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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
LUCIANO MAIA DA COSTA
TEXTO LITERÁRIO E ORALIDADE:
A relevância da leitura no ensino da língua materna
NITERÓI
2008
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LUCIANO MAIA DA COSTA
TEXTO LITERÁRIO E ORALIDADE:
A relevância da leitura no ensino da língua materna
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Língua Portuguesa. Área de
concentração: Estudos da Linguagem.
Subárea: Estudos Lingüísticos.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª TEREZINHA MARIA DA FONSECA P. BITTENCOURT
NITERÓI
2008
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
C837 Costa, Luciano Maia.
Texto literário e oralidade: a relevância da leitura no ensino da
língua materna / Luciano Maia da Costa. 2008.
167 f.
Orientador: Terezinha Maria da Fonseca P. Bittencourt.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2008.
Bibliografia: f. 162-166.
1. Língua materna Estudo e ensino. 2. Interpretação oral. 3.
Parâmetros Curriculares Nacionais. I. Bittencourt, Terezinha
Maria da Fonseca P. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Letras. III. Título.
CDD 469.07
LUCIANO MAIA DA COSTA
TEXTO LITERÁRIO E ORALIDADE:
A relevância da leitura no ensino da língua materna
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Língua Portuguesa. Área de
concentração: Estudos da Linguagem.
Subárea: Estudos Lingüísticos.
Aprovada em ____ de ________________________ de 2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª TEREZINHA MARIA DA FONSECA P. BITTENCOURT (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Dr. MAURÍCIO DA SILVA
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Dr. JOSÉ PEREIRA DA SILVA
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Prof. Dr. RICARDO STAVOLA CAVALIERE (Suplente)
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª MARINA COELHO MOREIRA CÉZAR (Suplente)
Escola Naval
NITERÓI
2008
À Ana Quelli Maia, que me trouxe as maiores
inspirações para que esse percurso fosse feito
sem maiores problemas. Pelas intermináveis
horas ao meu lado, dedico esse trabalho, assim
como toda a minha vida. Eu te amo.
In memoriam
À minha mãe, por ter me ensinado que ler é,
antes de tudo, uma forma de amar.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter proporcionado maravilhas em minha vida e por ter feito
com que tudo, de fato, fosse possível.
À minha família, pelo apoio incondicional em todos os meus sonhos.
À minha orientadora, Profª Drª Terezinha Bittencourt, pela possibilidade de
transferir o meu antigo sonho em realidade, de acreditar que a figura do professor é
imprescindível neste país cheio de contrastes e desilusões. Sou e serei para sempre
eternamente grato pelos seus ensinamentos, pela sua generosidade e pela sua
competência.
Ao Prof. Dr. Maurício da Silva, pelas orientações ainda na fase de
qualificação e pela forma respeitosa com que direcionou este trabalho.
Ao Prof. Dr. José Pereira da Silva, pela minuciosa análise textual feita no
projeto e pela sabedoria que o tempo jamais apaga.
À Prof.ª Jurema Maia, minha tia, minha companheira, minha maior
inspiração na prática docente. Pelas inúmeras horas em torno da reescritura deste
trabalho, meu eterno agradecimento.
A todos os meus alunos: sem vocês, este trabalho não seria possível. Foi
e sempre será por vocês que todo esforço é válido.
A todos os meus colegas de trabalho que dividiram comigo bons
momentos de reflexão sobre a nossa prática cotidiana, até chegarmos à conclusão
de que realmente alguma coisa precisava ser mudada.
Aos meus amigos que souberam entender vários sumiços e vários
desencontros.
A todos que direta ou indiretamente estiveram comigo nesta jornada.
Ensina-se, nas escolas, muita coisa que a gente
nunca vai usar, depois, na vida inteira. Fui obrigado
a aprender que não era necessário, que eu poderia
ter aprendido depois, quando e se a ocasião de sua
necessidade o exigisse. É como ensinar a arte de
velejar a quem mora no alto das montanhas. Mas
aquela experiência infantil, a professora nos lendo
literatura, isso mudou minha vida. Ao ler acho que
ela nem sabia disso ela estava me dando a chave
de abrir o mundo.
Rubem Alves
RESUMO
Este trabalho está situado na área de Estudos de Linguagem Ensino e
Aprendizagem de Língua Materna e busca refletir sobre a relação entre os
trabalhos com a oralidade propostos por documentos oficiais Parâmetros
Curriculares Nacionais e o trabalho oral que se poderia realizar com o texto
literário em sala de aula, a fim de levar o aluno a produzir e interpretar textos orais,
cujas finalidades comunicativas e cognoscitivas sejam mais elaboradas. O fato de a
compreensão do texto ainda se encontrar enraizada em uma perspectiva confusa
nos bancos escolares confirmam a idéia de que a oralidade vem sendo uma
modalidade negligenciada pelos professores de língua materna, que, quando
necessitados de informações sobre o assunto, recorrem aos PCN de Língua
Portuguesa e lá se confundem com a falta de objetividade dos documentos e sua
linguagem pouco inteligível. Com a finalidade de entender como proceder
efetivamente com a prática da oralidade em sala de aula, recorremos ao texto
literário (o “texto por excelência”, conforme a teoria coseriana) para ressaltar que,
muitas vezes, ele tem sido usado fundamentalmente como pretexto para o ensino da
metalinguagem da palavra e da frase. Discute-se, ainda, que o distanciamento do
aluno do texto literário está associado a algumas novas maneiras de leitura, em que
se evidencia a profusão de gêneros textuais. Além disso, julgamos ser
imprescindível que se faça, desde a educação infantil, um trabalho efetivo com a
oralidade, explorando o aspecto criativo da linguagem.
Palavras-chave: Ensino. Língua materna. Oralidade. PCN. Livro didático
RESUMEN
Este trabajo se ubica en el área de los Estudios del Lenguaje - La enseñanza y el
aprendizaje de la lengua materna - de búsqueda y reflexionar sobre la relación entre
el trabajo con la oralidad propuesta por los documentos oficiales el “Parámetros
Curriculares Nacionais” y el trabajo oral que podrían realizarse desde el texto
literario en el aula con el fin de llevar al alumno a interpretar y producir textos orales,
cuya mental y comunicativo efectos son más elaborados. El hecho de que la
comprensión del texto es todavía enraizada en una confusa perspectiva de los
bancos en la escuela confirmar la idea de que la forma oral ha sido descuidado por
los profesores de lengua nativa, que, en caso de necesidad de información sobre el
tema, el uso de los PCN de Portugués y, a continuación, se confunda con una falta
de objetividad de los documentos y su débil idioma inteligible. Con el fin de
comprender la forma de proceder de manera eficaz con la práctica de la oralidad en
el aula, hizo uso de texto literario (el texto por excelencia ", como la teoría
coseriana) hacer hincapié en que, a menudo, se ha utilizado principalmente como
una excusa para metalenguaje de la enseñanza de la palabra y la oración. Se
argumenta también que la lejanía del estudiante texto literario está asociada con
algunas nuevas formas de lectura, que pone de relieve la riqueza de los géneros
textuales. Por otra parte, creemos que se hace es de vital importancia, ya que la
educación de la primera infancia, un trabajo eficaz con la oralidad, a explorar el
aspecto creativo de la lengua.
Palabras-llave: Enseñanza. Lengua materna. Oralidad. PCN. Libro didáctico.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Divisão dos níveis de conhecimento ............................................... 26
Quadro 2 Organização dos textos na coleção didática ................................... 39
Quadro 3 Divisão dos conteúdos programáticos na coleção didática ............. 45
Quadro 4 Distinção entre oralidade e escrita .................................................. 89
Quadro 5 Quadro comparativo da leitura e da transmissão vocal ...................
123
LISTA DE SIGLAS
BCG Biblioteca Central do Gragoatá
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
GLP Gratificação por Lotação Prioritária
INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
LDP Livro Didático de Português
MEC Ministério da Educação e Cultura
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OCEM Orientações Curriculares para o Ensino Médio
PISA Programa Internacional de Avaliação de Alunos
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PNLEM Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF Universidade Federal Fluminense
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................
11
1 A COLEÇÃO DIDÁTICA E A PROPOSTA DE ORALIDADE ..........................
22
1.1 O Panorama dos LDP ....................................................................................
27
1.2 A Coleção “Palavra Aberta” ......................................................................
37
1.2.1 Estudo do texto ..........................................................................................
38
1.2.2 Palavras no contexto .................................................................................
41
1.2.3 Produção do texto ......................................................................................
44
1.2.4 Conhecendo a gramática ...........................................................................
44
1.3 O Tratamento à Língua Falada ..................................................................
47
1.4 Concluir sem Terminar ...............................................................................
68
2 A ORALIDADE NOS DOCUMENTOS OFICIAIS ............................................
71
2.1 Os PCN de Língua Portuguesa: Aplicações, Inovações e Controvérsias ...
72
2.2 Oralidade e Escrita nos PCN .....................................................................
83
3 AS NOVAS MANEIRAS DE LER O MUNDO ..................................................
99
3.1 A Leitura Literária Versus a Leitura Utilitária: Os Efeitos de um Mundo
Globalizado ..................................................................................................
101
3.2 O Lugar da Poesia como Atividade Criativa e Criado
ra a Serviço da
Oralidade ......................................................................................................
111
3.3 Os Conflitos da Prática da Oralidade com as Crianças ..........................
119
3.4 A Arte de Contar Histórias: Uma Prática Histórica .................................
124
4 UM TRABALHO EFETIVO DA ORALIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIA COM
A LEITURA COM CRIANÇAS ........................................................................
129
4.1 O Começo de Tudo: Em Busca de uma Arte da Palavra ........................
131
4.2 A Lírica a Serviço da Sensibilidade ..........................................................
133
4.3 O Que Ler para as Crianças? ....................................................................
134
4.4 A Coleção Flor de Papel: Uma Realidade na Creche UFF ......................
136
4.5 A “História de Amor” ..................................................................................
139
4.6 O Relato da Atividade com “História de Amor” .......................................
152
4.7 Para Terminar, mas nem Tanto Assim......................................................
155
CONCLUSÃO .....................................................................................................
157
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 161
INTRODUÇÃO
Em meio à diversidade de gêneros do discurso produzidos na vida social e
apresentados em variados suportes e que, nos últimos anos, vêm sendo transpostos
para a sala de aula, talvez possa soar como ingênuo ou até mesmo irrelevante
desenvolvermos uma pesquisa sobre a oralidade e o texto literário no ensino de
Língua Portuguesa, algo que a sociedade mercadológica pode considerar um
“inutensílio”.
O desejo de desenvolver uma pesquisa sobre o tratamento dado pela
escola (e também por seus materiais didáticos e por instituições que regem o
sistema educacional no país) às questões da oralidade e à apreciação dos textos
literários, dos quais fazem parte crianças e jovens, vem de uma relação afetuosa
que mantivemos há alguns anos com a literatura.
Alguns textos estão marcadamente presos à nossa memória, muitos deles
feitos de maneira oral pelas professoras do então primário, como Ou isto ou aquilo,
de Cecília Meireles (1987, p.132). É inesquecível para nós a cena da professora
imprimindo cadência na leitura dos versos da poetisa, procurando manter viva a
possibilidade de compreensão de cada jogo feito naquela linguagem tão esmerada.
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Naquele tempo, não podíamos imaginar que os sonhos e as fantasias
presentes na poesia nos fariam, mais à frente, um adulto melhor, com sensibilidade.
Inicialmente não entendíamos como as palavras podiam ser articuladas de tal
maneira para conseguir a adesão de tantas crianças, mas a professora... Essa, sim,
fez do texto um mundo tão possível que, até hoje, somos capazes de identificar a
sua voz em torno das palavras de Cecília Meireles.
A leitura do poema Deus, de Casimiro de Abreu ([196-?], p.53), já na
adolescência, ao cursar o então segundo grau, causava, naquele tempo de jovem de
14 anos, a sensação de susto e medo. Após a leitura minuciosa do professor,
condenamo-nos às dúvidas mais impertinentes para uma pessoa tão impressionada
com a carga dramática daquele texto: Deus era mais forte que o tufão? Maior que o
mar e o oceano?
Deus estava sendo apresentado para nós, com cores vivas, metafóricas,
diferentemente das concepções até então vistas pelo ensinamento cristão. Ele
estava sendo retratado, naquele texto, como uma criatura amedrontadora porque
era autoritária. Os versos exclamativos (mais tarde, finalmente pudemos
compreender porque os românticos usavam tanto esse artifício) não deixavam
margens de dúvidas sobre as lembranças do eu lírico que referendava duas vozes
de autoridade mãe e Deus.
Eu me lembro! Eu me lembro! Era pequeno,
E brincava na praia; o mar bramia,
E erguendo o dorso altivo sacudia
A branca espuma para o céu sereno.
Eu disse a minha mãe nesse momento:
Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver maior do que o oceano.
Ou que seja mais forte do que o vento?
Minha mãe a sorrir olhou pros céus
E respondeu: Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar, que nós tememos,
Mais forte que o tufão! Meu filho, é Deus!...
O encontro com Drummond ocorreu também nessa fase, na escola,
através de um poema pouco conhecido dele: Para sempre. Identificamo-nos
prontamente com esse texto, já que logo no início da leitura ele diz: “Por que Deus
permite que as mães vão se embora?/ Mãe não tem limite” (ANDRADE, 1991, p.
174). Havia claramente exposta a idéia de que as duas autoridades conhecidas na
infância Deus e mãe configuravam um grande embate na imaginação criadora,
tal qual fora visto na poesia de Casimiro de Abreu.
Textos passaram a nos responder alguns questionamentos que a própria
natureza humana ocultava em dizer. Não por desconhecimento, mas, talvez, por
falta de sensibilidade (soa estranho, pois se trata de algo inerente a nós,
humanos...).
Conhecemos pessoas sobretudo as que cursaram conosco o segundo
grau que, quando indagamos sobre o que lembravam de alguma experiência com
o texto literário (sobretudo a poesia) na escola, disseram não se recordarem de
nada. Apenas que era um “texto chato, com umas palavras esquisitas, que não
entendiam nada, que não lhes dizia nada e que hoje, também, nada lhes diz”.
Todavia, esses textos dizem e continuam dizendo muito para tantas
pessoas, tanto que passamos a perceber, através da leitura dos textos literários
(sem o compromisso estreito da metaliteratura), que os sentimentos dos outros
podiam ser semelhantes aos nossos, que os poetas tratavam de temas diversos a
respeito da própria condição humana, embora elas próprias achassem que se
tratava de um texto incompreensível aos seus olhos, como se a literatura fosse feita
para ser simplesmente lida.
Tal explicação nos faz lembrar de uma situação ocorrida quando de uma
atividade, no então segundo grau, com o poema de Castro Alves, O Navio Negreiro
(19--?). A leitura feita pela professora não transmitiu qualquer sentimento e isso
proporcionou um certo desleixo por parte da turma ao texto condoreiro, tanto que a
proposta final dessa atividade se ateve a uma discussão fria sobre a
contextualização histórica dos escravos no século XIX. Não houve chance alguma
de poder elucidar, via imaginação, toda a sonoridade contida no choro dos escravos,
no barulho das correntes, no alvoroço do castigo, na saga da tristeza.
Associar a excelência que o texto literário dispõe, segundo concepções de
Coseriu (1993), com a tecnologia e a sensibilidade conferidas na prática da
oralidade é o objetivo deste trabalho. Ao serem transmitidas ao aluno, tais práticas
serão consideradas como uma tecnologia que deve ser aprendida, e não com pouco
esforço.
Só que, como nós não nos lembramos mais da fase em que estávamos
adquirindo essa tecnologia, nós, professores de Língua Portuguesa, não damos o
necessário relevo a sua aquisição e ao esforço que um aluno tem de fazer para
conseguir essa tecnologia e, em seguida, colocá-la em ação.
O esforço é o rumo encontrado para alcançar o que seria considerado o
objeto do nosso desejo. Porém, para isso, existem trilhas. Nós podemos encontrar o
caminho que fechará para sempre as portas ao nosso aluno para essa tecnologia,
que é o controle aversivo, corroborado pela prática cotidiana em sala de aula no
ensino de língua materna.
A possibilidade de imersão total na proposta de estudo da efetiva “língua
literária” e seu uso em sala de aula ocorreu a partir da disciplina “O livro didático e o
ensino da língua portuguesa”
1
, cursada no Mestrado em Língua Portuguesa da
Universidade Federal Fluminense, em que o olhar sobre o texto literário passou a ser
redimensionado, tal qual fora, para nós, nas primeiras experiências na escola com
esse tipo de texto. A leitura do poema José, de Carlos Drummond de Andrade, feita
pela professora, traduziu um pouco da análise de experiência de cada um de nós na
sala, da convivência com outros homens e do momento histórico, e resultou na
constatação de que o ser humano luta sempre para sair do isolamento, da solidão.
Nesse contexto, a materialização da voz da professora traduziu perfeitamente o que
Drummond chamaria de “sentimento do mundo”.
É possível encontrar outras estratégias que possam mostrar para o aluno
que o esforço é necessário, mas que valerá a pena porque o mundo por ele
encontrado depois é tão grande que tal esforço se mostrará ínfimo diante de tanto
prazer. O prazer de alcançar aquela tecnologia, aquilo que terá tanta magnitude que,
prontamente, influenciará positivamente na vida dele.
Revitalizar essa proposta em sala de aula é também uma maneira de
manter viva a chama do texto literário e sua associação à linguagem verbal, embora
o que verificamos, atualmente, nos bancos escolares, seja desanimador e
preocupante.
Em nossa prática docente, trabalhando com crianças de dois a cinco anos
de idade, foi possível traduzir essa busca do prazer que a leitura proporciona, talvez
1
Disciplina ministrada no primeiro semestre de 2007 pela Prof. Dra. Terezinha da Fonseca Passos Bittencourt no
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.
porque naquele instante as crianças gostariam de usufruir da tecnologia que um
adulto possuía sendo o “ledor” das histórias.
Trabalhando em escolas do ensino fundamental e médio pudemos
perceber que esse caminho trilhado com as crianças não seria o mesmo, e isso, de
certa forma, causava-nos um certo desconforto pelo fato de acreditar que a magia
intrínseca à leitura poderia ser também compartilhada pelos jovens e pelos
adolescentes. Porém, a realidade da sala de aula pode se transformar em um
grande empecilho a qualquer trabalho que vise à sensibilidade.
Ao falar sobre leitura, podemos imediatamente pôr em evidência as várias
leituras do cotidiano, como ler jornais, revistas, outdoors, entre outros, porém a
associação mais comum é refletirmos sobre a leitura de livros. Dizer que alguém
gosta de ler é associar essa pessoa a algum índice de intelectualidade, no entanto
assumir que não se gosta de tal atividade, pode ser visto como algo que,
definitivamente, não é de bom tom.
Pensando neste leitor que não desfruta da boa relação com os livros, é
que se orientam algumas práticas de leitura que se aproximam da mecanização e da
informalidade contidas em algumas obras. Não obstante, é comum, atualmente,
verificarmos obras que minimizam o saber, sobretudo das crianças e dos
adolescentes, com textos que reforçam fins eminentemente pragmáticos,
ressaltando a impressão de que ler implica inteirar-se do mundo, a fim de conquistar
a chamada “autonomia” ao deixar de ver a realidade pelos olhos de outrem.
Estes textos, primários em sua essência, supostamente digeríveis, dão a
ilusão de tornar seus usuários aptos a conhecer e apreciar o mundo em que vivem.
Na verdade, resultam em manuais limitadores que transmitem um conhecimento
anacrônico, de modo que, inclusive, podem manipular a leitura a serviço de
ideologias dominantes.
Tais textos são legitimados por órgãos institucionais, como o Ministério da
Educação, através da elaboração de documentos oficiais, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais, e ratificados pela profusão dos chamados livros didáticos.
Com isso, o ato de ler passa a ser relacionado à escola que, por sua vez, se
apropria tanto dos documentos oficiais como de tais livros para exercer, dentro de
uma ótica deturpada, a prática de leitura.
Historicamente, a relação do texto literário com a escola tem se mostrado
insatisfatória. Em análises
2
feitas sobre a presença desses textos tanto na escola
como no livro didático, alguns colegas mestrandos revelaram que o poema é o
gênero literário que mais sofre distorções pedagógicas. Não só se constatou a
seleção de maus poemas para serem lidos em sala de aula, mas também o mau
aproveitamento dos bons poemas, quando os materiais didáticos propõem
atividades que resultam em análises metalingüísticas.
Se o livro didático tem sido responsabilizado por tornar o texto literário e a
prática da oralidade em sala de aula ineficazes, sua exclusão promoveria a adesão
do professor de língua materna a essa prática de valorização dos saberes? A
seleção de bons textos, associada a atividades voltadas para a dimensão estética e
cultural do texto, na sala de aula, é garantia de uma recepção favorável dos alunos?
Desperta-lhes o desejo e o fascínio? Ou as crianças e, sobretudo, os jovens acham
o texto literário algo desnecessário e ridículo nos dias de hoje?
2
Tais análises foram feitas, no primeiro semestre de 2007, a partir de quinze encontros feitos, durante a
disciplina “O livro didático e o ensino de Língua Portuguesa”, em que cada mestrando deveria apresentar uma
análise crítica de uma coleção didática voltada tanto para o Ensino Fundamental como para o Ensino Médio.
Dentre várias abordagens, todos foram unânimes em afirmar que o tratamento dado ao texto literário não respeita
os princípios mínimos de aquisição de uma leitura cultural (BECHARA, 2003), mas configura pretextos para um
trabalho metalingüístico ou metaliterário.
A questão é ampla e complexa, já que se fala sempre em “crise de leitura”.
No entanto, o Brasil, em termos de publicações, distribuição e venda de material
didático, cresce muito ao longo dos tempos; logo, não seria este o verdadeiro motivo
para a falta de leitura no país.
Assim sendo, o que podemos observar é que o que é considerado como
leitura na escola está distante de propiciar, de um modo geral, aos alunos, um
aprendizado consistente. Cria-se uma espécie de aversão à leitura, e o que se
verifica, como resultado disso, são inúmeras pessoas com ojeriza a tal prática, talvez
por não lhes terem sido apresentadas situações onde a fantasia seria a diferença na
busca pelo conhecimento do mundo em que vivem.
Toda sorte de problemas relacionados às dificuldades de leitura pode
estar atrelada a um ineficaz trabalho com a oralidade nas salas de aula. Por isso, o
trabalho em questão norteia o estudo da oralidade no ensino de língua portuguesa e
examina como tal perspectiva é abordada nos diferentes segmentos de ensino do
país, ressaltando problemas, tais como, sobretudo, saber lidar efetivamente com
essa atividade enriquecedora. A abordagem será mais incisiva na prática cotidiana
do professor de língua materna, uma vez que o mesmo, em regra, ignora as faces
múltiplas de um efetivo trabalho da língua oral ao aderir sumariamente às
associações feitas pelos documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares
Nacionais, e a alguns livros didáticos de Língua Portuguesa.
A pesquisa, em si, se justifica a partir da constatação de que a
compreensão do texto oral ainda se encontra enraizada em uma perspectiva
confusa nos bancos escolares. Diferentemente do texto oral, o texto escrito permite
ao falante se ver separado do seu objeto de análise; com isso, o falante reconhece o
conceito de texto relacionando-o à compreensão de escrita, e tal idéia é defendida
nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997, p.79)
ao salientar que “ao observar textos impressos, a criança descobre as regularidades
da língua escrita. Ela vai constituindo um repertório de recursos lingüísticos a ser
utilizado na produção de textos”.
Partindo do princípio de que só se aprende a oralidade se esta for, de fato,
praticada, podemos estar diante de um sério problema: a massificação da cultura
escrita no país faz com que surja a falta do contato com o texto oral em sala de aula.
E, na busca por esta prática, alguns professores recorrem ao livro didático de
português, e lá encontram atividades estéreis e inócuas, que se prendem às
atividades metalingüísticas sem quaisquer possibilidades de articulação do
conhecimento do mundo. É preciso rever com zelo e discernimento, portanto, a
função prestada pelo livro didático e também pelos próprios documentos oficiais que
regem a educação brasileira no que tange o ensino da língua oral.
É interessante ressaltar que há todo um arcabouço histórico no uso de
práticas oratórias. De acordo com Bajard (2002, p.70), “para os antigos gregos e
romanos, o ato de ler consistia quase sempre na passagem do texto pela voz,
prática coerente com a ausência de espaços entre as palavras escritas”. Nas
sociedades orais, o narrador adequava sua fala ao contexto da enunciação e à
platéia que o ouvia, de modo que o relato oral se constituiu na maior fonte humana
de amparo e transmissão do saber.
Retomar essa prática vislumbrada ao longo da História (ONG, 1998;
HAVELOCK, 1996) é, sem dúvida, uma maneira eficaz de compreender a situação
atual do ensino da língua oral, isso porque encaminha a uma análise mais
embasada sobre o que era almejado pelos educadores e o que é distorcido, tanto
pelos documentos oficiais de Língua Portuguesa mencionados anteriormente, como
por alguns livros didáticos de língua materna.
O nosso trabalho está organizado em quatro partes.
O primeiro capítulo, ao abordar o uso das atividades com o texto literário e
as implicações com as supostas atividades orais, a partir da coleção “Palavra
Aberta”, de Isabel Cabral, permite que façamos uma série de observações sobre
alguns equívocos pertinentes ao professor de língua materna.
O segundo capítulo fará menção às questões da oralidade previstas nos
PCN e suas ocorrências no cotidiano do professor de Língua Portuguesa. E também
trataremos sobre a questão que envolve a terminologia “gêneros textuais” e o que
isso implica no trabalho com a oralidade em sala de aula, assim como o uso de
textos informativos em substituição do texto literário como forma de trabalho com a
oralidade.
Ao abordar algumas maneiras de ler o mundo e suas conseqüências na
formação de uma cultura integral, o terceiro capítulo mostra a influência da grande
mídia, resultando na falta de leitura das pessoas, além de mostrar como isso, de
certo modo, está embutido no cotidiano delas. Na oposição desse efeito midiático e
contemporâneo, falamos da poesia como a possibilidade da busca do “Belo”, algo
que definitivamente qualquer pessoa almeja. O conflito entre a arte de escrever e a
“primazia da imagem” pode ser confirmado ao refletimos sobre a influência da
multiplicação das mídias no século XX, sobretudo a televisão.
O quarto capítulo narra e interpreta as experiências vividas com as
crianças em uma creche universitária. Neste capítulo tratamos do projeto “Coleção
Flor de Papel” e suas sugestões na formação dos novos leitores a partir de
atividades que tratem da fruição literária associada ao seu papel social de formar
leitores. Ao falarmos da possibilidade de uso do texto literário como um essencial
instrumento da oralidade, observamos que a criança, ao criar uma série de novas
imagens, faz uso do texto literário e o articula como uma brincadeira que,
intuitivamente, favorece o seu conhecimento lingüístico e cultural.
1 A COLEÇÃO DIDÁTICA E A PROPOSTA DE ORALIDADE
Ao analisar as concepções oferecidas pela coleção didática “Palavra
aberta” (CABRAL, 2000) pudemos verificar o quão inoperante se torna o material
articulado em vista da formação do conhecimento do aluno em sua própria língua.
Apoiando-se em recursos teóricos de caráter duvidoso e com forte apelo à imagem e
à ilustração, a obra se distancia bastante de um efetivo auxílio ao professor de
língua materna, porque foge da proposta de ampliar o repertório dos docentes para
certificar, de maneira contínua e repetitiva, o saber metalingüístico a verdadeira
aula sobre a língua portuguesa.
A coleção “Palavra aberta”, de Isabel Cabral, destina-se apenas ao
segundo segmento do ensino fundamental (atuais 6º ao 9º ano, antiga 5ª à 8ª
séries), e as edições pesquisadas são datadas do ano 2000, ou seja, coincidem com
o início dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Entretanto, apesar da disparidade
temporal, o Ministério da Educação (MEC), através do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), indica a coleção no ano de 2007, i.e., os alunos utilizam um
compêndio, até certo ponto, desatualizado.
Embora isso seja um fato relevante, muitas escolas públicas estaduais de
São Gonçalo/ RJ utilizam “Palavra aberta”, muitos por uma imposição determinada
pelo próprio PNLD, em que a obra deve ter um ciclo de quatro anos na escola. Como
a última escolha ocorreu em 2004, até 2008 a coleção será utilizada em várias
instituições escolares. Vale ressaltar que, no momento da escolha, havia, pelo
menos, outras tantas referências catalogadas pelo órgão, entretanto os critérios
utilizados para a escolha da obra de Isabel Cabral são passíveis de análise.
A escola
3
que utiliza tal coleção, em 2004, mantinha um efetivo de apenas
dois professores de língua portuguesa, uma vez que os demais eram professores
lotados com a chamada “GLP” ou então temporários. Os efetivos detinham, portanto,
o poder de optar entre as obras oferecidas qual a que seria utilizada pela escola no
curso de quatro anos. “Palavra aberta” foi escolhida, segundo uma professora, já há
dez anos na escola, “por ser mais simples e de fácil acesso aos alunos da
comunidade, já que o anterior (“Português: linguagens”, de Cereja & Magalhães,
2002) era cansativo, extensivo e nunca chegava até o final do ano inteiramente
trabalhado”.
Associar o simples ao funcional era o propósito dos professores e, com
isso, o livro “Palavra aberta” era o aliado desta idéia um tanto questionável. Talvez
para se refazer do “discurso descansado”, a professora salientara que já conhecera
a obra de Cabral desde os tempos em que ela a professora ministrava aulas de
língua portuguesa em um renomado colégio da rede privada
4
em Niterói/ RJ. O
adendo parece querer convencer de que a escolha, em função da comunidade ser
pobre, não ocorreu por este motivo, mas por uma questão de qualidade da coleção,
3
A escola que utiliza a obra “Palavra Aberta” é a Escola Estadual Cruzeiro do Sul, localizada no bairro
Mutuapira, na cidade de São Gonçalo/ RJ. Funcionando em dois turnos, apenas com turmas para o segundo
segmento do ensino fundamental, a escola se destaca pela organização do seu corpo administrativo e pedagógico,
de modo a alcançar, assim, o primeiro lugar em aproveitamento em língua portuguesa dentre as escolas públicas
estaduais de São Gonçalo, de acordo com o resultado do último “Nova Escola” de 2006.
4
Trata-se do Instituto Abel; uma escola tradicional de Niterói/ RJ. A princípio, causou-me descrença a fala da
professora no que tange o fato de uma escola com o porte da instituição ter feito uso da obra didática de Isabel
Cabral; no entanto, a informação da professora da Escola Estadual Cruzeiro do Sul confere, já que pude conferir
pessoalmente, junto à coordenação de língua portuguesa daquela escola, que a instituição, de fato, fez uso do
material didático nos anos de 2002, 2003 e 2004.
o que não corresponde ao fato, justamente pela obra ser de qualidade, no mínimo,
imprecisa.
Na coleção, a articulação das unidades pretende ser construída nos
“conhecimentos lingüísticos”, seguindo a própria apresentação oferecida pelo MEC,
através do PNLD de 2005, de modo que “a ênfase dos volumes recai em conceitos e
aplicações da gramática”, de acordo com o parecer do próprio órgão federal.
Verifica-se a desarticulação em torno do conceito do “saber lingüístico” estipulado
por Coseriu (2004) sobre o conceito de ensino da língua materna. A confusão entre
a perspectiva sugerida pelo PNLD pode ser ilustrada nesta observação a respeito da
obra de Isabel Cabral:
Condizente com esta linha tradicional, a obra deixa em segundo plano
outros eixos do ensino de língua portuguesa, principalmente a oralidade e a
relação entre a fala e a escrita (BRASIL, 2005, p.128).
A crítica oferecida à coleção de Isabel Cabral pelo MEC sobre a
pormenorização do estudo dos fenômenos da oralidade em favor da reflexão
metalingüística se baseia nas orientações promulgadas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, da Secretaria de Educação Fundamental do referido órgão,
uma vez que os mesmos propõem que a língua portuguesa seja trabalhada em
função do eixo “uso reflexão uso”, e tendo como este objetivo, entre outros
expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-la com eficácia
em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e produzir textos tanto
orais como escritos coerentes, coesos, adequados a seus destinatários,
aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados (BRASIL, 1997,
p.41).
Infelizmente, o termo “reflexão” no eixo pretendido pelos PCN não
redireciona o objetivo maior pretendido por Coseriu (2004) a partir da competência
lingüística, de modo que seria preciso desenvolver plenamente a competência
lingüística que se manifesta em três níveis de conhecimento: o nível universal (saber
elocucional), o nível histórico (saber idiomático) e o nível individual (saber
expressivo).
O saber elocucional é o saber acerca do real empírico e do saber
imaginário, tal qual a competência lingüística geral. Neste saber, há a habilidade de
construção de textos (orais ou escritos) que sejam possíveis no contexto real, e é
justamente neste ponto que reside os maiores problemas verificados por professores
de língua materna em suas salas de aula: o aluno é induzido a produzir textos, via
de regra escritos, mas não sabe necessariamente o quê. Cometer um desvio de
natureza do saber elocucional é dizer que o texto está incongruente, o que, na
Lingüística do Texto, é chamado de coerência. A aquisição do conhecimento do
mundo não se resume apenas aos limites da escola, já que a aquisição deste saber
elocucional ocorre a partir do contato do aluno com um universo cultural verificado
em textos escritos em geral, teatro, cinema, etc.
O saber idiomático diz respeito ao chamado mundo lingüístico, em que se
verifica o conhecimento das regras de uma língua em particular, a competência
lingüística particular. Neste caso, são orientados os estudos acerca do uso da
gramática normativa, de modo que este saber se relaciona ao plano histórico,
corresponde àquilo que é típico de uma língua em particular. A noção de certo/
errado reside neste saber, ratificando as maiores preocupações dos professores de
língua materna e também dos livros didáticos. Segundo Souza (2008, p.45),
Desenvolver esse saber (idiomático) nos alunos de língua materna é
essencial (porém não exclusivo), especialmente por se tratar do
conhecimento mais exigido socialmente e com menor possibilidade de ser
construído em outros contextos que não as aulas de língua materna. E
mais, além do domínio das regras gramaticais, pertence a este saber
também o domínio de um amplo léxico de uma determinada língua,
problema este muito comum entre nossos alunos, atualmente.
O saber expressivo articula a adequação ao destinatário, ao objeto e à
situação, pelo fato de que são prescritas normas que recomendam que cada
situação comunicativa requer um determinado texto com suas características
próprias. O que se chama atualmente de gêneros textuais/ gêneros discursivos,
sobretudo nas orientações dos livros didáticos, corresponde as diferentes formas do
saber expressivo. Articular inúmeras possibilidades de criações textuais com os
alunos a partir de novos contextos é uma boa proposta de ampliação do saber
expressivo.
A representação das relações entre tais conceitos pode ser feita desta
forma:
Quadro 1 Divisão dos níveis de conhecimento
UNIVERSAL HISTÓRICO INDIVIDUAL
linguagem língua fala/ discurso/ texto
designação significado sentido
saber elocucional saber idiomático saber expressivo
congruente/ incongruente correto/ incorreto adequado/ inadequado;
apropriado/ inapropriado;
conveniente/ inconveniente
Extraído da: Aula ministrada pela professora Terezinha Maria da Fonseca Passos Bittencourt na
disciplina “Ensino e aprendizagem de textos orais e escritos”, Curso de Mestrado em Letras, UFF,
2008.
Como todo ato de fala realiza e manifesta concomitantemente estes três
tipos de saberes estabelecidos por Coseriu (2004), não se verifica tal proposta pelos
Parâmetros, já que este pretende fazer da leitura e produção de textos o seu
objetivo maior em relação ao estudo da língua. E, com isso, “reflexão” se resumiria,
tão somente, ao registro de correção em obediência à chamada “variedade padrão”.
Ao definir que “Palavra aberta” se distancia do exercício da oralidade, o
próprio PNLD parece desconhecer os conceitos coserianos. A instituição não
viabiliza a ampliação do conhecimento do saber lingüístico enquanto uma atividade
que precisa ser estimulada, condição sine qua non para a aprendizagem do saber
metalingüístico.
Enquanto isso, e talvez pelo desconhecimento dos profissionais de Letras,
as avaliações feitas sistematizam o estudo da língua portuguesa a partir da reflexão
metalingüística orientada em torno de questões que resvalam no simplismo,
distorcendo totalmente aquilo que, de fato, a gramática poderia oferecer.
Tal processo mecânico é resultado de anos de uma prática já
hierarquizada nas próprias universidades, uma vez que a formação dos professores
de língua portuguesa, tal como Isabel Cabral sua formação é de graduada em
Letras pela Universidade de São Paulo evidencia-se no nível da “doxa” justamente
pela falta do respaldo científico acerca da prática de ensino sobre a língua materna,
como bem salientou Uchôa (2000, p.66):
Colocar os resultados da ciência ao alcance do professor da língua,
levando-o a refletir sobre a viabilidade ou não de adoção deles (livros
didáticos) à sua prática pedagógica, apresenta-se como tarefa básica em
um curso de licenciatura na área denominada tradicionalmente de Letras.
1.1 O Panorama dos LDP
A inoperância dos LDP (livros didáticos de português), de maneira geral,
se cristaliza à medida que não revitaliza o saber lingüístico, tal como uma atividade
que sempre implica movimento. Ao não promover este encontro, os LDP
basicamente articulam a teoria em questionamentos do padrão “o que é?” e não ao
“como é?”, e essa falsa ilusão em torno do ensino e aprendizagem da língua
materna gera um grande desvio da verdadeira proposta de ampliação do saber
lingüístico. Haja vista que os alunos reconhecem o português em todas as
disciplinas por ele estudadas, exceto na própria aula de português.
Com isso, ao discutir as nuances do LDP, procuram-se respostas às mais
diversas questões algumas óbvias quanto ao mercado e ao filão editorial
formados outras, nem tanto, como a falta de reflexão crítica dos profissionais que
farão uso deste material. Sobre a questão editorial e mercadológica, verificar-se-á
que a implementação do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) vinculado
ao Ministério da Educação nos idos dos anos oitenta fez com que se criasse um
fenômeno de vendas do material impresso, o que se tornou um viés interessante
tanto para os professores que se aventuraram a entrar no reduzido círculo de
autores de livros didáticos, como para as editoras, que viram seu lucro aumentar,
sobretudo, sob o crivo do Governo Federal.
A popularização do livro didático mesclada à própria situação caótica do
corpo docente resultou na assimilação do material como um objeto que acompanha
o professor, sendo um utensílio evidenciado mais pela praticidade que pela própria
capacidade de intelectualização pretendida. Tornar-se, pois, refém do livro didático é
sinônimo de comodismo e insuficiência na formação acadêmica.
Esta inaptidão do docente é notória não somente em função da
assimilação do livro didático nas suas salas de aula, mas também há de se verificar,
sobretudo, a falta de orientação da universidade no que concerne à formação dos
professores, que fica restrita ao nível da “doxa
5
”. Tal assimetria parece ser nociva,
como resultado final, ao ensino da língua portuguesa, porque o modelo a ser
5
O pensamento platônico fundou uma desconfiança grave no valor da opinião, termo que se pode tomar como
sinônimo de doxa. Esta desconfiança chegou até os nossos dias, principalmente na chamada Academia, isto é, na
escola e na universidade. Combate-se o “achismo” para promover a expressão de um pensamento que vá além da
“mera opinião”, que se fundamente, se prove, se demonstre, em suma, que supere as primeiras impressões da
sensibilidade. O lingüista deve se preocupar em apurar, em refinar seus níveis de leitura, bem como os níveis de
leitura de seus pares ou de seus alunos, para não ficar preso às sombras do “gostei”, “não gostei”. Deste modo,
supera a doxa, a opinião superficial, o “achismo”.
ensinado pelo professor de português será mecanizado e improdutivo, muitas das
vezes semelhante ao que fora verificado nas aulas de graduação ou pós-graduação.
Para Bechara (2003, p.24),
A tarefa do professor de língua materna no que tange à execução de uma
política de educação lingüística deve ampliar-se e enfileirar-se no rol dos
componentes curriculares que permitam chegarem os alunos a essa “cultura
integral” de que falam muitos programas de ensino secundário.
A cultura integral sugerida por Bechara (2003) implica uma nova posição a
ser defendida pelo profissional de língua portuguesa a fim de fomentar com
eficiência o saber idiomático dos seus alunos. Abrir os limites de uma educação
lingüística é uma bela mostra para levá-los à compreensão do mundo que os cerca.
No entanto, tal proposta não deve ser confundida com a concepção dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) no que tange às atividades lingüísticas,
haja vista que expressões, como “interdisciplinaridade”, precisam ser esclarecidas
de modo mais elucidativo a fim de não promoverem a livre e estranha sensação
de que basta a divisão em eixos temáticos no que concerne ao texto
6
, como um
produto final, para que o entendimento do aluno esteja evidenciado.
E o livro didático sugere uma aparente contribuição ao crescimento do
conhecimento de mundo do aluno com propostas empobrecedoras para o ensino da
língua. Verifica-se que muitos livros didáticos se articulam em torno de uma proposta
metalingüística (algo que os PCN aparentemente não preconizam) e apresentam
uma gama de textos que se detêm em uma esfera temática que fundamenta uma
6
Muitos livros didáticos mostram a completa inadequação sugerida em torno da compreensão do que vem a ser,
de fato, um texto. Apoiando-se na área “Linguagens, códigos e tecnologias”, implementada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais, os livros didáticos compreendem textos como toda e qualquer manifestação que, de
modo verbal e não-verbal, possibilite a interpretação de novos significados. Por isso é tão comum encontrar
“textos” sob a forma de receitas culinárias, telas de pintores renomados, propagandas, tiras em quadrinhos, entre
outros. É a chamada diversidade de gêneros textuais.
diversidade simplesmente quantitativa e não qualitativa. Há um verdadeiro “inchaço”
de autores de textos supostamente literários, muitas vezes, fragmentados.
Infelizmente, quando usados, os textos literários servem como meros
pretextos para a elaboração de questões metalingüísticas. Este recurso, além de
destruir a concepção suprema do texto literário, ainda mascara a insuficiência da
atividade em torno da gramática. Sobre este aspecto, Cavaliere (2004-2005, p.169)
nos certifica:
[...] as aulas de português transformaram o saber sobre a gramática em um
ensino ensimesmado, apenas voltado para o conhecimento científico “tout
court”, descomprometido com a boa produção de textos. Esse é um dos
motivos que levaram a uma crescente ojeriza ao ensino gramatical.
Por mais que os materiais didáticos procurem se organizar de maneira
diferente daquela proferida por Cavaliere, eles se restringem ao que se determina
como “correto ou incorreto” (algo também compartilhado por muitos professores de
língua portuguesa).
Este preceito em torno da chamada correção lingüística se pauta a partir
da década de setenta através da dicotomia certo/ errado e, neste caso, há uma
controvérsia muito grande em relação a esta noção de correção, haja vista que,
nesta mesma década, confundia-se “incorreção gramatical com democracia
lingüística” (CAVALIERE, 2004-2005, p.166), ou seja, em tempos de conflito
demarcado pela ditadura militar, a figura do professor de português se associava a
de um censor.
Por isso, a noção do ensino e aprendizagem de língua materna não seria
relacionada às manifestações de liberdade, e os livros didáticos, talvez se fazendo
valer desta lacuna, se apresentassem com tantas propostas de democratização de
acesso ao texto, contudo se esquecem do mais importante: a importância que o
texto literário adquiriu ao longo do tempo.
Tal confusão torna o LDP um instrumento a ser discutido, não pelo falante,
mas pelo lingüista, sobretudo no que se refere a esta problemática em torno da
correção lingüística. Algumas correntes contemporâneas da lingüística corroboram a
confusão acerca do conceito “correção” ao orientar no sentido de que há “dois
português”, grosso modo, um português falado e um português escrito.
Esta dicotomia surge muitas vezes no LDP sob a forma dos termos “norma
culta” e “norma coloquial”, em que se associa a primeira ao plano da escrita, e a
segunda, ao plano da fala. Parece-nos errôneo categorizar tal afirmação e perpetuá-
la nos LDP por uma série de motivos, sobretudo pelo fato de que escrita e oralidade
são habilidades distintas, mas não devem ser compreendidas como se uma fosse
inferior à outra (ONG, 1998).
Ao articular, sob o ponto de vista cultural, a competência lingüística em
três saberes (elocucional, idiomático e expressivo), Coseriu (1993) fixa seu olhar no
falante. Tal idéia é ratificada pela preciosa observação de Uchôa (2000, p.67),
o saber prático de que os falantes fazem uso não se reduz apenas ao
conhecimento das regras da língua, mas comporta três níveis de
conhecimento, manifestados sempre em cada ato de fala.
Ao considerar que “a linguagem funciona pelos e para os falantes, não
pelo e para os lingüistas”, Coseriu (1993, p.29) ressalta que o falante e a sua
capacidade de autocorreção tornam-se evidentes no processo de ensino da língua
materna, pelo fato de o falante ser extremamente rigoroso no que tange a correção
lingüística. Este rigor advém do motivo pelo qual o falante reconhece que há um tipo
de língua, cuja análise se resume ao que está certo ou ao que está errado, de modo
a percebermos aquilo que Bittencourt (2004, p.14) salienta no papel ocupado pelo
falante:
O falante enquanto tal está apenas ocupado em fazer funcionar o
instrumento lingüístico, a fim de que possa alcançar seu objetivo de chegar
até o outro, seu propósito de comunicar; por isso, qualquer desvio [...]
representa uma ameaça à regularidade.
E o livro didático de português não prescreve situações ao falante, uma
vez que o estudo metalingüístico se impregna de normas, regras, e isso causa a
sensação de que fugir da gramática é semelhante a cometer uma falta grave.
Sendo a língua um objeto histórico, talvez a interpretação feita pelos
lingüistas necessite de melhor compreensão, já que os mesmos se esquecem de
que a língua, por ser um objeto histórico, precisa ser analisada através de uma
distinção regida por vários aspectos. O que há, de fato, é um problema terminológico
largamente difundido pelos LDP, haja vista que os mesmos determinam por “culto”
(ou “padrão”) voltado tão somente ao texto escrito um registro que deve ser
compreendido como uma norma utilizada pelos que são privilegiados pela
sociedade.
Tal norma está baseada não só nos textos escritos, mas também nos
textos orais, orientação maior da nossa pesquisa. A norma padrão, na verdade,
responde à expectativa dos falantes, o que não é confirmado nas explicações dos
livros didáticos.
Já a norma exemplar (nomenclatura determinada por Coseriu) responde à
pergunta “como deve ser?”, i.e., diz respeito ao texto escrito. A pergunta sugerida
pela norma exemplar é feita pelo falante e deve ser respondida pelo gramático.
Fundamentalmente, a norma exemplar (enquadrada na dimensão deontológica
7
, o
7
A deontologia consiste no conjunto de regras e princípios que regem a conduta de um profissional, uma ciência
que estuda os deveres de uma determinada profissão.
“dever-ser”) cumpre as orientações metalingüísticas, tal como um código de leis. E
os LDP tentam macular esta orientação com artimanhas contemporâneas que
simplesmente deturpam ora a proposta de ensino da metalinguagem, ora a eficiência
do texto literário.
No entanto, quando se pensa em um trabalho efetivo com o falante da
língua nos LDP, verificam-se equívocos de natureza diversa, muitos dos quais
advindos do confuso texto dos PCN. É preciso não confundir oralidade com
oralização da língua (o que efetivamente é feito em livros didáticos e salas de aula
de língua portuguesa). Sobre este assunto, registra Uchôa (2000, p.72):
Não se trata de ensinar, fique claro, o que os alunos já dominam no seu
falar (a língua oral informal do seu grupo social), mas de levá-los a refletir
também sobre o seu uso lingüístico.
Talvez esteja neste ponto o valor do estudo da oralidade: uma busca, um
compromisso em torno do repertório no que concerne à abrangência do saber
idiomático, contribuindo para aumentar o universo lingüístico e cultural dos alunos,
até o desempenho gradual do saber expressivo. Tal expressividade lingüística não
se resume no fato de conhecer apenas o português por si só, mas compreender o
que pode ser dito sobre ele.
Para isso, o texto literário surge como um importante recurso a esta
proposta. Para Coseriu, este texto é o objeto privilegiado de descrição da norma
exemplar, uma vez que representa a plenitude funcional da linguagem.
Em particular a língua literária pode representar na forma mais evidente e
imediata a coesão com a tradição cultural de comunidade e, ao mesmo
tempo, o dinamismo intenso da língua a enérgeia ou criatividade ínsita em
todo sistema lingüístico além do “dever ser suficiente”, é um valor cultural
de signo sempre positivo. Daqui a preferência sócio-cultural pela língua
exemplar e pela língua literária preferência não imposta por “autoridade”,
mas espontânea em todo falante (COSERIU, [s.l.], [198-?], p.1).
No entanto, há um hiato muito grande entre a escolha do texto literário e
sua opção como fonte de estudo pelos livros didáticos. Muitos professores de língua
materna se encontram em problemas quando resolvem adotar o texto literário, seja
como pretexto às elucidações metalingüísticas, seja para ser tratado como objeto de
investigação do ponto de vista da semântica, da pragmática, da lingüística textual ou
da análise do discurso. Recordamo-nos de uma afirmação feita em um manual do
professor de uma famosa coleção em que salienta a seguinte visão sobre o papel do
texto em um livro didático:
[...] infelizmente, o texto raramente é tomado como unidade de sentido e,
mais raramente ainda, como discurso. Relegado ao papel de suporte, o
texto quase sempre acaba se transformando em mero pretexto para a
exemplificação teórica ou para exercícios de reconhecimento ou
classificação gramatical (CEREJA; MAGALHÃES, 2002, p. 12)
Notamos que a observação dos autores sistematiza exatamente aquilo
que é praticado nos livros didáticos de língua portuguesa; naturalmente, esperar-se-
ia que os mesmos procurassem articular textos sobretudo os literários de
maneira que não viessem a convergir para este equívoco.
Ao tomarmos como exemplo a poesia de Carlos Drummond de Andrade
(1991) “Cidadezinha qualquer”, verificamos que os autores fazem uma análise sob a
perspectiva da chamada “língua contextualizada” em torno da busca dos múltiplos
sentidos que a poesia poderia oferecer.
No entanto, os autores acabam esbarrando naquilo que fora
veementemente repreendido por eles próprios: a metalinguagem; isto porque
sintetizam, a partir desta contextualização, o papel que a presença/ ausência dos
artigos fundamenta nos sentidos pretendidos do poema. Vejamos outra elucidação
pretendida pelos autores deste livro didático, ainda no manual destinado aos
professores:
O certo é que o poema não teria os sentidos que tem não fosse o emprego
dos artigos como foram utilizados. Se, por exemplo, em lugar de “um
homem vai devagar”, tivéssemos “o homem vai devagar”, o sentido do
poema seria completamente modificado (CEREJA; MAGALHÃES, 2002,
p.15).
Ora, se a proposta era inovar, a mesma se resumiria à velha máscara da
prática escolar associada ao livro didático e sua perspectiva metalingüística. Com
isso, a concepção fundamental da poesia fica relegada ao plano inferior (senão
inexistente), e a chamada “produção de sentidos” se detém na categorização e, até
mesmo, na classificação dos artigos.
E a poesia, um marco substancial do texto literário, é relegada à
marginalidade nos livros didáticos em geral. Quando sugerida por estes materiais,
surge sob a forma de leitura dramatizada, individual ou em jogral, dando a falsa
impressão de estudo da oralidade. Aparentemente, quando dramatizada, pode ser
produtiva, no entanto depende do poema, de suas características, da carga
dramática que possui. Quem escolheu esta atividade e como ela foi encaminhada,
qual é a reação que o texto produziu e como foi o contato dos alunos com a poesia,
são outros indícios de que os professores podem fazer uso para verificação do
trabalho, de modo a avaliar se o resultado foi positivo ou se apenas cumpriu um
papel decorativo nas aulas.
Um exemplo de uso caótico do texto poético surge quando são solicitadas
as atividades de compreensão sobre o mesmo. Grande parte dos livros didáticos de
português associa poema à definição de “composição em versos, estrofes e rimas”,
de modo a orientar os alunos, em geral, à confecção de exercícios cujo objetivo é o
reconhecimento destes elementos ou da temática da poesia sem que se faça
qualquer elo entre o aspecto formal e o conteúdo.
É notório que a “onda” da modernização, ao querer trabalhar com os
chamados eixos interdisciplinares, é grande, de modo que as poesias de temática
social, como “Bicho”, de Manuel Bandeira (largamente utilizada pelos materiais
didáticos de língua portuguesa), são freqüentes; todavia, o que se nota é que a
preocupação é meramente ideológica, e o encaminhamento dado às leituras desta e
de outras tantas poesias é bastante superficial, centrado apenas em um dos
aspectos, que é desejado pelo autor do livro didático, de transformar poesia em
informação.
Para Xavier [19--], tal caos tem como premissa a sofisticação da cultura de
massa. Indubitavelmente, a poesia perdeu seu valor de fruição aos mais jovens no
contraponto com o surgimento das tantos meios de comunicação eletrônicos que,
muitas vezes, banalizam o pensamento e o caráter imagético que devem nortear as
atitudes humanas. Se a concepção de trabalho do texto poético é bradar em busca
de sentidos que o mapeiam, devem-se enaltecer as célebres observações de
Coseriu (1993, p.40):
Ora, para interpretar o sentido é necessário conhecer as possibilidades de
construção de sentido que se dão na linguagem. Nunca se fez uma
casuística completa das possibilidades que tem a linguagem para
manifestar sentido num campo determinado.
E, de fato, na poesia, a linguagem não se minimiza. É justamente no fazer
poético que “as possibilidades da linguagem se atualizam, se fazem reais,
funcionam”, conforme palavras do próprio Coseriu (1993, p.40). No entanto, os LDP
confundem esta idéia de “atualização” ao associá-la ao fenômeno de motivação
didática, ou seja, privilegia-se a confecção de “poesias” em torno de um eixo
temático.
Se a unidade do livro didático elucida o tema “adolescência”, é bastante
comum a ocorrência de poesias que abordem o cotidiano do adolescente, e, neste
caso, entram em circulação alguns autores consagrados por grande parte dos LDP
com suas poesias que soam tão falso que, inclusive, são ridicularizadas por alunos
em sala de aula, que enxergam nestes textos uma espécie de “tapa-buraco” nas
atividades de língua portuguesa.
Atitude. Palavra-chave à poesia. Isto porque fazemos das palavras de
Xavier ([19--], p. 7) as nossas. Segundo ele:
A atitude do professor diante do texto é de extrema importância para a
formação dos indivíduos realmente movidos pelo prazer da palavra poética.
Por isso mesmo sou de opinião que ele leve para a sala de aula apenas
aqueles poemas que fazem parte de sua antologia pessoal, i.e., aqueles
com os quais ele próprio convive, numa relação de amor, de absoluta
empatia.
Trata-se de uma postura que necessita ser, primeiramente, determinada
pelo profissional, sobretudo pelo fato de que o fazer literário não implica aprender e
ensinar conceitos operatórios que tragam em si soluções de “como fazer” (tão
difundidos nos manuais didáticos), mas tornar o poema um instrumento que seja
capaz de trazer a emoção estética e a sensibilidade necessárias à educação
humanística dos alunos.
1.2 A Coleção “Palavra Aberta
A organização da coleção é feita em dez unidades para cada volume
(série). Cada unidade almeja um determinado eixo temático através de um texto e,
por vezes, de imagens. As seções que articulam cada unidade são: “Estudo de
texto”, “O texto e suas relações”, “Recursos de linguagem”, “Produção do texto”,
“Conhecendo a gramática”, “Exercício complementar” e “Sugestão de atividade”.
Sobre cada seções, trataremos a partir deste instante.
1.2.1 Estudo do texto
Basicamente, todas as unidades articulam dois textos principais
associados através de eixos temáticos, de modo a, também, atender às subseções
“Palavras no contexto” e “Compreensão”.
O critério para a escolha dos textos que compõem a coleção “Palavra
aberta” parece respeitar as orientações de cunho sócio-pragmático, segundo as
quais o texto é uma unidade de sentido estabelecido pelo leitor/ autor na modalidade
escrita da língua. A partir deste critério é que o PNLD caracterizou “Palavra aberta”
como uma referência a ser utilizada em salas de aula brasileiras:
A principal qualidade da obra reside na seleção textual, que apresenta
materiais de diferentes gêneros e tipos, e aborda diversos temas e
contextos sociais de uso, de interesse da faixa etária dos alunos. (BRASIL,
2005, p.130).
Efetivamente o que verificamos é um amontoado de textos fragmentados
que contribuem para a formação de um painel poluído. Sem dúvida, privilegia-se a
quantidade em detrimento da finalidade, o que se tornou uma práxis entre os livros
didáticos por abordar uma linha mais mercadológica no sentido de transformar o
ensino da língua portuguesa em algo multifacetado.
O inchaço de textos na coleção em análise é corroborado a partir de um
levantamento feito dos quatros volumes que correspondem à obra. A partir da
seleção de textos, verificou-se a presença do seguinte resultado.
Quadro 2 Organização dos textos na coleção didática
TIPOLOGIA TEXTUAL 6º ano ano 8º ano 9º ano
textos literários canônicos (prosa) 2 4 1 1
textos literários não-canônicos (prosa) 2 7 3 3
textos em forma de crônicas 8 8 7 5
textos jornalísticos/ informativos 8 8 28 33
textos de propaganda 9 17 15 10
textos da literatura infanto-juvenil (prosa) 18 6 7 4
textos em charges e quadrinhos 40 42 32 30
textos literários canônicos (poesia) 3 5 6 34
textos literários não-canônicos (poesia) 1 ---------- 1 1
textos de letras de música --------- 3 6 34
textos da literatura infanto-juvenil (poesia) 3 4 3 2
textos não-verbais (telas, quadros) 5 6 7 4
Extraído de: Trabalho apresentado pelo Autor, para TCC, referente à disciplina “O livro didático e o
ensino de língua materna, ministrada pela Profª.Drª Terezinha Maria da Fonseca Passos
Bittencourt, em 2007, na UFF.
Do total de quatrocentos e cinqüenta e seis textos (literários e não-
literários), podemos finalmente constatar a prática comum de “inflar” nos LDP textos
de natureza diversa, confirmando a proposta do MEC em torno da abordagem de
temas e contextos sociais.
Os volumes, no que tange à proposta de trabalho com os textos literários
8
,
trazem textos narrativos e poéticos de autores como Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Mário Quintana, entre outros.
Todavia, alguns textos sobretudo os narrativos são fragmentados e explorados
como pretexto para o ensino metalingüístico.
Outro fator a ser abordado, no que diz respeito ao texto literário, é a
inserção de textos também fragmentados da literatura infanto-juvenil. Sobre a
mesma, é interessante ressaltarmos que há uma espécie de ranço quanto ao seu
8
No que respeita o texto literário (texto por excelência), segundo Coseriu, não seria estabelecer uma espécie de
metalinguagem da literatura (ou “metaliteratura”), mas apresentar o texto literário de forma exemplar para
estimular o interesse pela literatura, para que o aluno prossiga ele mesmo lendo outras coisas, além das que são
ensinadas na escola. Tal situação promoveria a ampliação dos saberes elocucional, idiomático e expressivo.
uso, porque está intimamente relacionada ao fenômeno mercadológico, tal como se
insere o próprio livro didático.
É impressionante a quantidade de textos, que se intitulam como de
“literatura infanto-juvenil”, nos livros didáticos, apresentando autores cuja
expressividade se atém em textos voltados à realidade adolescente através de
temas como insegurança, medo, primeiro amor, consumismo, entre outros.
Aparentemente, este acúmulo de textos de proficiência duvidosa resulta na
descaracterização da literatura infanto-juvenil, algo já confirmado por excelência pela
veiculação dos livros didáticos de português.
Entretanto, os próprios textos desta literatura também poderiam
proporcionar a ampliação do saberes elocucional, idiomático e expressivo, desde
que articulados e manuseados de tal modo que, como salienta Zilberman (1998,
p.69-70),
A caracterização da obra literária evidencia o dilema da literatura infantil. Se
esta quer ser literatura, precisa se integrar ao projeto desafiador próprio a
todo o fenômeno artístico. Nesta medida, deverá ser interrogadora das
normas em circulação, impulsionando seu leitor a uma positiva crítica
perante a realidade e dando margem à efetivação dos propósitos da leitura
enquanto habilidade humana. Caso contrário, transformar-se-á em objeto
pedagógico, transmitindo a seu recebedor convenções instituídas, em vez
de estimular a um conhecimento da circunstância humana que adotou tais
padrões.
Efetivamente, o papel da literatura infantil/ infanto-juvenil precisa se
distanciar imediatamente da esfera letárgica que a conduz a ser pretextualizada para
atividades ineficazes do LDP, visto que também lhe é conferida o caráter artístico.
Em se tratando de uma obra autorizada e recomendada pelo MEC com
fins didáticos, é estranho constatar que o próprio parecer de instituição pública seja
desfavorável ao que “Palavra aberta” sugere como atividades da leitura. Vejamos o
que o MEC, sob a égide do PNLD, nos diz sobre este aspecto:
É tímido o trabalho relacionado à (re) construção da leitura como uma
situação efetiva de interlocução. Apesar da boa contribuição das notas
bibliográficas sobre os autores dos dois textos principais de cada unidade,
não se registra preocupação em recuperar o contexto de produção de
textos, nem em definir para o aluno as finalidades do exercício da leitura. Na
maioria das vezes, elas podem, no máximo, ser inferidas a partir das
perguntas, localizadas na página inicial de cada unidade (BRASIL, 2005,
p.36).
Na verdade, o próprio MEC (BRASIL, 2005) atesta o paradoxo em torno
de sua opinião formada. Em “Palavra aberta”, a autora parte da idéia de que cada
unidade é desenvolvida por um “texto-pretexto”, como muitos livros didáticos
também se aproveitam deste recurso. Na análise, constatou-se que os textos
escolhidos para a abertura das unidades não têm relação com o trabalho que se
realiza a seguir.
Verifica-se que o texto é transportado para uma análise que procura
sistematizar uma única resposta, transformando-se em um objeto didático-
pedagógico, o que ratifica o seu papel de pretexto. Além disso, o estudo do
vocabulário que se segue ao texto é feito através de uma atividade que se limita à
utilização do termo, sem prover novas significações do vocábulo em outros
contextos. Com isso, limita-se o estudo do vocabulário à simples cópia do significado
dado pelo livro, tanto que, no final de cada volume, é oferecido um pequeno
glossário das palavras que serão utilizadas nos textos.
1.2.2 Palavras no contexto
A partir da subdivisão da análise textual em “Estudo do texto” e “Palavras
no contexto”, verificamos que a segunda parte se limita ao estudo do vocabulário,
enquanto que a subseção “Compreensão” apela para perguntas redundantes, dado
que para respondê-las o aluno somente precisa copiar alguns segmentos do texto
para conseguir êxito.
A redução ao mínimo possível em torno da reflexão crítica confere à obra
de Isabel Cabral (2000) sérias observações. Minimizar a fim de alcançar um objetivo
supostamente ensinar português expõe a fragilidade que uma obra didática
oferece a jovens e adolescentes. Não oferecer uma leitura de qualidade, através de
textos que compreendam a concepção do mesmo como fomentador de saberes,
pode resultar em equívocos, principalmente se houver um consenso do professor de
língua portuguesa.
Desta forma, foi preciso ouvir a palavra de um profissional que, como
muitos, atuam com o livro didático de forma sistemática. O trecho a seguir confere a
opinião do professor Walter Valverde
9
, lotado como Professor Regente I da Escola
Estadual Cruzeiro do Sul, acerca da coleção utilizada em sua escola:
O livro “Palavra aberta” adotado na Escola Estadual Cruzeiro do Sul é fraco.
Apenas aproveito a parte de interpretação de textos e, mesmo assim, as
perguntas são de um grau de dificuldade muito baixo. Se são feitas dez
perguntas de interpretação, uma ou duas são de grau de dificuldade
aproveitável para o exercício do raciocínio crítico. A parte gramatical é
irrelevante e pobre, apresentando alguns conceitos que não serão cobrados
do discente futuramente. Se quiser conferir, abra o livro no capítulo 1 e
confira o conteúdo “Comparação e Metáfora”. Nunca vi este conteúdo sendo
apresentado daquela forma. E perguntei a outros professores da graduação
e da pós-graduação e me deram o mesmo parecer. Percebo que certos
conceitos aparecem em certos livros didáticos para promoção e divulgação
dos autores. “Palavra aberta” pode ser um caso. Em suma, o livro é ruim,
aproveitável apenas à (sic) interpretação de texto, embora com restrições.
O parecer do professor iniciante no magistério, convém ressaltar
confirma a tese de que a obra por ele mesmo utilizada é fraca. No entanto, é
interessante verificarmos que os porquês desta obra ser considerada ruim não nos
9
Comunicação escrita, informal, fornecida por Valverde ao Autor desta dissertação, em conversa havida em
1997 na Escola Estadual Cruzeiro do Sul (São Gonçalo RJ).
são respondidos, e isso categoriza a fala do professor ao nível da “doxa”, por haver
falta de precisão no embasamento teórico da crítica à coleção.
Ao afirmar que, no final da explanação, “o livro é ruim e o aproveitável é
apenas a interpretação do texto”, percebe-se uma certa contradição, já que é
justamente a parte reservada à leitura e análise de textos que o próprio MEC
condena. Além disso, qualificar a obra como ruim nivela o professor ao falante, algo
para o qual o próprio professor necessitaria atentar ao longo de sua carreira para
promover a sua formação lingüística.
É inevitável que o livro didático faz do professor um refém por inúmeros
motivos, sejam eles de natureza econômica, social, sejam eles de cunho prático, de
modo que muitos são aqueles que precisam ministrar inúmeras aulas em várias
escolas, sem qualquer possibilidade de organização mínima de trabalho em sala de
aula.
Embora haja todo esse contexto desfavorável ao professor, não podemos
ocultar um problema que é agravante pelo fato de ratificar a falha de todo o sistema
de formação deste professor: o desconhecimento dele resulta na falta do senso
crítico inclusive na adoção do material didático em sala de aula, tal qual verificamos
na fala do professor entrevistado. Sobre o desconhecimento e despreparo do
professor afirmam Freitag, Costa e Motta (1997, p.111),
O livro didático não funciona em sala de aula como um instrumento auxiliar
para conduzir o processo de ensino e transmissão do conhecimento, mas
como o modelo, padrão, a autoridade absoluta, o critério último de verdade.
Neste sentido, os livros parecem estar modelando os professores. O
conteúdo ideológico do livro é absorvido pelo professor e repassado ao
aluno de forma acrítica e não distanciada.
1.2.3 Produção do texto
O que é reservado ao “Estudo do texto” e sua “Compreensão” verificam-
se, portanto, como insuficientes, algo também observado à “Produção do Texto”.
Nesta seção, solicita-se aos alunos a produção de histórias, sobretudo nas séries
iniciais (6º, 7º e 8º anos). Entretanto, são bastante artificiais as atividades, em virtude
de se organizarem em torno dos chamados “eixos temáticos” sugeridos em cada
unidade. Com isso, os objetivos são obscuros e não há nenhuma proposta de
produção mais abrangente. Isso torna mais óbvia a falta de relação entre a aquisição
do saber elocucional e a resultante em um saber expressivo. Praticamente,
produzem-se textos sem saber exatamente o porquê de sua produção.
1.2.4 Conhecendo a gramática
A disposição do conteúdo gramatical obedece à seqüência tradicional:
estudo de fonologia, morfologia, sintaxe, estilística e semântica, de modo que o
tratamento é destinado à parte formal da gramática. Quanto à estilística, a autora
reserva uma (confusa) seção denominada “Recursos de linguagem”, que não possui
nenhuma associação ao que fora estudado na unidade.
Não há, na verdade, uma correta abordagem tanto estilística quanto
semântica da língua, ficando-se restrita apenas à identificação automática de casos.
Vejamos, por exemplo, o tratamento dado à “comparação e metáfora”, assunto
explicitado pelo professor que utiliza “Palavra aberta” em sala de aula. Pela sua
descrição e verificando o conteúdo oferecido, notamos que há simplesmente a
apresentação de tais figuras de linguagem, suas definições parcas e exemplificações
soltas. Não se discute qual é o seu grau de significação na composição de um texto,
por que tais figuras foram utilizadas, que efeitos estilísticos e semânticos
proporcionam etc.
Em relação ao estudo dos conteúdos gramaticais ao longo das séries, o
que se nota é a proposta de retomar sistematicamente um conteúdo a outro, sem
que haja alteração do tipo de abordagem realizada. Verificamos que muitos dos
conteúdos oferecidos no 6º ano, por exemplo, são revistos no 7º ano, tanto quanto
os do 8º são revistos no 9º ano, sem que tivessem sofrido modificações
elementares, seja pelo conteúdo, seja, inclusive, pela sua forma de apresentação.
Fundamentalmente, assim se apresentam os conteúdos programáticos de
cada volume de “Palavra aberta”:
Quadro 3 Divisão dos conteúdos programáticos na coleção didática
5ª série (6º ano) Conhecimentos fonéticos/ fonológicos; morfologia.
6ª série (7º ano) Conhecimentos fonéticos/ fonológicos; morfossintaxe
reconhecimento das estruturas morfológicas em palavras e
suas relações sintáticas.
7ª e 8ª séries (8º e 9º anos) Morfossintaxe.
Extraído de: Adaptado de CABRAL, 2000.
As atividades metalingüísticas procuram estimular basicamente as
habilidades de observação, localização, aplicação e, por fim, correção. Apesar de se
apresentarem variados e, em alguns casos, bem extensos, os exercícios
metalingüísticos são formulados numa perspectiva redundante. A práxis oferecida na
coleção se pauta, segundo Bechara (2003, p.23) em “um currículo antieconômico,
banal, inatural e, por isso mesmo, improdutivo”.
Antieconômico por explorar exatamente aquilo que os alunos (falantes,
antes de tudo) já dominam graças ao saber lingüístico prévio; banal, pelo fato de que
o tipo de informações oferecidas pouco adiantam à capacidade operativa do falante,
ou seja, articula-se um estudo em busca de responder “o quê?” e não “para quê?” e
inatural, por seguir uma trilha inversa à direção do desenvolvimento lingüístico dos
alunos.
O resultado disso são orientações frágeis, inconsistentes, apresentadas de
forma descontínua, o que gera um grande desconforto, por parte dos alunos, das
aulas de português. Daí, então, surge um dos maiores equívocos verificados em
muitos livros didáticos (e com “Palavra aberta” não seria diferente”): a noção de
norma padrão e norma exemplar (nomenclaturas estas que efetivamente não fazem
parte dos compêndios dos livros didáticos).
Na obra analisada, o conceito de norma padrão está diretamente
associado à noção do “correto e incorreto”, o que confirma a tese de que, de fato, a
grande preocupação dos livros didáticos reside no saber idiomático. Com isso, a
chamada correção lingüística se restringe ao único juízo que se considera,
identificado, pois, como um português padrão a ser seguido.
Com isso, a abordagem sobre a questão da variação lingüística esbarra no
equívoco imperdoável. Antes de elucidar o porquê deste equívoco, vejamos o que a
autora da coleção afirma sobre a variação lingüística no volume destinado ao 6º ano:
A forma de se utilizar a língua apresenta variações. Por exemplo, a variante
lingüística que aprendemos na escola, encontrada em jornais, livros,
documentos em geral, é chamada de variedade padrão ou língua culta.
(CABRAL, 2000, p. 24).
Naturalmente, não se aguardam proposições coserianas acerca do estudo
das variações lingüísticas, tais como os conceitos das variações diatópicas,
diafásicas e diastrásticas, entretanto, segundo a autora, a variação se limita tão
somente ao que é contextualizado pelo grau de inteligibilidade adquirido, de modo a
atender à nomenclatura “norma culta”. Para corroborar a ineficácia da proposta, o
MEC segundo a avaliação feita da obra sintetiza que “[...] da mesma forma, a
perspectiva adotada não abre espaço para o trabalho com a variação lingüística no
tratamento dos conteúdos gramaticais” (BRASIL, 2005, p. 43).
Se a proposta é supor uma melhor aquisição do chamado saber
lingüístico, é difícil considerar por menor ou ínfima que seja uma relação do
estudo das variações lingüísticas ao estudo metalingüístico. Isso, a obra de Cabral
(2000) não segue, até porque não faz qualquer menção ao estudo, e, quando faz,
realiza de modo equivocado. Daí o porquê da coleção não explorar plenamente a
noção de variação, devido ao livro didático em geral se restringir ao saber idiomático,
sem manejar o conhecimento reflexivo na busca do conhecimento.
Para finalizar a unidade, são descritas duas outras seções, o que ratifica a
concepção de quantidade excessiva de um conteúdo ineficaz. A seção “Exercício
complementar” enfatiza o uso das convenções do sistema da escrita, algo que se
assemelha às noções de ortografia, homônimos e parônimos, etc. E a seção
“Sugestão de atividade” procura fazer uma síntese do que fora observado nos textos
da unidade e daí organizar uma série de propostas que visam à explanação dos
alunos sobre o que fora lido. Tal seção é plenamente descartada pelos professores
em geral e, talvez, seria a que melhor traduzisse o responsável papel de um material
didático, não fosse a péssima sistematização feita em torno da escolha dos textos.
1.3 O Tratamento à Língua Falada
A coleção “Palavra aberta” sugere algumas atividades com a língua falada
ao longo das suas edições voltadas ao segmento do ensino fundamental. Nesta
parte, procuraremos tratar destas atividades, procurando ressaltar as qualidades e
os equívocos aferidos em uma observação atenta sobre o trabalho com a oralidade.
A efetiva atuação da oralidade pode ser verificada logo no início de cada
unidade das obras, intitulado de “Primeiras idéias”. Neste segmento, há uma espécie
de premissa do que será trabalhado ao longo da unidade, sobretudo o eixo temático
a que os textos escolhidos serão submetidos. Verifiquemos este exemplo extraído
do volume destinado ao 6º ano:
Primeiras Idéias
s andávamos juntos. Sempre. Era pra todo lado nós dois. Essas coisas
de amigo do peito, melhor amigo, por aí. A gente nunca sabe por que o
melhor amigo é o melhor entre os amigos. É, simplesmente. Uma vez me
perguntaram por que o Serginho era o meu melhor amigo. Ele é
legal...Legal, pô! Foi o que eu consegui responder.
Ele morava no prado, eu, na serra. A gente se encontrava no centro da
cidade, praça Sete, por ali, e tomávamos refrigerante ou vitamina de aveia
numa birosca ao lado do Café Pérola. Na maioria das vezes andávamos. Só
andávamos. Pela cidade. Costumávamos ir até a Pampulha, a pé.
Voltávamos também a pé. Era longe, mas a gente ia conversando.
Murilo S. Cisalpino, O buraco. Amigos. São Paulo: Atual, 1992.
Todos nós precisamos de amigos?
Por quê?
O que é “ser amigo”?
Discuta com seus colegas
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 113).
A sugestão é para se discutir, após a leitura fragmentada do texto em
questão, sobre a amizade e o que é “ser amigo”. Essa discussão é considerada pela
obra didática uma atividade oral em sala de aula, mediada pelo professor.
Apesar de se mostrar como uma atividade oral, resulta em uma prática
pouco utilizada em sala de aula, em virtude de poucos professores a utilizarem no
dia-a-dia de uma aula de língua portuguesa.
Ainda na seção “Primeiras idéias”, na unidade voltada ao 7º ano,
verificamos a proposta de trabalho com a oralidade através da observação de uma
tela, de modo que o aluno deveria descrever a fachada das casas e, a partir disso,
discutir com os demais em sala de aula se a moradia é importante para o ser
humano. Esse trabalho com a oralidade seria equivalente a chamada “leitura de
mundo”, pois possibilita ao aluno a oportunidade de expressar o seu ponto de vista
mediante várias situações do seu dia-a-dia.
No quadro acima, o pintor retratou a fachada de várias casas. Observe-as
com atenção e tente descrevê-las oralmente.
Você acha que a moradia é importante para o ser humano?
Por quê?
Discuta com seus colegas (CABRAL, 2000, v. 7, p. 168).
Dependendo do modo como será ministrada em sala de aula, tal atividade
corre o risco de passar despercebida pelos alunos, já que os mesmos reconhecerão
que o debate sugerido não acarretará qualquer possibilidade de acréscimo àquilo
desejado por ele, aluno.
O que vale compreender, portanto, é que não se verifica, precisamente,
uma motivação para que estes inícios de unidade sejam trabalhados de maneira
eficaz pelos professores, a fim de suscitar o trabalho com a oralidade. No volume
destinado ao 7º ano, no final da obra, há uma proposta de trabalho com a oralidade
através da “discussão” (em todas os inícios das unidades é verificada a orientação
de “discutir (determinado assunto) com os colegas”) sobre a importância dos meios
de transporte na vida dos homens. E, para sustentar o debate, foi inserida a poesia
de Manuel Bandeira “Trem de ferro”. Vejamos a solicitação prevista na coleção
didática:
Trem de ferro
Café com pão Oô... Oô...
Café com pão Foge, bicho Menina bonita
Café com pão Foge, povo Do vestido verde
Passa ponte Me dá tua boca
Virge Maria que foi Passa poste Pra matá minha sede
isto maquinista? Passa pasto Oô...
Agora sim passa boi Vou mimbora vou
Passa boiada mimbora
Café com pão Passa galho Não gosto daqui
Agora sim De ingazeira Nasci no sertão
Voa, fumaça Debruçada Sou de Ouricuri
Corre, cerca No riacho Oô...
Ai seu foguista Que vontade
Bota fogo De cantar! Vou depressa
Na fornalha Vou correndo
Que eu preciso Oô... Vou na toda
Muita força Quando me prendero Que só levo
Muita força No canaviá Pouca gente
Muita força Cada pé de cana Pouca gente
Era um oficiá Pouca gente
Manuel Bandeira. Antologia poética. 12.ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1981.
Esse poema retrata uma viagem de trem. Observe como ritmo e sonoridade
são trabalhados de forma a sugerirem um trem partindo, em movimento e,
depois, correndo!
Além de trens, que outros meios de transporte os homens utilizam? Qual a
importância dos meios de transporte para os seres humanos? Discuta com
seus colegas (CABRAL, 2000, v. 7, p. 190).
O trabalho com as aliterações previstas na poesia é inferido pela autora da
coleção ao afirmar que os alunos deveriam observar “como o ritmo e a sonoridade
são trabalhados de forma a sugerirem um trem partindo, em movimento e, depois,
partindo”. Embora solicite a verificação destes traços, a intenção real do texto é
servir de pretexto para debater sobre o meio de transporte em sala de aula, o que,
naturalmente, distorce o papel da poesia aos olhos do aluno.
Algumas propostas de trabalho com a oralidade na coleção surgem a
partir da chamada “leitura dramatizada”, uma espécie de teatralização da fala. E no
volume destinado ao 6º ano, após a leitura do texto “Medo de saci”, de Monteiro
Lobato, é sugerido, na parte “Compreensão”, que “os alunos relessem o texto com
atenção, observando como as pessoas diriam em voz alta suas falas” para que
houvesse a leitura expressiva do texto. Verifiquemos o texto em questão:
Medo de saci
Pedrinho, naqueles tempos, costumava passar as férias do Sítio de Dona
Benta, onde brincava de tudo [...].
Estava ele na varanda com os olhos no horizonte, postos lá onde aparecia o
verde-escuro do Capoeirão dos Tucanos, a mata virgem do Sítio. De
repente, disso:
- Vovó, eu ando com idéias de ir caçar na mata virgem.
Dona Benta, ali na sua cadeirinha de pernas cotós, entretida no tricô,
ergueu os óculos para a testa.
- Não sabe que naquela mata há onças? disse com ar sério. Certa vez
uma onça pintada veio de lá, invadiu aqui o pasto e pegou um lindo novilho
da vaca mocha.
- Mas eu não tenho medo de onça, vovó! exclamou Pedrinho fazendo o
mais belo ar de desprezo.
Dona Benta riu-se de tanta coragem.
- Olhem o valentão! Quem foi que naquela tarde entrou aqui berrando com
uma ferrotoada de vespa na ponta do nariz?
- Sim, vovó, de vespa eu tenho medo, não nego mas de onça, não! Se ela
vier do meu lado, prego-lhe uma pelotada do meu bodoque novo do olho
esquerdo; e outra bem no meio do focinho; e outra...
- Chega! interrompeu Dona Benta, com medo de levar também uma
pelotada. Mas além de onças existem cobras. Dizem que até urubus há
naquele mato.
- Cobra? E Pedrinho fez outra cara de pouco-caso ainda maior. Cobra mata-
se com um pedaço de pau, vovó. Cobra!... Como se eu lá tivesse medo de
cobra...
Dona Benta começou a admirar a coragem do neto, mas disse ainda:
- E há aranhas caranguejeiras, daquelas peludas, enormes, que devoram
até filhotes de passarinhos.
O menino cuspiu de lado com desprezo e esfregou o pé em cima. Aranha
mata-se assim, vovó e seu pé parecia mesmo estar esmagando várias
aranhas caranguejeiras.
- E também há sacis rematou Dona Benta.
Pedrinho calou-se. Embora nunca o houvesse confessado a ninguém,
percebia-se que tinha medo de saci. Nesse ponto não havia nenhuma
diferença entre ele, que era da cidade, e os demais meninos nascidos e
crescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as histórias
correntes a respeito do endiabrado moleque duma perna só.
Monteiro Lobato. O saci. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Monteiro Lobato nasceu em 1882, em Taubaté (SP), e morreu em 1948, em
São Paulo. Escreveu livros pra adultos e crianças. Fazem parte de sua obra
infanto-juvenil, além do livro O saci, Reinações de Narizinho, Memórias da
Emília, A chave do tamanho, Caçadas de Pedrinho e muitos outros. Vale a
pena conhecer as aventuras do pessoal do Sítio do Picapau Amarelo!
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 6 -7).
A intenção do trabalho é louvável, em razão de o texto de Monteiro
Lobato, com seus diálogos fortes, sobretudo entre uma criança e sua avó, tornar-se
uma interessante proposta de articulação de leitura oral. A falha, entretanto, é que a
coleção não gerencia qualquer possibilidade de efetivo trabalho com a proposta de
oralidade por não mostrar como isso seria possível, a ponto do professor, talvez por
inferir que as atividades de compreensão do texto estejam restritas ao nível da
língua escrita, ignorar a atividade por considerá-la menor ou sem importância.
Este descompromisso do professor pode ser analisado de várias formas,
porém a alienação em torno do livro didático corrobora a tese de que, ao ser refém
do mesmo, que, por sua vez, não o orienta como proceder com a oralidade, o
professor prefere ignorar a atividade por desconhecimento a ter que, de fato,
exercitar seu papel em sala de aula, sobretudo em uma atividade que poderia trazer
inúmeras possibilidades de trabalho com a oralidade.
Ainda seguindo a linha do trabalho com a língua falada, o que parece uma
contradição, já que o MEC salientara que um dos problemas verificados na coleção
“Palavra aberta” era o trabalho inexistente com a oralidade, verificamos uma outra
possibilidade de trabalho com a oralidade.
Também na coleção voltada ao 6º ano, integrada à seção “Exercício
complementar” (o que soa como um pretexto para que o professor, em sala de aula,
não a trabalhe efetivamente), a crônica de Fernando Sabino é utilizada como
pretexto para a análise do conhecimento acerca da importância dos sinais de
pontuação, já que nesta unidade o tópico gramatical estudado foi o referido acima,
ratificado pela autora da seguinte forma: “Além de ser importante para dar o sentido
desejado às frases escritas, a pontuação nos ajuda a ler em voz alta com a
entonação correta”. (p.17; 6º ano). Vejamos a proposta:
Menino
Menino, vem pra dentro, olha o sereno! Vai lavar essa mão. Já escovou os
dentes? Toma a bênção a seu pai, já para cama!
Onde é que aprendeu isso, menino? Coisa mais feia. Toma modos. Hoje
você fica sem sobremesa. Onde é que você estava? Agora, chega, menino,
tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu
gosto: menino educado, obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desce
daí, menino! Me prega cada susto... Pára com isso! Joga isso fora. Uma boa
surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem te deu
licença? Passe pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise seu pai que o jantar está na mesa. Você prometeu, tem de cumprir.
Que é que você vai ser quando crescer? Não, chega: você já repetiu duas
vezes. Por que você está quieto aí? Alguma você está tramando... Não
anda descalço, já disse! Vai calçar o sapato. Já tomou o remédio? Tem de
comer tudo: você acaba virando um palito. Quantas vezes já te disse para
não mexer aqui? Esse barulho, menino! seu pai está dormindo. Pára com
essa correria dentro de casa, vai brincar lá fora. Você vai acabar caindo daí.
Pede licença a seu pai primeiro. Isso é maneira de responder a sua irmã?
Se não fizer, fica de castigo. Segura o garfo direito. Põe a camisa pra dentro
da calça. Fica perguntando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente
grande. Depois eu te dou. Depois eu deixo. Depois eu te levo. Depois eu
conto. Depois.
Agora deixa seu pai descansar ele está cansado, trabalhou o dia todo.
Você precisa ser muito bonzinho com ele, meu filho. Ele gosta tanto de
você. Tudo que ele faz é para o seu bem. Olha aí, vestiu essa roupa
agorinha mesmo, já está toda suja. Fez seus deveres? Você vai chegar
atrasado. Chora não, filhinho, mamãe está aqui com você. Nosso Senhor
não vai deixar doer mais.
Quando você for grande, você também vai poder. Já disse que não, e não,
e não! Ah, é assim? Pois você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale
de boca cheia. Junta a comida no meio do prato. Por causa disso é preciso
gritar? Seja homem. Você ainda é muito pequeno para saber essas coisas.
Mamãe tem muito orgulho de você. Cale essa boca! Você precisa cortar
esse cabelo.
Sorvete não pode, você está resfriado. Não sei como você tem coragem de
fazer assim com sua mãe. Se você comer agora, depois não janta. Assim
você se machuca. Deixa de fita. Um menino desse tamanho, que é que os
outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você?
Continua assim que eu te dou umas palmadas. Pensa que a gente tem
dinheiro para jogar fora? Toma juízo, menino.
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer
no dia dos seus anos? Agora não, que eu tenho o que fazer. Não fica triste
não, depois a mamãe te dá outro. Você teve saudades de mim? Vou contar
só mais uma, que está na hora de dormir. Agora dorme, filhinho. Dá um
beijo aqui Papai do Céu te abençoe. Este menino, meu Deus.
Fernando Sabino. A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
1962.
(CABRAL, 2000, v. 6, p.9-20).
O uso da poesia como pretexto para o estudo da metalinguagem é
verificada no volume destinado ao 6º ano, no que diz respeito ao estudo de letras e
fonemas. A autora, pretendendo enfatizar a questão do dígrafo representado por
/ch/, faz uso da poesia de Jorge de Lima, “Noite de São João”.
Vamos ver quem é que sabe
soltar fogos de S. João?
Foguetes, bombas, Chuvinhas,
CHios, CHuveiros, CHiando,
CHiando,
CHovendo
CHuvas de fogo!
CHá-bum!
Jorge de Lima. ‘Noite de S.João’. Em Poesia completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997.
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 39).
O passo maior da proposta talvez esteja no fato de que a autora sugere
que a repetição desta consoante fricativa tem alguma relação com o assunto do
poema, no entanto a atividade se reduz a um mero exercício de interpretação
textual, de modo que a exploração da sonoridade é disfarçada para o entendimento
da noção de letra e fonema.
Ainda sobre o artifício do uso do texto literário como pretexto para
atividades metalingüísticas, observamos, no mesmo volume destinado ao 6º ano, o
uso da poesia de Manuel Bandeira, “Pardalzinho”, cujo propósito era trabalhar sobre
o eixo temático “animais”. Vejamos a proposta:
Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos.
Manuel Bandeira. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
Palavras no Contexto
1. Em qual das frases a seguir a palavra vão tem o mesmo significado que
em “Foram cuidados em vão”?
a) Eles vão sempre ao cinema juntos.
b) Meu vizinho é superficial, só dá importância para coisas tolas, sem valor.
É um homem vão.
c) Ela não sabia, que eu estava lá, mas podia vê-la pelo vão da porta.
d) Treinamos durante um mês, mas foi tudo em vão. Perdemos o
campeonato.
2. Escreva em seu caderno os significados da palavra vão nas frases do
exercício anterior.
Compreensão
1. O texto ‘Pardalzinho’ foi escrito em forma de poema. Que características
você observa nesse texto que mostram que se trata de um poema?
2. O pardalzinho nasceu livre.
a) O que aconteceu a ele depois?
b) Provavelmente, quem é Sacha?
3. O pardalzinho recebeu de Sacha água, comida e carinhos. Porém, isso
não foi suficiente para ele ser feliz.
a) O que faltava ao passarinho? Copie um trecho do texto que comprove a
sua resposta.
b) Como você se sentiria se estivesse no lugar do pardalzinho?
4. Depois que o pardalzinho morreu, “ele” se dividiu. O corpinho foi
enterrado e a alma foi para “o céu dos passarinhos”.
Imagine como deve ser o “céu dos passarinhos”. Descreva-o em seu
caderno. Você pode ilustrar sua descrição com um desenho.
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 139 - 140).
Nesse caso, não há efetivamente uma sugestão de atividade
metalingüística, mas há uma confusa proposta de trabalho com o texto poético. A
primeira questão da seção “Compreensão” solicita que o aluno responda porque o
texto lido é uma poesia. Como o enunciado fala que “o texto ‘Pardalzinho’ foi escrito
em forma de poema”, podemos deduzir que a orientação seria a de dizer que é uma
poesia porque está organizada em versos e estrofes, já que assim fora proposto na
unidade III. Há, com isso, grande distanciamento do que realmente seria poesia.
Além disso, as questões seguintes marcam a poesia tal qual um texto
informativo que requer subsídios para ser interpretado. E o que verificamos são
questionamentos frágeis que nada acrescentariam à possibilidade de prazer que tal
texto proporcionaria ao leitor, neste caso, uma criança. Para confirmar a ineficácia
desse trabalho com a poesia, na última questão, a autora da coleção sugere que o
aluno descreva, pelo viés da língua escrita, um determinado ambiente verificado na
poesia e, se for preciso, ilustrá-lo, como se a poesia tivesse seu resultado final em
um desenho.
A idéia sobre poesia nos livros didáticos de português repousa em uma
interpretação sobre a própria “metapoesia”, ou seja, estuda-se poesia para saber o
que seria verso, estrofe e rima e os tipos de rima. Ao afirmarmos que a coleção em
análise possui, de fato, uma certa preocupação com o trabalho da oralidade, ainda
que insuficiente, corroboramos a idéia de que muitos livros didáticos preferem
respeitar uma padronização que resvala na mediocridade a ter que investir em um
conhecimento mais profundo e mais interessante.
Isso porque, no volume destinado ao 6º ano, cujo eixo temático era o
trabalho com a identidade, a autora da coleção apostou no trabalho com a poesia de
Pedro Bandeira, reconhecido autor de livros infanto-juvenis. Vejamos o texto:
Você sabe quem escolheu seu nome?
Você gosta de seu nome, ou gostaria de ter outro?
Leia o próximo texto, que fala sobre o nome da gente.
Nome da gente
Por que é que eu me chamo isso
e não me chamo aquilo?
Por que é que o jacaré
não se chama crocodilo?
Eu não gosto
do meu nome,
não fui eu
quem escolheu.
Eu não sei
por que se metem
com um nome
que é só meu!
O nenê
que vai nascer
vai chamar
como o padrinho,
vai chamar
como o vovô,
mas ninguém
vai perguntar
o que pensa
o coitadinho.
Foi meu pai quem decidiu
que o meu nome fosse aquele.
Isso só seria justo
se eu escolhesse
o nome dele.
Quando eu tiver um filho,
não vou pôr nome nenhum.
Quando ele for bem grande,
ele que procure um!
Pedro Bandeira. Cavalgando o arco-íris. São Paulo: Moderna, 1984.
Compreensão
1. Você deve ter percebido que o texto “Nome da gente” é um poema.
a) Como sabemos disso?
b) Leia o texto em voz alta. Você notou que esse texto apresenta um ritmo
diferente daquele diferente que têm em outros tipos de texto?
c) Você notou que os sons finais de algumas palavras são parecidos?
Quais?
2. Agora, observe novamente o texto.
a) Ele está dividido em parágrafos?
b) Todas as frases terminam no final da linha?
Cada linha de um poema chama-se verso, e cada conjunto de versos
chama-se estrofe.
3. Quantos versos tem o poema “Nome da gente”?
4. Quantas estrofes aparecem nele?
5. Vamos reler o texto.
a) No poema, a pessoa que fala está contente com seu nome? Por quê?
b) De acordo com o poema, com que condição seria justo que nossos pais
escolhessem o nome da gente?
c) Quando tiver um filho, o que vai fazer a pessoa que fala no poema?
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 48 - 49).
O primeiro aspecto a ser discutido é a qualidade do texto. Há uma larga
difusão de textos nos livros didáticos, que são enquadrados como poesia, e
traduzem uma linguagem que se aproxima daquela utilizada por determinada faixa
etária ou determinada classe social. A noção de beleza da poesia passa a ser
relegada em segundo plano porque isso não seria plausível em uma atividade
meramente informativa, tal como sugerem os exercícios nas seções “Palavras no
contexto” e “Compreensão”.
Nesta última seção referida acima, observamos que as quatro primeiras
questões são reservadas para o estudo da “metapoesia”, o que sugere uma leitura
pragmática a fim de obter resultados na escrita sobre quantos versos e quantas
estrofes contêm o texto poético. Embora se discuta a qualidade da poesia
apresentada, ratificamos a idéia de que o trabalho com a poesia
independentemente de ela ser fruto de uma concepção artística ou um fenômeno
mercadológico é muito aquém daquilo que, de fato, o texto poético é capaz de
gerir ao aluno.
Não podemos considerar que as atividades ineficazes com a poesia, na
coleção “Palavra aberta”, apenas ocorrem com os textos supostamente voltados
para determinado público, como é o caso dos textos para as crianças. Verifiquemos
a proposta de trabalho com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, na unidade
voltada ao 6º ano, cuja proposta era discutir a noção de amizade:O poema
seguinte, escrito por Carlos Drummond de Andrade, apresenta uma situação entre
amigos que parece não refletir o que, em geral, se considera amizade. Leia-o com
atenção”:
Sociedade
O homem disse para o amigo.
- Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e, quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
- Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmunga:
- Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: - Que idiota.
- A casa é um ninho de pulgas.
- Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião 19 livros de poesia. V. 1. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1983.
a) O casal que foi visitar o amigo teve, de fato, uma atitude de amizade em
relação ao dono da casa? Por quê?
b) Como podemos caracterizar o casal visitante? Justifique sua resposta.
c) Na sua opinião, existem pessoas como o casal do poema?
d) Para você, o que seria uma amizade ideal?
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 119).
Se no texto de Pedro Bandeira, mencionado anteriormente, a idéia era
trabalhar a “metapoesia”, no texto de Drummond há realmente a minimização da
poesia, de modo que a concepção final de trabalho com o mesmo se reduz a
perguntas de cunho interpretativo que resvalam, inclusive, no simplismo.
Essa mesma simplicidade se encontra no trabalho com a poesia de
Fernando Pessoa na coleção destinada ao 7º ano.
Você se lembra com o que sonhava quando era bem pequeno?
Será que alguma fada vinha vigiar os seus sonhos?
Leia o poema e veja se consegue se lembrar de algo.
Poema
Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.
E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...
E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
Fernando Pessoa. Em Antologia escolar de poemas para a infância. Rio de
Janeiro: Ediouro.
Palavras no contexto
1. Compare:
Os vagalumes vêm, luzindo.
As estrelas vêm, luzindo.
A fada das crianças vem, luzindo.
Qual o significado da palavra destacada?
2. Indique o grupo de palavras pelo qual podemos substituir as palavras
destacadas nos versos a seguir:
“E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,”
“Em coisas vivas, e um cortejo formam:”
“E palhaços que tocam em rabecas...”
GRUPO I GRUPO II GRUPO III
nuca testa cabeça
procissão séqüito comitiva
plantas violinos harpas
Compreensão
1. Você já sabe que os poemas são formados por estrofes que, por sua vez,
são formadas por versos.
a) Quantas estrofes esse poema apresenta?
b) Quantos versos têm cada estrofe?
2. Observe as rimas externas do poema, isto é, a combinação dos sons
finais de cada verso.
1. Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
2. Voando pela noite silenciosa,
3. A fada das crianças vem, luzindo.
4. Papoulas a coroam e, cobrindo
5. Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
Você deve ter notado que os sons finais dos versos 1, 2 e 5 são
semelhantes, devido à terminação osa. O mesmo acontece com os versos
3 e 4, que terminam com o som indo. Será que isso acontece em todas as
estrofes do poema?
(CABRAL, 2000, v. 7, p. 102 - 103).
Ao trabalhar com o eixo temático “sonhos”, a autora escolheu o texto do
poeta português para ilustrar a proposta, de modo que as atividades sugeridas
tangenciam apenas e tão somente no aspecto lexical, na busca de sinônimos e na
compreensão de elementos específicos da poesia, como versos, estrofes e rimas.
Seguindo a linha de análise dos textos literários incluídos na coleção
didática “Palavra aberta”, deparamo-nos com os chamados contos de fadas,
bastante utilizados por inúmeras coleções, inclusive a que estamos nos reservando
ao estudo.
Na unidade VIII, reservada ao 6º ano, o eixo temático se resume ao
estudo das histórias clássicas com dois textos fragmentados que ilustrem a tal
proposta. O primeiro texto é um conto recriado por Pedro Bandeira, retirado do livro
“O fantástico mistério de Feiurinha”, em que o mesmo procura contar a história a
partir do final já conhecido por todos das histórias clássicas, ou seja, o livro se inicia
a partir do “final feliz” a que as donzelas eram submetidas.
O que se discute, nesse caso, não é a qualidade do texto ou se a
recriação fere o princípio da estética literária. Discute-se, sim, a arbitrariedade
promovida tanto pela editora da coleção como pela própria autora, que criaram um
título aleatoriamente para fins didáticos.
Você vai ler, agora, um texto que fala sobre o que aconteceu com algumas
personagens de contos de fada famosos.
Você se lembra de Branca de Neve e de Chapeuzinho Vermelho?
Como será que elas ficaram “depois do final de suas histórias”?
Depois do “felizes para sempre” (título atribuído pela autora para fins
didáticos.)
Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás mais vinte e cinco anos, uma
senhora de cabelos negros como o ébano, onde já começavam a aparecer
alguns fios brancos como a neve, bem da cor da pele dela, que também era
branca como a neve.
O nome da tal senhora era Branca Encantado. Nos tempos de solteira, o
sobrenome dela era “De Neve”, mas, depois que se casou com o Príncipe
Encantado, Dona Branca passou a usar o sobrenome do marido.
Dona Branca estava com uma barriga enorme, esperando o seu sétimo
filho, para ser afilhado do sétimo anãozinho, que vivia reclamando pelo fato
de todos os outros anões já serem padrinhos de filhos de Dona Branca e
faltar um para ser afilhado dele.
Dali a uma semana ia fazer vinte e cinco anos que Dona Branca havia se
casado para ser feliz. E, como você sabe, quem fica vinte e cinco anos
casado com a mesma pessoa faz uma bruta festa para comemorar as
Bodas de Prata.
Feliz com tudo isso, Dona Branca tricotava um casaquinho de lã para o
principezinho que ia nascer, sozinha no grande salão do castelo, forrado de
mármore cor-de-rosa e veludo vermelho. Os filhos maiores estavam na
escola e os menores com as amas. O Príncipe Encantado, como sempre,
estava caçando. Foi aí que a grande porta do salão abriu-se e entrou Caio,
o lacaio, anunciado:
Alteza, a Senhorita Vermelho acaba de chegar ao castelo e pede...
Chapeuzinho?! interrompeu Dona Branca. A Que ótimo! Peça para ela
entrar. Vamos, Caio, rápido!
Caio, o lacaio, inclinou-se numa reverência e foi buscar a visitante.
Chapeuzinho Vermelho era a mais solteira das amigas de Dona Branca e
uma das poucas que não era princesa. A história dela tinha terminado
dizendo que ela ia viver feliz para sempre ao lado da Vovozinha, mas não
falava em nenhum príncipe encantado. Por isso, Chapeuzinho ficou
solteirona e encalhada ao lado de uma velha cada vez mais caduca.
Com a cestinha pendurada no braço e com capuz vermelho na cabeça,
Dona Chapeuzinho entrou com o lacaio atrás. Dona Branca correu para
abraçar a amiga.
Querida! Há quanto tempo! Como vai a Vovozinha?
Branca!
As duas deram-se três beijinhos, um numa face e dois na outra, porque o
terceiro era para ver se a Chapeuzinho desencalhava.
Pedro Bandeira. O fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1991.
O menino pastor
Era uma vez um menino pastor que era famoso em toda parte por causa
das respostas sábias que dava a qualquer pergunta que lhe fizessem. O ri
do país ouviu falar nele, mas não acreditou no que lhe contaram. Por isso,
mandou buscar o menino e disse a ele:
Se você puder responder a três perguntas que eu vou lhe fazer, vou tomar
conta de você como se fosse meu próprio filho, e trazer você para viver
comigo no palácio real.
Quais são as perguntas? quis saber o menino.
Disse o rei:
A primeira pergunta é: quantas gotas d’água existem no oceano?
O menino pastor responde:
Senhor, mande represar todos os rios da terra, para que nem uma única
gota de água possa entrar no oceano até que eua cabe de contar todas as
que já estão lá. Aí eu vou poder lhe dizer quantas gotas d’água existem no
oceano.
Disse o rei:
A segunda pergunta é: quantas estrelas existem no céu?
O menino pastor disse:
Eu quero uma folha de papel branco, bem grande.
Quando deram o papel a ele, ele pegou a ponta de uma pena e fez tantos
pontinhos no papel que era difícil distinguir um do outro. Era impossível
contá-los e quem ficasse tentando logo ficava tonto. Aí, ele disse:
Há tantas estrelas no céu quantos são os pontos neste papel. É só contar.
Mas ninguém conseguiu.
Disse o rei:
A terceira pergunta é: quantos segundos existem na eternidade?
O menino pastor replicou:
Na Pomerânia Remota há uma montanha conhecida como a Montanha do
Diamante. Tem três milhas de altura, três milhas de comprimento e três
milhas de largura. De cem em cem anos, vem um pássaro e afia o bico
nela. Quando gastar a montanha, terá passado o primeiro segundo da
eternidade.
Disse o rei:
Você respondeu às três perguntas como um sábio. De agora em diante,
vai viver no palácio real e vou tomar conta de você como se fosse eu
próprio filho.
Branca de Neve e outros contos de Grimm. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
s.d.
(CABRAL, 2000, v. 6, p. 155 - 159).
A alegação contida como nota de rodapé na coleção ratifica a idéia do
texto literário como subproduto no livro didático. A própria finalidade didática não fica
explícita para o professor que, inclusive, não se atenta para este fato, porque se
encontra refém do seu material do dia-a-dia.
Comparando o texto de Pedro Bandeira com o segundo texto que compõe
a unidade, o conto “O menino pastor”, dos Irmãos Grimm, notamos que a proposta
de adaptação para fins didáticos não existe no segundo texto, o que nos leva a um
questionamento: não haveria espaço para adaptações no texto dos Grimm pelo fato
dele ser considerado um texto canônico por excelência? Ao passo que o texto de
Pedro Bandeira, uma readaptação de clássicos da chamada literatura infantil, seria
considerado um texto menor em expressão artística?
Não há premissas na coleção que nos levem tais respostas, sobretudo
porque desconhecemos qualquer arcabouço teórico da coleção, e também por não
haver qualquer referência bibliográfica contida no exemplar dirigido aos professores,
o que confirma a fragilidade da obra como um todo.
Na massificação dos gêneros textuais, há a possibilidade de analisarmos o
surgimento de algumas nomenclaturas associadas ao texto poético. Verificamos este
traço na coleção voltada aos alunos do 7º ano, precisamente na unidade II, com uma
poesia do autor Elias José, bastante solicitado na obra como um todo com seus
textos voltados aos adolescentes, tal como o que iremos analisar:
Como será que se sente alguém que escreve um bilhete de amor?
Você já escreveu algum? Conseguiu mandar?
Leia o poema abaixo e veja se você já se sentiu assim.
O bilhete
Escrevi e reescrevi,
Mil vezes busquei palavras.
Acrescentei e cortei coisas,
Até o lixo encher-se de papel.
Na declaração de amor
Nada podia faltar
Ou sobrar.
As palavras seriam música
E passariam inteira a paixão.
Escrevi mil vezes o bilhete
De amor.
E ele virou poema,
Provocou delírios,
Arrepiou meus cabelos
E ferveu o meu corpo todo.
Acho que ninguém escreveu ainda
Tão belo poema-bilhete de amor.
Só que não tive coragem de enviá-lo...
Elias José. Cantigas de adolescer. São Paulo: Atual, 1992.
Compreensão
Cada linha de um poema é chamada de verso.
Cada grupo de versos é chamado de estrofe.
1. “O bilhete” é um poema formado por quantos versos e quantas estrofes?
2. Nesse poema, há alguém, um eu, que nos fala a respeito de sua
experiência ao escrever uma declaração de amor.
a) Que cuidados esse eu tomou para escrever tal declaração?
b) Como deveria ser essa declaração?
3. De acordo com o texto, inicialmente a declaração de amor seria feita em
forma de “bilhete”. Entretanto, “ele virou poema”. Que conseqüências o
poema trouxe para o eu?
4. Como você sabe, bilhetes são mandados para comunicar algo a alguém.
O “poema-bilhete” cumpriu essa função? Por quê?
5. Para conhecer outros poemas cuja temática gira em torno de sentimentos
e preocupações dos jovens, leia o livro Cantigas de adolescer.
(CABRAL, 2000, v. 7, p. 32 - 34)
Nesse texto, compreendido na coleção didática como poesia, notamos, na
seção “Compreensão”, a mesma preocupação já verificada na unidade reservada ao
6º ano: a associação de poesia através de sua estruturação em versos e estrofes,
além de um trabalho voltado à mera interpretação do texto.
Além disso, a autora do livro didático traz uma concepção acerca da
poesia lida pelos alunos ao dizer que se trata de um “poema-bilhete”. Notamos,
portanto, que do hibridismo entre poesia e bilhete estaria brotando uma nova
possibilidade de texto, o que, naturalmente, desvirtua tanto a poesia quanto o
próprio bilhete.
Há um apelo à leitura da obra do autor da poesia, de modo a influenciar o
aluno a ter maior contato com os sentimentos e preocupações dos jovens. A
indicação de leitura é reforçada pelo fato do texto de Elias José estar inserido na
coleção, o que corrobora com a proposta de massificação do texto e sua
compreensão como um produto mercadológico. É interessante salientar que tanto o
livro de poesias como a coleção didática são da mesma editora (Atual).
A confirmação desse inchaço de textos supostamente poéticos pode ser
confirmada com mais uma poesia de Elias José retirada do livro, outrora indicado
pela coleção didática como referência de leitura. Vejamos o texto:
Exercícios
1. Leia o poema e, a seguir, responda às questões propostas:
Tal mãe, tal filha
Minha mãe diz que trovejo,
Solto ventos e relâmpagos,
Despenco tempestades
Por uma coisinha de nada,
Por uma besteirinha qualquer.
Quando ela entra numa guerra,
Numa tempestade em copo d’água,
Com todo o seu lado de fera,
Fico com vontade de perguntar:
Pra quem será que eu puxei?
Elias José. Cantigas de adolescer. São Paulo: Atual, 1992.
a) Há pronomes pessoais e possessivos no poema?
b) A quem esses pronomes se referem?
c) Há algo em comum entre mãe e filha?
(CABRAL, 2000, v. 7, p. 91 -92)
Parece contradição, mas é a representação típica da escolha dos textos
que irão compor a coleção didática. Antes indicado como referência de leitura
extraclasse, o livro e sua poesia servem como pretextos de estudos
metalingüísticos, desta vez para o estudo dos pronomes e seus processos de
referencialização.
Na unidade IV, voltada ao 7º ano, os textos são organizados de modo a
trabalhar a cultura brasileira, e, neste caso, são verificadas propostas de trabalho, na
seção “O texto e suas relações”, com os “trava-línguas” e as parlendas. Tais
recursos são transmitidos basicamente pela língua falada e se torna uma estratégia
de trabalho com a oralidade, pois possibilitará, através do universo jocoso, a
articulação com a sonoridade da língua.
3. Você conhece charadas do tipo “O que é, o que é?”
a) Desvende as seguintes charadas:
Somos dois irmãos Redonda como um biscoito,
Que levamos um fardo pesado. Rasa como um prato.
De dia vivemos cheios, Nem todos os rios do mundo
De noite esvaziados. Poderiam enchê-la de fato.
Ela sobe o morro, Eu vim lá detrás do mar,
Ela desce para o mar. Dar um passeio na terra.
E apesar de tudo Quando o dia terminar,
Não sai do lugar. Vou morrer atrás da serra...
O que é, o que é 350 adivinhas. São Paulo: Ediouro, 1983.
b) Agora, lembre-se de uma outra charada, escreva-a em seu caderno e
desafie seus colegas a desvendá-la.
4. Você sabe o que são parlendas e trava-línguas? Eles também fazem
parte da linguagem folclórica e são aprendidos através da transmissão oral.
Você se lembra desta parlenda?
Um, dois
Feijão com arroz.
Três, quatro,
Feijão no prato.
Cinco, seis,
Feijão inglês.
Sete, oito,
Comendo biscoito.
Nove dez,
Comendo pastéis.
E estes trava-línguas, você conhece?
Um tigre, dois tigres, três tigres.
Um ninho de mafagafos
Tinha três mafagafinhos.
Quem primeiro os desmafagafar
Um bom desmafagafador será.
Você conhece outros? Escreva-os em seu caderno.
(CABRAL, 2000, v. 7, p. 79)
A coleção faz menção a essas práticas, no entanto, procura explorá-las
com uma finalidade diferente daquela que poderíamos articular em sala de aula. Ao
solicitar que o aluno escreva outros casos de trava-línguas, passa a ser tolida dele a
possibilidade de exercício efetivo com a oralidade.
A tentativa de trabalho com a oralidade segue com um texto de Vinícius de
Morais, na unidade VII destinada aos alunos do 7º ano, cuja proposta era trabalhar
com o eixo temático “guerra”. Ao contextualizar para os alunos que o texto foi
publicado em um jornal carioca, em 1944, quando estava ocorrendo a Segunda
Guerra Mundial, a autora da coleção didática salienta, em uma questão da seção
“Compreensão”, que o texto “Depois da Guerra” apresentava um tom bastante
emotivo, e que, por isso, se aproximava de uma poesia pelo seu grau de
sensibilidade e lirismo.
O texto que você vai ler agora apresenta algumas expectativas em relação
ao final da Segunda Guerra Mundial (1939 1945). Leia-o com atenção.
Depois da Guerra
Depois da Guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de
sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai haver fertilidade, vai
haver natalidade, vai haver felicidade, depois da Guerra, ah meu Deus,
depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra! [...]
Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu, pés
descalços, braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia, não haverá
mais despachos, não se assina mais o ponto. [...] Depois da Guerra
ninguém corta mais as unhas, que elas já nascem cortadas para o resto da
existência. Depois da Guerra não se vai mais ao dentista, nunca mais motor
no nervo, nunca mais dente postiço. Vai haver cálcio, vitamina e extrato
hepático correndo nos chafarizes, pelas ruas da Cidade. [...] Depois da
Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval carioca cm muito confete,
entrudo e briga. [...] Depois da Guerra não haverá mais tristeza: todo o
mundo se abraçando num geral desarmamento. Chega francês, bate nas
costas do inglês, que convida o italiano para um chope no “Alemão”. Depois
da Guerra, pirulim, depois da Guerra, as mulheres andarão perfeitamente à
vontade. Ninguém dirá a expressão “mulher perdida”, que serão todas
achadas sem mais banca, sem mais briga. Depois da Guerra vão se abrir
todas as burras, quem estiver mal de cintura, faz logo um requerimento. Os
operários irão ao “Bife de Ouro”, comerão somente o bife, que ouro não é
comestível. Gentes vestindo macacões de fecho zíper dançarão seu
jiterburgue em plena Copacabana. Bandas de música voltarão para os
coretos, o povo se divertindo no remelexo do samba. E quanto samba,
quanta doce melodia, para a alegria da massa comendo cachorro-quente!
[...] Ah, quem me dera essa Guerra logo acabe e os homens criem juízo e
aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao tempo,
tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar quieto
no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo; se cada um
tomar vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com vontade e paciência
não é possível! esse negócio melhora, porque ou muito me engano, ou
tudo isso não passa de um grande, de um doloroso, de um atroz mal-
entendido!
Vinícius de Morais. Para uma menina com uma flor. 11ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981.
Compreensão
1. Embora tenha sido escrito em prosa, sem ser organizado em versos e
estrofes, ‘Depois da Guerra’ apresenta ritmo e sonoridade tais que, em
diversos momentos, temos a sensação de estar lendo um poema.
Leia o texto oralmente e procure perceber como seu ritmo e sonoridade
fazem-nos se parecer com um poema.
2. O texto foi publicado em um jornal carioca, em 1944, quando estava
ocorrendo a Segunda Guerra Mundial.
a) Como você acha que as pessoas se sentiam nesse período?
b) ‘Depois da Guerra’ apresenta um tom bastante emotivo. O autor deixa
transparecer seus sentimentos e emoções acerca do assunto que está
tratando. Que elementos do texto revelam esse tom emotivo? Em que
trechos podemos observar claramente sentimentos e emoções do autor?
c) Qual é a relação entre esse tom emotivo e o assunto do texto?
(CABRAL, 2000, v. 7, p. 145 - 147)
A atividade oral se pauta na releitura do texto, procurando verificar o ritmo
e a sonoridade das palavras quando da leitura em voz alta. Embora a proposta seja
oportuna, por elucidar junto ao aluno a noção de contexto ao texto e as prováveis
interferências que isso causaria à sua leitura, a autora salienta que o texto está
escrito em prosa, e não em versos e estrofes, e lembra uma poesia. Com isso, ela
ratifica a idéia de compreensão de poesia apenas como um gênero literário, e não
como identidade cultural, propiciadora de prazer aos leitores, geradora de
inquietações.
1.4 Concluir sem Terminar
Não parece ser muito complexo falar sobre algo que mobiliza mais de 100
milhões de pessoas. Aparentemente, o número assusta, mas é a própria realidade a
que o livro didático se submete no contexto educacional brasileiro. Um sistema
inócuo que apresenta falhas e alavanca poucas discussões, muito pelo fato de as
pessoas não possuírem o conhecimento para determinar o que realmente estão
levando para as suas salas de aula.
Em um país, onde tudo que gera polêmica se transforma em CPI’s, é
irrisório o número de vozes que se indagam sobre o fenômeno multiplicativo do livro
didático e sua corrente antiprodutiva no ensino da língua portuguesa. Torna-se um
feroz e concorrido mercado, com editoras e autores evidenciando uma prática
corrosiva, cujo alvo são mentes que captam, invariavelmente, uma abstração sofrível
daquilo que a língua portuguesa poderia (e deve) oferecer-lhes. Não há mazela
maior que a violência à inteligência humana.
E, muitas das vezes, este filão do livro didático encontra-se enraizado em
consistentes raízes políticas. Isso porque quem “autoriza” a distribuição e venda dos
livros didáticos no âmbito nacional é o Ministério da Educação e suas políticas
obscuras e cargos ocupados por profissionais de competência, no mínimo, duvidosa.
As convenções do MEC para a escolha do livro didático “Palavra aberta” vide
pareceristas do PNLD (outra obscuridade) é ilógica e sem quaisquer critérios
claramente definidos. A obra se curva, segundo a própria instituição federal, à
abordagem metalingüística, algo de que os PCN procuram se distanciar, e, ainda
assim, a coleção é indicada pelo Programa como uma referência. Em um sistema,
onde efetivamente tudo soa como oportunista, não seria diferente que isso
ocorresse com o livro didático.
Todavia, é preciso que não se responsabilize única e tão somente as
instituições políticas e/ ou editoriais pela disseminação do livro didático no país. Se
tal alienação ocorre é porque o professor, que instrumentalizará o manual que lhe
será oferecido, não obteve embasamento para discerni-lo de modo consistente, sem
se ater à simples opinião.
Daí recorre a importância de investir na chamada “educação lingüística”,
tanto dos que se prestam a escrever obras de cunho didático como também dos que
utilizarão estes materiais no dia-a-dia. Neste caso, as Universidades sobretudo as
que formam professores precisam resgatar a orientação em torno de um modelo
teórico e científico para que os profissionais e/ ou futuros profissionais possam
exercer, de modo atuante e responsável, suas atividades sem se deixar escravizar
pelo material pasteurizado e artificial verificado no livro didático.
No caso específico da língua materna, a situação parece-nos mais crítica,
pelo fato de se aplicar claramente, tanto nos livros didáticos quanto nas salas de
aula, a preocupação em trabalhar com a teoria (“o que é?”) em detrimento da
descrição (“como é?”). Tal preocupação sistematiza o ensino da língua em um plano
que visa mecanizar o estudo em prescrições para as quais, muitas das vezes, o
aluno (um falante por natureza) não se encontra apto.
É necessário que se procure, tanto os livros didáticos como os professores
de língua portuguesa, traduzir os subsídios de conhecimentos adquiridos ao longo
do tempo tendo em vista a eficiência e a precisão idiomática. Não se trata, pois, de
orientar simplesmente o ensino normativo, mas possibilitar uma educação que
enriqueça a cultura do aluno nas diferentes áreas do saber.
É preciso que os textos literários não sejam mais postos em segundo
plano em nome da proliferação de textos diversos, o que gera uma massificação
textual muitas das vezes sem profundidade alguma, prejudicando sensivelmente o
saber elocucional, idiomático e expressivo dos nossos alunos. Respeitar o texto
literário é saber, antes de tudo, analisar também o livro didático, isso porque o
primeiro é visto como um pretexto para que o segundo seja compreendido como um
material de qualidade.
O professor, enfrentando precárias condições de trabalho, recorre ao
material didático como um recurso que se instala na sua prática cotidiana. Com isso,
o seu posicionamento é vazio, em razão dele repetir aquilo que lhe fora sugerido tal
como uma instrução, e o aluno apenas executa estas instruções. Um ritual que se
instala no cotidiano, compreendido não como um código simbólico que gera
significados a eventos em torno do ensino da língua, mas como cristalização de
ações mortas, sem finalidade clara e motivadora.
2 A ORALIDADE NOS DOCUMENTOS OFICIAIS
Este capítulo versa sobre as concepções da oralidade veiculadas nos PCN
e suas implicações no cotidiano do professor de língua materna que faz uso dos
documentos em suas atividades diárias em sala de aula. A partir da premissa de que
os documentos visam ao trabalho da oralidade, partindo da idéia de que a linguagem
é uma forma de inter-ação, verificaremos que o resultado final desta proposta não
incide na própria oralidade, mas em registros escritos, o que chamaremos de prática
de “oralização da escrita”.
Além disso, discutiremos sobre a problemática que envolve a terminologia
“gêneros textuais” e suas implicações no trabalho com a oralidade em sala de aula,
assim como a apropriação de textos informativos em detrimento do texto literário
como instrumentalização de trabalho com a oralidade, tudo corroborado pelos
documentos oficiais em questão.
Em outro instante, trataremos sucintamente da dicotomia oralidade e
escrita a partir de exemplificações práticas que confirmem a distinção entre ambos
os registros, procurando ressaltar que alguns exames de admissão aos vestibulares
ainda mesclam o registro oral e o registro escrito como se fossem unidades que
confluem.
Discutiremos sobre a proposta dos PCN à oralidade e à inevitável fuga do
trabalho da língua oral na mesma, o que põe em discussão se trabalhar, por
exemplo, com a “teatralização da fala” é um suporte eficaz para as atividades de
língua portuguesa, ou se um estudo com o texto poético talvez promovesse melhor
contato do aluno com as práticas orais em sala de aula.
2.1 Os PCN de Língua Portuguesa: Aplicações, Inovações e Controvérsias
Os Parâmetros Curriculares Nacionais são a referências para o Ensino
Fundamental e Médio de todo o país. O objetivo dos PCN é garantir a todas as
crianças e jovens brasileiros, mesmo em condições socioeconômicas desfavoráveis,
o direito de usufruir o conjunto de conhecimentos reconhecidos como necessários
para o exercício da cidadania. Não possuem caráter de obrigatoriedade e, portanto,
pressupõe-se que serão adaptados para as realidades locais.
A própria comunidade escolar de todo o país já deveria saber que os PCN
não são um conjunto de regras que pretendem ditar o que os professores devem ou
não fazer. São, sim, uma referência para a transformação de objetivos, conteúdos e
didática de ensino. São divididos em PCN Ensino Fundamental (1º ao 5º ano),
PCN Ensino Fundamental (6º ao 9º ano)
10
, PCN Ensino Médio, que está dividido
em áreas de conhecimento, intituladas Linguagens, Códigos e tecnologias (Língua
Portuguesa, Língua Estrangeira, Artes, Educação Física e Informática), Ciências
Humanas e tecnologias (História, Geografia, Sociologia, Filosofia) e Ciências da
10
A nossa pesquisa enfocará o trabalho acerca da linha do chamado “terceiro e quarto ciclos” do Ensino
Fundamental, o que corresponde ao 6º e 9º ano.
Natureza e Matemática e suas tecnologias (Matemática, Física, Química e Biologia)
11
.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa configuram-
se como síntese dos avanços conquistados nas últimas décadas, a partir das
discussões a respeito das diferentes propostas para o ensino de Língua Portuguesa.
O domínio da linguagem se constitui como condições de possibilidade de
plena inserção social. É por meio da linguagem que os indivíduos se comunicam,
têm acesso à informação, expressam e defendem pontos de vista, produzem cultura.
Desta forma, ao ensinar a língua materna, a escola assume para si a
responsabilidade de contribuir para assegurar aos seus alunos o acesso aos
saberes da fala e da escrita necessários para que cada um seja capaz de interpretar
os diferentes textos que circulam, de assumir a palavra, de produzir textos eficientes
nas mais diversas situações.
Nessa perspectiva, os PCN de Língua Portuguesa constituem-se em uma
referência para contribuir com técnicos e professores no processo de revisão e
elaboração de sua prática.
O presente documento se organiza em duas partes: na primeira, faz-se a
apresentação da área e definem-se as linhas gerais da proposta. Em sua introdução,
analisam-se alguns dos principais problemas do ensino da língua e situa-se a
proposta em relação ao movimento de reorientação curricular nos últimos anos.
Abordam-se, também, a natureza, as características e a importância da área.
Finalmente, indicam-se os objetivos e conteúdos propostos para o ensino
fundamental.
11
As Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM) são a versão moderna do documento em
questão, lançados em 2006, sendo compostas por quatro volumes: I Bases legais; II Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias; III Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. IV Ciências Humanas e suas
Tecnologias.
Na segunda parte, dedicada ao terceiro e quarto ciclos, caracterizam-se
ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa nestes ciclos, definem-se objetivos e
conteúdos, apresentam-se orientações didáticas, especificam-se relações existentes
entre o ensino de Língua Portuguesa e as tecnologias da comunicação e, por fim,
propõem-se critérios de avaliação.
No entanto, apesar de trazer inovações para as questões de ensino e
aprendizagem da língua materna, os PCN trazem consigo uma série de
questionamentos que são pertinentes à medida que o documento se transforma em
uma ferramenta a ser utilizada pelo professor. Talvez neste ponto é que resida o
grande problema aqui discutido: o professor, via de regra, ignora o documento
oficial.
Santos (2006), no seu artigo “O ensino de língua portuguesa e os PCN”
salienta que dois são os motivos que fazem com que o professor de língua materna
promova este distanciamento em relação ao documento oficial. Segundo ela, o
documento ressalta bastantes teorias lingüísticas, com terminologias específicas, de
modo que, muitas vezes, o estudante de Letras não as compreende por ter uma
formação acadêmica insuficiente. De acordo com a autora (2006, p.3),
Nos cursos de Letras, nem sempre se discute o que é sugerido nos
Parâmetros e, por vezes, as Licenciaturas abordam mais questões
pedagógicas que lingüísticas. Assim, o formando em Letras por vezes não
consegue relacionar os conhecimentos teóricos referentes à Lingüística e à
Língua Portuguesa ao que deve ser ensinado em sala de aula, e o resultado
já se conhece: repetem-se velhas e desgastadas fórmulas.
Quando os professores são profissionais formados há mais tempo, ou
provenientes de faculdades de qualidade questionável, percebe-se que
mesmo os conhecimentos teóricos estão defasados. Muitos professores
sequer tiveram aula de lingüística na faculdade e outros nunca ouviram falar
em conceitos como coesão, coerência, textualidade, inferência, operadores
argumentativos somente para citar alguns termos presentes nos PCN.
Não se pode, portanto, esperar que esse profissional consiga aplicar tudo
que está nos Parâmetros, embora alguns façam verdadeiros milagres, a
despeito de sua formação precária.
Ao abordar fundamentalmente as novas correntes da Lingüística, a autora
ratifica o despreparo do professor recém-formado ao salientar que
Percebe-se o predomínio de teorias ligadas ao texto (Análise do Discurso e
Lingüística Textual, por exemplo) e à sociolingüística. O problema é que
muitos profissionais de educação desconhecem os pressupostos teóricos
que norteiam essas linhas e podem tirar conclusões precipitadas do que
aparece nos PCN. Por exemplo, é freqüente, entre professores de língua
portuguesa desatualizados, a idéia de que valorizar a variação lingüística
significa aceitar tudo que o aluno produz, considerar tudo certo e deixar o
aluno no mesmo ponto em que estava antes de entrar na escola. Outro
exemplo, bastante comum, podemos encontrar no trabalho do texto, em
exercícios de interpretação, aceitando qualquer coisa que o aluno escreva
porque é necessário “aceitar qualquer leitura”. Por mais que pareçam
absurdas, essas interpretações existem e dificultam a discussão sobre as
idéias dos PCN (SANTOS, 2006, p.4).
Além disso, o profissional já formado também observaria nos PCN um
desafio a ser superado, haja vista o seu desconhecimento específico deste texto.
Muitos reclamam da própria perspectiva de trabalho a que são submetidos cargas
horárias excessivas, turmas cheias, alunos desinteressados, salários baixos e, por
conta disso, não promovem o encontro necessário com o documento. Isso,
naturalmente, desqualifica-os para uma análise, até certo ponto, crítica dele.
Se não bastasse o corriqueiro desinteresse, tanto promovido pela não-
apresentação do documento nos cursos de graduação em Letras, quanto pelo
cotidiano estafante do professor de língua materna, os PCN apresentam uma
linguagem e uma estrutura que, segundo Santos (2006, p.5), “atrapalham a leitura e
a compreensão dos temas abordados”. Isso porque
a linguagem nem sempre é clara e questões simples parecem enigmas para
não-iniciados). E a estrutura nem sempre é uniforme; somente para ilustrar,
podemos citar dois exemplos: os objetivos das práticas de análise
lingüística são muito simples e em número reduzido, se comparados aos
das duas outras práticas; e não há destaque para a pontuação, que aparece
em apenas um tópico, bastante superficial (SANTOS, 2006, p.5).
Sendo um documento voltado para a Língua Portuguesa, os PCN
abordam substancialmente a fundamentação teórica da Lingüística. Ou seja: a
organização teórica pressupõe a formação de um lingüista, e não de um professor
de língua portuguesa, o que, naturalmente, gera problemas.
O objeto de estudo da Língua Portuguesa ainda não está claro nos PCN.
Os temas transversais, por exemplo, mascaram a possibilidade do objeto de estudo
da língua, de modo que o eixo interdisciplinar bifurca a competência do profissional.
Interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e outras nomenclaturas afins são
mostradas como um fenômeno da modernização, embora tais idéias já tenham sido
abordadas por Coseriu (1999) como o saber elocucional, aquele que amplia a
formação do conhecimento prévio do indivíduo.
A proposta de modernidade pretendida pelos PCN pode ser atribuída
desde o processo de sua confecção em meados da década de 90. Segundo Souza
(2008, p.66 67),
sua produção foi coletiva, começando a ser elaborado em 1996, sendo
analisado e criticado por diferentes pessoas, passando por várias versões,
até chegar à definitiva. No entanto, o documento não esclarece como foi
esse processo de elaboração, suas etapas e os questionamentos feitos.
Além disso, vale ressaltar que um documento cuja finalidade é servir de
referência para o ensino de todo o país deveria contar com uma equipe de
especialistas em ensino de vários estados, para refletir a realidade da
diversidade brasileira, o que não aconteceu, já que todos os professores da
equipe são vinculados à Universidade de São Paulo.
Kramer (1997) também discute esta questão do documento oficial ter sido
escrito por um reduzido grupo de especialistas, que, segundo ela, por pressões de
órgãos internacionais, por exigências da iniciativa privada e pelo atual contexto de
mercado da época (meados da década de 90), fizeram um tratado que excluiu a
participação integral dos profissionais da educação, dos educandos, da sociedade
em geral.
Alimentado por uma posição político-ideológica ou não, os PCN nos
orientam para uma crítica velada e explícita ao ensino tradicional, entendido como
aquele que desconsidera a realidade e os interesses dos alunos, a excessiva
escolarização das atividades de leitura e de escrita, artificialidade e fragmentação
dos trabalhos, a visão de língua como sistema fixo e imutável de regras, o uso do
texto como pretexto para o ensino da Gramática e para a incorporação de valores
morais, a excessiva valorização da Gramática normativa e das regras de exceção, o
preconceito contras as formas de oralidade e contra as variedades não padrão, o
ensino descontextualizado da metalinguagem apoiado em fragmentos lingüísticos e
frases soltas.
A descaracterização do ensino da Gramática normativa pode ser
verificada nas referências bibliográficas contidas no documento oficial, de modo que
não há nenhuma sugestão de uma gramática da Língua Portuguesa, ou seja,
aparentemente temos a impressão de que se trata de um postulado para qualquer
área, menos para a língua materna.
Esta visão predominante de modernidade é um eco das próprias
mudanças sociais verificadas no mundo a partir da abertura à globalização. É
inegável que qualquer processo de transformação venha acompanhado de uma
atmosfera moderna, no entanto ignorar um modelo já concebido há anos, por
considerá-lo ultrapassado, seria ratificá-lo como incompetente.
Na área educacional costumamos denominar como "tradicional” tudo o
que nos desagrada, e, conseqüentemente, vamos atrás do novo, da negação do que
já existe, ou seja, do velho. Essa também tem sido a lógica que vem orientando as
atuais propostas pedagógicas, que negam a experiência acumulada em troca do
moderno.
Entretanto, nesta esfera moderna, o que temos verificado é que cada vez
mais o índice de compreensão de leitura e compreensão de textos em Língua
Portuguesa decai drasticamente a cada pesquisa feita, com resultados lastimáveis e
preocupantes
12
.
Os PCN e sua preconização para a necessidade de se ensinar a partir da
diversidade textual, para adoção das práticas de leitura e produção e de análise
lingüística em suas condições de uso e de reflexão como conteúdo da disciplina,
parecem não ter logrado êxito na melhoria desta “competência”, visto que, de acordo
com os últimos índices do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos)
elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), o Brasil fora reprovado em leitura. Em uma reportagem veiculada pela
Folha de São Paulo (GOIS & PINHO, dez. 2007), verificamos o quão preocupante é
a situação de aprendizagem de leitura no país.
Brasil é reprovado, de novo, em matemática e leitura
ANTÔNIO GOIS da Folha de S.Paulo, no Rio, ANGELA PINHO da Folha de
S.Paulo, em Brasília.
A péssima posição do Brasil no ranking de aprendizado em ciências
se repetiu nas provas de matemática e leitura. Os resultados do Pisa (sigla,
em inglês, para Programa Internacional de Avaliação de Alunos), divulgados
ontem pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico), mostram que os alunos brasileiros obtiveram em 2006 médias
que os colocam na 53ª posição em matemática (entre 57 países) e na 48ª
em leitura (entre 56).
O objetivo do Pisa é comparar o desempenho dos países na
educação. Para isso, são aplicados de três em três anos testes a alunos de
15 anos em nações que participam do programa. O ranking de ciências,
divulgado na semana passada, colocava o Brasil na 52ª posição.
Além de estarem entre os piores nas três provas nessa lista de
países, a maioria dos estudantes brasileiros atinge, no máximo, o menor
nível de aprendizado nas disciplinas.
O pior resultado aparece em matemática. Numa escala que vai até
seis, 73% dos brasileiros estão situados no nível um ou abaixo disso.
Significa, por exemplo, que só conseguem responder questões com
contextos familiares e perguntas definidas de forma clara.
Em leitura, 56% dos jovens estão apenas no nível um ou abaixo dele.
Na escala, que vai até cinco nessa prova, significa que são capazes apenas
de localizar informações explícitas no texto e fazer conexões simples.
12
Um desses dados indica que, no Brasil, 1,8 pessoa lê um livro por ano, enquanto que na França este número é
de 7 livros/ ano. Além disso, dos brasileiros de 15 a 64 anos, 61% têm muito pouco ou nenhum contato com os
livros, 47% possuem no máximo dez livros em casa, 30% localizam informações simples em uma frase, 37%
localizam informação em texto curto e 25% estabelecem relações entre textos longos. Os dados são da Câmara
Brasileira do Livro, Instituto da Biblioteca Nacional, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e
Ministério da Educação (NOVA ESCOLA, 2006, p. 30).
Em ciências, 61% tiveram desempenho que os colocam abaixo ou
somente no nível um de uma escala que vai até seis. Isso significa que seu
conhecimento científico é limitado e aplicado somente a poucas situações
familiares.
Nos três casos, a proporção de alunos nos níveis mais baixos é muito
maior do que a média da OCDE, que congrega, em sua maioria, países
ricos.
Comparando o desempenho do Brasil no exame 2003 (que já era
ruim) com o de 2006, as notas pioraram em leitura, ficaram estáveis em
ciências e melhoraram em matemática.
Uma melhoria insuficiente, porém, para tirar o país das últimas
posições, já que foi em matemática que o país se saiu pior em 2006, com
médias superiores apenas às de Quirguistão, Qatar e Tunísia e
semelhantes às da Colômbia.
Como há uma margem de erro para cada país, a colocação brasileira
pode variar da 53ª, no melhor cenário, para a 55ª, no pior. O mesmo ocorre
para as provas de leitura e ciências. No de leitura, varia da 46ª à 51ª. Em
ciência, da 50ª à 54ª.
A partir desta constatação, Kramer (1997) diria que a elaboração de
nossas propostas educativas atuais se apresenta como promessas de alternativas
mágicas, provavelmente melhores que as anteriores, carregadas de "ecos" de
nossos tempos de modernidade, onde o futuro tornou-se o equivalente de
superação, contudo, é necessário considerar que a superação e a modernidade não
foram acompanhadas pela melhora das condições de vida da maior parte da
população, haja vista a inexpressiva posição alcançada pelos nossos estudantes em
pesquisas como a citada anteriormente.
Com base nestes números, caberia um questionamento: se o país se
encontra em uma posição vexatória em relação à leitura, e o que mais se verifica
são inúmeras propostas de atividades com a mesma, por que, então, os resultados
práticos não são verificados? Supomos que a diversidade de textos defendida
pelos PCN faria com que os alunos tivessem maior contato com a leitura e,
conseqüentemente, melhores aproveitamentos, todavia não é o que ocorre em
termos estatísticos. Será que, apesar da quantidade de textos, a qualidade ficou
comprometida em decorrência de uma falta de critério do que deve ser lido?
Estas respostas carecem não de respostas definitivas, mas de
posicionamento crítico. Travaglia (2003, p.65) aborda que o bom Português não
deve ser interligado à “variedade literária”. Segundo ele,
ligar o Português culto apenas à variedade literária é um equívoco, quando
mesmo na escrita há outras variedades de Português culto. Além disso, há
outro equívoco: o de querer que o Português culto seja o de épocas
passadas. É preciso lembrar mais uma vez que a norma culta decorre do
uso da língua feita pelo grupo social de prestígio da atualidade, tendo,
portanto, suas bases no contemporâneo, que deve ser priorizado no ensino/
aprendizagem de língua materna.
Compreendemos, de fato, que a linguagem é uma atividade, segundo
postulados coserianos, e que, naturalmente, promove quando estimulada uma
série de mudanças. No entanto, de acordo com a observação acima, o autor salienta
que a concepção de norma culta deve estar contextualizada no contemporâneo,
embora verifiquemos, sistematicamente, que o leitor contemporâneo, ainda que
pratique a leitura dos mais diversos textos, naufrague na competência de entendê-
los, já que nem ele mesmo compreende o que lê.
A defesa do ensino da língua literária não visa a associar o estudo do
ensino de língua materna à chamada metaliteratura, muito menos associar este
estudo às questões arcaizantes. O que se almeja, segundo Uchoa (2007, p.51),
é valorizar o ensino da língua literária, não, evidentemente, limitá-lo a ela, a
fim de que os alunos alcancem, ao longo da sua escolaridade, a capacidade
de compreendê-la e apreciá-la, sabendo captar, por exemplo, que uma
construção coloquial ou bem popular foi utilizada pelo romancista como um
recurso consciente, elaborado, para criar um efeito especial.
Ao indicar que “é preciso que as situações escolares de ensino de Língua
Portuguesa priorizem os textos que caracterizem os usos públicos da linguagem”
(BRASIL, 1998b, p.24), os PCN talvez não incorporassem, dentro da sua
perspectiva, a poesia que seguirá adiante como indicada para transferir, conforme
salienta o próprio documento, “A reflexão crítica, o exercício de formas de
pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a função estética dos usos
artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa
sociedade letrada (BRASIL, 1998b, p.24).
Vejamos o que diria a poesia de Patativa do Assaré:
Aos Poetas Clássicos
Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.
No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.
Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.
Depois que os dois livro eu li,
Fiquei me sintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.
Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabô a leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.
Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece munta parma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.
Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.
Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciença guverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.
Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.
(ASSARÉ, [199-?]).
Poderíamos afirmar que uma criação como essa não prima pelo rigor da
chamada língua padrão, mas apresenta um dado peculiar: a sua aproximação com o
falante da língua. E isso é feito naturalmente, visto que coube ao poeta versejar em
redondilhas e decassílabos, traduzindo uma visão de mundo "cabocla", muitas vezes
nostálgica e desapontada com as mudanças trazidas pela modernidade e pela vida
urbana. Sua obra aborda os valores e os ideais dos camponeses do interior do
Ceará, em poemas que tematizam da reforma agrária ao cotidiano dos sertanejos
cearenses.
É preciso que este e outros tantos textos de natureza literária não sejam
utilizados como pretextos para análises de variantes lingüísticas, cujas propostas se
resumem em questões de norma culta versus norma padrão, língua escrita versus
língua oral. As novas expressões que estes textos são capazes de proporcionar,
pela possibilidade de atrair os alunos, talvez sejam a solução para que eles se
interessem pela prática efetiva de ler.
2.2 Oralidade e Escrita nos PCN
É comum os professores, talvez influenciados pelo apoio dos seus
materiais didáticos, acharem que debater ou dramatizar já são atividades suficientes
de oralidade, e muitos se questionam até mesmo se isso é útil, devido ao fato de os
alunos falarem - e bastante - no cotidiano.
Essa simplificação do trabalho com a oralidade decorre, em grande parte,
do despreparo de alguns professores, formados em faculdades que não abordam o
tema e, por vezes, sequer debatem conceitos preliminares em qualquer discussão
sobre língua, como variação lingüística, norma culta etc.
Se, porém, o problema é de formação, também não deixa de ser de
informação. Afinal, temos visto alguns livros didáticos explicitamente abordando o
ensino de língua falada - e nem sempre o professor tem como se atualizar por uma
série de motivos que ultrapassam, inclusive, a sua própria vontade.
As dificuldades de determinar a escolha de um texto só não são maiores
que o desconhecimento de grande parte dos professores sobre o que vem a ser o
trabalho com textos, principalmente os orais, em sala de aula. Lingüistas como
vero et al (2000) e Marcuschi (2005), por exemplo, têm argumentado a favor do
desenvolvimento de competências orais na escola.
O trabalho com gêneros proposto por Marcuschi (2005), tal qual é
sugerido pelos PCN, orienta a oralidade para situações que, segundo o autor,
“podem ressaltar a contribuição da fala na formação cultural e na preservação de
tradições não escritas que persistem mesmo em culturas em que a escrita já entrou
de forma decisiva” (p.25). No entanto, essa formação cultural citada seria apropriada
através de práticas do cotidiano, e não através do recurso do texto literário, o texto
por excelência.
De fato, o que se observa preconizado em muitos livros didáticos e
corroborado pelos documentos oficiais é que, quando se referem à oralidade em
trabalhos com o texto literário, as atividades são meras encenações do mesmo com
recurso de teatralização, que, por sua vez, não deveria ser incluída como uma
atividade oral pelo fato de ser vista como uma espécie de “simulação da fala”
(PRETI, 2004).
Com isso, os documentos oficiais que regem o sistema de ensino do país
não esclarecem com exatidão (e nem deveriam fazê-lo, uma vez que não são
orientações metodológicas) como deve ser o procedimento com a oralidade em sala
de aula, portanto, o professor fica refém da falta de informação.
Com relação aos PCN, que poderiam servir, grosso modo, para levar
algumas informações aos professores, no que se refere à oralidade há uma certa
confusão. É o que se constata nos excertos abaixo:
[...] cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no
planejamento e realização de apresentações públicas: realização de
entrevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc. Trata-se de
propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato,
pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado como mais
apropriado para todas as situações (BRASIL, 1997, p.25).
Quando o documento fala em “é descabido treinar um nível mais formal da
fala” há uma certa aproximação com a escrita por se preconizar a idéia do escrever
bem. A formalidade na fala pode ser adquirida caso haja um trabalho com um texto
que possa sintetizar o que Coseriu definiu por plenitude funcional da linguagem: o
texto literário.
Com isso, percebe-se, no trecho citado, que se espera da escola a
preparação do aluno para falar em público, em situações que não são de fato
espontaneamente orais, mas previamente planejadas para serem enunciadas
oralmente.
Situações como entrevistas, seminários e debates costumam ocorrer com
mais freqüência no próprio ambiente escolar; parece, então, que a importância do
trabalho com a oralidade é preparar o aluno para as atividades escolares em que ele
precisará falar - um caso de “oralização da escrita”.
Na parte destinada aos objetivos do ensino, vejamos o que os PCN
abordam:
No processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno:
- amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos,
semânticos e gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto;
- reconheça a contribuição complementar de elementos não-verbais
(gestos, expressões faciais, postura corporal);
- utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para
registro, documentação e análise;
- amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo
capaz de aderir a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu
discurso (BRASIL, 1997, p. 49).
Quando os PCN sugerem o que esperar a partir da produção de textos
orais como se vê a seguir , surgem itens (2 e 3) referentes à variação
lingüística, tema não abordado no tópico referente à “escuta” dos textos orais.
Assim, não se faz a relação necessária entre leitura e produção.
No processo de produção de textos orais, espera-se que o aluno:
- planeje a fala pública usando a linguagem escrita em função das
exigências da situação e dos objetivos estabelecidos;
- considere os papéis assumidos pelos participantes, ajustando o texto à
variedade lingüística adequada;
- saiba utilizar e valorizar o repertório lingüístico de sua comunidade na
produção de textos;
- monitore seu desempenho oral, levando em conta a intenção comunicativa
e a reação dos interlocutores e reformulando o planejamento prévio, quando
necessário;
- considere possíveis efeitos de sentido produzidos pela utilização de
elementos não-verbais (BRASIL, 1997, p. 51).
Um equívoco a ser observado nas linhas dos PCN diz respeito justamente
à instrumentalização da oralidade a que o aluno será submetido, dentro da linha de
que as situações do cotidiano são as que melhor se aproveitam de um exercício
efetivo da oralidade. Este trecho do documento sintetiza a concepção de práticas
orais:
O trabalho com linguagem oral deve acontecer no interior de atividades
significativas: seminários, dramatizações de textos teatrais, simulação de
programas de rádio e televisão, de discursos políticos e de outros usos
públicos da língua oral. Só em atividades desse tipo é possível dar sentido
ao trabalho com aspectos como entonação, dicção, gesto e postura que, no
caso da linguagem oral, têm papel complementar para conferir sentido aos
textos (BRASIL, 1997, p. 52).
No caso da oralidade, o que se verifica neste trecho, é que há uma
proposta de trabalho com situações reais do aluno, já que é evidente que a
competência em relação aos textos orais fica restrita às atividades do dia a dia.
Sobre esta situação acerca do chamado “utilitarismo”, Bittencourt ([20--?], p.2)
salientou:
[...] enquanto falante, ele é capaz de, nas atividades corriqueiras em que
precisa interagir lingüisticamente, construir enunciados em sua língua
materna (saber idiomático), acerca de um dado da realidade (saber
elocucional), numa determinada situação, para um certo interlocutor (saber
expressivo). É evidente que essa competência textual ainda se encontra
num nível muito incipiente, diríamos mesmo, num nível rudimentar, já que
só lhe concede o direito de produzir e interpretar textos cuja finalidade
manifestativa é bastante singela e cujos conteúdos cognoscitivos são muito
pobres (p.ex.: conversar com amigos sobre esporte ou sobre um programa
de televisão, pedir aos pais ou professores que atendam a certa solicitação
etc). Tal competência não lhe permite, assim, produzir ou interpretar textos
cujas finalidades comunicativas não sejam imediatas e cujos conteúdos
cognoscitivos sejam mais elaborados (p.ex.: textos de literatura, de política,
de economia etc).
Ao relacionar as práticas de leitura com o cotidiano, os PCN parecem
afastar o aluno do texto literário. O documento fala da “especificidade do texto
literário” da seguinte forma:
O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de
reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo
particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos
que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários,
ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras
(valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para
a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as
particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções
literárias. (BRASIL, 1998, p.27).
Apesar de haver uma certa preocupação com os textos literários, os PCN
não os relacionam como textos a serem trabalhados para a busca do conhecimento,
porque, quando são vistos em inúmeras coleções didáticas, seguem exatamente
aquilo que o documento oficial referido não menciona, ou seja, fundamentalmente o
trabalho com o texto literário é pretexto para a realização de atividades
metalingüísticas ou para a sugestão de debates acerca de temas transversais que
estejam relacionados, de certa forma, a ele.
Marcuschi (1996) parte de quatro premissas para argumentar a favor do
trabalho com a língua falada, com base no fato de que a fala já conseguiu um lugar
no ensino de língua materna.
Ao afirmar que a língua é heterogênea e variável, Marcuschi indica que o
foco do seu ensino é deslocado do código lingüístico para o uso lingüístico, ou seja,
para a análise de textos e discursos, de modo que fala e escrita seriam vistas como
duas modalidades de uso dentro de um conjunto de variações.
A segunda idéia articulada pelo autor é que a escola deve ocupar-se da
fala propondo um paralelo de análise com a escrita. No entanto, é interessante
ressaltar que a escola, ao longo dos últimos tempos, dedicou-se preferencialmente
ao ensino da escrita, de modo a categorizá-la como instrumento de uma sociedade
letrada, não restando possibilidades de inserção da chamada “língua falada” nas
salas de aula.
Além disso, é importante ressaltar que o falante da língua reconhece o
conceito de texto relacionando-o à concepção da escrita. Diferentemente do texto
oral, o texto escrito permite ao falante se ver separado do seu objeto de análise.
A terceira premissa estipulada por Marcuschi diz respeito à chamada
bimodalidade. Bimodal significa ter o domínio duplo da língua materna, i.e., o
indivíduo domina a modalidade de uso tanto da língua falada quanto da língua
escrita. Sobre ser bimodal, o autor nos esclarece dizendo que (1996, p.5):
Aqui tomo “bimodalidade” para caracterizar um duplo domínio da língua
materna em relação às modalidades de uso da língua falada e língua
escrita. Assim, o aluno, ao adquirir a escrita, está adquirindo outro estilo
(poderemos também falar em “dialeto”, mas num sentido um tanto
impróprio, já que falar em dialeto padrão como coincidente com a escrita
seria o mesmo que identificar escrita com padrão). Não se trata, pois, de
dominar dois dialetos da língua falada e sim de dominar dois estilos de uso
da língua.
Sugerir a bimodalidade parece nos remeter ao termo “educação bidialetal”,
ratificado por Bortoni (1992) e Soares (1986). No primeiro caso, o termo abrange as
questões de variação lingüística e os problemas que isso acarretaria ao ensino da
língua materna. Já na segunda acepção, há a sugestão de que a escola mantivesse
o dialeto do aluno e ensinasse o de prestígio.
Entretanto, há uma confusão muito grande entre as orientações de
abordagem da oralidade sob a forma da escrita, ou seja, ao refletir sobre a
bimodalidade, espera-se que o aluno tenha a mesma competência nas duas
entidades (fala e escrita), o que nos parece ser complexo pelo fato de serem duas
unidades distintas.
A comprovação dessa distinção pode ser verificada no quadro a seguir:
Quadro 4 Distinção entre oralidade e escrita
ORALIDADE ESCRITA
Presença concreta dos partícipes do ato de fala. Presença virtual dos partícipes da atividade
lingüística: ruptura do esquema “eu-tu-ele”.
Obediência ao esquema “eu-aqui-agora”. Desobediência ao esquema “eu-aqui-agora”.
Possibilidades de “feedback” imediato Impossibilidades de feedback imediato
discurso autônomo
Planejamento simultâneo: discurso/ texto. Planejamento refletido do texto.
Elipse de signos lingüísticos, em virtude da
presença dos elementos do contexto situacional.
Ausência de elementos do contexto situacional.
Ausência das propriedades da voz.
Manifestação concreta das propriedades da voz
(melodia, sonoridade, tom, ritmo, etc).
Ausência das propriedades da voz.
Caráter efêmero sentido da audição. Caráter permanente sentido da visão.
Extraído de: O quadro em questão fora apresentado durante a disciplina “Ensino e Aprendizagem de
Textos Orais e Escritos”, ministrada pela Prof. Dra. Terezinha Bittencourt, no segundo semestre de
2008, UFF.
Algumas aplicações que aparecem no texto falado e desaparecem no
texto escrito têm implicações importantes. Se o indivíduo não está diante do seu
interlocutor, ele não tem feedback, que é a realimentação de linguagem. Este traço
da oralidade é importante pelo fato de, por exemplo, alguém estar falando e, de
repente, uma palavra ser esquecida e se cometer uma digressão. No texto oral, o
interlocutor estará pronto para ajudar. Ele construirá a fala com o seu interlocutor, e
no texto escrito isso não é possível, já que no mesmo seria preciso uma explicação,
enquanto no texto oral isso apareceria de uma forma evidente.
Outro aspecto que merece destaque é a questão da obediência/
desobediência ao eixo temporal, devido ao fato de todo contexto extraverbal
(chamado de contexto situacional) e mais o nosso conhecimento partilhado da
mesma situação histórica, trabalharem para que não precisemos apontar signos
lingüísticos.
Um exemplo: para os habitantes de São Gonçalo, se alguém pergunta
“Você foi ao Rodo?”, não haveria necessidade de ser mais explícito porque o “Rodo”
equivale ao Centro daquela cidade, e qualquer morador identificaria tal palavra. Para
uma pessoa que não partilha deste mesmo conhecimento, haveria todo o zelo de
estipular um esforço de natureza lingüística porque tal informação não pertenceria
ao contexto situacional de que ele não fazia parte.
Ao desaparecer o eixo temporal, a leitura do texto necessita de maiores
explicações, como se hoje disséssemos, por exemplo, a expressão “flanar
13
. Como
não se utiliza mais esta expressão atualmente, haveria a necessidade de explicar o
seu registro mediante o contexto da época, já que conforme nos distanciamos do
13
A expressão significava “passear”.
tempo, mais este contexto vai ficando tênue até ficar esvaecido de tal forma que
desaparece, de modo que a leitura do texto escrito necessita de mais explicações.
Outro fator de extrema importância que confere a diferença entre a
oralidade e a escrita diz respeito aos traços supra-segmentais da linguagem, algo
ausente nos textos escritos. Por se diluírem na cadeia sonora e não ficarem sobre
um único segmento, estes traços são difíceis de serem estudados justamente por
estes motivos apresentados.
Além desta grande confusão entre oralidade e escrita, há uma espécie de
ressalva à questão da chamada “norma padrão” por uma questão meramente
terminológica.
Os PCN dificultam a compreensão do termo “padrão”, pelo fato de o
associarem diretamente à noção de escrita. A chamada “norma padrão” responderia
a pergunta “como é?”, prontamente respondida pelo lingüista, porém as sugestões
de trabalho com a norma padrão, sobretudo em livros didáticos, são orientadas
diretamente ao falante.
O que na verdade se espera é a chamada “norma exemplar”, que
responderia a pergunta “como deve ser?”, orientada ao texto escrito. Tal pergunta
seria feita pelo falante e seria respondida pelo gramático, porém haveria outro
problema: os PCN não mencionam qualquer orientação de estudo metalingüístico no
seu texto.
A título de ilustração desta grande confusão causada pela nomenclatura
“padrão”, verifiquemos como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) se
comporta em uma questão oferecida no ano de 2004 (BRASIL, 2008):
Texto para as questões 5 e 6
Aula de português
1 A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
4 e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
7 sabe lá o que quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele e quem sabe,
e vai desmatando
10 o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
13 Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
16 a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a priminha.
O português são dois; o outro, mistério.
Carlos Drummond de Andrade. Esquecer para lembrar. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1979.
Questão 6
No poema, a referência à variedade padrão da língua está expressa no
seguinte trecho:
A) “A linguagem / na ponta da língua” (v.1 e 2).
B) “A linguagem / na superfície estrelada de letras” (v.5 e 6).
C) “[a língua] em que pedia para ir lá fora” (v.14).
D) “[a língua] em que levava e dava pontapé” (v.15).
E) “[a língua] do namoro com a priminha” (v.17).
Se considerarmos que a idéia de norma padrão deveria ser respondida
pelo lingüista, parece-nos contraditório uma questão como a citada estar inserida em
um exame voltado para alunos do Ensino Médio, sobretudo porque sugere que os
mesmos tenham conhecimento dos elementos que compõem o padrão formal da
linguagem, que só poderia ser adquirido se os estudantes tivessem acesso a um
ensino efetivo da gramática normativa.
A contradição é provada pelo fato dos documentos oficiais preconizarem a
idéia de que o ensino de língua materna deve estar centrado na gramática
descritiva, e não na gramática normativa
14
.
A última premissa que compõe a teoria defendida por Marcuschi (2005)
acerca da incorporação da língua falada no ensino de português refere-se ao uso
da língua em textos contextualizados, de modo que a concepção de língua se
adequaria à interação social. Os estudos metalingüísticos deveriam ser trabalhados
na produção e compreensão textual nas várias atividades no uso da língua, ou seja,
a produção oral, a produção escrita, a leitura e a compreensão.
Em relação a essa premissa, que trabalha com a chamada interação
social, Castilho (1998, p.24) propõe um ensino de língua materna não para o traçado
de características da língua falada e da língua escrita, mas do “emparelhamento da
língua falada e da língua escrita”. Para isso, o professor deveria recorrer a uma
análise combinando gêneros textuais
15
, atividade que promoveria uma compreensão
das relações do continuum fala-escrita.
Muitos destes trabalhos, sugeridos por Castilho, são verificados em muitos
livros didáticos de português sob a forma de inúmeros gêneros textuais, quase todos
com a função informativa. Bittencourt e Barros (2006, p.37) apresentam e detalham
o porquê dos textos informativos não possuírem a plenitude funcional da linguagem.
14
Segundo os PCN (1997, p. 28 - 29), é nítido que a proposta de trabalho não é em vistas da “gramática
tradicional”, de modo que “a preocupação não é reconstruir com os alunos o quadro descritivo constante dos
manuais de gramática escolar (por exemplo, o estudo ordenado das classes de palavras com suas múltiplas
subdivisões, a construção de paradigmas morfológicos, como as conjugações verbais estudadas de um fôlego em
todas as suas formas temporais e modais, ou de pontos de gramática, como todas as regras de concordância, com
suas exceções reconhecidas). O que deve ser ensinado não responde às imposições de organização clássica de
conteúdos na gramática escolar, mas aos aspectos que precisam ser tematizados em função das necessidades
apresentadas pelos alunos nas atividades de produção, leitura e escuta de textos”.
15
Ao fazer uma notória pesquisa sobre as questões teóricas sobre os gêneros textuais, Souza (2008, p. 115 120)
salienta que, embora largamente utilizada nos PCN, a noção do termo “gênero” confunde os leitores do referido
documento por apresentar problemas de heterogeneidade terminológica, uma vez que “ora se fala em gêneros
textuais, ora em gêneros discursivos, sendo ambas as expressões às vezes utilizadas como equivalentes”.
A manifestação da liberdade no ato de interpretar [...] faz do texto fonte de
novos sentidos, faz do leitor crédulo um leitor crítico, um leitor que contesta
e desconfia, um leitor rebelde, um leitor que faz do sabido um caminho para
novos saberes, um caminho para a sabedoria.
O texto literário fica relegado em segundo plano nos PCN, talvez em
função do apelo do texto informativo à concepção da interação e das práticas
sociais. A alegação é que o texto literário não lida com as situações do real, porém
tal afirmação é, no mínimo, contraditória, porque uma receita de bolo, por exemplo,
tão abordada como um bom recurso textual, é tão somente um simulacro do real.
Em relação ao trabalho com a oralidade, os Parâmetros Curriculares
Nacionais afirmam a necessidade de trabalhar as diferentes exigências da língua
falada e da adequação às características próprias de diferentes gêneros da
oralidade.
Afirma o documento que:
Ensinar língua oral deve significar para a escola possibilitar acesso a usos
da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais
consciente e voluntário da enunciação, tendo em vista a importância que o
domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania. Ensinar língua
oral não significa trabalhar a capacidade de falar em geral. Significa
desenvolver o domínio dos gêneros que apóiam a aprendizagem escolar de
Língua Portuguesa e de outras áreas e, também, os gêneros da vida
pública no sentido mais amplo do termo (BRASIL, 1997, p.67).
Verifica-se, nesta passagem do documento oficial, a preocupação em
trabalhar com situações típicas do cotidiano, de modo que seria papel da escola
preparar o aluno para fazer uso da linguagem oral em entrevistas, debates,
seminários e apresentações teatrais, a proporcionar práticas de comportamento
social. Em todas essas situações, aparentemente, não seria empregado o nível
formal da fala, haja vista que a escola poria em segundo plano a idéia de que a fala
correta seria aquela que mais se aproxima da língua escrita.
Os PCN direcionam, para o trabalho com a oralidade, atividades que se
dividem em “escuta” e “produção de textos orais”. No que se refere a parte
reservada à escuta, são previstas atividades que visem inserir o aluno em situações
reais de interlocução simultâneas ao processo ou gravadas , apenas ouvindo ou
participando ativamente, cujo resultado final seria avaliar o tipo de linguagem
utilizada em função do contexto, além de verificar as diferenças em função dos
interlocutores envolvidos.
O processo de escuta de textos orais talvez simbolize um dos maiores
problemas verificados no estudo da oralidade previsto pelos PCN. Isso porque se
espera, no final de uma atividade oral nestes moldes, que se faça, por exemplo, a
transcrição dos dados da fala, fazendo uso, portanto, da escrita para isso. Não há
um direcionamento da oralidade na oralidade, e sim a oralização da escrita.
Tal controvérsia é ratificada quando é solicitado ao professor, pelo
documento em questão, que ele enfatize a análise de elementos não-verbais como
gestos, expressões faciais, postura corporal, etc, que fazem parte da interação,
como complemento da prática da língua oral em sala de aula. Ou seja, nestas
práticas, o suporte da fala acaba sendo a escrita, o que seria discutível.
Esta prática de oralização da escrita pode ser corroborada através de uma
questão proposta na prova do ENEM de 2008 (GLOBO.com, 2008), em que foi feita
a abordagem sobre a questão do registro informal, ou coloquial, conforme salienta o
próprio enunciado da questão, a partir do uso do gênero “histórias em quadrinhos”.
Questão 14 1
4144
Dick Browne. O melhor de Hagar, o horrível, v. 2. L&PM pocket, p.55-6 (com adaptações).
Assinale o trecho do diálogo que apresenta um registro informal, ou
coloquial, da linguagem.
A) “Tá legal, espertinho! Onde é que você esteve?!”
B) “E lembre-se: se você disser uma mentira, os seus chifres cairão!”
C) “Estou atrasado porque ajudei uma velhinha a atravessar a rua...”
D) “...e ela me deu um anel mágico que me levou a um tesouro”
E) “mas bandidos o roubaram e os persegui até a Etiópia, onde um
dragão...”
Segundo a banca organizadora do concurso (Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), vinculado ao Ministério da
Educação), a opção A condiz com a resposta correta pelo fato de a expressão “Tá
legal, espertinho” conter “tom familiar” por ser a forma como Helga, a personagem,
se dirige a Hagar, sendo, portanto, as expressões “tá” (a redução do verbo “estar”) e
“espertinho” (o uso irônico do sufixo diminutivo) as marcas de coloquialidade
contidas no enunciado.
O conceito de informalidade remetido à análise da questão parece ser
confusa e contraditória. Isso porque o mesmo sufixo verificado em “espertinho”
também é verificado em “velhinha”, embora com notações semânticas distintas, mas
que seria informal da mesma forma que o anterior. Além disso, o uso da expressão
“os seus chifres cairão!” dá mostras de um registro coloquial, uma vez que tal
expressão, usada em sentido conotativo, reforça a idéia de que o diálogo mantido
entre os personagens se aproxima de um registro informal.
Se o discente, no momento de resolução desta questão, compreender que
os quadrinhos possuem por si só mecanismos próprios de representação da
oralidade
16
, como a própria estruturação em forma de diálogos sugeridos em balões,
ele poderia deduzir que todas as opções previstas fazem menção à língua falada.
No entanto, a abordagem da questão sistematiza o fenômeno da informalidade
através do recurso metalingüístico.
Segundo os PCN (BRASIL, 1997 p.74-75), espera-se do aluno os
seguintes procedimentos da prática de produção de textos orais:
? elaboração de esquemas para planejar previamente a exposição;
? preparação de cartazes ou transparências para assegurar melhor controle
da própria fala durante a exposição;
? elaboração de roteiros para realização de entrevistas ou encenação de
jogos dramáticos improvisados;
? preparação prévia de leitura expressiva de textos dramáticos ou poéticos;
? memorização de textos dramáticos ou poéticos a serem apresentados
publicamente sem apoio escrito.
O apelo ao material escrito pode ser confirmado através do segundo e do
terceiro procedimento verificado acima, em que a preparação de cartazes e
elaboração de roteiros são objetivos pretendidos para uma atividade oral. Trata-se,
portanto, de um desvio em torno da prática efetiva da oralidade com o aluno em sala
de aula, devido ao fato de tal atividade resultar em uma prática da língua escrita.
A referência à produção de textos orais, na ótica dos PCN, aborda
atividades que envolvam gêneros orais possíveis de serem produzidos em sala de
aula pelos alunos, relevantes para o processo de ensino. Segundo o documento
(BRASIL, 1997, p.57), os gêneros sugeridos para a prática de produção de textos
16
Urbano (2000) define tal processo como um fenômeno de “representação do oral no escrito”. ao estudar os
fenômenos da oralidade nos quadrinhos a partir da hipótese de que o recurso dos balões condensa a fala dos
personagens, causando, com isso, a impressão de que os leitores lêem as palavras dos personagens e têm a
impressão de ouvi-las em suas mentes.
orais seriam divididos da seguinte maneira: literários (canção e textos dramáticos),
de imprensa (notícia, entrevista, debate, depoimento) e de divulgação científica
(exposição, seminário, debate).
Diante desse quadro, observamos que o tratamento dado ao texto literário
é mínimo, oferecendo apenas fragmentos de trabalho com “canções” e “textos
dramáticos”, sem qualquer apresentação de critérios para a escolha de um ou de
outro. Não se menciona, por exemplo, qualquer trabalho com a poesia e suas
propriedades, como entonação, ritmo, melodia, algo que efetivamente seria um
trabalho da oralidade na própria oralidade.
A única situação em que a poesia é posta em evidência pelo documento é
verificada na parte reservada às especificidades dos diferentes gêneros previstos ao
trabalho com a oralidade. Os PCN (BRASIL, 1997, p.75) salientam que se espera
que o aluno seja capaz de fazer uma leitura expressiva ou recitação pública de
poemas, de modo que os recursos típicos da leitura dos mesmos estariam apenas
associados à representação de textos teatrais, procurando explorar “o plano
expressivo da própria entoação: tom de voz, ritmo, aceleração, timbre (BRASIL,
1997, p.75).
3 AS NOVAS MANEIRAS DE LER O MUNDO
A revolução cultural de fins do século XX pode assim ser mais bem
entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o
rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas
sociais. Pois essas texturas consistiam não apenas nas relações de fato
entre seres humanos e suas formas de organização, mas também nos
moldes gerais dessas reações e os padrões esperados de comportamento
das pessoas umas com as outras; seus papéis eram prescritos, embora
nem sempre escritos (HOBSBAWN, 1995, p.328).
Parece contraditório, porém simultaneamente se fala em “crise de leitura”
no país e em avanços significativos na produção de textos. A tal crise é corroborada
em índices alarmantes, e a produção de textos é verificada, sobretudo, pelo advento
da Internet. Indubitavelmente que as pessoas estão escrevendo mais, entretanto a
ressalva é feita em torno do que essas pessoas estão escrevendo pelo fato de todos
estarmos inseridos em uma cultura que se dedica ao entretenimento comercial de
massa. Esse entretenimento seria um instrumento viável para a formação de um
leitor em uma cultura integral?
Paulatinamente estão desaparecendo algumas razões que davam sentido
ao saber “algo de cabeça”, “de cor”. Habilidades importantes nas culturas oral e
escrita, como a própria prática de decorar o texto, são substituídas por novas
tecnologias, que, de alguma forma, intelectualizam os indivíduos em nome de uma
pluralidade que traduz o que se vive na atualidade: todos se informam, mas não
sabem como e por que.
100
O que esse capítulo pretende abordar é justamente as maneiras de ler o
mundo e suas implicações na formação de uma cultura integral. Para tanto,
procuraremos elucidar algumas questões que dialogam em torno da influência da
grande mídia na falta de leitura das pessoas, além de mostrar como isso, de certo
modo, está embutido no cotidiano das pessoas.
Na contramão do que seria fruto desse efeito midiático, falaremos da
poesia como a possibilidade da criação literária em busca do “Belo”, algo que
definitivamente qualquer pessoa almeja. O conflito entre a arte de escrever e a
“primazia da imagem” pode ser corroborado ao refletirmos sobre a influência da
multiplicação das mídias no século XX, sobretudo a televisão e o seu impactante
poder de manipulação.
Fundamentalmente, procuraremos ressaltar, nesse capítulo, que a arte e a
cultura sofrem grande influência do processo tecnológico, ficando cada vez mais
difusas, produzidas e reproduzidas em escala, massificadas e consumidas como
produto cultural. O fato decisivo da cultura do século XX, o surgimento de uma
revolucionária indústria de diversão popular voltada para o mercado de massa,
reduziu as formas tradicionais da grande arte a guetos de elite.
A cultura comum, de qualquer país urbanizado de fins de século XX, se
baseava na riqueza de diversão de massa: cinema, rádio, televisão, música popular.
Além disso, a segregação era cada vez mais complexa, pois só por um acidente
ocasional o grosso do público que a indústria de diversão atraía encontrava gêneros
de alta cultura que enlouquecia os iniciados.
A arte tornou-se comerciável, e, agora, se coloca a serviço das
universidades, da publicidade e dos governos. Assim, no fim do século XX, a arte
começa a se misturar e a ser suplantada pela cultura da sociedade de consumo. É
101
nesse contexto que procuraremos abordar como a leitura segue o seu caminho,
seus encontros e os seus desencontros.
3.1 A Leitura Literária Versus a Leitura Utilitária: Os Efeitos de um Mundo
Globalizado
Antigamente a informação era lenta e hoje, na contramão disso (na
maioria das vezes), ela é abrangente, barata, instantânea e confiável, apesar do
fenômeno da Internet nem sempre gerir fidedignidade. Apesar desse acesso
facilitado, o que se verifica, de fato, é o surgimento de uma espécie de “pandemia
das informações” (FISCHER, 2006, p.280), de modo que se prolifera a informação,
resultando, com isso, o caos. A questão fundamental é como selecionar tanta
informação?
Com isso, Fischer faz duas análises falando da presença da leitura no
mundo contemporâneo no âmbito social e no âmbito individual. Falar sobre a
biblioteca moderna seria a síntese da interferência direta da globalização na vida do
indivíduo, pelo fato dela ser formada por “nichos comunitários” (FISCHER, 2006,
p.281), já que há, nas livrarias, uma gama interminável de gêneros e tipos de texto.
Nesses nichos é possível encontrar manuais de auto-ajuda, biografias, esporte,
esoterismo, turismo, entre outros, tal qual a idéia que abarca a tese de que
quantidade sobrepõe a noção de qualidade.
Essa tendência de modernização do espaço “livraria”, segundo Fischer,
está associada, analogicamente, ao espaço da igreja ocupado no passado, uma vez
que a mesma era considerada como um lugar de refúgio e conforto, tanto quanto a
livraria moderna, também. Pensando nas livrarias que existem hoje, é comum
observarmos que as mesmas disponibilizam espaços para o leitor manusear o livro,
102
além de estabelecer contato mais próximo ao leitor com atitudes simpáticas e
persuasivas à compra do produto “livro”.
No âmbito individual, está presente a idéia de interferência do computador
pessoal, que permite ao indivíduo ter a livraria inteira em total disponibilidade.
Apesar disso, embora haja a impressão de uma possibilidade de leitura mais
próxima das pessoas, há uma contradição porque, de acordo com as palavras de
Fischer, haverá cada vez mais um número menor de pessoas que irão se interessar
pela chamada “leitura cultural” (FISCHER, 2006, p. 282):A atual dinâmica da
sociedade aponta para o final da diversidade étnica e lingüística e para o início da
monocultura global, não só na leitura, mas também na maioria dos aspectos da vida
cotidiana”.
Tal atitude se justificaria em função da globalização, já que a mesma
apontaria para o fim da diversidade cultural, haja vista que a tendência seria a
homogeneização. A impressão é que estamos lendo o tempo todo, mas uma leitura
utilitária.
Daí se explica a nova tendência da Lingüística ao trabalhar a idéia do
abandono do texto literário, concepção esta ratificada nos livros didáticos de
Português. Algumas concepções dessa nova Lingüística não enquadram o texto
literário como objeto de análise no estudo da língua materna por considerarem-no
distante das situações reais do cotidiano. Situações estas, que o texto utilitário
abrange positivamente, vide o inchaço deste utilitarismo em provas de vestibulares.
Vestibular UERJ 2006 (1º exame de qualificação)
COM BASE NAS PROPAGANDAS ABAIXO, RESPONDA A QUESTÃO DE
NÚMERO 14:
103
In: DE NICOLA, José. Língua, literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1998.)
QUESTÃO 14
As seqüências textuais e as imagens das propagandas destacam a
violência característica do dia-a-dia da prática jornalística.
Dos recursos das propagandas abaixo apresentados, aquele que não está
corretamente justificado é:
(A) mensagem de denúncia de abusos motiva o armamento contra a
opressão
(B) informação estatística sobre vítimas revela a dificuldade de trabalho
seguro
(C) lápis quebrado com sangue indica a morte de profissionais da
imprensa
(D) pássaro de jornal com asa rasgada alude à prisão de jornalistas
(UNIVERSIDADE, UERJ, 2006)
ENEM 2006
Questão 02
As linhas nas duas figuras geram um efeito que se associa ao seguinte
ditado popular:
A) Os últimos serão os primeiros.
B) Os opostos se atraem.
104
C) Quem espera sempre alcança.
D) As aparências enganam.
E) Quanto maior a altura, maior o tombo.
(BRASIL, 2006)
Vestibular UFF 2008 (1ª ETAPA)
QUESTÃO 29
Hélio Pellegrino, em sua crônica “Babilônia, espelho nosso” critica as
condições atuais de vida nas grandes cidades.
Assinale, dentre as afirmativas extraídas dessa crônica, a que enfatiza, na
expressão grifada, um comportamento generalizado do consumidor, como
padrão pretendido no texto publicitário acima.
(A) Aos tapas, os tapes nos conduzem como um rebanho de carneiros.
(B) Em verdade, nossa cidade nos revela: ela é um gigantesco retrato ou
monumento da loucura em cujo convés nos embarcamos.
(C) Somos uma cidade de estilhaços humanos, em violenta diáspora.
(D) Surdos, mudos, cegos, apartados de tudo, nos imolamos à filosofia do
apartamento: imobiliário e metafísico.
(E) As pontas das britadeiras britam e brocam o espaço onde deveríamos
existir.
(UNIVERSIDADE, UFF, 2008).
A tendência de migrar para essa proposta da diversidade de gêneros
uma herança da modernidade faz com que muitos professores de língua materna
ou de literatura acreditem no discurso ouvido com muita freqüência de que o texto
literário não é utilitário. Se esse texto não é considerado utilitário por esse padrão
105
contemporâneo, conseqüentemente não deveria estar inserido no mundo
globalizado.
Essa idéia de leitura cultural ou de “cultura integral”, conforme palavras
de Bechara (2003) se associa diretamente ao surgimento da chamada cultura de
massa. Carvalho (1987) defende a idéia de que a massificação da cultura, no Brasil,
surgiu, no século XIX, com o advento do Romantismo, haja vista que houve, naquele
período, uma popularização da literatura.
No século XIX, com a Revolução Industrial, determina-se o surgimento da
imprensa como o momento em que houve a possibilidade da multiplicação de textos
impressos. Inegavelmente que houve, com a utilização dos recursos maquinários,
em detrimento da mera cópia que era feita individualmente, a massificação da
compra do objeto livro, o que reitera a idéia de consumo e sua verve popular no
Romantismo.
O século XIX proporciona a multiplicação dos textos literários da época e,
como conseqüência disso, mais leitores surgem também. Os escritores daquela
época não podem ser comparados com o escritor da atualidade pelo fato deste,
talvez por estar imerso em um sistema que o faça criar visando ao lucro, almejar
ganhos e status em função da difusão da sua obra. Esse recurso utilitário não existe
no século XIX por alguns motivos a serem discutidos a seguir.
Pelo fato de a literatura estar praticamente iniciando no Brasil (literatura
compreendida no seu sentido estrito), podemos compreender, inclusive, que o texto
literário se confunde com a própria marca de nacionalidade. Os escritores possuíam
uma vaidade grande em discutir sobre um painel da formação desta nacionalidade, o
que, de certo modo, era propagado aos leitores da época como uma forma de ideal
de vida pública através da erudição. Alguns escritores, como José de Alencar, têm
106
diversos discursos, por exemplo, na área política, ideológica, sendo responsável,
inclusive, pelo ideal de formação de uma “língua brasileira”, conforme denunciam
seus romances indianistas.
A função utilitária, portanto, dos textos do século XIX, atendia à
necessidade de formação de um painel social em vistas da intelectualização da
então nação que se formara, ainda que atendesse a uma camada mais popular da
sociedade.
O utilitarismo, pois, tinha função definida e não se adequava a qualquer
possibilidade de ostentação social. Atualmente, escritores como Dan Brown e J.K.
Rowling (autores dos best sellers “O Código da Vinci” e “Harry Potter”) solidificam os
seus nomes no mercado editorial e configuram as nuances da globalização através
de uma prática de leitura moderna, que, relacionada à máxima do livro como um
objeto proporcionador de prazer, se traduz em números avassaladores de venda em
todo o mundo.
Se o comportamento de alguns lingüistas é determinado pela prática do
utilitarismo, o texto literário, efetivamente, encontrar-se-á distante das prateleiras das
livrarias. Ao estabelecer que o texto literário não deve ser o texto material a ser
preservado dentro de uma comunidade, o lingüista embasado por uma concepção
de que o texto literário não articula situações do real pode se ver em situações
contraditórias, sobretudo se houver o questionamento: o que seria o real?
Ao analisarmos, por exemplo, uma receita culinária no nosso dia-a-dia,
sem dúvida que estaremos nos inserindo em um mundo real, no entanto, ao ler uma
receita culinária em um livro didático de Português, não haveria nenhuma relação
com o real, já que, tal situação, é uma simulação do fato real.
107
O ensaio de Llosa
17
(2004) destrói o argumento de que o texto literário não
tem qualquer comprometimento com o real, uma vez que a literatura trata de outras
tantas situações muito mais reais do que qualquer outro texto pode supor. São dele
as palavras (p. 19):
Que diferença existe, então, entre uma ficção e uma reportagem de jornal,
ou um livro de história? Não são todos compostos de palavras? Por acaso
não encarcera o tempo, no tempo artificial do relato, essa torrente sem
ribeiras? Para o jornalismo ou para a história a verdade depende da
comparação entre o escrito e oralidade que o inspira. Quanto mais
proximidade, mais verdade, e quanto mais distância, mais mentira.
O fato de o ser humano estar à procura do Belo pode ser considerado
como uma justificativa plausível para o fato de a literatura estar comprometida com o
real. Essa noção de Belo ainda que este esteja em constante modificação porque
ele também é construído pelo social se contrapõe à literatura que se presta ao
utilitarismo.
Podemos ilustrar essa idéia do Belo relacionado à situação real
através de um recorte de uma sentença proferida pelo juiz Ronaldo Tovani (2008),
substituto da Comarca de Varginha, ex-Promotor de Justiça, que concedeu liberdade
provisória a Alceu da Costa (vulgo "Rolinha"), preso em flagrante por ter furtado
duas galinhas e ter perguntado ao delegado "desde quando furto é crime neste
Brasil de bandidos?". O magistrado lavrou então sua sentença em versos, e afirmou,
antes, que lei no País é para pobre, preto e p..., enquanto mantém impunes os
"charmosos" autores das fraudes do antigo INAMPS. Na íntegra, abaixo, a sábia
decisão:
No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cachoeira
Terra de boa gente
17
Vargas Llosa defende ardorosamente a ficção; para ele, somente o exercício da literatura permite ao homem a
liberdade de criar ou transformar uma realidade, de ser diferente do que é, de elaborar uma verdade em suas
mentiras.
108
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente
O jovem Alceu da Costa
Conhecido por “Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
Apanhando um saco plástico
Que ali mesmo encontrou
O agente muito esperto
Escondeu o que furtou
Deixando o local do crime
Da maneira como entrou.
O senhor Gabriel Osório
Homem de muito tato
Notando que havia sido
A vítima do grave ato
Procurou a autoridade
Para relatar-lhe o fato.
Ante a notícia do crime
A polícia diligente
Tomou as dores de Osório
E formou seu contingente
Um cabo e dois soldados
E quem sabe até um tenente.
Assim é que o aparato
Da Polícia Militar
Atendendo a ordem expressa
Do Delegado titular
Não pensou em outra coisa
Senão em capturar.
E depois de algum trabalho
O larápio foi encontrado
Estava no “bar do Pedrinho"
Quando foi capturado
Não esboçou reação
Sendo conduzido então
À frente do Delegado.
Perguntado pelo furto
Que havia cometido
Respondeu Alceu da Costa
Bastante extrovertido
Desde quando furto é crime
Neste Brasil de bandidos?
Ante tão forte argumento
Calou-se o delegado
Mas por dever do seu cargo
O flagrante foi lavrado
Recolhendo à cadeia
Aquele pobre coitado.
109
E hoje passado um mês
De ocorrida a prisão
Chega-me às mãos o inquérito
Que me parte o coração
Solto ou deixo preso
Esse mísero ladrão?
Soltá-lo é decisão
Que a nossa lei refuta
Pois todos sabem que a lei
É prá pobre, preto e puta...
Por isso peço a Deus
Que norteie minha conduta.
É muito justa a lição
Do pai destas Alterosas.
Não deve ficar na prisão
Quem furtou duas penosas,
Se lá também não estão presos
Pessoas bem mais charmosas,
Como das fraudes do governo que até hoje rola.
Afinal não é tão grave
Aquilo que Alceu fez
Pois nunca foi do governo
Nem seqüestrou o Martinez
E muito menos do gás
Participou alguma vez.
Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.
Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília.
Se recursos como este, verificados acima, não são comuns no nosso dia-
a-dia, mas são capazes de nos proporcionar a sensação de bem-estar, surge, pois,
o questionamento: por que não investir neste tipo de texto? Talvez o problema esteja
em compreender o fenômeno da literatura utilitária como conseqüência da
globalização por que todo o mundo passa. A formação de monopólios em torno das
editoras um fenômeno mundial também se mostra como um forte adversário
das pretensões de divulgação do texto literário, uma vez que o conglomerado
110
formado por estas editoras passam a ditar os rumos do que será e do que não será
publicado. Sobre o papel do editor, salienta Fischer (2006, p.288) que
os editores, guiados pela economia, avaliam a proposta de um livro de
acordo com seu potencial de circulação: a falta de financiamento autoral ou
institucional requer que os lotes de impressão revertam lucros garantidos.
Como a lucratividade por título é estimada para um período de apenas um
ou dois anos, hoje o próprio livro passou para a lista das efemérides.
A indústria voltada ao mercado editorial de livros didáticos mereceu
destaque da grande mídia brasileira depois de uma série de críticas feitas a algumas
coleções de diferentes áreas de conhecimento.
Ficou registrada a idéia de que a profusão do mercado de livro didático no
país ocorre em função da demanda sugerida pelo Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio, vinculado ao Ministério da Educação. No último
Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM), a editora
Moderna faturou algo em torno de R$ 50 milhões, com 7,6 milhões de exemplares
vendidos, de acordo com informações do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), responsável pela execução do programa (ÉPOCA, 2007).
Com isso, escrever livro didático parece ser um interessante filão
mercadológico. Naturalmente o fenômeno da profissionalização do autor do livro
didático gera uma série de polêmicas pelo fato de retratar diversas concepções
sobre a ética de se auferirem com o material educativo.
Ainda sobre este fenômeno de vendas, vejamos o que foi divulgado sobre
o novo livro de J.K. Rowling, citada anteriormente neste capítulo, em um jornal
carioca de grande circulação:
O feitiço continua
Harry Potter continua enchendo o cofrinho de JK Rowling. Depois de
ter colocado o ponto final no sétimo livro da saga e jurar que dali não saía
mais nada, a autora voltou ao universo do bruxinho. Num cartão-postal, ela
narrou em 800 palavras uma aventura de moto de James Potter, pai de
Harry, com o amigo Sirius Black. O carrão foi leiloado por 25 mil libras
(cerca de R$ 100 mil) e a história, publicada pela editora Waterstone num
111
livro de contos intitulado “What’s Your Story?” (Qual a sua história?), que
reúne textos de outros 12 autores.
Bastou ter a grife Potter para que a obra chegasse às livrarias na
semana passada e logo se esgotasse. Foram vendidas 10 mil cópias só no
primeiro dia. No Brasil, a editora Rocco, que detém os direitos de publicação
do bruxo, ainda não se movimentou para negociar essa nova história. “Os
fãs do Brasil estão ansiosos, espero que publiquem aqui”, afirma a fã Frini
Georgakopoulos. Enquanto a versão não sai, o jeito é recorrer à Internet,
que já transborda com o texto original em inglês (DOBBS, 2008).
As editoras têm justamente esta proposta: selecionar os livros que
necessariamente darão lucro. E o escritor acaba tendo que se moldar a isso também
porque sabe que não encontrará espaço para a sua publicação, se não obedecer a
determinados critérios exigidos pela própria editora. A profissionalização do escritor
tornou-se uma realidade e, seguindo a orientação do mercado, no que tange ao livro
didático, verificamos uma série de professores de língua portuguesa que trilham pelo
caminho da publicação em massa.
3.2 O Lugar da Poesia como Atividade Criativa e Criadora a Serviço da Oralidade
...as culturas transcorrem e se sucedem umas às outras, enquanto a
linguagem, apesar de carregar consigo as cicatrizes das diferentes
hecatombes culturais, econômicas e históricas das quais é testemunha e
vítima, continua ali como depósito da memória coletiva e fonte viva da vida
e da poética futura (BORDELOIS, 2005, p. 83).
As culturas transcorrem e as línguas, como objeto empírico-cultural, do
modo como se apresentam no excerto acima, carregam consigo marcas do tempo,
como as cicatrizes promovidas por embates diversos. A língua, portanto, segue junto
das transformações que ocorrem e, ao mesmo tempo, abarcam as transformações
no seu léxico, sobretudo porque todo léxico tem uma história que se pretende
mostrar.
E essas transformações, no texto poético, são verificadas a partir do
instante em que as palavras seguem novas orientações, sejam elas boas ou ruins.
112
Como cada palavra ou cada expressão tem uma história, posicionamo-las como
frutos de uma hecatombe cultural. As expressões “Inês é morta”, “pôr tudo em pratos
limpos”, por exemplo, têm uma história a ser contada e que se mantiveram vivas até
os dias de hoje.
O que Bordelois (2005) afirma é que esta possibilidade de transformação
se assemelha à “fonte viva da vida”. Tal situação pode ser valiosa para o aluno,
sobretudo na compreensão das chamadas “figuras de linguagem”, em que o estudo
da metáfora, por exemplo, é feita de modo bem árido.
Conforme Mattoso Câmara (1985), toda linguagem tem de ser bela, seja lá
do que ela trate. Segundo as tantas definições do “Dicionário Aurélio” (FERREIRA,
2001, p.372), atenta-se o fato da poesia ser “o entusiasmo criador”, e o poeta seria
aquele que “usa da arte de escrever em versos”.
Embora o termo “poesia” implique a idéia de criação, Bordelois afirma que
ela tem o poder de ser o bem mais perigoso da humanidade porque, às vezes, tem o
seu nome posto em vão pela boca de “falsos poetas”. De acordo com a autora
(BORDELOIS, 2005, p. 88)
É preciso dizer que o caráter inatingível da poesia é um de seus poderes,
mas também uma de suas maiores fraquezas, porque em seu nome, isto é,
em seu falsificado nome, produzem-se enormes embustes e sacrilégios,
como o da produção de teorias ininteligíveis sobre ela, ou o da corrida pelos
prêmios oficiais, que muitas vezes laureia determinados escritores por
modas culturais, por suas preferências políticas ou sexuais, ou seja,
considerações que nada têm a ver com ela.
A crítica é direcionada àqueles que não verificam na poesia o local da
representação do Belo, como o texto que proporciona a sensação de prazer. A
autora registra que há uma espécie de preocupação direcionada ao suposto status
oferecido, atualmente, em ser um poeta, em lograr êxito neste ofício. O desprezo
que a crítica tem pelos verdadeiros poetas, que muita das vezes morrem sem ter tido
113
qualquer valorização, é o mesmo desprezo que cerca e impede a escuta da boa
linguagem.
A mediocridade que mapeia alguns textos faz com que não se consiga
enxergar o real sentido que a boa linguagem nos oferece. Talvez isso esteja
evidenciado aos olhos de um público comum, que se prende a modelos estéreis de
produção de arte e, nesse caso, incluímos a poesia como tal.
Lajolo (2001) nos indica caminhos para compreender o fenômeno da
produção literária atual, concentrando as suas idéias para o fato de que o que torna
a linguagem literária ou não seria a própria situação de uso da mesma, tal qual
podemos analisar no texto feito pelo magistrado, citado no início deste capítulo.
A referida autora considera que, graças ao fenômeno da globalização e
devido ao aumento de mercado, há literatura de todas identidades: homossexual, de
índios, negra, de autoria feminina, enfim, setores que, segundo ela, sempre
existiram, mas sempre considerados marginalizados por serem considerados
populares.
O que se discute, no entanto, não é simplesmente a questão de validar ou
não determinado segmento de texto literário, mas sim o tratamento que lhe é dado.
Indubitavelmente, a literatura do século XXI é marcada pela prática da
intertextualidade, o que acaba lhe conferindo, inclusive, respaldo junto a um novo
público-leitor que se forma.
É freqüente apontar-se como um dos fatores de intertextualidade a
referência explícita ou implícita a outros textos, tomados estes num sentido bem
amplo (orais, escritos, visuais artes plásticas, cinema , música, propaganda etc.)
Ao chamado “diálogo” entre textos dá-se o nome de intertextualidade.
114
Ao estar ligada ao “conhecimento de mundo”, que deve ser compartilhado,
ou seja, comum ao produtor e ao receptor de textos, a intertextualidade pressupõe
um universo cultural muito amplo e complexo, pois implica a identificação de
remissões a obras ou a textos mais ou menos conhecidos, além de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a função daquela citação ou alusão em
questão.
Silva (2005), em uma associação entre a arte e a palavra, nos afirma que
a relação entre textos pode suscitar uma série de novas interpretações. Segundo o
autor, a partir da fusão do poeta (alusão ao poema “Tabacaria”, de Fernando
Pessoa) e do pintor (Aguilar) podem ser expressas (p.120)
a consciência infeliz do homem moderno. Poeta moderno e pintor moderno
que parecem viver as ideologias do século XX. Poeta que vê o mundo com
a inteligência concreta de um homem dominado pela máquina. Pintor que
em sua arte mostra tendências concretistas através de uma arte
assimétrica. Jogo de fundo escuro com colorido e inconformado e ao
mesmo tempo angustiado. Fusão de manifestações artísticas. Fusão de
artistas. Intertextos. Interobras. Interpessoas. Cruzamento que retoma o
passado e ao mesmo tempo projeto o futuro. Junção do velho com o novo
em busca da criação de uma terceira margem. Saudade e esperança. E
assim caminha o conhecimento! E assim caminha a humanidade!
Partindo deste princípio, a busca pela criação da palavra nova também
condutora da poesia pode estar contida na prática da intertextualidade como
processo de criação. No ensaio Intertextualidade e intertextualização; resgate e
projeção: o leitor é ”o cara”, Silva (2005) redimensiona o termo “intertextualidade”
para “intertextualização” (segundo ele, tal processo é mais “dinâmico e projetivo”) e
confere, com isso, uma eficiente prática de produção de leitura. Segundo as suas
palavras:
acredito que a intertextualização deve ser uma ação produtiva de leitura
incentivada, desde que haja plausibilidade no estabelecimento das relações
entre textos por parte dos leitor/aluno-leitor. Além do mais, esse movimento
ativo de intertextualização investe na valorização do conhecimento do
aluno, que parece se entusiasmar com o trabalho e dedicar-se com mais
afinco à pesquisa, já que está, nas suas mãos, a produção de relações
115
intertextuais. O leitor/aluno-leitor passa a assumir uma espécie de
responsabilidade com o que produz. E defende as relações por ele
estabelecidas. E o professor, se aberto e atento, pode aprender com o
aprendiz e alargar seus horizontes de conhecimentos.
Vale ressaltar que esses horizontes de conhecimentos promovidos pelas
atividades intertextuais podem ser resumidos no pleno domínio do saber expressivo,
conforme a teoria coseriana, que expusemos anteriormente.
A poesia deveria, portanto, além de alargar horizontes de conhecimento,
também se aproximar daquilo que seria a felicidade, não necessariamente do que
iria trazer o bem, mas, como tem o poder de trazer o outro para as nossas vidas, faz
com que nós nos identifiquemos, de uma forma ou de outra, com ela. Se não trouxer
a felicidade, pelo menos trará o contentamento de que alguém já sorveu o mesmo
bem-estar.
Ao se referir ao uso da palavra para criar, devemos entender poesia pelo
seu sentido amplo. Nesse sentido, podemos entender que encontraremos a poesia e
seu uso criativo em qualquer gênero: ficção, teatro, permeando todos os estilos.
Com isso, o lugar da poesia não se restringe apenas ao estudo do gênero “poesia”.
Tal processo criativo da poesia é independente de um certo período, isso
porque a leitura, por exemplo, de poesias antigas proporciona a sensação de prazer
nos leitores, sem qualquer relação com um público específico ou época específicos.
É uma mostra de um trabalho da linguagem com o objetivo dela mesma, ou seja,
explorar as suas próprias propriedades. Ao ler uma poesia e dela abstrair a
sensação de prazer, verificamos que, de fato, é a linguagem que sobressai.
A leitura dos textos literários, com isso, encontra seu ancoradouro em uma
concepção artística, tal qual sugere Kramer (1999, p. 47):
Defendo a leitura da literatura, da poesia, de textos que têm dimensão
artística. Não é o acúmulo de informação sobre clássicos, sobre gêneros ou
sobre estilos, escolas ou correntes literárias que torna a leitura uma
116
experiência, mas sim o modo de realização dessa leitura: se é capaz de
engendrar uma reflexão para além do seu momento em que acontece; se é
capaz de ajudar a compreender a história vivida antes e sistematizada ou
contada nos livros.
Discute-se, portanto, a sensação de prazer que a poesia permite aos seus
leitores. Atualmente, verifica-se que essa sensação tornou-se algo ilusório pelo fato
de a transmissão da poesia não estar respeitando o critério da emoção. O homem
indubitavelmente procura o Belo, o que lhe causa prazer, por essa razão a poesia
precisaria nortear esse caminho para que esse objetivo do homem fosse alcançado.
O ingrediente da emoção depende da troca, da interação entre os
partícipes da poesia. A forma como a poesia vai chegar até o outro é um assunto a
ser relevado por quem se propõe a trabalhar com tal texto, isso porque a poesia, em
primeiro lugar, foi feita para ser ouvida, e, por isso, devem-se considerar todas as
suas propriedades inerentes à oralidade. Ela não pode ser enquadrada numa
receita, como a escola faz e os livros didáticos, também, com o propósito de obrigar
o aluno a gostar de poesia desta forma e de sentir prazer por ela.
Os “falsos poetas” (facilmente confundidos com “falsos profetas”)
disseminam uma poesia que efetivamente não condiz com a proposta da busca do
Belo. Eis um exemplo de um texto que se enquadra na categoria de poesia em um
livro didático de português
18
:
Desejos
Só roupa usada, gasta,
já batida!
Que diabo! Que vida!
Queria um jeans
ou uma minissaia
de etiqueta transada,
um tênis americano,
uma camiseta ecológica
com Chico Mendes, folhas e flores,
e complementos de butique.
18
O texto, de autoria de Elias José, foi retirado do artigo do professor Jayro José Xavier, intitulado “Mais poesia
em sala de aula”, publicado em 1999 (XAVIER, 1999).
117
Só que, abro a boca pra pedir,
a casa ferve e lá vem sermão.
Minha mãe diz que tenho muito
e não dou valor,
que meu guarda-roupa está um caos.
Meu pai diz que só dá vermelho
na conta bancária
antes do fim do mês.
Por que não nasci rica?
Por que não nasci filha de dona de butique?
Por que não me aparece um príncipe,
lindo e rico,
dono do petróleo nas Arábias?
Este exemplo é apenas uma breve amostra do tratamento dado à poesia
nos materiais didáticos de Língua Portuguesa. Absolutamente nada nesses versos
nos fazem remeter a idéia do Belo, já que as palavras, todas, sem exceção, são
empregadas em sentido referencial. A premissa de que se está falando com um
determinado público-alvo, neste caso, o adolescente faz com que se verifique que o
“poeta” nivele a sua competência lexical ao nível do seu leitor, de modo que nada
neste texto se assemelha à poesia.
Um dos aspectos a serem observados pela apreensão da poesia nas
nossas vidas, pode ser confirmado a partir da prática que era exercida antigamente
quando do uso desses textos. Naquela época, havia uma preocupação com a
maneira pela qual a poesia seria declamada: mais que decorar um texto poético, era
preciso exercitar algumas propriedades específicas da própria oralidade, como
entonação, timbre, melodia, entre outros.
Para tanto, o recurso da memorização era fundamental. Hoje, as
atividades de língua materna não exploram esse tipo de trabalho por serem
consideradas como irrelevantes ao conhecimento da língua. Os próprios materiais
didáticos substituem as poesias por canções (gênero indicado pelos PCN de Língua
Portuguesa), em uma tentativa de burlar a possibilidade de trabalho com a
118
linguagem por excelência, afastando as crianças e os adolescentes de um contato
com um texto que, por si só, se justifica como Belo.
O fato de, atualmente, o ser humano estar confiando a sua memória à
máquina é um aspecto a ser visto como desestimulador do trabalho com a poesia.
Há uma crença infundada de que a máquina poderia vir a substituir o homem, e isso,
para muitos, tornou-se uma verdade a tal ponto que qualquer trabalho que vise à
criatividade humana parece esbarrar na impossibilidade de resultados práticos.
Talvez por esses e tantos outros motivos que Drummond constituía a escola como o
“elemento corrosivo do instinto poético da infância”, pelo fato da mesma não permitir
que a poesia mereça o devido valor que tem.
A poesia tem, portanto, o poder de tornar as pessoas menos sós, talvez
pela sua possibilidade de transformação nas pessoas. Se a escola não quer fazer
chegar aos alunos a poesia, seja por omissão, seja por desconhecimento, que pelo
menos ela não crie controle aversivo para que haja possibilidade, em um momento
da vida do indivíduo, dele alcançar esse conhecimento.
Se a escola não apresentar a poesia como pretexto para análises
metalingüísticas ou como subsídio para a compreensão de determinada escola
literária, há ainda um resquício de possibilidade de inserção da poesia dentro da sua
concepção artística e valorosa em relação ao trabalho da oralidade na oralidade. É
inconcebível não crer que o aluno não goste de poesia, uma vez que ela foi feita
para despertar o prazer do mesmo. Muitas vezes, esse aluno ignora a poesia pelo
fato de não terem mostrado os verdadeiros caminhos que o levariam a gostar desse
tipo de texto, e esses caminhos precisam ser revistos pelo professor de língua
materna.
119
Cabe ao professor, então, orientar o aluno no sentido de que poesia não
se restringe à idéia de um gênero literário. A alegria que a linguagem pode oferecer
a esse aluno pode estar veiculada, sob forma de poesia como processo de
criatividade humana, em um trocadilho inteligente feito em um anúncio publicitário,
em uma propaganda ou até mesmo em uma conversa, que podem ser considerados
um ato poético, revelando, pois, uma contação de histórias prática oral que
atravessa gerações.
3.3 Os Conflitos da Prática da Oralidade com as Crianças
Sabemos que estamos imersos em uma cultura que privilegia a imagem, o
que minimiza a formação do logos fantástico nas pessoas, sobretudo, nas crianças,
que se encontram presas ao viés da televisão, tal como uma prática constante e
diária. Sartori (2001, p.15) afirma que a televisão surge como um mecanismo que
rompe com a proposta de se expressar por palavras pelo fato de
[...] na televisão o fato de ver predomina sobre o falar, no sentido que a voz
ao vivo, ou de um locutor, é secundária, pois está em função da imagem e
comenta a imagem. É por causa disso que o telespectador passa a ser mais
um animal vidente do que um animal simbólico.
Por isso, a televisão surge como uma tecnologia que deturpa a
capacidade visual do homem em relação ao mundo em que vive, haja vista que até
o seu surgimento, em meados do século XX, havia a possibilidade de se “entender o
mundo por uma visão microscópica ou macroscópica dos fatos”, segundo Sartori
(2001, p.19).
A televisão, portanto, trabalha com um simulacro da realidade, de modo
que faz as pessoas observarem “imagens imaginárias” (SARTORI, 2001, p.21), ou
120
seja, algo que efetivamente pouco contribui para a ampliação do conhecimento de
mundo das pessoas, de modo que a mesma simplifica demais qualquer
possibilidade de compreensão dos fatos.
Hobsbawm (1995) salienta que o ápice do processo tecnológico, através
do surgimento de uma revolucionária indústria de diversão popular, está intimamente
relacionado ao fascismo do consumo por parte do indivíduo, de modo que da
década de 60 em diante, a vida privada passou a ser invadida pela necessidade de
enquadrar-se em determinado padrão preestabelecido pelo mercado, como se
verifica nesta passagem (p.195):
É difícil reconhecer as inovações da cultura do rádio, pois muito daquilo que
ele iniciou tornou-se parte da vida diária o comentário esportivo, o
noticiário, o programa de entrevistas com celebridades, a novela, e também
todos os tipos de seriado. A mais profunda mudança que ele trouxe foi
simultaneamente privatizar e estruturar a vida de acordo com um horário
rigoroso, que daí em diante governou não apenas a esfera do trabalho, mas
a do lazer.
A sociedade passou, então, a ser dominada por uma espécie de
paradigma de inclusão, de modo que ficou restrita a modelos dogmatizados,
sobretudo, pela imagem, fazendo com que muitos se tornassem reféns de seu
encantamento.
E as crianças se deixam seduzir por essa tecnologia sem que haja
qualquer mobilização, sobretudo porque a televisão se constitui na primeira escola
(“escola divertida que precede a escola enfadonha”, SARTORI, 2001, p.24) para
elas, difundindo informações pasteurizadas.
O que se discute, portanto, é de que maneira seria possível fazer com que
essas crianças pudessem se desvincular dessa prática através da leitura?
Principalmente pelo fato delas não possuírem ainda a habilidade para tal prática.
121
Como proceder com as crianças mediante esse obstáculo: apresentar a leitura para
um sujeito ainda não-leitor?
A criança parece reconhecer que o contato com o objeto livro lhe confere
poder, isso porque o livro legitima sabedoria a quem o possui. E a criança em fase
pré-escolar, por não possuir nem a leitura nem a escrita legitimadas em seu
conhecimento, confere à fala a possibilidade de entendimento e inserção no mundo.
Contar histórias é, portanto, dimensionar para a criança a palavra em um âmbito
mais lúdico, pois o poder atribuído às palavras nas comunidades orais, para as quais
a palavra é conferida, é depositária dessa concepção mais mágica.
Assim, é bastante comum as crianças atentarem, nas sessões de
contação de histórias, para aspectos como o ritmo, a melodia, a entonação, as
assonâncias que, quando entrelaçados, auxiliam no processo de memorização do
texto literário por parte dos pequenos. Segundo Ong (1998) é ouvindo, assimilando e
repetindo o que ouvem, que os participantes de culturas orais apreendem o domínio
das fórmulas padronizadas do discurso poético e se tornam aptos a reproduzi-las, e
até recombiná-las no reconto.
O mediador na leitura, também considerado um “contador” de histórias,
merece atenção especial porque dele podem surgir ricos patamares de leitura.
Bajard (2002, p. 90) nos salienta que a figura desse contador, por ele intitulada de
“mediador”, pode reunir várias práticas de leitura que a tradição escolar
freqüentemente desassocia, tais como a recitação de um texto sabido de cor, a
dramatização de um texto, entre outros. Segundo ele, “a didática da transmissão do
texto pela voz ainda está para ser construída”, tal como se fosse um desafio a ser
rompido pelo professor de língua materna.
122
O contar histórias adquire, portanto, no contato da leitura com as crianças,
a possibilidade de atrair a criança para a aprendizagem da escrita. Ler histórias para
as crianças é habilitá-las ao uso da língua oral culta (ou exemplar) que tem por
modelo a língua escrita. Bajard (2002, p. 98) elucida essa questão, preocupando-se
não apenas com o reducionismo da transposição de letras em elementos sonoros,
mas em conferir objetivos nas atividades de contação de histórias.
Contar histórias é um legado da tradição oral. Transmitir vocalmente os
textos é herança de uma sociedade na qual letrados e livros são raros.
Contudo, ainda que esses usos sociais sejam conectados ao livro numa
cultura de escrita, eles não necessitam da instalação de um acervo
considerável de livros. A escuta de histórias não é necessariamente um
meio de aproximação do livro. Para que essa apropriação aconteça, é
preciso problematizá-la e transformá-la em objetivo.
Convém ressaltar que tal aproximação com o livro é algo objetivado no
trabalho de leitura com as crianças, embora se saiba que tal contato seja mais
evidenciado com as de, por exemplo, seis a dez anos de idade. Parte dos objetivos
do trabalho diz respeito ao que será lido para as crianças. Daí surgem várias
questões, como o que, necessariamente, privilegiar nas sessões de histórias? O
texto literário, então, redimensiona a sua importância nas atividades junto aos
pequenos em fase pré-escolar, já que lendas, parlendas, acalantos, contos de fadas
e contos maravilhosos tornam-se referências de leitura, sem que haja vínculo com
práticas que orientem na aprendizagem da escrita.
Com isso, objetivam-se atividades em que a máxima “para aprender a ler
é preciso ler” se confirma, uma vez que a suposta falta de identificação do ato de ler
por parte do adulto leva a criança a não se interessar pela leitura, mesmo quando
deseja aprender a ler.
Bajard (2002) salienta com pertinência a questão da oralidade ao
contrapor as expressões “leitura em voz alta” de “leitura silenciosa” (p.85), de modo
123
a criticar tais nomenclaturas e apontar algumas perspectivas, seja através de Roger
Chatier e o termo “leitura para o outro”, seja através de Alberto Manguel com o termo
“leitura ouvida”. No entanto, Bajard (2002 apud ZUMTHOR, 2000, p.81) nos aponta,
através de alguns critérios relacionados abaixo, como podemos distinguir “leitura” de
“transmissão vocal do texto escrito”, o que pode explicar sucintamente como as
atividades propostas nos PCN podem sugerir a transmissão vocal do texto escrito e
não precisamente o trabalho efetivo com a oralidade.
Quadro 5 Quadro comparativo da leitura e da transmissão vocal
PLANOS LEITURA TRANSMISSÃO VOCAL
COMUNICAÇÃO Implica uma instância única
diante do texto: um receptor
separado do corpo do outro,
“reduzido à solidão”.
O corpo de um mediador se
interpõe entre um texto e o
receptor, instaurando-se “um
ato único de participação com
copresença”.
MATÉRIA TEXTUAL Texto gráfico, disposto em um
espaço com unidades, as
palavras distintas e
concatenadas em uma linha.
Texto sonoro, com palavras
encaixadas, organizações em
seqüência.
LINGUAGENS Opera sobre a língua e às
vezes sobre uma outra
linguagem verbal de
acompanhamento, a imagem.
Opera sobre a língua e várias
linguagens de
acompanhamento, tais como
gesto, olhar, espaço, figurino.
FUNCIONAMENTO DO TEXTO Enunciação contida no texto: o
sistema de dêiticos funciona de
maneira determinada na leitura,
de modo que o “eu” do texto
escrito, por exemplo, tem como
referência uma instância
precisa, seja personagem, seja
narrador.
Enunciação se superpõe à
enunciação do texto: o sistema
de dêiticos funciona na
transmissão do texto de uma
maneira distinta: o mesmo “eu”
refere-se à pessoa que profere
a palavra.
ESTÉTICO Prática literária Prática que comporta um
determinado grau de
representação, portanto, de
teatralidade.
IMPLICAÇÃO PESSOAL Solitário, diante do texto, o
leitor pode, em seu foro íntimo,
sem testemunhas, identificar-se
ou recusar a identificação com
os personagens.
O “transmissor” mobiliza o seu
próprio corpo através da voz,
levando o ouvinte a reconhecer
e a ocupar “um espaço de
ficção” assim criado.
Extraído de: Bajard (2002 apud ZUMTHOR, 2000, p.86 87).
124
É importante ressaltar que as atividades de transmissão vocal são
pertinentes na educação infantil pelo fato de possibilitarem novos e inúmeros
recursos de conhecimento de mundo pelo olhar de um mediador, sobretudo na
prática de contação de histórias.
No próximo tópico desse capítulo, trataremos sobre o ato de contar
histórias e sobre o papel exercido por seus contadores.
3.4 A Arte de Contar Histórias: Uma Prática Histórica
Durante a atividade com o livro “História de amor”, uma criança nos
perguntou o que era traição, já que no desenrolar da narrativa é sugerida a idéia de
traição de um personagem pelo outro. A história serviu de elo para o entendimento
daquela palavra até então desconhecida por aquela criança, que, ao unir outras
e tantas histórias, nota perspectivas que o adulto simplesmente ignora.
Para responder à criança o que era “traição”, tomamos a idéia judaico-
cristã na figura de Judas Iscariotes, que traiu Jesus Cristo por dinheiro. Ou seja,
vinculamos o significado de uma palavra a uma narrativa. Ao reler, muitos anos
depois, a Bíblia do ponto de vista literário, é que percebi que o significado de traição,
no livro sagrado, também é remetido a outro discípulo: Pedro, que traiu Cristo não
por dinheiro, mas por medo. Tudo isso confirma a tese de que assim são as
narrativas: múltiplas, inesgotáveis, uma vez que podemos ler as mesmas histórias
sob diferentes ângulos.
E esses diferentes modos de ler o mundo estão, de certa forma,
relacionados aos diversos contextos culturais. Prieto (1999) nos indica que as
125
narrativas exercem funções primordiais em todos os credos e culturas, tal qual uma
forma de pensar o mundo. Diz ela (p.13):
Na antiga tradição oriental sufi (o sufismo é a tradição esotérica do
islamismo), a sabedoria se aloja nas histórias. Quando uma pessoa
enlouquecia, chamava-se um contador de histórias para curá-la. Histórias e
mais histórias eram narradas ao louco até ele recuperar a capacidade de
“pensar o mundo”.
Corroborar a idéia de que a sabedoria encontra-se enraizada nas histórias,
é possível associar esta concepção de Prieto ao que existe na Bíblia, já que Cristo,
nas vezes em que era provocado, procurava responder por meio de parábolas. Tais
textos proferiam uma gama de significados tão extensos ao longo do tempo que até
exploraram o contexto religioso.
As histórias, portanto, mantêm viva essa idéia de transformação e de cura.
Nas célebres “As mil e uma noites”
19
, as histórias contadas por Sherazade seduzem
o príncipe insano, de modo que ela uma bela jovem conduz a narrativa que se
prolonga até o instante de terminá-la sempre na melhor parte ao nascer do dia. Com
isso, e curioso de saber o final daquela narrativa, o príncipe poupa-lhe a vida.
Durante mil e uma noites, lentamente, o príncipe vai se tranqüilizando até
se declarar curado. O contar histórias, portanto, tem este poder mágico de
transformação, haja vista que também acentua a possibilidade de transmissão
cultural. As múltiplas possibilidades de contação de histórias também são um forte
instrumento de aprimoramento lingüístico, ainda que, quando pequenas, as crianças
venham acompanhar a prática de leitura através do olhar e do calor do outro.
É nessa simetria entre o prazer e o dever que a prática de contar histórias
favorece para as crianças o contato com um mundo de imaginação, que, conforme
19
Segundo Nelly Novaes Coelho (1991), “As mil e uma noites” tem sua origem heterogênea e exótica, uma vez
que existem na obra aspectos de contos fantásticos indianos, bem como de gentilismo, magia e demonologia
persa (p.20). Segundo a autora, só em princípios do século XIX, mais por interesses filológicos que literários, a
crítica erudita passou a se interessar pela coletânea, divulgada como Literatura Infantil.
126
palavras de Vygotsky (1999, p.138) “é um momento totalmente necessário,
inseparável, do pensamento realista”. Tal distanciamento desse pensamento realista
faz com que haja um detalhamento maior, mais profundo da própria realidade, e isso
pode ser perfeitamente realizado com as narrativas, como afirma o teórico referido
anteriormente ao dizer que
um afastamento do aspecto externo aparente da realidade dada
imediatamente na percepção primária possibilita processos cada vez mais
complexos, com a ajuda dos quais a cognição da realidade se complica e se
enriquece (VYGOTSKY, 1999, p.129).
Para as crianças, de um modo específico, o contato com as histórias pode
estar previsto em inúmeras situações temporais, tais como uma lembrança de uma
festa de aniversário. É importante ressaltar que, em épocas mais remotas, em festas
de aniversário era uma prática bastante comum as crianças proferirem algumas
palavras, tal qual uma espécie de discurso, como se fosse a sua própria história.
Sendo a mais antiga das artes, a prática de contar e ouvir histórias é
considerada como um prisma de conhecimento acumulado por gerações, que
transmitem suas crenças, seus mitos e seus valores a fim de serem preservados,
semelhante a um ato de amor. Contar e recontar seria uma maneira de prover de
sentimento uma história a ser sempre lembrada.
O ato de contar uma história é, sem dúvidas, uma atividade lúdica para as
crianças. Através de parlendas, trava-línguas ou acalantos, nota-se que a criança
centra o seu olhar fascinado na performance do adulto, mesmo porque este
manifesta total liberdade com o texto e abre espaços, em sentido amplo, para a sua
voz. A graça contida na manifestação dos ritmos, dos tons e da respiração própria
de quem narra é um estimulante para a criança sorver toda aquela magia contida na
narrativa, de modo a transformar a história em um jogo.
127
Prieto (1999, p.32) defende a idéia de que caberia ao professor ter
consciência de que o seu imaginário toca o dos alunos, sendo que seria preciso ter
em mente a subjetividade dos momentos em que as histórias são contadas para
entrelaçar as visões de mundo distintas. Segundo ela:
Ensinar a uma criança as técnicas de narrativa para que ela produza uma
boa história, conduz a uma situação basicamente terapêutica, uma vez que
criar é um movimento de vida. Contudo, não se deve confundir a sala de
aula com o consultório, o espaço de criação com a ludoterapia. Criar e curar
são atividades afins, porém é preciso saber que o desafio de um professor é
diferente das questões de um terapeuta.
Huizinga (1999) discute se, de fato, o elemento lúdico deve estar contido
no jogo. Para ele, o lúdico está intimamente relacionado à idéia de prazer, de modo
a dizer que se alguém vence o seu oponente, estará instalado o aparato lúdico no
jogo. A poesia, como instrumento capaz de gerir prazer nas pessoas, também
apresenta uma associação, por toda a sua longa história, à concepção de jogo.
Segundo Huizinga (1999, p.160), “os dramaturgos gregos preparavam suas obras
dentro de um espírito de competição”, em que tanto a tragédia como a comédia se
apresentavam sob o signo da competição.
Esse jogo pode ser retratado pela figura de Sherazade, conforme vimos no
início deste tópico, pelo fato de, dentro da normatividade do jogo, a personagem de
“As mil e uma noites” procurar manter, através da prática de contar histórias, o
espírito competitivo em nome da sua própria vida, confirmando a idéia de que em um
jogo jamais se deve saber o final ou desfecho antes que este acabe, como exemplo
os jogos de azar e as competições esportivas. Contudo, não se deve esquecer o
papel fundamental das regras em um jogo, “e não há dúvida de que a desobediência
às regras implica a derrocada do mundo do jogo” (HUIZINGA, 1999, p. 14).
No entanto, muitas vezes, essa desobediência às regras é feita pela
criança no ato de contar histórias, talvez pelo fato dela querer saber de tudo o que
128
está envolvido na performance do adulto que lhe conta a história. A curiosidade é
um princípio comum às crianças, sobretudo quando elas são postas em desafio,
nesse caso específico, com a leitura, principalmente pelo fato do adulto representar
fielmente a história.
Zumthor (1993) defende a idéia de que quando alguém canta ou recita um
texto narrativo, seja um texto improvisado ou decorado, “sua voz por si só lhe
confere autoridade” (p.19). E para a criança que ainda não lê, é válida a sua idéia de
localizar a autoridade da narrativa naquele que lhe conta algo no âmbito escolar,
representado pela figura do professor e sentir-se exercitando a própria autoridade
de detentora de uma história para contar, ou seja, exercitando também a sua
autoria.
Não se trata, portanto, de vencer ou ser vencido. Para quem conta
histórias, não existe a máxima da traição. Ainda que seja um jogo, o contar histórias
envolve interpretação e a criação de novas imagens, e a criança, ainda uma tábula
rasa, ao ouvir e recontar as histórias faz com que os elementos da fabulação sejam
reiterados em suas experiências reais a fim de construir novos mundos.
129
4 UM TRABALHO EFETIVO DA ORALIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIA COM A
LEITURA COM CRIANÇAS
Nenhuma arte, realmente, consegue superar a vida, nem mesmo a
história. Qual o segredo, então? Nenhuma forma de arte deve competir com
a vida.
A única arte que estava diretamente ligada à vida era a dos primeiros
homens do mundo, contando suas histórias ao redor do fogo. A vida é
monstruosa, infinita, abrupta e pingente: uma obra de arte, comparada com
a vida, é rara, limitada, racional, fluida e forjada.
(Robert Louis Stevenson)
Neste capítulo discutiremos sobre um trabalho feito com crianças através
do texto literário. Para tanto, falaremos sobre o projeto “Coleção Flor de Papel” e
suas implicações na formação dos novos leitores a partir de atividades que tratem da
fruição literária associada ao seu papel social de formar novos indivíduos.
Se estamos procurando articular a possibilidade de uso do texto literário
como um efetivo instrumento da oralidade, veremos que a criança, ao criar uma
série de novas imagens, faz uso do texto literário e o articula como uma brincadeira
que, intuitivamente, favorece o seu embasamento tanto lingüístico quanto cultural.
E podemos encontrar a poesia em qualquer manifestação artística, desde
que ela se comprometa em articular a noção de beleza com quem dela usufruir. A
poesia que trata de uma configuração da imagem, diferente de uma ilustração fria,
meramente informativa, pode ser vista como um retrato de manifestação cultural.
130
Na verdade, o poeta é um criador de imagem, logo é mais conveniente
falar da proposta dos livros sem texto a partir de universo poético sem relacionar o
fato da obra não conter nenhuma palavra e não ser, por conta disso, uma poesia. O
poeta pode crer em um fator motivador que esteja fora da linguagem verbal, e neste
caso, quem escreve um livro sem texto direcionado às crianças segue em busca do
conhecimento e da sensibilidade através da linguagem não-verbal.
Poesia, então, pode ser definida através da sua imagem. Segundo
Jacques Derridá, escritor do século XX, a poesia, quando é feita de imagem, vive do
ritmo, requisito essencial para um argumento poético. Para compreender poesia
um estilo que se aproxima muito da sensibilidade é necessário viver o ritmo do
coração.
O crítico Luiz Costa Lima, no ensaio “Aguarrás do tempo” (1989), ao falar
de poesia, explicita o fato de a palavra conseguir distanciamento no exercício das
coisas contra o efeito da subjetividade. Talvez o escritor que se preste a fazer poesia
e articulá-la para a criança, crie uma tensão neste público que se forma através de
um belo jogo singular de todo tipo de figuração, uma grande metáfora, de modo que
faça uma meditação com o texto através da pura subjetividade.
Essa visão poética, que pode advir dos livros sem texto para as crianças,
valorizando a imagem, é uma bela maneira de compreender o texto literário como
algo que não se distancia do real, como muitos defendem atualmente, mas como a
possibilidade de simular a realidade através da imaginação, do contato com o
mágico, com o que seria imperceptível para os nossos olhos.
131
4.1 O Começo de Tudo: Em Busca de uma Arte da Palavra
Cada palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
Procuro sempre.
Procuro sempre, e minha palavra
ficará sendo
minha palavra.
(ANDRADE, 1991)
A tônica dos estudos de leitura com as crianças está centralizada em
obras baseadas na linguagem verbal. Entretanto, uma diferente maneira de
confecção do livro infantil promove uma nova via de acesso à compreensão desta
modalidade a partir dos chamados “livros sem texto”: obras voltadas geralmente
para as crianças em período de letramento, cuja finalidade salienta a possibilidade
de exercício efetivo da oralidade.
Este fruto de criação intrínseco ao inconsciente e ao lúdico promove a
leitura a seu grau máximo de arte e sensibilidade em uma atividade que era
promovida na Creche UFF entre os anos de 1999 e 2001.
O projeto “Coleção Flor de Papel: uma biblioteca na Creche UFF”
20
promovia uma oficina de leitura com as crianças de dois a cinco anos de idade,
determinando um trabalho que destacava a aquisição e a efetiva prática da
20
A “Oficina Conta & Reconta” tinha o objetivo principal de projetar a prática de contar e recontar histórias às
crianças, valorizando suas criações e possíveis novas interpretações sobre o texto. A importância desta nova
prática está na relação que se estabelece entre as crianças num contexto social. Nesse instante, a criança
manuseia o livro, mas atenta-se à performance do adulto; é o período em que ela mais ouve e desenvolve o seu
criticismo, pois a partir daí tem a chance de conhecer um universo diferente do seu e de descobrir situações e
palavras novas.
132
linguagem oral em crianças em fase de letramento. Para tanto, as histórias
sobretudo as clássicas proporcionavam-lhes encontros entre o exercício lingüístico
e a fruição literária, sem que uma situação comprometesse a assimilação da outra.
O poema de Drummond que inicia este tópico denota esta possibilidade de
construir um percurso através da busca da palavra. A Literatura talvez reflita
justamente isso: a possibilidade de escrever a partir do vazio e construir corpos,
mentes e almas humanas com palavras, tal como Mallarmé
21
, poeta francês, que
desejava procurar a palavra fundadora gerada no silêncio e no vazio para dar
margem ao seu desejo: escrever um livro de uma só palavra.
O conglomerado de palavras tem significados distintos quando são
desprendidas do papel. No momento de sua emancipação, as palavras voam do
papel para os olhos, dos olhos para o pensamento e do pensamento para a boca.
Falou-se. Reproduziu-se a arte. Fez-se literatura. Contudo, como toda boa química,
a palavra pode ter suas reações positivas ou não, resultados surpreendentes ou
catastróficos. Por razões desconhecidas, as palavras foram tomando outro rumo, e a
via da literatura encontrou a claridade, a sutileza e a distinção pela criança.
A criança traz consigo uma história que confronta a arte do pedagogismo,
no que tange a prática da leitura, com a possibilidade de criação artística. Literatura
e criança passam a ser, pois, obras de arte, construções compactas que exigem
sensibilidade, assim como boa parte dos textos que as caracterizam. A literatura
compreende esta condição essencialmente humana, pois abrange um fenômeno
vivo, pulsante, que determina o conceito de palavra e arte acerca da emoção como
pressuposto para uma prática que exige a percepção cultural e social.
21
Considerado um alquimista das palavras, Mallarmé defendia teorias poéticas que seguiam na contramão do
que era consagrado em sua época (século XIX). Segundo ele, um poema não seria feito com idéias, mas com
palavras. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser visto como um objeto em si mesmo. Ele também dizia
que um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor.
133
4.2 A Lírica a Serviço da Sensibilidade
Não pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as
personagens se comportam de modo diferentes, é porque não sou só.
(Graciliano Ramos)
O trecho que inicia este tópico apresenta a síntese do pensamento de
Graciliano Ramos sobre a infância, redimensionado pela fantasia e pelo forte
pessimismo que o marca. Infância, fantasia, pessimismo, enfim, são traços que
podem estar inseridos em uma leitura de texto literário que busca, de certa forma, a
sensibilidade pelo caminho da lírica humana.
A questão parte, então, do princípio do que vem a ser sensibilidade. A
sensibilidade é algo bastante discutível, bem particularista sem o seu significado
certo. A palavra e o significado de sensibilidade confundem-se com tendência, de
modo que pode ser educada, adquirida pelas pessoas através da literatura.
Não se trata de uma questão inata ou de vocação adquirir a sensibilidade.
É possível assimilar esta sensibilidade através do uso do texto literário, isso porque
a literatura, se compreendida como um fenômeno cultural, pode ser vista como algo
transformador que viabiliza, inclusive, novas experiências artísticas.
As experiências artísticas são aquelas que exigiriam sensibilidade por
parte de quem cria determinada obra e de quem, também, as irá receber. A
sensibilidade, nesta relação dualista entre escritor e leitor, é variável e indefinível,
porque tanto este quanto aquele possuem um objetivo de transfigurar a realidade
através de uma intervenção artística.
Dificilmente o leitor que não tiver (ou pelo menos não se permitir ter) um
certo aparelhamento das visões de arte e da sensibilidade, conseguirá decifrar a
mensagem de um texto literário. Na criança, este esforço reflexivo é mais fácil pelo
134
fato dela não impor limites a sua sensibilidade, porém, no adulto, o grau de
compreensão, às vezes, esbarra no fato dele transferir a sua vida para o texto. Este
dado autobiográfico pode diminuir a sensibilidade deste receptor que, talvez, não
desenvolverá a sua leitura da mesma maneira que a criança.
As obras de arte indutoras de sensibilidade não seriam adequadas,
portanto, para um estudo científico. Tomando como exemplo o fato de ler um poema
e emocionar-se com o lirismo do mesmo, e ter que se prender ao estudo da sua
estrutura, percebe-se que, assim, torna-se difícil associar o prazer ao dever.
Embora a sociedade ocidental criasse este dilema em relação à
sensibilidade e à inteligência, houve quem tentasse decifrar este encalço para criar e
fazer de qualquer objeto de arte (neste caso, incluímos a literatura) antes um estrato
da sensibilidade, uma espécie de estudo científico, “inteligente”.
4.3 O Que Ler para as Crianças?
Havia, no início do projeto, uma tendência de utilizar as próprias situações
do cotidiano das crianças na escolha das obras a serem trabalhadas nas atividades.
Tal situação, embora fosse interessante do ponto de vista da inserção social das
crianças porque estaria inserindo as mesmas em situações reais de leitura, ainda
não abarcaria totalmente a proposta de desenvolvimento cognitivo das crianças,
pelo fato de entendermos que o texto literário seria a maneira por que uma leitura
brota a construção do real (e não que brota do real).
Ao estarmos diante de um texto literário, de natureza mais complexa, a
necessidade de investigação do que está além da superfície do texto se intensifica,
de modo que se assemelha a um jogo, e, partindo do princípio de que a criança se
135
interessa naturalmente pelo ato de jogar, pelo ato de brincar, optamos por uma
atuação mais dedicada e pertinaz em torno do texto literário, seja em prosa, seja em
poesia para as crianças. Acreditamos que esta escolha, a partir do jocoso e do
imaginário, esteja em consonância com esta poesia de Jorge Luís Borges:
Nuvem
Não haverá uma só coisa que não dê idéia
de uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o templo renderá. É nuvem a Odisséia,
que muda com o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido
És também aquilo que está perdido.
(BORGES, 1985. p. 55)
De acordo com a poesia, na realidade, tudo muda como as águas de um
rio, de modo que a repetição é algo impossível. Borges achava que a literatura não
seria outra coisa senão um “sonho dirigido”. Pois, então, com este pensamento, de
não repetir necessariamente aquilo que a criança já verificava no seu dia-a-dia, que
nos propusemos a investir no texto literário por crermos que dali poderíamos
apresentar um mundo de possibilidades para elas. Sobre esta nuance da criança em
poder imaginar, salienta Bettelhein (2006, p.150):
Quando uma criança tenta entender-se e entender os outros, ou imaginar
as conseqüências possíveis e específicas de alguma ação, ela desenvolve
fantasias em torno desses resultados. É sua forma de “brincar com as
idéias”. Oferecer à criança o pensamento racional como forma de organizar
seus sentimentos e compreensão do mundo só servirá para confundi-la e
limitá-la.
Portanto, não limitar a capacidade criadora e criativa da criança é inseri-la
no mundo possível que o texto literário é capaz de proporcionar. Além disso, através
da literatura, as crianças poderiam aprender uma linguagem mais rica e criativa,
136
além de elucidarem melhor as questões que envolvem o seu próprio léxico. Quanto
mais o vocabulário é trabalhado de maneira consistente, mais a criança pode
alcançar patamares superiores de significados enquanto aprende novas palavras.
Elucidaremos como o texto literário foi utilizado em algumas atividades da
“Coleção Flor de Papel” em vista desta profusão de uma leitura cultural.
4.4 A Coleção Flor de Papel: Uma Realidade na Creche UFF
Em 1999, a Creche recebe a “Coleção Flor de Papel”, possibilitando o
acesso a diferentes materiais escritos, sobretudo ao livro, o que constitui
pressuposto fundamental para a formação do leitor. A partir da compreensão de que
a inserção no mundo da leitura deve ser anterior ao ensino formal da leitura e da
escrita, a Creche, com sua “Biblioteca Flor de Papel”, tem o papel fundamental de
garantir à criança um espaço dinâmico de relação com os livros.
O projeto “Coleção Flor de Papel: uma biblioteca na Creche UFF”
possibilita a efetiva utilização e dinamização de um expressivo acervo de literatura
infanto-juvenil então existente na Biblioteca Central do Gragoatá, acumulado graças
ao empenho do bibliotecário Almir Barbio, ex-chefe da referida biblioteca,
procurando atender aos estudiosos da literatura para crianças e adolescentes.
Considerando-se, então, a criação da Creche UFF, a manutenção de tal
acervo na BCG (uma biblioteca universitária e, portanto, um espaço de estudo e
pesquisa, no qual o acesso ao usuário infantil não soa como recomendável), seria
no mínimo desperdiçar a oportunidade de oferecer aos alunos da Creche uma das
formas de conhecer o mundo que as espera: a leitura.
O Núcleo de Documentação da BCG, não obstante a transferência do
acervo para o espaço da Creche UFF, continua responsável pelo processo técnico
137
dos documentos que venham a ingressar no acervo, bem como oferece total apoio
para a sua manutenção.
A organização de um acervo de literatura infanto-juvenil na creche tem
grande relevância, uma vez que o acesso a diferentes manuais escritos, sobretudo
ao livro, constitui pressuposto fundamental para a formação do leitor. É neste sentido
na perspectiva da formação de sujeitos-leitores que assume grande valor a
criação de um espaço dinâmico entre a criança e o livro.
Além disso, ter um acervo de literatura para as crianças é de grande
importância, face a necessidade de dinamização de informações e de possibilidade
de atualização do magistério, em suas diferentes modalidades, em relação tanto ao
ensino da literatura como ao ensino da língua. Isso porque visa à aplicabilidade de
métodos e técnicas de ensino que promovam a divulgação da literatura nas aulas de
língua materna, corroborando o seu melhor aproveitamento e a possibilidade de
aperfeiçoamento do repertório de cada aluno.
Sendo um programa de leitura didático-pedagógico interdisciplinar e
laboratório de ensino, pesquisa e extensão interdepartamental, o projeto “Coleção
Flor de Papel” abrange profissionais das áreas de Letras, Pedagogia e
Biblioteconomia, cada qual com seus objetivos específicos nas atividades sugeridas.
No caso da área de Letras, esperava-se:
a) Dinamizar e ampliar o trabalho multidisciplinar em pesquisa, extensão e
estudos da criança de 0 a 6 anos no espaço da Creche UFF;
b) Contribuir para a formação de sujeitos-leitores;
c) Documentar, através de observações escritas, gravações e filmagens,
neste espaço, o desenvolvimento cognitivo da criança em relação à leitura, criando
subsídios para trabalhos de pesquisa posteriores;
138
d) Investigar as especificidades das interações entre a criança e o livro,
educadores e crianças, criança e criança no contexto das ações relacionadas à
leitura;
e) Proporcionar situações que favoreçam a compreensão dos usos da
leitura e da escrita, possibilitando à criança o acesso e a apropriação de elementos
culturais;
f) Desenvolver na criança o prazer de ler, observar, conhecer, levantar
hipóteses, fazer uso, enfim, de conhecimentos que o homem construiu ao longo de
sua história.
Tais objetivos foram apresentados a partir de atividades internas
realizadas no espaço da Creche UFF, articuladas de acordo com o calendário
estipulado pela coordenação da mesma a fim de proporcionar as seguintes práticas:
a) Sessões de leitura livre para as crianças da creche;
b) Organização de eventos envolvendo toda a creche em torno de projetos
de leitura;
c) Oficinas de produção centradas na comunicação oral;
d) Sessões de contação de histórias;
e) Rodas de leitura para pais e educadores;
f) Testagem e aplicabilidade de métodos e técnicas que auxiliem o
estímulo à leitura;
g) Pesquisa do acervo literário por intermédio de atividades, tais como:
Levantamento de obras;
Análise dos aspectos lingüísticos, estéticos e ideológicos-culturais
das obras a serem apresentadas nas sessões de leitura.
139
Com isso, pelas atividades propostas e pela ambientação feita no espaço
da Creche, a “Coleção Flor de Papel” pode realizar seus trabalhos a partir da escuta
de textos, de modo a iniciar a criança na cultura do livro muito antes da sua
alfabetização formal. No entanto, residia uma intermitente questão: o que deveria
constar no repertório literário das crianças, de modo que aquilo lhes causasse a
sensação de prazer e bem-estar no contato com o mundo da leitura?
4.5 A “História de Amor
A obra de Rennó (1997) segue esta seqüência narrativa, de modo que,
segundo Arantes (2006, p.20):
O livro trata de uma exposição visual sobre um sentimento: o amor.
Equilibradamente, mostra uma abordagem subjetiva e objetiva dos
sentimentos. Sabemos que, quando se trata de amor, na maioria das vezes
não precisamos de palavras e este livro nos diz muito sobre o
relacionamento, só com imagens. Usando lápis como personagem, a autora
nos mostra os sentimentos mais comuns nos seres humanos, que são
expostos de maneira criativa e lúdica. A obra fez com que os sujeitos de
pesquisa observassem as imagens e se envolvessem com cada pormenor.
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4.6 O Relato da Atividade com “História de Amor
“História de Amor”, um livro sem texto, de autoria e ilustração de Regina
Coeli Rennó (1997), reside seu enredo em uma pequena história de dois lápis um
azul e um vermelho que têm um relacionamento repleto de harmonia e felicidade,
até que a chegada de um terceiro lápis o amarelo desmistifica toda esta paz,
separando o casal e promovendo uma verdadeira tristeza e a conseqüente saga do
lápis vermelho, que demonstra a sua luta, toda a dor que o amor, ou a sua falta,
pode causar.
Contar por contar a “História” para as crianças não era o previsto. Havia
uma intenção por trás disso tudo. A Literatura tinha o seu papel de transferir para a
fala ou para a escrita a arte da palavra, no entanto, era a arte mobilizadora de novas
questões.
Os processos dialéticos marcados por trocas, conflitos e negociações
estavam indissociáveis na leitura da obra, de forma que a construção da
subjetividade de todos poderia ser posta em prática a partir da leitura deste livro sem
palavras. Na verdade, as palavras estavam contidas na possibilidade de diálogo que
surgiria ao longo das interpretações e sentimentos que a obra de Rennó nos
proporcionaria.
Logo, a subjetividade de adultos e das crianças estaria intrínseca na
natureza do ser humano que estava evidenciada, sem nenhuma palavra, no texto de
Rennó. Efetivamente as palavras, mesmo não transcritas e expostas, constituíram o
pólo deste estudo. O maior vínculo com as crianças era obtido através de uma
comunicação oral, via diálogo. Para Bakhtin (1981, p.186), “o diálogo tem
importância fundamental na constituição dos sujeitos”.
153
A oralidade é um traço marcante nesta idéia de contar uma história sem
palavras. Dar para a criança a oportunidade de se expressar é uma forma de
transformação social e de conscientização coletiva.
A identificação de alguns personagens do livro de Rennó (1997) por parte
de algumas crianças na Creche possibilitou que a literatura democratizasse o acesso
ao universo literário a elas. Na verdade, o que aparentemente seria “infantil” neste
texto, carregava inúmeros propósitos implícitos na construção de adultos e crianças.
A construção coletiva vivida intensamente a partir de três lápis coloridos
permite a literatura acolher um desafio de procurar fazer com que as crianças
reconheçam, através do mundo de plurissignificação que as cerca, suas
sensibilidades e sua construção social em um universo declaradamente marcado por
discrepâncias sociais entre aqueles que tomam conta dele.
A produção de texto mais praticada em uma turma de educação infantil é o
chamado texto coletivo. E, na Creche, tal prática é desenvolvida através da leitura
em voz alta, de modo que o professor possui o controle da capacidade de leitura.
Articular a voz é uma maneira de facilitar a compreensão da criança ao texto que lhe
é oferecido. Na atividade proposta com o livro “História de Amor”, objetivamos que
as crianças pudessem recriar inúmeras histórias a partir daquela que nós contamos,
ou seja, evidenciamos um texto coletivo sob o olhar da criança.
As crianças gostam de transmitir textos a colegas ou mesmo a uma platéia
numerosa. Tivemos a oportunidade de presenciar, na atividade prevista com o livro
sem texto em questão, duas crianças que comunicavam um texto a outro grupo de
crianças da mesma idade (quatro, cinco anos de idade). Ela se valia do objeto livro
entre as mãos, sem esquecer de olhar o público.
154
É importante ressaltar que, nessa situação real de uma sala de aula, a
presença de um mediador é bastante válida, ou seja, a presença de alguém que
possa “traduzir” algo que é escrito em algo que precisa ser dito. Nesse processo de
mediação, a leitura não se torna uma prática solidária, mas sim um ato público com
a presença de um mediador.
A relação de semelhança da imagem com a leitura do mundo impressiona
pelas múltiplas interpretações que aquela história passava para as crianças. Mesmo
que nós tivéssemos contado a história à nossa moda como, de fato, contamos as
crianças designaram aqueles lápis como seres vivos que habitavam o imaginário do
livro e se transformavam em novas formas de pensamento.
Observando as crianças da Creche, notamos que eles ordenaram as
imagens e obtiveram um prazer em serem capazes de tecer a narrativa, ampliando o
imaginário de cada um. As sensações foram acionadas através de atrativos que
causaram a compreensão de detalhes.
Privilegiar este uso poético como a atividade proporcionou, além da prática
efetiva da linguagem oral tão importante às crianças uma nova forma de modular
a literatura infantil como algo que subjaz o texto escrito. Afinal, quem imaginaria que
uma simples história de dois (ou três, se preferir) lápis poderia ter a pretensão de
descortinar a arte em silêncio?
Sem procurar a palavra definitiva, as ilustrações e as histórias das
crianças preencheram o sentido maior da literatura. Ao estar de prontidão para
aprender aquilo que a própria imagem definia, o diálogo tornou-se a maior
possibilidade de produção de novos discursos, graças ao poder da imagem.
155
4.7 Para Terminar, mas nem Tanto Assim...
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar caderno novo,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes.
Que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
(João Cabral de Melo Neto)
O capítulo abordou, à luz de um estudo mais prático que teórico, questões
que envolvem a prática da leitura literária na formação de crianças como sujeitos-
leitores. Articulado em concepções teóricas, apresentou sugestões para a
apreensão do livro pela criança sem que isso fosse uma temeridade, uma obrigação
no processo de novas situações de leitura.
Em algumas partes, o texto apresentou uma abordagem sobre a leitura
como um processo que vai além da decifração de códigos e sinais, refletindo
contrapontos entre o processo de pré-leitura e a alfabetização como recursos para a
formação do novo leitor consciente, crítico e dinâmico. Além disso, a condição social
de acesso e de produção da leitura foi inserida como forma de responder às
expectativas que giram em torno deste novo sujeito-leitor, que se cria a partir dos
contatos freqüentes e intermináveis com outras artes e conhecimentos.
Mesmo que as crianças não saibam ler formalmente, acreditamos que elas
possam interagir com a leitura por intermédio de uma pessoa que as respeite
intensamente como produtor de sentidos. Mediar o encontro da criança com o que o
156
texto literário propõe: talvez a proposta efetiva de quem acredita no poder formador
da literatura, pois ao oferecer um material lúdico e prazeroso às crianças,
certamente estaremos promovendo muito mais do que um simples encontro com as
palavras, mas a possibilidade de desmistificar o ato de leitura, colocando-o ao
alcance da criança já a partir dos dois anos de idade.
Acreditamos cada vez mais no poder real do livro, pois escrever e ler é,
antes e acima de tudo, um prazer. É encantador saber que as histórias contadas
podem interferir, de alguma forma, na vida de algumas pessoas. A palavra é a
matéria-prima nesta construção de novos leitores, de novas idéias e de novos
sentidos, e a literatura, como o caminho que traça viagens maravilhosas para dentro
de cada um de nós, onde, de fato, residem as nossas esperanças de um mundo
mais bonito.
Logo, o trabalho com a língua falada com crianças constrói-se na
convivência de pessoas que vêem na leitura literária a melhor maneira de contar a
história do mundo em que vivemos. Escutar, ler histórias e transformá-las em arte é
o início da aprendizagem para ser um bom leitor, além de ser uma das formas de
descobrir e compreender como nós realmente somos.
Esperamos que nessa árdua, porém sutil, convivência com a palavra,
todos nós saibamos tirar proveito das impossibilidades que o mundo nos traz para
que as transformemos em poesia, tal qual imaginaria uma criança.
157
CONCLUSÃO
Ao chegarmos ao final desta pesquisa pudemos constatar algumas
questões relativas ao ensino da língua materna e, conseqüentemente, discutir sobre
algumas perspectivas que norteiam a postura do professor de Língua Portuguesa
nas salas de aula do país.
Ao estudarmos a oralidade associada ao ensino de língua materna,
através de uma análise feita de uma coleção didática de Língua Portuguesa,
pudemos notar que ainda é ínfima qualquer perspectiva de trabalho com a oralidade,
sobretudo porque as atividades quando sugeridas - se direcionam para a prática
da escrita.
Tal perspectiva, além de inibir consideravelmente uma proposta
consistente de trabalho com a oralidade na própria oralidade, descaracteriza
algumas tipologias textuais que poderiam ser utilizadas de modo eficaz na prática da
oralidade. É o caso da poesia, que, conforme salientamos na pesquisa, sofre
distorções a ponto de ser abolida pelos alunos em sala de aula, devido ao fato de
eles não conseguirem entender ainda qual o verdadeiro propósito do texto poético
nas suas vidas.
Muitas dessas distorções são corroboradas pelos documentos oficiais que
regem o sistema educacional brasileiro. Os PCN, no que tange o ensino da língua
materna, denotam uma realidade que não condiz com a realidade do professor em
158
sala de aula, já que não conseguem alcançar alguns objetivos principais para uma
prática competente e eficaz para os alunos.
No caso específico do trabalho com a oralidade, os documentos oficiais
seguem rumo às propostas de trabalho com o cotidiano do aluno, procurando
estabelecer uma atitude ativa dele perante algumas situações típicas do dia a dia,
seja através de explanações orais, como debates, seja através da “teatralização da
fala”. Verificamos, no entanto, que, embora reconhecidas como atividades
representativas do chamado texto oral, muitos professores as ignoram pelo simples
fato de desconhecerem o que rege os documentos oficiais.
Sem dúvida que esta falta de conhecimento faz com que esses
professores encaminhem as suas práticas em sala de aula para as aulas de
gramática. E para dar uma leve sensação de que essas aulas não se resumem
apenas a meras análises descontextualizadas, alguns professores se valem do
recurso do uso do texto para servir de pretexto para trabalhar a metalinguagem.
A nossa pesquisa constatou que, ao realizar tal perspectiva, os
professores de Língua Portuguesa estariam distanciando os alunos de um
conhecimento adequado que o texto literário poderia oferecer-lhes. Entendemos que
esse texto, conforme Coseriu salientou como o que expressa a “plenitude funcional
da linguagem”, pode permitir ao aluno a possibilidade máxima de conhecimento da
sua língua, visto que o texto literário concretiza os usos mais complexos e mais
elaborados de uma língua, isso porque no texto literário a busca pelo sentido sempre
vai acontecer, diferentemente dos chamados “textos informativos”, em que essa
busca não é preciso por sua finalidade imediata e previamente determinada.
Entretanto, verificamos que o uso do texto literário nos livros didáticos de
Língua Portuguesa se encaminha para a sua minimização, dando espaço para
159
textos que sugerem maior contato com a realidade dos alunos. Discutimos nesta
pesquisa essa triste constatação pelo fato de entendermos que o texto literário não
se distancia da realidade das pessoas. O que ocorre, de fato, é que com a
massificação da cultura, sobretudo com o advento da televisão, as pessoas
passaram a ser reféns de imagens pasteurizadas e a noção do Belo se dissipou
drasticamente porque ficou restrita a simples imagens. Com isso, as pessoas param
de desenvolver a sua sensibilidade, a sua emoção e a sua imaginação, e tudo
parece seguir um caminho que busque o aspecto mais pragmático possível, tal qual
se verifica na escolha de textos que compõem a obra didática.
Surge, portanto, um grande embate em torno do “como trabalhar” com a
Língua Portuguesa em sala de aula. Ao pensarem em atividades que visem ao
chamado “conhecimento de mundo” dos alunos, alguns professores de Língua
Portuguesa, tentando fugir do estereótipo de professor de gramática, aderem a
algumas práticas que a Lingüística contemporânea corrobora.
Acreditamos que possibilidade de trabalho da chamada “leitura cultural”
com crianças é um eficaz procedimento para a construção de um leitor competente,
e, conseqüentemente, um aluno ciente de suas competências na escola. Investir
nesse grupo seria acreditar em um trabalho a médio, longo prazo, sem imediatismos,
na busca de resultados concretos que possam, de fato, reconhecer os nossos
alunos como detentores de conhecimentos da sua própria língua.
Enfim, para que isso fosse efetivamente posto em prática, seria preciso
que houvesse maior contato entre os lingüistas e a comunidade de falantes para que
fosse posto em evidência aquilo de que a comunidade precisa e o que anseia.
Pensar no falante da língua é pensar na língua como um objeto que sofre
160
modificações constantemente, portanto, ignorar o falante é não compreender as
mutações por que a língua passará.
Além disso, há de se discutir a formação do profissional que atuará no
ensino de língua materna, visto que nos cursos de Letras das faculdades brasileiras
há inúmeras discussões sobre teorias lingüísticas e poucas soluções sobre o que
fazer nas salas de aula. A formação passa a se aproximar de um tecnicismo,
tornando o profissional um hábil articulador de conhecimentos científicos, mas um
ineficaz professor em sala de aula.
Concluímos, por fim, esta pesquisa cada vez mais acreditando na figura
do professor. Esse profissional que se encoraja na busca de soluções e que ainda
crê no poder da transformação das pessoas, ainda que uma série de empecilhos lhe
apareçam. Esperamos que esse professor consiga brevemente ancorar seus
conhecimentos com base em modelos sólidos e consistentes de ensino de língua
materna a fim de construir para os seus alunos e para si mesmo o saber lingüístico.
Assim, deixamos para esse professor a mensagem de Rubem Alves (2007, p. 13):
O mestre nasce da exuberância da felicidade. E, por isso mesmo, quando
perguntados sobre sua profissão, os professores deveriam ter coragem para
dar a absurda resposta: “Sou um pastor da alegria...” Mas, é claro, somente
os seus alunos poderão atestar da verdade da sua declaração...
161
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