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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS
Antônio Martinez de Rezende
Rompendo o silêncio:
A construção do discurso oratório em Quintiliano
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Linguística.
Área de concentração: Linguística do Texto e do
Discurso
Linha de Pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Dra. Maria Antonieta de Mendonça
Cohen
Belo Horizonte
Faculdade de Letras
2009
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2
Tese defendida por ANTONIO MARTINEZ DE REZENDE em
26/06/2009 e aprovada pela Banca Examinadora constituída pelos Professores
Doutores:
_____________________________________________
Maria Antonieta Amarante de Mendonça Cohen - UFMG
Orientadora
____________________________________________
Johnny José Mafra – PUC MINAS
____________________________________________
Eliana Amarante de Mendonça Mendes - UFMG
____________________________________________
Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho - UFES
____________________________________________
Ida Lúcia Machado – UFMG
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3
DEDICATÓRIA
À memória de meu Pai.
Sua ausência não é silêncio,
é a sublime eloquência de quem
não mais fala a língua dos homens
4
AGRADECIMENTOS
Este trabalho se fez possível, porque a ele sobreveio o
auxílio dos colegas que leram e trouxeram sua lucidez: Eliana
Amarante, Neiva Ferreira, Sandra Bianchet Tereza Virgínia e
Matheus Trevizam.
Aos Professores Luiz Francisco Dias e Maria Antonieta de
Mendonça Cohen, por terem acolhido este trabalho.
5
SUMÁRIO
Resumo_________________________________________________________
p. 06
Um esclarecimento________________________________________________
p. 07
Introdução: O contexto da oratória romana___________________________
p. 10
I. IN VERBIS RHETORICA – Nas palavras a retórica__________________
p. 35
1) Os dados _________________________________________________
p. 41
2) As tendências do modelo oratório no período imperial__________
p. 43
II. IN RHETORICA ORATORIA - Na retórica a oratória_________________
p. 51
1) Cícero e a retórica _________________________________________
p. 59
2) A Institutio e seu destinatário ________________________________
p. 62
3) O livro décimo da Institutio: oratória e literatura ____ ____________
p. 66
4) O poeta do livro décimo, Quintiliano e a literatura ______________
p. 73
5) O poeta __________________________________________________
p. 77
6) O homem de bem _________________________________________
p. 94
III. IN ORATORIA ELOCVTIO - Na oratória a elocução ________________
p. 107
1) Imitação e emulação _______________________________________
p. 114
2) O exercício da imitação _____________________________________
p. 119
3) A imitação no capítulo 2 ____________________________________
p. 124
4) As declamações p. 136
5) Retórica, literatura, imitação _________________________________
p. 140
IV. IN ELOCVTIONE ELOQVENTIA - Na elocução a eloquência ________
p. 145
1) As recitações _____________________________________________
p. 154
2) Oratória e língua escrita ____________________________________
p. 156
3) O significado da correção ___________________________________
p. 166
Conclusão_______________________________________________________
p. 170
Introdução à tradução do Livro X ___________________________________
p. 175
Tradução do Livro X da Institutio Oratoria____________________________
p. 184
Indicações bibliográficas___________________________________________
p. 274
Resumée__________________________________________________
p.279
6
RESUMO
Os romanos se serviram da retórica grega para construir sua oratória,
tornada, então, arte funcional do discurso persuasivo. Quintiliano se apresenta
como quem voz e corpo a essa oratória ao colocar em diálogo as figuras
humanas do poeta e do orador, numa interlocução que se mostrou possível
entre as artes da oratória e da literatura. um propósito definido, que é dar
àquele que pronuncia o seu discurso os meios pelos quais esse discurso possa
ser construído com eficiência, de tal modo a conciliar fala e escrita, realidade
objetiva e artifícios da ficção.
SUMMARY
Romans got profit from Greek retorics to construct their oratory, taken,
then, as the functional art of persuasive discourse. Quintilian is taken as the one
who gives voice and body to this oratory, when he favors the dialogue between
the human figures of the poet and the orator; such interlocution reflected the
close relation between the two arts - oratory and literature. The purpose of it is
clear: to give to the one who pronounces a speech the means through which
this same speech should be efficiently constructed, so that the orator could
conciliate speech and writing, objective reality and fiction artifacts.
7
Um esclarecimento
8
Este trabalho se encontra organizado em duas partes, independentes até certo
ponto, mas complementares entre si. Uma análise sobre as relações entre o
poeta e o orador, no âmbito da retórica romana, constitui a primeira parte. A
segunda compõe-se da tradução anotada do Livro X da Institutio Oratoria de
Quintiliano. A relação de complementaridade que propusemos existir
caracteriza-se pelo fato de que as ideias a se desenvolverem no estudo
analítico, nós as derivamos do texto de Quintiliano. Em relação inversa, ao
disponibilizar o texto para o leitor de língua portuguesa, oferecemos a ele um
suporte teórico-analítico que lhe permita ampliar a leitura.
A retórica antiga é um universo extremamente dinâmico e, por isso
mesmo, complexo. O seu tratamento, em face desse dinamismo, exige que se
façam recortes espácio-temporais, delimitações temáticas e refinamento de
abordagens teóricas. Assim procuramos agir, quando, no estudo das relações
entre o orador e o poeta, nos fixamos na oratória romana e nas concepções de
literatura que orientavam, no final do século I d.C., a escola retórica de
Quintiliano.
O nosso trabalho apresenta a seguinte organização:
a) Introdução fazemos a contextualização dos assuntos que serão objeto
de análise.
b) Capítulos:
O Capítulo I trata de explicitar mais detalhadamente o ambiente cultural
da oratória romana de Quintiliano no contexto da retórica. O capítulo II faz uma
apresentação analítica do Livro X, com vistas ao levantamento dos conceitos
sobre os quais a oratória de Quintiliano se institui. O Capítulo III interpreta o
9
conceito de imitação e suas implicações, de modo especial no ambiente das
relações entre retórica e literatura. O capítulo IV analisa as dimensões da
escrita no discurso, na ação e no fazer do orador.
Queremos, desse modo, ter dado andamento a uma etapa do percurso
da retórica grega, no que concerne às particularidades de sua transição para a
oratória romana de Quintiliano, analisando as aproximações entre a escrita do
poeta e sua indispensável presença no discurso proferido e professado pelo
orador.
Para a construção do texto referente à análise teórica recorremos,
inúmeras vezes, à obra de Quintiliano e a de outros autores de língua
estrangeira. Apresentamos a tradução de todas as citações, bem como
indicamos seus tradutores, mas são de nossa responsabilidade aquelas em
que não se faz menção ao tradutor. Em todas as ocorrências, transcrevemos
os textos de língua estrangeira citados.
A tradução do Livro X é precedida de uma introdução, que pretende
salientar as questões de natureza teórica mais relevantes, segundo as
entendemos. Nesse texto Quintiliano coloca em eloquente interlocução o
orador e o poeta, para mostrar a oratória como beneficiária do discurso literário.
Sendo assim, mais do que um produto, o discurso oratório é um processo que
se move nos limites da persuasão, para o qual concorrem, de modo definitivo,
os artifícios da ficção.
10
INTRODUÇÃO:
O contexto da oratória romana
11
Tu igitur, fili carissime, quum loqui desideras,
a temet ipso incipere debes,ad exemplum galli,
qui antequam cantet, ter se cum alis percutit in principio.
Tu, meu filho caríssimo, quando desejares falar,
deves começar por ti mesmo, seguindo o exemplo do galo,
que, antes de cantar, logo no princípio, bate três vezes com as asas em si mesmo.
O texto em epígrafe faz parte de um livro publicado no ano de 1245, Ars
loquendi et tacendi, de autoria de Albertano de Bréscia. Trata-se de uma obra
que, para a sua conjuntura histórica e cultural, se mantém nos limites de
continuadora da tradicional retórica herdada dos antigos gregos e romanos. A
obra, no entanto, apresenta, de modo enfático, um outro lado da oratória: o que
não falar, ou a arte de calar-se.
A construção desse texto segue o modelo do aconselhamento, ao estilo,
por exemplo, de Marco Pórcio Catão, político e intelectual romano, que
escrevera uma obra inteiramente dedicada ao filho: Ad Marcum filium. Da
mesma forma, Albertano escreve para instruir seu filho Stephano. Para
fundamentar seus propósitos e ensinamentos recorre à autoridade dos escritos
da Bíblia, à dos doutores da Igreja e, de modo especial, a obras de escritores
romanos como Cícero, Catão e Sêneca.
Ao definir o tema de sua exposição, assim o resume:
ideo ego, Albertanus, breuem doctrinam
super dicendo atque tacendo, uno
uersiculo comprehensam, tibi filio meo,
Stephano, tradere curaui. Versiculus hic
est:
Quis, quid, cui dicas, cur, quomodo,
quando, requiras. (Ars loquendi et tacendi,
1)
Por isso, eu, Albertano, cuidei de
transmitir a ti, meu filho Stephano,
condensada em frase única, uma
breve doutrina a respeito do dizer e
do calar-se. Esta é a frase:
Quem, o que, a quem digas;
procures realmente saber por que, de
que maneira, quando.
12
No decorrer de suas explanações, Albertano deixa transparecer muito
claramente que a arte de calar significa propriamente que o indivíduo precisa
ter a plena consciência de si mesmo, enquanto falante, e da qualidade, no mais
amplo sentido, do discurso que se possa produzir.
Podemos constatar que, em última instância, o “calar-se”, tacere, da
obra não se refere ao “não dizer”, mas ao “falar com propriedade”. Muito
embora, no entanto, seja verdade que “um o dito” possa, no seu devido
contexto, ser altamente eloquente, ou até mais eloquente do que “um dito”.
Servimo-nos da epígrafe e do título da obra como pretexto para falar da
antiga oratória romana. Para isso, no entanto, precisamos fazer um significativo
deslocamento, ou seja, deixaremos de considerar o tacere de Albertano para
levar em conta uma outra perspectiva, a que se manifesta no silere (silenciar).
A atribuição de um certo valor de eloquência ao silêncio é uma
preocupação antiga e manifesta em diversos momentos das literaturas grega e
latina
1
. Podemos vê-la nas obras de Santo Agostinho (séc. IV), de modo
especial em De doctrina christiana e Confessiones. É interessante notar que
toda a sua produção intelectual tem como objetivo consolidar princípios
teológicos e, com isso, auxiliar na propagação da cristã. Nesse contexto,
entra em cena a proposição de uma “retórica do silêncio”, que se fundamenta
na ideia de que o deus do cristianismo agostiniano não estabelece, com cada
ser humano em particular, um diálogo verbal imediato; sua “palavra” não tem
as mesmas características das palavras humanas, nem mesmo são
perceptíveis aos ouvidos dos homens. Desse modo, a comunicação com esse
1
1. Aristófanes em Rãs, v. 830-839 e v.911, critica a eloquência dos silêncios de Ésquilo.
2. Pind. 5ª. Nemea, v.18
3. Disticha Catonis, 1, 3, 1
4. Plínio, Jovem, Ep. 7, 6, 7.
13
deus precisa de uma forma de discurso diferente daquela que a retórica
convencional pode proporcionar. Acresça-se a isso que a relação com deus se
fundamenta numa verdade, que precisa ser absoluta; para a retórica funcional
dos romanos, ainda no tempo de Agostinho, a verdade é relativa, na
perspectiva de que é construída pelo discurso, uma para cada caso, sobretudo
porque o objetivo da retórica é a eloquência, ou o convencimento por meio da
palavra eficiente. Todo esse processo pode ser sintetizado nas palavras de
Mazzeo, em seu artigo St. Augustine’s Rhetoric of Silence (1962: 181):
Devemos, assim, passar das vozes dos homens para a voz silenciosa
da criação de Deus.
Esse movimento, das palavras ao silêncio, de signos para a realidade é
o pressuposto fundamental da exegese alegórica Agostiniana.
2
Mas o silentium (silêncio) de que trataremos neste trabalho é ainda
diferente das duas abordagens referidas acima. Esse silêncio se descreve,
principalmente, por sua natureza de trajetória de construção do discurso; o
momento, às vezes longo, que antecede a sua concretização em fala pelo
orador.
Para nos situarmos no universo da retórica romana, julgamos
conveniente destacar a Retórica a Herênio, obra de importância capital para a
oratória romana. Ela foi escrita nos anos 80 a.C. e, durante muitos séculos,
atribuída a Cícero. No entanto, hoje restam incertezas quanto ao nome
verdadeiro de seu autor
3
. O mais importante, porém, é que essa obra nos
oferece uma descrição objetiva do que passaremos a chamar de “sistema da
oratória”.
2
We must thus pass, as it were, from the voices of men to the silent voice of God’s creation.
This movement from words to silence, from signs to realities, is the fundamental presupposition
of Augustinian allegorical exegesis. (Mazzeo, 1962: 181)
3
Por essa razão, neste trabalho, utilizaremos a expressão Autor” em lugar de um nome
próprio.
14
Destacaremos uma pequena passagem, mas que suscita um universo
incomensurável de ideias, conceitos, fórmulas e percursos históricos, que
sempre continuarão a operar nas relações do ser humano com sua língua e
com as formas de apropriação e de tratamento de sua linguagem.
Oportet igitur esse in oratore
inuentionem, dispositionem,
elocutionem, memoriam,
pronuntiationem. Inuentio est
excogitatio rerum uerarum aut ueri
similium, quae causam probabilem
reddant. Dispositio est ordo et
distributio rerum, quae demonstrat,
quid quibus locis sit conlocandum.
Elocutio est idoneorum uerborum et
sententiarum ad inuentionem
adcommodatio. Memoria est firma
animi rerum et uerborum et
dispositionis perceptio. Pronuntiatio est
uocis, uultus, gestus moderatio cum
uenustate. (Rhet. ad Her., 1, 3)
Convém que existam no orador
invenção, disposição, elocução,
memória, pronunciação. Invenção é a
descoberta das ideias verdadeiras ou
verossímeis que tornem comprovável
uma causa. Disposição é a ordenação
e distribuição dessas ideias, que regula
o que deve ser assentado em quais
lugares. Elocução é a adequação de
palavras e sentenças à invenção. A
memória é a firme fixação ao espírito
das ideias, das palavras, da
disposição. Pronunciação é a
comedida composição, com toda
elegância, da voz do semblante e dos
gestos.
Se analisarmos a estruturação formal da oratória, tal como vista acima,
ou como, por exemplo, a descreve Quintiliano em sua Institutio Oratoria,
podemos organizar suas partes em dois momentos a que denominaremos o
“momento do silêncio” e o “momento da ruptura do silêncio”. Considerando que
o silentium significava propriamente a “tranquilidade”, a “quietude”, a “ausência
de movimento”
4
, parece-nos pertinente que a significância do silentium seja
compatibilizada com a invenção, a disposição, a elocução e a memória,
4
“Parece que o verbo tenha designado, na origem, menos o silêncio do que a tranquilidade, a
ausência de movimento e de barulho”.
ll semble que le verbe ait designé à l’origine moins le silence que la tranquilité, l’absence de
mouvement e de bruit.(Ernout, 1951: 1103)
15
enquanto que a pronunciação se configure como ação, a ruptura do silêncio.
Em suma, no momento do silêncio, se cria, organiza-se, transmuta-se em fala
ou em texto escrito e memoriza-se o discurso; pronunciar publicamente esse
discurso é o mesmo que romper o silêncio.
Nota-se que todo esse universo se organiza fundamentalmente na
língua e a ela se circunscreve. Esta situação nos recomenda a estar atentos
para o fato de que a língua, incluída toda a produção linguística, enquanto
objeto de estudo, é ela mesma, a um tempo, a principal ferramenta de
estudo: a situação seria idêntica, por exemplo, à de um analisado que é, ele
próprio, o analista de si mesmo. Podemos, então, avaliar o quanto essa área
de investigação é complexa, um terreno fértil para as mais conflitantes
especulações, para ideias sobre as quais, muito provavelmente, nunca se
vislumbrarão consensos.
Muitas vezes, quando se fala de retórica, hoje em dia, costuma haver
algumas interpretações incompatíveis com a realidade histórica dos termos
retórica, oratória e eloquência. Reboul (2004) observa que “Para o senso
comum, retórica é sinônimo de coisa empolada, artificial, enfática,
declamatória, falsa” (XIII). Muitas vezes também esses termos são empregados
como se fossem sinônimos, outras vezes se usa de um com o significado do
outro; acontece, não raramente, de se usar do termo retórica para dizer, por
exemplo, de um discurso vazio. Mas o nosso objetivo não é fazer um tratado de
retórica e discutir em profundidade as implicações de cada termo. Pretendemos
desenvolver algumas análises sobre o Livro X da Institutio Oratoria, de
Quintiliano, por isso nos limitaremos, agora, a comentar brevemente esses
termos no contexto da antiguidade romana.
16
podemos entender a retórica como a instituição maior, o sistema de
estudo da linguagem humana e de toda a produção linguística em forma falada
ou escrita, com especial ênfase na sua função de gerar um efeito prático,
imediato, mas previamente estabelecido e esperado sobre aquele a quem se
destina um discurso produzido.
Esse discurso, então, se organiza com base em um conjunto de
princípios teóricos, de normas de conduta e de finalidades claramente
objetivas, como se pode observar dos inumeráveis estudos que nos legaram a
Antiguidade e dos tratados pedagógicos especialmente formulados com vistas
ao ensino da arte retórica
5
. Dentre os autores que se dedicaram à retórica,
podemos destacar, por exemplo, Aristóteles e Platão, entre os gregos; Cícero e
Quintiliano, entre os romanos.
A oratória é uma, para não dizer a principal, das manifestações
concretas da retórica. Sua essência é o discurso proferido em público, a
palavra em ação que sai da boca, o que se pode confirmar pela etimologia,
pois oratoria se constrói no radical de os, oris
6
.
É o discurso regulado por normas estritas, sejam umas de natureza
técnica, sejam outras estabelecidas em conformidade com determinados
princípios éticos e padrões estéticos. Além disso, é um discurso que tem um
destinatário presente e a este necessariamente precisa ajustar-se, estabelecer
5
Perelman, ao propor uma nova retórica, vai buscar na retórica antiga, os seus elementos
originais e, com base neles, a localiza nos domínios dos termos argumentação, persuasão e
adesão, conforme se pode notar da seguinte passagem:
“Identificando esta (nova retórica) com a teoria geral do discurso persuasivo, que visa ganhar a
adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja ele qual for, afirmamos que todo
o discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. Desde que uma
comunicação tenda a influenciar uma ou várias pessoas, a orientar os seus pensamentos, a
excitar ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio da retórica”. (1993:
173)
6
“Boca” e “boca enquanto órgão da fala”
“bouche” et “bouche en tant que organe de la parole”. (Ernout, 1951: 833)
17
uma fina sintonia de comunicação, uma vez que há uma intenção definida e um
objetivo a ser alcançado.
A eloquência é, antes de mais nada, uma questão de qualidade, que se
manifesta como eficiência do discurso. Quando falamos em qualidade do
discurso, queremos significar que sobre esse discurso se faz uma interferência
deliberada; uma ação consciente de se lançar mão de todos os recursos
possíveis, com vistas a ampliar as possibilidades de eficiência. Enquanto a
oratória acontece em um cenário, teatralizável em tudo, e atua sob uma ética,
podemos falar de eloquência como estética. O que caracteriza e justifica essa
estética é, entretanto, a sua condição de elemento indispensável na
consecução de um objetivo previamente estabelecido, em torno do qual tudo
gira, pois o mover o espírito daquele que ouve é, enfim, tudo o que se espera.
O que podemos dizer, em suma, é que, para os romanos, não há
oratória sem retórica; a eloquência, por sua vez, nem preexiste à oratória, nem
é uma instância independente do discurso.
A importância da oratória na civilização romana antiga e o seu
tratamento prioritário, muito provavelmente, foram os responsáveis por permitir
que, muito, venha-se atribuindo essa quase identidade aos termos retórica,
oratória e até mesmo eloquência. No entanto, precisamos entender que, para
os romanos, são conceitos distintos, basta ver que justamente na escola do
retor se formavam os oradores.
A retórica enquanto invenção grega se desenvolveu, dentre outros, com
o propósito de oferecer um ensino intelectual, que se identificasse com cultura
geral. Sabemos, ainda, que a retórica se prestava a uma finalidade prática,
que podia voltar-se para o mundo objetivo, na medida em que, através dela, se
18
podia fazer a defesa de uma causa. Essa retórica, no entanto, transplantada
para o território romano, agora investida da toga, transcendeu os limites do
saber para se tornar uma oratória essencialmente do poder, o apenas de
poder político em sentido estrito, mas de todas as relações sociais em que
possa ocorrer alguma forma de poder consubstanciado em um discurso
linguístico. É preciso notar, sobretudo, que a retórica pode prestar-se como
recurso primordial, especialmente quando a demonstração objetiva o é mais
possível e, por isso mesmo, se demandam juízos de valor
7
. A esse respeito diz
Perelman (1993),:
... foi-nos fácil remontar à retórica de Aristóteles e a toda a tradição
greco-latina da retórica e dos tópicos. Verificámos que nos domínios em
que se trata de estabelecer aquilo que é preferível, o que é aceitável e
razoável, os raciocínios não são nem deduções formalmente correctas
nem induções do particular para o geral, mas argumentações de toda a
espécie, visando ganhar a adesão dos espíritos às teses que se
apresentam ao seu assentimento.
Esta técnica do discurso persuasivo, indispensável na discussão
prévia a toda a tomada de decisão reflectiva, tinham-na os antigos
desenvolvido longamente como a técnica por excelência, a de agir
sobre os outros homens através do logos, termo que designa
simultaneamente, de forma equívoca, a palavra e a razão” (15-16).
Assim, imbuída dessas qualidades retóricas, a oratória romana se
converte em poderoso instrumento de ação, coação e, de certa forma, coerção
social.
Em que pese a abrangência do sistema retórico, o valor da oratória para
os romanos faz desta a ciência principal, ou a mais liberal
8
das artes. É isso o
que está implícito até mesmo no título da obra de Quintiliano: Institutio Oratoria.
Se o traduzíssemos, palavra por palavra, teríamos “Instituição Oratória”, mas
7
A Obra de Perelman trata dos processamentos retóricos em nossa atualidade, segundo a
perspectiva da argumentação.
8
O sentido de “liberal” liga-se a uma determinada condição do indivíduo no interior da estrutura
social romana: apenas aos homens livres se permitia o acesso à formação “acadêmica”, como,
por exemplo, Cícero expressa em et eruditio libero digna (De orat., 1, 17): e a erudição digna
de um homem livre.
19
essa sequência estaria longe de representar o verdadeiro significado da
expressão latina. Justamente o conteúdo e a forma de tratamento desse
conteúdo é que vão permitir que se interprete institutio como “educação”.
Educação Oratória
9
, portanto, é a tradução que mais fielmente representa a
proposta de Quintiliano e o espírito de sua obra, conforme recomendam
Zehnacker e Fredouille (2005): “A Institutio oratoria, cujo título significa A
educação do orador (a tradução habitual Instituição oratória nada mais é do
que um decalque envelhecido) (274)”
10
.
Sob qualquer abordagem que se examine toda a edificação do sistema
oratório romano, percebe-se que a figura central é o orador. Isso se justifica na
medida em que a eloquência não pode resultar senão da voz soante e presente
de um homem que profere a palavra em ação. Diz exatamente isso a totalidade
da Institutio; diz isso um aparentemente simples detalhe de morfosssintaxe,
como no trecho referido acima, da Retórica a Herênio: oportet esse in
oratore.(1,3).
Como se nota, ocorre o emprego de um ablativo, in oratore, que, nesta
circunstância, é altamente significativo. O que o Autor pretendeu mostrar é que
aqueles elementos devem existir “no orador”, ao invés de serem, por exemplo,
atributos “do orador”.
As gramáticas latinas descrevem o emprego de um chamado “ablativo
de qualidade” que, de alguma forma, ajuda a explicar o sentido da construção
acima. Se estabelecermos, pois, um paralelo entre tristissimo animo esse
(existir/viver em espírito tristíssimo = estar inteira e profundamente triste) e
inuentio esse in oratore, poderemos entender o quanto ficou carregada de
9
Esta é a tradução que lhe dá Marco Aurélio Pereira (Pereira, 2006:15).
10
L’Institutio oratoria, dont le titre signifie L’éducation de l’orateur (la traduction habituelle,
L’institution oratoire, n’est qu’un calque vieilli). Zehnacker et Fredouille (2005: 274).
20
sentido esta expressão: “a invenção existir no orador” (= ser inteiramente no
orador).
O orador é, assim, ao mesmo tempo, aquele através de quem se
materializa o discurso e o mediador entre as partes de uma causa; é ele a
pronuntiatio, como vimos ou, segundo terminologia de outros autores, ele é a
actio. De qualquer modo, em que pese toda a teatralidade de uma sessão do
tribunal, o orador, no desempenho de sua função, precisa ser mais do que
simplesmente um ator, pois, como observa Reboul (2004), “o ator que finge
bem é um artista; o orador que sabe fingir bem seria um mentiroso” (67).
Através dessa caracterização fica ressaltado que a veracidade, ou
melhor, a verossimilhança preside a ação oratória: não importam as razões, as
motivações ou a natureza da causa. Mesmo que não se origine verdadeira,
uma causa precisa ser a verdade que o orador demonstra em seu
pronunciamento. Em outras palavras, Perelman (1993) assim se expressa:
“Exigindo cada domínio um tipo de discurso diferente, é tão ridículo
contentarmo-nos com argumentações razoáveis por parte de um matemático
como exigir provas científicas a um orador” (22).
Uma vez delineado o perfil profissional do orador, consideradas as suas
qualidades técnicas e morais, é preciso passar à construção do discurso, à
montagem da ação, que deverá constituir-se numa verdade, como já apontado.
Aquelas quatro instâncias, que dissemos estarem no momento do silêncio,
apresentam-se numa sequência que vai do abstrato invenção -, passa por
estágios mais concretos disposição e elocução -, para terminar em outro
destino abstrato – a memória.
21
Complementarmente, podemos notar que àquelas noções, que
afirmamos como abstratas e concretas, se associam também dois grupos de
competências que se caracterizam por habilidades inatas e habilidades
adquiridas. A aquisição dessas habilidades, quando acontece, se ,
sobretudo, através dos exercícios da escola, na vivência prática da atuação
profissional, como se pode depreender da leitura da Institutio.
Ainda que a “invenção” e a “memória” exijam uma predisposição inata,
isto é, uma competência que não se adquire ao longo de uma vida, elas podem
ser facilitadas ou fortalecidas por exercícios, assim vemos explicitado em
Cícero:
At memoria minuitur, credo, nisi eam
exerceas, aut etiam si sis natura tardior.
(Cíc.,Sen. 21)
Mas a memória se diminui, eu creio,
a menos que se a exercite, ou ainda,
se, por natureza, se é mais lento.
A “disposição” e a “elocução”, por sua vez, permitem ser desenvolvidas,
aprimoradas, ressaltando-se que, no entanto, para isso um limite. Esse
limite pode ser definido, por exemplo, pelo grau de qualidade das habilidades
inatas do indivíduo, pois parece-nos existir uma certa proporcionalidade entre
aquilo que se alcança aprender e a capacidade de aprender.
Quando dissemos das “instâncias” ou “habilidades”, o fizemos segundo
interpretamos da Retórica a Herênio, e, por isso, identificamos a oratória com a
retórica. Assim, a totalidade daquelas cinco qualidades no orador representa,
para outros autores, as cinco etapas do discurso oratório, ou melhor, as cinco
partes da retórica (invenção, disposição, elocução, memória e ação). No
entanto, independentemente de qualquer amplitude do sistema oratório e da
22
caracterização terminológica desse universo, nos fixaremos na investigação
mais detida e mais imediata da elocutio
11
.
Conquanto esse termo possa ser traduzido por “elocução”, esta palavra
não alcança o grau de expressividade e não é capaz de veicular a sobrecarga
de conceitos, nem de reproduzir os usos do correspondente latino elocutio. A
dimensão de seu sentido se pode verificar, por exemplo, no fato de que é com
o mesmo radical de elocutio que se deriva eloquentia; por sua vez, estas duas
palavras se constroem com o prefixo e-/ex-, associado ao loquor, ou seja,
eloquor, que significa “exprimir pela palavra”
12
. No âmbito dos estudos retóricos
a elocutio é a etapa suprema dentro do momento de silêncio, pois constitui-se
no ato de materializar o discurso em forma linguística. Essa forma, mesmo
quando expressa na sua modalidade escrita, apresenta, no entanto, uma
característica muito peculiar, que os próprios sentidos etimológicos já vêm
condicionando: é a representação de uma fala que ainda não aconteceu. Essa
projeção para o futuro obriga a que o orador esteja capacitado para organizar
suas ideias numa linguagem compatível com o grau de compreensão de um
ouvinte que ele apenas presume, mas ainda não o tem diante de si.
Os obstáculos, então, se multiplicam, em forma de dificuldades: como,
do seu silêncio, deve o orador formular um discurso destinado aos ouvidos de
um juiz, de uma assembleia ou de uma multidão? Que artifícios de linguagem
podem ser mais eficientes para se alcançar a eloquência convincente? Como
11
Preferimos manter a palavra em latim, tendo em vista a dificuldade de encontrar no
português uma palavra que abarque a amplidão do conceito, conforme o descreve Barthes
(2006: 98): “A melhor tradução de elocutio é, talvez, não elocução (muito restrita), mas
enunciação, ou a rigor, locução (atividade locutória)”.
La miglior traduzione de elocutio è forse, non elocuzione (troppo ristreta), ma
enunciazione o, a rigore, locuzione (attività locutoria). (Barthes 2006: 98).
12
Exprimir pela palavra” tomou o sentido de “falar com arte ou eloquência”, daí eloquente,
eloquência (não atestada antes de Cícero).
Exprimer par la parole” a pris le sens de parler avec art ou éloquence”, de
eloquens, eloquentia (non attesté avant Cic.)...(Ernout, 1951: 652).
23
compatibilizar as ideias, sua organização e sua verbalização em linguagem
acessível aos ouvidos que as esperam?
Questionamentos como esses se fazem motivados pela antiga e bem
definida distinção de gêneros oratórios. Aristóteles, em sua Retórica,
propunha que são três os tipos de discurso, que três tipos de ouvintes
13
.
Em linhas gerais, segundo a classificação retórica, um discurso pode ser
jurídico (sua motivação é um fato passado; lida com conceitos de justo e
injusto; seu público é o juiz na sua individualidade), deliberativo (projeta uma
ação futura; trata do útil e do nocivo; seu público é a assembleia em
deliberação) ou epidíctico (seu tema é presente e consiste em fazer o elogio ou
a censura, enfim, em distinguir nobreza de vilania; seu público é a comunidade,
a massa coletiva).
Como se não bastasse ao orador o dever de adequar seu discurso aos
temas propostos e ao público ouvinte, havia nele também o desejo de imprimir
a marca pessoal que o tornasse reconhecível em seu discurso, em uma
palavra, estilo.
É importante ressaltar que o tradicional sistema oratório grego era
composto por quatro partes (invenção, disposição, elocução e ação), a que os
romanos acrescentaram uma quinta parte, a memória. É verdade que nem
mesmo em Roma existiu consenso quanto à pertinência da Memória como
parte do sistema retórico. Vale lembrar que Cícero (Cíc., Brut., 140, 215, 301)
trata a memória como aptidão natural. Para Quintiliano, no entanto, que visa
preferencialmente à oratória, a memória precisa ser considerada, sobretudo
13
Segundo os antigos, os gêneros retóricos são três: o judiciário, o deliberativo (ou político) e o
epidíctico. Por que exatamente três? Aristóteles responde: “Porque três espécies de
auditórios” [Ret. 1358 a.]; é a necessidade de adaptar-se a eles que confere traços específicos
a cada gênero: conforme as pessoas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneira.
(REBOUL, 2004: 45)
24
pelo papel social e político que entre os romanos tinha a oratória judiciária.
Pode-se explicar esse acréscimo, se considerarmos as circunstâncias em que
ocorre uma contenda jurídica: em um tribunal, exige-se do orador uma atuação
efetiva, que não deve limitar-se, por exemplo, à leitura de um discurso, que se
traz de casa pronto, por escrito. A inclusão de mais esse componente
contribuiu para que se destacasse, ainda que seja isso apenas um detalhe de
forma de exposição didática, a centralidade da elocutio: enquanto parte do
sistema oratório do período romano, ela se faz visível até mesmo na própria
organização sequencial dos termos: inuentio dispositio elocutio memoria
– actio.
Em verdade, a elocutio é a parte em que mais inteiramente pode atuar o
mestre de retórica, o retor; é a parte em que mais diversificadamente pode
exercitar-se o aprendiz. Para ela convergem diversos saberes, assim como
nela são demandadas competências e habilidades igualmente as mais
variadas.
É na prática da elocutio que, por exemplo, o orador conformará o seu
estilo, a sua identidade oratória. Como podemos notar da Institutio de
Quintiliano, a elocutio, especialmente na sua forma escrita, está profundamente
arraigada na leitura, e estas duas atividades se associam de tal modo que
parece não existirem limites entre elas. Além disso, muito mais do que prestar-
se à construção de um estilo, a correlação leitura-escrita não somente coloca
em contato a retórica com a literatura
14
, na medida em que o discurso retórico
se pode tornar mais eficiente, ao assimilar qualidades do texto literário, mas
14
Utilizaremos a palavra literatura incluindo-se nela o sentido de poética para significar a
criação literária em sentido amplo.
25
também constitui-se num poderoso mecanismo de acesso e consolidação de
uma cultura geral.
Quintiliano constrói sua Institutio ancorado em numerosos conceitos,
dentre os quais destacamos um, denominado firma facilitas (X, 1, 1) (propomos
que equivalha a algo como “inabalável eficiência”). Sua pertinência ao tema
leitura-escrita é grande, pois é no exercício da leitura e na preparação escrita
de um discurso que o orador fortalecerá as habilidades linguísticas que lhe
permitirão ser eficiente.
Como veremos de modo mais desenvolvido nos capítulos seguintes, os
elementos essenciais do sistema retórico estão sintetizados no Livro X, que
nele se encontram sugeridos os meios de construir aquela ponte entre literatura
e retórica; as indicações de acesso à cultura geral do mundo acadêmico
(filosofia, história, jurisprudências); nele se relaciona um leque bibliográfico que
encaminha à “modelar e boa leitura”, enfatizando-se sob este aspecto a
imitação; se direciona ao aprimoramento da prática da escrita e do exercício da
memória. O mais importante, no entanto, é que o tratamento de todas essas
questões tem como fim oferecer as condições de base para a sedimentação da
firma facilitas.
Uma outra particularidade relevante nessa relação retórica-literatura
pode ser identificada nos critérios utilizados por Quintiliano para selecionar os
autores que ele recomenda: a edificação de princípios éticos.
A análise da Institutio nos permite ver que a retórica, por si só, enquanto
sistematização de um conhecimento humano, o condiciona no indivíduo a
atuação profissional segundo uma ética do “bem” ou do “mal”. Quintiliano faz
explícitas indicações de que um professor de oratória pode dar “armas ao
26
bandido” (Inst. XII, 1,1) ou, de outro modo, a ciência retórica pode prestar-se ao
“serviço do mal”
15
.
Uma vez considerada a importância do orador para a civilização romana,
numerosos expedientes, de forma explícita ou subliminar, costumam aparecer
na Institutio, através dos quais o autor pretende levar esse orador a ser e a
proceder como um “homem de bem”. É assim que devemos entender os
comentários feitos sobre os poetas. Eles traduzem a preocupação de
Quintiliano em ressaltar as qualidades técnicas da obra, mas ele o faz
utilizando-se do artifício de as identificar no poeta, no homem. Da mesma
maneira, ele censura o homem para recriminar o texto que esse tenha escrito.
Não somente dissemos ser a oratória uma manifestação concreta da
retórica, mas amesmo, em vários momentos, a tratamos como se ela fosse,
para o universo romano, a própria retórica. Em situação idêntica podemos
encontrar, nos manuais específicos, o termo elocutio: ele aparece ora como
etapa da construção do discurso, ora parte da oratória, ora parte ou a própria
retórica
16
. No entanto, atribuí-lo a uma ou a outra parte torna-se secundário, em
face da relevância que tem a elocutio enquanto objeto de estudo e de ensino,
relevância que foi reconhecida ao longo dos tempos.
15
A esse respeito lemos na Introdução à tradução portuguesa, em Perelman:
“5. Mas, suspeitar-se-á ainda: não pode a retórica servir para enganar os outros, conduzindo-
os de acordo com as conveniências de cada um? Não é a retórica demagógica, sempre sujeita
a ser um instrumento ao serviço de interesseiros?
A isto poder-se-á replicar: Por que deveria a retórica estar ao abrigo de seus maus usos? E
não será competência retórico-argumentativa aquela que contra eles nos pode, precisamente,
prevenir, premunindo-nos de eventuais abusos? A questão não parece, pois, ser uma questão
relativa à retórica, mas à avaliação do humano” (1993: 9).
16
Barthes assim observa: “.... elocutio, a que se tem por hábito reduzir abusivamente a
retórica, em razão do interesse dos modernos nas figuras de retórica, estas são parte (mas
apenas parte) da elocutio” (2006: 98).
... elocutio, a cui se ha l’abitudine de ridurre abusivamente la retorica, in ragione dell’interesse
portanto dai moderni alle figure di retorica, parte (ma soltanto parte) dell’Elocutio. Barthes
(2006: 98).
27
Se compararmos elocutio e actio, enquanto passíveis de uma avaliação
crítica, por um analista diferente do autor, veremos que essa análise se pode
fazer de modo mais efetivo na elocutio. A actio somente pode ser avaliada
enquanto estiver sendo exercício preparatório, pois o desempenho no tribunal é
obra acabada, no sentido de que não há mais como se fazerem intervenções
na estrutura formal do discurso, ou na organização e dinâmica de exposição
dos conteúdos. Além disso, a actio é melhor, senão unicamente, analisável por
um outro que o o próprio orador, que ela implica a instância da recepção.
A elocutio, por sua vez, é uma instância da produção, e tanto pode ser o
exercício da construção, como pode ser a obra final a ser confiada à memória
e, posteriormente representada como actio. Sobre ela pode exercer algum tipo
de controle o próprio autor, da mesma forma que um outro que não o autor.
Estas condições e outras situações fizeram da elocutio um ponto de
estudo dos mais explorados no ensino da retórica e nas investigações do que
teria sido a retórica antiga. Dado que sua função primordial seja a de associar
ideias (res) e palavras (uerba), para que uma motivação inicial se concretize
num resultado objetivo, a elocutio demanda para si a ciência da linguagem em
sua máxima completude. Se considerarmos que é tarefa do orador “dizer bem
e corretamente” teremos mais visível a dimensão da elocutio, pois se
encontram combinados o saber retórico e o saber gramatical, como ensina
Barthes (2006):
E assim, em seu estado canônico, a elocutio define um campo que se
apóia sobre toda a linguagem: inclui num mesmo conjunto a nossa
gramática (até o coração da Idade Média) e aquilo a que se chama a
dizione, isto é, o teatro da voz.
17
(98)
17
Eppure, nel suo stato canonico, l’elocutio definisce un campo che poggia su tutto il linguagio:
include insieme la nostra grammatica (fino al cuore del Medioevo) e quel che si chiama la
dizione, il teatro della voce. (Barthes, 2006: 98)
28
A conjugação das entidades ideia-palavra permitiu que as várias escolas
e as diferentes teorizações sobre a retórica construíssem, ao longo dos
tempos, um intrincado labirinto de caminhos e de fórmulas para descrever,
explicar e normatizar os discursos. Não sem razão se desenvolve nesse campo
de estudo, por exemplo, a estilística, conforme descreve Garavelli (2006):
O domínio da elocutio é estabelecido como o lugar de encontro da
retórica e da poética. O estudo da qualidade que torna apropriada e
ornada a expressão e, em particular, a análise dos artifícios que dizem
respeito a cada um dos estilos e dos gêneros literários abriram à
doutrina da elocução as portas da estilística. (110).
18
Esta passagem, ao falar de análise dos artifícios, conduz também a um
comentário sobre as figuras de retórica que, como observa Barthes (2006: 98),
vêm muitas vezes confundidas com a própria retórica. O preciosismo que
subjaz ao arsenal de figuras de retórica, descritas nos mais diferentes manuais,
e que beira ao abuso, vem assim descrito por Garavelli (2006):
“Não é fácil orientar-se entre as mais variadas classificações dos
manuais relativamente à elocutio, objeto privilegiado de uma tradição de
estudos e de aplicação escolástica longa e não homogênea. Não é fácil
também porque nenhum dos mais ou menos ilustres tratados manifesta
um modelo unitário e coerente. Daí as dispersões e superposições no
interior de uma mesma sistematização; as incongruências entre as
diferentes sistematizações de entidades denominadas de mesmo modo,
mas catalogadas sob esquemas e rubricas não coincidentes nas várias
descrições, mesmo que utilizem a mesma terminologia e se façam
segundo uma bagagem conceitual comum (111)
19
.
Historicamente, essa complexidade conceitual e terminológica, não
somente com relação às figuras, surge desde a sedimentação da retórica grega
18
Il dominio dell’elocutio è estato luogo de incontro della retorica e della poetica. Lo studio delle
qualità che rendono appropriata e decorosa l’espressione e in particulare l’analisi degli artifici
che se addicono a ciascuno degli stili e dei generi letterari hanno aperto alla dotrina
dell’elocuzione le porte della stilistica. (Garaveli, 2006:110)
19
Non è facile orientarsi tra le svariate classificazioni manualistiche relative all’elocutio, oggeto
privilegiato de una tradizione di studi e de applicazione scholastiche lunga e disomogenea. Non
è facile, anche perche nessuna delle più e meno illustri trattazioni manifesta un modello unitario
e coerente. Donde le dispersioni e le sovrapposizioni all’interno de uno stesso ordinamento, le
incongruenze tra ordinamenti diversi de entità denominate allo stesso modo ma catalogate in
schemi e rubriche non coincidenti nelle varie descrizioni, che pure usano la medesima
terminologia e si rifano a un bagaglio concetuale comune. (Garavelli, 2006: 111)
29
em Roma. Entre esses dois lugares, se verificam dois sistemas linguísticos
diferentes, duas civilizações marcadamente distintas que, embora se tivessem
utilizado da mesma retórica, o fizeram com perspectivas e propósitos
diferentes.
Observa-se nos manuais latinos a dificuldade dos autores em lidar,
sobretudo, com a terminologia grega e com a seleção dos exemplos. As
tentativas de solução passam, ora pela simples transliteração dos termos
gregos, ora pela criação de neologismos em latim. Quanto à exemplificação, a
Retórica a Herênio, por exemplo, opta
20
por utilizá-los não somente em latim,
mas escritos, ad hoc, pelo próprio Autor. Na Institutio, são numerosas as
citações de palavras e frases em grego. Estas duas obras traduzem a
dimensão de complexidade no tratamento do assunto.
A tradição retórica, no seu percurso pelo tempo, seguiu com dilema
semelhante ao dos romanos: repetir, transliterar, criar neologismos, tanto para
a inovação dos conceitos antigos, quanto para a formulação de conceitos
novos. De certo modo, podemos encontrar os desacordos de terminologia e
de interpretação de que fala Garavelli (2006: 111) na citação acima.
Não se pode negar a dimensão que alcançou o tema (figuras e tropos),
tanto nos domínios da retórica, quanto no dos estudos literários até o século
XIX, por exemplo. No entanto, não trataremos, neste trabalho, desse assunto e
limitaremos às poucas referências feitas até aqui, muito embora reconheçamos
20
Quoniam in hoc libro, Hereni, de elocutione
conscripsimus et, quibus in rebus opus fuit
exemplis uti, nostris exemplis usi sumus
...(Rhet ad Her., IV, 1)
porque neste livro, Herênio, escrevemos
sobre a elocução e sempre que foi
necessário exemplificar, utilizamos
nossos próprios exemplos.
30
as implicações entre elocutio e o conjunto das intrigantes e instigantes figuras
de retórica
21
.
Tudo isso que vimos comentando deve ser entendido no contexto da
civilização romana, que fez da retórica um poderoso instrumento de ação
social. A oratória, especialmente a jurídica, se serve do discurso, que não
preexiste ao orador, isto é, o discurso somente passa a ter reconhecidos a sua
existência e seu valor funcional no momento em que é proferido. O orador faz
agir o discurso na sua relação direta com a construção de uma verdade; o seu
pronunciamento acontece num processo de interação direta com um público,
que deve reagir às suas proposições. O certo é que o orador não apenas
executa uma fala, mas, ao assumir o discurso, ele atua, motivado por uma
predeterminação de força maior (sejam as intenções do poder político central,
de grupos, isto é, interesses acima do individual), de modo a concertar as
esferas do racional e do afetivo. O triunfo de sua causa não é,
necessariamente, o triunfo de uma verdade: é a disposição do racional que
opera sobre o emocional.
Um aspecto importante na ação do discurso diz respeito à formação
geral do orador. O que caracteriza esse processo pode ser descrito com o
conceito atual de educação continuada. Quintiliano percebe isso com muita
clareza, pois ensina, em sua Institutio, que a formação começa ainda em
criança e o termina no percurso acadêmico da escola de retórica. Nesse
processo de educação continuada dois momentos marcantes: a escola do
gramático e a escola do retor. Ambas têm em comum o estudo do texto escrito,
sedimentado na leitura dos considerados grandes autores. Há, no entanto,
21
Uma descrição minuciosa e sistemática das figuras de linguagem pode ser encontrada em
Lausberg (1993), especialmente no Capítulo III, Ornatus, §§ 162-463.
31
abordagens diferentes, mas, no fundo, complementares entre as duas escolas.
Enquanto o gramático explica, disseca, enfim, trabalha o digo de expressão
linguística, o retor trabalha o texto na perspectiva da construção do discurso,
ou seja, a harmonização das ideias. O saber e o fazer retóricos do orador
romano combinam, desse modo, a ciência do código de expressão linguística
com a ciência da construção discursiva, tudo isso fundado no princípio da
autoridade: a auctoritas que, etimologicamente, deriva de auctor
22
; a autoridade
que emana do poder de criação do autor.
Quando Reboul (2004) diz que “a retórica foi a primeira prosa literária e
durante muito tempo permaneceu como a única” (61), podemos deduzir que
isso muito certamente se deve à presença da literatura nos procedimentos de
ensino e formação retórica. Em Roma, essa prosa, já não como a primeva, mas
literária, se pode exemplificar em Cícero, em César e até mesmo na linguagem
refinada de Quintiliano. A qualidade dessa linguagem contribuiu enormemente
para que se classificasse a retórica como “arte funcional”, o que combina muito
bem com a índole romana, que se faz manifesta na simetria dos arcos, na
arquitetura funcional de seus aquedutos, no requinte e na sofisticação de seus
mosaicos. Em essência, os aspectos funcional e ficcional se conjugam da
mesma forma que, na retórica, é indispensável compatibilizar o racional com o
emocional.
É preciso ressaltar ainda que ao falar de orador e de discurso, em se
tratando de oratória romana, precisamos relativizar as noções que esses
termos veiculam, considerando-se a realidade em que se inscrevem.
22
Pertence ao radical de augeo, que significa “fazer crescer, acrescer; aumentar; amplificar”.
“faire crôitre, accrôitre; augmenter, amplifier” (Ernout, 1951: 1000)
32
Podemos, naturalmente, incluir o orador romano no vasto e ainda o
precisamente definido campo de significação do sujeito do discurso. Acontece,
porém, que discurso, tal como no-lo apresentam as várias correntes dos
estudos linguísticos atuais, não se sujeita a qualquer dos limites de definição
que lhe tentem estabelecer, como podemos observar na seguinte afirmação:
“Um discurso não é, pois, uma realidade evidente, um objeto concreto
oferecido à intuição, mas o resultado de uma construção” (Maingueneau: 1989,
21)
23
.
Para efeito de melhor compreender toda a edificação do sistema oratório
romano tomemos como palavra chave o termo construção. Em sua natureza
gramatical de nome de ação, derivada, portanto de um radical verbal, -stru-
(amontoar), ela demanda um sujeito agente e um objeto resultante, que inclui
as noções complementares de “final de movimento”, “ponto de chegada”,
“concretização”. Dessa maneira, obviamente, teremos o orador como sujeito e
o discurso como objeto resultante.
Mas o orador, enquanto sujeito agente de um discurso, se reveste de
uma particularidade muito singular: ele é o agente advogado do discurso do
outro; não defende a própria causa, mas fala em nome de um outro;
metamorfiza no dizer próprio o dizer do outro; sua ação é, na realidade,
intermediação.
O orador, nessas circunstâncias, igualmente precisa preencher todos os
requisitos demandados pelas condições naturais de um ato de linguagem: cabe
a ele se fazer reconhecido como quem tem direito à palavra legitimada
(Charaudeau, 2008), isto é, construir, na interlocução, sua identidade de sujeito
23
Un discurso non es, pues, una realidad evidente, un objeto concreto ofrecido a la intuición,
sino el resultado de una construcción. (Maingueneau, 1989, 21).
33
falante; fazer compartilhados os saberes; ter a consciência de que, com todas
as implicações e desdobramentos, “no seu discurso está o outro” (Authier-
Revuz: 1990, 29).
Como vimos prenunciando, a relação do orador com o seu destinatário,
para se fazer diálogo, exige daquele a acomodação de sua fala às condições
de recepção, sobretudo em termos dos passos seguidos na articulação das
ideias que vão constituir o saber a se compartilhar. Mais ainda, esse saber
compartilhado deve resultar em adesão a uma proposição intencional e
previamente visada pelo orador.
Em outros termos, o orador marcará sua identidade de sujeito falante e,
assim, proferirá uma palavra legitimada na medida em que for capaz de
conduzir seu ouvinte ao entendimento de uma mensagem da qual ele é,
inicialmente, apenas veículo, isto é, antes de a assumir como sua. O
destinatário, por sua vez, se configurará como verdadeiro interlocutor na
medida em que se permita convencer de, e aderir à proposição do orador.
A legitimação do orador enquanto agente do discurso se efetivará
também pela inclusão do outro. Esse outro envolve, além do representado em
um processo jurídico, por exemplo, os incontáveis outros que contribuem para
a consolidação do discurso eficiente, aqueles nos quais o orador vai buscar
elementos para edificar sua firma facilitas.
O fato marcante no projeto de educação oratória proposto por Quintiliano
entendemos ser a convicção, ou mais do que isso, a consciência de que o
discurso do orador não se faz apenas com o talento pessoal, mas também com
a presença deliberada de elementos formais assimilados e reelaborados de
outros discursos, como a linguagem poética, por exemplo; de estratégias
34
argumentativas experimentadas e aprovadas em outros oradores. Somos
levados a esse entendimento especialmente se atentarmos para a ênfase e o
tratamento dados por Quintiliano ao expediente da imitatio (imitação).
É certo que se pode especular a respeito de heterogeneidade(s)
enunciativa(s), como o faz Authier-Revuz (1990) e falar de um sujeito “que na
ilusão se crê fonte deste seu discurso, quando ele nada mais é do que o
suporte e o efeito” (Authier-Revuz: 1990, 27). Veremos, no entanto, que o
orador pretendido por Quintiliano não é um sujeito iludido na crença de ser ele
próprio a fonte exclusiva de seu discurso. Esse orador deve ser formado e
aprimorado na certeza de que precisa incorporar elementos externos advindos
do talento alheio, ou seja, o seu discurso é conscientemente permeado pelos
discursos dos muitos outros.
. As condições em que acontece a performance oratória nos fazem ver
muito claramente que, em sua ação intermediadora, o orador é, de fato, o
suporte e, ao mesmo tempo, o efeito de seu discurso. Ser suporte e efeito de
seu discurso significa, além de tudo, que o orador precisa ser ele próprio o
resultado das verdades que ele constrói e profere, da mesma forma que as
verdades construídas são a consequência de outras verdades anteriormente
incorporadas por esse orador.
Esta introdução dever ser vista como o contexto em que se vão
desenvolver, pelos capítulos seguintes, algumas ideias acerca da retórica
romana.
35
CAPÍTULO I
IN VERBIS RHETORICA
Nas palavras a retórica
36
Coepi é uma forma verbal latina pertencente a um grupo muito restrito
de verbos que existem no sistema do perfectum, em outras palavras, são
formações que, por certas ou incertas razões, não têm infectum morfológico,
embora suas acepções semânticas possam equivaler, em determinadas
circunstâncias, às do sistema do presente. Coepi significava originalmente “eu
me pus a”, mas com o tempo assumiu também a significação de “eu comecei”.
Servimo-nos desta imagem para representar a natureza deste trabalho:
lidamos com o passado,o numa perspectiva de um passado absoluto,
definitivo, irrevogável, mas um passado profundamente dinâmico e muito
fecundo, a nos fazer presentes as mais refinadas indagações, a nos levantar
intrincados questionamentos acadêmicos, a nos sugerir, nas reflexões de
ontem, reflexões para o hoje.
Pretendemos apresentar ideias, não debatê-las como quem quer fazer
prevalecer seus pontos de vista a qualquer preço, ou quer dar sequência a
discussões de questões polêmicas, mesmo sabendo que sobre elas nunca
poderá haver qualquer sombra de consenso.
Buscamos ideias na retórica antiga, não esparsamente no universo
inesgotável da retórica, mas numa parte de um único livro de uma obra
específica: o Livro X da Institutio Oratoria
24
, de Quintiliano. Mesmo nessa parte
aparentemente restrita da obra se poderiam identificar muitos outros pontos
para discussões intermináveis, no entanto, preferimos analisar o papel do
poeta e da obra literária na formação do orador e na construção do discurso
que esse orador há de proferir.
24
A divisão de uma obra antiga costumava ser feita em livros. Cada livro correspondia, grosso
modo, a um rolo de pergaminho.
37
Duas questões altamente provocadoras se colocam nessa relação entre
o orador e o poeta: a prevalência das figuras humanas do orador sobre seu
discurso, do poeta sobre a obra literária; a ênfase dada por Quintiliano a
valores de natureza moral. Na verdade, um padrão de comportamento ético é,
em última instância, o que procura Quintiliano caracterizar, e, para isso, se vale
também da obra literária. Não se trata, porém, de toda e qualquer obra literária,
mas somente daquelas obras cujos autores apresentem no seu modo de
escrever alguns aspectos práticos, exemplificadores do fato retórico; esses
autores e obras que também tenham algo a dizer em suporte a uma conduta
pessoal e social que se pretende irrepreensível.
Onde devemos buscar as razões para essa disposição moralizante de
Quintiliano? O que motivaria um ex-advogado, burocrata e professor da arte
oratória a marcar posição em defesa de princípios éticos e a propor uma figura
de orador que seja a tradução do refinamento técnico e da sensibilidade
artística, sustentado por uma conduta humana, o mais possível, isenta de
vícios?
Embora não nos seja possível responder cabalmente a indagações
dessa natureza, nos propomos a fazer algumas reflexões que venham
contribuir para o aprofundamento desses questionamentos. Mais do que de
uma simples possibilidade, podemos falar de certeza quanto ao fato de que as
condições sociopolíticas do tempo de Quintiliano estão representadas em sua
Institutio. Ainda que não se façam discussões explícitas sobre questões
sociais ou sobre política, sobre filosofia, ideologia ou sobre tendências
comportamentais, nenhum desses elementos escapa ao perspicaz senso
crítico do experimentado Professor de retórica.
38
À época em que foi escrita a Institutio, Roma havia completado o
primeiro século da consolidação do Império. Nesse espaço de tempo
Quintiliano viveu plenamente integrado e muito próximo dos dirigentes políticos.
Dois indicadores o marcantes na representação dessa proximidade: a) no
império de Vespasiano, Quintiliano dirigia uma escola de retórica
subvencionada pelo Estado; b) ele fora encarregado da educação dos netos
(sobrinhos netos, segundo alguns autores) do próprio Imperador Domiciano.
37 d.C.
Fim do império de Tibério
(sucessor de Augusto).
37 a 41 Império de Calígula.
41 a 54 Império de Cláudio.
54 a 68 Império de Nero.
68 a 69 Oto, Galba e Vitélio (escolhidos
como imperadores pelos soldados)
69 a 79 Império de T. Flávio Vespasiano.
Entre 30 e 35
d.C.
Nasce
Quintiliano
79 a 81 Império de Tito (filho de
Vespasiano)
Em 95 Morre
Quintiliano
81 a 96 Império de Domiciano (irmão de
Tito)
25
que ressaltar, no entanto, que ele não presenciou nenhum momento
significativo de movimentos de oposição ao regime vigente: havia, sim,
disputas pelo poder, mas não lutas por mudança da forma de governo. A
república, tão cara a Cícero, muito havia-se dissolvido e fora
irremediavelmente liquidada sob o poder de Augusto. O poder imperial desse
tempo em curso, por força de sua natureza e índole, se impunha e
sedimentava de absolutismo as suas bases.
Se os tempos estavam mudados, por que não se mudariam com eles os
homens? Se, por outro lado, os homens fazem seu tempo, como não haveriam
de, igualmente, fazer mudada sua retórica? Seria pretensiosa a intenção de
25
Para informações mais completas acerca deste quadro, conferir Bornecque (1976: 16).
39
Quintiliano, ao propor uma renovada figura de orador, que pudesse ser
mensageiro de novas propostas de atuação em seu meio político?
Como se pode depreender da Institutio, é na figura de Cícero que se vai
buscar inspiração para delinear o perfil e ressaltar as características mais
significativas do orador ideal
(Inst., XII, 1, 19)
. Havia da parte de Quintiliano
motivos para a escolha do modelo e, por isso mesmo, o podemos deixar de
chamar a atenção, aqui e em outros lugares deste trabalho, para alguns
aspectos muito significativos da pessoa de Cícero e do momento político em
que ele atuou.
Cícero fora um homem extremamente consciente do seu tempo:
dedicado aos estudos, atuante com brilho nas causas particulares de seus
concidadãos e ferrenho defensor daquelas causas públicas em que acreditava
ou em que estivesse interessado. Pela sua forma de atuação em postos de
poder político, ou fora dele, viveu na admiração daqueles que nele confiavam e
foi morto no ódio daqueles a quem fazia oposição. É interessante notar que
Cícero foi assassinado em 43 a.C. por mando de Marco Antônio e com o
consentimento de Augusto, sendo as divergências políticas o verdadeiro
motivo. Segundo narra Plutarco (Antonius, 20), Marco Antônio teria exigido que
lhe trouxessem a cabeça e a mão direita de Cícero.
Ressaltamos que é altamente simbólica a exigência de Marco Antônio:
este seria o vencedor daquela cabeça, que nunca mais pensaria, e daquela
mão direita, que não mais poderia escrever.
Entendemos que havia uma situação de conflito a ser enfrentada por
Quintiliano, pois a oratória de seu tempo não lhe era do agrado, conforme ele
próprio teria manifestado em seu tratado De causis corruptae eloquentiae. Por
40
outro lado, a oratória pretendida por ele não seria compatível com as condições
da vida política vigente.
As formas de organização política do Império o permitiam o
desenvolvimento de uma oratória combativa, não comportavam mais os
debates acirrados das assembleias. O Senado do povo romano se
encontrava enfraquecido e não tinha mais como desempenhar seu papel
histórico de instância decisiva nas questões do Estado. Tudo, enfim, incluído aí
o sistema jurídico, se encontrava sob o poder imperial de um só.
Como exemplo definitivo dessa situação pode-se eleger o texto Res
Gestae Diui Augusti
26
. Trata-se de um documento que foi escrito pelo
Imperador Augusto e concebido para ser divulgado postumamente para relatar
a própria trajetória à frente do império romano. Como se sabe, Augusto não foi
apenas o primeiro imperador em ordem cronológica
27
, mas se tornou um
modelo de homem de governo para todos os que, no império romano, o
sucederam.
Importa-nos aqui tratar de uma “verdade” que o discurso procura
construir, ao invés de questionar a veracidade dos fatos ou opiniões nele
relatados. A leitura do texto nos leva a formar, na figura de um império, a
imagem de um homem que seleciona os episódios mais relevantes de sua
história pessoal, concilia-os com a história do “estado” que ele governou e os
transcreve na primeira pessoa gramatical. É o discurso do EU; é o “estado” que
fala na primeira pessoa, segundo interpretamos.
26
Ver SUETONIO e AUGUSTO. A vida e os feitos do Divino Augusto. Trad. Matheus Trevizam
et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
27
Estamos falando do segundo império, iniciado em 28 a.C.
41
1. Os Dados
Fundamos nossa convicção baseados nos dados que o texto fornece,
considerando-se que a natureza desses dados se materializa em fatos
gramaticais. Não parece mera casualidade que seja empregada 117 vezes a
primeira pessoa do singular, em contraposição a 97 vezes em que os verbos se
empregam na terceira pessoa (44 na terceira do singular, 53 na do plural). A
denotação da primeira pessoa também se manifesta por larga ocorrência das
formas pronominais oblíquas (me aparece 31 vezes, embora ego nunca ocorra)
e pela presença do radical Aug- que forma Augustus (5 vezes) e auctor /
auctoritas (3 vezes). À primeira pessoa ainda se faz referência através dos
possessivos meus (55 vezes) e noster (7 vezes).
O fato de o texto ter sido escrito para os steros, para o julgamento
pelo futuro, pode ter demandado de seu autor a necessidade de explicitar a
autoria dos feitos nele narrados, a identidade de seu narrador. Se o que
acabamos de dizer pode ser considerado simples conjectura, nada, no entanto,
nos desautoriza a leitura dessa “autobiografia”, diríamos, como a própria
biografia que se quis para o “estadoromano de então. Ao se assumir como o
governante, em primeira pessoa, Augusto nos permite avaliar a dimensão que
tem o peso do indivíduo (ciuis) na construção e administração da “Res Publica”,
ao mesmo tempo em que nos apresenta na sua forma escrita o “discurso” que
o “estado” devesse proferir. Enfim, o modelo de governo em evidência se
caracteriza pelo poder de um só, e fala, em primeira pessoa, na língua de um
só.
As características apontadas no texto de Augusto se tornam mais
expressivas, se o compararmos, por exemplo, com os relatos da campanha
42
das Gálias, o De Bello Gallico, de Caio Júlio César. O mais notável nesse
relato é que, mesmo sendo também um panfleto com fins eleitoreiros, César
nunca se coloca em primeira pessoa. Como Afirma Constans (1984), “César
via chegar o momento em que seria chamado de volta a Roma, e convinha
preparar a opinião pública para sua candidatura a um segundo consulado”
(X).
28
Inquestionavelmente o diferentes os tempos, os sistemas políticos, as
ordens jurídicas, mas ambos (César e Augusto) têm a inegável pretensão de se
fazerem conhecidos. César fala, principalmente, para seus contemporâneos e
tem interesses voltados para um futuro próximo. Augusto se volta, de modo
particular, para o leitor futuro e propõe uma reflexão sobre o passado. Se, em
Augusto, a primeira pessoa assume o discurso e se faz, ela própria, o tema do
discurso, em César se transfere para o leitor a tarefa de, mediado pelo texto,
construir a imagem do comandante ousado e vencedor, capacitado, portando
para assumir o governo de seus concidadãos. Ao invés de se ler algo como
“Eu ordenei”, lê-se “O César ordenou”. Comparemos alguns exemplos colhidos
em ambos os autores:
Augusto (Res Gestae Diui Augusti) César (Bello Gallico, Liber I)
I- Annos undeuiginti natus exercitum
priuato consilio et priuata impensa
comparaui.
I - Aos dezenove anos, formei um exército
por minha iniciativa e às minhas custas.
III- Bella terra et mari ciuilia externaque
toto in orbe terrarum saepe gessi
uictorque omnibus ueniam petentibus
ciuibus peperci.
III- Muitas vezes fiz guerras, civis e
externas, na terra e no mar por todo o
mundo, e, vencedor, poupei todos os
I,12 - Qua in re Caesar non solum
publicas, sed etiam priuatas iniurias ultus
est...
Por meio dessa ação, César vingou não
somente as injúrias públicas, como
também as particulares ....
I,15 - Idem facit Caesar equitatumque
omnem, ad numerum quattuor milium,
quem ex omni prouincia et Haeduis atque
eorum sociis coactum habebat,
praemittit...
O mesmo faz Cesar e manda na frente a
cavalaria toda, em número de quatro mil
28
... César voyait arriver le moment il serait rappelé à Rome, et il convenait de préparer
l’opinion pour sa candidature à un deuxième consulat. (Constans, 1984: X).
43
cidadãos que pediam clemência.
X- Nomen meum senatus consulto
inclusum est in saliare carmen et
sacrosanctum in perpetuum ut essem et,
quoad uiuerem, tribunicia potestas mihi
esset, per legem sanctum est.
X- Meu nome foi incluído, por decreto do
senado, no canto dos sacerdotes sálios
para que eu fosse perenemente sagrado
e, enquanto vivesse, ratificou-se por lei
que eu tivesse a autoridade tribunícia.
cavaleiros, a qual ele havia reunido da
província inteira, dos Éduos e dos
alidados destes....
I,17 - Tum demum Liscus oratione
Caesaris adductus quod antea tacuerat
proponit...
Por fim, Lisco, levado pelo discurso de
César, expõe o que anteriormente havia
calado...
2. As tendências do modelo oratório no período imperial.
Em se tratando da oratória, a afluência ao fórum tinha ouvidos abertos
preponderantemente às vozes de palavras fugazes. O cidadão comum não
podia efetivamente atuar, como teria sido possível em outros tempos, nas
decisões políticas. Eram reflexos dessa situação os discursos pronunciados a
uma plateia de espectadores, antes que a uma assembleia de concidadãos
ativamente participantes.
Dominava, nesses tempos, quase de forma absoluta, a oratória a que
poderíamos chamar de “discurso de ornamentação”: a oratória da causa sem
causa. Os embates dos oradores haviam-se transformado em espetáculos de
auditório, ao abrigo da luz do céu e da poeira do rum. O discurso oficial era a
voz solene do elogio a si mesmo ou a indivíduos afinados com os interesses do
Estado.
As escolas de retórica, que tinham por função oferecer aquilo que para
nós hoje equivaleria a um ensino de nível superior, favoreciam a formação do
orador, por vezes, excessivamente cnico, mas nem sempre de muito brilho;
era também uma escola cuja competência se limitava a moldar o burocrata
acomodado. Os exercícios acadêmicos de eloquência escapavam aos eventos
44
do mundo objetivo para lançarem-se prioritariamente à irrealidade das causas
fictícias e à dos temas fantasiosos.
Estas queixas, embora se encontrem dispersas pela Institutio, refletem o
estado de espírito de Quintiliano. Devemos entender, no entanto, que não se
trata de apenas fazer desfilarem lamentações. Muito pelo contrário, os
conteúdos dessas queixas são para Quintiliano motivos de reação, que se
materializa na forma de um manual de oratória.
A proposição de Cícero como o modelo a partir do qual se projeta a
figura do orador ideal torna-se mais significativa ainda, se levarmos em conta o
lapso de tempo decorrido entre a morte de Cícero (43 a.C) e a publicação da
Institutio 95 d.C.): haviam-se passado quase 150 anos. Se esse é um
espaço de tempo considerável e dentro do qual ocorrem, naturalmente, muitas
mudanças, o que estaria preservado na figura de Cícero que o tornaria
atualizável e útil para os tempos de Quintiliano?
Muito certamente ao dizer que a palavra Cícero não era simplesmente
um sinônimo de, mas o verdadeiro nome da oratória (Inst., X, 1, 112),
Quintiliano traduzia e sintetizava nele a sua própria concepção de orador e de
oratória. Para Quintiliano, em Cícero estavam em equilíbrio o conhecimento
teórico, a habilidade técnica, a sensibilidade poética, o vigor moral: ingenium
tantum quanta ars, ousaríamos dizer.
Uma personalidade assim descrita era perfeitamente compatível com os
princípios sobre os quais se fundavam as relações dos romanos com a
oratória. Pernot (2003), assim se pronuncia:
O peso (grauitas) e a autoridade (auctoritas) do orador são elementos
essenciais do discurso; aquele que fala é ouvido não apenas por causa
45
de suas palavras em si mesmas, mas, sobretudo, por causa de sua
posição na cidade, que dá às suas palavras um valor primordial
29
Como se pode observar, competência oratória, que resulta em
eloquência eficaz, não se realiza dissociada da presença humana que se
impõe por sua força moral. Em síntese, o orador tem de ser ele mesmo a
própria palavra que ele pronuncia, isto é, o orador age palavras
30
. De outro
modo, poderíamos dizer que a força de um discurso é a personalidade de
quem o pronuncia. Esta dimensão é tratada em Pernot (2003) como “a palavra
‘performativa’”:
É que a palavra, em Roma, é assunto sério. Na origem, ela é sagrada e
se liga à ordem do mundo. [ ...] A palavra é ‘performativa’, no sentido de
que ela é, por si mesma, uma ação; que possui uma eficácia e produz
uma situação nova. [...] Não se trata, pois, de pronunciar discursos
brilhantes ou sutis, mas palavras apropriadas, nas quais se pode
confiar. A qualidade principal é a ‘confiança’ (fides). (117-118)
31
Uma vez que este era, para a sociedade romana, o valor da palavra
publicamente pronunciada, a mesma escala de valores, como vimos notando,
se aplicava ao orador, a quem cabia a função de torná-las confiáveis.
Quintiliano reconheceu em Cícero esses valores, mas ainda assim buscava o
orador ideal. Isto significa, segundo entendemos, que havia por parte de
Quintiliano a consciência de que a oratória de Cícero era um modelo a ser
seguido, mas com uma perspectiva de futuro. Essa projeção de futuro se
baseava no sentido de que Cícero não somente continuava sendo atual, mas
29
Le « poids » (grauitas) e l’ « autorité » (auctoritas) de l’orateur sont des éléments essentiels
du discours ; celui qui parle est écouté non pas tant à cause de ses paroles en elles-mêmes
qu’à cause de sa position dans la cité, qui donne à ses paroles un valeur nécessaire ... (Pernot,
2003: 116)
30
Esta expressão foi elaborada por evocação, reminiscências de duas frases de Plauto: lapides
loqueris (Aululária, 152), (= tu falas [como se atirasses] pedras; tuas palavras são como pedras
atiradas); nugas agis (Aululária, 651), (tu ages besteiras; dizes bobagens).
31
C’est que la parole, à Rome, est une affaire sérieuse. À l’origine, elle est sacrée et elle
engage l’ordre du monde. [ ...] La parole est « performative », en ce sens qu’elle est par elle-
même une action, qu’elle possede une efficace et produit une situation nouvelle. [...] Il ne s’agit
donc pas de prononcer des discours brillants ou subtils, mais des paroles appropriées,
auxquelles on peut se fier. La qualité principale est la « confiance » (fides). (Perntot, 2003: 117-
118)
46
seria também referência para as gerações vindouras, dentro de um contexto
social, político e cultural pretendido por Quintiliano. Em outras palavras,
recorrer a cero não significava ter atitude retrógrada, mas buscar elementos
para a consolidação do futuro. É também assim que vemos o tratamento
dispensado por Quintiliano aos autores que o antecederam. A impressão que
esta atitude nos transmite é a de que sempre é possível aprofundar a análise
do passado, sem que seja pela perspectiva do retrocesso (Inst. X, 6, 6).
Quintiliano escrevera também um tratado, cujo título estampa o assunto
a se desenvolver e constitui uma tomada de posição: De causis corruptae
eloquentiae
32
. Ao qualificar essa eloquência como corrompida, Quintiliano
expressa um juízo, ao mesmo tempo em que se encarrega de esclarecer em
que consistia essa corrupção e quais as suas causas.
Se estiverem corretas as datas estimadas pelos pesquisadores, a
Institutio foi concluída e publicada posteriormente a De causis. As datas mais
referidas são o ano de 89 para a publicação do De causis, e os anos 94 ou 95
para a Institutio. Desse modo, podemos entender a Institutio como muito mais
do que uma simples reação: é, antes de tudo, uma resposta objetiva, prática,
aos descaminhos da oratória de um tempo.
Segundo explica Brink (1989), à época de Quintiliano, a formação
acadêmica oferecida pela escola de retórica vinha cumprindo seu papel de
fornecer o treinamento adequado de pessoal para os quadros administrativos e
32
Embora o texto não tenha sido preservado, há referências a ele na própria institutio,conforme
descreve Brink:
“Tudo que sobrevive do De causis provém de duas referências encontradas na Institutio, não
fontes externas. As referências são citações raramente literais, são antes apontamentos,
repetições de sequências de argumentos, e termos técnicos. Na melhor das hipóteses, são
anotações, não fragmentos no sentido convencional” (1989: 473).
All that survives of the De causis comes from two references to it in the Institutio; there are no
outside sources. The references are rarely literal quotations, but rather extracts, repetitions of
trains of arguments, ad technical terms. They are reports rather than fragments in the
conventional sense. Brink (1989: 473).
47
para as atividades forenses do Estado. No entanto, essa formação não
favorecia a uma oratória política, tal como havia sido, por exemplo, a oratória
de Cícero. A educação em geral encontrava-se despolitizada, no sentido de
não envolver o estudante nas questões de natureza prática e nas reflexões
acerca da vida política de seus concidadãos. O sistema educacional não podia
falar contrariamente à língua do poder constituído: eram de competência
exclusiva do comando central do Império todas as ações e todas as questões
de natureza política e ideológica que dissessem respeito ao Estado e ao
governo das pessoas. Se considerarmos que esse modelo de escola é
patrocinado e até mesmo financiado pelo próprio Império, inevitavelmente a
oratória aí privilegiada será compatível com as tendências de um discurso
vazio de participação política e, mais do que isso, despolitizador.
Quintiliano não somente reagiu a essa concepção de escola e de
oratória, mas teria alcançado até mesmo a compreensão do Imperador
Vespasiano em relação ao restabelecimento de novas bases para o modelo de
ensino. É o que entendemos nesta passagem de Brinck (1989):
Esse direcionamento institucionalizou uma variante não política para
substituir o modelo originalmente político de oratória, que havia morrido
com Cícero, quando, então, não existiam escolas públicas e um tesouro
imperial para custear essas despesas. O novo modelo pode ter
seriamente falhado em termos de sua aceitação pela monarquia
extremamente autocrática, na medida em que fornecia um bem treinado
pessoal para as tarefas forenses e administrativas, enquanto que,
simultaneamente, despolitizava a oratória e, assim todo o sistema
educacional. Vespasiano teria dado conta dessas consequências. Em
alguma medida Quintiliano o teria convencido de que a moral intelectual
e pública da retórica, a vastidão do seu ensino ciceroniano e a nobreza
e sobriedade de seu moderno e também classicizante estilo serviriam
melhor a ele do que as extravagâncias, ou simples fraqueza das outras
escolas. Nisso ele estaria certo. (475)
33
33
This appointment institutionalized a non-political variant to replace the originally political form
of oratory that died with Cicero, when there were no publicae scholae and no imperial treasury
to defray the cost. The new variant can hardly have failed to be acceptable to a largely
autocratic monarchy because it provided a trained personnel for forensic and administrative
48
Apesar desse feito, aceitando-se como verdadeiras as palavras de Brink
(1989), o tratamento recebido por Quintiliano de alguns historiadores da
literatura latina nem sempre lhe é favorável, basta ver a análise que sobre ele
faz, por exemplo, Enzo V. Marmorale (1974). Inicialmente, ele interpreta nas
atitudes de Quintiliano a intenção de “transformar os costumes literários de seu
tempo” (68). Mais adiante afirma:
Quintiliano não ama a moda do seu tempo, mas, em vez de estudar as
causas políticas e morais que a produziram, para as apreciar melhor,
ilude-se supondo que os males podem ser sanados exclusivamente
com uma sugestão de remédios. Assim, havendo notado a corrupção do
gosto, julga poder remediá-la, aconselhando a imitação de Cícero ... [
...] Contudo, os remédios que ele sugere são contra-indicados,
precisamente porque não conhece o seu tempo e não se apercebe de
que as razões da decadência se encontram mais na política da época
do que nas escolas de declamação. (69-70).
A interpretação de Marmorale (1974) parece-nos apresentar a figura de
Quintiliano como alguém pretensioso, contrário às tendências culturais de seu
tempo e, acima de tudo, ingênuo em sua crença na imitação.
Entendemos que é possível avaliar de maneira mais positiva as
proposições de Quintiliano, especialmente se nossa leitura for orientada pelo
princípio contido, por exemplo, no aforismo ne sutor ultra crepidam (=que o
sapateiro não esteja acima de sua sandália).
Parece-nos que, indubitavelmente, Quintiliano se coloca nos limites de
sua competência de professor de oratória. Exemplo disso é o fato de que, ao
apresentar sua recomendação de autores a serem lidos, não faz propriamente
uma teoria ou uma crítica literária, em sentido estrito, nem mesmo chega a
fazer análises particularizadas de obras. Acresça-se que os nomes citados não
purposes, while, at the same time, depoliticizing oratory and thus education in general. These
consequences Vespasian will have seen; and it is any rate possible that Quintilian convinced
him that the rhetorician’s high-minded and public-minded ethos, the width of his Ciceronian
teaching, and the nobility but also sobriety of his modern yet classicizing style would serve him
better than the extravagances, or simply weaknesses, of other schools. In which he would have
been right.” (Brinck, 1989: 475)
49
se resumem aos de poetas, mas incluem-se entre eles os de historiadores,
filósofos e outros oradores. Como, então, se poderia atribuir a ele a pretensão
de querer transformar os costumes literários de seu tempo? Em que medida
um professor de oratória seria eficientemente ousado a ponto de provocar
tamanha transformação? Se não bastassem estas considerações, Quintiliano
demonstrava ter clareza da enorme diferença existente entre as linguagens do
texto literário e da exposição blica de um discurso pronunciado diante de um
tribunal ou de uma assembleia. Isso podemos ver comprovado nos termos com
os quais, ele descreve, com precisão, as diferenças entre a leitura de um texto
e a audição de um discurso:
Lectio libera est nec ut actionis
impetus transcurrit, sed
repetere saepius licet, siue
dubites siue memoriae penitus
adfigere uelis. (Inst., X,19)
A leitura é livre, nem mesmo transcorre como
o ímpeto de um discurso proferido: é permitido
ir e voltar muitas vezes, seja porque ainda
restam dúvidas, seja porque tudo se queira
fixar no mais profundo da memória.
Quintiliano trata do orador e, com certeza, sabe que não é mudando
apenas o orador que toda a sociedade será transformada. No entanto o orador
também precisa fazer a sua parte na ação transformadora, principalmente em
face do valor que assumia a palavra na sociedade romana.
Se ele busca a figura do orador ideal, e se a imitação é relacionada
como uma das estratégias para se alcançar esse objetivo, seguramente é
preciso ultrapassar o entendimento da imitação como servilismo ou entrave ao
desenvolvimento. Ao contrário, queremos ver no projeto de Quintiliano o
processo da imitação como um momento desencadeador da inovação.
Pretendemos, nos passos seguintes, ampliar as discussões suscitadas
pela leitura do Livro X da Institutio Oratória, de Quintiliano, tendo como
50
objetivos principais identificar a natureza das relações entre o orador e o autor
do texto literário; caracterizar a noção de imitação enquanto fator de inovação.
Temos, ainda, a intenção de dar consistência a nossas argumentações,
orientados, sobretudo, pela certeza de que a Institutio se insere num contexto
histórico e cultural bastante definido: é uma obra que fala não apenas de um
tempo, mas principalmente do ser humano capaz da palavra em ação e que se
pode fazer eloquente. Não podemos ignorar também que a Institutio assume
um valor extraordinário, na medida em que ela é a própria essência do que
ensina, tal qual o orador que se faz o discurso pronunciado.
51
CAPÍTULO II
IN RHETORICA ORATORIA
Na retórica a oratória
52
NOVI figura no dicionário latino em sua condição de primeira pessoa do
singular do pretérito perfeito do indicativo ativo de nosco, verbo que ostenta
uma estrutura morfológica pertencente ao grupo dos chamados verbos
incoativos, que veicula a ideia complementar de “começar a ...”. Em sua
acepção definitiva, nosco significa propriamente “eu começo a tomar
conhecimento de”. Ao perfeito noui cabe, então o papel de expressar a noção
de “eu sei, eu conheço”, para nós falantes do português uma forma gramatical
de presente. Diante desse fato, observamos em gramáticas do latim serem
descritos sob o rótulo de “Pretérito perfeito presente” (perfectum praesens)
(Berge et alii, 1973: 260) este e outros verbos. A esse mecanismo de
expressão linguística, além das ideias de permanência; do que acaba de ser
concluído; do que passa a ser definitivo, subjaz a percepção de que o
conhecimento é um resultado, isto é, numa linha de sucessão, conhecer é
consequência.
Tomemos como exemplo os seguintes versos de Ovídio, que mostram
bem essa correlação de tempos: nouit, perfeito, está na mesma linha temporal
de scit, presente.
Scit bene uenator, ceruis ubi retia tendat,
Scit bene, qua frendens ualle moretur
aper;
Aucupibus noti frutices; qui sustinet
hamos,
Nouit quae multo pisce natentur aquae:
(Ars Amatoria, I, 45-48)
Bem sabe o caçador onde deva armar
redes aos cervos,
Bem sabe por qual vale o javali
rangedentes vaga;
São conhecidos pelos passarinheiros
todos os arbustos; aquele que segura
suspensos anzóis
Conhece que águas são nadadas pelo
cardume numeroso
Ovídio se utiliza das duas formas aproximadamente como sinônimas, na
realidade, porém, entre elas uma diferença de sentido: originalmente scio
53
quer dizer “estou a par de” (facere aliquem scientem = fazer alguém sabedor
de, informar a alguém), enquanto que nosco, propriamente gnosco, significa
“alcançar um conhecimento”.
À noção de conhecimento se pode associar também, mas em relativo
distanciamento conflitante, a de experiência, como descreve Connor (2000) em
sua obra Cultura Pós-Moderna:
Essa formulação baseia-se num sentido de separação inerente entre
experiência e conhecimento, uma crença de que, quando
experimentamos a vida, podemos compreendê-la parcialmente e de
que, quando tentamos compreender a vida, deixamos de experimentá-la
de fato. De acordo com esse modelo, o ato de conhecer está sempre
condenado a chegar tarde demais à cena da experiência. (11)
Em que pese essa constatação, há, porém, seguros indícios de que se
pode “especular se o conhecimento e a experiência não poderiam ser
integrados num contínuo mais complexo”. (Connor, 2000: 11). Esse complexo,
no entanto, se amplifica enormemente, quando se trata de tentar estabelecer
com o passado um contínuo de formulações teóricas. Exatamente isso vemos
quando lidamos com um texto, por exemplo, da antiguidade latina, sobretudo
se a finalidade básica desse texto é a construção de um conhecimento, que se
deve materializar numa habilidade de natureza eminentemente intelectual,
cognitiva: a eloquência enquanto expressividade da competência oratória.
Mesmo que não seja propósito deste estudo aprofundar discussões
acerca das relações entre experiência e conhecimento, especialmente no
tocante ao grau de aproximação ou de distanciamento que esses conceitos
suscitem ou imponham, não há como não levá-las em conta numa
circunstância em que se constitui objeto de estudo a colocação em prática de
um saber que se consolida basicamente na experienciação.
54
Por séculos e séculos, milênio e séculos Quintiliano foi um dos principais
nomes da ciência oratória, exatamente como ele próprio disse de Cícero, se
nos é permitida a comparação:
vero id consecutus ut Cicero iam non
hominis nomen sed eloquentiae habeatur
(Inst., X,1,112).
aconteceu que CÍCERO não mais
seja considerado o nome de um
homem, mas o da eloquência.
A sua obra, gigantesca em todos os sentidos, a Institutio Oratoria,
constitui um marco da inteligência humana, principalmente se considerarmos
sua localização no tempo, seus objetivos claramente definidos e, muito
especialmente, a harmonia de sua configuração estrutural, o que se pode
constatar pela sua concepção, sua organicidade, sua linguagem no apurado
estilo de quem domina o assunto e na exuberante severidade de quem, no
ensinar, faz, de maneira ainda melhor, aquilo que ensina a fazer.
Mais do que um inventário de cnicas, o livro é permanente formulação
e discussão de conceitos sicos e de práticas relativamente aos campos da
retórica e da eloquência. Embora não seja um manual para iniciantes na arte
do discursar, não falta em Quintiliano a preocupação em oferecer ao aprendiz
todos os elementos de que este precisará para compreender integralmente um
conteúdo. Vale registrar como exemplo insofismável a seguinte passagem:
Neque enim artem grammaticam
componere adgressi sumus (Inst., I, 5,
54).
Nem verdadeiramente nos
propusemos compor uma arte
gramática.
Como se pode notar, o autor esclarece que não é seu propósito fazer um
tratado de gramática, pois, conforme registra em outras passagens, esse
assunto diz respeito a um estágio intermediário no processo de formação do
55
orador, a escola do gramático. No entanto, dedica boa parte do primeiro livro à
descrição da língua latina em uma formulação que se tornou fonte inesgotável
de pontos de discussão e análises, as mais variadas, em toda a história
subsequente dos estudos linguísticos do latim. Isso podemos verificar no
seguinte comentário de
Pereira (2006):
De fato, ainda que o próprio autor afirme, mais de uma vez, não ter por
meta compor um tratado gramatical, uma simples leitura dos capítulos
4-9 do primeiro livro da Institutio faz ver a quantidade de informações
relativas à Gramática presentes na obra.(60)
O que vimos apontando até aqui se insere num conjunto de
preocupações de ordem ética, técnica e até mesmo estética
34
, organizado por
Quintiliano com vistas a moldar o caráter pessoal e o perfil profissional do
orador. Sem dúvida alguma, Quintiliano põe em evidência aquelas
“particularidades” descritas por Barthes (2006: 7-8) ao falar sobre retórica
antiga, isto é, técnica, ensino, ciência, moral, prática social e prática lúdica.
O foco de interesse deste nosso estudo é o Livro X, com atenção
especial para o dizer quase exclusiva ao capítulo 1, denominado copia
uerborum
35
. Mas para que se possa ter ideia da obra como um todo, e permitir
que se
contextualize melhor o objeto de nossa discussão, julgamos pertinente
descrever de modo sumário a obra inteira, destacando em cada momento os
dados mais representativos. Recorremos, para isso, a Sanz e López (S.d), em
que se encontra uma bem elaborada síntese, a qual adaptamos ao nosso
propósito.
34
Essa é uma opinião registrada em Pereira, 2006: “que ele [Quintiliano] tenha tomado a
criança do berço, se se pode dizê-lo, para conduzi-lo até a idade adulta, que ele tenha feito
dessa elocutio o ponto de partida de sua institutio, e que ele tenha atribuído tanto valor à ética,
a ponto de seu sistema ter o aspecto e valor de uma estética da vida”. (Pereira, 2006: 28)
35
A institutio é composta de doze livros, que se subdividem em capítulos. Cada capítulo se
caracteriza por desenvolver um tema específico.
56
O primeiro livro trata de questões que não se limitam especificamente à
retórica e tem como objeto principal descrever como deve ser a educação
elementar do futuro orador. Nele se fala, por exemplo, da primazia do ensino
escolar formal, se comparado ao ensino em ambiente doméstico, privado; se
fala da conveniência da estimulação precoce, da inutilidade dos castigos físicos
e se faz uma explanação de um currículo, que deve incluir gramática, ortografia
e alguns princípios básicos da composição. Inclui no elenco de suas
considerações matérias como a música, geometria, astronomia, ginástica, as
quais defende como necessárias à formação do orador que julga ideal.
No segundo livro, Quintiliano trata do ensino que faz parte das primeiras
etapas da escola de retórica. Censura veementemente os excessos das
habituais práticas de declamação, que essas se constituíam, em geral, de
exercícios sobre temas quase sempre exagerados, de pouca ou nenhuma
relação com a vida real. Nos últimos capítulos do livro se ocupa de definir a
disciplina e limitar seu objeto de estudo.
No terceiro livro inicia-se propriamente a parte mais técnica do tratado.
Depois de um preâmbulo em que anuncia o quanto pode haver de aridez nos
capítulos que virão a seguir e, após referir-se à origem da retórica e apresentar
um breve resumo de sua história, Quintiliano passa a desenvolver a teoria
retórica propriamente dita. Começa por recordar e descrever os três tipos
tradicionais de oratória, que são a epidíctica, a deliberativa e a judicial.
Os livros seguintes desenvolvem a inuentio, dentro do estudo das cinco
partes tradicionais em que se define a estrutura do sistema retórico
36
. No livro
quarto são tratadas as duas primeiras partes que compõem o discurso
36
Conforme descrito em Rhet ad Her., 1,3.
57
persuasivo
37
: o exordium e a narratio. Os livros quinto e sexto tratam da
argumentatio. Ao falar da argumentatio, que seria a parte mais propriamente
persuasiva do discurso, Quintiliano segue a tradição e divide os argumentos
que podem convencer a um auditório em dois grandes grupos, segundo
apelem para a razão ou para os sentimentos. O livro quinto trata de maneira
muito técnica e detalhada sobre os argumentos que apelam para a razão,
enquanto que o livro sexto fala da apelação às emoções e sobre o poder
persuasivo do humor, algo em que, segundo Quintiliano, Cícero era mestre.
Terminado o tratamento da inuentio, o livro sétimo passa a ocupar-se da
dispositio, isto é, a maneira pela qual se deve organizar o conteúdo de um
discurso, incluindo-se os recursos a se utilizar segundo a causa que se vai
defender, a atitude do jurado, etc.
Os livros oitavo e nono são dedicados à elocutio, isto é, a operação que
confere ao discurso sua formulação verbal definitiva. O oitavo prioriza o
tratamento das questões teóricas, procura delimitar conceitos e propõe
reflexões gerais acerca de estilo, das propriedades das palavras, de vantagens
37
O discurso persuasivo apresenta as seguintes divisões, conforme descrito em Gravelli (2006:
61):
Segundo a divisão que registra a maioria dos consensos entre os autores antigos e medievais,
o discurso se articula em quatro partes principais, algumas, por sua vez, subdivisíveis em
seções, como mostra o seguinte esquema sinótico das denominações em grego, latim e
italiano:
Secondo la divisione che registra la maggioranza dei consensi presso gli autori antichi e
medievali, il discorso si articola in quattro parti principali, alcune suddivisibili a loro volta in
sezioni, come mostra il seguente schema sinottico delle denominazione greche, latine e
italiane:
1. proóimion 1. exordium/prooemium/principium
1. esordio/proemio/inizio
2. (diégesis)
2a. parékbasis
2b. próthesis
2. narratio
2a. digressio/egressus
2b. propositio/expositio
2c. partitio/enumeratio
2. narrazione/esposizione dei fatti
2a. digressione
2b. proposizione
2c. partizione
3. pístis
3a. kataskeué
3b. anaskeué
3. argumentatio
3a. confirmatio/probatio
3b. refutatio/confutatio/reprehensio
3. argumentazione
3a. conferma/dimonstrazione/prova
3b. confutazione
4. epílogos 4. epilogus/peroratio/conclusio
4.epilogo/perorazione/conclusione
58
e desvantagens da utilização ou o de determinados recursos. O livro nove,
por sua vez, constitui-se de um apanhado bastante completo e profusamente
comentado e ilustrado dos distintos tropos e figuras.
O Livro X, como já dissemos, constituirá o centro de nosso estudo.
O livro onze começa por fazer comentários sobre o decoro e trata, em
seguida, das duas últimas partes do sistema retórico: memoria e actio. Na parte
que trata da memória encontramos um dos precedentes mais antigos das
modernas técnicas de memorização que se baseiam na associação de ideias;
são ainda feitos comentários sobre como conservar e incrementar as
faculdades de memória. Sobre a actio ou pronuntiatio, Quintiliano oferece um
estudo completo, à altura do que exige a importância capital que a essa parte
se atribui; apresenta comentários detalhados a respeito da voz (impostação,
qualidade), dos gestos (da expressão facial, do gestual do corpo e das mãos) e
até mesmo do vestuário.
O livro doze da Institutio é o livro das qualidades morais. se define o
uir bonus, de que se fala ao longo de todo o manual. Quintiliano deixa de lado a
parte técnica e volta a enfatizar temas que havia mencionado no primeiro livro.
Segundo propõe, o orador ideal, o uir bonus dicendi peritus, (Inst., XII, 1, 1)
seria um homem íntegro, de firmeza e presença de espírito, dotado de una
ampla formação cultural, alguém que põe todas essas disposições naturais e
adquiridas a serviço da oratória, da arte de convencer mediante a palavra e,
assim, um cidadão
38
competente para influir da melhor maneira possível no
cenário político, na gestão da comunidade a que pertence.
38
“Segundo Benveniste, um ciuis ‘não se pode definir a não ser em relação a um outro ciuis
(1989: 284), o que equivale a dizer que, entre os indivíduos humanos a reciprocidade é um
fator determinante na caracterização da identidade. Conquanto traduzamos ciuis por cidadão, o
seu sentido, de fato, é de concidadão. Assim, sou o concidadão do outro, na mesma relação,
59
Tal como se descreve neste último livro, merecem destaque as questões
de natureza ética. A concepção de orador, que assim se delineia, aparece
formulada em Catão (Rhet. ad Her., 14,1), em seguida foi desenvolvida por
Cícero e levada adiante por Quintiliano. Na frase uir bonus dicendi peritus nota-
se que a qualidade moral vem em primeiro lugar: bonus. O que estaria implícito
nessa qualidade? Em síntese se poderia propor que o orador, antes de dizer,
tem de ser ele próprio, a verdade que ele está para dizer. É preciso ainda
enfatizar que o orador é, por excelência, um homem blico e, assim, sua
conduta moral pessoal é, em última instância, o veículo de sua oratória.
A Institutio Oratoria, mesmo sendo um tratado técnico, segundo nossa
classificação e terminologia, tem um personagem principal, Cícero, basta ver
que seu nome aparece cerca de 426 vezes: 391 a palavra Cícero, 35 vezes
M. Tullius. Inquestionavelmente, Cícero é a mais destacada figura em se
tratando de oratória romana. Seus preceitos e a mesmo atitudes pessoais
figuram como argumentos e temas desenvolvidos por Quintiliano.
1. Cícero e a retórica
Sabemos que, entre os romanos, a oratória, enquanto expressão maior
de intelectualidade, de civilidade, enfim oratória enquanto arte, foi objeto de
cuidado por parte de homens públicos e de muitos daqueles a quem, hoje,
chamaríamos de intelectuais. Cícero, por exemplo, dedicou muito de seu
talento à reflexão sobre fins práticos da linguagem, o que se pode notar
sobretudo através de sua proposta para uma nova concepção de oratória
39
.
linguisticamente expressa de forma possessiva, em que o outro é o meu concidadão”.
(Trevizam, 2007: 7)
39
As ideias fundamentais de Cícero estão disseminadas principalmente pelos tratados: Orator,
De Oratore e Brutus.
60
Essa proposta de oratória é também uma contundente reação contra as
escolas de retores, nas quais se trabalhava apenas a forma. O aprendiz era aí
submetido ao exagerado exercício da fórmula, das regras, das técnicas de
linguagem, sem o respectivo aprofundamento do conteúdo a ser transmitido.
Era, enfim, o combate à escola do normativismo estéril. Observe-se, entretanto,
que Cícero, em seus tratados, não faz um elenco explícito de regras de
oratória, nem se propõe a dissertar exclusivamente sobre cnicas dessa arte,
mas preocupa-se fundamentalmente com a formação intelectual e moral do
orador. Esse posicionamento pode ser interpretado como a intenção de mostrar
o orador como aquele que vai garantir a veracidade das coisas que transmite
em seu discurso; ele deve ser caracterizado como a presença viva que
comprova, ensina, convence, comove e demove. Ao construir a figura de um
orador excelente, dá-lhe a agudeza de raciocínio, que se forma por meio da
aquisição de uma vasta cultura geral, bem como pelo exercício da capacidade
de aprofundar sobre temas específicos. Propõe que essa cultura seja
especialmente acumulada pelo estudo dos livros; admite ainda que isso se faça
complementarmente pela observação das coisas, dos homens e de suas ações
e experiências que se vivem no dia-a-dia.
Ac mea quidem sententia nemo poterit
esse omni laude cumulatus orator, nisi
erit omnium rerum magnarum atque
artium scientiam consecutus: etenim
ex rerum cognitione efflorescat et
redundet oportet oratio. Quae, nisi res
est ab oratore percepta et cognita,
inanem quandam habet elocutionem et
paene puerilem. (Cíc., De Orat. I,
6.20).
Pelo menos na minha opinião, ninguém
poderá ser um orador que mereça
todos os louvores, se não tiver
alcançado o conhecimento de todas as
matérias e disciplinas importantes. De
fato, é dessa cultura geral que deve
florescer e emanar o discurso, que, se
não tiver um fundo de conhecimentos
assimilados, será um articular de
palavras vãs e quase pueril.
61
A linguagem de seus discursos deve ser clara, objetiva, ousada,
elegante, adequada ao assunto e, quando oportuno, espirituosa
40
. Recomenda,
enfim, que não sejam desprezadas as virtudes morais e que o orador seja
também uma espécie de ator exímio.
Qui actor imitanda quam orator
suscipienda ueritate iucundior? (Cíc., De
Orat. II, 34.4)
Que ator é mais agradável ao imitar
uma verdade do que um orador que
a assume?
Não foi, pois, sem motivo que os romanos valorizaram tanto a arte da
Oratória: a sedução através da eloquência, não importa em que assembleia,
em que tribunal ou praça tenham sido pronunciados os “discursos”. A
sociedade romana desenvolveu, assim, um sistema de condução das massas.
Em verdade, alguns oradores conseguiam arrastar multidões, lotar auditórios,
quando pronunciavam seus discursos. Os mais renomados oradores eram
vistos e ouvidos sobretudo por aqueles que pretendiam exercer os diversos
postos da magistratura, por aqueles que tinham pretensões a cargos políticos.
As escolas de retórica eram frequentadas por aqueles que tinham como
propósito aprender ou aperfeiçoar as próprias técnicas de convencimento pela
palavra. Talvez se possa dizer, o sem riscos obviamente, que, de algum
modo, o exercício da eloquência tenha desempenhado em Roma o equivalente
de um dos papéis pedagógicos que, na Grécia, o teatro representou no
processo civilizatório do homem grego
41
.
40
Cf. também Cíc., De Orat. 1,17.
41
Julgamos importante salientar esse paralelo, que em ambas as situações estão
evidenciados os aspectos da intercomunicação, da fala em presença, do “diálogo” entre orador
e seu interlocutor (juiz, jurados, assembleia, etc.), do ator com sua plateia.
62
Entretanto não se pode deixar de reconhecer que esse teatro herdado
dos gregos, especialmente a comédia, desempenhou também em Roma
significativo papel de agente transformador, constituindo-se em momentos de
reflexão e de crítica das relações sociais, da vida coletiva e da vida individual
do cidadão romano. É curioso observar, no entanto, que, nem de longe, a
tragédia alcançou em Roma o nível de acolhida da comédia, sobretudo se se
considerar que a aceitação desta é mais notória nas faixas menos
escolarizadas da população
42
.
2. A institutio e seu destinatário
Ao longo do texto, Quintiliano explicita, de modo enfático, o público a
que se destina sua obra. Logo no primeiro livro ele diz:
Sed mihi locum signare satis est:
non enim doceo, sed admoneo
docturos. (Inst., I, 4, 17)
Basta-me, porém, chamar atenção para o fato,
pois não estou ensinando, e sim aconselhando
os que vão ensinar.
Este trecho aparece em um dos capítulos sobre a gramática,
especialmente no momento em que se descrevem alguns pontos de fonética
latina e de pronúncia. Podemos deduzir desta passagem, muito direta,
inequívoca, a intenção que tem Quintiliano de formular um “método de ensino”
para um estudante de nível mais avançado e também para os professores de
todos os estágios. Ainda que essa frase apareça num contexto em que se
discute sobre pontos de gramática, podemos estender as implicações de seu
sentido a todos os outros níveis de ensino e a todos os profissionais da área.
No Livro X lemos:
42
Confira-se Pereira (1990).
63
Verum nos non quomodo sit
instituendus orator hoc loco
dicimus (nam id quidem aut satis
aut certe uti potuimus dictum est),
sed athleta qui omnis iam
perdidicerit a praeceptore numeros
quo genere exercitationis ad
certamina praeparandus sit. Igitur
eum qui res invenire et disponere
sciet, verba quoque et eligendi et
conlocandi rationem perceperit,
instruamus qua in oratione quod
didicerit facere quam optime quam
facillime possit. (Inst., X, 1,4 ).
Em verdade, nós não estamos aqui dizendo
de que maneira um orador haja de ser
formado, quanto a isso, da melhor forma, ou
o quanto melhor podemos julgar, o
dissemos. Em outras palavras queremos
dizer de que maneira um atleta, que tenha
aprendido de seu treinador todas as táticas,
haja de ser preparado para um embate. De
modo idêntico instruamos aquele que
saiba identificar e organizar as ideias; que
tenha alcançado a racionalidade do
selecionar e do colocar as palavras; de que
modo, em um discurso, ele possa o melhor, o
mais facilmente pôr em prática tudo aquilo
que já tenha aprendido.
Quintiliano, de um lado, insiste em que se está propondo a ensinar aos
que formam o orador, de outro, faz transparecer que sua obra também se
destina ao aperfeiçoamento do orador formado. Estas passagens tornam
manifesta, acima de tudo, a visão de que o aprendizado se faz num processo
contínuo, ininterrupto e sem lapsos de tempo entre o exercício escolar e a
prática profissional rotineira.
Vale, neste contexto, enfatizar o recurso às imagens do atleta e do
soldado. Ao se confrontarem estas duas figuras se alcança profundo
simbolismo, que procuraremos ampliar. No mesmo Livro X está escrito:
Licet tamen nobis in
digressionibus uti uel historico
nonnumquam nitore, dum in iis
de quibus erit quaestio
meminerimus non athletarum
toris sed militum lacertis <opus>
No entanto, é-nos, algumas vezes, permitido
servir, em nossas digressões, do brilho que
no escrito histórico, conquanto nas coisas
de que aqui se vai tratar, estejamos sempre
lembrados de que se vai necessitar não de
músculos de atletas, mas de braços de
64
esse, nec uersicolorem illam qua
Demetrius Phalereus dicebatur
uti uestem (Inst., X, 1, 33)
soldados. Da mesma forma, aquele traje
multicolorido, que se dizia Demétrio Faléreo
vestir, nunca há de cair bem para a poeira do
Fórum.
Podemos atribuir a esse jogo de imagens duas grandes dimensões, pelo
menos. A elas o autor recorre para destacar, de um lado, os planos da
exercitação acadêmica do aprendizado e, de outro, o da prática forense efetiva;
são imagens para colocar em confronto a oratória do auditório e a do fórum.
Assim, podemos entender que na atuação do atleta está o espetáculo
cênico, o lúdico, a representação, a glorificação materializada no benefício
pessoal do vencedor. O soldado, no entanto, corre o perigo: na guerra está o
risco pessoal por uma causa presumivelmente coletiva; a vitória que, se
alcançada, terá como beneficiário maior o sistema que comanda e governa os
cidadãos, enfim, combate-se no interesse de um outro.
Estas imagens suscitam ainda um elucidativo jogo de luz e sombra nos
domínios da oratória. Segundo nos ensina Schwartz (2000),
A partir de Augusto as salas de declamação constituem um espaço que
reúne oradores conhecidos e também personalidades da vida pública.
Convém distinguir aqui entre a declamação como prática escolar dos
jovens na escola do retor e a declamação como espetáculo público.
Com efeito, nas próprias escolas de declamação se realizavam
periodicamente exibições públicas de declamações preparadas pelos
alunos, sob orientação do retor. Não era raro que, nessas ocasiões,
participassem ativamente convidados alheios à escola. Desse modo, a
declamação começa a se tornar progressivamente independente da sua
finalidade de preparar para a oratória, e se converte em um fim em si
mesma (275-6)
43
.
43
A partir de Augusto las salas de declamación constituyen un espacio que reúne a oradores
reconocidos y aun a personalidades de la vida pública. Conviene distinguir aquí entre la
declamación como práctica escolar de los jóvenes en el aula del retor y la declamación como
espectáculo público. En efecto en las propias escuelas de declamación se realizaban
periódicamente exhibiciones públicas de las declamaciones ya preparadas por los alumnos y el
retor. No era raro que en estas ocasiones participaran activamente invitados ajenos a la
escuela. De ese modo la declamación comienza a independizarse progresivamente de la
65
À luz do dia, na poeira do fórum, os embates jurídicos efetivamente
acontecem. Ali se requer o esclarecimento do fato, a lucidez das ideias, o
arrebatado fogo de uma verdade; ali o cabem os aplausos e tudo se reveste
na monocromática sobriedade da toga.
Quintiliano relata a seguinte passagem, através da qual delineia com
precisão os limites destas duas oratórias e enfatiza mais um aspecto: a oratória
contida e limitada, em sentido amplo, e circunscrita a um tema específico. Esta
se opõe à oratória do mundo a u aberto, do inesperado, que demanda a
capacidade do improviso; oratória variada, que exige uma formação ampla e
geral.
ne ab illa in qua prope
consenuerunt umbra vera
discrimina velut quendam solem
reformident. XVIII. Quod accidisse
etiam M. Porcio Latroni, qui primus
clari nominis professor fuit, traditur,
ut, cum ei summam in scholis
opinionem optinenti causa in foro
esset oranda, inpense petierit uti
subsellia in basilicam
transferrentur: ita illi caelum novum
fuit ut omnis eius eloquentia
contineri tecto ac parietibus
videretur. (Inst., X, 5, 17-18).
Além disso, daquela sombra, onde
propriamente cresceram, não refuguem, pelo
medo, os verdadeiros perigos, tal como
sombra que teme o sol.
18. Um fato semelhante aconteceu, conta-se,
a M. Porcio Latrão, aquele que primeiro foi
um professor de grande renome: como a ele,
que gozava de alta consideração nas
escolas, coubesse o dever de atuar em um
processo no fórum, com insistência ele pedia
que todo o mobiliário e o próprio tribunal
fossem trasladados para uma basílica. De tal
maneira o céu foi para ele algo tão novo que
toda sua eloquência parecia estar contida por
um teto e por paredes.
Como se pode ver, as passagens a que recorremos exemplificam, para
nós com segura garantia, o perfil de orador pretendido por Quintiliano.
Entendemos que o destinatário de sua obra é finalmente esse orador, que se
finalidad de preparar para la oratoria, y se convierte en un fin en si mismo. (Schwartz, 2000:
275-6).
66
quer pronto para o combate, suficientemente armado de todos os petrechos e
apto a lutar sob a luz do céu. Não se pode esquecer, ainda, de que esse orador
se institui através da escolarização formal, daí a preocupação de Quintiliano
com o outro importante destinatário de sua obra: o professor de cada uma das
etapas que constituem o percurso acadêmico do futuro orador.
3. O livro décimo da institutio: oratória e literatura
Se podemos falar, hoje, em pós-modernismo na literatura, se já foi
proclamada a autonomia da literatura como um ramo do conhecimento
científico, isso significa dizer que percorremos, durante demorado tempo, um
longo caminho, se tomarmos como referência, por exemplo, a antiguidade
latina.
A distância presumida entre a pós-modernidade
44
e a antiguidade
parece-nos dizer respeito mais à forma de leitura da obra literária do que
propriamente ao texto considerado literário em si mesmo, este enquanto
resultado de uma elaboração mental. Em outras palavras, entendemos, o texto
literário, por princípio, pré-existe a qualquer rotulação ou enquadramento,
que é dele, ou de como a obra literária, em sentido amplo, seja inserida no
mundo, que emanam os modelos de tipificação e os de classificação.
Caminhando nessas reflexões, defrontamos também com um outro fato
bastante expressivo: a relação entre autor e obra, não importa qual seja a
perspectiva de leitura, seja qual for a abordagem sob a qual se avalie a obra
literária. Assim é que, dentre as muitas questões que o texto suscita, merece
44
Nos referimos ao conceito de pós-modernidade tal como a apresenta Connor (2000) e às
concepções da antiguidade, como tradicionalmente descritas, por exemplo, em Beard e
Henderson (1998) e em Pereira (1990).
67
ser examinada a correlação entre autor e obra literária, sobretudo considerando
que papel Quintiliano atribui à literatura, enquanto elemento auxiliar na
formação do orador romano.
Ressalte-se, ainda, que a formação intelectual do cidadão romano
45
envolvia, em todas as etapas do processo, o estudo da obra escrita, de modo
especial a obra poética. Para entender as implicações dos termos literatura e
seus cognatos é preciso examinar os sentidos que se lhes atribuíam e como
foram empregados pelos latinos.
Não devemos estender o conceito atual de literatura à produção escrita
dos latinos antigos, sobretudo porque entre os nossos e os dias deles
distâncias óbvias de tempo e de concepções, de visão de mundo, enfim. A
discussão dessa matéria, ou seja, a busca do entendimento do que teria sido
literatura, vem sendo a ocupação de muitos estudiosos, como se pode
depreender, por exemplo, da opinião de Chiappetta (1997), quando afirma que:
“não há uma Teoria Literária na Antiguidade, assim como nãoLiteratura. Há,
no entanto, uma instituição retórica que regula o contrato de circulação dos
discursos.” (413).
Diante disso, quando falarmos de literatura em Quintiliano, estaremos
falando de litteratura, termo que representa o conjunto de saberes que
permitiam as várias formas de acesso à obra escrita, muito além, portanto, do
que representaria um acervo da produção poética latina.
45
“Em Roma, pois, como em país de língua grega, três graus sucessivos de ensino, aos
quais correspondem, normalmente, três tipos de escolas confiados a três mestres
especializados: aos sete anos, a criança entra na escola primária, donde sai por volta dos onze
ou doze para a escola do grammaticus; na idade em que recebe a toga viril, aos quinze anos
às vezes, passa para o retórico: os estudos superiores duram normalmente até cerca dos vinte
anos, embora possam estender-se além”. (Marrou, 1990: 412)
68
De início, se estabeleceu entre os conceitos de literatura e de gramática
uma perfeita equivalência, como ensina Quintiliano:
et grammatice, quam in Latinum
transferentes litteraturam uocauerunt.
(Inst., II, 1, 4)
E a gramática, que ao transferirem
(traduzirem) para o Latim, chamaram
literatura.
Em latim, LITTĔRA é o termo para expressar ‘letra do alfabeto’,
‘caractere de escrita’. Equivale a gramma (gramma) em todos os sentidos da
palavra grega: ‘letra, livro, texto escrito, inscrição’.
O grammaticus era, no começo, aquele que ensinava os rudimentos da
escrita
46
, logo em seguida passou a designar também aquele que iniciava o
estudante nas regras básicas da expressão falada e escrita e, finalmente,
alcançou a condição de comentador dos poetas. O termo litteratus, que, em
tese, deveria ser sinônimo de grammaticus, ampliou seu leque de significação,
conforme descreve.Chiappetta (1997):
Litteratus é o estudioso que se dedica à erudição e trata qualquer
assunto scienter, com conhecimento de causa. Designações como
grammatici e litterati indicam o que hoje se chama de críticos
profissionais da Antiguidade. (40).
Em Cícero, litteratus designa o homem instruído, como por exemplo na
passagem abaixo:
46
Quintiliano descreve uma interessante técnica de iniciação e treinamento da escrita:
cum uero iam ductus sequi coeperit,
non inutile erit eos tabellae quam
optime insculpi, ut per illos uelut
sulcos ducatur stilus.(Inst., I, 1, 27)
Quando, então, ele tiver começado a seguir os
traços, não será inútil que sejam esses traços
insculpidos, o melhor possível, em bloquetes (de
argila), a fim de que o estilete seja conduzido
através daqueles sulcos.
69
A. Albinus, is qui Graece scripsit
historiam, qui consul cum L. Lucullo
fuit, et litteratus et disertus fuit; et
tenuit cum hoc locum quendam etiam
Ser. Fulvius et Numerius Fabius Pictor
et iuris et litterarum et antiquitatis bene
peritus; (Cic.Brut. 81.4)
A. Albino, o que escreveu em grego uma
história, que foi cônsul juntamente com
Lucullo, foi literato e perito eloquente; e
tiveram junto com ele uma certa posição
tanto Ser. Fúlvio e Numério Fábio Pictor,
este bastante perito do direito, das letras
e da antiguidade.
Vale, ainda, ressaltar a percepção que desses dois termos teve
Suetônio:
Appellatio grammaticorum Graeca
consuetudine inualuit sed initio
litterati uocabantur. Cornelius
quoque Nepos libello quo distinguit
litteratum ab erudito, litteratos
uulgo quidem appellari ait eos qui
aliquid diligenter et acute
scienterque possint aut dicere aut
scribere, ceterum proprie sic
appellandos poetarum interpretes,
qui a Graecis grammatici
nominentur. (Gram. et Rhet., 4)
A denominação de ‘gramáticos’ prevaleceu à
maneira grega, mas, de início, eles eram
denominados ‘literatos’. Também Cornélio
Nepos, no livrinho em que distingue o literato
do erudito, afirma que, na verdade, são
vulgarmente chamados literatos aqueles que
são capazes de proferir ou escrever
discursos com discernimento, agudeza e
habilidade, mas que devem ser chamados
assim, propriamente os comentadores dos
poetas, que são denominados gramáticos
pelos gregos (Trad. de Pereira, 2006: 63)
Um das funções mais representativas desse saber literário está
expressa nas palavras com que, no livro primeiro da Institutio, se define o ofício
do gramático:
Haec igitur professio, cum
breuissime in duas partis diuidatur,
recte loquendi scientiam et poetarum
enarrationem, plus habet in recessu
quam fronte promittit (Inst., I, 4, 3)
Pois esse mister, embora se divida, muito
sucintamente, em duas partes a arte de
falar corretamente e a explicação dos
poetas -, encerra mais em si do que deixa
transparecer. (Trad. de Pereira, 2006: 83).
(grifos nossos).
70
É preciso considerar que o termo poeta, em poetarum enarrationem
(Inst., I, 4, 3)
, alcança uma significação mais abrangente do que esta que
atualmente conhecemos por “autor de poesia”, em sentido estrito. Entre os
romanos, identifica todo aquele que produz um texto de escrita formalmente
elaborada, dentro de padrões estéticos definidos.
O mais importante, porém, das palavras de Quintiliano é que se
prenuncia, logo nessas primeiras linhas do Primeiro Livro, um dos aspectos
mais significativos a se desenvolver no Livro X, quando, de modo especial no
primeiro capítulo, se vai tratar da relação entre litteratura e oratória.
O que nos quer dizer a palavra poetarum na expressão poetarum
ennarratio? Certamente, à primeira vista, poderíamos afirmar que, poetarum
estaria, mais do que metaforicamente, representando literatura, em sentido
amplo. Se assim fosse, teríamos de admitir, então, que estaríamos diante de
uma grande semelhança nos conceitos de literatura entre a antiguidade e a
atualidade. Presumida essa semelhança, não estaríamos transferindo para a
antiguidade uma concepção e visão atuais de literatura?
Se estamos admitindo que o termo poeta guarda em si uma concepção
especial, poderíamos nos perguntar, então, se não seria cabível esperar
alguma coisa como litteraturae ennarratio. O próprio Quintiliano, no entanto,
havia afirmado que literatura é o correspondente latino para o grego gramática
(Inst. X, 1, 4) e, se analisarmos o seu significado, veremos que, desde o início,
ambas as palavras se referem propriamente à natureza material da expressão
escrita, nada mais além disso. Para se ter ideia do que a palavra representa,
basta notar que litteratura ocorre apenas mais uma vez na Institutio, e seu
emprego é muito raro, por exemplo, em Cícero.
71
Nos ipsam nunc uolumus
significare substantiam, ut
grammatice litteratura est, non
litteratrix quem ad modum oratrix,
nec litteratoria quem ad modum
oratoria: uerum id in rhetorice non
fit. (Inst., II, 14, 4).
Queremos, agora, fazer valer o significado da
própria substância, de tal forma que gramática
é literatura, mas não literatrix, como se
poderia formar oratrix; nem mesmo literatoria
como se fosse formada tal qual oratória. Em
verdade, nenhuma das duas derivações é
possível para retórica.
São interessantes e muito pertinentes para este momento duas das
ocorrências em Cícero:
Quorum omnium interpretes, ut
grammatici poetarum, proxime ad eorum,
quos interpretantur, divinationem videntur
accedere. (Cíc., Diuinationes 1.34.16)
Os intérpretes de todos os gêneros,
assim como os gramáticos o são dos
poetas, parecem aproximar-se da
natureza daqueles que são
interpretados
Nihil sane praeter memoriam, quae est
gemina litteraturae quodammodo et in
dissimili genere persimilis. (Cíc.,
Partitiones orationum 26.2)
Seguramente, nada além da memória,
que é, de certo modo, irmã gêmea da
literatura, e muitíssimo igual em
gênero diferente.
nos referimos aos significados que aos termos grammaticus e
grammatica foram atribuídos. Tais significados, no entanto, não permitem
transparecer que o conceito de gramática equivalesse, mesmo que de forma
aproximada, ao que hoje incluímos sob o rótulo de literatura. Se no próprio
latim fosse possível tal equivalência, não seria certo esperar que também
pudesse ser dito grammaticae ennarratio?
Sabemos que a expressão poetarum ennarratio é anterior a Quintiliano,
mas o que o teria levado a manter a palavra poetarum? Podemos até
conjeturar que ainda não tivessem sido elaboradas conceituações a respeito do
fenômeno literário, de tal forma que um, ou mais de um, termo específico fosse
72
cunhado para as significar. Entretanto, mais importante do que tentar buscar na
antiguidade uma terminologia, em que possamos acomodar o olhar da nossa
atualidade, é entender que são inquestionáveis os valores atribuídos pela
antiguidade romana à obra escrita, sejam eles nas suas finalidades didático-
pedagógicas, nas atividades intelectuais, sejam nas suas possibilidades de
expressar os sentimentos do homem no mundo, ou na sua finalidade de criar
um objeto de arte.
O mais relevante, em face de tudo isso, é que o nome poeta (poetarum
enarrationem) não nos parece ter permanecido em Quintiliano meramente por
inadequação de grammatica, por insuficiência de litteratura, ou por falta de
outra palavra. Queremos entender que, sob o olhar de Quintiliano, cujo
propósito é melhor caracterizar a relação orador-oratória, a figura humana do
poeta, enquanto criador, precisa ser evidenciada. Quintiliano não ignora que o
poeta se faça presente na própria obra, mas ele pretende mais do que isso: ele
quer destacar essa forma de presença, valorizando a capacidade criadora,
muito mais do que a obra criada por um poeta.
Se for lícito o paralelo, os principais tratados de Cícero sobre a oratória
podem-nos servir para ilustrar essa forma de percepção. Que razões haveria
para que Cícero se utilizasse dos termos Orator, Brutus, De Oratore para
nomear suas obras? O que o teria levado a pôr em destaque o homem, o
profissional? Julgamos razoável, no mínimo, entender que a figura humana do
orador sobreleva-se à imagem de todo o que poderíamos chamar de “sistema
oratório”, com seus preceitos, sua organização formal, seus papéis social e
político. Diante disso, podemos até acrescentar mais essa compreensão ao
73
fato de Cícero, já na maioridade plena, ter classificado seu De Inuentione como
obra da juventude:
Vis enim, ut mihi saepe dixisti,
quoniam, quae pueris aut
adulescentulis nobis ex
commentariolis nostris incohata ac
rudia exciderunt vix <sunt> hac
aetate digna et hoc usu, quem ex
causis, quas diximus, tot tantisque
consecuti sumus, aliquid eisdem de
rebus politius a nobis perfectiusque
proferri; .. (Cic., De Orat., 1.5)
Queres, como sempre me disseste, que eu
produza um trabalho mais refinado e mais
completo, a respeito daquelas mesmas
coisas que de meus pequenos comentários,
eu ainda muito jovem, haviam escapado,
mal começadas e rudes. Essas mesmas
coisas parecem incompatíveis com a idade
que agora tenho, e também com a
experiência que alcancei no desempenho
de tantas e tão importantes causas em que
atuei.
Muito embora à obra ter-se atribuído o nome de Institutio Oratoria,
Quintiliano tem por meta, assim como Cícero, a centralidade do orador. Com
certeza, as formulações técnicas não têm fim em si mesmas, pois se
apresentam como meio; as propostas pedagógicas não se constituem em
exercício de especulação teórica, mas pretendem ser estratégias tanto mais
eficazes quanto mais eficientes oradores através delas se puderem formar. É,
pois, com idêntico espírito, entendemos, que se privilegia o poeta. Ele se
constitui o centro de toda a litteratura, enquanto conjunto de saberes (do saber
ler ao saber fazer) que sustentam a produção escrita.
4. O poeta do livro décimo, Quintiliano e a litteratura
Duas figuras ocupam lugar de destaque na Institutio: o grammaticus e o
poeta, que, respectivamente, são mais detalhadamente descritos nos livros I e
X. Em seu estudo “Quintiliano gramático O papel do mestre de Gramática na
74
Institutio oratoria” Marco Aurélio Pereira (Pereira, 2006) analisa em
profundidade a natureza da gramática antiga e traça um bem delineado perfil
do gramático, este identificado, como se no título da obra, com o próprio
Quintiliano. Entendemos, assim, que nada mais que se possa
acrescentar. Passamos, então, a examinar em nosso estudo alguns elementos
de que lança mão Quintiliano para construir a imagem do poeta.
Julgamos conveniente apontar aqui um resumo do livro:
O Livro X é dividido em sete capítulos, nos quais se acentua a
necessidade de associar prática e teoria. O primeiro capítulo, o mais extenso
de todos, trata predominantemente do valor que têm a leitura e a produção
escrita para a constituição do orador. É muito oportuno mencionar a seguinte
descrição feita por Sanz e Lópes (s.d.):
No décimo livro, Quintiliano passa em revista o conjunto das literaturas
grega e romana, emitindo juízos sobre a conveniência de que o orador
em processo de formação leia uns ou outros autores. Como dizíamos
antes, não é um livro de crítica literária, mas resulta em enorme
utilidade, que apresenta ao leitor moderno essa que é a primeira
visão geral da literatura antiga que possuímos (07)
47
.
O capítulo 2 trata, de forma admirável, o processo da imitação; os
capítulos 3 e 5 tratam da escrita, o 4, dos procedimentos relativos à correção, o
6, da reflexão e o 7 da improvisação.
As relações entre literatura e retórica, entre orador e poeta são fatos
muito anteriores a Quintiliano, mas continuam sendo necessárias ao seu tempo
47
En el libro décimo Quintiliano pasa revista al conjunto de las literaturas griega y romana,
emitiendo juicios sobre la conveniencia de que el orador que se está formado lea a unos
autores u otros. Como decíamos antes, no es un libro de crítica literaria, pero resulta de
enorme utilidad por presentar al lector moderno con la que es la primera visión general de la
literatura antigua que poseemos. (07)
75
e ao seu projeto de formação do orador. um precedente, na história da
oratória, resgatado por Quintiliano, que assim o registra:
XXVII. Plurimum dicit oratori
conferre Theophrastus lectionem
poetarum multique eius iudicium
secuntur; neque inmerito: namque
ab his in rebus spiritus et in verbis
sublimitas et in adfectibus motus
omnis et in personis decor petitur,
praecipueque velut attrita cotidiano
actu forensi ingenia optime rerum
talium libertate reparantur; ideoque
in hac lectione Cicero
requiescendum putat. (Inst., X. 1,
27)
Muitíssimas coisas a leitura dos poetas
confere ao orador, diz Teofrasto, e
numerosas pessoas concordam com seu
ponto de vista, não sem razão.
Verdadeiramente dos poetas se busca o
sopro, que é vida nas ideias, a sublimidade,
que se eleva nas palavras, todos os
movimentos que se agitam nos afetos, a
caracterização que existe nas personagens,
em especial porque a mente, desgastada no
agir diário do fórum, como que se restaura,
no seu melhor, por meio desta liberdade de
tudo. Exatamente por isto Cícero entende
que se deva descansar neste tipo de leitura.
Esta passagem, em que Cícero é nominalmente citado, se associa com
um de seus discursos, para nossa sorte, ainda preservado e muito estudado:
Pro Archia. A relação de Cícero com a poesia se faz de modo marcante nesse
pronunciamento em defesa de Árquias: acusado de haver usurpado a
cidadania romana, o poeta de naturalidade grega
48
é levado a julgamento.
Cícero encarrega-se da defesa, e o faz de tal maneira que os estudiosos de
sua obra o hesitam em classificar esse discurso como a defesa, não de um
homem, mas da poesia e, em última instância, a defesa do próprio Cícero na
sua relação com a poesia:
Quaeres a nobis, Gratti, cur tanto
opere hoc homine delectemur. Quia
Me perguntarás, Gratio, porque neste
homem tenhamos grande contentamento. É
48
É também sugestivo o fato de Árquias ser de origem grega, pois nos permite aprofundar o
entendimento acerca das relações de Cícero com toda a civilização grega, em especial, como
neste caso, as letras.
76
suppeditat nobis ubi et animus ex
hoc forensi strepitu reficiatur et aures
convicio defessae conquiescant
[...]Ego uero fateor me his studiis
esse deditum.(Cíc., Pro Arch. 12, 1)
porque ele nos os meios pelos quais o
espírito se reconforte deste vozerio forense e
os ouvidos, cansados da barulheira, se
aquietem [...] Confesso, com toda
sinceridade, que eu próprio me entreguei a
estes estudos.
Esta é a opinião de Pereira (1990) a respeito do discurso de Cícero:
Trata-se da Defesa de Árquias, essa oração que havia de ser
redescoberta no séc. XIV por Petrarca, e que ficou conhecida como a
magna charta do humanismo. É que, principalmente entre os
capítulos VI e XI, Cícero exprime desassombradamente o seu
entusiasmo pelas Belas Letras. Elas dão deleite e descanso e
contribuem para o aperfeiçoamento espiritual. Poderá objectar-se que
quem se lhes dedica falta aos seus deveres para com a comunidade a
que pertence. Mas Cícero serviu, com os seus estudos, a quantos dele
precisaram, sem nunca lhes negar auxílio, e o tempo que outros gastam
em banquetes e jogos, é esse que ele reserva para o estudo. Depois,
continua, as Letras têm uma função paradigmática. Elas formaram
quase todos os grandes homens do passado, entre eles Cipião-o-
Africano, Lélio, Fúrio, Catão-o-Censor. Alimentam a juventudo, deleitam
a velhice, dão gosto na felicidade e consolação na adversidade; dão
prazer em casa e fora dela; viajam conosco, vão conosco para o campo
(131).
O fato de que esse discurso constitua peça de um processo jurídico,
com todas as implicações da atividade forense, com interesses em jogo
49
; de
que tenha sido construído na observância do rigor cnico exigido por um
tribunal, o torna especialíssimo: nele retórica, oratória e literatura fazem seu
encontro definitivo. Através desse discurso, Cícero demonstra os seus
entendimentos quanto à natureza da obra literária e quanto à sua função e
valor, tanto na vida da coletividade, quanto na vida do indivíduo. Ainda mais:
uma figura humana é colocada no centro de uma discussão para, através dela,
significar uma das formas de expressão de sua capacidade intelectual. É,
49
indícios de que estivessem em jogo interesses pessoais de Cícero, pois “presidia ao
tribunal um pretor que era seu irmão (= de Cícero); o réu já celebrara – e propunha-se
continuar a fazê-lo a gesta do povo romano, numa língua que era universalmente conhecida,
e não limitada apenas pelas próprias fronteiras ....” (Pereira, 1990: 130-131).
77
assim, extremamente simbólico que se faça numa sessão de julgamento de um
homem, que é poeta, a defesa da literatura, aí assentada como poesia.
5. O poeta
Se atentarmos para o que ensina Teofrasto (Inst. X, 1, 27), acrescido do
testemunho de Cícero, e o associarmos ao que o próprio Quintiliano descreve
no trecho a seguir, podemos formar com mais precisão uma ideia de qual seja
seu pensamento acerca da figura do poeta e sua relação com a oratória:
Igitur, ut Aratus ab Ioue
incipiendum putat, ita nos rite
coepturi ab Homero uidemur. Hic
enim, quem ad modum ex
Oceano dicit ipse amnium
fontiumque cursus initium capere,
omnibus eloquentiae partibus
exemplum et ortum dedit. hunc
nemo in magnis rebus
sublimitate, in paruis proprietate
superauerit. Idem laetus ac
pressus, iucundus et grauis, tum
copia tum breuitate mirabilis, nec
poetica modo sed oratoria uirtute
eminentissimus. (Inst., X,1,46)
Sendo assim, tal como Arato pensa dever-se
começar por Júpiter, tenho por mim que,
exatamente como um rito, havemos de
começar por Homero. Este diz que, de certo
modo, a corrente de todos os rios e de todas
as fontes tem seu começo no Oceano. Assim,
ele próprio como que deu origem e serviu de
exemplo a todas as partes da eloquência. A
este ninguém superou, seja pela sublimidade
nas coisas grandiosas, seja pela propriedade
nas coisas simples. Ele tanto é fecundo,
quanto conciso, prazeroso e grave, admirável
na abundância como na parcimônia; o mais
elevado não somente por seu vigor poético,
mas também pela força oratória.
De início, pelas palavras de Quintiliano somos levados a admitir que a
inteligência criadora é de linguagem universal, e sua manifestação em uma
língua particular é mero acidente. Insistimos nesta percepção e a queremos ver
78
significada em suas palavras, pois estamos diante de um fato: de se formar
o orador romano. No entanto, coloca-se nos uma inquietante indagação: por
que buscar na literatura grega o modelo de poeta, que constituirá a base de
sustentação das relações entre o orador e os demais poetas? Apesar de terem
existido motivos de ordem política, de natureza cultural e histórica para a
fundação dessa civilização greco-romana, parece-nos que prevalece uma
razão, que assim pretendemos que seja a de Quintiliano: o talento não se cria,
se descobre e se estimula. Queremos entender que ser orador é possuir um
talento que ultrapassa a condição de ser falante nativo de latim ou de grego;
ser poeta é mais do que simplesmente ter habilidade para produzir um discurso
literário escrito em grego ou latim. Desse modo, muito além do que meramente
destacar uma obra literária, parece-nos, Quintiliano pretende enfatizar o
ingenium que a gerou, o que, de toda maneira, coincide com a opinião de
Cícero, no que diz respeito ao talento pessoal:
Sic igitur' inquit 'sentio,' Crassus
'naturam primum atque ingenium ad
dicendum vim adferre maximam; (Cíc.,
De Orat. I, 113)
Assim, de fato penso, diz Crasso, a
natureza, em primeiro lugar, tanto
quanto o engenho são a força máxima
no processo de construção do discurso.
São inegáveis as relações culturais entre Roma e Grécia, e isso vemos
espelhado, por exemplo, no bilinguismo notório
50
dos romanos letrados. Ainda
que seja tradição, na Antiguidade
51
, reconhecer Homero como o “educador da
50
Mas o latim não era a única língua: muitos jovens romanos aprendiam o grego, em casa,
com escravos gregos e sua educação tornava-se, assim, bilíngue. (Scullard, 1998: 248, Vol. II).
“Ma il latino non era l´unica lingua: molti giovani romani imparavano il greco in casa dagli
schiavi greci e la loro educazione diveniva bilingue”. (Scullard, 1998: 248, Vol. II).
51
Do mesmo modo, em nossa contemporaneidade, destaca-se a figura de Homero. Brandão
(2005), ao comentar sobre a teoria dos gêneros, afirma que Homero “goza de estatuto
paradigmático” (38), que é o “ponto de partida” (38) do processo de discussão sobre gêneros
literários.
79
Grécia”
52
, o fundador da literatura, mesmo assim parece surpreendente a
opção de Quintiliano por eleger Homero como o poeta número um. Devemos
considerar que o desenvolvimento cultural dos romanos, no séc. I d.C., era
notável, tanto pela qualidade de sua produção literária, quanto pela quantidade
de bons poetas, o que permitiria a Quintiliano buscar dentre os autores latinos
o poeta exemplar.
Ao reconhecer Homero no eminentissimus absoluto, como o mais
destacado da virtude poética, em primeiro lugar, e da virtude oratória,
Quintiliano, além de ultrapassar as fronteiras de todas as formas de diferença
cultural, continua vendo nele o instaurador do fenômeno literário, tal como era
concebida a literatura no seu tempo; dá-lhe, por sua uirtus, o nome de poeta e
o inscreve igualmente na fundação da oratória.
Ao se referir à literatura, estabelecendo suas qualidades, dá-lhe o nome
de “Homero” e a define em adjetivos masculinos: laetus, pressus, iucundus,
grauis, mirabilis, eminentissimus. Independentemente das verdades que
porventura presidam aos fatos, Homero é tratado aqui na condição de princípio
e fim: ortum dedit: deu começo; hunc nemo ... superaverit: a este ninguém terá
superado.
Julgamos importante aprofundar reflexões acerca deste tratamento
dispensado a Homero, que está representando toda a literatura e todos os
poetas gregos e latinos. A equivalência terminológica entre grammatica e
litteratura é um exemplo marcante da preocupação dos romanos em criar, em
sua língua, palavras que pudessem expressar conceitos gregos. Assim, por
exemplo, ludus e scholé se correspondem na significação de que o
52
“Por tudo isso é que Platão na República como opinião corrente no seu tempo que
Homero fora o educador da Grécia” (Pereira, 1970: 112)
80
aprendizado deve ser, antes de tudo, prazer, atividade lúdica, no sentido que
ainda hoje atribuímos ao termo lúdico. É significativo, neste contexto, que
poeta, palavra de origem grega
53
, tenha sido simplesmente transliterada. É
certo que, segundo atestam estudos de etimologia, sua incorporação ao latim
tenha-se dado em fase bastante antiga
54
, mas, mesmo assim, não podemos
descartar a certeza de que na língua latina se poderia forjar uma palavra
equivalente. Mais do que a simples conveniência da transliteração, temos de
supor que o termo poeta representou um conjunto de ideias e de conceitos
inovador para as classes letradas de Roma, da mesma forma que,
provavelmente, tenha-se dado com philosophus e a extensão dos cognatos em
seu campo semântico. Parece-nos que há neste fato uma razão maior do que a
simples consequência, por exemplo, do bilinguismo de uma classe. Poeta, com
certeza, não foi, de início, uma palavra do vocabulário geral, mas de um grupo
específico de cidadãos romanos, que assimilaram o termo e o fizeram seu, na
convicção de que se estaria preservando, sem risco, todo um conjunto de um
vasto campo de significações.
Quando se fala do bilinguismo grego-latim, que considerar
implicações que vão muito além da habilidade de falar duas línguas. No plano
político, na esfera administrativa, é significativo o fato de que o romano,
vencedor, tenha assumido uma língua de vencidos. Sabemos que atitude
dessa natureza não é compatível com as tendências de nossos dias, nem
mesmo com as próprias formas de dominação dos romanos em relação aos
demais vencidos. De qualquer modo, surpreendente o fato de, nessa estratégia
53
Em Brandão (2005), de modo especial no Capítulo I Poéticas Gregas, encontra-se um
pertinente estudo das implicações do termo poeta na civilização grega.
54
Poeta. Empréstimo antigo do grego, e feito por via oral ...
“Poète. Emprunt ancien, et fait par voie orale, au grec ...” (Ernout, 1951: 918)
81
de dominação, ter-se privilegiado a adoção e assimilação da língua grega,
enquanto língua estrangeira, uma vez que ela passou a ser também para a
aristocracia romana a língua da diplomacia, a língua internacional, a língua de
seus adversários, de seus ditos orientais, enfim
55
. Certamente, movido por
seu espírito de pragmatismo, o romano se aproveitou do fato de que a língua
grega fosse, até então, a língua da “diplomacia internacional” do Mediterrâneo.
No plano cultural, se preferirmos não falar que teriam acontecido
combates civilizatórios com vencedores e vencidos, houve, por parte da
aristocracia romana, a mais interessada assimilação de todos os aspectos da
cultura grega que pudessem contribuir para a consolidação de sua própria
identidade, enquanto classe civilizada.
Podemos, assim, considerar a centralidade da figura de Homero, além
da sua representatividade para a literatura, também como forma de declaração
categórica do reconhecimento da dívida cultural que os romanos tinham para
com os gregos, como igualmente nos fazem ver Cícero e Horácio:
Non enim me hoc iam dicere pudebit,
praesertim in ea uita atque iis rebus
gestis, in quibus non potest residere
inertiae aut leuitatis ulla suspicio, nos ea,
quae consecuti sumus iis studiis et
artibus esse adeptos, quae sint nobis
Graeciae monumentis disciplinisque
tradita. Quare praeter communem fidem,
quae omnibus debetur, praeterea nos isti
hominum generi praecipue debere
uidemur, ut, quorum praeceptis sumus
não tenho, com efeito, pudor de o
afirmar, especialmente quando na
minha vida e nos meus atos não pode
ter lugar a menor suspeita de inércia ou
de futilidade: que aquilo que
alcançamos, o conseguimos graças aos
estudos e artes que nos foram
transmitidos pelos monumentos e
ensino da Grécia. Eis porque, para
além da proteção geral que a todos se
deve, nos parece que temos para com
55
Segundo Dupont, Roma se heleniza propositadamente para melhor reinar sobre suas
recentes conquistas” (1985:146)
Rome s’hellénise alors volontairement pour mieux régner sur ses récentes conquêtes” (Dupont,
1985: 146).
82
eruditi, apud eos ipsos, quod ab iis
didicerimus, uelimus expromere.
(Cíc., Ad Quintum Fratrem I.9.28)
esta espécie de homens, acima de
tudo, o dever de nos empenharmos em
demonstrar para com aqueles, em cujos
preceitos fomos instruídos, o que com
eles aprendemos. (Trad. de Pereira,
1994: 68)
Graecia capta ferum uictorem cepit et
artes intulit agresti Latio. Sic horridus ille
defluxit numerus Saturnius et graue
uirus munditiae pepulere; sed in longum
tamen aeuum manserunt hodieque
manent uestigia ruris. (Horat., Epistulae
2.1.155)
A Grécia capturada capturou o feroz
vencedor e impôs as artes ao agreste
Lácio. Assim, aquele horroroso metro
satúrnio defluiu e a elegância empurrou
para longe o terrível mau-gosto. No
entanto, por longa data permaneceram,
e até hoje ainda restam, os vestígios de
roça.
Não sem razão, além de Homero, são listados e comentados, ao longo
do capítulo, uma extensa relação de autores gregos que, segundo Quintiliano,
merecem ser assimilados, muito mais do que imitados; incorporadas aquelas
qualidades que, em seus discursos literários, são exemplares para a
construção do discurso oratório persuasivo.
O breve, mas expressivo comentário acerca de Homero se torna de
algum modo o padrão para a estrutura formal e conceitual das referências aos
demais autores. Assim é que, no capítulo 1 do Livro X, se faz referência a
cerca de 115 autores, gregos e latinos, distribuídos por grupos, segundo a
natureza de sua escrita. Quintiliano organiza esta distribuição da seguinte
maneira:
1. descreve separadamente os autores gregos e romanos;
2. no primeiro bloco relaciona, por grupos, os autores gregos: poetas,
historiadores, oradores, filósofos, o que na divisão do texto latino,
segundo a edição Belles Lettres, vai do parágrafo 46 a 84;
83
3. os autores latinos são agrupados segundo o mesmo esquema [Idem
nobis per Romanos quoque auctores ordo ducendus est (Inst., X, 1, 85)],
o que corresponde aos parágrafos 85 a 124;
O final do capítulo, de 125 a 131, é inteiramente dedicado a Sêneca.
Esses autores selecionados constituíam, enfim, a sugestão de Quintiliano
para uma “Biblioteca do futuro orador”
56
.
Abrimos aqui um longo “parágrafo” para falar em que circunstâncias o
poeta é aquele a quem é dada a palavra em primeiro lugar.
A composição e organização dessa “bibliotecarevela o pensamento de
Quintiliano acerca das qualidades que apresenta cada grupo de autores, ao
mesmo tempo em que aponta porque é indispensável ao futuro orador ter o
acesso a eles.
A unidade que passam a constituir esses quatro grupos deriva do
binômio palavra-ação, que caracteriza o ser do orador, em outros termos, isto
significa, como dissemos anteriormente, que o orador age palavras. Torna-
se, assim, perfeitamente compreensível que a primazia tenha sido concedida à
palavra do poeta: ele constitui o primeiro grupo. O filósofo, por sua vez, almeja
verdades e trata as ideias, os conceitos, com base nos quais se ajustarão as
motivações de desempenho do orador, que busca a construção de uma
verossimilhança. À história se associa, entre outras coisas, a memória, que,
mais do que acervo de fatos, pode constituir-se em modelos de estratégia no
tratamento dos fatos. O orador é aquele que fornecerá as condições para que,
pela imitação, principalmente, se possa atingir o apte dicere (dizer com
propriedade, pertinentemente).
56
“bibliothèque du futur orateur” (Cousin, 1975: 7 v,6)
.
84
Ao falar dos poetas, em complementação ao que é afirmado no
parágrafo
27 (Inst., X, 1)
, Quintiliano reforça o valor da leitura. Ele havia
advertido quanto ao fato de que eles, os poetas, mesmo os mais destacados,
são, acima de tudo, homens, passíveis de erro, portanto, e acrescenta que nem
tudo na poesia deve ser seguido pelos oradores.
Summi enim sunt, homines
tamen.
(Inst. X, 1, 25).
Supremos, sem dúvida, eles são, contudo
são homens.
Meminerimus tamen non per omnia
poetas esse oratori sequendos, nec
libertate uerborum nec licentia
figurarum (Inst. X, 1, 28).
Estejamos sempre lembrados, porém, de
que não em tudo os poetas devem ser
seguidos pelos oradores: nem na liberdade
em relação às palavras, nem na licença das
figuras.
Esta advertência se materializa nos critérios que são adotados por
Quintiliano para elaborar a lista de autores que ele recomenda; nas qualidades
morais que ele destaca por contribuírem para reforçar o comportamento ético;
nas qualidades técnicas da linguagem que levam à eficiência do discurso; no
vigor poético e em todas as formas de sensibilização que ele propõe como
fundamentos de uma estética do discurso e como estratégias pelas quais se
possam mover os espíritos do destinatário. As palavras com que resume essas
ideias suscitam em s uma imagem de refinado sabor poético: o orador é um
soldado que se apóia na vitória e sua arma deve aterrorizar pelo brilho do ferro,
não pelo do ouro ou da prata, que são o perigo de quem os possui
57
.
57
O texto em sua íntegra é:
85
Dentre as razões que justificam a leitura dos autores de história está
enfatizado por Quintiliano que ela é muito próxima dos poetas, de certo modo,
uma poesia em prosa. Embora possa alimentar o orador com um certo fecundo
e saboroso suco, é necessário que o orador seja cauteloso em sua leitura. É
interessante notar que, segundo Quintiliano, a história não está comprometida
com a comprovação (esta é uma obrigação do orador), mas com a narração
dos fatos, daí sua linguagem poder ser mais solta
58
.
Os oradores constituirão os mais completos modelos, pois deles se deve
imitar a competência oratória, que se faz manifesta na sua linguagem, no
tratamento das matérias de que se ocupem, etc.
59
.
A leitura dos filósofos deve ser feita com o ximo discernimento, pois,
como ensina Quintiliano, oradores e filósofos igualmente tratam de conceitos
como justiça, honestidade, por exemplo, mas em situações muito distintas: as
disposições da academia não são as mesmas do fórum
60
. Como observa
Cousin (1979),
Quintiliano não ressalva como vantagem da leitura dos filósofos nada
mais que a aquisição de métodos de argumentação, de altercação e de
interrogação, mas salienta que, se se tiram vantagens do acesso aos
filósofos, é porque os oradores lhes haviam cedido a melhor parte de
seus domínios (13)
61
.
Neque ego arma squalere situ ac
robigine uelim, sed fulgorem in iis
esse qui terreat, qualis est ferri, quo
mens simul uisusque praestringitur,
non qualis auri argentique, inbellis et
potius habenti periculosus. (Inst., X,
1, 30)
No meu entendimento, eu gostaria que as armas
não se deteriorassem num canto qualquer e pela
ferrugem, mas que nelas fulgurasse o brilho que
aterroriza, como o de uma espada, pelo qual
mente e olhar, de ver, se dilaceram. Nelas o
brilho não fosse como o do ouro e da prata, que é
inútil numa luta de guerra e, mais ainda, ao que os
possui é perigoso.
58
Conferir Inst. X,1,31 a 34.
59
Abordaremos, no momento oportuno, o capítulo acerca da imitação, que é um dos
componentes básicos da pedagogia de Quintiliano.
60
Conferir Inst, X, 1,36.
61
Quintilien ne retient comme avantage de la lecture des philosophes que l’acquisition de
méthodes d’argumentation, d’altercation et d’interrogation, mais, précise-t-il, si l’on retire des
86
Viemos falando até aqui em “grupos de autores”, pois não nos parece
cabível aplicar-lhes as noções de “gênero”, tal como se utiliza tradicionalmente.
Por certo a escrita filosófica não ostenta características marcadamente próprias
para ser considerada um gênero literário, muito menos a versão escrita de um
discurso, ainda que na expressividade da sua linguagem se possam identificar
algumas das qualidades que geralmente atribuímos ao texto literário.
A palavra genus, que traduzimos entre outras coisas por gênero, é de
uma abrangência semântica muito grande e, por isso, de largo emprego. Na
Institutio, por exemplo, genus aparece aproximadamente 500 vezes, com os
mais diferentes sentidos, o que torna difícil localizar, com maior precisão, no
emprego dessa palavra a significação de um conceito mais estrito. Dessa
forma, continuaremos a utilizá-la com reserva, até mesmo a partir deste
momento em que passamos a falar de poetas e de literatura.
Cabe-nos a reserva, pois gênero tem sido uma questão discutível no
âmbito dos atuais estudos discursivos, e seu emprego em Quintiliano não
parece inteiramente compatível com a noção que historicamente se atribui ao
termo no seu emprego pela antiguidade. Vale insistir em que a perspectiva da
finalidade prática está privilegiada por Quintiliano, e seu propósito não é,
definitivamente, fazer crítica literária, como a entendemos hoje, mas enfatizar a
importância do saber literário.
Apenas um exemplo parece
bastante para ilustrar o que vimos
considerando. Ao anunciar o exame dos autores, cuja leitura recomenda,
Quintiliano diz:
avantages de la fréquentation des philosophes, c’est parce que les orateurs leur ont cédé la
meilleure part de leur domaine. (Cousin, 1979: 13).
87
Sed nunc genera ipsa lectionum,
quae praecipue conuenire
intendentibus ut oratores fiant
existimem, persequor. (Inst., X, 1, 45)
Neste momento, porém, persigo os próprios
gêneros das leituras que eu julgue
especialmente convenientes àqueles que se
pretendem tornar oradores.
Em hipótese alguma podemos entender o genera, expresso, como
referindo-se a gênero literário, com os sentidos que historicamente recebeu, da
mesma forma que não se enquadra nos conceitos que atualmente se buscam
formular. O capítulo 10 do livro XII, dedicado ao estudo dos diferentes
“gêneros” de discurso, representa a dimensão que essa palavra assume.
No que concerne aos poetas, lemos ainda em Cousin (1979) que “a
autoridade de Homero na epopeia é tal que o prestígio do autor acabará por
estabelecer a primazia do gênero” (7v,8)
62
. Esta afirmação se localiza num
contexto em que se discute se cabe a supremacia dos gêneros à epopeia, ou
se à tragédia. Aristóteles, em sua Poética, é muito enfático em atribuir à
tragédia o primeiro lugar, uma vez que ela congrega outros elementos como a
música, o espetáculo, etc.:
Com efeito, a tragédia pode utilizar o metro desta última, e, além disso
o que não é de pouca importância dispõe da música e do
espetáculo, que concorrem para gerar aquele prazer mais intenso que
lhe é peculiar. (Poét., XX, 10)
Portanto, se a tragédia se distingue por todas estas vantagens e mais
pela eficácia de sua arte (ela deve proporcionar, não um prazer
qualquer, mas o que é por nós indicado), é evidente que, realizando
melhor sua finalidade, ela é superior à epopeia. (Poét., XX, 15)
Com relação a esse aspecto, Quintiliano desconsidera a autoridade de
Aristóteles e elege a epopeia como o gênero hierarquicamente superior, pois é
justamente por ela que começa seus comentários aos poetas.
62
... l’autorité d’Homère dans l’épopée est telle que le prestige de l’auteur finira par établir la
primauté du genre”(Cousin, 1979: 7 v,8).
88
Duas palavras merecem destaque na frase de Cousin (1979): autoridade
e autor. Se analisarmos a sua evolução morfológica e semântica, veremos que
são termos cognatos e, no latim, vinculam-se ao radical do verbo augeo, que,
em seu mais profundo sentido, significa fazer crescer. Dessa forma, auctor
63
é
quem faz crescer, o criador, o fundador; auctoritas é o mesmo que criação,
fundação, instituição, garantia.
Embora na citação de Cousin o termo autoridade possa hoje ser
entendido com as noções de poder, modelo, enquanto que autor não
preserva a denotação original de criador, Quintiliano se utiliza destas palavras
em sentido muito próximo ao da sua origem e como que faz equivaler, em
todos os planos, no simbólico, inclusive, auctor a poeta. Exatamente isso lemos
em traduções para o francês ou para o inglês, por exemplo: a expressão latina
omnibus auctoribus (Inst., X, 1, 64) é traduzida por “à tous les poètes”
(COUSIN, 1979: 87) (a todos os poetas) ou por “writers of this class of poetry”
(escritores deste tipo de poesia)
64
. É certo que auctor se aplica a muitas outras
áreas, além da criação literária, mas é nos limites da produção escrita que ele
ganha sentido mais intenso.
À luz do que vimos dizendo, a retórica antiga e, por exemplo, os
modernos estudos literários não podem ser vistos como dois planos que se
superpõem. São, na verdade, duas esferas que se tocam em pontos mínimos,
mas que permitem a projeção de reflexos e sombras de uma sobre a outra. A
condição do autor serve como exemplo bastante ilustrativo desta nossa
imagem.
63
Cf. nota 22
64
Edição inglesa divulgada pela internet:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/home.html#14.2, consultada em 30.07.2007.
89
Para Quintiliano, a figura do autor é absolutamente importante, na
medida em que o discurso passa a ter sua existência no momento em que é
proferido, isto é, autor e discurso formam uma unidade indissociável, naquela
circunstância em que o silêncio é rompido.
A forma e o tratamento dispensado aos autores do texto literário
demonstram o quanto importa a Quintiliano ressaltar as qualidades do ser
humano, que fala, e das particularidades do texto que contribuem para que o
orador fale ainda mais eficientemente. um dado muito significativo (este
será mais detalhadamente desenvolvido em outra parte do trabalho) e que
reforça a relação entre orador e autor: a natureza da linguagem do texto antigo
a que poderíamos chamar literário. Como observa Mazzeo (1962), “desde o
mais remoto começo, as literaturas grega e latina eram não apenas lidas em
voz alta, o que é muito bem conhecido, mas o próprio leitor pensava a literatura
como algo em linguagem falada” (189)
65
.
Sabemos, no entanto, que as concepções de autor e de texto apontadas
acima o orientam os estudos literários atuais, sobretudo porque, de um lado,
a análise do discurso se faz sob a perspectiva do fato construído, isto é, as
teorias literárias o têm como objetivo principal constituírem-se em técnicas
pedagógicas para a formação de novos escritores; de outro, é
predominantemente na voz do silêncio que hoje se busca a eloquência desse
discurso literário, se o confrontarmos, por exemplo, com o valor “performativo”
66
que a palavra teve em Roma.
A leitura dos comentários de Quintiliano acerca dos poetas revela sua
disposição de dar maior destaque ao ingenium, o talento do autor, em
65
From the very beginning, Greek and Latin literature was not only read aloud, as is well known,
but the reader thought of it as something spoken. (Mazzeo, 1962: 189)
66
Conferir Pernot (2003: 117), citado na nota 29 .
90
essência, privilegiar o criador, através do estudo de sua “arte”. Nas
pouquíssimas vezes em que menciona o nome de uma obra, não o faz com o
propósito de analisá-la em suas qualidades de arte literária, mas de situar o
autor. Na verdade, encontramos apenas três referências a nomes de obras nos
parágrafos em que se fala dos autores:
Cornelius autem Severus [...] ad
exemplar primi libri bellum Siculum
(Inst., X, 1, 86).
Cornélio Severo, por sua vez... Bellum
Siculum escrito inteiramente com a
mesma qualidade do primeiro livro
Ovidi Medea videtur mihi ostendere
quantum ille vir praestare potuerit si
ingenio suo imperare quam indulgere
maluisset. (Inst., X, 1, 98).
A Medeia de Ovídio parece-me mostrar o
quanto aquele homem teria podido ser
superior, se tivesse preferido ser
imperador do próprio talento, ao invés de
tratá-lo com indulgência.
Bassus Aufidius egregie, utique in
libris belli Germanici, praestitit genere
ipso. (Inst., X, 1, 103).
Aufídio Basso, que pouco o precedia na
idade, superou, de modo destacado no
gênero, essa autoridade, sobretudo em
seus livros sobre a guerra da Germânia.
Como vimos afirmando, com base no que diz o próprio Quintiliano, a
meta principal é formar o orador e, na medida em que a literatura lhe serve de
instrumento, nos é lícito dizer que a escrita poética é vista como um
expediente, um recurso funcional, utilitário, na construção do discurso em geral
e, em especial, do discurso persuasivo.
Ao apresentar os demais autores que integram a lista de leituras
recomendáveis, Quintiliano segue o estilo de linguagem utilizado para delinear
o perfil de Homero. Alguns exemplos são suficientes para o demonstrar. Não
importa se se trate de autor grego ou latino, se esse autor tenha escrito uma
epopeia ou se deixou versão escrita de um discurso pronunciado no tribunal,
Quintiliano mantém um padrão de escrita que pode até sofrer algumas
91
variações na forma, incluída a forma gramatical em sentido estrito
67
, mas
preserva os mesmos parâmetros estilísticos. É importante, ainda, notar a
ênfase em certas qualidades relativas a conceitos como iucunditas, sublimitas,
claritas, grauitas, etc.
Raro adsurgit Hesiodus magnaque
pars eius in nominibus est
occupata... §52.
Ocasionalmente aparece Hesíodo, e
grande parte de sua obra está ocupada
por uma relação de nomes.
Contra in Antimacho uis et grauitas et
minime uulgare eloquendi genus
habet laudem ...§53.
De modo contrário, em Antímaco merece
elogio a força, a gravidade e seu gênero
minimamente vulgar de discurso.
Arati materia motu caret, ut in qua
nulla uarietas, nullus adfectus, nulla
persona...§55.
A temática de Arato carece de vitalidade,
de uma tal forma que nela nenhuma
variedade exista, nenhum sentimento,
nenhuma personagem caracterizada
Simonides, tenuis alioqui, sermone
proprio et iucunditate quadam
commendari potest ...§64.
Simônides, por sua vez, pode ser
recomendado por sua linguagem própria e
por um certo encanto prazeroso.
Tragoedias primus in lucem
Aeschylus protulit, sublimis et grauis
et grandilocus saepe usque ad
uitium, sed rudis in plerisque et
incompositus ...§66.
Quanto às tragédias, Sófocles foi o
primeiro a trazê-las ao brilho da luz.
Sublime, grave e grandiloquente, muitas
vezes, porém, ao excesso, mas rude em
muitas passagens e até mesmo
desconcertado.
Densus et breuis et semper instans
sibi Thucydides, dulcis et candidus et
fusus Herodotus ...§73.
Denso, preciso e exigente de si mesmo,
assim é Tucídides; doce, lúcido e profuso,
assim é Heródoto.
His aetate Lysias maior, subtilis
atque elegans et quo nihil, si oratori
satis sit docere, quaeras perfectius
...§78.
Lysias, que é anterior em geração a estes,
é sutil e elegante: nada mais perfeito do
que ele se busque fazer, se o bastante
seja fazer aprender a um orador.
Isocrates in diuerso genere dicendi
nitidus et comptus et palaestrae
quam pugnae magis accommodatus
Isócrates é brilhante e bem preparado
numa forma diferente de oratória, mais
adequado para a sala de exercícios do
67
Referimo-nos aqui também ao fato de que o nome do autor ora aparece citado em
nominativo, ora em ablativo e assim por diante.
92
...§79. que para o combate, propriamente.
quis dubitet Platonem esse
praecipuum siue acumine disserendi
siue eloquendi facultate diuina
quadam et Homerica? ...§81.
quem duvida de que Platão foi o mais
importante, seja pela sua agudez de
raciocínio, seja por sua capacidade de
eloquência, que é divina e quase
homérica?
...Vergilius [...] ut illi naturae caelesti
atque inmortali cesserimus, ita curae
et diligentiae [...] in hoc ...§86.
Virgílio [...] conquanto tenhamos de ceder
a passagem àquela Natureza Celestial e
Imortal (Homero), no entanto, muito de
dedicação cuidadosa e diligência [...]
existiu neste.
Ennium sicut sacros uetustate lucos
adoremus, in quibus grandia et
antiqua robora iam non tantam
habent speciem quantam religionem.
...§88.
A Ênio adoremos, tal como aos bosques
que, pela sua idade, se fizeram sagrados:
neles os robustos e antigos carvalhos não
mais ostentam tamanha beleza, quanta
revelam em sua dimensão de
religiosidade.
Multum est tersior ac purus magis
Horatius et, nisi labor eius amore,
praecipuus. ...§81.
Muito mais enxuto e mais puro e, se não
me deslizo em razão do amor que tenho
por ele, é Horácio o primeiro.
Horatius fere solus legi dignus: nam
et insurgit aliquando et plenus est
iucunditatis et gratiae et uarius figuris
et uerbis felicissime audax. ...§96.
... Horácio é praticamente o único digno
de ser lido. Sem dúvida alguma ele se
sobreleva, em determinados momentos,
cheio de encantamento e graça, variado
nas figuras, fecundamente ousado nas
palavras.
... Titum Liuium, cum in narrando
mirae iucunditatis clarissimique
candoris. ...§101.
Tito Lívio. Este, em sua expressão
narrativa é de admirável encanto, de brilho
fulgurante;
Ideoque illam inmortalem Sallusti
uelocitatem diuersis uirtutibus
consecutus est ...§102.
Por estas razões, ele alcançou ainda que
por virtudes diferentes, aquela veloz
agilidade, que nunca de morrer, da
escrita de Salústio.
93
.... Nam mihi uidetur M. tullius, cum
se totum ad imitationem Graecorum
contulisset, effinxisse uim
Demosthenis, copiam Platonis,
iucunditatem Isocratis. ...§108.
A mim seguramente parece que Marco
Túlio, tendo-se entregue de todo à
imitação dos gregos, conseguiu externar a
força de Demóstenes, a copiosidade de
Platão, o encantamento de Isócrates.
C. uero Caesar [...] tanta in eo uis
est, id acumen, ea concitatio, ut illum
eodem animo dixisse quo bellauit
appareat; exornat tamen haec omnia
mira sermonis, cuius proprie
studiosus fuit, elegantia ...§114.
Caio César [...] Nele tão grande vigor,
tão refinada sutileza, tão ágil
arrebatamento que pareça ele ter escrito
os seus relatos com disposição idêntica
àquela com que fez as suas guerras.
Enfeita estas maravilhas todas a elegância
de uma linguagem, à qual se dedicou
ardorosamente.
... Egregius uero multoque quam in
orationibus praestantior Brutus
suffecit ponderi rerum: scias eum
sentire quae dicit. ...§123.
Verdadeiramente destacado e muito mais
avançado que em seus discursos, Bruto
pôde dar sustentação ao peso de suas
ideias. Pode-se perceber que ele sente o
que diz.
... in Epicuriis leuis quidem sed non
iniucundus tamen auctor est Catius.
...§124.
Dentre os epicuristas, Cátio é leve, pelo
menos, mas é um autor não desagradável.
A análise do autor, mas não da obra, precisa ser entendida além do seu
valor de “figura de retórica”: o reconhecimento, a validação de um talento exige
que o autor se enquadre em um perfil moral compatível com a figura de bem
que se espera do orador que ele venha ajudar a formar. Parece ser clara esta
intenção de Quintiliano, principalmente quando censura alguns temas tratados
ou recomenda, com reservas, alguns autores.
Para que seja possível examinar melhor esta questão, julgamos
necessário descrever mais detalhadamente o que se espera de um uir bonus,
e, assim, recorreremos a algumas informações que se encontram no livro XII.
94
6. O homem de bem
Ao iniciar o livro doze, Quintiliano fala do ousado empreendimento de
ter-se lançado na ciência da eloquência, tão recentemente descoberta -
eloquendi rationem nouissime repertam (Inst., XII, proemium, 3) -, e da própria
disposição de impor à sua “temeridade” o empenho de dar ao orador o caráter
moral e de lhe consignar os deveres nostra temeritas etiam mores ei
conabitur dare et assignabit officia. (Inst., XII, proemium,3). Mostra-se tomado
de tão excessivo zelo, que entende declarar-se ser ele próprio o primeiro a
quem cabe a observância dos princípios éticos pelos quais se deve guiar o
orador. Manifesta, assim, o temor de que sua obra venha a ser utilizada no
interesse de quem seja contrário ao bem-estar público ou privado:
Nosque ipsi, qui pro uirili parte conferre
aliquid ad facultatem dicendi conati
sumus, pessime mereamur de rebus
humanis si latroni comparamus haec
arma, non militi. (Inst., XII, 1, 1)
Eu mesmo, de minha parte me
esforcei para desenvolver a faculdade
do discurso, pessimamente seria
merecedor das qualidades mais
humanas, se tivesse dado arma a
bandido e não a soldado
68
.
Quanto ao orador, em síntese, propõe:
Ne futurum quidem oratorem nisi uirum
bonum (Inst, XII, 1, 3)
Não poderá tornar-se orador, se não
for um homem de bem.
Na caracterização do orador ideal Quintiliano expressa claramente a
consciência de que esse ainda o existiu, mas guarda a expectativa de que
um dia ele venha a existir. Mais uma vez, com base na figura real de Cícero é
que se vai construir a imagem ideal desse uir bonus dicendi peritus. Eleito
68
Mais uma vez Quintiliano se serve da imagem do soldado, sempre atribuindo a ele
qualidades de homem de bem:
95
Cícero como o mais próximo do ideal, Quintiliano o chama de perfeito. À
primeira vista parece haver conflito de ideias entre “ideal” e “perfeito”, mas,
segundo interpretamos, Quintiliano, ao falar de “ideal”, fala de um orador “mais
do que perfeito”, na medida em que Cícero está no passado e não tem mais
como ser aperfeiçoado. Nessas circunstâncias, a Institutio é sua contribuição
para auxiliar a formação do orador que se espera.
saepe dixi dicamque perfectum oratorem
esse Ciceronem (Inst., XII, 1, 19)
Frequentemente disse e sempre direi
que Cícero é o orador perfeito.
Vale entender que nesta acepção de perfectum se enquadra a ideia,
manifesta por Quintiliano, de que perfeição se compatibiliza com perpetuidade,
em outras palavras, sempre que se falar de eloquência, de se falar em
Cícero.
ego non audeam dicere aliquid in hac
quae superest aeternitate inveniri
posse eo quod fuerit perfectius? (Inst.,
XII, 1, 21)
Eu não ousaria dizer que possa ser
encontrado, nessa eternidade que está
por existir, algo mais perfeito do que
aquilo que já tenha existido.
Para convalidar essa opinião, faz veemente defesa da conduta moral de
Cícero, da sua atuação enquanto homem de estado, das qualidades
intelectuais e da própria coragem pessoal.
Testimonio est actus nobilissime
consulatus, integerrime prouincia
administrata et repudiatus
uigintiuiratus, et ciuilibus bellis, quae in
aetatem eius grauissima inciderunt,
neque spe neque metu declinatus
animus quo minus optimis se partibus,
id est rei publicae, iungeret. Parum
fortis uidetur quibusdam, quibus optime
Em testemunho, o seu consulado tão
nobremente gerenciado, sua província
tão honestamente administrada, o
vigintivirato que ele recusou. Durante as
guerras civis, que aconteceram
gravemente em seu tempo, seu espírito
não se abalou, nem pela esperança,
nem pelo medo de que não pudesse
aderir ao que era o melhor, ou seja, a
96
respondit ipse non se timidum in
suscipiendis sed in prouidendis
periculis: quod probauit morte quoque
ipsa, quam praestantissimo suscepit
animo. (Inst., XII, 1, 16-17)
República. Pareceu pouco forte a
alguns, mas a esses admiravelmente
respondeu que não era tímido em
enfrentar perigos, mas em os prever.
Isto ele provou com a própria morte, a
qual assumiu com o mais resoluto
espírito.
Podemos ainda associar à figura de Cícero o motor da inspiração de
Quintiliano ao explicitar que resultados espera como os bons frutos de seu
trabalho:
Non enim forensem quandam
instituimus operam nec
mercennariam uocem neque, ut
asperioribus uerbis parcamus,
non inutilem sane litium
aduocatum, quem denique
causidicum uulgo uocant, sed
uirum cum ingenii natura
praestantem, tum uero tot
pulcherrimas artis penitus mente
complexum, datum tandem rebus
humanis, qualem nulla antea
uetustas cognouerit, singularem
perfectumque undique, optima
sentientem optimeque dicentem.
(Inst., XII, 1, 25-26)
Em verdade, não pretendemos formar simples
mão-de-obra forense, nem uma voz
mercenária, nem, para nos poupar de
palavras muito ásperas, um não inútil
advogado de litígios, a quem chamam, à
maneira popular, de causídico. Ao contrário,
temos por meta um homem eminente que, ao
mesmo tempo, seja naturalmente dotado do
talento e que, na profundidade de sua mente
tenha abarcado tão abrangentemente as artes
mais refinadas; uma dádiva para a
humanidade, de tal modo notável que
nenhuma antiguidade tenha conhecido igual;
único e perfeito em tudo, capaz dos
sentimentos mais elevados e da palavra mais
acertada.
Como se vê, não se está em busca de uma habilidade, de um padrão de
comportamento ou de uma ideologia, em sentido estrito, mas se busca um ser
humano, um ciuis romanus, na mais legítima acepção do termo concidadão
69
.
69
Conferir notas 38 e 70.
97
Deve o orador estar orientado por dois conceitos fundamentais: Veritas e
Honestas. Embora complementares entre si, estas noções precisam ser
intermediadas pela sapientia, é o que se pode deduzir de toda a argumentação
de Quintiliano. Merece atenção algo que nas suas referências ao homem sábio
poderia passar como simples detalhe, mas que se reveste de profunda
significação e das mais extensas implicações. Analisemos a seguinte
passagem:
Atqui ego illum quem instituo
Romanum quendam uelim esse
sapientem, qui non secretis
disputationibus sed rerum
experimentis atque operibus uere
ciuilem uirum exhibeat.(Inst., XII, 2,
7)
De minha parte, aquele orador que eu
formo genuinamente romano, eu gostaria
que fosse um sábio, o qual se mostrasse
um homem verdadeiramente concidadão,
não pelas discussões fora da realidade,
mas pelas experiências concretas e por
ações, de fato, práticas.
Apesar de toda a relação com a cultura grega, Quintiliano volta-se para o
destinatário de sua obra e manifesta o cuidado em querer tornar seu orador um
sábio genuinamente romano. Em pouquíssimas palavras condensa as
principais características do que poderíamos denominar romanidade, revelado
nos próprios sentidos etimológicos de cada termo, como os descrevem Ernout
(1951) e Martin (1959). Aplicadas essas definições aos termos, no contexto em
que os empega Quintiliano, temos:
1) non secretis disputationibus. Secretus é um adjetivo participial do verbo
secerno: literalmente, “eu faço uma triagem utilizando o recurso de
afastar as coisas umas das outras”. A ideia de separação é veiculada
pelo prefixo SE. Secretus, portanto, significa “triado, afastado,
separado”. O não às “discussões distantes, afastadas”, significa, em
termos rasos, que o sábio romano precisa integrar-se à sua comunidade
98
e confrontar-se com o mundo objetivo; que discutir, de modo
pragmático, o fato, não uma possível idealização; que materializar a
validade de uma ideia, na medida em que ela é uma condição do mundo
vivido ou a este se aplique.
2) Rerum experimentis atque operibus. Experimentum tem sua base
radicada em per, forma preposicional, que significa “por, através de”. A
palavra experimentum guarda as noções fundamentais de “movimento”,
que a experiência é, em última instância, “já ter passado por ...”. Mais
uma vez aqui se enfatiza a ideia de que se faz necessária a
comprovação pela prática. Opus tem o sentido de trabalho concreto,
visível, palpável, assim como um livro é opus e um quadro de pintura é
uma “obra” de arte.
3) Virum ciuilem. A expressão ganha sentido especial, na medida em que
combina as noções de individual e coletivo: uir é o homem na sua
condição individual, um exemplar, diríamos, da espécie homo. Ciuilis é
adjetivo formado a partir de ciuis que, o dissemos, é o homem na sua
interação com os outros homens: o concidadão na sua ciuitas
70
.
70
O equivalente latino ciuitas, conforme ensina Benveniste (1989), apresenta em relação ao
termo grego diferenças na origem de sua estruturação morfológica, o que significa, por sua
vez, diferenças profundas de significação.
Ciuitas é um substantivo derivado de ciuis o indivíduo, o homem enquanto indivíduo, “mas
que não se pode definir a não ser em relação a outro ciuis”.(Benveniste, 1989: 284). (Em
português a palavra civilidade guarda um pouco desse sentido primitivo). Ciuitas é, por isso,
uma associação, um conjunto de ciues. O seu emprego por aqueles que guardam o seu valor
etimológico indica sempre a cidade (palavra que nos chegou pelo acusativo ciuitatem) do
ponto de vista das pessoas que a formam. Propriamente equivale a comunidade.
Pólis é o substantivo do qual se deriva polités, ou seja, para o entendimento grego a
comunidade (pólis) antecede o indivíduo (polités).
Vale observar, no entanto, que em relação ao aspecto gramatical, mas não como concepção,
igualmente temos cidade como primitivo e cidadão como derivado.
99
Julgamos temerário querer dizer mais do que a frase de Quintiliano,
levar adiante projeções ou ampliar deduções acerca do seu ideal de sábio
orador na coletividade romana. Cabe, ainda, a s admitir como coerente com
o seu projeto de orador a proposição de que a eloquência é a mais bela das
coisas - rem pulcherrimam eloquentiam (Inst., XII, 1, 45) - e que sua beleza se
preserva, mesmo que o discurso deva ajustar-se à circunstância, contanto que
tenha sido mantida a intenção honesta - quapropter ut res feret flectetur oratio,
manente honesta uoluntate (Inst., XII, 1, 45).
Uma vez considerados os traços morais do orador, de que maneira
Quintiliano propõe relacionar o bem, que deve buscar o orador, com o mal, que
tem para oferecer um mau poeta? Um levantamento ainda que sumário das
qualidades negativas, identificadas nos autores, tal como elaboramos abaixo,
faz-nos perceber mais claramente a maneira como é sugerida por Quintiliano a
relação autor-obra-leitor (Devemos, neste caso, identificar o leitor com o orador
em formação).
Nessa correlação de forças entre o “beme o “mal”, lembremo-nos, por
exemplo, de que ao falar de Homero, Quintiliano atribui ao autor qualidades
que também podem ser facilmente associáveis a um texto. Adjetivos como
laetus, pressus, grauis, por exemplo, se aplicam igualmente à obra literária seja
em referência às suas qualidades formais, seja em relação à natureza dos
conteúdos morais, em sentido amplo, que são veiculados.
Quando nos voltamos para a sua maneira de fazer restrições ou de
censurar um autor, notamos que, por exemplo, ele chega ao ponto de
qualificar, por duas vezes, o escritor Ovídio como lasciuus (parágrafos 88 e 93,
abaixo). Ainda que este termo possa ser interpretado, muito figuradamente,
100
como “afetado (em relação a um estilo de escritor)” (Faria, 1967: 550), sua
carga semântica pejorativa é muito forte. Mais ainda, é um termo que se aplica
igualmente à conduta moral, à índole de um indivíduo, muito mais do que
define qualidades de um texto literário.
Como poderia o leitor julgar que é secundária ou irrelevante a censura
moral feita por Quintiliano aos costumes de Afrânio (Inst., X,1,100)? Ampliando
o quadro de censura, não temos dúvida de que é também com propósitos
moralizantes, sobretudo considerando-se a romana grauitas, que se põe em
evidência a vaidade de um escritor, duas vezes exemplificada na figura do
poeta Ovídio (§§ 88 e 98).
Alcaeus [...] sed et lusit et in amores
descendit ...§65.
Alceu [...] No entanto, ele brincou e
também desceu aos amores....
Habent tamen alii quoque comici, si
cum uenia legantur, quaedam quae
possis decerpere ...§72.
Alguns outros cômicos, se lidos
condescendentemente, têm coisas que se
possam colher com proveito...
Lasciuus quidem in herois quoque
Ouidius et nimium amator ingenii sui,
laudandus tamen partibus. ...§88.
Ouidius utroque lasciuior...§93.
Ouidi Medea uidetur mihi ostendere
quantum ille uir praestare potuerit si
ingenio suo imperare quam indulgere
maluisset. ...§98.
Lascivo de verdade em seus versos
heróicos, Ovídio é também excessivo
amante do próprio talento. Mesmo assim,
porém, há de ser elogiado em algumas
partes específicas.
Ovídio é mais lascivo que os dois,
A Medeia de Ovídio parece-me mostrar o
quanto aquele homem teria podido ser
superior, se tivesse preferido ser
imperador do próprio talento, ao invés de
tratá-lo com indulgência.
Rabirius ac Pedo non indigni
cognitione, si uacet. ...§90.
Rabírio e Pedo não são indignos de serem
reconhecidos, se se dispuser de tempo.
Togatis excellit Afranius: utinam non
inquinasset argumenta puerorum
Afrânio foi excelente nas fábulas togadas:
oxalá, réu confesso dos próprios
101
foedis amoribus, mores suos fassus.
...§100.
costumes, ele não tivesse conspurcado as
intrigas de suas peças com pederastias
abjetas.
104. Habet amatores - nec inmerito -
Cremuti libertas, quamquam
circumcisis quae dixisse ei nocuerat:
...§104.
Tem seus admiradores, não
imerecidamente, a independência de
Cremúcio, embora tenham sido
suprimidas todas as partes que, diz-se, o
haviam prejudicado.
Estas poucas referências são seguro exemplo do quanto importa ao
orador espelhar-se na imagem de cidadãos observantes da honesta cultura
moral de seu tempo. Se, no entanto, passarmos dos vícios dos homens para a
natureza das palavras, observaremos, baseados nas orientações de
Quintiliano, que a elas se podem fazer concessões, conforme se lê:
Omnibus enim fere uerbis, praeter
pauca quae sunt parum uerecunda,
in oratione locus est. [...]. Omnia
uerba, exceptis de quibus dixi, sunt
alicubi optima.(Inst., X, 1, 9)
Para quase todas as palavras existe um
lugar no discurso, exceto umas poucas que,
de certo modo, ferem o pudor. [...] Todas as
palavras, exceto aquelas de que acabo de
dizer, são ótimas, cada qual para um
emprego específico.
No entanto, ele não poupa nem os vícios nem os excessos dos poetas,
na sua condição de homens. Podemos deduzir que, se para Quintiliano um
orador precisa se fazer capaz da escolha consciente de seu vocabulário, dos
padrões de expressão morfossintática e do estatuto semântico de suas
palavras, muito mais ainda ele deve estar capacitado para construir um
universo de palavras sustentado pela lucidez na escolha e retidão na intenção.
Mas é na figura de Sêneca que vemos representada, de modo mais
contundente, a complexidade da relação entre orador em formação e autor. À
primeira leitura dos parágrafos 125 a 131 (Inst., X), toda a argumentação de
102
Quintiliano deixa transparecer um certo caráter de ambiguidade. A impressão é
a de que ele quer-se refugiar nessa ambiguidade para não condenar de modo
explícito e definitivo aquele de quem simultaneamente enumera os vícios e
exalta qualidades.
Chama a atenção o espaço de texto destinado aos autores: se
compararmos a extensão dos comentários, veremos que Homero e Sêneca
são, de longe, os que mais demoradamente foram analisados, e dentre os dois,
Sêneca foi o mais extensamente comentado. É bem verdade que a Homero
se fazem comentários elogiosos: de Sêneca, no entanto, são examinados os
vícios e as virtudes.
Propositadamente servimo-nos aqui do termo ambiguidade, também no
seu sentido etimológico: “o que pode pender para um ou outro lado da balança”
71
, “o que tem diante de si dois caminhos”. De um lado, Quintiliano não diz
categoricamente qual é sua verdadeira opinião:
... propter uulgatam falso de me
opinionem qua damnare eum et
inuisum quoque habere sum creditus.
(Inst., X, 1, 125)
... em decorrência da opinião falsamente
divulgada, segundo a qual se acredita
que eu o queira condenar e até mesmo
tê-lo por detestado.
De outro, descreve a figura de neca utilizando-se de conceitos
sempre em pares contrastantes: adulescentes - antiqui (jovens - antigos), amor
- imitatio (amor - imitação), ingenium - iudicium (talento - juízo crítico), etc.
Examinemos os elementos que citamos como exemplos.
a) Jovens e Antigos:
Fazia parte da moral romana o culto dos antepassados, o respeito às
tradições. Falar de neca é um momento oportuníssimo para deixar ainda
71
“qui penche également dans la balance de chaque coté” (Martin, 1959: 9)
103
mais clara a preocupação de Quintiliano em resgatar valores da antiguidade
romana. Considerando suas palavras, Sêneca não se identificava com os
antigos, pois era quase o único nas mãos dos adolescentes [tum autem solus
hic fere in manibus adulescentium fuit (Inst., X, 1, 125)]; ele estava muito
afastado dos antigos, mas assim mesmo teria recebido a aprovação dos
eruditos, ao invés do amor de meninos, se tivesse posto em equilíbrio talento e
juízo próprios. É muito importante ressaltar que subjazem a estas relações os
conceitos de maturidade intelectual, moral pessoal e senso estético.
Podemos, através das próprias palavras, ver que adulescentes e pueri
são utilizadas em oposição a antiqui e eruditi. Tudo no texto nos leva a crer que
na correlação adulescentes-eruditi estão representadas as noções de
experiência de vida, graus de desenvolvimento intelectual, níveis de
comprometimento pessoal com a coletividade, etc. Por sua vez, a correlação
pueri-antiqui vem carregada de um tom moralizante, sobretudo no plano
pessoal. É claro que puer carrega ainda os sentidos de ingenuidade,
imaturidade, mas não podemos descartar da expressão amore puerorum (Inst.,
X, 1, 131) conotação pejorativa, principalmente se a colocarmos em oposição à
grauitas dos romanos antigos e ao seu conceito mos maiorum
72
.
Ainda que o tenha descido a pormenores e detalhamentos a respeito
das tendências estéticas do seu tempo e da pertinência da escrita de Sêneca,
72
PEREIRA (1989) assim se expressa sobre esses dois conceitos:
“Ao homem público investido de dignitas correspondia geralmente um comportamento
que se designava por outra palavra-chave da cultura romana, a de gravitas.
A sua derivação a partir de gravis (‘pesado’) é evidente. Mas o mais curioso é que o
adjectivo figura desde cedo no sintagma vir gravis, onde é evidente um sentido metafórico que
não tem paralelo noutras línguas indo-europeias” (343).
“Os romanos tinham como suporte fundamental e modelo do seu viver comum a
tradição, no sentido de observância dos costumes dos antepassados, mos maiorum. Esta ideia
é, pelo menos, tão antiga como Énio, em fragmento muitas vezes citado:
Nos costumes e varões antigos se apoia o estado romano.” (347-8)
104
Quintiliano diz apenas, e com censura, das minutissimae sententiae. Se, do
ponto de vista estético, o se possa, em princípio, questionar o valor de uma
obra pelo emprego de frases curtas, sentenças muito diminutas
73
, o tom
censório de Quintiliano, no entanto, nos permite pensar que esse não devesse
ser um estilo adequado à formulação do raciocínio forense, enfim à virtude
oratória que ele propõe ao futuro orador.
Kennedy (1994), ao falar as mudanças de estilo na linguagem, no
terceiro quartel do séc. I a.C, comenta a reação de Quintiliano aos rumos da
oratória, incluídas aí as minutissimae sententiae, pois:
o estilo declamatório ganhou popularidade, resultando em uso
crescente de frases curtas, transições abruptas, metáforas e figuras
forçadas e, acima de tudo, o gosto pelas sententiae (173)
74
.
b) Amor e Imitação:
Outra vez se coloca em destaque a relação jovens e antigos. A
imaturidade intelectual, sugerida e censurada por Quintiliano, impede que o
jovem saiba fazer conscientemente uma boa escolha. É assim que ele
interpreta a relação dos adolescentes com Sêneca. Eles, tomados de paixão
cega, se assim exageradamente possamos nos expressar, não são capazes de
enxergar que aquilo que amam em neca é defeito e que, por não serem
conscientes da escolha, o são capazes da imitação. Muito adequadamente
Quintiliano utiliza para esta situação o termo effingenda, um particípio de
effingo, que tem no radical verbal de fingo as ideias de moldar, modelar, fingir,
“ficcionar”. Ainda em effingo temos a noção do movimento “de dentro para
73
Assim se registram texto latino e a tradução francesa (Cousin, 1979: 106):
si rerum pondera minutissimis sententiis non
fregisset. (Inst., X,1,130)
S’il n’avait brisé la solidité des idées en
usant de phrases trop finement hachées...
74
and the declamatory style gained popularity, resulting in increasing use of short sentences,
abrupt transitions, strained metaphors and figures, ad above all fondness for sentences
Kennedy (1994: 173).
105
fora”, garantida pela preposição ex, em sentido contrário ao imitor, que o
contexto parece sugerir como “de fora para dentro”
75
.
Interpretamos nesse effingenda a situação de alguém que, sem a devida
reflexão, sem o devido tratamento, deixa escapar de dentro de si o que lhe
venha à cabeça, ou somente pela exterioridade se deixa conduzir. Isso nos
parece diferente do imitare, que, naturalmente, exige aquele movimento inicial
de “conduzir para dentro”, em seguida, retrabalhar o conteúdo interiorizado
para, finalmente, exteriorizá-lo segundo as determinações do modelo.
c) Talento e Juízo Crítico:
Quintiliano reconhece como facile e copiosum o talento de Sêneca,
qualidades elogiáveis, portanto. Informa, ainda, que ele não somente tratou de
quase todos os assuntos, mas também os escreveu nos mais variados
formatos de textos: discursos, poemas, cartas, diálogos
76
. Enfim, ele era um
homem capaz de tudo o que ele quis. Mas Quintiliano chega a ser
excessivamente mordaz, diríamos, em sua crítica ao juízo de Sêneca, quando
afirma que ele foi pouco diligente em matéria de filosofia; que foi uma natureza
digna de que quisesse as coisas melhores, e culmina com um golpe fatal:
Velles eum suo ingenio dixisse,
alieno iudicio. (Inst., X, 1, 130)
Seria desejável ele ter dito o que disse com o
próprio talento, mas com o discernimento
alheio.
Segundo cremos, não importa muito saber qual dos dois, Quintiliano ou
Sêneca, afinal de contas, nessa batalha, saiu vencedor, qual o vencido, mesmo
porque esse confronto belicoso influi muito pouco no julgamento que possamos
75
Esta acepção não pode ser confirmada pela etimologia. O que se pode dizer é que imitor se
constrói no radical de imago. Esta palavra, por sua vez, seria derivada de um radical *im-, de
origem incerta, segundo Ernout: Imago suppose peut-être um verbe à radical *im- (1951: 552).
76
Cf. Inst. X, 1, 129.
106
fazer do passado. Mais importa entender que, ao retratar assim a figura de
Sêneca, Quintiliano quer mostrar ao futuro orador e àqueles que se
encarregam de sua formação, o quanto é desafiadora, o quanto pode ser cheia
de perigos a seleção dos autores que devem ser lidos. Não se trata aqui
simplesmente de absolver ou condenar um autor, mas de exemplificar, através
deste modelo de análise, as dificuldades de um processo de formação
intelectual e profissional.
Em resumo, entendemos que a ênfase na figura do autor guarda imenso
simbolismo e emerge da necessidade que tem Quintiliano de fazer uma
aproximação entre o orador e o poeta. dissemos que o orador é o seu
discurso, ele é a verdade que transmite, é, enfim, a personificação de sua fala.
Do mesmo modo, a obra poética é vista como a identidade, ou melhor, como a
entidade poeta.
O simbolismo que admitimos existir se caracteriza pelo fato de que, nas
situações concretas, como no tribunal, por exemplo, as relações do orador com
o seu interlocutor não acontecem por mediação, mas por presença atuante de
ambas as partes. Assim para mostrar que o orador em seu processo de
formação precisa reforçar essa característica de sua profissão, Quintiliano
procura colocar o seu orador em interlocução com o poeta, não com a obra.
107
CAPÍTULO III
IN ORATORIA ELOCVTIO
Na oratória a elocução
108
Enquanto participante do mesmo grupo de coepi e de noui, memini é
igualmente uma formação de perfectum e, nessa condição, traduz as ideias de
processo concluído, de fato consumado. No plano do sentido, o lembrar
projeta-se para o passado, já que aí se funda a memória.
Julgamos, muito além do mero ilustrativo, que se faz necessária a
referência ao modelo de formulação da expressão da memória em latim, pois
essa forma de compreender e de expressar o mundo nos auxilia a ver com
mais clareza que uma das bases em que se assenta o processo da imitação é
justamente a memória. Não dúvida de que o processamento da imitação,
nos termos propostos por Quintiliano, se opera em etapas, considerando-se
que um fato, para tornar-se imitável, exige que tenham sido criadas as
condições para que esse fato se constiua em modelo. Nesse sentido, faz-se
necessária a construção de uma memória cultural, que se torna um arquivo de
fatos e modelos imitáveis, ao mesmo tempo em que se torna a matriz de uma
competência para estabelecer novos padrões de imitação. Veremos que, de
fato, em Quintiliano, a imitação se dá, sobretudo, na referência a modelos e
saberes consolidados por uma tradição histórica. Temos de considerar, além
disso, que o recurso a essa memória cultural, com o objetivo de recuperar-se
um fato, pode igualmente constituir-se numa oportunidade de inovação.
É bem verdade que hoje a palavra imitação
77
permite associar-lhe ideias
como as de “cópia imperfeita”, “falsificação”, “fingimento”, “arremedo”,
“replicação” e até mesmo “clonagem”, palavra tomada de empréstimo à
77
Assim se descreve o verbo imitar em Ferreira (1975): “1. fazer exatamente (o que faz uma
pessoa ou animal); reproduzir à semelhança de ... 2. Ter por modelo ou norma .... 3) Tentar
reproduzir o estilo ou a maneira de (um artista) .... 4) Arremedar, repetir, reproduzir, copiar ... 5)
Falsificar, contrafazer ... 6) Ser semelhante a ... 7) Apresentar falsa aparência com ...”(749)
109
linguagem das ciências biológicas. Ninguém duvida de que o uso do termo é
feito, de modo geral, com uma carga semântica altamente pejorativa. Isto se
verifica de maneira mais evidente nos processos industriais e nas transações
comerciais de bens e de produtos, quando, então, recebe, entre outros, o nome
de “pirataria”.
A criação intelectual, guardadas certas proporções, também se rege
pelos mesmos princípios das relações industriais e comerciais. Ela, muitas
vezes, é tratada como uma “produção”, um “bem” ou um “patrimônio cultural”,
especialmente quando, de modo explícito ou o, entram em jogo interesses
de ordem comercial e financeira. Aqui essa variante de imitação recebe o nome
de “plágio”
78
e se sujeita, assim, ao “império da lei”. No plano das relações
sociais, os modelos estabelecidos como imitáveis são aqueles a que
poderíamos considerar de “virtuosa força moral”. Na maioria das vezes,
entretanto, esses modelos são impostos, de tal forma a dar mais ênfase às
qualidades piores do imitador do que valorizar as qualidades melhores daquele
que deve ser imitado.
Não é com esses valores que a imitatio se nos apresenta pelo tratado de
Quintiliano. Da mesma forma que a literatura foi examinada sob a perspectiva
de função utilitária, de conteúdo aplicável à construção de um saber prático e
com vistas ao estabelecimento de padrões de comportamento social, a
imitação, por sua vez, é tratada como um exercício, um procedimento, uma
estratégia pedagógica que se faz mediação, sem fim em si mesma, portanto,
entre um saber construído e outro saber que se pretende aprimorado. A
própria palavra imitatio revela em sua estrutura morfossemântica a natureza de
78
Terêncio, no prólogo do Eunuchus, se defende da acusação de imitador”, nesse sentido que
atribuímos a plágio.
110
processo
79
. Se retomarmos a correlação que apresentamos entre fingo e imitor,
veremos que fictio e imitatio o formações derivadas por procedimento
gramatical idêntico, mas o palavras que alcançam grande diferença quanto
ao valor semântico, tal como demonstrado pelo próprio Quintiliano, ao utilizar o
cognato effingenda (Inst., X, 1, 127).
Ocorre que a imitação requer também a sensibilidade. Para que se torne
ação, ou até mesmo aconteça um resultado prático, é necessário que o
imitador faça passar pelo crivo dos sentimentos a inteireza da obra que lhe é
proposta por modelo. Não se trata, obviamente, de concordar ou discordar,
apropriar-se de ou censurar sua forma e conteúdo, mas, antes de tudo, de
reconhecer no modelo as qualidades que lhe são intrínsecas.
Torna-se a sensibilização ainda mais relevante dentro do processo de
imitação, quando se constata que uma das finalidades da oratória é justamente
convencer, dar movimento aos sentimentos da alma, os quais a natureza
conferiu ao gênero dos homens, numa tradução livre das palavras de Cícero:
omnes animorum motus, quos hominum generi rerum natura tribuit (De Orat., I,
5, 17).
No sistema da retórica, a imitação, de que trata e da forma como a trata
Quintiliano, parece-nos que mais amplamente se localiza nos limites da
elocutio. Dado que esta seja a instância da materialização linguística do
discurso, entendemos que é no procedimento de concretizar-se a imitação que
a elocutio pode mais visivelmente mostrar-se não apenas no texto produzido,
mas também na habilidade do orador que a produz. Se atentarmos para o
79
Ela tem como base um radical verbal, imita-, unido a um sufixo, -tion-, formador de nomes
abstratos que indicam ação.
111
processo como um todo, veremos que as etapas de invenção e de disposição
já terão sido cumpridas pelo autor do texto original.
Ao aprendiz de orador e ao orador que se quer aperfeiçoar se permite a
imitação em sentido muito abrangente: se lhes permite imitar plenamente
outros oradores, contemporâneos seus; os oradores de outros tempos que
deixaram por escrito uma obra oratória; as características linguísticas de uma
obra literária, partes de uma obra, ou o estilo de um poeta.
De tudo isso Quintiliano fala, mas daremos ênfase maior ao processo de
imitação no que diz respeito à obra literária: priorizaremos o valor da poesia; o
engenho do poeta. Estamos certos de que também na criação poética uma
elocutio, que entendemos sugerida na obra de Quintiliano, e que vem
reconhecida por sua estreita ligação com a elocutio oratória.
A imitação, segundo propõe Quintiliano, não é um processo que se
verifica na natureza, mas um expediente criado pela mente humana. Esse
recurso é, assim, um daqueles mecanismos concebidos pelo homem com o
propósito de aprimorar seja a criação intelectual e artística, sejam as formas de
relacionamento entre os cidadãos. Constitui, pois, uma indispensável
ferramenta a ser levada em conta no processo de formação desse que se
projeta como orador ideal, já que
Neque enim dubitari potest quin artis pars
magna contineatur imitatione. (Inst., X, 2,
1)
... não que duvidar de que uma
grande parte da arte esteja
circunscrita à imitação.
A imitação, tal como utilizada na antiguidade greco-romana, não se
concretiza numa ideia universal, no sentido de consensual, o caracteriza um
conceito unitário. Ela pode ser vista como um complexo de amplo espectro,
112
tendo sido concebida de forma variada no universo da filosofia, das artes e a
mesmo nas relações sociais de grupos entre si e de indivíduos, estes nas
interações com os grupos ou com outros indivíduos. Assim é que se podem
notar as diferenças de conceitos a ela atribuídos por Platão e Aristóteles, por
exemplo.
De acordo com a filosofia platônica, assim como a descreve Sullivan
(1989), a imitação sempre esteve associada ao mundo das aparências e da
ilusão. Transferidas essas concepções para a criação intelectual e material,
pode-se dizer que a arte não passa de uma sombra, pois, enquanto imagem
espelhada, não é, objetivamente, a realidade em si mesma
80
.
Dessa maneira, a imitação é proposta como um conceito muito
abrangente, pois diz respeito à forma de relação entre o homem e as diversas
instâncias do mundo. Enfim, propriamente diz respeito ao como existir o
homem no mundo.
Segundo o desenvolvimento de Aristóteles, a arte é imitação da
realidade. No entanto, é preciso entender que essa imitação é seletiva, que
se restringe a coisas particulares, em especial a ações dos homens. Esta é a
conclusão de Sullivan (1989), que acrescenta:
McKeon descreve o conceito de Aristóteles sobre a imitação nas belas
artes como um processo no plano abstrato: “na imitação o artista separa
algumas formas do elemento material com o qual elas estão ligadas na
natureza - não a forma substancial, mas a forma perceptível pelas
sensações e as religa, desta vez, ao elemento material de sua arte,
sendo essa arte o meio do qual ele se utiliza para sua expressão. A
80
Costuma-se ilustrar essa passagem com o clássico exemplo da cama: o carpinteiro cria
apenas uma representação material do conceito idealizado de uma cama, enquanto que o
pintor somente faz a imitação dessa representação que o carpinteiro materializou.
113
natureza das belas artes, e, daí, a da poesia, tem como fim
simplesmente apresentar uma imitação realística de coisas particulares.
O conceito de imitação era utilizado na antiguidade não apenas para
descrever a natureza da arte, mas também para explicar como se cria a
arte.
81
Se nos ativermos ainda a percepções que a antiguidade nos fornece,
veremos que no campo da criação intelectual, seja a arte literária ou a retórica,
a imitação de outros artistas é reconhecida como mecanismo de
aprimoramento, de evolução da arte. Vale notar que a imitação de um outro
artista representa uma nova dimensão da criação, um estágio diferente do
processo, sobretudo se considerarmos que essa arte transcende ao que pode
ser simplesmente a imitação da natureza. Nos domínios da arte, acontece a
imitação da criação, ao invés da imitação da criatura. Especialmente em
Quintiliano privilegia-se a imitação do processo de criação, ao invés da
imitação do discurso pronto.
Para se ter ideia da abrangência de um processo imitativo, imaginemos,
por exemplo, a situação de um poeta que, não tendo presenciado a erupção do
Vesúvio, queira colocar-se na condição de testemunha ocular e, assim, fazer o
relato da destruição de Pompeia. Para isso ele recorre a Plínio, o Jovem, que
81
McKeon describes Aristotle’s concept of imitation in the fine arts as an abstracting process:
“in imitation the artist separates some form from the matter with which it is joined in nature – not,
however, the ‘substantial’ form, but some form perceptible by sensation and joins it anew to
the matter of his art, the medium which he uses”. The nature of the fine arts, and hence of
poetry, is simply to present a realistic imitation of particular things.
The concept of imitation was used in antiquity not only to describe the nature of art, but also to
explain how to create art. (Sullivan, 1989: 07)
114
presenciou todo o acontecido e o narrou em uma carta emocionante
82
. Nestas
circunstâncias, o poeta, impedido pelo tempo e lugar, não tem como agir
identicamente a Plínio, mas levado pela criação literária, finge uma presença e
constrói sua narrativa. Em verdade, o poeta imitará duas vezes, pois, ao imitar
a criação literária do relato, imitará igualmente Plínio, enquanto presente ao
evento.
Tanto Dionyso de Halicarnaso, quanto Longino podem ser utilizados
como exemplos de partidários desta opinião de que a imitação dos grandes
escritores é mais produtiva do que a imitação da natureza. Segundo eles, o
trabalho de leitura dos escritores consagrados é fonte de inspiração para
grandes obras. Isso se concretiza numa operação que Sullivan (1989)
descreve: “O imitador é direcionado para os grandes modelos através da
imitação ou da emulação (zelos) e recebe a impressão desse modelo através
da imitação (mimesis), enquanto o examina em profundidade”.
83
Três conceitos chamam a atenção nesta passagem: “admiração”,
“emulação e “imitação”. Inquestionavelmente são significativos, nesse
contexto, pois trazem associados a si aqueles movimentos da alma que se
expressam como simpatia, desejo consciente, análise, escolha e impulso de
superação, compatibilidade de gênio, enfim, identificação pessoal.
1. Imitação e emulação
que considerar que muito comumente se associam, no mesmo
processo da imitação como um todo, duas atitudes marcadamente distintas e
82
Cf. Plin. Ep.6.16. C. PLINIVS TACITO SVO S.
83
“The imitator is drawn to great models through admiration or emulation (zelos) and receives
the impression of the model through imitation (mimesis), while inspecting the model” (Sullivan,
1989: 8)
115
que, por isso, uma delas recebe nome diferente: emulação. Em linhas gerais
poderíamos identificar a emulação como um procedimento de imitação em que
o imitador é tomado do desejo de “fazer melhor”, ou de conduzir a um resultado
diferente, ou seja, impelido por um processo de imitação ativa, motivado por
um zelo ardoroso, o imitador busca a superação ou a descaracterização do
modelo. Subjaz, enfim, à emulação um certo caráter de rivalização.
Um aspecto importante da emulação é que ela tem em conta a obra em
sua totalidade. Assim, por exemplo, não se procede à emulação de uma parte
de um discurso ou de um de seus aspectos. Em verdade, se colocam em
confronto dois discursos de natureza idêntica, sobre o mesmo tema, de tal
modo que o segundo, embora motivado pelo primeiro, não pareça ser a sua
cópia, mas seu competidor. É assim que interpretamos a seguinte passagem
em que Homero é colocado na condição de quem não tem rivais:
Quid? in uerbis, sententiis,
figuris, dispositione totius
operis nonne humani ingenii
modum excedit? - ut magni sit
uiri uirtutes eius non
aemulatione, quod fieri non
potest, sed intellectu sequi.
(Inst. X, 1, 50)
Ainda mais? Nas palavras, nas sentenças, nas
figuras, na organização da obra como um todo,
não é verdade que excedeu a medida do talento
humano? Em consequência disto, que haver
nos homens que se queiram grandes a
competência para seguir as qualidades dele, não
pela emulação, pois que isso não se pode fazer,
mas pela compreensão intelectual apenas.
Ao falar da realidade de que até o seu momento ainda não havia sido
encontrado o orador perfeito, Quintiliano adverte que, mesmo aqueles que não
têm essa pretensão, devem recorrer à emulação com outros oradores, muito
mais do que simplesmente os deve seguir.
116
Sed etiam qui summa non
adpetent, contendere potius quam
sequi debent. (Inst., X, 2, 9)
84
Até mesmo aqueles que não estejam em
busca de perfeição devem competir, muito
mais do que simplesmente seguir
acompanhando.
Outras passagens reforçam o conceito de emulação como competição
ampliando-lhe a abrangência a ponto de estendê-la à relação entre autores.
Depois de tratar de certos “perigos” da imitação, Quintiliano, em X,2,17, põe em
destaque algumas atitudes de imitadores numa variada relação com seus
modelos, que vai do se pares credunt, passando por superant e emulantur, até
chegar a uma determinada situação em que o imitador se julga o próprio
imitado:
Ideoque qui horride atque
incomposite quid libet illud frigidum
et inane extulerunt, antiquis se
pares credunt, qui carent cultu
atque sententiis, Atticis; scilicet
[qui] praecisis conclusionibus
obscuri Sallustium atque
Thucydiden superant, tristes ac
ieiuni Pollionem aemulantur; otiosi
et supini, si quid modo longius
circumduxerunt, iurant ita
Ciceronem locuturum fuisse (Inst.,
X, 2, 17).
Por razões como estas, aqueles que, de
maneira grosseira e malsonante, puseram
para fora qualquer coisa de frio e oco,
estes se acreditam pares dos antigos.
Aqueles que carecem de sofisticação e de
opinião formada se dizem pares dos áticos.
Os que são obscuros por causa de seus
abruptos finais de período superam
Salústio e Tucídides. Os tristes e
anoréticos se dizem êmulos de Polião; os
inoperantes e os letárgicos, se porventura
fecharam o círculo de algo mais longo,
juram que exatamente assim cero
haveria de ter falado.
Enquanto a emulação se estabelece na correlação com o todo, a
imitação, embora possa igualmente alcançar esse todo, tem a possibilidade de
84
A tradução francesa para esta frase se serve da palavra emulação para significar o latino
contendere: “Mais ceux mêmes qui ne viseront pas les sommets doivent être des émules plutôt
que les traînards” (Cousin, 1979: 108)
117
restringir-se a uma parte específica, a um aspecto particular. É com esta
percepção que nos devemos posicionar diante da tão eclética lista de autores
selecionada por Quintiliano, ou na caracterização das qualidades que Cícero
imitou:
Nam mihi uidetur M. tullius, cum se
totum ad imitationem Graecorum
contulisset, effinxisse uim
Demosthenis, copiam Platonis,
iucunditatem Isocratis. (Inst. X, 1, 108)
A mim seguramente parece que Marco
Túlio, tendo-se entregue de todo à imitação
dos gregos, conseguiu externar a força de
Demóstenes, a copiosidade de Platão, o
encantamento de Isócrates.
O orador deverá buscar o que for pertinente à oratória seja no poeta, no
historiador ou no filósofo; pode ter como modelo um outro orador, ou um de
seus discursos; pode selecionar em um poeta apenas suas melhores
qualidades e deixar de lado as que lhe pareçam censuráveis, como, por
exemplo, no caso de Ovídio a quem o próprio Quintiliano admira as qualidades
poéticas de sua criação literária, mas condena a sua lascívia.
Quintiliano ressalta no processo da imitação o conceito de “comum” e o
exprime na seguinte frase:
Habet tamen omnis eloquentia aliquid
commune: id imitemur quod commune
est. (Inst., X, 2, 22)
No entanto, toda eloquência tem
alguma coisa em comum, imitemos,
pois o que é comum.
É interessante notar que commune não se refere a identidade, mas a
generalidade, ou seja, uma base compartilhada.
Ainda um outro aspecto deve ser considerado: enquanto a imitação
pode, em circunstância última, ser um exercício passivo da cópia, da busca do
“fazer relativamente igual”, uma ferramenta pedagógica, um meio pelo qual se
busca a equação identitária, a emulação é um fim, um produto que tem por
118
característica ostentar, sobre uma base de caráter identitário, um elemento
diferenciador. De tudo isso, no entanto, uma certeza: toda emulação se
constrói nos limites da imitação, mas nem toda imitação é motivada pela
emulação.
Se estas manifestações psíquicas se verificam nas relações autor-obra-
imitador, muito mais visivelmente elas se manifestam nas relações sociais que
são retratadas pelos discursos dos gêneros epidíctico e deliberativo.
Como dissemos, a oratória deliberativa visa ao coletivo,
precipuamente; se realiza na assembleia, autônoma, por natureza, e traz em si
a perspectiva de futuro, já que assume ou defende uma propositura a se
efetivar. Importa entender, no entanto, que não se projeta um modelo para o
futuro, mas se propõe um futuro com base num modelo já consagrado. É nesse
ponto do processo que vemos operar a imitação.
Como explica Sullivan (1989), a oratória epidíctica, também chamada de
discurso cerimonial, ou demonstrativo, se constitui num mecanismo de
celebração, de exaltação e intensificação de valores culturais, sobretudo com o
propósito de preservar a estabilidade política. Ao insistir em qualidades morais,
essa oratória visa particularmente ao indivíduo, seja ele celebrado em suas
virtudes, seja censurado em seus vícios. Na caracterização de uma
personalidade, o que se tem, de fato, é a construção de um modelo, que, por
suas qualidades admiráveis, deve ser fonte de inspiração e motivo de
emulação.
Este gênero de discurso retórico é muito abrangente e se estende até
mesmo a uma literatura que se poderia facilmente classificar como epidíctica. É
o caso, por exemplo, da Eneida, de Virgilio, que, em última instância pretende
119
resgatar valores morais do passado e celebrar os feitos de um herói mítico, de
quem o Imperador Augusto é mais do que imitação: ele é o próprio herói a ser
imitado.
Não teriam parte dos escritos de neca sido interpretados por
Quintiliano como pertencentes a esse gênero que pode prestar-se ao elogio
tendencioso? Não estaria a sua tão censurada “falta de juízo”? A
proximidade temporal não teria permitido a Quintiliano identificar na obra de
Sêneca aspectos, para nós perdidos, das estreitíssimas relações de Sêneca
com um poder político “censurável” e com os seus poderosos?
2. O exercício da imitação
No universo propriamente romano da retórica destacamos as figuras de
Cícero e Quintiliano, para falar da imitação, pois ambos a consideram como
forma legítima de aperfeiçoamento do orador, bem como um expediente de
todo compatível com o sistema da retórica, sobretudo quando se trata da
inserção de procedimentos de imitação no processo pedagógico. A leitura dos
tratados destes autores permite identificar, na parte do processo de imitação
que não inclui a emulação, cinco diferentes modalidades de imitação, conforme
Sullivan (1989) descreve:
“Cinco variedades de imitação emergem dos escritos de Cícero e
Quintiliano: dos mais estritos exercícios de imitação, como
120
memorização, tradução, paráfrase, a formas mais vagas de
imitação: o estabelecimento de modelos e a leitura”
85
É significativo que relacionem a tradução entre essas formas de
exercício. Quintiliano a recomenda; o próprio Cícero relata que a praticou e que
dela obteve benefícios.
Vertere Graeca in Latinum
ueteres nostri oratores optimum
iudicabant. Id se L. Crassus in
illis Ciceronis de Oratore libris
dicit factitasse: id Cicero sua ipse
persona frequentissime praecipit,
quin etiam libros Platonis atque
Xenophontis edidit hoc genere
tralatos. (Inst., X, 5, 2)
Os nossos antigos oradores recomendavam
fazer versões do grego para o latim como o
melhor exercício. Lúcio Crasso, na famosa
obra de Cícero, De Oratore, disse tê-lo
praticado repetidamente; o próprio Cícero,
em pessoa, o recomendou
frequentissimamente. Tanto isso é verdade,
que ele publicou, em traduções, livros de
Platão e Xenofonte.
Postea mihi placuit, eoque sum
usus adulescens, ut summorum
oratorum Graecas orationes
explicarem. Quibus lectis hoc
adsequebar, ut, cum ea quae
legeram Graece, Latine
redderem, non solum optimis
verbis uterer et tamen usitatis,
sed etiam exprimerem quaedam
uerba imitando, quae nova
nostris essent, dum modo essent
idonea.(c., De Orat., 1.155).
Depois disso, ainda jovem, assumi como
tarefa agradável analisar os discursos,
escritos em grego pelos mais destacados
oradores. Lidos esses discursos eu adotava
o seguinte procedimento: à medida que eu lia
em grego, eu os traduzia para o latim; não
apenas me servia das melhores palavras, em
uso entre nós, mas também, pelo imitar o
grego, eu forjava umas palavras, que seriam
novas para nós. Isso, no entanto, eu fazia,
desde que essas palavras me parecessem
adequadas.
Esta recomendação de Quintiliano ajuda a esclarecer ainda melhor a
razão de ele ter relacionado tantos autores gregos na sua indicação de leitura.
85
“Five varieties of imitation emerge from the writings of Cicero and Quintilian, from very close
imitative exercises like memorizing, translating, paraphrasing, to rather loose forms of imitation:
modeling and reading”. (Sullivan, 1989: 13)
121
Nos permitimos a ousadia de entender que, nessas circunstâncias, a simples
compreensão de um texto em língua estrangeira pode ser considerada como
um exercício de tradução, pois o leitor não abdica de sua língua nativa e nela
mentalmente reescreve toda a sua interpretação. Isso, se estiver correto o
nosso entendimento da expressão, citada acima, cum ea quae legeram graece,
Latine redderem.
Podemos concordar com a interpretação de Sullivan (1989), segundo a
qual a leitura de ser considerada um exercício de imitação, na medida em
que entendamos que a leitura é capaz de provocar no leitor, até mesmo
inconscientemente, uma reação favorável, ou o, em vista das qualidades da
obra. Essa reação se consuma, portanto, em assimilação, que existe no ser
humano uma disposição natural para, através da imitação, incorporar ideias,
processos e atitudes, desde que haja afinidades entre as partes.
Convém refletir, neste momento, em que falamos de tradução, que o
como fazer uma afirmação categórica, mas nos é lícito conjecturar que a
presença dos numerosos autores gregos em Quintiliano reforça a sua intenção
de tornar mais próxima do orador em formação a figura de Cícero. As estreitas
relações de Cícero com a retórica e a oratória gregas não se deram por
simples acaso ou conveniência, mas, sobretudo, pela necessidade de se
fundar em Roma um modelo de retórica e uma oratória compatíveis com a
natureza do Estado Romano e com a índole de seus concidadãos. O salto de
qualidade desencadeado por Cícero se deu justamente por sua atitude
inovadora de conciliar a tradição romana com a desenvolvida cultura intelectual
grega (Pereira, 1990: 115-155). Ao propor a figura de Cícero como modelo, nos
parece que Quintiliano pretende resgatar como reconciliação (no pleno sentido
122
de sua estrutura morfológica: re-conciliare), a conciliação que anteriormente
Cícero havia feito. Ao propor essa reconciliação, está-se propondo, de fato,
uma dimensão atualizada, o resgate, em versão contemporânea, daquela
conciliação.
Como se vê, o texto em grego terá para o estudante latino uma dupla
função, isto é, será simultaneamente compatível com duas das cinco formas de
imitação: a tradução e a leitura.
É também significativo o tratamento que a imitação recebe na Retórica a
Herênio. Logo no início do Livro I, quando descreve a estrutura do discurso,
assim se expressa o Autor:
Haec omnia
86
tribus rebus adsequi
poterimus:arte, imitatione,
exercitatione. Ars est praeceptio, quae
dat certam viam rationemque dicendi.
Imitatio est, qua impellimur cum
diligenti ratione ut aliquorum similes in
dicendo valeamus esse. Exercitatio est
adsiduus usus consuetudoque dicend.
(Rhet. ad Her., 1,3)
Tudo isso teremos podido alcançar por
três meios: arte, imitação, exercício.
Arte é o preceito que o
encaminhamento e sistematização ao
discurso. Imitação é o meio pelo qual
somos impulsionados, com
racionalidade criteriosa, a nos tornar, no
discursar, semelhantes a outros.
Exercício é a prática assídua e o
costume de discursar.
O autor seleciona, para definir imitação, palavras bastante fortes e
carregadas de sentido, como podemos constatar das descrições feitas por
Ernout (1951) e Martin (1959): inicialmente impellimur (= somos impelidos)
propõe que a imitação seja uma força, um impulso instintivo ao qual o se
pode resistir; em diligenti ratione prevalecem as ideias de “escolha consciente”,
86
Haec omnia - o “tudo isso” propriamente se refere às cinco partes do discurso,
mencionadas na Introdução, quando citamos Rhet. ad Her., 1, 3.
123
“trabalho racional”; através de ualeamus esse se expressam as noções de “ser
tão forte quanto”, “ter a mesma saúde que”, enfim, “valer tanto quanto”.
É possível também identificar, na própria disposição dos conceitos na
frase, o momento e a importância da imitação: ela se localiza textualmente
entre ars e exercitatio. Deve-se entender que ars, neste contexto, significa todo
o arcabouço teórico: é propriamente o conhecimento técnico acumulado e
sistematizado; a exercitatio, por sua vez, é a prática. Com isso, a imitação
representa a mediação ela é a passagem entre o saber teórico e a prática.
Essa mediação corresponde, assim, ao momento do exercício que implica não
o domínio de um saber teórico, mas também o grau de aprofundamento
alcançado na análise da obra que se vai imitar. Sullivan (1989) descreve esses
aspectos da imitação como “análise” e “gênese”, ao dizer que:
De acordo com Edward P. J. Corbett, “ A análise era um estágio no qual
os estudantes, sob a supervisão de um professor, faziam um estudo
bem detalhado de modelos, a fim de observarem o quanto, em suas
qualidades excelentes, esses modelos seguiam os preceitos de arte.
Gênese era o estágio em que os estudantes tentavam produzir algo ou
fazer alguma coisa similar ao modelo analisado (11)
87
.
Apenas estas ponderações parecem-nos suficientes para destacar o
importante papel da imitação na antiguidade romana. Se considerarmos que
todo o esforço de Quintiliano se faz na intenção de oferecer ao aprendiz
recursos para seu aprimoramento, confirmaremos que a imitação assume o
real valor que podemos ler nas palavras de Sullivan (1989):
O lugar da imitação na filosofia clássica, na política e na pedagogia
indica que a imitação era mais do que uma abordagem simplória para
ensinar retórica. Ela era parte integrante do aparato clássico que
alcançou enorme respeito na consolidação do passado e que viu na
87
According to Edward P. J. Corbett, “Analysis was the stage in which students, under the
guidance of the teacher, made a close study of the model to observe how its excellences
followed the precepts of art. Genesis was the stage in which students attempted to produce
something or to do something similar to the model that had been analysed.” (Sullivan, 1989:
11).
124
imitação uma base para a ontologia, arte, ação política e para a
ética(14)
88
.
Ainda que não esteja em nosso propósito discutir aqui o quanto seja
relevante o saber teórico no processo de formação do orador, julgamos
pertinente dizer que, de forma dispersa no tratado das Instituições como um
todo, Quintiliano propõe um relativo equilíbrio entre conhecimento teórico e
imitação, embora tenha ele dado mais ênfase à explicitação do saber técnico.
Queremos ver no capítulo sobre a imitação algo mais do que
simplesmente se as ideias de Quintiliano são compatíveis com o conhecimento
de seu tempo, ou dos tempos anteriores. Nossa leitura caminha na
interpretação de que o processo imitativo é também um fator decisivo na
construção de um saber fazer que, antes de tudo, é igualmente um saber ser.
3. A imitação no capítulo 2
Na primeira frase do capítulo 2, identifica-se uma estreitíssima
vinculação com a matéria tratada no capítulo 1: a leitura. Nessa frase, são
destacadas, na sua relação com a imitação, três utilidades primordiais da
leitura, respectivamente: a) permitir que se construa a copia uerborum; b) que
se ampliem as possibilidades de uso de maior uarietas figurarum; c) que se
potencialize a competência para a componendi ratio. Se atentarmos para esta
sequência, veremos que, mais do que simbólica, ela tem razão de ser, também
dentro do sistema oratório: o ponto de partida são as palavras, que,
88
The place of imitation in classical philosophy, poetics, politics, an pedagogy indicates that
imitation was more than a simple-minded approach to teaching rhetoric: It was an integral part
of the classical mindset which held great respect for the accomplishments of the past and saw
in imitation a basis for ontology, art, political action, and ethics. (Sullivan, 1989: 14)
125
formalmente estruturadas em sintagmas e frases, se organizam em figuras.
Estas, devidamente harmonizadas, tecem o discurso.
Se a leitura se constitui em um dos mecanismos através dos quais se
adquire o domínio desse instrumental, é também pelo método da imitação que
se processam a sedimentação e a conversão dessas habilidades em maior
eficiência da competência para produzir resultados práticos.
Parece-nos razoável associar o domínio dessas três habilidades com a
construção daquilo que foi chamado por Quintiliano de firma facilitas (Inst., X, 1,
1). Como se descreve no início do livro X, essa facilitas, que é a palavra latina
para o conceito grego ecij, representa para o vigor oratório (Inst., X, 1, 1) a
condição essencial em todos os estágios pelos quais um discurso se constitui.
Como prevê a teoria retórica, um discurso tem começo na invenção e se
consuma na prática da sua exposição, ou actio. Sob essa perspectiva, dentro
do sistema oratório, a disposição e a elocução representam os momentos em
que mais evidentemente senecessário o emprego dessa facilitas, da mesma
forma que aí poderão ser mais visivelmente explícitos os seus resultados.
Vimos tratando da interação autor-obra sob a perspectiva da valorização
das qualidades morais do homem em sua relação com a produção escrita.
Nesse percurso expressamos o entendimento de que, para Quintiliano, o
talento do poeta precisa ser mais enfatizado do que a obra que esse engenho
produza, quando se trata de construir a figura do orador ideal.
Reforçamos a nossa compreensão também através do entendimento de
que se está levando em conta o fato de que o orador é um “homem presente
em ação”. Ele é autor de um tipo de discurso que somente tem existência plena
ao ser pronunciado pelo próprio autor. Assim, o texto literário que se escolhe
126
para leitura deve permitir que seu autor, de algum modo, seja identificado (de
forma imaginada, suposta, presumida, o importa) como homem em ação,
para cumprir todos os requisitos de modelo imitável.
Em nenhuma circunstância, no entanto, julgamos que facilitas deva ser
interpretada como sinônimo de ingenium. Enquanto o talento é uma qualidade
inata, exatamente o diz a etimologia de ingenium
89
, a facilitas
90
é algo próximo
de uma técnica, que pode ser trabalhada ou, nas palavras de Quintiliano, a ela
se pode ter acesso (Inst., X, 1, 1).
Mas a imitação, enquanto um dos recursos para se forjar a facilitas,
pode ser igualmente um meio de se aproximar daquele talento, desde que
entendamos facilitas como uma das vias de expressão do ingenium. Em outras
palavras, poderíamos dizer que a facilitas seria o mesmo que “tirar o ingenium
da sua condição de abstrato e concretizá-lo numa prática”.
Podemos também, seguindo essa linha de raciocínio, propor certo
paralelismo com os estudos linguísticos, quando estes falam de “competência”
e “desempenho”. Da mesma forma que tanto os linguistas, quanto os
gramáticos podem atuar no nível do desempenho, seja em termos de análise
material e direta, seja com vistas a aprimorar esse desempenho, Quintiliano
aponta a imitação como meio de formar uma facilitas qualificada ou, na sua
própria palavra, firma (Inst., X, 1, 1).
É comum encontrar nos escritos mais recentes sobre a retórica a
expressão “competência oratória”. No entanto, o termo “competência” não deve
89
Ingenium liga-se a genius. Esta palavra designava, inicialmente, a divindade que presidia ao
nascimento; com o tempo, passou a significar também a divindade tutelar de cada indivíduo;
incorporou, depois, o sentido de inclinações de nascimento. Em vista disso, o derivado
ingenium fixou a significação de “caráter inato”, “disposições naturais” (Martin, 1959: 96).
90
Vale enfatizar a habilidade de Quintiliano para explorar o potencial semântico dos termos que
seleciona. Facilitas é um derivado de facio, “fazer”, e nessa vinculação etimológica significa ‘a
condição de tudo aquilo que se pode fazer sem esforço”; passou a significar também aptidão,
habilidade, a condição de quem pode fazer sem esforço” (Martin, 1959: 72).
127
ser visto como significando ingenium, tal como referido acima. É o que
podemos interpretar na leitura do seguinte esquema de Pernot (2000). Como
se pode observar, a compétence de que fala está muito mais próxima da
facilitas pretendida por Quintiliano:
3. As fontes da competência oratória
dons naturais: gr. Physis – lat. natura, ingenium
aprendizagem (ou arte, ciência): gr. Epistêmê, mathêsis lat.
doctrina, artificium, ars
exercício: gr. Meletê, askêsis – lat. Exercitatio
Plat. Phedro, 269 d. Cf. Isocr., Contra os sofistas, 14-17 ;
Sobre a troca, 187 ; Cíc., Inv., I, 5 ; Brut., 25 ; Quint., VII, 10, 14.
Alguns acrescentavam a imitação : gr. Mimêsis – lat. imitatio
(Ret. Her. I, 3; Quint., III, 5, 1). (284)
91
É igualmente relevante notar, nesta passagem, que Pernot enfatiza,
através do termo certains, que a imitação, enquanto elemento auxiliar da
competência oratória, não é levada em conta pela maioria dos teóricos da
antiguidade.
Embora não tenhamos encontrado informações precisas sobre o porquê
dessa exclusão, parece-nos que podemos analisá-la à luz dos conceitos de
competência e desempenho. Muito provavelmente tenham esses teóricos
associado a imitação aos limites do que hoje entendemos por desempenho, na
ideia de que imitar é uma atitude passiva. Sob essa perspectiva, se alguma
inventividade pudesse haver na imitação, ela seria pouco representativa,
quando comparada ao talento de um gênio originalmente criador.
91
3. Les sources de la competénce oratoire
dons naturels: gr. Phusis – lat. natura, ingenium
apprentissage (ou art, science): gr. Epistêmê, mathêsis – lat. doctrina, artificium, ars
exercice: gr. Meletê, askêsis – lat. Exercitatio
Plat. Phèdre, 269 d. Cf. Isocr., Contre les sophistes, 14-17 ; Sur l’échange, 187 ; Cíc.,
Inv., I, 5 ; Brut., 25 ; Quint., VII, 10, 14.
Certais ajoutaient l’imitation : gr. Mimêsis – lat. imitatio (Rhét. Her. I, 3; Quint., III, 5, 1).
(Pernot, 2000: 284)
128
Para Quintiliano a imitação é, de fato, um procedimento altamente
relevante na formação do orador, seja como estratégia de consolidação da
competência oratória, seja como recurso pedagógico no aprimoramento do
desempenho. Além disso, um dos fatores mais significativos da imitação, o qual
podemos identificar em Quintiliano, é o da aproximação intencional que se
verifica estabelecer entre culturas, gerações, pessoas, tendências, estilos, etc.
Assim, interessa-nos aqui investigar as principais características da imitação e
buscar razões de sua pertinência no contexto em que a descreve Quintiliano.
No processo da imitação, a utilidade é a primeira das características
apontada por Quintiliano. No momento em que se reconhece a qualidade de
uma invenção intervém a conveniência da imitação, já que as qualidades
identificadas podem ser utilizadas como modelo a ser seguido. Isto acontece,
não por uma disposição da natureza em geral, mas por uma inclinação
específica da alma humana, assim entendida:
Atque omnis uitae ratio sic
constat, ut quae probamus in aliis
facere ipsi uelimus. (Inst., X, 2, 2)
Além disso, consta como de ordem natural
da vida de cada um que queiramos fazer, nós
mesmos, tudo aquilo que aprovamos nos
outros.
Assegura essa inclinação o fato de que o início de todo o percurso
acadêmico de um aprendiz, não importa de que área, se baseia em atitudes de
imitação. É visto por Quintiliano como imitação, por exemplo, o desenho das
letras no primeiro estágio da alfabetização; a reprodução da voz do mestre pelo
aprendiz de canto; a cópia de uma pintura, ou até mesmo a atitude do
agricultor que repete as práticas recebidas dos antigos, enfim,
....omnis denique disciplinae initia ad
propositum sibi praescriptum formari
... constatamos que o começo de toda
disciplina se forma segundo um modelo
129
uidemus. (Inst., X, 2, 2) estabelecido anteriormente a si.
É fundado na observação das leis da natureza, inicialmente, que
Quintiliano procura estabelecer as bases do processo da imitação. Assim,
quando ele diz que a natureza não produz o símile, mas a imitação o faz
92
,
somos levados a compreender que esta palavra ganha amplificação de sentido,
pois passa a representar os fenômenos que na natureza poderíamos
denominar multiplicação ou replicação, muito mais do que propriamente
imitação. Ao que tudo indica, esses fenômenos se realizam por uma força
inercial, descuidada, em termos de qualidade, de qualquer controle que não a
própria seleção natural, ou seja, é um processo que opera sem intenção
consciente, sem intervenção deliberada.
A imitação, segundo interpretamos nesse projeto de formação
acadêmica, passa pelo crivo da escolha consciente, da observação, da análise
em profundidade, e tem como destino projetar-se ao aprimoramento.
Poderíamos deduzir que, ao contrário do que acontece nos processos de
seleção natural, chega-se a uma produção que é resultante de uma seleção
racionalmente induzida. Essa imitação, convém lembrar, demanda, ainda, a
memória, pois somente os fatos devidamente assimilados e instalados na
memória podem-se apresentar como coadjuvantes do processo da imitação,
quando não são esses próprios fatos os modelos imitáveis.
Dentro desse espírito, Quintiliano propõe como prejudicial ao futuro
orador o exercício da imitação inercial, passiva e que não é suficiente, nem
mesmo para aproximar-se do modelo escolhido. Assim, a sua proposta de
92
Similem raro natura praestat, frequenter
imitatio. (Inst., X, 2, 3).
O semelhante, a natureza raramente o produz,
mas a imitação frequentemente (o faz).
130
imitação contém toda uma noção de dinamismo, de inovação e de superação
dos modelos, sem ser pela via da emulação deliberada.
Quintiliano aponta duas circunstâncias, ou dois cuidados, primordiais
nos procedimentos de imitação: que ela seja conduzida cautelosamente e com
discernimento - caute et cum iudicio (Inst., X, 2, 3). Entendemos que esse cum
iudicio se aplica aos critérios de seleção, dentro do mais amplo e do mais
estrito sentido que se possa atribuir ao conceito de racionalidade. A matéria
precisa ser examinada em toda a sua complexidade; devem ser analisados
todos os elementos que a constituem. Somente executadas essas operações
se pode proceder à re-elaboração.
Ainda que no conceito de cuidado, expresso pelo caute, possamos
identificar a noção de “zelo preventivo”, a maneira pela qual se desenvolve o
raciocínio de Quintiliano nos permite associar a palavra cura, uma vez que a
ela se pode dar o sentido de “atenção preservadora”. Em verdade, tudo aquilo
que resulta de uma imitação precisa manter refletidas as qualidades que são
intrínsecas à coisa imitada, portanto:
Quapropter exactissimo iudicio circa
hanc partem studiorum examinanda
sunt omnia. (Inst., X, 2, 14)
Em vista disso, que se examinar
tudo acerca desta parte dos estudos
com o mais acurado discernimento.
Apesar de reconhecer a força, os valores e benefícios que a imitação
possa trazer, Quintiliano adverte de que ela, por si somente não é suficiente:
Ante omnia igitur imitatio per se ipsa non
sufficit. (Inst., X, 2, 4)
Antes de tudo, a imitação por si
não é suficiente.
Para assegurar-se da sua opinião, recorre à análise das ações e
reações da natureza humana e observa que, confrontadas algumas gerações,
131
os Antigos, mesmo não tendo quem lhes tivesse servido de modelo, muitos
tinham sido capazes de criar coisas grandiosas. Acrescenta, ainda, que, diante
disso, coisas ainda maiores poderão ser criadas ou aprimoradas, por aqueles
que se utilizem com critério da imitação, uma vez que existem modelos que
lhes são precedentes.
Esta ideia de que pode haver aprimoramento, nestas condições em que
não se tem um modelo a imitar, confere à natureza da mente humana um
caráter de grandeza, sobretudo de competência para inovar, ao mesmo tempo
em que reforça a concepção de que essa mente é inimitável. Simultaneamente,
essa percepção reduz a imitação a uma ferramenta auxiliar no processo de
aprimoramento. Quintiliano é categórico ao afirmar:
Ac si omnia percenseas,
nulla sit ars qualis inuenta
est, nec intra initium stetit:
[...] : nihil autem crescit sola
imitatione. (Inst., X, 2, 8)
Acresça-se que se se analisarem detalhadamente
todas as coisas, nenhuma arte permaneceu
identicamente tal como foi inventada, nem ficou
estacionária em sua forma inicial. [...]
verdadeiramente nada cresce por força apenas da
imitação.
Se atentarmos nesse processo, veremos que o original, ou o modelo,
está fundado numa realidade objetiva, foi motivado por uma intenção própria e
impulsionado a se organizar num conjunto de argumentos e de fórmulas, já que
tem um alvo a ser atingido, um objetivo a ser alcançado. A imitação, pelo
contrário, mesmo aquela que não pretenda ser fim em si mesma, se alicerça
numa outra dimensão, isto é, numa realidade que se transubstanciou em
discurso.
No detalhamento e avaliação das circunstâncias em que se operam as
relações entre original e imitação, inevitavelmente se colocam em evidência os
132
conceitos de “real”, “realidade” e “artificial”, “ficção”. Quintiliano igualmente os
destaca, sobretudo no momento em que põe em confronto as declamações e
os discursos do tribunal:
Quo fit ut minus sanguinis ac uirium
declamationes habeant quam
orationes, quod in illis uera, in his
adsimulata materia est. (Inst., X, 2, 12)
Sendo assim, acontece que as
declamações tenham menos de sangue
e de vigor que os discursos, pois nestes
existe matéria original, naquelas a
matéria é fictícia. (grifos nossos)
Quintiliano lembra, também, de um outro elemento de extrema
relevância na correlação original-cópia: as palavras. Ele se mostra
absolutamente consciente de que a língua é dinâmica e de que ela expressa
seu dinamismo seja na dimensão temporal, seja nas diversas instâncias das
relações sociais. Para exemplificar a consciência desse dinamismo ele assim
descreve a natureza das palavras:
... cum et uerba intercidant
inualescantque temporibus, ut
quorum certissima sit regula in
consuetudine, eaque non sua
natura sint bona aut mala (nam per
se soni tantum sunt), sed prout
oportune proprieque aut secus
conlocata sunt, et compositio cum
rebus accommodata sit, tum ipsa
uarietate gratissima.
(Inst., X, 2,
13)
Acontece, no entanto, que as palavras
caiam em desuso, com o passar do tempo,
ou se tornem ainda mais expressivas, já
que no uso esteja a mais definitiva de suas
regras. Além disso, as palavras não são,
por natureza, nem boas nem más (elas, de
fato, não são mais do que sons), no
entanto produzem seu valor conforme
sejam colocadas com ou sem adequação e
propriedade.
Igualmente Cícero, mas muito antes, já havia declarado essa percepção:
Equidem cum audio socrum meam
Laeliam - facilius enim mulieres
incorruptam antiquitatem
Quando ouço a minha sogra Lélia – em
verdade as mulheres conservam inalterada
a antiguidade, pois não participantes da
133
conseruant, quod multorum
sermonis expertes ea tenent
semper, quae prima didicerunt -
sed eam sic audio, ut Plautum mihi
aut Naeuium uidear audire, sono
ipso uocis ita recto et simplici est,
ut nihil ostentationis aut imitationis
adferre uideatur; ex quo sic
locutum esse eius patrem iudico,
sic maiores; (Cic., De Orat., III,
45)
conversação de muitos, sempre mantêm as
coisas exatamente as mesmas como as
aprenderam a ela ouço, tal como pareça-
me ouvir Plauto ou Névio. Ela fala com um
próprio som de voz de tal modo direto e
simples que nada de ostentação ou de
imitação pareça carregar; a partir disso,
julgo assim terem falado seu pai, assim os
seus antepassados;
(Grifo nosso para ressaltar não somente
o que pode haver de artificial, mas também
de inovação, na linguagem imitada)
Com toda certeza, ao manifestar a preocupação com o dinamismo da
língua, ele, mais uma vez, reforça os cuidados que devem merecer os
procedimentos de imitação. Devemos interpretar, ainda, nesta abordagem da
língua, que o fato de ele recomendar que se imitem os Antigos não significa
que o imitador possa ser desatento a ponto de não escrever ou falar para os
seus contemporâneos na língua de seus contemporâneos.
Além disso, o imitador, ao imitar, não se pode ater apenas ao discurso
enquanto produto acabado, mas deve buscar, o quanto possível, o
processamento através do qual o discurso se foi construindo
93
. Assim, por
exemplo, um imitador de Cícero deve considerar os seus processos de criação,
muito ao invés de repetir fórmulas
94
e construções sintáticas; reaproveitar o
vocabulário. Em resumo, ele nos diz:
93
Como observamos em nossa introdução, a retórica antiga visa à construção do discurso.
94
Não vemos de outra forma, senão como ironia mordaz a observação de Quintiliano:
Noueram quosdam qui se pulchre
expressisse genus illud caelestis huius in
dicendo uiri sibi uiderentur si in clausula
posuissent "esse uideatur". (Inst., X, 2, 18)
Conheci alguns que se achavam ter
imitado excelentemente a maneira de
dizer daquele homem celestial, se
tivessem colocado ao fim de cada período
esse uideatur”.
134
Imitatio autem (nam saepius idem dicam)
non sit tantum in verbis. (Inst., X, 2, 27)
A imitação, no entanto – é preciso
que eu o diga repetidamente não
se restrinja apenas às palavras.
Esta observação, com certeza, mostra o quão profundamente Quintiliano
pensa a respeito da imitação: obviamente ele quer fazer entender que imitar
não se realiza no vocabulário ou no seu arranjo de superfície, isto é, não se
limita à estrutura superficial, à forma aparente, segundo se pode encontrar
classificação nos estudos da linguagem.
Por outro lado, o impostos ao imitador certos limites. Como, então,
nos situar diante da relação de itens que, segundo Quintiliano, são inimitáveis?
Adde quod ea quae in oratore
maxima sunt imitabilia non sunt,
ingenium, inuentio, uis, facilitas
et quidquid arte non traditur.
(Inst., X, 2, 12)
Acrescente-se que todas aquelas qualidades
que em um orador são as mais importantes,
estas não são imitáveis, ou seja, o talento, a
invenção, o vigor, a facilidade e tudo aquilo que
não se transmite pelo ensinamento teórico.
(grifos nossos)
Certamente que não como transferir, pela imitação, essas qualidades
de um indivíduo ou de um discurso para outro indivíduo ou outro discurso. No
entanto elas podem, de algum modo, ser analisadas, descritas as suas
características aparentes, até mesmo identificados os seus traços peculiares e
os de natureza mais genérica. Se não fosse assim, o que restaria a ser
transmitido pela “arte”? Por que outra razão Quintiliano haveria de recomendar
a leitura e a imitação de tão numerosa lista de autores, engenhosos cada um
em sua área de atuação?
Enfim, essas qualidades inimitáveis não se constituem num sistema
absolutamente hermético, inacessível. a possibilidade de aceder a elas, no
135
mínimo através da intuição. De outra maneira, como se pode saber que um
autor é genial? Como dizer de uma invenção que ela é “um achado”? Como
reconhecer a “facilidade” de alguém?
Se nossa interpretação está coerente com as ideias de Quintiliano,
podemos dizer que as condições de reconhecimento e de compreensão de um
talento alheio, demandam, igualmente, um mínimo de talento e de
conhecimento cnico por parte daquele que vai imitar. Esta parece ser a base
sobre a qual se constrói toda a argumentação a respeito da imitação:
Ergo primum est ut quod
imitaturus est quisque intellegat,
et quare bonum sit sciat. (Inst., X,
2, 18)
É, portanto, primordial que cada pessoa
compreenda inteiramente tudo aquilo que se
disponha a imitar e que saiba por qual razão
seu modelo seja bom.
É preciso ressaltar que em nenhum momento, Quintiliano faz
diretamente a caracterização do imitador: ele descreve o processo da imitação,
não o seu agente. Assim, a palavra imitator aparece apenas três vezes: Inst.,
X,1,74; X,1,115; XII,10,4. A palavra imitaturus se registra unicamente nesta
ocorrência. Ela tem uma significação bastante expressiva: trata-se de um
particípio futuro ativo, que permite aqui ser interpretado substantivamente
imitador. A noção de futuro se agrega para indicar a ideia de permanência, de
continuidade, isto é, todo aquele que continuará sendo ou venha a ser imitador.
A imitação para realizar-se nos moldes em que é proposta por
Quintiliano exige do imitador que ele seja consciente da sua própria
capacidade, que é constituída por habilidade técnica, sensibilidade e lucidez de
memória. Em outras palavras, a imitação é um encargo a demandar forças que
o sustente:
136
Tum in suscipiendo onere
consulat suas uires. (Inst., X, 2,
19).
Nestas circunstâncias, ao assumir este
encargo (o imitador) avalie as próprias
forças.
Para que se possa compreender com maior clareza todo o
processamento da imitação, julgamos pertinente retomar o termo
declamationes, tal como descrito em Inst., X, 2, 12, e, através dele, exemplificar
o que até aqui se vem falando.
Como observamos, naquele contexto se discutiam principalmente
questões como realidade e ficção, mas há dados que não foram por nós
mencionados: a realidade do tempo físico, em que aconteciam essas
declamações, e o que elas, de fato, eram e como apareciam sob o ponto de
vista de Quintiliano.
4. As declamações
As declamações constituíam no sistema da retórica o estágio final da
formação linguística, sobretudo. Nessa condição, representavam o momento
supremo em que acontecia a transição dos estudos teóricos e das cnicas,
praticadas junto ao grammaticus e ao rhetor, para um conhecimento funcional.
Esse conhecimento consistia em saber criar um discurso original, apropriado a
situações específicas.
Muito embora fossem exercícios práticos, não versavam sobre os
acontecimentos da vida real, das ações em processo no forum, do lugar
presente e do momento contemporâneo.
137
Em seu desenvolvimento histórico as declamações tiveram, inicialmente,
o propósito de imitar as ações que se realizavam no dia-a-dia do forum, mas
foram-se distanciando a ponto de se tornarem propriamente um espetáculo
cênico, um exercício de ficção, marcado pela artificialidade dos temas, pelo
patético sensacionalismo dos apelos e por uma linguagem de estilo empolado,
como descreve Mendelson (1994):
... declamação acabou sendo caracterizada por enredos fantásticos e
um estilo inflado, além de um divórcio geral dos reais procedimentos do
fórum e dos tribunais, procedimentos que, no início, a declamação
tentava imitar.
(92)
95
.
Opinião semelhante encontramos nas palavras de Schwartz (2000):
A partir de Augusto as salas de declamação constituem um espaço que
reúne oradores reconhecidos e também personalidades da vida pública.
Convém distinguir aqui entre a declamação como prática escolar de
jovens na sala de aula do retor e a declamação como espetáculo
público. Com efeito, nas próprias escolas de declamação se realizavam
periodicamente exibições de declamações preparadas por alunos e o
retor. Não raramente, nessas ocasiões participavam ativamente
convidados alheios à escola. Desse modo, a declamação começa
progressivamente a se tornar independente de sua finalidade de
preparar para a oratória e se converte em um fim em si mesma. (276)
96
.
Dentre os estudos relativos ao tema, é de neca, o Retor, o mais
desenvolvido e substancioso escrito da Antiguidade a que podemos ter acesso.
A partir de seus relatos tornaram-se mais eficientemente descritas as
modalidades de declamação que, basicamente se classificam como
95
... declamation came to be characterized by fantastic plots, and inflated style, an a general
divorce from the actual procedures of the forum and law courts, procedures that declamation
was initially intended to imitate (Mendelson, 1994: 92)
96
“A partir de Augusto las salas de declamación constituyen un espacio que reúne a oradores
reconocidos y aun a personalidades de la vida pública. Conviene distinguir aquí entre la
declamación como práctica escolar de los jóvenes en la aula del retor y la declamación como
espectáculo público. En efecto en las proprias escuelas de declamación se realizaban
periódicamente exhibiciones públicas de las declamaciones ya preparadas por los alumnos y el
retor. Non era raro que en estas ocasiones participaran activamente invitados ajenos a la
escuela. De ese modo la declamación comienza a independizarse progresivamente de la
finalidad de preparar la oratoria, y se convierte en un fin en si mismo” (Schwartz, 2000: 276)
138
controuersiae e suasoriae. Schwartz (2000) assim nos relata a história do texto
de Sêneca, o Retor:
É conhecido como Controvérsias e Suasórias, ou simplesmente
Declamações, embora o título que se conservou poderia ser traduzido
como Sentenças, Divisões e Coloridos dos Oradores e Retores. Trata-
se de um registro, o mais completo de que dispomos, sobre as
declamações, em suas duas formas: controvérsias e suasórias. Sêneca
transcreve para seus filhos, destinatários da obra, discursos ouvidos em
sua juventude, nas salas de declamação, e uma variedade de
“suculentas” anedotas e reflexões acerca de seus protagonistas, os
declamadores (rhetores) e também de oradores (oratores) que
acrescentavam a suas atividades, no fórum ou no senado, participações
ocasionais nas salas de declamação (277)
97
.
Embora apresentem características marcadamente distintas, as
suasoriae e as controuersiae não alcançam, segundo entendemos, o status de
gêneros discursivos, em sentido estrito: são, na verdade, variantes de um
mesmo exercício, de uma prática escolar que se transformou em espetáculo e
se estendeu, às salas de audição.
97
Se lo conoce como Controversias y Suasorias, o simplemente Declamaciones, aunque el
título que se ha conservado podría traducirse como Sentencias, divisiones y colores de los
oradores y retores. Se trata de un registro el más completo de que disponemos sobre las
declamaciones, en sus dos formas, suasorias y controversias. Séneca transcribe para sus
hijos, destinatarios de la obra, discursos oídos en su juventud en las salas de declamación y
una variedad de jugosas anécdotas y reflexiones relativas a sus protagonistas, los
declamadores (rhetores) y también a oradores (oratores), que añadían a su actividad en el foro
o en el senado participaciones ocasionales en las salas de declamación. (Schwartz, 2000: 277)
139
As suasoriae consistiam em discursos de cunho deliberativo e, assim,
tratavam de assuntos relativos à cultura propriamente romana, ou estrangeira,
à mitologia, à religião; buscavam temas históricos, como também punham em
destaque fatos políticos. A própria palavra suasoria se constrói no radical
do verbo suadeo, cuja significação se preserva no derivado português
“persuadir”. É, pois, no espírito de que a tomada de decisão passa pelo
convencimento, que se associam as declamações suasórias à oratória
deliberativa.
Por sua natureza, esses exercícios de discurso assumem um tipo de
elaboração mais ágil, direta, isto é, o declamador conduz sua argumentação
para a centralidade do tema, de modo a não permitir que se evidenciem
conflitos de ideias, divergências de opinião. Em linhas gerais, poderíamos dizer
que o declamador não discute dúvidas, mas elabora uma certeza, a partir do
tema que lhe é dado a dissertar. O seu objetivo será alcançado, na medida em
que consiga estabelecer com o seu público a perfeita sintonia de sentimentos,
veiculado o seu discurso numa linguagem completamente inteligível.
As controuersiae, por sua vez, tratam das questões forenses, das ações
judiciais, enfim, da lei, em sentido específico, da sua interpretação, da sua
aplicação.
Ao declamador, neste caso, propriamente o orador, cabia entrar em um
tribunal fictício e aí fazer parte advogada de um litígio; desempenhar o papel de
defender ou de acusar; levantar e dirimir vidas. Seu exercício era,
principalmente, o de temperar a frieza da lei com o agitar das paixões
humanas, enfim, obter para seu favor a imparcialidade dos julgadores.
140
O exercício das declamações perdurou longamente, conforme o afirma
Mendelson (1994):
“A despeito dos excessos, a declamação permaneceu como parte do
currículo dos estudos da linguagem, através da Renascença tendo
chegado às salas de aula das escolas americanas do século
dezenove”.
98
Como, então, poderíamos entender a crítica de Quintiliano, quando
afirma que “as declamações tenham menos de sangue e de vigor que os
discursos, pois nestes existe matéria original, naquelas a matéria é fictícia”
(Inst., X,2,12)?
Com toda certeza ele não as censura enquanto exercício que, em tese,
consistem em simulação de uma realidade objetiva e de prática de imitação
99
.
Ao contrário, ele as admite e as incentiva como forma de treinamento:
pauca mihi de ipsa declamandi
ratione dicenda sunt, quae quidem ut
ex omnibus nouissime inuenta, ita
multo est utilissima. (Inst. II, 10, 1)
Cabe-me dizer umas poucas coisas a
respeito da teoria da declamação. Esta é,
ao mesmo tempo, a mais recentemente
descoberta e o mais útil de todos os
exercícios.
Essas considerações permitem-nos propor que existe um certo
paralelismo entre, de um lado, a situação de Sêneca (Lucius Annaeus Seneca)
98
Despite its excesses, however, declamation remained a part of the language curriculum
through the Renaissance and into the classrooms of nineteenth-century American colleges”
(Mendelson, 1994: 92)
99
Assim Mendelson se expressa:
“Para Quintiliano a declamação era o principal meio de transpor o enorme arsenal de técnicas
da retórica para uma representação unificada e funcional qe antecipou os tipos de oratória
deliberativa e judiciária, sobre as quais as reputações públicas foram construídas” (1994: 93).
And for Quintilian declamation was the principal means of translating the enormous arsenal of
rhetorical techniques into a unified, functional presentation that anticipated the kinds of
deliberative and forensic oratory on which public reputations were built. (1994: 93)
141
frente aos demais escritores e, de outro, os descaminhos das declamações no
universo contemporâneo do sistema oratório. Admitimos esse paralelismo,
tendo em vista, antes de tudo, a necessária complementaridade que
identificamos dever existir, segundo as proposições de Quintiliano, entre a
escrita do poeta e a fala do orador. Fundamos nosso ponto de vista na
evidência de que a leitura e imitação da literatura de Sêneca são
recomendadas com extrema reserva, principalmente porque ele é visto como o
“autor da moda” para a geração dos adolescentes. As declamações, também
porque “estão na moda”, parecem a Quintiliano esvaziadas de sua condição de
efetivo exercício e, portanto, empobrecidas de qualidades imitáveis. Desse
modo, as declamationes, exangues, deixam de prestar sua utilidade de
instrumento pedagógico, sobretudo quando se pretende valorizar a imitação e
seu papel na formação do orador que se busca ideal.
5. Retórica, literatura, imitação
O elenco de autores e o tratamento que lhes Quintiliano nos
encaminha também a aprofundar reflexões acerca das relações necessárias e
possíveis entre a retórica e a literatura. De imediato se nos colocam as
diferenças conceituais consequentes do distanciamento entre o nosso tempo e
a antiguidade romana. Não podemos nos esquecer, ainda, de que esses dois
momentos não são únicos e estanques, mas foram intermediados por uma
longa sucessão de outros momentos, cada qual estruturado segundo modelos
próprios. Ao estudar o fenômeno da paródia na atualidade, Hutcheon (2000)
faz uma observação que nos parece pertinente e compatível com o que
acabamos de dizer:
142
O romantismo focalizou, quase exclusivamente, o autor; em reação, o
formalismo olhou para o texto; a teoria do leitor-resposta considera
apenas o texto e o leitor. A paródia, hoje em dia, aponta para a
necessidade de ir além dessas limitações (108)
100
.
Como vimos tratando, a oratória romana é uma expressão funcional da
retórica e, sendo assim, ela se constitui do ato comunicativo em toda a sua
abrangência, na sua inteireza. Todos os estudos nos mostram que a retórica
não é uma estética do ato comunicativo, mas que a constituição do discurso
oratório inclui uma estética da linguagem, que pode muito bem ser demandada
no texto literário, principalmente se levarmos em conta as características
formais do texto antigo, na aproximação que propunham existir entre as
modalidades de língua falada e escrita.
O processo de formação do orador contempla o estudo da literatura,
além das “utilidades” apontadas, também como forma de manter os
mecanismos de preservação da identidade cultural, que se foi construindo ao
longo do tempo. Quintiliano simboliza essa relação com o passado através da
seleção prioritária de autores e obras de tempos anteriores. Esse fato é
significativo, também sob a perspectiva social, pois denota a compreensão da
cultura como um processamento cíclico, que se organiza pelas mais diferentes
formas de interação.
Nessa mesma linha de raciocínio, o discurso oratório, na proposta de
Quintiliano, segue um dos princípios fundamentais do sistema da língua, que
se baseia na noção de não ruptura brusca, mas da inovação lenta e
continuada. Benveniste (1989) diz a esse respeito:
Com exceção das mudanças violentas, produzidas pelas guerras, pelas
conquistas, o sistema da língua não muda senão muito lentamente, e
100
Romanticism focused almost exclusively on the author; in reaction, formalism looked to the
text; reader-response theory considers only the text and the reader. Parody today points to the
need to go beyond these limitations. (Hutcheon, 2000: 108)
143
sob a pressão de necessidades internas, de maneira que está um
condição que é preciso sublinhar nas condições de vida normal os
homens que falam não são nunca testemunhas da mudança linguística.
se conta disto retrospectivamente, ao fim de muitas gerações, e
consequentemente somente nas sociedades que conservam os
testemunhos dos estados linguísticos mais antigos, as sociedades
dotadas da escrita. (98-99).
Por outro lado, mesmo considerando que o discurso literário o
necessariamente se sujeite a esse princípio da língua, em particular; mesmo
considerando que o discurso oratório aconteça numa situação em que, por
força da condição de presença, seu codificador e decodificador não
compartilhem de todas as formas de distanciamento que caracterizam as
relações entre escritor e leitor, a compreensão do fato linguístico, também por
meio da literatura, é indispensável ao orador.
O que, enfim, se pode entender da essência da relação entre oratória e
literatura se resume à necessidade de eficiência que o discurso oratório
demanda. Assim, os exercícios de leitura, análise e imitação da obra literária,
para a oratória romana, valem também como uma das estratégias de
satisfação da necessidade de se aprimorar o desempenho linguístico do
orador.
Como vimos, o orador precisava ter uma formação científica e cultural
ampla, diversificada, incluindo-se a literatura. Com respeito a essa literatura,
ainda não existia a autonomia, que hoje vemos ela ter alcançado. Sabemos,
entretanto, que o estudo sistemático e aprofundado dos poetas e de suas obras
acontecia, de modo particular e com vistas a uma utilidade funcional, na escola
do retor. Assim, aquela via de mão dupla, que se estabeleceu nos domínios da
poética e da retórica, denominada “retorização” da literatura, ou
144
“literaturização”
101
da retórica, com toda certeza contribuiu para essa
autonomia. O divórcio entre literatura e retórica é, sobretudo, notável no próprio
distanciamento que se foi estabelecendo entre a língua da literatura escrita e a
língua falada. Um aspecto importante nesse processo diz respeito à figura do
leitor que ao longo do tempo se vai formando. Ao que todo indica, em paralelo
com o percurso de autonomia da literatura se foi construindo a figura de um
leitor também autônomo, independente, um leitor em silêncio.
A noção de autonomia da obra literária nos ajuda a compreender melhor
a enorme distância, o apenas temporal, que existe entre, por exemplo, os
processos antigos de imitação e as recentes formulações para o conceito de
paródia. A citação de Hutcheon (2000), que fizemos acima, argumenta em
favor da extrapolação dos limites estabelecidos pelas diversas correntes e
teorias literárias. De algum modo, a relação que a antiguidade tem com a
criação literária se estabelece igualmente na visão de limites ampliados. No
entanto, imitação e paródia se colocam em posições muito diferentes.
Sabemos que a imitação, no interior da retórica, se como exercício de
aprimoramento do desempenho linguístico; que tem em conta a figura humana
do orador e que assume a literatura sob a perspectiva funcional. A paródia
somente é possível, por sua vez, sob a condição da autonomia da obra
literária, autonomia que se faz até mesmo em relação ao próprio autor.
A palavra-chave com que Hutcheon (2000), fundamenta seu conceito de
paródia é “trans-contextualização” (101). Se é possível que, sob os mais
diferentes matizes, o “reprocessamento”, a reciclagem, em sentido amplo
(assim entendemos o termo “trans-contextualização”), de parte ou de uma obra
101
Estes termos se encontram registrados em Pernot (2000: 257), cuja citação se encontra na
nota 105 deste trabalho.
145
inteira possa acontecer, de modo que culmine em outra, em nova obra, o
mesmo não podemos dizer da imitação antiga. Ao se utilizar dessa imitação,
tinha-se em mente uma situação de fala em presença; de um local
determinado; de uma querela jurídica; de uma decisão específica; de uma
pessoa em particular. Nessas circunstâncias, o que mais se exigia era a
construção de um discurso eficiente. Em um processo jurídico, muito
provavelmente, não se veria qualquer finalidade operacional para o uso de um
discurso imitado.
146
CAPÍTULO IV
IN ELOCVTIONE ELOQUENTIA
Na elocução a eloquência
147
Parece-nos oportuno relembrar os mecanismos através dos quais, de
acordo com a Retórica a Herênio, se alcança o que vimos chamando de
competência oratória. São eles: a teoria – a imitação – o exercício (I, 3).
Quintiliano, segundo entendemos, pode ser interpretado como partidário
desses mesmos princípios. Podemos observar que, na organização do Livro X,
ele distribui os conteúdos em idêntica sequência, basta ver que o capítulo 2 é
dedicado à imitação, enquanto que os seguintes 3, 4 e 5 o dedicados à
escrita. Esta, sem sombra de vida, para o aperfeiçoamento do orador, é
muito mais do que um exercício imprescindível.
O exercício de que falamos não se limita ao manter-se em atividade, ou
no reforçar uma habilidade específica, mas significa a busca do
aprimoramento, a construção de uma identidade linguística, isto é, mais
extenso domínio do código linguístico e formação de um estilo próprio de
discurso. A busca dessa identidade é perfeitamente compatível com os
princípios da oratória, principalmente se considerarmos que a qualidade de um
discurso é um elemento indispensável na arte de convencer pela palavra. Se
assumirmos que o orador é o seu discurso, como o entendemos da proposta
de Quintiliano, a necessidade de uma marca identitária se faz ainda mais
premente.
Da mesma forma que tratamos a imitação da literatura, o tratamento da
modalidade de língua escrita terá como modelo preferencial o texto literário. No
entanto, isso será feito de forma a incluir nessa escrita o que ela pode ter de
proximidade com a linguagem do discurso proferido. Importa, ainda, ressaltar
148
que nessa dupla modalidade fala e escrita se consuma a inteireza da
elocutio.
Além de ser indiscutivelmente o principal ofício do poeta, a escrita
recebe de Quintiliano um tratamento de dimensão extraordinária, uma vez que
ele a compreende indissociavelmente ligada à linguagem falada. É preciso
observar, no entanto, que essa linguagem falada se refere àquele registro
próprio dos círculos letrados e das esferas administrativas mais elevadas.
Trata-se, pois, de uma linguagem escolarizada utilizada em situações formais.
Nessas circunstâncias, Quintiliano estaria sinalizando para a indicação de que
a escrita seja o referencial para a língua falada culta. Não devemos nos
esquecer, porém, de que ele visa ao orador, que, antes de tudo, é o homem do
discurso proferido, da palavra pronunciada. Essa linguagem falada, portanto,
precisa ter um grau de qualidade que maximamente se aproxime da língua
escrita escolarizada.
Ao analisar o tratamento dado por Quintiliano ao conjunto de normas
que regem o sistema oratório, Leddy (1953) enfatiza a correlação fala-escrita
nestes termos:
Esse uso independente, que fez Quintiliano do inventário de regras, nos
prepara para interessantes considerações a partir da prática antiga,
sendo a mais notável delas a aplicação de teoria idêntica para as
modalidades de língua escrita e falada. Com isso, ele atribui enorme
significância ao seu ensino. Ele não aceita qualquer distinção, ainda que
sutil, e abertamente declara: “para mim não há diferença essencial entre
falar bem e escrever bem”
(55)
102
.
Podemos ainda confirmar esta equivalência, ou, pelo menos,
complementaridade em condições de equilíbrio, fundamentando-nos na própria
102
This independent use which Quintilian makes of stock rules prepares us for several
interesting departures form earlier practice, the most notable being his application of the same
theory to written as well as spoken prose, thus imparting a wider significance to his teaching. He
does not accept any subtle distinctions, saying quite plainly: “To me there is no essential
difference between speaking well and writing well”. (Leddy, 1953: 55)
O texto latino é: Mihi unum atque idem uidetur bene dicere ac bene scribere (Inst., XII, 10, 51)
149
seleção e abordagem dos conteúdos que fazem parte do livro X. A significância
do exercício da escrita se sobreleva, de início, na importância atribuída à
leitura, que é orientada para um elenco de autores muito bem definido e
qualificado. À leitura se seguem os processos da imitação, e o peso da escrita
culmina na sua utilidade até mesmo como exercício preparatório para a
improvisação, conforme se enfatiza:
... ut copiam sermonis optimi,
quem ad modum praeceptum
est, comparemus, multo ac
fideli stilo sic formetur oratio
ut scriptorum colorem etiam
quae subito effusa sint
reddant, ut, cum multa
scripserimus, etiam multa
dicamus. (Inst., X, 7, 8)
Assim, para que formemos um rico acervo do
que de melhor, em se tratando de linguagem,
conforme se ensinou, aquilo que se vai dizer
há de ser de tal forma elaborado, através do
intenso e consciente exercício do estilete, que
até mesmo as improvisações tragam em si o
colorido próprio de textos escritos. É bem
verdade que, se tivermos exercitado bastante a
escrita, também se poderá ampliar nossa
capacidade de falar.
Como se não bastasse enfatizar o peso da escrita na língua falada, ele
mostra nessa inter-relação uma via de mão dupla tão perfeita, que se confessa
incapaz de precisar qual das duas, a língua escrita ou a falada, favorece mais
uma à outra:
Ac nescio an, si utrumque
cum cura et studio fecerimus,
inuicem prosit, ut scribendo
dicamus diligentius, dicendo
scribamus facilius.
Scribendum ergo quotiens
licebit, si id non dabitur
cogitandum:... (Inst., X, 7, 29)
Seguramente não sei precisar se a exercitação
das duas habilidades, com todo o cuidado e
dedicação, resulte em benefício maior de um ou
de outro lado, ou seja, se pelo escrever
possamos falar mais eficientemente, ou se pelo
falar possamos escrever com maior facilidade. É
preciso escrever, sempre que for possível, mas
quando não, é preciso meditar ...
Merece destaque também a observação final: “é preciso escrever,
sempre que possível”. Esta, na verdade, é uma reafirmação do que
150
anteriormente Quintiliano havia dito. Entendemos que, levado pelos
ensinamentos do próprio Cícero, ele chegou a esta constatação, quando
afirma:
Nec inmerito M. tullius hunc (=
stilum) "optimum effectorem ac
magistrum dicendi" uocat, cui
sententiae personam L. Crassi in
disputationibus quae sunt de Oratore
adsignando iudicium suum cum illius
auctoritate coniunxit. (Inst., X, 3, 1).
Com toda razão M. Túlio o (= estilete)
chama “o mais eficiente realizador e
mestre do dizer”. A esta sentença, nas
discussões que se dão a respeito de
como se deve moldar um orador, Cícero
associa a própria opinião, que se
manifesta na pessoa de L. Crasso,
firmada na autoridade deste.
Nesta passagem, Quintiliano põe em destaque uma questão muito
significativa: a imersão de Cícero, autor, na própria obra De Oratore.
Lembremo-nos de que a figura histórica de cio Crasso passa a ser o
personagem que vida às ideias de Cícero. Ao se fazer assim representar,
Cícero se torna um exemplo concreto de uma das faces da imitação. Uma vez
que se utiliza do expediente, à moda platônica, da forma dialogada para expor
suas ideias sobre oratória, Cícero se mostra, em pessoa, atuando no De
Oratore. Quintiliano reforça, no próprio uso das palavras com que constrói a
passagem
(Inst., X, 3, 1)
, a duplicidade de Cícero
.
enquanto personagem
(personam L. Crassi) e autor (illius auctoritatis
)
.
Os valores simbólicos da obra e da presença de Cícero tornam-se ainda
mais acentuados, se considerarmos que a forma de exposição escolhida, o
diálogo, é igualmente imitação das circunstâncias em que ocorrem os
discursos. Estas são caracterizadas, necessariamente, pelo uso da linguagem
oral, pela fala em presença, com direito a réplicas e tréplicas. Com todos os
riscos da ousadia, podemos, enfim, dizer que Cícero imita Cícero.
151
De que outro modo ver esta mesma situação do diálogo de Cícero,
senão como exemplo, também concreto, desta vez do estreitamento das
relações entre língua escrita e língua falada, nos termos em que a propõe
Quintiliano? Para nós parece, sem sombra de dúvida, que foi intencional,
plenamente consciente o propósito de começar o Capítulo 3 (Como se deve
escrever), fazendo alusão a essa obra, em que Cícero “fala” uma língua escrita.
Opinião semelhante se encontra expressa em Pereira (1990):
Um aspecto curioso do pensamento de Cícero a este respeito (que,
como temos estado a ver, se exprime através de Crasso), é o primado
que atribui à escrita, denunciativo de uma idade fortemente letrada.
Assim, para ele, a melhor maneira de aprender a falar bem é escrever,
porque o improviso é inferior ao discurso preparado, que ocorre ao bico
da pena, de um modo que não é o ritmo da poesia, mas uma espécie
de ritmo da oratória”. (136)
Parece-nos de todo justificável essa percepção de Quintiliano, sobretudo
se considerarmos o ambiente rigorosamente formal, cerimonioso, dos tribunais
e das sessões em que aconteciam essas manifestações de discurso. Além
disso, quando entra em discussão um tema, por natureza, complexo,
instintivamente se recorre a um nível de linguagem compativelmente complexo,
uma vez que o refinamento de uma ideia necessariamente demanda uma
linguagem formalmente bem elaborada, em outras palavras, refinada. E, até
onde nos é dado compreender, o refinamento de uma linguagem falada exige o
rigor e caminha paralelamente aos modelos da língua escrita.
Para simbolizar essa particularidade e caracterizar a sua natureza,
Quintiliano se serve da palavra stilus, através da qual faz passarem todos os
sentidos e matizes semânticos relativamente aos procedimentos da escrita. O
objeto stilus representa, assim, as dimensões de materialidade, personalidade,
intensidade, relevância, extensão, abrangência e profundidade do ato de
escrever. Nesse sentido, vemos como de sublime força poética as expressões:
152
... multo stilo (Inst., X,1,2),
... multo ac fideli stilo (Inst., X, 7, 7)
... ao escrever continuamente
... intenso e consciente exercitar do estilete
pois, nessa relação gramatical entre um substantivo e seu adjetivo, nos é lícito
enxergar, como o expressamos em nossa tradução, uma construção verbal, um
processo propriamente verbal, intensificado por advérbio
103
.
Muito atento à natureza dos processos e atitudes psíquicas envolvidos
na produção da escrita, Quintiliano observa que o ato de escrever se realiza
por um movimento cuja trajetória é de dentro para fora. Torna-se, então, a
escrita um valioso exercício, na medida em que, este, muito internamente, está
alicerçado no próprio talento, e deve consolidar a facilitas daquele que assim
se exercita. Comparemos essa atividade com a prática da leitura, ou mesmo
com a tarefa de imitação: para Quintiliano estas se incluem entre os recursos
que se obtêm de fora para dentro:
Et haec quidem auxilia extrinsecus
adhibentur: (Inst., X, 3, 1)
Tais são, de fato, os recursos provenientes
de elementos externos a que se pode ter
acesso.
Quando identificamos as três ações em sequência leitura, imitação,
escrita como proposta de um conjunto de forças em equilíbrio, conjunto de
ações complementares, precisamos reiterar que isso diz respeito,
essencialmente, aos mecanismos de formação, de exercitação do orador. Vale
insistir em que a produção escrita, apesar de toda a sua importância enquanto
fato cultural, é secundária, por exemplo, nos trâmites de um processo jurídico,
103
Vale lembrar que preservamos no português a dupla categorização morfológica do latino
multo: muito é, com esta mesma forma, simultaneamente advérbio e adjetivo.
153
especialmente nos momentos de ação no tribunal; a força de um discurso está
no seu desempenho oral, muito mais do que na sua representação por escrito.
Nessas circunstâncias, como avaliar, por exemplo, as obras oratórias
que nos legaram Cícero ou Quintiliano? São de fato, peças escritas, discursos,
alguns com certeza, outros, não, proferidos em sessões do fórum; alguns
“revisados” após terem sido pronunciados. No entanto, esses discursos devem
ser, hoje, lidos e vistos prioritariamente como exercício de preparação, não
como relatos ou registros de um ocorrido. São peças, em princípio, pré-
existentes à ação
104
, um dos estágios, forma ou momento da reflexão, enfim,
um roteiro a ser confiado à memória, mesmo porque não combina com as
circunstâncias do fórum a apresentação lida de um discurso que se traz por
escrito. As ações do fórum estão sempre sujeitas aos riscos do imprevisto, o
que exige do orador estar preparado para o improviso:
Nam ut primum est domo adferre
paratam dicendi copiam et certam,
ita refutare temporis munera longe
stultissimum est. (Inst. X, 6, 6)
Assim como é preponderante levar de casa
uma cópia do discurso, pronta e
confiável, é, de longe, a máxima tolice
rejeitar os presentes de um momento.
Não resta dúvida de que a língua escrita é o eixo central de todo o
processo de formação do orador. Tanto a escola do gramático, quanto a do
104
O próprio Quintiliano relata, no entanto, que quem tenha feito por escrito seus discursos,
como que para deixá-los à posteridade, como é o caso de discursos de Sulpício, referido
abaixo:
Sed feruntur aliorum quoque et inuenti
forte, ut eos dicturus quisque
composuerat, et in libros digesti, ut
causarum quae sunt actae a Seruio
sulpicio, cuius tres orationes extant: sed
hi de quibus loquor commentarii ita sunt
exacti ut ab ipso mihi in memoriam
posteritatis uideantur esse compositi.
(Inst., X, 7, 30).
Mas circulam alguns apontamentos de outros
oradores, achados por acaso, escritos
exatamente como eles estavam para ser
pronunciados; alguns redigidos em livros,
como as causas nas quais Sérvio Sulpício
atuou, de quem ainda restam três discursos.
Mas estes apontamentos de que estou falando
foram tão bem elaborados que me parece
terem sido redigidos por ele, para ficarem
como legados à memória da posteridade.
154
retor são escolas fundamentalmente radicadas na prática do texto escrito. Uma
vez consideradas a força natural da língua da literatura e também a definitiva
presença da escrita na formação do orador, podemos entender a seguinte
observação de Pernot (2000):
Alguns críticos (por exemplo, V. Florescu, G. A. Kennedy) empregaram
o termo “literaturização” da retórica para designar o processo pelo qual
formas e procedimentos pertencentes ao domínio da retórica são
transpostos para a literatura. A retórica, nessas condições, não visa
apenas ao discurso, mas se estende a todas as composições literárias
(em sentido amplo, incluindo as demonstrações filosóficas e até mesmo
os documentos epigráficos, os tratados científicos ...). Inversamente, por
esse processo a literatura se abre às técnicas do discurso: a
“literaturização” da retórica tem por corolário a retorização” da
literatura. Esse fenômeno existiu ao longo de toda a antiguidade, mas
se tornou particularmente agudo sob o Império. Na época imperial, tem-
se a impressão de que a retórica está por toda parte e que aumenta a
sua empresa, a ponto de imprimir uma marca bastante sensível, no
fundo e na forma, sobre os gêneros literários exteriores a ela (257)
105
.
A ênfase dada por Quintiliano à língua escrita pode ser vista não apenas
como parte do processo acima descrito, mas se insere num contexto cultural
mais amplo da formação cultural e da civilização do cidadão romano. É assim
que podemos explicar a existência em Roma de uma prática muito
representativa dessa relação entre escrita e fala, a que denominaram
recitationes.
105
Certains critiques (par exemple V. Florescu, G. A. Kennedy) ont employé le terme de
«littératurisation» de la rhétorique, pour désigner le processus par lequel des formes et des
procédés appartenant au domaine de la rhétorique sont transposés dans la littérature. La
rhétorique, dans ces conditions, ne vise plus seulement les discours, mais s’étend à toutes les
compositions littéraires (au sens large, incluant les démonstrations philosophiques, voire les
documents épigraphiques, les traités scientifiques ... ). Inversement, par ce processus, la
littérature s’ouvre aux techniques du discours : la « littératurisation » de la rhétorique a pour
corollaire la « rhétorisation » de la littérature. Ce phénomène a existé tout au long de l’Antiquité,
mais il est devenu particulièrement aigu sous l’empire. A l’époque imperiale, on a l’impression
que la rhétorique est partout, et que’elle augmente son emprise, au point d’imprimer une
marque très sensible, dans le fond e dans la forme, sur les genres littéraires extérieurs à elle.
(Pernot, 2000: 257).
155
1. As recitações
Até o início do Império (meados do século primeiro a.C.) a publicação de
livros em Roma era extremamente complicada e onerosa, tendo em conta não
somente as limitações dos materiais de que se dispunha (papiro e pergaminho,
por exemplo), mas também as tecnologias de processamento desses materiais
e a mão de obra de copistas, que precisava ser especializada. Isso resultava
em que o acesso ao livro se permitisse restritamente aos cidadãos de alto
poder aquisitivo, nesse caso, em especial aos homens ligados às esferas
superiores do poder político. A criação de bibliotecas públicas
106
, inicialmente
com César, minimizava o problema, mas, obviamente, o eram elas sozinhas
a solução.
Como estratégia que, de um certo modo, favorecia a ampliação do
acesso aos livros, consolidou-se em Roma, nos tempos de Augusto
107
, a
prática das recitações. Consistiam elas de sessões de leitura pública, em que
um autor, antes de entregar sua obra para publicação, lia, pessoalmente, seus
escritos. Compunham o público aquelas pessoas especialmente convidadas
pelo autor e outros interessados em ouvi-lo. Somente depois de avaliadas as
manifestações dos ouvintes, o autor dava por concluído seu trabalho e o
entregava a seu editor.
Para se ter ideia de como eram essas sessões
108
, ilustramos com a
seguinte descrição feita por Carcopino (1997):
106
Cf. Pereira, 1990: 201.
107
Conforme narra Suetônio, o próprio imperador Augusto participava de sessões de leitura
pública: “Favoreceu de todos os modos os talentos de seu tempo. Ouviu com benevolência e
boa vontade não apenas os que liam poemas e obras históricas, mas também discursos e
diálogos” (Suetonio e Augusto, 2007: 105).
108
Estudos pormenorizados dessa atividade podem ser encontrados no capítulo II, da segunda
parte de La vita quotidiana a Roma, obra de Jérôme Carcopino, e no capítulo Outros modos de
156
O aparato não variava muito de uma domus (=casa) para outra: um
palco onde se senta o autor-leitor, que pela circunstância teve cuidados
particulares com sua toillette: tem os cabelos luzidios, coberto de uma
toga nova, enfiou nos dedos todos os seus anéis e se prepara para
seduzir os ouvintes, não somente com os apelos dos seus escritos, mas
com a solenidade de sua postura, a meiguice do olhar, o tom moderado
e a doçura das modulações de sua voz [ ...] Diante dele está o público,
que ele reuniu, enviando cartõezinhos em domicílio (codicilli), ou que
distribuiu entre as cadeiras com encosto (cathedrae) nas primeiras
fileiras ou nos bancos das outras fileiras [ ... ] Toda esse encenação não
estava à altura de todos os bolsos, os autores pobres dependiam da
boa vontade dos ricos (255)
109
.
Muito embora esse sistema tenha recebido severas críticas de autores
antigos e contemporâneos (como se pode notar do tom carregado de ironia na
descrição acima), importa aqui salientar que, através das recitações, também
se punham em relação estreita as dimensões escrita e oral da língua. O autor
precisava escrever seu texto em uma linguagem apreensível pelos ouvidos de
seus convidados; o autor “corrigia” seu texto de acordo com as manifestações
e observações que fossem feitas pelos ouvintes. Em outras, palavras, o texto
literário deveria sujeitar-se, primeiramente, à recepção dos ouvidos.
A etimologia da palavra carmen, que se traduz por poema, ilustra bem
essa situação. Segundo Martin (1959: 32), carmen se apóia no radical do verbo
cano (=cantar), o que, obviamente, associa carmen à sonoridade da voz. Um
poema era feito, de modo especial, para a audição e, por isso, se ordenava
segundo esquemas métricos de sonoridade.
difusão da cultura: bibliotecas e leituras públicas, na obra Estudos de História da cultura
clássica, vol.II, de Maria Helena da Rocha Pereira, 1990.
109
L’apparato non variava molto da uma domus all’altra: um palco dove siede l’autore-lettore,
che per la circostanza ha avuto cure particolari per la sua toilette: ha lucidi i capelli, indossa una
toga nuova, ha messo alle dita tutti i suoi anelli e si prepara a sedurre gli ascoltatori, non solo
con i pregi degli scritti, ma con la solennità del portamento, la blandizia degli sguardi, il tono
moderato e la dolcezza dellle modulazioni della voce. [ ... ] Davanti a lui sta il pubblico, ch’egli
ha racolto inviando biglieti a domicilio (codicilli), e che è distribuito tra le sedie con spalliera
(cathedrae) de primi posti, e gli sgabelli degli altri posti. [ ... ] Tutta questa messa in scena non
era alla portata de tutte le borse; gli autori poveri dipendevano dalla buona volontà dei richi...
(Carcopino, 1997: 225)
157
Se remontarmos aos poemas homéricos, veremos igualmente essa
aproximação entre fala e escrita. É tradição que a fixação dos poemas
homéricos em língua escrita se deu como estágio final de um longo processo
de transmissão oral
110
: os cantos dos aedos, guardados de cor e passados,
assim, de geração a geração, finalmente ganharam uma forma escrita,
definitivamente fixa. Pereira (1970) afirma que “os poemas assentam numa
técnica de improvisação oral” (1970: 47) e que “a princípio eram transmitidos
oralmente e escutados em ocasiões festivas de que a panegyris iónica em
Delos, descrita no chamado Hino Homérico a Apolo, nos dá talvez uma ideia”
(1970: 110).
2. Oratória e língua escrita
Se havia a intenção de compatibilizar a língua da literatura escrita com a
língua oral, através das recitações, muito mais fortes e naturais razões havia
para se estreitarem os laços entre a língua dos discursos, nas ações do fórum,
com os padrões de uma língua escrita, formal em toda a sua extensão de
sentido.
A passagem seguinte pode ser a expressão dessa aproximação, de que
se vem tratando, entre fala e escrita no âmbito da oratória:
Nam certe, cum sit in eloquendo positum
oratoris officium, dicere ante omnia est,
atque hinc initium eius artis fuisse
manifestum est, proximam deinde
imitationem, nouissimam scribendi
quoque diligentiam. (Inst., X, 1, 3)
Com toda certeza, como resida no
falar o ofício do orador, o dizer vem
antes de tudo. Está claro que este foi
o ponto de partida desta arte, logo
em seguida a imitação e, por último,
o zelo de refinamento do escrever.
110
Ainda hoje, guardadas as devidas proporções, procedimentos aproximadamente paralelos
se dão na fixação, por escrito, da tradição oral de tribos indígenas em aculturação ou já
aculturadas.
158
Quintiliano demonstra profunda compreensão do tema – escrita – e
elucida os reflexos de sua importância para o orador, em duas situações
específicas, isto é, o exercício da linguagem e a ativação da memória. Como
forma de atingir esse objetivo, em particular, e também oferecer um ensino de
qualidade na formação do orador, existe em Quintiliano uma necessidade
explícita de seduzir o seu leitor. Para isso se utiliza de uma linguagem, que
busca aproximar a sua escrita dos padrões linguísticos ao gosto dos romanos,
mas sem recorrer à prática do que ele chama de speciosius stili genus
(Inst, VII,
1, 54)
, isto é, um padrão pomposamente ornamentado de escrita. Uma das
características marcantes de sua linguagem é o uso de imagens muito bem
traçadas, ao estilo dos grandes escritores latinos.
Fica, assim, melhor consolidada a intenção que ele manifesta de querer
ensinar a fazer, fazendo-se ele próprio de modelo:
Sedulo imitor quaerentem, ut
quaerere doceam, et omisso
speciosiore stili genere ad utilitatem
me submitto discentium. (Inst, VII, 1,
54)
Dedicadamente imito o que investiga, a fim
de que eu possa ensinar a investigar, e
omitido o pomposo gênero do estilete, me
submeto para a utilidade dos que
aprendem.
Essa mesma preocupação, de se apresentar numa escrita que se
aproxime da linguagem literária, se revela no transcorrer de sua obra, devendo-
se notar, por exemplo, os primeiros quatro parágrafos do capítulo 3, livro X. O
texto oferece comprovação segura do vigor poético das imagens que ele cria.
Desse modo, Quintiliano nos permite ver a escrita simbolizada pelo próprio
objeto stilus em ação; ela é a fecundidade da terra preparada, onde as
sementes deitam raízes e produzem o tesouro de fartura.
159
Elegemos como primeira imagem, uma das mais reveladoras, em se
tratando de conceber a escrita, a que se expressa na seguinte passagem:
Nihil enim rerum ipsa natura uoluit
magnum effici cito, praeposuitque
pulcherrimo cuique operi
difficultatem: quae nascendi quoque
hanc fecerit legem, ut maiora
animalia diutius uisceribus parentis
continerentur. (Inst., X, 3, 4)
Nenhuma das coisas a própria natureza
quis que se tornasse grande,
aceleradamente, mas antepôs a
dificuldade a cada um das mais belas
obras. Assim é que igualmente formulou
uma lei do nascimento: os animais
maiores mais demoradamente
permanecem contidos no ventre da mãe.
Esta alegoria da longa gestação dos animais maiores é bastante
pertinente, dentro das concepções formuladas por Quintiliano, pois coloca em
evidência as suas ideias de que não somente a escrita se realiza de dentro
para fora, como também é tratada como um processo de elaboração crescente,
mas que segue em aceleração constante e se realiza demoradamente.
Esta imagem suscita ainda as noções de cuidado, que devem presidir a
todos os feitos que se querem grandes. Esses cuidados são necessários, uma
vez que, do ponto de vista psíquico, as ações humanas estão sempre se
defrontando com a celeridade do pensamento. No terreno da escrita, torna-se
absolutamente indispensável redobrar esses cuidados, pois o pensamento é
infinitamente mais ágil do que a sua materialização em texto. Quintiliano mostra
que a própria natureza criou alertas específicos desse descompasso, quando
impõe uma disparidade insuperável entre o fluir do pensamento e o curso da
mão que escreve:
Nam in stilo quidem quamlibet properato
dat aliquam cogitationi moram non
consequens celeritatem eius manus...
(Inst., X, 3, 19)
De fato, ao se utilizar do estilete,
ainda que esse possa ser
acelerado, permite-se à reflexão um
tempo mais dilatado, que a mão
160
não tem celeridade compatível com
a do pensamento.
Aos que se dão a esses movimentos de reflexão e escrita, compete
buscar o equacionamento de suas velocidades, mas para que isso aconteça é
preciso que se trabalhe com cuidado e com toda diligência. Convém ressaltar,
no entanto, que os conceitos de cuidado e diligência aqui expressos não
significam “agir tímida ou temerosamente”, mas “agir com discernimento,
conscientemente”.
Sed ut eo reuertar unde sum egressus:
narrationes stilo componi quanta
maxima possit adhibita diligentia uolo.
(Inst., II, 4, 15)
Mas para que eu volte ao ponto de onde
parti, quero que as narrações sejam
compostas ao estilete, aplicada a
diligência, a máxima que se possa.
Sit primo uel tardus dum diligens stilus.
(Inst., X, 3, 5)
Ainda que possa, inicialmente, ser lento
o estilete, seja, contudo, diligente;
Uma outra noção que se põe em destaque em relação à escrita é a de
profundidade. Quintiliano havia chamado a atenção para o fato de que, no
improviso, existe o risco de se compor um discurso com palavras que não
nascem de dentro, mas formam-se na superfície dos bios. Isso pode
acontecer, desde que o discurso não tenha sido preparado por escrito.
Nam sine hac quidem constantia
ipsa illa ex tempore dicendi facultas
inanem modo loquacitatem dabit et
uerba in labris nascentia. (Inst., X,
3, 2)
Certamente sem a verdadeira consciência
desta condição, até mesmo a própria
capacidade de improvisar resultará numa
loquacidade vazia e em palavras e mal
nascidas dos lábios.
Da mesma forma, a preparação escrita, entendida sempre, no contexto
da formação oratória, como exercício, demanda o recurso à profundidade. Para
161
alcançá-la é preciso, de imediato, retrabalhar o que logo salta aos olhos, ou
seja, à luz do juízo crítico, dar nova equação, dar unidade ao conjunto ideia-
palavra, com atenção fixada, também aqui, aos passos invenção disposição -
elocução:
... quaeramus optima nec
protinus offerentibus se
gaudeamus, adhibeatur
iudicium inuentis, dispositio
probatis: dilectus enim rerum
uerborumque agendus est et
pondera singulorum
examinanda. Post subeat ratio
conlocandi uersenturque omni
modo numeri, non ut quodque
se proferet uerbum occupet
locum. (Inst., X, 3, 5)
busquemos o que há de melhor e não nos
alegremos com o que de imediato se nos
coloque diante dos olhos o juízo crítico deve-
se aplicar àquilo a que se chegou; a
organização, àquilo que se comprovou
deve-se exercitar a escolha de ideias e de
palavras e o peso de cada uma delas há de ser
aferido. Em seguida se apresentem os
mecanismos de ordenação: as palavras hão de
ser dispostas em todas as sequências de
metros e ritmos, de tal forma que nenhuma
delas necessariamente ocupe a mesma
posição em que originalmente aparecem.
É muito significativa a associação entre, de um lado, a fala e os lábios,
de outro, a escrita e sua materialidade visível ao olhar. Inicialmente não
podemos nos esquecer de que a associação entre língua, nos seus sentidos
concreto e figurado, fala, paladar, lábios, estão na base etimológica da ideia de
“saber”: sabor (sapor) e saber (sapere) compartilham o mesmo radical sap- e
simbolizam a totalidade que se observa no gesto da criança, que faz suas
primeiras experiências de “conhecimento” ao levar tudo à boca.
Ao falar de ratio conlocandi e de omni numeri (Inst., X, 3, 5), Quintiliano,
parece-nos, pensa não somente na sonoridade percebida pelos ouvidos de
quem ouve, mas também no “sabor” que experimenta a boca de quem
pronuncia.
162
O stilus traçará no plano visível as palavras, nas quais as ideias têm
vida. Todo o simbolismo que está no sentido da visão completa com as
palavras in labris a associação e proximidade propostas por Quintiliano entre
as modalidades de língua falada e escrita: para o olhar, a escrita, para os
ouvidos a fala.
Toda essa forma de argumentação, além de ser de grande força
expressiva, enfatiza o que vimos indicando como a estratégia de sempre
recorrer à formulação de uma linguagem simbólica, o própria da literatura.
Através dessa atitude, Quintiliano nos a entender que tem consciência de
que sua posição de professor o coloca na condição de imitável e, sendo assim,
se faz modelo, até mesmo de um padrão de escrita.
A necessidade de aprofundamento da escrita, que se faz pelo reexame,
pela reelaboração, precisa ser um cuidado permanente, principalmente porque
a autocrítica deve estar acima de tudo. Quintiliano chama a atenção para isso,
quando fala da facilidade suspeita suspectam facilitatem. Ele constrói esse
argumento, baseado na sua visão de ser humano, em cuja condição se inclui
através dos pronomes nos e nostra:
... dum nos indulgentia illa non
fallat; omnia enim nostra dum
nascuntur placent: alioqui nec
scriberentur. Sed redeamus ad
iudicium et retractemus
suspectam facilitatem. (Inst., X, 3,
6)
... conquanto essa indulgência não nos
induza a erros. De fato, tudo o que vem de
dentro de nós, no exato momento em que
nasce, nos agrada. Se não fosse assim, nem
mesmo isso seria registrado por escrito. Em
sentido contrário, levemos a reexame a
facilidade suspeita e façamos as devidas
correções.
Toda a argumentação se torna ainda mais significativa, quando
constatamos que a palavra indulgentia se constrói com a mesma raiz de largus.
163
Esta palavra, por sua vez, se relaciona com as ideias de abundância,
generosidade, relaxamento, largueza, enfim.
A situação que descrevemos acima, ou melhor, essa forma de perceber
a condição da natureza humana, muito certamente contribuiu para que os
romanos tivessem admitido as leituras públicas. Elas constituiriam a
oportunidade de uma avaliação prévia: o que tivesse escapado ao senso crítico
do autor, e que não fosse do agrado, seria percebido pelo ouvinte e colocado
em questão.
Na sua proposta de destacar o que seja escrever bem, Quintiliano
salienta a necessidade da justa medida, da estabilidade no equilíbrio; adverte
que se devem evitar os excessos, que se constituem vícios naqueles que
nunca se satisfazem, naqueles para quem tudo serve:
Nec promptum est dicere utros
peccare ualidius putem, quibus
omnia sua placent an quibus nihil.
(Inst., X, 3, 12)
E não é demais dizer quem mais
gravemente, segundo penso, erra: aquele a
quem agrada tudo o que faz ou aquele a
quem nada pode agradar.
Nessa mesma linha de raciocínio, observa que a celeridade da escrita
somente pode acontecer para aqueles que têm a capacidade de escrever bem
e que isso se alcança pelo exercício constante. Para sintetizar esse processo
Quintiliano utiliza da seguinte frase, que merece ser comentada em detalhe:
... celeritatem dabit consuetudo. Paulatim
res facilius se ostendent, uerba
respondebunt, compositio sequetur,
cuncta. (Inst., X, 3, 9) Grifos nossos
O hábito dará a celeridade. Pouco a
pouco as ideias se apresentarão
mais facilmente, as palavras
responderão às demandas, o arranjo
(das palavras) virá em consequência.
164
Inicialmente destacamos os termos res e uerba, segundo interpretamos
e traduzimos, “ideias” e “palavras”. Elas se encontram mediadas pelo advérbio
paulatim (= pouco a pouco, paulatinamente), fazendo-nos entender que a
velocidade das ideias se sujeita à habilidade verbal. Nesse sentido, o termo
uerba é muito mais do que acervo de palavras, ou domínio de um elenco de
palavras, pois significa não só a própria competência linguística, mas também a
verdadeira facilidade, aquela que se associa à copia uerborum, isto é, o código
de expressão linguística dominado. É altamente expressivo, ainda, que ele
tenha usado o termo compositio
111
(cum pono), pois, assim, está-se definindo a
escrita como “a ideia justaposta (não super ou sub), ou seja, posta juntamente
com a palavra”.
O exercício da escrita será ainda mais proveitoso, na medida em que se
trabalhe com disciplina, com método, com atenção às próprias leis da natureza.
Tais formas de agir podem contribuir para que o orador tenha a devida
segurança no exato momento em que deve assumir o discurso, em outras
palavras, romper o silêncio. Ocorre muitas vezes, como o próprio Quintiliano
observa, que o conhecimento e o estudo, ao invés de serem os facilitadores do
processo de comunicação, se tornem um peso inibidor e causa de uma certa
perplexidade que, geralmente, não se vê em situações de informalidade, ou até
mesmo entre as pessoas não escolarizadas, como ele próprio exemplifica:
... ideoque nec indocti nec rustici
diu quaerunt unde incipiant... (Inst.,
X, 3, 16)
É por isto que nem os incultos nem os
camponeses precisam ficar, durante muito
tempo, procurando por onde começar.
111
É preciso lembrar, sobretudo, que o termo compositio é, na metalinguagem da retórica, a
organização das palavras no limite da frase. Barthes (2006) assim descreve:
“O nível da frase (compositio), o nível da parte (conlocatio), o nível do discurso (dispositio)”.
Il livello della frase (compositio), il livello della parte (conlocatio), il livello del discorso
(dispositio) (89).
165
Em verdade, pretende-se que o orador, em seu mais alto nível de
qualificação para a escrita, preserve a naturalidade e facilidade que os o
escolarizados guardam em relação à linguagem falada.
A escrita, segundo Quintiliano havia afirmado, acontece de dentro
para fora e, sendo assim, é um ato predominantemente solitário, que demanda
condições ambientais facilitadoras da concentração, da introspecção, silentium,
numa palavra. Ao considerar esses aspectos, fica evidenciada a sua opinião de
que o ato da escrita é intransferível, ou seja, a escrita é um processo, uma
dinâmica que se constrói por um sujeito agente; não é um arranjo de que se
apropria.
Devemos entender que essa posição de Quintiliano é compatível com
sua reação crítica ao costume dos ditados, que ele aponta como responsável
por colocar o escritor “afastado” de seu texto e à mercê da qualificação de seu
copista. Segundo se pode depreender, havia escritores que encarregavam
copistas da tarefa de, pelo ditado, escrever os “originais” de seu texto. Outro
aspecto importante é que a presença desse copista impede o isolamento
necessário à concentração. Fica bastante claro, assim, que a escrita, em todas
as suas dimensões, precisa constituir-se numa ação definitivamente
inalienável.
Entendemos que essas “prescrições” ganham mais expressividade se as
considerarmos no plano simbólico, na relação de afetividade que se deve fazer
presente no momento da materialização por escrito de uma ideia. que
considerar também o fato de que o texto produzido deve ser encaminhado à
memória e, para que ela o possa guardar melhor e mais facilmente, é
necessária essa proximidade de que vimos falando. Acresça-se que até
166
mesmo a simples visualização de um texto, muitas vezes, contribui para a
eficiência da memorização.
Podemos considerar ainda um outro aspecto quanto ao fator
memorização: a velocidade do ato de escrever. O próprio autor, ao materializar
suas ideias se beneficiaria do descompasso de velocidade entre o pensamento
e a mão. Uma vez que esta é mais lenta, pode o autor utilizar-se dessa
condição para fixar mais atentamente o olhar e, assim, ampliar as
possibilidades de memorização de seu texto. Lembremo-nos de que estamos
falando da escrita em tabuinhas de cera, em papiro ou pergaminho; de potes
de tinta, estiletes, penas e pincéis, mata-borrões, suportes que eram causa de
lentidão de escrita muitíssimo maior, se compararmos com os recursos que
hoje são disponíveis. Considerados esses aspectos, é certo que tais
dificuldades teriam levado muitos oradores e escritores a preferirem o ditado.
Não podemos nos esquecer, ainda, de que o ser humano, em todas as
dimensões de sua humanidade, é, em Quintiliano, a figura central. Tanto isso é
mostrado como verdade, que, por exemplo, ele cita o poeta, mas não a obra; a
ele não escapam os mínimos detalhes de conduta, em quaisquer que sejam as
situações. Desse modo, nesse capítulo sobre a escrita, ele aponta cuidados
que se devem ter para com a saúde física, como, por exemplo, em relação às
horas de sono, no caso dos que precisam trabalhar à noite; fala do quanto uma
alimentação exagerada pode interferir negativamente na saúde como um todo
e, consequentemente, nos processos de concentração e de reflexão:
Sed cum in omni studiorum genere,
tum in hoc praecipue bona ualetudo
quaeque eam maxime praestat
frugalitas necessaria est, cum
Como em toda modalidade de estudo,
especialmente nesta, o trabalho noturno,
são indispensáveis uma boa saúde e a
frugalidade, que, mais do que tudo, a
167
tempora ab ipsa rerum natura ad
quietem refectionemque nobis data in
acerrimum laborem conuertimus. cui
tamen non plus inrogandum est
quam quod somno supererit aut non
deerit. (Inst., X, 3, 26).
produz. Isso é necessário, pois o tempo
que nos foi dado pela natureza para a
quietude e restabelecimento, nós o
convertemos no mais aguilhoante
trabalho. Cabe, no entanto, a quem assim
trabalha não exigir do sono mais do que
lhe sobra ou não faz falta.
No que diz respeito à concentração aconselha a que se entregue ao
trabalho, tão completamente, que os olhos cessem a mediação entre o cérebro
e as imagens do mundo físico; que ouvidos sejam alheios aos sons da vida
circundante.
Na mesma ordem de cuidados, ele lembra que devem fazer parte das
atenções de quem escreve a natureza dos materiais, as dimensões dos
suportes, as margens, os espaços entre as linhas, pois tudo isso pode interferir
no processo de escrita. Se houver necessidade de se fazerem correções, que
se disponha das entrelinhas; se, repentinamente, surge uma ideia diferente,
haverá espaço nas bordas do texto para anotá-la; se aquele que escreve se vê
na contingência de se fazer prolixo, na mesma proporção do tamanho da
página, que esta seja reduzida em suas dimensões.
3. O significado da correção
Quando falamos em controle externo da elocutio, tínhamos em mente o
Capítulo IV, que trata da correção. Quintiliano se utiliza, mais uma vez, do
termo stilus para falar de correção. O objeto, na sua constituição e forma, era o
mesmo com o qual se escrevia e se “apagava”. Acresça-se a isso um outro
elemento: a cera sobre a qual se escrevia. Outras vezes Quintiliano havia
168
associado pensamento e escrita com modelagem. Assim como se podem
moldar diversas figuras com a mesma cera, igualmente se podem trabalhar
ideias e construir diferentes escritas com as mesmas palavras:
uelut eadem cera aliae aliaeque
formae duci solent. (Inst., X, 5, 9)
tal como diferentes imagens, na verdade,
se podem moldar com a mesma cera.
Se com a ponta do estilete se traçam, na cera, as palavras, com a outra
extremidade, em formato de espátula, se “apaga” o escrito, para que venha
ocupar o espaço uma nova escrita. Esta foi a imagem utilizada por Quintiliano
para dizer que
Sequitur emendatio, pars studiorum longe
utilissima (Inst., X, 4, 1)
Logo a seguir vem a correção, parte
dos estudos, de longe, a mais útil.
Quintiliano igualmente ensina que o melhor expediente de correção é o
tempo: quando se concede repouso ao texto, se permite voltar a ele com
distanciamento e renovado senso crítico. Isso, no entanto, deve ser feito com o
justo cuidado, para que as operações de revisão não deixem que o texto
pareça exangue e coberto de cicatrizes.
O orador, em seu processo de correção, precisa ser mais ágil, pois ele
escreve para o presente: sua atuação é imediata, as sessões do forum têm
data e hora marcadas. Assim, o orador precisa desenvolver, em velocidades
mais ou menos equiparáveis, as habilidades de escrever e de corrigir.
Outro aspecto relevante nesse processo é que a correção de que se
vem falando não se restringe às questões formais de ortografia ou de
morfossintaxe, por exemplo. Emendatio, no contexto da retórica, é mais do que
a correção dos vícios, “reparação de danos físicos”, como sugere a
169
etimologia
112
. Ela significa o aprimoramento qualitativo do discurso como um
todo, uma ação que tem por objetivo garantir a eloquência da fala.
Como vimos apresentando, a perspectiva da retórica antiga é a da
construção do discurso e, para essa construção, concorre até mesmo a
correção do texto, na dimensão que esta alcança nos ensinamentos de
Quintiliano.
Seja pelo significado que a palavra preserva, tendo em vista o processo
de sua derivação vocabular
113
, no âmbito da língua, seja por um tratamento
teórico nos limites da retórica, a elocutio é o espelho da eloquência. Desse
modo, a representação escrita se caracteriza como a própria materialização da
elocutio, sobretudo por causa das habilidades que a escrita requer e pelo papel
que desempenha, não apenas dentro do sistema da retórica, enquanto veículo
de eloquência.
Fica assim evidenciado que a ferramenta de escrita, o stilus, é, por
excelência, o mestre oratório, o que retifica a escrita, o que dá fluência à
capacidade de reflexão, o que vazão, naturalidade e consistência à
improvisação. O stilus é o meio eficiente da expressão da eloquência, pois a
escrita vem de dentro para fora e, assim, ele é também um mediador entre o
racional e o emocional. Essas forças precisam estar em equilíbrio, segundo
Quintiliano, pois a elas se atribui o papel de produzir a eloquência:
pectus
114
est enim quod disertos
facit, et uis mentis (Inst., X, 7, 15)
Com certeza, o coração é que faz os
eloquentes; também o faz a força da
mente.
112
Vitium significava inicialmente qualquer defeito físico.
113
Ver nota 11.
114
Quintiliano associa nesta frase pectus e mens. Segundo a etimologia, pectus é, no plano
figurativo, a sede do coração, da alma, da inteligência sensível; mens é o princípio pensante, a
atividade do pensamento, o pensamento em sentido concreto e figurado.
170
Devemos reiterar que a atividade, a “função” oratória envolve, além das
questões de natureza técnica, o componente ético e o senso estético. A frase
de Quintiliano nos condensa esses três elementos.
171
CONCLUSÃO
172
Verba non odisse: não odiar as palavras, mas a elas dedicar-se no
criativo silentium, para que permitam ao coração e à mente fazerem os
eloquentes é uma das mais reveladoras lições que podemos tirar dos
ensinamentos de Quintiliano. Para simbolizar a construção dos eloquentes
elege-se um intermediário: o stilus, que exterioriza e materialidade à
sensibilidade, molda na cera a arte do poeta; que vivifica a memória do
historiador; que põe sob questionamento as ideias do filósofo; que é a
eloquência do orador.
No conjunto do sistema retórico, a oratória, privilegiada pelos romanos
como arte funcional, se organiza em torno da ideia do “bem”, pois exige um
bene loqui, exige um orator bonus. Quintiliano foi certamente levado por essa
ideia, ao propor que o coração também ajuda a fazer os eloquentes. Assim o
vimos encaminhar o orador para a leitura dos poetas de quem as virtudes lhe
pareçam recomendáveis; assim o vimos censurar os vícios daqueles que
pudessem corromper a oratória.
A frase utilizada para falar da gênese da eloquência (Inst. x, 7, 15)
permite uma interpretação ingênua, nada cientificamente comprovável,
diríamos, se fosse tomada isoladamente, descontextualizada da obra de
Quintiliano. Devemos considerar que no momento em que fala de coração,
pectus, ele, de forma simbólica, humaniza a sua ciência. Lembremo-nos de que
ele sempre colocou a figura humana do orador acima de tudo; exatamente
assim ele tratou do poeta, na sua relação com a obra literária.
173
A abordagem técnica, em linguagem de colorido
115
, muitas vezes,
artístico, emocional, afetivo, o encobre o cientificismo de seus
questionamentos teóricos nem de suas propostas pedagógicas. Muito
importante, também, é notar a percepção que ele tem do valor da oratória
como ferramenta civilizatória, enquanto instrumento de ação social; a
percepção da oratória e suas implicações no interior de um modelo de
organização do sistema político. O fato de ter eleito Cícero o orador perfeito e
de, nas suas ideias combativas, ter conseguido ensinar uma oratória libertária,
sob um regime imperial, são o exemplo mais flagrante de como Quintiliano
alcançou estabelecer um forte nexo de coerência entre as próprias ideias e
próprias ações.
O que nos pareceu central em todo o percurso de leitura da obra de
Quintiliano é que para ele, assim o interpretamos, a formação do orador é a
construção do discurso. Para o sistema oratório, no contexto romano, é
imprescindível a estreita relação entre autor e discurso, sobretudo porque
uma verdade que o se pode esconder nas palavras, mas que precisa
manifestar-se na ação do orador. Esta mesma relação se coloca como
essência da retórica, já que seu fim é o discurso convincente, é a causa
defendida com sucesso, no uso da palavra eficiente.
Vimos ainda em Quintiliano o delineamento da oratória romana como
arte funcional. A funcionalidade dessa arte compreende, assim, a objetividade
de sua natureza: o orador pratica uma ação no tribunal; a sua fala produz um
efeito concreto, seja no limite do individual, seja na extensão do coletivo. Essa
115
Color,-oris: “Cor, tinta. A cor servindo sempre de caráter distintivo, ou sendo acrescentada a
um objeto para dissimular o seu aspecto real”.
Couleur, teint. La couleur servant souvent de caractère distinctif, ou étant ajoutée à un objet
pour en dissimuler l’aspect réel (Ernout, 1951: 238).
174
funcionalidade compreende, ainda, a materialidade de sua organização
estrutural. É sob esta perspectiva que podemos entender, por exemplo, porque
ele diz que é possível aprender as técnicas da invenção.
Quare iuuenis qui rationem
inueniendi eloquendique a
praeceptoribus diligenter acceperit.
(Inst., X, 5, 19)
Por esta razão, logo que o jovem tenha
diligentemente aprendido de seus
professores as técnicas da invenção e da
elocução.
A expressão “aprender uma técnica” sugere, na frase de Quintiliano, um
procedimento que envolve uma abordagem teórica e uma prática pedagógica,
de tal modo em sintonia, que permitam o acesso à “invenção”. Não podemos
nos esquecer de que a inuentio, enquanto qualidade no orador, ou parte da
oratória, é considerada, pelo próprio Quintiliano, inimitável.
A imitação, enquanto estratégia pedagógica da construção do discurso,
pôs em evidência a língua escrita, com destaque para a obra poética. Esse
instante da retórica permitiu uma forma de “desconstrução”, no sentido de uma
leitura analítica, da obra literária, não como fim de examinar a obra em si
mesma, mas como recurso de conhecimento e de aprimoramento das formas
de construção. Em outras palavras, esse instante, dentro daquele momento a
que chamamos de silêncio, tinha como objetivo maior o momento da ruptura do
silêncio: a hora do discurso proferido. A imitação é, assim, como interpretamos
das palavras de Quintiliano, um procedimento ativo, um movimento construtivo.
A nossa visão e o nosso tratamento da retórica, venha esta sob o nome
de oratória, eloquência ou elocutio, se fez na perspectiva do passado, mas até
mesmo aqui seguimos a orientação de Quintiliano, quando diz:
175
illa quae complexi animo sumus fluant
secura, non sollicitos et respicientes et
una spe suspensos recordationis non
sinant prouidere... (Inst., X, 6, 6).
tudo aquilo que houvermos abarcado
com o espírito flua em segurança e nos
permita olhar à frente, sem
desassossego, sem estar de olhos
presos no passado...
176
INSTITVTIO ORATORIA
LIBER DECIMVS
Educação Oratória
Livro décimo
INTRODUÇÃO
177
Até onde nos é dado ver, a trajetória para se chegar ao que poderíamos
chamar de conhecimento racional de uma realidade passa, entre outras
instâncias, pela intuição, que antecede a elaboração de fórmulas e conceitos.
O refinamento de ideias, que tanto pode ser um meio de alcançar o
conhecimento, quanto pode ser o próprio conhecimento, vai dando forma e
autonomia aos elementos que constituem uma ideia inicial e, assim, costuma
fazer com que esses novos elementos passem a se expandir em novas ideias.
Quando se trata da ciência da linguagem, é comum nos surpreendermos
com o grau de profundidade alcançado pelos gregos e romanos antigos. De
fato, os conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, a respeito de teoria
literária, linguística e gramática, e os que atualmente estão sendo construídos
nos levam a considerar que esses antigos não somente haviam intuído
determinados processos, mas, à sua maneira, os elaboraram de forma
bastante sofisticada. Assim, se rompermos a barreira da língua e se
compreendermos os motivos que, na antiguidade, deram forma ao tratamento
dos fatos, produtos e processamentos da língua, constataremos o quanto se
aproximam dos nossos, os conhecimentos anteriormente estabelecidos pelos
antigos. Em outras palavras, as diferenças no tempo, e tudo que com ele vem,
costumam ser distâncias menores do que sugerem as intuições, as teorias e
terminologias.
O Livro X da Institutio Oratória de Quintiliano pode ser um bom exemplo
do que acabamos de dizer, especialmente se orientarmos nossa leitura para as
reflexões, que ali se encontram, acerca das relações dos homens com sua
linguagem. Buscamos fazer isso em nosso estudo quando, de modo especial,
178
priorizamos os aspectos teóricos que nos pareceram mais significativos na
relação orador-discurso. Neste momento, porém, ampliaremos nossas
reflexões, tendo como propósito procurar, com base em elementos do texto, a
reafirmação das ideias que sustentam Quintiliano e subjazem à formulação de
alguns conceitos.
De maneira geral, uma vez interpretados esses conceitos, o primeiro
impacto se , quando nos defrontamos com a tarefa de os traduzir. Nem
sempre é possível fazê-lo; muitas vezes é preferível deixá-los intraduzidos,
sobretudo quando, no original, se resumem a uma só palavra, ou a uma
perífrase curta.
A construção do Livro X se apóia em dois pilares maiores, que são as
ideias contidas nas fórmulas facilitas (inicialmente determinada pelo adjetivo
firma, como em X, 1, 1: firma facilitas ) e copia uerborum. Nada nos desautoriza
a dizer que os equivalentes atuais para essas expressões sejam competência e
desempenho. Não se trata aqui nem de levar a conceituação atual para uma
obra da Antiguidade, nem de trazer para o nosso tempo as conceituações
formuladas pela Antiguidade, a respeito de aspectos concernentes aos estudos
da linguagem. Trata-se, em verdade, de entender que, neste caso específico,
se dizem as mesmas coisas, muito além da intuição, em duas línguas e em
contemporaneidades diferentes; com perspectivas e propósitos, muitas vezes,
também diferentes.
Insistimos nessa identidade dos conceitos, tendo em conta que,
exatamente como hoje, se faz, ao longo da obra de Quintiliano, clara distinção
entre, de um lado, a linguagem enquanto fenômeno do psiquismo humano e,
de outro lado, a língua enquanto digo de expressão. Isso se pode perceber
179
na maneira como Quintiliano desenvolve sua compreensão desses fatos. Para
ele, o código de expressão, o desempenho, isto é, a copia uerborum, pode ser
adquirida, trabalhada, aperfeiçoada, dimensionada. À competência, ou seja, à
facilitas, embora não se permita acesso direto, é possível oferecer um
ambiente em que ela se possa estimular, se orientar.
Quintiliano elabora um manual de oratória, que, logicamente, se
fundamenta em concepções pedagógicas e estratégias didáticas compatíveis
com as circunstâncias de seu tempo. No entanto, se analisarmos essa obra à
luz do conceito de defasagem, tal como formulado por BEARD e HENDERSON
(1998)
116
, veremos o quanto próximos estamos de Quintiliano, muito mais do
que imaginamos. Tomemos como exemplo os parágrafos 20 e 21, do capítulo
2. Eles são exemplares de tudo isso que vimos falando acerca de facilitas e de
copia uerborum.
Inicialmente Quintiliano propõe que a tarefa de formação do orador seja
assumida sob as perspectivas das atuações entre si complementares do
praeceptor e do rector (deve-se ter atenção, pois o termo é mesmo rector do
verbo rego
117
: dirigir, comandar, guiar e não rhetor, professor de retórica).
Obviamente, o grammaticus e o rhetor são formalmente os responsáveis pela
administração dos “conteúdos” no processo de formação do orador. No
entanto, o que está na base dos termos praeceptor e rector o é a tipificação
de mais dois outros profissionais, mas a ênfase na dinâmica de atuação que
116
A Antiguidade clássica é um tema que existe na defasagem entre nós e o mundo dos gregos
e romanos. As questões levantadas pelos clássicos são as questões levantadas pela distância
que nos separa do mundo “deles” e, ao mesmo tempo, pela proximidade e pela familiaridade
desse mundo para nós. (20)
117
Conforme Ernout (1951) descreve: Rego .... dirigir em linha reta. [ .... ] Sentido físico e
moral; em seguida, “ter a direção ou o comando de”.
Rego .... diriger em droite ligne [...] Sens physique et moral; par suite “avoir la direction ou le
commandemente de.” (1002)
180
precisa ser de ambos, grammaticus e rhetor. Em síntese, na condição de
praeceptor trabalha-se a forma, atua-se no nível do código de expressão
linguística, circunstância em que se permite preceituar, acrescentar, corrigir,
mudar. Na condição de rector, ao que forma compete a tarefa de guiar, orientar
o talento, que “É muito mais difícil moldar as próprias disposições naturais.”
(2, 20).
Para dar a noção de unidade ao processo de formação do orador e
demonstrar a necessidade de ação integrada dos profissionais que nele atuam,
Quintiliano diz, em 6, 21, ille doctor. Na palavra doctor se encontram o radical
doc-, o mesmo de doceo
118
(fazer aprender), acrescido do sufixo -tor, formador
de nomes de agente. Em sua ocorrência, nesse contexto, “o que faz aprender”
se aplica igualmente a praeceptor e a rector.
Assim como avaliamos a correlação grammaticus-rhetor e praeceptor-
rector, podemos estabelecer certo paralelismo entre facilitas-copia uerborum e
res-uerba (ideia-palavra). Parecem-nos sinônimos esse pares de conceitos,
mas com a particularidade de se enfatizarem nestes, res-uerba, o aspecto
“mais concreto”. Entendemos que a correlação facilitas-res pode ser explicada
da seguinte maneira: não podemos ter acesso à facilitas, mas podemos
presumir sua existência, uma vez que as ideias (res) têm existência, isto é,
justamente a existência de ideias é que permite presumir uma instância que as
produza, ou as abrigue. Uma vez considerados assim, esses conceitos res e
uerba permitem que sobre a sua “maior concretude se possa mais
eficientemente atuar.
118
Segundo Ernout (1951), doceo .... “fazer aprender, ensinar”; em particular, “fazer repetir”
uma peça (uma fala, um texto).
Doceo .... “faire apprendre, enseigner”; em particulier “faire répéter” une pièce . (322).
181
Nessa relação metonímica, res é a porção mais concreta da facilitas, e a
representa. Verba, por sua vez, passa a ser a expressão material (fônica ou
escrita) de uma ideia (res). Tudo isso fica ainda mais instigante, quando lemos
em 1, 5 a expressão copia rerum ac uerborum (a mesma expressão com que,
em 1,61, se fala da grandeza de poetas líricos, entre os quais o poeta Horácio):
nessas passagens, parece-nos fortemente evidenciada a identificação da
facilitas com a copia rerum, ou seja, a competência; copia uerborum é,
portanto, o desempenho.
Com essa mesma estratégia, ou seja a de formar correlações, se
trabalham as modalidades de língua escrita e falada. Em se tratando do orador,
Quintiliano propõe que escrita e fala precisam existir em perfeita interação,
perfeito equilíbrio (7, 29), sobretudo no que diz respeito às qualidades
funcionais, que garantem um discurso eficiente.
Ler e ouvir são caminhos que levam também à facilitas. Assim, o apelo
aos sentidos da visão e da audição nos induz a buscar as formas de
materialidade sobre as quais operam esses sentidos: para os ouvidos, as
declamações, as audiências no fórum, os pronunciamentos dos oradores
modelares; para a visão, a escrita.
Quintiliano elege como a inteira e perfeita imagem do código linguístico
escrito a palavra stilus, o que a coloca em um sentido muito distante do que
hoje atribuímos a estilo. Assim, stilus não é metáfora apenas como figura de
linguagem, mas é também metáfora no sentido próprio que lhe atribui o grego
moderno
119
, pois é o meio de transporte pelo qual se tira uma ideia do abstrato
119
Quem viaja à Grécia não se espante de que metáfora seja o caminhão-de-mudança.
182
ou da fluidez de sua sonoridade, e a conduz para ou a fixa em um suporte
material.
Devemos considerar que ler e ouvir são vias de mão dupla, ida e volta
de e para a reflexão, de e para a abstração. Quintiliano procura demonstrar
que, no processo de formação do orador essas duas modalidades de língua
têm peso idêntico, mesmo que se declare ciente de que a fala vem antes da
escrita; de que o desempenho do orador o se faz de outra maneira que não
através da modalidade falada. É o que podemos constatar, de modo mais
explícito, em 1, 10.
A correlação escrita e fala também leva a outras significativas
implicações, que são as condições de presença e ausência; quietude e
movimento, isto é, silêncio e ruptura do silêncio. O orador se comprova
existente no momento em que pronuncia seu discurso. Ele o faz rompendo o
silêncio e em presença dos destinatários de seu discurso, criando-se, assim,
um cenário, em que se desenvolve uma ação performática e onde também se
vida a emoções. Importa, no entanto, ressaltar que a tudo isso precede o
silêncio da leitura; a quietude que, no distanciamento, o ato de escrever exige.
Podemos exemplificar todas as implicações do processo de escrita através da
passagem 6, 3, onde Quintiliano sugere que se deva formar através do multus
stilus uma representação até mesmo do ato de fazer reflexões.
Não se pode esquecer, ainda, de que tudo em Quintiliano está voltado
para a construção do discurso, a ser pronunciado com as palavras que melhor
convenham a objetivos predeterminados e a circunstâncias específicas. Trata-
se de uma arte funcional fundada na identidade que, na oratória romana,
precisa existir entre orador e discurso.
183
A leitura do Livro X somente alcançará sua plenitude, se lidos por inteiro,
no original, obviamente, os outros onze livros da Institutio. A tradução que
apresentamos de apenas um livro é amostra de um desafio e também
sugestão, convite a uma degustação, nos termos em que não a aprova
Quintiliano:
Sejam lidos diligentemente e com o cuidado semelhante da solicitude
de quem escreve. Não será por partes que o todo haverá de ser
profundamente examinado: uma vez lido do princípio ao fim, o livro
de ser retomado em sua inteireza. (1, 21)
NOTAS:
1. Os termos facilitas e copia uerborum, por abrigarem conceitos muito
abrangentes o serão traduzidos por uma fórmula genérica, mas
pelo sentido que mais se aproxime daquele que o contexto exija.
Julgamos ser esse o procedimento mais adequado, sobretudo se
considerarmos que são termos de ocorrência numerosa e variada, como
é, em especial, o caso de facilitas. Esse termo aparece trinta vezes na
Institutio e sua significação vai desde o que entendemos por “facilidade
até o mais abstrato e específico sentido de “competência linguística”.
2. Quanto à palavra stilus, mantemos os percursos que esboçamos em
REZENDE (2005)
3. Em nosso estudo teórico nos referimos à linguagem do texto de
Quintiliano como uma escrita elaborada. Caracterizam essa linguagem a
184
sua tendência a construir períodos longos, o emprego de termos
técnicos em grego e o recurso ao sentido etimológico de grande parte
das palavras com as quais elabora os conceitos mais importantes.
Poderíamos falar, então de Quintiliano como um hábil artesão da
palavra, autor de uma linguagem refinada que, na maioria das vezes cria
sérias dificuldades para o tradutor.
Nos esforçamos para que o texto em português espelhe algumas das
características da escrita de Quintiliano. no autor um tom carregado
de sobriedade, que se alterna, muitas vezes, com requintada ironia, mas
sem perder o “ar professoral” de que se sente “autoridade no assunto”.
Sempre que possível, construímos nossas frases o mais perto do latim,
no entanto, com a preocupação de que não ficasse comprometida a
legibilidade do texto em português.
Para assegurar nossa tradução, recorremos à edições francesas Garnier
(S.D). e Belles Lettes (Cousin, 1979); à italiana de Calcante (1997); à
edição inglesa da Oxford (1970); à versão inglesa, internet,
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Quintilian/Institutio_
Oratoria/home.html, acessada em 11/01/2007; à versão espanhola,
dhttp://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/2461614110103894
2754491/index.htm, acessada em 15.11.2007
185
EDUCAÇÃO ORATÓRIA
LIVRO DÉCIMO
Institutio Oratoria
Liber decimus
TRADUÇÃO
186
I - Da riqueza de palavras
1. Mas estes preceitos de conduta relativos ao falar, tanto quanto são
necessários para se obter o conhecimento teórico da eloquência, não são
suficientes para formar a competência oratória, a não ser que a eles se venha
ajuntar uma certa facilidade inabalável, que entre os gregos se denomina ecij.
A esta facilidade se tem acesso pelo exercício do escrever, prioritariamente, do
ler e do próprio praticar da oratória: este é o caminho pelo qual, eu sei, se
costuma buscá-la. Caso pudéssemos restringir-nos a um desses exercícios,
haveria para nós a obrigatoriedade de examiná-lo muito criteriosamente.
2. Na verdade eles formam de tal maneira um todo conexo e indiscriminável
que, se algum tiver faltado, o haver trabalhado nos demais terá sido em vão.
De fato, nem sólida, nem mesmo vigorosa terá sido em qualquer momento a
eloquência, se ela não tiver tomado forças ao escrever continuamente. Sem o
exemplo que a leitura fornece, todo o esforço de escrita, carente de um guia,
vagueará: todo aquele que saiba o que dizer, e de que modo haja de ser dito,
se não tiver a eloquência, em prontidão e preparada para todas as
eventualidades, será alguém que permanecerá deitado sobre tesouros
fortemente trancados.
3. Muito embora cada um desses exercícios seja sumamente necessário, isto
não significa que, para se formar um orador, eles venham a se constituir os
itens de máxima importância. Com toda certeza, como resida no falar o ofício
do orador, o dizer vem antes de tudo. Está claro que este foi o ponto de partida
187
desta arte, logo em seguida a imitação e, por último, o zelo de refinamento do
escrever.
4. Mas como não é possível alcançar a excelência, a não ser por começar do
princípio, assim, o logo um processo se inicie, começam a se tornar mínimas
as coisas que vieram em primeiro lugar. Em verdade, nós não estamos aqui
dizendo de que maneira um orador haja de ser formado; quanto a isso, da
melhor forma, ou o quanto melhor podemos julgar, o dissemos. Em outras
palavras, queremos dizer de que maneira um atleta, que tenha aprendido de
seu treinador todas as táticas
120
, haja de ser preparado para um embate.
Assim, com essa perspectiva, instruamos aquele que já saiba identificar e
organizar as ideias, que tenha alcançado a racionalidade do selecionar e do
colocar as palavras; a ele instruamos de que modo, em um discurso, possa o
melhor, o mais facilmente pôr em prática tudo aquilo que já tenha aprendido.
5. Existe, por acaso, alguma dúvida de que a ele devam ser fornecidos certos
recursos dos quais se possa utilizar, toda vez que necessário? Esses
constituem-se da abundância de ideias e de palavras.
6. As ideias, por sua vez, são específicas de uma causa determinada, ou
comuns a umas poucas; as palavras, no entanto, hão de estar preparadas para
todas as causas. As palavras, se fossem únicas para causas específicas,
haveriam de exigir menos cuidado: sem dúvida todas se apresentariam de
imediato, ao mesmo tempo que as próprias ideias. Mas como umas são, em
relação a outras, ou mais apropriadas, ou mais adornadas, ou mais eficientes,
ou melhor sonantes, todas elas devem não somente ser conhecidas, mas
120
O termo latino é numeri (números) significa, neste contexto, propriamente “os passos”, “os
golpes”, “os ritmos.”
188
também estar de prontidão, por assim dizer, sob o olhar, para que, logo que se
apresentem ao juízo de quem as vai dizer, seja fácil a escolha das melhores
entre elas.
7. Sabemos que pessoas acostumadas a decorar palavras de significação
idêntica, para que pelo menos uma delas, mais prontamente, esteja disponível
e também para que, tendo-se servido de uma delas, se, por força da repetição,
em curto espaço de tempo, fosse ela outra vez requisitada, se tornasse
possível servir-se de uma outra, através da qual se pudesse significar a mesma
coisa. Entretanto, isso é pueril e, de certo modo, uma ação improdutiva, pouco
útil, enfim. Além do mais, de fato, amontoa-se um turbilhão de palavras de que,
sem discernimento, apanha-se a primeira, qualquer que seja.
8. A nós, no entanto, cabe-nos que seja elaborado um amplo vocabulário,
fundado no mais rigoroso senso crítico; nós que pretendemos o vigor oratório,
não volubilidade que gira em torno de si mesma. Conseguimos isso por meio
do ler e do ouvir o que de melhor. Por assim agir, não apenas
conheceremos as palavras mais adequadas para cada uma das coisas, mas
também qual a palavra mais acertada para cada lugar e momento.
9. Para quase todas as palavras existe um lugar no discurso, exceto umas
poucas que, de certo modo, ferem o pudor. Sem dúvida escritores de
jambos
121
, como também autores da comédia antiga, são frequentemente
elogiados, até mesmo pelo uso daquelas palavras. Para s, no entanto, é
121
Ver §§ 59 e 96.
A Institutio é dividida em livros, capítulos e parágrafos. Assim, nesta tradução, aparecem as
seguintes formas de referência:
a) o número do livro (I - XII, em algarismos romanos), quando se referir a qualquer outro livro,
que não o X;
b) indicação do capítulo (1 a 7) e do parágrafo – (significa dentro do livro X);
c) indicação do parágrafo somente - (significa dentro do capítulo de que se esteja tratando)
189
bastante cuidar da nossa própria atividade. Todas as palavras, exceto aquelas
de que acabo de dizer, são ótimas, cada qual para um emprego específico. Em
verdade, o uso de termos simples e, muitas vezes, de palavras vulgares é
necessário. Até mesmo certas palavras que, num contexto sublimado, parecem
sórdidas se mostram apropriadas, quando o assunto as exige.
10. Essas palavras, para que as conheçamos e tenhamos detalhadamente
ciência não apenas de seus significados, mas também de sua morfologia e de
seus valores tricos, de tal forma que sejam apropriadas aos contextos em
que devam ocorrer, de nenhum outro modo as podemos apreender, a não ser
através de intensa leitura e de as ouvir, já que é através do ouvido que
primeiramente aprendemos a língua. É por essa razão que os bebês, por
ordem de reis, no isolamento criados por amas de leite mudas, ainda que haja
relatos de que tivessem balbuciado algumas palavras, mesmo assim careciam
da faculdade de falar.
11. Existem outros tipos de palavras que apresentam a seguinte característica:
de tal maneira denotam, embora com sons diferentes, a mesma coisa, que
nada de significação existente entre elas possa levar a um uso preferencial,
como, por exemplo, ensis
122
e gladius. Outras, no entanto, ainda que sejam
122
O termos latinos, na ordem em que ocorrem, têm a seguinte tradução:
Ensis espada.
Gladius espada.
Ferrum ferro.
Mucro Ponta, extremidade pontiaguda.
et pressi copia lactis uma fartura de leite prensado (para significar queijo) - Virgílio, Écloga
1,81.
Scio eu sei (o verbo vem sempre enunciado na primeira pessoa do presente).
non ignoro, non me fugit, non me praeterit não ignoro, não me escapa; não me passa ao
longe.
Quis nescit quem desconhece.
Nemini dubium est a ninguém resta dúvida.
Intellego eu escolho pelo espírito, compreendo, alcanço o conhecimento.
Sentio eu sinto, experimento uma sensação.
Video eu vejo.
190
palavras designativas de coisas específicas, utilizadas como tropos, conduzem
à significação de uma só e mesma coisa, como, por exemplo, ferrum e mucro.
12. É assim que, por catacrese
123
, chamamos de sicários todos aqueles que
provocaram a morte com não importa qual tipo de arma perfurante ou
contundente. Algumas coisas representamos por um conjunto de várias
palavras, como é ocaso de et pressi copia lactis. Diversas outras, pela
substituição da expressão: scio para equivaler a non ignoro, non me fugit,
non me praeterit e quis nescit e nemini dubium est.
13. É permitido, ainda, servir-se, como por empréstimo, de um termo próximo:
em verdade, intellego, tanto quanto sentio e mesmo uideo frequentemente
valem a mesma coisa que scio. A fecundidade e a riqueza dessas palavras
nos será dada pela leitura, de tal modo que as possamos usar não somente no
modo como ocorrem, mas também no modo como convém.
14. Nem sempre aquelas mesmas palavras produzem entre si idêntico sentido:
assim como eu diria corretamente uideo para significar o ato de perceber pela
inteligência, não do mesmo modo eu diria intellego para o ato de captar uma
imagem pelos olhos; mucro coloca diante de nós um gladius, mas gladius
não se nos apresenta como mucro.
15. Mas como a riqueza de palavras assim se adquire, não somente por causa
de palavras se deve ler e ouvir. Em verdade os exemplos de todas as coisas,
quaisquer que sejam as que ensinamos, são, neste aspecto, mais poderosos
até mesmo do que aqueles transmitidos pelos próprios manuais em tais
circunstâncias, aquele que aprende já foi levado a compreender as coisas, sem
123
Ver VIII,2,5 e 6,34. (Catacrese é uma “figura” que consiste em utilizar-se de um termo em
sentido figurado, por falta de uma palavra de sentido próprio).
191
alguém para o demonstrar, e pode caminhar com as próprias forças: o que
um doutor
124
preceituou, o orador já terá mostrado na prática.
16. Certos aspectos do ouvir ajudam de um determinado modo, os do ler, de
outro. Pelo próprio sopro, aquele que diz excita: não pela imagem, nem pelo
contorno das coisas, mas pelas próprias coisas faz inflamar. São viventes
todas aquelas coisas, se agitam e, com benevolência e solicitude, as colhemos
como novas, tal como se acabassem de nascer. Não somente pela sorte de um
julgamento somos afetados, mas também pelo risco
125
que correm aqueles
próprios que discursam.
17. Além de tudo isso, a voz, o desempenho elegante, comedido da pronúncia,
tal que sempre exige cada passagem é, por assim dizer, o fator mais poderoso
em se proferindo um discurso. Tudo isso igualmente, numa palavra, ensina.
Na leitura, o juízo é mais acertado do que aquele que frequentemente a boa fé,
ou o clamor dos que louvam, arranca a cada um dos ouvintes.
18. No auditório, chega mesmo a causar constrangimento discordar e, como
que tomados de uma certa discrição, nos reprimimos de acreditar mais em nós
mesmos. Muitas vezes, não somente o que é vicioso agrada à maioria, mas
também são elogiadas pela claque até aquelas coisas que não agradam.
19. Mas, ao contrário do que deveria ser, também acontece que esses juízos
depravados não sejam capazes de dar o devido valor a coisas excelentemente
ditas. A leitura é livre, nem mesmo transcorre como o ímpeto de um discurso
proferido: é permitido ir e voltar muitas vezes, seja porque ainda restam
124
O termo “doutor” (doc-tor) está aqui em sentido etimológico: “o que faz aprender”. Cf. nota 3.
125
O termo latino periculum (perigo) é, nesse contexto, utilizado para significar a condição do
orador no tribunal. O risco, o perigo se referem à possibilidade de uma ão fracassada. Cf.
§36.
192
dúvidas, seja porque tudo se queira fixar no mais profundo da memória. Seja-
nos permitido ir e voltar, montar e remontar e, tal como os alimentos que,
mastigados e liquefeitos para que sejam mais facilmente digeridos, engolimos,
assim também a leitura não crua, mas moída repetidas vezes, e como que
dissolvida, pode ser entregue à memória e à imitação.
20. Além do mais, durante prolongado tempo, devem ser lidos somente
aqueles que sejam os melhores e que, de modo quase nenhum, possam
enganar a quem neles confia. Sejam lidos diligentemente e com o cuidado
semelhante da solicitude de quem escreve. o será por partes que o todo
haverá de ser profundamente examinado: uma vez lido do princípio ao fim, o
livro de ser retomado em sua inteireza. Isto se faça sobretudo quando se
trate de um discurso, pois suas qualidades essenciais também se podem
ocultar deliberadamente.
21. Com frequência um orador prepara, dissimula, cria armadilhas: coisas
que ele diz numa primeira parte do discurso, mas que somente no final haverão
de ter seu proveito. Assim, agradam pouco no lugar onde se encontram, pois
nos são ditas a nós que ainda não sabemos porque estão sendo ditas. Por esta
razão é que a elas se deve sempre retornar, uma vez conhecidos todos os
fatos em seu conjunto.
22. É, com efeito, utilíssimo conhecer os fatos processuais de que tratam os
discursos que venhamos a ter em mãos e, todas as vezes que for possível, ler
os discursos proferidos pelas partes conflitantes, por exemplo, os discursos
entre si contrários de Demóstenes e de Aeschines; os de Sérvio Sulpício, os de
193
Messala: um discursou a favor de Aufídia, o outro, contra; de Polião e de
Cássio
126
, sendo réu Asprenate
127
, enfim, muitos outros mais.
23. Como não levar em consideração também muitos discursos, ainda que se
mostrem díspares, mas que são corretamente requisitados para que sejam
compreendidas questões de certos processos. Assim, temos contra Cícero, de
um lado, os discursos de Tuberão a favor de Ligário, de outro, os de Hortênsio
a favor de Verres
128
. Além do mais, seria útil saber como cada um tenha, a seu
modo, tratado causas idênticas: com efeito, Calídio
129
discursou a respeito da
Casa de Cícero e Bruto, como exercício, escreveu um discurso a favor de
Milão, ainda que Cornélio Celso
130
, equivocadamente, pense esse discurso ter
sido, de fato, proferido.
24. Tanto Pollião, quanto Messala defenderam os mesmos réus
131
e, quando
ainda éramos meninos, eram referidos como notáveis os discursos de Domício
Afro, de Crisipo Passieno
132
, de Décimo Lélio
133
em favor de Voluseno Cátulo.
Não convém ao leitor de pronto persuadir-se de que tenha sido perfeito tudo
aquilo que os melhores autores hajam dito. Com certeza eles cometem lapsos,
ocasionalmente, também cedem ao peso, até mesmo são indulgentes para
com a volúpia de seus próprios talentos; nem sempre estão de espírito atento,
126
Ver IV, 2, 106 e VI 1, 20 (Aufidia); § 113 (Polião); § 116 (Cássio).
127
C. Nônio Asprenate, um amigo de Augusto, acusado por Cássio e defendido por Polião da
suspeita de envenenamento dos próprios convidados a um banquete.
128
Cícero defendeu Ligário da acusação de desobediência civil (este havia sido exilado por
Caio César); o mesmo Cícero atuou contra Verres, acusado de abuso de poder e malversação
do erário público, durante o período em que foi propretor da Sicília.
129
Provavelmente diante de algum outro tribunal. De Domo Sua de Cícero foi pronunciado
diante dos pontífices.
130
Cornélio Celso era um escritor enciclopedista. Viveu no começo do império, e dele resta um
tratado sobre medicina.
131
Libúrnia. ver IX, 2,3 4.
132
Padrasto de Nero.
133
Provavelmente o Lélio Balbo que é referido em Tácito: Anais, VI, 47, 48.
194
às vezes se mostram fatigados. Assim é que a Cícero
134
pareça Demóstenes
cochilar, algumas vezes; para Horácio até mesmo o próprio Homero pareceu
dar seus cochilos
135
.
25. Supremos, sem dúvida, eles o, contudo são homens. No entanto,
àqueles que pensam ser lei da oratória tudo aquilo que nesses ilustres tenham
encontrado ocorre que se tornem imitadores das coisas piores - isso,
inquestionavelmente, é muito fácil; mais ainda, se julguem semelhantes aos
grandiosos, se lhes imitam os defeitos.
26. Contudo, a um juízo moderado e circunspecto compete o pronunciar-se a
respeito de tão grandes homens, a fim de que o - isso acontece a muitas
pessoas - se condene o que o se entende. Além do mais, se
necessariamente acontece de haver enganos em um ou outro dos dois
sentidos
136
, particularmente eu preferiria que tudo deles agradasse aos leitores,
ao invés de que muitas coisas desagradassem.
27. Muitíssimas coisas a leitura dos poetas confere ao orador, diz Teofrasto
137
,
e numerosas pessoas concordam com seu ponto de vista, não sem razão.
Verdadeiramente dos poetas se busca o sopro, que é vida nas ideias; a
sublimidade, que se eleva nas palavras; todos os movimentos que se agitam
nos afetos; a caracterização que existe nas personagens; principalmente
porque a mente, desgastada no agir diário do fórum, como que se restaura, no
134
Deve ter constado de uma carta, hoje, perdida: cf. Plutarco Cic. 24. Quanto à imperfeição”
de Demóstenes, ver Orator, 104
135
“quandoque bonus dormitat Homerus; (Ars, 359)
E quando o bom Homero cochila.
136
Isto é, no agradar e desagradar.
137
Em um dos seus tratados sobre retórica (já perdido).
195
seu melhor, por meio desta liberdade de tudo. Exatamente por isto Cícero
138
entende que se deva descansar nesse tipo de leitura.
28. Estejamos sempre lembrados, porém, de que não em tudo os poetas
devem ser seguidos pelos oradores: nem na liberdade em relação às palavras,
nem na licença das figuras. Aquela, a poesia, é um gênero feito e destinado
para a apresentação performática, além do fato de que busca apenas a
deleitação. Ao deleite ela persegue pelo inventar o apenas fantasias, mas
até mesmo o inacreditável e, nessa forma de existir, ela conta ser ajudada por
um assentimento favorável.
29. Pelo fato de estar atrelada a exigências de precisão da métrica, nem
sempre ela pode utilizar-se de palavras apropriadas: repelida do caminho
direto, necessariamente percorre determinados desvios para se expressar e é
obrigada tanto a mudar as palavras, quanto a alongá-las, ou abreviá-las,
deslocá-las ou as desmembrar. Nós, por força de uma verdade, nos obrigamos
a estar armados, em linha de combate, e a lutar por causas supremas e a nos
firmar em uma vitória
139
.
30. No meu entendimento, eu gostaria que as armas não se deteriorassem
num canto qualquer e pela ferrugem, mas que nelas fulgurasse o brilho que
aterroriza, como o de uma espada
140
, pelo qual mente e olhar, de ver, se
dilaceram. Nelas o brilho não fosse como o do ouro e da prata, que é inútil
numa luta de guerra e, mais ainda, é perigoso ao que os possui.
138
Cíc. Pro Arch., 12.
139
Como a atenção está voltada para a oratória forense, Quintiliano associa, com frequência,
os embates no tribunal com as imagens do soldado, do combate e de estratégias de guerra,
das armas (neste caso as palavras). Cf. § 33.
140
O termo latino é ferrum. Cf. § 11.
196
31. A história
141
, por sua vez, pode também alimentar o orador, como se fosse
por uma qualidade de seiva ricamente nutritiva e saborosa. No entanto,
também ela precisa ser lida de tal modo que saibamos que muitas de suas
especificidades devem ser evitadas pelo orador. É, seguramente, próxima aos
poetas e, em certa medida, um poema em prosa; é escrita para narrar, o
para provar; é um tipo de obra que, na sua totalidade, se compõe não para o
concretizar de um fato e para um combate imediato, mas para a memória da
posteridade e para a fama de uma genialidade. Sendo assim, tanto pelas
palavras pouco usuais quanto por figuras mais livres, a história evita o tédio do
narrar.
32. Assim, como eu disse
142
, nem o famoso estilo sintético de Salústio
143
para
os ouvidos abertos e eruditos nada pode ser mais perfeito de ser
percebido por nós em um juiz ocupado de variadas reflexões e, muito
frequentemente, nada erudito; nem aquela exuberância, farta como leite, de
Tito Lívio ensinará muito àquele que não está buscando a qualidade formal de
uma exposição, mas busca a credibilidade
144
.
33. Acrescente-se que Marco Túlio
145
julga que nem mesmo Tucídides ou
Xenofonte sejam úteis ao orador, ainda que considere aquele um “cantor
guerreiro” e pela boca deste “as musas terem falado”. No entanto, é-nos,
algumas vezes, permitido servir, em nossas digressões, do brilho que no
escrito histórico, conquanto nas coisas de que aqui se vai tratar, estejamos
sempre lembrados de que se vai necessitar não de músculos de atletas, mas
141
A palavra historia equivale, na Institutio, a historiografia.
142
IV, 2, 45.
143
Gaio Salústio Crispo (86-36 a.C.) Escreveu Bellum Catilinae e Bellum Iugurtinum.
144
Sobre Tito Lívio § 101; A credibilidade, ou confiabilidade, deve ser um dos requisitos
essenciais no orador.
145
As citações de Quintiliano são Orator 39 e 62. Outras referências são: Orator. 32 e seg.; De
orat., II, 58.
197
de braços de soldados. Da mesma forma, aquele traje multicolorido, que se
dizia Demétrio Faléreo
146
vestir, nunca há de cair bem para a poeira do fórum.
34. Existe ainda uma outra serventia que se origina dos fatos históricos, em
verdade, a principal, mas o pertinente ao ponto de que nos ocupamos neste
momento: do recôndito dos fatos e de seus exemplos é que, precipuamente, o
orador se deve instruir
147
. Que ele não espere de seu cliente todos os
testemunhos, mas diligentemente os recolha, conhecidos, em sua maior
parte, pela antiguidade, considerando-se o fato de que serão mais poderosos,
pois somente esses testemunhos estão isentos de suspeitas e de
favorecimento.
35. Como nos coubesse a todos nós buscar muitas coisas na leitura dos
filósofos, isso, no entanto, foi feito de forma defeituosa pelos oradores. Estes,
de fato, os abandonaram no que de melhor em suas obras.
Indubitavelmente, a respeito das coisas justas, honestas, úteis, também de
tudo que a estas seja contrário, e, sobretudo a respeito das coisas divinas os
filósofos tratam cabalmente, argumentam ferrenhamente; não somente para as
altercações, mas também para os interrogatórios os Socráticos
148
preparam
otimamente o orador.
36. Mas também nestes casos se deve aplicar semelhante juízo: como
igualmente versemos, nós os oradores, sobre os mesmos temas que a filosofia,
no entanto, é preciso que saibamos que o o idênticas as situações dos
processos jurídicos e as das discussões filosóficas; do fórum e da sala de
leitura; dos preceitos e dos riscos em uma contenda judicial.
146
cf. § 80.
147
Cf. De Oratore, 1, 201; Inst., V, 11, 36-37
148
É uma referência ao método dialético. Os socráticos são Platão, Xenofonte e os
Acadêmicos.
198
37. Eu creio serem muitos os que haverão de exigir, que julgamos haver
tanto de utilidade na leitura, que ajuntemos ao nosso tratado isto: quais sejam
os autores que devem ser lidos e qual, em cada um, a virtude principal. Mas
analisar todos eles, um por um, seria uma tarefa infinita.
38. Analisemos o seguinte fato: como M. Túlio, no Brutus, tenha, em tantos
milhares de linhas, falado apenas dos oradores romanos e, no entanto, tenha-
se silenciado, excetuados César e Marcelo
149
, a respeito de todos os mais de
seu tempo, os quais ainda eram vivos, como haveria de ter limite, se eu me
atrevesse a falar de todos aqueles que existiram depois de Cícero e, ainda, não
somente todos os oradores gregos, mas também os filósofos?
39. Existiu, verdadeiramente, a famosa, acertadíssima e sumária afirmação,
que se encontra escrita numa carta de Lívio a seu filho
150
, segundo a qual
“devem ser lidos Demóstenes e Cícero e somente então cada um que fosse
muitíssimo semelhante a Demóstenes e Cícero”.
40. Não há, igualmente, de ser dissimulada a essência da nossa opinião:
poucos, ou antes, um só, talvez, dentre aqueles que perpetuaram a
antiguidade, eu penso poderem ser relacionados na condição de quem haja de
ser considerado de alguma utilidade para os que se dediquem à reflexão. O
próprio Cícero confessa-se ter sido ajudado por alguns autores muito antigos,
que foram engenhosos, embora carecessem de escolarização formal.
151
41. Nem é muito outra coisa o que sinto em relação aos novos autores. Que
número tão pequeno de escritores pode, em verdade, ser encontrado e tão
149
Caio Júlio César (100-44 a.C.), o grande general romano. Escreveu De bello gallico. Marco
Cláudio Marcelo, Cônsul em 51 a.C.. A respeito dele Cícero pronunciou o discurso Pro
Marcello.
150
Essa carta se perdeu.
151
Cícero Brutus, 61-66; Orator, 169.
199
demente que não tenha esperado pertencer à memória da posteridade, ainda
que na pálida confiança em alguma parte de sua obra? Esse autor, se é que
existe algum, logo nos primeiros versos será descoberto e nos despachará
antes de se constatar que o fato de tê-lo experimentado aconteceu como se
fosse um desperdício de tempo.
42. Mas não qualquer coisa que pertença a alguma parte do conhecimento
científico está imediatamente adequada para se elaborarem os padrões e as
estruturas de frase sobre as quais vimos falando. Antes que eu fale a respeito
de cada um dos autores em particular, umas poucas coisas no geral precisam
ser ditas quanto à diversidade de opiniões.
43. Alguns, de fato, pensam que somente os autores antigos hão de ser lidos.
Mais ainda, julgam que em nenhuns outros autores a eloquência natural existe,
nem vigor digno dos homens. A outros agradam esta lascívia atual, as fruições
e tudo quanto se compõe para a volúpia da massa ignara.
44. Até mesmo dentre aqueles que querem seguir o padrão do falar
naturalmente, alguns pensam séria e indubitavelmente que se deva agir à
maneira Ática, isto é, de forma resumida, ligeira, minimamente se afastando do
uso quotidiano. A outros aprisiona a sublime força de um talento, essa força
mais arrebatadora e plena de espírito. Existem ainda não poucos amantes do
padrão suave, brilhante e harmonioso. A respeito destas diferenças dissertarei
mais diligentemente no momento em que tiver de ser investigada a natureza do
discurso
152
. Neste momento tocarei resumidamente naquilo e através de que
leitura o possam buscar aqueles que querem fortalecer sua capacidade de
discursar.
152
XII, 10, 58 e seg.
200
45. Tenho em mente tomar à parte uns poucos - estes são, de fato, os mais
eminentes. É fácil, no entanto, para os que se dedicam aos estudos, decidir
quais sejam os mais semelhantes a si. Nestas circunstâncias, que ninguém se
queixe terem sido, por acaso, omitidos aqueles que cada um, em particular,
aprecie intensamente. Confesso serem muito mais numerosos os que devam
ser lidos, além desses que serão relacionados. Neste momento, porém, persigo
os próprios gêneros das leituras que eu julgue especialmente convenientes
àqueles que se pretendem tornar oradores.
46. Sendo assim, tal como Arato
153
pensa dever-se começar por Júpiter, tenho
por mim que, exatamente como um rito, havemos de começar por Homero.
Este diz que, de certo modo, a corrente de todos os rios e de todas as fontes
tem seu começo no Oceano
154
. Assim, ele próprio como que deu origem e
serviu de exemplo a todas as partes da eloquência. A este ninguém superou,
seja pela sublimidade nas coisas grandiosas, seja pela propriedade nas coisas
simples. Ele tanto é fecundo, quanto conciso, prazeroso e grave, admirável na
abundância como na parcimônia, o mais elevado o somente por seu vigor
poético, mas também pela força oratória.
47. Sem que seja preciso eu falar, neste momento, a respeito dos panegíricos,
exortações e consolações, mas em relação ao nono livro
155
, em que está
contida a embaixada enviada a Aquiles, ou a famosa contenda entre os chefes,
no livro primeiro, ou as sentenças proferidas no segundo, não é verdade que
153
Arato (fim do séc. IV início séc. III a.C.). Escreveu um poema didático sobre astronomia,
de grande divulgação, Fenômenos. A expressão “começar por júpiter” esta no início dessa
obra, que foi traduzida por Cícero.
154
Ilíada, 21, 196.
155
Ilíada, 9, 255; 1, 121-303; 2, 53-394.
201
tudo isto explica o conhecimento técnico de todos os tipos de processos
jurídicos e de todas as formas de ações deliberativas?
48. Quanto ao que move a alma, seja o que de mais doce, seja o que de
exasperador, ninguém haverá que se confesse ignorante de que este autor o
tenha possuído em seu completo poder. Eia, pois, o é verdade que na porta
de entrada de ambas as obras, em pouquíssimos versos ele, não digo que
obedeceu, mas constituiu a lei dos proêmios? Sem dúvida ele torna
benevolente o ouvinte pela invocação das deusas, as quais, se acredita,
presidiram aos poetas; ele o torna atento pela grandeza proposta dos temas; o
torna receptivo pelo essencial que, em forma de sumário, ele condensa.
49. Quem é capaz de fazer mais sucintamente uma narrativa do que aquele
que anuncia a morte de Pátroclo
156
? Quem é capaz de fazer mais
significativamente uma exposição do que aquele que relata o combate dos
Curetes e dos Etólios
157
? Sejam comparações, amplificações, exemplos,
episódios, comprovações de fatos e de argumentos e tudo o mais de que se
pode utilizar para provar ou refutar, assim, tantas são essas coisas que a
mesmo aqueles que escreveram sobre essas técnicas tenham buscado neste
poeta a maior parte dos exemplos para suas abonações.
50. Tome-se, por exemplo, uma genuína peroração: que autor te podido
igualar-se às célebres preces de Príamo, que suplica a Aquiles
158
? Ainda mais?
Nas palavras, nas sentenças, nas figuras, na organização da obra como um
todo, não é verdade que excedeu a medida do talento humano? Em
consequência disto, há que haver nos homens que se queiram grandes a
156
Ilíada, 18, 18.
157
Ilíada, 9, 529.
158
Ilíada, 24, 486 e seg.
202
competência para seguir as qualidades dele, o pela emulação, pois que isso
não se pode fazer, mas pela compreensão intelectual apenas.
51. Com certeza ele deixou todos para trás, indubitavelmente longe de si em
todo gênero de eloquência, principalmente os poetas épicos, que é só
dureza a comparação, considerando-se que trataram de matéria semelhante.
52. Ocasionalmente aparece Hesíodo, e grande parte de sua obra está
ocupada por uma relação de nomes
159
. No entanto o úteis suas sentenças
que tratam de preceitos morais. É digna de apreço a leveza das palavras e da
composição e se lhe pode conferir a palma naquele gênero intermediário de
discurso, sobre o qual já falei.
53. De modo contrário, em Antímaco
160
merece elogio a força, a gravidade e
seu gênero minimamente vulgar de discurso. No entanto, ainda que o quase
consenso dos gramáticos lhe atribua uma segunda colocação, seja em relação
aos movimentos da alma, ao que prazer, à organização, enfim, à arte como
um todo, ele, de tal maneira, é mais fraco que se torne claramente visível que
uma coisa seja estar perto, outra, seja ser o segundo.
54. Paniasis
161
, em matéria de linguagem, pensa-se, o supera as qualidades
de nenhum dos dois últimos. No entanto, julga-se que um deles, Hesíodo, é
superado no que diz respeito à temática, o outro, Antímaco, no que se refere à
racionalidade de sua organização. Apolônio
162
não vem relacionado em
nenhuma categoria formulada pelos gramáticos, mesmo porque Aristarco e
159
Em especial a Teogonia.
160
Antímacho de Colofon (nasceu aprox. em 405 a.C.), autor de uma Tebaida.
161
Tio de Heródoto, autor de uma Heracleia.
162
Apollônio de Rhodes, autor da Argonáutica. A lista a que se faz referência consistiu de
quatro poetas, já mencionados, acrescida de Pisandro. Ver § 56.
203
Aristófanes
163
, juízes dos poetas, não haviam incluído no elenco de autores
consagrados quem quer que, de seu tempo, ainda vivesse. Produziu uma obra
que, no entanto, não é desprezível, caracterizada por um certo nivelamento
mediano.
55. A temática de Arato carece de movimento, quando este significa vitalidade,
de uma tal forma que nela nenhuma variedade exista, nenhum sentimento,
nenhuma personagem caracterizada, nenhum discurso do que quer que seja.
No entanto, o poeta se basta à sua obra, da qual se julga à altura. Admirável
em seu gênero é Teócrito
164
, mas aquela sua musa, rústica e pastoral, foge
atemorizada não somente do fórum, mas até mesmo da própria cidade.
56. Parece que, de todos os lados, ouço pessoas sugerirem nomes de poetas,
os mais diversos. Como assim? Os feitos de Hércules não os poetizou tão bem
Pisandro
165
? Como não? A Nicandro
166
, foi em vão que o imitaram Macro e
Virgílio? Como ainda? Passaremos ao largo de Euforião
167
? Deste igualmente,
se Virgílio não tivesse provado, com certeza nunca teria feito, nas Bucólicas,
menção aos poemas compostos em metro calcídico. Ainda mais? É sem
critério que Horácio subscreve Tirteu
168
logo abaixo de Homero?
57. Além de tudo isso, ninguém, em consciência, se encontra tão afastado
do conhecimento deles que não possa transcrever nos seus próprios livros a
relação dos nomes desses poetas, obtida em qualquer biblioteca. De minha
163
Aristófanes de Bizâncio.
164
Nasceu em Siracusa (aprox. 300 a.C.). Escreveu poesia de caráter bucólico, mimos, hinos,
etc.
165
Um poeta Ródio do século sétimo a.C.
166
Nicandro de Colofon (segundo século a.C), autor de poemas didáticos, Theriaca e
Alexipharmaca e Metamorphoses. Virgílio o imitou nas Geórgicas; Emílio Macro, o amigo de
Ovídio, o imitou em sua Theriaca.
167
Euforião de Chalcis (220 a.C) escreveu de modo elaborado curtos poemas épicos. Ver Ecl.
10. No verso 50, através das palavras de Galo, Virgílio faz referência a suas próprias imitações
de Euforião.
168
Ver Hor. Ars, 401. Tirteu, escritor de cantos de guerra. (sétimo século a.C).
204
parte, nem ignoro aqueles ao largo de que passo, nem, muito menos, lhes
causo qualquer dano, pois, já tenho dito
169
, em todos existe algo de utilidade.
58. Mas voltaremos àqueles, uma vez completamente desenvolvidas e
constituídas as forças. Exatamente assim fazemos, com frequência, nos
grandes banquetes: até mesmo quando estamos saciados pelas melhores
iguarias, a variedade dos pratos inferiores nos é agradável. Sendo assim,
tempo para tomar nas mãos a elegia: dela Calímaco
170
é tido como príncipe;
Philetas
171
ocupou o segundo lugar, de acordo com o reconhecimento da maior
parte.
59. Enquanto seguimos no encalço daquela, como eu disse
172
, facilidade
inabalável, é preciso nos acostumarmos aos melhores: não só há de ser
formado o espírito, de modo mais eficiente, por uma leitura em profundidade do
que pela leitura de muitos; também assim de ser externado o colorido da
forma. Consequentemente, dentre os três escritores de Jambos
173
, acolhidos
segundo o juízo de Aristarco, Arquíloco é o único que se pode dizer pertinente
para, através dele, se alcançar aquela facilidade.
60. Neste é suprema a força da elocução, de tal modo que são vigorosas,
algumas vezes breves, mas sempre vibrantes as suas sentenças; são dotadas
de muito sangue e de nervos, a tal ponto que pareça a alguns ser por defeito
do assunto, não do talento, o fato de ele eventualmente se apresentar inferior a
um outro poeta qualquer.
169
§ 45.
170
Calímaco (séc. III a.C.) viveu em Alexandria. Escreveu, entre outras coisas, jambos e
epigramas.
171
Filetas de Cós (290 a.C).
172
X, 1, 1.
173
Os outros dois escritores são Simônides de Amorgos e Hiponax de Éfeso. Archilochus
(nasceu aprox. 686 a.C). Escreveu jambos e elegias.
205
61. Dentre os nove líricos
174
, verdadeiramente, Píndaro
175
é, de longe, o
primeiro na inspiração, na magnificência, nas sentenças, nas figuras, na
felicíssima riqueza de temas e de palavras, enfim, como que fosse ele uma
correnteza de eloquência. Diante destas qualidades, Horácio
176
acredita que
ele, por seus méritos, não pode ser imitado por nenhum humano.
62. Stesicoro
177
, o quanto ele seja vigoroso em talento, mostram-no até mesmo
as suas temáticas: ele que canta as guerras mais significativas e os generais
mais ilustres; ele que, com sua lira, sustenta o peso da poesia épica. Ele
devolve às suas personagens a devida dignidade no agir, bem como no falar.
Além disso, se tivesse contido as medidas, ele, muito de perto, parece-me,
teria podido rivalizar-se com Homero, mas é redundante e difuso. Isto é algo
que se deva repreender, uma vez que se constitui em vício de excesso.
63. Alceu é merecidamente condecorável com Plecto Áureo
178
, tendo em vista
uma parte de sua obra, aquela através da qual, tendo invectivado os tiranos,
até mesmo traz sua contribuição para os bons costumes. No falar, é igualmente
breve e magnífico, muitas vezes semelhante, na força de seu discursar, a um
orador. No entanto, ele brincou e também desceu aos amores
179
, ainda assim
suas aptidões são compatíveis com as dos maiores.
64. Simônides
180
, por sua vez, pode ser recomendado por sua linguagem
própria e por um certo encanto prazeroso. o notável, contudo, é sua força no
174
Os cinco não mencionados aqui são: Alcmane, Safo, Íbico, Anacreonte e Bachílides.
175
Píndaro (518-438 a.C). Era de família aristocrática. São notáveis seus epigramas.
176
Od., IV, 2, 1.
177
Stesicoro de Himera, na Sicília, (aprox. 600 a.C.), escreveu em versos líricos sobre diversas
lendas, especialmente sobre temas ligados à guerra de Tróia.
178
Hor. Od., II, 13, 26. Alceu de Mitilene (aproxim. 600 a.C).
179
Escreveu poesia amorosa de caráter erótico.
180
Simônides de Céos (556-468 a.C), famoso por todas as formas de poesia lírica,
especialmente odes funerais. Certamente Quintiliano o recomenda, tendo em vista o forma
como esse poeta elabora as emoções.
206
que diz respeito aos movimentos do patético, que muitos, quanto a este
aspecto, o coloquem à frente de todos os outros de semelhantes composições.
65. A comédia antiga, quase como única, retém aquela graça pura da
conversação ática, quando então ela gozava da liberdade de falar
abertissimamente; mais ainda, se ela tem como poder principal perseguir os
vícios, mesmo assim ela guarda muitíssimo de forças em outros aspectos
igualmente. Ela é, de fato, grandiosa, elegante e sedutora: o sei se qualquer
outra forma de literatura, depois de Homero este, assim como Aquiles, deve
ser tomado à parte - é igual ou muito semelhante aos oradores ou mais
adequada para se formarem os oradores.
66. Numerosos são seus autores, mas Aristófanes, Eupolis e Cratino
181
são os
principais. Quanto às tragédias, Sófocles foi o primeiro a trazê-las ao brilho da
luz. Sublime, grave e grandiloquente, muitas vezes, porém, ao excesso, mas
rude em muitas passagens e a mesmo desconcertado. Por esta razão os
atenienses permitiram colocar em concurso suas peças corrigidas por poetas
posteriores. Dessa maneira, muitos alcançaram a coroação.
67. Mas, sem igual, fizeram brilhar mais claramente este gênero Sófocles e
Eurípides. Discute-se entre muitas pessoas qual seja melhor poeta, cada um
dos dois em seu modo próprio e tão díspar de dizer. Mas isto eu, em
consciência, deixo sem julgamento, já que nada tem de pertinente com a
presente matéria. Existe, no entanto, um fato que ninguém nega desnecessário
àqueles que se preparam para a atuação forense: Eurípides, de longe, de
ser mais útil.
181
Contemporâneos: Cratino (519-422), Aristófanes (448-380), Êupolis (446-410).
207
68. O fato é que, na sua linguagem, (pois a esta própria repreendem aqueles
para os quais parecem ser mais sublimes a gravidade, o coturno e a
sonoridade de focles) ele muito se aproxima do gênero oratório. Ele é denso
em suas sentenças; é quase igual a filósofos sábios, naquelas sentenças que
por eles nos foram legadas. No discursar e no replicar há de ser comparado a
qualquer um daqueles que no fórum eram peritos eloquentes. No que se refere
aos movimentos da alma, em tudo é admirável; especialmente naqueles
movimentos que consistem de sentimentos de compaixão ele é
indubitavelmente o primeiro.
69. A este admirou muitíssimo, como sempre o testemunhou, Menandro
182
, e o
seguiu, ainda que numa obra de natureza diferente. Menandro, segundo minha
opinião, ainda que fosse o único a se ler diligentemente, bastaria para que
fossem retratadas todas aquelas qualidades que vimos ensinando. Tão
fielmente expressou toda uma imagem da vida; tão copiosas eram nele a
riqueza da invenção e a capacidade de falar; tão perfeitamente equilibrado ele
era em todas as situações, personagens e emoções.
70. Acertadamente compreenderam, segundo penso, aqueles que julgam
terem sido escritos por Menandro os discursos que vieram à luz sob o nome de
Carísio
183
. Parece-me, entretanto, que ele se prova de longe melhor orador
através da própria obra, se, por acaso, não se considerem as questões judiciais
que estão contidas em Epitrépontes
184
, Epicleros e Locroe; as reflexões que
182
Menandro (342-291 a.C.), principal representante da comédia nova, junto com Dífilo e
Filémon
183
Um contemporâneo de Demóstenes; seus discursos não permaneceram, mas eram
considerados semelhantes aos de Lísias.
184
A maior parte de Epitrépontes foi recuperada de um papiro. As outras peças se perderam.
Os nomes podem ser traduzidos por: "Os Árbitros," "A Herdeira," "Os Lócrios," "O Tímido," "O
Legislador," "O Desafiante"
208
em Psophodee, Nomothete, Hypobolimaeo se fazem, embora não estritamente
sob todos os requisitos da oratória.
71. De minha parte, no entanto, penso que ele de levar algo mais de
contribuição aos declamadores, que a estes é necessário, segundo a
natureza das controvérsias, se comportarem como os mais diferentes
personagens, ou seja, como pais, filhos, <solteirões>, maridos, soldados,
camponeses, ricos, pobres, mal-humorados, suplicantes, amáveis, ríspidos. Em
todos estes retratos a perfeita imagem é admiravelmente guardada por esse
poeta.
72. Mais do que tudo isso, ele, de fato, deixou longe o nome de todos os
autores de idêntico gênero e, com certo fulgor de sua claridade, os lançou às
trevas. Alguns outros micos, se lidos condescendentemente, m coisas que
se possam colher com proveito, como especialmente Filémon
185
. Este, de
acordo com juízos tortos de seu tempo, muitas vezes foi posto à frente de
Menandro
186
, mas no consenso de todos os demais mereceu ser creditado
como o segundo.
73. A história, muitos
187
a escreveram de forma admirável, mas ninguém duvida
de que, de longe, dois que hão de ser colocados à frente dos demais. Suas
qualidades, ainda que diferentes entre si, alcançam glória quase idêntica.
Denso, preciso e exigente de si mesmo, assim é Tucídides
188
; doce, lúcido e
profuso, assim é Heródoto
189
. Aquele é melhor quanto aos sentimentos
arrebatadores, este quanto aos sentimentos tranquilizadores; aquele, nos
185
Filémon nasceu em Siracusa, mas obteve cidadania ateniense, (360-262);
186
Menandro de Athenas (342-290).
187
Cíc. De orat., 2, 55 e seg.
188
Tucídides (460-395 a.c.) autor de uma obra sobre a guerra do Peloponeso.
189
Heródoto (490-424 a.C.) escreveu sobre a guerra dos persas.
209
embates acalorados, este, nas conversações pacíficas; aquele, o primeiro, é
melhor no vigor da força, o outro, no encantamento.
74. Teopompo
190
é o que vem logo a seguir a estes. Ele, ainda que inferior aos
referidos, em se tratando de história, é, no entanto, muito semelhante a um
orador: em verdade, ele, antes de ter-se seduzido pela atividade de historiador,
foi, durante bom tempo, orador. Filisto
191
igualmente merece ser tomado à
parte dos que são considerados bons, dentre a multidão de autores que segue
após estes de que falei. Foi imitador de Tucídides, mas, ainda que bastante
mais fraco, de certa forma, brilhou um pouco mais pela clareza. Eforo
192
,
segundo a visão de Isócrates, carece de umas boas esporas
193
. O talento de
Clitarco
194
é apreciável, a sua credibilidade, porém, é suspeita.
75. Após longa passagem de tempo, nasceu Timagenes
195
. Ele é digno de
aprovação pelo que se segue: restaurou como nova glorificação a
engenhosidade do escrever histórias, nesse meio tempo interrompida.
Xenofonte o me cai no esquecimento, mas de ser considerado entre os
filósofos.
76. O que se segue é uma grande mão cheia de oradores. Para Atenas uma
única geração produziu, de uma vez, cerca de dez oradores
196
. Deles, de
190
Theopompo de Chios, nascido cerca de 378 a.C, escreveu uma história da Grécia
(Helênicas) aproximadamente da guerra do Peloponeso até 394 a.C, e uma história relativa ao
reino de Filipe da Macedônia (Filípicas). Seu mestre, Isócrates, incentivou-o a escrever história.
191
Filistus de Siracusa, nascido cerca de 430 a.C, escreveu uma história de Sicília. Cf. Cic. De
orat., II, 57.
192
Eforo de Cumas, cerca de. 340 a.C, escreveu uma história universal. Ele era aluno de
Isócrates.
193
Isto é, de esporadas, para que se torne mais ágil, mais veloz.
194
Clitarco de Megara escreveu uma história da Pérsia e de Alexandre, de que ele era
contemporâneo.
195
Timagenes, um Sírio do tempo de Augusto (fim do séc I a.C – início do séc. I d.C.), escreveu
uma história de Alexandre e de seus sucessores.
196
São eles: Antifone, Eócides, Lísias (aprox. 403-380), a ele Cícero se refere em Brut., 35;
110 - Isócrates (435-338), Iseu, Demósthenes, Eschines, Licurgo, Hypérides e Dinarco.
210
longe, Demóstenes
197
foi o príncipe e quase a própria lei da oratória. Tão
grande força, tão densas nele existem todas as coisas, como que tensionadas
por nervos próprios. Nada é afrouxado e a justa medida do dizer é tal que nele
se não pode encontrar nem o que falte, nem o que redunde.
77. Esquines
198
é muito cheio e muito profuso; tem aparências de
grandiosidade pelo fato de que é menos conciso: ele tem mais de carne do que
de musculatura. Doce, sobretudo, e perspicaz é Hipérides. No entanto está
melhor aparelhado para as causas menores, para não dizer, causas mais
insignificantes.
78. Lísias, que é anterior em geração a estes, é sutil e elegante: nada mais
perfeitamente do que ele fez se busque fazer, se o bastante seja fazer
aprender a um orador. Nada nele é vão, nada é rebuscado: assemelha-se mais
a uma fonte pura do que a um rio caudaloso.
79. Isócrates
199
é brilhante e bem preparado numa forma diferente de oratória:
mais adequado para a sala de exercícios do que para o combate,
propriamente. Perseguiu, não sem razão, todas as graças sedutoras do dizer.
Ele se havia, de fato, preparado para as salas de audição, não para as ações
do tribunal: hábil na invenção, cuidadoso do que é honesto, a tal ponto diligente
em sua composição que chegue a ser repreensível no seu excesso de zelo.
80. Eu, em se tratando dos autores, a respeito dos quais acabo de falar, nem
considero aquelas as suas únicas qualidades, conquanto me pareçam as
principais, nem julgo que os demais tenham sido de pouca relevância. Como
197
Demóstenes (384-322 a.C.). Princeps (príncipe) significa “aquele a quem cabe o direito de
tomar a palavra em primeiro lugar”. Inspirado em suas Filípicas, Cícero compôs os discursos
contra Marco Antônio, também denominados Filípicas.
198
Esquines (389-314). Adversário político de Demóstenes.
199
Isócrates (436-338 a.C.) é o orador que melhor caracteriza o estilo artificioso da oratória
epidíctica.
211
não haveria de confessar que o também famoso Demétrio Faléreo
200
, ainda
que tenham dito que ele primeiramente se inclinara para a eloquência, foi, por
sua vez, de muito talento e de notável dom da palavra? Diante disso, pois, é
digno de memória, que é quase o último dentre os áticos
201
que pode ser
considerado um orador. É justamente este autor aquele a quem Cícero prefere
a todos os outros
202
, quando se trata daquele tom comedido de linguagem a
que já me referi.
81. Dos filósofos, dos quais Cícero
203
confessa haver buscado muitíssimo de
sua eloquência, quem duvida de que Platão foi o mais importante, seja pela
sua agudez de raciocínio, seja por sua capacidade de eloquência, que é divina
e quase homérica? Ele se eleva muito acima da conversação linear a que os
gregos chamaram de “linguagem pedestre”, de tal maneira que a mim pareça
inspirado não pelo talento de um ser humano, mas por um oráculo délfico.
82. De que maneira eu poderia falar daquele charme não afetado de
Xenofonte
204
, mas que afetação nenhuma pode alcançar? As próprias Graças
parecem ter-lhe modelado a linguagem e é permitido, com toda justiça, aplicar-
se a ele o comentário que um autor de comédia antiga
205
fez a respeito de
Péricles: “nos lábios dele como que fez morada a deusa da persuasão”.
83. O que dizer da elegância dos demais Socráticos? O que dizer de
Aristóteles
206
, a respeito de quem fico em vida se o considero mais brilhante
200
Governou Atenas como auxiliar de Cassandro 317-307: fugiu depois para o Egito, onde
morreu em 283.
201
de Oratore, 2, 95; Orator, 92.
202
Trata-se propriamente do estilo médio. Ver Orator, 92.
203
Cf. Orator, 12.
204
Xenofonte (430-355 a.C.) escreveu sobre filosofia e história.
205
Eupolis, Fragmento 94 K.
206
"Doce" é o último epíteto a se aplicar aos trabalhos que sobreviveram de Arsitóteles. Mas
Dioniso de Halicarnasso e Cícero não os elogiam menos calorosamente, referindo-se,
212
em sua ciência das coisas, na imensa quantidade de seus escritos, na
suavidade de sua fala, na aguda perspicácia de suas descobertas ou na
variedade de seus trabalhos
207
? Em Teofrasto
208
, o brilho do falar é
verdadeiramente tão divino que se diz ter ele derivado daí o próprio nome!
84. Os velhos estóicos
209
trataram com menor indulgência a eloquência, mas
como pregaram as coisas honestas, foram de máximo valor, seja na forma de
raciocinar sobre, seja na maneira de provar tudo aquilo que haviam instituído.
No entanto, eles foram de muito mais acuidade em suas reflexões do que
magníficos em seus discursos, mesmo porque, em plena consciência, não se
afizeram a isto.
85. Cabe-nos a tarefa de tratar dos autores romanos, estabelecendo-se
idêntica ordenação. E assim, tal como entre eles Homero, entre nós Virgílio
terá dado o começo, o mais auspicioso. Sem sombra de dúvida, dentre todos
os poetas gregos e romanos que escreveram este gênero de poesia, ele é o
mais próximo de Homero.
86. Usarei das mesmas palavras que eu, ainda jovem, ouvi de Domício Afro
210
.
A mim, que o interrogava a respeito de quem mais de aproximasse de Homero,
ele disse: “o imediatamente seguinte é Virgílio, no entanto, ele está muito mais
perto do primeiro do que do terceiro”. Por Hércules, conquanto tenhamos de
ceder a passagem àquela Natureza Celestial e Imortal, Homero, no entanto,
indubitavelmente, a trabalhos que se perderam. (Este é o comentário feito na versão inglesa
veiculada pela internet, citada na bibliografia).
207
Cf. Cíc. Orator, 172.
208
Teofrasto, sucessor de Aristóteles como líder de sua escola, (322-287). Diógenes Laércio
(v.38) diz que seu nome verdadeiro era Tirtamo, mas que Aristóteles o chamou de Teofrasto
por causa das " qualidades divinas de seu estilo" (φράσις).
209
Zenão, Cleanto, Crisipo. (Séc III-II a.C.).
210
Domício Afro (morreu em. 59 d.C., sob Nero). Foi o orador principal do império de Tibério e
de seus sucessores.
213
muito de dedicação cuidadosa e diligência existiu em Virgílio pelo fato de que o
esforço de elaboração lhe foi muito mais exigido. O quanto, porém, somos
inferiores em relação aos momentos em que Homero se destaca, em idêntica,
mas inversa, proporção somos compensados por nossa harmoniosa
regularidade.
87. Todos os demais poetas o seguem, mas de longe. É, pois, assim que
Macro e Lucrécio
211
devem inquestionavelmente ser lidos, mas não
propriamente para que se adquira a expressividade da frase, ou seja, o corpo
da eloquência. Em verdade, são seletivos, cada um em sua temática, mas
enquanto um é mais simples, o outro é nada fácil. Varrão de Atax
212
alcançou
renome justamente na condição de intérprete
213
de obra alheia. Ele não deve
ser desprezado, mas, na verdade, para se desenvolver a capacidade oratória
ele oferece poucos recursos.
88. A Ênio
214
adoremos, tal como aos bosques que, pela sua idade, se fizeram
sagrados: neles os robustos e antigos carvalhos o mais ostentam tamanha
beleza, quanta revelam em sua dimensão de religiosidade. Existem ainda
outros autores muito perto disto de que falamos e também muito mais úteis.
Lascivo de verdade em seus versos heróicos, Ovídio é também excessivo
211
Macro, §56. Lucrécio (94-55 a.C.) Escreveu poesia didática De rerum natura, obra editada
por Cícero.
212
Varrão de Atax, um gaulês, (82-37 a.C) era especialmente famoso por causa da sua
tradução da Argonáutica de Apolônio de Rodes. Ele escreveu também poesia didática e épica
histórica.
213
Significa, propriamente, tradudor. A obra traduzida a que se faz referência é Fenômenos, de
Arato.
214
Ênio (239-169 a.C.) escreveu Annales, um poema épico, de que restam fragmentos. Sua
obra inclui tragédias, sátiras e poesia didática.
214
amante do próprio talento. Mesmo assim, porém, de ser elogiado em
algumas partes específicas
215
.
89. Cornélio Severo
216
, por sua vez, mesmo que melhor versificador do que
poeta, se tivesse o seu Bellum Siculum escrito inteiramente com a mesma
qualidade do primeiro livro, poderia reivindicar para si, com justa razão, o
segundo lugar. A morte prematura impediu Serrano
217
de alcançar sua
perfeição. No entanto, suas obras de juventude revelam como admiráveis, para
a idade que tinha, uma índole elevadíssima e uma predisposição para o
trabalho refinado de escrita.
90. Há pouco perdemos muito com a morte de Valério Flaco
218
. Foi veemente e
poético o talento de Saleu Basso
219
, mas ele não pôde amadurecer, pela
velhice, esse talento. Rabirio
220
e Pedo
221
não são indignos de serem
reconhecidos, se se dispuser de tempo. Lucano
222
é ardente, arrebatado e
notável em suas reflexões e, para dizer o que sinto, mais pelos oradores do
que pelos poetas há de ser imitado.
215
Segundo interpreta Calcante (1977), o termo “lascivo” (lasciuus), neste contexto significa
que Ovídio se utiliza de elementos elegíacos na sua obra Metamorfoses, aqui indicada pela
expressão “versos heróicos”. (pág.1689).
216
Amigo e contemporâneo de Ovídio (Pont. 4, 2). Um fragmento considerável foi preservado
por Sêneca Suas. vi.26. A guerra da Sicília foi a guerra com Sexto Pompeu (38-36 a.C.) e
formou, provavelmente, uma grande parte da obra sobre a guerra civil (Bellum Siculum). Os
fragmentos sobreviventes tratam da morte de Cícero. O primus liber acima referido pode ter
sido o primeiro livro dessa extensa obra.
217
Nada, a não ser o nome desse poeta, é conhecido. Há referência a um “Serrano” em
Juvenal 7,80, mas não se pode afirmar que seja o mesmo de quem está falando Quintiliano.
218
Valério Flaco (séc 1 dC.) é autor de uma Argonáutica, obra incompleta.
219
Nada desse poeta é conhecido, a não ser que ele é altamente elogiado por Tácito em seu
Dialogus; era patrocinado por Vespasiano.
220
Um contemporâneo de Ovídio. Acredita-se que é o autor de um fragmento sobre a batalha
de Actium, encontrado em Herculano.
221
Caio Albinovano Pedo escreveu um poema sobre uma viagem de Germânico ao norte da
Germânia. Um fragmento foi preservado por Sêneca: Suas., 1, 14.
222
Lucano (39-65 dC.), espanhol de origem, neto de Sêneca. Escreveu a Farsália (sobre a
guerra entre César e Pompeu).
215
91. Nomeadamente relacionamos estes autores porque o cuidado das coisas
do mundo desviou Germânico Augusto
223
das atividades literárias e porque aos
deuses pareceu ser pouco ele ser o maior dos poetas. No entanto, o que é
mais sublime, mais sábio, o que, enfim, é mais avançado além de todas as
medidas, do que as obras próprias, às quais, ainda jovem, se havia entregado,
depois de abrir mão do poder imperial? Quem poderia cantar melhor as guerras
do que exatamente aquele que as fez? A quem as deusas que presidem a
estes estudos ouviriam mais de perto? A quem Minerva, sua divindade familiar,
revelaria, abertamente todas as suas artes?
92. Estas coisas mais completamente os tempos futuros dirão, pois neste
momento a sua glória literária está levemente obscurecida pelo brilho de suas
outras virtudes. A nós que cultuamos os ritos das letras, nos permitirás, ó
César, que não passemos em silêncio e que o testemunhemos através de um
verso, o mais acertado, de Virgílio: “entre os louros da vitória, a ti a hera
serpenteante enredará”
224
.
93. Na elegia desafiamos até mesmo os gregos. Deste gênero, a mim me
parece Tibulo o autor mais enxuto e maximamente elegante. os que
preferem Propércio. Ovídio é mais lascivo que os dois, da mesma forma que
Galo
225
é mais severo. A tira, sem vida, é inteiramente nossa. Nela, como
223
Germânico Augusto é Domiciano, imperador entre 81-96 d,C. Ele se declarava filho de
Minerva. Duvida-se se ele, de fato, tenha escrito qualquer poema, embora, segundo Valério
Flaco (1,12), ele teria escrito um poema sobre a guerra dos judeus. A expressão em latim
donato imperio significaria o seu gesto de entregar o império ao pai e ao irmão. A referência de
Quintiliano pode ser uma homenagem, uma vez que ele se incumbia da educação dos netos
desse imperador. Outras referências em Tácito Hist., 4,86, Suetônio. Dom., 2 e 20
224
Ecl., 8,13.
225
Tibulo (55-19 a.C.), Propécio (49-16 a.C.), Ovídio (43 a.C. 18 d.C.), Cornélio Galo (69-26
a.C.), o amigo de Virgílio, e, em seu tempo, o mais destacado escritor de elegias em Roma. Cf.
§ 56.
216
o primeiro, Lucílio
226
alcançou insigne glória. Ele tem até hoje admiradores tão
devotados que não hesitam em colocá-lo à frente não só dos autores do
gênero, mas de todos os outros poetas.
94. Eu mesmo discordo tanto destes quanto de Horácio
227
, que considera
Lucílio um “lodo a fluir lento” e dele “existirem coisas que se podem suprimir”.
De verdade, nele é admirável a erudição, a liberdade e, em consequência, a
aspereza de linguagem e a mordacidade abundante. Muito mais enxuto e mais
puro, e se não me deslizo em razão do amor que tenho por ele, Horácio é o
primeiro. Pérsio
228
, ainda que por um único livro, foi de grande mérito e de
glória verdadeira. Existem ainda hoje autores, que são notáveis e que, um dia,
serão renomados.
95. Existiu ainda, bem antes, um outro gênero de sátira, mas que se
caracterizava por ser mais do que um misto de metros variados. Terêncio
Varrão
229
, o homem mais erudito dos romanos, foi quem o fundou. Ele compôs
diversos livros, sapientíssimos. Ele foi o mais versado na língua latina e o maior
conhecedor de toda a antiguidade não em relação às coisas gregas, mas
também no que diz respeito às nossas coisas. Entretanto, ele de ser melhor
relacionado com a ciência em geral do que especificamente com a eloquência.
96. O jambo não foi, para dizer a verdade, praticado pelos romanos como uma
forma de composição com identidade própria, mas foi posto como parte, no
226
Lucílio (morto em 102 a.C.) escreveu cerca de 30 livros de sátiras em metros variados;
restam 1300 versos.
227
Sat., I, 4, 11.
228
Aulo Persio Flaco (34-62 d.C.). Escreveu seis sátiras, publicadas postumamente por Césio
Basso. Cf. § 96.
229
Terêncio Varrão (116-27 a.C.). A referência é às suas Sátiras Menipeias, de que somente
sobrevivem alguns fragmentos. São, no entanto, imitações do trabalho do grego Menipo de
Gadara.
217
meio de outras medidas de verso
230
. O seu azedume pode ser encontrado em
Catulo, Bibáculo
231
e Horácio, mesmo que neste último o epodo
232
tenha sido
intercalado aos jambos. Mas, dos líricos, o mesmo Horácio é praticamente o
único digno de ser lido. Sem dúvida alguma ele se sobreleva, em determinados
momentos, cheio de encantamento e graça, variado nas figuras, fecundamente
ousado nas palavras. Se se queira acrescentar mais algum, este é Césio
Basso
233
, que, não faz muito tempo, nossos olhos ainda viam, no entanto, o
talento dos que hoje vivem, de longe, o precede.
97. Os escritores de tragédia Ácio e Pacúvio
234
são, dentre os mais antigos, os
mais brilhantes na gravidade de suas reflexões, no peso de suas palavras e na
dignidade de seus personagens. O brilho que em outros existia e a última
demão, com que se fazem polidas as obras, parecem ter faltado à época deles,
não a eles próprios. Muito de vigor se atribui a Ácio, mas aqueles que se
pretendem sábios querem que Pacúvio seja visto como ainda mais sábio.
98. O Thiestes de Vário
235
pode-se comparar a qualquer que seja das tragédias
gregas. A Medeia de Ovídio parece-me mostrar o quanto aquele homem teria
podido ser superior, se tivesse preferido ser imperador do próprio talento, ao
invés de tratá-lo com indulgência. Daqueles que tenho podido ver, Pompônio
Segundo
236
é, de longe, o primeiro. A este os antigos julgavam, de fato, pouco
230
A significação do texto latino não é muito clara. As palavras podem significar 1) esses
escritores não se limitaram ao Jambo; 2) que o jambo alterna com outros metros
(provavelmente a alternância entre trímetros e dímetro); cf. epodos abaixo.
231
M. Fúro Bibáculo, contemporâneo de Catulo, e escritor de similar invectiva contra os
partidários de César.
232
Trata-se da breve linha jâmbica interposta entre os trímetros.
233
Amigo de Pérsio, a quem este dedicou a sua sexta sátira Cf. § 94. Compôs um tratado de
métrica, dedicado a Nero.
234
Ácio (170-90 a.C.), Pacúvio (220-132 a.C.). Horácio refere-se a este como doctus” : Epist.,
2,1,55.
235
L. Vário Rufo (64 a.C.- 9 d.C.), do círculo de Virgílio e Horácio, juntamente com Tuca foi o
editor da Eneida; compôs épicos e uma única tragédia.
236
Pompônio Segundo, morreu em 60 d.C.; escreveu uma tragédia intitulada Aeneas.
218
trágico, mas confessavam que ele tinha a primazia pela erudição e pelo
brilhantismo.
99. Na comédia nós claudicamos, de todo jeito, ainda que Varrão diga,
segundo sentença de Élio Estilão
237
, que as Musas haveriam de ter usado a
linguagem plautina
238
, se quisessem falar latim; ainda que os antigos tenham
exaltado Cecílio
239
com todos os elogios; ainda que escritos de Terêncio sejam
atribuídos a Cipião Africano esses escritos são os mais elegantes no gênero
e até mesmo haveriam de ter muito mais de encantamento, se tivessem
permanecido nos limites dos versos trímetros.
100. Mal conseguimos lançar tênue sombra <do que foi a comédia grega >,
mesmo porque a própria língua romana não me pareça receber aquela graça
do sol concedida aos áticos. Em verdade, nem mesmo os gregos a puderam
ter em qualquer outra variante da língua. Afrânio foi excelente na togata
240
:
oxalá, réu confesso dos próprios costumes, ele não tivesse conspurcado as
intrigas de suas peças com
pederastias abjetas.
101. Mas a história não terá feito concessões apenas aos gregos. Muito
certamente nem eu teria qualquer receio de contrapor Salústio a Tucídides,
nem mesmo Tucídides se indignaria pelo fato de a si ser igualado Tito Lívio
241
.
Este, em sua expressão narrativa, é de admirável encanto, de brilho fulgurante;
em seu desempenho nas assembleias públicas é eloquente, muito além do que
237
O primeiro filolólgo romano (144-70 a.C). Foi professor de Cícero e Varrão. Dedicou-se às
obras de Plauto e comentou o Carmen Saliare.
238
Tito Macio Plauto (250-184), o mais produtivo e consagrado autor latino de comédias. Dele
restam 21 peças consideradas autênticas.
239
Cecílio Estácio (219-166 a.C.); Lúcio Afrânio (nasceu aprox. 150 a.C.). De Cecílio e Afrânio
restam apenas fragmentos. Afrânio escreveu comédias de temática romana, mas tendo por
modelo o grego Menandro. PúblioTerêncio Afro (185-159 a.C.), comediógrafo de refinado
senso estético, de quem restam 6 peças.
240
Gênero de comédia latina, que pretendia substituir a comédia imitada dos gregos.
241
Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.) escreveu Ab Vrbe Condita.
219
se pode descrever. Assim, tudo que é dito vem na medida certa dos fatos e das
personagens. Quanto aos afetos, sobretudo aqueles que são os mais doces,
ninguém, para dizer com sobriedade, dentre os historiadores melhor os
sublimou.
102. Por estas razões, ele alcançou, ainda que por virtudes diferentes, aquela
veloz agilidade da escrita de Salústio, a qual nunca de morrer. Em verdade,
me parece que Servílio Noniano
242
disse, de maneira muito pertinente, que eles
são pares, são muito mais do que semelhantes. Já pudemos ouvir, em pessoa,
este mesmo Servílio, homem brilhante no talento e substancioso em suas
reflexões, menos conciso, no entanto, do que exige a autoridade da história.
103. Aufídio Basso
243
, que pouco o precedia na idade, superou, de modo
destacado no gênero, essa autoridade, sobretudo em seus livros sobre a
guerra da Germânia. Digno de aprovação em tudo, ele foi, no entanto, menor,
consideradas, em determinadas passagens, as suas potencialidades.
104. Ainda vive e honra a glória do nosso tempo um homem digno de ficar na
memória
244
. Este terá, um dia, seu renome, assim agora se entende. Tem seus
admiradores, não imerecidamente, a independência de Cremúcio
245
, embora
tenham sido suprimidas todas as partes que, diz-se, o haviam prejudicado. No
entanto, pode-se depreender, mesmo no que dele resta, um espírito
sumamente elevado e reflexões ousadas. Existem ainda outros bons
242
Amigo de Pérsio e famoso como orador, recitador e historiador; morreu em 60 d.C.
243
Ele escreveu uma história do império, que começaria a partir da época de César. O trabalho
sobre a guerra da Germânia era, provavelmente, uma obra à parte.
244
Provavelmente, Fábio Rústico, citado em Tác. Agr., 10. Certamente esta passagem não se
refere aTácito, pois ele seria ainda muito jovem a esse tempo, para ser mencionado com tais
palavras.
245
Cremúcio Cordo escreveu uma história sobre as guerras civis e sobre reinado de Augusto.
Ele foi acusado por causa do seu elogio a Bruto e Cássio; cometeu suicídio em 25. d.C. Foi ele
quem chamou Cássio "o último de todos os romanos."
220
escritores, mas estamos fazendo um diagnóstico de gênero, não espremendo
bibliotecas.
105. Os oradores nossos podem especialmente fazer a eloquência latina em
parâmetros de igualdade com a grega. Sem nenhuma hesitação eu oporia
Cícero a qualquer um dos oradores deles. Não ignoro a tamanha reação que
eu suscite contra mim, sobretudo porque o esteja em questão isto: que,
neste momento
246
, eu o compare a Demóstentes. Em verdade, nem julgo isso
ser pertinente, pois considero que Demóstenes, antes de todos, de ser lido
ou, de preferência, guardado de cor.
106. Particularmente avalio que as virtudes deles, em sua grande maioria, são
semelhantes, ou seja, a prudência
247
, a organização, os métodos de divisão, de
preparação e de comprovação, enfim, todos aqueles elementos que dizem
respeito à invenção. No desenrolar da fala existe alguma diferença: aquele,
Demóstenes, é mais denso, este, Cícero, é mais copioso; aquele tece suas
conclusões de maneira mais estrita, este com mais amplidão; aquele combate
sempre com o aguilhão, este, reiteradamente, a toda carga; àquele nada se
pode suprimir, a este nada se pode acrescentar. Naquele um zelo mais
racionalizado, neste sobressaem-se os dotes naturais.
107. Nós superamos tanto na mordaz perspicácia quanto no provocar a
comiseração, estas o as duas qualidades que mais têm valia, quando se
trata dos movimentos da alma. Muito provavelmente o costume específico de
sua comunidade privou
248
Demóstenes das perorações, mas também a s a
246
Ver XII, 1, 14 e seg.; também XII, 10, 12 e seg.
247
O termo latino é consilium, que, no orador, indica a capacidade de definir as estratégias de
defesa.
248
Quintiliano se refere a uma suposta lei, em Atenas, que proibia apelos à emoção.
221
própria natureza interna da língua latina
249
nos permitiu muito menos aquelas
qualidades que os áticos tanto admiram. No que diz respeito a cartas - que em
verdade existem escritas deles dois - ou a diálogos - aquele não escreveu um
sequer - nenhuma rivalização existe.
108 que ceder, com toda certeza, nisto: Demóstenes existiu primeiro e em
grande parte tornou Cícero da grandeza que este é. A mim seguramente
parece que Marco Túlio, tendo-se entregue de todo à imitação dos gregos,
conseguiu externar a força de Demóstenes, a copiosidade de Platão, o
encantamento de Isócrates.
109. Não apenas alcançou, pelo estudo, o que houve de melhor em cada um
destes autores, mas ele, a fecundidade sagrada de um gênio que não de
morrer, tirou de si mesmo quase todas, ou melhor, todas as excelências. Não
propriamente “as chuvas do céu”, como diz Píndaro
250
, “ele recolhe, mas
transborda em vivo turbilhão”, pois, nascido como dom da providência, nele a
própria eloquência experimentaria todas as suas forças.
110. E assim, pois, quem pode fazer aprender mais diligentemente, mover com
mais veemência? Para quem, um dia, existiu tamanha capacidade de
encantamento? Até mesmo as coisas que ele faz sair com violência o a
impressão de que as obtém pela súplica; quando, por acaso, pela sua
competência ele arraste um juiz para uma decisão contrária, este parece não
ser levado à força, mas parece secundá-lo.
249
Quintiliano havia, no §100, manifestado essa preocupação com a diferença entre as duas
línguas, o que será retomado em X, 5, 3 e XII, 10, 27
250
Píndaro, Olímpicas, 11, 1 e seg.
222
111. Em tudo o que ele diz tão grande autoridade, que não concordar é
constrangedor. Essa autoridade carrega não o empenho de um advogado
251
,
mas a credibilidade de um testemunho ou de um juiz. É certo que todas essas
qualidades, das quais uma única pode ser alcançada por um outro qualquer
com intensíssima dedicação, fluem naturalmente para ele, enquanto que um
discurso, do que nada se ouviu de mais belo, leva a facilidade mais fecunda.
112. Diante de tudo isso, merecidamente, por todos os homens de seu tempo,
se disse que ele reinou nos tribunais. Junto dos que vieram depois dele,
aconteceu que CICERO não mais seja considerado o nome de um homem,
mas o da eloquência. Que o tenhamos diante dos olhos; nele nos seja proposto
o exemplo; que tenha a certeza de haver feito progressos aquele a quem
Cícero tiver agradado.
113. Em Asínio Polião
252
é digna de nota a invenção, supremo o cuidado de
elaboração, a tal ponto que a alguns pareça excessivo; nele há bastante
capacidade de elaborar um julgamento, como também bastante de vivacidade
de espírito. Mas anda longe do brilho e do encantamento de Cícero, a tanto
que possa parecer anterior a este em uma geração. À sua vez, Messala
253
é
brilhante e claro e, de certa maneira, naquilo que diz destaca-se a sua nobreza;
no entanto, é menos vigoroso.
114. Nenhum outro dentre os romanos, a não ser Caio César
254
, se ele tivesse
podido dedicar-se unicamente ao fórum, poderia ser relacionado como rival de
251
No período republicano, aduocatus era um amigo que dava assistência na formulação de
acordos no decorrer de um processo; no império se equipara a um patronus.
252
Asínio Polião (75 a.C.- 4 d.C.), o amigo de Virgílio, distinguido como poeta, historiador e
orador.
253
Marco Valério Messala Corvino (64 a.C- 8 d.C.), o amigo de Tibulo e distinguido como
orador. Foi cônsul em 51 a.C.
254
Sobre a eloquência de César: Cíc. Brut., 251-262; Suetônio. Caes., 55.
223
Cícero. Nele há tão grande vigor, tão refinada sutileza, tão ágil arrebatamento
que pareça ter ele escrito os seus relatos com disposição idêntica àquela com
que fez as suas guerras. Enfeita estas maravilhas todas a elegância de uma
linguagem, à qual se dedicou ardorosamente.
115. em Célio
255
um talento grandioso e, sobretudo quando atua na
acusação, um notável espírito de urbanidade. Foi um homem merecedor de
que lhe tivessem tocado uma mente amadurecida e uma vida mais longa.
Encontrei quem antepusesse Calvo
256
a todos os outros; encontrei quem fosse
da mesma opinião que Cícero quanto ao fato de Calvo haver perdido a sua
verdadeira identidade ao estabelecer contra si próprio um excessivo rigor
crítico. Mas o seu discurso é sagrado e grave, sofridamente elaborado e, com
frequência, veemente também. É imitador dos áticos e sua morte repentina foi-
lhe como uma injúria, se consideramos que ele viveu como quem haveria de
acrescentar a si, e não como quem haveria de ser detrator de si mesmo.
116. Também Sérvio Sulpício
257
mereceu, com toda justiça, insigne fama pelos
seus três discursos. Muitas coisas dignas de imitação poderá oferecer ssio
Severo
258
, se lido com senso crítico. Ele haveria de ser colocado entre os
principais, se tivesse acrescentado às demais qualidades o colorido e a
gravidade do discurso.
117. Nele há muitíssimo de talento e, além disso, uma admirável agudez,
senso de urbanidade e linguagem de conversação, mas cedeu mais à invectiva
255
M. Célio Rufo (88-48 a.C.), defendido por Cícero e citado em Brut., 273. Assassinado em 48
a.C, cf. IV, 2, 123; VIII, 6, 53.
256
Gaio Licínio Calvo (82-47 a.C.) fez parte do movimento poetae noui. Aparece referido em
Cíc. Brut., 283.
257
Sérvio Sulpício Rufo, o maior jurista da época de Cícero, cf: De orat., I, 132 e III, 46,; Brut.,
106, 203, 306.
258
Cássio Severo (morreu em 34 d.C.) havia sido banido por Augusto por conta de seus
escritos insultuosos.
224
mal humorada do que à deliberação judiciosa. Além de tudo isso, a tal ponto
são amargos os seus ditos mordazes, que, muito frequentemente, essa
amargura se torna motivo de riso.
118. Existem ainda muitos outros de grande capacidade expressiva, mas é um
longo percurso descrevê-los todos. Dentre os que tenho conhecido Domício
Afro e Júlio Africano
259
, de longe, são os primeiríssimos. Aquele de ser
colocado à frente na arte da palavra e na oratória como um todo. Pode-se, sem
temor, relacioná-lo no número dos antigos. Este é mais arrebatador, mas
exagerado no cuidado das palavras; quase sempre muito delongado nas suas
estruturas de frase e pouco comedido nas correlações metafóricas.
119. Continuaram a existir talentos notáveis até pouco tempo. É assim que
se pode considerar Tracalo
260
, que foi em quase tudo sublime e bastante claro.
Acreditar-se-ia ele pretender a perfeição, no entanto, foi maior quando era
ouvido. Na verdade a plenitude de sua voz era tamanha que nenhuma igual eu
conheci; a sua dicção amesmo poderia resistir a encenações teatrais e sua
elegância, enfim, tudo que diz respeito a qualidades exteriores lhe veio em
profusão. Víbio Crispo
261
foi harmonioso e agradável; poder-se-ia dizer nascido
para a deleitação, no entanto, foi melhor nas causas particulares do que nos
assuntos públicos.
120. Júlio Segundo
262
, se uma idade mais longa lhe tivesse sido concedida,
haveria de ter junto aos pósteros um nome de orador seguramente claríssimo.
Ele teria acrescentado, de fato vinha acrescentado, às suas outras
259
Júlio Africano, um gaulês que se tornou famoso no reinado de Nero. Cf. Tác. Dial., 15.
260
M. Galério Tracalo (cônsul em 68 d.C.). Cf. XII, 5, 5.
261
Víbio Crispo, um delator no reinado de Nero, morreu aproximadamente em 90 d.C., depois
de ter conquistado uma grande fortuna. Cf.
Tác. Hist., 2, 10; Dial. 8.
262
Júlio Segundo (morreu em 88 d.C.), um orador distinguido no reinado de Vespasiano. Um
dos interlocutores no Dialogus de Tácito, de quem havia sido mestre.
225
qualidades tudo aquilo a que se pode aspirar, ou seja, que ele fosse muito mais
combativo; que volvesse o seu olhar, com mais frequência, da elocução para o
refinamento das ideias.
121. Interceptado na vida, quando ainda era produtivo, mesmo assim ele pode
reivindicar uma posição significativa, tal é sua capacidade de falar, o grande
a graça em desenvolver o que ele queira dizer, tão límpida, leve e encantadora
a natureza de seu discurso, tão perfeita a adequação daquelas palavras que
ele emprega por metáforas, tão pertinente a significância naquelas que ele
busca de modo ousado.
122. Terão aqueles que hão de escrever depois de nós acerca dos oradores,
verdadeiramente um grande motivo de elogiar os que neste momento se
encontram em atividade: há, com certeza, nestes em que hoje o Fórum se
ilustra, os mais elevados talentos. De fato, como advogados consumados
eles não somente podem rivalizar-se com os antigos, mas também a
inteligência criativa dos jovens que tendem para as coisas superiores os imita e
os segue.
123. que se dizer ainda a respeito dos que escreveram sobre filosofia.
Neste gênero o pouquíssimos os que aaqui as letras romanas produziram
como eloquentes. O mesmo Marco Túlio, que se sobressaiu em todos os
campos de atuação, também neste gênero pode ser considerado um rival de
Platão. Verdadeiramente destacado e muito mais avançado que em seus
226
discursos, Bruto
263
pôde dar sustentação ao peso de suas ideias. Pode-se
perceber que ele sente o que diz.
124. Cornélio Celso
264
, um seguidor dos Séxtios
265
, escreveu, não do modo
resumido, muitas coisas. Estas não sem os devidos trato e brilho. Plauto
266
,
dentre os estóicos, é útil para o conhecimento das ideias. Dentre os epicuristas,
Cácio
267
é leve, pelo menos, mas é um autor não desagradável.
125. Deliberadamente deixei Sêneca à parte de todo gênero de expressão
linguística, em decorrência da opinião falsamente divulgada, segundo a qual se
acredita que eu o queira condenar e até mesmo tê-lo por detestado. Isto
acabou acontecendo a mim, na circunstância em que me lançava, com toda
força, a chamar para um julgamento mais severo um gênero de discurso
corrompido e aviltado por todos os tipos de defeitos. Naquele momento quase
que exclusivamente Sêneca esteve nas mãos dos adolescentes.
126. Eu não me esforçava completamente para lançá-lo de todo fora, mas não
consentia que ele fosse colocado à frente de outros mais vigorosos, aos quais
ele não desistia de atacar. Ele tinha consciência de que a forma de eles
escreverem era diferente da sua. Sendo assim, ele não confiava que pudesse,
pela própria maneira de dizer, agradar aos leitores a quem esses outros
autores agradavam. Os adolescentes, porém, amavam-no mais do que o
263
Bruto, omitido da lista de oradores de Quintiliano, era um seguidor das escolas Estóica e
Acadêmica. Ele é conhecido por haver escrito trabalhos sobre a Virtude, a Moral e sobre a
Paciência. Cf. Tác. Dial., 21
264
Um escritor enciclopedista, viveu sob Augusto e Tibério. Seu tratado sobre medicina ainda
existe. Ele escreveu também sobre oratória, e, não raramente, é citado por Quintiliano.
265
Os Séxtios, pai e filho, foram filósofos pitagóricos, do tempo de Augusto; tinham também
certa tendência para o estoicismo.
266
Nada se sabe a respeito desse escritor, que aparece referido por Quintiliano também em II,
14, 2, e III, 6, 23.
267
Um contemporâneo de Cícero, que fala sobre este com certo tom de desprezo. Ele escreveu
um De rerum natura e um De summo bono.
227
imitavam; dele andavam mais abaixo, na mesma proporção que ele descia dos
antigos.
127. Haveria de ser desejável que os jovens se tornassem iguais, ou pelo
menos próximos daquele homem. Mas ele agradava por causa unicamente de
seus vícios e somente a estes cada um se voltava para modelar aquilo de que
fosse capaz. Em consequência disso, como contassem vantagem de dizer do
mesmo modo, difamavam Sêneca.
128. Dele existiram, por outro lado, muitas e grandes virtudes, um talento
produtivo e copioso, muitíssimo de dedicação, profunda ciência das coisas.
Quanto a esta ciência, no entanto, foi levado a enganos por aqueles a quem
ele confiava a investigação de determinados temas.
129. Ele tratou também de quase tudo que fosse matéria de estudo. De fato,
circulam dele discursos, poemas, cartas e diálogos
268
. Na filosofia foi pouco
diligente, mas foi um singular censor dos cios. Nele o muitos e brilhantes
os ditos sentenciosos, mas na sua forma de expor a maior parte é corrompida e
de certo modo extremamente perniciosa, pois eles se inundam de vícios que
docemente seduzem.
130. Seria desejável ele ter dito, com o próprio talento, o que disse, mas com o
discernimento alheio. Com toda certeza, se tivesse desprezado umas tantas
coisas, se não tivesse tido a concupiscência das coisas depravadas, se o
tivesse amado tudo que vinha de si, se não tivesse quebrado o peso de
unidade das ideias com frases as mais diminutas, ele seria aprovado, antes
pelo consenso dos eruditos do que pela paixão de meninos.
268
Os discursos de Sêneca se perderam. Dion Cássio fala sobre a oratória de Sêneca. Cf.
59,19,7.
228
131. Exatamente assim, cabe àqueles vigorosos, que tenham sido
fortalecidos por um gênero de expressão mais severo, a obrigação de o ler,
pelo fato de que ele pode fazê-los exercitar o juízo em uma ou outra direção.
Muitas coisas, como eu já disse, existem nele que devem ser aprovadas,
muitas que o de ser admiradas, porém que exista o cuidado de escolher o
que está na medida. Oxalá ele próprio assim tivesse feito. Aquela natureza foi
digna de que quisesse as coisas melhores, pois foi capaz de efetivar o que ele
quis.
229
II – Sobre a imitação
1.Destes e dos demais autores que são dignos de ler, há uma imensa
quantidade de palavras que se deve absorver, uma variedade de figuras e
modelos de composição e, enfim, um espírito que deve ser encaminhado como
exemplo de todas as virtudes. E não há que duvidar de que uma grande parte
da arte esteja circunscrita à imitação. Com efeito, como o inventar acontece
primeiro e é o mais importante, assim, é proveitoso secundar aquelas coisas
que foram bem inventadas.
2. Além disso, consta, como de ordem natural da vida de cada um, que
queiramos fazer, nós mesmos, tudo aquilo que aprovamos nos outros. Assim,
os meninos acompanham os sulcos das letras, para que se adquira a
habilidade do escrever; de maneira semelhante os sicos imitam a voz de
seus docentes, os pintores reproduzem as obras dos antecessores, os
camponeses tomam para exemplo o cultivo comprovado pela experiência,
enfim, constatamos que o começo de toda disciplina se forma segundo um
modelo estabelecido anteriormente a si.
3. Por Hércules, é inevitável que ou sejamos semelhantes aos bons ou
dessemelhantes deles. O semelhante, a natureza raramente o produz, mas a
imitação frequentemente o faz. Mas este mesmo procedimento de imitação,
que torna para nós a razão de todas as coisas tanto mais fácil do que foi para
aqueles que nada tinham a que pudessem acompanhar, será prejudicial, a não
ser que assumido cautelosamente e com discernimento.
4. Antes de tudo, a imitação por si só não é suficiente, mesmo porque é próprio
do espírito preguiçoso estar limitado ao que tenha sido inventado pelos outros.
230
Como teriam sido aqueles tempos, que existiram sem modelos, se os homens
julgassem nada haver que fazer a si, ou pensar, senão aquilo de que
tivessem conhecimento? Seguramente nada teria sido inventado.
5. Por que seria algo o nefasto descobrir por s próprios alguma coisa que
anteriormente o tenha existido? Não é verdade que os homens primitivos
foram levados, pela natureza da mente apenas, a que produzissem tantas
coisas? Quanto a nós, não é certo que nos sintamos motivados a pesquisar,
pela própria razão de sabermos que somente aqueles que fizeram
investigações puderam, com certeza, descobrir alguma coisa?
6. Como aqueles, que não tiveram nenhum mestre do que quer que seja, e,
mesmo assim, tenham legado à posteridade muitas coisas, o é verdade que
a nós o uso de umas coisas não nos terá podido ser de serventia para que
outras sejam elaboradas? Em outras palavras, nada teremos senão o que vem
de benefício alheio? Nesta linha de atuação muitos pintores se esforçam
somente em saber copiar quadros com o auxílio de medidas e linhas
269
.
7. Igualmente é vergonhoso estar limitado a reproduzir o que se copia. Ainda
outra vez, o que haveria de ter sido se ninguém tivesse realizado além daquilo
de quem se copiava? Nos poetas nada teríamos acima de Lívio Andronico
270
;
nada de história além dos Anais dos pontífices
271
; ainda estaríamos navegando
em rudimentares embarcações; não haveria pintura, a não ser aquela que
269
A referência é ao procedimento de dividir, em quadrados, a superfície da obra a ser copiada
e, em mesmo número de quadrados, a do material para onde deverá ser transferida a figura.
270
Lívio Andronico, um escravo procedente de Tarento, que chegou em Roma por volta de 272
a.C. Foi o fundador da poesia latina: traduziu para o latim a Odisseia e produziu as primeiras
comédias e tragédias latinas, compostas em metros gregos.
271
Os Anais Máximos, guardados pelo Pontífice Máximo, continham a lista dos cônsules e um
breve sumário dos eventos de cada consulado.
231
circunscrevesse as linhas de pontos definidos da sombra que os corpos ao sol
tivessem projetado.
8. Acresça-se que se se analisarem detalhadamente todas as coisas, nenhuma
arte permaneceu identicamente tal como foi inventada, nem ficou estacionária
em sua forma inicial. Não por acaso, condenamos, de modo brutal, o nosso
tempo pelo crime desta infelicidade, a saber, agora nada pode crescer:
verdadeiramente nada cresce por força apenas da imitação.
9. Na verdade, se não é permitido acrescentar coisa alguma aos antecessores,
em que medida podemos esperar o orador perfeito, considerando-se que,
dentre aqueles que até agora vimos como os maiores, nenhum tenha sido
encontrado no qual nada ou deixe a desejar ou seja repreendido. Amesmo
aqueles que não estejam em busca de perfeição devem competir muito mais
do que simplesmente seguir acompanhando.
10. De fato, quem assim age para ser superior, provavelmente ainda que não
ultrapasse, pelo menos se igualará. Ninguém poderá igualar-se àquele cujas
pegadas se pensa deverem ser reimpressas: necessariamente acontece que
seja sempre posterior aquele que é o seguinte. Acresça-se também que
muitíssimas vezes é mais fácil fazer mais do que fazer igual. A semelhança
encontra tamanhas dificuldades que nem mesmo a própria natureza tenha sido
capaz de fazer com que coisas muitíssimo semelhantes definitivamente não
pareçam o iguais que não possam ser distinguidas por algum traço
discriminante.
11. Acresça-se, ainda, que qualquer coisa que seja feita à semelhança de uma
outra necessariamente seja inferior àquela de que é imitação, por exemplo, a
sombra em relação ao corpo, a imagem de um rosto e o próprio rosto, o
232
desempenho de um ator e os sentimentos em sua realidade verdadeira. O
mesmo acontece em relação aos discursos. Na realidade, a tudo aquilo que
assumimos por modelo sustém uma originalidade e uma força verdadeiras;
contrariamente, toda imitação é um produto resultante e se ajusta a um
propósito alheio.
12. Sendo assim, acontece que as declamações tenham menos de sangue e
de vigor que os discursos, pois nestes existe matéria original; naquelas a
matéria é fictícia. Acrescente-se que todas aquelas qualidades que em um
orador são as mais importantes, estas o são imitáveis, quais sejam, o
talento, a invenção, o vigor, a facilidade e tudo aquilo que não se transmite pelo
ensinamento teórico.
13. É por isso que diversas pessoas, uma vez que pinçaram ou umas tantas
palavras de discursos, ou agrupamentos rítmicos invariáveis de uma
composição, julgam ter admiravelmente imitado aquilo leram. Acontece, no
entanto, que as palavras caiam em desuso, com o passar do tempo, ou se
tornem ainda mais expressivas, que no uso esteja a mais definitiva de suas
regras
272
. Além disso, as palavras não o, por natureza, nem boas nem s
(elas, de fato, não são mais do que sons); no entanto produzem seu valor
conforme sejam colocadas com ou sem adequação e propriedade. Acrescente-
se ainda, que se a composição linguística é compatível com o assunto, ela, por
isso mesmo, pode ser agradabilíssima, tendo em conta a sua natureza variável.
14. Em vista disso, que se examinar tudo acerca desta parte dos estudos
com o mais acurado discernimento. Primeiramente examinemos aqueles a
quem se deve imitar: verifica-se que são muitos os tenham cobiçado a
272
Cf. Horácio Ars, 60-62; 70-71.
233
semelhança de um qualquer, sejam esses os piores e os mais corrompidos.
Depois, nos próprios autores que tenhamos escolhido é preciso buscar o que
exista que nos há de fazer, pela imitação, eficientes.
15. Na realidade, também nos grandes autores acontecem coisas viciosas e
que são censuradas pelos sábios e também reciprocamente entre os próprios
autores. Oxalá aqueles que tanto imitam fossem capazes de dizer de modo
melhor as coisas boas, quanto dizem de modo pior as coisas ruins. Nem
àqueles, para os quais houve bastante de discernimento para se evitarem os
defeitos, seja suficiente moldar uma aparência externa do que há de boa
qualidade; ou como eu poderia dizer de outra maneira, apenas a pele ou ainda
aquelas auras de Epicuro, as quais ele diz efluírem da superfície dos corpos
273
.
16. Exatamente isto é o que acontece com aqueles que, não tendo considerado
as qualidades mais profundamente intrínsecas, adaptaram-se à primeira
impressão de um discurso. E quando lhes acontece de a imitação ser exitosa,
não são muito diferentes nas palavras e no ritmo sonoro, e não alcançam a
força da expressão e da invenção; na maior parte das vezes, deslizam para o
pior e assimilam vícios como se próximos de virtudes, e, assim, se tornam
inflados ao invés de grandiosos, magriços ao invés de concisos, temerários em
lugar de fortes, extravagantes ao invés de fecundos, saltitantes, mas não
harmoniosos, negligentes e não simples.
17. Por razões como estas, aqueles que, de maneira grosseira e malsonante,
puseram para fora qualquer coisa de frio e oco, estes se acreditam pares dos
antigos. Aqueles que carecem de sofisticação e de opinião formada se dizem
273
Epicuro sustentava que tudo o que se percebia pelos sentidos era causado pelo impacto de
átomos que se desprendiam, cf. Lucrécio De Rerum Natura, 4, 42-46; Sên. Epist., 1, 48.
234
pares dos áticos
274
. Os que são obscuros por causa de seus abruptos finais de
período superam Salústio e Tucídides. Os tristes e anoréticos, isto é, os que
padecem de inanição, se dizem êmulos de Pollião; os inoperantes e os
letárgicos, se porventura fecharam o círculo de algo mais longo, juram que
exatamente assim Cícero haveria de ter falado.
18. Conheci alguns que achavam ter imitado excelentemente a maneira de
dizer daquele homem celestial
275
, se tivessem colocado ao fim de cada período
esse uideatur
276
. É, portanto, primordial que cada pessoa compreenda
inteiramente tudo aquilo que se disponha a imitar e que saiba por qual razão
seu modelo seja bom.
19. Nestas circunstâncias, ao assumir este encargo, o imitador avalie as
próprias forças. Existem algumas qualidades, de fato, imitáveis, em relação às
quais, no entanto, ou a fragilidade dos dons naturais se mostra como
empecilhos de concretização, ou a diversidade as rejeite. Não queira aquele,
para quem a inteligência é tênue, somente as coisas fortes e as abruptas.
Aquele, para quem o talento é verdadeiramente forte, mas indômito, se quer-se
tomar de amor pela sutileza o somente perde o seu vigor, mas também não
alcança a elegância que almeja. Nada é tão indecoroso quanto coisas
delicadas feitas com dureza.
20. Eu mesmo manifestei a opinião de que ao mestre, cuja caracterização
propus no livro segundo
277
, cabe ensinar não somente aquelas coisas para as
quais ele visse cada um de seus alunos ser individualmente apto por natureza.
Na verdade, ele deve ajudar naquelas qualidades que descobre como boas em
274
Sobre aticismo, ver Cíc. Orator, 28. Também Inst., XII, 10, 16.
275
Cícero.
276
Cf. IX, 4, 73.Tac. Dial., 23.
277
II, 8.
235
cada um deles e, o quanto se pode fazer, acrescentar as que faltam, corrigir
algumas e fazer mudanças. Ele é quem dirige o intelecto de outros, além do
mais, é seu formador. É muito mais difícil moldar as próprias disposições
naturais.
21. No entanto, aquele que de fato ensina, ainda que queira todas as melhores
qualidades e em plenitude existirem em seus aprendizes, não deverá trabalhar
até cansar naquele ao qual perceber que a natureza impõe obstáculos. Deve-
se ainda evitar algo em que uma grande parte erra: não se pense deverem ser
imitados, em um discurso, os poetas e historiadores, da mesma forma que, na
poesia e na história, os oradores e os declamadores não devam ser imitados.
22. Para cada propósito existe sua lei específica
278
, seu próprio caráter. Nem a
comédia se alça nos coturnos, nem, de modo contrário, a tragédia entra em
cena calçada de borzeguim. No entanto, toda eloquência tem alguma coisa em
comum, imitemos, pois, o que é comum.
23. Costuma, ainda, acontecer algo de desmedido àqueles que se entregam a
um gênero único, de tal forma que, se a aspereza lhes agrada dela o se
desnudam até mesmo nas causas que demandam suavidade e fluidez; se a
delicadeza e atratividade é o que lhes agrada, nas causas espinhosas e graves
pouco respondem ao peso das circunstâncias. Como seja diferente a
apresentação não somente dos processos entre si, mas até mesmo das partes,
cada uma em seu processo específico; como devam elas ser proferidas,
algumas com leveza, outras asperamente, algumas com arroubos, outras com
mais descontração, algumas por força de fazer aprender, outras para comover,
278
Cada estilo tem suas peculiaridades. Trata-se aqui do decorum, isto é, a conveniência, a
adequação. Sobe a noção de propósito propositum cf. IX, 4, 19; XI, 1, 32. Coturno é tipo
calçado característico das encenações trágicas e borzeguim das encenações cômicas
236
consequentemente é preciso compreender que é diversa e dessemelhante a
estrutura interna de todos esses processos entre si.
24. E assim, eu não aconselharia, de modo algum, a que alguém se entregasse
a um único modelo, segundo o qual fizesse todas as coisas. De longe
Demóstenes foi o mais perfeito de todos os gregos. Em alguma coisa, contudo,
em algum lugar, outros conseguiram ser melhores (na maior parte, no entanto,
ele). Diante disto, não é porque um autor que, maximamente, deva ser
imitado, que esse deva ser o único a se imitar.
25. Como proceder, então? Não é o bastante falar todas as coisas exatamente
como Cícero falou? Em verdade, para mim seria, se eu tivesse, em todas as
coisas, a competência para segui-lo. Mas que prejuízo haveria se, em
determinadas circunstâncias, se tomasse o vigor de César, a aspereza de
Célio, a diligência de Polião, o juízo de Calvo!
26. Com efeito, além do fato de que é próprio do sábio, se este pode, fazer seu
o que de melhor existe, que se considerar que na tão grande dificuldade da
oratória, para aquele que se fixa em um modelo, alguma qualidade
apresentará grande dificuldade de ser adquirida. Assim, como seja, quase de
todo, não permitido a um ser humano reproduzir a inteireza daquele a quem se
elege, coloquemos diante dos olhos o melhor de muitos, a fim de que algo de
um autor esteja disponível para que se possa adequar a um contexto a que
seja pertinente.
27 A imitação, no entanto é preciso que eu o diga repetidamente não se
restrinja apenas às palavras. A mente deve estar voltada para o quanto
naqueles homens tenha existido de tratamento refinado em relação a fatos e
pessoas; deve ter em conta os seus planos, as formas de estruturação, o como
237
todos os elementos estejam projetados para a vitória, até mesmo aqueles que
pareçam ter sido dados por puro deleite; como se procede em um exórdio, qual
e quão variada seja a estrutura do narrar, qual a força da ação de provar e de
refutar; quanta seja a ciência de se suscitarem todos os tipos de emoções; o
quanto de aplauso recebido pela própria graça e favor do auditório, o que é
belíssimo, quando acontece espontaneamente, não quando forçosamente
buscado. Todas estas coisas, se as observarmos por completo, então
imitaremos verdadeiramente.
28. Aquele que suas próprias qualidades tiver acrescentado a estas, a fim de
que supra as que estiverem em falta e que seja capaz de suprimir, se algo
esteja redundante, este será o orador perfeito que buscamos. Neste momento
seja oportuníssimo consumar-se tal orador, pois que subsistem em maior
quantidade os mais numerosos exemplos do bem dizer do que existiram para
aqueles que até hoje são os maiorais. Com efeito, igualmente existirá esta
glosa deles, que se considera eles terem superado os seus antecessores,
tanto quanto terem feito aprender a seus sucessores.
238
III – Como se deve escrever
1. Tais são, de fato, os recursos provenientes de elementos externos a que se
pode ter acesso. Dentre aqueles que cabem a nós, individualmente,
providenciar, de longe, o estilete
279
é o que mais exige de esforço e o que mais
rende de proveito. Com toda razão M. Túlio o chama “o mais eficiente
realizador e mestre do dizer”
280
. A esta sentença, nas discussões que se dão a
respeito de como se deve moldar um orador, Cícero associa a própria opinião,
que se manifesta na pessoa de L. Crasso
281
, firmada na autoridade deste.
2. Deve-se, portanto, escrever o mais cuidadosa e o mais intensamente
possível. Assim como a terra profundamente revolvida se faz mais fecunda
para que dela germinem e se alimentem as sementes, do mesmo modo é certo
que não é da superficialidade que o desejado fruto dos estudos mais
profusamente se derrame e mais fielmente se preserve. Certamente, sem a
verdadeira consciência desta condição, até mesmo a própria capacidade de
improvisar resultará numa loquacidade vazia e em palavras e mal nascidas
dos lábios.
3. Ali as raízes, ali estão os fundamentos, ali riquezas, como se estivessem
protegidas em um tesouro muito sagrado, de onde se as possa fazer sair, se
necessário, até mesmo em situações de emergência. Acumulemos forças,
antes de tudo, forças que sejam suficientes para as fadigas dos combates
forenses, forças que não se esgotem pelo uso.
279
O exercício da escrita.
280
De Or. 1, 150.
281
Lúcio Licínio Crasso (140-91 a.C.). Orador e um dos interlocutores do De Oratore, de
Cícero.
239
4. Nenhuma das coisas a própria natureza quis que se tornasse grande,
aceleradamente, mas antepôs a dificuldade a cada uma das mais belas obras.
Assim é que igualmente formulou uma lei do nascimento: os animais maiores
mais demoradamente permanecem contidos no ventre da mãe
282
.
Mas como seja dupla esta questão, isto é, de que maneira e sobre o que
maximamente convenha escrever, a partir de agora obedecerei a esta
sequência.
5. Ainda que possa, inicialmente, ser lento o estilete, seja contudo, diligente;
busquemos o que há de melhor e não nos alegremos com o que de imediato se
nos coloque diante dos olhos o juízo crítico deve-se aplicar àquilo a que se
chegou; a organização, àquilo que já se comprovou – deve-se exercitar a
escolha de ideias e de palavras e o peso de cada uma delas de ser aferido.
Em seguida se apresentem os mecanismos de ordenação: as palavras o de
ser dispostas em todas as sequências de metros e ritmos, de tal forma que
nenhuma delas necessariamente ocupe a mesma posição em que
originalmente aparecem.
6. Para que possamos conseguir isso com eficiência é preciso voltar sempre ao
que se acabou de escrever. Com certeza, além do fato de que, assim, o que se
segue se liga melhor ao que antecede; aquele calor próprio da reflexão, que se
arrefece por causa da demora do ato de escrever, refaz integralmente suas
forças e, tal como um território reconquistado, retoma seu ímpeto. É isto o que
exatamente vemos acontecer nas competições de salto, ou seja, os atletas
buscam tomar impulso numa distância bem grande e se lançam em velocidade
para o ponto aonde se precise chegar; tal como em competições de arco e
282
Cf. Plínio Historia Naturalis, X, 175.
240
flecha, retrocedemos o braço e, no momento de atirar as flechas tensionamos
para trás as cordas.
7. Se o vento sopra, que se lancem as velas, conquanto essa indulgência não
nos induza a erros. De fato, tudo o que vem de dentro de nós, no exato
momento em que nasce, nos agrada. Se não fosse assim, nem mesmo isso
seria registrado por escrito. Em sentido contrário, levemos a reexame a
facilidade suspeita e façamos as devidas correções.
8. Aprendemos que assim escreveu Salústio e, sem dúvida alguma, seu
esforço fica evidente pela própria obra. rio
283
informa que Virgílio escrevia
pouquíssimos versos por dia. A condição do orador, no entanto, é muito
diferente. Assim, eu recomendo essa lentidão e essa solicitude a tudo que é
começo.
9. Em primeiro lugar, o que há de ser estabelecido e que há de ser alcançado é
que escrevamos com a máxima qualidade. O hábito dará a celeridade. Pouco a
pouco as ideias se apresentarão mais facilmente, as palavras responderão às
demandas, o arranjo das palavras virá em consequência, tudo, enfim, tal como
em uma criadagem bem organizada, estará em sua respectiva função.
10. Em suma, esta é a condição: escrever rapidamente não resulta em
escrever bem, mas escrever bem faz com que se possa escrever com
velocidade. Mas precisamente quando tivermos alcançado essa capacidade é
que devemos fazer uma parada, a fim de olhar adiante e refrear com algum tipo
de rédeas os cavalos que nos levam. Isso não causará uma lentidão maior do
que os novos ímpetos que nos serão dados.
283
Vário, juntamente com Tucca, foram os editores da Eneida. Cf. § 98.
241
E penso que aqueles que tenham alcançado um certo vigor no estilete não
devam submeter-se ao estéril castigo de tecerem críticas caluniosas a si
mesmos.
11. De que modo pode dar sustentação aos afazeres políticos
284
de seus
concidadãos aquele que chegue até a velhice fazendo e refazendo, uma por
uma, as mesmas partes dos seus discursos? Existem, por outro lado, aqueles
para os quais nada seja suficiente: querem mudar tudo, querem dizer tudo de
modo diferente daquele que lhes ocorreu; desconfiados e desmerecedores do
próprio talento, eles são os que pensam ser diligência criar para si mesmos a
dificuldade de escrever.
12. E o é demais dizer quem mais gravemente, segundo penso, erra: aquele
a quem agrada tudo o que faz ou aquele a quem nada pode agradar. Com
certa frequência acontece, até mesmo a jovens talentosos, que se consumam
de tanto esforço, a tal ponto que desçam ao completo silêncio, levados pela
vontade excessiva do bem se expressar. A respeito de situação parecida
lembro de ter-me sido contado que o referido Júlio Segundo, meu
contemporâneo e, como se sabe, estimado por mim como a um parente
próximo, era um homem de admirável capacidade de falar, mas de infinito
cuidado. Quem me disse serem esses os atributos dele foi seu tio materno.
13. Esse tio foi Júlio Floro
285
, em eloquência o Príncipe das Gálias, pois aí ele a
exercera, em outras palavras, bem falante como poucos e homem digno de tal
parentesco. Ele, como tivesse visto Segundo, ainda um estudante,
casualmente triste, interrogou-lhe o motivo da fronte tão contraída.
284
Offcia ciuilia trata-se de serviços que os cidadãos de uma comunidade trocavam entre si,
como, por exemplo, nas relações entre patronos e clientes, nos assuntos jurídicos ou nas
ligações administrativas.
285
De identificação incerta. Há quem o identifique numa referência de Horário em Epist., 1, 3.
242
14. O jovem não dissimulou o fato de que, havia três dias, vinha aplicando
pleno esforço a escrever e ainda não havia encontrado um exórdio para o
assunto ao qual se dedicara. Por isso, não apenas havia uma dor presente,
mas também uma desesperança haveria de se consumar para o futuro. Então
Floro, com sorriso, disse: “Por acaso tu queres falar melhor do que és capaz?”
15. Exatamente assim é que as coisas acontecem: é preciso cuidar para que
falemos da melhor maneira possível, mas há que se falar de acordo com a
própria capacidade. Para que se faça o progresso, esforço dedicado é
necessário, não a exasperação.
Para que possamos escrever com maior alcance e com mais rapidez, não
apenas a prática do exercício seútil, e nisso, sem dúvida, reside muito, mas
sobretudo a racionalidade. Se não agirmos como quem deita de barriga para
cima, olhando o teto e murmurantemente agitando a imaginação, e, assim, fica
na expectativa de que algo lhe venha ao encontro; se, pelo contrário,
examinarmos a fundo o que o assunto exija, o que convenha à pessoa, a
oportunidade do momento, a índole do juiz, nós, tendo considerado o que é
verdadeiramente humano, teremos tido acesso ao escrever. Desta forma, não
apenas o começo, mas tudo que vem a seguir nos será prescrito pela própria
natureza.
16. Os elementos de uma causa, em sua maior parte, são bastante bem
determinados e nos saltam à vista, a menos que estejamos de olhos fechados.
É por isso que nem os incultos nem os camponeses precisam ficar, durante
muito tempo, procurando por onde começar. Assim, torna-se mais
constrangedor o fato de que justamente a cultura venha provocar a dificuldade.
Não consideremos, portanto, em definitivo, que o ótimo seja o que está
243
escondido. Devemos, por outro lado, nos calar, se nada nos pareça que se
possa dizer, senão aquilo que não fomos capazes de descobrir.
17. Contrário a este é o vício daqueles que, em primeiro lugar, querem
discorrer sobre o assunto com um estilete, o mais ágil possível, e, tomados do
calor e do impulso, como que de improviso escrevem. Chama-se a isso um
cipoal
286
. m por hábito retomar, imediatamente, e organizar o que pouco
haviam profusamente derramado. Ainda que as palavras e os metros possam-
se corrigir, no entanto, permanece nas ideias imponderadamente arranjadas a
mesma superficialidade.
18. Será mais correto colocar, desde o início, o necessário zelo e, desse modo,
conduzir todo o trabalho, a fim de que ele precise apenas ser burilado, não
inteiramente fabricado. Às vezes, no entanto, nos consentimos seguir os
afetos; neles o calor pode quase mais do que vale a diligência. A partir do fato
de que condeno a negligência dos que escrevem, mostra-se bastante evidente
o que eu venha sentindo a respeito das tão conhecidas volúpias do recurso de
fazer ditados
287
.
19. De fato, ao se utilizar do estilete, ainda que esse possa ser acelerado,
permite-se à reflexão um tempo mais dilatado, já que a mão não tem celeridade
compatível com a do pensamento. Aquele a quem ditamos tem urgência,
pressiona, além do mais, paralelamente constrange estarmos em vida, fazer
uma pausa, promover uma alteração, como se o copista tivesse consciência de
que tememos pela nossa insegurança.
286
Silua pode significar também “esboço”, “rascunho”. Estácio (40-96 d.C.) intitulou uma de
suas obras de Siluae.
287
Sobre o ditado, cf. Cíc. Brut., 87.
244
20. Desse modo acontece que efluam não somente coisas mal elaboradas e
fortuitas, também concomitantemente impróprias, quando é imperativa
unicamente a vontade de produzir um encadeamento de fala. Nada disso tem
como consequência o zelo dos que escrevem, a impetuosidade dos que
discursam. Mais ainda, aquele mesmo a quem se dita, se for lento no escrever
e vacilante na leitura será como que um tropeço: inibe a desenvoltura; toda
aquela tensão da mente, que havia sido concertada, se abala pela lentidão,
às vezes até mesmo pela irritabilidade.
21. Assim, torna-se ridículo tudo aquilo que vem junto com um movimento mais
exacerbado do espírito e que, de certo modo, propriamente o excita, ou seja, o
agitar a mão, contrair a musculatura da face, o bater de tempo em tempo as
coxas e também o flanco e tudo aquilo que Pérsio
288
censura, quando põe em
evidência um modo ruim de discursar: “não tamborila o púlpito, nem sente o
gosto de unhas roídas”. Tudo isso é, com certeza, ridículo, a menos que
estejamos a sós.
22. Enfim, que eu diga, de uma vez por todas, o que seja o mais importante: o
isolamento, que se perde, quando se usa do recurso do ditado, um lugar livre
de espectadores e o silêncio mais profundo possível são circunstâncias que
mais convêm aos que escrevem. Disto ninguém haverá que duvide. Contudo
não se deve dar ouvidos aos que crêem serem os bosques e florestas os mais
adequados para esse fim, uma vez que, acredita-se, a tão falada liberdade do
céu e o encantamento das paisagens tornem sublime a alma e mais fecunda a
inspiração
289
.
288
1,106.
289
Cf. Hor. Epíst., 2, 2, 77; Tác. Dial., 9.
245
23. Para mim, com certeza, esse afastar-se simplesmente tem muito mais de
agradável do que pode ser de estímulo aos estudos. Seguramente aquelas
mesmas coisas que encantam fazem com que se desvie a atenção do trabalho
a que se deveria ater. O espírito não pode ir de todo a fundo e em plena
consciência em muitas coisas, simultaneamente, e, para qualquer lado a que
se estenda, ele deixa de examinar profundamente o que de início havia sido
proposto.
24. Assim, o encantamento das florestas, as águas que fluem, os ventos que,
brandos, sopram aos ramos das árvores, o canto dos ssaros e a própria
liberdade de, à larga, tudo olhar em volta arrastam para si a atenção, de tal
forma que, me parece, esse prazer distende a reflexão, muito ao contrário de a
intensificar.
25. Demóstenes muito sabiamente agia, que se recolhia em um lugar
290
de
onde nenhuma voz pudesse ser ouvida e, de onde, nada pudesse ver, a fim
que seus olhos não obrigassem a outra coisa a sua mente. Assim, aos que
trabalham à luz artificial, os guardem como que inteiramente protegidos o
silêncio da noite, o quarto fechado, a lucerna solitária.
26. Como em toda modalidade de estudo, especialmente nesta, o trabalho
noturno, são indispensáveis uma boa saúde e a frugalidade. Esta, mais do que
tudo, produz saúde. Isso é necessário, pois o tempo que nos foi dado pela
natureza para a quietude e restabelecimento, nós o convertemos no mais
aguilhoante trabalho.
Cabe, no entanto, a quem assim trabalha não exigir do sono mais do que lhe
sobra ou não faz falta.
290
Um quarto subterrâneo. Ver Plut. Dem., 8.
246
27. A fadiga também é obstáculo à tarefa de escrever e, de sobra, as horas de
luz, se se tem disponibilidade, o suficientes: a necessidade é que impele os
ocupados à noite. Todavia o trabalho noturno, desde que a ele, inteiros e
renovados, nos entreguemos, é a melhor forma de privacidade.
28. Mas o silêncio, a privacidade e o espírito livre completamente de tudo, da
mesma forma que são maximamente desejáveis, nem sempre podem ser
alcançados. Por esta razão, se um ruído nos faz interromper, não
imediatamente os manuscritos devem ser atirados para longe, nem se deve
logo chorar o dia como perdido. que reagir verdadeiramente a essas
inconveniências e, a partir daí, criar-se o hábito de fazer com que a
concentração vença a todos aqueles impedimentos. Se a dirigirmos
completamente para o próprio trabalho, nada daquilo que vai de encontro aos
olhos ou aos ouvidos alcançará o espírito.
29. Não é verdade que, muitas vezes, uma reflexão casual, quase involuntária,
se torne tão mais importante que não sejamos capazes de ver quem chega
diante de nós e que, sem perceber, até nos desviemos de nosso caminho? Não
podemos, pois, alcançar essa habilidade de concentração, se igualmente a
tivermos buscado com vontade consciente?
Não se deve ser indulgente em se tratando de pretextos de indolência. Em
verdade, se pensarmos que não é preciso estudar, a menos que seja por força
de nos repousar; senão quando estejamos de bom humor; a não ser que
estejamos livres de todas as outras preocupações, sempre haverá algum
pretexto que nós apresentamos como desculpa.
30. Sendo assim, no meio da multidão, em viagem ou até mesmo em
recepções festivas, a própria reflexão encontre para si um local e um momento
247
de retiro
291
. Em outras palavras, o que haveria de ser se em pleno fórum, em
meio a tantos debates judiciais, tantas querelas e também os ocasionais
aplausos e vaias, de repente acontecesse de ser necessário fazer um discurso
ininterrupto, numa situação em que só teríamos condição de averiguar as
partes que anotáramos nas tabuinhas, se nos encontrássemos em
privacidade? Por razões como estas, o próprio Demóstenes, tão declarado
amante do isolamento, junto ao mar, onde as ondas colidem em grandes
estrondos, enquanto meditava, fazia com que se acostumasse a não se
apavorar com os alaridos das assembleias
292
.
31. Igualmente, nem mesmo certas coisas de menor importância (mas a
verdade é que nos estudos nada é pequeno) devem ser deixadas de lado. A
escrita pode ser otimamente feita em tabuinhas de cera, pois nelas a ação de
apagar acontece de modo facílimo, a menos que uma visão mais enfraquecida
exija que se faça, de preferência, o uso de pergaminhos. Esta forma de
escrever, da mesma maneira que favorece a acuidade visual, também pela
ação repetida e frequente de recarregar a pena no tinteiro, retarda a o e
quebra o ímpeto do pensamento.
32. Devem ser deixados, em qualquer que seja o material de escrita, espaços
vazios, nos quais se possam livremente fazer acréscimos. Em verdade,
espaços estreitos incitam à preguiça da correção ou provocam a confusão do
que anteriormente foi escrito, se aí se fazem interposições de coisas novas. Eu
recomendaria, ainda, que as tabuinhas não tivessem medidas exageradas. A
propósito, conheci um jovem que, embora muito dedicado, fazia discursos
extremamente longos, pois ele os media conforme o número de linhas. Esse
291
Exempos em Cíc. De finibus, III, 7; Plin. Jovem Epíst., III, 5, 10.
292
Cf. Plutarco Vit. Orat., 8.
248
vício que não se tinha podido corrigir pela frequente advertência, no entanto, foi
abolido, uma vez mudadas as tabuinhas.
33. Deve-se igualmente deixar reservado um espaço no qual se registrem
todas as ideias que, aos que escrevem, costumam ocorrer fora de ordem, ou
seja, são ideias diferentes relativamente aos assuntos que no momento
estejam sendo tratados. Irrompem, às vezes, excelentes ideias que nem é
conveniente as inserir, naquele exato momento, nem é seguro deixá-las à
solta, pois nesse espaço de tempo elas se esvaem; elas impedem de outras
descobertas aqueles que as querem guardar de memória. Assim, o melhor a
fazer é que estejam em depósito.
249
IV - Sobre a correção
1. Logo a seguir vem a correção, parte dos estudos, de longe, a mais útil. Não
é sem razão que sempre se acreditou que o estilete não age em desvantagem
quando apaga. Es igualmente no âmbito da correção acrescentar, subtrair,
mudar. Dentre todos esses procedimentos o mais fácil e simples é identificar o
que de ser completado e o que há de ser suprimido; comprimir o que está
inchado, elevar o que se arrasta pelo chão, simplificar o que é luxuriante,
arranjar o que está desordenado, dar ritmo ao que anda solto, refrear o que
corre aos saltos, tudo isso é tarefa de duplo encargo: na verdade, que se
submeter à crítica tudo o que havia caído no agrado e ir em busca do que
havia escapado.
2. Não há que duvidar de que o melhor todo de correção consiste nisto: o
que foi escrito seja posto de lado, em repouso por um certo tempo
293
, para que
a ele voltemos como se, depois desse intervalo, ele fosse um novo ou até
mesmo um escrito alheio. Isso se deve fazer para que os nossos escritos não
sejam, por interesse próprio, tratados tão brandamente quanto filhotes recém
nascidos.
3. Mas nem sempre isto é possível, sobretudo ao orador, a quem é necessário,
na maioria das vezes, escrever para uso do momento presente. Além do mais,
a própria correção tem seus limites. Existem, com certeza, aqueles que voltem
a seus escritos, tal como se eles estivessem cheios de defeitos e, como o
admitem que possa estar certo o que é escrito de primeira o, julgam que
melhor é aquilo que é diferente e agem exatamente assim, todas as vezes que
tomam nas mãos um manuscrito: são semelhantes a médicos que amputam
293
Cf. Hor. Ars, 388; também a própria carta de Quintiliano a Trifon, na introdução da Institutio.
250
até as partes sadias. E assim, acontece que esses escritos se apresentem de
tal forma cheios de cicatrizes, exangues e ainda piores, por causa dos
cuidados.
4. Que em algum momento exista algo que agrade, ou que, pelo menos, seja
suficiente, de tal forma que a lima faça o leve polimento, não o desbaste desse
trabalho. É preciso também que haja medida para o tempo: sabemos que
Zmyrna, de Cina
294
, levou nove anos e que o Panegírico de Isócrates, dizem,
foi elaborado em, no mínimo, dez anos. No entanto, nada disso é compatível
com o orador, a quem se de valor nenhum o auxílio que venha tão
lentamente.
294
Caio Hélvio Cina, o amigo de Catulo e também adepto do movimento poetae noui. A obra
Smyrna era um curto mas excepcionalmente obscuro e erudito poema épico.
251
V - O que preferencialmente se deve escrever
1. Convém, neste momento, que apontemos o que seja mais importante para
aqueles que se preparam para atingir a facilidade
295
. Não cabe nesta parte do
nosso trabalho explicar quais sejam os assuntos, o que deva ser tratado em
primeiro lugar, em segundo ou depois na verdade, isso já foi feito no primeiro
livro
296
, no qual propusemos uma certa ordenação dos estudos das crianças, e
no segundo
297
, quando igualmente o fizemos para os mais avançados - mas
trata-se neste momento de estudar principalmente de onde procedam a
abundância e a facilidade.
2. Os nossos antigos oradores recomendavam fazer versões do grego para o
latim como o melhor exercício. Lúcio Crasso, na famosa obra de Cícero, De
Oratore
298
, disse tê-lo praticado repetidamente; o próprio Cícero, em pessoa, o
recomendou frequentissimamente. Tanto isso é verdade que ele publicou, em
traduções, livros de Platão e Xenofonte
299
. Esse mesmo exercício foi também
do agrado de Messala, e muitos discursos se encontram escritos em traduções.
A tal ponto ele chegou que rivalizasse com a lebre sutileza de Hipérides em
sua defesa de Frine
300
, lembrando que o refinamento era coisa dificílima para
os romanos.
3. Está mais do que evidente a razão desta forma de se exercitar. Em verdade,
os autores gregos não somente oferecem vária quantidade de assuntos, mas
295
Ver X, 1, 1.
296
Cap. 9.
297
Cap. 4.
298
1, 155.
299
As obras são: O Econômico, de Xenofonte, o Protágoras e Timeu, de Platão.
300
Cf. II, 15, 19 e X, 1, 77.
252
também souberam levar para a eloquência muitíssimo de arte. Assim, aos que
se dedicam a traduzi-los torna-se permitido servir-se das mais expressivas
palavras: de fato, somos levados a nos servir das que temos de melhor
301
. No
que diz respeito às figuras de linguagem, através das quais muitíssimo se
embeleza um discurso, certa necessidade de recorrer à imaginação para
criá-las em quantidade e variedade, porque as características próprias da
romanidade em muito diferem das que são específicas dos gregos.
4. Igualmente também ajudará em muito a conhecida prática da reescrita
302
dos
próprios textos latinos. Estou certo de que ninguém duvida disso,
especialmente quando se trata da poesia. Esse era, por exemplo, o único tipo
de exercício do qual dizia-se Sulpício
303
ter-se utilizado. Sem dúvida a
inspiração sublime pode elevar um discurso; também as palavras, na ousada
liberdade da poesia, em princípio, o suprimem a sua propriedade de
significação literal. Em sentido contrário, pode-se adicionar a essas ideias
poéticas o vigor oratório, suprimindo-lhes as lacunas, restringindo-lhes as
profusões.
5. Além disso, não pretendo que uma paráfrase seja simplesmente uma
interpretação, mas, no desenvolverem-se os raciocínios parafraseados, que ela
seja como que um combate, uma emulação. É por isso que não concordo com
aqueles que proíbem fazer paráfrases de discursos latinos
304
. Esses entendem
que, se tudo tenha sido feito com a xima propriedade, qualquer coisa que
de outra maneira se diga torna-se necessariamente muito inferior. Em verdade,
301
Isto é, nós não as tomaremos emprestado de nossos modelos como é possível fazer ao
parafrasear obras em latim.
302
O mesmo que paráfrase.
303
Cf. X, 1, 116
304
Cíc. De Orat. 1, 154.
253
nunca se deve perder a esperança de que se possa encontrar algo melhor do
que o anteriormente dito, pois nem mesmo a natureza fez a eloquência de tal
modo estéril e pobre que única e somente uma vez se possa expressar bem
uma ideia.
6. Seria equívoco admitir que o gesto dos atores o possa variar muito em
relação ao conteúdo das mesmas falas e que a força da oratória seja ainda
menor, de tal forma que, ao se dizer algo, nada mais se deve dizer, logo a
seguir, a respeito do mesmo assunto
305
. No entanto, de ser sempre assim:
ainda que não possa, o que descobrimos, ser melhor ou, ao menos, igual, com
certeza haverá de ocupar uma posição de proximidade.
7. Não é verdade que nós próprios falamos duas ou mais vezes a mesma coisa
e até em alguns momentos por frases seguidas, sem interrupção? Será que
podemos entrar em confronto conosco mesmos, mas não com os outros? Com
efeito, se houvesse uma maneira de bem expressar, seria justo pensar que
esse caminho tivesse sido fechado pelos nossos antecessores; no entanto,
ainda agora são inumeráveis os modos, e caminhos os mais diversificados
conduzem a destino idêntico.
8. A brevidade tem seus encantos, assim como também a exuberância; um
certo vigor é próprio da linguagem figurada, outro da não figurada. A fala
denotativa convém melhor a uma determinada situação, ao passo que a
utilização de figuras convém a outras. Enfim, até mesmo a dificuldade se torna
utilíssima enquanto meio de exercitação. Por que motivos se busca tão
diligentemente o conhecimento dos melhores escritores? Em verdade, não
transcorremos pelos seus escritos numa leitura desavisada, mas como que nos
305
No § 5 esse conceito já havia sido expresso: ut una de re bene dici nisi semel non possit.
254
arrastamos penosamente de ponto em ponto e, necessariamente, examinamos
a fundo cada detalhe. O quanto tenham de valor reconhecemos pelo simples
fato de que nos constatamos incapazes de os imitar.
9. Não será bastante simplesmente parafrasear o que é alheio, mas se tornará
de grande proveito tratar de várias maneiras, em forma de exercício, o que nós
próprios tenhamos escrito. Deliberadamente tomemos algumas ideias e as
recomponhamos das mais variadas maneiras, tal como diferentes imagens, na
verdade, se podem moldar com a mesma cera.
10. Segundo penso, muitíssimo da facilidade se pode alcançar servindo-se
como matéria de um assunto qualquer, seja ele o mais simples. Em verdade,
uma reconhecida falta de talento facilmente se escondeatrás da complicada
diversidade de personagens, de causas, de tempos, de lugares, de palavras e
de feitos. De todas essas coisas que de todas as partes se oferecem, muito
certamente, uma delas, pelo menos, se há de agarrar.
11. É indício certo de vigor criativo expandir o que pela natureza veio
condensado, ampliar o resumido, dar variedade à mesmice e prazer inovador
ao lugar comum, enfim, dizer com clareza e elegância muitas coisas a respeito
de assuntos de pouca relevância. Nisto hão de ser otimamente eficientes as
“questões gerais”
306
, que dissemos chamarem-se thesis. Cícero
307
, na
qualidade de homem importante da república, delas costumava utilizar-se.
12. Exercícios limítrofes a estes são a refutação e a confirmação de sentenças
jurídicas. Na verdade, como seja uma sentença uma espécie de decreto e,
mais do que isso, um preceito, tudo o que puder ser demandado a respeito de
306
Ver III, 5, 5 e seg.
307
Cíc. Ad Att., IX, 4, 1.
255
um fato em si, pode ser igualmente demandado a respeito do juízo que se
formulou acerca desse fato. Há, ainda, os lugares comuns
308
, os quais,
sabemos, foram por escrito tratados pelos oradores. Com certeza, todo aquele
que houver tratado com largueza os assuntos simples e que não incidem em
rodeios, seguramente se mais exuberante naqueles que admitem variadas
digressões. Esse estará, assim, preparado para todos os tipos de causas.
Todas estas, para todos os efeitos, constam de “questões gerais”
309
.
13. Em verdade, o que de diferente entre “Cornélio, tribuno da plebe, seja
declarado réu porque tenha feito a leitura de um texto de lei”
310
e “é crime de
lesa-majestade, se o magistrado tenha feito ao povo a leitura de uma
proposição de lei que ele próprio esteja encaminhando”? De que outra maneira
se coloque sob julgamento se “Milão agiu acertadamente, quando matou
Clódio” ou se “é justificável que se mate alguém predisposto à traição ou se
mate um cidadão pernicioso ao Estado, a mesmo quando esse ainda o
tenha consumado seu ato desleal”? Ainda mais: “Catão agiu honestamente ao
entregar Márcia a Hortênsio
311
ou “por acaso convém uma tal atitude a um
cidadão honrado”? Na realidade, se fazem juízos de pessoas em particular,
mas as discussões, de fato, se travam a respeito de atitudes em sentido mais
amplo.
14. As declamações, como as que se pronunciam nas escolas dos retores, se,
na justa medida, se apresentam compatíveis com a realidade objetiva e se
assemelham a um discurso proferido, são utilíssimas, não apenas quando o
308
Ver II, 1, 9-11 e 4,22.
309
Independem da pessoa, do tempo e do lugar. Cf. Cíc. De orat., 2, 133.
310
Alusões a particularidades dos processos jurídicos: IV, 4, 8; V, 13, 26; VI, 5, 10; VII, 3, 3, e 3,
35. Específicamente sobre o episódio de Cornélio, ver Cíc. Brut., 271.
311
Márcia vivera com Ortênsio com o consentimento do marido e do pai. Após a morte de
Ortênsio, voltou para Catão.
256
progresso (do orador) ainda se faz adolescente nessa etapa elas são como
que exercícios de invenção e de disposição, simultaneamente mas também
quando esse progresso está consumado e, no fórum, é notável. Tal como
de uma comida muito nutritiva se alimenta e mostra o brilho de saúde, a
eloquência também se renova, uma vez fatigada pela constante aspereza dos
confrontos jurídicos.
15. Por idêntica razão a riqueza verbal da linguagem da história de ser,
algumas vezes, utilizada em algumas situações em que se faz necessário o
exercício do estilete, como também na estimulação livre, característica das
construções dialogadas. o será de modo algum prejudicial o exercício lúdico
de compor poemas. Coisa semelhante acontece aos atletas: interrompida, de
tempos em tempos, a severa obrigação de dietas e de exercícios, eles se
refazem pelo repouso e por uma alimentação mais saborosa.
16. Me parece que, justamente por isso, M. Túlio levou tão intensa luz à
eloquência, que ele se recolhia a esses refúgios, que são também os do
estudo. Em verdade, se nos tiver restado por única matéria a que provém dos
processos judiciários, necessariamente o fulgor vai-se apagando, a mobilidade
das articulações se enrijece e aquele aguilhão da inteligência arguta se faz
obtuso pela batalha diária.
17. No entanto, assim, essa “refeição do saber” reanima e restaura aqueles
que se exercitam, ou seja, aqueles que são combatentes nos embates
forenses; com igual cuidado os jovens não devem ser, exageradamente,
sujeitados a uma imagem falsa das coisas, nem devem acostumar-se a
fantasmas ocos, a tal ponto que lhes seja difícil afastarem-se deles. Além
257
disso, daquela sombra, onde propriamente cresceram, não refuguem, pelo
medo, os verdadeiros perigos, tal como sombra que teme o sol.
18 Um fato semelhante aconteceu, conta-se, a M. Porcio Latrão
312
, aquele que
primeiro foi um professor de grande renome: como a ele, que gozava de alta
consideração nas escolas, coubesse o dever de atuar em um processo no
fórum, com insistência ele pedia que todo o mobiliário e o próprio tribunal
fossem trasladados para uma basílica. De tal maneira o céu foi para ele algo
tão novo que toda sua eloquência parecia estar contida por um teto e por
paredes.
19. Por esta razão, logo que tenha diligentemente aprendido de seus
professores as técnicas da invenção e da elocução (o que não é, de modo
algum, esforço ilimitado, caso saibam ensinar e o queiram) e tão logo tenha
alcançado uma prática razoável, o jovem deve escolher para si, tal como
costumavam fazer os nossos antepassados, um orador a quem siga, a quem
imite
313
. Esteja o jovem presente ao maior número possível de sessões de
julgamento e se torne um expectador frequente dos combates de que esse
orador se encarregue.
20. Nesse estágio, que ele componha, no próprio estilete, causas, não somente
as que ele ouviu proferidas, mas também outras, autênticas de fato; que faça o
papel de ambas as partes acusador e defensor e, tal como vemos
acontecer nos combates de gladiadores, que ele se exercite com as armas
decisivas. mostramos que Bruto
314
havia feito isso no discurso de defesa de
Milão. Isso é mais produtivo do que fazer réplicas a discursos antigos.
312
Retor dos tempos de Augusto; morreu em 4.dC., aprox.
313
Cf. Cíc. Brut., 305-306
314
Ver III, 4, 93; X, 1, 23.
258
Céstio
315
, por exemplo, compôs um réplica à ação de Cícero movida na defesa
de Milão, mesmo que ele não pudesse conhecer, em profundidade, a outra
parte do processo, já que se ativera à defesa apenas.
21. Muito mais rapidamente pronto estará, por sua vez, o jovem a quem o seu
preceptor tenha obrigado ao exercício da declamação, a ser esta o quanto mais
possível, semelhante da realidade; tenha obrigado a percorrer por todas as
matérias, dentre as quais hoje é costume selecionar apenas as mais ceis e
as mais de gosto popular. o obstáculos a este exercício, que pus em
segundo lugar, a quase multidão das classes de alunos e o costume de limitar
a determinados dias, as aulas de auditório e a expectativa, que em nada
contribui, dos pais, que antes ficam enumerando quantas declamações, ao
invés de apreciarem-lhes a qualidade.
22. Como eu disse, acho que no primeiro livro
316
, aquele que é bom
professor não se sobrecarregará com um número maior de alunos do que ele
possa dar conta. Além disso, saberá recortar uma loquacidade excessiva, a fim
de que seus alunos façam seus discursos tratando especificamente do que
está em controvérsia, não do que, como querem alguns, se estenda à natureza
como um todo. O bom professor ou preferencialmente ampliapor um espaço
mais largo de dias a obrigação que têm os alunos de falar ou permitirá que os
assuntos sejam divididos em partes.
23. Com toda consciência, será mais proveitoso tratar-se um assunto por
completo do que apenas começar diversos e como que servidos para
degustação. Assim, por infelicidade, acontece que nada aparece colocado no
315
Retor do fim da República. Foi hostil à oratória de Cícero, mas muito apreciado pela
juventude de seu tempo. Sêneca a ele se refere Contr., 3, 16-17.
316
I, 2, 15.
259
seu devido lugar e o que aparece em primeiro lugar não se limita às próprias
especificações, pois os jovens costumam amontoar floreios, procedentes de
todas as partes, naquilo que estão para dizer. Ocorre, então, que, temerosos
de perder o que vem a seguir, digam de maneira confusa o que colocam em
primeiro lugar.
260
VI - A respeito da reflexão
1. A reflexão está próxima do estilete
317
, em situação tal que também ela
recebe forças deste, e se compreende como intermediária entre o esforço do
redigir e a sorte precária da improvisação. Verdadeiramente não sei se dela se
faz uso com muitíssima frequência. De fato, nem sempre nem em todo lugar
podemos escrever, enquanto que para a reflexão muito de tempo e de
espaço. Em apenas poucas horas ela pode abarcar causas grandiosas. Ela
mesma, sempre que o sono se faz interrompido, é favorecida pelas trevas da
noite. Ela, no decorrer de atos processuais, sempre encontra vago um
momento e não se permite estar ociosa.
2. E não somente a ordem das ideias, o que por si seria bastante, a
reflexão traz em si mesma organizada, mas aconcatena as palavras, e, de
tal maneira forma de texto ao discurso que nada lhe falte além da o que
o registre por escrito. De modo geral, se conservam mais fielmente as ideias
confiadas à memória, que a atenção não se relaxa, como costuma
acontecer em relação ao que se entrega à segurança da escrita
318
. Mas a essa
habilidade da reflexão não se pode chegar nem de imediato, nem facilmente.
3. Antes de mais nada, convém que se forme, a partir do intenso exercício do
estilete, uma imagem escrita que nos acompanhe até mesmo enquanto
fazemos nossas reflexões. Além disso, que se adquirir o hábito de,
inicialmente, abarcar pelo espírito poucas coisas, as quais possam, o mais
317
A reflexão pressupõe uso competente de uma expressão escrita bem estruturada. Cf. § 3,
abaixo.
318
Essa é a opinião de Platão em Fedro, 275a.
261
fielmente, ser reproduzidas; a seguir, gradualmente
319
, mas de maneira tão
comedida que o esforço do trabalho o se sinta sobrepesado. que se
ampliar e se manter essa competência pela prática incansável do exercício.
Essa prática, em maior grau, se funda na memória e, por isso, acho-me na
obrigação de deixar para o momento oportuno algumas observações a respeito
dela
320
.
4. Acontece de se chegar a tal ponto que um indivíduo, a quem o talento
natural não cria objeções, mas ajudado pelo estudo persistente, consegue
alcançar coisas como reproduzir com fidelidade, enquanto fala, não somente
aquilo que tenha refletido, mas também o que tenha escrito e guardado de cor.
Cícero conta, é certo, que dentre os gregos Metrodoro Scépsio
321
e Empilo de
Rodes
322
e, dentre os nossos, Hortênsio
323
, em suas atuações, reproduziam
palavra por palavra tudo aquilo que haviam refletido.
5. Se, por acaso, durante um discurso tiver fulgurado uma coloração
imprevista, não se deve prender somente àquelas coisas o cuidadosamente
meditadas. Em verdade, as reflexões não chegam a tanto, em matéria de
cuidado, que não se possa dar espaço ao acaso. Em idênticas circunstâncias,
com muita frequência, até mesmo no que está escrito é possível inserir
coisas que subitamente sobrevêm. Consequentemente toda esta forma de
exercitação deve ser de tal maneira instituída que se possa, com fácil
mobilidade, fazer os percursos de ida e volta, entrada e saída.
319
Cf. XI, 2, 41.
320
XI, 2, 1 seg.
321
Um filósofo da escola Acadêmica, contemporâneo de Cícero, cf. de Or., 2, 360.
322
Empilus não é mencionado em parte alguma.
323
Cf. Brut., 301.
262
6. Assim como é preponderante levar de casa uma cópia do discurso,pronta
e confiável, é, de longe, a máxima tolice rejeitar os presentes de um momento.
A meditação de ser assim preparada: que o acaso não nos possa induzir ao
engano, muito pelo contrário, que ele nos possa vir em auxílio. Às forças da
memória, sobreviva um poder tal que tudo aquilo que houvermos abarcado
com o espírito flua em segurança e nos permita olhar à frente, sem
desassossego, sem estar de olhos presos no passado e, em superfície,
agarrados à esperança de um limitado conjunto de memorizações. Em outras
palavras, prefiro a temeridade da improvisação à reflexão mal concertada.
7. É muito ruim o buscar retroativamente, pois no momento em que recorremos
àquilo que pensamos, nos afastamos de outras possibilidades e, assim,
retornamos aos fatos memorizados, ao invés de avançar o nosso olhar para o
assunto propriamente. Por sua vez, muito mais numerosas, se em ambos os
conjuntos se faz necessário investigar, são as ideias que ainda se possam
encontrar do que aquelas que foram efetivamente encontradas.
263
VII - De que maneira se alcança e se preserva
a facilidade de improvisação
1. Verdadeiramente o maior fruto dos estudos e, de algum modo, o primeiro...
324
de um longo esforço despendido, é a capacidade de improvisação. Aquele
que não a tiver conseguido, segundo minha firmada opinião, de renunciar
aos afazeres políticos
325
e, ao invés disso, de direcionar para outras
atividades a capacidade que lhe resta de escrever. De modo algum convém a
um homem de boa-fé prometer um auxílio público, que pode falhar nas
prementes situações de perigo. Isto se pode comparar a um porto em que um
navio não pode atracar senão quando levado por uma brisa suave.
2. o incontáveis as situações em que, de imediato, surgem necessidades de
atuar instantaneamente, seja diante de magistrados, seja em processos que
foram escalados antecipadamente. Se alguma dessas emergências tiver
acontecido, não digo a um qualquer dos cidadãos inocentes, mas a alguém
dentre os amigos ou parentes, por acaso permanecerá estático, mudo? E o que
acontecerá aos que pedem uma fala salvadora e que hão de se arruinar
imediatamente, se nessas circunstâncias aquele que se encarrega da defesa
não lhes leve o socorro, mas vai pedir tempo, isolamento e quietude, enquanto
fabrique suas palavras; enquanto essas se instalem na sua memória; se
preparem a voz e o peito?
3. Que modelo de estruturação da eloquência permite a uma pessoa qualquer
ser, de vez em quando um orador? Deixo de considerar os incidentes, mas o
que haverá de ser, quando houver de rebater a um adversário? Em verdade,
324
Trecho lacunar.
325
Isto é, a carreira profissional de advogado.
264
frequentemente, as opiniões sobre as quais formulamos conjecturas e às quais
refutamos por escrito nos enganam, e a causa inteira se muda de repente:
assim como para um piloto, ante ao desenrolar das tempestades, igualmente
para aquele que está em atuação, por força da instabilidade das causas, todo o
planejamento há de ser mudado.
4. De que adiantam o exercício do estilete, à exaustão, a leitura assídua e uma
longa vida de estudo, se permanece inalterada a dificuldade que existiu nos
começos? que se reconhecer como perdido aquele trabalho passado, ao
qual é preciso constantemente voltar com idêntico esforço e desgaste.
Particularmente não trabalho com a perspectiva de que o orador prefira falar de
improviso, mas a minha atuação se faz no sentido de capacitá-lo para que o
possa. Conseguiremos essa capacidade pelo modo seguinte:
5. Que seja conhecido, em primeiro lugar, o percurso daquilo que se de
dizer. Em verdade, não é possível lançar-se numa corrida sem que antes se
saiba por onde e aonde se queira chegar. Nem mesmo é o bastante não
desconhecer quais sejam as partes das causas judiciais
326
, ou dispor
corretamente a ordem das questões, ainda que estas sejam as questões
fundamentais. É preciso, entretanto, saber, em cada parte, o que venha em
primeiro lugar, o que venha em segundo e o que venha depois, que todas
essas coisas são de tal natureza organizadas que não possam ser mudadas ou
separadas sem provocar confusão.
6. Todo aquele que discurse com método, antes de tudo, terá à sua disposição,
como se fosse um guia, a própria ordem sequencial dos fatos; é desta maneira
que muitos homens, mesmo aqueles pouco treinados, podem conservar o
326
Ver III, 9, 1.
265
facilmente o fio condutor em suas narrativas. Os oradores procurem saber
aquilo que se busque e em cada lugar: nem deverão se contorcer para todos
os lados, nem se deverão confundir pelo turbilhão de sentimentos que, de
todas as partes, se apresentam; que não façam do discurso um ajuntado
confuso como se fossem inquietos saltadores para e para lá, esses que
nunca se fixam em um ponto. Finalmente que estabeleçam medida e limite,
que nenhum discurso pode existir senão em consequência de criteriosa
divisão das partes.
7. E, assim, sentirão ter chegado ao seu objetivo final, tão logo tenham sido
cabalmente tratados, dentro das próprias capacidades, todos os pontos que a
si tiverem proposto. Tudo isto que acabo de dizer está no âmbito da teoria. Por
outro lado, há coisas que dependem do estudo, do esforço individual. Assim,
para que formemos um rico acervo do que de melhor, em se tratando de
linguagem, conforme se ensinou, aquilo que se vai dizer de ser de tal
forma elaborado, através do intenso e consciente exercitar do estilete, que a
mesmo as improvisações tragam em si o colorido próprio de textos escritos. É
bem verdade que se tivermos exercitado bastante a escrita, também se pode
ampliar nossa capacidade de falar.
8. Inegavelmente o uso rotineiro da linguagem e o exercício habitual produzem,
de fato, a facilidade. Por pouquíssimo que se deixem de lado essas práticas,
resulta como consequência que não apenas a velocidade de raciocínio se
desacelere, mas também a boca se contraia e tarde em se abrir
327
. É bem
verdade que é necessária uma certa mobilidade natural de espírito, de tal
forma que, enquanto dizemos o que o momento exige, possamos organizar o
327
Cf. XI, 3, 56.
266
que vem a seguir e que um pensamento favoravelmente concebido e bem
formado assuma a nossa voz.
9. Com dificuldade, no entanto, pode a natureza, ou método, conduzir o espírito
em tão variado leque de atividades, ou seja, de uma vez dar sustentação à
invenção, à disposição, à elocução, ao sequenciamento das ideias e das
palavras; mais ainda, dar suporte ao que se disse, ao que se de
acrescentar, ao que , do mais distante, se possa visualizar por antecipação,
tudo isso, enfim, com atenção voltada para o tom da voz, a fluência da
exposição, a gesticulação.
10. Convém que a atenção caminhe à frente, muito à frente, e que conduza
diante de si as ideias, e aquilo que em palavras se vai despendendo, em
proporção igual se deve repor, recorrendo-se ao próprio fundo de reservas
328
,
para que, enquanto se caminhe para a conclusão, não avancemos o nosso
olhar mental em menor distância e velocidade do que o caminhar dos pés. Isso
se o pretendemos ser como aqueles de falar entrecortado e hesitante e que
hão de balbuciar suas palavras em frases curtas e vacilantes, como fazem os
que estão soluçando.
11. Existe uma certa prática instintiva, a que os gregos chama aàlogon triben,
que consiste em fazer com que a o percorra escrevendo, enquanto os olhos
percebam na leitura, simultaneamente, os movimentos de ida e vinda das
linhas, como também seus encadeamentos e, por antecipação, vislumbrem o
que se segue, antes que tenha sido dito o que precede. Exatamente assim
acontecem as o admiráveis performances dos malabaristas e equilibristas:
328
Metáfora buscada na linguagem de banqueiros.
267
tem-se a impressão de que os objetos lançados voltem naturalmente às suas
mãos e obedeçam às trajetórias que lhes são determinadas.
12. Mas essa prática terá sua utilidade, se a preceder a arte de que vimos
falando
329
. Assim, até aquilo que em si mesmo é instintivo se torna fundado na
racionalidade. Na verdade, se não é com organização, com refinamento e com
fluência, isto não me parece um falar, mas um tumultuoso fazer ruídos.
13. Também não será definitivamente de minha admiração o encadear de um
discurso ao acaso, do tipo que vemos transbordar, quando mulherzinhas estão
discutindo. No entanto, nas circunstâncias em que o calor e a inspiração
tomaram conta, acontece muito frequentemente que se alcance improvisação
muito produtiva, cujos resultados nem mesmo o zelo mais cuidadoso pode
alcançar.
14. Quando isso ocorria, os antigos, conforme Cícero conta
330
, diziam que um
deus havia feito sua intervenção, mas mesmo assim a razão se fazia
manifesta. Na verdade, os afetos profundamente sentidos e as imagens
recentes das coisas são arrastados em seu fluir contínuo. Tudo isso, porém, na
lentidão do estilete se vai esfriando e, uma vez disperso, nunca mais se
recompõe. Além do mais, quando acontece de se acrescentar a referida
improdutiva crítica de palavras; quando o fluir, que deveria ser corrido, estaca,
a cada mínimo passo, nessas circunstâncias uma ideia não se pode lançar com
impulso contínuo e vigoroso: ainda que a escolha das palavras, uma por uma,
prossiga da melhor forma, não se consegue uma força contínua, mas um
ajuntamento.
329
§§ 5-7.
330
Cf. Cíc. De orat., I, 202.
268
15. É por isto que se hão de conceber aquelas vívidas imagens das coisas, às
quais me referi e que apresentamos com fantasias
331
. Igualmente, tudo a
respeito do que haveremos de dizer, as pessoas, os questionamentos, as
esperanças, medos, tudo de ser posto diante dos olhos e acolhido no afeto.
Com certeza, o coração é que faz os eloquentes; também o faz a força da
mente. Aos pouco experientes também, se, de algum modo, forem tocados por
qualquer afeto, não lhes faltam as palavras.
16. Enfim, é preciso que voltemos o nosso espírito não para uma coisa
somente, mas para muitas, contínua e simultaneamente, de tal forma que, se
voltarmos os olhos para um caminho em linha reta, veremos, ao mesmo tempo,
tudo o que está nele e no seu entorno: não vemos somente a extremidade,
mas vemos até a extremidade. O receio da vergonha de errar costuma trazer
estímulos à palavra, e pode parecer espantoso o fato de que enquanto o
estilete se compraza do isolamento e fuja amedrontado da vista de todos
quantos possam ser testemunhas, ao contrário, a improvisação se inflama pela
afluência dos ouvintes, tal como um soldado pela movimentação de
ajuntamento das insígnias militares.
17. Com certeza, a necessidade de falar faz com que se externe e exprima até
mesmo um pensamento de grande complexidade e faz crescerem os impulsos
de aprovação naquele que tem o desejo de agradar. A tal ponto tudo visa a um
benefício, que a eloquência igualmente, ainda que traga em si mesma muito do
sentido de prazer, se deixe facilmente levar pelo fruir momentâneo do elogio e
do renome.
331
Cf. VI, 2, 29; XII, 10, 6.
269
18. Que ninguém confie no próprio talento, de tal modo que espere, de
imediato, poder surgir para si
332
, quando ainda se é um iniciante, a habilidade
da improvisação. Conforme já ensinamos, ao falar da reflexão, igualmente
partindo de inícios modestos haveremos de conduzir aquela habilidade à
perfeição que não se pode, em plenitude, alcançar e preservar senão pelo uso.
19. Quanto ao mais, deve-se chegar ao ponto em que a reflexão não seja
definitivamente melhor do que a improvisação, mas seja um recurso mais
seguro. É certo que muitos alcançaram essa habilidade de improvisar não
apenas na prosa, mas também na poesia, como, por exemplo, Antípater
Sidônio e Licínio Árchias. E há razões de sobra para se acreditar em Cícero
333
,
muito além do fato de que igualmente, em nossos dias, muitos tenham
alcançado essa habilidade e continuem a exercê-la. Contudo, julgo que esse
recurso em si mesmo não seja algo o recomendável (pois não tem aplicação
prática ou se constitui uma necessidade), mas antes possa servir de exemplo
útil aos que hão de ser exortados a essa habilidade, quando estes se preparem
para o exercício do fórum.
20. Convém ainda que nunca seja tão grande a confiança na própria
competência, que não se tome um pouco de tempo, por breve que seja - em
quase nenhuma ocasião ele faltará - para examinar com atenção aquilo que
haveremos de dizer. Quando se trata de questões do tribunal ou do rum,
esse tempo é sempre dado, pois é certo que ninguém assuma uma causa, sem
que antes a tenha cuidadosamente estudado.
332
VII, 6, 3.
333
De Or., 3, 194; Pro Arch., 8, 18.
270
21 Uma ambição perversa leva certos declamadores a querer proferir, de
imediato, seus discursos, tão logo lhes tenha sido apresentado o assunto da
controvérsia, e, ainda mais, chegam a solicitar a palavra pela qual deveriam
começar sua fala, o que é, antes de tudo, frivolidade e jogo de encenação. Mas
a eloquência, por sua vez, ridiculariza a esses que lhe são assim afrontosos:
aqueles que têm a pretensão de se mostrar eruditos diante dos tolos,
parecerão tolos diante dos sábios.
22. Se, no entanto, o acaso tiver imposto a necessidade urgente de atuar em
um processo, será necessária a engenhosidade de uma inteligência ágil; todo o
vigor deve ser aplicado ao assunto e, no momento, deve-se relaxar um pouco o
cuidado com as palavras, se não for possível tratamento idêntico ao tema e às
palavras. Nessas circunstâncias, uma pronunciação mais lenta e pausada
ocupará mais tempo e o discurso fluirá como que vacilante, mas é preciso dar a
impressão de que se está em deliberação, nunca em hesitação.
23 Exatamente isso acontece, quando nos afastamos do porto, numa situação
em que o vento nos impele, sem terem sido preparados os instrumentos de
navegação. Logo depois, pouco a pouco, à medida que avançamos,
aprontamos as velas, arranjamos as cordas e fazemos votos de que se tornem
inflados os seios das velas. Antes é preferível isso do que se entregar a um
vazio turbilhão de palavras e como que ser arrastado pelas tempestades aonde
quer que elas queiram.
24. Essa habilidade, no entanto, requer um zelo não menor para ser
preservada do que aquele que houve para ser adquirida: a teoria, uma vez
assimilada, não se esvai; o estilete, igualmente, pela falta de uso, perde muito
pouco de sua celeridade; a prontidão e disponibilidade para a ação se
271
preservam exclusivamente pelo constante exercício. A melhor forma de se
servir desse exercício é falar diariamente a um grupo de ouvintes a cuja opinião
e juízo nos fazemos cheios de cuidados (é raro que alguém se encha de muitos
escrúpulos diante de si mesmo). No entanto, é preferível falar, ainda que
sozinhos, a não falar de modo algum.
25. Existe ainda aquela outra maneira de se exercitar: trata-se da reflexão
sobre os assuntos em sua totalidade, percorrendo-os em silêncio (muito
embora como se palavras soassem dentro da própria pessoa). Esta
modalidade se pode desenvolver em qualquer momento e lugar, desde que
não se esteja fazendo outra coisa. Em parte, ela é de maior utilidade do que
aquela de que falamos há pouco.
26. Agindo assim, se faz uma composição mais diligentemente, do que naquela
situação em que receamos interromper o encadeamento de uma fala. Voltando
outra vez àquela anterior, é certo que ela permite maior firmeza da voz, a
eficiência do aparelho articulatório, o movimento do corpo. Esse movimento,
como eu disse
334
, excita o orador e o instiga pelo agitar das mãos e bater dos
pés, exatamente como faz um leão com sua cauda, segundo contam
335
.
27. É preciso estudar verdadeiramente, sempre e em qualquer lugar. E quase
nenhum dia existe tão ocupado que não se possa roubar a uma atividade de
lucro um mínimo qualquer de tempo para escrever, ler ou falar, como o fazia
Bruto, segundo Cícero conta
336
. Sabe-se ainda que Caio Carbão
337
, até mesmo
334
VII, 3, 21.
335
Cf. Cíc. Brut., 141; De orat., III, 220; Sên., Epíst., LXXV.
336
Or. 34.
337
Foi cônsul em 120 a.C. e cometeu suicídio no ano seguinte, acusado de participar na
sedição dos Gracos. Cícero elogia sua eloquência e inteligência; cf. Brut., 103-5, de Or., I, 154.
272
em sua tenda de campanha, costumava entregar-se à prática do exercício da
palavra.
28. Não se deve ainda silenciar sobre a consideração - também esta é do
agrado de Cícero
338
- de que em momento algum nos é permitido negligenciar
a nossa linguagem. Tudo aquilo que venhamos a falar, em qualquer
circunstância que seja, deve ser feito de acordo com sua natural pertinência.
Com certeza, a obrigação da escrita nunca deixará de ser grande, sobretudo
depois que a habilidade da improvisação tenha-se desenvolvido. Assim, de
fato, se preserva o peso das palavras, e a necessária fluidez das palavras que
flutuam na superfície se converterá em profundidade, como, por exemplo,
acontece com os agricultores ao amputarem as raízes que, nas videiras, estão
próximas da superfície do solo. Com esse procedimento, as outras raízes, ao
se aprofundarem, vão-se fortalecendo.
29. Seguramente o sei precisar se a exercitação das duas habilidades, com
todo o cuidado e dedicação, resulte em benefício maior de um ou de outro lado,
ou seja, se pelo escrever possamos falar mais eficientemente, ou se pelo falar
possamos escrever com maior facilidade. É preciso escrever, sempre que for
possível, mas quando não, é preciso meditar. Os que estão impedidos destas
duas práticas devem exercitar, pelo menos, a fala, pois assim o orador o
parecerá ter sido tomado de surpresa, nem seu cliente parecerá ter sido
abandonado.
30. Frequentemente acontece, aos que têm atuação muito intensa, que estes
registrem por escrito as passagens mais significativas e, sobretudo, os trechos
iniciais; as outras partes, que eles podem até levar para casa, são avaliadas
338
Não foram encontrados registros sobre essa afirmação de Quintiliano.
273
pela reflexão; as que apareçam inesperadamente são deixadas à
improvisação. Os comentários do próprio Cícero indicam que ele teria agido
exatamente assim. Mas circulam alguns apontamentos de outros oradores,
achados por acaso, escritos exatamente como eles estavam para ser
pronunciados; alguns redigidos em livros, como as causas nas quais rvio
Sulpício atuou, de quem ainda restam três discursos. Mas estes apontamentos
de que estou falando foram tão bem elaborados que me parece terem sido
redigidos por ele, para ficarem como legados à memória da posteridade.
31. Os de Cícero, no entanto, ajustados ao presente de seu tempo, foram
sumarizados
339
por Tirão, um liberto. A respeito destes eu não teço
comentários desabonadores porque eu os desaprove, mas para que sejam
ainda mais admiráveis. Em se tratando deste assunto, a improvisação, admito
que se faça uso de uma anotação breve ou de pequenos fichamentos, que se
possam ter à mão e aos quais seja direito recorrer momentaneamente.
32. Desagrada-me, no entanto, o que Lenas ensina, isto é, que a nos
discursos registrados por escrito se acrescentem anotações sumárias em
forma de comentário e títulos de capítulo. Este mesmo recurso, que aumenta a
autoconfiança, traz como resultado a negligência em relação ao ato de guardar
de cor e, além disso, dilacera e desfigura o discurso. Eu, particularmente,
penso que em hipótese alguma se deve escrever aquilo que não se pretende
memorizar: em verdade, também nestas circunstâncias acontece que a
reflexão nos faça recuar ao que havia sido elaborado por escrito e não nos
permita experimentar o acaso, tal como ele se nos apresenta.
339
Possivelmente “abreviados”. Tirão, um liberto, foi amigo de Cícero, e seu secretário.
274
33. Assim, o espírito, como se tivesse duas cabeças, se toma de paixão
fervente e não perde em definitivo o que havia sido escrito, como também
não é capaz de buscar uma coisa nova. Mas quanto à memória, um espaço
a ela destinado no próximo livro, pois, como há muitas outras coisas que
precisam ser ditas antes dela, não pude abrir-lhe esse espaço aqui.
275
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Roman Studies. Society for the Promotion of Roman Studies, 1964. Vol. 54, p.
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ZEHNACHER, Hubert et FREDOUILLE, Jean-Claude. Littérature Latine. Paris.
Presses Universitaires de France, 2005.
280
RESUMÉE
Les Romains ont recouru à la rhétorique grecque pour construire leur art
oratoire, qui est devenue, ainsi, un art fonctionnel du discours persuasif.
Quintilien se présente comme celui qui donne une voix et un corps à cet art
oratoire quand il fait dialoguer les figures humaines du poète et de l’orateur; cet
interlocution montre les étroites relations entre les arts de l’oratoire et de
la littérature. Il y a un but défini, consistant à donner à celui qui énonce son
discours les moyens par lesquels ce discours peut être construit efficacement,
de façon à concilier oralité et écriture, réalité objective et artifices de fiction.
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