sofrimento fizera Ivan duvidar da sabedoria divina: as criancinhas.
Em seu ensaio, Albert Camus coloca:
‘Se o sofrimento das crianças’, diz Ivan, ‘serve para completar a soma das
dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde já que essa verdade
não vale tal preço.’ Ivan recusa a dependência profunda que o cristianismo
introduziu entre o sofrimento e a verdade. (...) O que significa que, mesmo
se Deus existisse, mesmo se o mistério encobrisse uma verdade, mesmo se
o starets Zózimo tivesse razão, Ivan não aceitaria que essa verdade fosse
237
paga com o mal, com o sofrimento e a morte infligida aos inocentes.
(CAMUS, 2005, p. 75).
Ou seja, segundo Camus, Ivan recusa o cristianismo porque não pode compreender
um Deus que permite o sofrimento infligido aos mais inocentes dos seres, as crianças.
Acrescentamos ainda um trecho de Os irmãos Karamazovi em que, após falar dos
pais que abusam de seus filhos, de mães que os penalizam fazendo comer a própria
defecação e de assassinos que acariciam bebês para depois lhes apontar revólveres, Ivan
expressa seu amor pelas inocentes crianças:
Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o
bem e o mal no esrito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção
diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças. Não
falo dos sofrimentos dos adultos. Eles comeram o fruto proibido, que o
diabo os leve! Mas as crianças! (DOSTOIEVSKI, 1995, p.200)
Lembramos que Lesley Ann tinha apenas dez anos quando Orfeu e Eurídice a
mataram. Além disso, salientamos que, antes de estrangular a menina, o casal a desnudou e
abusou sexualmente dela, gravando os gemidos de dor da pequena criança em uma fita que
seria guardada como lembrança do ato cometido.
John Kilbride, de apenas doze anos de idade, também seria uma das vítimas do casal
e, apesar de em O inferno a morte dessa criança não ser muito enfocada, lembramos que, na
vida real, o casal de assassinos estuprou, esfaqueou e enforcou o pequeno menino.
Desse modo, julgamos pertinente concluir que se Ivan enlouqueceu ao saber que
suas palavras ocasionaram o assassínio do pai, sua dor seria imensurável se soubesse que
essas mesmas palavras justificariam, em O inferno, o sofrimento que tanto o fizera ter
ojeriza ao Deus católico: o das inocentes criancinhas.
238
Salientamos ainda que o ensaio camusiano enfoca Ivan Karamazov, que cometeu o
“crime de paixão” por ter compaixão dos menos afortunados, mas não cita Smierdiákov,
aquele que tornou real o assassínio desejado por tantos. O motivo é que o crime de
Smierdiákov, assim como o de Orfeu, não é movido pela paixão, mas sim por um ser que
utiliza filosofias como álibis para seus crimes premeditados, para seus crimes de lógica.
Além disso, antes de concluirmos esta parte de nossa análise, devemos ressaltar que
as idéias camusianas acerca do texto de Karamazov foram retiradas principalmente do
capítulo quatro do Livro V, intitulado A revolta. Nesse capítulo, Ivan fala de seu amor pelas
criancinhas e manifesta sua revolta contra um Deus que permite que os inocentes sofram.
Observamos que, no final desse capítulo, diz Ivan a seu irmão mais novo, o religioso
Aliócha:
Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse
castigo uma vez que as crianças também tiveram o seu inferno? Aliás, que
vale essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo
universal, a supressão do sofrimento. E se o sofrimento das crianças serve
para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo
desde agora que essa verdade não vale tal preço. Não quero que a mãe
perdoe o carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de
mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães. Ainda mesmo
que seu filho perdoasse, não teria ela esse direito. Se o direito de perdoar
não existe, que vem a tornar-se a harmonia? Há no mundo um ser que tenha
esse direito? Por amor à humanidade é que não quero essa harmonia.
(ibidem, p. 202).
Julgamos importantes as palavras acima, pois elas podem nos ajudar a compreender
um ponto ainda obscuro, tanto no discurso de Eurídice, como no ensaio camusiano.
Nos dois “intertextos”, aparece atribuída a Ivan a idéia de que o sofrimento não tem
culpados ou inocentes, uma vez que ele provém de um universo em que tudo se equilibra.
Salientamos, contudo, que, ao proferir tal idéia, Ivan o faz reproduzindo um pensamento da
Igreja que ele diz não compreender. Ou seja, a harmonia terrena a que se referem Eurídice e
239
Camus é a harmonia divina que é criticada por Ivan Karamazov. Sendo assim, ao recortar a
frase do contexto no qual ela estava inserida, tanto Camus quanto Orfeu subverteram o
verdadeiro sentido que ela tinha para Ivan Karamazov, o sentido de crítica e não de
aceitação.
Findamos este ponto de nossa análise observando que a frase anteriormente citada
também nos traz um elemento que pode nos ajudar a compreender o pensamento
santareniano colocado em O inferno: o tio infernal que devemos temer não é o porvir da
eternidade, é o mundo em que os carrascos nos fazem, em vida, habitar.
Passemos a nosso próximo intertexto para compreendermos quem o os carrascos
de nosso, santareniano, mundo infernal.
III.3.4- Os desdobramentos de uma teoria nietzschiana: os “supostos” super-homens
do século XX.
No texto santareniano, duas frases de Nietzsche são ditas por Orfeu e Eurídice. “Se
houvesse um Deus, como suportaríamos não o ser? (SANTARENO, s.d., 153), pergunta
Orfeu. “Nenhum artista tolera o real” (ibidem, p. 154), afirma, pouco depois, Eurídice.
Observamos que essas duas frases intertextuais aparecem também na obra
camusiana O homem revoltado e portanto podemos iniciar o entendimento delas por meio
deste texto.
Primeiramente, salientamos que as frases de Orfeu e Eurídice ecoam na noite de
Natal. Contudo, ao invés de construírem uma oração a santificar o nascimento de Cristo, o
filho do Deus católico, elas fazem parte de uma oração que propaga idéias do “espírito de
Sade” (ibidem, p. 154), do “canto de Dostoievski” (ibidem, p. 153) e do “poeta” e “santo”
240
(ibidem, p. 154) Nietzsche. Ou seja, na noite em que se celebra um dos acontecimentos
mais importantes do catolicismo, os assassinos realizam uma oração aos escritores que
manifestaram em suas obras, segundo Camus, a progressiva morte dessa religião.
Além disso, na charneca, Orfeu e Eurídice falam como seres superiores que
semeiam em suas terras um novo santuário, onde ecoam cantos de terror e de morte.
No ensaio de Camus, a frase entoada por Orfeu está inserida no seguinte parágrafo:
A divindade do homem acaba se introduzindo por esse viés. O revoltado
que, no princípio, nega a Deus, visa em seguida substituí-lo. Mas a
mensagem de Nietzsche é que o revoltado se torna Deus ao renunciar a
toda revolta, mesmo a que produz os deuses para corrigir este mundo. Se
existe um Deus,como suportar o fato de não -lo?Há, na verdade, um
Deus, que é o mundo. Para participar de sua divindade, basta dizer sim.
‘Não rezar mais, mas dar a benção’, e a terra se cobrirá de homens-deuses.
Dizer sim ao mundo, reproduzi-lo, é ao mesmo tempo recriar o mundo e a
si próprio, é tornar-se o grande artista, o criador. A mensagem de Nietzsche
resume-se na palavra criação, com o sentido ambíguo que ela assumiu (...)
(CAMUS, 2005, p. 95).
Esclarecemos que o “viés” a que Camus se refere no início do parágrafo é o “eterno
retorno propagado pela filosofia nietzschiana. Ou seja, como o ensaísta francês nos
explica, o homem que negou Deus o substituirá tornando-se, desse modo, o super-
homem”, aquele que é artista e criador do mundo e de si próprio. Portanto, a negação
absoluta de Deus se transformará em afirmação absoluta do divino, contudo esse divino não
será mais um ser ilusório, mas sim a terra e os homens-deuses que nela habitarão.
Acrescentamos ainda que a expressão “sentido ambíguo” é colocada por Camus
pois, como ele mesmo nos esclarece posteriormente, as palavras de Nietzsche podem
inspirar comportamentos antagônicos: existem homens que a partir de tais palavras criarão
uma humanidade superior e existem aqueles que, pregando uma “deformidade anti-semita”
(ibidem, p. 96), dir-se-ão superiores, mas serão, na verdade, uma raça de “senhores
incultos, ainda balbuciando a vontade de poder” (ibidem, loc. cit.).
241
Neste ponto do ensaio, Camus esclarece que Hitler e um dos principais ideólogos do
partido nazista, Rosenberg, por vezes compararam seus escritos com a filosofia de
Nietzsche. Porém, acrescenta o ensaísta, por mais que o nazismo quisesse trazer aos seus
seguidores a idéia de “super-humanidade”, a violência cega empunhada pelos alemães
fabricou, na verdade, um “deus rdido (ibidem, p. 96) cultuado por uma raça de
“subomens” (ibidem, p. 97).
Salientamos que, em nota de rodapé inserida em seu ensaio, Camus observa que as
obras por ele estudadas são as que Nietzsche (1844-1900) escreveu a partir de 1880, dentre
elas, o livro Vontade de poder (manuscrito póstumo).
Lembramos aqui que, no início de nosso caminho a compreender o assassino Ian
Brady, dissemos que dentre os livros de sua biblioteca pessoal encontravam-se obras de
Nietzsche. Naquele momento da análise nos referimos particularmente ao livro Vontade de
potência e esclarecemos que esse tinha autoria duvidosa uma vez que, segundo os
estudiosos do autor, a editora do livro, a irmã do filósofo alemão, deformou os conceitos
dos escritos originais com o intuito de aliar os pensamentos de Nietzsche aos do nazismo.
Portanto, apesar de Die wille zur macht
80
ser um livro citado tanto por Camus
quanto por Ian, esclarecemos que nosso estudo não se debruçará apenas sobre esta obra.
Para uma melhor compreensão das idéias de Nietzsche, e de seus seguidores,
acrescentaremos à leitura desse livro outras de obras do mesmo autor. Dessa forma,
objetivamos compreender com mais clareza o conceito de “super-humanidade” pensado por
Nietzsche.
80
“Die wille zur macht” é o tulo original da obra aqui referida. Vontade de potência” e “Vontade de
poder” são possíveis traduções para este mesmo título.
242
No momento, a informação pertinente que devemos salientar é que Ian e sua versão
literária (o santareniano Orfeu) são seres que dizem acreditar nos conceitos de super-
humanidade propagados por Nietzsche e que, por esse motivo movidos ou não pelo
nazismo –, cometeram crimes atrozes.
Contudo, via Camus, podemos compreendê-los como uma deformão do
pensamento filosófico da revolta nietzschiana. Ou seja, apesar de se qualificarem como
“super-homens” a construírem uma nova humanidade, Ian e Orfeu seriam exemplos de
“subomens” guiados por uma violência cega e desmedida.
Observemos alguns escritos de Nietzsche para verificarmos a pertinência do
pensamento acima.
Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um dos mais influentes filósofos do século XIX.
Sua primeira obra literária, O nascimento da tragédia, foi publicada em 1872 quando ele
tinha vinte e oito anos de idade. Em 1900, ano de seu falecimento, os escritos de Nietzsche
totalizavam o número de quinze livros. Além disso, como salientamos, após a morte do
filósofo alemão, que ocorreu quando esse tinha cinqüenta e cinco anos, sua irmã publicou
um livro cuja autoria integral ainda é duvidosa, Die wille zur macht.
Começamos nossa análise dos pensamentos nietzschianos com as palavras do
“insensato” em uma narrativa inserida em A Gaia da ciência (1882).
(...) Ainda o sentimos o cheiro da decomposição divina?... Os deuses
também apodrecem! Deus morreu! Deus continua morto! E nós o matamos!
Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que
o mundo possuía de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob
o nosso punhal; quem nos limpará este sangue? Que água nos poderá lavar?
Que expiões, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza
deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios
nos tomemos deuses para parecermos dignos dele?
Nunca houve ação mais
grandiosa e quaisquer que sejam aqueles que poderão nascer depois de nós
pertencerão, em função dessa ão, a uma história mais elevada do que toda
história que já existiu! (NIETZSCHE, 2003, p. 116).
243
Queremos salientar no trecho acima não o assassinato de Deus – corpo já em
decomposição, pois fora morto, como vimos em Camus, tempos passados mas sim a
obrigação que esse assassínio trouxe ao homem: tornar-se um ser digno, um ser superior ou,
como denominaria Nietzsche posteriormente, um “super-homem”.
Evidenciamos ainda que a fala acima transcrita é atribuída ao “insensato”. A
denominação dada a esse personagem poderia nos levar a entender que o discurso por ele
emitido seria destituído de razão. Contudo, como a narrativa revelará posteriormente, ele
assim foi denominado, pois as palavras que proferiu ainda o teriam sido compreendidas
por quem as escutou. Ou seja, o assassínio de Deus ocorreu, todavia a grandeza dessa morte
ainda não faz parte da consciência dos indivíduos que a causaram.
No final dessa narrativa, o “insensato” cala-se. Entretanto, as palavras por ele
pronunciadas continuam a ecoar além do enredo a que ele pertence. Elas irão fazer parte de
outros livros de Nietzsche que vão explorar a idéia de um Deus morto e de um “super-
homem” que deverá nascer desse ato.
Para Nietzsche, o Deus cristão é o símbolo de uma humanidade decadente e o
“super-homem”, o de um renascimento do ser humano superior.
Em O anticristo (1888), o filósofo pronuncia sua sentença: “(...) eu condeno o
cristianismo, lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que jamais acusador
nenhum pronunciou: para mim ela é a maior corrupção imaginável” (NIETZSCHE, 2003,
p. 106).
Para defender sua sentença, Nietzsche argumenta que a Igreja cristã desonrou a
humanidade quando pronunciou a idéia de que os homens deveriam ser iguais. Nesse
momento, os desprovidos de força passaram a ser objeto de compaixão; os mais fortes, por
244
sua vez, tornaram-se fracos por serem homens angustiados pela idéia de pecado e de amor
ao próximo.
A degeneração dos mais fortes passa a ser, então, o ponto principal do discurso do
filósofo. Para compreendermos essa degeneração, Nietzsche compara alguns conceitos da
antiguidade clássica com alguns do cristianismo.
Na antiguidade a palavra virtute vinha de vir (varão, do latim) e designava
qualidades físicas e morais como a virilidade, o vigor, a coragem e a bravura. Contudo, no
cristianismo, o homem virtuoso passou a ser entendido como aquele que era humilde,
aquele que era subserviente à vontade suprema de Deus.
Além disso, salienta o autor, os gregos e romanos antigos entendiam como bom o
aristocrático, o que era espiritualmente bem-nascido, privilegiado; entendimento antitético
àquele outro que se fazia da palavra plebeu usada para designar os que pertenciam à classe
popular, aos homens comuns. No cristianismo, todavia, a hierarquia social deixou de ter
importância e os bons passaram a ser os que seguiam as palavras de humildade e
obediência pregadas por Cristo. Em oposição a estes, surgiam então os maus, entendidos
como os que desafiavam as leis da Igreja cristã representante suprema das idéias de Deus
na terra.
Um ano antes, em A genealogia da moral (1887), Nietzsche falara da inversão
dos valores greco-latinos. Nessa obra, entretanto, a corrupção dos conceitos foi atribuída
não só aos cristãos, mas também aos judeus:
Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a
equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz =
caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o
ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, ‘os miseráveis
somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os
sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos
abençoados, unicamente para eles bem-aventurança mas vocês, nobres
245
e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os
lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os
desventurados, mal- ditos e danados!.... (NIETZSCHE, 2003, p. 26)
Salientamos que, nessa mesma obra, o filósofo alemão coloca os verbos judaíza,
cristianiza e plebeíza como sendo termos diferentes que se referem a um mesmo fato: a
ascese dos mais fracos (dos escravos, do rebanho ou da plebe) ao poder.
Nesse sentido, Nietzsche atribui tanto aos judeus quanto aos cristãos a culpa do
“envenenamento de sangue” (ibidem, p. 28) que passou a corromper as raças mais fortes.
Ou seja, segundo o filósofo, essas duas religiões igualmente perverteram os conceitos de
raça superior e foram responsáveis pela decadência do gênero humano. No Deus, judaico
ou cristão, salienta o filósofo, o consolo aos que sofrem, o apoio aos desesperados, o
encorajar aos oprimidos foi louvado em detrimento à valorização dos já nascidos nobres e
poderosos.
Em seu livro mais conhecido, Assim falou Zaratustra (1883-1885), versos da
personagem principal também aproximam judaísmo e cristianismo:
Outrora – e, penso, o ano I corria
Da nossa Salvação –
Falou a Sibila, em voz sombria,
Ébria, mas não do vinho após a libação;
‘Corre para a ruína a humanidade inteira!
Tudo decai, tudo vai mal!
Roma tornou-se bordel e rameira,
Seu César reduziu-se a um animal!
Nunca tão baixo o mundo desceu!
O próprio Deus – fez-se judeu’. (NIETZSCHE, s.d.1, p. 250)
Encontramos nos versos anteriores duas referências temporais. A primeira delas,
mais clara, refere-se à contagem dos anos considerando como marco inicial o nascimento
de Cristo. A segunda, mais interpretativa, liga o nascimento de Cristo à decadência de um
outro império, o romano.
246
Para compreendermos esta segunda referência temporal, devemos salientar que a
nomenclatura César refere-se não a um imperador específico, mas sim a todos os
imperadores que, de Augusto (63a.C.– 14d.C.) a Adriano (76d.C.– 138d.C.), regeram o
Império romano quando um outro estava em formão, segundo os versos de Zaratustra, o
de Deus que “fez-se judeu”.
Nessa poesia, Zaratustra escolhe como profeta do porvir, não uma figura ligada ao
Deus nascedouro, mas sim um ser ligado à mitologia greco-latina, a Sibila
81
. Ao colocar na
profetiza mitológica a visão do nascimento de Cristo, Zaratustra acrescenta a este fato,
acrescenta à Salvação” pregada pelos católicos, um ponto de vista divergente do
pensamento comum: nas palavras do ser mitológico, o nascimento de Cristo é o início da
ruína da humanidade inteira.
Nesses versos, a visão negativa colocada acerca dos judeus não se refere
propriamente à raça judaica, mas sim ao fato de que os pais terrenos de Cristo, Maria e
José, pertenciam ao povo judeu.
Além disso, acrescentamos, o Deus cristão e o judeu são o mesmo e, quando
Nietzsche se refere à morte desse, faz alusão ao ser superior cultuado pelas duas religiões.
Contudo, mais do que criticar religes específicas, o filósofo almeja criticar uma
idéia em comum existente nas duas religiões: a de que os homens devem ser sofredores e
humildes para terem o reino dos céus.
Nesse sentido, Nietzsche nessas religiões a origem do culto à fraqueza humana
que, para o filósofo, é o verdadeiro mal que se alastra a partir do ano I de nossa decadência.
Acrescentamos que Nas ilhas bem aventuradas, texto pertencente à segunda parte
do livro Assim falou Zaratustra, encontramos a frase dita por Orfeu santareniano.
81
Segundo a mitologia grega, as Sibilas são sacerdotisas incumbidas de proferir os oráculos de Apolo.
247
Nesse momento do enredo, Zaratustra espera que suas sementes façam frutos, ou
seja, que seus discursos sejam compreendidos pela mente humana. Contudo, após sonhar
que seus inimigos tinham “desfigurado a imagem da [sua] doutrina” (ibidem, p. 97), ele
descreve seu pensamento acerca do “super-homem”.
Outrora, observa Zaratustra, o homem olhava para os mares e para a natureza e dizia
o nome de Deus, contudo o novo tempo chega, o de tornar real, o de não cultuar uma
suposição, mas sim substituí-la por uma realidade a nascer: o “super-homem”.
Acrescenta então o visionário:
Não deveríeis radicar-vos no inconcebível nem no contrário à razão.
Mas deixai que eu vos abra totalmente meu coração, amigos: se houvesse
deuses, como toleraria eu não ser um deus? Logo, não há deuses.
Sim, eu tirei a conclusão; mas, agora, ela me tira.
Deus é uma suposição; mas quem beberia, sem morrer, todo o tormento
dessa suposição? Deve tirar-se, ao criador, a sua e, à águia, o seu pairar
em aquilinas distâncias?
Deus é um pensamento que torna torto tudo o que é reto e faz girar tudo o
que está parado. Como? Teria sido o tempo abolido e todo o transitório não
passaria de mentira?
Pensar assim é um rodopiar e ter tonturas, para ossos humanos, e ainda,
para o estômago, uma causa de vômito: em verdade, sofrer de vertigens
chamo a tal suposição.
Más e anti-humanas chamo todas essas doutrinas do uno e perfeito e
imóvel e sacio e imperecível.
Todo o imperecível é apenas uma imagem poética! E os poetas mentem
demais. (ibidem, p. 100).
Em O inferno, Orfeu imprime à voz crueldade e contrai os músculos da face para
dizer: “Se houvesse um Deus, como suportaríamos não o ser?” (SANTARENO, s.d., p.
153). Além disso, acrescenta posteriormente, nesta terra sagrada, ele semeou sacrifícios à
sua crença: dois círios sangrentos, dois sacrifícios humanos em holocausto ao amor do
mundo” (ibidem, p. 154).
Observamos que a frase dita por Zaratustra possui uma conclusão: não existem
deuses.
248
Orfeu, contudo, ao declamá-la na charneca, omite essa conclusão e acrescenta que
matou uma judia e um homossexual como forma de holocausto a seu amor ao mundo.
Sendo assim, Zaratustra fala sobre um Deus que não existe, de uma crença negativa
que propagou o ideal de que a vida terrena seria apenas uma passagem a esperar a
eternidade do céu. Prega, em resumo, a favor do homem e contra doutrinas anti-humanas.
Orfeu, por sua vez, ouve a voz de Zaratustra, mas compreende o discurso deste não
como um voto de devoção ao homem, mas sim como um canto a propagar um holocausto
de sacrifícios a um novo deus, o deus que exige determinadas vítimas sacrificais em
holocausto, ou, como já dissera anteriormente, o “Pai Hitler!... Chefe!... Mestre!...
Santo!...” (ibidem, p.64).
Portanto, podemos concluir, o Orfeu santareniano seria um dos que estão
desvirtuando a doutrina de Zaratustra, uma vez que coloca no lugar do antigo Deus, não a
valorização da terra e do humano, mas sim o culto a um outro deus supremo, Hitler.
Sendo assim, através do estudo da teoria de Nietzsche, podemos reafirmar o que já
havíamos entendido via Camus: os assassínios cometidos por Orfeu justificam-se por causa
de sua devoção a um deus sórdido, Hitler, e, desse modo, são uma deformão do
pensamento filosófico da revolta nietzschiana.
É pertinente observarmos que a filosofia nazista, como veremos com mais
propriedade no momento em que estudaremos escritos ligados diretamente a Hitler, prega a
idéia de que uma raça superior dominaria a humanidade. Além disso, o ideal almejado por
essa raça ariana é, muitas vezes, próximo ao que Nietzsche havia descrito como seu ideal
de “super-homem”.
Nesse sentido, devemos salientar que os nazistas voltaram aos conceitos de virtude
pregados, como diria Nietzsche, antes do tempo cristão, judeu ou plebeu. Ou seja, para eles,
249
pertencer a uma raça superior não é sinônimo de fraternidade e bondade, mas sim do culto à
virilidade, à coragem, ao vigor e à bravura.
Além disso, acrescentamos, Nietzsche coloca em Assim falou Zaratustra que para
alcançar a supremacia, o ser superior, o “super-homem”, pode recorrer ao derramamento de
sangue. No mesmo capítulo até agora enfocado, observa a personagem principal: “Sim,
muitas mortes amargas deverá haver em vossa vida, ó criadores” (NIETZSCHE, s.d.1, p.
101). Em outros momentos do livro, afirma que as guerras, e não a paz, são o verdadeiro
bem supremo para o “super-homem”. Outrossim, salienta Zaratustra na quarta e última
parte do livro: “A boa guerra santifica qualquer causa”. (ibidem, p. 250).
Portanto, o estado permanente de holocausto e o de guerras vivenciado pelos
nazistas justificar-se-iam através da idéia de comportamento que Nietzsche faz da raça
superior.
Damos relevo ainda a mais uma questão presente na obra de Nietzsche. Em Para
além do bem e do mal (1886), o filósofo reafirma a idéia de que a igreja católica errou não
só quando apoiou os mais fracos, mas também quando modificou os sentidos de virilidade e
de bondade e acrescenta:
Quebrar os fortes, debilitar as grandes esperanças, tornar suspeita a
felicidade da beleza, converter tudo o que é soberano, viril, conquistador e
dominador, todos os instintos próprios do tipo ‘homem mais elevado e
mais bem-conseguido, em incerteza, tormento de consciência,
autodestruição, inverter mesmo todo o amor às coisas terrenas e ao domínio
da terra em ódio contra a terra e o que é terreno. Essa a tarefa que a Igreja
se impôs e que teve de impor-se, até que, na sua perspectiva,
‘desmundanização’, ‘dessensualização e ‘homem superior’ se fundiram
enfim num sentimento único. (NIETZSCHE, 2007, p. 87).
Ou seja, para Nietzsche, o desejo de conquistar e o de dominar são instintos naturais
ao homem e quando a igreja católica os renegou, tomou uma atitude anti-humana.
2
Salientamos que na obra acima citada, Nietzsche acrescenta aos cristãos e aos
judeus outros “seres” que devem ser repugnados pelo “super-homem”, os socialistas. Para
justificar a aversão aos que pregam esse sistema econômico, o filósofo argumenta que os
socialistas também são anti-humanos, uma vez que almejam a igualdade entre os homens.
Desse modo, podemos concluir que certas manifestações nazistas – como a guerra e
o derramamento de sangue, o desejo de conquistar e dominar, a perseguição aos que tornam
a humanidade fraca (judeus e socialistas) – podem ser comparadas às atitudes colocadas por
Nietzsche como manifestações do caminho para uma raça de super-homens”.
Podemos agora mostrar como os conceitos até então expostos estão presentes no
livro Vontade de potência, objeto de leitura, como vimos, de Camus, ao construir seu
ensaio, e de homens, ou “subomens”, que matam movidos pelo desejo de super-
humanidade (dentre eles, Ian Brady e os nazistas).
No prólogo à obra em questão, Elizabeth Foerster-Nietzsche, nos fornece algumas
informações. A primeira delas é que a obra é um tratado cuja primeira parte já fora
publicada com o título de O anticristo. A segunda, que o texto é a edificação em prosa
daquilo que já havia sido exposto, de maneira poética, em Assim falou Zaratustra. A
terceira, referente ao título, que este já havia sido informado a Elizabeth quando Nietzsche
lhe escrevera uma carta.
Assim como fizera em O anticristo, e nos demais livros até agora estudados, em
Vontade de potência, temos um ataque ao cristianismo que aparece aqui como principal
religião culpada pela degenerescência do ser humano forte.
O texto observa que essa religião pregou o amor mesmo aos inimigos e com isso
expulsou do homem forte a moral que a natureza lhe tinha fornecido. Assim como os
animais, esclarece o escrito, o homem tem o instinto de sobreviver e por isso procura ser o
251
mais forte no mundo terreno; o cristianismo, todavia, ensinou ao ser humano que este
deveria se preocupar com a vida pós-morte e que, portanto, deveria renegar toda força que
possuísse se esta o implicasse em fraternidade para com os mais fracos. Desse modo, a
era crisproduziu um homem em que habita a fraqueza da vontade, a incerteza de seus
atos e a sensação de impotência diante de uma vontade superior, a de Deus.
Como caminho presente a ser seguido, o texto estabelece que o homem forte deve
entrar em harmonia com a terra que lhe pertence e, perseguindo o ideal de superioridade,
mutilar de sua casta todos os elementos estéreis, improdutivos e destruidores que
degenerariam os descendentes.
Sendo assim, como mandamento de amor aos homens superiores, sugere o escrito:
Há casos em que a procriação é um crime: como no caso de doenças
crônicas e entre os neurastênicos de terceiro grau. Que se deve fazer? (...)
Em última instância, cabe à sociedade cumprir um dever: existem poucas
exigências tão prementes, tão absolutas como estas. A sociedade, grande
mandatária da vida, traz diante da vida, a responsabilidade de toda vida
falhada, - e por também sofrê-la, deve impedi-la. Em numerosos casos a
sociedade deve impedir a procriação: pode reservar-se para isso, sem
respeito à origem, classe ou espírito, o direito às medidas coercivas mais
duras, como a privação da liberdade, e em certas circunstâncias, até a
castração. A proibição da Bíblia não matarás!’ é uma ingenuidade ao
lado da importância que tem a defesa vital contra os decadentes: ‘não
procrieis!... A própria vida não reconhece solidariedade e nem ‘direitos
iguais’ entre as partes que são degeneradas de seu organismo: é preciso
eliminar essas últimas sob pena de perecer o conjunto. A compaixão para
com os decadentes, e os direitos iguais até para os mal nascidos – seria isso
a mais profunda imoralidade, a própria contranatureza transformada em
moral. (NIETZSCHE, s.d.2, p. 216 - 217).
Como vimos, o prólogo da edição de Vontade de potência, explicita que esta obra é
a versão em prosa do que fora dito em Assim falou Zaratustra. Desse modo, podemos
ligar o trecho a uma frase de Zaratustra: “Sim, muitas mortes amargas deverá haver em
vossa vida, ó criadores” (NIETZSCHE, s.d.1, p. 101).
252
Percebemos que Zaratustra considera a morte um dos eventos a ser enfrentado pelo
homem forte no seu caminho em direção à super-humanidade. Contudo, a dureza de como
essas mortes foram retratadas em Vontade de potência e como elas foram aplicadas pelos
nazistas pode ter sido um dos motivos que levou estudiosos de Nietzsche a julgarem as
palavras publicadas nesse livro como não pertencentes ao filósofo alemão.
Lembramos que no filme O julgamento de Nuremberg, obra que inspirou tanto o
primeiro encontro do casal Ian e Myra quanto o de suas versões literárias Orfeu e Eurídice,
os juízes levados à corte assinaram o decreto de esterilização de indivíduos considerados
deficientes mentais. Além disso, os juízes também acusaram de deficiência mental um
comunista e, sob o discurso de degeneração genética, o esterilizaram.
Após lermos o trecho de Vontade de potência trazido a nosso estudo, podemos
considerar que as mortes retratadas pelo filme são atos nazistas que poderiam estar ligados
às palavras atribuídas a Nietzsche.
Salientamos também que dentre as mortes causadas pelos casais de assassinos (Ian e
Mira e Orfeu e Eurídice) não existe nenhum deficiente, contudo existem outras pessoas que
para eles seriam consideradas partes degeneradas de um organismo a ser salvo.
Ann, em pose de oração, como fora colocada por Ian e Myra, ou com suas crenças
judaicas
82
como fora vista por Orfeu e Eurídice, seria seguidora de um Deus que degenerou
o homem forte. Sendo assim, portanto, o mandamento de “não matarás” sucumbiria ao
mandamento de amor ao homem superior.
82
Observamos aqui que a crítica aos judeus não é elemento abundante nas obras de Nietzsche. Contudo, como
vimos, a crítica aos cristãos e ao Deus por eles cultuado, um Deus que prega a ascese dos mais fracos,
estende-se também aos ancestrais dos católicos, os judeus.
253
O assassínio de Edward, na versão santareniana dos fatos, também seria justificado
por esse mandamento de amor uma vez que, como vimos nas histórias de Capote e de
Tennessee Williams, a homossexualidade pode ser um sintoma de distúrbio psíquico.
Sendo assim, as palavras de Vontade de potência poderiam ter sido objeto de
inspiração tanto para os nazistas, como retratam os fatos colocados em O julgamento de
Nuremberg, como para o casal de assassinos da charneca (Ian e Myra e suas versões
literárias Orfeu e Eurídice).
Observamos ainda que, em Nietzsche, o tempo linear pregado pelo catolicismo
(criação do homem e do mundo, vinda do salvador Cristo, morte e ressurreição no Céu
dos indivíduos bons) passa a ser um tempo cíclico, em que um fluxo eterno de forças trará o
renascimento de um novo ser supremo. Ou seja, nesse filósofo a idéia de “super-homem
aparece vinculada a uma idéia de “eterno retorno”.
Em Vontade de potência, a idéia de “eterno retorno” assim é trabalhada:
E sabeis o que é para mim o ‘mundo’? É mister que vo-lo mostre ao
espelho?Este mundo é um monstro de força sem começo nem fim, uma
quantidade de força brônzea que não se torna nem maior nem menor, que
não se consome, mas se transforma, imutável no seu conjunto, uma casa
sem despesas nem perdas, mas também sem rendas e sem progresso,
rodeada do ‘nadacomo de uma fronteira. Este mundo não é algo de vago e
que se gaste, nada que seja de uma extensão infinita, mas, sendo uma força
determinada, está incluído num espaço determinado e não num espaço,
que seria vazio em alguma parte. Força em toda a parte, é jogo de
forças e
ondas de forças uno e múltiplo simultaneamente acumulando-se aqui,
enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas que provocam sua própria
tempestade, transformando-se eternamente num eterno vaivém, com
imensos anos de retorno com um fluxo perpétuo de suas formas, do mais
simples ao mais complexo, indo do mais calmo, do mais rígido e do mais
frio ao mais ardente, ao mais selvagem, ao mais contraditório, para consigo
próprio, para retornar, depois, da abundância à simplicidade, do jogo das
contradições ao prazer da harmonia, afirmando-se a si mesmo, ainda nessa
uniformidade das órbitas e dos anos, bendizendo-se a si próprio como
aquilo que eternamente deve retornar, como um devir que jamais conhece a
saciedade, jamais o tédio, jamais a fadiga: este meu mundo dionisíaco da
eterna criação de si mesmo, da eterna destruição de si mesmo, este mundo
misterioso das voluptuosidades duplas, meu ‘além do bem e do mal’, sem
fim, senão o fim que reside na felicidade do círculo, sem vontade, senão um
254
anel que possua a boa vontade de seguir seu velho caminho, sempre em
redor de si mesmo e nada mais senão em redor de si mesmo: este mundo,
que eu concebo
(...) Quereis um nome para esse universo, uma solução para
todos os enigmas? Uma luz até para vós, os mais ocultos, os mais fortes, os
mais intrépidos de todos os espíritos, para vós, homens da meia-noite? Este
mundo da vontade de potência e nada mais! E vós também sois esta
vontade de potência e nada mais... (ibidem, p. 307).
A citação acima nos traz um filósofo a estudar o homem e a terra como um universo
em eterno movimento. Além disso, observa que esse mundo dionisíaco se cria e se destrói
perpetuamente através de desejos duplos, de conceitos que se revezam, conceitos de bem
para o que fora aceito pelos homens, e de mal, para os que derrubam os marcos
fronteiriços e abatem as antigas crenças
83
. Nesse universo em eterna transmutação de
valores cabe ao homem forte exercer o papel da “vontade de potência”.
Segundo Ferreira Santos (NIETZSCHE, s.d.2) a “vontade de potência” almejada por
Nietzsche é o esforço que o homem forte deve ter para triunfar, para vencer, para
intensificar a vida, sendo que esse esforço deve ser capaz de retirar dos seres o impulso de
passividade e de degeneração que habitou por tantos anos o mundo cristão. Salienta ainda o
estudioso que a vontade de potência” foi confundida por muitos, dentre eles Hitler e
Mussolini, como “vontade de poder” e que estes usaram as palavras de Nietzsche como
justificativas para seus atos de sanguinolência desmedida.
Acrescentamos à lista de Ferreira Santos, como deturpadores das palavras de
Nietzsche, os assassinos Ian e Orfeu.
83
Encontramos esta definição de “bem” e “mal” no texto A gaia da ciência (1882). Neste esclarece Nietzsche:
“Ahoje, foram os espíritos mais fortes e os espíritos mais malignos que obrigaram a humanidade a fazer
mais progressos: inflamaram constantemente as paixões adormecidas todas as sociedades policiadas as
adormecem eles despertaram constantemente o espírito de comparação e de contradição, o gosto pelo
novo, pelo arriscado, pelo inexperimentado; obrigaram o homem a contrapor opiniões a opiniões, modelos a
modelos. As mais das vezes pelas armas, derrubando os marcos fronteiriços, violando as crenças, mas
também com novas religiões e novas morais! (...) O novo, em todas as circunstâncias, é o mal, pois é aquilo
que deseja conquistar, derrubar os marcos fronteiriços, abater as antigas crenças; somente o antigo é o bem!
(NIETZSCHE, 2003, p. 39).
255
Movidos pelo discurso de poder, tanto Ian quanto Orfeu vêem em si, e não no
mundo dionisíaco, o cerne da força de destruição e de reconstrução. Sendo assim, ao invés
de seguirem um discurso virtuoso de amor à terra e aos homens, eles proclamam
assassínios guiados apenas pelo prazer de superioridade.
Somamos ainda como característica de deturpação do discurso nietzscheniano o fato
de os dois assassinos terem denominações ligadas à cultura da antiguidade clássica.
Lembramos que ao construir a imagem do que seria o “super-homem”, Nietzsche
retoma em seu ser superior o entendimento de virtude propagado pelos antigos. Sendo
assim, podemos dizer que esse filósofo vê na antiguidade, senão o modelo de super-
homens, uma idéia próxima ao que estes seriam. Nesse sentido, poderíamos dizer que o
super-homem é eterno-retorno” ao que fora entendido como humanidade superior pelos
antigos gregos e latinos.
Ian Brady, já preso pelos assassínios cometidos, se autodenominou Janus, deus
romano conhecido por ser o guardião de universo, o deus dos inícios. Sendo assim, apesar
de a humanidade ter em Ian o conceito de mal por ter ocasionado mortes atrozes, ele se
coloca como o mal que não é compreendido por ser, em palavras tortas do pensamento
nietzschiano, uma nova crença, um novo início de conceito de virtude que se apresenta ao
universo.
Orfeu tem si a denominação de um deus grego cujo canto tornava afáveis os seres
mais cruéis. Contudo, no “eterno retorno” de forças do universo, o canto de vida propagado
pelo deus antigo sofreu mutações e passou a ser um canto de morte. Mortes guiadas não
pela lira de Orfeu, mas tamm por um canto nazista-hitleriano que modificou o sentido de
super-homens divulgado por Nietzsche.
256
Portanto, podemos concluir que Ian e Orfeu propagam não um discurso de “eterno
retorno que visaria à afirmação absoluta do humano como fora proposto pela revolta
nietzschiniana, mas sim um discurso de ódio a pregar uma violência desmedida para que
poucos, os escolhidos da raça-ariana, os que se autodenominam superiores, possam exercer
o seu desejo de poder.
Nesse momento da análise, também podemos compreender a frase de Nietzsche dita
por Eurídice a Orfeu. Na charneca, junto aos corpos assassinados, Eurídice entoa sua
paixão por Orfeu e acrescenta, ao canto dos dois, palavras do filósofo: “‘Nenhum artista
tolera o real... Eu amo-te, amo-te... amo-te! a ti, Nietzsche do meu coração! Poeta,
santo...!Santo, santo, santo” (SANTARENO, s.d., p. 154).
No livro de Camus, a frase atribuída a Nietzsche pertence ao capítulo destinado a
analisar a arte e, objetivando isso, o ensaísta coloca que os artistas são criadores que não
podem prescindir do real, mas podem rejeitá-lo em “nome de uma idéia que ele tem de sua
própria natureza.” (CAMUS, 2005, p. 332).
Orfeu é um artista, o porque seu nome mítico está ligado à criação da poesia,
mas também, e principalmente, porque acredita ter o poder de criar um novo universo.
Contudo, apesar de toda a leitura realizada, Orfeu não consegue ver os motivos reais da
revolta de cada um dos autores lidos e reconstrói, segundo a sua própria natureza, uma
realidade a ser entoada por seus cantos de morte. Sendo assim, guiado por uma poesia
ouvida por ele e pelos seguidores do nazismo, Orfeu mata duas crianças, uma judia e um
negro e um adolescente homossexual.
Eurídice, por sua vez, proclamando amor, acompanha o canto entoado por seu
artista Orfeu e chama de deus não a seu amado, mas também, incoerentemente, aquele
que lutou contra deuses que tornariam os homens subservientes: Nietzsche.
257
Desse modo, apesar de terem nomes que retomam a antiguidade, o casal não exerce
atos de virtude proclamados pelos antigos e almejados pelo “super-homemnietzschiano;
ao contrário disso, exercem atos vis que visam à degeneração da humanidade.
Ao cabo, resta-nos as palavras de um dos estudiosos de Nietzsche, Lichtenberger:
Em boa justiça não podemos condenar as teorias de Nietzsche sob o
pretexto de que os medíocres e impotentes, inflados de vaidade, tomem-lhe
emprestados alguns preceitos, arbitrariamente destacados do conjunto de
sua doutrina, para justificar os apetites de gozo egoísta ou as extravagantes
pretensões de grandeza. (NIETZSCHE, s.d.2, p. 61)
Ou seja, na ambigüidade da teoria nietzschiana, podemos destacar conceitos que
inflamam assassinos como Ian, Orfeu e, como veremos posteriormente com mais
propriedade, Hitler; contudo condenar os escritos do filósofo alemão porque esses foram
mal utilizados por alguns seria impossibilitar o renascimento de energias que nos levariam
a uma humanidade superior.
III.3.5- “Transmutação” de valores: dos crimes de paixão aos crimes de lógica.
Nietzsche o meditou o projeto de matar Deus. Ele o encontrou morto na
alma de seu tempo. Foi o primeiro a compreender a dimensão do
acontecimento, decidindo que essa revolta do homem não podia conduzir a
um renascimento se não fosse dirigida. (CAMUS, 2005, p. 89).
Em seu ensaio acerca do homem revoltado, Albert Camus nos traz a idéia de que a
luta humana contra a autoridade divina começou com o assassínio do Deus católico e
culminou com o entendimento desse assassínio.
258
Para explicar-nos essa idéia, o escritor francês explanou acerca da “negação
absoluta” de Sade e dos românticos, da “recusa da salvação” de Ivan Karamazov e d“a
afirmação absoluta” de Nietzsche.
Em Sade, como vimos, a escolha pelos instintos sexuais é, segundo Camus, reflexo
não só de um tempo que teve coragem de decapitar o rei católico Luis XVI, mas também da
época em que a morte desse rei foi o símbolo do extinguir de uma autoridade divina já
decadente. Desse modo, ao aceitar suas manifestações desmedidas de desejo sexual, Sade
escolhia sua natureza instintiva em detrimento de sua religiosidade e era um dos primeiros a
negar, mesmo que por vias extremas, o Deus católico que até então reinava no mundo.
Da negação absoluta por meio da aceitação dos instintos, Camus passa para uma
outra forma de negação, aquela que aceita o rival de Deus como vítima e não como
culpado. No satanismo romântico, o ensaísta francês encontra um homem injustamente
expulso do mundo virtuoso divino, um homem cujo choro sentimental é a manifestação de
um canto contrário a uma ascese que lhe fora e lhe é negada.
Camus observa, então, que a dor dos o escolhidos pode ser sentida, através da
compaixão, também pelos mais afortunados. É o caso de Ivan Karamazov. É o caso de um
homem revoltado que não suporta enxergar em seu mundo a miséria das crianças, a
desigualdade social e a morte injusta impingida ao ser humano. A harmonia divina é, então,
criticada e contra esta o homem revoltado, simbolizado aqui por uma personagem de
Dostoievski, exige liberdade de ão. Contudo, salienta o ensaísta, o pensamento de Ivan
não germina um deus mais justo e sim um homem cujos crimes são igualáveis aos do Deus
criticado, fato que ocasiona a loucura de Ivan.
259
A linha do tempo a retratar a progressiva morte de Deus nos leva ao encontro de
Nietzsche e na filosofia deste, segundo Camus, temos uma possível compreensão do
objetivo da verdadeira luta travada pelo homem revoltado.
Nietzsche afirma que “Deus está morto” (ibidem, p. 89), contudo sua afirmativa é
apenas uma conseqüência dos pensamentos propagados pelos seus antecessores. Sendo
assim, observa o ensaísta francês, apesar de atacar o santuário antigo, o catolicismo, os
escritos de Nietzsche não querem apenas destruir a subserviência a um Deus supremo, mas
sim erigir o verdadeiro sentido da revolta: encontrar uma humanidade mais forte que
renascerá na afirmação absoluta do humano.
Ou seja, conclui Camus, “os crimes de paixão” cometidos por esses revoltosos
visam erigir um homem natural que quer edificar uma humanidade que celebre a verdadeira
liberdade de viver.
Contudo, explica Camus, a luta dos revoltosos traz em si um antagonismo, os
“crimes de lógica”. Movidos não mais pelo sentimento, mas sim pela razão, homens
racionalizam as idéias dos revoltosos e as utilizam como justificativa e álibi para seus atos
de sanguinolência desmedida. Ou seja, ao invés da ascese almejada, do rumo a uma maior
consciência, alguns seres humanos utilizam as palavras dos verdadeiros revoltosos como
filosofias para formar uma estirpe de seres que almejam o assassinato universal, a
destruição absoluta e o aniquilamento do homem.
Poderíamos vincular Orfeu, pelos fatos até agora expostos, a essa estirpe de seres.
Orfeu livros de Sade, copia ou decora frases desse autor e tenta encontrar nesses ditos
justificativa para os crimes que comete. Sendo assim, praticar a pederastia, o estupro ou o
assassínio passa a ser, para Orfeu, segundo seu entendimento desvirtuoso, uma
manifestação de liberdade. Contudo, devemos salientar, neste homem a incoerência habita,
260
pois se ele mata imbuído pela paixão libertária de Sade, pela escolha da manifestação
desmedida de seus instintos sexuais, não deveria condenar à morte outro libertino, o
homossexual Edward. Ou seja, podemos dizer que o assassino santareniano utiliza os
escritos libertinos do marquês apenas como justificativa para uma sexualidade desmedida e
não como manifestações reais de uma liberdade a ser exigida. Portanto, os “crimes de
paixão” cometidos por Sade, paixão pela natureza instintiva e sexual, passam a ser em
Orfeu “crimes de lógica”.
Acrescentamos que, em uma noite de Natal, Orfeu e Eurídice vão a um lugar
sagrado, a charneca, para repetir ditos de pessoas por eles consideradas santas: Sade,
Dostoievski e Nietzsche.
A repetição desses ditos assemelha-se ao ato de orar tão criticado por um dos
autores citados pelo casal de assassinos, Friedrich Nietzsche. No livro A gaia da ciência,
esse filósofo alemão coloca que os seguidores de Deus utilizam a oração não como uma
forma de engrandecimento do ser, mas sim como um “longo trabalho mecânico dos lábios,
aliado a um esforço de memória” (NIETZSCHE, 2003, p. 118). Ressalta ainda que a oração
acaba sendo, para os que nunca tiveram pensamentos próprios e que ignoram o que é
elevação da alma” (ibidem, loc. cit.), um repetir contínuo e sem sentido de palavras.
Notamos que as frases emitidas por Orfeu e Eurídice não são por eles realmente
compreendidas e, por serem repetidas de maneira mecânica, poderíamos dizer que formam
uma estranha e nova oração. Sendo assim, apesar de pronunciarem palavras contrárias ao
Deus católico, Orfeu e Eurídice acabam tendo a mesma atitude dos fiéis crentes nesse Deus.
Somamos ainda ao nosso pensamento o fato de que Camus colocou Sade,
Dostoievski e Nietzsche como revoltosos por dois motivos. Primeiro, porque eles
participaram da progressiva morte do culto a um Deus cruel, o católico. Segundo porque,
261
ao negarem esse Deus, acabaram escolhendo a supremacia da terra e do humano. Orfeu e
Eurídice, contudo, propagam cultos de morte a determinadas pessoas. Desse modo,
podemos dizer que o casal de assassinos pratica, por causa de outros deuses – Sade,
Dostoievski, Nietzsche e Hitler – o que havia sido criticado, segundo Camus, pelos autores
revoltosos.
Sendo assim, podemos afirmar com propriedade: o verdadeiro sentido da revolta
almejada por Sade, Dostoievski e Nietzsche não existe no casal de assassinos, uma vez que
nestes as palavras daqueles não são sinônimos de liberdade e ascese do humano, mas sim
de prisão e subserviência a uma crueldade sem sentido.
Além disso, salientamos, a história da revolta de cada autor, ou personagem, o se
harmoniza com os atos cometidos pelo casal de assassinos. Como vimos, a manifestação
de Sade é pela liberdade dos instintos sexuais, Orfeu e Eurídice, contudo, matam Edward
por este ser um libertino. A revolta de Ivan Karamazov, personagem de Dostoievski, é
movida pela compaixão aos mais injustiçados, dentre eles as criancinhas; Orfeu e Eurídice,
todavia, m nos injustiçados de Ivan alvo de suas mais extremas crueldades. Por fim, a
revolta de Nietzsche visa direcionar o renascimento da humanidade, entretanto, de suas
palavras nascem seres, Orfeu e Eurídice, cuja vontade de poder são atos de destruição
movidos contra o humano.
Logo, podemos concluir, os crimes de Orfeu e Eurídice são, segundo a
nomenclatura camusiana, “crimes de lógica” uma vez que os escritos dos revoltados servem
para o casal de assassinos como álibis para crimes racionalizados e não como
manifestações verdadeiras de insurreição a um sistema que os oprime.
Ressaltamos ainda que a revolta dos românticos, seres obrigados , na óptica do
ensaísta, a praticarem o mal porque foram expulsos de todo bem paradisíaco, não foi
262
entoada por Orfeu santareniano, fato que estudaremos com mais apuro ao abordarmos o
cotejo que o autor português realizou entre o casal de amantes diabólicos e o mitológico
casal Orfeu e Eurídice.
Antes de findarmos esta parte de nossa análise, devemos observar mais um
intertexto trabalhado por Santareno com frases utilizadas por Camus. No capítulo III de O
homem revoltado, o ensaísta francês cita: A personalidade tomou o lugar da fé, a razão o da
Bíblia, a política o da religião e da Igreja, a terra o do céu; o trabalho o da oração, a miséria,
o do inferno, o homem o de Cristo. (SANTARENO, s.d., p. 192)
84
.
Esclarecemos que o dito acima foi transcrito por Orfeu em seu caderno de anotações
e a aparente incoerência dessa transcrição reside não na deturpação que Orfeu faz das
palavras acima, mas também na atitude de um nazista transcrever frases que pertencem ao
filósofo que inspirou grande parte da doutrina comunista, Feuerbach.
Para compreendermos tal citação, devemos observar o pensamento que levou a obra
camusiana a ser criticada pelos seus contemporâneos: os atos da violência dos movimentos
fascista e nazista são equiparáveis aos cometidos pelos comunistas.
Sendo assim, ao colocar em seu assassino nazista palavras que pertencem àquele
que Marx “considerava um grande espírito, e de quem se reconheceria como discípulo
crítico” (CAMUS, 2005, p.174), Santareno mostra por outras vias o que Camus colocou em
seu ensaio: no seu tempo, os ideais nazistas e comunistas se igualam, pois servem de álibi
para os que, através de “crimes de lógica”, praticam uma violência desmedida.
Observamos que na peça santareniana o terceiro jurado, após ler o fragmento de
Feuerbach transcrito por Orfeu, salienta que o texto parece ser ligado à política, fato que
84
Na versão em língua portuguesa que utilizamos da obra camusiana, a frase é transcrita da seguinte maneira:
“A individualidade tomou o lugar da fé; a razão, o da Bíblia; a política, o da religião e da Igreja; a terra, o do
céu; o trabalho, o da oração; a miséria, o dO inferno; e o homem, o lugar do Cristo. (CAMUS, 2005, p. 173).
263
não lhe agrada, pois, se existir esse vínculo, o crime será julgado como necessário ao
engrandecimento da nação.
A observação é pertinente uma vez que essa discussão aparece tanto no filme O
julgamento de Nuremberg quanto no ensaio camusiano.
Lembramos que, no filme, o advogado de defesa dos juizes ligados à Alemanha
nazista coloca que os atos de assassínio cometidos pelos acusados foram movidos pelo
desejo político de engrandecer a pátria. Além disso, salienta o mesmo advogado, outras
nações, dentre elas os Estados Unidos da América, cometeram e cometem assassínios
movidos pelo mesmo álibi. No final do julgamento, recordamos, apesar de os juízes serem
condenados à prisão perpétua, o filme deixa claro a idéia basilar que se objetivou discutir:
homens, mesmo que de ideais antagônicos, vêem na política do engrandecimento da nação
o álibi perfeito para suas ações desmedidas de violência.
No filme dirigido por Kramer, os ideais antagônicos são metaforizados pelo
nazismo e capitalismo; no ensaio camusiano, como salientou a crítica ao livro, pelos
governos fascistas e socialistas.
Acrescentamos ainda que Camus nos diz que seu texto não tem como objetivo
julgar a culpabilidade, mas sim compreendê-la. Compreender como “os crimes de paixão”
se tornaram “crimes de lógica”, ou seja, como as manifestações de sentimentos de amor ao
homem (homem instinto, homem expulso do paraíso, homem compaixão, homem absoluto)
podem ter originado seres cujos crimes racionalizados proliferam, em seu tempo, em
massacres que não mais causam horror à humanidade.
Na análise da frase de Feuerbach, Camus encontra uma possível resposta para esta
sua indagação. Em sua Essência do cristianismo (1841), diz Camus, Feuerbach fez uma
profecia acerca do tempo vindouro. Nesse, a fé, a Bíblia, a religião, o Céu, a oração, o
264
inferno e Cristo seriam substituídos pela individualidade, pela razão, pela política, pela
terra, pelo trabalho, pela miséria e pelo homem; o homem ateu e o homem revolucionário,
“duas faces de um mesmo movimento de liberação” (ibidem, p. 175), perceberiam que os
ideais cristãos de transcendência que perduraram por tempos deveriam ser substituídos por
ideais capazes de dirimir, na terra, o real inferno que faz sofrer a humanidade: a miséria.
Contudo, observa Camus, a concepção equivocada do mundo trouxe homens que
queriam tomar o lugar do Deus teocêntrico e se tornaram seres tão cruéis como Ele; ou seja,
conclui Camus, em Napoleão, em Hegel, em Hitler e outros tantos podemos observar os
ideais de matar e de escravizar contra os quais tanto lutaram os verdadeiros homens
revoltados.
Nesse sentido, podemos dizer, se a todos os que cometeram “crimes de paixão”
fosse dado o direito de ver como suas idéias foram transfiguradas, os revoltosos sofreriam
do mesmo mal de Ivan Karamazov: a mente terrestre escolheria a insanidade, pois não
conseguiria compreender o desvirtuar de uma luta que fora guiada pelo amor aos homens.
Quanto ao Orfeu santareniano, lembramos, via Camus, um outro pensamento de
Feuerbach que nos ajudará a compreender o desvirtuar de uma revolta: (...) a distinção
entre o humano e o divino é ilusória; ela nada mais é do que a distinção entre a essência da
humanidade, isto é, a natureza humana, e o indivíduo” (ibidem, loc. cit.).
O trecho anterior nos permite dizer que a frase escrita pelo Orfeu santareniano não
foi por ele compreendida da mesma forma que Camus a analisou. Podemos construir essa
afirmação pois, para essa personagem, o inferno cristão não seria comparável à indigência
monetária, mas sim a um outro inferno: o indivíduo ainda não alcançou a ascese ao divino,
pois sucumbe ao mais cruel de sua natureza humana, o instinto prazeroso vindo do ato de
matar.
265
Portanto, podemos concluir, na “transmutação” de valores, Orfeu não é o “super-
homem” almejado por Nietzsche, não é o ser que conseguiu a ascese desejada pelos
revoltosos, é apenas um homem cuja consciência serve somente para lembrar ditos que
justificam crimes guiados pelo que há de mais elementar na natureza humana, o instinto de
prazer.
III.4- Jean Genet: o lirismo de um ladrão.
Em seu caderno de anotações, Orfeu copia um trecho de O diário de um ladrão e
aproxima, nesse momento, sua história de vida à do escritor Jean Genet (19101986).
Tornei-me abjeto. Pouco a pouco, fui-me habituando a esse estado.
Confesso-o tranqüilamente. O desprezo que os outros sentiam por mim,
transformou-se em ódio: Venci, portanto. Mas quantos golpes sofri.
(SANTARENO, s.d., p. 188).
Livro de memórias, O diário de um ladrão foi escrito e publicado no ano de 1949.
O enfoque principal dessa obra autobiográfica é resumido pelo escritor no corpo de seu
texto: “A traição, o roubo e a homossexualidade o os assuntos essenciais deste livro”
(GENET, 2005, p. 151).
Observemos a história de Genet com o intuito de compreendermos o que levaria
Orfeu a trazer para seu caderno de anotações uma frase dita por um ladrão homossexual.
Filho de uma prostituta, Jean Genet fora enjeitado assim que nascera. Na França de
1910, era comum que as crianças abandonadas na capital fossem criadas, em troca de uma
ajuda monetária do governo, por pais adotivos no interior do país; esse foi o destino de Jean
Genet. Tempos depois, ao completar dez anos, roubou pela primeira vez. Aos treze anos,
266
decidiu abandonar a residência de adoção e viver da prática de pequenos furtos. Aos
quinze, foi levado à colônia penitenciária de Mettray. Nessa prisão, local em que ficou
encarcerado até a maioridade, o menino enjeitado tomou contato com a homossexualidade.
Com dezenove anos, ele se alistou na Legião Estrangeira, contudo, guiado apenas pelo
dinheiro que o alistamento poderia lhe render, tornou-se desertor algum tempo depois. Jean
passou a viver, a partir deste momento, como um viajante que tem na homossexualidade e
no roubo não sua maneira de obter dinheiro, mas também elementos a guiarem sua
filosofia de vida.
Devemos salientar, todavia, que a narrativa criada por Genet não se torna literária
pelos retratos factuais trazidos a seu diário, mas sim por uma existência interior que revela,
a cada relato, que o lirismo também é possível aos marginalizados pela sociedade.
Jean Genet, apesar de nunca haver conhecido a sua mãe, sonhava como seria seu
encontro com ela. Caminhando pelas ruas, ele veria uma velha ladra a mendigar e sentiria,
inicialmente, o desejo de cobrir de flores e de beijos a face redonda e tola desta mulher.
Mas pouco tempo seria necessário para que estes signos iniciais de ternura fossem
substituídos pelos mais vis. Ele então sentiria o desejo de babar sobre a velha ladra que é
sua mãe: (...) babar sobre os cabelos dela e vomitar-lhe as mãos” (GENET, 2005, p. 25),
estas seriam as reais formas de “adorá-la” (ibidem, loc. cit.).
A passagem citada revela um autor que consegue inserir um tom repleto de lirismo
naquilo que é considerado abjeto pela sociedade.
Devemos acrescentar que o texto construído por Genet traz ainda em seu bojo
interpretações racionais acerca dos atos que envolvem sua biografia. Nesse sentido, Genet
nos mostra as razões que fizeram dele um indivíduo fora dos padrões aceitos pela
sociedade.
267
Em uma das passagens de seu livro ele confessa:
(...) não quero dissimular as outras razões que fizeram de mim um ladrão, a
mais simples sendo a necessidade de comer; todavia, em minha escolha
jamais entraram a revolta, a amargura, a raiva ou quaisquer sentimento
desse tipo. Com cuidado maníaco, um cuidado de ciumento”, preparei a
minha aventura como se arruma uma cama, um quarto para o amor: eu tive
tesão pelo crime. (ibidem, p.18)
Através do fragmento acima podemos dizer que o autor declara que escolheu a
criminalidade não por causa do instinto de se alimentar, mas sim para que pudesse, através
dos roubos, obter um prazer igualável ao sexual.
Este entrelaçar entre roubo e prazer sexual traz a Genet cúmplices que se tornam
amantes devotos: René, Salvador, Java, Michaelis, Erik, Armand, Bernard, Robert e, dentre
outros, o mais importante, Stilitano.
Stilitano é o grande amor de Jean Genet. Contudo, a união de ambos se faz muito
mais por narrativas a planejarem e praticarem estelionatos, que por palavras a contarem se
houve mesmo um entrelaçar de seus corpos. No momento de sua mais atroz crueldade, o
espancamento e roubo de um homossexual a quem Jean Genet chama de “veado” e de
“animal sujo” (ibidem, p. 161), a união com Stilitano é tão forte, que o autor declara: “Feito
de lama e de vapor, Stilitano era realmente uma divindade a quem eu ainda podia me
sacrificar. Nos dois sentidos da palavra, estava possuído” (ibidem, p. 162).
Acrescentamos que o ato de roubar não traz arrependimento a Jean Genet. o
espancamento de um ser que lhe é igual na homossexualidade, entretanto, traz desolamento
à sua consciência por ter ferido seu tesouro mais querido: a pederastia.
Abordando também sua ligação com o mundo natural, mundo em que se valorizam
os instintos, Genet explica-nos a origem de seu sobrenome. O autor declara que, aos vinte e
um anos, conseguira obter do Estado sua certidão de nascimento e nesta constava o nome
268
da mãe que jamais conhecera, Gabrielle Genet. Todavia, após tentativas infrutíferas de
encontrar Gabrielle, escolhera como vínculo materno sua ligação com a natureza e desse
modo aceitara ser Genet, pois a grafia de seu sobrenome designa, em francês, o arbusto de
giesta (genêt). Neste momento, conclui então o escritor, a natureza representada pelas
flores de giesta passa a ser seu emblema.
Observamos que Jean Genet soma ainda a esse raciocínio um outro: as flores de
giesta têm na terra seu alimento e essa terra é feita “dos ossos em das crianças, dos
adolescentes enrabados, massacrados, queimados por Gilles de Rais” (ibidem, p. 45).
Apesar de Jean Genet não explicar quem foi Gilles de Rais, devemos salientar que
este homem é um conhecido nobre francês que viveu no século XV e que foi acusado de
torturar, estuprar e matar centenas de crianças. Sendo assim, as flores de giesta e seu
“parente” Genet se alimentam da terra que recebeu as vítimas de um assassino atroz. Deduz
então o escritor: dessa forma “a minha perturbação parece comandada pela natureza toda”
(ibidem, p. 45).
Ao vínculo homem/ natureza, Jean Genet acrescenta a influência que o meio social
pode ter sobre o indivíduo. Nesse momento ele traz a seu texto a frase que, posteriormente,
seria copiada por Orfeu: “Tornei-me abjeto. Pouco a pouco, acostumei-me com esse estado.
Tranqüilamente o confessarei. O desprezo que tinham por mim mudou-se em ódio: eu
estava realizado. Mas quantas aflições sofrera!” (ibidem, p. 156)
Na obra paradigma, o trecho copiado por Orfeu faz parte da conclusão de uma
idéia. Aos dezesseis anos, o adolescente Jean Genet escuta da sociedade acusações e, ao
invés de se indignar contra elas, ele decide tornar realidade o que era discurso. Ou seja,
269
para vencer os que o acusavam de covarde, de traidor, de ladrão e de homossexual, o jovem
responde sim e se torna o ser desprezível que a sociedade exigia que ele fosse
85
.
Assim como Jean Genet, o Orfeu santareniano conheceu a orfandade em sua
infância. Contudo, esta privação dos genitores ocorreu não por abandono, mas sim por
morte dos pais ocasionada pela guerra.
Lembramos que a questão da orfandade influenciar ou não a formação de pessoas
desvirtuadas foi por s abordada anteriormente, quando estudamos o intertexto que
Santareno faz com a obra A sangue frio, de Truman Capote. Naquela ocasião, concluímos
que a orfandade vivida por Orfeu, Eurídice e Perry era um dos fatores que poderiam ter
influenciado a formão destes assassinos. Sendo assim, a história de abandono sofrida por
Jean Genet corrobora com a nossa análise inicial.
A relação homossexualismo/ criminalidade, também apareceu como objeto de
estudo em outros momentos de nossa análise. Ela foi abordada nas histórias de Ian Brady,
Richard Hickock, Sebastian, Sade e do próprio Orfeu. Contudo, uma vez que a questão é
tratada de formas diversas em cada uma dessas obras, ainda não podemos concluir se o
homossexualismo leva ou não o ser à criminalidade.
O que podemos acrescentar é que, segundo a narrativa de Jean Genet, a
homossexualidade é vista como um crime pela sociedade e, portanto, o homossexual, por já
ser tido como um desvirtuado da lei oficial, escolhe cometer outros crimes sociais.
Devemos ressaltar que na peça santareniana a não aceitação do indivíduo
homossexual também é objeto de discussão. Podemos observar essa não aceitação por dois
ângulos, o de roubo e o de homicídio.
85
Importante dizer que não podemos classificar a influência que o meio social exerce no escritor como uma
influência naturalista uma vez que na história de Jean o livre arbítrio foi quem guiou o futuro deste homem.
270
A irmã de Eurídice, por exemplo, diz ao marido que ele não deve se preocupar, pois
o roubo praticado contra um homossexual não será objeto de uma investigação ria pela
polícia. Ou seja, segundo ela, o indivíduo homossexual não tem seus direitos defendidos
pelo Estado assim como os outros indivíduos o teriam.
No tribunal, não mais acusado de roubo, mas sim de assassínio, Orfeu tem a
cumplicidade dos jurados pela morte do homossexual Edward. Para comprovar este fato,
trazemos à nossa análise, respectivamente, a opinião do 4º e do 6º jurados:
Tens razão, Orfeu! Bem vistas as coisas, que importância tem isso de matar
um homossexual, uma ‘reles bicha’?! Toma mas é atenção com outros dois
crimes, o assassínio de crianças: Daí sim, pode vir-te mal. Agora da morte
desse Edward... !? Não, isso o pesará em tua sentença (...) Todos os
pederastas mesmo quando tenham dezassete anos! ... são antisociais,
perversos de instinto e de caráter, mentirosos e cobardes, imaturos e
deficientes éticos... capazes de tudo, do pior! Descansa Orfeu: realmente a
morte de Edward Jones pouco vale, pouco ou nada contará.
(SANTARENO, s.d., p. 38).
Ah, é em situações deste gênero que eu tenho saudades da guerra: Vinte
anos atrás, a gente arrumava aquele casal de bandidos de encontro com uma
parede e, sem mais conversas, borrifávamo-los de alto a baixo com uma
linda chuva de metralhadora! E o outro, o tal... o maricas também podia
beneficiar da mesma dose: Não se perdia nada! (...). (ibidem, p. 37).
Ou seja, na obra santareniana, pensamentos trazem à tona uma realidade: nossa
sociedade não aceita o indivíduo homossexual e, portanto, não julga criminosa qualquer
ação, seja de roubo ou de assassínio, contra tais seres.
Salientamos que na obra Diário de um ladrão, Jean Genet declara ter praticado o
roubo e o espancamento de homossexuais, atos que, como vimos, o deixam desolado.
Contudo, o autor não coloca o assassínio, de homossexual ou não, entre os crimes por ele
cometidos. Além disso, acerca do ato de matar outrem, diz o autor:
O assassinato não é o meio mais eficaz de ir ao encontro do mundo
subterrâneo da abjeção. Ao contrário, o sangue derramado, o perigo
271
constante em que estará o seu corpo que pode um dia qualquer ser
decapitado (o assassino recua mas o seu recuo é ascendente) e a atração que
ele exerce pois lhe supõem, por tão bem opor-se às leis da vida, os atributos
mais facilmente imaginados da maior força, impedem que esse criminoso
seja desprezado. Outros crimes o mais aviltantes: o roubo, a mendicância,
a traição, o abuso de confiança, etc. são estes os que escolhi cometer ao
passo que sempre permaneci habitado pela idéia de um crime que,
irremediavelmente, me separaria do mundo de vocês. (GENET, 2005, p.
97).
O fragmento acima nos permite dizer que o assassínio não é um crime escolhido por
Jean Genet, pois o autor em seus atos criminosos uma forma de separá-lo do mundo
socialmente aceitável. Segundo o pensamento do autor, o homicida pode estar sujeito a ser
condenado à morte e, portanto, ao matar, o criminoso não se separa da sociedade, mas sim a
essa pode se unir.
Apesar de viver como andarilho em vários países da Europa, se Jean Genet
cometesse algum crime mais grave, como por exemplo o de homicídio, ele seria julgado em
seu país de origem, a França. No território francês a pena de morte vigorou ao ano de
1981, sendo assim, o crime de assassínio seria, no caso de Genet e segundo o raciocínio por
ele colocado, objeto de assassinato.
Na Inglaterra, como foi colocado, a pena de morte foi abolida em 1964, portanto
ela não estava em vigor na época em que Orfeu e Eurídice cometem seus crimes. Sendo
assim, podemos dizer, o motivo que leva Jean a repugnar o homicídio não poderia ser
aplicado ao casal inglês.
Quanto à questão de a pena de morte ser também uma maneira de cometer
assassinato, trazemos à nossa análise trechos que comprovam que os jurados sentem um
prazer igualável ao de Orfeu ao pensarem que poderiam arbitrar sobre a morte do acusado.
272
Após chamar de cretinos e fracos os que aboliram a pena de morte e de manifestar
sua luta para que essa seja restabelecida, diz o primeiro jurado:
(...) (os olhos cravados em Orfeu, como num duelo) Gosto de te ver ,
piolho imundo! Escarro, flagelo de Deus! Como um membro podre, serás
cortado do corpo da humanidade. Sem dó, nem compaixão! Seremos
implacáveis contigo, monstro! Em todo o caso, menos implacáveis do que
tu foste com as crianças que trucidaste. Monstro!!!” (SANTARENO, s.d., p.
169)
Além disso, como vimos anteriormente, o sexto jurado sente saudades do tempo da
guerra, tempo em que a lei permitia borrifar “de alto a baixo com uma linda chuva de
metralhadora” (ibidem, p. 37) pessoas como Orfeu e Eurídice.
Podemos deduzir, por meio dos trechos acima, que se a pena de morte existisse no
país dos “assassinos da charneca”, o raciocínio de Jean seria verdadeiro: o assassínio
movido pela pena de morte é igualável ao cometido pelo criminoso, pois ambos trazem
prazer aos que têm o poder de matar.
Este desejo de agir sempre de forma contrária à lei faz com que Genet viva da
prostituição e não do roubo na Alemanha nazista de Hitler. Neste local, declara o autor, em
meio a um “povo de ladrões” (ibidem, p. 111), o roubo seria não uma atitude aceitável à
sociedade como também uma forma de obedecer “à ordem habitual” (ibidem, loc. cit.); a
prostituição, por sua vez, seria uma forma de atacar aqueles que declaravam verdadeira
ojeriza pelo indivíduo homossexual: os nazistas.
A observação nos parece pertinente uma vez que devemos destacar que entre os
amantes de Jean existem dois homossexuais ligados ao pensamento nazista. Java se orgulha
de ter pertencido ao exército S.S. de Hitler. Erik aprendera com o “Exército maldito
(ibidem, p.97) a oferecer amor e porrada aos homossexuais.
273
Esta ambígua relação homossexualidade/ nazismo o é explicada por Jean Genet.
Contudo, devemos lembrar, ela retoma um dado que já nhamos apontado na peça
santareniana: o homossexualismo é tido como um crime, não obstante os mesmos seres que
punem esse crime, no caso, os seguidores do nazismo, o cometam.
Em O inferno, recordamos, o assassino da charneca mata Edward por este ser uma
“reles bicha” (SANTARENO, s.d., p. 38), todavia, como já vimos anteriormente, Orfeu tem
um relacionamento homossexual com seu chefe.
Antes de findar esta parte de nossa análise acrescentamos que o Orfeu santareniano
traz a seu caderno outra frase atribuída a Jean Genet: “Cada assassinato obedece, quanto à
sua execução e ao móbil que o comanda, a leis que fazem dele uma obra de arte”
(SANTARENO, s.d., p. 191).
Em Diário de um ladrão, o autor se refere várias vezes ao ato consciente de cometer
o crime como o construir de uma obra de arte. Como exemplo dessas referências, podemos
dar relevo ao trecho abaixo:
Terei muita vaidade em dizer que fui um ladrão habilidoso. Nunca fui
apanhado no ato, em ‘flagrante’. Mas é pouco importante que eu saiba
roubar admiravelmente em meu proveito terreno: o que procurei
principalmente foi ser a consciência do roubo cujo poema eu escrevo, isto é:
recusando enumerar as minhas façanhas, mostro o que lhes devo na ordem
moral, o que a partir deles construo, o que obscuramente procuram talvez
os ladrões mais simples, o que eles mesmos poderiam conseguir.
(ibidem, p.87).
Lembramos que a grandeza da obra de Genet não é proveniente dos atos por ele
narrados, mas sim da capacidade lírica que o autor possui de dar beleza ao que seria
considerado abjeto pela sociedade. Sendo assim, o poeta Genet se constrói por, como ele
mesmo observa, invadir o obscuro das almas dos ladrões.
274
O Orfeu santareniano, apesar de ter o epíteto do deus da poesia, o consegue
envolver com palavras líricas os jurados quando depõe no tribunal. Contudo, o canto de
morte por ele propagado reverbera não só no tribunal, mas também na sociedade em que
habita. O motivo da propagação deste canto violento será desvendado com mais
propriedade quando estudarmos os intertextos relacionados ao nazismo.
Todavia, se Orfeu não tem o lirismo em suas palavras, Bernardo Santareno se
aproxima de Jean Genet quando quer trazer a seu texto a mesma consciência desejada pelo
autor francês: desvendar o que obscuramente procuram os criminosos.
Nesse sentido, o estudo acima realizado nos permite acrescentar luz à compreensão
da obscura mente do serial killer Orfeu.
Apesar de ter roubado Edward, não foi a miséria monetária o que levou Orfeu ao
crime. Assim como Jean, o assassino da charneca encontra no prazer sua verdadeira fonte
de ação criminosa.
Além disso, ao escolher ser guiado pelo instinto natural de prazer, os criminosos
precisam adubar seus instintos naturais. Nesse sentido, Jean Genet encontra como adubo
para sua natureza o sofrimento de outrem, de crianças torturadas, estupradas e assassinadas;
Orfeu, por sua vez, além de adubar as terras sagradas da charneca com corpos de suas
vítimas, encontra na obra de Jean Genet uma leitura a tornar mais fértil sua natural mente
assassina.
Por fim, compreendendo a frase trazida ao caderno de Orfeu, podemos afirmar:
assim como os atos de Jean Genet, as ações praticadas por Orfeu não são guiadas pela
revolta, mas sim realizadas por seres que agem conforme aquilo que deles espera a
sociedade. Sendo assim, Orfeu escolhe seguir sua natureza criminosa, pois é esse o
275
comportamento que a sociedade espera daquele que tem em seu histórico de vida a
orfandade e a violência advindas da guerra.
Cabe-nos ainda acrescentar, antes de findarmos esta parte de nossa análise, que a
ligação feita entre violência e homossexualidade é objeto não da obra citada de Jean
Genet, mas também de outros dois autores que foram intertextualizados por Bernardo
Santareno: Truman Capote e Tennessee Williams.
A partir das obras enfocadas, podemos dizer: Geneta homossexualidade como o
caminho natural a ser escolhido por aquele quefoi enjeitado pela sociedade; Capote, por
sua vez, a tem como elemento possível, mas não necessário, ao assassino cruel; Williams
como objeto de culpa, advindo de doenças a serem estudada pela psicanálise.
Não podemos ainda concluir a opinião de Santareno acerca desse tema. É oportuno,
entretanto, colocarmos que o dramaturgo português parece ver como possível os elementos
observados pelos escritores por ele trazidos a seu texto.
Sendo assim, na análise dos intertextos trabalhados por Orfeu, encontramos não
o caminho para compreendermos a existência de um serial killer, mas tamm a existência
de seres considerados abjetos pela sociedade: os homossexuais.
Acrescentamos ainda que os autores acima citados possuem em suas biografias a
homossexualidade como traço comum. Desse modo, podemos dizer, após terem sentido o
desprezo que a sociedade lhes impingiu, os autores manifestariam, através de suas obras,
que também desprezam esse tipo de sociedade.
Resta-nos compreender, através das análises que se seguem, porque esses
homossexuais escolheram trazer ao mundo artes literárias e não “artes assassinas” como
Orfeu e Eurídice.
276
Ou seja, mais do que julgar, devemos percorrer, guiados por Santareno, um caminho
intertextual que nos leve a compreender não só o assassino da charneca, mas todos aqueles
que o considerados criminosos por nossa sociedade (ou, por fim, compreender nossa
própria sociedade hipocritamente criminosa).
III.5- Liberdade e responsabilidade, segundo Jean-Paul Sartre.
Designados para compor o tribunal do ri, oito homens expressam suas opiniões
sobre os “assassinos da charneca”. Dentre esses jurados, o sexto é quem e comenta o
trecho da obra de Jean-Paul Sartre (1905 1980) que foi copiado por Orfeu. Trazemos
abaixo este trecho e o comentário que acerca dele faz o jurado em questão:
(A ler) ‘Assim, inteiramente livre... eu devo existir sem remorso nem
arrependimento, como sou, sem desculpa; desde o instante em que começo
a existir, eu suporto o peso do mundo, sem que nada nem ninguém possa
discutir-me’ (Silêncio breve) Jean-Paul Sartre
(passa o caderno para outro
Jurado) Claro! o coisas como estas que, mal assimiladas, dão volta ao
miolo das gentes novas. O resultado está à vista: Orfeu e Eurídice!
(violência surda) A mim, não me levam vocês; casal de miseráveis, parelha
de carniceiros! Todas estas leituras, quilos de poesia, quilômetros de
filosofia... são máscaras que servem para esconder a única motivação dos
vossos crimes: Dois instintos perversos, degradados, monstruosos!
(SANTARENO, s.d., p.189).
O trecho acima nos revela duas opiniões do sexto jurado. Primeiramente, ele
acredita que determinados pensamentos podem ser mal compreendidos por pessoas como
Orfeu e Eurídice. Além disso, ele julga que os assassinos cometeram os crimes de que são
acusados movidos pela má índole dos instintos que possuem.
Outros jurados, da mesma forma que o sexto, colocam suas opiniões acerca do que
teria originado os assassinos Orfeu e Eurídice. Mais ligado ao catolicismo, o primeiro
277
jurado chama Orfeu de “flagelo de Deus” (ibidem, p. 169). Já o oitavo jurado, mais
próximo ao naturalismo, atribui o temperamento dos assassinos à “Graça expressa em
termos de hormonas, sistema nervoso, hereditariedade, educação, ambiente socio-familiar.”
(ibidem, p.149).
A partir das opiniões acima colocadas, podemos dar continuidade à compreensão do
assassino Orfeu e verificar como o pensamento existencialista divulgado pelo filósofo e
literato francês Jean-Paul Sartre foi intertextualizado por Bernardo Santareno.
Em 1946, com o intuito de esclarecer suas idéias, Sartre proferiu uma conferência
intitulada O existencialismo é um humanismo. No texto em questão, o autor observa que a
filosofia por ele defendida acredita que a existência humana precede a nossa essência.
Sendo assim, para Sartre, o homem primeiramente existe e depois, pelas escolhas que
faz, define quem será.
O filósofo esclarece que a principal idéia existencialista tem sido criticada, pois o
homem até então acreditara em teorias religiosas ou naturalistas que afirmavam que a
essência seria anterior à existência do ser.
No que concerne ao pensamento religioso, Sartre observa que o homem católico
acreditava que Deus criara o ser humano essencialmente bom e, guiado pelo medo de
punição ou de recompensa divina, o homem passaria a existir por meio de ações que o
levariam, respectivamente, ao Inferno ou ao Céu. Salientamos aqui que o filósofo
acrescenta que os católicos muitas vezes colocavam a sabedoria divina como consciente
de quais seres humanos seriam bons ou maus e, nesse sentido, confundiram livre arbítrio e
predestinação.
Observa ainda Sartre que o existencialista tem como ponto de partida uma frase
escrita por Dostoievski: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido” (SARTRE, 1978,
278
p.10). A partir dessa frase, diz o autor, a eternidade do castigo ou da graça divina adquiriu
um sentido falacioso e a existência humana não mais teve como base os comportamentos
ditados pela igreja. Desse modo, conclui, as escolhas não eram mais determinadas pelo
medo da punição divina, mas pela consciência da responsabilidade individual que cada ser
humano teria por suas ações.
Ao referir-se ao pensamento naturalista, o filósofo aborda as idéias de Émile Zola.
Segundo Sartre, o naturalismo representado por Zola trazia sossego à sociedade, pois se um
indivíduo existia como um ser indolente, fraco, covarde ou francamente mau, esses
“desvios sociais” tinham como causa um determinismo orgânico, uma essência vinda da
natureza. Sendo assim, a hereditariedade ou a influência do meio e da sociedade eram os
determinantes responsáveis pelos atos de tais indivíduos.
O existencialista, contudo, é contrário a esse determinismo biológico ou social uma
vez que acredita que a razão de nossos atos está em nós mesmos. Desse modo, o ser
humano age exercendo sua liberdade de escolha e os atos que realiza contribuem para a
essência do que ele será.
Ou seja, como resumiu o próprio Sartre:
(...) Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível
referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável: por outras
palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se,
por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou
imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem
atrás de nós, nem diante de s valores ou imposições que nos legitimem o
comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no
domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e
sem desculpas. (SARTRE, 1978, p. 10)
Percebemos que os pensamentos acima podem ser relacionados aos dos jurados de
O inferno. O primeiro jurado, confundindo predestinação e livre-arbítrio, liga a maldade
279
dos acusados ao castigo de Deus. Como os naturalistas, o sexto e o oitavo jurados colocam,
por sua vez, que os maus elementos existem por uma mácula genética ou social.
Contudo, se os jurados insistem em compreender o Orfeu santareniano a partir de
teorias religiosas ou naturalistas, o “assassino da charneca” vê em seus atos a liberdade de
quem escolheu, sem arrependimentos ou desculpas, definir-se como um ser criminoso.
Na obra O ser e o nada, encontramos o pensamento copiado por Orfeu:
(...) Assim, totalmente livre, indiscernível do período cujo sentido escolhi
ser, tão profundamente responsável pela guerra como se eu mesmo a
houvesse declarado, incapaz de viver sem integrá-la à minha situação, sem
comprometer-me integralmente nessa situação e sem imprimir nela a minha
marca, devo ser sem remorsos nem pesares, assim como sou sem desculpa,
pois, desde o instante de meu surgimento ao ser, carrego o peso do mundo
totalmente só, sem que nada nem ninguém possa aliviá-lo. (SARTRE, 1997,
p.680).
Ao compararmos o trecho escrito por Sartre com o que foi transcrito por Orfeu, dois
elementos se tornam importantes. O primeiro deles é que Orfeu retira de sua transcrição a
referência direta que Sartre faz ao período da guerra. O segundo, que poderia ser uma
mudança ocasionada por uma tradução equivocada, refere-se à troca da palavra aliviar
por “discutir
86
. Vejamos os possíveis significados dessas mudanças.
Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, a obra O ser e o nada foi escrita por
Sartre em uma Paris ocupada pelos nazistas. Sartre divide seu ensaio em quatro partes e
uma conclusão. O trecho em questão pertence ao final do capítulo I da quarta parte,
intitulado Liberdade e responsabilidade.
86
Para comprovar que a tradução utilizada por Orfeu não corresponde ao texto de Sartre, transcrevemos aqui
o trecho a que fazemos referência: “Ainsi, totalement libre, indiscernable de la période dont j’ai choisi d’être
le sens, aussi profondément responsable de la guerre que si je l’avais moi-même clarée, ne pouvant rien
viver sans l’intégrer à ma situation, m’y engager tout entier et la marquer de mon sceau, je dois être sans
remords ni regrets comme je suis sans excuse, car, s l’instant de mon surgissement à l’être, je porte le
poids du monde à moi tout seus sans que rien ni personne puísse l’alléger.” (SARTRE, 1949, p. 641)
280
Nesse capítulo, uma das idéias defendidas por Sartre é a de que o homem sempre
possui a liberdade de escolher suas ações e que, portanto, ele é inteiramente responsável
não pelo que ocorre em sua vida, como também pelo que ocorre no mundo como um
todo. Ou seja, no que diz respeito ao trecho acima, o homem é inteiramente responsável
pela guerra que acontece e, mesmo que escolha se omitir ou lutar, a guerra é sua também.
Aplicando essa idéia à peça santareniana, podemos dizer que Orfeu coloca em sua
capacidade de escolha a responsabilidade pelos atos cometidos. Além disso, cada jurado,
mesmo não tendo cometido os atos de pederastia e de homicídio, também possui
responsabilidade por esses crimes.
Através de comparações entre as idéias de Sartre e as colocadas na peça
santareniana, abordemos primeiramente a responsabilidade de Orfeu.
Ao referir-se à influência que o passado de cada homem pode ter em suas ações
futuras, explica-nos Sartre:
Pois bem: a significação do passado acha-se estreitamente dependente de
meu projeto presente. Não significa, de forma alguma, que eu possa variar
conforme meus caprichos o sentido de meus atos anteriores, mas sim que,
muito pelo contrário, o projeto fundamental que sou decide absolutamente
acerca da significação que possa ter para mim e para os outros o passado
que tenho-de-ser. Com efeito, só eu posso decidir a cada momento sobre o
valor do passado: não é discutindo, deliberando e apreciando em cada caso
a importância de tal ou qual acontecimento anterior, mas sim projetando-me
rumo aos meus objetivos, que preservo o passado comigo e decido por meio
da ação qual o seu sentido. Quem decidirá se aquela crise mística por que
passei aos quinze anos foi’ puro acidente de puberdade ou, ao contrário o
sinal de uma conversão futura? Eu mesmo, desde que decida – aos vinte ou
trinta anos converter-me. O projeto de conversão confere de uma só vez a
uma crise de adolescência o valor de uma premonição antes não levada a
sério. Quem decidirá se minha estada na prisão, depois de um furto, foi
frutuosa ou deplorável? Eu mesmo, conforme venha a desistir de roubar ou
me manter incorrigível.(...). (ibidem, p. 612 - 613).
Como observamos anteriormente, o advogado de defesa de Orfeu coloca aos
jurados que a Primeira Guerra Mundial trouxe ao acusado a orfandade e a pobreza. Além
281
disso, após o término da guerra, acrescenta o mesmo advogado, Orfeu foi exposto a maus
tratos físicos e psíquicos, tanto no lar adotivo em que habitou quanto nas casas de correção
em que esteve preso. Sendo assim, conclui, o passado de Orfeu justificaria suas ações
criminosas.
Salientamos ainda uma questão que não foi tratada pelo advogado, mas que também
aparece como sendo uma das causas da violência desmedida manifestada por Orfeu. Nas
ações retratadas por Santareno, tomamos conhecimento de que o assassino ingere
freqüentemente comprimidos excitantes designados no mercado como “Pro-plus”
(SANTARENO, s.d., p. 29).
Recordamos que o histórico do assassino Ian Brady, por ser a personagem real que
inspirou a ficção santareniana, assemelha-se ao de Orfeu. Ian também foi criado por pais
adotivos. Além disso, roubos, atos sádicos e consumo excessivo de bebidas alcoólicas
condenaram Ian a habitar desde muito cedo as casas de correção inglesas.
Lembramos ainda que, nos intertextos trabalhados por Santareno, outras
personagens possuem um passado semelhante ao de Orfeu e Ian.
Em A sangue frio, os assassinos Richard Hickock e Perry Smith se conheceram na
Penitenciária Estadual do Kansas. Nesse ambiente degradado, os dois tomaram contato com
outros criminosos e decidiram cometer o assassinato dos Clutter. Além disso,
acrescentamos, da história de vida de Perry também fazem parte a orfandade, a violência
das casas de correção e o vício em substâncias medicamentosas.
Na obra O diário de um ladrão, Jean Genet igualmente tivera na orfandade suas
primeiras lembranças de infância. Soma-se a essa história inicial de vida o roubo aos dez
anos, a internação freqüente em colônias penitenciárias desde então e a vida desregrada em
submundos povoados por ladrões e assassinos.
282
Se aplicarmos o pensamento de Sartre a esses seres, o histórico desregrado de suas
vidas, o ambiente que eles freqüentaram até se tornarem assassinos, o é premonição dos
criminosos que eles se tornariam, mas sim antecedentes que importam porque cada um
deles escolheu se manter incorrigível.
Jean Genet corrobora com a opinião sartriana ao dizer que se tornou abjeto porque
quis confirmar o que a sociedade dele esperava. Hickock, fruto de uma família unida e,
portanto, ser que contraria parte das expectativas naturalistas, também fortifica o
pensamento de Sartre ao declarar que entrara na vida de extorsões simplesmente porque
decidira obter mais dinheiro. Orfeu, por fim, ao repetir o dizer de Sartre, atribui seus crimes
à sua própria decisão de projeto presente e não ao histórico de vida que possui. Ou seja, ao
contrário do que diriam os naturalistas, esses personagens não se tornaram criminosos por
influência do meio, mas sim porque escolheram conscientemente serem ladrões, assassinos
ou pederastas.
Em relação ao macrocosmo vivido por Sartre na época em que escreveu o livro,
cabe-nos fazer algumas considerações.
Aos quatorze anos, Hitler vive a morte do pai alcoólatra, aos dezoito, sua mãe falece
de cancro e, a partir deste momento, o futuro líder nazista tem de viver, até os vinte e um
anos, em casas de orfandade. Além disso, habitando na Alemanha do entre-guerras,
Hitler enfrentou a miséria monetária e a solidão em seu início de vida adulta. Por fim, no
ano de 1924, já exercendo funções militares, passou seis meses na prisão.
Assim como Hitler, a orfandade e a penúria foram realidades para muitos alemães
do pós-primeira guerra. A orfandade veio das baixas alemãs ocorridas durante a batalha. A
penúria, dos tratados que impuseram sanções não monetárias, mas também territoriais à
nação alemã.
283
Segundo alguns pensamentos, dentre eles, como vimos, o do advogado de defesa de
O julgamento de Nuremberg, os crimes cometidos pelos nazistas poderiam ser justificados
pelo panorama acima retratado.
Além disso, se aplicarmos o raciocínio naturalista aos alemães e ao próprio líder do
nazismo, as ações criminosas cometidas por Adolf Hitler e por seus seguidores seriam fruto
do meio em que eles habitaram.
Contudo, de acordo com a filosofia de Jean-Paul Sartre, as ações criminosas – sejam
elas de indivíduos comuns ou de governantes ou governados nazistas não são
responsabilidade de uma história passada, mas sim de escolhas presentes que cada um faz
fundamentado no projeto do que “se quer ser”.
Ou seja, tendo como base o pensamento de Sartre, podemos concluir que: se os
nazistas escolheram um presente de holocausto, o fizeram por seu desejo futuro de poder e
não por seu passado de sofrimentos.
Além disso, seguindo o raciocínio anterior, os crimes de homicídio cometidos por
Orfeu não são fruto de seu passado (ou, se preferirmos a nomenclatura naturalista, do meio
a que esteve submetido”), mas sim de uma vontade futura de poder ligada ao pensamento
nazista.
Orfeu, portanto, está correto quando, por intermédio de Sartre, atribui a si, e não a
outrem, a responsabilidade dos crimes cometidos.
Passemos agora a examinar qual seria a responsabilidade dos jurados que analisam
os crimes de Orfeu e Eurídice.
Como já dissemos no início do estudo desse intertexto trabalhado por Santareno,
alguns jurados colocam na religião e no determinismo científico as causas do
comportamento marginal de Orfeu. Contudo, devemos salientar, esses mesmos jurados que
284
querem atribuir a elementos externos a culpa por existir tal ser criminoso, possuem
pensamentos viciosos semelhantes aos do assassino que julgam e, mesmo assim, pertencem
à parcela dos que se dizem “não-culpados”.
Comecemos esta parte da análise com os jurados já aqui citados.
O sexto jurado, que o trecho de Sartre transcrito por Orfeu, acusa os “assassinos
da charneca” de seguirem os “instintos perversos, degradados, monstruosos” (ibidem,
p.189) que possuem. Todavia, esse mesmo jurado sente saudades da guerra, do tempo em
que podia borrifar “(...) de alto a baixo com uma linda chuva de metralhadora” (ibidem, p.
37) indivíduos homossexuais como Edward e Orfeu. Além disso, acrescenta posteriormente
acerca dos assassinos da charneca”:
Encantadoras criaturas! Em primeiro lugar, um tirinho na nuca de cada um
deles: Oh, ficava apenas um buraco redondo e muito estético, desenhado a
vermelho... um lindo botão de rosa. Depois, uma pequena pilha com seus
gentissimos cadáveres. Em seguida, por causa da decência, esta
confortável coberta. (Passa o cobertor para outro jurado) Finalmente, um
regador com gasolina. Pronto! Em dez minutos, acabávamos com toda essa
fantochada. Ah, Justiça, advogados, tribunais...! (Tosse, cuspindo no lenço)
numa vez quem dera apanhar-me nessa época! varri eu vinte e cinco
alemães, por esse processo. Sozinho, e no tempo record de treze minutos!
Julgamentos, juízes: Words, words and words!... (ibidem, p.51).
Ou seja, apesar de ter acusado os assassinos da charneca” de terem seguido a
índole de seus instintos, o sexto jurado tamm é guiado por instintos semelhantes quando
mata vinte e cinco alemães ou quando deseja atirar em Orfeu e Eurídice e queimar seus
corpos.
O primeiro jurado, por sua vez, acusa Orfeu de ser um “flagelo de Deus” (ibidem, p.
169), entretanto, como já vimos anteriormente, seus olhos não conseguem esconder o
prazer sádico que sente ao ouvir os gritos ocasionados pela tortura a que foi submetida a
pequena Ann Gilbert. Outrossim, colocando-se como seguidor das instituições que
285
defendem a e os bons costumes católicos, o jurado em questão se posiciona a favor da
aplicação da pena de morte aos acusados.
Desse modo, o primeiro jurado coloca o homem não como um ser em que habita, a
priori, a bondade divina, mas sim como aquele que possui o mal dentro de si. Além disso,
acusa no outro os desejos sádicos que ele mesmo possui. Por fim, ao invés de crer em uma
Igreja de perdão e piedade, o jurado em questão acredita em uma instituição católica
punitiva, capaz de corroborar com o Estado na aplicação da pena de morte.
Ou seja, apesar de ter “asco e ódio” (ibidem, p.188) dos acusados, o primeiro jurado
tem um instinto sexual obsceno e um desejo assassino que são comparáveis ao dos
criminosos.
Antes de passarmos ao oitavo jurado, de quem também falamos no início desta
análise intertextual, observemos a questão religiosa e naturalista que manifestam os outros
jurados.
Assim como o primeiro jurado, o segundo e o quinto trazem a seus comentários
juízos de valor ligados à Igreja católica.
O segundo jurado sente medo em habitar no mesmo mundo em que habitam
assassinos como Orfeu e Eurídice e pede, com fé, que Deus seja condescendente com ele e
com seu filho, livrando-os deste inferno terreno.
O quinto jurado em Sophia e Eurídice a responsabilidade dos atos de Joseph e
Orfeu. Ou seja, assim como o pensamento expresso no antigo testamento, vê nas mulheres-
Eva a causa dos viciosos atos dos homens-Adão
87
.
87
Observamos que a opinião aqui expressa pelo jurado não é comum ao que manifestam as demais partes do
julgamento. Lembramos que as mulheres foram retiradas do júri por terem uma natureza de delicada
substância” (ibidem, p. 23). Além disso, ao contrário do que foi colocado por este jurado, a defesa vê Eurídice
como a mulher que foi seduzida pelo canto de morte de Orfeu.
286
Desse modo, apesar de o emitirem discursos que mostram possuírem os mesmos
desejos perversos que habitam Orfeu, o segundo e o quinto jurados se aproximam daquele
primeiro quando acreditam, por meio de uma ideologia católica, que uma força alheia é a
responsável pelos homens habitarem ou não em um mundo próximo à bondade do Paraíso.
Quanto ao quarto e sétimo jurados, poderíamos aproximar suas opiniões às do sexto.
O quarto jurado acusa os pederastas de serem “perversos de instinto e de caráter”
(ibidem, p. 38) e os jornais que divulgam esses atos criminosos de serem páginas de lama
atiradas a “sapos do pântano” (ibidem, p. 138). Entretanto, acerca dos mesmos jornais,
declara:
(...) Nas notícias que ele dá crimes de morte, perversões, roubo e
chantagem, incestos ... encontro uma espécie de companhia; não sei... um
certo conforto; a certeza de que ‘não estou no mundo’. Qualquer coisa
assim. (Cortante e azedo:) Ninguém é normal, hoje em dia. Às vezes, penso
que a hipocrisia e o medo é que nos mantêm do lado da lei. Medo; medo e
nada mais! (ibidem,
loc. cit.).
O fragmento acima mostra um indivíduo que encontra alento nos jornais por saber,
por meio das notícias divulgadas por estes, que outros no mundo possuem os mesmos
instintos que ele. Acrescenta ainda, fato não admitido pelos outros jurados, que a lei é
cumprida pela hipocrisia e pelo medo e não por serem os indivíduos que julgam diferentes
dos que são julgados.
Lembramos neste momento da análise que esta idéia de proximidade entre as
vítimas e os algozes havia sido abordada quando analisamos o filme O julgamento de
Nuremberg.
Acrescentamos ainda que o pensamento de que a boa conduta é ligada ao medo do
Estado é semelhante à concepção colocada na análise intertextual que realizamos de Ivan
Karamazov. Ivan coloca que se os mandamentos divinos não nos obrigassem, ao homem,
287
tudo seria permitido. Ao ouvir estas palavras, alguns compreenderam, dentre eles
Smierdiákov e o Orfeu santareniano, que todos os atos poderiam ser cometidos, inclusive
os de assassinato.
Ou seja, aliando o pensamento do quarto jurado aos intertextos já estudados,
podemos concluir que se não houvesse lei, política ou religiosa, o homem não agiria dentro
da “normalidade”.
O sétimo jurado, por sua vez mostrando-se como um ser “snob; superiormente
irônico, não misturável (SANTARENO, p. 38) inicialmente coloca Edward, Orfeu e
Eurídice como seres pertencentes a uma mesma classe, a dos animais. Posteriormente,
entretanto, que Orfeu “tem raça, tem idéias (...) tem aideal (ibidem, p.118) e, sendo
assim, o deveria ser exterminado, mas sim servir de exemplo aos que, como esse jurado,
acreditam na superioridade de alguns. Desse modo, conclui, Orfeu seria “um estupendo, um
belíssimo S.S” (ibidem, p. 170) e Edward, um animal inferior a ser exterminado em campos
de concentração.
Os elementos colocados nos permitem dizer que o quarto e o sétimo jurados, assim
como o sexto, trazem ao julgamento idéias naturalistas. Segundo essas idéias, o homem é
um ser habitado pelo instinto de violência e esse instinto seria o responsável pelos
assassínios cometidos, sejam esses realizados por simples prazer ou pela sobrevivência dos
mais fortes em detrimento dos mais fracos ou inferiores.
Podemos, portanto, estabelecer uma primeira conclusão à análise dos jurados.
Apesar de condenarem Orfeu à prisão perpétua, os jurados não acreditam que o acusado
seja verdadeiramente culpado. Alguns, valendo-se de pensamentos religiosos ou
naturalistas, atribuem a culpa à essência do humano. Outros, porque cometeram ou desejam
288
cometer os mesmos atos praticados pelo acusado, não qualificam as ações de Orfeu como
criminosas.
Antes de aplicarmos essa conclusão ao pensamento sartriano, devemos analisar os
pontos de vista do terceiro e do oitavo jurado.
Para o terceiro jurado, os crimes em questão não são importantes, pois ele vê no
julgamento de Orfeu apenas uma oportunidade de se tornar mais conhecido e, dessa forma,
conseguir o almejado cargo de “diretor de serviços”.
O oitavo jurado, mais consciente de tudo o que é colocado, tenta trazer ao
julgamento uma análise que o leve a compreender a sociedade de seu tempo. Podemos
dizer que esse jurado pensa como os naturalistas, uma vez que atribui ao Estado, à
sociedade e às guerras a mutilação dos indivíduos. Contudo, próximo a uma opinião
sartriana, o jurado em questão se coloca como também responsável por uma sociedade que
aparentou vítimas a verdugos.
À sua teoria existencialista, Jean-Paul Sartre traz certas nomenclaturas que
especificam suas idéias. Uma dessas é a palavra “má-fé”. O filósofo designa como seres de
“má-fé” os que realizam o auto-engodo de depositar em alguma influência externa a
responsabilidade das ações humanas.
No que concerne à peça santareniana, poderíamos dizer, a maior parte dos jurados
possuem essa “má-fé” conceituada por Sartre. A exceção se faz, em parte, pelo terceiro e
pelo oitavo jurados. Não podemos atribuir “má- ao terceiro jurado, pois seu ego
narcisista não permite que ele sequer comente o ato criminoso cometido por Orfeu. Quanto
ao oitavo jurado, como pudemos observar, a responsabilidade e a “má-fé” sartrianas se
confundem.
289
Podemos deduzir, então, porque a frase de Sartre trazida aO inferno finda com o
verbo “discutir” ao invés do verbo “aliviar”.
Como já salientamos, Orfeu acredita ser um indivíduo totalmente livre e, como tal,
existe como assassino sem remorsos ou arrependimentos. Além disso, consciente do
caminho por ele escolhido, declara-se responsável pelas ações realizadas.
Contudo, modificando o sentido original do que fora pensado por Sartre, o
“assassino da charneca”, talvez antecipando seu projeto de um dia ser julgado, acrescenta
que seus atos não podem ser “discutidos” por outros.
Até este momento de nosso trabalho, pudemos traçar alguns elementos da
personalidade de Orfeu. Observemos então esses elementos com o intuito de compreender
o termo colocado pelo assassino.
Orfeu acredita ser um indivíduo superior e, como tal, coloca em si o direito e o
dever de matar seres que julga inferiores (um homossexual, uma judia e um negro). Além
disso, apesar de ter entre suas vítimas aquele que possui um “desvio” sexual, Orfeu também
tem comportamentos que o afastam da normalidade, pois se mostra não como
homossexual, mas também como pedófilo e necrófilo. Por fim como veremos com mais
propriedade ao discutirmos a filosofia de Hitler aliando-se aos nazistas, Orfeu não se
julga um criminoso, mas sim um homem que realiza atos cruéis em nome de sua vontade de
poder e da soberania dos mais fortes.
O perfil acima retratado mostra que a interdição feita por Orfeu aos demais homens,
“sem que nada nem ninguém possa discutir-me” (SANTARENO, p. 189), relaciona-se a
dois fatores: não se pode questionar aquele que se declarou responsável pelos atos
cometidos e, além disso, o que se declara superior aos demais seres não pode ter seus atos
colocados em discussão.
290
Contudo, se Orfeu assim compreendeu a frase de Sartre devemos observar que, mais
uma vez, o assassino desvirtuou o que foi pensado pelo autor original do texto copiado.
Segundo o pensamento emitido pelo filósofo francês, o homem é livre para fazer as
escolhas de sua existência e, deste modo, se ele existe em meio a um mundo em guerra a
responsabilidade é sua. Ao concluir esta idéia, Sartre observa: “na guerra não vítimas
inocentes(SARTRE, 1997, p. 680), portanto ninguém nem nada pode abrandar o peso da
responsabilidade que cada um de nós tem pelas mortes advindas deste conflito hostil.
Cabe-nos agora comparar este pensamento sartriano à situação enfocada em O
inferno.
Santareno cria Orfeu como um homem que sabe ser o responsável pelos próprios
crimes cometidos, todavia, sem tirar do “assassino da charneca” esta responsabilidade, nos
mostra que os jurados não poderiam discutir os atos cometidos por Orfeu uma vez que eles
também são culpados.
Sendo assim, por intermédio da análise deste intertexto, podemos acrescentar: por
meio do texto de O inferno, Santareno nos mostra que aqueles que se colocam como os que
discutem a culpabilidade dos réus deveriam saber-se também responsáveis e, portanto,
culpados pelas mortes de uma outra guerra, a de nossa desmedida violência moderna.
Desse modo, podemos enfim compreender as modificações realizadas na frase
sartriana copiada por Orfeu.
A referência direta à guerra foi retirada da frase, pois os atos de Orfeu, apesar de se
relacionarem à ideologia de Hitler, não se restringem apenas às mortes decorrentes da
Segunda Guerra Mundial. Como continuidade de um tempo atroz, elas são manifestações
de que o homem é responsável por escolher, no pós-guerra, construir um mundo em que
habita a violência desmedida.
291
Além disso, podemos entender a substituição do verbo “aliviar” pelo verbo
“discutir” de duas formas.
Em Orfeu, esta substituição desvirtua o pensamento sartriano, mostrando, como
prevenira o sexto jurado, que certas idéias podem ser mal compreendidas por assassinos
como Orfeu e Eurídice.
Em Santareno, entretanto, poderíamos entendê-la como uma tentativa de
acrescentar mais uma idéia ao que já fora pensado por Sartre: devemos “discutir” a
violência para compreendermos que a culpabilidade é de todos e que nenhum
determinismo, seja ele católico ou naturalista, pode aliviar” no homem o peso do mundo
contemporâneo.
Antes de findarmos a análise de mais esse intertexto, devemos evidenciar uma outra
idéia de Sartre: a não existência de vítimas inocentes em uma guerra.
O primeiro advogado de defesa observa que o tribunal Joseph como uma pessoa
que foi corrompida, progressiva e maquiavelicamente, por Orfeu. Contudo, acrescenta o
mesmo advogado, na história de vida de Joseph habitam vários crimes.
Aos quatorze anos, Joseph fora condenado por assalto com ofensas corporais,
condenação que se repetiu aos dezesseis. Além disso, no início de 1966, munido de
correntes de ferro, Joseph atacou um jovem. O advogado ainda salienta que Joseph nunca
fora trabalhador e que é sustentado atualmente por um jornal sensacionalista que paga suas
despesas em troca de histórias acerca dos “assassinos da charneca”.
O segundo advogado de defesa traz ao tribunal frases de Sade que foram copiadas
por Joseph em um caderno. A primeira delas fala da violão e do assassinato como ações
de prazer e não como crimes sociais. A segunda, observa Deus como uma doença, um
cancro, que devora os instintos humanos. Acrescenta ainda esse advogado que Joseph já lia
292
textos sobre perversão e violência muito antes de ter sido iniciado por Orfeu nas obras de
Sade.
Acrescentam ainda os advogados de defesa que os pais de Joseph, por viverem em
condições miseráveis, expulsaram-no de casa aos doze anos. Após essa idade, Joseph
passou a viver do roubo e da extorsão. Quando conheceu Orfeu, a esses modos de ganhar
dinheiro, Joseph acrescentou a venda de fotos pornográficas infantis, dentre elas, a da
pequena Ann, menina por ele conduzida até a presença de Orfeu.
Desacreditar Joseph como testemunha de acusação é o objetivo almejado pelos
advogados de defesa de Orfeu. Contudo, se analisarmos os fatos por eles colocados e
acrescermos a esses a questão de que Joseph pertence não aos que devem ser condenados,
mas sim aos que condenam, podemos voltar a uma das questões abordadas por Sartre.
Da história de vida de Joseph constam não só a orfandade, mas também atos
criminosos como o roubo, a extorsão e o assassinato. Contudo, através da ação de delatar
Orfeu e Eurídice, Joseph exerceu sua liberdade de escolha e passou a ser visto pela
sociedade como testemunha de defesa. Sendo assim, sua história passada não é premonição
de seu retrato presente, mas sim exemplo de que o homem pode escolher o caminho a ser
trilhado.
Observamos aqui que nos abstemos do juízo de valor a colocar Joseph como
culpado ou inocente pelos crimes cometidos. Preferimos, seguindo o que nos foi apontado
pela análise, somente observá-lo como indivíduo que exerceu sua liberdade de escolha e
que, por causa desta, obteve a aceitação de seus atos pelo Estado.
Eurídice Oliver, entretanto, é trazida a julgamento na posição de ré e devemos
analisar, por meio da visão sartriana, a responsabilidade das ações pelas quais ela é
acusada.
293
trouxemos à nossa análise a história de vida de Eurídice. Recordemos aqui, que
dentre as infelicidades por ela sofridas constam o abandono do pai (que, segundo ela,
morreu na guerra) e a pouca convivência com uma mãe (uma stripper e prostituta).
Contudo, diferentemente dos criminosos anteriormente analisados, em sua infância e
adolescência, Eurídice não cometera atos ilegais. Somente após conhecer Orfeu e, segundo
os advogados de defesa, por causa do amor que por ele sente, Eurídice se envolveu com
crimes de natureza violenta e sexual.
Fazendo a defesa de Eurídice, dizem seus advogados:
Será ela um mero agente passivo nas mãos do Orfeu? É pelo menos esta a
tese da defesa, que se esforça por no-la apresentar como uma passional,
uma mulher fatalmente apaixonada, uma verdadeira tima do Orfeu, uma
mísera incapaz de afirmação pessoal, impotente para discernir e
selecionar. Pouco a pouco o amante ter-lhe-ia minado os sensos éticos e de
responsabilidade, pulverizando-lhe a vontade e os naturais sentimentos de
auto-apreço.(...) (SANTARENO, s.d., p. 81).
Ou seja, os advogados em questão defendem que a paixão seria o sentimento que
tirara de Eurídice a liberdade de selecionar as ações que ela realizaria. Acrescentam ainda
que a ré, imbda por esse sentimento, não seria capaz de discernir o certo do errado.
Para Sartre, o indivíduo não pode se eximir das ações cometidas alegando coação,
pois, segundo o filósofo, quando alguém segue as idéias alheias, o faz por liberdade e não
porque foi foado. Além disso, observa o escritor:
O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma
bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a
certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim,
que o homem é responsável por essa sua paixão. (SARTRE, 1978, p.10).
A análise da culpabilidade de Eurídice será por nós retomada ao estudarmos o
intertexto mitológico existente em O inferno. Podemos, todavia, concluir, baseados no
parágrafo acima, que, segundo Sartre, Eurídice seria culpada pelos atos cometidos.
294
Lembramos que no filme O julgamento de Nuremberg os nazistas acusados pelo
tribunal foram condenados mesmo alegando que agiram conforme ordens superiores. Ou
seja, na película cinematográfica, assim como nas idéias sartrianas, a coerção não exime os
indivíduos da culpa que devem carregar.
Recordamos ainda que o filme observa que os americanos, apesar de possuírem
crimes equiparáveis aos dos nazistas, não serão julgados. O motivo, salienta o filme, é que
os americanos detêm o poder e, portanto, as ações por eles realizadas são tidas como
“dentro da lei”.
Com o intuito de compreendermos não esse não julgamento dos americanos, mas
também o não julgamento de Joseph, atentamos que Sartre, ao explicar a visão
contemporânea que temos da Queda da Bastilha, nos faz a seguinte observação: “(...) o
historiador é ele mesmo histórico, ou seja, que se historiza ao iluminar ahistória’ à luz de
seus projetos e dos projetos de sua sociedade” (SARTRE, 1997, p. 616).
Ou seja, se aplicarmos o pensamento de Sartre aos eventos acima mencionados, o
exército americano e os burgueses da França de 1789 não foram considerados culpados,
mas sim heróis, porque os historiadores contaram os acontecimentos conforme o projeto
que tinham para suas sociedades futuras. Além disso, Joseph não seria considerado
culpado, mas sim testemunha de acusação, porque “os historiadores” visam à condenação
de Orfeu como um assassino.
A pergunta que devemos fazer, e que provavelmente foi feita por Orfeu quando
decidiu seguir os ideais nazistas, é se Hitler é considerado um criminoso porque assim o
querem os historiadores ou porque ele realmente o é.
Para respondermos esta questão com mais clareza, traremos textos que retratam
ações realizadas pelos nazistas durante o período da Segunda Grande Guerra Mundial.
295
III.6- Nazismo e criminalidade: fatos e pensamentos.
No início de nossa análise intertextual, observamos que estudaríamos os textos
citados em O inferno seguindo a ordem cronológica em que foram escritos. Contudo, duas
exceções a essa regra são necessárias.
A primeira, realizada, ocorreu no momento em que analisamos a obra O homem
revoltado (1951). Naquela ocasião, seguimos a cronologia colocada por Camus para
podermos compreender a historicidade da revolta humana e, sendo assim, realizamos o
estudo de obras escritas por Sade (1740-1814), Lermontov (1814-1841), Dostoievski
(1821-1881) e Nietzsche (1844-1900).
A segunda, que iniciamos neste momento, faz-se necessária para compreendermos
os fatos e os pensamentos diretamente ligados à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e ao
líder nazista Adolf Hitler. Com esse intuito, trazemos a este momento de nossa análise o
estudo de cinco obras: O interrogatório (escrito por Peter Weiss, 1964), Ezra Pound (G. S.
Fraser, 1960), O julgamento de Nuremberga (Didier Lazard, 1947), Hitler m’a dit
(Hermann Rauschning, 1939) e Minha Luta (Adolf Hitler, 1924).
III.6.1- Peter Weiss e seu Canto para as mortes de Auschwitz.
Na cidade de Frankfurt, entre os anos de 1963 e 1965, as atrocidades cometidas em
Auschwitz foram julgadas. Peter Weiss (1916 1982), judeu alemão que se naturalizou
suíço em 1946, assistiu a algumas audiências desse julgamento e, a partir das atas dos
processos, criou a peça documental O interrogatório (1964).
296
Após o título de seu texto, Peter Weiss especifica que construiu um “oratório em 11
cantos. Esclarecemos que a palavra “oratório” é utilizada para designar um gênero
musical dramático que possui um assunto religioso. Seguindo esse raciocínio, o autor
dividiu o seu texto não em atos, mas sim em “Cantos” e entoou em cada um deles uma
espécie de oração a lembrar como foram assassinadas as vítimas que ocuparam o Campo de
Concentração de Auschwitz.
Orfeu retira do “Canto dos fornos crematórios” o trecho que copiará em seu caderno
e transforma o texto de Weiss em mais uma das notas que comem seu canto de morte.
Vejamos a seguir como Weiss escreveu seu oratório e como Orfeu o ouviu para criar uma
outra canção.
Cada “Canto” de O interrogatório nos descreve como os prisioneiros eram tratados
em Auschwitz. Em comum, as partes do texto possuem dois elementos que se destacam: a
enumeração de atrocidades cometidas contra os prisioneiros e a certeza de impunidade que
os acusados mostram diante da corte.
Comecemos nossa análise por algumas das atrocidades retratadas na peça de Weiss.
Segundo uma testemunha, os trens que chegavam ao Campo de Concentração
possuíam sessenta vagões, sendo que cada um deles comportava de 60 a 80 “cabeças”
(WEISS, 1970, p. 15). Na plataforma, os presos eram separados e classificados. Aos mais
fracos, os nazistas destinavam a morte imediata (geralmente em câmaras de gás). Aos mais
fortes, um mero tatuado na pele e uma classificação em três categorias: “os prisioneiros
políticos, / os criminosos / e os presos raciais” (ibidem, p.123).
Os que passavam por esta primeira seleção, a da plataforma, eram alojados em
barracões. Cada barracão admitiria 500 homens, porém, como o número de trens a cada dia
era maior, observa outra testemunha, cada alojamento passou a suportar 1000 presos.
297
Ao serem admitidos nessa nova forma de moradia, cada preso tinha que se
acostumar com uma rotina diária. Acordavam muito cedo e eram levados pelos guardas às
latrinas. Depois, os presos se dirigiam aos barracões em que recebiam sua parcela de
“raçãomatutina. Logo após, eles atravessavam uma jornada de trabalho. Ao final do dia,
os presos voltavam aos barracões para comer uma sopa rala e dormir.
Cada preso recebia, em sua chegada ao barracão, uma muda de roupa que deveria
ser usada todos os dias, estas roupas eram geralmente esfarrapadas e provenientes dos
presos que haviam morrido. Além disso, os guardas lhes entregavam uma bacia que lhes
serviria para três coisas: se lavar, tomar a sopa e fazer as necessidades fisiológicas fora do
horário estabelecido.
No ar, conta um dos sobreviventes, os habitantes do Campo podiam sentir um fedor
constante, uma mistura do cheiro que vinha das latrinas com o de uma fumaça “de coisa
doce e chamuscada” (ibidem, p. 18).
Um dos presos esfarrapados gritou, certa vez, aos demais detentos: Vejam/ olhem a
fumaça do outro lado dos barracões. Aquilo é suas mulheres e seus filhos./ Também para
vocês que entraram aqui/ só vai haver uma saída:/ a boca das chaminés.” (ibidem, 37).
E esse grito, segundo uma das testemunhas, apesar de ter sido calado, habitava a
mente de todos que ali estavam alojados.
À espera da fatídica morte, os que tinham sido considerados como “os mais fortes”
se submetiam às leis de Auschwitz. A maior parte, apesar da pouca alimentação que
recebiam, devia se sujeitar a uma árdua rotina de trabalhos braçais forçados (dentre eles, o
de cavar valas destinadas aos mortos ou o de construir novas instalações no Campo).
Outros serviam de cobaias para experiências biológicas (dentre elas, as de esterilidade e
reprodução feminina). O restante, uma minoria, exercia trabalhos burocráticos.
298
Um dos presos pertencente a esta minoria relata em seu depoimento:
Começamos a viver/ dentro de novas regras/ e nos integramos/ nesse
universo./ Era o único mundo normal/ para quem quisesse sobreviver./ A
primeira condição/ era ter saúde e força física./ Eu seguia de perto/ aquelas
que estavam muito fracas/ para comer parte da sua ração./ Vigiava/ as que
tinham um lugar melhor para dormir/ e estavam para morrer. (...) Nossas
ambições tinham apenas um fim:/ furtar alguma coisa./ Se era normal/ que
nos tivessem roubado tudo,/ então era normal / que s também
roubássemos.(...)/ Era normal/ que muitas pessoas morressem à nossa
volta,/ como também era normal/ que pudéssemos morrer a qualquer
momento./ Era normal,/ a ausência de emoção/ e a insensibilidade/ à vista
dos cadáveres./ Era normal/ que entre nós houvesse mulheres/ dispostas a
espancar as outras/ para ajudar as vigilantes./ Aquela que se tornava/
auxiliar da responsável pela prio/ não estava mais nos últimos degraus,/ e
aquela que conseguia se tornar simpática/ para as chefes da guarda/ subia
ainda mais./ escapava quem tinha capacidade./ Quem, dia a dia, sem
nunca se distrair,/ defendia o seu lugar e a sua ração./ As incapazes,/ as de
espírito lento,/ as amáveis,/ as desequilibradas,/ as desadaptadas, as que se
lamentavam/ ou que se compadeciam da sua sorte,/ eram esmagadas.
(ibidem, p. 40 - 41).
As palavras desse preso, denominado como Testemunha 5 na peça de Weiss, o
significativas, pois revelam, aos olhos dos que não habitaram o Campo, uma realidade: os
que foram colocados como “mais fortes”, na plataforma, deveriam agir, já dentro do
Campo, como seres que privilegiam seus mais cruéis instintos de sobrevivência.
Sendo assim, em uma luta pela vida, revela-nos a Testemunha 5, algumas vítimas se
tornaram verdugos e, como tais, roubaram, desejaram a morte de outrem e eram insensíveis
diante das atrocidades cometidas em Auschwitz.
Ou seja, como um animal que segue seus instintos, o sobrevivente tinha que se
adaptar ao meio e, assim como fizeram com ele, desejar o extermínio do que lhe era mais
fraco para poder existir como mais forte.
Contudo, alerta o Promotor do julgamento, existe uma diferença entre os que se
diziam pertencer a uma “raça superior” (os nazistas) e os que, como presos, exerciam um
299
poder superior: “os acusados matavam por sua própria vontade./ A testemunha era forçada/
a ajudar nos assassinatos” (ibidem, p. 92).
Podemos aqui colocar algumas observações ao texto de Weiss. Os fatos até agora
narrados nos mostram que os nazistas trataram os prisioneiros como animais (colocando-os
em vagões de carga, marcando-os com números e destinando-os a trabalhos forçados).
Além disso, o texto também relata que alguns prisioneiros, os “mais fortes” dentre os
“fortes”, parecem ter-se adaptado ao meio em que foram inseridos e, dessa forma, passaram
a viver dentro de uma nova concepção de normalidade, a concepção que permite desejar a
morte de outrem para sua própria sobrevivência.
Outra testemunha que trabalhava na parte burocrática do Campo informa que
somente os presos que recebiam o mero de matrícula em suas peles tinham suas mortes
legalizadas. Sendo assim, segundo os meros oficiais, apenas trezentos presos morriam
por dia. Acrescenta ainda a testemunha que geralmente a causa mortis não era transcrita
para a documentação. Mas, se o fosse, constaria dos autos os seguintes motivos de óbitos:
doenças comuns aos seres desnutridos
88
, inanição após um período na solitária
89
,
complicações advindas de experiências biológicas
90
, fuzilamento
91
, injeção de fenol
92
ou
asfixia por gás xico
93
.
88
Trazemos aqui a descrição de duas doenças dentre as que foram colocadas no texto de O interrogatório:
“(...) a Noma, / uma gangrena da boca/ que aparece nas pessoas totalmente desnutridas. Formavam-se
buracos nas faces/ e através deles podíamos enxergar os dentes./ Ou então o Pênfigo, um tipo de Fogo
Selvagem,/ uma doença extremamente rara, / em que a pele se desfaz em pústulas/ e em poucos dias o doente
morre.” (WEISS, 1970, p.46)
89
Segundo os depoimentos, os presos levados à solitária eram os que tinham tentado fugir do Campo ou os
que tinham exercido qualquer ato de insubordinação aos guardas. Além disso, especifica uma testemunha, as
solitárias possuíam portas minúsculas e os presos, após terem ficado dias sem água ou alimento, eram de
retirados, através de ganchos, já mortos.
90
Os relatos das testemunhas falam de mulheres que tiveram seus ovários queimados por placas de raio–X.
Falam ainda de outras mulheres que receberam cimento em seus úteros para que os dicos pudessem estudar
o aparelho reprodutivo feminino. Contam também de fetos e de crianças que foram mortos para que médicos
pudessem realizar autópsias e estudar o desenvolvimento do corpo humano.
300
Em 1940, quando o Campo de Auschwitz foi inaugurado, relata outra testemunha,
os mortos eram enterrados em “vala comum”. Posteriormente, acrescenta, fornos foram
construídos para que os corpos fossem incinerados. Em 1944, conclui, o índice máximo de
incinerações foi atingido e, naquela época, vinte mil cadáveres eram colocados, por dia, nos
crematórios.
O “Canto” final da peça de Weiss traz uma testemunha que nos informa os números
de assassinatos ocorridos em Auschwitz: “Dos nove milhões e seiscentos mil perseguidos/
nos territórios ocupados pelo Reich/ seis milhões desapareceram/ (...) neste Campo/
mais de três milhões de pessoas foram assassinadas.” (ibidem, p.223).
Ao seu caderno, Orfeu transcreve o depoimento que fala do funcionamento e do
aperfeiçoamento dos fornos de Auschwitz.
A capacidade de um crematório/ era de 3 até 5 cadáveres./ Mas
raramente/ os fornos funcionavam todos ao mesmo tempo,/ visto que, por
causa do excesso de calor,/ eles estragavam-se com freqüência./ Os
fabricantes destes fornos,/ a firma Topf e Filhos,/ melhorou as suas
instalações,/ como se pode ver na escritura de patente/ tirada depois da
guerra,/ graças a experiência adquirida. (SANTARENO, s.d., p. 190)
94
Após ler a citação existente no caderno de Orfeu, o Procurador da Rainha pergunta
se o acusado tem pelos fatos retratados o mesmo nojo e a mesma indignação que levou
91
Os fuzilamentos, que mataram cerca de 20.000 prisioneiros, eram feitos próximos a valas profundas. Deste
modo, observa um dos acusados, os corpos fuzilados caiam um sob os outros sem terem de ser enterrados.
92
Os relatos dizem que trinta mil vítimas foram mortas pelo fenol que lhes era injetado no coração. Uma das
testemunhas conta que na primavera de 1943, mais de 100 crianças foram assim executadas em um só dia.
93
Na lata que continha o gás Zyklon B. constava como remetente a Sociedade Alemã de Combate aos Insetos
e Parasitas. No Campo, contudo, o gás asfixiava os presos que entravam na “Sala de banho e desinfecção”.
Após se despirem, cerca de mil pessoas eram conduzidas a uma câmara e recebiam, através de orifícios
abertos na parede, um gás que lhes causava tonturas, vômitos, paralisia das funções respiratórias e, por fim, a
morte.
94
Na tradução que utilizamos, o trecho escrito por Weiss aparece com as seguintes palavras: “A capacidade
total de uma câmara / era de 3 até 5 corpos./ Mas era raro que todos os fornos trabalhassem/ ao mesmo tempo.
/ Quando isso acontecia, os fornos quebravam freqüentemente/ por causa do super aquecimento./ Os
fabricantes destes fornos,/ a firma Topf e Filhos, / com base na experiência adquirida/ conseguiu melhorar o
seu equipamento/ segundo consta em sua patente / registrada após a guerra”. (ibidem, p. 216 - 217)
301
Peter Weiss a escrever seu texto dramatúrgico. Orfeu, ao ouvir o questionamento do
Procurador, responde, com ironia, que se limitou a registrar o que havia lido por ter achado
o relato interessante e autêntico.
Esclarecemos que Weiss o coloca, em momento algum de seu texto, que as ações
realizadas em Auschwitz lhe causaram nojo e indignação. Porém, ao selecionar
testemunhos que mostram como os prisioneiros foram tratados como animais e que revelam
como eles foram mortos de forma brutal, o autor acaba por criar um texto que traz, ao ser
humano sensível, nojo e indignação. Portanto, o sentimento colocado pelo Procurador da
Rainha pertence, objetivamente, mais aos leitores e ao próprio Procurador do que ao
escritor.
Salientamos, contudo, que ao denominar seu texto de “oratório”, o autor nos revela
que o canto entoado é uma oração aos mortos e não, como seria o canto de Orfeu, o de uma
apologia aos assassinatos.
Observamos ainda, como dissemos no início desta análise, que ao lado da
enumeração de atrocidades cometidas contra os prisioneiros, Weiss privilegia, em sua obra,
o fato de que os acusados possuem um riso irônico perante os fatos narrados.
Nas rubricas, o autor salienta que os acusados expressam riso em vários momentos.
Dentre eles, destacamos três. No primeiro, o riso brota da face dos acusados quando
escutam que os nazistas tinham se habituado a pensar que o extermínio era uma coisa
positiva. No segundo, o riso vem de uma ironia feita por um dos acusados que diz que se os
números de mortos apresentados fossem verdadeiros, não haveria sobrado nenhum preso
para relatar o ocorrido. No terceiro, o riso é de aprovação ao advogado de defesa ao colocar
que as testemunhas exageraram nos fatos relatados.
302
Ao compararmos a postura dos acusados perante o tribunal de Frankfurt com a de
Orfeu perante o tribunal santareniano, podemos realizar uma afirmativa: Orfeu copiou o
trecho da peça de Weiss movido não apenas por um simples desejo de registrar os fatos,
como havia argumentado em sua defesa, mas sim por ser um homem que possui, assim
como os acusados nazistas, um prazer irônico pelas mortes praticadas.
Sendo assim, podemos concluir, o móbil que leva Orfeu a copiar o trecho da peça de
Weiss não é o nojo ou a indignação sentida, mas sim, inversamente, o prazer que somente
os acusados do extermínio podem sentir perante a morte alheia. Além disso, observamos, o
trecho escolhido por Orfeu para ser transcrito em seu caderno privilegia não uma
máquina criada e aperfeiçoada para queimar cadáveres, mas também a impunidade que os
criadores dessa máquina têm após a guerra. Desse modo, coerente com sua personalidade
de serial killler, o recorte que Orfeu faz da obra permite que esta seja utilizada como mais
uma nota de seu canto de morte.
Antes de findarmos a análise desse intertexto, julgamos pertinente voltarmos a uma
questão que nos parece relevante em nossa análise da peça de Weiss: o universo naturalista
criado dentro do Campo.
Como observamos na análise de outros intertextos, os alemães se colocam como
seres pertencentes a uma raça superiore, portanto, como aqueles que possuíam o direito
de exterminar os indivíduos que são mais fracos.
Em O interrogatório, Peter Weiss nos relata quais são as formas de extermínio que
os nazistas usaram em Auschwitz e acrescenta, nas entrelinhas de seu texto documental,
uma revelão assustadora: os que viveram nos Campos de Concentração sabem que os
nazistas criaram não um local de extermínio, mas também um meio em que a
sobrevivência do mais forte é vista como moral a ser aceita por todos os homens.
303
Sendo assim, dentro do Campo, segundo depoimentos, o meio modificou
determinados homens.
Contudo, devemos salientar, a Testemunha que proferiu o trecho trazido por Orfeu a
seu caderno não traz a seu relato marcas dessa modificação e transmite, através de suas
palavras, o os atos que presenciou, mas também o desejo de que os assassinos sejam
punidos.
No início de seu depoimento, a Testemunha 7 diz que trabalhava para o doutor
Mengele e que, como detento médico, podia observar de perto as mortes que ocorriam no
Campo.
Segundo essa testemunha, os trens chegavam à plataforma e tocavam um apito, esse
som era o sinal para que os fornos fossem ligados, pois, dentro em breve, novos corpos
deveriam ser incinerados. Da janela de seu escritório, ele podia ver os médicos nazistas
dando ordens para que os S.S. levassem os prisioneiros até as câmaras de gás. Podia ver
também cerca de mil a duas mil pessoas entrarem neste recinto e as ouvia, posteriormente,
gritar quando o gás as asfixiava. Às vezes, salienta, a agonia da morte durava até cinco
minutos, pois era comum que a quantidade de gás fosse menor que a necessária para que os
gastos não fossem demasiados. Após os assassinatos, narra, os corpos ficavam amontoados
e cobertos de vômito, fezes, urina e sangue e a brigada de evacuação usava uma mangueira
para lavar os cadáveres; os elevadores de carga eram então acionados e os corpos eram
levados até os fornos para serem incinerados.
Observamos que o relato da Testemunha 7, no texto de Weiss, mostra com
objetividade qual era o caminho para a morte. Todavia, como vítima arrastada de sua
residência e separada de família morta nos Campos de Concentração, ele pede que os
acusados sejam punidos e que os verdadeiros criminosos, os que trabalham nas grandes
304
indústrias e que nunca foram levados a julgamento, sejam indiciados em processos
posteriores.
O texto de Weiss não revela como a Testemunha 7 chegara ao trabalho burocrático,
mas podemos observar que o relato construído por esse médico não possui o mesmo tom
naturalista do relato construído pela Testemunha 5.
Sendo assim, podemos deduzir, mesmo que o Campo de Concentração de
Auschwitz seja um meio propício para que os instintos animais mais vis brotem no homem,
alguns seres, dentro desse meio, ainda conseguem conservar suas consciências e analisar os
fatos ocorridos. Ou seja, a peça de Weiss mostra que a questão naturalista do meio a
influenciar o indivíduo nem sempre é verdadeira.
Uma possível explicação para esse fato é aplicarmos a teoria sartriana aos
acontecimentos narrados por Weiss. Em nossa análise das idéias de Sartre, vimos que esse
autor revela que não existiriam vítimas inocentes em uma guerra. Se observarmos com mais
atenção o relato da Testemunha 5, poderemos concluir que ela escolheu sucumbir ao meio
para poder sobreviver em Auschwitz. Sendo assim, a questão naturalista, aos olhos de
Sartre, se manifestou nessa Testemunha somente por causa da liberdade de escolha por ela
exercida.
Ressaltamos, contudo, que a peça de Weiss relata que milhares de presos não
tinham a capacidade de exercer qualquer escolha. Durante a viagem, conta-nos a narrativa,
a inanição, a sede constante, os corpos que se empilhavam no pequeno espaço do vagão e o
medo constante da morte produziam nos presos uma incapacidade física e psicológica de
reagir. no Campo de Auschwitz, a fadiga física e mental continuava a ser uma forma de
controlar os presos. Nesses casos, devemos salientar, dos presos foi retirada qualquer
305
possibilidade de reação e, portanto, não há como vê-los como culpados pela condição à que
estão submetidos.
Para concluirmos nossa análise, devemos ressaltar os pontos principais da peça de
Weiss e observar como eles foram ou não utilizados por Orfeu.
A peça nos mostrou como os crimes eram cometidos em Auschwitz. Revelou
também que alguns prisioneiros, influenciados pelo meio a que estavam sujeitos, poderiam
se tornar tão cruéis quanto os criminosos nazistas. Observou ainda que os verdadeiros
assassinos de Auschwitz não são somente os criminosos que estavam sendo julgados, mas
também aqueles que pensaram as atrocidades e que ainda continuariam impunes,
trabalhando em altos cargos de indústrias ou do governo.
Orfeu, contudo, ao invés de trazer ao seu caderno trechos a revelarem um desses
principais pontos da peça em questão, preferiu transcrever um fato que mostra a evolução
dos fornos que queimavam os cadáveres das vítimas de Auschwitz.
Ou seja, mais do que um homem interessado no oratório entoado por Peter Weiss,
Orfeu se mostra como um serial killer que, possuindo um prazer irônico, Auschwitz,
seus carrascos e suas máquinas como mais uma inspiração para seu canto de morte.
306
III.6.2 - Ezra Pound: a penalidade imposta a um americano que escolheu o fascismo.
Depois de ter sido interrogado em Génova pelo Exército Americano, Ezra
Pound foi levado para Pisa, por estrada, onde o isolaram numa gaiola de
arame farpado. A gaiola não tinha telhado, mas deram-lhe três cobertores.
Ninguém podia falar-lhe e, à noite, faziam incidir holofotes sobre ele. Isto o
impedia de dormir. Depois de seis semanas deste tratamento, teve um grave
esgotamento nervoso... (SANTARENO, p. 191).
Também lido pelo Procurador da Rainha, o trecho acima é mais um a formar a
amálgama de idéias a compor o caderno de Orfeu.
Após ler o trecho, o Procurador inquire Orfeu acerca do sentimento que este nutre
por Ezra Pound e pelos americanos. Orfeu responde que Ezra seria um dos mártires do
fascismo e acrescenta que dantes não gostava dos americanos, contudo agora os com
simpatia.
Para compreendermos a opinião aqui expressa por Orfeu, devemos analisar o texto
paradigma por ele trazido a seu caderno e complementar essa análise com o panorama
histórico-político que envolveu o escritor Ezra Pound (1885 – 1972).
No livro Ezra Pound (1960), George Sutherland Fraser (1915 1980) coloca como
objetivo escrever um “little plain man’s guide” (FRASER, 1962, p. 02) e, seguindo essa
meta, faz um primeiro capítulo a enfocar os principais dados biográficos desse poeta e
crítico literário.
Segundo Fraser, o ponto que causa mais polêmica nos apreciadores da obra de
Pound é a extrema admiração que o autor nutre por Mussolini. Essa admiração, continua o
biógrafo, pode ser percebida o pela escolha que Pound faz em residir na Itália, mas
também por suas obras de cunho fascista (Jefferson and/or Mussolini (1933) e as
307
transmissões radiofônicas em que realizou, durante a Segunda Guerra Mundial, propaganda
fascista e anti-semita).
Fraser salienta que Pound escolheu ser fascista, pois encontrou nessa doutrina uma
idéia que considerava positiva: um sistema de governo deve privilegiar a separação entre os
superiores e os inferiores.
Nesse momento da análise, sabendo da visão negativa que o fascismo carrega,
Fraser opta por explicar essa visão hierárquica da humanidade não através dos porta-vozes
dessa doutrina, mas sim por meio de uma visão particular sobre a obra da filósofa Hannah
Arendt (1906 – 1975).
No livro The Human Condition (1959), Arendt, relata o biógrafo de Pound, coloca
quatro tipos de homens: vita contemplativa (os que procuram entender Deus ou a ausência
dele, a presença ou ausência de valor na vontade humana, a natureza das coisas e os
significados da vida; ou seja, os literatos e filósofos), vita activa (os que lutam em batalhas
e fazem discursos para mudar as mentes humanas), homo faber (os artífices que direcionam
o trabalho) e animal laborans (os que exercem o trabalho braçal e repetitivo).
Aplicando a teoria de Arendt a Pound, Fraser salienta que aquele, como homem vita
contemplativa, reverencia e respeita a condição do trabalhador (animal laborance), mas
acrescenta que o poeta sabe, todavia, que os homens como ele próprio e os que pertencem à
categoria do vita activa (dentre eles, Jefferson e Mussolini) são os que devem ocupar um
lugar privilegiado na hierarquia social.
Devemos aqui ressaltar que Hanna Arendt nasceu na Alemanha e possa
ascendência judaica. Lembramos que, para os nazistas, os judeus pertencem a mais baixa
classe da hierarquia social e, desse modo, eram destinados por Hitler ao extermínio ou aos
trabalhos forçados. Por causa desse pensamento, Hanna Arendt foi proibida de publicar
308
livros durante o governo de Hitler, fato que provocou seu auto-exílio, mudando-se para a
França em 1933, e para os Estados Unidos em 1941 (época em que os franceses estavam
sob o domínio da Alemanha).
Ou seja, para os nazistas, por causa da hierarquia por eles defendida, Arendt nunca
poderia ser considerada uma vita contemplativa, que este “lugar social” era destinado
somente aos que pertenciam à raça ariana. Além disso, por pertencer à “raça inferior dos
judeus”, a Arendt seria destinado o trabalho foado ou o extermínio em Campos de
Concentração.
Sendo assim, devemos observar, seria pouco possível que a “senhora Arendt” ,
como foi denominada por Fraser, objetivasse, na classificação construída, concordar com
idéias fascistas.
Salientamos que Frasero nos esclarece se Pound concordava com os extermínios
de milhares de seres humanos, contudo, observa que o autor usava freqüentemente a
palavra “volitivo” em seus mais diversos trabalhos.
Para Pound, observa o biógrafo, o caráter “volitivo” de um ser humano compreende
não somente a vontade que este possui, mas também, e principalmente, a vontade que faz
ser bom aquilo que desejamos que seja.
Fraser finaliza seu texto dizendo que a interpretação que Pound dá a tal palavra nos
possibilita entender porque esse poeta opta por defender o governo italiano e ataca o
governo americano de seu tempo. O fascismo de Mussolini foi o governo que o acolheu e o
respeitou como homem vita contemplativa. Nos Estados Unidos, por sua vez, ele era apenas
um excêntrico, um homem que deveria ser preso, um ser incompreensível dentro de uma
sociedade que valoriza o dinheiro e a ganância.
309
Desse modo, segundo Fraser, como ser humano “volitivo”, Pound acredita naquilo
que lhe parece ser bom: um governo que defende o poeta como ser superior na hierarquia
social.
Trazemos à nossa análise dois escritos que manifestam alguns dos pensamentos que
levaram Pound à prisão:
Não a mais pequena sombra de dúvida de que T. J. nunca imaginou que
os homens continuavam iguais (depois de nascerem), ou eram
biologicamente iguais, ou tinham o direito à igualdade a não ser no plano
das oportunidades ou perante a lei (...) Como todos os dirigentes e
construtores na história humana, ele tentou elevar certo mero de homens
a certo nível, pela eliminação de certas imperfeições. (HOFSTETTER,
29/12/2007).
De facto, após o assassinato do presidente Lincoln, nada de sério, foi
tentado contra a usurocracia até à fundação do Eixo Roma-Berlim. A
ambição italiana de conseguir a liberdade econômica, que não é senão a de
não se endividar, desencadeou sobre ela as sanções de sinistra memória”
(ibidem, loc. cit.)
95
.
O primeiro trecho pertence ao livro Jefferson and/or Mussolini. No trecho
assinalado, Pound cita apenas o governante Thomas Jefferson, mas as idéias colocadas
diferenças biológicas entre as raças e eliminação de imperfeições humanas são, como
vimos em nossas análises anteriores, basilares no pensamento nazista e, acrescemos aqui,
também no fascista
96
.
O segundo trecho, pertencente a uma das transmissões radiofônicas feitas por Pound
em 1944, assinala o eixo Roma-Berlin e observa este como a primeira manifestação contra
95
Observamos que Ezra Pound é a favor da escravidão dos negros, esse fato é importante para entendermos
porque o assassinato do presidente Lincoln (1809 1865), um abolicionista, foi por Ezra entendido como
positivo.
96
Em 1935, a Liga das Nações colocou sanções econômicas à Itália de Mussolini. Adolf Hitler, percebendo a
proximidade entre sua política e a do Duce, ofereceu ajuda ao governante italiano. Após este evento, estava
fundado o eixo Roma-Berlim. Os governantes passaram então a unir suas idéias e estreitar suas relações
econômicas. No ano de 1938, seguindo o pensamento anti-semita dos nazistas, Mussolini legalizou a
descriminação contra os judeus.
310
o que o poeta chama de “usocracia”. Esclarecemos que essa palavra utilizada por Pound
refere-se à política de juros excessivos supostamente praticada pelos judeus.
Ou seja, nos trechos anteriores, podemos observar os dois principais elementos a
justificarem o anti-semitismo nazi-fascista: o motivo racial e o financeiro.
Esclarecemos que esses escritos, bem como o teor que eles possuem, não foram
abordados no texto de Fraser. Poderíamos compreender essa ausência lembrando que Fraser
observou seu texto como um despretensioso perfil de Pound”. Contudo, também podemos
inferir que a omissão se faz necessária uma vez que o biógrafo queria construir uma
imagem positiva de Ezra Pound e, sendo assim, não poderia trazer ao seu texto frases que
mostrassem explicitamente a opinião anti-semita nutrida por este autor.
Esse apreço às idéias anti-semitas ligadas ao nazi-fascismo foi visto pelos Aliados, e
particularmente pelo Estado Americano, como traição. Pound, contudo, sempre afirmou
que sua lutao era contra os americanos, mas sim contra uma democracia que insistia em
privilegiar o fraco em detrimento do forte.
Observamos que no texto de G. S. Fraser, os governantes americanos e ingleses do
tempo da Segunda Guerra Mundial são vistos como exemplo dos que privilegiam a
ganância monetária em detrimento do poder contemplativo (ou se usarmos a nomenclatura
de Arendt tal como foi explicada por Fraser, dos que valorizam o homo faber e o animal
laborans em detrimento do vita activa e do vita contemplativa).
Na peça santareniana, Orfeu Pound como um mártir fascista e coloca que se o
escritor foi preso por suas idéias no final da Segunda Guerra, em breve será, como mostram
os acontecimentos na América, admirado.
A idéia de mártir do fascismo explicitada por Orfeu pode ser justificada pelo modo
e tempo de prisão que os americanos impuseram a Ezra Pound. Na cidade de Pisa, no
311
Centro de Treinamento Disciplinar, os americanos submeteram o poeta e ensaísta a um mês
de “enjaulamento”. Em sua terra natal, os Estados Unidos, Pound foi internado durante
treze anos em um hospital psiquiátrico.
Lembramos que o trecho copiado por Orfeu em seu caderno trata, como vimos, da
descrição que Fraser faz da gaiola de arame farpado em que Pound ficou encarcerado em
Pisa. Sendo assim, o próprio intertexto realizado por Orfeu nos possibilita entender porque
Pound foi, para ele, um mártir do fascismo.
Contudo, para compreendermos porque, segundo Orfeu, Pound seria admirado no
futuro, devemos recorrer a outra citação feita em O inferno.
Após falar acerca de Pound, observa a personagem santareniana:
(...) eu admiro o Grande George Lincoln Rockwell, chefe do partido nazi
americano, arauto da nova América!(Cortante, irônico). Falo daquele que
teve a coragem, o orgulho magnífico, de se apresentar na execução do
negro Aaron Michell um negro repugnante, acusado da morte dum
polícia-pateta... branco!com um cartaz radioso, profético: ‘O gás é o único
remédio contra o crime negro.’ (SANTARENO, s.d.191).
Explicar a política americana que envolve os verdadeiros pensamentos de Thomas
Jefferson e de George Lincoln Rockwell seria desviar a análise do objetivo por nós
almejado. Devemos salientar, entretanto, que o governante americano do início do século
XIX via com bons olhos a escravidão negra, pois julgava os seres pertencentes a essa raça
como inferiores. Rockwell (1918 1967), por sua vez, imbuído das idéias nazi-fascistas,
atacava os negros, os comunistas e os judeus.
Além disso, acrescentamos, após a Segunda Guerra Mundial, o governo americano
participou da designada Guerra Fria e, assim como os nazi-fascistas fizeram, perseguiu e
matou milhares de comunistas.
312
Sendo assim, seja pela existência de pessoas como Rockwell, seja pela perseguição
aos comunistas, Orfeu admira alguns americanos, pois pode enxergar nestes uma política de
segregação próxima à que foi exercida pelos nazi-fascistas. Entretanto, dentre as vítimas de
Orfeu não figura nenhum comunista, fato que analisaremos em momento azado.
Antes de concluirmos a análise de mais esse intertexto, julgamos pertinente
evidenciar uma idéia que Fraser estabelece em seu texto acerca de Pound:
(...) The vehement yearning for violence, so characteristic of some of
the best modercreative artists, thinkers, scholars, and craftsmen, is a
natural reaction of those whom society has tried to cheat of their
strength. (FRASER, 1960, p.08).
A citação é importante, pois Pound e Rockwell têm em comum, além de suas
simpatias pelo nazi-fascismo, a veia artística em suas biografias. Pound, como vimos, é
poeta e crítico literário. Rockwell, após ter cumprido o serviço militar, seguiu a carreira de
fotógrafo até que entrou para a vida política.
Sendo assim, se aplicarmos a idéia de Fraser a estes “artistas”, o desejo de violência
nazi-fascista que possuem seria uma reação natural a uma sociedade que quis retirar-lhes a
força que lhes era característica.
Lembramos que Orfeu, pelo nome mitológico que possui, está igualmente ligado às
artes. Sendo assim, se aplicarmos o raciocínio de Fraser a essa personagem, a violência por
ela realizada é uma reação de um ser superior contra uma sociedade que quis retirar o poder
que lhe era devido.
Findamos a análise de mais esse intertexto, trazendo um poema de Pound:
Minhas intenções eram boas,
Mas enganei-me na maneira de alcançá-las.
Fui um estúpido.
O conhecimento me chegou tarde demais...”
(www.culturapara.art.br/opoema/ezrapound/ezrapound.htm, 06/01/2008)
313
Poderíamos atribuir o poema acima ao arrependimento que Ezra Pound sentiu ao
descobrir a verdadeira crueldade do nazi-fascismo. Contudo, se essa fosse nossa atitude
estaríamos realizando um expediente que, pela primeira vez, não foi utilizado por Orfeu: o
de perverter as idéias de um autor. Pound saiu do hospital psiquiátrico em 1958, ano em
que voltou à Itália. Antes de morrer, em Veneza, no ano de 1972, ele ainda defendia as
idéias fascistas, colocando nelas sua esperança de um mundo mais justo.
III.6.3- Lazard e Rauschinig: o retrato do que foi dito pelos chefes do nazismo.
Entre 20/11/1945 e 01/10/1946, a cidade de Nuremberg hospedou o primeiro
processo contra vinte e um dos principais dirigentes do Partido Nazista. Nessa mesma
cidade, foram analisadas também cento e dezessete acusações contra médicos, juristas e
outras pessoas que, mesmo não pertencendo aos altos escalões do governo de Hitler,
ajudaram a manter o nazismo no poder.
Didier Lazard enfocou audiências do processo principal em seu livro O processo de
Nuremberga (1947) e Stanley Kramer, um dos processos secundários no filme O
julgamento de Nuremberg (1961).
realizamos a análise da película cinematográfica de Kramer e, naquela ocasião,
salientamos que o filme em questão foi assistido pelo casal de assassinos Ian e Myra, e por
suas versões literárias Orfeu e Eurídice, no primeiro encontro que tiveram.
Estudaremos agora o livro de Lazard, pois esse possui quatro citações copiadas por
Orfeu em seu caderno. Além disso, estudaremos também neste momento o livro Hitler m’a
314
dit, escrito por Hermann Rauschining (1887 1982) em 1939, pois dois dos intertextos
encontrados em Lazard têm como fonte original essa obra de Rauschining.
No início de O processo de Nuremberga, Lazard observa que o princípio essencial
do julgamento em questão já foi definido: “os juízes dos países mártires castigarão os
carrascos invasores” (LAZARD, 1965, p.17). Esclarece, posteriormente, que “os carrascos
invasores” são a cúpula nazista e os “países mártires” estão representados por quatro
grandes nações: a inglesa, a francesa, a americana e a soviética.
Pouco depois, o autor acrescenta que a cidade em que ocorrerá o julgamento é o
triste retrato de um final de guerra: somente quarenta minutos foram necessários para que
os Aliados destruíssem mais de sete séculos de história que existiam em Nuremberg.
Poderíamos pensar, a partir dessas colocações feitas por Lazard, que seu livro teria o
mesmo objetivo do filme de Kramer: discutir a posição de mártir e de carrasco atribuída a
cada país no pós-guerra.
Contudo, como podemos perceber posteriormente, essas informações iniciais
servem a outros objetivos: diferenciar os crimes dos nazistas dos crimes de guerra
cometidos por várias nações nos mais diversos tempos e colocar os atos nazistas como
crimes contra a humanidade.
Para que possamos compreender a criminalidade nazista, Lazard reorganiza os autos
do processo mostrando a gênese do pensamento nacional-socialista.
São especificados nesse momento do texto, os três principais pontos do que Hitler
defenderia durante o início de sua carreira política: revogar o Tratado de Versalhes, adquirir
os territórios necessários para a existência da raça alemã e preservar a superioridade dessa
raça.
315
Segundo Hitler, o tratado assinado em 1919 penalizava por demasiado os alemães.
Isso porque, ao exigir que colônias e determinadas terras fronteiriças fossem entregues, o
Tratado tirou dos alemães o espaço vital que lhes era necessário. Além disso, o acordo
aplicou pesadas multas a serem pagas e restringiu o tamanho do exército alemão a cem mil
soldados, fatos que retiraram da raça alemã a posição de autonomia e a superioridade que,
segundo Hitler, ela deveria ocupar.
A expansão do território alemão, segundo ponto essencial defendido pelos primeiros
discursos de Hitler, não tinha como objetivo o domínio de outros povos, mas sim um modo
de os alemães se apoderarem tanto dos territórios perdidos por causa do Tratado de
Versalhes quanto de novos territórios que pudessem ser utilizados pela agricultura ou que
fossem fonte de minérios e outras riquezas.
A preservação da raça, por sua vez, teria como ponto principal medidas que
assegurassem a pureza e a hegemonia dos alemães em todos os territórios por eles
povoados.
Sendo assim, observa Lazard, os princípios da política nazista, calcados nos
elementos defendidos por Hitler em Minha luta, revelam “uma doutrina em que a
sociologia é reconduzida à zoologia.” (ibidem, p. 97).
Explicitamos aqui esse pensamento de Lazard, pois ele trabalha com um dado
essencial à nossa análise: a presença de um pensamento naturalista nas idéias defendidas
por Hitler e, conseqüentemente, pelos nazistas.
Ou seja, assim como no naturalismo, os nazistas entendem o meio e a raça como
elementos determinantes ao comportamento do indiduo.
316
Após Hitler ter conquistado o governo da Alemanha, esse pensamento naturalista
trouxe a “doutrina do espaço vital” (ibidem,
loc. cit
.) como elemento a justificar a expansão
do território alemão.
Segundo essa doutrina, a existência superior dos arianos necessitava de uma
extensão de terra maior do que a possuída pela Alemanha do pós-primeira guerra. Sendo
assim, através de tratados ou de novas guerras, Hitler deveria anexar ao território alemão
terras que lhe possibilitariam uma maior fonte de alimentos e riquezas.
Contudo, ressalta Lazard, é necessário observarmos que os alemães empregaram
atos atrozes durante a conquista e ocupação desses novos territórios. Atos, salienta o
escritor, que não podem ser vistos como “crimes de guerra”, pois ultrapassam a questão da
luta armada entre as nações, são antes “crimes contra a humanidade”, pois foram cometidos
por seres que desprezavam qualquer lei que protegesse a integridade humana.
Nesse sentido, Lazard aponta que os testemunhos revelaram que os nazistas tinham
consciência da ilegalidade de seus atos e, mesmo assim, continuavam a exercê-los. Como
exemplo desse fato, traz um memorando assinado por um dos acusados, Raeder (superior
da Marinha):
É de desejar que se baseiem todas as medidas militares no Direito
Internacional. Todavia, as decisões que podem ser consideradas necessárias
do ponto de vista militar, deverão ser executadas, mesmo que se não
submetam ao Direito Internacional, quando se esperar um resultado
importante através delas. (ibidem, p.157).
Salientamos que uma das “decisões necessárias” aqui ressaltadas por Raeder era o
estímulo a vindita pública exercido pelo governo. Segundo o conhecimento geral dos
arianos, os aviadores inimigos que pousassem em território alemão deveriam ter suas vidas
retiradas pelos cidadãos que louvassem a Pátria Alemã.
317
Outros comandantes nazistas também compactuavam com a legalidade do ilegal
e, levando a idéia até as últimas conseqüências, permitiam que experiências biológicas
fossem praticadas com os presos de guerra.
Em O processo de Nuremberga, várias experiências realizadas pelos nazistas são
descritas. Dentre elas, destacamos duas.
Os aviadores inimigos eram colocados em água fria para que seus corpos fossem
progressivamente congelados. Durante o sofrimento dessas “cobaias”, médicos observavam
a reação biológica do corpo humano. Quando esses prisioneiros estavam próximos da
morte, os médicos tentavam experimentar diversos métodos de reanimação.
Outro experimento feito com prisioneiros de guerra trata do efeito da pressão
atmosférica. Para observar o efeito que causa a compressão e descompressão no organismo
humano, redomas eram instaladas no Campo de Concentração de Danchau. Nesse espaço
de experiências, prisioneiros eram submetidos a testes mortais que visavam não só à
pesquisa do funcionamento do corpo humano, mas também à construção dos mais
sofisticados armamentos nazistas.
Um dos promotores observa que essas experiências biológicas não eram obras
isoladas, mas sim práticas exercidas por laboratórios alemães renomados. Laboratórios que
publicavam constantemente seus descobrimentos em artigos científicos e pediam, por meio
de documentos oficiais, que o governo lhes enviasse mais cobaias.
O primeiro diálogo intertextual realizado entre O processo de Nuremberga e O
inferno evidencia um desses documentos oficiais.
Em seu caderno, Orfeu copia o seguinte trecho pertencente ao livro de Lazard: “‘As
últimas mulheres enviadas eram demasiadamente magras... Precisamos de um lote de 150
318
mulheres saudáveis’. Extractos de uma carta dos laboratórios Bayer, dirigida a um dos
chefes de Auschwitz.” (SANTARENO, s.d., p. 187).
Na obra paradigma, os depoimentos informam que a Bayer pagava aos
administradores de Auschwitz “duzentos marcos por cabeça” (LAZARD, 1965, p. 167).
Além disso, Lazard acrescenta que o processo evidencia que os comandantes da “raça
ariana” não hesitavam em matar seus inimigos para pesquisar meios que contribuíssem para
a perpetuação dos seus interesses.
O Procurador da Rainha, em O inferno, pergunta se a indignação foi o móbil que
incitou Orfeu a copiar o trecho em seu caderno. O assassino, servindo-se novamente da
ironia que lhe é habitual, observa que a casa Bayer ainda é admirada pelos mais diversos
povos, dentre eles o europeu e o americano.
Lembramos que os franceses, os ingleses e os americanos estão entre as nações que
julgaram os crimes nazistas. Sendo assim, o tom irônico de Orfeu parece salientar que os
medicamentos pesquisados pela Bayer foram aceitos por essas nações mesmo tendo o
laboratório cometido atitudes criminosas.
Recordamos que, no texto de O processo de Nuremberga, o acusado Raeder observa
em um de seus memorandos que as ações nazistas deveriam ser pautadas pelo resultado
final a ser alcançado.
Tornamos evidente aqui que, no caso dos laboratórios Bayer, como parece Orfeu
entender, o maquiavélico pensamento nazista se aplica também aos europeus e americanos.
Orfeu traz ainda a seu caderno um outro trecho que se relaciona aos nazistas como
homens a cometerem “crimes contra a humanidade”.
319
Nem todos sabem que os Aliados encontraram, num campo de
concentração, sete toneladas de cabelos de mulher, amontoados do lado dos
fornos crematórios, e destinados ao fabrico de colchões. A exterminação é
isto. (SANTARENO, s.d., p. 186).
O Procurador da Rainha pergunta se Orfeu concorda com o genocídio praticado
pelos nazistas contra os judeus. Como resposta, obtém mais uma ironia do acusado:
Garanto-lhe, my lord, que nunca dormi em nenhum desses tais colchões
feitos com cabelos de judias: Creio que, se experimentasse, apanharia logo
uma camada de urticária! A minha natureza é constitucionalmente
alérgica... (Feroz) a tudo que é feio e sujo. (ibidem, loc. cit.).
A palavra “genocídio” utilizada pelo Procurador da Rainha foi explicada no texto
original de Lazard como o extermínio de determinada raça, no caso, a dos judeus.
Lazard acrescenta ainda, logo após o trecho que foi copiado por Orfeu, que o
extermínio cometido pelos nazistas “é tão monstruoso, tão desconhecido na história até à
vinda do Hitlerismo, que foi preciso criar o neologismo ‘genocídio’ para o definir.”
(LAZARD, 1965, p.168).
Observamos que a perseguição aos judeus já existiu na história da humanidade em
outras épocas, ela foi objeto, inclusive, de uma das mais conhecidas peças de Santareno, O
judeu (1966). Contudo, lembramos, para exterminar esse povo, segundo salienta Lazard
com a palavra “genocídio”, Hitler entende que eles pertencem a uma raça e não a uma
religião.
Em O processo de Nuremberga, Lazard informa que a política alemã de extermínio
aos judeus é o mais cruel crime contra a humanidade cometido pelos nazistas. Acrescenta
ainda que a frieza das ordens e a progressão desse extermínio revelam que os governantes
tinham pleno conhecimento de seus atos.
Aos autos do processo, é trazida a seguinte informão:
320
Até 1940, a política adotada na Alemanha e nos territórios ocupados
consistia em resolver a questão judaica através de uma emigração
organizada. A segunda fase, a concentração nos ghettos da Polônia, durou
até princípio de 1942. O terceiro período, a destruição sistemática da raça
judaica ou ‘solução final’, prolongou-se até outubro de 1944, época em que
Himmler deu ordem para suspender o extermínio. (ibidem, p. 180 - 181).
Esclarecemos que o corte de cabelos de judias para a confecção de colchões também
foi trazido ao texto O interrogatório, de Peter Weiss. Na peça em questão, a Testemunha 7
observou que os nazistas tiravam dos corpos a serem incinerados todos os objetos de valor,
inclusive alianças, dentes e cabelos.
Sendo assim, o trecho trazido por Orfeu a seu caderno retrata a “solução final”
exercida pelos nazistas contra os judeus: os cabelos eram cortados após as mulheres judias
terem sido assassinadas.
Observando as informações até agora colocadas, podemos chegar a algumas
conclusões.
Segundo o programa proposto por Hitler, os que pertenciam ao Partido deveriam
zelar pela preservação e expansão da “raça ariana”. Para efetivar essa proposta, os nazistas
legalizaram as mais diferentes formas de assassínio: estimulavam a ptica da vingança
pessoal, financiavam e permitiam as pesquisas biológicas feitas com prisioneiros,
realizavam extermínios em massa e viam os corpos de suas timas como meros objetos.
Mais do que crimes de guerra”, essas ações alemãs são “crimes contra a
humanidade”, pois ultrapassam o campo da luta armada entre as nações e vigoram no
campo de uma luta que é travada por uma raça que, baseada em conceitos naturalistas,
escolhe conscientemente optar pelo prazer de exterminar o outro.
Orfeu, como vimos em nossas análises anteriores, é um homem que escolheu
conscientemente seguir seus mais cruéis instintos naturais, dentre eles, o de assassínio.
321
Sendo assim, por proximidade de ideais, ele vê nos nazistas homens a serem admirados.
Desse modo, por mais que isso choque o Promotor, nas palavras reveladas por O processo
de Nuremberga, Orfeu encontra não a indignação e o nojo esperado, mas sim o estímulo
para seus atos assassinos e a razão irônica para justificá-los.
Ressaltamos ainda o fato de serem os crimes cometidos pelos nazistas, “crimes
contra a humanidade e não crimes de guerra”. Sendo assim, é perfeitamente
compreensível que esses crimes sejam cometidos mesmo após o fim da Segunda Guerra.
Ou seja, se o móbil dos assassinatos não é a luta armada entre as nações, eles não deixarão
de existir com a paz assinada pelos vencedores.
Sendo assim, a doutrina nazista continua mesmo que processos contra ela sejam
estabelecidos, afinal, como nos mostra a análise intertextual de O inferno, ela é uma
doutrina de existência e não, como poderíamos pensar, de guerra.
Com o intuito de explicar essa doutrina existencial nazista, ao Julgamento de
Nuremberga são trazidas conversas que Hitler teria tido com seus mais próximos, dentre
eles Hermann Rauschining (1887 1982).
Filho de um abastado proprietário rural, Rauschining viu grande parte de suas terras
serem anexadas à Prússia como pagamento devido pelos alemães após a Primeira Guerra.
Em 1926, com a esperança de ter suas propriedades de volta, aderiu ao Partido Nacional
Socialista ao saber que uma das propostas de Hitler era revogar o Tratado de Versalhes.
Entre os anos de 1933 e 1934, o Führer o nomeou como presidente do Senado. Datam dessa
época as palavras que, proferidas por Hitler, compõem o livro Hitler m’a dit (1939).
Ao seu caderno de citações, Orfeu traz a seguinte passagem desse livro: “Depois de
muitos séculos em que se defenderam os pobres e os humildes, chegou o momento de nos
decidirmos a proteger os fortes contra os fracos.” (SANTARENO, s.d., p. 186).
322
Além disso, ao ser questionado acerca dos assassinatos cometidos, acrescenta Orfeu
outra passagem do livro de Rauschining:
A Natureza é cruel; por conseguinte, podemos ser também cruéis. Se não
hesito em mandar a flor da nação alemã para o inferno da guerra, sem a
menor queixa pelo sangue alemão assim derramado, tenho certamente o
direito de exterminar milhões de seres de raça inferior que se multiplicam
como vermes. (ibidem, p.187).
No texto de Rauschining, os parágrafos acima mencionados aparecem relacionados
à política de despovoamento pensada por Hitler.
Além disso, salientamos, no texto original, eles estão na ordem inversa à que foi
mencionada em O processo de Nuremberga e em O inferno. Ou seja, no texto original,
Hitler fala inicialmente do extermínio dos que se multiplicam como vermes e,
posteriormente, do tempo de defender os fortes e não os mais fracos.
Esclarecemos que nossa análise trabalhará com a ordem utilizada pelo texto
paradigma, pois, dessa forma, poderemos observar tanto o raciocínio trazido a esse texto
quanto o real conteúdo da obra intertextualizada.
Contudo trabalharemos também com os dados fornecidos por O processo de
Nuremberga, pois, como as citações feitas por Santareno seguem a mesma ordem em que
foram colocadas por Lazard, talvez seja essa a obra paradigma de O inferno.
Em Rauschning, Hitler sempre liga suas idéias de extermínio a fatos ocorridos
durante a Primeira Guerra.
Inicialmente, o governante coloca uma lógica racional para explicar os assassinatos
a serem cometidos: se milhares de alemães morreram nesse primeiro conflito, pode-se
exterminar, em uma nova luta, os que mataram os seus iguais.
323
Como primeira forma de extermínio, Hitler sugere que os homens e as mulheres das
raças inferiores sejam separados. A idéia, justifica o governante nas conversas com
Rauschning, nada mais é do que uma aplicação do observado: a primeira guerra separou
homens e mulheres e, desse modo, fez com que a taxa de natalidade caísse brutalmente
entre os alemães; ou seja, se separarmos os machos das fêmeas de nações indesejáveis,
supriremos essas nações de uma maneira relativamente indolor e sem fazer correr gota
sequer de sangue.
Lembramos que os homens eram separados das mulheres assim que chegavam aos
Campos de Concentração. Sendo assim, esta primeira forma de extermínio, a de
impossibilitar a natalidade, foi não somente colocada no discurso de Hitler, mas também
praticada pelos nazistas.
Salientamos, todavia, que a frase copiada por Orfeu fala que a crueldade exercida
pela Natureza deve ser modelo para a crueldade dos seres pertencentes à Natureza.
Esclarecemos que essa crueldade a que se refere Orfeu é a morte a que estão sujeitos todos
os homens.
No texto original, Hitler fala, posteriormente, que a impossibilidade de nascimento
de novos rebentos deve ser aliada ao fim, por todos os meios possíveis, da proliferação dos
judeus.
No texto de Lazard, o extermínio baseado nas mortes provenientes do
derramamento de sangue é colocado em relevo no capítulo em que se traz as conversas que
Hitler teve com Rauschining.
Como exemplo de extermínio a verter sangue, Lazard cita que Hitler ordena que os
inimigos de guerra sejam submetidos a trabalhos forçados nas zonas fronteiriças, desse
324
modo, se não morressem pelo cansaço, morreriam devido aos ataques dos que eram
adversários dos nazistas.
Outro exemplo de técnica de extermínio propagada pelo Füher seria a morte causada
por inanição. Segundo Hitler, o alimento produzido pela nação alemã e pelas nações
conquistadas deveria ser entregue aos arianos; os demais, sejam eles crianças ou adultos,
deveriam sobreviver com uma ração básica enquanto assim fosse conveniente para os que
pertenceriam à “raça superior”.
Observa ainda Lazard que a lógica racista de Hitler fez com que ele fomentasse que
seus soldados aniquilassem os inimigos com disparos certeiros, que tivessem “a intenção de
matar” (LAZARD, 1965, p. 176).
No livro de Rauschning, essa política de extermínio é freqüentemente explicada.
Das justificativas fornecidas, observemos a que contém o outro texto citado por Orfeu.
No pós Primeira Guerra, dissera o Füher, os franceses haviam dito ser necessário
que vinte milhões de alemães não mais existissem, pois “esses estavam a mais na conta da
população mundial” (RAUSCHNING, 1979, p. 197). Com base nesses números divulgados
pelos franceses, acrescentara Hitler, os extermínios seriam realizados, contudo, a escolha
das populões a serem dizimadas caberia aos arianos e o aos franceses. Como bons
seguidores dos instintos naturais que nos foram dados, conclra o governante nazista,
devemos esquecer os culos em que os pobres e miseráveis foram privilegiados e iniciar
um tempo em que os mais fortes sejam protegidos da ameaça dos mais fracos.
Devemos ressaltar que Rauschning foi desligado do governo nazista no ano de
1934, mesmo ano em que se exilou na Suíça. Em O processo de Nuremberga as palavras
por ele escritas são tidas como verdadeiras. Contudo, esclarecemos, muitos estudiosos de
Hitler dizem que o ex-senador inventou os discursos existentes em seu livro, uma vez que,
325
ao contrário do que afirmara, ele nunca fora íntimo do Füher e seus encontros com o
governante não tinham ultrapassado o número de quatro vezes.
Ressaltamos essa informação, pois, segundo o livro de Rauschning, o ponto
essencial da política de Hitler era exterminar não os judeus, mas também “os que
representariam essa raça proliferada”.
Pour notre peuple, la religion est affaire capitale. Tout dépend de
savoir s’il restera fidèle à la religion judéo-chrétienne et à la morale
servile de la pitié, ou s’il aura une foi nouvelle forte, héroïque, em
lui-même, em um Dieu indissociable de son destin et de son sang.
(RAUSCHINING, 1979, p.92).
O trecho acima, segundo Rauschining, pertenceria às palavras que Hitler
confidenciou somente aos que lhe eram mais próximos. A esses, o Füher teria dito que a
“religião judaico-cristã ensinara a todos os homens que eles deveriam seguir a moral servil
da piedade. Sendo assim, raciocinara o governante, os que pertencem a um povo heróico e
forte não podem conviver com essa religião.
Evidenciamos que algumas colocações nos parecem estranhas à ideologia de Hitler.
A primeira delas é o ataque ao cristianismo feito aqui pelo governante. A segunda é a
ligação que Hitler teria feito entre religião e judaísmo.
Primeiramente, devemos aqui salientar, que Adolf Hitler não observa como alvo de
sua perseguição os cristãos. Além disso, como já vimos em diversas ocasiões, o judaísmo é,
para o Füher, uma raça e não uma religião.
Nas próprias prerrogativas do Partido Nacional Socialista, como nos mostra Lazard,
encontramos essa separação realizada entre religiosidade e judaísmo: “Só um membro da
raça pode ser cidadão. É membro da raça todo aquele que é do sangue alemão, sem
326
distinção de credos. Nenhum judeu pode, por conseguinte, ser membro da raça.”
(LAZARD, 1965, p.73).
Não cabe a nosso trabalho discutir se as palavras atribuídas por Raushining a Hitler
foram de fato ditas pelo governante nazista. É pertinente, contudo, observarmos um dado
relevante: o trecho trazido por Orfeu a seu caderno se aproxima mais do pensamento
nietzschiano do que do pensamento hitleriano.
Recordemos que a frase copiada por Orfeu em seu caderno salienta que o homem
ouvira, durante séculos, que os mais pobres e miseráveis deveriam ser protegidos. Além
disso, a frase acrescenta: chegou o tempo de preservar os fortes da ameaça dos que lhe são
inferiores.
Se usarmos um pensamento racial para compreendermos a frase, pensamento
propagado por Hitler, não encontraremos sentido para o que foi dito. Contudo, se nosso
pensamento envolver questões religiosas, como o de Nietzsche, teremos uma possível
compreensão para as palavras copiadas por Orfeu.
Lembramos que Nietzsche, em seu texto A genealogia da moral, colocara os verbos
judaíza, cristianiza e plebeíza como sinônimos do pensamento de humildade e obediência
que vigorou durante séculos.
Segundo esse pensamento, acrescenta o autor em outras obras, o homem virtuoso e
bom era aquele que seguia as Escrituras e que, portanto, sofria na terra para ter como
recompensa o reino dos céus.
Para que uma humanidade superior possa existir, conclui o filósofo, é necessário
que esse pensamento de inferioridade seja afastado do “super-homem.
327
Ou seja, segundo Nietzsche, o homem superior deve aceitar o fim da época cristã e
fundar um novo tempo: um tempo em que não haja atitudes anti-humanas que enfraqueçam
a forte gente.
Nos últimos capítulos de seu livro, Rauschining observa que era comum Hitler se
apropriar das idéias dos mais diferentes filósofos. Certos pensamentos de Nietzsche,
exemplifica o ex-senador, foram, por exemplo, mal digeridos e transformados em uma
amálgama de idéias vulgarizadas por uma certa tendência pragmática de filosofia
contemporânea (RAUSCHINING, 1979, p. 298).
Não cabe à nossa análise divagar acerca da veracidade ou não do trecho copiado por
Orfeu, mas podemos inferir, contudo, que parece uma prática comum aos nazistas ou ex-
nazistas (a Hitler, a Orfeu e a Rauschining) perverter frases de outrem com o intuito de
fazer com que elas sirvam como justificativa para seus próprios discursos.
Ou seja, como vimos, Hitler pode ter pervertido o discurso de Nietzsche para
justificar as mortes que seriam cometidas pelos nazistas; além disso, o governante alemão
também tinha o costume de observar os fatos, fossem eles biológicos ou históricos, para
perverter dados que justificassem suas ações violentas. Orfeu, seguidor do nazismo,
corrompe as palavras dos mais diversos autores para justificar os assassinatos por ele
cometidos. Rauschining, por sua vez, após ter-se exilado do governo em que participara,
pode ter criado uma imagem não real de Hitler a fim de justificar sua saída desse governo.
Trazemos aqui, um último trecho retirado do livro de Lazard acerca das ações
cometidas pelos nazistas:
(...). As suas atrocidades foram cometidas não sob a influência de uma
paixão furiosa, de uma cólera guerreira ou de um ressentimento de
vingança, mas em virtude de um cálculo frio, de métodos perfeitamente
conscientes, de uma doutrina pré-existente. A crueldade, para os Nazis, faz
parte da lógica das coisas. (LAZARD, 1965, p. 157)
328
Lembramos que Camus havia explicitado em O homem revoltado que os nazistas
exerciam “crimes de lógica” uma vez que suas ações eram conscientemente premeditadas e
não movidas por atos de paixão. Além disso, acrescentara Camus, homens que utilizam o
pensamento filosófico para justificar suas ões de anti-humanidade não podem ser
classificados como indivíduos apaixonados por uma idéia.
A análise dos livros de Lazard e de Rauschining confirma essas opiniões de Camus,
pois mostra que os atos nazistas foram pensados, premeditados e justificados por uma
doutrina de supremacia racial que quer, na verdade, apenas legalizar o natural prazer
advindo da crueldade.
Acrescentamos, por fim, que no livro de Rauschining a revolução pretendida por
Hitler é explicada através de vários pensamentos que o Füher teria emitido. Trazemos à
nossa análise o resumo de três desses pensamentos.
O primeiro deles trata da revolução pretendida por Hitler. Segundo o governante, a
revolução nazista não é somente política e social, ela é a testemunha de uma ruína singular
dos conceitos morais e de orientação espiritual dos homens (RAUSCHINING, 1979, p.
299).
O segundo pensamento observa o entendimento que Hitler fazia das ões
criminosas. Para o Füher, tudo muda de entendimento, mesmo o crime. A palavra crime,
observa Hitler, é uma relíquia do mundo passado; no mundo contemporâneo, existem
somente atos positivos e negativos. Um ato criminoso é, acrescenta o governante, mil vezes
superior à imobilidade burguesa e, portanto, pode ser visto como um ato positivo (ibidem,
p. 301).
329
No terceiro pensamento, por fim, Hitler qualifica a si mesmo como o que foi
escolhido pela Providência para libertar a humanidade de tudo aquilo que foi designado
como consciência ou moral. Além disso, como messias de um porvir, ele deverá guiar
homens que exijam uma liberdade individual suportável somente aos que são da raça
superior.
No que concerne aos crimes de Orfeu, podemos concluir, parece que o assassino da
charneca compreendeu de forma exata esses pensamentos de Hitler. Ou seja, quando as
palavras dizem o que se deseja ouvir, não é necessário modificá-las.
Devemos, contudo, trazer a nosso estudo as verdadeiras palavras daquele que se
diz, segundo Rauschining, ter sido escolhido pela Providência. Somente dessa forma
saberemos se os conceitos trabalhados por outrem (s) como ditos por Hitler a ele realmente
pertencem. Com esse intuito, acrescido pelo objetivo de observar a possível “Bíblia” de
Orfeu, analisaremos o livro Minha Luta de Adolf Hitler.
III.6.4- Hitler por ele mesmo.
No subcapítulo anterior, estudamos duas idéias que são atribuídas a Hitler e foram
copiadas no caderno de Orfeu. A primeira delas falava de uma raça inferior que se
multiplicava como vermes e que, portanto, deveria ser exterminada pela raça superior. A
segunda, abordava o tempo passado em que os pobres e miseráveis foram defendidos e o
tempo presente em que os fortes deveriam ser protegidos. Esses dois intertextos trazidos à
obra O Inferno, como vimos, têm como paradigma o livro de Didier Lazard (e o de
Rauschning por meio desse).
330
Sendo assim, não cabe a esta parte de nossa análise estudar de onde vieram as
palavras copiadas por Orfeu (e por Santareno através dele). O objetivo aqui perseguido é
compreender as principais idéias que fazem parte do canto entoado por Hitler (ou por
aquele a quem Orfeu designa como “Pai Hitler” (SANTARENO, s.d., p. 64)) e comparar
essas idéias com as que foram evocadas pelo canto de morte executado em O inferno.
Como obra principal a revelar os pensamentos de Hitler, utilizaremos o livro Minha
luta. Contudo, para compreendermos esse livro, algumas informações complementares
poderão ser trazidas à nossa análise.
O primeiro capítulo de Minha luta é designado como Na casa paterna e, por seu
intermédio, podemos obter algumas informações importantes para a compreensão do
pensamento de Hitler. A primeira delas nos mostra que o futuro governante, apesar de ter
nascido na Áustria, não essa nação como um Estado soberano. Para ele, a real casa
paterna seria a Alemanha e a esse Estado deveriam pertencer todas as nações que tivessem
“povos em cujas veias corre o mesmo sangue” (HITLER, 2005, p.09). Também nesse
capítulo, o futuro governante explicita sua inclinação pessoal para a arte da pintura,
inclinação que, segundo Hitler, o fará perseguir uma imagem de governo baseada na
valorização da perfeição e do belo.
Nos capítulos seguintes, Hitler mescla sua autobiografia com explicações a
retratarem a finalidade do movimento Nacional Socialista.
Trazemos à nossa análise dois trechos que podem resumir as finalidades que seriam,
segundo Hitler, almejadas por esse movimento:
O objetivo de nossa luta deve ser o da garantia da existência e da
multiplicação de nossa raça e do nosso povo, da subsistência de seus filhos
e da pureza de sangue, da liberdade e da independência da pátria, a fim de
que o povo germânico possa amadurecer para realizar a missão que o
criador do universo a ele destinou. (ibidem, p. 160).
331
Como nacionais-socialistas, costumamos ver na nossa bandeira o nosso
programa. No vermelho, vemos a idéia socialista do movimento, no branco,
a idéia nacional, na cruz da suástica a missão da luta pela vitória do homem
ariano, simultaneamente com a vitória da nossa missão renovadora que foi e
será eternamente anti-semítica. (ibidem, p. 371).
Nos trechos acima destacados, percebemos o início das idéias que posteriormente
guiariam a luta nazista: a importância de habitar em um Estado livre e independente, a
supremacia destinada à raça ariana, a importância da luta pela pureza dessa raça, o
socialismo almejado para a pátria a ser criada e a valorização da cruzada anti-semita.
Esses principais pontos colocados por Hitler podem ser divididos em duas
categorias: uma delas ligada às questões políticas, a outra, em que se destacam elementos
raciais.
No início deste subcapítulo e nas análises anteriores, já observamos o que seria esse
Estado Germânico pretendido por Hitler. Portanto, no que concerne à categoria ligada às
questões políticas, devemos aqui acrescentar informações que tratem apenas do socialismo
almejado por Hitler.
Em Minha luta, Hitler explica o socialismo por ele pensado, diferenciando sua
doutrina da que foi defendida por Karl Marx.
Desse modo, o futuro governante observa que o “veneno mortal” (ibidem, p. 243)
da teoria marxista é a luta de classes que visa o rebaixamento dos superiores. Para o futuro
líder nazista, o governo deve sim lutar pela igualdade, contudo essa luta deve ser pautada
pela elevação consciente da posição cultural e social dos trabalhadores arianos. Ou seja,
salienta Hitler, a “hidra comunista” (ibidem, p. 502) é um monstro que quer derrubar a
332
hierarquia social. No nacional-socialismo encontram-se homens destinados a fundar uma
hierarquia baseada na igualdade, destinada aos que pertençam à pura e superior raça ariana.
Atentamos para o fato de que Hitler frisa, a cada momento de seu texto, que Marx
pertence à raça judaica. Sendo assim, pelo menos em Minha luta, os comunistas devem ser
exterminados não só pela política não hierárquica por eles defendida, mas também, e
principalmente, por fazerem parte da “piolhenta raça inferior” (ibidem, p. 127).
Devemos salientar que, nos anos em que Hitler esteve no governo (de 1933 a 1945),
judeus e comunistas foram sempre perseguidos. Contudo, se eles se irmanavam na
perseguição, nos Campos de Concentração eles recebiam “marcas” distintas. Como nos
relata a História, enquanto os judeus recebiam a estrela de David como marca de
identificação, os comunistas recebiam um triângulo vermelho. Além disso, acrescentamos,
como nos mostra a peça O interrogatório de Peter Weiss, em Auschwitz os judeus eram
colocados como presos raciais e os comunistas como presos políticos.
Iniciamos nossa análise comparativa entre as idéias de Hitler e Orfeu observando
que a questão política não pertence ao canto da personagem santareniana. Ou seja, em
Orfeu, tanto o Estado Germânico a ser fundado quanto a luta socialista não são objetos de
discussão. Sendo assim, ao contrário do que ocorre nos Campos de Concentração nazistas,
Orfeu não tem entre suas vítimas nenhum comunista.
Devemos ressaltar, entretanto, que, apesar de Orfeu não possuir motivação política
em seus assassinatos, Santareno, criador dessa personagem, como caberá à conclusão
discutir, pode ter tido alguma motivação dessa ordem ao escrever O inferno.
Todavia, se a personagem santareniana não herdou de Hitler o ódio pelos
comunistas, o mesmo não podemos afirmar em relação à profunda aversão pelos judeus.
333
Para comprovarmos este sentimento comum a ambos, trazemos, respectivamente, a visão
de Hitler e de Orfeu acerca do povo judeu.
Em Minha luta, Adolf Hitler levanta sua aversão aos judeus sobre dois pilares: um
deles aborda a relação que o judeu tem com a decadência monetária da Alemanha e de
outras nações germânicas; o outro defende que a raça judaica é inferior e, como tal, pode
contaminar a raça ariana.
Observando a questão monetária, assim explicita o füher acerca do perigo judaico:
“Começa com empréstimos de dinheiro e, como sempre, com juros usurários. Na verdade,
foi ele quem, por esse meio, introduziu o juro”. (ibidem, p. 229)
97
.
No que concerne à questão racial, as argumentações de Hitler deixam de ser
objetivas e trazem à tona todo nojo e ódio que o futuro governante nazista nutriu contra os
judeus.
Em diversos momentos de seu livro, Hitler salienta que os judeus são grandes
mentirosos e, como tais, colocaram a questão judaica como uma questão religiosa quando,
na realidade, ela seria uma questão de raça. Além disso, como arauto de uma missão
renovadora, Hitler descreve os judeus com palavras a revelarem sua ojeriza: o judeu carrega
na sua aparência uma “imundice física” igualável somente às suas “nódoas morais”
(ibidem, p. 47); ele é um “parasita incorporado ao organismo de outros povos” (ibidem, p.
226), uma “personificação do diabo” (ibidem, p. 239), um fermento de decomposição dos
povos e das raças” (ibidem, p. 334).
97
Como vimos em análise anterior, Ezra Pound possui essa mesma opinião revelada por Hitler. Nas
transmissões radiofônicas realizadas por Pound na Itália fascista de Mussolini, o autor também detecta no
povo judeu a cobrança excessiva de juros e alia a essa cobrança o “sujo poder que essa raça” exerce sobre as
nações. Chamando esse poder de “usocracia”, Pound justifica seu anti-semitismo.
334
Com palavras a propagarem os ideais de seu “Pai Hitler” (SANTARENO, s.d., p.
64), assim Orfeu vê a judia Ann: ela é “(...) fedorenta judiazita, herdeira da semente podre
duma raça suja!(ibidem, p. 66), uma “(...) pequena judia, pequena, mas minada pelos
vermes podres da raça, da raça traiçoeira e servil, da raça piolhosa e fedorenta: Uma
pequena judia, uma cria de abutres !...” (ibidem, p. 116).
Poderíamos salientar, ao observarmos os tratamentos usados por Orfeu, que o ódio
racial é o que prevalece na influência que o assassino da charneca recebeu de Hitler.
Ainda a falar da desigualdade entre as raças, Hitler aborda como os arianos devem
agir em relação aos negros. Em Minha luta, o futuro governante nazista pouco se refere aos
negros, contudo, quando o faz, não os vê como seres humanos, mas como animais.
Em uma das partes de seu texto, Hitler diz que a técnica moderna permite que o
ariano “possa dispensar os animais” (HITLER, 2005, p. 219). Sendo assim, conclui o futuro
governante, o ditado popular “o negro fez a sua obrigação, pode se retirar” (ibidem,
loc. cit
.)
deve ser o pensamento a guiar um governo de raça ariana.
Em outro momento, o futuro governante nazista observa que a idéia ética do direito
à existência não deve ser seguida se ela implicar a defesa dos negros e dos mestiços, pois a
existência desses envolve a perda de todos os conceitos humanos do belo e do sublime”
(ibidem, p. 292).
Acrescentamos que Orfeu também foi influenciado por Hitler em seu ódio pelos
negros. Na peça santareniana, ao falar de suas timas, o assassino assim descreve John
Huston: “um esfomeado farroupilha, um negro pequeno, mas hediondo, filho e neto de
negros ainda mais repugnantes” (SANTARENO, s.d., p.66); “um negro... arremedo de
homem, carne maciça não assoprada pelo espírito, animal com forma humana” (ibidem, p.
335
116). Ou seja, seguindo o pensamento de seu “mestre”, Orfeu vê o negro como um animal a
ser exterminado.
Observamos aqui que em 1924, ano em que escreveu Minha luta, a idéia de
extermínio podia ser detectada nas palavras de Hitler. No trecho anteriormente transcrito,
essa idéia aparece ligada ao “não direito de existir” dos negros e dos mestiços, contudo,
salientamos, logo no início de seu texto Hitler já a tinha ampliado para todos os que
prejudicassem a soberania da raça ariana. No segundo capítulo de sua obra, assim escreve o
futuro chefe nazista:
Quando um tempo vier, não mais empanado pela sombra da consciência da
própria culpabilidade, a conservação de si mesmo criará a tranqüilidade
íntima, a força exterior, brutal e sem considerações, para matar os maus
rebentos da erva ruim. (HITLER, 2005, p.28).
O tempo profetizado por Hitler em 1924 passa a vigorar quando o governante
nazista sobe ao poder. Nesse tempo a conservação da raça ariana é levada a termo e a
culpabilidade não é sentida, como vimos nas análises anteriores, pelos que assassinam “os
maus rebentos da erva ruim”.
Em O inferno, Orfeu almeja a volta desse tempo:
Quando voltar o tempo deste canto, nunca mais estaremos sós, Eurídice.
Quando este canto for a respiração do mundo e sê-lo-á, desta vez!
torturar será lícito, corromper será necessário, matar se justo. Então
seremos verdadeiramente livres! (Vai ao aparelho e muda a face do disco:
Ouve-se, em alemão, um discurso político de Hitler. Orfeu é invadido por
uma embriaguez, crescente e raivosa:) Pai Hitler!... Chefe!... Mestre!...
Santo!... (...) Orfeu e Eurídice são apenas noviços. Não mais que noviços...
(SANTARENO, s.d., p.64).
A qualidade de noviço atribuída por Orfeu ao casal de assassinos é pertinente uma
vez que as mortes por eles ocasionadas a da judia Ann e a do negro John mostram-nos
336
como seguidores do caminho profetizado por Adolf Hitler: o Pai, o Chefe, o Mestre, o
Santo dos que privilegiam a foa exterior e brutal em detrimento de qualquer consciência.
Orfeu também tem entre suas vítimas o homossexual Edward e, em cada ato
realizado contra esse homossexual, o assassino da charneca sempre faz referência a Hitler.
Em O inferno, “uma das mais lebres marchas cantadas pelas juventudes
hitlerianas, no auge do nacional-socialismo” (ibidem, p. 31) é colocada na vitrola quando
Orfeu planeja matar Edward. Além disso, no auge da fúria de Orfeu, o canto nazista e o
xingamento de “bicha” (ibidem, p. 32) proferido pelo assassino formam uma sinfonia
uníssona. Por fim, ao falar de suas vítimas, Orfeu põe ao lado da “judia” e do “negro”,
Edward “um baratíssimo homossexual, cuspido centímetro a centímetro, desde a cabeça aos
pés” (ibidem, p. 66), um reles efeminado” (ibidem, p. 116), “um homossexual, íncubo de
sangues e matérias” (ibidem, loc. cit.).
Todavia, notamos, se Hitler se refere aos judeus e aos negros como objetos de
extermínio, sua posição em relação ao homossexual é trabalhada apenas de forma indireta
no texto de Minha luta. Destacamos abaixo um momento em que essa opinião indireta é
percebida.
No Capítulo II da segunda parte do livro, o futuro governante observa que o Estado
e a Igreja devem estimular a procriação da raça pura. Acrescenta, então, que uma nova
Família não pode ser formada por um indivíduo doente, que possua defeitos físicos ou que
“tenha certas taras hereditárias” (HITLER, 2005, p. 307).
Se observarmos que homossexual se encaixaria, segundo o entendimento nazista,
nessa última categoria de seres, podemos dizer que Hitler colocou nesse trecho, mesmo que
implicitamente, uma opinião a eles contrária.
337
Acrescentamos ainda que Hitler pode ter se eximido de falar diretamente do
homossexualismo como um crime por causa do “Parágrafo 175” o código criminal
germânico. Criada em 1871, essa lei designava como indivíduos criminosos todos aqueles
que eram homossexuais ou que tinham relações sexuais com animais.
Salientamos que nos Campos de Concentração, esses indivíduos recebiam uma
“estrela rosa” como marca de seu crime. Contudo, se a chegada dos Aliados pôs em
liberdade todos os presos encarcerados pelos nazistas, os que tinham recebido o estigma da
“estrela rosa” continuaram a ser vistos como criminosos e, portanto, foram novamente
encarcerados pouco tempo depois.
Observamos que o “Parágrafo 175” vigorou, na Alemanha Oriental, até o ano de
1950 e na Alemanha Ocidental foi revogado apenas em 1994, quando houve a reunificação
alemã.
Ressaltamos ainda que o extermínio aos homossexuais praticado pelos nazistas é de
conhecimento comum, contudo, nenhum dos intertextos trazidos por Santareno fala desse
tipo de “holocausto”.
Se levarmos em consideração que o dramaturgo português Bernardo Santareno era
homossexual, podemos inferir: a ausência histórica e literária acerca do extermínio nazista
feito aos homossexuais pode ter estimulado Santareno a trazer ao seu texto a denúncia a
essa ptica movida pelos que acreditam na pureza da raça.
Sendo assim, ao praticar crime de assassinato contra judeus, negros e homossexuais,
Orfeu estaria submetendo à sua violência não somente as vítimas que foram perseguidas
pelo nazismo, mas também acrescentando ao seu móbil a questão naturalista defendida por
Hitler. Ou seja, para Hitler e para Orfeu, os judeus devem ser exterminados porque são uma
338
raça suja e inferior; os negros porque não mais o necessários como animais; os
homossexuais porque são seres cujas taras podem sujar o puro sangue ariano.
Salientamos que uma outra relação a ligar Orfeu e Hitler é feita pelo psiquiatra
Manchester.
Em sua fala final, o psiquiatra de O inferno assim compara o governante nazista ao
assassino da charneca:
Entre o mestre, Adolf Hitler, e o discípulo, Orfeu Wilson, há realmente
pontos de contato. Aliás a história psico-sociológica de Hitler sugere, com
nitidez, a de muitos delinqüentes. Tanto Orfeu como Hitler viveram uma
infância banida: Órfão de pai e mãe o primeiro, filho natural o segundo.
Tanto um como o outro tiveram uma vida escolar e de aprendizagem
profissional caracterizadas pelos fracassos constantes. Tanto Orfeu como
Hitler foram bons observadores da vida e grandes leitores, em todas as
circunstâncias, as mais agudas e condicionantes. Tanto um como o outro,
sexualmente pouco dotados, com sentimentos de inferioridade nesta zona,
sentiram profundamente uma necessidade imperiosa de afirmação em
potência, em força imagens fingidoras de virilidade: Pois haverá poder
humano maior do que matar? Tanto Hitler como Orfeu, em escalas
diferentes de acção, deram largas à sua ‘necessidade justiceira’ mórbida, ao
seu narcisismo sádico, ao nico e absoluto desprezo pela vida dos outros. O
racismo foi o veículo para ambos. A história de Hitler tal como em ponto
mais pequeno a de Orfeu, não é mais do que a história de uma aliança
poderosa entre o instinto de poder e a capacidade de destruição na pessoa
dos outros (...) (SANTARENO, s.d., 218)
Já abordamos, em partes anteriores de nossa análise, uma comparação entre a
infância de Hitler e a de Orfeu. Naquele momento, discutimos que vários assassinos, dentre
eles os dois acima tratados, tiveram uma infância infeliz, fato que poderia ter causado seus
distúrbios comportamentais na vida adulta (ou seja, a orfandade, a miséria ocasionada pelo
pós-guerra, o encarceramento contínuo poderiam ter gerado o futuro assassino). Não
voltaremos a essa questão nesse momento da análise, pois nenhum dado novo nos foi
acrescentado desde o estudo de Sartre acerca da influência ou não do meio no indivíduo.
339
Contudo, se não cabe aqui observarmos algumas das questões tratadas pelo
psiquiatra Manchester (entre elas a, impossível de se comprovar, virilidade ou não de
Hitler), podemos observar que as análises feitas anteriormente revelam o governante nazista
como uma pessoa com grande instinto de poder e extrema capacidade de destruição. Ou
seja, tanto nos trechos de Minha luta quanto da peça O interrogatório e O processo de
Nuremberga, temos o retrato de um governante assassino.
Além disso, para comprovar que Hitler foi um grande leitor, trazemos à nossa
análise um último trecho de Minha luta.
Sob o nome de leitura, concebo coisas muito diferentes do que pensa a
grande maioria dos chamados intelectuais. Conheço indivíduos que lêem
muitíssimo, livro por livro, letra por letra, e que, no entanto, não podem ser
apontados como ‘lidos’. Eles possuem uma multidão de ‘conhecimentos’,
mas o seu cérebro não consegue executar uma distribuição e um registro do
material adquirido. Falta-lhes a arte de separar, no livro, o que lhes é de
valor e o que é inútil, conservar para sempre na memória o que lhes
interessa e, se possível, passar por cima, desprezar o que não lhes traz
vantagens, em qualquer hipótese não conservar consigo esse peso sem
finalidade. A leitura não deve ser vista como finalidade, mas sim como
meio para alcançar uma finalidade. Em primeiro lugar, a leitura deve
auxiliar a formação do espírito, a despertar as disposições intelectuais e
inclinações de cada um. Em seguida deve fornecer o instrumento, o material
de que cada um tem necessidade na sua profissão, tanto para o simples
ganha-pão como para a satisfação de mais elevados desígnios. Em segundo
lugar, deve proporcionar uma idéia de conjunto do mundo. Em ambos os
casos é, porém, necessário que o conteúdo de qualquer leitura não seja
confiado à guarda da memória na ordem de sucessão dos livros, mas como
pequenos mosaicos que, no quadro de conjunto, tomem o seu lugar na
posição que lhes é destinada, assim auxiliando a formar este quadro no
cérebro do leitor. De outra maneira, resulta um bric-brac de matérias
aprendidas de cor, inteiramente inúteis, que transformam o seu infeliz
possuidor em um presunçoso, seriamente convencido de ser um homem
instruído, de entender alguma coisa da vida, de possuir cultura, ao passo
que a verdade é que, a cada acréscimo dessa sorte de conhecimentos, mais
se afasta do mundo, até que acaba em um sanatório ou, como ‘político’, em
um parlamento.
(HITLER, 2005, p. 32).
A citação acima, apesar de extensa, é importante para que possamos enfocar uma
outra visão acerca dos trechos copiados por Orfeu em seu caderno. Poderíamos pensar,
340
como falamos por outras vezes, que, ao perverter o sentido do que fora copiado, Orfeu o
fizera porque não compreendera o que fora dito por cada autor. Contudo, o trecho acima
nos apresenta um novo ponto de vista a ser considerado.
Segundo Hitler, a leitura deve ser um meio para se conseguir alcançar uma
finalidade e, como tal, o leitor não precisa focar em seu entendimento o que foi dito pelo
autor da obra, mas sim conservar na memória mosaicos que, em um quadro conjunto,
auxiliem no objetivo por ele almejado.
Podemos apontar que até nesse sentido Orfeu é seguidor das idéias de Hitler, pois
todas as leituras intertextuais feitas pelo “noviço” (SANTARENO, s.d., p. 64) são
pertinentes ao que lhe ensinara aquele que considera como “Pai, chefe, mestre e santo”.
Ou seja, quando Orfeu recorta trechos das mais diversas obras e os copia em seus
cadernos, ele parece estar construindo os pequenos mosaicos de que fala Hitler. Além disso,
como que seguindo o que fora ensinado pelo ditador nazista, no quadro de conjunto, os
mosaicos recortados por Orfeu tornam-se idéias que, unidas, mostram qual seria a
verdadeira finalidade de se copiar os escritos: inspirar os instintos mais cruéis do assassino
da charneca.
Para findar mais essa parte de nossa análise, podemos explicitar alguns dados do
perfil de Hitler construído nos intertextos aqui analisados.
Lazard observou que o governo de Hitler é pautado por uma doutrina ligada à
zoologia. Nas palavras do ditador nazista, bem como nas divulgadas por seus seguidores,
podemos perceber que o autor de O julgamento de Nuremberga estava certo em sua
colocação.
341
Ao defender os arianos, Hitler e os demais seguidores do nazismo referem-se a uma
“raça superior”. Em nome da preservação dessa espécie, falam de extermínio dos
imperfeitos e dos que pertencem às “raças inferiores”.
Além disso, como seguidores de um pragmatismo que lhes é usual, ou do caráter
“volitivodo pensar, os nazi-fascistas citam os terrores da primeira guerra e a “usocracia”
judaica como os culpados pela miséria humana; contudo, esses fatos só são por eles
lembrados como formas de justificar o maior bem por eles cultivado: o natural instinto de
extermínio tão caro aos animais.
Sendo assim, colocando abaixo todos os conceitos morais cultivados pelo
humano, Hitler e seus seguidores proclamam um novo porvir: um tempo em que a
afirmação de potência daqueles que se dizem superiores se faz perante a destruição em
massa dos que são considerados inferiores.
Julgar que esse é um pensamento ligado ao divino, a um ser que diz estar
“realizando a obra de Deus” (HITLER, 2005, p. 53), é ler e contar a história com olhos de
Orfeu.
III.7- Arte segundo Jean Cocteau.
jurado (a ler.): ‘Cultiva precisamente aquilo que os outros condenam em
ti, porque isso é que és tu. (Tosse) Outro degenerado, com certeza! (Lendo
a assinatura. Pronuncia como um inglês que não sabe francês.) Jean
Cocteau... Não sei muito bem o que é que o autor quer dizer com este
palavriado, mas... cheira-me a de arroz! (Riso grosseiro).
(SANTARENO, s.d., p. 189 - 190).
342
A frase lida pelo quinto jurado é mais uma das que pertence ao caderno de Orfeu.
Ao ler essa frase, como podemos observar pelo trecho acima, o jurado em questão admite
não compreender o significado das palavras, mesmo assim, não se abstém de qualificar o
autor dessas e seu “copista” de degenerados, termo que se refere a alguém que corrompeu
ou depravou costumes.
Observemos o sentido que a mesma frase tem para Jean Cocteau (1889 1963) e
para Orfeu com o intuito de compreendermos até que ponto eles poderiam ser assim
classificados.
No opúsculo Le coq et l’arlequin (1918), encontramos as palavras francesas que
originaram a versão portuguesa copiada por Orfeu: “Ce que le public te reproche, cultive-
le, c’est toi” (COCTEAU, 1948, p. 35).
Na obra paradigma, essas palavras fazem parte de um conselho que Cocteau dirige a
todos os artistas. Segundo esse autor, o público ama reconhecer uma obra e, portanto,
detesta quando a arte traz novos conceitos. Contudo, a verdadeira arte não deve ser pautada
pelo gosto conservador do público, mas sim por uma oposição que revela um novo
pensamento acerca do mundo, o pensamento que foi censurado e falseado por todos.
O opúsculo fala de balé, de teatro, de pintura, de arquitetura, mas é na música que
Cocteau identifica duas personalidades que representam o espírito conservador do passado
e o espírito audacioso do presente.
Nas composições de Richard Wagner (1813 1883), Cocteau identifica uma
harmonia germânica que agrada o público, mas que não mais representa o tempo presente.
Nas de Erik Satie (1866 1925), por sua vez, ele observa uma simplicidade e uma
originalidade que surpreendem a cada momento. Satie, acrescenta Cocteau, é um
compositor que consegue trazer o cotidiano à arte, que é capaz de unir o preciso ao
343
impreciso, é um musicista, enfim, que constrói uma verdadeira usina de sons, capaz de
revelar a riqueza acrobática do verdadeiro artista moderno.
Como exemplo de obra inovadora de Satie, Cocteau cita o balé Parade (1916
1917). Necessário enfatizarmos aqui que o balé em questão foi concebido não só por Satie,
mas também por Pablo Picasso (1881 – 1973) e pelo próprio Jean Cocteau.
O poeta nos traz então explicações acerca do tema, da cenografia e da música dessa
obra que qualifica como moderna e inovadora.
Em uma das ruas de Paris, o entardecer do verão chega com uma parada circense.
Quatro artistas um mágico chinês, uma garotinha americana e dois acrobatas fazem
performances com intuito de atrair o público para o espetáculo da noite. Ao perceberem que
os passantes não se interessam pelas atuações, os artistas fazem ações cada vez mais
desesperadas. Nessas ações se pode observar, segundo Cocteau, não os acontecimentos
externos, mas também o espetáculo que ocorre no interior de cada personagem. Na
dimensão interna, o mágico chinês é um hipócrita capaz de torturar missionários, a
garotinha possui uma melancolia que faz com que navios inteiros desapareçam e os
acrobatas, por fim, não são homens de extrema desenvoltura, mas sim meros patetas que
fazem suas performances porque possuem uma desmedida confiança nos anjos.
Ao falar do cenário e dos figurinos concebidos por Picasso, Cocteau salienta que
esses foram capazes de colocar em dúvida a falsa realidade cênica, trazendo ao palco um
mundo onde os dançarinos reais se transformam ora em fantoches ora em personagens
sobre-humanas.
Na música, comenta por fim Cocteau, sons de máquina de escrever, tiros de pistola,
barulho da turbina de um avião e sirenes são capazes de revelar o cotidiano da modernidade
e também de trazer ao espetáculo o inefável do inconsciente humano.
344
Muitos espectadores observaram Parade com olhos céticos. Alguns, porém, viram
nesse espetáculo uma nova arte a germinar.
Dentre os aplausos recebidos por Parade, salientamos os do poeta Appolinaire
(1880 1918) que, após assistir ao espetáculo, cunhou a palavra que designaria uma das
mais importantes Vanguardas Européias: surrealismo
98
.
Dentre as vaias indignadas, estavam aqueles que, segundo Cocteau, seguiam a
vulgarização escolar da cultura aristocrática pregada pela Alemanha moderna (ibidem, p.
24).
Observemos que essas duas formas de ver Parade são o microcosmo de uma
discussão maior, o mérito ou demérito da Arte Moderna. Estudemos essas duas vertentes de
pensamento para compreendermos qual seria o sentido da frase de Cocteau para o Orfeu
santareniano.
A maior parte da obra de Cocteau tem conteúdo metalingüístico, portanto, ao
estudarmos seus textos, podemos encontrar um pensamento a nos mostrar qual é, para os
modernos, o mérito da arte que constroem.
Em seu opúsculo, como vimos, esse autor salienta que o artista de seu tempo não
deveria seguir o gosto do público, mas sim inovar uma arte já tão desgastada pela mesmice.
Com esse intuito, o pintor acrescentaria tintas à sua palheta; o músico, sons ao seu teclado,
e o poeta, palavras ao seu mundo. Contudo, essas inovações o deveriam ser feitas
somente com o objetivo de trazer uma nova forma externa à arte, mas também de mostrar
que existe em cada ser humano uma face censurada e falseada.
98
O termo utilizado por Appolinaire foi “sur-realisme”: “(...) uma nova palavra de ordem para uma forma de
arte que pretendia ser não-naturalista, não realista, super-realista.” (BERTHOLD, 2000, p. 481).
345
Sendo assim, a capacidade hipócrita de praticar a violência, a depressão extrema que
destrói sonhos e as ações simplórias movidas pela fé, sentimentos presentes nos artistas
circenses de Parade, são faces humanas que foram censuradas e que devem ser reveladas
pela arte.
Podemos concluir, a partir da leitura do opúsculo, que o artista é um homem que
mostraria o que existe além da aparência cultivada pelo ser humano. Ou seja, nas palavras
poéticas de Cocteau, teríamos a função a ser cultivada pelos artistas modernos: “On ferme
les yeux dês morts avec douceur; c’est aussi avec douceur qu’il faut ouvrir lês yeux des
vivants.” (ibidem, p.22).
Todavia, alguns homens o querem que seus olhos sejam abertos e reagem à arte
moderna, acrescentamos, com atitudes de intransigência. Dentre esses homens, destacamos
aquele que mais inspirou Orfeu santareniano, Adolf Hitler.
O balé Parade foi encenado em 1917 e o opúsculo Le coq et l’arlequim foi
publicado em 1918. Contudo, para compreendermos o que essas e outras obras modernas
podem ter provocado em pessoas como Hitler, trazemos à nossa análise um premiado
documentário pertencente à última década do século XX: Arquitetura da destruição (1992).
Nas primeiras cenas desse filme, Peter Cohen revela que Hitler tinha ambições
artísticas de se tornar um pintor reconhecido. Porém, em 1907, essas ambições foram
frustradas quando ele não foi aceito pela Academia das Artes de Viena. Contudo, se a
possibilidade da carreira no campo artístico não se realizou, Hitler, como governante,
estimulou a visão de arte em que acreditava.
Em seus discursos, para definir essa “arte ideal”, o governante alemão citava
Wagner e acrescentava aos da raça ariana: “Só entende o nazismo quem conhece Wagner
(ibidem, 8:23).
346
Richard Wagner era admirado pelo Füher não pela harmonia clássica das
sinfonias que compunha, mas também por ser um homem que defendia o anti-semitismo, o
culto ao legado nórdico e o mito do sangue puro.
Em contraposição a essa “arte ideal”, Hitler observa que o mundo estava sendo
invadido por uma arte moderna vulgar e sem valor. No campo da música, o filme não cita
quem seriam os artistas negativos para Hitler, mas o faz no campo das artes ao se referir à
exposição Arte degenerada ocorrida em Munique em 1937.
Nesse evento, artistas pertencentes aos mais diversos movimentos modernos –
Bauhaus, Dadá, Cubismo, Expressionismo, Fauvismo, Impressionismo, Surrealismo e
Nova Objetividade foram expostos para serem execrados pelos que seguiriam a visão de
“arte clássica” defendida pelos nazistas.
Acrescentamos que o governo de Hitler estimulava a opinião de que essa “arte
degenerada” revelava artistas que traziam às suas obras retratos de pessoas que sofriam de
doenças mentais. Nesse sentido, um dos colaboradores do governo, o médico nazista
Schultze, realizou um estudo em que comparava fotos de pessoas internadas em
manicômios com retratos feitos pelos “artistas degenerados”. Nas palestras que realizava,
Schultze mostrava esse cotejo e acrescentava a frase: “essas visões devem ser banidas para
sempre da Alemanha” (ibidem, 17:00).
A política de banir as visões mostradas por Schultze não se restringia a retirar dos
museus os quadros de arte “degenerada”. Ligada a um pensamento de limpeza e
preservação da raça, ela perseguia os artistas modernos e destinava a eles, e aos doentes
mentais, o fatídico extermínio.
Desse modo, segundo Cohen, ao expor seu ideal de arte a ser cultuada e de arte a ser
perseguida, o “arquiteto da destruição” Adolf Hitler construía não o edifício cultural de
347
seu governo, mas também, e principalmente, retratos do que seria o homem ariano desejado
pelos nazistas e dos “vermes” a serem por eles exterminados (dentre eles, os doentes
mentais).
Sendo assim, a perseguição aos “degenerados” e às suas obras não era uma simples
manifestação cultural, mas sim mais uma das manobras que Hitler teria utilizado para pôr
em prática sua política de extermínio.
Jean Cocteau, Erik Satie e Pablo Picasso não foram expostos na mostra ocorrida em
Munique. Podemos inferir, entretanto, que suas obras, por serem surrealistas e cubistas,
certamente seriam julgadas pelo pensamento nazista como pertencentes às visões a serem
banidas da Alemanha hitlerista. Ou seja, aos olhos nazistas, tais autores também seriam
doentes a serem exterminados.
Além disso, lembramos, Wagner, homem e compositor cultuado por Hitler, foi
utilizado por Cocteau como o maior exemplo de uma arte ultrapassada.
Por fim, podemos agora comparar as idéias de Cocteau às de Orfeu para sabermos
se ambos poderiam ser designados, como o fez o quinto jurado, por um mesmo adjetivo, o
de “degenerados”.
A frase de Cocteau, como vimos, está inserida em um artigo a defender que o artista
inovador deve sempre cultivar o que o público nele condena, pois somente assim a arte
poderá refletir o tempo moderno e não um gosto já ultrapassado. Contudo, como nos
mostrou o estudo do filme Arquitetura da destruição, o que para Cocteau significa
modernidade, para os nazistas, significa degeneração. Ou seja, se observarmos Cocteau
com olhos modernos, o adjetivo “degenerado” o é pertinente para qualificá-lo; mas se o
observarmos com olhos nazistas, a palavra estaria empregada no sentido correto.
348
Como vimos nas análises anteriores, o pensamento de Orfeu é guiado pela
concepção hitleriana de mundo. Nesse sentido, parece estranho ele repetir as palavras
daquele que seria um “degenerado” para o pensamento nazista. Entretanto, salientamos,
Orfeu usa essas palavras o para se referir à arte, mas sim para fundamentar, através da
frase de outrem, sua atitude de cultivar os instintos assassinos e sexuais que nele os outros
condenam.
Além disso, ressaltamos, assim como Hitler usara a arte moderna para justificar a
perseguição assassina que exterminava doentes mentais, Orfeu usou da frase de Cocteau
para alicerçar os instintos que os outros nele condenam. Sendo assim, como lhe ensinara o
mestre, a frase de Orfeu não seria uma forma de mostrar que este assassino admira Cocteau,
mas sim que ele é um leitor que observa, como o mestre Hitler lhe ensinara, a leitura “como
meio para alcançar uma finalidade” (HITLER, 2005, p. 32).
Ou seja, o adjetivo “degenerado” pode ser aplicado a Orfeu se pensarmos que ele é
alguém que corrompe idéias. Além disso, por ser um serial killer que cometeu crimes de
natureza sexual, Orfeu também poderia ser classificado como “degenerado”.
Contudo, acrescentamos, devemos observar a possível proximidade entre o poeta
Cocteau e o poeta nazista Orfeu não somente guiados pela razão, mas também guiados por
interpretações ligadas ao surrealismo.
Nesse sentido, poderíamos enxergar em Hitler e em Orfeu homens cujos atos são
manifestações extremas de seres que não tiveram seus dons artísticos reconhecidos pelo
público.
Dessa forma, podemos igualar Hitler ao mágico chinês de Parade, pois a rejeição da
Academia das Artes de Viena, seu público mais próximo, fez com que o governante
manifestasse na política sua hipócrita capacidade de torturar e exterminar humanos.
349
Todavia, a arte cultuada por Hitler ultrapassou a visão pictórica e suas obras,
expandidas pela moldura do discurso racial, passaram a ser não apenas paisagens
desenhadas por um artista medíocre, mas sim figuras arianas cuja perfeição e harmonia
escondiam traços atrozes a divulgarem o extermínio de milhões como “Arte poéticaa ser
seguida.
Nesse momento da análise, para compreendermos o pensamento de um dos
seguidores dessa Arte poética”, o Orfeu santareniano, julgamos necessário ampliarmos as
luzes do nosso entendimento artístico com outra obra de Cocteau: O sangue de um poeta
(1930).
Nas primeiras cenas desse filme, um artista desenha o retrato de uma mulher.
Entretanto, a boca desse retrato, ao ser apagada, toma vida na mão desse pintor e passa a
pensar e a respirar. O artista, atormentado por essa visão, passa a procurar possíveis saídas.
Ao ver a estátua clássica no canto do ateliê, tenta pregar nela a boca que o atormenta. A
estátua toma vida, e a boca manifesta uma afirmação: Você acha que é fácil se livrar de
uma ferida fechando a boca da ferida” (COCTEAU, 11:43). O espelho próximo à estátua se
transforma em porta de entrada para um outro local. Nesse novo universo, estranhas
imagens revelam possíveis feridas a serem vividas – o fuzilamento de um homem, o
sofrimento de uma criança que uma velha obriga a trabalhar como artista, o desprezo dado
a um hermafrodita, a maldade de jovens estudantes que matam um amigo, o desejo de
glória, o desdém da platéia para com a arte, a vontade de suicídio... Para findar essas
estranhas imagens, a estátua clássica segura, com luvas negras, a lira de Orfeu e, formando
um retrato imóvel, ouve a voz do narrador a dizer: O tédio mortal da imortalidade”
(ibidem, 55:00).
350
Salientamos que, antes das ações anteriormente descritas, um écran informa que
cada poema é um brasão a ser decifrado. Não queremos aqui interpretar os brasões do
surrealismo, nem compreender com exatidão o brasão cultuado por Hitler, mas devemos
almejar compreender a insígnia criada por um Orfeu nazista a citar Cocteau.
Orfeu é poeta pelo nome que carrega, mas também o quer ser porque trouxe ao
mundo o seu retrato de arte. Nesse retrato, podemos sublinhar diferentes elementos. De
Hitler, ele copia uma “arte poética” que divulga o extermínio de pessoas como uma forma
de preservar a pureza da raça. De Cocteau, copia um artista moderno que sofre com as
feridas da orfandade, da homossexualidade e da violência; copia ainda uma “arte poética” a
pregar que o artista deve cultivar em sua arte o que o público mais condena. No brasão
final, Orfeu santareniano é um poeta a produzir imagens em que corpos assassinados são
metáforas a compor uma estranha lírica moderna.
Para findar esta parte de nossa análise, trazemos o canto da juventude Nacional-
Socialista que ecoa na película de Cohen: “Descanse tranqüilo onde se canta./ Os maus não
cantam.” (COHEN, 1992, 1:15:30).
Na peça O inferno, cantos nazistas também são tocados, não sabemos se um deles é
o trazido ao filme de Cohen. Contudo, devemos salientar, os sons de máquinas de escrever,
de tiros de pistola e de sirenes – notas que Satie, segundo Cocteau, acrescentou à música de
Parade para abrir os olhos da humanidade – nos trazem mais tranqüilidade do que os sons
de extermínio provocados pela juventude nazista e pelo canto entoado por Orfeu.
351
III.8- Poesia e ação poética em Arthur Rimbaud.
No ano de 1912, uma carta escrita por Arthur Rimbaud (1854 1891) é publicada
nos meios acadêmicos. O texto, denominado de Carta do vidente (1871), fora escrito
quando o poeta tinha dezessete anos e nele podemos encontrar elementos que iriam inspirar
os surrealistas. Vejamos o conteúdo dessa carta para compreendermos porque Orfeu, um
pseudo-artista surreal, trouxe um trecho dela ao seu caderno.
Tendo o poeta Paul Demeny como interlocutor, Rimbaud almeja colocar nesse texto
palavras que possam delinear suas visões acerca da “literatura nova” (RIMBAUD, 2005, p.
77). Contudo, a cada traço escrito, o jovem poeta constrói não só o retrato da poesia futura,
mas também, e principalmente, o perfil do “vidente” (ibidem, p. 80) que será capaz de
concebê-la.
No que concerne à obra, Rimbaud observa que a poesia grega, pela musicalidade
dos versos que dão ritmo à ação, deve servir de modelo à nova poesia, entretanto esta não
pode apenas copiar aquela, mas sim superá-la. Criando uma língua que seja capaz de
resumir perfumes, cores, sons e pensamentos, a nova poesia deve falar de alma para alma,
deve expor ao mundo o desconhecido, deve ser um canto que expresse todas as formas de
beleza.
Como exemplo dessa nova poesia, o jovem traz dois salmos e um canto religioso à
carta. O primeiro salmo poetiza a guerra primaveril travada entre o “lago de águas
vermelhas” (ibidem, p. 77) da Comuna de Paris e o vôo de seus anjos opositores. O
segundo, canta o amor por feiosas namoradas que o “estrelas vadias” (ibidem, p. 81)
concebidas pela Natureza para despertar um amor que encanta o violino do poeta. o
canto religioso, narra os escatológicos “Agachamentos” (ibidem, p. 84) do Frei Milotus,
352
ações capazes de fazerem fecundos os raios da lua e os rastros de luz das “voltas do cu”
(ibidem, p. 85).
Orfeu santareniano escolhe copiar em seu caderno não essa prosa ou esses versos
que falam da nova poesia a ser criada, mas sim dois trechos que revelam o retrato do poeta
que pode conceber essa nova “arte eterna” (ibidem, p. 82).
O poeta transforma-se em vidente por um longo, imenso e racional
desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de
sofrimento, de loucura (...) Aos olhos dos outros, ele acabará por ser o
grande doente, o grande criminoso, o grande maldito o sábio supremo.
(SANTARENO, s.d., p. 188).
Os trechos acima, se interpretados à luz dos intertextos analisados, reforçam os
traços de o Orfeu santareniano. Ele é um poeta cuja razão conduz ao desregramento, ou
seja, conduz ao prazer advindo das diferentes formas de amor, de sofrimentos e de loucura.
Além disso, como observamos em nossa análise, por cultivar esse desregramento, Orfeu
será visto pelos outros como um homem que sofre de distúrbios mentais, como um
criminoso, como um perverso assassino; contudo, essas visões a lhe reprovarem nada mais
são do que discursos que confirmam a suprema sabedoria de poder que ele acredita possuir.
Para compreendermos se esse discurso de Orfeu é o mesmo proferido por Rimbaud,
devemos observar o parágrafo a que pertencem os trechos copiados:
O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido
desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de
sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os
venenos, para só guardar as quintessências. Indizível tortura na qual ele
precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana; onde ele se torna entre
todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo
Sábio! Pois ele chega ao desconhecido! ele cultivou sua alma, rica,
mais que nenhum! Ele chega ao desconhecido; e quando, enlouquecido, ele
acabaria por perder a inteligência de suas vies, ele as viu! Que ele morra
no seu salto pelas coisas incríveis e inomináveis: chegarão outros horríveis
trabalhadores; eles começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!
(RIMBAUD, 2005, p.80).
353
O parágrafo acima nos revela que Orfeu omitiu alguns trechos ao copiar Rimbaud.
Vejamos se essa omissão modificou as idéias defendidas pelo jovem poeta francês.
Nesse trecho de sua Carta do vidente, Rimbaud observa o poeta como aquele que
procura chegar ao amplo entendimento do desconhecido que habita a alma humana. Para
atingir esse objetivo, observa o jovem escritor, o poeta deve cultivar racionalmente o
desregramento de todos os sentidos, tornando-se não só fonte e desaguar de todos os males
possíveis, mas também aquele que será marginalizado pela sociedade que não lhe
compreende. Contudo, ao atingir esse novo horizonte de visão por ele almejado, o poeta se
tornará o supremo bio e, ao morrer, outros horríveis trabalhadores” poderão ampliar as
visões que ele teve.
Ao compararmos o pensamento de Rimbaud com o de Orfeu, podemos observar que
“os fins” do poeta francês não são os mesmos cultivados pelo assassino da charneca.
Rimbaud visiona o ser supremo como o poeta que conseguirá, através do desregramento,
chegar ao entendimento do desconhecido da alma humana. Orfeu, por sua vez, é o poeta
que pratica o desregramento, que externa a violência inerente ao inconsciente da alma
humana, não para chegar ao entendimento dessa, mas sim para comprovar que é um ser
supremo, um ser superior aos demais. Ou seja, em Rimbaud, a prática do desregramento é
um meio para se chegar ao entendimento do desconhecido; em Orfeu, ela é ação vinda do
inconsciente e que não pode ser reprimida por aquele que acredita ser superior aos demais.
Acrescentamos ainda que Rimbaud coloca o poeta como ser que esgota “nele
mesmo todos os venenos. Orfeu, por sua vez, escolhe desaguar no outro a violência
criminal e sexual que possui.
Para compreendermos esses diferentes raciocínios, e observarmos se eles são
complementares ou antagônicos, trazemos à nossa análise alguns fatos da biografia de
354
Rimbaud e, posteriormente, a interpretação que “outros horríveis trabalhadores”, dentre
eles os surrealistas e Orfeu, fizeram da obra e vida desse jovem poeta francês.
Três intervalos temporais devem ser destacados ao falarmos da vida de Arthur
Rimbaud.
O primeiro deles, que vai de seu nascimento até os quinze anos de idade,
corresponde a um período em que o menino nascido em Charleville viveu o tormento de
sentir-se aquele que não foi aceito pela sociedade. Nesse período, Rimbaud foi o órfão
abandonado pelo pai aos sete anos de idade, foi o menino a sofrer com a extrema pobreza
monetária vivida pela família, foi o estudante do Instituto Rossat que era visto pelos
colegas como um “estranho” que sabia traduzir poesia latina e escrever com primazia, foi o
jovem que fugiu de casa e que foi encarcerado na prisão de Mazas poro ter dinheiro ou
documentos.
Na adolescência, vemos o segundo período da vida de Rimbaud. Nessa fase, aquele
que sempre foi considerado pela sociedade como o doente e o criminoso maldito concebe
uma obra capaz de retratar a tortura e o prazer sentidos por quem sempre está à margem da
vida. Como teoriza em sua Carta do vidente, Rimbaud racionaliza, então, o irracional e faz
de sua vida passada e presente verrugas cultivadas por aquele que traz à sua obra as mais
diferentes formas de beleza por ele experimentadas. A orfandade, o terror da guerra, a
corrupção dos valores político-sociais, os êxtases das drogas e a sexualidade desmedida
passam a ser, portanto, retratos de uma poesia que ambiciona falar de alma para alma.
A partir de 1876, contudo, Rimbaud abdica de seu canto poético. O adolescente,
torturado por visões de um mundo obsceno, passa a ser então o homem que descarrega
navios em Marselha, o capataz de uma pedreira na ilha de Chipre e, por fim, o traficante de
armas em Harrar. Alguns dizem que esse último período da vida de Rimbaud mostrou ser
355
ele um homem que se vendeu à sociedade burguesa. Outros preferem enxergar nesses
últimos anos o manifesto de um poeta que, ao não ser aceito pela sociedade e pelos demais
poetas, escolheu evadir-se a uma vida de pura ação em povos primitivos, dentre eles, o
etíope. Salientamos que este último pensamento observa que Rimbaud não foi aceito pelos
poetas franceses de seu tempo devido à ambígua relação que mantinha com Verlaine; não
que esses poetas fossem puritanos, contudo, Verlaine era um escritor de renome e suas
aventuras com Rimbaud acabaram por aniquilar não só o homem-família que nele habitava,
mas tamm o homem social, que passou a ser um viajante vagabundo que vivia, por vezes,
no limite entre normalidade e a criminalidade.
Como data a encerrar esse último período da vida de Rimbaud, temos o dia dez de
novembro de 1891. Nesse dia, após viver trinta e sete anos, Rimbaud morre de ncer no
hospital de Marseille.
Os traços biográficos acima descritos comprovam que Rimbaud era um homem que
queria viver, na ação, todas as formas de loucura, de sofrimento e de amor. Além disso,
podemos acrescentar, na adolescência, esse desregramento vivido trouxe à literatura um
visionário que almejava expor, através da poesia escrita, o desconhecido.
Segundo Albert Camus, no livro O Homem Revoltado, os surrealistas foram os
herdeiros da revolta pensada por Rimbaud. O ensaísta observa, contudo, que alguns artistas
surreais, dentre eles André Breton (1896 1966), estimulados não pela obra de
Rimbaud, mas também pela vida desse poeta, consideraram que a ação desregrada poderia
também ser uma obra poética.
O trecho a seguir retrata essa idéia de que a violência pode ser uma forma de arte:
356
O surrealismo (...) ousou dizer, e essa é a declaração da qual, desde 1933,
André Breton vem se arrependendo, que o ato surrealista mais simples
consistia em descer à rua, revólver em punho, e atirar ao acaso no meio da
multidão. Para quem recusa qualquer outra determinação que não a do
indivíduo e de seu desejo, qualquer primado que não o do inconsciente, isso
equivale na verdade a revoltar-se simultaneamente contra a sociedade e a
razão. (...) Que significa, efetivamente, essa apologia do assassinato, senão
que, em um mundo sem significação e sem honra, é legítimo o desejo de
existir, sob todas as suas formas? O ímpeto da vida, o arrebatamento do
inconsciente, o brado do irracional são as únicas verdades puras, que é
preciso proteger. Tudo aquilo que se opõe ao desejo, e principalmente à
sociedade, deve ser destruído sem piedade.(...) Breton, que ainda carrega o
estigma dessas declarações, conseguiu fazer o elogio da traição e declarar
(o que os surrealistas tentaram provar) que a violência é a única forma
adequada de expressão. (CAMUS, 2005, p. 117 - 118).
Observamos que alguns termos do discurso acima nos lembram a poética visionada
por Rimbaud. Dentre eles, destacamos o objetivo que tinha o jovem visionário de que a
poesia fosse uma forma de expor o desconhecido, aqui denominado de inconsciente. Além
disso, assim como Rimbaud pretendia uma poesia a expressar todas as formas de beleza, os
surrealistas viram o assassínio como uma forma de arte.
Acerca dessa beleza assassina, acrescentamos ainda um pensamento de Rimbaud
frisado por Edmund Wilson em O castelo de Axel (1931).
Rimbaud sempre se afeiçoava a ver-se a si próprio no papel de criminoso.
‘Mesmo quando criança’, escreve, eu admirava o condenado incorrigível,
sobre quem se fecham as portas da prisão... Para mim ele tinha mais força
que um santo, mais bom senso que um viajante – e a si, apenas a si! Como
testemunha de sua própria glória e razão. (WILSON, 1993, p. 192).
Ou seja, se juntarmos a admiração que Rimbaud sentia pelo criminoso incorrigível à
opinião de Breton que o assassínio também seria um ato surrealista, podemos dizer que
Orfeu não seria o único poeta a praticar a violência como arte surreal inspirada por
Rimbaud. Sendo assim, esses violentos assassinos poderiam ser vistos como um dos
357
“horríveis trabalhadores” (RIMBAUD, 2005, p.80) a complementarem o horizonte do
desconhecido explorado por Rimbaud.
Contudo, devemos salientar que um ponto essencial diferencia a poesia ação
construída por Orfeu do ato surrealista observado por Breton. Em Orfeu, as mortes não
ocorrem a esmo, mas sim pelo raciocínio cruel de quem escolhe suas vítimas a partir de um
pensamento nazista.
Sendo assim, novamente podemos afirmar que esse assassino, segundo a visão
camusiana, não poderia ser classificado como um revoltado, pois seus crimes não são
movidos por paixão e sim, segundo o pensamento exposto por Camus, pela lógica de quem
desvirtua ideais que em outrem eram verdadeiros.
Salientamos ainda que Rimbaud, para Camus, foi um homem a praticar crimes de
paixão não na vida desregrada que teve, mas sim na poesia a revelar o inconsciente da alma
humana. Além disso, acrescenta o ensaísta, ao perceber que o “surrealismo não era ação,
mas ascese e experiência espiritual(ibidem, p. 121), Breton se arrependeu da declaração
em que unia arte ao ato gratuito violento e escolheu, ao invés da vida de Rimbaud, a obra
deste poeta visionário.
Contudo, se alguns “horríveis trabalhadores” (RIMBAUD, 2005, p.80) optaram pela
obra de Rimbaud, outros preferiram acrescentar notas ao seu canto de vida.
Na partitura da infância, Rimbaud e Orfeu cantaram a orfandade, a pobreza e a
prisão. Na da adolescência, os sofrimentos da guerra, os êxtases das drogas e a sexualidade
desmedida. Na lírica dessa nova arte, sons a manifestarem horizontes cada vez mais
amplos: o de Rimbaud, a poesia que expõe o desconhecido e, para alguns, a vida criminal
em Harrar; o de Orfeu, a poesia formada por corpos a serem racionalmente exterminados.
Ao fim e ao cabo, resta sempre ao poeta a escolha das linhas que quer traçar.
358
III.9- André Gide e a mais estranha das uniões.
Ao seu caderno de frases, Orfeu traz o pensamento de um dos mais fecundos autores
da literatura francesa: André Paul Guillaume Gide (1869 – 1951).
Gide viveu oitenta e um anos e produziu quase uma centena de livros. Seus
romances, peças de teatro, diários, prefácios, poemas e escritos críticos de literatura e de
política mostram os pensamentos de uma alma que, como observou André Maurois, é um
pêndulo que oscila continuamente para encontrar e mostrar aos jovens o segredo de não
envelhecer (MAUROIS, 1942, p. 85).
Orfeu atribui a frase trazida ao seu caderno a André Gide, contudo, não a
encontraremos em um dos escritos desse polígrafo francês, mas sim no livro em que o
escritor e ensaísta AndMaurois explica não só alguns dados biográficos da vida de Gide,
mas também três das principais obras desse autor: Os cadernos de André Walter (1891), Os
frutos da terra (1897) e Os moedeiros falsos (1925).
Maurois conta ter conhecido Gide em 1914, época em que os dois autores iniciaram
uma forte amizade que fez com que eles trocassem confidências acerca de suas vidas e de
suas obras.
Segundo Maurois, Gide era um burguês que tinha recebido dos pais uma educação
severa e contra esta se rebelou desde muito cedo. Entretanto, salienta o ensaísta, essa
rebeldia não pode ser analisada através de uma visão simplista, pois se rebelar significa, em
Gide, ter o direito de também aceitar: Gide era filho de pais protestantes, mas, mesmo após
ter abandonado a casa paterna, ter realizado viagens pelo mundo e ter produzido os mais
diversos escritos, ele sempre lia o Evangelho e declarava encontrar, nas palavras impressas
nesse livro, a fonte em que sua alma pode beber da matéria totalmente divina.
359
A religiosidade, portanto, está presente em Gide. Mas ela não é uma crença
vinculada a uma Igreja específica e sim o desejo, segundo Maurois, de um homem que quer
encontrar a liberdade do ser.
Em Os cadernos de André Walter, essa procura gideana aparece dividida em dois
momentos: O caderno branco e O caderno negro.
No primeiro caderno, Walter tem pela prima um amor casto que o faz sofrer. A dor
é intensa e senti-la significa viver intensamente a existência. A figura do diabo aparece
personificada em diversos corpos e pede a Walter que conceda à carne o saciar dos desejos.
Porém, seguindo sua alma nobre, Walter observa que a carne nunca pede coisas possíveis e
sim ações que deixariam o próprio diabo escandalizado.
No segundo caderno, o drama ocorre no cérebro de uma personagem a oscilar
entre o angelismo e a bestialidade. O homem Walter luta para sentir Deus ao lado dele, mas
o Diabo é que acaba por triunfar. Em sua prima, Walter a presença dos anjos, mas
quando ela se casa com outro, o sofrimento o leva à loucura e o herói logo morre de uma
febre cerebral.
Maurois observa que Walter era, na verdade, o próprio Gide. Contudo, se, na
autobiográfica obra, Walter comete o suicídio, Gide enfrenta o casamento da prima de outra
forma: em busca de prazeres, decide fazer uma longa viagem para a Itália e depois para as
terras africanas.
A viagem lhe trouxe novas experiências e, em Os Frutos da terra, André Maurois
na personagem de Menalco, um Gide que quer mostrar ao mundo o verdadeiro sentido
da vida.
Na ficção, Menalco narra suas histórias de viagens a Itália e divulga, através delas,
uma doutrina a ser entendida por seu súdito Nathanaël. Em primeiro lugar, explica Maurois,
360
a doutrina é negativa, pois prega que a família e todas as regras de estabilidade sejam
destruídas. Posteriormente, ressalta o mesmo autor, ela tornar-se-á positiva uma vez que
mostra que os sentimentos moderados, e os homens que os pregam, devem ser eliminados
para que o fervor do amor possa trazer à vida o ser íntegro e verdadeiro.
Após a explicação dessa doutrina é que encontramos, no ensaio de Maurois, o
trecho copiado por Orfeu em seu caderno. Nas palavras do ensaísta, assim encontramos a
idéia de Gide:
(...) és necesario buscar la aventura,el exceso, el fervor; es preciso detestar
la tibeza, la seguridad y todos los sentimientos moderados. ‘La simpatia no,
Nathanaël, el amor...’ És decir no un sentimiento superficial y que tal vez
sólo esté constituído por inclinaciones vulgares, sino un sentimiento en el
cual el ser se precipita ítegro y se olvida de mismo. El amor es peligroso,
pero esse es um motivo más para amar, aunque debamos renunciar a nuestra
felicidad, sobre todo si debemos perder nuestra felicidad, pues la felicidad
disminuye al hombre. ‘Desciende al fondo de los pozos si quieres ver las
estrellas’. Gide se complace en la idea de que, dentro del contentamieto
confortable de si mismo, no puede existir salvación, idea que comparte a la
vez con grandes cristianos (...)” (ibidem, p. 76).
Primeiramente, devemos observar que a frase de Gide refere-se ao livro Os frutos
da terra, mas não pertence a essa obra. Sendo assim, as aspas utilizadas por Maurois no seu
texto não demarcam o fragmento retirado da obra, como é o caso da frase dita por Menalco
a Nathanaël, mas sim uma confissão que Gide teria feito ao amigo ensaísta acerca das
intenções que teria ao escrever essa narrativa.
O trecho nos revela que descer ao fundo dos infernos significa, para Gide, viver o
extremo sentimento amoroso a fim de poder, através desse excesso, chegar à salvação.
Ressaltamos que na obra Os frutos da terra, o amor não é o sentimento que um homem tem
para com uma mulher, mas sim a paixão que existe a um ser superior que pode ser
encontrado em todas as partes, mesmo no Inferno.
361
“Assumir o mais possível de humanidade” (GIDE, s.d., p. 21), conhecer “todas as
paixões e todos os vícios(ibidem,
loc. cit
.), renascer “como um ser novo, sob um céu novo
e no meio de coisas completamente renovadas” (ibidem, p. 24): eis as atitudes a serem
tomadas pelos que querem buscar esse ser superior.
O ódio pela família faz Menalco viver como andarilho. Na França ou na Itália, a
fome e o excesso de bebida lhe trazem o atordoar dos poetas. Nas mais diversas cidades,
orgias lhe ensinam que o gozo do amor provém tanto do feminino quanto do masculino.
Através da vida nômade dos pastores, aprende os movimentos mais brutos da natureza. Em
sua poesia habitam, então, as folhagens das árvores, o ruído contínuo das águas, a sensação
da umidade na carne e, por fim, o som de um esquilo que pode entrar por suas narinas de
poeta. À guisa de conclusão, Menalco fala das estrelas e de como elas são guiadas por um
amor deslumbrado, fala também de como nós estamos sujeitos às escolhas que elas fazem e
às leis que por essas escolhas são estabelecidas.
Se compararmos Orfeu a Menalco, podemos dizer que o primeiro segue o segundo
ao querer conhecer todas as paixões e todos os vícios. A homossexualidade, a pedofilia, a
violência desmedida poderiam ser, portanto, ações que mostram esse fato. Porém, se
Menalco tem na harmonia com a Natureza e na subserviência a esta o ápice de suas
experiências, Orfeu renega seu modelo ao transformar em “Provérbio do Inferno” o que
eram atitudes de rebeldia.
Salientamos que, nas palavras que Maurois atribuiu a Gide, o existe a
especificação de que a frase dita é um provérbio. Além disso, observamos que a atitude de
tornar o tema da obra como uma máxima a ser seguida é incoerente com a própria obra Os
frutos da terra.
362
Para comprovarmos esse fato trazemos ao nosso trabalho a advertência que o autor
faz a Nathanaël:
Quando me tiveres lido, joga fora este livro e sai. Gostaria que te tivesse
dado o desejo de sair sair do que quer que seja e de onde seja, de tua
cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Não leves meu
livro contigo. (...) Que meu livro te ensine a te interessares mais por ti do
que por ele próprio depois por tudo o mais mais do que por ti. (ibidem,
p. 13).
O trecho acima nos revela que as palavras de Gide não devem ser máximas a serem
cumpridas, mas sim o móbil de um sair que liberdade para que cada pessoa se interesse
por si mesma e principalmente pelo mundo que a cerca.
Sendo assim, mais uma vez, Orfeu deturpa o verdadeiro sentido das palavras
copiadas em seu caderno.
Antes de findarmos mais esse subcapítulo, observamos que Maurois acrescenta a
seu ensaio a visão que o poeta inglês George Meredith dá à obra de Gide.
Meredith declara que Gide fala aos homens jovens e que esses encontram nas suas
palavras a potência das paixões e caminhos possíveis a serem seguidos. Acerca de Os
cadernos de André Walter, acrescenta o poeta inglês, três atitudes acabam por existir:
alguns não se recobrarão jamais; outros terão o cinismo como forma de fingir que
compreenderam a obra; mas os melhores reconhecerão que o homem não pode renunciar
nem à sua natureza animal, nem à sua natureza angelical.
Ao encontrar no Evangelho palavras de regozijo, André Gide reconhece sua
natureza angelical. Ao escrever Os frutos da terra, une essa natureza à glorificação do
desejo e dos instintos. Ou seja, como homem a cometer um ato de paixão, Gide tenta
conciliar o que aparentemente era impossível: a religiosidade que aceita glorificar o
angelismo e a bestialidade.
363
Orfeu, por sua vez, ao encontrar nas palavras de Gide máximas que nos levam ao
Inferno, parece ser, se usarmos o raciocínio de Meredith, o cínico que fingiu compreender a
obra.
Contudo, se tivermos por base o raciocínio de Hitler, o qual enfatizamos
anteriormente, Orfeu seria um quarto tipo de leitor: o que é capaz de usar uma obra para
aguçar suas mais terríveis ações em direção ao fundo do poço.
Novamente, a busca pela liberdade almejada pelos revoltados, e tão explicitada por
Camus, torna-se um “crime de lógica”.
III.10- Orfeu e Eurídice: sabedoria e escolha de caminhos.
Na peça O inferno, Ian Brady e Myra Hindley foram denominados por Bernardo
Santareno como Orfeu (Orpheus Wilson) e Eurídice (Eurydice Olivier). Com o intuito de
compreendermos essa denominação, dividiremos este momento de nosso estudo em duas
partes: na primeira estudaremos a influência do mito amoroso de Orfeu e Eurídice no casal
de assassinos de O inferno; na segunda, o motivo que fez esse casal declamar os versos da
lâmina órfico-dionisíaca Petelia.
Em seu escritório, Orfeu santareniano entrevista mulheres para o cargo de
secretária. Uma delas, “encolhendo os ombros, um pouco canalha” (SANTARENO, s.d., p.
201), diz que o pai de suas duas filhas desapareceu no nevoeiro” (ibidem,
loc. cit
.). Após
Orfeu escarnecer dessa primeira mulher, ele recebe a segunda “sem se voltar(ibidem,
p.204), mas a encara bruscamente quando ouve seu nome, Eurídice. Fazendo reverência a
sua amada eterna, Orfeu deseja que Eurídice seja “bem-vinda ao inferno” (ibidem, p.205).
364
O nevoeiro, os olhos a se encontrarem e a morada infernal são referências que
Santareno faz a um dos mais conhecidos mitos a falar da separação que causa o sofrimento
amoroso, o mito de Orfeu e Eurídice. Podemos encontrar essas referências nas palavras que
Bernadette Bricout escolheu para resumir esse mito:
Orfeu, descido aos Infernos para buscar Eurídice, toca as cordas de sua lira.
Com seu canto, emociona Plutão e Prosérpina, os seres incorpóreos e a
própria noite. Consegue que lhe seja devolvida aquela que a morte lhe
tirara, sob a condição de não se voltar para ela antes de tê-la trazido para a
luz do dia. Ele a precede, portanto, no estreito caminho envolvido em
espesso nevoeiro mas, uma vez à beira do mundo, cede à impaciência de
rever o seu rosto. Eurídice é imediatamente sugada pelo abismo, onde se
desfaz como fumaça. (BRICOUT, 2003, p. 13).
O trecho acima comprova que as referências utilizadas por Santareno evocam o mito
amoroso de Orfeu e Eurídice. Contudo, se compararmos esse mito com a situação criada
pelo autor, podemos perceber um dramaturgo que realiza um texto paródico.
Atribuindo à primeira mulher um certo ar amargo, Santareno a coloca como uma
pessoa a ironizar o mito do amor eterno: em meio ao nevoeiro espesso, o amado não a
guiou para o mundo da luz, mas sim a abandonou sem dinheiro e com dois filhos para
sustentar.
Eurídice, por sua vez, encontrará no nome de seu futuro chefe o mito do amor
eterno. Todavia, no texto santareniano, o canto de sofrimento entoado por uma separação
amorosa passa a ser um canto em que um Orfeu olha para sua Eurídice com o intuito de
trazê-la o ao mundo da luz, mas sim ao sítio infernal de uma vida em que habitam a
violência assassina e a sexualidade desmedida.
Importante acrescentarmos que a história do amor de Orfeu e Eurídice míticos
história de um amor absoluto que ignora a própria morte foi tema poético a ser repetido
365
por vários séculos. Desse modo, o filho de Apolo com a musa Calíope
99
ficou conhecido
por seu canto amoroso a ser perpetuado por vários poetas.
Salientamos, contudo, que o canto inebriante de Orfeu existia antes de Orfeu ter
se apaixonado por Eurídice.
Edith Hamilton, por exemplo, observa que antes de conhecer a bela Eurídice,
“Orfeu, ao tanger a sua lira melodiosa, arrastava as árvores (e) conduzia os animais
selvagens da floresta” (HAMILTON, 1983, p. 147). Além disso, acrescenta a autora, no
argo de Jasão, o som da lira de Orfeu foi capaz de salvar os argonautas do canto de morte
das sereias.
Édouard Schuré, por sua vez, observa que antes de cantar o sofrimento pela perda
da amada, a música de Orfeu serviu para salvar Eurídice das mãos da sacerdotisa infernal
Aglaonice. Essa visão de Schunos interessa particularmente, pois esse escritor francês
traz à obra Les Grands Initiés (1889) um Orfeu mítico responsável por um canto que salva
os “homens desgraços” (SCHURÉ, 2003, p. 59), inclusive Eurídice, dos erros cometidos
em suas “milhares de existências” (ibidem,
loc. cit
.).
Nascido de Apolo e da Musa Calíope, Orfeu teria recebido dos pais o dom do canto.
Na adolescência, esse dom fora aperfeiçoado quando ele, em uma viagem ao Egito,
recebera dos sacerdotes de Mênfis a revelação dos “Mistérios da alma”. Nesse momento,
seu nome passou a revelar uma missão a ser cumprida: a de curar pela luz
100
. Contudo,
tendo sofrido com a morte prematura de sua mãe, Orfeu teria abandonado essa sua missão
ao descer do templo dos deuses para habitar nos vales tenebrosos da terra.
99
Observamos que alguns livros de mitologia, dentre eles o de Edith Hamilton, atribuem ao rei da Trácia a
paternidade de Orfeu.
100
Na língua fenícia, segundo Édouard Schuré, Orfeu seria a junção das palavras aour e raphae, que
significam respectivamente luz e cura.
366
A sacerdotisa Aglaonice reinava nesses vales quando Orfeu a eles chegou. Em nome
do poder infernal de Hécate, Aglaonice queria conquistar a bela virgem Eurídice e torná-la
mais uma de suas bacantes. Entretanto, os objetivos da sacerdotisa seriam frustrados
quando Orfeu, encantado pela beleza de Eurídice, por essa se apaixonou e decidiu levá-la
ao himeneu. Aglaonice, por sua vez, não aceitou perder Eurídice e preparou para ela um
veneno mortal que levou a noiva à morte bita. Nesse momento, Orfeu narra seu
desespero:
Quando eu vi a fogueira consumir Eurídice, quando eu vi o túmulo devorar
as suas cinzas, quando a última recordação da sua forma viva
desapareceu,
então eu gritei: ‘Onde está a sua alma? E parti desesperado. Depois, errei
por toda a Grécia. (...) Finalmente, cheguei ao antro de Trofônio, onde
certos sacerdotes conduzem os visitantes temerários por uma fenda até aos
lagos de fogo que fervem no interior da terra, fazendo-lhes ver o que se
passa. Durante o caminho o visitante entra em êxtase e sente que se lhe abre
a dupla vista. Respira-se com custo, a voz estrangula-se na garganta e
por sinais se pode comunicar. Uns recuam a meio do caminho, outros
persistem e morrem asfixiados, e, dos poucos que de lá saem vivos, a maior
parte fica louca. Depois de ter visto o que boca alguma deve repetir, eu
regressei à gruta e caí em uma letargia profunda. Durante esse sono de
morte apareceu-me Eurídice. Ela flutuava em um nimbo, lida como um
raio de luar, e disse-me: Por mim tu afrontaste o inferno depois de me ter
buscado entre os mortos. Eis-me aqui, acorrendo ao teu apelo. Eu não
habito o seio da terra, mas a região do Erebo, o cone de sombra que há entre
a Terra e a Lua. É nesse nimbo que eu turbilhono a chorar como tu. Se
quiseres libertar-me, salva a Grécia, outorgando-lhe a luz. (...) Ouvi apenas
como que um som de corda que quebra; depois, uma voz fraca como um
sopro, triste como um beijo de adeus, murmurou: — Orfeu!
Ao som dessa voz acordei. Esse nome, proferido por uma alma,
transformou o meu ser. Senti passar em mim o estremecimento sagrado em
um desejo imenso e o poder de um sobre-humano amor. Eurídice viva ter-
me-ia dado a embriaguez da felicidade; Eurídice morta fez-me achar a
Verdade. Foi por amor que eu enverguei o vestido de linho, votando-me à
grande inicião e à vida astica; foi por amor que penetrei na magia e
busquei a ciência divina (...). Sondei a morte para nela encontrar a vida e,
para além da vida os limbos, as almas, as esferas transparentes, o Éter dos
deuses. (ibidem, p. 86 - 87).
O trecho acima nos revela não o mítico amor supremo que foi capaz de levar
Orfeu a afrontar o inferno, mas também a transformação desse amor por Eurídice em uma
367
missão que o levaria a ser aquele a guiar os gregos a uma morte que significa uma
passagem para a vida ascética.
Segundo Schuré, após o sonho com Eurídice, Orfeu lutou contra Aglaonice e suas
bacantes. Na luta, ele morreu. Entretanto a voz de amor saída de sua “cabeça cadavérica”
(ibidem, p. 90) fez com que os seguidores de Hécate fugissem temendo o “verbo órfico”
(ibidem, p. 92) que então se fez presente na terra. A partir desse momento, nos templos de
Dionísio habitava a estátua de Orfeu, o profeta que trouxe aos gregos a luz da sabedoria
eterna.
O texto de Schuré traz ao mito de Orfeu um olhar religioso que explora a luta do
Bem (Orfeu) contra o Mal (a sacerdotisa infernal Aglaonice). Poderíamos dizer que essa
luta nos lembra o cristianismo, contudo, devemos acrescentar, Schuré coloca Orfeu como o
iniciador não do canto religioso da Igreja católica, mas sim do canto órfico-dionisíaco a
propagar uma luz capaz de pôr término a“o longo circuito das existências tenebrosas”
(ibidem, p. 69).
Schuré o traz ao seu texto esse canto órfico mítico. Todavia, podemos encontrá-
lo, por duas vezes, entoados pelas vozes de Orfeu e Eurídice santarenianos:
Orfeu –
Encontrarás uma fonte à esquerda do átrio de Hades...
Eurídice – ...
e ao seu lado um cipreste branco (...)
Orfeu
- Encontrarás uma fonte à esquerda do átrio de Hades...
Eurídice
- Não te aproximes desta fonte
Orfeu
E encontrarás outra, a fonte do Lago da Memória, de onde flui água
fria...
Eurídice
- Em frente dela há guardas. Deves dizer:
Orfeu
- Sou o filho de Gê e do constelado Ouranos...
Eurídice
- A sede ressequiu-me e sinto-me morrer
Orfeu
- Sou o filho de Gê e de Ouranos, vós o sabeis...
Eurídice-
Venham, dêem-me depressa água fria do Lago da Memória.
Orfeu
- Sou o filho de Gê e de Ouranos, todos hão-de sabê-lo!...
Eurídice
- E eles próprios te darão a beber água da fonte divina, e depois
disso reinarás com os outros heróis. (SANTARENO, p. 61).
368
Como Santareno ressalta em nota de rodapé, os versos entoados pelo casal
pertencem à “Petelia, séc. III-IV antes de Cristo” (ibidem, p. 62).
O documento a que Santareno se refere é a lâmina Petelia que foi encontrada no
início do século XIX, na cidade de Petelia (Itália), e que pertence atualmente ao acervo do
Museu Britânico de Londres. Escrita em grego, a lâmina em questão estava envolta em um
cilindro de ouro e pertencia a um mulo que, segundo os arqueólogos, fora fechado em
meados do século IV antes de Cristo. Trazemos a seguir o desenho desse documento
histórico:
369
(www.theosophy-nw.org/.../world/med/s8ongfk.gif, Orphic Tablet de Petelia, Itália desenho
original em HARRISON, s.d., p. 573).
Em Los caminos de la muerte: religión, rito e iconografia del paso als allá em
la Grécia antigua., Francisco Diez de Velasco traz a versão para o espanhol das onze
lâminas órfico-dionisíacas publicadas. Segundo esse estudioso, o texto abaixo seria a
versão para o espanhol do escrito da lâmina Petelia:
Encontrarás a la izquierda de la morada de Hades una fuente y cerca de ella
un blanco y enhiesto ciprés, a esa fuente no te acerques en ningún caso.
Encontrarás otra, de la que mana el agua fresca del lago de Memoria,
delante de la cual están los guardianes, diles: ‘Soy hijo de la Tierra y del
Cielo estrellado, pero mi estirpe es celeste y esto lo sabéis también
vosotros, agonizo de sed y perezco, dadme prestamente del agua fresca que
mana del lago de Memoria’, y ellos te permitirán beber de la fuente divina y
después reinarás junto con los demás héroes (...) este (...) a punto de morir
370
(...) escrito (...) las tinieblas cubriendo todo alrededor (...) (VELASCO,
10/01/2008)
101
.
Ao compararmos as palavras de Orfeu e Eurídice santarenianos com as palavras de
Petelia, podemos perceber que o discurso religioso da lâmina foi reproduzido, à exceção
das palavras finais, pelos assassinos santarenianos. Como o discurso de Petelia é simbólico,
temos que compreender, primeiramente, o significado do documento histórico para
entendermos, posteriormente, o motivo que levou o casal de assassinos a declamá-lo.
Segundo Velasco, as lâminas eram colocadas nos mulos dos iniciados órficos para
que esses pudessem escolher, através das indicações que existem nos escritos, o caminho
que os levaria a uma vida ascética. Apesar de utilizarem palavras diferentes, salienta o
autor, as onze lâminas trazem o mesmo conteúdo em suas palavras.
Ao iniciado era interdito se aproximar da fonte à esquerda da entrada de Hades, pois
se o fizesse, ele se tornaria um criminoso na próxima reencarnação. Além disso, após se
guiarem para o caminho da direita, os iniciados deveriam conter a sede que neles habitava,
pois as águas do lago da Memória é que deviam ser bebidas no Hades. Da fonte que
brota o lago da Memória, viria o conhecimento das vidas passadas, e os descendentes de Gê
e Ouranos – primeiras entidades a formarem o Universo – receberiam dos guardas as águas
101
No livro Grécia, um olhar amoroso, encontramos uma possível versão em português para esse hino órfico:
“Na entrada da casa dos mortos/Encontrarás à esquerda uma fonte./ Perto dela se ergue um branco
cipreste./Dessa fonte não te aproximes./Verás outra, saindo do lago da Memória,/Água fresca que jorra.
Guardas a protegem./Diga-lhes: sou filha da Terra e do Céu estrelado,/ Dele venho, atentem bem. A sede me
consome/E morro. Dêem-me logo da água fresca/Que jorra do lago da Memória!/E eles te permitirão beber da
fonte divina/ E dali em diante herói, para sempre reinarás” (LACARRIÈRE, 2001, p. 394). Optamos por
utilizar a versão em espanhol para nosso cotejo, pois ela possui palavras que se aproximam mais das que
foram utilizadas por Orfeu e Eurídice.
371
dessa fonte. A sabedoria eterna seria fornecida, desse modo, aos iniciados órficos que, nas
vidas futuras, tornar-se-iam, pela sabedoria, heróis.
Na pa santareniana, as palavras de Petelia são ouvidas em dois momentos. No
primeiro deles, o casal de amantes, ao lado do corpo de Edward, declama Petelia. No
segundo, entre o som das torturas sofridas pela pequena Ann Gilbert e o veredicto de
condenação aplicado ao casal, as palavras de Petelia ecoam nas vozes em off de Orfeu e
Eurídice.
Acrescentamos que ao declamarem Petelia ao lado do corpo assassinado de
Edward, Eurídice e Orfeu revelam, conforme nos mostram as rubricas, diferentes
sentimentos perante a morte. A agonia sentida por Eurídice só é apaziguada pela paixão que
ela nutre por Orfeu. O assassino, entretanto, com altivez e frieza, revela que a morte lhe dá
um “prazer sádico” (SANTARENO, s.d., p. 62). Ou seja, enquanto Orfeu declama Petelia
para mostrar que escolheu ser superior bebendo da fonte que lhe era interdita, Eurídice o
faz com o medo de quem é conduzida, por amor, a um caminho de assassinos.
Petelia volta a ecoar no palco de O inferno entre os gritos da pequena Ann Gilbert e
o veredicto de condenação aplicado ao casal.
Observamos que os cantos órficos falam de reencarnação, motivo pelo qual a lâmina
Petelia estava envolta por um objeto circular no túmulo em que foi encontrada.
Acrescentamos ainda que esse retorno à vida não significa, para os órficos, que o ser
vivente futuro reproduza indefinidamente suas ações passadas, mas sim a possibilidade de
um crescimento espiritual que o levaria à suprema sabedoria dos heróis. Portanto, para os
seguidores de Orfeu, a morte é vista como ritual de passagem para vidas que representem
uma ascese do espírito.
372
Como vimos, Orfeu santareniano recusa essa ascese pregada pelo orfismo e prefere
na morte de Edward, John e Ann manchar de sangue o cipreste branco. Eurídice
santareniana, por sua vez, não pede ao amado a salvação dos homens, mas sim por ele e
com ele compactua nos assassinatos cruéis. Sendo assim, as palavras de Petelia indicaram
os caminhos a serem seguidos, o casal, contudo, mesmo sabendo que seria condenado na
terra pelos seus atos criminosos, preferiu reconstruir sua eterna união o pelo amor do
passado, mas sim por uma estranha ascese de almas que cultuam o sangue e a perversidade
acima de tudo.
Os gritos da pequena Ann, antes da segunda declamação de Petelia, mostra-nos a
crueldade daqueles que, mesmo guiados ao caminho certo, escolheram ser assassinos.
A leitura das penas de prisão perpétua a que são condenados Orfeu e Eurídice, feitas
após Petelia, revelam a manifestação de uma sociedade que não compactua com essa
escolha.
Contudo, se no julgamento racional Orfeu e Eurídice são condenados, resta saber se
no átrio de nossas mentes infernais, no nosso Hades do inconsciente, não escolheríamos,
mesmo que com uma parcela menor de crueldade, o mesmo caminho que eles.
Acrescentamos que a figura de um Orfeu a escolher o caminho interdito é comum
na literatura moderna. Para comprovar esse fato, trazemos à nossa análise o exemplo de um
autor intertextualizado pelo próprio Santareno: Jean Cocteau.
No texto dramatúrgico Orphée (1926), o poeta abdicou de glorificar o Sol e passou
de grande escritor da Trácia a poeta que recebe de um cavalo versos que glorificariam a
Lua e que seriam capazes de torná-lo ainda mais famoso. A presença desse estranho na
residência de Orfeu e Eurídice, contudo, faz com que o casal brigue constantemente.
Eurídice acusa Orfeu de dar mais atenção ao cavalo que a ela. O poeta, por sua vez, acusa a
373
mulher de ter como amante o vidraceiro Heurtebise. Em uma briga, Orfeu quebra a janela
para que o amante de sua esposa possa com ela se encontrar. Heurtebise chega e Orfeu,
acusando a esposa, beija o cavalo e diz a esse que voltará ao anoitecer para casa. Sozinha
com Heurtebise, Eurídice, olhando para o espelho, confessa seu amor por Orfeu e diz que o
ciúme do poeta provém do medo que esse possui de que ela volte ao mundo de Aglaonice.
Heurtebise incita Eurídice a matar o cavalo com um cubo de açúcar envenenado. Eurídice,
contudo, prefere escrever uma carta à sacerdotisa infernal para pedir-lhe auxílio. Ao lamber
o envelope da carta, entretanto, Eurídice morre por um veneno que Aglaonice havia ali
colocado. Heurtebise sai em busca da ajuda de Orfeu. A Morte vem buscar Eurídice, mas
antes de levá-la, ao cavalo o açúcar envenenado e o deixa partir. Ao chegar em casa,
Orfeu observa a ausência do cavalo e de Eurídice. Ele acusa a mulher de ter deixado o
cavalo fugir, contudo, ao vê-la morta dentro do espelho, esquece o animal e pede ajuda a
Heurtebise para poder resgatar a amada. Heurtebise diz que Orfeu deve atravessar o espelho
para poder resgatar seu amor e entrar, assim, no mundo dos mortos. Orfeu atravessa sua
própria imagem. Tempos depois, Eurídice volta do Inferno seguindo Orfeu. Contudo, ele
terá que cumprir duas promessas, uma feita a Hécate, outra a Eurídice. À deusa infernal,
Orfeu prometera nunca mais unir seu olhar ao de Eurídice. À amada, nunca mais falar com
o cavalo. Na mesa com Eurídice e Heurtebise, Orfeu fala das histórias da Lua. Eurídice
proíbe Orfeu de falar dessas histórias, ele então dirige a ela, de propósito, seu olhar e
Eurídice volta ao Inferno. As bacantes, ofendidas pelo poema que o cavalo ditou a Orfeu,
declaram no tribunal que ele é culpado por divulgar uma religião mística proibida:
“Madame Eurydice Reviendra Des Enfers” (COCTEAU, 1954, p.137). Orfeu percebe,
então, que o cavalo o enganara. Tambores soam, o barulho significa que as bacantes se
aproximam para matar Orfeu. Para encontrar a amada, Orfeu se deixa ser destroçado.
374
Eurídice vem buscar a alma de Orfeu. Ocorre um eclipse solar e as bacantes fogem
acreditando que o Sol se escondeu para mostrar o desapreço pelo assassínio de um dos seus
antigos mensageiros. Os policiais chegam à casa de Orfeu e Eurídice e nesse recinto,
encontram Heurtebise e a cabeça de Orfeu. Eurídice volta para buscar Heurtebise e o leva
para o outro lado do espelho. A cabeça de Orfeu pede que esse se vá. Os policiais
interrogam a cabeça e essa diz se chamar Jean Cocteau. No céu, Eurídice, Orfeu e
Heurtebise tomam vinho. Orfeu faz então uma prece a Deus agradecendo por Ele ter-lhe
enviado o anjo da guarda Heurtebise, anjo que lhe revelou duas verdades: a do amor capaz
de matar o diabo em forma de cavalo e a da poesia que é Deus.
Como imagens pertencentes a um estranho sonho, essa obra de Cocteau revela faces
da poesia de Orfeu. Uma delas, a mais conhecida, de que o poeta canta seu amor pela
amada. A outra, semelhante aos cantos órficos, de que a poesia de Orfeu é um canto de
Deus a revelar a escolha pelo Bem. Uma outra ainda, mostra-nos a cabeça decepada de
Orfeu a proclamar-se Jean Cocteau e a cantar que o homem pode escolher ser o poeta que
ouve o canto do cavalo e que prefere este e as histórias da Lua à presença de sua Eurídice.
Acrescentando à frase final de Cocteau em O sangue de um poeta, poderíamos
dizer: “O tédio mortal da imortalidade” (COCTEAU, 1930, 55:00) pode fazer com que o
poeta faça outras escolhas em suas vidas.
Novamente podemos concluir, outros poetas, como Orfeu santareniano, trilham o
caminho esquerdo de Hades como forma de alcançarem à vida ascética.
Algumas versões do mito de Orfeu cantam um poeta a se entregar ao amor dos
efebos para esquecer a perda de sua amada. Salientamos que, na Grécia antiga, a
homossexualidade não era uma prática interdita, contudo, para os poetas de tempos
católicos, esse caminho seria visto também como uma escolha à vida criminosa. A
375
informação nos é importante, pois não somente o criminoso Orfeu, mas também seu criador
Bernardo Santareno assim como Gide, Cocteau, Rimbaud, Genet, Sade, Tennessee
Williams e Capote – trilharam esse caminho.
“Iniciados” na arte dos cantos entoados por Orfeu santareniano, podemos, enfim,
chegar a uma conclusão acerca dos intertextos trazidos à peça teatral O inferno.
376
Conclusão: os infernos e O inferno santareniano.
Para lá dos problemas da responsabilidade e da sanção jurídico-social,
quaisquer que sejam os crimes e o horror que provoquem à sua volta, o
criminoso é um ser humano que devemos compreender. Por isso, meus
senhores, ouso pedir-lhes o esforço de vossa compreensão.(...)
(SANTARENO, s.d., p. 210)
Segundo o doutor Manchester, personagem santareniana que proferiu as palavras
acima, os participantes do julgamento de Orfeu e Eurídice estão preocupados em condenar
os assassinos às penas previstas na lei. Contudo, salienta o psiquiatra, mais do que aplicar a
penalidade prevista, caberia aos homens compreender os motivos que levaram os assassinos
a tais ações.
Como vimos na análise, o doutor observa que Orfeu e Eurídice foram vitimados
pela orfandade e pela guerra quando eram crianças e, ao crescerem, revidaram à sociedade
as agressões que dela tinham recebido.
Lembramos que Antônio Martinho do Rosário também é um psiquiatra que quer
compreender, através do pseudônimo de Bernardo Santareno e da peça teatral O inferno, os
criminosos Orfeu e Eurídice.
Contudo, se para o doutor Manchester o pensamento determinista explica a
existência de tais assassinos, a análise da peça de Santareno nos mostra obras e personagens
que retratam este e outros pontos de vista.
No que concerne ao pensamento naturalista, podemos percebê-lo nas obras de
Kramer, Sade, Nietzsche, Capote, Williams, Weiss, Fraser, Pound, Lazard, Rauschining e
Hitler.
377
Na película O julgamento de Nuremberg, Stanley Kramer traz esse pensamento nas
palavras do advogado de defesa. Segundo estas, a miséria que a Alemanha enfrentou no
pós-primeira guerra fez com os nazistas criassem medidas extremas, dentre elas a de
extermínio de deficientes mentais, comunistas e criminosos. Ou seja, o advogado teoriza
que o momento histórico a que estavam sujeitos os alemães foi o fator responsável pelas
atitudes nazistas de assassínio sistemático.
Acrescentamos que a violência justificada pelo momento histórico também é
abordada na obra Minha luta, de Adolf Hitler. Nesse texto, o futuro ditador coloca a guerra
e as sanções do Tratado de Versalhes como acontecimentos históricos determinantes para
sua política de supremacia racial e de extermínio.
Nas obras Hitler m’a dit (Rauschining), O julgamento de Nuremberga (Didier
Lazard) e O interrogatório (Peter Weiss) podemos conhecer mais elementos do
pensamento naturalista defendido por Hitler.
Rauschining mostra que o ditador se pauta na crueldade da Natureza para defender
o assassínio dos mais fracos. Lazard, por sua vez, conclui que a supremacia racial
divulgada pelos nazistas legalizou não prazer advindo da crueldade, mas também o
extermínio de milhares de seres humanos que eram vistos como meras cobaias. Weiss, por
fim, salienta que o Campo de Concentração de Auschwitz foi construído pelos nazistas não
só para exterminar os que pertenciam à chamada “raça inferior”, mas também para criar um
mundo em que habita a crueldade praticada pelos que querem ser superiores mesmo entre
os inferiores.
Nas palavras do biógrafo de Pound, G.S. Fraser, podemos encontrar outros que
também defenderam, assim como Hitler, a hierarquia entre os homens. Jefferson e
Mussolini, segundo os artigos de Pound, nela se pautaram para governar, respectivamente,
3
os Estados Unidos e a Itália. Hannah Arendt, segundo o texto de Fraser, também a teorizou
estabelecendo uma diferença hierárquica entre os homens que pensam e os que trabalham
com a força física. Observamos que, nesses autores, a questão racial o é vista como
povos biologicamente superiores, mas sim como a diferença existente entre os homens
superiores e os inferiores.
Os escritos de Nietzsche também revelam o pensamento de que a sociedade deve
privilegiar os mais fortes. Contudo, nesse filósofo, a supremacia de alguns não significa o
extermínio naturalista dos mais fracos, mas sim a condição primeira para a existência de
uma super-humanidade que afirmará nos homens a presença do divino.
Entretanto, na obra de autoria duvidosa, Vontade de potência, palavras atribuídas a
Nietzsche pregam o pensamento naturalista de supremacia de alguns e de o compaixão
destes para com os “mal nascidos” (NIETZSCHE, s.d.2, p. 217). Acrescentamos aqui que
essa obra foi encontrada entre os livros de Ian Brady e que muitos atribuíram aos
pensamentos nela divulgados o desejo de matar que habitava nesse assassino. Porém, como
nos mostrou a análise, Ian declarou ter sido guiado pelo prazer de superioridade e não por
qualquer livro que tenha lido.
Na obra A sangue frio, Truman Capote explorou a hereditariedade e o meio como
fatores a determinarem o caráter humano. Perry Smith, um dos assassinos, diz pertencer a
uma família de alcoólatras, suicidas e loucos, e acrescenta que podem ter vindo dessas
pessoas os genes de seu desregramento. Além disso, na prisão, Perry e Hickock
encontraram, não o sistema correcional almejado pelo governo, mas sim uma ambiência
deletéria que os levou, posteriormente, a assassinar toda a família Clutter.
Na ficção santareniana e nos fatos que a inspiraram, a hereditariedade também
parece ser um dos fatores responsáveis pela existência do indivíduo assassino. Orfeu,
379
segundo seu advogado, sofreu maus tratos de sua tia e desta parte da família pode ter
herdado sua violência assassina. Eurídice, segundo a avó, herdou da mãe prostituta, a
perversidade. Myra, por sua vez, pode ter recebido do pai alcoólatra não só espancamentos,
mas também o gene da violência assassina.
Acrescentamos ainda que tanto Ian quanto Orfeu freqüentaram casas de correção e
nesse meio danoso conviveram com os crimes que cometeriam posteriormente: a pedofilia,
o homossexualismo e o homicídio.
Além disso, lembramos, a questão naturalista é utilizada por Orfeu quando ele,
pautando-se na filosofia nazista, escolhe como vítimas os que pertenceriam às “raças
inferiores” (judeus e negros) e à categoria de homens que sofre de um “disrbio
fisiológico” (os homossexuais).
Nas obras de Sade e de Williams, o Naturalismo está presente a partir do momento
em que o homem é guiado por seus instintos sexuais e de violência. Atentamos para o fato
de que os instintos sexuais são, em Sade, insaciáveis e tornam o libertino prisioneiro de sua
própria libertinagem. Sebastian, por sua vez, é prisioneiro da culpa que sente por ser
também libertino e essa culpa faz com que os jovens famélicos, animais guiados pelo
instinto de violência, o assassinem.
Acrescentamos ainda que, na ficção santareniana, alguns jurados vêem no
Naturalismo a explicação possível para a criminalidade de Orfeu e Eurídice. Em O inferno,
a existência de máculas genéticas e sociais nos assassinos é apontada pelo quarto, sexto,
sétimo e oitavo jurados como fator responsável pela formação dos “amantes diabólicos”.
Nesse momento da conclusão, observamos que o primeiro, o segundo e o quinto
jurados vêem Orfeu e Eurídice com olhares católicos. Para eles, os assassinos são pessoas
em que habita uma força maligna que os guiou ao pecado e os afastou do Paraíso divino.
380
Nos intertextos trazidos aO inferno, não teremos o pensamento religioso como
forma de compreender a existência de assassinos, mas sim uma visão a mostrar que o
homem pode ser classificado como “revoltado” ou “criminoso”, quando age em um mundo
em que o poder do Deus católico perdeu, progressivamente, o sentido.
Albert Camus é quem, na obra O homem revoltado, diferencia essas duas categorias
de humano: enquanto o revoltado” comete o “crime de paixão”, o “criminoso” usa a
filosofia dos verdadeiros revoltados para cometer os “crimes de lógica”.
Sade, Lermontov, Ivan (personagem de Dostoievski) e Nietzsche são vistos por
Camus como seres revoltados que representam não a progressiva descrença no
catolicismo, mas também possíveis manifestações de paixão ao ser humano.
Na obra de Sade, Deus é negado por vias extremas: em uma época em que o rei
católico foi decapitado, o homem pode extinguir a autoridade divina aceitando suas
desmedidas manifestações de desejo sexual.
Em Lermontov, por sua vez, a negação absoluta de Deus ocorre pela identificação
que o poeta sente com Satanás. Vítima da ira divina, Satanás é um anjo caído do céu, anjo
cuja beleza reflete o triste ser que tem, na impossibilidade do amor, a ascese ao Paraíso que
lhe é eternamente negada.
Na personagem de Ivan Karamazovi, criada por Dostoievski, a compaixão aos
homens menos afortunados proclama a liberdade do crime como manifestação contrária à
injustiça divina.
Em Nietzsche, por fim, o catolicismo e seu Deus são vistos de forma negativa, pois
enfraqueceram o homem forte, valorizando o sofrimento e a piedade. Além disso, como
forma de manifestar a paixão pelo ser humano, Nietzsche prevê o nascimento de um super-
381
homem que seja capaz de cultivar a coragem, o vigor e a bravura como pontos positivos de
uma humanidade realmente virtuosa.
Ou seja, cada um desses autores e/ou personagens encontram diferentes formas de
manifestar sua revolta contra a religiosidade que compactua com o sofrimento humano.
Sendo assim, o cultivo à sexualidade, ao amor pelo satânico, à compaixão e, por fim, ao
próprio homem superior são exemplos diversos de “crimes de paixão”.
Em contrapartida, o ser a quem devemos chamar de “criminoso”, observa Camus,
encontra na ausência da lei divina e nos pensamentos dos “revoltados” as oportunidades
para cometer crimes hediondos.
O livro de Camus nos mostra que Hitler seria um exemplo deste tipo de criminoso.
A análise que fizemos de O inferno revela Orfeu como ser também pertencente a essa
classe de homens.
Habitados por raciocínios que desvirtuam a verdadeira paixão sentida pelos homens
revoltados, esses seres cometeram os hediondos “crimes de lógica”. Hitler desvirtuou o
discurso de Nietzsche para se autoproclamar o homem superior que extermina os inferiores.
Orfeu, por sua vez, tornou Sade, Dostoievski e Nietzsche deuses glorificados por um
sangrento poema de crimes que mostram a extrema violência desumana.
Devemos aqui dar relevo a três observações importantes.
A primeira delas é que podemos ver Sade tanto como homem revoltado quanto
como ser determinado pela Natureza, fato que pode ser comprovado pelas próprias frases
trazidas ao texto de O inferno. Como homem a cometer crimes de paixão, Sade proclama
Deus como uma doença que devora os instintos; além disso, exige a liberdade do crime e a
libertinagem sexual como forma de insurreição dos que querem alcançar o verdadeiro
estado de graça. Contudo, como o próprio Camus observa, os desejos insaciáveis do
382
libertino o tornam escravo de seus próprios instintos sexuais; nesse momento,
acrescentamos, como produto passivo de um distúrbio fisiológico, Sade pode ser tomado
como exemplo do homem determinado por sua origem animal.
A segunda observação deve salientar que uma das juradas, e não Orfeu, é quem traz
ao texto de O inferno a citação do romântico “homem revoltado” Lermontov. Como vimos
em nossa análise, essa jurada na união dos “amantes diabólicos” uma paixão tão violenta
que é capaz de tornar Eurídice uma assassina, que mata em nome de seu amor por Orfeu.
Além disso, trazendo ao seu discurso versos de Shakespeare, a jurada em questão lembra
que, quando as mulheres amam,o são capazes de distinguir o bem do mal. Como
veremos, na obra santareniana, a mulher Eurídice parece mesmo ter no amor extremo a
causa de sua ação assassina.
Por fim, devemos salientar que as palavras do “homem revoltado” Ivan trouxeram,
não somente o “crime de lógica” cometido por Orfeu, mas tamm, segundo o próprio
Sartre, o ponto de partida para a concepção do ser humano, pensada pelos existencialistas.
Segundo Sartre, Ivan proclamou a possibilidade da não existência divina e trouxe ao
homem a permissão de se libertar de um “determinismo” católico. Ou seja, para o filósofo
francês, sem o medo da eternidade do castigo ou da graça, o ser agiria segundo suas
próprias escolhas. Contudo, explica Sartre, o homem ainda tentou tirar de si mesmo a
responsabilidade pelos atos realizados e os explicou, através de Zola, pelo determinismo
naturalista.
Com Sartre e com os que o seguem, dentre eles Jean Genet e Orfeu, chegaremos ao
terceiro ponto de vista que explica o assassino: o ser não possui uma essência determinada
– seja pelo catolicismo, seja pela Natureza – ele existe e escolhe qual essência terá.
383
Ou seja, esclarece Sartre, se o homem vive em um tempo de guerra, ele, e não
somente Hitler, é o responsável por esse tempo. Se o assassino teve uma infância de
privações e/ou habitou em um ambiente degradado, estes são fatores importantes somente
porque ele se tornou um criminoso; se nos omitimos perante a criminalidade e esta, cada
vez mais se expande, somos os responsáveis pelo peso do mundo e temos que suportá-lo.
Esse ser que escolhe sua essência é revelado pelo escritor Genet em sua obra Diário
de um ladrão. Nesta, Genet fala de sua orfandade e da vida miserável que teve, mas atribui
à sua escolha o ser abjeto que se tornou.
Orfeu cita Genet, cita Sartre, traz ao seu caderno e às suas palavras vários outros
escritores e, ao fim e ao cabo, percebemos que ele se serve dessa amálgama de
conhecimentos, como lhe ensinara o “mestre” Hitler, para conservar na memória os
mosaicos que podem lhe auxiliar na essência que escolheu ter: ser um homem que
conscientemente comete crimes de natureza sexual e hedionda.
À tentativa de compreender os assassinos, Santareno soma ainda aos intertextos
trazidos aO inferno as palavras de Rimbaud, Cocteau e Breton.
Rimbaud, na Carta do vidente, observa que o poeta deve cultivar racionalmente o
desregramento dos sentidos para chegar ao desconhecido que habita a vida humana.
Cocteau e Breton, anos depois, levam ao surrealismo esse ensinamento de Rimbaud e
mostram em suas obras tanto uma nova forma de se fazer arte (pautada não no gosto
público, mas sim em criticá-lo), quanto um novo tema a ser revelado (as mazelas humanas
que estão no inconsciente).
Contudo, as palavras desses escritores trazem a Orfeu um estranho conceito de arte
poética: o poeta deve cultivar em si o desregramento de um assassino que se une à natureza
através do crime.
384
Na Grécia Antiga, o poeta Orfeu usava sua lira para acalmar as feras, para cantar o
sofrimento de quem foi eternamente separado de sua amada para guiar o homem, enfim, ao
caminho de uma vida ascética pautada no aperfeiçoamento da humanidade.
Na nossa contemporaneidade, o canto de Orfeu é o canto de morte propagado por
aquele que cultiva conscientemente o instinto assassino das feras, seu amor tem no sangue
das vítimas a eternidade de uma união, e sua poesia mostra o caminho de quem escolheu
beber da fonte interdita para ser um assassino.
Na Grécia Antiga, Eurídice, morta, pôde sentir a grandeza de um amor capaz de
descer aos Infernos para buscá-la; pôde ouvir o canto melodioso de Orfeu antes de ser
sugada pelas trevas eternas, pôde pedir ao seu amado que libertasse os gregos e os levasse à
luz.
No nosso tempo, Eurídice é convidada por Orfeu a habitar o Inferno das mortes
mostradas no filme O julgamento de Nuremberg, ouve com o amado o canto nazista de
morte e, sugada pelas trevas que habitam os assassinos, participa de um amor que tem nas
mortes alheias a seiva para viver eternamente.
Para Sartre, lembramos, a força da paixão não existe e Eurídice, portanto, também
escolheu conscientemente o caminho do assassínio. Para o quinto jurado ela é a Eva
responsável pela queda de mais um Adão. Para a terceira mulher-jurado e para o promotor,
uma vítima de uma paixão intensa. Contudo, preferimos trazer à nossa conclusão a fala em
que Myra Hindley, no filme Longford, explica porque cometeu os crimes: “Se estivesses lá,
naquela noite, nos ntanos, ao luar, quando matamos o primeiro, você saberia que o mau
também pode ser uma experiência espiritual” (HOOPER, 2006).
385
Feuerbach, na frase trazida por Orfeu a seu caderno, observa que vivemos em uma
época em que a Bíblia foi substituída pela razão, o Céu pela terra, o Inferno pela miséria e
Cristo pelo homem.
Santareno, por sua vez, expõe em sua peça um quadro bem mais complicado: nossa
razão quer compreender os assassinos, mas eles apenas podem nos argumentar que são
homens que preferem, dentre todas as asceses possíveis, a experiência espiritual do crime.
Para concluir esta parte de nosso pensamento, observamos que, segundo Didier
Lazard, “os crimes de guerra” estão restritos a uma época de luta armada, mas os “crimes
nazistas” se perpetuam mesmo após o findar da guerra. Em Bernardo Santareno, esse
perpetuar do crime nazista traz agonia, pois não se restringe ao assassino Orfeu, mas a todo
um país a entoar, vinte e dois anos após a morte de Hitler, as mesmas notas do canto de
morte entoado pelo ditador alemão.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, mais especificamente na análise
da pa Português, escritor, 45 anos de idade, Bernardo Santareno no governante da
nação portuguesa, Antônio Oliveira Salazar, os mesmos ideais de Hitler e Mussolini. O
nosso segundo capítulo, por sua vez, mostrou que a ficção santareniana trouxe à
personagem Orfeu não a reprodução do assassino Ian Brady, mas sim o retrato de um
homem que escolhe suas vítimas segundo o pensamento nazista. No terceiro capítulo, a
ligação entre Orfeu e Hitler foi ficando cada vez mais clara, mas não exploramos, por não
ser pertinente àquele momento, os símbolos que ligam Orfeu também a Mussolini e a
Salazar. Devemos explorar em nossa conclusão, portanto, esses elementos que ligam o
assassino criado por Santareno aos ditadores italiano e português.
Nas rubricas em que Santareno descreve o assassínio de Edward, temos as seguintes
palavras:
386
O coro nazi está agora no auge. De bito, Orfeu pega um machado caído
junto da chaminé. Em fúria, levanta-o acima da caba. Apaga-se a luz da
sala. Através da janela, vê-se o clarão verde da luz on dum reclamo
exterior que acende e apaga. É esta luz verde que ilumina Orfeu, quando ele
desencadeia uma machadada direta à cabeça de Edward. Apaga-se o
reclamo. Grito da vítima: pavoroso, mortal. Acende-se o néon verde.
(SANTARENO, s.d., p. 32).
Para matar Edward, Orfeu utiliza um machado. Poderíamos pensar que esse objeto é
trazido por Santareno à sua obra apenas para reproduzir o que de fato aconteceu na
realidade. Contudo, lembramos, o fáscio, símbolo do governo de Mussolini, é composto por
um molho de varas e uma machadinha.
Acrescentamos ainda que Santareno insere nesta cena uma luz verde a iluminar
Orfeu. Como vimos na análise da peça Português, escritor, 45 anos de idade, o verde era
cor utilizada no estandarte da Legião Portuguesa, organização paramilitar pertencente ao
governo salazarista que divulgava, na terra lusitana, os conceitos nazi-fascistas como
modelos a serem seguidos.
Sendo assim, nesta cena de O inferno, a proximidade dos atos assassinos praticados
por Hitler, Mussolini e Salazar é simbolicamente retratada. Desse modo, mesmo Orfeu não
sendo uma personagem política com um posicionamento político definido, Santareno traz,
através dela, seu posicionamento político contrário ao governante de Portugal.
Devemos ressaltar ainda que a cor verde es presente em outras peças da
dramaturgia santareniana, mas não representam nessas a mesma simbologia trazida a O
inferno. Dentre os textos que analisamos em nosso primeiro capítulo ela aparece em A
promessa e Antônio Marinheiro.
No primeiro texto, os olhos de Antônio Labareda são verdes, pois, segundo as
rubricas, verde é a cor do reino vegetal. Além disso, no enredo, Antônio simbolizará o
387
móbil que faz Maria e José celebrarem a primitiva sexualidade, que une um homem a uma
mulher. Sendo assim, como concluímos no primeiro capítulo, Antônio pode ser a luz verde
que possibilita ao casal santificado pelo matrimônio a ascese a um mundo espiritual onde os
instintos sexuais sejam aceitos.
Em Antônio Marinheiro, verde é a cor dos olhos do almur e de Rui. Lembramos
que, segundo os costumes gregos, o almur é um pássaro que traz mal-agouro. Rui, após ser
o móbil que ocasiona a Amália o desespero de uma mulher que encontra no seu esposo o
filho perdido, é também aquele que reconduz o amigo a uma vida em que o roubo, a
prostituição e a homossexualidade serão, provavelmente, elementos presentes. Sendo
assim, nesta peça santareniana, o verde dos olhos do almur junta-se ao verde dos olhos de
Rui e traz a separação de Amália e Antônio.
Em O inferno, observa o Dr. Manchester:
A renovação da humanidade deve partir da família. Os pais não podem
fugir ao imperativo categórico de serem guias e modelos de seus filhos.
Somente por uma completa regeneração da vida e da família, a humanidade
doente se pode curar e readquirir a capacidade que perdeu, de viver e
adaptar-se ao meio social. (ibidem, p. 215).
Se pensarmos como o doutor Manchester, veremos no verde de A promessa uma
renovação positiva, pois na união do casal ainda pode existir uma família a ser concebida.
Em Antônio Marinheiro, contudo, teríamos o verde como uma cor negativa, pois o
homossexual Rui não pode possibilitar a Antônio a família que regeneraria o homem.
Todavia, se assim interpretarmos a simbologia dessa cor nesses dois textos,
estaremos trazendo a luz verde de Salazar aos olhos santarenianos, pois atribuiremos à
família o poder curativo de todos os males.
Segundo a peça Bernardo, Bernarda, Santareno era
388
Filho de pai republicano constantemente sujeito a prisões e desterros, a sua
infância foi marcada por um certo sentimento de abandono. A morte de sua
mãe parece ter agravado sua solidão. Contra o ateísmo paterno, refugia-se
no misticismo e entra no Seminário de onde é arrancado violentamente pelo
pai. (CARINHAS, 2006, p. 03)
Segundo entrevistas que fizemos com amigos de Santareno, o dramaturgo não vivia
com os pais desde muito novo. O motivo para essa cisão da família seria as divergências
entre seus pensamentos e os do pai. Com a mãe, todavia, Santareno tinha uma relação de
muita proximidade, relação que se fortaleceu nos anos em que mãe agonizou por causa de
um cancro na vagina. Nessa época, Santareno foi quem cuidou de sua genitora e, quando
ela veio a falecer dessa doença, o homem Antônio Martinho do Rosário decidiu entrar em
um convento.
Os traços biográficos acima nos permitem dizer que Santareno não poderia
concordar com a renovação pensada pelo doutor Manchester. Além disso, acrescentamos, a
sabida homossexualidade desse dramaturgo não permitiria que ele defendesse a união
familiar pensada segundo os moldes de Manchester como meio de regeneração. Por fim,
devemos dizer, ao psiquiatra e dramaturgo Bernardo Santareno não cabe em O inferno dar
receitas a serem seguidas por uma humanidade que quer se renovar, cabe sim, compreender
as várias faces que podem existir nos homens.
Orfeu escolheu o caminho dos assassinos que unem o canto de Hitler ao machado e
à luz verde. Bernardo Santareno o caminho de um escritor que traz à sua obra textos e
intertextos a verem as várias faces do homem.
Acrescentamos ainda que a face homossexual de um homem também é objeto de
discussão dos textos intertextualizados por Santareno.
389
Observamos que em Antônio Martinho do Rosário, a ausência paterna e o amor
exacerbado pela mãe, podem ter originado a homossexualidade. Se assim pensarmos,
estaremos concordando o com o pensamento freudiano, mas também com o que foi
trabalhado por Tennessee Williams em Bruscamente no verão passado.
Contudo, se quisermos realmente compreender a origem do homem homossexual,
teremos que observar outros fatores apontados por nossa análise. Em Antônio Marinheiro,
ele é fruto do abandono materno. Em Sade, de uma vida que quer ser “desregrada”. Em
Gide de uma manifestação de liberdade. Em Perry Smith, personagem de A sangue frio, de
um homem determinado pela hereditariedade e pelo meio “degenerado” da prisão. Em
Hitler, de uma “tara hereditária” a ser exterminada. Em Jean Genet, por fim, de uma
escolha possível de ser feita.
Não cabe a nosso trabalho apresentar uma conclusão que finde essa polêmica
acerca da homossexualidade, mas cabe observarmos que, segundo o que nos mostra
Santareno em O inferno, certos homossexuais, dentre eles Orfeu, matam seus iguais porque
não admitem em si essa tendência natural ao homem.
Lembramos que Ian Brady não matou, mas também abusou sexualmente de todas
as suas vítimas, inclusive dos homens. Mesmo assim, em 2001, trinta e cinco anos após ter
sido condenado à prisão perpétua, viu em si a figura mítica de Janus. Ou seja, como homem
capaz de entender o passado e de prever o futuro, Ian seria, segundo ele mesmo, o símbolo
do recomeço de uma nova humanidade.
Marquês de Sade, Ludwig Andreas Feuerbach, Mikhail Lermontov, Fiódor
Dostoievski, Friedrich Nietzsche, André Gide, André Breton, Arthur Rimbaud, Jean
Cocteau, Didier Lazard, Ezra Pound, Peter Weiss, Jean Paul Sartre, Jean Genet, Albert
Camus, Tennessee Williams, Truman Capote e Bernardo Santareno não precisam atribuir a
390
si nenhum nome mítico, pois, homossexuais ou o, permitem aos leitores a visão do que
fomos e do que somos para decidirmos, em nossa humanidade a habitar o inferno, a ascese
que queremos ter.
391
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