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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Ciências Humanas e Saúde
Instituto de Medicina Social
Cristiane Marques Seixas
Comer, demandar, desejar:
Considerações psicanalíticas sobre o corpo e o objeto na
obesidade
Rio de janeiro
2009
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Cristiane Marques Seixas
Comer, demandar, desejar:
Considerações psicanalíticas sobre o corpo e o objeto na
obesidade
Dissertação apresentada, como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Saúde Coletiva,
ao Programa de pós-graduação em
Saúde Coletiva, do Instituto de
Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Ciências Humanas e
Saúde.
Orientador: Prof. Dr. Joel Birman
Rio de Janeiro
2009
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C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
S462 Seixas, Cristiane Marques.
Comer, demandar e desejar: considerações psicanalíticas sobre o corpo e o objeto na
obesidade / Cristiane Marques Seixas. – 2009.
117f.
Orientador: Joel Birman.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Obesidade Aspectos psicológicos Teses. 2. Psicanálise Teses. 3. Angústia Teses. 4.
Nutrição Teses. I. Birman, Joel, 1946. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Medicina Social. III. Título.
CDU 616-056.3
_________________________________________________________________________________
4
Cristiane Marques Seixas
Comer, demandar, desejar:
Considerações psicanalíticas sobre o corpo e o objeto na obesidade
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Saúde Coletiva, ao Programa de pós-
graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Medicina Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração Ciências Humanas e Saúde.
Aprovado em: ________________________________________________
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
Prof. Dr. Joel Birman (Orientador)
Professor Adjunto – Instituo de Medicina Social – UERJ
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Marcia Ramos Arán
Professor Adjunto – Instituto de Medicina Social – UERJ
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Leticia Martins Balbi
Professor Adjunto – Departamento de Psicologia – UFF
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Maria Isabel de Andrade Fortes
Pesquisador Docente – UFRJ
Rio de Janeiro
2009
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Às minhas filhas Luana e Amanda
que, como eu, aprenderam que
os intervalos, as pausas e o silêncio
fazem parte do caminho.
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Agradecimentos
Ao Renato, por seu amor, por estar ao meu lado nos momentos difíceis em
que sua palavra era o melhor conforto e a maior certeza. Pelo apoio e, sem dúvida,
por poder dividir ainda mais meu tempo e minha atenção.
Às queridas filhas Luana e Amanda pela intensidade dos nossos momentos,
pelo sorriso largo e a risada solta, por serem tão especiais e não me deixarem
esquecer que a vida é sempre um grande desafio.
Aos meus pais e irmãos pela firmeza dos laços que me fizeram crescer e
especialmente à Maria Amélia pela presença e pela vida e, sobretudo, pela
permissão para vivê-la.
Ao Joel, um feliz encontro... por sua escuta atenta e generosa, por sua valiosa
orientação, que me permitiu trilhar um caminho por esse tema denso que tanto me
causa, por tudo que apreendi e pelo universo que me abriu.
À Letícia pela parceria em desvendar os sintomas alimentares e por me
ajudar a apostar sempre na psicanálise. À Leila por me dar espaço para suportar os
momentos insuportáveis.
Aos amigos da Letra Freudiana: Lea, Milvia, Cristiane, Cecília, Martha, Ana
Claudia e Eugênia entre outros, que tantas vezes escutaram meus devaneios me
permitindo construir um diálogo clínico-teórico e por insistirem nessa construção que
por vezes eu esperava que estivesse pronta em algum lugar. Em especial meu
agradecimento à Rosangela pela leitura dos meus textos, pelas observações
cuidadosas, mas principalmente pela amizade generosa, pela confiança e pelas
palavras certas nas horas certas. Obrigada!
Aos amigos de ontem e de hoje, especialmente à Bernadeth, Alessandra,
Irene e Roberto pela leitura e incentivo. Pela presença, mesmo a distância, nessa
minha jornada. Às queridas Claudia, Regina, Laura e Malu por compartilharem
dúvidas e certezas e por estarem sempre por perto.
Aos colegas da turma de Mestrado, que em sua diversidade me mostrou que
é possível reinventar-se. Em especial àquelas que me permitiram ver crescer uma
amizade e respeito mútuos, Bianca e Sabira. Aos colegas de orientação das quartas
de manhã, pelas intermináveis leituras que desconstruíram eternas certezas.
Aos pacientes que estiveram comigo por algum tempo, mesmo que somente
por alguns minutos, sem os quais todas essas dúvidas não teriam razão e para os
quais devolvo, aqui, o resultado desses anos dedicados a escutá-los.
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escrevemos na extremidade do nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa
nosso saber da nossa ignorância e que
transforma um no outro. É deste modo que
somos determinados a escrever. Suprir a
ignorância é transferir a escrita para depois, ou
melhor, torná-la impossível.
Gilles Deleuze
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Resumo
SEIXAS, Cristiane M. Comer, demandar, desejar: Considerações psicanalíticas
sobre o corpo e o objeto na obesidade. Brasil. 2009. 118 f. Dissertação (Mestrado
em Saúde Coletiva) Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
O presente estudo discute o tratamento psicanalítico da obesidade, tendo em
vista os impasses no manejo dessa problemática. Para tanto, parte-se da análise da
patologização do corpo gordo, sua medicalização e os dispositivos biopolíticos de
regulação dos corpos que figuram para propor uma diferenciação entre o sintoma
médico e seu aspecto subjetivo. Contextualizando a cultura na atualidade, que
coloca em evidência o corpo, desenvolve-se a disjunção entre necessidade e
demanda proposta por Lacan para pensar uma diferença ética que a abordagem
psicanalítica da obesidade oferece em relação ao dispositivo médico, na medida em
que não se propõe a normalizar os corpos segundo o peso adequado. Essa
proposta coloca em pauta a questão do circuito pulsional que, em sua matriz
alteritária, estabelece o objeto pulsional vinculado a uma perda originária que, ao
mesmo tempo, constitui o desejo como insatisfeito. Considerando que o dispositivo
psicanalítico proposto por Freud se estrutura em torno da falta que advém ao final do
complexo de Édipo, e que a angústia de castração ocupa lugar prioritário de motor
do tratamento, a obesidade se coloca como um problema à medida que a comida
comparece revestindo o objeto perdido e fornecendo a consistência à qual o obeso
permanece atado. Para pensar de que maneira a psicanálise pode acolher a
demanda feita por pacientes obesos e que recursos teórico-clínicos pode-se lançar
mão nesses tratamentos, é estabelecido um paralelo com outras problemáticas, tais
como: as toxicomanias e a bulimia. Propomos, por fim, que o tratamento
psicanalítico visa oferecer um campo de subjetivação que permita a emergência da
angústia não somente referida ao corpo e seus excessos, possibilitando a
construção de recursos simbólicos necessários à elaboração do real pulsional. Para
tanto, enfatiza-se a importância do estabelecimento da transferência, da presença
do analista e da função das entrevistas preliminares que, nesses casos, se
constituem como um longo trabalho prévio.
Palavras-chave: Obesidade, Psicanálise, Corpo, Compulsão, Vazio.
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Abstract
The present study discusses the psychoanalytic treatment of obesity,
considering the impasses in the management of this problematic. Starting with the
analysis of the pathologizing of the fat body, its medicating and the bio-political
issues of body regulation, a differentiation between the medical symptom and its
subjective aspect is proposed. Contextualizing the culture in the present days, which
places evidence on the body, it develops a separation between necessity and
demand, proposed by Lacan, to think about an ethical difference that the
psychoanalytical approach of obesity offers in regard to the medical view, as it does
not intend to normalize the bodies in conformity to an adequate weight. This proposal
brings the issue of the drive’s circuit to discussion, which due to its matrix of alterity,
sets the drive’s object as something connected to an originary lack that, at the same
time, constitutes the desire as dissatisfied. Considering that the psychoanalytical
technique that Freud proposed is structured around the lack that is established by the
end of the Oedipus complex, and that castration anxiety has a place of priority as the
engine of the treatment, obesity figures as a problem since food appears in the place
of the lost object and also gives it the consistence to which the obese remains
attached. To think about how psychoanalysis can receive the demand of these obese
patients and what theoretical and clinical resources can be used in their treatments, it
is established a parallel with others problems, like drug addiction and bulimia. Finally,
it is proposed that the psychoanalytic treatment intends to offer a field of
subjectivation that allows anxiety to emerge, not only related to the body and its
excesses, but making the construction of symbolic resources necessary to the
elaboration of the drive’s “real” possible. For such thing the importance of the
establishment of the transferencial relationship, the presence of the analyst and the
preliminary interviews - which in these cases constitute a long previous task - is
emphasized.
Key words: Obesity, Psychoanalysis, body, compulsion, emptiness.
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Résumé
L´étude présente vise à discuter des questions pertinentes du traitement
psychanalytique de l’obésité, en repérant les difficultés de cet problématique. Pour
cela, on amorce par l’analyse de la pathologisation du corps gros, de sa
médicalisation et des dispositifs biopolitiques de régulation des corps qui y figurent.
En suite, on propose une séparation entre le symptôme médical et son aspect
subjectif. Tout en observant le contexte de la culture actuelle qui met le corps en
évidence, l’étude développe la séparation entre l’idée de besoin et de demande
suggerée par Lacan, pour penser la différence éthique que l’approche
psychanalityque offre vis-à-vis le dispositif médical, dans la mesure il ne propose
pas à normaliser les corps selon le poid adéquat. Cette démarche met en bat la
question du circuit pulsionnel qui, dans son origine d’altérité, établie l’objet pulsionnel
lié à une perte originelle; elle configure à la fois, le désir en tant qu’insatisfait.
Considérant que le dispositif psychanalityque proposé par Freud se structure autour
du manque qui survient à la fin du complexe d’Oedipe et que l’angoisse occupe une
place prioritaire comme moteur du traitement, l’obésité se présente comme un
problème à la mesure la nourriture paraît voilant l’objet perdu et fournissant la
consistance à laquelle l’obèse demeure attaché. Pour penser de quelle manière la
psychanalyse pourait acceullir la demande qui provient des patients obèses et
penser quels recours théoriques et cliniques on fait appel dans ces situations, on
établie un paralèle avec d’autres problématiques, par exemple la toxicomanies et la
boulimie. Cette étude tente de montrer encore que le traitement psychanalytique
offre un champ de subjectivation qui permet l’émergence de l’angoisse pas
seulement raportée au corp et ses excès, mais permettant la construction de recours
symboliques nécessaires à l’élaboration du réel pulsionnel. Et pour ce faire, on met
l’emphase sur l’importance du transfert, sur la présence de l’analyste et sur la
fonction des entretiens préliminaires qui, dans ces cas là, se constituent comme un
long travail préalable.
Mot-clés: Obésité, Psychanalyse, Corps, Compulsion, Vide.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
1. O PESO DO PATOLÓGICO.................................................................................20
1.1 História da alimentação e do corpo........................................................20
1.2 Medicalização da obesidade...................................................................26
1.3 Uma leitura biopolítica da obesidade.....................................................31
1.4 Obesidade como sintoma de uma nova normatividade.......................35
2. A CLÍNICA DA OBESIDADE...............................................................................39
2.1 A ética e os impasses clínicos no tratamento da obesidade..............39
2.2 Figurações do vazio: a psicanálise no divã...........................................46
2.3 Disjunções: necessidade, demanda, desejo.........................................58
3. A INCOMPLETUDE DO CIRCUITO PULSIONAL NA ARQUITETURA DO
DESEJO................................................................................................................64
3.1 O circuito pulsional e a variabilidade do objeto....................................64
3.2 A dimensão alteritária, o corpo e a função da imagem........................73
3.3 Acosso pulsional e desejo......................................................................78
3.4 Libidinização: do vazio pulsional à falta fálica......................................84
4. UMA COSTURA COM A ANGÚSTIA? ...............................................................91
4.1 A angústia de um preenchimento vazio................................................91
4.2 Sobre o fazer analítico e a obesidade....................................................97
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................102
6. BIBLIOGRAFIA..................................................................................................109
12
INTRODUÇÃO
O inusitado título de uma matéria, A dieta do pensamento (BUCHALLA,
2008), desperta o sonho de todo gordinho, para, logo em seguida, apresentar a
realidade do mundo das dietas e soluções prontas cujos resultados devastadores
são bastante conhecidos.
Você está pensando em internar-se num spa de emagrecimento? Então tenha
duas certezas: sim, você eliminará alguns quilos de sua silhueta. E, sim, você
engordará tudo (ou quase) de novo depois de voltar à rotina diária. Spas são
ilhas da fantasia: zero de stress, refeições em porções controladíssimas,
prescritas por nutricionistas, e uma intensa programação de atividade física.
Entre a lembrança de um bombom e a saudade do pudim da mamãe, há a opção
da massagem relaxante, do ofurô ou da conversa catártica com o gordinho ao
lado, que, assim como você, sua frio ao pensar numa torta de morango. No
mundo real, tudo conspira a favor do excesso de comida e do sedentarismo. É o
fast-food na hora do almoço, o biscoitinho na mesa do colega de trabalho, a
geladeira pronta para ser assaltada, o sofá aconchegante com a televisãozona na
frente. Como resistir? (BUCHALLA, 2008, p.151).
Apesar do alerta, milhares de pessoas vão anualmente buscar alternativas
imediatas para o excesso de peso, impulsionadas pela ameaça da gordura à saúde
da população e pela propaganda massiva que tem nesse filão uma gorda fatia de
investimento. Considerada por sua alta prevalência e pelo progressivo crescimento
na população mundial, as referências à obesidade como “a epidemia do século” e
“um grave problema de saúde pública” repetem-se no início de quase todos os
artigos e textos que abordam o tema.
Na continuidade, a matéria apresenta uma solução não menos pronta, mas
aparentemente mais simples do que a ida ao spa com sua dieta espartana e seu
treinamento rigoroso.
Você tentou... pensar? Não, não se ofenda. É claro que você pensa, e às
vezes até em aspectos filosóficos da vida. Mas será que você pensa certo no que
se refere às suas formas? Ou melhor, será que você não está "pensando gordo"
em vez de "pensar magro"? Pensar magro (vamos abolir as aspas como um
excesso adiposo) significa, basicamente, reprogramar seu cérebro para que ele
passe a dominar a fome ou a simples gulodice até o ponto em que você possa
ignorar um prato de coxinhas da mesma maneira que despreza aquele ex-amigo
fofoqueiro. Reprogramar o cérebro não implica tomar choques elétricos ou aderir
ao zen-budismo. Requer enfrentar frituras, salgadinhos, doces e refrigerantes
sem subterfúgios e, espera-se, com alguma altivez. Nada de tentar cancelar-
lhes a existência, porque, afinal de contas, o mundo não é um spa. (BUCHALLA,
2008, p.151).
Se a reprogramação cognitiva para fins de emagrecimento é possível, seria
ela eticamente aceitável? Ou nos faz lembrar algo do que Aldous Huxley antecipou,
13
em 1931, em seu memorável Admirável Mundo Novo? O condicionamento cerebral
para seguir um programa alimentar e de exercícios físicos, os corpos docilizados
pela administração regular de felicidade sintetizada e o excesso controlado pela
ordem na qual não espaço para o conflito ou a dúvida seriam o avesso do que a
obesidade nos apresenta. Frente ao horror lipofóbico, soluções são criadas a torto e
a direito para acalantar o sonho da beleza esbelta.
O interesse por desenvolver esse trabalho surgiu a partir da clínica
psicanalítica com pacientes obesos e com sobrepeso. Ao longo de oito anos de
trabalho com esse público, o horror à gordura se coloca na prática clínica de modo
bastante variado, mas apresenta, de forma geral, algumas características comuns à
maioria dos pacientes. São exatamente esses pontos de contato entre os casos
atendidos ao longo desse tempo que colocaram as questões que serão
desenvolvidas nesta dissertação.
Uma primeira dificuldade se colocou desde o início em relação à revisão
bibliográfica, pois, curiosamente, trata-se de um tema muito pouco abordado por
psicanalistas, o que nos fez optar por realizar um trabalho que seguisse, de certa
forma, reflexões mais estruturadas dentro da psicanálise, por exemplo estudos sobre
as toxicomanias e sobre a bulimia, para construir um percurso na obra de Freud e
Lacan que oriente a prática clínica com pacientes obesos. Assim, esse trabalho
sistematiza parte de uma reflexão mais ampla sobre a prática clínica com diferentes
formas de apresentação da obesidade e por esse motivo será tomada aqui de modo
contextualizado. Não se trata de tomar a obesidade sob um referencial médico
1
, mas
ressaltar os aspectos subjetivos implicados nesse sintoma como um modo de
reorganizar a apreensão dessa condição corporal nomeada pela medicina como
obesidade. Por esse mesmo motivo optamos por usar a expressão “sintomas
alimentares” no lugar de “transtornos alimentares" como uma categoria mais
abrangente de sintomas que relacionam corpo e alimentação e que se apresentam
1
A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO), seguindo o
Consenso Latino-Americano de obesidade (1999), utiliza o sistema de classificação por Índice de Massa
Corporal (IMC) que é calculado segundo a fórmula IMC = peso (kg)/altura (metros). Os valores de referência
seguem a tabela abaixo:
Classificação IMC (kg/m²) Risco de Comorbidade
Baixo peso < de 18,5 Baixo (risco de outros problemas clínicos)
Normal 18,5 - 24,9
Sobrepeso 25 - 29,9 Aumentado
Obesidade Classe I 30 - 34,9 Moderado
Obesidade Classe II 35 - 39,9 Grave
Obesidade Classe III > 40 Muito grave
14
cada vez mais na clínica psicanalítica, levantando relevantes questionamentos nos
quais se incluem os que serão abordados neste estudo. Essa reorganização nos
permite relançar, no campo da subjetividade, as reflexões sobre o tratamento da
obesidade.
Para os fins deste estudo chamamos de obesidade não a característica
orgânica em que há o aumento do tecido adiposo, mas sobretudo quando o excesso
de peso se apresenta de forma crônica, promovendo uma permanente insatisfação
com o corpo. Trata-se de casos em que a busca pelo emagrecimento ocupa lugar
privilegiado na vida das pessoas e que, por esse motivo, apresentam determinadas
características subjetivas, dentre as quais destacamos, primeiramente, a posição
passiva com que o obeso se apresenta em relação não à obesidade, mas a uma
série de aspectos da vida. Essa passividade fica evidente num discurso marcado
excessivamente por referências corporais, corpo do qual o obeso parece não
apropriar-se, mas sim separar-se. Reflexo disso é a desimplicação com que se
engajam em um novo tratamento: ao profissional de saúde é delegada a tarefa da
cura, restando ao obeso a queixa em relação ao sacrifício a que se submetem para
emagrecer ou ao sofrimento que a genética lhes impõe. Esse coro é entoado em
uníssono nas salas de espera dos endocrinologistas e nutricionistas, nas academias
de ginástica, nas diversas modalidades de grupos terapêuticos ou de ajuda mútua e,
no limite, na fila de espera pela cirurgia bariátrica.
Pode ocorrer que essas características estejam presentes em pacientes com
Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 (obesidade classe I) ou em pacientes
que se apresentam somente com sobrepeso (IMC entre 25 e 29,9), mas que devido
à cronicidade da relação problemática com a alimentação e com o corpo tendem a
ficar obesos no longo prazo. Essas características discursivas estão cada vez mais
disseminadas na atualidade, tendo na obesidade seu paradigma por remeter à
concretude corpórea toda problemática em que o sujeito pode reconhecer-se. Trata-
se, portanto, de sujeitos marcados por uma lógica do comer que ultrapassa as
fronteiras das estruturas clínicas e implica, desse modo, uma investigação da
dinâmica psíquica resultante da instauração desse tipo de problemática.
Assim, a questão da obesidade se coloca na experiência clínica como um
impasse por não oferecer um resultado que atenda às expectativas médicas de
emagrecimento a longo prazo, ou mesmo às expectativas dos pacientes em relação
ao sofrimento suscitado pelo excesso de peso. O tratamento dispensado aos
15
pacientes obesos e com sobrepeso segue as orientações da Organização Mundial
de Saúde (OMS) e International Obesity Task Force (IOTF), essas orientações são
analisadas e adaptadas à realidade de cada continente/país, gerando consensos
médicos sobre a melhor maneira de manejar a situação. De modo geral, a
abordagem da obesidade está alicerçada no binômio saúde-doença, buscando
através do emagrecimento o restabelecimento de um estado suposto inicial em que
a saúde estaria associada ao corpo magro. A vinculação do binômio é marcada pela
ideia recorrente de que a doença principal é a obesidade, sendo essa a
desencadeadora de outras doenças associadas, chamadas comorbidades. É sabido
também que as orientações mais recentes primam pela conservação de hábitos
saudáveis mais do que pelo efetivo emagrecimento outrora preconizado. Entretanto,
o discurso vigente apóia-se no atrelamento da condição orgânica da obesidade a
uma entidade patológica como apelo ao emagrecimento. Como consequência dessa
perspectiva, identificamos o crescimento de algumas atitudes e crenças
naturalizadas tanto no meio médico como no social, como a ideia de que o obeso
não emagrece por preguiça, desleixo ou falta de “força de vontade”, bem como a
distorcida e consequente desimplicação no tratamento, uma vez que por ser uma
doença deve ser tratada por um médico, seja pelo uso de medicamentos, seja pela
utilização de uma dieta mais eficaz. Essa forma predeterminada de encarar o
problema da obesidade, seja em relação ao manejo do tratamento ou aos efeitos
socioculturais causados pela propagação da ideia de uma epidemia em curso
termo que por si está impregnado de significações nefastas é a reedição de
antigos modelos de controle social e repressão dos corpos que subjaz à permanente
busca pela saúde.
A obesidade reconhecida como entidade da clínica dica contribui para a
cristalização da posição do obeso crônico, caracterizando a passividade com que se
apresentam em relação àquele que supostamente detém o saber sobre sua doença.
Essa vitimização a que os obesos vêm se submetendo mais recentemente à notória
inabilidade do profissional de saúde em encaminhar um pedido de ajuda feito pelos
pacientes são os ingredientes necessários para um tratamento malogrado. A
reiterada afirmação da obesidade como doença em paralelo à cultura do corpo
magro abre espaço para a inscrição de todo tipo de sofrimento no sujeito
contemporâneo, sem que esse sofrimento suscitado pelo excesso de peso tenha
lugar no tratamento. Por mais que esteja em curso uma abertura do dispositivo
16
médico a outras especialidades, oferecendo um tratamento multidisciplinar, o
uma construção teórica consistente no campo da psicologia e da psicanálise,
exceção feita aos teóricos cognitivistas que, por oferecerem uma abordagem similar
e em consonância ao dispositivo médico, são convidados a debater os impasses do
tratamento, mesmo não encontrando a efetividade deles esperada.
2
Essa dupla determinação, em que a obesidade é tomada como uma doença
implicando um tratamento específico, se apresenta como um obstáculo para o
dispositivo analítico, pois não facilita que o obeso possa encaminhar seu sofrimento,
conduzindo seu o próprio tratamento. Assim, a principal característica subjetiva que
se apresenta na maioria dos casos é a dificuldade em subjetivar seu sofrimento quer
seja pela impossibilidade em tornar discursiva a queixa e o sofrimento que ficam
referidos ao corpo, quer seja de forma mais radical no próprio esvaziamento
discursivo, que não veicula uma abertura na qual possa se inscrever um
questionamento direcionado ao outro, mas sim a eterna expectativa de que um novo
tratamento, remédio ou médico possa livrá-lo desse estorvo que é a gordura.
Portanto, para ressituar a questão do tratamento da obesidade é preciso
promover a passagem de um referencial biomédico para um novo paradigma. No
paradigma determinista, a obesidade é abordada como um descompasso entre
consumo e gasto energético, incapaz de enfrentar a complexidade do desafio que se
apresenta ao campo da saúde coletiva e, especificamente, ao campo psicanalítico.
Ao abordar tal paradigma, pode-se deslocar o ponto de vista da obesidade de uma
perspectiva eminentemente biomédica, para pensá-la a partir da clínica psicanalítica
com pacientes obesos ou com sobrepeso que, submetidos aos ditames de uma
norma estética que preza pelo corpo magro, sofrem as consequências subjetivas da
inadequação à norma. Para além da efetividade do tratamento, interrogar a
obesidade com base na psicanálise promove a recuperação do sentido proposto por
Freud às formações sintomáticas que tinham na histeria o modelo paradigmático de
seu tempo. Uma solução de compromisso entre as exigências pulsionais e as da
civilização – isto é o sintoma do qual o sujeito sofre.
Observa-se que as mudanças socioculturais nos últimos 50 anos, que
promoveram uma reorganização do imaginário social a respeito de temas
2
O Consenso Latino-Americano de Obesidade (1999) indicou a necessidade do tratamento psicoterapêutico,
porém, só admitiu a efetividade dos tratamentos por terapia cognitivo-comportamental individual ou em grupo,
com a ressalva para as limitações que esta apresenta na manutenção do peso a longo prazo. Aponta, ainda, que
não existem estudos suficientes para demonstrar a eficiência de terapias psicodinâmicas como a psicanálise.
17
concernentes ao corpo e à alimentação, o concomitantes ao momento de
transição alimentar em curso na humanidade, no qual se constata o aumento da
oferta de alimentos em oposição aos longos períodos de precariedade alimentar a
que a humanidade vem sendo submetida desde sua origem. Essa articulação entre
corpo, cultura e sofrimento leva-nos a pensar de que maneira essas mudanças
proporcionaram um sobreinvestimento na função alimentar que denuncia o jogo do
consumo irrefreável de objetos como tentativa de preencher o vazio proporcionado
pelo mal estar da vida contemporânea. É interesse deste estudo discutir se o
deslocamento do alimento de sua função primordial, a saber, a nutrição, se articula
em última análise a uma especificidade no reconhecimento narcísico do corpo, que
implica uma forma singular de relação com o objeto, gerando um modo peculiar de
suplantar o sofrimento inerente ao ser humano.
Procuraremos construir uma base teórica, a partir da qual se podem indagar
os impasses da clínica dos sintomas alimentares em geral e, especificamente, a
clínica da obesidade. Para tanto, buscaremos delinear e construir elementos para
uma reflexão a respeito da especificidade da clínica psicanalítica com pacientes
obesos e com sobrepeso e de que maneira essa práxis, que, como enuncia Lacan,
se coloca em “[...] condição a tratar o real pelo simbólico” (LACAN, 1995 b, p. 14),
pode contribuir para o tratamento e prevenção da obesidade, tomando-a não
somente como uma doença orgânica, mas como um sintoma que vem em resposta
a exigências sociais, estéticas e morais construídas no seio da cultura ocidental.
Mais do que classificar pessoas segundo o peso de seu corpo ou os riscos que o
excesso de peso impõe à saúde, trata-se aqui de apreender uma nova forma de
subjetivar o sofrimento que pesa sobre o corpo e o faz parecer cindido do Eu e não
mais incidindo sobre ele e dividindo-o.
Na primeira parte da dissertação, situaremos historicamente como se deram
as mudanças alimentares desde a Antiguidade até a atualidade, apontando o lugar
cultural ocupado pela alimentação. Ao mesmo tempo, buscaremos marcar as
mudanças históricas sofridas pelas representações sociais do corpo, indicando as
inter-relações entre a alimentação e os valores atribuídos ao corpo gordo ao longo
do tempo, localizando a emergência da obesidade como problema. Procuraremos
apontar em que contexto histórico se deu, inicialmente, a associação da gordura
com a categoria de doença, indicando a progressiva medicalização da obesidade.
Nesse ponto, a obra de Canguilhem (2002) será tomada como referência para
18
diferenciar a obesidade como doença do efeito de alienação nos ideais de saúde e
beleza, demonstrando como a permanente afirmação da obesidade como doença
tem um efeito iatrogênico, reforçando e reproduzindo o imaginário social sobre a
gordura.
Neste percurso inicial daremos especial destaque para o caráter
eminentemente regulador dos discursos sobre o corpo e a alimentação por uma
análise que tem como referência a biopolítica foucaultiana. Da mesma maneira, será
analisada a passagem do modelo normativo disciplinar para uma nova
normatividade na qual impera a soberania individual, em que a obesidade se
apresenta como um sintoma dessa nova normatividade, posto que denuncia a falha
desse dispositivo. Nesse sentido, coloca-se como um primeiro desafio marcar uma
diferença ética que a abordagem psicanalítica da obesidade oferece em relação ao
dispositivo médico, na medida em que não se propõe a normalizar os corpos
segundo o peso adequado ou um referencial de saúde, mas fazer o desejo voltar a
fluir.
Na segunda parte da dissertação, mostraremos como a importância dada ao
corpo e a função identitária que este alcançou marcam o sujeito pós-moderno pela
concretude orgânica e elevam o corpo à categoria de bem supremo, demandando
cuidados cada vez mais especializados, numa tentativa de conformá-lo a uma norma
estética lipofóbica. A associação entre a globalização e a interminável oferta de bens
de consumo denuncia a tentativa de dar conta do vazio instalado e radicalizado pela
sociedade pós-moderna, incluindo na cadeia o objeto alimento. O segundo desafio
reside em articular essas mudanças sócio-culturais à teoria psicanalítica, pois coloca
em pauta os impasses da clínica. Retoma-se, a partir daí uma variada gama de
abordagens de situações-limite como as teorizações sobre as dificuldades de
tratamento com pacientes borderlines, estados-limite, compulsivos, bulímicos e
obesos, situando como os diferentes teóricos posicionam-se a esse respeito.
No que tange à obesidade, na passagem de um mundo faminto no qual
imperava a escassez alimentar para um mundo da fatura, a comida parece revestir
imaginariamente o objeto do desejo, passando a ser o objeto de uma suposta
necessidade. Nesse sentido, consideraremos a disjunção entre necessidade,
demanda e desejo proposta por Lacan (1997 a) para deslocar a problemática da
obesidade do plano orgânico e biológico. Esse deslocamento coloca em evidência a
19
problemática da frustração, introduzindo um questionamento acerca do objeto
pulsional, que, na obesidade, parece estar conectado à necessidade.
Para tecer contribuições para a clínica psicanalítica, procuraremos na terceira
parte abordar a questão da obesidade pelo viés da relação de objeto, evidenciando
a dinâmica pulsional em que se busca a satisfação na especificidade de um objeto, o
objeto comida. Optaremos por um recorte lógico em Freud e Lacan, para constituir
elementos que articulem a intrínseca relação entre a pulsão e o objeto que se
estabelece pela constituição da alteridade, destacando a importância da elaboração
acerca do excesso pulsional como ponto nodal para o entendimento da eleição da
comida como recurso para contenção do sofrimento. Articularemos, portanto,
conceitos fundamentais da psicanálise, a saber: narcisismo, objeto pulsional, pulsão
de morte e angústia, para entender os caminhos que colocam o corpo obeso como
protagonista de um desamparo originário, percorrendo, para tanto, as mudanças
tópicas da teoria freudiana, bem como as diferenças essenciais entre a primeira e a
segunda teorias pulsionais e a primeira e a segunda teorias da angústia.
Por fim, analisaremos como o dispositivo analítico se estrutura a partir do
modelo da histeria e as dificuldades que isso coloca na abordagem da obesidade,
para propor de que maneira a psicanálise poderá acolher a demanda de tratamento
feita por pacientes obesos e que recursos teórico-clínicos devem-se lançar mão para
permitir a continuidade desses tratamentos em que o aspecto pulsional parece se
apresentar no corpo sem mediação simbólica.
20
1. O PESO DO PATOLÓGICO
1.1 História da alimentação e do corpo
Deixemos de lado a idéia de que o cotidiano não tem história, de que tudo, desde sempre, foi igual ao que
conhecemos atualmente. Na realidade, os gestos do dia-a-dia transformam-se, junto a tudo aquilo a que estão
relacionados: as estruturas do cotidiano deixam-se surpreender pela história.
Flandrin e Montanari
A banalidade com que têm sido tratados temas como corpo e emagrecimento
antecipa a importância desse estudo. Fala-se do corpo do outro, do corpo próprio,
do corpo perfeito, do corpo saudável, enfim, fala-se do corpo que pesa. Peso que
não pode ser medido pela balança, mas que encontra nesse referencial seu maior
peso. Emagrecer tornou-se uma missão e uma obrigação. Fala-se do que se come,
de como se come e do que se deve comer e parar de comer. Para compreender
como os temas corpo/obesidade/emagrecimento se tornaram o assunto do momento
é preciso fazer um passeio pela história da alimentação analisando essa função
primordial e suas vicissitudes, visando reconstruir a história da obesidade nas
dimensões social, cultural e subjetiva.
Apesar da amplitude e abrangência que esse tema alcançou na atualidade, a
obesidade acompanha a humanidade desde as sociedades pré-históricas. Sua
representação artística tem como principal referência a Vênus de Willendorf, uma
pequena estatueta de 11 cm que representa a fecundidade e atesta a existência da
obesidade naquela época, 25.000 a.C. Também podemos antever que a
obesidade não pode ser tomada como um objeto de estudo isolado do contexto
social e subjetivo em que emerge, pois se trata de uma condição orgânica
profundamente marcada por significações diversas que nem sempre são evidentes
numa apreensão ingênua.
21
Figura 1: Vênus de Willendorf.
(Foto: Don Hitchcock 2008. Museu de História Natural de Vienna).
Realizar um passeio pela história da alimentação é também excursionar pelo
cotidiano de uma sociedade que se expressa nos hábitos alimentares. Esse caminho
nos é facilitado por Flandrin e Montanari (1998), que reúnem no livro A história da
alimentação um vasto material escrito por diversos autores a respeito do tema,
situando o cotidiano alimentar de cada época. Apesar de não contemplar os últimos
10 anos tão significativos para a apreensão do que ocorre a respeito da obesidade,
nos fornece um fiel panorama da atual configuração alimentar, através do qual
podemos acompanhar as mudanças culturais, políticas e econômicas influenciando
diretamente o advento de hábitos e condutas. Seja ao analisar a mudança postural
na forma de alimentar-se, que passou da posição deitada para a posição sentada,
seja na análise da introdução de certos alimentos e sua incorporação por
determinadas culturas, os autores propõem uma nova forma, menos fragmentária,
de analisar o passado. Na introdução desse livro indicam que os historiadores da
alimentação afirmaram de forma resoluta o papel central de seu objeto de estudo e
22
sua posição estratégica no sistema de vida e de valores de diversas sociedades.
Dessa história minuciosamente reunida por Flandrin e Montanari, vale destacar três
momentos importantes para nosso estudo, a saber: a dinâmica da alimentação no
mundo antigo, os sentidos da alimentação na sociedade cristã da Idade Média e a
virada nos hábitos alimentares a partir da modernidade.
No mundo antigo, mais especificamente na Grécia, o principal aspecto da
alimentação era a importância dada ao banquete por sua estreita ligação com o
processo de reprodução do corpo social, pois aquele definia a condição de humano
e diferenciava os gregos das demais sociedades. A comensalidade era, então,
marcadamente uma estrutura identitária: um homem é reconhecido como cidadão
“que toma parte das decisões que dizem respeito a toda a comunidade, pela sua
participação em uma série de atividades coletivas, dentre as quais o banquete.”
(PANTEL, 1998, p. 163). As orientações gregas quanto à arte do banquete inseriam-
se em uma série de orientações de condutas morais que obedeciam a uma ética da
temperança. Foucault (1984 a), ao investigar a história da sexualidade, aponta que a
sociedade grega desenvolvia uma reflexão em torno da maneira como os cidadãos
ocupavam-se do corpo, visando regular atividades que eram importantes para a
preservação da saúde, incluindo a alimentação. Desenvolveu-se, assim, a
“dietética”, estreitando a relação entre alimentação e a análise da conduta moral. A
dietética, junto com a farmacologia e a cirurgia, constituía um dos três ramos da
medicina e definia um regime a ser seguido para alcançar o equilíbrio, bem supremo
disponível apenas aos homens virtuosos. O regime não se restringia a uma
orientação alimentar, mas fixava um conjunto de regras de conduta, uma “arte de
viver” segundo a qual se colocava em questão a firmeza moral, indicando que para
além do cuidado com o corpo e a saúde, as regras visavam na justa medida uma
“vida útil e feliz nos limites que lhe foram fixados.” (FOUCAULT, 1984 a, p. 96), uma
ética afinada com os preceitos políticos e filosóficos daquela sociedade. Podemos
notar uma primeira articulação entre conduta alimentar e moral que será reiterada ao
longo da história, constituindo uma das grandes dificuldades enfrentadas atualmente
no tratamento da obesidade.
Assim como os gregos, os antigos egípcios preocupavam-se com a dieta
como uma forma de preservação da saúde, associando esse efeito não à
quantidade de comida ingerida, mas também à qualidade da mesma. Moderação
sempre foi a orientação desde a Antiguidade para combater a gordura, antecipando
23
a ideia mecanicista de que a o acúmulo de gordura ocorre em função de um
desequilíbrio energético. Segundo Mazzini (1998), de Hipócrates (século V a.C.) a
Antimo (século VI d.C.) não se observa uma evolução dos princípios dietéticos,
principalmente os alimentares.
Se na Antiguidade as orientações alimentares estavam relacionadas a
atributos pessoais, na Idade Média essas exigências passam a definir as classes
sociais a que cada pessoa pertence.
Os nobres terão sua dietética, sua gastronomia, suas maneiras de se portar à mesa.
Os camponeses terão outras. A mesa e a alimentação se tornarão o principal
instrumento para corroborar e manter a ordem estabelecida. (FLANDRIN;
MONTANARI, 1998, p. 386).
Desde podemos ver que o alimento, bem como o ato de alimentar-se,
reveste-se de um valor externo que se inscrevia na hierarquia social (GRIECO,
1998, p. 477). A sociedade cristã adquiriu considerável importância na proliferação
das orientações alimentares e do seu impacto social, quando associou a comida ao
pecado da gula. Da regra monástica ao poder absoluto dos reis e soberanos, a
sociedade cristã medieval se estruturava em torno da prevenção e punição do
pecado, desenvolvendo todo um sistema a partir do qual a prática da dieta passou a
ser um recurso de vigilância e regulação social. Ao mesmo tempo em que a moral
cristã e a dietética imprimiam suas marcas nos costumes da sociedade, vemos
surgir a partir do culo XII os primeiros documentos dedicados às boas maneiras e
as regras do comportamento à mesa (ROMAGNOLI, 1998, p. 499), tradição que
perdurará até os nossos tempos, com certas modificações e acréscimos.
3
Nos séculos XVII e XVIII, as elites começam a deixar de lado as orientações
da dietética antiga e as precauções higiênicas da medicina, favorecendo um
afrouxamento que permitiu a entrada de novos alimentos no cardápio europeu e
uma busca pela satisfação do gosto em detrimento da boa saúde. Segundo Flandrin
o gosto teria ganhado uma estranha valorização, pois se passou a falar de um
sentido figurado para além do sentido que permite discernir o comestível do não-
comestível. O gosto passa a “[...] distinguir o bom do ruim, o belo do feio; é o órgão
característico do ‘homem de gosto’, um dos avatares do homem perfeito.”
3
A respeito dos efeitos e nuances do processo de desenvolvimento civilizatório ver: ELIAS, N. O processo
civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1 e 2.
24
(FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 549). Essa valorização do gosto, a vinculação
da comensalidade ao convívio social e a chegada das primeiras especiarias à mesa
européia permitiu uma certa liberação da gula e um incipiente culto à boa cozinha.
4
Apesar da forte reprovação aos prazeres corporais, o gosto ganhou um importância
maior do que podemos atualmente imaginar.
[...] consideramos a visão ou até mesmo a audição muito mais úteis. Inclusive no
campo alimentar, que é graças a nossos olhos que lemos a lista de ingredientes
de uma lata de conserva, a data-limite do consumo, ou então sabemos se a água de
uma fonte é potável ou não. Nosso ambiente deixou de privilegiar o gosto para
detectar o que é bom ou prejudicial a nossa saúde e, aliás, os nutricionistas
deixaram de nos aconselhar a ouvir suas sugestões. (FLANDRIN, 1998, p. 684).
Na passagem do século XVIII ao século XIX, testemunhamos o crescimento
demográfico, o consequente desenvolvimento das cidades e posteriormente a
industrialização na esteira do progresso das ciências. Com a ampliação dos
mercados e a conquista de novas terras, ao final do século XVIII vemos surgir na
figura da burguesia ascendente, a gordura como símbolo de riqueza e distinção
social em oposição a uma degradação da alimentação do povo marcada por crises
de fome e escassez de gêneros alimentícios do Antigo Regime.
Figura 2: Betsabé. Rembrandt, 1654. (Paris, Museu do Louvre).
4
Curiosamente nesse período houve o aparecimento de novos conceitos e palavras como o “gosto” no sentido
do bom gosto e “paladar”. O gosto alimentar também passou a servir metaforicamente para distinguir o belo do
feio nas obras de arte, outro forte interesse que se desenvolveu ao longo do século XVII.
25
A migração dos europeus para as colônias recentemente conquistadas foi
fortemente influenciada pela abundância alimentar dos novos continentes, tendo
como principal exemplo o caso dos Estados Unidos, que desde o início,
reconhecidamente e com orgulho, consideravam-se o povo da abundância.
As mudanças alimentares no cardápio europeu, como a introdução da batata
e do açúcar refinado, consequência direta dessas transformações econômicas e
sociais e do aumento da produtividade nos campos, fizeram com que o corpo
mudasse consideravelmente.
O ideal de beleza, tão bem retratado por pintores como Rubens e Rembrandt,
era mediado por esse novo referencial capitalista em que nascia certo culto ao
consumo de alimentos de luxo. Nesse contexto, a gordura passa a qualificar as
pessoas que têm acesso à boa mesa, em oposição aos pobres que, por sua
carência alimentar, sofriam toda sorte de doenças e pestes.
Figura 3: As três graças. Rubens, séc. XVII. (Madrid, Museu do Prado).
26
1.2 Medicalização da obesidade
Física e mentalmente, cada um de nós é único. Qualquer cultura que, no interesse da eficiência ou em nome de
qualquer dogma político ou religioso, procura estandardizar o indivíduo humano, comete um ultraje contra a
natureza biológica do homem.
Aldous Huxley
Apesar da vasta produção médico-científica a respeito da obesidade, em
poucas obras podemos identificar claramente sua construção como uma categoria
clínica, porém essa maneira moderna de apreensão remonta aos primórdios da
medicina, mesmo aos primórdios da ciência. Inicialmente associado às
preocupações com a saúde, o excesso de peso figurava como uma característica de
cada indivíduo, sobre o qual pesavam uma série de recomendações e cuidados, não
por que a obesidade implicasse no risco iminente de vida, mas pelo pouco
conhecimento a respeito dos mecanismos que levavam à doença e à morte.
Segundo Mazzini (1998), muito se escreveu na Antiguidade sobre alimentação, entre
as obras médicas, os tratados exclusivamente alimentares eram chamados “tratados
dietéticos”. Como já foi dito, a dietética compunha com a cirurgia e a farmacologia os
ramos fundamentais da medicina antiga e se incorporou definitivamente ao conceito
de saúde, apesar de ser originalmente reservada às pessoas ricas e abastadas que
poderiam dedicar-se aos cuidados com a saúde (MAZZINI, 1998, p. 255).
Diferentemente do que aconteceu posteriormente, nesse momento as orientações
preservavam a percepção da natureza do corpo.
Em primeiro lugar, é importante que cada um conheça a natureza do próprio corpo.
Com efeito, alguns são magros, outros, obesos; alguns são quentes, outros frios. (...)
É raro encontrar alguém que o tenha sequer um ponto fraco. O magro precisa
engordar, o gordo precisa emagrecer; o quente precisa esfriar, o frio precisa
esquentar (...) sempre é preciso socorrer alguma parte doente. (CELSO apud
MAZZINI, 1998, p. 257).
No artigo intitulado Obesity: a medical history, Haslam (2007) mostra que a
aceitação da obesidade como um fenômeno médico foi lenta, na medida em que na
maioria das vezes somente os ricos se tornavam obesos devido ao acesso
privilegiado aos alimentos. Segundo o autor, Hipócrates, o pai da medicina na
Grécia Antiga, escrevia sobre a associação entre obesidade, infertilidade e morte
precoce, mas enfatizava os riscos de uma dieta pobre e os benefícios trazidos
mudanças alimentares. Em suas primeiras descrições da obesidade e suas
27
consequências em estados patológicos associados, Hipócrates antecipava a ideia
amplamente utilizada atualmente de que a obesidade se desenvolve devido ao
balanço energético positivo, ou seja, a energia excedente resultante da diferença
entre energia ingerida e energia gasta se acumularia no tecido adiposo sob a forma
de gordura. Segundo Haslam, um dos primeiros casos de manejo clínico da
obesidade foi descrito por Galeno, mas a maioria dos trabalhos apontava a melhoria
na dieta e a prática de exercícios físicos como recomendações necessárias para
manter a saúde.
Porém, foi em 1765 com Morgagni, a partir do desenvolvimento da anatomia
patológica, que a obesidade foi tida primeiramente como uma doença, e a
localização da gordura no todo corporal considerada crucial. Esse precedente aberto
pela tentativa de localização da sede da doença tem efeitos importantes no campo
da dietética. Se até então os sintomas eram tomados isoladamente ou mesmo
considerados características pessoais, corporais, a partir daí uma rie de sintomas
passam a ser associados à obesidade dentre eles, destaca-se o diabetes tipo 2
que inicialmente havia sido associado ao excesso de bebida alcoólica –,
aumentando a preocupação e o interesse nos estudos sobre os mecanismos em
ação na obesidade. A descoberta das calorias como unidade de medida energética
dos alimentos levou a novos desenvolvimentos no campo da dietética, corroborando
ainda mais a hipótese do balaço energético positivo.
Marcamos aqui um importante momento na conceituação das condições
orgânicas. É nessa passagem de uma perspectiva de preservação da saúde para
um ponto de vista patológico que se inserem alguns questionamentos acerca da
ideia de doença que hoje define a obesidade. Primeiramente se faz necessário
pensar o contexto científico dessa mudança epistemológica dentro da medicina para
ressituar, na atualidade, a condição da obesidade. Façamos, pois, uma breve
digressão histórica sobre o desenvolvimento da medicina, analisando suas
mudanças a partir do advento da ciência moderna, para subsidiar uma discussão
mais ampla a respeito do tratamento da obesidade.
Na Idade Clássica, a medicina esbarrava em limitações concretas, tanto em
termos diagnósticos quanto em termos técnicos. Baseava-se muitas vezes nas
descrições hipocráticas e galênicas dos temperamentos e humores para designar o
tratamento a ser seguido. Segundo Foucault (1994), aquilo que se apresentava ao
olhar médico consistia numa experiência restrita ao superficial, a certa opacidade
28
corpórea que não se oferecia a um aprofundamento. Sob a influência cristã, a
construção do conhecimento e a prática clínica se apoiavam em conhecimentos
inconsistentes forjados a partir de uma visão mística do mundo e do corpo.
Foi a partir do desenvolvimento da anatomia patológica e a consequente
transposição desses conhecimentos para o campo da clínica (medicina anatomo-
clínica), que a doença passou a figurar como uma alteração do equilíbrio natural que
se traduzia como saúde. Com a dessacralização do corpo, este se tornou acessível
ao conhecimento à medida que o próprio ato de conhecer se deslocou da
experiência divina, da revelação, para o campo da razão. A necessidade de localizar
a sede da doença crescia à proporção que se aprofundava o conhecimento
fisiológico do corpo, estabelecendo uma correlação entre a fisiologia e a patologia.
Novos objetos vão se dar ao saber médico, na medida e ao mesmo tempo em que o
sujeito cognoscente se reorganiza, se modifica e se põe a funcionar de uma forma
nova. Não foi, portanto, a concepção da doença que mudou primeiramente, e em
seguida a maneira de reconhecê-la; nem tampouco o sistema de sinais foi
modificado e em seguida a teoria; mas todo o conjunto e, mais profundamente, a
relação da doença com este olhar a que ela se oferece e que, ao mesmo tempo, ela
constitui. (FOUCAULT, 1994, p.101).
Uma nova concepção de doença foi se constituindo de modo que não se
tratava mais da inserção no corpo de uma espécie naturalmente patológica, mas o
corpo que se tornava doente (FOUCAULT, 1994, p.155). Essa importante mudança
de paradigma retirou o sintoma da passividade de um fenômeno natural, passando a
ser o significante da própria doença. Foucault aponta que algo na natureza do
sintoma indicava o patológico por sua oposição a um fenômeno da vida orgânica.
Em O normal e o patológico (2002), Canguilhem faz uma análise da evolução dos
conceitos médico/científicos e seu primeiro questionamento diz respeito à ideia, que
se construiu sob um referencial positivista/racional, de que o fenômeno patológico
seria uma variação quantitativa do estado normal. Toda problemática acerca do
estatuto do patológico se desenvolveu a partir dessa ideia que se tornou um dogma
dentro da medicina, tamanho era o alcance das teorias positivistas de Comte.
Analisar a concepção de que as doenças seriam apenas sintomas tem
relevância na medida em que essa visão reducionista pautou a pesquisa científica
na busca pela localização das doenças, tendo efeitos na medicina atual, os quais
analisaremos adiante. Aceitar a hipótese de que as doenças têm uma localização
ofereceu um campo fértil para o desenvolvimento da ideia da existência ou do
29
estabelecimento prévio do que seria normal. Esses dois pontos de vista estão na
base da teoria positivista de Comte, que entendia a doença como desordem,
desequilíbrio. Para ele o conceito de “estado normal” equivalia ao conceito de
“estado fisiológico” sendo, assim, “reduzido a um conceito qualitativo e polivalente,
estético e moral, mais ainda do que científico.” (CANGUILHEM, 2002, p. 33).
A imprecisão dos conceitos de Comte indica, sobretudo, a impossibilidade de
tornar a terapêutica médica integralmente científica. Canguilhem destaca que, na
medida em que o normal não pode ser definido objetivamente e sua variação não
pode ser medida quantitativamente, é somente em relação a uma norma válida e
desejável que se pode medir o excesso ou a falta, apontando que o normal deixa de
ser um fato em si e se torna a manifestação de um valor referido ao perfeito e ao
ideal. Recusa, assim, qualquer tentativa de estabelecer uma ciência do normal nas
bases das ciências naturais e propõe o conceito de normatividade vital como
operador para pensar a diferenciação entre o normal e o patológico, por entender
que o julgamento que se faz de um fato é sempre referido a um valor e, ao mesmo
tempo, submetido àquele que o instituiu.
O corte conceitual que Canguilhem promove faz jus a uma herança da
filosofia vitalista na qual a vida prescinde de qualquer coisa que seja extranatural.
Nessa perspectiva, o valor que diferencia os seres humanos dos seres inanimados é
a imanência da vida que não se presta à objetivação e não se reduz a um aspecto
físico-químico, base sobre a qual se desenvolvem as ciências naturais. É a partir da
ideia de que a vida possuiria em si essa capacidade de discernir aquilo que ameaça
ou não a sobrevivência do ser humano, que Canguilhem deduz o fato de que um
estado é considerado normal por um indivíduo na medida em que este está
implicado com o valor da vida, sobretudo com sua continuidade num ambiente
específico.
[...] para um ser vivo, o fato de reagir por uma doença a uma lesão, a uma
infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não
é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por
isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma
atividade normativa. (Ibid, p. 96)
No que diz respeito à continuidade da vida, é em oposição a um valor
negativo (ameaça de perda da vida) que a atividade normativa se dá por preferência
e exclusão, instituindo normas, num movimento de retorno sobre si mesma. A
30
normatividade vital é, portanto, a capacidade do ser vivo de instituir normas para si
mesmo, ao mesmo tempo em que indica sua orientação na arte de curar (vis
medicatrix naturae).
em 1904, Canguilhem se via frente a um problema de difícil resolução que
era justamente saber de onde vem a noção de norma no sentido normativo da
palavra. De fato, a expectativa de encontrar uma verdade última sobre o corpo
repousa desde a Antiguidade sobre a medicina em seu projeto científico de
investigação, construção de conceitos e estabelecimento de orientações. Valendo-se
dessa expectativa, observamos desde a modernidade o avanço da tecnologia
médica na construção de parâmetros funcionais a partir da média populacional.
Perguntamo-nos: seria d também que viria o referencial normativo, ou seja, a
medicina trataria de converter e validar conceitos que, teoricamente, seriam mais
normativos em uma norma geral?
Para solucionar o problema, o autor toma como exemplo a análise das
anomalias comparando às anormalidades para estabelecer que a anomalia se
torna objeto de interesse científico quando se torna patológico, ou seja, quando
coloca em xeque o valor da vida, comprometendo seu prosseguimento. Baseado
nesse raciocínio ressalta, ainda, que aquilo que é diferente da norma não é
patológico, incluindo que o anormal o corresponde ao patológico, mas o
patológico é sempre anormal.
Nenhum fato dito normal, por ter se tornado normal, pode usurpar o prestígio da
norma da qual é a expressão, a partir do momento em que mudarem as condições
dentro das quais ele tomou a norma como referência. Não existe fato que seja
normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas,
patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. (…) Sua normalidade
advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é
uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida. (CANGUILHEM,
2002, p. 113).
Considerando o exposto, recolocamos a questão: a obesidade, à medida que
escapa a um ideal estético, cultural e historicamente datado da atualidade, deve ser
entendida como um estado anormal, ou se trata invariavelmente de um estado
patológico à proporção que põe em xeque a possibilidade da vida? Indo além,
quando falamos em valor da vida na sociedade contemporânea, estamos referidos à
imanência da vida de que trata Canguilhem, ou antes, a um ideal em que figuram
beleza e longevidade para além da normatividade individual? Não podemos perder
31
de vista que esse ideal a que a sociedade atual se refere, não reflete nem mesmo
uma média, caracterizando de saída a arbitrariedade desse referencial.
À luz do conceito canguilhemiano de normatividade vital, podemos retomar a
construção teórico-clínica que levou à culminância da ideia da obesidade como
doença, para introduzir uma nova perspectiva que nos permita analisar e questionar
a abordagem da obesidade e os impasses que se apresentam no decorrer dos
tratamentos.
1.3 Uma leitura biopolítica da obesidade
Com a liberdade de opinião sucede o mesmo que com a saúde: ambas são individuais, não se pode criar um
conceito de validade geral para nenhuma delas. O que um indivíduo necessita para a saúde é, para outro, motivo
de doença, e vários caminhos e meios para a liberdade do espírito seriam, para naturezas superiormente
desenvolvidas, caminhos e meios de servidão
Nietzsche
Podemos observar como estamos nos distanciando dos critérios biológicos
que delimitam o que e como é possível viver, sendo o culto à magreza que vem se
construindo ao longo dos séculos XX e XXI incompatível com a vida e a perspectiva
canguilhemiana de saúde. A respeito da articulação entre corpo e práticas
alimentares, devemos considerar a ótica foucaultiana para analisar suas inter-
relações com um permanente mal-estar, ou um mal-de-estar no corpo.
O percurso da genealogia de Foucault se sustenta inicialmente na análise do
poder soberano característico dos estados absolutistas até o século XVII. A
soberania, pode-se dizer, se exercia nos limites do território do soberano, e as
relações de poder centravam-se em torno da dominação por parte do soberano e da
sujeição por parte dos súditos, sobre os quais o soberano detinha o poder de fazer
morrer e deixar viver. A lei soberana inquestionável definia a vida de cada sujeito,
exercendo o controle rígido sobre os eventos aleatórios que se apresentavam.
Na continuidade de sua análise teórica sobre as instituições do poder,
observou o aparecimento de outra forma de poder baseado na incitação e na
vigilância, o poder disciplinar. No contexto da modernidade industrial, frente ao
crescimento desordenado das cidades, a disciplina incide sobre os corpos dos
indivíduos, buscando administrar o contingente populacional, organizando-o em
torno de um objetivo último. Através de dispositivos disciplinares e do conjunto de
32
instituições sociais que foram se desenvolvendo pouco a pouco, o poder disciplinar
visa produzir e adequar os corpos extraindo-lhes sua força útil, tornando-os corpos
dóceis (FOUCAULT, 1998). A disciplina especifica o que é proibido, diferenciando o
que é obrigatório: regulamenta a vida como um todo, prescrevendo a todo instante o
que se deve fazer.
Sobre esse novo modo de produção da subjetividade característico dos
séculos XVII e XVIII, Foucault (2002) assinala um desdobramento, a partir do século
XIX, desse poder que incide sobre os corpos individuais para uma nova técnica de
poder: o biopoder. Este tem como foco a população e vem complementar as
técnicas disciplinares
5
. O biopoder se dirige à espécie humana escrutinando todo
fenômeno que subtrai a força de trabalho, não somente através dos dispositivos
disciplinares que visavam somente normalizar os comportamentos e condutas
individuais, mas também através de uma biopolítica disseminada na trama de
instituições que se empenha em analisar dados populacionais, construindo
estatísticas e parâmetros para o controle dos processos sociais. Surgem, nessa
perspectiva, os estudos epidemiológicos e demográficos que procuram extrair um
saber a partir do seu campo de intervenção do poder: a população. É em busca de
um planejamento da vida da população, como uma totalidade, que a biopolítica se
disseminou provocando importantes mudanças nas relações de poder. O grande
legado da obra foucaultiana e sua genialidade estão em identificar ali mesmo onde o
ideal em relação à humanidade se esboça como preocupação preventiva, uma
importante mutação na forma de incidência do poder submersa numa roupagem dos
cuidados necessários, quiçá obrigatórios.
No seio da biopolítica moderna, nasce a polícia médica com o objetivo de
centralizar o saber, organizando e normalizando o enorme contingente populacional
que se localiza nas cidades. A vida, portanto, torna-se um objeto político e,
consequentemente, o corpo se concretiza como lócus de dominação. Nesses
termos, não podemos deixar de incluir as relações entre corpo e prática
alimentares, uma vez que estes vêm se tornando cada vez mais objeto de estudos
populacionais que geram regras segundo as quais se deve viver e cuidar do corpo e
5
O conceito de Biopolítica é analisado por Foucault inicialmente na última parte do livro A história da
sexualidade: a vontade de saber (1988) e trabalhado no curso do Collège de France no ano de 1976, que seria
posteriormente publicado com o título do curso Em defesa da sociedade (2000). Nessas duas análises, Foucault
procura ressaltar como se deu essa nova modalidade de poder em relação ao poder soberano. Em Segurança,
território e população (2008), Foucault retoma e avança nessa análise descrevendo os dispositivos de segurança
e como esses dispositivos, que têm como foco a população, se colocam em relação à lei e à disciplina.
33
da alimentação. Assim, o termo biopolítica, introduzido por Foucault para definir o
jogo de forças disperso nos dispositivos de poder, que incidem diretamente sobre o
corpo visando o controle e a gestão sobre a vida, é tomado para balizar uma nova
leitura da problemática da obesidade. Se no século XIX é através do sexo que se
o controle da vida e dos fenômenos populacionais, podemos tomar essa perspectiva
para pensar que, agora, é também no domínio do corpo enquanto magro e saudável
que se dá essa regulação.
A consideração do fato biológico na política tem consequências na própria
constituição do poder, pois este não se funda em si mesmo, mas advém das
próprias relações, sejam de produção, familiares ou hierárquicas. Essa característica
do poder é o que faz com que seja permanentemente produzido e reproduzido,
exigindo uma análise cuidadosa de seus mecanismos. Tal análise tem como papel
mostrar quais o os efeitos de saber que são produzidos numa sociedade
(FOUCAULT, 2008). Foucault apresenta, a partir do modelo das sociedades
disciplinares, uma nova modalidade de controle e regulação social, que nomeia
como dispositivo de segurança. Esse dispositivo regula os acontecimentos a partir
de sua inserção numa média que determinará os limites do aceitável que não deverá
ser ultrapassado. Esses dispositivos não substituem os dispositivos disciplinares,
mas articulam-se tanto com as técnicas disciplinares quanto com os mecanismos
jurídico-legais. Trata-se de analisar os riscos a que determinada população está
submetida e, a partir desses dados, construir formas de prevenção.
Do mesmo modo o corpus disciplinar também é amplamente ativado e fecundado
pelo estabelecimento desses mecanismos de segurança. Porque, afinal de contas,
para de fato garantir essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e é apenas um
exemplo, para toda uma série de técnicas de vigilância dos indivíduos, de
diagnóstico do que eles são, de classificação de sua estrutura mental, da sua
patologia própria, etc., todo um conjunto disciplinar que viceja sob os mecanismos
de segurança para fazê-los funcionar. (FOUCAULT, 2008, p.11).
Mas, por outro lado, Foucault (2008) lança mão de uma análise do problema
da escassez de alimentos nos séculos XVII e XVIII, como o exemplo da maneira
como os dispositivos de segurança se diferenciam do funcionamento soberano-
disciplinar de domínio sobre a vida e como se relacionam com os acontecimentos
aleatórios. Após uma detalhada análise econômica dos modos de regulação dos
preços dos cereais e, sobretudo, das mudanças nas formas dessa regulação que se
fizeram ao longo desses séculos na Europa, Foucault aponta que, diferentemente
34
das técnicas disciplinares que buscavam impedir previamente a escassez alimentar,
o dispositivo de segurança intervém na realidade (na oscilação
abundância/escassez e carestia/preço baixo), aumentando a liberdade de produção
e comercialização num esquema que tende a alcançar uma estabilização tanto da
escassez de alimentos quanto dos preços dos mesmos. Até então a escassez
alimentar e o flagelo da fome eram um fenômeno, ao mesmo tempo individual e
coletivo. Segundo Foucault, graças à supressão do jugo jurídico-disciplinar, esse
fenômeno se dissocia em dois níveis e a escassez alimentar se torna uma quimera.
É ao deixar que pessoas morram de fome que a escassez-flagelo desaparece, mas
a escassez que faz as pessoas morrerem não pode desaparecer. A segurança visa
não mais o fazer morrer e deixar viver soberano, mas, agora, o fazer viver e deixar
morrer moderno
6
.
Parafraseando Foucault, Jérôme Dargent (2005) sugere a expressão fazer
emagrecer e deixar engordar (faire maigrir et laisser grossir), indicando o modo
como os mecanismos globalizantes do biopoder incidem sobre a questão da
obesidade. Segundo ele o poder de fazer viver é, para Foucault, o principal na
medida em que é útil à perpetuação do biopoder, enquanto o deixar morrer é
secundário e tem um caráter passivo, assinalando a assimetria desse binômio. No
seu ponto de vista, a estratégia de poder deixa deliberadamente que as pessoas
engordem, na medida em que não há uma política de regulação e taxação de
produtos de alto valor energético como há em relação ao álcool e ao tabaco,
preconizando, por outro lado, o emagrecimento. Sua pergunta é: seria mais
importante fazer emagrecer ou deixar engordar? Ao analisar o programa “Shape-up,
America!”, Dargent ilustra que, ao oferecer os recursos necessários para o
fortalecimento de uma população enfraquecida, colocando à disposição os meios
necessários para o alcance dos objetivos do programa, essa estratégia apaga toda
causalidade explicativa do problema em si. Ou seja, fazer emagrecer em benefício
de um ganho de saúde se sobressai em relação ao quanto mais e mais a população
se deixa morrer ao não intervir no mercado de produtos alimentícios e mesmo no
mercado das dietas.
6
A consolidação do conceito de biopolítica e sua abrangência em diferentes campos de saber se deu, de fato, a
partir da publicação de seu último curso ministrado no Collège de France, sob o título O nascimento da
biopolítica (2008). Nesse curso Foucault disseca os mecanismos de regulação econômica e social, explicitando o
modus operandi de um poder que está atualmente na base de uma economia globalizada.
35
Ora, toda essa preocupação baseia-se não somente na preocupação com o
bem-estar, mas faz parte, sobretudo, de estratégias fundamentadas em estudos
econômicos. Mas como essa análise sobre os dispositivos de segurança tocam a
questão da obesidade? O que observamos hoje nos tratamentos da obesidade, e
que não podemos perder de vista, é que a obesidade começou a ter relevância no
panorama médico a partir dos anos 1980. É nesta década que o número de casos
de obesos passou a causar um impacto considerável no sistema de saúde, em
função dos elevados gastos nos tratamentos das doenças associadas à obesidade e
ao sobrepeso. Somente nos EUA, onde a obesidade atinge mais de 32.2% da
população
7
(aproximadamente 60 milhões de pessoas), os gastos com tais doenças
em 1998 circulavam em torno de 78,5 bilhões de dólares (FINKELSTEIN,
FIEBELKORN and WANG, 2003), o equivalente a 9.1% do gasto médico anual, um
percentual elevado quando comparado aos investimentos em prevenção e gastos
diretos com outras doenças como o câncer e o Mal de Alzheimer.
1.4 Obesidade como sintoma de uma nova normatividade
Le fruit le plus mûr de l’arbre est l’individu souverain, l’individu qui n’est sembable qu’a lui-même”
8
Nietzsche
A análise foucaultiana dos mecanismos do poder evidencia a intrincada
relação entre o biopoder e os modos de produção da subjetividade, o que nos leva a
delimitar o contexto social e normativo em que a obesidade se inscreve como um
relevante problema de saúde. Sem ignorar a sobredeterminação dos processos
políticos, econômicos e sociais que produzem a cada momento histórico novas
formas de viver e sentir, traçaremos um paralelo com as reflexões tecidas por Alain
Ehrenberg (1998) a respeito da depressão, pois, assim como a depressão, a
obesidade se apresenta na encruzilhada de uma série de fatores determinantes,
explicitando a imprecisão entre as fronteiras entre o normal e o patológico. O
paralelo entre obesidade e depressão suscita, ainda, precisar de que maneira esse
contexto normativo que impele o sujeito a uma busca permanente de bem-estar se
7
Dados referentes ao National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) de 2003-2004.
8
O fruto mais maduro da árvore é o indivíduo soberano, o indivíduo que se assemelha apenas a si mesmo
(tradução nossa).
36
tornou campo fértil para o desenvolvimento de diversas formas de compulsão,
dentre as quais podemos situar a compulsão por comer.
Para elucidar o contexto no qual a depressão se apresenta como uma das
principais facetas da infelicidade do homem contemporâneo, Alain Ehrenberg (1998)
analisa como, historicamente, a depressão foi alçada do papel secundário que
desempenhava na década de 1940 e passou a caracterizar uma síndrome a ser
descrita nos manuais diagnósticos, impondo importantes debates nosográficos. O
ponto colocado em destaque por Ehrenberg indica que o crescimento da depressão
está diretamente relacionado a uma mudança no contexto normativo e, portanto, às
mudanças na própria individualidade ao final do século XX.
O sujeito do final do século XIX era marcado por uma dupla regulação: de um
lado a interdição, ao mesmo tempo anterior e exterior a ele, e do outro, a disciplina
dos corpos, que regula sua conduta de fora. Para o autor a depressão desponta
frente a um arrefecimento do sistema disciplinar de gestão de condutas, em que as
regras de autoridade e de conformidade aos interditos forneciam às classes sociais
um destino e uma identidade. Se na sociedade disciplinar o indivíduo encontrava no
outro soberano o estabelecimento das referências para sua conduta, ao final do
século XX observamos um importante declínio dessas referências e,
consequentemente, um escoamento do conflito gerado pela imposição de regras
externas. O declínio do modelo disciplinar promoveu a constituição de uma nova
normatividade fundada na responsabilidade e na iniciativa em detrimento da culpa e
da disciplina, incitando cada indivíduo a tornar-se si-mesmo.
Outros campos acompanharam esse deslocamento: no campo das
psicoterapias podemos identificar as “terapias da libertação” e no campo da
espiritualidade a renovação religiosa na França dos anos 1970, ambas apoiadas
sobre o princípio de multiplicação da capacidade de bem-estar, formando, assim, a
logística do indivíduo emancipado que emerge ao final dessa década.
Nesse novo contexto normativo, impera a soberania individual, cabendo ao
indivíduo a elaboração de suas próprias regras, valendo-se tão somente de suas
capacidades e aptidões para individualizar-se. Se no contexto disciplinar o
sofrimento psíquico era engendrado pelo conflito em relação aos interditos impostos
de fora, nessa nova normatividade o deficit frente à exigência de criar suas próprias
regras, de alcançar o bem-estar e eliminar todos os riscos mostra-se como um ponto
nodal. A imposição da individualização tornou-se a regra comum e o “pessoal” não é
37
mais que um artifício normativo, demonstrando o caráter também impessoal dessa
nova norma.
Para o autor, a depressão seria, assim, o inverso dessa nova normatividade,
ou seja, uma doença da responsabilidade na qual domina o sentimento de
insuficiência. Esse sentimento de insuficiência derivado de uma normatividade em
que se pode ser cada vez melhor e que, no limite, tudo pode ser alcançado é
decisivo para pensar as novas formas de subjetivação do sofrimento. É nesse
mesmo panorama social e individual que assistimos ao crescimento do número de
casos de obesidade, denunciando que essa mudança normativa se faz ouvir
também no domínio do corpo e da alimentação.
Os corpos que circulam nos editorias de moda e nas academias figuram como
a ostentação de um deficit corporal estamos sempre aquém do esperado.
Emagrecer tornou-se uma missão e uma obrigação. Num contexto normativo em que
a referência não é mais uma regra fixa e o sujeito deve apoiar-se em seus próprios
recursos para alcançar a plenitude, é dele também a responsabilidade de manter-se
magro e saudável. No que diz respeito ao emagrecimento, trata-se de ter a tão
sonhada “força de vontade” que ainda hoje domina o imaginário médico e social.
Como a depressão e as adições, a obesidade cresce proporcionalmente ao declínio
da capacidade de representar os conflitos, subjetivando-os. Ehrenberg (1998)
aponta uma delicada relação entre a depressão e as adições. Para esse autor o
deprimido não suporta a frustração, e as adições com toda sua gama de variações
(com droga ou sem droga) representam uma tentativa de preenchimento, uma forma
de automedicação frente ao vazio depressivo.
Segundo Ehrenberg (1998), a partir da introdução da noção de dependência
psicológica na compreensão das dependências químicas, podemos observar um
reagrupamento dos comportamentos desregrados em torno da compulsão, ou seja,
a perda do autocontrole pode se dar em relação às drogas, ao cigarro e mesmo ao
alimento. As adições se constituem, assim, como um conceito amplo, abrangendo
uma série de comportamentos. O apelo permanente por objetos do mundo externo
seria, desse modo, um meio de preencher a interioridade vazia do deprimido,
colocando o sujeito a se tranquilizar na constante troca de objetos.
O vazio-impotência e o vazio-compulsão são as duas faces desse ‘Janus’. No caso
da depressão não é a tristeza que domina, mas a impotência (a dificuldade de agir)
e a incapacidade de suportar as frustrações. Elas conduzem a essa nova face da
38
depressão que é a dependência a ação desregrada produzida pela ausência de
controle de si. (EHRENBERG, 1998, p. 172).
Como as toxicomanias, a obesidade é evidentemente marcada pela insistente
evitação do mal-estar, que, nesse caso, se apresenta como sensação de fome ou
mesmo de vazio no estômago. Nos casos mais graves a presença da compulsão
alimentar
9
faz com que essa sensação seja abolida rapidamente sem que haja por
parte do compulsivo qualquer preocupação com o gosto do alimento ou mesmo com
o prazer obtido através da alimentação. Mesmo nos casos em que não ataques
de comer compulsivamente, podemos atestar a evitação do mal-estar pela ingestão
contínua de comida, fazendo intervalos muito curtos entre as refeições. O que
importa é sentir-se cheio, pleno. A comida seria repetidamente utilizada como um
recurso de contenção do sofrimento, sendo revestida imaginariamente como o
objeto capaz de aplacar o sofrimento suscitado pelo vazio corporificado.
A mudança normativa apontada por Ehrenberg (1998) a respeito da
depressão se apresenta aqui no pólo oposto: se na depressão a inibição e a
desaceleração motoras se tornaram signos privilegiados da insuficiência frente à
exigência permanente de ação, na obesidade é justamente a compulsão e a
impulsão que ganham força ao defrontar a permanente exigência de
emagrecimento, de beleza e saúde. O corpo em deficit que se evidencia como
sintoma dessa nova normatividade denuncia que o corpo não é plenamente
controlável e que emagrecer não está na dependência da iniciativa ou mesmo da
responsabilidade. A ideia de que as adições se constituem como uma resposta
frustração e ao sofrimento é amplamente discutida, mas remonta, como veremos
adiante, aos primórdios da psicanálise pós-freudiana.
9
A compulsão alimentar é descrita segundo os parâmetros médicos na categoria Transtorno da Compulsão
Alimentar Periódica (TCAP). De modo sucinto trata-se de “[...] episódios de comer em excesso caracterizados
pelo consumo de grandes quantidades de comida em intervalos curtos de tempo, seguido por uma sensação de
perda de controle sobre o que se está comendo.”. (APOLINÁRIO, 2004, p. 1).
39
2 . A CLÍNICA DA OBESIDADE
2.1 A ética e os impasses clínicos no tratamento da obesidade
A colheita é comum, mas o capinar é sozinho...
Guimarães Rosa
Na primeira parte deste trabalho, procuramos localizar historicamente como
se deram as mudanças alimentares desde a Antiguidade até a atualidade,
apontando o lugar social ocupado pela alimentação. Nesse percurso histórico
situamos as inter-relações entre a alimentação e os valores atribuídos ao corpo
gordo ao longo do tempo e a emergência da obesidade como problema. Partindo
desse panorama inicial, apontamos em que contexto se deu a emergência da
gordura como uma categoria patológica, para diferenciar a obesidade como doença
de um efeito de alienação nos ideais de saúde. Rompendo com a racionalidade
médica, apontamos em que medida a atenção dispensada ao peso e ao corpo são
indicativos das novas formas de poder e controle dos corpos, na medida em que
quase imperceptivelmente moldam novas formas de subjetivar o sofrimento.
Chamamos atenção: (1) para o caráter eminentemente regulador dos discursos
sobre a obesidade por uma análise a partir da biopolítica foucaultiana e (2) para o
desenvolvimento no século XX de uma nova normatividade em que impera a
soberania individual, tendo como efeito a produção de modos de enfrentamento
dessa nova soberania que se interiorizou. A obesidade, como sintoma dessa
normatividade, explicita o caráter incontrolável da lógica subjacente ao comer que se
anuncia muito mais como um pedido de ajuda do que um pedido de cura médica.
Coloca-se, pois, outro aspecto relevante desse estudo que é relativamente
pouco explorado, a saber, a demarcação de uma posição ética quanto ao tratamento
da obesidade e mesmo quanto à discursividade que vem se construindo em torno
dessa temática. A alienação aos ideais de saúde e beleza é reiterada em práticas
cotidianas que remetem a uma retomada do corpo como bem supremo. Dargent
(2005) ressalta que as condutas emagrecedoras estão incrustadas no nosso
cotidiano, dissimulando o controle permanente que se inscreveu no quadro recente
da reconquista do corpo, tornando-se um bem a ser conservado, um patrimônio a
40
ser valorizado. Trata-se, aqui, de construir um novo paradigma a partir do qual
podemos abordar a obesidade não somente como um corpo a ser emagrecido em
benefício de uma saúde plena, sem riscos, mas abordá-la, sim, como uma condição
corporal sob a qual podemos fazer advir um sujeito marcado pelo sofrimento que
uma norma lipofóbica impõe e que, sem dúvida, se delineia numa singular lógica em
relação ao comer.
Nesse sentido, tomar a obesidade como objeto de estudo nos coloca frente à
questão do corpo e seu estatuto. A evidência que este ganhou nos últimos 50 anos é
tomada aqui como indício da rapidez com que nosso contexto social vem mudando.
O vasto interesse pelo tema do corpo demonstra o esforço em delimitar um campo
com o qual se possa dialogar sobre esse elemento humano multifacetado. Enquanto
a antropologia e a sociologia o tomam em sua vertente sócio-cultural, a psicanálise o
faz na contramão: para além do corpo moldado pela sociedade, do corpo como
construção social, o corpo do qual se ocupa a psicanálise é recortado pela
linguagem e resulta da complexa operação de configuração da imagem que se
por intermédio da instalação da alteridade. Essa é uma diferença essencial para este
estudo. Entretanto, é também essencial acompanhar as mutações que a linguagem
e a cultura sofrem no decorrer da modernidade para propor resposta para
questionamentos a respeito da obesidade que superem o campo da denúncia ou da
culpabilização.
Segundo Jurandir Freire Costa (2004), desenvolveu-se a partir do século XIX
novas formas de constituição da identidade, trazendo para o primeiro plano o corpo,
elemento da cultura que fora até então negligenciado devido a uma permanente e
inquestionável antinomia entre mente x corpo, que fundamentava toda racionalidade
desde a Antiguidade Clássica e reiterada pela sistematização do método científico.
Ao contrário do que acontecia na moral sentimental burguesa, na qual a identidade
se construía a partir da identificação por atitudes comuns ao grupo de nascimento e
pela disciplinarização do corpo (que era tomado como a parte desprezível do ser)
em prol do aprimoramento sentimental, na atualidade os atributos físicos ganham
destaque. Segundo o autor, a virada somática, ou seja, o processo segundo o qual o
corpo transita de uma posição marginal para ganhar força e evidência, se deu em
função de um remapeamento cognitivo e, sobretudo, em função da invasão da
nossa cultura pela moral do espetáculo.
41
A respeito do remapeamento cognitivo que nos fornece as justificativas
racionais para a redescrição do que somos, Costa delineia uma série de
desenvolvimentos de campos do saber que propiciaram essa mudança na forma de
entender o mundo, ao mesmo tempo em que faz questão de enumerar os contra-
argumentos apresentados por diversos críticos da virada somática. Dentre esses
desenvolvimentos, destacaremos cinco. Primeiro, os avanços científicos das
neurociências, que vêm analisando cada vez mais as “correspondências” entre os
eventos mentais e atividades neuroquímicas e neurofísicas. Segundo, o
desenvolvimento das tecnologias médicas, que tem possibilitado uma expansão da
vida e uma maior plasticidade corporal. Terceiro, o progresso da ordem política, em
que o desinteresse por temas políticos tradicionais levou a um deslocamento para o
interesse por questões sociais em que as diferenças biológicas são fundamentais
para a construção identitária. Quarto, o avanço das espiritualidades asiáticas sobre
nossa cultura ocidental, que promoveu um discernimento dos sentidos e recolocou o
corpo como via de acesso a uma vida virtuosa, não mais como um obstáculo a esta.
E, finalmente, o progresso intelectual que possibilitou a revisão da natureza dos
fenômenos da vida mental, pela recusa da divisão cartesiana mente/corpo em
detrimento de uma visão mais holística ou ecológica da vida mental.
Além do remapeamento cognitivo, a virada somática que atribui ao corpo a
função de sedimentar a identidade do sujeito, também se deu, segundo Costa, em
função da invasão da nossa cultura pela moral do espetáculo. Segundo Debord
apud Costa (2004), na pós-modernidade o sujeito se posiciona como espectador
passivo de um mundo do qual está invariavelmente excluído, perspectiva a partir da
qual propôs uma revisão dos aspectos socioculturais sob influência da moral do
espetáculo. O corpo, segundo os parâmetros do espetáculo, figura como signo do
que é inacessível para o sujeito, sendo um dos aspectos negativos da virada
somática a busca permanente pelo corpo-espetacular que possibilitaria o acesso a
um estilo de vida que a mídia veicula como ideal e possível
10
.
A importância que o corpo ganhou na atualidade tem, sem dúvida, efeitos na
constituição do eu. Seja pela densidade identitária que o corpo passa a oferecer ao
sujeito, seja pela impossibilidade de identificar-se a um corpo que está sempre em
10
Debord, em seu livro visionário A sociedade do espetáculo (1997), introduz de modo lúcido a problemática da
tirania das imagens e da mídia, sendo o precursor de toda ctica do consumismo e da passividade moderna.
Nesse estudo nos limitaremos a apontar a incidência e o efeito da pregnância do corpo e do espetáculo na
atualidade, procurando tomar a problemática do corpo prioritariamente a partir de um referencial psicanalítico.
42
deficit, o sujeito que chega hoje nos consultórios dos analistas apresenta
singularidades em relação àquele sobre o qual se debruçou a psicanálise do tempo
de Freud. As ressonâncias dessa mudança se apresentam, sobretudo, no
empobrecimento discursivo da atualidade, que vem passo a passo ficando mais
notável, pela substituição do referencial disciplinar moderno em prol de referências
eminentemente corporais. Nesse contexto, a obesidade é paradigmática das
construções sintomáticas que colocam o corpo como o palco principal no qual o
espetáculo se desenvolve: é no próprio corpo que o fracasso fica evidente.
A teorização sobre a obesidade de um ponto de vista psicanalítico se faz
possível se considerarmos como pressuposto que o corpo que padece e sofre por
seus excessos pode ser abordado pela palavra e que o discurso pode produzir
efeitos. A psicanálise freudiana surgiu em oposição ao saber médico, abrindo um
campo de investigação que se propunha, inicialmente, a tratar aquilo que escapa à
razão moderna os sintomas que a medicina não cura. Esses são acolhidos pela
psicanálise como formações do inconsciente, fundando o campo em que se a
experiência analítica. No percurso trilhado por Freud, acompanhamos sua
insistência em circunscrever o corpo com o qual a psicanálise lida, diferenciando-o
do corpo da medicina. O testemunho clínico do inconsciente, que faz o eu consistir
onde a razão não está, e a construção teórica das pulsões como o conceito limite
entre o psíquico e o somático possibilitaram essa diferenciação reinscrevendo a
problemática do corpo da psicanálise por estar invariavelmente marcado pela força
pulsional. Foi também a experiência clínica da repetição que levou Freud a realizar
uma reestruturação teórica de 1920 com uma nova teoria das pulsões, o que o
conduziu, mais tardiamente, à construção da segunda tópica na qual o aspecto
pulsional ganhou lugar central, abrindo um espaço privilegiado para a função da
angústia no tratamento. Estudar a história da psicanálise nos permite ver como o
trabalho teórico sobre a pulsão de morte fez com que os analistas s-freudianos
retrocedessem frente aos impasses clínicos que se colocam pelo aspecto contínuo
da pulsão.
Segundo Joel Birman (2005), a negligência do corpo pela psicanálise s-
freudiana mostrou-se como um retrocesso, uma vez que a segunda tópica e a
segunda teoria das pulsões configuravam o avanço da psicanálise freudiana frente
aos obstáculos colocados pelo corpo. Birman reconhece a positividade do corpo
para a psicanálise descolando-o, primeiramente, das proposições pós-freudianas
43
que o definiam em oposição à mente, sendo por “sua natureza” reduzido aos
registros somático, anatômico e biológico e, em segundo lugar, rompendo com a
ideia de que as fronteiras do campo psicanalítico estariam definidas a partir do que
seria analisável numa tarefa de deciframento de representações, desde Freud
fadada ao fracasso. Nesses discursos o corpo estaria fora da experiência analítica,
diferentemente daquilo que inicialmente a psicanálise partiu. Junto com o corpo na
psicanálise pós-freudiana teria ficado de fora toda problemática do afeto, trabalhada
exaustivamente por Freud, e que teria sido retomada na última parte da
teorização lacaniana pelo viés do Real, podendo mais uma vez ser interrogada. Com
efeito, Birman aponta que o preço pago por essas exclusões se faz ouvir na “surdez
dos analistas aos movimentos pulsionais dos analisandos, que buscam dessas
maneiras clinicamente drásticas, entregar sua corporeidade sofrente aos analistas,
para que (...) possam finalmente escutá-los devidamente.” (BIRMAN, 2005, p. 57).
Isso posto, devemos nos perguntar: o que traz uma pessoa obesa ao
consultório de um analista? Muitas vezes os pacientes com excesso de peso ou que
se acham acima do peso são trazidos por alguém pais, mães, filhos que desejam
ver o parente saudável e, portanto, magro. Muitas vezes é a indicação de um médico
ou nutricionista que aposta que a gordura está ligada a um “problema de cabeça” ou
“emocional” que os faz desviar da infinita rota de novos tratamentos farmacológicos
ou cirúrgicos, mas muitos, talvez a grande maioria, não chegam a procurar um
analista.
Não é incomum que seja feita a solicitação de um tratamento rápido para
emagrecer para uma festa ou evento importante, ou para o próximo verão. A essa
demanda atendem os terapeutas cognitivos que com seu arsenal de técnicas de
exposição, redução de danos e prevenção de recaídas armam os sujeitos de
quimeras comportamentais e cognitivas, com as quais devem lutar contra a
compulsão que os deixa fora de controle. São eles que respondem também a uma
“abertura” do dispositivo médico a outras especialidades, oferecendo um tratamento
multidisciplinar sendo convidados a debater os impasses do tratamento, mesmo não
encontrando a efetividade deles esperada. Longe de recusar os efeitos dessas
abordagens, trata-se de esclarecer que a demanda feita a eles é, em última análise,
reintroduzir e fazer operar no âmbito da alimentação e dos exercícios físicos os
dispositivos que disciplinam o corpo.
44
Mas os obesos que, apesar dos percalços, chegam aos consultórios dos
psicanalistas, nos trazem um discurso pronto que passa necessariamente pela
exigência social e familiar de emagrecimento rápido e pelo permanente conflito entre
satisfação e frustração, prazer e sofrimento que toda dieta implica. O resquício
disciplinar se apresenta como uma irrefreável necessidade de controle sobre o
impulso de comer. Porém, frente ao fracasso dessa tentativa o dito popular não
tarda a diagnosticar como falta de “força de vontade” ou mesmo de “vergonha na
cara”, como se vergonha e força fosse tudo que o sujeito precisa para livrar-se do
tão incomodo tecido adiposo. O impasse no tratamento se instaura pela
impossibilidade de atender a essa demanda de urgência, rapidez e efetividade que a
mídia, por outro lado, veicula como possível. Se no campo da medicina o objetivo do
tratamento é a cura, no que diz respeito à obesidade é preciso considerar o manejo
desse conjunto de manifestações corporais que convergem para uma estética que
escapa à norma. Nas diversas modalidades de tratamento para a obesidade, esse
impasse se evidencia na medida em que não oferece um resultado que atenda às
expectativas médicas de emagrecimento a longo prazo, ou mesmo às expectativas
dos pacientes em relação ao sofrimento suscitado pelo excesso de peso
11
.
Ao ser tomada como uma doença que implica um tratamento específico, a
obesidade coloca um primeiro obstáculo para o dispositivo analítico, na medida que
essa definição não facilita que o obeso possa encaminhar seu sofrimento
conduzindo o próprio tratamento. O discurso se apresenta apoiado nas palavras que
lhes são ditas, nos manuais de emagrecimento que compram compulsivamente
como se cada um pudesse trazer a fórmula secreta, que ao fim não é desconhecida.
O empobrecimento discursivo é a principal característica subjetiva que se apresenta
na maioria dos casos. O sofrimento não se apresenta através de uma fala
dialetizada, metafórica, mas sim no próprio corpo que passa a condensar a dor e o
sofrimento de estar acima do peso “normal”. Pode, muitas vezes, limitar-se ao
pedido de uma “técnica” para emagrecer em que não esboça qualquer afetação: é a
radicalização do esvaziamento discursivo que não veicula uma abertura na qual
possa se inscrever um questionamento direcionado ao outro, mas sim a eterna
11
Podemos verificar que entre os terapeutas comportamentais há um relativo consenso na necessidade de rever
os objetivos do tratamento da obesidade, considerando que os poucos estudos baseados no acompanhamento
de longo prazo (em torno de 5 anos) demonstram a pouca eficácia na manutenção do peso obtido, atribuindo
essa falha ao fato dos programas serem demasiado estruturados, diretivos e invasivos (ADES; KERBAUY,
“Obesidade: realidades e indagações”, Psicologia USP, São Paulo, v. 31, n. 1, 2002.).
45
expectativa de encontrar a fórmula gica que possa livrá-lo desse estorvo que é a
gordura.
Assim, o tratamento deveria objetivar três linhas distintas:
1. O tratamento clínico das doenças associadas ao excesso de peso.
2. A relativização da exigência estética tão disseminada na cultura atual.
3. A ampliação do campo de subjetivação, oferecendo um espaço de
elaboração que se dedique a trabalhar a lógica intrínseca ao comer e
as derivações sintomáticas dela decorrentes.
A primeira linha de ação refere-se ao campo da medicina que lida com as
doenças associadas à obesidade em pacientes que apresentam a obesidade, bem
como em pacientes que não apresentam o excesso de peso. Note-se que não é raro
que devido ao estilo de vida da atualidade apareçam pessoas magras que
apresentam grande parte dos sintomas associados à obesidade, assim como
apareçam pessoas obesas que apresentam um quadro geral muito superior ao
esperado para sua faixa etária e de IMC. Em associação ao tratamento médico
estão às orientações nutricionais e de exercícios físicos que garantem acesso a
informações essenciais para sustentação de um tratamento mais amplo. Não se
trata aqui de edificar uma recusa ao dispositivo dico, muito menos de negar os
benefícios trazidos pelos avanços médicos e tecnológicos, mas, sobretudo, ampliar
o campo de intervenção, relativizando-o.
A segunda linha de ação diz respeito a um movimento mais amplo que se
alinha aos campos de movimentos sociais que buscam questionar preconceitos e
afirmar a diferença e seguiria na perspectiva abordada no primeiro capítulo deste
trabalho. É também na contribuição de Foucault que recortamos a ideia de
resistência para restituir a possibilidade de fazer frente aos dispositivos de poder,
pois onde poder, resistência constituindo o jogo de forças que promove a
construção de novos saberes-poderes
12
. Obviamente essa linha de ação está
intimamente ligada à terceira linha na medida em que uma coletividade é sempre
composta por indivíduos singulares e, portanto, sujeitos de suas ações e potenciais
agentes de transformação sociocultural.
A terceira linha de ação nos permite ressituar a questão do tratamento da
obesidade ao deslocar essa problemática de um paradigma mecanicista em que a
12
Sobre as resistências, Cf.: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984 b.
46
obesidade deve ser abordada como um descompasso entre consumo e gasto
energético baseado em médias populacionais, para uma nova referência que
enfatiza o sujeito e o modo de subjetivar seu sofrimento. Trata-se, pois, de apostar
na construção de um espaço de dialetização onde possa se dar a emergência do
sujeito do inconsciente. Se o dispositivo médico impõe como objetivo do tratamento
atender à demanda de cura e emagrecimento, a radicalidade do dispositivo
psicanalítico consiste justamente em não atender a toda demanda. O par associação
livre–interpretação fundamenta a técnica psicanalítica e junto com a transferência
permite que algo seja colocado em jogo, algo que nomeamos inconsciente. Para
além de uma existência ontológica ou de um novo objeto científico, Freud, ao cunhar
o conceito de inconsciente, inaugura um campo ético, onde se uma experiência
que é dependente da aposta do analista. O inconsciente não pode ser medido,
localizado ou visto, mas produz efeitos. Para além da efetividade do tratamento que
a medicina preconiza, interrogar a obesidade do ponto de vista psicanalítico
promove a recuperação do sentido proposto por Freud às formações sintomáticas,
que tinham na histeria o modelo paradigmático de seu tempo, e possibilita a
construção de barragens frente às exigências culturais que se consolidam numa
categórica soberania individual.
Porém, para que a psicanálise assuma o desafio de constituir essa terceira
linha de ação, é necessário partir de uma reflexão crítica em relação à prática
psicanalítica, à luz das dificuldades enfrentadas pelos analistas frente a questões tão
ancoradas na concretude corporal. Delinear o percurso subjetivo por onde caminha
a lógica do comer exige empenho clínico e dedicação teórica, num constante ir e
voltar, formular e reformular.
Ultrapassando os protocolos médicos e a surdez que se impôs aos analistas,
somos convocados a tomar posições e colocar em dúvida nossas certezas, para,
quem sabe, escutarmos o vazio discursivo da atualidade.
2.2 Figurações do vazio: a psicanálise no divã
O vazio não é um estado estável, o oposto do cheio, e que a plenitude curará: o vazio se afunda à medida que
nós o enchemos. O desejo se desenvolve nesse movimento de encher-sem-nunca-encher, tão vão quanto
incansável, sempre recomeçado e sem ter nenhuma razão para acabar, por que a parte desejante de nossa
alma tem o fundo quebrado.
Giulia Sissa
47
A epígrafe acima foi retirada do livro de Giulia Sissa, O prazer e o Mal (1999),
para reintroduzir aqui o estranhamento frente à prática aditiva que se vulgarizou na
atualidade. Antes de entrar numa discussão metapsicológica sobre a obesidade é
preciso considerar as diversas formas de pensar o objeto comida e a dinâmica de
preenchimento a que os obesos estão atados, para, a partir daí, alinhavar a gica
do comer associada à obesidade. Para tanto é necessário trazer a tona todo um
debate que encontramos no campo psicanalítico atual, que diz respeito a um
questionamento das estruturas clínicas em função do enfrentamento de situações
clínicas de difícil manejo e resultados escassos. Trata-se de pensar se na
obesidade, como em uma série de outras problemáticas, estamos diante de
sintomas neuróticos, perversos ou psicóticos ou ainda se lidamos na atualidade com
novas estruturas para as quais o dispositivo analítico não seria adequado. Essa
discussão é bastante ampla e restringiremos esse recorte a problemáticas como as
compulsões, as adições e a bulimia, por permitirem uma aproximação com nosso
objeto de estudo.
A fim de compreender os impasses da psicanálise frente ao processo de
transformação subjetiva em curso na atualidade, Diane Viana (2008) realiza uma
cartografia do mal-estar contemporâneo contextualizando a discussão psicanalítica
acerca das novas subjetividades. Afirma que existem ao menos dois eixos de
posicionamento marcando uma especificidade do campo subjetivo: de um lado,
estaríamos diante de novas roupagens das estruturas clínicas clássicas e, de outro,
afirma que estaríamos diante de novas formas de padecimento pquico. A autora
aponta que os impasses na abordagem de casos difíceis não é uma prerrogativa da
atualidade, encontrando na obra de Ferenczi e Goddeck as referências de casos de
pacientes somatizadores que geraram um novo campo de pesquisa na década de
1950, na escola psicossomática que ganhou força e influência na psicanálise
americana e francesa
13
. Nesta última, Joyce McDougall
14
dedicou-se às afecções
psicossomáticas dispensando especial atenção à transferência com os pacientes
13
As obras de referência propostas por Diane Viana são: ALEXANDER, R. A medicina psicossomática. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989; na escola de Chicago e MARTY, P. A psicossomática do adulto. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1993; ____. L’ordre psychosomatique. Paris: Payot, 1980; MARTY, P., DE M’UZAN, M. e
DAVID, C. L’investigation psychosomatique. Paris: PUF, 1963; MARTY, P. E DE M’UZAN, M. “La pensée
opératoire”. In: Revue Française de Psychanalyse, n. 27, 1963, p.345-356; na escola francesa.
14
As obras de referência propostas por Diane Viana são: MCDOUGALL, J. Teatros do corpo. O psicossoma em
psicanálise. São Paulo: Marins Fontes, 2000; _____. “Em defesa de uma certa anormalidade”. Teoria e clínica
psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
48
“normopatas”, ou seja, aqueles que pareciam não apresentar sofrimento neurótico,
reagindo à angústia através de explosões psicossomáticas.
O problema quanto à analisabilidade de casos difíceis se colocava em
1974, quando foi lançado um número da Nouvelle Revue de Psychanalyse, cujo
título, “Aux limites de l’analisable” (1974) anunciava a dimensão da querela. É nesse
contexto que se consolidam as categorias de borderline (na escola americana e
inglesa) e dos estados-limites (na escola francesa). Autores como Green e Pontalis
contribuíram para esse debate com a problematização do dispositivo psicanalítico.
Green propôs revisões no modelo das neuroses e em conceitos fundamentais da
psicanálise como o narcisismo, à medida que concebe os estados-limites como a
ocorrência de um núcleo psicótico presente na neurose
15
. Pontalis em seu livro
Perdre de vue (1988) se dedicou a pensar os precários modos de simbolização dos
estados-limites, promovendo uma sensível releitura do texto freudiano Mal-estar na
civilização (1930) sob os signos contemporâneos da nossa cultura, indicando que a
escolha do termo mal-estar evidenciava o descontentamento do próprio Freud com
os limites da cura psicanalítica. Segundo a autora, a delicada distinção proposta por
Pontalis entre situação de crise, que remeteria a algo transitório, e estado de mal-
estar, termo amplo e vago que não se presta a um prognóstico certeiro, é
fundamental. Se a vivência da crise permite o reconhecimento do objeto da angústia
e, consequentemente, a enunciação de um apelo para livrar-se dela, “[...] o mal-
estar, por sua vez, desconhece tal especificidade, e, muitas vezes, é acompanhado
de uma constatação, no pior dos casos desprovida de queixa, que se enuncia de
forma precária e impessoal.” (VIANA, 2008, p. 21).
No que concerne ao campo das adições, inúmeras são as abordagens que se
aproximam desse questionamento quanto ao dispositivo psicanalítico e as estruturas
psíquicas. Esse questionamento é levantado por Birman (2005) num texto em que
situa as toxicomanias como um importante problema sociopolítico e delineia os
problemas colocados para a psicanálise nas possibilidades e limites na escuta das
toxicomanias. Na análise do filme O desespero de Veronica Voss de Fassbinder,
Birman faz notar o pacto de morte que articula a história passional de um
15
As obras de referência propostas por Diane Viana são: GREEN, A. “L’analyste, la symbolisation et l’absence
dans le cadre analytique. A propos des changements dans la pratique et l’experiénce analytiques”. In: Aux limites
de l’analysable, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.10, Paris: Éditions Gallimard, 1974, p.225-258; _____. La
folie privée. Psychanalyse des cas-limites. Collection Folio Essais, Édition Gallimard, 1990. ______. Narcisisme
de vie, narcisisme de mort. Éditions de Minuit, 1983; ______. Le travail du negatif. Éditions de Minuit, 1993.
49
toxicômano, os fornecedores de drogas, o Estado e a medicina, enfatizando a
importância de que o psicanalista esteja ciente da ética que regula seu lugar e sua
função analítica, “[...] para que não se instale na posição de salvador, de detentor
soberano de uma poção mágica que tem o dom de transformar a psicanálise num
veneno prazeroso.” (BIRMAN, 2005, p. 204), o que faria da psicanálise uma
verdadeira droga.
Entretanto, é propriamente em relação a uma abordagem clínica do
toxicômano que Birman fornece dados que organizam as contribuições da
psicanálise. Segundo o autor, o movimento psicanalítico tendeu a apagar a
diferenciação estrutural proposta por Freud, indicando que muitos quadros clínicos
que confundem psicanalistas, favorecendo o descompromisso com o referencial da
nosografia freudiana e levando-os a formular as categorias de psicossomática,
borderlines e estados-limites apresentam similaridades com a estrutura perversa.
Por não reiterar essas leituras, cujo argumento clínico apoiado no sentimento de
culpa parece duvidoso, Birman sugere que a toxicomania se insere na estrutura
perversa, porém ressalva que as outras formas de relação com as drogas podem
inscrever-se em diferentes estruturas psicopatológicas.
Apesar das investigações freudianas quanto ao uso da cocaína, esse campo
de pesquisa se constituiu tardiamente na psicanálise. Segundo Birman desses
estudos preliminares
16
, podemos primeiramente localizar na obra de Sandor Radó a
sistematização das ideias dispersas no discurso psicanalítico sobre a questão das
toxicomanias. Sua pesquisa sobre as farmacotimias articulou as variações de humor
nas toxicomanias, em que a “[...] mania corresponderia à busca pelo ‘orgasmo
alimentar’ originário e a depressão indicaria esta impossibilidade” (Ibid, p. 210),
buscada pelo toxicômano no consumo irrefreável da droga. Podemos daí destacar,
segundo Birman, o conceito de “orgasmo alimentar” formulado por Radó e dele
recortar a ideia da impossibilidade do desmame. Segundo Radó, nas toxicomanias
haveria uma busca permanente pela restauração do estado primário de satisfação
absoluta (fusão ao seio materno), do qual seria impossível se privar.
Porém, Birman, sem desconsiderar a importante contribuição de Radó para a
clínica das toxicomanias – a articulação do consumo de drogas no registro da
16
Joel Birman indica as seguintes leituras sobre o tema: STOLOFF, J. C.
Psychanalyse de La toxicomanie et de
l’alcoolisme: L’apport théorique de Sandor Radó
. In: Topique, n. 14, 1974, p. 10.
;
ABRAHAM, K.
Relations
psychologiques entre sexualité et alcoolisme
. In:______. Rêve et mithe. Paris: Payot, 1973.
50
oralidade, no qual o toxicômano viveria a demanda repetida da incorporação de um
objeto capaz de lhe restituir a completude perdida –, aponta que o limite teórico no
pensamento desse autor está no organicismo quase bioquímico conferido aos
conceitos de libido e orgasmo alimentar. Tal leitura da dinâmica psíquica orientou as
leituras posteriores sobre as toxicomanias, que se pautaram no registro da oralidade
desconsiderando uma estrutura psíquica mais abrangente.
Seguindo essas mesmas tentativas de teorização, encontramos outros
discursos que se aproximam do nosso tema. Tendo em vista as novas formas de
padecimento psíquico que têm na compulsão a figura-tipo, Gondar (2001) discute
os impasses colocados pelos pacientes compulsivos ao dispositivo analítico,
apontando algumas possibilidades de abertura ou transformação do mesmo.
Sua análise parte de dois exemplos, um tirado da ficção e outro da vida real.
O primeiro é o personagem Bartleby, de Herman Melville, um escriturário que faz
cópias de documentos e que de repente se recusa a trabalhar, pronunciando
repetidamente um incômodo, “Preferiria não”, frente às ordens de seu chefe. O
segundo é retirado de um artigo publicado por Slajov Zizek acerca da passagem ao
ato produzida pela texana Andrea Yates, mãe exemplar que, num dia comum, após
a saída de seu marido para o trabalho, afoga um a um seus 5 filhos de idades entre
6 meses e 7 anos. Apesar da aparente incongruência dos fenômenos apresentados,
a autora aponta que o que de comum entre eles é uma modalidade de recusa
que não oferece lugar ao desejo: em Bartleby essa recusa se apresenta pela
inibição que beira a petrificação, enquanto na mãe ela conduz ao agir. Ressalta que
em ambos os casos a recusa se coloca em não obedecer às injunções de um
imperativo categórico que elide a dimensão do desejo, recusa que, paradoxalmente,
conduz à obediência desta mesma imposição.
Nesses exemplos, o modo de dizer não a uma lei tirânica aponta para a
esfera do ato e, portanto, para os ditos “novos sintomas”: a bulimia, a anorexia, o
alcoolismo, as toxicomanias, os fenômenos do pânico e as disposições melancólicas
constituem as figuras-tipo da clínica atual. Tais sintomas são consideradas pela
autora como patologias do ato, seja em sua vertente de inibição, seja em sua
vertente de realização. Para Gondar o sujeito contemporâneo poderia ser descrito
como um sujeito compulsivo, ou mesmo como atos aos quais não estaria associado
um sujeito, abrangendo territórios subjetivos bastante diversos da antiga histeria
para a qual o dispositivo analítico foi criado.
51
Numa retomada do texto freudiano, Gondar situou qual seria a modalidade
de compulsão que se apresenta prioritariamente nesses fenômenos da atualidade.
Em Freud, por um lado, a compulsão (zwang) remete diretamente à neurose
obsessiva (zwangneurose) como resultante “[...] de um conflito psíquico e de uma
luta subjetiva entre duas injunções opostas, estando o sujeito impossibilitado de
escolher qualquer uma delas.” (GONDAR, 2001, p. 28). O ato compulsivo viria em
resposta à hesitação imposta pelo conflito, compensando a dúvida. Por outro lado, o
termo zwang remete à radicalidade da repetição pulsional e, nesse sentido, a
compulsão à repetição (widerholungszwang), trabalhada por Freud no Além do
Princípio do prazer (1920), não se refere a um conflito, mas a uma característica
fundamental da pulsão, que precede logicamente a instalação do conflito pulsional e
impõe ao sujeito a organização desses impulsos autônomos. A autora sugere que as
compulsões da atualidade referem-se à compulsão à repetição e não à neurose
obsessiva, pois não implicam um caminho mais longo envolvendo a hesitação entre
dois mandamentos opostos, mas elide a dúvida frente à injunção imperativa e lança
o sujeito à ação.
O psicanalista que trabalha com compulsivos não demora a notar o quão fortemente
se apresenta, nesses pacientes, a aliança entre o supereu e a pulsão de morte,
redundando numa forma cruel de injunção superegoica: ao invés de funcionar como
barreira a um gozo
17
mortífero, o supereu o exigiria, desprezando por completo a
esfera das inclinações subjetivas singulares. (Ibid., p. 29).
Contudo, diferentemente do que parece a primeira vista, a autora afirma que
não se trata somente da simples obediência a esse imperativo, como uma figura da
moral kantiana que agiria somente pelo dever imposto por um carrasco íntimo.
Gondar afirma, outrossim, “[...] que os atos compulsivos o uma tentativa de fazer
obstáculo ao cumprimento da injunção cruel, ainda que essa tentativa fracasse:
neles um lampejo de subjetivação que não chega a efetivar-se como afirmação de
desejo.” (Ibid., p. 30).
Retomando o panorama clínico das patologias do ato, Gondar afirma que a
descrição da figura-tipo dessas patologias não reflete todo colorido clínico que se
17
A palavra gozo é empregada aqui e ao longo deste trabalho na acepção lacaniana do termo. Retomando
Freud, podemos considerar o gozo como a contrapartida do princípio do prazer, pois coloca a impossibilidade da
plenitude e homeostase do prazer, indicando um para além que ultrapassa esse princípio. O gozo aponta para a
compulsão à repetição, na medida em que, do ponto de vista econômico, o excesso de prazer configura o gozo
ao qual o sujeito permanece atado. Segundo Roudinesco (1998), a tentativa de recuperação do objeto perdido
da demanda (das ding) que falta no lugar do Outro é causa de sofrimento sem, no entanto, ser erradicada por
completo a busca do gozo. Ao longo de seus 26 anos ensino, Lacan propôs diferentes formas de gozo, que são
analisadas por Jacques-Alain Miller no artigo “Os seis paradigmas do gozo” (2000).
52
apresenta, pois raramente encontra-se uma configuração pura de novos sintomas,
cabendo à acuidade do analista discernir a lógica subjetiva predominante. Coloca
também em discussão o modo peculiar com que esses pacientes se relacionam com
seus sintomas, o que os tornam inacessíveis à interpretação, colocando em xeque a
concepção clássica de sintoma: uma formação de compromisso entre uma instância
recalcada e uma recalcante. Apresentam-se na clínica sem endereçar-se a um
Outro, com discursos esvaziados de desejo, como se seu sofrimento fosse da ordem
da fatalidade, em que se nota a ausência de um semelhante que os coloque nos
jogos da dualidade narcísica.
Nesse sentido, Gondar afirma que esses sintomas não devem ser
considerados simplesmente como manifestações do inconsciente ou formações de
compromisso, pois não revelam uma questão que os remeta à verdade do desejo
como o fazem os sintomas que se constituem pelo retorno do recalcado. A
inexistência de um pano de fundo fantasmático faz com que esses sintomas sejam
impermeáveis à interpretação, na medida em que esta visaria à desconstrução
imaginária em benefício da revelação da verdade oculta no sintoma.
Na verdade, o que se encontra em falta é justamente essa tela protetora que
articula as relações entre a subjetividade e o real. Faltam a fantasia e seus
derivados — crenças, projetos, ilusões. Esses indivíduos apresentam uma falha
brutal na dimensão do imaginário, expressando-se em todos os níveis: na fantasia,
na constituição de um semelhante, na constituição da própria imagem corporal. É
como se o corpo fosse reduzido a uma matéria da qual eles o meros portadores,
criando-se a necessidade de próteses de sustentação egóica, encontradas algumas
vezes através de exercícios físicos ou de adereços que rasgam a pele. (GONDAR,
2001, p. 31).
Dentro dessa perspectiva encontramos outro partidário da ideia de que na
clínica da atualidade estamos diante de novos sintomas. Essa é a posição
sustentada por Massimo Recalcati no livro Clinica del vacío: anorexias,
dependencias, psicosis (2003), cujo título anuncia sua tese principal, a saber, a
diferenciação entre a clínica da falta e a clínica do vazio. Para o autor, a tese de
uma clínica do vazio não pretende introduzir uma nova estrutura clínica para além do
binômio neurose-psicose à guisa da intenção perseguida por Otto Kernberg com a
formulação da categoria de personalidade borderline, mas salientar um aspecto
crucial da clínica psicanalítica contemporânea em que os sintomas como anorexia,
bulimia, toxicomania, pânico, depressão e alcoolismo parecem irredutíveis à lógica
do sintoma freudiano.
53
Em oposição à clínica da falta, ou seja, àquela do desejo inconsciente, do
recalque e do retorno do recalcado, dos sintomas e da divisão do sujeito, a clínica do
vazio coloca em evidência sintomas ditos novos que afetam diretamente a
constituição narcisista do sujeito, localizando um defeito fundamental. Para
Recalcati essa diferenciação é necessária para pensar as “[...] distintas declinações
que pode assumir a recusa do Outro na época do simbólico contemporâneo,
marcado pela queda da função coletiva e subjetivamente estruturante do Édipo.”
(2003, p. 11). Sua referência central não é o sintoma, mas a angústia. Ao contrário
da clínica da falta, a clínica do vazio é uma clínica do “antiamor”, haja vista a
ausência de transferência no sentido radical. Recalcati dedica um dos capítulos de
seu livro à análise da obesidade, desenvolvimento que será abordado mais a frente.
Na tentativa de cernir um campo psicopatológico para a bulimia, Maria Helena
Fernandes, no livro dedicado aos Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia
(2006), resgata uma importante diferenciação entre compulsão e impulsão a partir
da análise realizada por Brusset (1998) do caso Ellen West na qual afirma que no
caso dos acessos bulímicos o se poderia falar em compulsão stricto sensu, uma
vez que não se observa nesses casos o mecanismo de defesa típico do obsessivo,
mas sim um evidente sentimento de vazio. Brusset ressalta, ainda, que não parecia
haver o recurso à substituição e ao deslocamento típicos das neuroses e que seria,
portanto, mais adequado a utilização do termo impulsão para caracterizar o
comportamento alimentar das bulímicas. Essa proposta é reiterada por Fernandes
por referir-se prioritariamente à ação e por evocar a passagem ao ato sem a
mediação fantasmática de contorno neurótico. Embora esse termo não tenha uma
formalização maior, Maria Helena Fernandes recorta do Vocabulaire de La
Psychanalyse sua diferenciação feita por Laplanche e Pontalis (1986) em que
assinalam que o termo compulsão:
[...] se inscreve em francês numa série, ao lado de pulsão e de impulsão. Entre
compulsão e pulsão, esse parentesco etimológico corresponde bem à noção
freudiana de Zwang. Entre compulsão e impulsão o uso estabelece diferenças
sensíveis. Impulsão designa o aparecimento súbito, sentido como urgente, de uma
tendência para realizar tal ou tal ato, que se efetua fora de qualquer controle e
geralmente sob o império da emoção; não se encontra nem a luta nem a
complexidade da compulsão obsessiva, nem o caráter organizado segundo um certo
cenário fantasmático da compulsão à repetição. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967
apud FERNANDES, 2006).
54
Para a autora, desde as primeiras investigações sobre a bulimia promovidas
por Moshe Wulff (1932), que reuniu a partir de 1911 um grupo de psicanalistas
interessados nessa sintomatologia, havia uma aproximação da bulimia com
diferentes tipos de neurose, com a melancolia e com as toxicomanias. Wulff era
contemporâneo de Edward Glover e Sandor Radó, que se dedicaram igualmente às
toxicomanias, sendo precursores das ideias de Otto Fenichel sobre a bulimia como
uma “toxicomania sem droga”. Nesse sentido, Fernandes destaca que dimensão
aditiva da bulimia não seria o alimento em si, mas o comportamento alimentar
18
.
Vale ressaltar que a bulimia e a obesidade guardam diferenças importantes,
tanto no tocante ao comportamento alimentar quanto à própria dinâmica psíquica.
Segundo Fernandes, “[...] em sua forma típica, a bulimia se caracteriza pela ingestão
impulsiva e voraz, geralmente às pressas e às escondidas, de uma grande
quantidade de alimento, frequentemente hipercalórico” (2006, p. 76), sem que haja
sequer a busca pelo prazer do alimento. Essa ação é marcada pelo sentimento de
perda de controle e junto a uma importante distorção da imagem corporal e ao medo
exagerado de engordar compõe o quadro clínico da bulimia. O peso, no entanto, se
mantém em equilíbrio devido aos comportamentos compensatórios adotados como o
vômito, o uso de laxantes e diuréticos e/ou a prática de exercícios físicos
extenuantes. Esses comportamentos tendem a consolidar-se com o passar do
tempo, tornando-se automáticos. Na obesidade o comportamento alimentar pode ser
muito variado, podendo apresentar episódios de comer compulsivo ou a ingestão
continuada de alimentos, o que leva ao acúmulo de peso sob a forma de tecido
adiposo. Segundo Bernardi et al (2005),
As pessoas que apresentam o transtorno do comer compulsivo têm ataques
bulímicos repetidos, mas não evidenciam as medidas patológicas de controle de
peso que os pacientes com bulimia nervosa utilizam, como os comportamentos
compensatórios (vômitos, abuso de laxativos, exercício físico excessivo) que
sucedem o episódio bulímico. [...] evidências epidemiológicas de que o início de
dietas ocorre, geralmente, após o aparecimento dos ataques de comer compulsivo,
caracterizando a distinção entre este comer compulsivo e o quadro de bulimia, no
qual os ataques se sucedem às dietas. (2005, p. 87).
No que diz respeito à psicopatologia, Fernandes concorda que a bulimia,
assim como a anorexia, se situa no cruzamento de diversos quadros
18
Sobre esse desenvolvimento a autora remete aos seguintes trabalhos: BRUSSET, B.; COUVREUR, C. &
FINE, A. (orgs.) A Bulimia. São Paulo: Escuta, 2003. BRUSSET, B. Psychopatologie de l’anorexie mentale.
Paris: PUF, 1998.
55
psicopatológicos, podendo incidir na neurose, na psicose, na perversão, nos
quadros psicossomáticos e borderlines. Destaca que a clínica ensina que “[...] a
lógica aditiva do comportamento bulímico leva frequentemente a um
empobrecimento da vida relacional, afetiva, fantasmática e da atividade psíquica
como um todo.” (2006, p. 78), integrando o contingente de autores que se vêem
confrontados em seu saber por esses quadros clínicos.
Essa diferenciação entre compulsão e impulsão também é utilizada por Diana
Rabinovich em A clínica da pulsão: as impulsões (2004), a propósito de analisar o
amplo campo de perturbações que apresentam dificuldades particulares no
estabelecimento da transferência, denominadas pela autora como perturbações da
demanda, dentre as quais escolhe um caso de obesidade como exemplo a ser
analisado. A autora se refere também a essas perturbações como patologias do ato,
mas ressalva que não se trata do ato “[...] no sentido do ato logrado ou do ato falho,
mas como no sentido lacaniano em que o ato implica o Outro.” (ibid., p. 18). Quanto
à obesidade, enfatiza a necessidade do diagnóstico estrutural para além da
consideração desses atos, pois a obesidade é um sintoma médico e não um sintoma
psicanalítico e defini-la a priori como um sintoma seria defini-la a partir de um ideal
de magreza, colocando-a como correlativa de uma estrutura psicopatológica. Para
Rabinovich, “[...] obesidade na neurose, na psicose e na perversão, e em todas
as variantes de cada uma delas que queiram encontrar.” (ibid., p. 56).
A paciente em questão ao chegar coloca para a analista um questionamento
quanto à analisabilidade de certos casos, uma vez que cria no analista uma
sensação de impotência, o que, alerta a autora, não deve ser confundido com a
impossibilidade lógica de uma análise. Esses casos exigem paciência e um
permanente questionamento, pois a paciente se apresenta com uma queixa
inespecífica que coloca a questão do lado do analista: o que fazer com essa pessoa
que consulta e não se sabe bem o porquê e para quê, que não demanda nada? A
autora afirma que, apesar da obesidade visível, a paciente não faz qualquer
referência a esta. Contudo, no decorrer das entrevistas preliminares, ocorrem os
episódios de bulimia, os quais a autora define a partir das impulsões, que são
consideradas como passagens ao ato, que se dão à medida que a paciente se
desloca de uma posição inicial referida a um mal estar generalizado para um
momento em que se coloca a impossibilidade de atender a toda demanda que lhe é
feita. A impulsão, segundo Rabinovich, se define por sua ligação “[...] não ao
56
sintoma, não ao desejo, mas à pulsão” (2004, p. 60), algo que por satisfazer-se de
forma direta deixa o sujeito sem lugar: “[...] é um sujeito que não pode nos dizer
quase nada, salvo nos mostrar, em ato, essa curiosa satisfação muda.” (ibid.).
19
Se, por um lado, essas autoras colocam o ato compulsivo que se apresenta
na atualidade desvinculado do sintoma freudiano e conectado à pulsão, por outro
lado, quem aposte na compulsão referida à neurose obsessiva. Numa das
poucas referências sobre a clínica psicanalítica com pacientes obesos, Lia Amorim e
Maria Amélia Sant’Anna (1999) indicam que a dificuldade em definir a compulsão de
comer que se apresenta nos obesos se deve ao fato de não se constituir apenas
numa força coercitiva que leva a ações e ideias fixas, mas num verdadeiro
complexo. As autoras analisam este complexo à luz do caso escrito por Freud
conhecido como o “Homem dos Ratos” em que se articulam um comando (tirar a
pedra) e um contra-comando (recolocar a pedra) na constituição da hesitação e do
ato obsessivo que pode prolongar-se infinitamente. Elas ressaltam os elementos
desse complexo em que a hesitação, que se apresenta frente a um comando que
se impõe em função da colagem a um pensamento obsedante, implica um ganho
de tempo em que a passagem ao ato (crise de devoração) não se dá.
Assim, vista como um complexo, a compulsão seria definida como uma tendência,
em que um comando coage o sujeito a permanecer numa ideia fixa, pensamento
obsedante, ou o lança numa ão indialetizável, passagem ao ato, que pode estar
presente ou não no complexo. (1999, p. 124).
Destacam, ainda, que a hesitação é “[...] a possibilidade de relativização
quanto à obediência cega ao comando” (1999, p. 123), pois a passagem ao ato
pressupõe o comando, mas não o pensamento obsedante. Assim formulado o
complexo contemplaria esses três termos comando/contra-comando, pensamento
obsedante e hesitação – além da passagem ao ato que poderia se seguir ao
complexo ou se dar diretamente ligada ao comando. Entretanto, as autoras afirmam
que o fato da submissão ao comando assemelhar-se ao que ocorre na neurose
obsessiva, não caracteriza uma “neurose no obeso”.
19
Nesse trabalho, limitarei essa referência no que diz respeito à construção de um questionamento acerca do
estatuto dessas perturbações que implicam o ato, em virtude da extensão do desenvolvimento proposto por essa
autora na análise o grafo do desejo e na articulação dos conceitos lacanianos de “objeto a” e “mais-de-gozar”,
desenvolvidos nos seminários 10 (1962-1963) e 16 (1968-1969), respectivamente. Sobre esse assunto ver
RABINOVICH, D. Clínica das pulsões: as impulsões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004; e LACAN, J.
O seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008; ______. O seminário,
livro 16: De um outro ao Outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
57
Faz-se necessário destacar, ainda, uma outra aproximação em relação ao
nosso tema realizada por Maria Cristina Antunes e Tania Coelho dos Santos (2006),
que, a propósito do trabalho com pacientes candidatos à cirurgia bariátrica, avaliam
o desencadeamento de psicoses melancólicas e paranóicas em função da
intervenção cirúrgica que exclui o sujeito do processo de emagrecimento. Suas
considerações giram em torno da hipótese de que a obesidade é um artifício que
protege os psicóticos do excesso pulsional, hipótese que conduz ao questionamento
quanto ao estatuto da obesidade como sintoma que justificaria a presença do
psicanalista no tratamento. Nesse sentido, apontam que a afirmação da obesidade
como doença, ao ser reforçada pela indicação cirúrgica, “[...] obtura a divisão
subjetiva, eliminando qualquer vacilação quanto ao possível estatuto sintomático do
excesso de peso para esses sujeitos.” (2006, p. 195). Tomada como um
acontecimento exterior ao psiquismo, tais pacientes não se responsabilizam pelo
que afeta seus corpos, colocando na cirurgia a solução ready made para os
excessos do corpo. A especificidade da clínica com esses pacientes subsidia a
afirmação de que “[...] a obesidade não é um acontecimento de corpo, não é um
sintoma no sentido clássico de um enigma que dividira o sujeito” (ibid., p. 197), mas
sim uma solução que se aproxima da proposição lacaniana de sintoma como meio
de gozo, reforçando o contingente de psicanalistas que apostam nos “novos
sintomas” da contemporaneidade.
Tendo em vista a amplitude e a variedade das abordagens aqui elencadas e
extrapolando a hipótese inicial, segundo a qual, o consumo alimentar excessivo se
apresentaria como uma estratégia frente à frustração intolerável, uma vez que o
sujeito carece de recursos simbólicos para lidar com o conjunto de exigências
sociais que se traduzem para o obeso em saúde e magreza, procura-se lançar mão
de uma leitura lacaniana da constituição do sujeito, trazendo para o plano pulsional a
teorização a respeito da dinâmica que se apresenta nos sintomas alimentares.
Nesse sentido, procuraremos articular duas construções teóricas que visam dar
conta da instauração da alteridade que nos auxiliam a pensar a lógica do comer, a
saber: o conceito de narcisismo e ideal do eu em Freud, que são retomados por
Lacan quando trata do estádio do espelho e o conceito de pulsão e seu objeto. Para
tanto, faz-se necessária uma primeira pontuação acerca da noção de objeto na
psicanálise, que a partir da decomposição do complexo de castração nas três
58
vertentes da relação de objeto nos permitirá acompanhar os avatares da inscrição
do circuito pulsional.
2.3 Disjunções: necessidade, demanda, desejo
Je te demande, de me refuser, ce que je t’offre...parce que: c’est pas ça.
20
Jacques Lacan
Embora a psicanálise atual se dedique a analisar uma ampla gama de
formações sintomáticas, poucas são as referências ao tratamento da obesidade. Em
poucas passagens Freud refere-se a uma compulsão para comer
21
(FREUD, 1926
[1925], p. 109), porém atribuiu esses eventos ao medo de morrer de fome, sem
desenvolver maiores questionamentos. Talvez isso se deva ao fato da obesidade
não ocupar naquele tempo um destaque no campo patológico ou mesmo não figurar
como um relevante problema de saúde pública. Sua vinculação à moralidade, sua
menor prevalência e o lugar indiferenciado ocupado pelo corpo não traziam como
efeito a problematização da gordura.
Por outro lado, a psicanálise pós-freudiana dedicou-se bastante às questões
relativas à oralidade. É muito comum que os analistas associem os quadros de
obesidade a situações alimentares concretas que teriam ocorrido na mais tenra
infância, na qual o bebê, lançado no desamparo ao nascer, sofreria as vicissitudes
do cuidado dispensado pelo outro.
22
Isso seria uma leitura um tanto ingênua dessa
problemática, pois todo ser humano é lançado ao desamparo e sofre os percalços
da função alimentar na própria relação com aquele que dele se ocupa. Reduzir a
psicanálise a uma clínica do deciframento desses desencontros levaria todo nosso
questionamento a uma dinâmica infértil frente à representação de um seio perdido
no desmame que lançaria todo ser humano na predisposição à obesidade. Mas,
como demonstraremos, não se trata disso. Para além do corpo biológico e da fome
fisiológica, existe um corpo que demanda, mas não se sacia.
Assim como Freud, Lacan não chega a analisar a obesidade do ponto de vista
psicanalítico fazendo referências pontuais somente à anorexia, por ser o sintoma
20
Eu te peço que me recuses o que te ofereço, por que não é isso (tradução nossa).
21
FREUD,S. Inibição, Sintoma e Angústia (1926 [1925] ). In: ________. Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
22
Uma boa amostra dessas abordagens encontra-se no número da Revue Française de Psychanalyse intitulado
“L’oralité” (2001), cujos artigos articulam diversas abordagens psicanalíticas sobre a oralidade.
59
que denuncia o imperativo da separação entre a mãe e a criança. Resta, dessa
forma, a tarefa de reunir elementos teóricos que viabilizem uma abordagem
psicanalítica dessa problemática.
Para fazê-lo, elegemos a teoria freudiana e lacaniana como referenciais
privilegiados na medida em que a releitura de Freud proposta por Lacan retira uma
sombra imaginária que recobria o campo psicanalítico pós-freudiano pela recusa da
reformulação feita por Freud na teoria pulsional em 1920, na qual introduziu a pulsão
de morte. Essa recusa implicou uma progressiva desvalorização do texto freudiano e
um maior destaque de suas construções iniciais a respeito dos mecanismos de
defesa do eu e das fases do desenvolvimento até mesmo na sexualidade e na
oralidade. Nessas leituras a consistência da sexualidade e de seus objetos não
permite uma abordagem dos sintomas que não seja pela via da representação dos
conflitos psíquicos, na qual o que é do inconsciente deve ser tornado consciente
pela interpretação do analista.
Para trilhar a lógica subjacente à obesidade é preciso, ainda que
temporariamente, abrir mão da diferenciação estrutural clássica (neurose, psicose,
perversão) uma vez que a obesidade se apresenta primeiramente como um conjunto
de manifestações corporais que podem estar presentes nas três estruturas. Dessa
forma, seria importante lançar mão de elementos que auxiliem no entendimento
dessa lógica do comer, para, num segundo momento, recolher essas contribuições
no que diz respeito às suas incidências relativas a cada estrutura.
Tomemos duas questões fundamentais: o corpo e o objeto. Na obesidade é
evidente que lidamos com um sintoma que se articula através da oralidade, podendo
mesmo parecer que se trata de uma falta que se operou no nível da realidade.
Muitas pesquisas apontam para uma relação positiva entre a vivência da escassez
alimentar e o desenvolvimento da obesidade,
23
porém, ao abordá-la do ponto de
vista psicanalítico, somos forçados a ser rigorosos nessas associações. Para além
de dados quantitativos que garantam uma relação direta com um objeto da
realidade, buscamos a contingência que, na singularidade de cada caso, instaura a
primazia do objeto oral no enfrentamento da frustração e na busca da satisfação.
23
Recentemente foi publicado, na Revista de Pesquisa da FAPESP (2007), o artigo “As mutações da fome” em
que a pesquisadora Ana Lydia Sawaya da Unifesp explica por que a alimentação insuficiente tem efeitos
duradouros relacionados à obesidade, à diabetes e às doenças cardiovasculares. Pesquisas como esta reiteram
a tese de que o acúmulo de gordura é uma maneira encontrada pelo organismo para defender-se da escassez
alimentar.
60
É através da leitura lacaniana que nos deparamos com a possibilidade de
pensar a lógica do comer que se apresenta na obesidade, partindo primeiramente da
disjunção entre necessidade e demanda na experiência de satisfação. Essa
diferenciação é necessária para desvincular os registros somático e corporal.
Mas antes façamos outra distinção: a problemática do corpo se inscreve no
campo psicanalítico de modo singular. Desde o culo XIX com o enigma colocado
pela conversão histérica, a psicanálise é confrontada ao real do corpo em suas
articulações com a cultura, não escapando dessa forma à incidência da linguagem.
Sem qualquer margem de dúvida para a psicanálise não se trata do corpo biológico
ou cultural, mas do corpo pulsional, do qual o se pode isolar o puro organismo
vivo e instintual. A pulsão foi um dos conceitos fundamentais que permitiram a
fundação do campo psicanalítico em oposição ao campo médico. Os estudos sobre
os sintomas histéricos de conversão que desafiavam a clínica médica apontavam
desde o nascimento da psicanálise, a talking cure, a necessidade de constituir um
estatuto de corpo diferente do biológico, tarefa que levou Freud a formular
fundamentalmente duas teorias pulsionais numa tentativa de apreender essa estreita
relação entre o corpo e o psiquismo que diferencia os seres humanos dos animais.
As mudanças no estatuto do corpo podem ser observadas ao longo da obra
freudiana, não deixando, entretanto, de representar um enigma e de apontar o limite
do trabalho analítico.
Para Lacan, a distinção fundamental que o corpo assume para a psicanálise
reside no fato de que o ser humano é essencialmente marcado pela sua inserção no
campo da linguagem. O aspecto significante, ressaltado em todo seu percurso, é
decididamente um dos aspectos mais relevantes de sua construção teórica,
indicando o forte traço estruturalista de suas concepções. É, à luz desse conceito
tomado de empréstimo da linguística de Saussure, que Lacan ressituou o “objeto” da
psicanálise: este sujeito que a psicanálise nos apresenta está organizado segundo
as mesmas leis dos sonhos, dos chistes e dos atos-falhos. É um sujeito dividido,
fragmentado. É um sujeito que é outro. É nesse sentido que Lacan introduz a noção
de que o significante representa um sujeito para outro significante, fixando a marca
indelével de que o ser humano está sujeito à linguagem e, assim, aprisionado em
sua relação como o Campo do Outro, tesouro dos significantes.
É, portanto, a partir da ideia de que é na estrutura da linguagem que advém o
sujeito do inconsciente, submetido à lei do significante que lhe é preexistente, que
61
Lacan propõe uma nova leitura da teoria freudiana, enfatizando a subordinação do
sujeito ao Campo do Outro e, consequentemente, sua alienação fundamental ao
significante. Essa vertente alteritária da teoria lacaniana é o pano de fundo da
reflexão conduzida neste trabalho.
No seminário 4 (1995), Lacan dedica-se a analisar a relação de objeto,
tomando-a como a mola da relação do sujeito com o mundo. Todo o
desenvolvimento teórico feito neste período entre o final de 1956 e início de 1957
um empenho de Lacan em recuperar o sentido que Freud atribuía ao objeto. Foi
nesse resgate que Lacan recusou as teorias s-freudianas que davam demasiada
importância à realidade objetal e propôs que a construção disso que move o sujeito
na relação com o mundo passa por três termos: a frustração, a privação e a
castração, esta última muito abordada nos textos freudianos. Porém, a castração
como tal não é um evento que se na vida do sujeito de forma isolada, mas o
efeito de uma série de desdobramentos que vão desde a mais primordial relação
com o mudo, a relação e–criança até o efetivo desenlace do complexo de
Édipo.
24
O ponto nodal dessa relação é o falo, elemento resgatado da teoria
freudiana que recupera seu valor simbólico na teoria de Lacan para além do suporte
material que adquire no corpo (o pênis). O falo é tomado por Lacan em sua função
significante, ou seja, uma função reguladora e normatizadora da sexualidade,
relacionada, em última análise, à própria constituição do sintoma.
A decomposição do que chamamos castração em três vertentes se faz
necessária a Lacan para apontar o singular enodamento que se entre os três
registros Real, Simbólico e Imaginário, ainda que o estatuto do Real venha a
ser introduzido em seu ensino a partir do seminário 7 (1997 b) nos movimentos do
sujeito em relação ao outro, tendo como outro primordial a mãe. Porém, de todo
desenvolvimento proposto por Lacan recortaremos a categoria da frustração. Esse
recorte se deve à possibilidade de localizar nos primórdios do sujeito, no domínio
das “[...] exigências desenfreadas e sem lei [...]” (LACAN, 1995, p. 36), a dinâmica
de uma reivindicação de algo que é desejado – reivindicação do sujeito em busca da
satisfação –, mas sem referência à possibilidade de ser obtido. Trata-se de um
objeto real que é visado (o seio materno) e um dano imaginário que é causado (a
24
O período dos seminários de Lacan que vai de 1956 a 1959 constituem um longo percurso em que Lacan
resgata a importância da castração no complexo de Édipo que consistirá, ao fim do seminário 5 (1958-1959), em
recolocar o falo como o significante que vem nomear aquilo que falta à mulher e, portanto, remete
invariavelmente à perda do objeto. Esse assunto será retomado mais adiante no tem 3.4 desse estudo.
62
frustração), configurando a anatomia imaginária do desenvolvimento do sujeito (p.
63).
Lacan estabelece de saída a disjunção entre demanda e necessidade, pois
mesmo sendo o seio materno o objeto real visado miticamente pelo infans, é na
medida em que desempenha uma função significante que ele abre a dimensão do
desejo. Vale aqui explicitar em que medida o seio materno desempenha uma função
significante para além do organicismo como foi apreendido nas leituras s-
freudianas. Nesse sentido, Lacan afirma que a mãe não é o objeto real, mas ela
surge a partir dos jogos de domínio do sujeito sobre o objeto, tão bem explicitado no
Fort-da freudiano
25
. Lacan fala que “[...] este acoplamento de presença-ausência,
articulado de modo extremamente precoce na criança, conota a primeira constituição
do agente da frustração, que é originariamente a e.” (1995, p. 67). É
propriamente no registro do apelo que o sujeito faz quando o objeto materno está
ausente registro no qual a presença-ausência é articulada pelo sujeito que se
coloca a condição fundamental da ordem simbólica posterior. Destacando do objeto
real as marcas ou traços que dele restam, o sujeito poderá estabelecer uma relação
com um outro objeto. Essa é, para Lacan, a primeira vertente da frustração.
A passagem para a segunda vertente da frustração se daria a partir do
momento em que o objeto real, a mãe, não responde mais ao apelo do sujeito.
Nessa virada em que a figura materna decai e se constitui como real se produziria
uma inversão na posição do objeto. Se antes os objetos eram objetos de satisfação,
se a mãe podia dá-los, quando ela os recusa ao sujeito, esses passam a ser objetos
de dom, ou seja, os objetos passam a ser simbólicos e a figurar como a potência
materna que pode dar ou recusar algo, estabelecendo a ordem da troca.
Em outras palavras, a posição se inverteu – a mãe se tornou real e o objeto
simbólico. O objeto vale como o testemunho do dom oriundo da potência materna. O
objeto tem, a partir daí, duas ordens de propriedade satisfatória, ele é duas vezes
objeto possível de satisfação – como anteriormente, ele satisfaz a uma necessidade,
mas também simboliza uma potência favorável. (ibid., p.69).
Esse momento em que a mãe sai de sua onipotência e passa à realidade a
partir de uma simbolização é, para Lacan, decisivo. Pois a frustração não é de modo
25
O jogo que Freud descreve como o Fort-Da faz parte dessas primeiras tentativas de simbolização das
ausências da mãe. O carretel que é jogado representa esse primeiro sujeito que se constitui nesse movimento de
separação. É também em favor de uma tentativa de simbolização que a criança se coloca no lugar desse objeto
que satisfaz a mãe (o falo), na medida em que é a causa dessas idas e vindas da mãe. Nessa via, seu desejo vai
constituir-se a partir do desejo do outro (mãe) numa relação metonímica.
63
algum a recusa por parte da mãe de um objeto de satisfação, mas a recusa de um
símbolo (símbolo do amor) sobre o qual se fecharia o apelo. Essa recusa, para além
da recusa de um objeto, é a introdução prematura do sujeito no ciclo da troca. Lacan
chama de dom o que vem da mãe em resposta ao apelo quando o objeto não está,
mas esse dom não é nada além do signo daquilo que falta à mãe. Ora, se em algum
momento a mãe responde como real, a potência de poder responder ou não ao
apelo demonstra o caráter propriamente decepcionante da ordem simbólica em que
se trocam símbolos, em que toda satisfação é sempre substituta de algo que falta.
Podemos voltar à disjunção necessária entre demanda e necessidade. Na
obesidade é no campo da oralidade que devemos pensar essa disjunção, pois no
sintoma que se apresenta é evidente que algo não se satisfaz, mas diria, não é a
fome fisiológica que não se satisfaz. Podemos pensar que algo não opera permitindo
que se essa primeira separação que institui o ciclo da troca. Por outro lado,
considerar essa construção “ao pé da letra” coloca o risco de tomarmos a obesidade
desde sempre referida a uma resposta incessante ao apelo, o que na ótica
lacaniana, seria colocar a obesidade do lado da psicose. Porém, essa digressão a
respeito da frustração não visa estabelecer uma dinâmica fechada que se aplicaria
aos casos particulares. Objetivamos, sim, marcar uma diferença essencial no
tratamento psicanalítico da obesidade, pois este visa a reinscrição da falta que
garante a entrada no mundo simbólico. Não buscamos a cura como a medicina,
tampouco a reinserção dos indivíduos nos dispositivos disciplinares e de controle,
mas antes fazer operar o desejo. Nesse ponto podemos avançar buscando na
metapsicologia freudiana as pistas para analisar essa lógica que se apresenta na
relação do sujeito com o objeto comida que atestamos repetidamente na clínica com
obesos tomando como hipótese que é na medida em que o ato de comer, a própria
fome, não é erotizado é que a necessidade se “solda” à satisfação, não veiculando o
desejo articulado à castração, mas sim a demanda de satisfação.
64
3 . A INCOMPLETUDE DO CIRCUITO PULSIONAL NA ARQUITETURA DO
DESEJO
3.1 O circuito pulsional e a variabilidade do objeto
Será que, na pulsão, essa boca não é o que se poderia chamar uma boca flechada? – uma boca cosida, em que
vemos, na análise, apontar ao máximo em certos silêncios, a instância pura da pulsão oral, fechando-se sobre
sua satisfação.
Jacques Lacan
Até este ponto, buscamos promover uma nova maneira de apreender a
dinâmica da obesidade, descentrando-nos de uma perspectiva médica e buscando
nas referências teóricas, a respeito de quadros clínicos como as compulsões,
bulimia e adições, o entendimento da lógica do comer que deriva uma série de
impasses ao tratamento. Ao apontar para a separação entre necessidade e
demanda, bastante enfatizada por Lacan, buscamos abrir espaço para pensar uma
clínica que não se limite às representações do objeto e à regressão à fase de
desenvolvimento a ele correspondente, visão que obscureceria a possibilidade de
outras leituras e, consequentemente, de outras formas de manejo e condução do
tratamento. A tentativa de pensar a clínica da obesidade fora de um modelo
representacional se deve a uma aposta de que esses casos referem-se a um tipo
específico de funcionamento do aparelho psíquico em que o corpo permanece
referido a um tempo originário no qual a satisfação pulsional é marcada por sua
impossibilidade lógica. Para tanto, procuraremos pensar no estatuto do objeto
pulsional em Freud e Lacan, articulando-o ao objeto oral.
Para lançar luz sobre um tempo originário de constituição do sujeito e pensar
os avatares das primeiras inscrições pulsionais nas quais se relacionam corpo e
linguagem, retornamos aos textos freudianos, tomando como fio condutor os artigos
da metapsicologia, mais especificamente o artigo Pulsões e destinos da pulsão
(1915 a). Podemos dizer que nesses textos se apresentam os elementos
necessários para a reformulação da teoria pulsional de 1920, quando uma
passagem da primeira teoria das pulsões, em que o dualismo pulsional centrava-se
na oposição entre pulsões de vida (de autoconservação) e pulsões sexuais (libido),
para a segunda teoria pulsional na qual as pulsões de vida passam a englobar as
pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais, em oposição à pulsão de morte.
65
que se lembrar que as pulsões sexuais diferenciam-se em libido objetal e libido
do eu, conforme um ou outro é tomado como objeto sexual da pulsão. O testemunho
clínico da repetição na transferência, a descrição do Fort-da como a repetição de
uma experiência desprazerosa, os sonhos traumáticos e o destino fatídico são os
indícios mais evidentes que Freud tomou no Além do princípio do prazer (1920) para
fundamentar a necessidade de uma reelaboração teórica. Já em 1915, ele adiantava
que tomaria a teoria pulsional a título de hipótese, como uma construção auxiliar que
apenas seria mantida enquanto se mostrasse útil. Além disso, uma análise
pormenorizada das pulsões apontava paradoxos, que ainda não podiam ser
teorizados e que pontuaremos aqui, ressaltando a importância do corpo na inscrição
do circuito pulsional.
Outro aspecto pregnante é a ideia de que o psiquismo seria um aparelho que
teria por função reduzir o nível dos estímulos tão baixo quanto possível ou mesmo
manter-se livre destes. Essa matriz estrutural do psiquismo como um aparelho que
se ocupa de manter a homeostase do sistema percorre toda a obra freudiana. Nesse
sentido, situa a pulsão como o conceito-limite entre o psíquico e o somático,
diferenciando-a dos estímulos externos devido a duas características: a força
(drang) da pulsão que, diferentemente dos estímulos externos, é constante; e a fonte
que é sempre corporal, um órgão ou uma parte do corpo. O fato dos estímulos
provenientes do corpo serem ininterruptos coloca um problema econômico, qual
seja, frente a esse afluxo permanente de estímulos como o aparelho psíquico, sob o
domínio do princípio do prazer, poderia manter uma homeostase e, para tanto, quais
seriam os possíveis destinos das pulsões? Esse fator quantitativo tem uma função
essencial na teoria pulsional por ser considerado a dobradiça entre corpo e
psiquismo, uma vez que se trata da medida de exigência de trabalho imposta ao
psíquico em consequência de sua relação com o corpo (FREUD, 1915, p.148).
Dos quatro componentes da pulsão força (drang), meta, objeto e fonte
destacamos, por hora, a meta e o objeto para analisarmos seus paradoxos e os
desdobramentos que estes implicam. Posteriormente, retomaremos a análise da
força (drang) pulsional.
A meta de toda pulsão seria a satisfação, ou seja, a suspensão dos estímulos
oriundos da fonte somática. A ideia de satisfação constitui em si um primeiro
paradoxo, pois a pulsão se caracteriza essencialmente por ser uma força constante
e a satisfação seria, do ponto de vista biológico, a cessação dos estímulos que
66
seriam sentidos como desprazerosos. Ora, se a satisfação final não é possível, pois
a abolição dos estímulos seria a morte, é preciso supor, como o faz Freud, que a
satisfação se dá de modo intermediário, sem que se chegue ao fim.
Embora a meta final de toda pulsão seja sempre a mesma, são diversos os
caminhos que podem conduzir a essa meta. Portanto, uma pulsão pode ter
numerosas outras metas mais próximas e metas intermediárias, que se combinam
ou até se permutam entre si antes de chegarem à meta final. (FREUD, 1915 a, p.
148).
O paradoxo da satisfação pulsional começa quando a pulsão, por não situar-
se no plano puramente biológico, produz uma modificação na satisfação, separando-
a da genitalidade e da reprodução. As pulsões são parciais por que não coincidem
com a finalidade biológica, satisfazendo-se justamente por não alcançar sua meta.
Quando a reprodução como finalidade está perdida e as pulsões são parciais, a
meta não é outra senão ir e voltar, ressaltando a função essencial do percurso da
pulsão a partir de sua fonte. A esse primeiro paradoxo se vincula um segundo
paradoxo que diz respeito ao objeto da pulsão. Se o objeto “[...] é aquilo em que, ou
por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta [...]” (ibid, p. 149) e se a meta da
pulsão é uma satisfação parcial como podemos definir seu objeto?
Ele [o objeto] é o elemento mais variável na pulsão e não es originariamente
vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em razão de sua aptidão em
proporcionar satisfação. [...] Ao longo dos diversos destinos que a pulsão conhecerá,
o objeto poderá ser substituído por intermináveis outros objetos, e a esse movimento
de deslocamento da pulsão caberão os mais significativos papéis. (ibid.).
Apesar de Freud postular a variabilidade do objeto, podemos observar a
presença recorrente nesse e em outros textos freudianos da ideia de que a pulsão
se apoia na necessidade, remetendo, em última análise, a um objeto específico.
Além disso, afirma que com frequência ocorre em períodos muito iniciais do
desenvolvimento a fixação da pulsão a um objeto, interrompendo a mobilidade
pulsional. Ou seja, um objeto poderia passar a “satisfazer” a pulsão, impedindo o
deslocamento e a busca por objetos parciais.
Colocamos aqui um primeiro ponto de interrogação quanto à obesidade: como
alguns autores indicam (RABINOVICH, 2004, p.19), e é facilmente atestado na
clínica, na obesidade uma satisfação à qual não é possível renunciar, sugerindo
67
uma fixação
26
primeira ao objeto oral. A noção de fixação levou muitos autores a
formularem suas hipóteses dando excessiva ênfase à oralidade, atribuindo desde o
início uma equivalência entre a experiência de satisfação e o objeto oral primordial, a
saber, o seio materno. Porém essa perspectiva será diluída pela gradativa
constituição de um novo modelo pulsional em que as pulsões de autoconservação
serão absorvidas pela pulsão de vida, cabendo aqui ressaltar o aspecto paradoxal
da satisfação pulsional que impera para aquém e além das fixações nos primeiros
objetos.
Essa questão sobre a fixação a um objeto é tratada também no artigo O
recalque (1915 b) do ponto de vista dinâmico no momento em que Freud diferencia
o recalque originário do recalque propriamente dito. Afirma que é preciso supor a
existência de uma primeira fase do recalque que consistiria em interditar ao
representante [Repräesentanz] psíquico da pulsão sua representação mental
[vorstellung]) sua entrada e admissão no consciente. Esse primeiro recalque
estabeleceria uma fixação, e a partir daí esse representante subsistiria inalterado e a
pulsão permaneceria a ele enlaçada. Esse representante inicial que seria
supostamente recalcado teria por função atrair as futuras representações, que
constituiriam o recalque propriamente dito, através de ligações associativas com
esse representante inicial. No recalque trata-se, pois, da descrição de um dos
destinos que pode sofrer uma pulsão, mas também de uma das referências em que
ele aponta para os primeiros registros das pulsões, as primeiras inscrições do
circuito pulsional, que irá subsidiar as futuras inscrições. Observamos que, como em
vários outros pontos, se trata de uma construção teórica que visa, a posteriori, dar
um tratamento à experiência clínica.
Assim, o recalque seria um dos possíveis e mais prováveis destinos das
pulsões sexuais (libido) de que se tem notícia. Inicialmente, essas pulsões teriam
por meta o “prazer do orgão”, expressão a que Freud alude na introdução dos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e na Conferência XXI das
Conferências introdutórias sobre psicanálise (1917), e nesse momento, agiriam
independentemente umas das outras, sendo posteriormente amalgamadas. Após
essa síntese, essas pulsões tornam-se reconhecíveis como pulsões sexuais e “[...]
entram a serviço da função da reprodução [...]” (FREUD, 1915 a, p. 151). Se antes o
26
Esse conceito será melhor articulado no item 4.2 desse estudo.
68
objeto que lhe trazia satisfação era localizado no órgão ou no próprio corpo, é na
medida em que se dá a síntese dessas pulsões independentes que seu objeto passa
a coincidir com o objeto sexual, veiculando, dessa maneira, a ideia de um apoio em
funções do Eu.
Em sua primeira manifestação, [as pulsões sexuais] ainda se veiculam apoiadas nas
pulsões de autoconservação, das quais se separam pouco a pouco. O mesmo
ocorre com a busca do objeto, atividade para a qual se servem das trilhas que as
pulsões do Eu lhes deixaram indicadas. (FREUD, 1915 a, p. 151).
À luz do enunciado firmado por Freud em 1923, em O Eu e o Isso
27
, segundo
o qual “[...] o Eu é sobretudo um Eu corporal.” (1923, p. 38), Birman (2005) propõe
que o recalque originário tem por função reunir o amontoado de traços psíquicos que
se formam a partir do investimento nos primeiros objetos em um conjunto, um
sistema, transformando o traço em uma inscrição
28
, ao mesmo tempo psíquica e
corporal. É também em O Eu e o Isso (1923) que Freud retoma a ideia de que a
escolha do objeto segue as trilhas deixadas pelas pulsões do eu. Neste texto, que
situa-se na segunda tópica e após a virada de 1920, Freud dirá que o Eu é uma
parte do Isso que se modificou a partir da influencia do mundo externo, ou seja, o Eu
se constituiu a partir dos investimentos objetais abandonados que foram recolhidos
ao Eu e substituídos por uma identificação. Voltaremos a esse ponto. Por hora nos
interessa alinhavar a intrínseca relação entre a pulsão, o Eu e seus objetos.
Será no texto À guisa de introdução ao narcisismo (1914) que Freud tratará
do narcisismo como o tempo em que o corpo é tomado como objeto libidinal para
posteriormente passar a investir em objetos do mundo externo. Para tanto, toma
algumas definições desenvolvidas em Pulsões e destinos da pulsão (1915 a), como
o modelo de aparelho psíquico e o próprio dualismo pulsional, para analisar as
doenças orgânicas, a hipocondria e as escolhas dos objetos amorosos. Freud dá um
especial relevo à mobilidade da libido que pode ser investida no Eu e nos objetos de
modos variados, utilizando a seguinte metáfora:
27
Apesar da tradução brasileira presente na Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud adotar o título “O
Ego e o Id”, optamos pela tradução “O Eu e o Isso” por acreditarmos ser mais fiel ao objetivo de Freud ao cunhar
os termos que representam as instâncias psíquicas da segunda tópica. Na bibliografia consta o título original
utilizado na nova tradução feita por Luiz Alberto Hanns diretamente do alemão O Eu e o Id que integra a recente
coletânea Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Ao longo do texto e das citações retiradas, utilizaremos o
termo “Isso” no lugar de “Id” e o termo “Eu” no lugar de “Ego”.
28
Esse assunto é precocemente abordado por Freud na carta endereçada a Fliess, em 06 de dezembro de 1896.
FREUD, S. Carta 52 (1896). In: ________. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1980.
69
Originalmente o Eu é investido de libido e de que uma parte dessa libido é depois
repassada aos objetos; contudo, essencialmente a libido permanece retida no Eu.
Poderíamos dizer que ela se relaciona com os investimentos realizados nos objetos
de modo análogo àquele em que o corpo de um protozoário se relaciona com os
pseudópodes que projetam em relação aos objetos. (FREUD, 1914, p.102).
Em sua análise da doença orgânica, destacamos a característica da libido
(pulsão sexual) de lançar seus investimentos nos objetos e poder retirá-los durante o
período da doença, para tornar a enviá-los após a cura. A hipocondria se diferencia
da doença orgânica por não apresentar alterações orgânicas comprováveis, mas
toma como protótipo dessas alterações a própria excitação sexual que prescinde de
uma alteração orgânica para gerar sensações. Nesse sentido, designa como
erogeneidade o envio de estímulos sexuais de uma parte do corpo para o aparelho
psíquico, retomando as zonas erógenas que podem analogamente funcionar como
os órgãos genitais. Assim, pode haver a redução ou aumento da erogeneidade em
determinada parte do corpo que paralelamente gera uma alteração contrária na
libido do eu.
Voltando ao Pulsões e destinos da pulsão (1915 a) na análise dos destinos da
pulsão sexual, ou seja, os modos de defesa do Eu frente ao acosso pulsional, Freud
limita-se aos pares “transformação em seu contrário” e “redirecionamento contra a
própria pessoa”. O primeiro subdivide-se em dois processos distintos: o
redirecionamento de uma pulsão da atividade para a passividade (transformação na
meta), cujo exemplo são os pares sadismo-masoquismo e vontade de olhar-
exibição, e a inversão do conteúdo, cujo único exemplo seria a transformação de
amor em ódio. Quanto ao segundo destino pulsional (redirecionamento contra a
própria pessoa) indica uma coincidência com a mudança da atividade para a
passividade, ressaltando que o essencial nesse processo é que, diferentemente do
anterior, há a troca do objeto sem alteração da meta.
De todo desenvolvimento proposto pelo autor, destacamos em especial a
atenção dada à existência de uma fase anterior à pulsão sexual no par vontade de
olhar-exibição: a pulsão de olhar contém uma fase anterior autoerótica, cujo objeto
encontra-se primeiramente no próprio corpo e posteriormente será trocado por um
objeto análogo situado em outro [fremd] corpo. Contudo, seguindo a mesma lógica
da metáfora do protozoário apresentada no artigo À guisa de introdução ao
narcisismo (1914), Freud afirma que sob a ótica da satisfação, todas as etapas de
70
desenvolvimento da pulsão, tanto a fase anterior autoerótica quanto sua
configuração final, ativa e passiva, continuam subsistindo lado a lado. Para explicitar
essa coexistência pulsional, a qual nomeou ambivalência, Freud recorreu à metáfora
das ondas de lava, ou seja, séries de ondas agrupáveis em diferentes intervalos de
tempo.
Podemos então imaginar que a primeira e mais original erupção pulsional tenha
continuado a ocorrer sem alteração e sem sofrer nenhum tipo de evolução. A série
de ondas seguinte experimentaria desde o início uma modificação, talvez a
transformação em passividade, e, tendo incorporado essa nova característica, ela se
somaria à onda anterior. (FREUD, 1915 a, p.155).
Seguindo esse raciocínio, uma tentativa do autor nesse artigo em
diferenciar narcisismo e autoerotismo, atribuindo a denominação de narcisismo a
essa fase inicial do psiquismo em que o Eu se encontra totalmente tomado por
pulsões e que subsiste aos desenvolvimentos posteriores como marca,
29
e o termo
autoerotismo ao modo de satisfação da pulsão em que uma preponderância da
fonte sobre o objeto que podem coincidir ou não.
Entretanto, essa distinção não é uma constante nos textos em que se refere
ao narcisismo, sobretudo a partir de 1920, quando abandona o conceito de
autoerotismo ao mesmo tempo em que adota de modo definitivo a pulsão de morte,
estabelecendo um novo dualismo pulsional. Mesmo nesses dois textos que estamos
apresentando, uma divergência e Freud chega a conceber o narcisismo como
secundário, quando afirma que a suposição de que o Eu não esteja desde sempre
presente é necessária, pois se as pulsões autoeróticas estão presentes desde o
início é necessário igualmente supor que uma nova ação psíquica tem de ser
acrescentada ao autoerotismo para que se constitua o narcisismo (FREUD, 1914, p.
99). Empreenderemos um esforço de alinhar esses textos atribuindo o termo
autoerotismo a esse registro corporal logicamente anterior em que não referência
aos objetos do mundo externo e o termo narcisismo para a formação logicamente
posterior em que houve um envio de investimento aos objetos.
29
“Em ambos os casos, por meio da identificação, o sujeito narcísico sofre uma troca por outro Eu estranho
[fremd]. Portanto, considerando também a etapa preliminar do sadismo que aqui construímos, chegamos a uma
visão mais abrangente, segundo a qual os destinos pulsionais de ‘redirecionamento para o próprio eu’ e de
‘transformação de atividade em passividade’ são dependentes da organização narcísica do Eu e carregam a
marca dessa fase.” (FREUD, 1915, p.156). Sobre esse ponto, Freud introduz o conceito de identificação que será
desenvolvido posteriormente em O Eu e o Isso (1923).
71
Nosso esforço segue o desenvolvimento freudiano a respeito dos destinos
pulsionais. Para explicar a transformação do amor em ódio, Freud (1915 a) toma as
inter-relações entre as três polaridades da vida psíquica: Sujeito (Eu)–objeto (mundo
exterior) / Prazer–desprazer / Ativo–passivo, e afirma haver uma coincidência entre
as polaridades Sujeito (Eu)–objeto (mundo exterior) / Prazer–desprazer, a partir das
quais passa a fazer uma diferenciação entre um Eu-real originário (Real Ich), Eu-
prazer (Lust Ich), Eu-realidade definitivo.
30
O Eu-real originário refere-se ao
autoerotismo na medida em que o Eu prescinde do mundo externo para satisfazer-
se. Porém, para que haja uma passagem do Eu-real originário para o Eu-real
definitivo, é preciso que haja o investimento libidinal no mundo externo, em outros
objetos. Os primeiros objetos que serão investidos libidinalmente são aqueles
trazidos pelas pulsões de autoconservação, uma vez que estas não se satisfazem
de modo autoerótico. Se esses objetos forem fonte de prazer, o Eu os introjeta, caso
contrário, se forem fonte de desprazer, ele os expele. Assim, uma parte das pulsões
sexuais autoeróticas “[...] apta a servir ao desenvolvimento sob o domínio do
princípio do prazer.” (FREUD, 1915 a, Nota 71, p. 158), conduz o Eu-real originário a
uma fase intermediária à constituição de um Eu-realidade definitivo. Essa fase
intermediária é denominada como Eu-prazer e parece dizer respeito a um ponto
crucial do nosso questionamento em relação à obesidade.
Assim, desse Eu-real originário, que pode diferenciar o interno do externo a partir de
marcas distintivas objetivas
31
, deriva-se agora em Eu-prazer purificado, que coloca a
característica de prazer acima de qualquer outra. O mundo externo é decomposto
agora em uma parcela prazerosa, que ele incorpora em si, e em um resto, que lhe
parece estranho [fremd]. De seu próprio Eu ele extraiu uma parte que expeliu para o
mundo externo e que passa a sentir com hostil. (FREUD, 1915, p. 159)
Observamos que na mesma lógica da metáfora da lava, Freud assegura que
apenas uma parte das pulsões autoeróticas segue o desenvolvimento sob o domínio
do princípio do prazer ao Eu-realidade definitivo. Porém, esse “resto” autoerótico
permanece subjacente à libido objetal.
Birman (2005) nos auxilia no alinhamento desses conceitos ao propor que a
introdução do conceito de Eu-real originário como um terceiro registro do Eu se situa
30
Adotamos como critério de tradução os termos propostos por Birman em O corpo, o afeto e a intensidade em
psicanálise (2005).
31
Sobre essa diferenciação e o teste de realidade ver o artigo A negativa (FREUD, 1925, p. 148). Destaco o
trecho “Cabe ainda acrescentar que, ao longo do desenvolvimento, o teste de realidade só entra em cena
quando e se os objetos, que outrora trouxeram satisfação, já tiverem sido perdidos.” (ibid.).
72
no contexto teórico como equivalente “[...] à autonomia das forças pulsionais em
relação aos representantes psíquicos.” (p.63), abrindo a possibilidade para se
pensar a questão da força pulsional fora do registro da representação. Assim sendo,
o Eu-real originário, marcado pela preponderância da fonte sobre o objeto, “[...]
corresponde ao impacto pulsional sobre o outro, ou a seu retorno sobre o
organismo, pela passagem da atividade para a passividade.” (BIRMAN, 2005, p. 64).
O corpo autoerótico não tem uma unidade, é marcado por traços caóticos que se
ordenam aquém do princípio do prazer pelo princípio do Nirvana, não existindo
separação entre sujeito e objeto. A passagem do Eu-real originário para o Eu-prazer
seria tributário do narcisismo primário e se constituiria pelo recalque primário que
viria estabelecer um sistema de equivalências entre os traços caóticos,
transformando-os em inscrições. o Eu-realidade definitivo corresponderia ao fim
de um processo dialético em que se o estabelecimento do narcisismo
(secundário) e suas derivações, a saber: o super-eu, o ideal do eu e a diferença
sexual.
Como foi exposto, a introdução da dimensão alteritária é antecipada na
primeira tópica por Freud pela entrada dos objetos advindos do mundo externo, que
chegam ao Eu por meio das pulsões de auto-conservação. Em uma nota, Freud
afirma que a passagem para o estado narcísico se o ser vivo passa por um
período de desamparo e cuidado e tem suas necessidades satisfeitas por agentes
externos, ou seja o narcisismo se constitui se o outro que dele se ocupa passa a
ser incluído. Essa nota evoca uma passagem do Projeto para uma psicologia
científica (1950 [1895]) em que Freud faz uma primeira referência à precoce
incapacidade humana de realizar uma ação específica que alivie o estímulo
endógeno, pois “[...] uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo
externo.” (ibid., p. 431), afirmando, em seguida, que “[...] o desamparo inicial dos
seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais.” (ibid.). Essa
dependência do ser humano ao cuidado alheio é fonte de inúmeras interpretações e
seguiremos as proposições lacanianas segundo as quais a submissão ao Outro e o
desamparo são dimensões fundantes do humano. Nesse mesmo trabalho, Freud faz
referência a um componente inassimilável da percepção que constitui uma das
primeiras conceituações de das ding,
32
formulação que nos será útil. Caberá refletir
32
O termo das ding (a coisa) tem relevância na teoria freudiana sendo especialmente abordado no texto A
negativa (1925) e será posteriormente retomada por Lacan (1997 b) em articulação com o conceito de gozo. De
73
se na obesidade essa passagem do Eu-real originário ao Eu-realidade definitivo se
constitui da forma descrita por Freud ou seja, passando pelo Eu-prazer narcísico –
ou se obedece a uma outra lógica em que a libidinização do próprio ato de comer,
ato primordial de satisfação, se daria de forma falha, deixando o obeso
irremediavelmente ligado a esse componente inassimilável da percepção, das ding.
3.2 A dimensão alteritária, o corpo e a função da imagem
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós
Clarice Lispector
Retomando o artigo O corpo, o afeto e a intensidade em psicanálise, Birman
(2005) apresenta, em sua leitura dessa dinâmica pulsional, que o fundamento
alteritário da segunda tópica freudiana está na base da afirmação freudiana de que
“[...] o Eu é sobretudo um Eu corporal” (FREUD, 1923, p. 38). A construção do Eu
corporal passa pelas transformações pulsionais e o corpo seria o “[...] território
ocupado do organismo”, ou ainda o “[...] conjunto de marcas impressas sobre e no
organismo pela inflexão promovida pelo Outro.” (BIRMAN, 2005, p. 62). Essas
marcas do autoerotismo, que subsistem na constituição do Eu da pessoa adulta,
indicam como se deu o percurso pulsional do Eu-real originário ao Eu-realidade
definitivo.
O movimento inicial da força pulsional inequivocadamente conduz para a descarga.
Entretanto, à medida que o Outro puder acolher esse movimento originário, isto é,
nomeá-lo e lhe fornecer um campo possível de objetalidade, a força pulsional
estabelecerá uma ligação que a fará retornar ao organismo. (ibid.).
É esse movimento originário da pulsão que vai ao Outro e retorna após ter
encontrado um objeto com o qual retém uma satisfação possível, ainda que parcial,
que irá marcar o aparelho psíquico, sem que haja, no entanto, um eu separado do
objeto. É apenas ao registro do autoerotismo que se restringe essa inscrição, sobre
a qual irão sobrepor-se as futuras percepções e satisfações, a mesmo a
construção do fantasma neurótico. Birman prossegue:
modo geral, podemos dizer que das ding presentifica a inexistência da verdadeira satisfação pulsional, pois das
ding está fora da simbolização, é da ordem do real.
74
Apenas nesse momento se constituiria um circuito pulsional em que se articulariam a
força e o objeto, pela mediação da regulação da experiência de satisfação. Além
disso, por esse retorno da força pulsional e pela ligação inicial desta a um campo de
objetalidade, se estabeleceria uma marca originária, um traço, simultaneamente
corporal e psíquico. (BIRMAN, 2005, p. 62).
Essa perspectiva nos introduz numa leitura lacaniana da pulsão, sendo,
portanto, necessário delimitar o campo teórico de onde partimos. Desde o início de
seu ensino, Lacan buscou sedimentar suas construções no texto freudiano. Nesse
contexto, o primeiro seminário ministrado por Lacan tem como texto introdutório da
problemática da técnica psicanalítica o artigo de Freud À guisa de introdução ao
narcisismo (1914) em que promoverá à categoria de conceitos os termos
empregados por Freud: Eu-Ideal (Ideal Ich) e Ideal do Eu (das ideal Ich),
diferenciando-os entre si. É a partir da análise minuciosa desse texto que Lacan
apresenta o esquema óptico como o protótipo de um registro do Eu em que a
dimensão alteritária se constitui como tal. Seguiremos inicialmente essa proposição
para situar com Lacan a dimensão do Outro (A) e sua introdução na dinâmica
pulsional.
Lacan, no segundo capítulo do seminário 1 (1996), se propõe a pensar
algumas questões concernentes ao lugar do imaginário na estrutura simbólica,
buscando resgatar o sentido dado por Freud ao Eu como instância psíquica e
destilando sua constituição referida aos registros simbólico e imaginário. Para tanto,
retoma o esquema apresentado por Freud no capítulo 7 da Traumdeutung (1900, p.
493), apontando que essa construção freudiana nos leva a observar para além da
localização anatômica dos processos psíquicos, trata-se de uma topologia em que o
lugar psíquico corresponde ao ponto desse aparelho onde se forma a imagem. Essa
construção se faz necessária a Freud para sustentar suas hipóteses a respeito dos
sonhos.
Tomando de empréstimo essa construção freudiana, Lacan propõe um outro
esquema, o esquema óptico, a partir do qual irá diferenciar como se formam as
imagens reais (que se comportam como objetos) das imagens virtuais (que são
puramente subjetivas), e como essas são representativas dos movimentos de
constituição do sujeito no Estádio do Espelho.
Segundo Lacan esse esquema permite ilustrar a intrincação do imaginário e
do real na medida em que a imagem do corpo ao sujeito um domínio imaginário
75
do corpo próprio, antecipando o domínio real que a maturação fisiológica irá lhe
proporcionar. A construção lacaniana do esquema óptico suscitou amplo interesse
no meio psicanalítico por traduzir de forma cuidadosa as ideias freudianas a respeito
do narcisismo, colocando em destaque o componente especular. Marcando uma
diferenciação em relação às leituras s-freudianas que privilegiaram o aspecto do
desenvolvimento segundo determinadas fases, Lacan frisa que o Estádio do Espelho
não é uma fase do desenvolvimento e, lembrando a indicação freudiana de que não
se deve tomar o andaime pelo prédio, ressalta a função exemplar que possui por
demonstrar certas relações do sujeito com a imagem. A imagem do corpo ao
sujeito a primeira forma que lhe permite discernir o que é e o que não é do Eu. Além
disso, o esquema proposto por Lacan nos indica que a pulsão libidinal é centrada na
função imaginária e não, à maneira dos instintos nos animais, na realidade sexual do
parceiro (LACAN, 1996, p. 144).
O esquema ótico foi desenvolvido por Lacan a partir da experiência do buquê
invertido de Bouasse, considerando determinadas leis da ótica como a que garante
que para que a ilusão se produza é preciso que o observador esteja numa certa
posição, a que Lacan associa a posição na ordem simbólica em que cada sujeito
está inserido desde seu nascimento, ressaltando a primazia do simbólico sobre o
imaginário.
Figura 4: Esquema de Bouasse. In: LACAN, 1998, p. 680.
Lacan refaz esse primeiro esquema colocando o vaso embaixo da mesa e o
buquê sobre a mesa de modo que se o observador estiver de frente para o espelho
76
côncavo poderá ver a imagem real (que se comporta como objetos) que se produz
do vaso envolvendo o buquê. Mas se o observador estiver na mesma direção do
espelho côncavo será preciso um outro espelho plano para completar o novo
esquema em que se forma virtualmente a mesma imagem.
Figura 5: Esquema Óptico. In: LACAN, 1998, p. 681.
A inclusão do espelho plano se justifica por referência à ordem simbólica
como mediadora da formação da imagem virtual (imagem puramente subjetiva) e por
sua preexistência ao próprio sujeito, inclusão que permite tomá-lo como modelo
teórico em que se representa a relação com o outro e que permite distinguir a dupla
incidência do imaginário e do simbólico (ibid., p. 680). Esse esquema é detalhado
mais amiúde no artigo publicado em La Psychanalyse intitulado Observações sobre
o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade (1998).
Por hora nos interessa indicar que, em última análise, esse esquema faz
ressaltar a subordinação imaginária entre a imagem real i (a) e a imagem virtual
i’(a) – e que o sujeito antecipa o acesso à realidade corpo, representado pelo vaso
oculto embaixo da mesa, de forma limitada e suportada pelo apoio em objetos,
representados pelo buquê. Para Lacan (1996), é no nível da imagem real do
esquema que situa-se o primeiro narcisismo e que forma ao seu unwelt (mundo
externo), não mediado pelo A (espelho plano). A reflexão no espelho plano introduz
um segundo narcisismo, cujo pattern fundamental é a relação com o outro. No
segundo narcisismo a identificação narcísica é a identificação ao outro, que permitirá
77
situar sua relação imaginária e libidinal com o mundo. O sujeito o seu ser numa
reflexão em relação ao outro, ao ideal do eu, i’(a).
Distingue, assim, duas funções do eu: por um lado tem o papel fundamental
de estruturação da realidade e por outro deve passar por uma alienação
fundamental que constitui a imagem refletida de si mesmo, a forma original do ideal
do eu, bem como da relação com o outro.
O conceito de Ideal do eu tem seu aparecimento tardio na teoria freudiana no
texto À guisa de introdução ao narcisismo (1914) e logo depois em Luto e melancolia
(1917 [1915]), textos em que ele figura associado à instância observadora,
constituindo a base do desenvolvimento na segunda tópica do Super-eu. O Ideal do
eu figura na sua origem como um esboço da instância que regula o Eu, como
aquilo ou algo em relação ao que o Eu deve medir-se.
Numa leitura lacaniana pelo esquema ótico podemos dizer que o Eu-Ideal é o
reflexo sem mediação, a imagem real i(a) referida ao Eu-real da infância ao
narcisismo no qual tudo seria a mais “valiosa perfeição e completude” e para o qual
se direciona o amor por si mesmo. O Ideal do eu é, por outro lado, o narcisismo
atravessado pela castração, ou seja, a imagem virtual que pode formar-se pela
interferência do espelho plano, pela marca deixada pela submissão ao campo do
Outro.
33
Portanto, a função desse esquema é assegurar a estruturação da fantasia a
partir da dimensão dessa experiência em que o sujeito se vê, se reflete e se
concebe como um outro. Vale lembrar que esse reconhecimento da imagem no
espelho que se por volta dos seis meses de idade reflete ela mesma de forma
pragmática uma experiência que se constitui a partir da matriz de um circuito
percorrido pela pulsão, em que há a emissão do investimentos (metáfora dos
pseudópodes) que são recolhidos ao Eu, produzindo nesse caminho marcas da
incursão ao campo do Outro (A).
A dimensão alteritária da teoria freudiana que permite a releitura lacaniana
dos textos fundamentais sobre o narcisismo e as pulsões vai, portanto, se
33
Segundo Lacan, a castração seria propriamente a entrada no campo do Outro, enquanto barrado que implica
um abandono dos ideais vinculados ao eu-ideal. A constituição do campo do Outro, da alteridade implica por si a
dimensão decepcionante da ordem simbólica, pois institui o narcisismo marcado pela impossibilidade. É o
reconhecimento dessa impossibilidade primordial que dá acesso ao campo das neuroses pela instauração da
falta referida ao falo. Sobre esse assunto, Cf.: ______. O seminário, livro 16: De um outro ao Outro (1968-
1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
.
78
delineando a partir dos textos da metapsicologia e terá sua derradeira contribuição
no texto Além do princípio do prazer (1920).
3.3 Acosso pulsional e desejo
Anna Freud, morangos, morangos silvestres, omelete, pudim!
Sigmund Freud
O texto Além do princípio do prazer (1920) constitui um marco teórico de valor
único. É de um ponto mais além do princípio fundamental que orientou toda sua
construção teórica que Freud se interroga sobre os pressupostos que até então
tomavam a cena psicanalítica. O testemunho de pistas clínicas irrefutáveis, a saber,
a observação do Fort-da, os sonhos traumáticos e a repetição na transferência,
culminou em uma nova topologia em que aquilo que escapava a uma teoria centrada
na homeostase do sistema e num dualismo entre autoconservação e sexualidade
também demandava teorização. Reunindo suas próprias indicações teóricas e o
hesitando em reformular-se, Freud propõe nesse artigo um novo dualismo pulsional:
as pulsões de vida são, agora, confrontadas à incansável pulsão de morte. Este
ápice teórico-clínico implicou uma nova ética da psicanálise e o abandono da
ambição terapêutica de tornar consciente o inconsciente, pois, a partir daí, abre-se a
possibilidade de “[...] que o doente não se lembre de tudo o que nele está recalcado
e que aquilo que lhe escape seja justamente o mais importante.” (FREUD, 1920, p.
144).
Quando a impossibilidade de recordar impõe uma repetição em ato de
conteúdos inconscientes sem que se possa atribuir qualquer relação com o princípio
do prazer, Freud é levado a admitir a existência de uma compulsão à repetição que
ultrapassa o princípio do prazer, indicando a dimensão mais originária e arcaica da
pulsão. O fator econômico (Drang) da pulsão já descrito no texto Pulsões e destinos
da pulsão (1915 a) ganha destaque especial sob a forma da pulsão de morte que
impele o organismo ao retorno ao estado inorgânico. Sob esse prisma, as pulsões
de autoconservação passam a figurar como pulsões parciais que asseguram o
caminho imanente do organismo para a morte e se amalgamam às pulsões sexuais
sob a designação de pulsão de vida. Essa nova hipótese o absorve, contudo, as
vicissitudes dessa impossibilidade de conciliação entre os princípios do prazer e da
79
realidade, mas recoloca as pulsões sexuais, agora pulsões de vida, como o
fundamento da continuidade da vida que deve fazer frente ao imperativo de retorno
à morte.
Segundo Fortes (2007), para pensar os sintomas contemporâneos, e incluo aí
a obesidade, devemos tomar o aspecto paradoxal da pulsão de morte, pois se por
um lado ela diz respeito ao excesso que não é assimilável pelo aparelho psíquico,
por outro, indica a tendência à descarga total, ao esvaziamento de todas as tensões
que se daria no retorno ao inorgânico.
Portanto, após de 1920, segue-se uma rie de reformulações teóricas numa
tentativa de incluir a pulsão de morte na estrutura da psicanálise e principalmente
como operador clínico. Em O Eu e o Isso (1923), sua crítica em relação à primeira
tópica se constrói, notadamente, em função das observações clínicas, que colocam
limitações para as distinções entre registros Cs, Pcs, Ics. Segundo essa concepção
inicial, o Eu seria uma instância psíquica coesa que teria a consciência atada a ele e
que supervisionaria os processos parciais, sendo dele a procedência do recalque.
Uma das tarefas da análise seria lidar com as resistências do Eu para poder ocupar-
se do recalcado. Essas resistências aparecem ao longo do tratamento, sem que o
paciente possa apontá-las ou nomeá-las, indicando que algo no Eu que é
também inconsciente e se comporta tal qual o recalcado. Nesse sentido, propõe
substituir a concepção inicial segundo a qual o recalque derivaria somente de um
conflito entre um Eu coeso e o recalcado que dele se cindiu. Como desdobramento
dessa asserção afirma que “[...] o Ics não mais coincide com o recalcado, e embora
siga sendo correto dizer que todo recalcado é Ics, nem todo Ics é recalcado.”
(FREUD, 1923, p. 32). Considerar que uma parte do Eu que é inconsciente, mas
que não é o Pcs, implica admitir um terceiro inconsciente o recalcado, colocando
em segundo plano a própria qualidade inconsciente por esta passar a admitir
sentidos muito diversos.
É importante destacar a ênfase dada por Freud ao que da pulsão chega via
sensação de prazer ou desprazer, sendo por ele denominado como “[...] algo que
ocorre no desenrolar psíquico de um modo quantitativa e qualitativamente
diferenciado.” (ibid., p.35). A tentativa de analisar como esse “algo” pode tornar-se
consciente indica que este precisa ser conduzido ao sistema perceptivo, pois ao
comportar-se como uma moção recalcada pode desdobrar-se em forças impelentes
e exercer uma pressão (zwang) sem que o Eu se conta. Afirma, ainda, que “[...]
80
esse ‘algo’ se tornará consciente em forma de desprazer quando houver uma
resistência contra essa força, colocando um freio à reação de escoamento buscada
por essa pressão tão impositiva.” (FREUD, 1923, p. 36) e ao modo da dor física,
uma pseudopulsão, pode permanecer inconsciente em função de um acúmulo de
necessidades internas não atendidas. De modo resumido, afirma que esse “algo”,
bem como as sensações que se inscrevem no modelo prazer-desprazer são
capazes de se tornarem conscientes de forma direta.
Após essa análise topológica, Freud, seguindo a sugestão de G. Groddeck
segundo a qual o Eu se comporta de modo passivo sendo vivido por forças
desconhecidas, propõe uma nova concepção do Eu, subdividindo-o em das Ich, o
Eu, que provém do sistema perceptivo e é inicialmente pré-consciente, e o das Es, o
Isso, esse outro psíquico em que o Eu se comporta de forma inconsciente. Na
esteira das explicações expostas em Além do princípio do prazer (1920), Freud
afirma que o Eu é uma diferenciação que se deu na superfície do Isso por influência
do mundo externo, tentando substituir o princípio do prazer que reina no Isso pelo
princípio da realidade ao qual é confrontado no mundo externo. Numa bela metáfora,
Freud compara o relacionamento do Eu e do Isso ao de um cavaleiro que deve levar
seu cavalo muito mais forte do que ele, assinalando que no caso do Eu as forças
das quais dispõe são provenientes do Isso e nos indica que “[...] tal como o
cavaleiro, que não querendo separar-se de seu cavalo, frequentemente não tem
outra escolha a não ser conduzir o cavalo por onde este queira ir, da mesma forma
também o Eu habitualmente converte a vontade do Isso – como se fosse a sua – em
atos e ações.” (1923, p. 38). A clínica coloca em evidência um outro aspecto que é
abordado por Freud que considera a existência de um sentimento de culpa
inconsciente que tem os mais importantes efeitos no Eu. Alerta para a suposição
outrora indicada de que existiria no Eu um outro patamar de diferenciação além do
Isso ao qual chamou de Ideal-do-eu ou Super-eu que tem uma relação mais frouxa
com a consciência do que com o Eu.
Além dessa importante reformulação tópica, Freud também não se recusa a
repensar a função da angústia a partir das experiências por ele descritas como
testemunhos clínicos do além do princípio do prazer. É justamente pela
reformulação da teoria da angústia que Lacan procurará delimitar o conceito de
objeto da pulsão. Para entender esse conceito, tomemos agora as observações de
Lacan no Seminário 11 (1964). Esse seminário é fundamental no entendimento da
81
psicanálise lacaniana, pois se dedica a delinear os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, dentre os quais a pulsão, buscando delimitar seu objeto e compreender
melhor o que de fato está em jogo na pulsão oral ou na oralidade. Inicia sua análise
descartando qualquer possibilidade de assimilação da pulsão ao plano biológico da
necessidade, pela característica que a descreve como uma força constante,
colocando em questão o que é sua satisfação, como já apontamos.
A pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente
por que ela se satisfaz. Pois se se distingue, no começo da dialética da pulsão, o
Not e o Bedürfnis, a necessidade e a exigência pulsional é justamente porque
nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão. (LACAN,
1995 b, p.159).
Essa separação é, portanto, fundamental. Se nos textos freudianos da
primeira tópica ainda resta uma tentativa de apoiar o objeto pulsional nos objetos
das pulsões de autoconservação, a partir da leitura lacaniana qualquer possibilidade
de que isso tenha fundamento é descartada. Se no Seminário 4 (1997 a) Lacan
analisa as relações do sujeito com o mundo pela via da relação de objeto em suas
três vertentes frustração, privação castração enfatizando a disjunção entre
demanda e necessidade, no Seminário 10 (2005) retomará essa análise sob a ótica
da função do objeto. Rompendo com uma tradição psicanalítica em que o foco das
relações do sujeito com o mundo externo se pauta nas primeiras experiências de
satisfação cuja matriz se reduz à relação mãe-bebê, tendo o seio como o objeto
primordial da pulsão oral, Lacan propõe outro estatuto ao objeto primordial,
promovendo-o a uma função.
Para a pulsão oral, por exemplo, é evidente que não se trata de modo algum de
alimento, nem de lembrança de alimento, nem de eco de alimento, nem de cuidado
da mãe, mas de algo que se chama seio e que parece que vai sozinho porque está
na série. Se Freud nos faz essa observação de que o objeto da pulsão não tem
nenhuma importância, é provavelmente porque o seio deve ser revisado por inteiro
quanto à sua função de objeto. (LACAN, 1995 b, p. 160).
Assim, Lacan tomará o seio na sua função de objeto, aponta que, para além
da análise dos pares de opostos feita por Freud no texto dedicado às pulsões, ele
busca conduzir o leitor ao cerne da questão pulsional: o circuito de idas e vindas da
pulsão, ou, para Lacan, o caráter circular da pulsão. Sobre esse objeto, Lacan é
veemente na desmontagem imaginária a ele colada pela tradição da psicanálise
pós-freudiana, ligando-o a “algo” que é inassimilável no aparelho psíquico.
82
Em todo caso, o que força a distinguir essa satisfação [da pulsão oral] do puro e
simples autoerotismo da zona erógena, é esse objeto que confundimos muito
frequentemente com aquilo sobre o que a pulsão se refecha este objeto, que de
fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável nos diz Freud, por
não importa que objeto e cuja instância conhecemos na forma do objeto perdido,
a minúsculo. O objeto a minúsculo não é a origem da pulsão oral. Ele não é
introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum
alimento jamais satisfaa pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente
faltante. (LACAN, 1995 b, p. 170, grifos nossos).
O fato de que algo fica de fora do circuito pulsional devido à ligação a um
“campo possível de objetalidade” (BIRMAN, 2005, p. 62) o que em termos
freudianos seria a ação específica realizada nos cuidados dispensados ao bebê
que promove uma alteração no mundo externo, mas não a extinção do estímulo
endógeno, pois a pulsão é constante torna a satisfação parcial, ao mesmo tempo
em que paradoxalmente faz com que algo do objeto buscado “caia”, produzindo no
percurso o objeto perdido. Quanto a isso, Freud é explicito quando afirma de forma
brilhante que:
É da diferença entre o prazer efetivo obtido pela satisfação e o prazer esperado que
surge o fator impelente que não vai permitir que o organismo estacionar em
nenhuma das situação estabelecidas, mas ao contrário, nas palavras do poeta,
‘indomado, sempre impele adiante’. (1920, p. 165, grifos nossos).
Segundo Balbi (2000), essa é a exigência de trabalho feita pela pulsão ao
aparelho psíquico: tudo acontece como se tendo partido de uma fonte corporal, uma
borda que chamamos zona erógena, a pulsão contornasse o objeto ao mesmo
tempo que o torna perdido, e retornasse à borda corporal investida (impelida) pela
perda. Segundo Vidal apud Balbi (2000, p. 190), “[...] o circuito da pulsão só se fecha
quando, tendo abraçado o corpo do Outro, faz retorno sobre a zona erógena,
produzindo-se no percurso o objeto perdido.” O que fica de fora do circuito pulsional
é, em última análise, condição de possibilidade da instauração da alteridade, base
fundamental para qualquer inscrição subsequente. Segundo Lacan,
Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma
totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que
ela é parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito. (1995
b, p. 170).
83
Em sua arquitetura, o desejo contempla o inassimilável primordial que
responde na origem da psicanálise por das ding.
34
Para Lacan, o seio em sua função
de objeto alinha-se ao objeto a, que por ser perdido causa o desejo
35
, impelindo
sempre adiante. É exatamente nesse fechamento pulsional em circuito e não na
satisfação total da pulsão em um objeto adequado ou suficiente que, para Lacan,
pode emergir o sujeito como sujeito desejante.
É preciso bem distinguir a volta em circuito de uma pulsão do que aparece mas
também por o aparecer, num terceiro tempo. Isto é, o aparecimento de ein
neues Subjeckt que é preciso entender assim não que ali não houvesse um, a
saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito,
que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar seu curso circular.
É somente com sua aparição no nível do outro que pode ser realizado o que é da
função da pulsão. (LACAN, 1995 b, p. 169).
A definição de desejo em Freud só é delineada com maior precisão no
contexto da teoria dos sonhos, mas refere-se, sobretudo, à vivência alucinatória da
satisfação. Essa vivência pode ser reeditada no encontro do objeto, ou de forma
mais precisa, no reencontro, dado que o objeto é desde sempre perdido (FREUD,
1905, p. 209), caracterizando o desejo não pela possibilidade de satisfação, mas por
aquilo que o objeto pulsional engendra na busca pela satisfação. O desejo, portanto,
se constitui justamente nessa incompletude pulsional em que se instala o objeto
enquanto perdido, pois não se trata de encontrar esse objeto na nostalgia das
vivências infantis, mas de reencontrá-lo a cada nova satisfação. Esse deslocamento
de um objeto ao outro é o que caracteriza o desejo desde Freud. Na Traumdeutung
(1900), Freud o definia por seu caráter insatisfeito, buscando demonstrar sonho a
sonho o que do desejo se realizava. Realização sim, satisfação o. Inspirada na
fala de uma paciente que, frente às restrições impostas pela nutricionista, demanda
que esta lhe “um docinho, um iogurtinho, um sorvetinho...recordei, na epígrafe
deste capítulo, o sonho de Anna Freud ilustrando como a dimensão do desejo
insatisfeito figura na clínica do mesmo modo como se apresenta nos sonhos. A
34
Ver a nota de rodapé 30.
35
O conceito de objeto a é trabalhado ao longo do seminário de 1962-1963 e constitui, segundo o próprio Lacan,
sua principal contribuição para a psicanálise. A função primordial da angústia situa-se na sustentação da perda
do objeto a e no contorno que proporciona à pulsão. Articula-se intimamente ao conceito de das ding, pois seria
o enodamento desta ao Outro que elevaria o gozo maciço da coisa ao gozo do Outro. Sobre esse assunto ver:
LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
84
gramática dessa realização também nos chega pela via fantasia que realiza de
modo singular o desejo sempre insatisfeito.
3.4 Libidinização: do vazio pulsional à falta fálica
Por muito tempo achei que a ausência é falta
E lastimava, ignorante, a falta
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência
A ausência é um estar em mim
Carlos Drummond de Andrade
Podemos, agora, afirmar que a constituição do objeto como perdido que se
inicia logicamente na entrada no ciclo da troca como trabalhamos no capítulo 2, a
propósito da resposta materna ao apelo do infans, é condição de possibilidade do
desejo. Porém, como Lacan propôs no seminário 4 (1997 a), a falta do objeto admite
três dimensões frustração, privação castração que contemplam a passagem do
sujeito pelo complexo de Édipo, ao fim do qual o falo se constitui como significante
que vem nomear a falta materna. A constituição do falo no nível simbólico é o que
possibilita a entrada na ordem simbólica propriamente dita, estruturando a fantasia.
Aqui é importante realizar uma breve aproximação da questão do complexo de
Édipo na medida em que este desempenha uma função de normatização da
sexualidade, funcionando como uma intervenção do pai na relação da criança com a
mãe, nomeando a falta e inaugurando a dimensão propriamente simbólica da
castração.
Em seu seminário a respeito das formações do inconsciente, Lacan (1999)
toma o conceito de metáfora paterna como aquilo que se opera em um sujeito em
sua passagem pelo complexo de Édipo. Trata-se da inserção do sujeito na ordem
simbólica e o advento do pai como significante (significante Nome-do-Pai) no lugar
que a mãe ocupa na relação com a criança. É a Lei que incide na sexualidade e que
permite que ela se realize por meio e através dessa Lei, de forma simbólica.
Segundo Lacan, a operação da metáfora, assim como a descrição proposta
por Freud do deslocamento nos sonhos, consiste na substituição de um significante,
que fica recalcado, por outro significante que vem no lugar deste, segundo a fórmula
que Lacan apresenta em seu texto A metáfora do sujeito (1998):
85
s
I
S
x
S'
S'
S 2
1
No que diz respeito ao complexo de Édipo, se trata de efetuar uma passagem
de um primeiro momento em que a criança é o falo, tendo lugar garantido na
fantasia materna, para uma posição de detentora do falo, passagem que se em
sincronia com a construção da própria fantasia. Nesse sentido, a operação simbólica
que se apresentará é uma metáfora em que o significante que fica recalcado refere-
se ao desejo da mãe, e o que advém em seu lugar é o Nome-do-Pai como o que vai
nomear o desejo da mãe, retirando o lugar que cabia primeiramente à criança, e
colocando o falo em seu devido lugar, lugar simbólico de sustentação da significação
fálica.
Num primeiro momento da relação mãe-criança, há uma sobreposição da
criança como o objeto do desejo da mãe, ou seja, a criança está identificada ao falo
uma vez que supõe que este seja o objeto que satisfaz o desejo da mãe. Nisso se
constitui uma relação que não é dual, mas ternária, na medida em que o falo é um
terceiro elemento que advém na dinâmica do complexo de Édipo. O triângulo
imaginário (I), apresentado no seminário 5 (1999), figura a relação ternária que se
estabelece nesse primeiro momento.
ϕ
mãe
I
criança
Como foi dito no capítulo 2, a experiência da criança em relação à e se
constitui num movimento de idas e vindas dessa mãe que introduz a dimensão da
perda de algo que não está, de forma alguma, separado do próprio corpo do sujeito.
A unidade corporal se dá num primeiro momento de forma especular que, em
articulação com a preexistência da linguagem, garante a continuidade do
estabelecimento das primeiras relações com o mundo. Assim como o jogo do Fort-
Da faz parte dessas primeiras tentativas de simbolização das ausências da mãe, é
86
em favor de uma tentativa de simbolização que a criança se coloca no lugar desse
objeto que satisfaz a mãe (o falo), porque é a causa dessas idas e vindas da mãe.
Nessa via, seu desejo vai constituir-se a partir do desejo do Outro (mãe) numa
relação metonímica.
Nesse primeiro momento o pai se apresenta de maneira velada, mas sua
presença se expressa pela via simbólica na medida em que para Lacan o mundo
está inserido desde sempre na ordem simbólica, da qual o pai é aquele que
promulga a lei, e a faz intervir de uma forma específica a seu tempo. Lacan se refere
a essa primazia do significante como “a etapa fálica primitiva” (1999, p. 198) que
assegura, antes mesmo do nascimento, a participação do sujeito na ordem
simbólica, se não inserida nela, como no caso das psicoses, ao menos referida a
ela, que a criança quando vem ao mundo encontra um lugar estabelecido no
discurso dos pais. Com efeito, a possibilidade de a criança estar referida nesse
primeiro momento a lei do significante se deve ao fato da mãe ser também um
sujeito falante e veicular em seu discurso um primeiro significante que o funda como
um primeiro sujeito, ainda que assujeitado ao desejo da mãe, segundo Lacan a esse
“capricho materno” (ibid., p.195), capricho de ir e vir, esperar ou agir, salientando
que nessa dimensão impera o imprevisível.
É também através da palavra da mãe que o pai faz sua entrada na dinâmica
do complexo de Édipo: tanto no primeiro como no segundo momento ele está
velado, mas no segundo tempo ele aparece no discurso materno como aquele que a
priva do objeto de seu desejo: é o pai que vem interditar o incesto na palavra da
mãe. Ela veicula em seu discurso que uma lei que não é sua, à qual ela também
está submetida, que veta a realização plena do seu desejo. Somente assim se a
possibilidade de entrada do pai na dinâmica do Édipo, como aquele que desvia para
outro lugar a possibilidade de satisfação e reconhecendo o sujeito como mortal e
sexuado. É nesse reenvio a um “tribunal superior” (ibid., p. 198) que oferece a
referência à ordem simbólica, à palavra do pai.
Esta operação de entrada do pai na relação mãe-criança recobre tanto a
ausência de um significante que ancore ao desejo da mãe, como a constatação da
ausência do pênis na mulher. A angústia da castração que no menino advém na
saída do Édipo se atualiza na figura do pai, que, por promulgar a lei da proibição do
incesto, é também aquele que impede o acesso à satisfação plena junto à figura
87
materna. Isso vem dar ao falo o estatuto de objeto possível de ser cedido, objeto que
entrou nas relações de troca simbólica.
No terceiro tempo, tempo de declinação do Édipo, se trata, afinal, que o pai
provas daquilo que a mãe testemunha em seu discurso, que ele seja revelado
como aquele que tem o falo e o que o é. Isso instaura o falo como o que é
desejado pela mãe, a quem o pai pode dar porque o tem. Isso é o que Lacan
destaca como sendo essencial deste terceiro tempo: que não somente o pai
provas de que tem o falo, mas principalmente que ele se revele também um pai
doador (LACAN, 1999, p. 212), aquele que pode dar à criança aquilo que tem. É o
estabelecimento do pai no plano simbólico que vai sustentar o estabelecimento do
falo no plano imaginário, segundo o esquema abaixo:
ϕ
Mãe
I
S
Criança Pai
É assim que deve se constituir a metáfora paterna, numa saída favorável do
complexo de Édipo, quando na autorização do pai que permite o menino ter um
pênis mais tarde, se realize a identificação ao pai e a formação do ideal-do-eu,
modelo ao qual o sujeito deve conformar-se. Nessa saída a diferença entre os sexos
se faz importante, à medida que o menino, ao se identificar a esse pai doador, sai
portando os títulos de posse no bolso para exercê-los mais tarde, na puberdade. Em
contrapartida, a menina não precisa fazer essa identificação com aquele que tem o
falo: ela não o tem, é castrada, mas sabe onde ele está e aonde deve ir procurá-lo
trata-se de reconhecimento de que é o homem quem possui o falo.
36
Para a mulher a realização de seu sexo não se faz no complexo de Édipo de uma
forma simétrica à do homem, não pela identificação com a mãe, mas ao contrário
pela identificação com o objeto paterno, o que lhe destina um desvio suplementar.
(ibid, p. 197).
36
Encontramos na Revista da Letra Freudiana, ano XXVII,
n.
39, uma coletânea de artigos sobre a temática do
complexo de Édipo e do complexo de castração, na qual são analisadas, entre outras questões, as diferenças da
passagem pelo complexo de Édipo na menina e no menino.
88
A fórmula da metáfora paterna que Lacan nos apresenta mostra que o
significante Nome-do-Pai aparece substituindo o significante desejo da mãe, que por
sua vez está remetido a uma significação “x” que não é acessível. É esse “x” ao qual
o desejo da mãe está referido, ao qual o sujeito se identifica no primeiro tempo do
Édipo e que o sujeito tenta elaborar no Fort-Da como o que provoca as idas e vindas
da mãe. Esse “x deve ser colocado em seu devido lugar, lugar de significado
elidido. A metáfora se constitui nesse endereçamento a outro significante, num
encadeamento de significantes do qual resulta uma identificação: o estabelecimento
dos significantes mestres, em relação aos quais o sujeito estará referido por toda
vida.
Essa saída favorável do complexo de Édipo que se refere às neuroses impele
o sujeito à constatação da falha estrutural que o ser humano comporta, a saber, a
inexistência de Um significante último que feche a cadeia significante numa única
significação. A angústia suscitada pela constatação de que algo que o represente
falta na ordem simbólica promove a construção de uma tela através da qual o sujeito
pode se confrontar com o enigma do desejo do Outro, esse “x” que para sempre
subjaz ao significante.
Isso se aplica à metáfora do Nome-do-Pai, ou seja, à metáfora que coloca esse
Nome em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação de
ausência da mãe.
Falo
A
Pai-do-Nome
x
Mãe da Desejo
Mãe da Desejo
Pai-do-Nome
Tentemos agora conceber uma circunstância da condição subjetiva em que ao apelo
do Nome-do-Pai corresponda, não a ausência do pai real, pois essa ausência é mais
do que compatível com a presença do significante, mas a carência do próprio
significante. (LACAN, 1999, p. 563).
Essa breve excursão pelo complexo de Édipo aponta que desde Freud o
dispostivo analítico se estrutura em torno das operações do sujeito em relação à
falta do objeto. À complexa passagem do vazio, à falta fálica que engendra o desejo,
podemos nomear libidinização, pois remonta à própria passagem do caos
autoerótico no qual não há separação entre fonte e objeto pulsional a uma
primeira organização narcísica e alteritária. Nesse sentido, outra passagem da teoria
freudiana deve ser relembrada. Em O Eu e o Isso (1923), Freud destaca que na
formação do Eu, o corpo próprio também desempenha um papel importante, pois de
sua superfície emanam percepções internas e externas, levando-o a afirmar que o
Eu é sobretudo um Eu corporal, ou seja, ele deriva de sensações corporais e é ao
89
mesmo tempo a superfície (sensação) e sua projeção (percepção), ressaltando as
diferenças dessas duas dimensões de apreensão do corpo e afirmando a
precedência do corpo na formação do Eu.
Nesses termos, esse complexo movimento pulsional corresponde à
libidinização do corpo que Freud desenvolve em O Eu e o Isso (1923), a partir do
modelo da melancolia. Nesta o objeto perdido é reconstituído no Eu por meio de um
recolhimento do investimento do objeto que é substituído por uma identificação e
Freud dirá que grande parte da constituição do Eu se por identificação
37
aos
investimentos objetais abandonados. Afirma que para que o Isso abdique de seus
objetos de investimento, é necessário que o Eu adote as características próprias ao
objeto e se ofereça como objeto de amor ao Isso, o que provocaria uma alteração no
Eu, indicando, ao fim de um longo desenvolvimento acerca da sublimação e do
Supereu que se constituirá como herdeiro do complexo de Édipo, um aprimoramento
a ser realizado na teoria do narcisismo.
De início, toda libido está ainda acumulada no Isso, enquanto o Eu ou se encontra
ainda em processo de formação ou se formou, mas ainda é frágil. Nessa fase é o
Isso que emite uma parte dessa libido, investindo-a nos objetos. Mais adiante,
quando está mais fortalecido, o Eu tenta se apoderar ele mesmo desta libido
objetal enviada pelo Isso e busca se impor como objeto de amor ao Isso. O
narcisismo do Eu é, dessa forma, um narcisismo secundário que foi retirado dos
objetos. (ibid., p. 55).
Diferentemente do que Freud havia afirmado antes na teorização do
narcisismo,
38
na nova tópica o Isso se constitui como o reservatório das pulsões e o
Eu se constitui pelos investimentos objetais (do Isso) perdidos. Lembremos que, na
segunda teoria das pulsões, as pulsões de vida englobam as pulsões de
autoconservação e a pulsão sexual (libido), sustentando o conflito em oposição à
pulsão de morte. Vale lembrar, ainda, que o termo libido não diz respeito à
sexualidade ou à excitação sexual, mas, antes, “[...] à energia, considerada como
uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente
mensurável), daqueles instintos [pulsões] que têm a ver com tudo o que pode ser
abrangido sob a palavra ‘amor’.” (FREUD, 1921, p. 115). Ao se oferecer como objeto
de amor ao Isso, o Eu opera como mediador da passagem do pulsional ao libidinal.
37
O conceito de identificação é desenvolvido posteriormente por Lacan, tema sobre o qual se debruça durante o
seminário de 1961-1962 (seminário inédito).
38
No texto À guisa de introdução ao narcisismo (1914), ainda na primeira tópica, Freud considera que o
reservatório das pulsões seria o próprio Eu.
90
O corpo do bebê é primeiramente objeto de investimento libidinal da mãe, o
que possibilita que este seja tomado como objeto de amor do Eu. É no abandono do
investimento no objeto externo (a mãe), mas passando necessariamente por esse
investimento, que o Eu pode recolher os investimentos do objeto e direcioná-los ao
próprio Eu. Essa é a função de objeto, que o seio materno desempenha segundo a
proposta lacaniana: que ela (a mãe) seja o suporte alteritário da constituição da
libido que pode ir e voltar bordejando o objeto caído do Outro. Mas se a mãe insiste
em dar sempre e mais o peito (que sacia a fome) e jamais o seio (que exerce a
função de objeto) o sujeito padece de um vazio que não se inscreve como falta.
Podemos aqui retomar a hipótese proposta no final do capítulo 2 e indicar que
nos casos de obesidade a lógica que se estabelece com o comer implica que o ato
de comer ou a própria fome não é libidinizada, ficando a satisfação pulsional colada
à satisfação da necessidade, obturando a dimensão do desejo. Essa decalagem
proposta entre o peito (que atende à necessidade) e o seio (que exerce a função de
objeto) que a libidinização do comer promove enlaça o objeto perdido (das ding) à
medida que o coloca definitivamente fora do simbólico pela própria entrada no
simbólico.
39
A não libidinização do ato de comer implica uma lógica marcada pela
tentativa de satisfação concreta que lança o sujeito num deslocamento infinito seja
na compulsão, que se reitera frente à possibilidade de emergência da angústia, seja
na busca de novos tratamentos, demandando sempre do Outro a solução para essa
diferença constitutiva.
39
Essa dinâmica dentro-fora é abordada por Freud no artigo A negativa (1925) (Die verneinung), no qual,
partindo de um exemplo bastante simplório (“Quem é a pessoa do sonho?” Pergunta a qual o analisando
responde “Não é a minha mãe!”) retoma em termos de eu-prazer originário e eu-realidade definitivo a dialética
em relação ao objeto em que tudo o que é “bom” é introjetado e o que é “mau”, ou melhor, estranho [fremd] é
expulso para fora. Aqui, novamente, Freud afirma que o objetivo imediato dessa dialética é o reencontro do
objeto, assegurando que o que foi perdido pode ser reencontrado na realidade. A perda é a precondição e a
verneinung, seu testemunho. Lacan (1998) enfatiza essa expulsão primária como o que constitui o real pela
retomada do termo austossung, termo alemão utilizado por Freud a respeito da verneinung.
91
4 . UMA COSTURA COM A ANGÚSTIA?
4.1 A angústia de um preenchimento vazio
Minha alma decerto se mostra no corpo, esse confortável corpo, que passou, por excesso, a ser tão incômodo.
Um estorvo. Chegar ao peso adequado é penoso. A dor também pesa. Atiçada pelas lembranças pesa mais
ainda. Se a dor for embora, será que emagreço?
Cíntia Moscovich
Podemos aqui retomar algumas hipóteses levantadas ao longo desse trabalho
acerca da lógica do comer que subjaz à obesidade. Dando continuidade à análise do
capítulo precedente, podemos considerar que o dispositivo analítico se estrutura em
torno da falta que advém, ao final do complexo de Édipo, a partir da perda originária
que configura o vazio e marca o ser humano de forma indelével. Nessa perspectiva
a angústia ocupa um lugar fundamental na cura, pois é ela que notícia de que
algo dessa perda não está operando. A angústia coloca o dispositivo em
funcionamento, porém, no que diz respeito à obesidade, essa bússola clínica não se
apresenta de saída, quiçá depois de um longo tempo de entrevistas preliminares.
Essa seria, pois, a principal dificuldade que se coloca no tratamento de pessoas
obesas.
A angústia que aparece de forma generalizada no homem pós-moderno, nas
pessoas obesas aparece de forma concreta é um vazio a ser preenchido com
comida. A dinâmica de preenchimento que se instala vem em sua materialidade
obturar a formulação da demanda clínica pela constatação de que algo falta,
reduzindo toda demanda à satisfação de uma necessidade primordial, não
permitindo o deslocamento desejante. A clínica mostra que a angústia brota, muitas
vezes, no momento em que a comida começa a perder o revestimento imaginário
que a eleva à qualidade de objeto de satisfação. Nesse momento duas alternativas
se colocam: (1) frente à não resposta do analista à demanda de emagrecimento
rápido, o paciente obeso abandona o tratamento; (2) quando o paciente começa a
não recorrer à comida como recurso de contenção do sofrimento, abre-se um
espaço para que a angústia sinal e possa, assim, ser reintroduzida no trabalho
analítico.
Não caberia aqui explorar amplamente as vicissitudes da teoria freudiana da
angústia, por mais que seja um ponto crucial dos questionamentos acerca da
92
obesidade. Limitaremos-nos a apontar como a angústia se coloca na clínica após a
virada de 1920, a partir do texto Inibição, sintoma e angústia
40
(1926 [1925]),
marcando a última concepção freudiana sobre a angústia. Nesse trabalho, Freud
enfoca a explicação da função da angústia sinal, diferenciando-a da primeira teoria
em que figurava, essencialmente, como efeito do recalque. Nessa primeira
concepção o recalque incidiria sobre a ideia intolerável, liberando uma quantidade
de afeto que permaneceria livre no aparelho psíquico, sendo sentida como angústia.
Na nova teoria, Freud admite a anterioridade da angústia em relação ao recalque,
pois o sinal que a angústia emite ativa o princípio do prazer como uma tentativa de
evitar a situação desprazerosa que poderia ser, posteriormente, alvo do recalque.
Freud também afirma que a situação temida refere-se basicamente a uma situação
de perigo externo, perigo que, em última análise, remontaria ao desamparo
originário do ser humano que nasce dependente dos cuidados alheios. A situação
extrema do nascimento recoloca essa topologia dentro-fora, pois nesse tempo
primordial não para o sujeito qualquer possibilidade de diferenciação real entre o
ser e o não-ser ou entre o dentro e o fora, mas uma total indiferenciação. A análise
dos sonhos traumáticos, que vinha se colocando como um impasse teórico desde
1920, demonstra que a angústia tem por função primordial dar sinal de que algo não
foi simbolizado, introduzindo no aparelho psíquico aquilo que é inconsciente, mas
não é recalcado e apontando a necessidade do trabalho em relação aos conteúdos
provenientes do Isso.
Permitimo-nos trazer aqui um recorte clínico em que, após dois anos de
entrevistas preliminares de uma paciente obesa, período durante o qual sem
perceber teve um acréscimo de 20 kg ao peso inicial de 104kg, vimos esboçar-se
algumas falhas e formações do inconsciente. É dessa mesma paciente a fala que
me fez recordar o sonho de Anna Freud: “– A dieta está muito difícil. Bem que a M.
(nutricionista) podia me dar um docinho, um iogurtinho, um sorvetinho...”, fala que
emerge numa sessão em que relata, logo no início, que comer não é mais igual, que
agora quando quer comer um doce, come-o, mas não é isso que ela quer, não é isso
que a satisfaz. Situamos na vacilação do lugar/função que a comida ocupa a
40
Apesar da tradução brasileira presente nas Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud adotar o título
“Inibição, sintoma e ansiedade”, optamos pela tradução “Inibição, sintoma e angústia”, por acreditarmos ser mais
fiel ao objetivo de Freud ao utilizar o termo angst em alemão. Em outros artigos que constam da nova coletânea
editada pela Imago, esse mesmo termo encontra-se traduzido por “medo”, opção feita pelos tradutores com a
qual não concordamos e que seguiremos transcrevendo por “angústia”. Na bibliografia consta o título com a
tradução original.
93
abertura da dimensão do desejo, desejo insatisfeito, referido ao Outro que impede
que ela mesma entre na “sua” dieta e possa saber aí fazer com o seu excesso de
peso. Queixa-se da dieta como se queixa das relações sexuais insatisfatórias que
raramente mantém com o marido, a quem demanda que a deseje mais e de quem
espera mudanças. Novamente é a um Outro que é delegada a possibilidade de
satisfação.
Esse movimento de abertura e fechamento vem se delineando ao longo dos
últimos seis meses de análise, durante os quais passou a considerar mais
objetivamente a possibilidade de separar-se do marido ao mesmo tempo em que
volta a se descontrolar com a comida, não deixando de frisar que come, mas não é
mais a mesma coisa, pois não se sente mais satisfeita. Esse caso em andamento
ilustra o quanto é essencial a aposta do analista para que algo da fantasia se
apresente. Desse relato clínico, destacamos, (1) a ocorrência de sonhos que dão
testemunho dos efeitos de análise e que emergem à medida que um
deslocamento da demanda ao desejo e (2) a lógica do comer que vai se delineando
pouco a pouco indicando a função que comida desempenha, função esta que ganha
maior consistência pela enunciação da frase fantasmática trazida pela paciente em
vários momentos: “gordinha assim, só o papai vai te querer!”
À luz da clínica, voltemos à teoria, pois, somente após o longo
desenvolvimento na metapsicologia freudiana, podemos, finalmente, considerar a
contribuição singular de Massimo Recalcati que, em seu livro Clinica del vacío:
Anorexia, dependencias y psicosis (2003), dedica um capítulo à problemática da
obesidade. Nesse texto
41
intitulado “O ‘demasiado cheio’ do corpo: por uma clínica
psicanalítica da obesidade” (2002), Recalcati afirma que a dinâmica em jogo na
obesidade estaria, em última análise, referida à instauração da referência à
alteridade, o que forneceria ao sujeito recursos simbólicos para lidar com a
frustração resultante da impossibilidade de preenchimento e satisfação da demanda.
Nesse sentido, Recalcati nos aponta que o corpo obeso e a própria fome
parecem manifestar o real acéfalo da pulsão, no ponto em que não há a captura pela
linguagem, evidenciando a estreita relação entre o corpo somático e o corpo
pulsional da psicanálise. O real do corpo e sua densidade somática comparecem ao
tratamento analítico presentificando a resistência à enunciação que encontra apoio
41
Esse capítulo foi traduzido sob esse título na Revista Latusa, n. 7.
94
nos avanços da pós-modernidade. Marca que a neutralização da fala priva o sujeito
de recursos simbólicos para lidar com a irrupção de um gozo excessivo, que não
traduz o conflito psíquico em sintoma, como se o corpo neutralizasse o encontro
traumático com o gozo, separando-se do sujeito (RECALCATI, 2002, p. 56). A
impossibilidade de fazer intervir o significante estaria, pois, relacionada ao
destacamento do corpo como um objeto separado do sujeito, uma dificuldade
narcisista de reconhecimento do corpo obeso como próprio.
Em outros termos, o defeito estrutural na especularização narcísica da imagem do
corpo próprio lugar a uma cisão particular, na qual o corpo, de um lado, está
representado por um ideal virtual investido narcisicamente investimento que
compensa imaginariamente o defeito na especularização – e, do outro, é vivido
como uma massa de carne amorfa separada do sujeito. (ibid., p. 57).
Não é incomum escutarmos no discurso de pessoas obesas que aquele corpo
não lhe pertence, que é uma capa de gordura que recobre seu corpo, marcas
discursivas que indicam essa separação do corpo em prol de um ideal-virtual
inalcançável.
Em paralelo à anorexia como uma experiência de recusa, para Recalcati, a
obesidade apresenta-se para o sujeito como a impossibilidade de recusar, em que o
apego à demanda do Outro o fixa no status de objeto sem, dessa maneira, aceder à
separação. Para Recalcati, a obesidade, a bulimia e as dependências mostram o
primado do objeto sobre o signo como efeito da perda do poder de interdição do
Outro. Se o Outro da ciência é todo, se não falta, falha ou perda, não o que
ser substituído pelo signo. Restando ao sujeito a compensação no consumo do
objeto alimento. Para Recalcati, “A acumulação obesa, de fato, não é de peso, mas
de objeto.” (ibid., p.62).
O autor aponta, ainda, que mesmo na obesidade neurótica observa-se uma
configuração em que a angústia não surge pela via da ausência ou perda do objeto,
mas pelo excesso do objeto. Como nas psicoses, está relacionada com a falta da
falta. Ao relacionar a obesidade como paradigma clínico contemporâneo, Recalcati
destaca que o discurso social sustenta a saturação do vazio como modalidade de
supressão da falta e do desejo.
Essa estrutura especular da relação com o objeto define efetivamente o universo
fechado do obeso. O gozo tende a realizar-se como fechamento da pulsão sobre o
sujeito. Mas esse fechamento é estruturalmente impossível, porquanto a pulsão é
um moto constante que nunca se pode fechar sobre o objeto. (ibid., p. 69).
95
Sustentado na ilusão de que a pulsão possa se fechar sobre um objeto, o
corpo se fragmenta, enchendo-se de objetos consumidos para extinguir
instantaneamente o vazio que, paradoxalmente, gera “[...] um ‘demasiado cheio’ que
ao extinguir-se, gera o vazio ainda mais intensamente. O corpo obeso é um
‘demasiado cheio’ que o sujeito, contudo, vive como um vazio infinito.” (RECALCATI,
2002, p. 69).
Trilhando as indicações de Recalcati a respeito da obesidade neurótica,
quando afirma que a acumulação obesa não é de peso, mas de objeto, bem como a
ideia de que o alimento serve para compensar a ausência do signo (signo da falta no
Outro), somos levados a sustentar alguns pontos de vista. Em termos freudianos,
podemos dizer que se no obeso não a constituição de um Eu-prazer na
passagem do Eu-real originário do autoerotismo ao Eu realidade definitivo especular
e eminentemente alteritário, a emergência da obesidade se deve a não constituição
de recursos simbólicos para mediar o imperativo pulsional. Na ingestão contínua de
alimentos, o obeso busca elidir a impossibilidade de fechamento do circuito pulsional
numa tentativa de retorno a um tempo de satisfação incondicional, autoerótica que
se mostra, contudo, impossível. A disjunção entre necessidade e demanda
trabalhada no capítulo 2 e a abertura da dimensão do desejo pela instauração do
objeto perdido demonstrada no capítulo 3 apontam que, na obesidade, a tentativa de
recobrimento do objeto de satisfação pela comida se dá de forma precária. À medida
que a comida tampona a abertura da dimensão do desejo, observa-se na clínica que
não uma metonimização do discurso, pois o obeso não passa da perda
(primordial) à falta (fálica). Nesse sentido, podemos concluir que: (1) haveria no
obeso uma falha na operação do significante lico, uma vez que seria este que ao
fim do complexo de Édipo se sustentaria pela metáfora paterna, cifrando, assim, a
perda primordial e (2) que a emergência da angústia depende de um esvaziamento
do “demasiado cheio” que o objeto alimento fornece, em sua consistência, ao obeso.
Para que a angústia possa ser tomada como uma bússola clínica, é
necessária uma escansão entre o objeto alimento e o objeto perdido, que
promoveria o despontar da angústia como sinal. É essa mesma escansão que
poderia viabilizar o estabelecimento da transferência, situação clínica que atualiza a
estrutura do sujeito na medida em que este direciona uma pergunta ao Outro,
pergunta que coloca em cena a fantasia e acesso a dimensão desejante. Tendo
em vista essa proposição, a dificuldade de manejo nesses casos reside na
96
fragilidade com que esse laço transferencial se dá, pois originariamente a própria
relação ao Outro se deu sem o acolhimento necessário de um campo objetal que o
conduzisse a uma constituição narcísica consistentemente articulada na operação
fálica.
Caberia ainda destacar a face de gozo que o comer em excesso implica.
Segundo Rabinovich (2004), as impulsões como a bulimia “[...] indicam uma certa
satisfação pulsional que obstaculiza e freia o trabalho clínico.” (p. 7), afirmação que
se refere ao longo do livro ao conceito de mais-de-gozar que é considerado como a
dobradiça entre desejo e pulsão. A observação de que nesses pacientes e incluo
na sequência a obesidade uma satisfação a que não podem renunciar, remete
ao conceito freudiano de ganho de prazer que é, segundo a autora, uma das chaves
para entender o que Freud chamou de adesividade da libido e que desenvolvemos
nesse estudo a propósito da fixação do objeto pulsional (item 3.1). A dimensão
clínica desse ganho de prazer, que por ser da ordem do excesso pulsional, coloca
obstáculos ao tratamento analítico, exige um posicionamento do analista que seja ao
mesmo tempo flexível ou criativo, mas sem concessões quanto ao que visa como
efeito. Lembro, novamente, que não se trata de emagrecer o obeso, mas de
provocar um deslocamento inicial a partir do qual poderá ser formulada ou não uma
demanda de análise. Esse aspecto exigiria um desenvolvimento mais aprofundado
em articulação ao conceito e função da angústia, temas que deixo como sugestão
para outro trabalho.
Esse desenvolvimento em torno da pulsão e do objeto demonstra, via de
regra, que o tratamento não deve objetivar a recuperação de um objeto perdido, mas
a promoção da demanda ao desejo. Diríamos, ainda, que na passagem do vazio à
falta se daria a construção da tela fantasmática, construção que parece não se
concluir na obesidade. O dispositivo analítico buscaria reintroduzir a falta, fazendo a
perda operar, deslocando a satisfação fixa da comida para as satisfações parciais
possíveis. Da experiência clínica, podemos retirar a pergunta acerca de quais
procedimentos clínicos o psicanalista deve fazer uso para que o dispositivo analítico
opere.
97
4.2 Sobre o fazer analítico e a obesidade
A reflexão só se desenvolve se forçada a se desenvolver, isto é, se certo número de idéias e sentimentos
irrefletidos, que até então bastavam para dirigir a conduta, mostram haver perdido a eficácia. Nesse caso, a
reflexão intervém para preencher o vazio que se fez, mas do qual não é autora.
Émile Durkheim
A intenção desse estudo não é, em hipótese alguma, esgotar o tema
proposto, mas reunir elementos que contribuam para uma discussão ainda incipiente
no campo psicanalítico. Nesse sentido, no texto sobre a direção da cura, Lacan não
deixa dúvidas de que “[...] o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como
se costuma dizer, para frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes
em que sua frustração está retida.” (1998, p. 624), uma vez que “[...] é na demanda
mais antiga que se produz a identificação primária, aquela que se efetua pela
onipotência materna.” (ibid.). Essa função de sustentação da demanda na clínica
com pacientes obesos implica intervir a partir de um campo não representacional,
apontando para um território originário da pulsão, em que algo que é fora da
simbolização ganhou fixidez.
Vale, portanto, analisar algumas formulações acerca da intervenção do
analista. Gondar (2001) traz como contribuição para a clínica das compulsões o
resgate de alguns elementos que tomarei para o objeto desse estudo. A autora é
enfática na afirmação de que nos casos de compulsivos não é recomendável o divã,
pois o olhar do analista teria por função princeps “[...] promover uma costura do
tecido esgarçado, favorecendo a construção fantasmática e da própria imagem
corporal” (ibid., p. 31). Gondar avança um pouco mais nessas recomendações,
indicando que a interpretação pode muitas vezes ser até mesmo perigosa devido à
especificidade da relação com a lei que a falha no registro imaginário coloca. O fato
de não haver uma subjetivação da lei faz com que esta se apresente em toda sua
crueza e arbitrariedade, o que ela obriga torna-se uma fatalidade inexorável. Se a
interpretação opera sob a forma de um corte que se articula à lógica da castração, e
se a castração é justamente o que não foi subjetivado, as palavras do analista
funcionarão como palavras persecutórias de ordem, fortalecendo o mandamento
superegoico.
Em contrapartida, Diana Rabinovich (2004) afirma que para que uma análise
se inicie é preciso que algo do ganho de prazer (ou mais-de-gozar) seja perdido,
98
ressaltando que esses pacientes exigem um longo trabalho prévio o importa se é
no divã ou cara a cara. Articulando essas duas posições, pensamos que a prudência
tem lugar garantido nesses tratamentos, pois a fragilidade do laço transferencial
restringe as intervenções e em cada interpretação o risco deve ser cuidadosamente
avaliado em função do efeito que pode gerar.
Ao mesmo tempo em que Gondar (2001) destituiu a interpretação clássica de
seu lugar primordial no dispositivo analítico, propôs que na direção da cura dos
pacientes compulsivos é necessário: (1) o esvaziamento do imperativo superegoico;
(2) a constituição de uma esfera imaginária e fantasística; e (3) a assunção da
dimensão desejante. Além disso, sugere que seja necessário abrir mão da categoria
de sujeito strictu senso em detrimento dos lampejos de subjetivação que apontam
para um campo de subjetivação mais amplo e com maior plasticidade. A inserção da
ideia de sujeito e seus derivados num terreno mais vasto permitiria um trabalho no
sentido da afirmação desejante a partir de lampejos de desejo. Essa proposta se
articula com o que Diana Rabinovich (2004) chama de trabalho prévio, o que
Recalcati (2004) propõe, parafraseando Lacan, como uma questão preliminar ao
tratamento possível dos sintomas que se apresentam na atualidade.
Se recordarmos as recomendações de Lacan quando afirma que os analistas
não devem retroceder frente à psicose e as tomarmos em relação à obesidade
poderemos avançar nessa empreitada. Assim, considero que as primeiras
intervenções devem visar à produção de um non sense no ponto em que o sujeito
encontra a impossibilidade de mudança e, ao mesmo tempo, reconhecimento. A
fragmentação de certezas impostas pelo discurso sociocultural e familiar tais
como: a necessidade de emagrecer por motivos médicos, a certeza do descontrole
em relação à comida e de ser um “caso perdido” – é o objetivo desse trabalho prévio
com os pacientes obesos. Digo isso considerando que é da possibilidade da
dialetização do discurso que se repete sem questionamentos que algo do
inconsciente pode emergir e se atualizar na transferência, fortalecendo o laço
analítico que poderá permitir um trabalho de análise.
Sobre esse delicado e árduo trabalho, Gondar coloca em evidência, além do
olhar do analista, a esfera da voz como essenciais para a expansão da escuta
analítica que deverá atentar aos sutis momentos de inflexão do desejo, índices de
impressões que não foram registradas enquanto traços de percepção, mas que
buscam uma expressão. A transferência é, nesse sentido, o campo no qual se a
99
possibilidade de expressão desses traços, bem como seu reconhecimento e
legitimidade.
A fineza e delicadeza da escuta e do olhar buscariam, nesses casos, fazer ressoar e
persistir os pequenos movimentos de subjetivação, fornecendo consistência ao
desejar. O que aqui se coloca em pauta não é a desconstrução do dispositivo
psicanalítico, mas a sua ampliação: seria preciso tornar mais finas e mais complexas
as regras da associação livre e da atenção flutuante, bem como a proposta de
abstenção do analista, a fim de que possam abarcar essas novas modalidades
subjetivas. (GONDAR, 2001, p. 34).
Isso posto, podemos propor em consonância às observações de Gondar
sobre as compulsões que o trabalho do psicanalista com pacientes obesos exige um
investimento no estabelecimento transferencial, a partir do qual se possível
promover uma libidinização do comer que implica a libidinização do corpo obeso,
pois em última análise o corpo e o comer parecem permanecer fixados a uma
indiferenciação própria ao autoerotismo. Como foi exposto anteriormente (itens 3.1 e
3.2), a libidinização corresponde ao próprio movimento pulsional, que implica, em
seus primórdios, imprimir as marcas da alteridade no ato primordial de satisfação,
permitindo a diferenciação entre fonte e objeto, ao mesmo tempo em que desloca a
satisfação para outro objetos parciais. Para tanto, o analista deve lançar mão de
recursos exilados da interpretação clássica como o olhar, a voz e até mesmo o
toque.
Nesse sentido, vale ressaltar a importância de abrir um espaço para escutar
as minúcias alimentares, dilemas e dúvidas que o obeso traz, pois se é nesse
campo de significantes restrito e limitado a referências alimentares que circula a
gramática pulsional do obeso, é também aí que alguma mudança pode ser
introduzida. A clínica nos mostra, ainda, que a oferta de um espaço de escuta que
não se proponha a avaliar e julgar o obeso, segundo suas atitudes alimentares,
permite que ações que ficam relegadas à dimensão do segredo refiro-me aos
ataques à geladeira no meio da noite, ou os biscoitos escondidos dentro dos
armários, aos lanches vorazes quando não estão sob um olhar julgador e outras
tantas atitudes “proibidas” que se repetem possam, enfim, ser faladas. Insistimos
nisso: o acesso ao desejo e sua assunção poderá se dar pela ampliação do
campo de significantes que o sujeito pode recorrer para falar de seu mal-estar
bordejando, passo a passo, significante a significante, o vazio inerente à pulsão.
100
Podemos considerar como um dos efeitos imediatos dessa libidinização, por
exemplo, a fragilização do imperativo superegoico, a que Amorim e Sant’Anna
(1999) chamam de comando, pela introdução da hesitação no complexo
anteriormente descrito. Esse desenlace em que o comando ou imperativo perde
força de lei
42
e proporciona uma vacilação que introduz a dúvida no lugar da certeza
do gozo, é, sem dúvida, uma ampliação do campo significante. Entendemos que
esse tipo de intervenção (interpretação?) propicia a restituição ao obeso da
possibilidade de escolha, um lampejo de subjetivação. Isso se dá lentamente, em
paralelo ao questionamento tanto dos ataques de comer quanto das imposições
restritivas que vem em resposta a esses ataques. É interessante notar que essa
vacilação em que o analista proporciona a possibilidade de escolha resulta,
primeiramente, na assunção da escolha alimentar frente ao outro que está sempre
pronto para julgar e, posteriormente, na diminuição dos ataques de comer que
ocorrem frequentemente em função da proibição imposta ou sentida como tal.
Desse modo, nos lampejos de subjetivação o paciente levanta os fios
necessários a um primeiro questionamento sobre seu mal-estar e isso deve ser
escutado, autenticado e validado pelo analista que, ao oferecer-se como um “campo
de objetalidade possível” atualizado pela transferência, pode igualmente acolher o
impacto pulsional que se coloca mediado pelo comer. A resposta do analista,
diferentemente da resposta do médico, visa à abertura para a dor, deslocando o
paciente do sofrimento inefável e da queixa permanente quanto ao corpo para a
articulação metonímica que a dimensão do desejo dá acesso. A esse respeito,
Birman afirma que:
Existem efetivamente certas modalidades de estrutura mental nas quais o sujeito
funciona mediante o desejo do outro e espera que este forneça uma poção mágica
que preencha o que lhe falta para a restituição de sua plenitude narcísica. Porém, a
função do psicanalista não autoriza quem ocupa este lugar a responder a este
pedido, nem o de seduzir o analisando com essa promessa como possibilidade
futura. A função do psicanalista é escutar o desejo do sujeito e ser o suporte para a
formulação de uma demanda, e não agir e satisfazer o que lhe é pedido. (2005, p.
204).
Nesse trabalho prévio, que se situa no âmbito das entrevistas preliminares,
vemos apresentar-se o desejo do analista como o motor da cura, bem entendido,
motor mesmo da emergência de uma subjetivação incipiente que poderá (ou não) se
42
Valeria, aqui, pensar numa aproximação dessa ideia ao que Derrida propõe quanto à aplicação da lei. Sobre o
assunto ver: DERRIDA, J. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
101
circunscrever, a posteriori (nachträglich), como um trabalho de análise. Para tanto, a
aposta do analista é a mesma para todo sujeito: que frente ao sintoma se a
elaboração de uma demanda que não seja de apaziguamento da dor, aquela que
nos obesos se configura como demanda de emagrecimento, mas uma demanda de
análise em que se articula uma pergunta ao analista sobre o seu sintoma. O desejo
do analista, como um “medicamento” para a adesividade da obesidade ao campo
médico, coloca em causa a impossibilidade de fechamento do circuito pulsional,
exigindo uma permanente metabolização dessa voracidade da pulsão que faz
estragos no corpo, visando possibilitar uma (re)construção fantasmática.
Esses casos exigem do analista um constante reposicionamento, pois o
discurso trazido pelo paciente provoca a divisão daquele que o escuta, dada a
impossibilidade da demanda feita. A reiterada retomada da direção do tratamento
por parte do analista é uma manobra sempre latente, pois é desse lugar que se pode
ter em vista o objetivo de uma intervenção que flexibiliza os parâmetros clássicos da
interpretação.
Da parte do analista, é preciso, ainda, cautela e tolerância ao que
aparentemente pouco diz, a saber: o discurso repleto de referências alimentares e
corporais, a demanda sempre reiterada de que o analista resolva seu problema, a
evitação em falar dos momentos em que não faz a dieta, em que cede à tentação e
as repetidas frases autopunitivas. O manejo desse conteúdo discursivo em favor de
uma ampliação do laço transferencial é o que permite ir além. De qualquer modo,
esse movimento de libidinização do obeso e a consequente movimentação
desejante constituem per se um trabalho fundamental, talvez até o trabalho possível
que ao oferecer uma falta, faça a perda operar. A singularidade da clínica não nos
permite abreviar essas ideias iniciais num constructo definitivo, ficando a cargo de
cada analista, a cada novo caso, a construção criativa e sensível de uma práxis
clínica que vise o deslocamento do desejo.
102
5 . CONSIDERAÇÕES FINAIS
Si vous saviez, lorsque vous commencez à écrire um livre, ce que vous allez dire à la fin, croyez-vous que vous
auriez la courage de l’écrire? Ce qui vaut pour l’écriture et pour une relation amoureuse vaut aussi pour la vie. Le
jeu ne vaut la chandelle que dans la mesure où l’on ignore comment il finira.
43
Michel Foucault
O percurso teórico trilhado neste estudo teve por objetivo articular duas
dimensões de manejo da obesidade aparentemente divergentes: de um lado, os
aspectos socioculturais desta condição orgânica que emergiu de forma significativa
a partir da modernidade e, de outro lado, a dimensão clínica dos impasses por ela
colocados. Digo aparentemente divergentes, pois esse exercício teórico nos
permitiu articular como ambas convergem na especificidade do que se evidencia no
corpo do obeso.
Visando a reconstrução da dimensão sociocultural articulada à dimensão
subjetiva, buscamos na análise histórica da alimentação e do corpo os pontos de
continuidade, a partir dos quais elaboramos uma leitura biopolítica da obesidade.
Essa história nos mostrou, de forma menos fragmentária, que, da Grécia Antiga aos
dias de hoje, o corpo vem se constituindo como o lócus de consolidação de um
discurso que visa o controle e a normatização e que caminha pari passu à elisão da
pluralidade que a biologia impõe aos corpos. Se a dietética da Antiguidade visava à
preservação da saúde, esse objetivo foi, gradativamente, dando lugar a uma
perspectiva patológica do excesso de peso em consonância ao nascimento da
medicina anatomoclínica.
Para questionar o estatuto patológico agregado à obesidade, lançamos mão
do conceito canguilhemiano de normatividade vital, entendido como a capacidade do
ser vivo de criar normas para si mesmo. Num empenho em responder se na
obesidade se trataria invariavelmente de um estado patológico ou se seria uma
anormalidade em relação aos parâmetros atuais de saúde e beleza, empreendemos
um debate à luz da teoria foucaultiana que analisa os dispositivos de poder
dispersos na trama dos discursos que vêm operando ao longo dos tempos.
A linha de continuidade entre o poder soberano, que, até o século XVII, era
exercido de forma rígida pelo soberano em relação aos seus súditos, o poder
43
Se você soubesse, quando começa a escrever um livro, o que irá dizer no final, você acredita que teria a
coragem de escrevê-lo? O que vale para a escrita e para uma relação amorosa vale também para a vida. O jogo
só vale a pena na medida em que se ignora como terminará (tradução nossa).
103
disciplinar, que visava regular a vida adequando os corpos para extrair sua força útil,
e o biopoder, que tem como foco a população e vem complementar as técnicas
disciplinares, nos apresentou a chave de leitura que permitiu o desdobramento da
problemática da obesidade. Tendo em vista a entrada do fato biológico no contexto
político, traçamos um paralelo entre o fazer morrer e deixar viver moderno com
fatores econômicos que alçaram a obesidade ao posto de epidemia do século. No
viés dessa reflexão, tomamos como paralelo as reflexões construídas por Alain
Ehrenberg sobre a depressão, para analisar a passagem do modelo normativo
disciplinar para uma nova normatividade na qual impera a soberania individual.
Afirmamos que a obesidade se apresenta como sintoma dessa nova normatividade
que exige a individuação e acaba por gerar um permanente sentimento de
insuficiência e um proporcional declínio da capacidade de subjetivar os conflitos.
Destacamos a amplitude dessa perspectiva que se mostra diluída no
imaginário social e médico relativo à obesidade, fomentando uma exigência cada
vez maior de eficácia sob a responsabilidade do próprio sujeito. Nesse sentido, a
fome insuportável e incontornável, que os pacientes obesos relatam frequentemente,
vem dar concretude ao vazio vivenciado pelo homem contemporâneo, que precisa, a
todo custo, criar suas próprias regras, sem que, no entanto, disponha dos recursos
necessários para tanto. Consideramos, desse modo, que a dinâmica do
preenchimento, que os obesos desenvolvem em relação à comida, vem em resposta
a essa impossibilidade de franquear o imperativo da estética e da saúde.
Os problemas éticos colocados por essa breve genealogia dos discursos
sobre a obesidade abriu caminho para uma reflexão acerca do estatuto do
tratamento psicanalítico com pacientes obesos e com excesso de peso. Passando
pelas diferentes apreensões do corpo na atualidade, analisamos os elementos que
possibilitaram a virada somática que deu ao corpo o status de bem supremo,
imprimindo singularidades subjetivas. Conduzidos pela pergunta acerca do que
levaria uma pessoa obesa à análise, propusemos três linhas de ação que o
tratamento deveria visar, considerando como tarefa deste estudo pensar a
possibilidade da psicanálise proporcionar uma ampliação do campo de subjetivação,
espaço no qual se pudesse estimular o questionamento e a dialetização da
soberania da magreza e, a partir da qual, pudesse advir a lógica do comer intrínseca
aos casos referidos.
104
No intuito de compor um mosaico das diferentes maneiras de apreender
problemáticas como as compulsões, as toxicomanias, a bulimia e as somatizaçãoes
que mantém alguma conexão com a obesidade, recorremos a um debate atual
dentro do campo psicanalítico, que vem atualizar, segundo uma nova nomenclatura,
a querela que fomentou a proposição de novas estruturas clínicas por alguns
psicanalistas pós-freudianos. Curiosamente, os autores que se dedicam a essa
elaboração, dos quais tomamos alguns para nossa discussão, preconizam a leitura
dessas problemáticas não assimiladas aos sintomas freudianos, sem, entretanto,
propor novas estruturas como o fizeram And Green (estados-limite) ou Otto
Kernberg (borderline). Diferentemente destes, aqueles autores procuram, por outro
lado, salientar a especificidade da clínica na atualidade, análises estas que
buscamos colocar em diálogo. Ora, se não se trata de pensar a obesidade à luz de
uma nova proposta estrutural e nisso todos concordamos trata-se de recolher da
clínica a especificidade do manejo que essas apresentações do sintoma exigem. Por
conseguinte, no que diz respeito à obesidade, propusemos uma retomada da
metapsicologia freudiana segundo o critério da teoria lacaniana, visando assimilar a
peculiaridade da constituição narcísica num mundo em que o apelo consumista
oferece novos “recursos” para lidar com a impossibilidade da recuperação de uma
satisfação total outrora perdida.
Ainda como parte de nosso esforço em distinguir o tratamento psicanalítico do
tratamento médico, tomamos a diferenciação proposta por Lacan entre necessidade
e demanda para apontar em que medida a frustração ocupa um lugar preponderante
no encaminhamento da estruturação simbólica do sujeito, ao mesmo tempo em que
clareamos a sombra imaginária que pesava sobre a ideia de satisfação. A
valorização da ideia de frustração, como a recusa por parte da mãe de um símbolo
sobre o qual se fecharia o apelo do infans, objetiva tanto afirmar que o tratamento da
obesidade não se pauta pelo atendimento de toda demanda feita pelos pacientes
quanto localizar que é nessa dinâmica primordial que reside a possibilidade de
entendimento da lógica do comer implicada na obesidade. Nesse sentido, tomamos
como fio condutor que o tratamento psicanalítico da obesidade tem por intuito a
reinscrição da falta originária que garante a entrada no mundo simbólico (dialético)
propriamente dito.
Essa disjunção nos levou a abordar o estatuto do objeto pulsional,
considerando-o como constituído em torno do vazio que se impõe pela estrutura
105
eminentemente alteritária da condição humana. Analisamos, com essa finalidade, os
componentes da pulsão ressaltando a fonte e o objeto, apontando o paradoxo da
satisfação pulsional que favorece a leitura feita por Lacan de que a pulsão se
satisfaz no percurso que desenha na tentativa de reencontrar o objeto perdido. Disso
declinam duas apreensões, a saber: (1) a satisfação se na impossibilidade de
satisfazer-se em um objeto, de onde decorre que (2) o objeto da pulsão é variável e
não adstrito ao objeto da necessidade. A noção de fixação foi ressaltada para indicar
o engano no entendimento teórico de que esses casos, que colocam em jogo sua
analisabilidade, estariam fixados à fase oral do desenvolvimento, gerando outro
entendimento enganoso de que o tratamento deveria visar uma regressão a esse
estágio, numa tentativa de recuperação do seio perdido. No nosso entendimento não
se trata de uma regressão que deveria proporcionar a retomada de um
desenvolvimento que ficara retido numa fase preliminar, mas antes uma regressão
lógica que a análise permite pela atualização desses conteúdos na transferência.
Passamos, em seguida, ao questionamento acerca da síntese das pulsões
promovida na passagem do autoerotismo ao narcisismo, dissecando a íntima
relação entre o corpo, a pulsão e o objeto, trabalho minucioso que nos remeteu aos
eventos originários referidos ao autoerotismo em que a indiferenciação entre fonte e
objeto é o aspecto mais pregnante. A seleção de algumas metáforas freudianas
subsidiou o entendimento de que esse modo de funcionamento pulsional do
autoerotismo subjaz à própria libido objetal como resto inassimilável, o que implica,
em alguns casos, um modo singular de satisfação. Destacamos, ainda, a matriz
freudiana da subordinação ao Outro proposta por Lacan, encontrada em termos do
desamparo originário que exige dos cuidados dispensados ao infans algo além do
atendimento das necessidades, para que promova a passagem pelo Eu-prazer na
constituição do Eu-realidade definitivo.
Norteados pela afirmação freudiana segundo a qual o eu é prioritariamente
referido ao corpo, tomamos o Estádio do Espelho proposto por Lacan para
demonstrar a subordinação imaginária com que o sujeito tem acesso à realidade do
corpo, avançando na reflexão dos efeitos dessa dimensão radicalmente alteritária
que chega ao Eu mediada pelo imaginário da imagem refletida no espelho. Essa
dimensão alteritária tem sua principal formulação sob o nome de pulsão de morte,
que coloca em relevo o fator econômico da pulsão e lança a teoria freudiana numa
sequência de reformulações quanto à tópica, à pulsão e à angústia,
106
desenvolvimentos que trilhamos a fim de destacar como essas revisões possibilitam
o entendimento teórico e o respaldo clínico necessários no caso de pessoas obesas
e com sobrepeso. Dessas reformulações, destacamos que a formalização do Isso
como instância psíquica que mantém íntima relação com o Eu e a partir da qual este
se diferenciou, permitiu compreender a sobredeterminação de atos e ações que
ultrapassam a intenção consciente, o que podemos atestar na clínica da obesidade.
Ressaltamos, igualmente, a função que a angústia passa a desempenhar, e
analisamos como, a partir desse conceito, Lacan pensou o estatuto do objeto
pulsional. Elevado a uma função, indicamos como o objeto pulsional contempla a
perda primordial que torna toda satisfação parcial e todo objeto somente um
substituto dessa perda. A tentativa de reencontro do objeto perdido fomenta um
deslocamento em busca da satisfação, ao qual chamamos desejo, que por sua
estrutura é insatisfeito.
Expandimos um pouco mais essa reflexão pela análise do complexo de Édipo
para indicar como a inscrição da falta no nível simbólico (falo) vem coroar toda uma
dinâmica de entrada no mundo simbólico que permite a libidinização da experiência
da alteridade abrindo o acesso à vivência alucinatória do desejo que permanecerá
insatisfeito. Esse desenvolvimento também nos permitiu delinear, por outro lado,
como o dispositivo analítico se estrutura em torno do posicionamento do sujeito em
relação à falta do objeto. Tendo em vista as considerações tecidas por Freud na
segunda tópica a respeito dos investimentos libidinais e a constituição do Eu pelo
modelo da melancolia, propusemos a diferenciação entre o peito, que sacia a fome,
e o seio, que exerce a função de objeto, para pensar que na obesidade o peito
presentifica a não libidinização do ato de comer pela não sustentação do significante
fálico ao fim do complexo de Édipo.
Ainda em função das revisões teóricas impostas pela virada de 1920,
propomos uma costura das hipóteses levantadas à luz da função atribuída à
angústia de reintroduzir os conteúdos não ligados no trabalho analítico. Seu eventual
aparecimento na clínica da obesidade se mostra como um ponto nodal, pois
desenlaça um modo de satisfação que permanecia fixado à comida. Identificamos
que esse momento do tratamento coincide, muitas vezes, com a interrupção do
mesmo, evidenciando a fragilidade do laço transferencial, e implicando, por outro
lado, uma revisão da posição do analista que permita uma maior versatilidade no
acolhimento da demanda clínica.
107
Em seguida utilizamos as considerações tecidas por Massimo Recalcati a
respeito da obesidade para, em articulação com o percurso metapsicológico
realizado, sustentar que a falha na operação do significante fálico conduz o obeso a
uma busca incessante pelo objeto que o satisfaça, tamponando repetidamente a
angústia que possibilitaria a entrada no dispositivo analítico. Para que essa entrada
se e a interpretação clássica ganhe lugar no tratamento seria preciso, portanto,
um esvaziamento do ganho de prazer que o “demasiado cheio” de comida fornece
ao obeso. Devido ao escopo desse estudo, resta como trabalho futuro avançar na
articulação entre angústia e gozo, especificamente o conceito lacaniano de mais-de-
gozar. Essa articulação deveria, ainda, abranger como a fantasia se constitui ao
modo de uma dobradiça entre o desejo e o gozo para pensar, então, os modos de
apresentação da voracidade e da fome na relação transferencial endereçada ao
analista e como, num trabalho de análise, a interpretação visaria o deslocamento
para novas satisfações.
No que diz respeito ao fazer analítico, salientamos, por fim, que a função do
analista é de sustentação da abertura de uma demanda de análise, pela constatação
da falta que emerge pela via da angústia. Tendo a formulação dessa demanda como
horizonte norteador, o trabalho prévio que a obesidade exige implica um
investimento no estabelecimento da transferência, sendo esta o campo no qual se
uma análise. A libidinização do comer que propusemos como necessária à
construção de uma demanda de análise se daria pela ampliação do campo
interpretativo, possibilitando o aparecimento do resto autoerótico em que o obeso
parece permanecer fixado. Nesse sentido, elementos exilados da interpretação
clássica voltam à cena analítica, demonstrando que o olhar, a voz e o toque podem
favorecer esse trabalho prévio. Da mesma maneira, a imersão da escuta no universo
significante do obeso em que circulam detalhes alimentares e dietéticos, além de
numerosos segredos relativos às formas de alimentar-se, é essencial na promoção
da diferença no posicionamento subjetivo do obeso. Porém, essa imersão é
dependente da abertura de uma escuta isenta, tanto de pressupostos estéticos
quanto do ímpeto julgador e curativo que a obesidade desperta em todos nós.
Como efeito desse trabalho de libidinização, destacamos: (1) a fragilização do
imperativo superegoico pela introdução da hesitação, que acarreta (2) a restituição
ao obeso da possibilidade de escolha e (3) a assunção frente ao outro de sua
escolha alimentar e do corpo distinto do ideal estético. Esses três desdobramentos
108
que o analista pode promover a partir dos lampejos de subjetivação ocasionam,
ainda, a diminuição dos vorazes ataques de comer que podem compor ou não
quadros de compulsão alimentar (TCAP). Também procuramos marcar que os
primeiros questionamentos daí decorrentes devem ser autenticados e validados pelo
analista, oferecendo uma alternativa para o acolhimento do impacto pulsional que
visa à abertura da dimensão desejante, antes estancada pela comida. Assinalamos
que, para que o analista possa realizar essas intervenções flexíveis sem que deslize
no ímpeto curativo, é necessário um permanente reposicionamento do analista,
tendo o seu desejo como motor da cura, além de boas doses de paciência e
tolerância em relação ao discurso repetitivo e limitado às referências alimentares.
Esse estudo constitui, portanto, um convite ao exercício da sensibilidade na
escuta analítica sem que isso implique o abandono dos fundamentos da teoria
psicanalítica, mas, sim, um avanço e uma aposta de que a função da teoria é
provocar efeitos na escuta e não indicar um modelo a ser seguido. Em tempo,
consideramos que a tentativa de articular uma visão biopolítica da obesidade à
abertura do tratamento para uma abordagem psicanalítica, constitui uma parte do
caminho no sentido do que poderíamos chamar de “profanação do tratamento da
obesidade”, aludindo, certamente, ao que propõe Giorgio Agamben em seu “Elogio
da profanação” (2007). Assim como uma religião que subtrai coisas, lugares ou
pessoas ao uso comum transferindo-as a outra esfera, o dispositivo dico desloca
o corpo e a alimentação para a esfera do sagrado, subtraindo o uso que se pode
deles fazer. Essa separação imposta pelo sacrifício da dieta, com seus rituais
próprios, pode ser atravessada por sua profanação, abrindo a possibilidade de
uma forma especial de negligência, fazendo um uso particular da separação. Nesse
atravessamento é preciso fazer o sujeito advir, “colocando as mãos” na sua dieta,
jogando com seu corpo e sua alimentação. Nesse sentido, a busca incessante pelo
emagrecimento nos mostra o paradoxo do espetáculo: a exposição de uma
impossibilidade de usar o corpo e nele habitar. Deixamos, por fim, as palavras de
Agamben: “[...] é importante arrancar dos dispositivos de todo dispositivo a
possibilidade de uso que os mesmos capturam. A profanação do Improfanável é a
tarefa da geração que vem.” (2007, p. 79).
109
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