Download PDF
ads:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Medicina Social
Bianca Alfano
REPRODUÇÃO E BIOPOLÍTICA:
Infertilidades e práticas de saúde em um serviço público no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
Bianca Alfano
REPRODUÇÃO E BIOPOLÍTICA:
Infertilidades e práticas de saúde em um serviço público no Rio de Janeiro.
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre ao Programa de
Pós-graduação em Saúde Coletiva, do Instituto
de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Ciências Humanas e Saúde.
Orientadora: Profa Dra Márcia Ramos Arán
Rio de Janeiro
2009
ads:
2
C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
A385 Alfano, Bianca.
Reprodução e biopolítica: infertilidades e práticas de saúde em um serviço público no Rio
de Janeiro / Bianca Alfano. – 2009.
108f.
Orientador: Márcia Ramos Arán.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Reprodução humana Teses. 2. Infecundidade Teses. 3. Biopolítica Teses. 4. Inovações
Tecnológicas Teses. 5. Sistema Único de Saúde (Brasil) Teses. I. Arán, Márcia Ramos. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Título.
CDU 612.6
_______________________________________________________________________________
3
BIANCA ALFANO
REPRODUÇÃO E BIOPOLÍTICA:
Infertilidades e práticas de saúde em um serviço público no Rio de Janeiro.
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Saúde
Coletiva, ao Programa de pós-graduação em
Saúde Coletiva, do Instituto de Medicina Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração Ciências Humanas e
Saúde.
Aprovada em: ________________________________________________
Banca Examinadora:
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Marcia Ramos Arán
Professor Adjunto – Instituo de Medicina Social – UERJ
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Maria Andrea Loyola
Professor Titular – Instituo de Medicina Social – UERJ
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa
Professor Adjunto – Instituo de Medicina Social – UERJ
_________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Cláudia Bonan Jannotti
Professor Titular – Instituto Fernandes Figueira – FIOCRUZ
Rio de Janeiro
2009
4
Para minha querida mãe, com quem aprendi a
buscar novos desafios de vida.
Para meu amado companheiro, com quem
aprendi a compartilhar estes desafios.
5
AGRADECIMENTOS
À Márcia Arán, que tive o prazer de conhecer pessoalmente e que agora posso citá-la
não apenas por sua produção acadêmica, mas também por sua simpatia, respeito sincero,
confiança e enriquecedores debates.
Às professoras Marilena Corrêa e Maria Andréa Loyola, pelo embasamento teórico,
facilitações no trabalho de campo e indispensáveis sugestões na qualificação. Marilena,
obrigada pelas dedicadas leituras e descontraídas orientações, instigando em mim o desejo de
continuar a estudar o tema no doutorado. Andréa, sem dúvida seus ensinamentos nas áreas da
sexualidade e reprodução social continuarão a ser essenciais para este debate.
À Profa. Cláudia Bonan, pela disponibilidade em integrar a banca e pelas valiosas
contribuições a este estudo.
A toda equipe profissional e usuáriosas do Setor de Reprodução Humana do Hospital
Moncorvo FilhoUFRJ, por permitirem minha aproximação do campo e compartilharem
dificuldades que me eram apresentadas apenas teoricamente. À Dra. Maria do Carmo Borges
de Souza, que se mostrou sempre muito atenciosa e disponível, mesmo na correria do dia-a-
dia de um ambulatório público de saúde.
Ao corpo docente do Instituto de Medicina Social da UERJ, por persistir em uma
Saúde Coletiva multidisciplinar e possibilitar o compromisso ético com o conhecimento.
À minha primeira turma de pós-graduação no Rio de Janeiro, aos sociólogos urbanos
Simone, Luiz, Irene, Bernardo e Patrícia, por fazerem da UERJ um local prazeroso de
aprendizagem.
À animada turma de mestrado, por reforçarem meu ideal de promover, conviver e
respeitar a diversidade, em especial à amiga Cristiane, companheira de outras tantas jornadas.
À outra colega de pós e também minha professora de francês, Sabira, merci beaucoup.
À Mariana e Ingrid, que me fizeram sentir profissionalmente menos solitária no Rio de
Janeiro, com quem fiz verdadeiras amizades, compartilhando marcantes análises e
experiências de vida.
À minha querida família, pelo inesgotável amor e confortante apoio, mesmo a 450 km
de distância. À Lena, minha tia de coração, obrigada pelo essencial carinho e acolhimento
carioca. À minha irmã, Ana Paula, que me ajudou também nas regras da nova ortografia.
Ao CNPq, pelo apoio através da bolsa de mestrado de abril de 2008 a março de 2009.
6
RESUMO
ALFANO, Bianca. Reprodução e biopolítica: infertilidades e práticas de saúde em
um serviço público no Rio de Janeiro. Brasil. 2009. 108 f. Dissertação (Mestrado em Saúde
Coletiva) Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Apesar de a reprodução assistida possibilitar transformações importantes na
parentalidade e nas relações familiares, suas tecnologias têm sido mais frequentemente usadas
para reiterar o modelo tradicional de reprodução biológica e social. Este estudo qualitativo, de
cunho exploratório, analisou quais normas estariam presentes nas práticas de saúde relativas à
dificuldade de engravidar e o que poderia ser revelado a partir destas práticas. Foram
observadas interações entre profissionais e pacientes atendidos em um serviço público de
reprodução humana no Rio de Janeiro. A discussão dos diagnósticos de infertilidade e de
risco, duas importantes estratégias biopolíticas usadas como critério de elegibilidade para o
acesso às novas tecnologias reprodutivas, revelou como algumas práticas de saúde reiteram
normas de gênero e de reprodução social. Atrelados à condição socioeconômica de seus
usuários, estes diagnósticos tendem a agravar exclusões e desigualdades no exercício dos
direitos reprodutivos no país. A análise da atenção médica possibilitou conhecer em parte o
difícil cotidiano não apenas de homens e mulheres, que por anos persistem em seus desejos
por filhos, mas também de profissionais que enfrentam antigas barreiras políticas, econômicas
e burocráticas do serviço público de saúde. Este estudo corrobora a visão de que o serviço
representa um avanço em termos de direitos sexuais e reprodutivos, apesar de ainda ser longo
o caminho para o acesso igualitário e equânime às tecnologias reprodutivas pelo sistema único
de saúde brasileiro (SUS).
Palavras-chave: Novas tecnologias reprodutivas. Infertilidade. Biopolítica. Gênero.
Sexualidade. SUS.
7
ABSTRACT
ALFANO, Bianca. Reproduction and biopolitic: infertilities and health practices in a
public service in Rio de Janeiro. Brazil. 2009. 108 f.
Despite assisted reproduction enable important transformations on kinship and family
relationships, their technologies have been most frequently used to reiterate the traditional
model of biological and social reproduction. This qualitative and exploratory study analyzed
which norms would be present on health practices related to reproduction difficulties and
what would be revealed by these practices. There were observed interactions between
professionals and patients attended on a human reproduction public service of Rio de Janeiro.
The discussion of infertility and risk diagnoses, two important biopolitical strategies used as
eligibility criteria of access to new reproduction technologies, revealed how some health
practices reiterate gender and social reproductions regulations. Associated to socioeconomic
condition of their users, these diagnoses tend to exacerbate the exclusions and the inequalities
on reproduction rights in Brazil. The analysis of medical attention made possible knowing not
only part of men’s and women’s everyday difficulties, who persist in their desires for children
for years, but also of professionals that have to face old political, economic and bureaucratic
barriers of public health services. This study corroborate the opinion that the observed service
represents an advance in sexual and reproductive rights, in spite of the still long way to
equally and equitable access to reproductive technologies in Brazilian public health system
(SUS).
Keywords: New reproductive technologies. Infertility. Biopolitic. Gender. Sexuality. SUS.
8
LISTA DE ABREVIATURAS OU SIGLAS
BHCG Beta HCG (Gonadotrofina coriônica humana)
CFM Conselho Federal de Medicina
COEP Comissão de Ética em Pesquisa
DUM Data da última menstruação
ENSP Escola Nacional de Saúde Pública
FIV Fertilização in vitro
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
HSG Histerossalpingografia
HUMF Hospital Universitário Moncorvo Filho
IA Inseminação Artificial
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICSI Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoides
IG Instituto de Ginecologia
NTRc Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas
RA Reprodução Assistida
RH Reprodução Humana
SIC Segundo Informação do Cliente (Colhidas).
SUS Sistema Único de Saúde
UERJ Universidade Estadual o Rio de Janeiro
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFRJ Universidade Federal o Rio de Janeiro
UNICAMP Universidade de Campinas
USP Universidade de São Paulo
9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 10
1. SEXUALIDADE, REPRODUÇÃO E NORMAS DE GÊNERO ................................ 17
1.1. Reprodução e sexualidade: a medicalização do social ..................................... 17
1.2. Uma leitura biopolítica da reprodução assistida .............................................. 23
1.3. Gênero e tecnologias reprodutivas .................................................................... 29
1.4. Diagnóstico de infertilidade: uma questão de acesso? ..................................... 36
2. REPRODUÇÃO ASSISTIDA E DIREITOS REPRODUTIVOS NO BRASIL ........ 45
2.1. “Liberdade” procriativa: direitos, desejos e reprodução social ..................... 45
2.2. O acesso às novas tecnologias reprodutivas no Brasil ..................................... 55
2.3. “Fazendo qualquer negócio”: dificuldades e vulnerabilidades ....................... 61
3. DESAFIOS DE UM SERVIÇO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO ......................... 71
3.1. Hospital Moncorvo Filho e o Setor de Reprodução Humana do IGUFRJ ... 71
3.2. Perfil do público usuário .................................................................................... 78
3.3. Barreiras e persistências de um serviço de referência no SUS ....................... 86
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 94
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 101
10
APRESENTAÇÃO
A reprodução assistida (RA) tem se feito cada vez mais presente no debate atual sobre
a incorporação das novas tecnologias em saúde. A mídia intensificou a divulgação dos casos
bem sucedidos de inseminação artificial (IA), de fertilização in vitro (Fiv) e de injeção
intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI) nos meios de comunicação de massa. O número
de clínicas particulares oferecendo estes procedimentos aumentou vertiginosamente nos
últimos anos, enquanto alguns serviços públicos de saúde tentam, apesar das dificuldades e
insuficiência, dar conta da crescente demanda de mulheres e homens em busca de soluções
para a inquietante (na maioria das vezes, angustiante) ausência de filhos.
Elaborada pelo campo da pesquisa biomédica, a reprodução assistida consiste em um
conjunto de técnicas que facilitam e/ou possibilitam a fecundação em casos de
in/hipofertilidade humana, independentemente da relação sexual, através da intervenção
médica. Utilizando-se de técnicas consideradas mais simples como a IA, ou mais complexas
como a Fiv e a ICSI, em geral a fecundação torna-se um procedimento realizado em
laboratório, fora do corpo humano, a partir da manipulação, seleção e congelamento de
gametas, com ou sem doação de órgão ou material reprodutivo humano de terceiros (útero,
óvulos, espermatozoides ou embriões formados). Estas tecnologias passaram a ser
indicadas a uma demanda cada vez mais diversificada conforme seus avanços e
aperfeiçoamentos, apesar de terem sido desenvolvidas inicialmente para tratamento paliativo
de disfunções tubárias na gravidez.
O estabelecimento de uma patologia médica, o da infertilidade humana, para
diagnosticar o que antes era tratado como questão social transformou a dificuldade ou a
impossibilidade de procriar em objeto do conhecimento e da tecnologia biomédica (Corrêa,
2001). Se na década de 1980 as técnicas de reprodução assistida eram reconhecidas pelas
expressões bede proveta e barriga de aluguel, hoje são disseminadas pela sofisticação e
avanços biotecnológicos na área da infertilidade.
A Organização Mundial da Saúde e a American Society for Reproductive Medicine
passaram a definir infertilidade como a ausência de gravidez durante um ou dois anos de
tentativas através de relações heterossexuais frequentes (2 a 3 vezes por semana), sem
proteção anticoncepcional. Estima-se que casais considerados sem problemas de fertilidade
engravidam no primeiro ano de relações não protegidas (80%) ou no segundo ano (10%); os
10% restantes seriam os casais considerados com problemas de esterilidade (Faundes, 1993
11
apud Ramírez-Gálvez, 2003). Na prática, percebe-se que a maioria dos médicos inicia os
estudos de infertilidade antes do primeiro ano de tentativas e, segundo Costa (2008), no caso
de mulheres acima dos 38 anos, em geral, após seis meses.
Sabe-se que o uso das novas tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc) o se
limita aos estimados 10% de casais inférteis. Elas têm sido indicadas para variadas
dificuldades de reprodução, com causas multifatoriais ou mesmo quando não são identificadas
causas aparentes. Casais sem nenhuma infertilidade a utilizam como medicina preditiva, para
realizar screening genético, no qual são analisados sêmen e óvulos antes de ocorrer a
fecundação, ou embriões antes de sua implantação no útero, em busca de genes ou
cromossomas responsáveis por doenças hereditárias.
Segundo Corrêa (1997), a reprodução assistida tornou-se, assim, um dos principais
marcos da revolução tecnológica da Medicina. No entanto, como outras reflexões críticas da
área, a autora propõe que as tecnologias reprodutivas sejam também analisadas do ponto de
vista social, além do biológico. Diversos teóricos das ciências humanas e sociais e da bioética
têm contextualizado a RA no histórico processo de medicalização da sexualidade, cujo foco
principal permaneceu na reprodução biológica e social. É a partir daí que Corrêa discute o
fato de nem toda ausência involuntária de filhos ser sinônimo de infertilidade e que, em geral,
antes mesmo da identificação de uma doença” ou “sintoma”, o desejo por filhos é quem
inicia o próprio ciclo de medicalização da infertilidade. Assim, quando se deseja ter filhos
é que sua ausência torna-se uma questão. Este desejo independe de infertilidade; não surge
apenas em mulheres casadas ou em união estável, como propõe grande parte dos protocolos
clínicos. Pessoas com ou sem problemas médicos reprodutivos, celibatárias, mulheres e
homens solteiros, com ou sem parceiros, heterossexuais, homossexuais, transexuais podem ter
este desejo, caracterizando uma ausência involuntária de filhos. A partir daí, estas pessoas ou
casais podem buscar no acesso às tecnologias biomédicas a realização de seus sonhos
reprodutivos.
De fato, a reprodução assistida possibilita transformações importantes na parentalidade
e nas relações familiares, na medida em que procriar não depende necessariamente de
relações sexuais, podendo-se fazer uso inclusive de doações de espermatozoides, óvulos,
úteros ou de embriões. No entanto, apesar dessas possibilidades de subversão das normas
procriativas, a reprodução assistida tem sido mais frequentemente destinada à reiteração do
modelo tradicional de reprodução biológica e social. O diagnóstico de infertilidade tem sido
usado como elegibilidade para o acesso às NTRc, sendo reiteradas normas de gênero que
evidenciam uma estratégia de medicalização social, dando continuidade ao sistema
12
biopolítico, iniciado no final do culo XVIII mas que permanece sendo característico nos
contextos sociais atuais (Foucault, 1988; Loyola, 2003).
Desta forma, tanto na visão médica quanto na perspectiva dos direitos sexuais e
reprodutivos, é difícil definir, a priori, o que efetivamente as tecnologias reprodutivas
estariam solucionando, se uma ausência involuntária de filhos ou se uma doença, no sentido
médico do termo. Adotar uma definição estritamente médica e biológica de infertilidade para
as questões relativas à reprodução assistida pode encobrir perspectivas morais fundamentais à
reprodução, como a preferência por filhos biológicos para a definição do parentesco e da
filiação, valores sociais relacionados à fertilidade, maternidade, paternidade, aos papéis de
gênero, à família e, mais recentemente, à informação genética (Corrêa, 1997, 2001; Diniz,
2002; Van Balen & Inhorn, 2002).
Frente a estas questões, analisar quais normas estariam presentes nas práticas de
saúde relativas às novas tecnologias reprodutivas e o que poderia ser revelado a partir
destas práticas foi o principal objetivo do presente trabalho. O estudo baseou-se na
hipótese de que a prática da reprodução assistida reitera, mais frequentemente, um modelo de
reprodução biológica e social tradicional, conforme apontado por diversos autores das
ciências sociais e humanas e de estudos de gênero. Mas em que medida esta prática tem se
constituído como possibilidade de resistência à norma procriativa? Em que medida a própria
oferta de serviços de RA pelo SUS poderia questionar a normatividade da reprodução social?
Propõe-se debater neste trabalho a infertilidade e a reprodução assistida sob um ponto
de vista social, histórico e cultural, partindo-se do pressuposto teórico de que o desejo de
filhos, assim como a busca pelas técnicas de reprodução assistida para a realização deste
desejo, não o expressões “inatas”, “naturais” ou “instintivas” de quem os apresenta; ao
contrário, dependem de variáveis sociais e culturais, quase sempre sutis e complexas, que
definem nossas expressões enquanto indivíduos.
Para isto, neste trabalho foi realizada uma revisão teórica dos conceitos de norma em
Michael Foucault e de gênero em Judith Butler, pretendendo-se discutir como a medicalização
social da reprodução e a patologização da infertilidade humana se constituem como uma
estratégia biopolítica de controle social, a qual se expressa nos principais fundamentos das
técnicas de reprodução assistida. Utilizando-se como metodologia a pesquisa qualitativa de
cunho exploratório, analisou-se como este sistema normativo tem efeitos nas práticas de saúde
a partir da observação de um serviço público de infertilidade no Rio de Janeiro, o Setor de
Reprodução Humana do Instituto de Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(RH/IGUFRJ).
13
Esclarecimentos sobre o trabalho de campo
A escolha metodológica e suas questões operacionais foram facilitadas por este estudo
fazer parte de outra pesquisa em andamento no ambulatório observado, coordenada pelas
professoras Maria Andréa Loyola e Marilena Corrêa, aprovada pela Comissão de Ética em
Pesquisa da UERJ - parecer COEP 039. A pesquisa Reprodução, gênero e ciência: um estudo
sobre a reprodução assistida no Rio de Janeiro
1
teve como objetivos conhecer a organização
da atenção ao problema das infertilidades no Rio de Janeiro e as possibilidades de acesso às
técnicas de RA, assim como compreender melhor o significado da ausência de filhos e das
possíveis ressignificações trazidas pela RA aos papéis de gênero e reprodução. Como
resultado, pretendeu contribuir para o avanço da discussão teórico-conceitual na área de
gênero e reprodução e também para a formulação de políticas públicas para mulheres. Aquela
pesquisa teve início no Instituto de Ginecologia da UFRJ em 2006 e consistiu no levantando
de dados sociodemográficos, aplicação de questionários e entrevistas a usuários do setor de
reprodução de humana.
Assim, para esta dissertação de mestrado foi realizada uma observação do
funcionamento do Setor de Reprodução Humana do Instituto de Ginecologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, sendo observadas nos meses de agosto, setembro e outubro de
2008. Esta observação incluiu os seguintes aspectos: interações entre profissionais (médicos,
alunos residentes e internos em medicina, psicólogas, assistentes sociais e enfermeiras) e
pacientes atendidos. Decidiu-se pela pesquisa qualitativa de cunho exploratório, usando a
prática da observação participante com anotações de campo (May, 2004).
Foram realizadas observações de atendimentos clínicos dicos (80) e psicológicos
(4), de algumas reuniões de equipe, além de alguns exames de ultrassonografia de pacientes
em monitoramento no setor. Leituras assistemáticas de prontuários também foram necessárias
para o esclarecimento posterior de algumas anotações durante as consultas. Um número maior
de pacientes foi atendido no período delimitado para esta pesquisa, mas como os
atendimentos ocorriam concomitantemente, em até 5 consultórios, algumas vezes sendo usada
também a sala de reuniões, a observação ficou restrita ao acompanhamento de um(a)
médico(a) por dia, em geral.
Para aumentar a qualidade das observações, as anotações de campo foram feitas
durante os atendimentos, em um caderno escolar, identificando-se as datas das consultas, os
1
Loyola & Corrêa (2008)
14
nomes dos pacientes (para eventual necessidade de leitura de prontuário) e dos médicos. Por
questões éticas, nos exemplos de campo apresentados neste trabalho, nenhum dos sujeitos foi
identificado, a não ser por sua função no ambulatório (psicóloga, médica voluntária, residente,
aluna interna, paciente ou usuário/a) e pelo gênero (masculino ou feminino). Observações
sobre a disposição física do ambulatório, horários dos atendimentos, funcionamento em geral
e eventuais acontecimentos também foram registrados no mesmo caderno. As observações
foram orientadas pelos interesses teóricos da pesquisa, seguindo algumas interrogações sobre
a interação médico-paciente, a qualidade da atenção dispensada pelos profissionais de saúde,
o entendimento e as demandas dos pacientes sobre a reprodução assistida, os procedimentos
realizados e as falas relativas a eles, tanto de profissionais quanto de usuários.
Para a descrição do perfil dos usuários do serviço, baseamo-nos em dados da pesquisa
de doutorado de Tonia Costa (2008), realizada no mesmo ambulatório, respeitando-se as
categorias estabelecidas por esta autora. Para a análise das observações feitas no presente
trabalho, inicialmente todas as anotações foram digitalizadas, lidas e ordenadas, para então
serem classificadas em categorias específicas, como gênero, atenção médica, riscos, acesso,
tempo de espera, dificuldades do serviço, reprodução biológica, reprodução social,
diagnóstico, prognóstico, busca por direitos e emocional/culpa, articuladas aos referenciais
teóricos desta pesquisa durante as análises discutidas no decorrer da dissertação.
Não é sem limites que a metodologia adotada tentou encaminhar os impasses teóricos
para o desafio da prática. Seguindo as palavras de Minayo (1994:33), as análises apresentadas
têm um caráter aproximado, provisório, inacessível em relação à totalidade do objeto e
condicionado historicamente, sendo relacionadas a interesses e circunstâncias socialmente
estabelecidas. Pela impossibilidade de serem isoladas as variáveis sociais que condicionam as
práticas no campo da reprodução, as hipóteses levantadas neste trabalho podem ser
consideradas mais interpretativas do que observadas (Da Matta, 1978). A “realidade” sempre
passa pelo filtro de determinado ponto de vista do observador, tornando o rigor científico uma
“objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa” (Velho, 1978:43).
Em consonância com Geertz (1999), tentar estar “embaixo da pele do outro”, vivenciar as
experiências do outro através de observações de campo realizadas para entender como ele as
vê, sente e pensa, seria uma tentativa ilusória de descobrir que diabos eles estão falando”.
Conceitos e significados estariam envolvidos em suas ações, falas, pensamentos, muitas vezes
sem que sejam percebidas ou entendidas senão como “naturais e espontâneas”.
Assim, para não incorrer em uma “naturalidade” dos fatos, tampouco em uma
pretensiosa “verdade” sobre eles, procurou-se estabelecer um compromisso com o que este
15
autor chamou de crítica literária”, uma tentativa de descrição e análise funcional das
contingências, levando-se em consideração o contexto histórico da reprodução assistida e
algumas dificuldades, barreiras e persistências existentes no serviço público de saúde
observado, partindo-se de um referencial teórico e de um determinado ponto de vista,
indicados no início desta apresentação.
A RA, como a concebemos, não se limita ou se circunscreve ao local em que as tecnologias
reprodutivas conceptivas são produzidas ou aplicadas, tampouco envolve unicamente os
sujeitos que as oferecem e as consomem, o que dificulta sua abordagem nos termos da
etnografia tradicional de um lugar específico. (Ramírez- Gálvez, 2003, p.13-14).
Para Becker (1977), este ponto de vista se configura, inevitavelmente, a partir de que
lado estamos na situação de pesquisa. A tomada de partido, a contaminação por simpatias e
por políticas, as possíveis acusações ou efetivos vieses são condições inquestionáveis nesse
processo científico; elas sempre existirão. Resta-nos perguntar, então, se elas distorcem o
trabalho a ponto de torná-lo inútil, ou se alguma distorção deve ser ressaltada antes que os
resultados possam ser usados.
É importante destacar, aqui, que apesar de o trabalho levantar algumas dificuldades do
serviço, algumas perspectivas normativas das falas e práticas dicas responsáveis pela
elegibilidade para o acesso ao tratamento no ambulatório, parte-se do ponto de vista de que o
serviço representa um avanço em termos de direitos sexuais e reprodutivos, apesar de ainda
ser longo o caminho para o acesso igualitário e equânime às tecnologias reprodutivas pelo
sistema único de saúde brasileiro.
No que diz respeito à organização dessa dissertação, no capítulo 1 articulou-se a
reprodução assistida aos mecanismos normativos da sexualidade, particularmente ao processo
de medicalização da reprodução enquanto dispositivo de biopoder para perpetuar determinado
modelo de organização social, baseado na dominação masculina e na matriz heterossexual. A
contextualização histórica do corpo feminino como objeto privilegiado do conhecimento e
desenvolvimento científico e tecnológico auxiliou o debate sobre as normas de gênero
(regulações das diferenças entre os sexos) e a norma procriativa (heteronormativa). A partir
deste contexto, a reprodução assistida tem sido vista como parte do processo da biopolítica
contemporânea, cujos paradoxos reforçam a necessidade de se aprofundar o debate sobre os
riscos e as possibilidades trazidas pelas NTRc, o papel da mídia na disseminação e reiteração
de normatividades e a relação entre o diagnóstico de infertilidade e a questão do acesso às
técnicas de RA.
16
No capítulo seguinte, discutiu-se a reprodução assistida enquanto um direito sexual e
reprodutivo, debatendo-se os conceitos neoliberais de “liberdade procriativa” e de desejo”
como justificativas para o acesso às suas técnicas, ao mesmo tempo em que são instituídos
mecanismos de segurança para se restringir a universalidade, a igualdade e a equidade nesta
área no Brasil. O presente estudo restringiu-se à questão da normatização do acesso às NTRc
no serviço público de saúde, contextualizada em um cenário de ausência de legislação própria
no país, o que aumentaria consideravelmente a vulnerabilidade social e emocional daqueles
que não podem arcar com tratamentos particulares de RA.
Finalmente, no capítulo 3, pode-se detalhar melhor o campo desta pesquisa, a partir de
um breve histórico institucional e do destaque de algumas observações de consultas clínicas e
psicológicas, permitindo repensar sobre o paradoxo das tecnologias reprodutivas, que por um
lado são vistas como dispositivos de normatividade reprodutiva e social, mas que, por outro,
abrem caminho para a subversão das normas estabelecidas para os conceitos de família”,
“filiação”, “parentalidade” e parentesco” na contemporaneidade. Na discussão das barreiras
e permanências enfrentadas pelo serviço, tentou-se entender o que é revelado quando se
define quem pode e quem não pode ter acesso à reprodução assistida pelo critério de
infertilidade, e se este acesso poderia colocar em xeque determinadas normas socioculturais
ligadas às normas de gênero e à reprodução social.
17
1. SEXUALIDADE, REPRODUÇÃO E NORMAS DE GÊNERO.
1.1. Reprodução e sexualidade: a medicalização do social
Vários autores se referem à importância de se compreender a reprodução assistida a
partir da problematização da medicalização do social
2
. Neste sentido, torna-se essencial
contextualizarmos, inicialmente, o processo histórico de naturalização e normalização da
sexualidade e da reprodução. O debate sobre os conceitos de norma, apresentado pelo filósofo
francês Michael Foucault, e de nero, aprofundado pela autora Judith Butler, servirá como
base para as discussões deste capítulo referentes à relação entre sexualidade, reprodução e
diagnóstico de infertilidade.
Durante toda a década de 1970, um dos principais objetivos das investigações de
Foucault foi demonstrar como o conceito de norma tornou-se essencial, nos séculos XVIII e
XIX, para a organização da vida social moderna, através de dispositivos e mecanismos sutis e
contínuos de poder. Desde 1974, pelo menos, eram incipientes as problematizações em
torno das noções de biopoder, biopolítica e população no pensamento de Foucault.
Posteriormente, a relação entre estes conceitos foi retomada e melhor discutida nos cursos
Sécurité, Territoire, Population, em 1978, e La Naissance de la biopolitique, em 1979,
reforçando a ideia de que medicina, economia política, estatização da medicina e o governo
da vida configuravam uma nova economia de poder desde o século XVIII. (Martins & Peixoto
Junior, 2009; Martins, 2007).
Segundo Foucault (1988, 2008), é a partir daquele século que a sanção normalizadora
deixou de ser a da punição, comum ao poder soberano dosculos anteriores, para ser,
prioritariamente, a da correção e adequação de todo e qualquer desvio de normas
estabelecidas pela anátomopolítica dos corpos e pela biopolítica da vida.
Nesta nova “economia do poder”, ao invés de matar, eliminar ou limitar, o biopoder
seria produtivo, intensificando e ordenando relações de força das quais todos os sujeitos
fazem parte, desde o Estado, os regimes totalitários e a economia, até os pais de família, os
professores, vizinhos, mulheres e homens que exercem o poder em suas relações cotidianas,
2
(Corrêa, 1997, 2001; Diniz & Buglione, 2002; Loyola, 2005; Ramírez-Gálvez, 2003; Costa et al, 2006; Rohden, 2002b;
Medeiros, 2007; entre outras)
18
sendo subjetivados por estas relações. O indivíduo não se constitui fora do poder, mas é antes
um dos seus primeiros efeitos.
O contexto era o de mudanças políticas e econômicas advindas do início do
capitalismo e da sociedade burguesa no final do século XVIII, que impulsionavam
transformações nos papéis estabelecidos para homens, mulheres e crianças na nova ordem
social. Era necessário aumentar o rendimento e a eficácia de todo um aparelho produtivo em
pleno processo de expansão, regular os corpos, reduzir seu caráter político e maximizar sua
força útil e dócil de trabalho, através de técnicas disciplinares. Posteriormente, fazia-se
também necessário o governo das questões relacionadas à ideia de população, segundo a qual
os corpos ganhariam status de espécie humana, através de um conjunto de técnicas de poder
que se ocupassem da gestão da vida de questões demográficas, nascimentos e mortalidades,
epidemias, escassezes, saúde, prolongamento da vida com qualidade. Estes dispositivos
seriam ainda mais sutis, mais eficazes e menos dispendiosos, permitindo a circulação dos
efeitos do poder de forma contínua, adaptada e “individualizada” em todo o campo social.
Assim, como uma das estratégias da biopolítica, a valorização pública e política da
vida como um bem ximo a ser preservado e reproduzido tornava-se uma norma
(Foucault,1988). A organização social da população e o futuro da espécie humana
dependeriam de como cada indivíduo “usava seu sexo”, da regulação da reprodução dos
corpos.
Primeiramente, a população, tal como é problematizada no pensamento, mas [também] na
prática governamental do século XVIII, não é simples soma dos indivíduos que habita um
território. Tampouco é resultado apenas da vontade deles se reproduzirem. (Foucault, 2008:92)
O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter
um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças
que se podem modificar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira
vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político. (Foucault, 1988:134)
Segundo Foucault (1988), a partir do que chamou de dispositivo da sexualidade, uma
rede privilegiada de saber-poder (como a medicina, a biologia, a pedagogia, a psiquiatria, a
psicologia, a sexologia, entre outros) governaria esta população, principalmente através da
regulação da sexualidade e da reprodução, a partir de discursos e regras de normalidade,
segundo os quais os indivíduos seriam (e continuariam a ser) avaliados, hierarquizados,
subjetivados enquanto normais ou patológicos
3
. Tudo aquilo que não se enquadrasse na
norma seria considerado desvio, necessitando correção ou ajuste conforme uma maioria.
3
Para aprofundar a discussão, ver: Canguilhem (1978). Para o autor, o “patológico” ou “desvio” não poderiam ser traduzidos
por uma “ciência” médica, exata, estatística, de simples classificação e diagnóstico, que depende de uma valoração, feita
inclusive (ou geralmente) pela própria pessoa classificada como “doente”, segundo significados e normas individuais,
19
Dentre as principais estratégias do dispositivo da sexualidade discutidas por Foucault
(1988) estão a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo das crianças, a
socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do poder perverso, empenhadas
em estabelecer uma hierarquia entre o masculino e o feminino e uma matriz identitária
heterossexual como normas, com o objetivo explícito de controle da reprodução biológica e
social, além de patologização das sexualidades que não se adequassem à norma procriativa.
O surgimento da medicina moderna teve papel fundamental no estabelecimento e
adequação destas normalidades, particularmente no que se refere ao comportamento sexual e
reprodutivo da mulher, atrelada a certa moral familiar” e à determinação da fertilidade como
uma norma de gênero. Segundo Lenoir (2005), na nossa sociedade ocidental, as definições de
família e as representações às quais elas estão ligadas são construções sociais consagradas
pelo Estado que, graças aos instrumentos jurídicos de que dispõe, tem o poder de transformá-
las em “fatos”. Estes “fatos” tornam-se ainda mais “naturalizados” quando a esta engrenagem
somam-se os esforços não apenas da Igreja e do Estado, não apenas dos aparatos jurídicos,
mas também os das ciências humanas, principalmente os da Medicina.
Os papéis sociais de homens e mulheres foram reconfigurados a partir desta família,
de maneiras desiguais e naturalizadas, numa rígida divisão sexual do trabalho e controle da
sexualidade feminina. À mulher coube a submissão jurídica e social ao homem, resguardando
a identidade familiar através do cuidado com a prole e com o lar (Loyola, 2003; Peixoto,
2007). O normal seria, então, ter uma família nuclear-heterossexual-reprodutora”, centrada
na relação “pai-mãe-filhos”, na qual os pais são, ao mesmo tempo, os responsáveis biológicos
pela procriação, pelo parentesco, pela filiação e pelo cuidado afetivo e social de seus filhos.
Neste sentido, pode-se dizer que o gênero é uma forma de regulação social.
Segundo a filósofa estadunidense Judith Butler (2004), gênero é uma norma, nos
termos discutidos por Foucault, porém uma modalidade específica de regulação social que
constitui de forma particular a subjetividade e a identidade. A autora atenta para o fato de
existir, em geral, uma tendência em se pensar gênero como algo separado de suas normas
regulatórias, como se estas reprimissem e moldassem os corpos “sexuados”, transformando-os
em masculinos ou femininos. No entanto, Butler afirma que nem gênero é uma construção
social imposta a uma matéria antes determinada (o sexo), nem o próprio “sexo” é um atributo
mutáveis, capazes de serem reinventados de acordo com suas necessidades e os contextos sociais e culturais. O indivíduo se
compara com ele mesmo, temporalmente, com sua própria história de vida. Saúde não seria equivalente à ausência de doença,
nem a uma “normalidade” definida a priori, mas sim a uma “normatividade vital”, a uma capacidade flexível de se constituir
novas normas para se manter vivo, aprendendo com suas experiências e reorganizando seu repertório para a saúde.
20
do corpo humano, sendo ambos resultados de regulações históricas e sociais, cuja
consequência é a instituição de normalidades e de sujeitos gendrados. Mais especificamente,
o binarismo sexogênero é questionado pela autora; o sujeito é gendrado a partir da reiteração
de normas que atribuem inteligibilidade e coerência entre sexo, gênero, desejos e prazeres.
Segundo Butler (2005), seria um grave erro separar a análise da sexualidade da análise
de gênero, como se o último fosse uma dominação cultural sobre um corpo sexuado. Ao
interpretar em Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity
4
a categoria “sexo”
como sendo, desde o início, normativa e nero como um conceito produzido
performaticamente, a serviço da consolidação do imperativo compulsório heterossexual,
muitos críticos de Butler deram um passo adiante e imaginaram que ela estivesse defendendo
a possibilidade de um gênero radicalmente livre. Muitas pessoas consideraram que a
materialidade dos corpos teria sido eliminada, ignorada ou até mesmo negada na obra de
Butler. Pelo contrário, em Bodies that matter
5
, a autora aprofundou esta discussão analisando
em que medida o “sexo”, ele mesmo, poderia ser considerado uma norma, de que maneira
esta norma poderia efetivamente materializar um corpo. Sem negar a existência de diferenças
biológicas, seu objetivo foi provocar um deslocamento, compreender como a materialidade do
corpo poderia não somente ser investida por uma norma, mas também, em certo sentido,
animado e configurado por ela (Butler, 2005:15).
Em Inventando o sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud, o autor Thomas Laqueur
(2001) conseguiu elucidar esta relação entre sexo-gênero-identidades-política, discutida por
Butler e Foucault. Segundo Laqueur, a própria mudança do modelo do sexo único para o dos
dois sexos, ocorrida no culo XIX, revelaria este caráter político e ideológico atribuído ao
biológico, evidenciado principalmente no processo de fabricação do corpo feminino como
objeto privilegiado do conhecimento científico e do desenvolvimento tecnológico na
modernidade. Para o autor, o surgimento de um modelo essencialista da diferença sexual
embasaria desigualdades sociais atribuídas a homens e mulheres no cotidiano, mesmo
defendendo-se ideais igualitários e libertários na época.
Desde a Grécia Antiga até o Renascimento, os corpos dos seres humanos eram
interpretados a partir do “modelo do sexo único”, segundo o qual apenas uma estrutura básica
servia como referência de normalidade: o corpo masculino. Mulheres e homens teriam órgãos
análogos, diferindo em grau de perfeição, não de natureza. A mulher era vista como uma
versão imperfeita do homem, pois tinha menor força e menor intensidade de calor vital, com
4
Publicado em 1990, traduzido no Brasil como Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. (Butler, 2003b).
5
Traduzido no Brasil como Corpos que importam. (Butler, 1993).
21
órgãos sexuais invertidos (para dentro do corpo). Sua condição de inferioridade poderia ser
revertida naturalmente, “evoluindo” para uma condição perfeita do corpo masculino.
A partir do final do século XVIII e início do XIX, a hierarquia entre os sexos ganhava
nova roupagem, sendo descobertas diferenças biológicas entre homens e mulheres, embasadas
por uma suposta neutralidade e racionalidade científicas. O rompimento com a concepção
renascentista de natureza e de homem demarcou uma visão mecanicista sobre o mundo,
segundo a qual a natureza ganhou sinônimo de matéria e ordem natural, podendo ser objeto de
conhecimento científico. A medicina passou a delinear os conhecimentos sobre Anatomia,
ocupando-se de forma diferente dos corpos, da saúde e da doença, com o auxílio de inventos e
avanços da cirurgia.
Neste contexto, surgia um novo modelo de interpretação dos corpos: o dos “dois
sexos”. Com base em diferenças anatômicas e fisiológicas, homens e mulheres tinham
identidades sexuais e de gênero diferenciadas. Para Laqueur (2001), este novo paradigma o
decorreu de avanços científicos despretensiosos pura e simplesmente, mas sim de
necessidades ideológicas e políticas de determinada sociedade burguesa. Deixar de interpretar
a mulher como um homem invertido e inferior, atribuindo a ela um “sexo próprio”, o de
fêmea, com “natureza própria”, a da reprodução, não eliminaria as desigualdades de homens e
mulheres na vida política e econômica, apenas as tornaria “naturalizadas”, universais”,
“inquestionáveis”.
A partir deste modelo, a função reprodutiva da mulher passou a justificar
“naturalmente” seu papel social de “mãe”, “esposa”, “cuidadora”, um nero feminino,
diferentemente do nero masculino que continuaria a ser socialmente subjetivado não pela
função reprodutiva do homem, mas por suas “habilidades naturais” para atividades
econômicas, intelectuais, políticas e científicas, comprovadas, por exemplo, pelo tamanho
maior de seu cérebro, segundo os estudos da Anatomia, Fisiologia e Craniologia da época
(Rohden, 2003). O útero da mulher, que antes a colocava em posição de inferioridade por ser
um órgão imperfeito, passou a ser o determinante de sua “principal função social”: da
maternidade. Desta forma, as mulheres deveriam ter comportamentos sociais, emocionais e
sexuais “próprios”, adequados a uma suposta “natureza biológica de cada sexo”, em
conformidade com uma norma procriativa e uma norma de gênero.
Assim, as diferentes etapas da sequência reprodutiva feminina (desde os cuidados para
se ter uma sexualidade “normal” reprodutiva, passando pela fecundação, gravidez, parto e
puerpério) passaram, historicamente, a se desenvolver como especialidades da ginecologia e
obstetrícia, transferindo-se um saber do cuidado de si (Foucault, 1985), central na medicina
22
tradicional, para a figura do médico, principal representante da medicina moderna. Fazia-se
necessário construir regras que escapassem, de alguma maneira, aos saberes leigos, passados
de geração em geração, que ainda possibilitavam algum tipo de “arbítrio individual” e
“autonomia” (Corrêa, 2001:43). Tanto as próprias parturientes quanto as parteiras foram
desapropriadas dos cuidados com o parto e com o recém-nascido, sendo disseminada a
necessidade da hospitalização para o parto, os novos preceitos de higiene e atenção para com
os bebês, as crianças e o aleitamento materno. Predomina, até hoje, que o conhecimento da
Ginecologia e da Obstetrícia sobre o corpo da mulher e o processo de gravidez é maior do que
o das próprias mulheres (Barbosa, 1999).
O conjunto de recursos técnico-científicos voltado para a realização do “bem-estar e mental” do
homem de que dispõe a medicina moderna tem, efetivamente, produzido medicalização. Isto é,
de um lado, ampliação de atos, produtos e consumo médico; de outro, interferência da medicina
no cotidiano das pessoas, por meio de normas de conduta e padrões que atingem um espectro
importante de comportamentos individuais. (Corrêa, 2001:25)
A exaltação do papel da mulher na maternidade como uma norma de gênero e a
difusão dos discursos da puericultura pelas instituições médicas fizeram destas um poderoso
mecanismo de medicalização social. A relação estabelecida entre medicina e estado,
inicialmente apoiada em argumentos higienistas, voltados para projetos urbanísticos de
circulação de ar, água e alimentos, de prevenção de epidemias, de governo das populações,
conferiu à medicina um caráter político de produção de “verdades”, o monopólio legal do
discurso e da intervenção sobre o corpo, a saúde, a doença, o sofrimento, a dor (Foucault,
1979, 2008).
O contexto de medicalização social no qual vivemos até hoje dispõe de diversos
dispositivos de segurança
6
que partem de um mesmo pressuposto: quanto maior o número de
intervenções sobre o corpo reprodutivo, quanto maior o acompanhamento clínico pelo
ginecologista no caso da mulher, por exemplo, melhor a prevenção e o controle de riscos à
sua saúde sexual e reprodutiva, mais seguros serão o parto e o puerpério e, mais
recentemente, mais sucesso terá o emprego das biotecnologias reprodutivas. Com isso, as
mulheres passaram a ser as principais consumidoras de medicamentos, intervenções e
pesquisas médicas, principalmente quando o assunto é reprodução, seja quando se pretende
evitar filhos, seja quando se pretende tê-los.
6
No curso dado no Collège de France (1977-1978), Sécurité, Territoire, Population, Foucault (2008) discute a emergência
da biopolítica e dos dispositivos de segurança articulados com a noção de população e a economia política liberal, quando
surgiram, na passagem do século XVIII para o XIX, as noções de probabilidade, de caso, de risco, de perigo e de crise. A
este período, o autor denominou de sociedade de segurança, discutindo a importância de se entender a proposta desta nova
governamentalidade.
23
1.2. Uma leitura biopolítica da reprodução assistida.
É deste contexto histórico apresentado acima que vários autores iniciam a discussão
sobre a reprodução assistida como parte do processo da medicalização social, mais
especificamente da medicalização da sexualidade, “na verdade a última etapa de um processo
cujas origens remontam ao fim do século XVIII” (Corrêa, 2001:13). As novas tecnologias
reprodutivas conceptivas (NTRc) teriam se desenvolvido com a expansão da medicina
moderna em torno do processo reprodutivo, servindo para “legitimamente”, sob a perspectiva
médica, corrigir infertilidades, desvios da norma procriativa e de gênero.
Não é de se surpreender que a infertilidade seja definida como uma “deficiência na
saúde reprodutiva humana” (Neuspiller & Ardiles, 2003 apud Costa, 2008) ou que a ausência
de filhos seja abordada como uma “patologia” (Corrêa, 2001). A própria definição adotada
pela Organização Mundial da Saúde tem como norma a gravidez, na medida em que
caracteriza infertilidade pela ausência de gravidez” durante um ano ou dois de tentativas
através de relações sexuais frequentes (2 a 3 vezes por semana), sem proteção
anticoncepcional, configurando-se em um problema de saúde pública.
No Brasil, os estudos socioantropológicos sobre reprodução assistida, principalmente
da última década, trazem uma discussão crítica das novas tecnologias reprodutivas,
contextualizando-as como parte da biopolítica contemporânea. Em comum, aprofundam as
discussões sobre gênero, subjetivação e direitos sexuais e reprodutivos, abordando aspectos
éticos e bioéticos das práticas médicas e da legislação referentes à reprodução assistida no
país.
Entre os principais questionamentos destes estudos
7
estão: a inviolabilidade e não
comercialização do corpo humano, o anonimato da doação, o consentimento formal a todos os
envolvidos, as regras para diminuir incesto inadvertido, a restrição da barriga de aluguel entre
familiares no país, o destino de embriões excedentes (pesquisa, congelamento, intervenção,
seleção, descarte, clonagem, etc), os riscos à saúde da mulher e do bebê nas gestações
múltiplas e procedimentos, a dificuldade de se impor limites entre a manipulação de embriões
e o eugenismo, o direito ao acesso no serviço público de saúde, a natureza do stress e de seus
potenciais efeitos somáticos em nossas vidas (incluindo consequências reprodutivas
adversas), o poder da mídia de modelar expectativas e desejos reprodutivos ao noticiarem,
7
Corrêa (1997, 2001); Corrêa & Loyola (2005); Diniz & Buglione (2002); Ramírez-Gálvez (2003); Barbosa (1999, 2003);
Diniz & Costa (2005); Ferreira (1998, 2002); Tamanini (2004); Luna (2001, 2005); Queiroz & Arruda (2006); entre outros.
24
primordialmente, verdadeiros “milagres” reprodutivos, as possibilidades de transformações da
parentalidade, da filiação e da família, entre outros importantes debates. A principal proposta
destes trabalhos é tratar a infertilidade do ponto de vista político-cultural, sem que sejam
negadas patologias orgânicas, sintomas e, sem dúvida, sofrimentos individuais associados a
ela; o objetivo é, justamente, destacar o caráter biopolítico e sociotécnico da reprodução
assistida, discutindo o quanto as novas tecnologias reprodutivas, o diagnóstico de infertilidade
e as práticas médicas refletem as normas e as mudanças culturais relacionadas ao gênero e à
reprodução.
Conforme apresentado no início do presente estudo, a reprodução assistida tem sido
definida como um conjunto de técnicas conceptivas que possibilitam a manipulação, seleção,
doação e congelamento de gametas. Como exemplo, temos a inseminação artificial (IA), a
fertilização in vitro (FIV) e a injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI), a serem
descritas abaixo.
Independentemente da relação sexual, as chamadas novas tecnologias reprodutivas
possibilitam a reprodução biológica fora do corpo humano, que a fecundação é feita em
laboratório, com ou sem doação de material humano de terceiros (gametas, óvulos,
espermatozoides, ou mesmo embriões formados). Pode haver também a doação temporária
de útero, conhecida ainda como empréstimo de útero, aluguel de útero, mãe substituta e outros
(Corrêa, 2001). Segundo Corrêa, é possível se fazer inclusive pesquisas genéticas através das
técnicas de fertilização in vitro, disponibilizando uma medicina preditiva que avalia os riscos
de transmissão de doenças genéticas.
Segundo Corrêa e Loyola (2005), diz-se que o tratamento é paliativo porque a
condição de infertilidade (da mulher, do homem ou do casal) diagnosticada seria subsistente
ao tratamento da reprodução assistida. “Em outras palavras, não existe cura para a condição
de base – a infertilidade – que levou à busca de atendimento médico” (ibidem:104).
Para melhor discussão, vale fazer uma breve descrição das técnicas de reprodução
assistida, partindo da mais antiga e considerada mais simples até chegar às mais atuais que,
muitas vezes, são consideradas as mais polêmicas. Na inseminação artificial, a fecundação
ainda se dá dentro do corpo da mulher; o sêmen é depositado pelo médico ou na vagina, ou no
colo do útero, ou na cavidade uterina (técnica mais comum) da mulher. Segundo Corrêa
(2001), a IA teria sido, inicialmente, utilizada em casos de infertilidade masculina, com
problemas de impotência na relação sexual ou com dificuldades anatômicas para a ejaculação
(hipospadia). Nestes casos, o sêmen usado seria o do próprio parceiro masculino,
constituindo-se em uma inseminação artificial homóloga. Quando a necessidade de doação
25
de sêmen, a inseminação é denominada de heteróloga ou de inseminação artificial com doador
(IAD), indicada quando o sêmen o tem capacidade de fecundação. Estudos com IA datam
desde o século XVII, com a fecundação de uma cadela em cio após coleta de sêmen de um
cachorro, por Lázaro Spallanzani. Em seres humanos, este procedimento fertilizou uma
mulher com sêmen do marido em 1790 (Samrsla et al, 2007). A primeira inseminação
artificial com doador teria ocorrido em 1890, na Inglaterra (Corrêa, 2001). Mas a
fidedignidade desta data é colocada em dúvida pela fragilidade dos registros estatísticos
daquela época sobre este tipo de problema, além de ser um assunto que causava muita
estigmatização (assim como até hoje).
Na Fiv, a fertilização do embrião ocorre fora do corpo feminino para, então, ser
implantado no útero. O sêmen, em geral, é coletado mediante masturbação enquanto a coleta
do óvulo requer um procedimento mais complexo e invasivo do corpo da mulher: uma
hiperestimulação do ovário por hormônios injetáveis para que vários óvulos sejam
produzidos. Através da ultrassonografia diária, o crescimento e amadurecimento desses
óvulos são acompanhados até serem extraídos do corpo da mulher. Após uso de anestesia
local ou geral, uma agulha é introduzida pelo fundo da cavidade vaginal ou pela uretra em
cada um dos folículos maduros e seu conteúdo é aspirado. Há a escolha dos melhores óvulos e
espermatozoides, que são colocados em um meio de cultura, fora do corpo, para que aconteça
a fecundação. Os pré-embriões são transferidos para o útero, havendo a possibilidade de
congelamento dos excedentes para futuras implantações. Os primeiros casos bem sucedidos
de fertilização in vitro ocorreram entre 1978, na Inglaterra, quando nasceu Louise Brown, e
1982, na França (Corrêa, 2001). No Brasil, o primeiro bede proveta nasceu em outubro de
1984, primeira experiência bem sucedida de reprodução assistida no país. Em 1982, uma
mulher faleceu durante um treinamento de fertilização in vitro, realizado por uma equipe
médica australiana no país (Medeiros, 2007).
Como técnica complementar à Fiv em casos de infertilidades masculinas, utilizada em
pacientes com baixa contagem de espermatozoides viáveis, foi desenvolvida a injeção
intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI), experimentada diretamente em humanos em
1992, disponibilizada no Brasil desde 1993. São retirados espermatozoides diretamente do
epidídimo ou testículo e escolhido um de boa qualidade (vivo, morfologia normal e boa
motilidade), que é injetado por agulha microscópica (por equipamento chamado
26
micromanipulador) diretamente no óvulo maduro, preparado, obtido por aspiração
folicular
8
.
A princípio, a literatura médica e bioética questionaram se a ICSI não oferecia ameaça
ao processo de seleção natural, por ser usada em células de homens inférteis, podendo haver
transmissão de doenças ou mesmo da própria infertilidade para a criança (WHO, 2001 apud
Arán & Corrêa, 2009). O debate feminista bioético também questionou a técnica, por fazer
uma mulher, muitas vezes sem problemas de fertilidade, passar pelas mesmas manipulações,
riscos e processos penosos da Fiv, para possibilitar que estes homens garantam uma
descendência biologicamente relacionada.
Estas técnicas surgem em um contexto no qual todo o processo reprodutivo humano
estava normatizado pela intervenção das ciências médicas e tecnologicamente medicalizado.
O que ganha destaque com as tecnologias reprodutivas, principalmente com a Fiv, é que
apesar da alta complexidade e do grau de manipulação alcançado, elas não garantem que os
embriões implantados se desenvolvam; pode ou não haver gravidez, e mesmo com esta, os
bebês podem ou não nascer com saúde. A baixa eficácia destas técnicas tem exposto as
mulheres a um número cada vez maior de riscos, tanto para a saúde reprodutiva, quanto para a
saúde mental. A produção elevada de óvulos tem tentado compensar os baixos índices de
sucesso da RA, gerando um número excedente de embriões in vitro que são congelados,
doados, descartados ou dirigidos à pesquisa. Diante das frequentes perdas em cada
implantação embrionária e do elevado custo financeiro dos procedimentos, muitos médicos e
pacientes m decidido pela transferência de múltiplos embriões, podendo resultar em
gravidez de gêmeos, trigêmeos ou mesmo quadrigêmeos, aumentando os riscos para a saúde
da mulher e dos bebês. Em sua grande maioria, o parto (quando alcançada a tão sonhada
gravidez) é prematuro, necessitando de cuidados neonatais.
A administração das medicações e hiperestimulações ovarianas podem provocar
efeitos colaterais indesejáveis para a saúde das mulheres, conforme o relato de algumas
pacientes observadas nas consultas do HUMF. Após um ano de tratamento de baixa
complexidade para engravidar, uma usuária apresentou dores musculares e inchaços tão
intensos que a fizeram procurar um ortopedista, sendo realizadas sessões de fisioterapia.
“Quando eu parei com os remédios, parou tudo, incrível” [sic]. No ambulatório, a dica
responsável descreveu um caso bastante complicado de hiperestimulação ovariana, no qual a
usuária teve que ser internada e operada. Outras pacientes relataram mal estar físico, a ponto
8
Informações retiradas do site <http://www.reproducaohumana.com.br/procedimento_abrir.php?id_noticia=18>.
Acesso em: 19 de fevereiro de 2009.
27
de não conseguirem manter relações sexuais ou mesmo desmaiarem. Em determinados
momentos, os médicos alertaram sobre outros riscos do uso contínuo de certas medicações:
Encaminhada para Fiv, a paciente perguntou se precisava refazer o exame de ressonância
magnética. Agora não, se você tivesse iniciado o tratamento [Fiv], sim, mas se fizer agora é
capaz de ter que repetir depois, quando for fazer o tratamento, e este ter sido feito
desnecessariamente. [...] Após 1 ano de uso do medicamento para a endometriose, você deve
fazer o exame de densitometria óssea” [sic médica].
Sobre os seis ciclos com determinado medicamento utilizado pela paciente em tratamento
anterior no ambulatório, a médica alertou que “faz bem por um lado [o uso do medicamento],
mas pode ser ruim também se usado muito tempo, pode causar câncer de mama” [sic].
Os riscos são agravados pelo fato de as técnicas de reprodução assistida serem
veiculadas como um bem de consumo, sinônimo de modernidade, de sofisticação e de
valorização por uma mídia pouco crítica. No Brasil, o papel da imprensa teve relação direta
com o início da reprodução assistida no país, na medida em que foi patrocinadora da grande
maioria dos eventos científicos na área, em troca dos direitos de divulgação. Nos anos 1980, a
principal emissora de televisão brasileira financiava a corrida pela gestação do primeiro bebê
de proveta, pelo direito de transmitir ao vivo, com exclusividade, a primeira fertilização in
vitro do país (Reis, 1985; Ramírez-Gálvez, 2003, 2007). Os meios de comunicação tornaram
legíveis à população as descobertas científicas na área, porém de forma simplificada,
esquemática e até banalizada, sem necessariamente veicular a informação adequada. Neste
processo, apenas os aspectos relacionados ao drama de não se conseguir ter filhos são
privilegiados pela mídia, potencializando-se os sucessos e minimizando-se os riscos e os
fracassos, incentivando seu potencial de uso. Não possibilitaram, assim, o necessário debate
público sobre os riscos da reprodução assistida e seus possíveis impactos sociais, políticos,
morais e sanitários
9
.
Os jornais diários são integrantes privilegiados não apenas da divulgação, mas da própria
constituição da atividade científica, veículos de nosso entendimento do que é a ciência e para
que ela serve. Na verdade, uma visão mais integrada da relação entre atividade e divulgação
científica permite questionar o postulado da independência e anterioridade da produção
científica em relação à atividade de comunicação ou divulgação”, entendendo que não são
diferenciadas de forma dicotômica, “mas formam um continuum expositivo, desde a
apresentação dos resultados intra-pares até a difusão ao grande público”. (Citeli, 2002:15)
Na observação de campo da presente pesquisa no Hospital Moncorvo Filho foi
possível identificar a influência da mídia na busca pela reprodução assistida. Diversas
pacientes, em consultas de primeira vez, disseram ter se informado sobre o serviço através da
divulgação na mídia impressa. Uma cliente, acompanhada da mãe, conta como foi demorada a
9
Para aprofundar a discussão do papel da mídia no processo da medicalização social, especificamente relacionado à
reprodução e às questões de gênero no Brasil, ver: Corrêa, 1997, 2001; Ferreira, 1998, 2002; Ramírez-Gálvez, 2003; Citeli,
2002; Barbosa, 1999; Diniz, 2006.
28
marcação da primeira consulta, pois foi ao ambulatório justamente no primeiro dia após
anúncio de jornal: “fiquei das 7:30 às 13:30 na fila e quando eu saí ainda ficou muita gente
esperando” [sic F., 30 anos]. Outra, ao ler uma nota sobre o ambulatório no jornal, resolveu
“ir ao hospital pessoalmente porque nessa área tem muita especulação” [sic R., 30 anos],
referindo-se às clínicas particulares. É comum que os centros privados tentem popularizar as
tecnologias reprodutivas através de reportagens em revistas e jornais, como se estivessem ao
alcance dos leitores.
Mais do que divulgar a RA, em geral as matérias apresentam uma conotação
publicitária destinada, sobretudo, às mulheres. Todos os dados necessários para quem deseja
realizar o tratamento são fornecidos: nomes dos institutos de pesquisa, bancos de sêmen,
especialistas envolvidos, endereços eou telefones de clínicas, hospitais e laboratórios que
produzem medicamentos para RA. As leitoras são levadas ainda a acreditar que as novas
técnicas são simples, acessíveis, eficazes, seja para solucionar a ausência involuntária de
filhos, seja para proporcionar escolhas de sexo dos bebês, ou mesmo para oferecer novidades
como a gravidez na menopausa.
Como indica Barbosa (1999), as personalidades publicamente conhecidas que fizeram
uso das tecnologias reprodutivas tornam-se alvo da mídia, influenciando o aumento pela
procura da RA, como foi o caso de uma das pacientes do Moncorvo Filho que citou a
apresentadora de telejornal, Fátima Bernardes, para dizer o que sabia sobre a Fiv. A paciente
acreditava que, pela apresentadora ter trigêmeos, todos os embriões implantados
necessariamente nasceriam (D., 30 anos).
Os vários autores supracitados que discutem a relação entre mídia e reprodução
assistida são unânimes ao sublinhar o efeito que essas reportagens e matérias, impressas ou
televisivas, proporcionam para a familiarização e para a própria construção do desejo de
filhos, refletindo perspectivas morais fundamentais à reprodução, como a preferência por
filhos geneticamente vinculados aos genitores como condição para a realização reprodutiva,
além das normas de gênero atreladas à maternidade e à paternidade.
Essa ampla difusão do conhecimento das novas tecnologias reprodutivas não pode ser atribuída
a uma suposta magnitude do problema da infertilidade dentro do contexto sanitário brasileiro,
mesmo que reste por ser conhecida a real prevalência do problema no Brasil. Além do papel da
mídia -sem dúvida o mais decisivo nesse caso-, parece contribuir para o interesse da população
pela reprodução assistida a importância que o próprio tema da ‘cura’ da infertilidade tem em
nosso país, mobilizando valores ligados à reprodução, à paternidade e à maternidade, que
sensibilizam bastante os indivíduos. O caso das novas tecnologias reprodutivas parece ter essa
particularidade, segundo a qual os tratamentos propostos gozam de enorme relevância, sendo
um fator capaz de antecipar-se a todos os outros na construção dos problemas aos quais se
dirigem. (Corrêa, 2001:141).
29
Diante deste contexto, inevitavelmente, aumentam as frustrações e ressentimentos de
quem vive os vários ciclos de tratamento sem alcançar a tão sonhada e prometida gravidez, ao
mesmo tempo em que alguns dicos e mídia divulgam as sofisticadas tecnologias como
capazes de realizar “soluções milagrosas” na infertilidade. Para aquelas que estão começando
no processo de busca e tratamento pelas novas tecnologias reprodutivas, permanece o
otimismo e a ideia de que tudo será mais fácil agora, com a ajuda de especialistas. Como
exemplo, segue o caso de uma paciente em consulta pela primeira vez no ambulatório de
reprodução humana do Hospital Moncorvo Filho. Segundo sua fala, “tomara que na
fertilização in vitro coloquem uns 3 ou 4 [embriões] e que vinguem todos, porque não quero
fazer várias vezes [o procedimento]” [sic D., 30 anos].
A fala desta paciente, a mesma que citou a apresentadora Fátima Bernardes como
referência de reprodução assistida, revela não apenas uma possível desinformação sobre os
riscos e procedimentos que precisaria passar para fazer uma Fiv, mas principalmente questões
de gênero ligadas à reprodução. Tentando engravidar desde os 18 anos, quando se casou,
nunca tomou anticoncepcional durante os 9 anos que permaneceu com o primeiro esposo.
Separada três anos do casamento e recasada dois com novo parceiro, trabalha e cursa
o 1º ano de Direito (antes, fez dois anos de Letras em universidade pública do Rio de Janeiro).
Diz que gostaria de ter apenas um filho(a), mas quando conversa sobre o assunto com o atual
marido, este diz que “quer ter um time de futebol” [sic]. Não que ele não tenha filhos. Com 35
anos, o parceiro tem 5 filhos (do casamento, tem 3 filhos - de 16, 18 e 19 anos; de outras
duas relações, tem mais um de 9 anos e outro de 2 anos e meio). Com o diagnóstico de
obstrução tubária, a paciente foi encaminhada para fertilização in vitro. No antigo posto de
saúde onde se consultava, chegou a demonstrar uma ideia simplificada das tecnologias
reprodutivas, perguntando para a médica “como se desobstruía [as trompas], que fazem até
desobstrução de artéria” [sic].
1.3. Gênero e tecnologias reprodutivas
Durante muitos anos, principalmente quando surgiram as novas tecnologias
reprodutivas, nas décadas de 1970 e 1980, poucos foram os estudos acadêmicos nas ciências
sociais e humanas voltados para a questão da infertilidade. No Brasil, por exemplo, apesar das
experiências de reprodução humana terem ganhado ampla divulgação midiática nos anos 80 e
30
90, não houve igual repercussão nem mesmo no campo da bioética, considerada um espaço
legítimo de discussão dos conflitos médico-tecnológicos da modernidade (Corrêa e Loyola,
2005). Segundo Diniz (2000), os raros estudos neste campo focam mais as questões jurídicas
e normativas de situações específicas da reprodução assistida como, por exemplo, a
comercialização do útero ou o destino de embriões excedentes do que as análises teóricas ou
etnográficas sobre a realidade brasileira.
Algumas hipóteses explicativas foram levantadas na literatura da área para este pouco
debate nas ciências sociais e humanas, principalmente nestas primeiras décadas de expansão
da RA no mundo. Van Balen e Inhorn (2002) sugerem que entre as principais hipóteses estão
o próprio processo da “medicalização” da infertilidade nas sociedades ocidentais, o “tabu”
ainda hoje existente em torno da sexualidade e da reprodução e o fato de a infertilidade ter
virado um assunto privado. Segundo estes autores, como a infertilidade tem sido, até hoje,
frequentemente elencada mais como uma condição médica do que um problema social digno
de análises sociais, suas pesquisas m ficado restritas aos domínios da medicina,
epidemiologia e psicologia médica. E mesmo nestas áreas, a situação é também agravada pelo
caráter privado da medicina reprodutiva, fazendo com que pesquisas e ensinos das novas
tecnologias reprodutivas chegassem ainda mais tardiamente às universidades brasileiras,
subvertendo a lógica do próprio conhecimento biomédico (Diniz, 2000).
A infertilidade também tem sido, ainda, relacionada a assuntos tabus na maioria dos
países ocidentais, “que legitimamente ou não, acabam reforçados na prática da reprodução
assistida pela questão do segredo dico e do anonimato nas trocas de material reprodutivo”
(Correa, 2001:19). Falar sobre a “ausência involuntária de filhos” pode causar desconforto por
permanecer associada à histórica relação entre sexo e reprodução, apesar das importantes
rupturas nessa relação ao longo do século XX, como a difusão dos contraceptivos, a
possibilidade de se escolher livremente os parceiros para o matrimônio, a escolha do próprio
estado civil de ser ou não casado, divorciado, solteiro, e o momento para a procriação ou não
(Loyola, 2003). No entanto, quando um casal não tem filhos, dúvidas sobre “fracasso” sexual
insistem em ser levantadas, por exemplo, principalmente para os homens, como se sofressem
de “impotência” ou alguma outra “disfunção” de sua virilidade masculina. Esta “ausência de
filhos” questiona os papéis de gênero na reprodução, a noção de parentalidade, de filiação, a
importância das crianças nas vidas de homens e de mulheres; questiona a própria definição de
família.
Além de assunto tabu, este também passou a ser um assunto privado. Conforme
apontam Van Balen e Inhorn (2002), após o movimento feminista, não ter filhos passou a ser
31
uma escolha individual ou do casal, um estilo de vida a partir de uma possível escolha
voluntária. Nos contextos igualitários modernos (ou pós-modernos), os filhos deixaram de ser
o principal objetivo para a constituição e a manutenção da família. Assim, a infertilidade
tornou-se um assunto particular, pessoal, de delicado trato para ser questionado por outras
pessoas (pelo menos em alguns estratos sociais). Sem saber se a ausência de filhos é ou não
um desejo da pessoa ou do casal, a infertilidade involuntária ficou ainda mais obscurecida.
Somente nas últimas duas cadas, áreas do conhecimento como a bioética, as
ciências sociais e os direitos humanos, por exemplo, passaram a discutir as novas tecnologias
reprodutivas como um dispositivo da biopolítica contemporânea, problematizando o
diagnóstico de infertilidade como critério de acesso à reprodução assistida.
Como consequência desta negligência acadêmica, muitas questões relacionadas à
infertilidade permanecem especulativas, polêmicas ou até desprezadas, do ponto de vista
sociológico, sendo adotada uma definição estritamente médica para infertilidade. Algumas
questões necessitam ser aprofundadas para se ter uma dimensão mais precisa e global da
atuação das novas tecnologias reprodutivas, considerando-se as variabilidades culturais,
econômicas e sociais dos diferentes grupos de homens e mulheres.
Mesmo dentre os estudos feministas, que tradicionalmente debatiam saúde e direitos
reprodutivos nas décadas de 70 e 80, poucas foram as pesquisas sobre reprodução assistida
(Diniz, 2000), permanecendo muito mais um discurso filosófico do que empírico (Van Balen
e Inhorn, 2002).
Enquanto a maioria das mulheres, nos anos 70, buscava um anticoncepcional ou um
aborto nas consultas ao ginecologista, nos anos 80 a demanda começou a mudar de maneira
substancial, girando principalmente em torno da infecundidade. Nesta década, os ideais
feministas sobre a luta pela libertação feminina ganhavam reforços pelo aperfeiçoamento da
contracepção, com o desenvolvimento e disseminação das pílulas anticoncepcionais, pela
defesa do parto sem dor com a anestesia peridural e pela institucionalização do aborto legal
em alguns países. Por isso, defender a reprodução assistida seria um retrocesso na luta pela
libertação feminina, segundo o chamado feminismo radical, que descrevia as tecnologias
reprodutivas, basicamente, como um perigo ao corpo das mulheres, um instrumento de
dominação, exploração e alienação masculina, uma conspiração “tecnopatriarcal” da indústria
farmacêutica contra a mulher (Preciado, 2002; Haraway, 2000). As tecnologias, em geral,
eram contextualizadas no processo de medicalização social, mas não como um poder
produtivo, que possibilitasse subversões e resistências em um contexto biopolítico.
32
Não se pode negar a fundamental contribuição das feministas radicais, principalmente
do início dos anos 1970, para a demonstração do corpo feminino como produto de uma
história política, e não simplesmente de uma história natural, ao ser analisado, pela primeira
vez, o vínculo entre tecnologia, ciência e reprodução sexual. Segundo Preciado (2002), esta
teria sido uma das principais rupturas epistemológicas do século XX. No entanto, este mesmo
feminismo reforçaria, contraditoriamente, esta suposta naturalização feminina que se quis
desconstruir, ao insistir que “a ciência e a tecnologia são pragas patriarcais a assolar a
superfície da natureza” (Silva, 2000:24), ao se acreditar que as técnicas envolvem,
necessariamente, dominação, apelando como resposta a um imaginário corpo orgânico que
pudesse organizar a resistência feminina (Haraway, 2000:50).
A maioria destas críticas feministas reclama uma revolução antitecnológica, pela qual os corpos
das mulheres se libertariam do poder coercitivo e repressivo dos machos e das tecnologias
modernas para fundirem-se com a natureza. De fato, a crítica feminista dos anos 70 e 80
desemboca em uma dupla renaturalização. (Preciado, 2002:122, tradução nossa)
Esta dupla renaturalização estaria no fato de algumas teorias feministas
essencializarem a mulher ao opor tecnologia e corpo feminino (ao invés de considerar esta
tecnologia responsável pela própria fabricação do “sexo”) e, ao mesmo tempo, reforçar o
suposto caráter essencial da reprodução ao reduzir as análises das tecnologias sexuais às
tecnologias reprodutivas. Preciado (2002) ainda atribui à importante desnaturalização
feminista do gênero, iniciada por Simone de Beauvoir, certo “fracasso”, pois a célebre frase
“não se nasce mulher” não teve sua versão masculina (“não se nasce homem”); as mesmas
análises de gênero não foram feitas aos homens e à masculinidade, assim como os lacanianos
dos anos 70 e 80 nunca questionaram, como o fizeram para a mulher, “se existe um homem”.
Neste momento do feminismo, a adoção de binarismos como naturezacultura,
femininomasculino, reproduçãoprodução mantinha a gramática normativa do sistema
sexo/gênero nas amarras e becos sem saída da velha oposição essencialismo/contrutivismo”
(Arán & Corrêa, 2009:3).
Sobre estes estudos feministas acerca da reprodução assistida, principalmente aqueles
desenvolvidos no final dos anos 1980, Van Balen e Inhorn (2002) atribuíram críticas também
à forma como atrelavam as tecnologias reprodutivas a uma glorificação da maternidade
tradicional, definindo as mulheres que buscavam estas tecnologias como vítimas culturais”
ou “terem falsa consciência”, com discursos opressores contra a maternidade enquanto
definidora do papel social da mulher. Segundo estes autores, feministas ou mesmo “mulheres
emancipadas” que passavam por problemas de infertilidade enfrentavam dificuldades para
33
revelar seus “desejos de filhos” e eram forçadas a esconder das outras suas buscas por
tratamentos de infertilidade, ocupando muitas vezes uma posição hipócrita ao denunciarem as
NTRc em artigos e conferências feministas.
No entanto, cabe destacar aqui que a posição das feministas frente à RA não era e
continua a não ser unânime. Segundo Arán & Corrêa (2009), foi necessária uma virada teórica
no campo feminista ao final dos anos 1980, particularmente com as contribuições de Judith
Butler e Donna Haraway, entre outras, para que se viesse a redefinir as relações entre gênero e
tecnologia. Esta nova vertente, não sem apresentar uma visão crítica frente à medicina
reprodutiva, considera as novas tecnologias reprodutivas (entre outras tecnologias) como uma
conquista da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, oferecendo possibilidades de
resistência e de empoderamento feminino.
Conforme apontado, tendo como referência o trabalho de Michel Foucault, estas
feministas deixam de atribuir o poder às tecnologias em si, às máquinas ou outros artefatos,
para atribui-lo às próprias relações entre tecnologias e sociedade, aos “jogos de verdades”
propostos por uma rede de saberes ligada às técnicas específicas que as pessoas utilizam para
entenderem a si mesmas. A técnica, conforme a visão foucaultiana, passa a ser concebida
como um dispositivo complexo de poder e de saber que integra instrumentos, discursos,
regimes do corpo, leis e regras que maximizam a vida, os prazeres do corpo e a regulação de
enunciados de verdade.
Assim, Judith Butler propõe pensar as novas tecnologias reprodutivas a partir das
normas reguladoras da sexualidade reprodutiva e de gênero, que têm base em uma matriz
heterossexual de inteligibilidade, podendo ser subvertidas ou não pelo acesso à reprodução
assistida. Butler rejeita a existência de uma identidade feminina”, conforme defendia a outra
vertente feminista, que estaria sendo submetida às tecnologias reprodutivas. Concorda que a
maternidade não seria a unidade ontológica da mulher, mas não defende um “corpo sexuado”
sendo dominado pelas tecnologias médicas ou pelas normas sociais de gênero. Conforme
discutido anteriormente, para Butler (1998), qualquer referência a um “corpo natural” no
discurso feminista impediria analisar os sujeitos gendrados a partir de sua construção e
variabilidade cultural.
Isso não quer dizer que Butler negue a existência de diferenças entre os corpos, mas
estas diferenças ganhariam importância discursivamente, a partir de redes de significação e de
práticas sociais, sem que sejam identidades do indivíduo”. Como exemplo, Butler (2005)
analisa a comum afirmação de que uma mulher vai ao ginecologista justamente porque ela
tem, como “diferença sexual”, a capacidade de fecundar. A autora propõe uma inversão desta
34
afirmação: será que a mulher não iria ao ginecologista justamente porque sua subjetividade
tem sido constituída pelas normas que materializam seu corpo, a partir desta determinada
diferença? Questiona, assim, por que o corpo feminino deve ser subjetivado por sua
capacidade reprodutiva:
É um problema prático. Se você tem trinta anos e não pode engravidar, por razões biológicas ou
mesmo porque não deseja engravidar por razões sociais pouco importa-, você deve enfrentar
uma norma que regula seu sexo. É preciso uma comunidade singularmente forte, resistente (e
politicamente informada) em torno de você para atenuar o sentimento de fracasso, de perda, de
empobrecimento ou de imperfeição que você poderá sentir é preciso uma luta coletiva para
repensar a norma. Como é possível que uma mulher que deseja educar uma criança, mas que
não deseja estar grávida, ou ainda que não quer nem um, nem outro, possa viver seu gênero
sem experimentar um sentimento de derrota ou de imperfeição? (Butler, 2005:20, tradução da
autora).
Para Butler, o que realmente está em jogo são as normas e regras de inteligibilidade
nas discussões atuais de gênero e novas tecnologias reprodutivas. Nesta perspectiva, nero é
visto como o efeito de uma complexa tecnologia política que produz corpos, comportamentos
e relações sociais ao invés de algo intrínseco aos seres humanos.
Mas uma das contribuições mais inovadoras e polêmicas do feminismo
contemporâneo é a proposta de Donna Haraway, que traz a ideia do ciborgue para as
discussões sobre gênero e tecnologias. Para a autora, as relações entre pessoas e máquinas
tornaram-se tão íntimas na vida moderna que é impossível dizer onde começa e onde termina
cada uma delas. Somos todos ciborgues, um híbrido de máquina e organismo, rompendo
fronteiras e binarismos tão enraizados em alguns discursos, inclusive feministas, como
orgânicoinorgânico, naturezacultura, animalhumano, animal-humanomáquina, físiconão
físico.
Haraway (2000) propõe o ciborgue como uma criatura de um mundo pós-gênero, no
qual não existe o apelo a um estado ou unidade original, natural ou a uma identidade que
uniria as mulheres contra uma dominação masculina. Não que ela desconsidere a existência
de dominações; pelo contrário, em suas próprias palavras, “a necessidade de uma unidade
entre as pessoas que estão tentando resistir à intensificação mundial da dominação nunca foi
tão urgente” (ibidem:50), mas propõe uma mudança “ligeiramente perversa” de perspectiva.
Para Haraway, a resistência estaria nas próprias relações com as tecnologias, sendo
organizada por afinidades políticas em vez de por identidades. Sobre o movimento de
mulheres e a definição da própria categoria “mulheres” como identidade, a autora defende
que:
Não conheço nenhuma outra época na história na qual tenha havido uma maior necessidade de
unidade política, a fim de enfrentar, de forma eficaz, as dominações de “raça”, de “gênero”, de
“sexualidade” e de “classe”. Tampouco conheço qualquer outra época na qual o tipo de unidade
que nós podemos ajudar a construir tenha sido possível. Nenhuma de “nós” tem mais a
35
capacidade material para ditar a “elas”, a quaisquer delas, a forma que a realidade deve ter. Ou,
no mínimo, “nós” não podemos alegar inocência na prática dessas dominações. As mulheres
brancas, incluindo as feministas socialistas, descobriram a não-inocência da categoria “mulher”
(isto é, foram forçadas, aos pontapés e aos gritos, a se darem conta disso). Essa consciência
muda a geografia de todas as categorias anteriores; elas as desnaturaliza, da mesma forma que o
calor desnaturaliza uma proteína frágil. As feministas-ciborgue têm que argumentar que nós”
não queremos mais nenhuma matriz identitária natural e que nenhuma construção é uma
totalidade. A inocência, bem como a consequente insistência na condição de vítima como a
única base para a compreensão e a análise, causou suficientes estragos. (Haraway, 2000:57-
58)
Assim, Haraway propõe que as tecnologias de comunicação e as biotecnologias são
ferramentas cruciais para a remodelação de nossos corpos, impondo novas relações sociais
para as mulheres e outras redes de forças, que integrariam políticas de coalizão em todo o
mundo, sem que se constitua um domínio tecnológico, mas antes um sistema histórico que
depende de relações estruturadas entre as pessoas. Ciência e tecnologia, ao invés de
representarem técnicas “demonizadas”, são investidas politicamente pela autora como fontes
renovadas de poder, apropriadas de forma politicamente responsável por nós, ciborgues. “A
tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está
dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões e é importante saber quem é que é feito
e desfeito” (ibidem:36). Segundo a autora, rejeitar simplesmente as novas tecnologias
reprodutivas não contribui para o empoderamento das mulheres, para o conhecimento e
avaliação dos riscos e possibilidades individuais e sociais de se submeter ao processo da
reprodução assistida.
As discussões sobre as novas tecnologias reprodutivas parecem, no contexto atual do
feminismo, não estar mais no nível de binarismos como naturalartificial, masculinofeminino,
sexogênero, pelo menos não na teoria queerde Judith Butler, no manifesto ciborguede
Dona Haraway, ou no manifesto contra-sexual de Beatriz Preciado
10
. O que importam o
as possibilidades de resistência, de subversão, de inteligibilidade e de reprodução social que
estas tecnologias proporcionam, são as questões políticas das tecnologias reprodutivas, as
normas e regulações sociais a elas associadas, ou melhor, por elas corporificadas, que
realmente importam; segundo Haraway, saber “quem vive, quem morre e a que preço”.
O debate levantado por estas e outras autoras é, então, o mesmo definido como sendo
a principal questão desta dissertação: quais normas estão presentes nas práticas de saúde
relativas às novas tecnologias reprodutivas e o que pode ser revelado a partir destas práticas
normativas? Discutir a problemática do acesso à reprodução assistida tornou-se essencial no
contexto da biopolítica contemporânea, por evidenciar contradições inevitáveis nas relações
10
Preciado (2002) propõe estudar de que modos específicos a tecnologia “incorpora”, se “faz corpo”. Ela está mais
interessada, sob o ponto de vista contra-sexual, justamente na “relação promíscua entre a tecnologia e os corpos” (p.127). E
para esta discussão sobre sexo e tecnologia, parte de duas grandes metáforas do século XX: do robô e do ciborgue.
36
entre os sexos e com relação à reprodução social. E é justamente por isso que falar em
protagonismo e empoderamento das mulheres torna-se um enorme desafio neste campo (Arán
& Corrêa, 2009).
1.4. Diagnóstico de infertilidade: uma questão de acesso?
Principalmente a partir dos anos 1960, mudanças significativas têm provocado novas
formas de sociabilidade: o ideal de “família nuclear” tem vivenciado profundas
transformações no ocidente, com os questionamentos do movimento feminista pelo direito à
contracepção, ao aborto e ao divórcio, o que promoveu a popularização da pílula
anticoncepcional, a desvinculação entre sexo e procriação, o deslocamento das normas de
gênero pela inserção das mulheres na esfera pública. Também o movimento homossexual,
principalmente a partir da década de 1980, tem contribuído para estas transformações, pela
reivindicação de visibilidade e legitimidade a suas formações familiares e expressões afetivo-
sexuais, problematizando a normatividade do casamento, da parentalidade e da filiação.
Mas para diversos autores
11
foram as novas tecnologias reprodutivas que
revolucionaram os processos biotecnológicos, provocando transformações inimagináveis nas
relações entre sexualidade, reprodução e gênero. As intervenções e pesquisas em reprodução
humana não são recentes. Data ser de 1770 a primeira descrição da fecundação como o
encontro do óvulo com fluido seminal, pela literatura italiana, com experimentos realizados
em animais. Em humanos, os experimentos datam do final do século XVIII, com o uso de
inseminação artificial para fertilização em 1790, na Inglaterra. O que estes estudos traziam em
comum era a identificação da necessidade da participação dos dois sexos na procriação de
mamíferos, postulada como verdade na ciência ocidental moderna apenas em 1906 (Dossiê
Reprodução Humana Assistida, 2003:7; Oliveira, 2004 apud Medeiros, 2007:32).
No entanto, foi a partir da descoberta do DNA e do anúncio da clonagem da ovelha
Dolly, no final dos anos 90, que as discussões em torno das novas técnicas de reprodução
humana ganharam maior visibilidade e fôlego, apresentando um verdadeiro paradoxo com
seus avanços biotecnológicos. Ao mesmo tempo em que continuaram a demonstrar a
necessidade do contato entre óvulo e fluido seminal para a fecundação em mamíferos,
11
Corrêa, 1997, 2001, 2005a; Arán & Corrêa, 2009; Diniz & Buglione, 2002; Ramírez-Gálvez, 2003; Van Balen & Inhorn,
2002; Strathern, 1992; Rohden, 2002a, entre outros.
37
proporcionaram possibilidades de esse encontro ser realizado independentemente do ato
sexual. A necessária (até então) participação dos dois sexos na procriação de mamíferos
poderia ser feita de diversas maneiras, possibilitando variados arranjos e formas de
procriação, rupturas no modelo hegemônico de formação familiar, de parentalidade, de
filiação. Ao trazerem a fecundação para fora do corpo humano, as novas tecnologias
reprodutivas, particularmente as fertilizações in vitro, provocaram colapsos, deslocamentos,
fraturas nos antigos binarismos naturalartificial, biológico/social, sexogênero.
Sem necessariamente depender do intercurso sexual entre homens e mulheres, o uso
das NTRc poderia ser expandido, então, a pessoas celibatárias, em relações homossexuais, a
mulheres na menopausa ou até mesmo a mulheres virgens, sendo possível a fecundação com
doação de material reprodutivo humano de terceiros.
No entanto, conforme discutido nos subitens anteriores sobre sexualidade, reprodução,
gênero e tecnologias reprodutivas, o que parece estar em jogo neste paradoxo é, justamente, o
caráter político das tecnologias reprodutivas, tão bem discutido por Butler, Haraway e outros
autores. Definir quem pode ou não ter acesso à reprodução assistida tornou-se, implícita ou
explicitamente, a pergunta chave das discussões sobre o tema nas ciências sociais. Entender
quais normas de gênero e de reprodução social estão presentes nas práticas de saúde na área
de reprodução humana tornou-se essencial para compreendermos o quanto, mais uma vez, a
política atravessa (ou melhor, constitui) a ciência.
Ao possibilitar que as fronteiras fossem deslocadas, as técnicas de reprodução
assistida expandiram os limites do modelo heterossexual de reprodução e da própria
inteligibilidade cultural. No entanto, na prática, pensar a procriação sem necessariamente
haver relação sexual tem enfrentado diversos discursos conservadores e restrições ao acesso
das tecnologias reprodutivas por quem não se enquadra na matriz heterossexual de procriação
eou no modelo socioeconômico de reprodução social. Pensar a relação sexual sem
necessariamente haver procriação pode ser visto, nas sociedades ocidentais e segundo o
modelo moderno
12
de reprodução e controle da sexualidade, como uma conquista de direitos
sexuais e reprodutivos. No entanto, o mesmo raramente tem acontecido quando a procriação
ocorre sem necessariamente haver trocas sexuais entre os parceiros (isso quando uma
parceria). O que vemos é a persistência da elaboração de um tipo-ideal” de trocas conjugais
12
Principalmente após mudanças no modelo de reprodução e controle da sexualidade, a partir do século XX, a escolha livre e
individual do cônjuge passou a ser estimulada com base no amor-paixão, sendo possível tanto o rompimento do vínculo
conjugal (divórcios e separações) a qualquer momento, quanto posteriores recasamentos. Neste modelo, a divisão dos papéis
de gênero tornou-se menos rígida, existindo uma igualdade jurídica e social entre os sexos, baseada em direitos sexuais e
reprodutivos, e a identidade deixou de ser familiar para ser individual (Loyola, 2003).
38
nas sociedades contemporâneas (Loyola, 2003; Peixoto, 2007), evidenciado nos discursos
conservadores sobre “a crise da família” ou sobre a legitimidade de uma “ordem simbólica”
cultural. Segundo estes discursos, tudo depende de quem e de como se está reproduzindo, seja
no aspecto biológico, seja no aspecto social.
Com relação à reprodução biológica, o uso das tecnologias reprodutivas por mulheres
virgens, solteiras ou por casais homossexuais, por exemplo, é criticado por diversos atores
sociais, desde alguns médicos ou juristas aa população em geral. Conforme visão crítica de
Arán (2005), tentando garantir a hegemonia de um padrão heteronormativo para a
conjugalidade e para o parentesco, é comum encontrarmos argumentos de especialistas e
acadêmicos, principalmente lacanianos e outros psicanalistas, contra a filiação homoparental,
incluindo o uso das novas tecnologias reprodutivas para fins reprodutivos. Com base em uma
suposta necessidade de se manter uma “ordem simbólica” nas configurações familiares, estes
autores acreditam que a heterossexualidade é um imperativo para se pensar filiação, que as
relações homossexuais negariam a também suposta necessidade da “diferença entre os sexos”
para a constituição da identidade sexual da criança. Apesar da articulação de diversas contra-
argumentações, apontadas por diferentes autores
13
, a explicação continua a ser
frequentemente usada para se restringir o acesso às novas tecnologias reprodutivas oferecidas
por vários serviços de saúde no mundo.
Segundo Iacub (1999), não limites à liberdade procriativa quando esta é realizada
por casais heterossexuais, em idade fértil, sem nenhum diagnóstico de infertilidade. No
entanto, a autora destaca que basta precisar de recursos tecnológicos para a realização da
procriação, mais precisamente das NTRc, para que o “desejo de ter filhos” seja colocado em
xeque e decisões bioéticas e jurídicas do Estado definam “quem pode e quem o pode” ter
acesso à reprodução assistida. Assim, o uso destas tecnologias para “ajudar uma suposta
natureza reprodutiva” e possibilitar a realização do desejo de filhos” de casais
heterossexuais, casados ou em união estável, em idade reprodutiva, que tenham algum
diagnóstico de infertilidade, “retiraria” o caráter de artificialidade da técnica, garantindo a
renaturalização da procriação (tecnológica). No entanto, o mesmo raciocínio não é válido
quando este “desejo de filhos” é expresso por casais homossexuais, pessoas solteiras, ou
mesmo por mulheres que, em tratamento reprodutivo, desejam continuar sem seus
parceiros.
13
Para aprofundar a discussão, ver Strathern (1995), Iacub (1999), Butler (2003a), Fassin (2005), Arán (2005), Peixoto
(2007), entre outros.
39
“Estou brigada com ele, me separei e não tenho boa relação... não posso continuar sem ele?”,
perguntou a jovem, de 23 anos, em sua segunda tentativa de continuar o tratamento sem o
marido. Explicou para a médica que ela brigou com o marido após ele ter tido um filho de outro
relacionamento, há 1 ano. Nos exames já trazidos pela paciente em consulta anterior, o laudo da
histerossalpingografia (HSG) indicou passagem de contraste em ambas as trompas, mas o
espermograma acusou baixa contagem, sendo o marido encaminhado para o andrologista. A
médica certificou-se de que o casal ficou 2 dias sem manter relações sexuais antes do
espermograma. A jovem insistiu: não posso continuar sem ele?”, e a médica responde: não
para ficar sozinha, tem que ter um marido para engravidar” [grifos nossos]. Como
alternativa, a paciente sugeriu: “posso continuar, então, se eu me casar com outro homem?”.
Como encaminhamento, a médica pediu outro exame de espermograma do marido [com quem
a paciente já não vive mais, está hoje morando na casa da mãe dela], e que ele se consultasse no
andrologista, lembrando que “marcar andrologista é demorado, tem que ter a colaboração dele”
[sic]. Sem alternativas, a jovem terminou a consulta dizendo que iria falar com ele, mas saiu
nitidamente desanimada. Em conversa posterior com a médica, a observadora perguntou sobre
a continuidade da paciente no ambulatório se ela não quisesse mais voltar com o marido e a
médica comentou que às vezes vai e volta no relacionamento, é comum isso acontecer” [sic].
Pelo resultado “péssimo” do espermograma, a médica colocou em dúvida se o filho de 1 ano
seria mesmo do marido da jovem.
O exemplo descrito acima revela, mais do que uma norma procriativa na fala da
médica, questões de nero encontradas também em outras observações, como a recusa do
parceiro em ir ao andrologista ou, em outros casos, até em realizar o espermograma. Também
não foi incomum o marido ou parceiro ter tido, durante o casamento, filhos em
relacionamentos extraconjugais. Mas estas questões devem ser aprofundadas mais adiante
nesta dissertação.
Este exemplo também revela uma limitação do próprio ambulatório, que a o final
das observações de campo não dispunha nem de inseminação artificial, nem de fertilização in
vitro. De fato, estas mulheres em tratamento neste serviço precisam manter relações sexuais
para tentar engravidar, sendo auxiliadas por medicamentos e coitos programados
14
. No
entanto, poderíamos dizer que ganham destaque neste diálogo: a ênfase médica à necessidade
de um “marido” e a alternativa imediata da jovem de um “novo casamento”.
Atrelado a estas discussões, diversos autores têm apontado para o problema da
(in)definição e imprecisão do diagnóstico de infertilidade, que também tem servido para
restringir inúmeros acessos às tecnologias reprodutivas, principalmente quando a busca é feita
por casais homossexuais, sem necessariamente apresentar “disfunções reprodutivas”. Segundo
Arán & Corrêa (2009), a desigualdade “natural” das performances corporais face à procriação
biológica serve como critério negativo para impedir o acesso a indivíduos ou casais
homossexuais, por exemplo, para quem as tecnologias reprodutivas seriam eficazes, da
mesma forma que o são para os heterossexuais inférteis, evidenciando-se o caráter político de
tal intervenção.
14
Indicação médica para relações sexuais durante o período ovulatório, identificado pelo acompanhamento ultrassonográfico
do crescimento folicular.
40
Seguindo o método genealógico de Foucault
15
, a infertilidade enquanto diagnóstico
clínico teve origem no desenvolvimento da técnica de fertilização in vitro. Para Sandelowski
& Lacey (2002:34), a infertilidade foi descoberta ou, mais precisamente, criada
discursivamente quando in-fertilidade tornou-se possível”
16
. Segundo estes autores,
enquanto o termo barrenness (incapacidade de procriar) era usado para dar a conotação de um
curso divino, de proporções bíblicas, e sterility (esterilidade) uma condição física
absolutamente irreversível, o termo infertility (infertilidade) foi criado para identificar um
estado médico e socialmente delimitado, cujos efeitos recaem sobre as pessoas que estão na
fronteira entre uma “incapacidade” e uma “capacidade” reprodutiva, ou seja, pessoas que
“ainda não estão grávidas”, mas que têm esperança de engravidar e levar para casa um bebê
(ibidem: 35). As novas tecnologias reprodutivas seriam, então, precursoras da infertilidade,
mais do que uma resposta a ela.
Algumas infertilidades podem ter diagnósticos bem definidos, como no caso de
obstruções tubárias, anomalias uterinas, endometriose, disfunções hormonais, disfunções
ejaculatórias, varicocele, causas imunológicas, entre outras. No entanto, a etiologia da
infertilidade permanece incerta, sendo implicadas variáveis biológicas, comportamentais,
psicológicas e socioculturais diversas, chamando a atenção o elevado número de diagnósticos
imprecisos nas práticas de reprodução assistida. De fato, pelo menos 13 destes diagnósticos
são de infertilidade indefinida, sendo raros os dados comparativos epidemiológicos,
estatísticos e de pesquisas sociológicas sobre a incidência das infertilidades, por exemplo, no
Brasil (Corrêa, 1997, 2001). Esta imprecisão refletiu-se nos atendimentos observados em
campo:
“[O ovário policístico] pode dificultar a gravidez, mas não seria a causa da infertilidade, nem
das dores que você sente durante a relação sexual” [sic], explica a residente à paciente de 28
anos, em consulta de vez, que tenta engravidar mais de 6 anos. Segundo a paciente, seu
“problema” [sic] foi descoberto em exame ginecológico de rotina; fez muitos exames e
passou por vários médicos que falavam sobre o cisto, que iriam tratar disso, mas nunca
passaram nenhum remédio para isso” [sic].
Em consulta de 1ª vez, a paciente de 31 anos trouxe resultados recentes de exames de sangue,
de imagem e espermograma feitos em laboratórios particulares pelo plano de saúde. Tentando
engravidar 6 anos, diz que o marido operou varicocele 10 anos, mas que nunca fez
tratamento de infertilidade, nem tem filhos. Ela, apesar de também nunca ter feito tratamento
para engravidar, fez diversos exames para investigar infertilidade. O casal se submeteu ao
exame s-coito, quando apenas um espermatozoide foi encontrado vivo, segundo a paciente.
Observando os exames, a médica comenta: “pelos exames, parece estar tudo normal” [sic].
Tanto o espermograma quando a histerossalpingografia apresentaram laudos normais”.
Segundo a médica: um caminho seria investigar as infecções ou hormônios, senão pode cair
no caso de esterilidade sem causa aparente” [sic]. Aproveitando que a cliente tem plano de
saúde, fez o pedido de novas ultras e exames de sangue.
15
Sobre o método, ver: Foucault, M. Nietzche, a genealogia e a história In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal:
1979: p.15-37.
16
Tradução nossa do inglês.
41
“Tem alguma coisa errada? Porque os exames mostram que tudo correto...”, pergunta a
paciente, de 35 anos, sobre os exames que levou para a consulta de vez. Em 13 anos com o
ex-marido, nunca tinha engravidado. Casada novamente 2 anos, engravidou em
dezembro2007 e julho2008, sofrendo aborto espontâneo em ambos os casos. A residente,
durante exame ginecológico da paciente, explicou que seu diagnóstico não seria o de “aborto
habitual, pois teve 2 abortamentos e o diagnóstico pede 3” [sic]. Sempre muito atenciosa,
respondeu à cliente que nem todos os exames foram feitos, mas que os que você trouxe
revelam que está tudo ok” [sic], incluindo o de espermograma.
“Eu não entendo, porque tudo normal e eu não consigo engravidar”, desabafa a paciente, de
37 anos, no ambulatório desde agosto2006, aguardando inseminação artificial no serviço. A
médica, bastante atenciosa na consulta, tenta ser solidária dizendo: essa é a parte mais difícil,
porque se não desse normal, tinha uma justificativa, né [...] tanto os seus exames quanto os dele
estão normais, o que é uma boa notícia” [sic]. A paciente o pode fazer o exame de
histerossalpingografia porque tem alergia ao iodo. Procurando achar um diagnóstico para o seu
caso, a paciente continua: “às vezes, eu fico pensando no que eu fiz... porque fiz um aborto”
[sic]. A médica, talvez numa tentativa de amenizar o sentimento de culpa da paciente, aponta
que “a mobilidade do seu marido também não é o melhor dos mundos, pode ser um pouquinho
de cada um” [sic], referindo-se à possível causa para a “infertilidade”.
Neste último caso descrito, desde a primeira consulta o principal diagnóstico anotado
no prontuário foi o de infertilidade secundária”. A paciente foi encaminhada ao serviço com
suspeita de “endometrite”, diagnóstico descartado na quarta consulta, após
videohisteroscopia. A anotação sobre “história de aborto provocado antes” ou de
“infertilidade secundária” aparece em quatro das dez consultas anotadas no prontuário. No
ambulatório, a paciente foi orientada sobre coito programado, tendo ovulação induzida com
medicação, monitorada com ultrassonografia. Passou por três ciclos de tratamento, o
obtendo resultado. Em fevereiro de 2008 foi encaminhada para inseminação artificial, a qual
vem aguardando ter no serviço desde então.
De fato, o aborto tem sido uma importante causa de esterilidade tubária, tornando-se
um problema de saúde pública em muitos países em desenvolvimento, como no Brasil. Por
ser considerado crime no país (permitido legalmente apenas em caso de estupro e de risco
iminente de vida da mãe), ele é praticado clandestinamente, em geral em condições precárias
de saúde, provocando infecções pós-aborto ou curetagens inadequadas (Corrêa, 2001). No
entanto, o ciclo aborto clandestino infertilidade reprodução assistida descrito por Corrêa
parece tornar-se ainda mais pernicioso na medida em que a própria prática do aborto vira
sinônimo de um diagnóstico: o de “infertilidade secundária”. Em uma área na qual todas as
pacientes “desejam ter filhos”, o aborto provocado é fortemente rechaçado o apenas por
aquelas que nunca o fizeram, mas principalmente por quem passou pela experiência no
passado.
Em consulta psicológica, a paciente chorou ao revelar que fez um aborto aos 16 anos, quando
engravidou no primeiro mês do seu primeiro namoro. Era a revelação de um segredo,
compartilhado apenas pela paciente e seu antigo namorado. Na época, ambos adolescentes
ficaram com medo da reação de suas mães, achando melhor abortar. Ela tomou citotec em casa
e não foi ao médico. Anos mais tarde, precisou retirar um ovário com cisto [sem precisar se foi
42
decorrente ou não do aborto]. Pela primeira vez no ambulatório, hoje tem 26 anos e tenta 9
engravidar. Ficou casada dos 16 aos 21 anos com este namorado e es 2 anos namorando
um homem de 45 anos, que tem 4 filhos maiores de idade [um falecido no ano passado]. A
paciente está arrependida do aborto, diz que Deus deve tê-la castigado. “É um pecado fazer isso
com uma pessoa... no fundo eu não queria fazer isso quando tomei o remédio” [sic]. Hoje
que a mãe teria dado apoio, já que sua irmã também engravidou com 15 anos, um pouco depois
dela, e não foi expulsa de casa. Lamenta que a irmã esteja com o filho de 7 anos, morando com
o pai da criança, e ela não. A paciente recebeu apoio da psicóloga, que tentou contextualizar o
momento no qual ela vivia quando fez o aborto, pedindo para que não se culpasse pela
alternativa encontrada no passado.
O estigma da infertilidade secundária é revelado, muitas vezes, na própria atuação
médica, principalmente quando o aborto é realizado na adolescência. A observação de outra
paciente pode ser bastante ilustrativa, se partirmos da análise do prontuário e da fala da
residente que a atendeu. Primeiro, pela análise do prontuário, a paciente de 34 anos fez
triagem no ambulatório em abril1998, aos 24 anos. Seu prontuário é extenso, com vários
exames anexados e muitas páginas de anotações.
em sua consulta, em agosto98, a “esterilidade secundária” é anotada como um
“diagnóstico provisório” [sic]. Tentando engravidar desde os 21 anos, a paciente provocou um
aborto com citotec aos 16 anos. Nesta primeira consulta foram pedidos os exames de
espermograma e de histerossalpingografia, realizados apenas em 20032007 e em 08072008,
respectivamente. A paciente voltou por quase dois anos às consultas sem os exames (em
041198, 010399, 190599, 040899, 250899, 260700, 130900), quando abandonou o
serviço. Eventualmente, trouxe o preventivo e fez tratamento para infecção de repetição, mas
nenhum exame para diagnosticar a infertilidade.
Fez nova triagem em 210606, sendo encaminhada pelo ambulatório geral à
reprodução humana novamente com o diagnóstico de esterilidade secundária”. Em 110706,
o destaque para a anotação aborto provocado em 93, 10 anos sem AC”
(anticoncepcional). Voltou em 150806 sem os exames de espermograma e HSG, recebendo
novos pedidos em 301006, quando novamente foi anotada a “esterilidade secundária” em seu
prontuário e a retirada de pólipo do útero em 190506. Na consulta de 290107, trouxe
preventivo recente e outros exames antigos (ultrassonografia de 2003 e videohisteroscopia de
241005). Em 060307 fez exame ginecológico e, finalmente, em 270307, trouxe o
espermograma do marido, que foi encaminhado para a andrologia. Nas próximas 4 consultas
(200607, 150807, 090108, 190508), nenhum exame foi realizado, nem o andrologista
marcado. No entanto, em 190508 a paciente já estava com 34 anos, dizendo estar com a HSG
marcada para julho. Por isso, foi orientada a tomar uma medicação até 10 dias antes do exame
para controle. A paciente revelou que foi traída e que o marido teve um filho (agora com 1
ano de idade) de outro relacionamento. Foi solicitado um novo espermograma: “caso
43
resultado confirme o 1º exame, não há necessidade de HSG. Se o resultado for diferente, HSG
e “adequação” do caso” [sic].
Finalmente, em 060808 chega o resultado “normal” do HSG, sem que o
espermograma tenha sido refeito. Na última consulta, em 061008, a paciente revela que está
grávida, sendo anotado no prontuário pela residente que a atendeu: “Reprodução Humana⁄⁄
Infertilidade 2ª; idade: 34 anos; DUM: ?0808; paciente trouxe BHCG positivo de 250908,
refere náuseas. Conduta: enc. Pré-natal” [sic].
Passaram-se quase 10 anos sem uso de anticoncepção, sem gravidez, sem exames, sem
diagnóstico de infertilidade, a não ser a constante e reafirmada infertilidade secundária.
Assim que a paciente revelou estar grávida na consulta, mostrando o BHCG positivo, a
residente imediatamente parou de procurar no prontuário a anotação da última visita. Ao
pedido da paciente para um encaminhamento de pré-natal, a residente respondeu mas
engravidou, não tem mais nada a ver com a gente, o pré-natal não é feito aqui [sic, grifo
nosso]. A paciente precisou especificar que, para realizar o pré-natal no hospital próximo de
sua residência, precisaria de um encaminhamento formal do ambulatório, o que foi feito.
Mesmo grávida, na última anotação do prontuário, lá está a “Infertilidade 2ª”.
Quando questionada pela observadora desde quando a paciente estava no ambulatório
e qual era seu diagnóstico (a leitura do prontuário foi feita posteriormente à consulta pela
observadora), a médica residente reclamou da “bagunça” do prontuário, dizendo que “são
esses casos de aborto que dão infecção, esterilidade secundária” [sic].
Assim, as anotações de campo apresentadas acima revelam difíceis momentos que, em
geral, tanto pacientes quanto médicos vivenciam na longa jornada pela definição de
diagnósticos de infertilidade, que além de não serem precisos em muitos casos, quase nunca
garantem que, se tratados, resultarão em gravidez.
Depois de ler vários exames e anotá-los no prontuário, a médica se assegura de que a paciente
entendeu a razão de tantos pedidos de exames. A paciente, de 32 anos, em tratamento no
ambulatório desde junho de 2006, diz que sim, que é por causa da cirurgia de endometriose que
terá de fazer. “Como seu marido é normal, deixamos uma alternativa... de pensarmos que
tem relação com essa endometriose [a dificuldade de engravidar]. [...] A cirurgia não é garantia
[de gravidez], porque pode ou não dar para deixar a trompa... essa é uma alternativa, não é o
tratamento final. Se não der certo, a gente tenta outros procedimentos...” [sic médica].
A imprecisão dos critérios de definição da categoria de infertilidade, apontada pela
literatura médica e das ciências sociais, é também revelada na variabilidade encontrada para
as taxas de infertilidade, que chegam a ser de 10% para alguns autores, e 20% ou mais para
outros. Estas porcentagens também dependem de variações culturais, de políticas de saúde e
de idade reprodutiva, por exemplo. Podem ser mais altas em países onde maior número de
44
infecções por doenças sexualmente transmissíveis, ou em sociedades nas quais as mulheres
têm esperado mais tempo para ter filhos, após alcançar estabilidade profissional, por exemplo,
avançando na idade procriativa. As incidências também variam de acordo com o tempo de uso
de contraceptivos ou mesmo com o número de separações e de recasamentos.
A própria definição do conceito de infertilidade disseminada globalmente pela OMS é
arbitrária, se considerarmos que para diversas culturas um ano (ou dois) de relações sexuais
sem gravidez pode ser um longo tempo de estigmatização. Van Balen e Inhorn (2002)
defendem que na definição adotada para infertilidade não são consideradas variações
regionais e subjetivas do que se entende por ausência de filhos, muito menos de como se
experiencia essa ausência. Não ficar grávida entre o primeiro ou segundo mês de casamento
pode trazer grande desconforto para o casal ou mesmo o fim de um relacionamento se a
criança não for gerada em um ano de casamento, em algumas sociedades; ou ainda, o fato de
ter apenas um ou poucos filhos pode ser considerado infertilidade em comunidades para as
quais a normalidade” é ter uma prole extensa, com mais de sete ou oito filhos. Em algumas
culturas, não gerar filhos homens pode ser socialmente equivalente a não ter filho nenhum.
Outros debates são levantados a partir da (in)definição da infertilidade, como a adoção
do conceito de casal infértil” para ampliar o campo da reprodução humana e de especialistas
envolvidos (Ramírez-Gálvez, 2003), como o caso do andrologista, citado nas observações de
campo descritas acima, ou para reforçar o permanente esforço da medicina e da ordem
jurídica em ocultar o lado “subversivo” potencialmente ligado às tecnologias reprodutivas,
tratando homem e mulher como se fossem uma só pessoa (Arán & Corrêa, 2009).
Com relação às normas de reprodução social, também escondidas atrás da adoção do
diagnóstico de infertilidade para o acesso às NTRc, estas serão analisadas no próximo
capítulo, em conjunto das políticas de saúde reprodutiva brasileiras. Assim, finalizamos este
primeiro capítulo trazendo de volta uma dúvida apresentada na introdução deste trabalho,
apontada inicialmente por Corrêa (1997, 2001) e Diniz (2002): é difícil definir, a priori, o que
efetivamente as tecnologias reprodutivas estariam solucionando, se uma ausência
involuntária de filhos” ou se uma “doença”, no sentido médico do termo.
O fato desta “ausência involuntária de filhos” nem sempre ser devida a alguma
“deficiência reprodutiva” mostra, conforme discutido neste subitem, o quanto o diagnóstico
de infertilidade como critério de acesso para as novas tecnologias reprodutivas pode ser
considerado um dispositivo de poder que reitera as normas de gênero e de reprodução social
na biopolítica contemporânea.
45
2. REPRODUÇÃO ASSISTIDA E DIREITOS REPRODUTIVOS NO BRASIL
2.1. “Liberdade” reprodutiva: direitos, desejos e reprodução social
No capítulo anterior, a teoria foucaultiana de poder e biopolítica iniciaram a discussão
sobre como somos subjetivados pelas relações de forças e contingências nas quais
interagimos. Mas foi na passagem da sociedade disciplinar para a de segurança, na análise
sobre a governamentalidade, que Foucault (2008) destacou o que até hoje impera nos assuntos
sobre subjetividade e individualidade: o “desejo”.
Segundo Foucault, a formulação de uma naturalidade dos fenômenos populacionais,
atrelada à nova noção de espécie humana e de sujeito, permitiu uma mudança importantíssima
na organização e na racionalização dos todos de poder. Constituída agora pela ideia de
indivíduos diferentes entre si, cujos comportamentos poderiam ser “imprevisíveis”, a
população estaria unida, segundo o liberalismo iniciado no século XVIII, por pelo menos uma
“invariante” que seria, assim, seu motor de ação: o desejo (ibidem:95).
O desejo – velha noção que havia feito sua aparição e que havia tido sua utilidade na direção de
consciência [...], o desejo faz aqui, pela segunda vez agora, sua aparição no interior das técnicas
de poder e de governo. O desejo é aquilo por que todos os indivíduos vão agir. Desejo contra o
qual não se pode fazer nada. Como diz Quesnay: você não pode impedir as pessoas de virem
morar onde consideraram que será mais proveitoso para elas e onde elas desejam morar, porque
elas desejam esse proveito. Não procure mudá-las, elas não vão mudar. Mas – e é aqui que essa
naturalidade do desejo marca a população e se torna penetrável pela técnica governamental
esse desejo, por motivos sobre os quais será necessário tornar e que constituem um dos
elementos teóricos importantes de todo o sistema, esse desejo é tal que, se o deixarmos agir e
contanto que o deixemos agir, em certo limite e graças a certo número de relacionamentos e
conexões, acabará produzindo o interesse geral da população. O desejo é a busca do interesse
para o indivíduo. O indivíduo, de resto, pode perfeitamente se enganar, em seu desejo, quanto
ao seu interesse pessoal, mas há uma coisa que não engana: que o jogo espontâneo ou, em todo
caso, espontâneo e, ao mesmo tempo, regrado do desejo permitirá de fato a própria população.
Produção do interesse pelo jogo do desejo: é o que marca ao mesmo tempo a naturalidade da
população e a artificialidade possível dos meios criados para geri-la. (ibidem:95)
Foucault reforça como as noções de desejo individual e de liberdade foram
fundamentais para que o dispositivo de segurança, elaborado pelos economistas do século
XVIII, pudesse ser estabelecido. A ideologia liberal, grosso modo, estaria baseada em deixar
as coisas acontecerem em sua “naturalidade” para que fossem autorreguladas, em um
princípio de liberdade comercial, possibilidade de movimento, de circulação tanto de pessoas
como de coisas, de liberdade de desejos. Segundo o autor, o liberalismo se traduziria em um
jogo cujo objetivo seria “deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem,
46
laisser-faire, laisser-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer de
maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os
princípios e os mecanismos que são os da realidade mesma” (Foucault, 2008:63).
No entanto, o que Foucault questiona é se a implantação destas medidas liberais
visava ou buscava, efetivamente, a liberdade” em primeira instância. E o que seria, afinal,
esta liberdade? Para o autor, a liberdade individual “é primeiramente e antes de tudo uma
tecnologia de poder” (ibidem:64). A reivindicação pela liberdade é, antes, uma das condições
de desenvolvimento das formas modernas de controle da sociedade, dos mecanismos de
segurança atrelados a noções até hoje defendidas como autônomas, como se não dependessem
de nenhuma variável ou relação de força, como a ideia de escolha, por exemplo.
Fortalecer o indivíduo foi, sem dúvida, necessário para que houvesse a união entre os
homens contra o poder soberano e a tirania, assim como foi importante ensinar-lhe que ele
tinha direitos e que poderia governar a si mesmo. Mas dizer que suas escolhas dependem de
um esquema voluntarista, que seus “próprios desejos” são atribuídos a uma naturalidade
retiraria toda a historicidade das relações de força e de subjetivações.
Quando se fala em escolha, imediatamente pensamos em liberdade. Seríamos, então,
sujeitos livres para avaliarmos os riscos e perigos de como escolhemos cuidar de nós mesmos,
de nosso bem-estar, de nossa capacidade de produzir e consumir. Mas por trás dessa
ideologia liberal é que nossos hábitos cotidianos e modo de vida poderiam, segundo Foucault,
tornar-se objetos das técnicas de segurança na modernidade, através dos processos
discutidos de normalização e subjetivação. “Agora só se pode governar bem se, efetivamente,
a liberdade ou certo número de formas de liberdade forem respeitados” (Foucault, 2008:475).
Está formado, para o autor, o paradoxo do liberalismo: a necessidade de uma liberdade, de um
livre jogo de interesses individuais, e a necessidade de um cálculo do risco de se “viver
perigosamente”, implicando na incitação de múltiplos mecanismos de segurança.
É neste contexto que poderia ser inserido, de um lado, o debate sobre o desejo de
filhos como expressão de uma liberdade procriativa e, de outro, o debate sobre as variadas
práticas de saúde que, utilizando a teoria foucaultiana, poderiam ser chamadas de mecanismos
de segurança e de normalização. Sem dúvida, este assunto mereceria longo e aprofundado
estudo
17
. No entanto, de forma compatível com a proposta de uma dissertação de mestrado,
pretende-se mostrar como este desejo tem servido de justificativa para o uso da reprodução
17
No campo da Bioética, a questão do desejo trazida aqui é referida no debate sobre o princípio da autonomia. Sobre este
assunto ver Diniz, Débora e Guilhem, Dirce. Os Limites da Teoria Principialista. In: O que é Bioética. São Paulo. Ed.
Brasiliense. 2002: 34-37.
47
medicamente assistida e, ao mesmo tempo, tem sido colocado em dúvida ou mesmo negado
em determinadas situações.
Conforme apontado por Corrêa (1997, 2001), as novas tecnologias reprodutivas teriam
sido desenvolvidas, segundo a visão biomédica, justamente em função de um “desejo
preexistente” de continuidade reprodutiva, uma demanda natural” direcionada à vida. De
fato, sem desejo de filhos não existiria infertilidade. Para a autora, é apenas no “desejo”
explícito de não se reproduzir, de não ter filhos, que a aplicação das tecnologias reprodutivas
encontraria limite, quando se torna explícito todo o processo de “naturalização” da
maternidade. O impacto social causado quando uma mulher diz que não quer ser mãe nos
remete, imediatamente, às discussões do capítulo 1 sobre normas de gênero e de reprodução.
Sendo assim, o ciclo de medicalização da infertilidadetem início, em geral, quando
uma pessoa ou um casal quer filhos, tornando a ausência destes uma ausência involuntária de
filhos. Sem este desejo, a possibilidade de se diagnosticar uma inhipofertilidade torna-se,
praticamente, inexistente. O termo praticamente foi usado nesta dissertação porque o processo
de medicalização está presente mesmo quando não se deseja ter filhos, sendo realizados
exames preventivos de rotina, semestrais ou anuais, ultrassonografias transvaginais e
investigações sobre a saúde reprodutiva feminina. O diferencial é que, mesmo se encontrado
algum problema ovariano, de útero ou hormonal, por exemplo, sem o desejo de filhos este
diagnóstico poderia não vir a ser traduzido como de infertilidade.
No campo médico, este desejo tem justificado todo o processo de medicalização da
reprodução assistida, as inúmeras tentativas que diversos casais fazem de inseminação e
fertilização in vitro, a adoção de uma never
enough quality
18
para as NTRc (mulheres
estimuladas ao extremo, o enfrentamento de questões de gênero e consequências emocionais
muitas vezes adversas em prol de uma “escolha livre individual”).
Com a medicina da reprodução e as novas tecnologias reprodutivas - nesse ponto muito
próximas ao senso comum -, o desejo é visto como o que conscientemente move o indivíduo
em suas decisões e ações, ou como fonte de suas realizações, identificável muitas vezes com a
ideia de vontade (Corrêa, 2001:177).
Assim, a decisão sobre os riscos e perigos de se submeter aos procedimentos e de
quando parar seria, então, individual ou do casal, uma decisão consciente e livre, em geral
sem que sejam consideradas pela biomedicina as debatidas normas de gênero e de
reprodução social implicadas nas nossas relações cotidianas, ancoradas em um discurso
neoliberal de autonomia e de responsabilidade pelos nossos próprios atos.
18
Termo usado por Van Balen & Inhorn (2002), traduzido por nós como “qualidade nunca suficiente”.
48
“Da última vez que vim aqui a médica falou que tenho mioma, que é cirúrgico, e falou que
tenho 42 anos, que posso ter filho com síndrome de down, que tem que fazer a cirurgia, mas
quero saber das possibilidades, quero ir aonde a medicina pode me ajudar... porque gorda
manda para a nutrição; ficando doida manda para a psicóloga...” (R. 42 anos, em
atendimento psicológico).
Assim que a paciente saiu da sala, a residente comentou que discordava sobre oferecer RA para
quem fez laqueadura: “elas têm que arcar com as consequências de suas decisões” [sic]
(Residente comenta sobre paciente laqueada de 37 anos, no ambulatório desde 2006).
Estes dois casos clínicos talvez nos auxiliem no debate proposto para este subitem. Em
ambos, estão inseridas questões que não são nada simples, nem para as pacientes, nem para os
médicos que trabalham no ambulatório. A intenção em trazê-los para a discussão não é a de se
chegar a um posicionamento favorável ou contrário, mas de entender que por trás do conceito
de liberdade existem contingências normativas e possibilidades de contracontrole e de
resistência.
O primeiro caso é de uma mulher de 42 anos, que chegou ao ambulatório de
endocrinologia do Hospital Moncorvo Filho no início de 2005, aos quase 39 anos, após dois
abortos espontâneos no 5° mês de gestação (aos 33 e aos 35 anos, respectivamente). Tenta
engravidar mais de 10 anos, desde que se casou. Foi encaminhada para a reprodução
humana em 2007, tentando desde então receber um diagnóstico ou encaminhamento para a
sua infertilidade. Esta tem sido sua principal queixa:
“[...] porque estou perdendo as forças; quero saber dos riscos, mas quero saber das
possibilidades também... estou envelhecendo na fila” (R., em consulta médica)
“Eu sei dos riscos da gravidez... meu marido tem muito medo desses riscos, ficou muito
nervoso com as orientações dos médicos porque tive já depressão quando perdi as duas
gestações [...] mas os médicos ficam toda consulta apontando esses riscos. Quero saber dos
médicos a postura deles, se tenho ou não chances de engravidar, pois eu já sei dos riscos [...] Os
médicos sempre repetem: Você sabe que com 42 anos é gravidez de risco, você pode ter um
filho com down, etc’ [...] Ter informação ajuda a pessoa a manter as esperanças, mas tenho
muitas críticas ao sistema de saúde [...] estou envelhecendo na fila”. (R, em consulta
psicológica pela primeira vez, após 3 anos no hospital)
Em ambas as consultas, a paciente mostrou-se bastante desiludida com o serviço
público de saúde, com a falta de perspectiva para o tratamento e com o longo tempo de
espera. Reclama de ser atendida cada vez por um médico diferente, acreditando que
informações são perdidas, apesar das anotações em prontuário; reclama da demora entre as
consultas no ambulatório (entre 2 e 3 meses); da influência da própria condição
socioeconômica no tratamento, considerando o serviço público inferior ao privado; mas o que
mais a incomoda é “cada vez escutar uma justificativa dica para o meu problema de
infertilidade, que agora o dois miomas grandes e vários pequenos [...] Agora os médicos
daqui dizem que tem que tirar os miomas antes de engravidar!” [sic].
49
A falta de um diagnóstico específico e de encaminhamentos faz com que, para a
paciente, seja difícil o exercício de sua “liberdade” procriativa. Neste caso, o paradoxo
apontado por Foucault se faz presente a cada interação entre paciente e serviço. De um lado, o
que a mantém no ambulatório é seu “desejo de filhos”, tanto no discurso da própria paciente
quanto no dos médicos:
“O tempo passa, o desejo continua e a ansiedade aumenta inevitavelmente” [sic psicóloga];
“Tem que ser conservador ao máximo porque seu desejo é ter filho, tem que tirar os miomas
sem mexer nas trompas... não se sabe se você fizer isso, se vai engravidar, mas isso tá
atrapalhando” [sic médica]; quando eu operei mioma com 29 anos, tomei anestesia geral e
quando acordei a primeira coisa que perguntei foi se o médico tinha tirado meu útero; eu não
tinha parceiro na época, mas já desejava ter filhos” [sic paciente em consulta com a médica].
De outro lado, este desejo é a toda consulta questionado pelos possíveis riscos de se
tentar uma gravidez aos 42 anos: mais uma vez, na última consulta, a médica falou destes
riscos: “mas também pode não ser [síndrome de down]; vai fazer o pré-natal e vai
acompanhar; as chances são maiores, mas bebês que nascem normais. Falamos isso antes
para a pessoa ter o direito de optar porque tem gente que depois que tem, diz que, se
soubesse, não teria engravidado” [sic médica].
É complexo pensarmos neste direito de optar considerando-se as condições dos
serviços públicos de saúde reprodutiva no Brasil, o contexto neoliberal no qual vivemos e as
diversas contingências sociais normativas de gênero e de reprodução social. Como poderia ser
elaborada esta última frase da médica se, no Brasil, fosse permitido o direito ao aborto em
casos como este? E se o direito ao acesso às tecnologias reprodutivas não fosse restringido
pela condição socioeconômica das pacientes, sem necessariamente avançar na idade
reprodutiva à espera de exames e tratamentos públicos? Segundo matéria citada por Ramírez-
Gálvez (2003:101), publicada no jornal Folha de São Paulo (10/03/2002, p.C-6), mais da
metade dos casos atendidos em clínicas privadas corresponderia a mulheres de mais de 35
anos, entre as quais 53% conseguiriam engravidar.
É importante, mais uma vez, salientar que contextualizar o acesso às tecnologias de
RA disponíveis como um direito é, sem dúvida, o que defende esta dissertação. Os direitos
reprodutivos (assim como os sexuais) são o ponto de partida para as análises trazidas neste
trabalho, considerados direitos humanos fundamentais que articulam direitos sociais (como os
direitos à saúde, à educação e ao trabalho) aos direitos individuais à vida, à igualdade, à
liberdade e à inviolabilidade da intimidade (Ventura, 2002:15).
No entanto, corrobora-se também a visão de que a proliferação de clínicas e hospitais
não proporciona, necessariamente, benefícios para os direitos sexuais e reprodutivos da
50
população. Ainda hoje, impera uma falta de fiscalização dos centros de reprodução assistida
no Brasil, tanto governamental quanto dos conselhos profissionais envolvidos, podendo haver
abusos e desrespeito aos direitos reprodutivos (Corrêa, 1997, 2001; Diniz & Buglione, 2002).
O segundo caso clínico supracitado traz novos questionamentos para este debate,
tornando ainda mais estreita a relação entre a falta da “liberdade procriativa” e de “direitos
reprodutivos” e a regulação da reprodução social. Ilustra uma situação bastante comum em
serviços de RA, qual seja a de mulheres que fizeram laqueadura e que desejam uma nova
gestação, configurando o que Corrêa (2001) caracterizou como um “pernicioso ciclo
esterilização / infertilidade / reprodução assistida”.
Assim que a paciente saiu da sala, a residente comentou que discordava sobre oferecer RA para
quem fez laqueadura: “elas têm que arcar com as consequências de suas decisões” [sic]
(residente comenta sobre paciente de 37 anos, laqueada). Perguntada se ela achava que existia
alguma pressão social para que estas mulheres o tivessem mais filhos e fizessem laqueadura,
a residente respondeu: não existe pressão social para laquear, elas é que resolvem e depois se
arrependem. [...] Eu sou contra [FIV para mulheres esterilizadas]. É um absurdo o governo
pagar para essas mulheres que já têm filhos, ligadas e depois querem mais filhos [...] pagar esta
palhaçada, elas não m dinheiro, nem R$40,00 para a medicação e querem ter mais filhos?”
[sic].
Neste caso, a paciente está no ambulatório de reprodução humana desde 2006; precisa
trazer o exame de HSG para saber as condições de suas trompas e dar continuidade a seu
tratamento. No entanto, ainda não conseguiu enfrentar novamente os médicos que a
desencorajaram a ter filhos no antigo hospital onde se tratava. No momento, o exame está
disponível pelo SUS no hospital de onde ela foi encaminhada e do qual recebeu o prognóstico
de que não poderia mais engravidar: “a médica de foi curta e grossa, disse que não tinha
jeito para mim. Fiquei triste e tudo... mas vim pra cá e a médica daqui disse que dava sim, que
era para eu continuar. [...] Demorei pra voltar aqui... tinha quase desistido” [sic paciente,
explicando a razão de ainda não ter feito o HSG e de ter demorado sete meses para voltar ao
ambulatório]. Como alternativas, a médica respondeu: “ou faz o exame em Bonsucesso, ou
adota porque aqui [no ambulatório] está igual a fevereiro de 2008, quando veio ver sobre a
inseminação” [sic]. Quando a paciente perguntou sobre a previsão de o serviço oferecer a
inseminação, a residente lembrou-a de que ela “ainda não tem nem o HSG” [sic], não
podendo ser feito nenhum encaminhamento antes que o resultado do exame fosse
apresentado.
51
O debate sobre laqueadura
19
no Brasil tem sido amplamente realizado por estudos
feministas e de gênero, sob a perspectiva dos direitos reprodutivos, principalmente desde a
década de 1970. Diretamente relacionada à questão da medicalização da reprodução
(apresentada no capítulo 1) e a uma “cultura da esterilização
20
, a laqueadura no país
continua a ser disseminada como estratégia biopolítica de regulação social
21
.
Diferentemente do que argumentou a médica residente, a “resolução” ou “escolha”
pela laqueadura não tem sido isenta de pressões, sejam elas familiares (de mães ou maridos
que usam da coação para que as mulheres façam laqueadura, existindo inclusive situações nas
quais a cirurgia foi acordada diretamente com o médico, sem o consentimento das mulheres),
sejam elas governamentais (pela ausência de políticas mais efetivas de saúde e de educação
para uma decisão mais consciente e autônoma, além do não acesso aos métodos reversíveis de
contracepção).
Em pesquisa realizada no mesmo ambulatório, Costa (2008:142) obteve relatos de
mulheres laqueadas cujas opiniões não foram sequer consultadas, casos de mulheres que
ligaram as trompas aos 19 ou 20 anos, por pressão de suas mães ou dos maridos, e que agora,
aos 28 ou 29 anos tentam reverter a situação fazendo novas cirurgias e tratamentos para, em
seus atuais relacionamentos, terem mais filhos. Na observação de campo da atual pesquisa,
duas pacientes relataram ter feito a laqueadura com 17 e 18 anos, respectivamente, durante o
último parto. No primeiro caso, aos 17 anos, a paciente já tinha 3 filhos (dos quais 2 são
gêmeos) e sofria violência doméstica praticada pelo ex-esposo. Todos os filhos permaneceram
com o marido após a separação, com os quais ela não pode manter nenhum contato. Recasada
3 anos, hoje aos 33 anos tenta engravidar novamente do novo marido (de 26 anos). No
segundo caso, a paciente decidiu laquear na sua 3ª gestação, aos 18 anos. Atualmente, ela tem
29 anos e tenta engravidar há um do parceiro com quem está casada há 7 anos.
Por um lado, muitas questões de gênero embasam estes novos “desejos de filhos”,
como a necessidade de se ter um filho biológico do novo parceiro (que pode ou não ter filhos
19
Procedimento cirúrgico para a ligadura de trompas considerado como método definitivo de anticoncepção da mulher
(esterilização), apesar de haver possibilidade de falha, pois sua reversão é quase sempre difícil, além de ser restringida pelos
altos custos cirúrgicos, assim como a alternativa da reprodução assistida (Maldonado & Almeida, 2007).
20
Termo usado por Berquó (1993) para relacionar a laqueadura à prevalência de partos cirúrgicos, tornando-se uma fonte
ilegítima de lucro, muitas vezes sendo marcadas cesarianas justamente para que a laqueadura seja realizada. Atualmente,
apesar de ser “vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de
comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores” (Brasil, 1996 - Lei de Planejamento Familiar n
o
9.263/96, art.
10, parágrafo 2
o
), na prática a laqueadura ainda é feita nestas condições, muitas vezes sendo negada a possibilidade de
escolha pelas mulheres. Para aprofundar o debate, ver: Berquó & Cavenaghi (2003).
21
As discussões sobre laqueadura estão inseridas no estudo da transição demográfica brasileira, que diferentemente dos
países desenvolvidos, não teria sido consequência de melhorias nas condições de vida da população, nem de uma política
governamental de controle de natalidade, mas principalmente da medicalização da reprodução e de desigualdades de gênero.
Para aprofundar o debate, ver: Barroso (1984); Giffin (1992); Berquó (1993); Corrêa (2001); Ramírez-Gálvez (2003); Costa
(2008).
52
de relacionamentos anteriores ou extraconjugais), ou mesmo a necessidade de se reparar
verdadeiras tragédias familiares, como em outros dois casos observados no ambulatório. Em
ambos, os filhos homens faleceram em 2008 e os casais procuraram informações sobre
reversão de laqueadura e de vasectomia para tentar uma nova gestação.
O paciente chegou sozinho ao consultório para conversar sobre reversão de vasectomia feita há
11 anos. Pediu informações e disse que sua história era triste. É assalariado, com 3 filhos: 2
meninas e 1 menino. Quando veio o menino, fiz vasectomia, mas em fevereiro de 2008
aconteceu uma tragédia na minha família” [sic]. O menino, de quase 11 anos, faleceu de
dengue hemorrágica. Segundo o paciente, “não quero substituir o que morreu, pode vir outro
homem, posso colocar até o meu nome, mas nada substitui” [sic]. Diz que ele e a esposa
pensaram muito e decidiram ter outro filho. O urologista consultado disse que não tinha
jeito, que viu reverter vasectomia de 3 anos” [sic]. A médica do ambulatório explicou que
existem reversões de vasectomias mais antigas, mas que seria importante uma consulta com um
especialista na área, outro urologista. Fez sua indicação e disse: “se ele falar que sim ou que
não, é o que vale” [sic]. Explicou também o procedimento de Fiv, pois o casal ainda estaria na
faixa etária adequada para o tratamento (ele com 38 anos e ela com 36 anos), mas que mesmo
no programa Acesso este ainda sairia caro, em torno de R$8.000,00. O cliente saiu com
encaminhamento para o médico indicado.
A paciente, de 37 anos, teve dois filhos nascidos e um abortamento espontâneo precoce.
alguns meses, perdeu um dos filhos em um acidente. No prontuário, o sexo do filho vivo não
está especificado, mas o que faleceu era um menino. Em sua quarta consulta no ambulatório,
pediu um laudo para que brigasse na justiça pelo direito de realizar a Fiv em clínica particular
do Rio de Janeiro, que não este serviço na rede pública no Estado. Diz ficardesesperada
cada vez que vejo o tempo passar e que falo com as mulheres na sala de espera, porque aqui já
tem 2 meses que marquei a primeira consulta e tem gente que aqui 5 ou 4 anos; eu
tenho 37 anos...” [sic]. Em sua 1ª consulta (06/08/08) foram feitos os pedidos de espermograma
e HSG; em 20/08/08 a paciente trouxe o espermograma; em 02/10/08 o HSG mostrou que as
trompas estão obstruídas; em 15/10/08 veio ao ambulatório apenas para pedir o laudo médico
para ser levado a uma advogada, mas este não pôde ser feito, pois a responsável pelo serviço
estava de férias. Foi orientada a voltar em novembro.
Retornando ao primeiro caso supracitado de laqueadura, para algumas situações
poderíamos supor, no argumento dado pela médica residente, alguns aspectos válidos, quando
a decisão pela laqueadura é realizada de acordo com os preceitos da Lei de Planejamento
Familiar
22
, de forma consciente, informada, dentro das normas estabelecidas pelos artigos da
lei. É o que se almeja quando são discutidos os direitos reprodutivos. Não se trata, aqui, de
desconsiderar a laqueadura como opção de contracepção, muito menos ser contra os avanços
que a regulamentação da esterilização trouxe para inibir distorções de seu uso (Citelli, 2002;
Berquó & Cavenaghi, 2003). Mas, ainda de acordo com o argumento da residente, se as
pacientes podem “decidir livremente” pela laqueadura, por que não encarar a busca da
reprodução assistida também como um direito de “decidir livremente” pela reversão e/ou pela
Fiv? Se as técnicas cirúrgicas para a laqueadura estão disponíveis, hoje também estão as
técnicas de reversão e de reprodução assistida, apesar da baixa eficácia, sem serem
esquecidas, é claro, as discutidas desigualdades de gênero, riscos para a saúde da mulher,
questões econômicas e sociais restringindo o pleno exercício da cidadania, etc. No entanto,
22
BRASIL (1996).
53
estes não foram os argumentos usados pela médica, mas sim os altos custos gerados ao
sistema público de saúde ao se permitir que mulheres laqueadas “se arrependam” e exerçam
seus direitos reprodutivos, além de ser apontada a condição econômica de quem poderia ou
não ter acesso à reprodução assistida pelo SUS. Neste discurso médico, o que prevalece é uma
normalização da reprodução social.
Tanto a residente quanto a aluna interna que acompanhava o atendimento não
questionaram os custos gerados ao SUS pelas cirurgias de esterilização; também
desconsideraram ou desconheciam os altos índices de arrependimento
23
apresentados por
mulheres laqueadas: “não sabia que o índice era tão alto... mas se decidiram...” [sic interna];
ou ainda não se perguntaram se os filhos dessas mulheres permaneceram com elas nos
recasamentos ou se seus maridos atuais têm filhos biológicos.
Reaparece, assim, o estigma da “esterilidade secundária”, dificultando a análise das
contingências envolvidas tanto na decisão pela laqueadura quanto na decisão por sua reversão.
Talvez outra observação, realizada no mesmo ambulatório, agora com outra residente, ilustre
ainda melhor este estigma:
Antes de chamar a paciente de 32 anos, a residente leu seu prontuário e ao ver que se tratava de
“esterilidade secundária” comentou com a pesquisadora: “acho tudo isso uma palhaçada, um
pouco demais, fora da realidade” [sic], referindo-se ao caso de a cliente ter 3 filhas vivas e
querer ter mais filhos. “Isso [RA] é bonito lá em Londres, em Berlim, mas você vive no mesmo
Brasil que eu vivo? Acho um absurdo no Brasil não ter dinheiro para remédio de hipertensão e
pagarem para irem a São Paulo fazer Fiv. Com tanta gente para adoção, querem ter mais filhos
porque mudou de parceiro e tem medo dele cair fora porque ela não consegue dar um filho para
ele. Isso é bonito na teoria, que a gente não pode interferir na decisão sobre ter filhos... se tem
11 e quer ter mais o 12º, é decisão dela, mas na teoria.” [sic].
Nitidamente, a residente se mostrava irritada e inconformada com o atendimento a
uma mulher que, apesar de ter baixa renda (ou talvez principalmente por isso), querer ter
filhos com um novo parceiro, mesmo já tendo três filhas vivas. Sua reclamação se estendeu ao
próprio ambulatório enquanto local de aprendizagem, pois em geral tinha que atender os casos
clínicos sem a supervisão da médica responsável, que precisou se ausentar por problemas de
saúde na família. Em muitos momentos, a residente não sabia qual procedimento adotar,
que estava poucos dias no setor de reprodução humana, consultando-se principalmente
com uma médica voluntária que atendia no ambulatório há mais tempo.
23
As principais variáveis apontadas por Vieira (1998) e Cunha, Wanderley e Garrafa (2007) para o arrependimento da
laqueadura foram: o não cumprimento da lei n
o
9.263/96 e de suas normas e portarias em todos os casos, violando a ética
médica e os direitos reprodutivos como o de ter aconselhamento e informação adequados no pré-operatório (principalmente
sobre sua irreversibilidade), o de ter acesso legal e grátis ao procedimento ou o de ter uma esterilização de intervalo e não
associada ao parto; a idade da primeira gestação e o número de filhos vivos; falha anterior com outros métodos
contraceptivos, levando mulheres que viveram estas situações a se submeterem mais cedo à cirurgia; morte de filhos;
separação e um novo casamento; pressão ou influência no processo de decisão; entre outras.
54
No entanto, não apenas o comentário, mas também a postura adotada pela residente
durante a consulta reforçaram a hipótese de estigmatização da laqueadura, atrelada a uma
“reprodução estratificada”
24
. Questionada sobre o que achava da adoção por pessoas que
poderiam ter filhos biológicos, diante de “tanta gente para adoção”, a residente respondeu que
quem pode ter filhos sem RA o geraria custos para o serviço público e que, por isso, não
precisariam adotar. No início do atendimento, após anotar alguns resultados de novos exames
no prontuário, a residente saiu do consultório sem dar nenhuma justificativa, nem para a
paciente, nem para a pesquisadora, retornando após 30 minutos, quando avisou que estava
aguardando a professora responsável para saber o que fazer, permanecendo por mais 20
minutos ausente. Mesmo sem a médica chefa no ambulatório, outros dicos estavam em
atendimento e poderiam dar a orientação necessária.
Enquanto a residente esteve ausente, a paciente comentou que não sabia se, de fato, tinha as
trompas ligadas. Seu desejo sempre foi o de ter mais filhos, diferente de seu ex-marido, que
queria que ela fizesse laqueadura. Sem seu consentimento, acredita que durante seu último
parto o médico, para quem seu marido trabalhava, fez a laqueadura a mando deste: “tomei
anestesia geral e só acordei quando estava no quarto, depois da cesária” [sic]. Sem dar
detalhes, disse que 8 anos esseparada do ex-marido, quando este jogou todas as minhas
roupas na rua enquanto eu estava trabalhando e não me deixou entrar mais em casa” [sic]. As
três filhas, hoje com 18, 15 e 11anos, moram com o pai, na casa onde viviam e que, de comum
acordo, está registrada no nome das filhas. Casada novamente há 6 anos, com um rapaz de 26, a
paciente recebe a visita das filhas em alguns finais de semana (principalmente a da mais nova).
Ela tenta engravidar desde 2002 e demorou mais de 6 meses para conseguir marcar a 1ª
consulta no serviço, em abril de 2008. Frente ao atendimento prestado pela residente, a paciente
comentou sobre a demora no atendimento e sobre a falta de satisfação da médica, dizendo que
“as mulheres na sala de espera dizem que não querem ser atendidas ‘pelos meninos’ [referindo-
se aos residentes e alunos internos], tô vendo...” [sic].
Os casos apresentados acima corroboram as análises formuladas por Corrêa & Loyola
(1999) sobre normalização da reprodução. Segundo as autoras existiria, no Brasil, uma
discriminação dos valores e das pessoas que se encontram embaixo da hierarquia social,
revelando uma tendência de se reproduzir socialmente. No campo da reprodução assistida,
esta tendência se destaca ainda mais pelo fato de as NTRc terem se instalado e se manterem
no país, basicamente, no setor médico privado, que chegam a custar R$ 12 mil por tentativa,
em média (Samrsla et al, 2007). No entanto, se a adoção de uma família pequena tornou-se
norma, tanto no Brasil como a nível global, através do controle voluntário da fertilidade, se os
casais são persuadidos a adiar e espaçar cada vez mais cada gravidez, então se tornou
imprescindível também que mulheres e homens recebam ajuda para conseguir engravidar
24
Segundo Ginsburg e Rapp (1995 apud Van Balen & Inhorn, 2002), este termo refere-se às relações de poder pelas quais
algumas pessoas são empoderadas para se reproduzir e nutrir, enquanto outras são desvalorizadas e até desprezadas. Segundo
os autores, não é surpresa nenhuma as tecnologias reprodutivas serem usadas, nos países não ocidentais ou em
desenvolvimento, por pessoas que podem pagar por elas. Os poucos estudos e relatórios sobre as NTRc em países da Ásia,
África ou América Latina revelam que estas tecnologias são moldadas e formatadas segundo variações locais, sejam elas
culturais, sociais, econômicas ou políticas.
55
quando assim o decidirem, no tempo mais curto de que dispõem (Cook, Dickens & Fathalla
(2004:312).
2.2. O acesso às novas tecnologias reprodutivas no Brasil
No Brasil, onde se preconiza a universalidade, a igualdade e a equidade como
princípios norteadores das ações e serviços de saúde no país, a discussão sobre o acesso às
tecnologias reprodutivas e sua regulamentação versa sobre concordâncias ou discordâncias
dos projetos de lei aos princípios constitucionais e de direitos humanos adotados pelo Estado
brasileiro. Sem a pretensão de esgotar esta discussão, é importante neste trabalho serem
destacados alguns destes princípios, a começar pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Sustentado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis n.º 8080/90
(Lei Orgânica da Saúde) e 8.142/90, o SUS tem por finalidade expandir a cobertura de
saúde à população, visando maior equidade e melhoria na eficiência, na qualidade e na
satisfação dos usuários (Cordeiro, 2001). Com o objetivo de alterar a desigualdade na
assistência à saúde dos brasileiros, o atendimento público tornou-se obrigatório a qualquer
cidadão, tendo como alguns de seus princípios a:
[...] universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ões e
serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os
níveis de complexidade do sistema; [...] igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie (Brasil, 1990 - Lei 8.080/90, Título II, Capítulo II, Dos
Princípios e Diretrizes, Art. 7º).
A saúde é um direito da cidadania e um dever do Estado, com a proposta de
democratização e descentralização pelo SUS, sendo estabelecidas responsabilidades para as
três esferas do governo (federal, estadual e municipal), além da participação do setor privado
de forma complementar (por meio de prestação de serviço ao Estado quando este não é
suficiente para garantir o atendimento a todos da região) e do controle social da própria
população, através de conferências e de conselhos de saúde.
A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício. O dever do Estado de garantir a saúde consiste na
formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de
doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal
e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (Lei
8.080/90, Título I, Das Disposições Gerais, Art. 2º)
56
Para que este acesso universal e igualitário possa ser garantido nas ações e serviços
públicos de saúde, estes devem estar organizados como uma rede regionalizada e
hierarquizada, com o estabelecimento de níveis de atenção. Para isto, são necessários
diferentes recursos tecnológicos existentes para a promoção, a proteção ou a recuperação da
saúde nos diversos tipos de serviços, havendo articulação entre prevenção e assistência,
ampliando a apreensão das necessidades de saúde (Mattos, 2004).
Sabemos que persistem, na prática, exclusões e desigualdades no acesso a estes
recursos no país, apesar dos princípios apresentados acima. No caso da reprodução humana
assistida, estas desigualdades são agravadas pela inexistência, até o momento, de uma
regulamentação específica baseada nos preceitos do SUS e nos acordos internacionais de
direitos fundamentais do indivíduo. Pode-se dizer que o debate legislativo brasileiro para a
regulamentação das tecnologias reprodutivas conceptivas teve um atraso de quase dez anos
(Corrêa, 2001), se considerarmos que o primeiro bebê de proveta nasceu em 1984 no país e o
primeiro projeto de lei apenas em 1993 (PL1184/03).
Existe o consenso entre os estudiosos do tema de que as tecnologias reprodutivas o
foram consideradas um problema a ser regulamentado pelo Direito brasileiro (Diniz &
Buglione, 2002). No Brasil, a Resolução 1.3581992 do Conselho Federal de Medicina
(Brasil, 1992) ainda tem servido como regulação da RA no país, ora em consonância com as
recomendações internacionais advindas do Relatório Warnock
25
, como a delimitação do
tempo máximo de desenvolvimento de um embrião fora do corpo humano em 14 dias, ora
contrariando algumas delas, como aceitar a transferência de até quatro embriões por tentativa,
por exemplo, ao invés de um ou no máximo dois, conforme a tendência europeia e o relatório
da OMS (sendo, ao mesmo tempo, contrária à redução embrionária). Definida como uma
norma bioética, a resolução do CFM objetiva superar a infertilidade humana, reafirmando
princípios gerais de inviolabilidade e da não comercialização do corpo humano, da gratuidade
do dom e do anonimato da doação, do necessário consentimento formal de todos os
envolvidos nos procedimentos de Fiv, além de evitar incestos inadvertidos e de admitir o
congelamento de embriões, desde que autorizados.
No Brasil, o debate legislativo sobre a RA ganhou força no final dos anos 1990, a
partir do anúncio da clonagem da ovelha Dolly e do desenvolvimento da pesquisa genômica
com seres humanos (Diniz, 2000). Desde então, foram propostos diversos projetos de lei
25
Produzido na Grã-Bretanha em 1984, este foi o primeiro relatório a formular recomendações sobre o uso das NTRc, sendo
considerado um marco ético para o debate legislativo internacional, causando grande impacto em todo mundo.
57
sobre a temática
26
, alguns ainda em tramitação, sem que a Resolução 1.3581992 e o primeiro
PL3638/93, arquivado, deixassem de servir como base. Os projetos de lei
27
iniciais
transpunham a resolução do CFM quase na íntegra para a esfera legislativa, sendo todos de
autoria de parlamentares dicos, permeados por argumentos clínicos, fazendo-se prevalecer
a autoridade técnica aos valores e crenças (Corrêa & Loyola, 2005:107). No entanto, ao longo
do processo legislativo, as questões de acesso, da reprodução de homossexuais e dos efeitos
da RA sobre os conceitos de família e de parentalidade, além da pesquisa com embriões,
modificaram a tendência de transformar a resolução do CFM em uma lei federal. Apesar da
força e legitimidade sociais adquiridas pelo conselho, os preceitos éticos da medicina estão
permeados por aspectos morais, sendo insuficientes para atender a todas as necessidades de
regulamentação da disponibilidade de serviços de RA (seja no setor público, seja no privado)
e garantir os direitos de seus usuários (Diniz & Buglione, 2002).
Segundo Diniz (2003, 2006), o projeto de lei 1184/2003 foi o que mais evoluiu no
processo de tramitação, sendo substancialmente modificado em comparação à resolução e
fazendo emergir outros três apensados (PL2855/1997; PL120/2003; PL2061/2003), em
conjunta tramitação legislativa. A autora estima que o Brasil tenha uma lei federal sobre RA
nos próximos anos. Para ela, alguns temas tendem a ser acordados mais facilmente entre os
legisladores, como a autorização de doação de gametas (desde que não haja comercialização e
seja resultado da livre doação), a proibição da redução embrionária (exceto em situações de
risco de vida para a mulher), o tratamento das tecnologias reprodutivas como questão de
saúde (definição que gera ambiguidades interpretativas para o acesso das mulheres e dos
homens solteiros ou homossexuais), entre outros.
No entanto, pontos que provocam debates fervorosos entre os legisladores e que
podem ser destacados como preocupantes, sob o ponto de vista dos direitos reprodutivos.
Permanece nos projetos em tramitação uma aparente falta de clareza técnica por parte dos
legisladores sobre o que estão escrevendo, além do uso indiscriminado do termo infertilidade
26
Por exemplo, o PL2061/03 - Disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes
auxiliares no processo de procriação, em serviços de saúde, estabelece penalidades e dá outras providências; PL1184/03 -
Dispõe sobre a Reprodução Assistida; o PL1135/03 - Dispõe sobre a Reprodução Humana Assistida, definindo normas para
realização de inseminação artificial, fertilização "in vitro", barriga de aluguel e criopreservação de gametas e pré-embriões;
PL120/03 – Dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida. Permitindo à
pessoa nascida de técnica de reprodução assistida saber sobre a identidade de seu pai ou mãe biológicos; o PL4665/01 -
Dispõe sobre a autorização da fertilização humana "in vitro" para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo
processo natural de fertilização e dá outras providências; o PL2855/97 - Dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução
humana assistida e dá outras providências. Para aprofundar a análise destes projetos, ver: Diniz (2000, 2002, 2006) e
Medeiros (2007).
27
Diniz (2000) faz uma análise comparativa entre os três primeiros projetos de lei propostos no Brasil (de 1993, 1997 e
1999), contrapondo-os ao debate ocorrido no Reino Unido, representado no Relatório Warnock, e às sugestões da Human
Fertilisation and Embryology Authority (HFEA). A autora destaca que, apesar destas recomendações terem inspirado o início
do processo legislativo brasileiro em torno das NTRc, atualmente a discussão se distancia do debate britânico.
58
como critério de acesso às técnicas de reprodução assistida, possibilitando arbitrariedades e
desigualdades já expostas neste trabalho (Corrêa, 2001; Corrêa & Loyola, 2005; Diniz, 2000,
2002, 2006; Ramírez-Gálvez, 2003; Medeiros, 2007). A presença de pessoas capacitadas a
discutir o assunto, como dicos especialistas em bioética e reprodução assistida, por
exemplo, é essencial para que as proposições legislativas sejam redigidas de maneira menos
superficial e geral, sem reduzir o acesso apenas a determinadas técnicas. Mas autorizar que
apenas a palavra médica defina todo o processo de acesso seria restringir as possibilidades de
reflexão sobre o assunto, desconsiderando outras variáveis importantes para o entendimento
de valores morais e sociais relacionados ao tema.
Dependendo de como o conceito de infertilidade seja compreendido nos projetos de
lei, varia muito a elegibilidade para o acesso às tecnologias reprodutivas. Ao trazerem como
beneficiários das técnicas mulheres eou casais inférteis, os documentos revelam normas
procriativas e de gênero, atreladas ao diagnóstico de infertilidade debatido no capítulo 1 deste
trabalho. A elegibilidade ao acesso de mulheres solteiras, mesmo que “desde que
comprovadamente inférteis, pode ser encarada como um pequeno esforço no
reconhecimento da monoparentalidade e de outras formas de “conjugalidade” e
“parentalidade” na sociedade brasileira.
No entanto, o fato de este mesmo acesso o estar disponível a homens solteiros ou a
casais homossexuais revela, entre outros aspectos, que princípios constitucionais e de direitos
humanos, como o respeito à igualdade, à diversidade e ao pluralismo não estão sendo
seguidos (Rios, 2002). Para se garantir estes direitos, seria necessário considerar a
possibilidade da gestação de substituição, prática autorizada apenas pelo Projeto 2855/1997,
mas proibida pelo Projeto 1184/2003 (Diniz, 2006). Assim, mais uma vez, negar o acesso às
tecnologias reprodutivas a pessoas que não estão dentro de uma relação heterossexual, de
casamento eou de união estável seria o mesmo que comprometer o direito fundamental de
formação familiar. A discutida liberdade de procriação, ou seja, a decisão de ter ou não
filhos, quantos, quando e como tê-los é cerceada pelas restrições ao acesso às tecnologias
reprodutivas no Brasil.
Segundo Corrêa & Loyola (2005), o Ministério da Saúde brasileiro mobilizou, em
2005, um “grupo de trabalho sobre reprodução humana assistida”, cujas discussões resultaram
em uma nota técnica em torno dos pontos mais sensíveis do PL1184/03, propondo o acesso
universal às novas tecnologias reprodutivas:
[...] o acesso universal, ou seja, garantindo a pessoas solteiras, casadas ou unidas,
independentemente de sua sexualidade; o consentimento livre e esclarecido para a aplicação de
59
todas as técnicas, obrigatoriamente exigido para todos os participantes; a decisão quanto ao
número de embriões transferidos, que deve ser definido em cada caso; o restabelecimento da
possibilidade de congelamento de embriões; a possibilidade de acesso à identidade genética dos
doadores em nome do direito do indivíduo conhecer suas origens (o que pressupõe a quebra de
sigilo sobre a doação, mas sem efeito no âmbito do parentesco); a admissão da gestação de
substituição (para possibilitar o acesso igual para homens e mulheres solteiras); a necessidade
de uma instância oficial de fiscalização e controle da RA no Brasil. (Corrêa & Loyola, 2005:
109)
Conforme apontado pelas autoras supracitadas, esta nota técnica tem por base a Lei de
Planejamento Familiar, que no caso da reprodução assistida apresenta um difícil paradoxo: de
um lado, as tecnologias podem garantir o direito à prole; de outro, estas mesmas tecnologias e
procedimentos podem colocar em risco o direito à saúde (ambos previstos na mesma lei).
Este paradoxo torna-se ainda mais complexo pelo fato de, no Brasil, não haver um controle de
licença para funcionamento das clínicas na área de RA, nem monitoramento sistemático de
seus resultados, aumentando as chances de haver desrespeitos a esses e outros direitos. A
Resolução 1.3581992 do CFM não faz nenhuma referência a nenhum tipo de regulamentação
do funcionamento e monitoramento de clínicas de RA, contribuindo com a falta de estudos
fidedignos e isentos sobre efeitos colaterais das medicações, número e destino de embriões
(produzidos, implantados, descartados, congelados), ou mesmo sobre a proporção e condições
de gestações múltiplas (Dossiê Reprodução Humana Assistida, 2003). Para Corrêa (2001), a
comparação e a própria apreensão dos resultados de RA no Brasil ficam ainda mais difíceis
diante da incompletude e não uniformidade dos escassos registros existentes
28
; as críticas e
controle da RA no país seguem contando, até o momento, apenas com o maior ou menor grau
de exigência dos próprios especialistas em sua prática.
Com relação ao acesso às tecnologias reprodutivas, na prática, a regulação tem sido
feita pelo poder aquisitivo de quem o demanda. A concentração das clínicas no setor privado,
chamada de “privatização” por alguns críticos da área, tem definido inclusive o tipo de família
que se constituiria a partir da RA (Corrêa & Loyola, 2005).
Em 2004, apenas seis unidades de saúde pública ofereciam o tratamento de alta
complexidade em RA no país, segundo o Dossiê da Sociedade Brasileira de Reprodução
Assistida SBRA. Aparentemente, em 2008 continuariam sendo seis os hospitais
conveniados ao SUS que oferecem IA eou Fiv. Segundo comunicação pessoal com a médica
responsável pelo setor de Reprodução Humana do Moncorvo Filho, estes serviços seriam: o
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Belo
28
Na América Latina, há esforços da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA) e da Red Latino-Americana de
Reprodução Assistida (Red LaRA) para que dados sejam coletados e consolidados sobre as atividades de RA na região,
contribuindo para o debate bioético e regulamentação brasileira (Corrêa & Loyola, 2005).
60
HorizonteMG; o Hospital Estadual Pérola Byington (Centro de Referência da Saúde da
Mulher) São PauloSP; o Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) CampinasSP; o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP)
Ribeirão PretoSP; o Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) – Porto Alegre/RS; o Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) – BrasíliaDF
29
.
Estes serviços, em geral, enfrentam dificuldades em oferecer os procedimentos de RA
na sua integralidade. Por exemplo, o atraso no repasse de medicamentos para a fertilização in
vitro (isso quando ele existe, pois em vários serviços os usuários têm que custear
medicamentos, exames e materiais necessários) inviabiliza estimar e informar corretamente o
tempo de espera pelo tratamento, potencializando as expectativas dos pacientes. Segundo
pesquisa realizada no Hospital Regional da Asa Sul
30
, de Brasília, o serviço de RA passou seis
meses sem receber suprimentos em 2002; 30% das mulheres inscritas na fila de espera
informaram, em entrevistas, que aguardavam mais de quatro anos pelo tratamento (Samrsla et
al, 2007). No Hospital Pérola Byington, a fila de espera é de 1.500 mulheres, das quais 400
têm acima de 40 anos: “muitas delas ingressaram no serviço ainda na faixa dos 30 anos, mas a
demora para conseguir o tratamento (que chega a quatro anos) fez com que as chances de
gravidez com seus próprios óvulos diminuíssem muito”
31
.
A falta de material adequado para inseminação de boa qualidade, a falta de
equipamentos diagnósticos que impossibilitam a realização de exames a tempo das consultas
nos hospitais, as condições das instalações físicas de alguns consultórios, a falta de uma
equipe médica multidisciplinar efetiva, entre outras dificuldades fazem dos tratamentos de RA
em serviços públicos de saúde verdadeiros desafios para profissionais e pacientes. Diante de
tantas variáveis econômicas, administrativas, políticas, sociais e normativas determinantes do
contexto da RA no Brasil, deslocar as técnicas reprodutivas do campo da saúde e aproximá-
las do campo dos direitos humanos, mais especificamente do direito ao planejamento familiar,
talvez seja não apenas a maneira mais razoável e não discriminatória de fundamentar a
elegibilidade à RA no Brasil, como apontam Corrêa (2001) e Diniz (2006), mas
principalmente um importante primeiro passo.
29
O site <http://www.reproducaohumana.com.br/news1.php?id_noticia=13>, acessado em 19 de fevereiro de 2009, indica
também o Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo - capital, e o Hospital São Paulo, da Universidade Federal de SP
(Unifesp) para o procedimento gratuito de Fiv (medicamentos custeados pelos casais).
30
Em 1996, o Hospital Regional da Asa Sul (HRAS), referência da rede pública de saúde do Distrito Federal, recebe a
denominação de Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB), voltando a ser chamado de HRAS em 2001. Para conhecer
um pouco do histórico do hospital, ver: <http://www.saude.df.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=45456> Acesso em:
17 fev 2009.
31
Folha de São Paulo. “Hospital público de SP terá programa de doação de óvulos”. 02/08/2008 Disponível em:
<http://www.servidorpublico.net/noticias/2008/08/02/hospital-publico-de-sp-tera-programa-de-doacao-de-ovulos/> Acesso
em: 17 fev 2009.
61
2.3. “Fazendo qualquer negócio”: dificuldades no acesso e vulnerabilidade
No Rio de Janeiro, pela inexistência até o momento de qualquer serviço público que
ofereça IA e/ou Fiv, as usuárias que necessitam destes procedimentos são encaminhadas para
o Hospital Pérola Byington, em SP. Segundo a médica responsável pelo setor de reprodução
humana do HUMF, em entrevista à revista online da UFRJ, cerca de 30 casais por mês
passam pela triagem no Pérola Byington, o que não garante o tratamento na capital paulista:
"Após quatro anos e meio de espera, uma de minhas pacientes conseguiu. Isso me deixou muito
feliz, mas mostra um pouco da dificuldade que é conseguir tratar desse mal. Quando o casal
finalmente consegue ser aceito, tem que ir para São Paulo fazer uma entrevista, depois tem que
voltar várias vezes para continuar o tratamento. Muitos correm o risco até de perderem o
emprego por causa disso. A questão é complicada" (Olhar Virtual, 2007)
A desigualdade e a ausência de equidade no acesso aos serviços de média e alta
complexidade de RA no Brasil aumentam a vulnerabilidade
32
emocional e social das mulheres
que, muitas vezes, deixam seus empregos, estudos, amigos para, exclusivamente, se
dedicarem à busca incessante por tratamentos, fazendo qualquer negócio” para tentar ter
filhos.
Alguns casos observados no campo podem ser ilustrativos dessa certas
vulnerabilidades, a começar pelo de M., de 26 anos. Em sua primeira consulta no HUMF, a
usuária contou ter feito uma Fiv em clínica particular do RJ pelo programa Acesso
33
. Após
hiperestimulação ovariana (com 13 óvulos captados), teve apenas um implantado em seu
útero. Com o resultado negativo para gravidez e sem poder arcar com uma nova tentativa na
clínica particular, recorria, então, ao serviço público.
Não cabe nesta dissertação aprofundar o debate sobre a relação entre doação,
vulnerabilidade e programa Acesso, tema que mereceria uma pesquisa à parte. No entanto,
muitas vezes a adesão a este programa pode refletir situações de maior vulnerabilidade, social
32
Para aprofundar o conceito de vulnerabilidade, ver: Arán & Peixoto Junior, 2007b.
33
“O programa Acesso foi desenvolvido através da parceria entre Merck Serono (www.papmerckserono.com.br), empresa
líder em Saúde Reprodutiva e a Vidalink (www.vidalink.com.br), gestora do programa. O casal precisa agendar uma consulta
nas clínicas participantes para a retirada do formulário do programa Acesso. No formulário, encontram-se todas as
informações e orientações necessárias para o envio da documentação. Para participar do Programa Acesso, o casal passará
por uma avaliação de sua capacidade econômica, onde comprovará sua situação financeira. Em seguida, terá todo o apoio que
for necessário para tornar realidade esse sonho tão importante. O formulário tem por único destinatário a Vidalink do Brasil
S/A, a qual não poderá, sobre qualquer pretexto, reproduzir, divulgar, revelar ou dar conhecimento a nenhum terceiro das
informações transmitidas através do mesmo, sob as penas da lei. Sendo aprovado, o programa Acesso proporcionará um
desconto especial nos medicamentos e ainda um abatimento no acompanhamento médico.” (Texto retirado do site
<http://www.papmerckserono.com.br/site/html/acesso/form.aspx> Acesso em: 05 nov. 2008).
62
e/ou emocional, de mulheres e casais que desejam ter filhos, como no caso desta paciente.
Barbosa (1999) e Ramírez-Gálvez (2003) analisam diferentes programas de acesso que
objetivam popularizar as tecnologias reprodutivas, que vão desde a criação de laboratórios
comunitários, parcerias entre iniciativas privadas e hospitais públicos, a linhas de crédito
bancário para o parcelamento do tratamento em clínicas particulares. Ambas as autoras
destacam como esses programas reforçam a brecha entre classes socais por via da tecnologia
reprodutiva, principalmente nos de “doação compartilhada de óvulos”, quando o tratamento
da doadora, em geral mulheres de baixa renda e usuárias de serviços públicos, é pago pelas
receptoras, em geral clientes de clínicas particulares, com maior poder aquisitivo.
Esta modalidade de doação” (troca de óvulos por tratamento) é criticada por ferir o princípio
de gratuidade da doação, estabelecido pelo CFM. A reportagem não faz referência à
desigualdade implícita que supõe o programa: as mulheres pobres são colocadas na condição de
fornecedoras de material reprodutivo para as mulheres com poder aquisitivo. A troca, de fato,
não se entre iguais. Ela se produz numa situação de desequilíbrio de poderes, influências e
recursos. (Ramírez-Gálvez, 2003: 40)
Na observação de campo, segundo M., que tinha sido doadora de óvulos para ingressar
no programa, os médicos da clínica particular informaram que “ficaram 10 óvulos bons” [sic],
que depois passaram a ser 8 embriões, dos quais apenas um teria sido implantado em seu
útero. Para a médica responsável pelo setor do HUMF, talvez este seja “um caso clássico e
complicado de doação” [sic], questionando-se “por que um [embrião]?” [sic]. Segundo a
médica, às vezes, nesses casos de doação, as clínicas dão preferência para quem está
recebendo os embriões doados e não para a doadora.
As dificuldades no acesso à RA pelo SUS apontados até aqui aumentam as chances de
mulheres se submeterem à doação de óvulos em troca de financiamento para o próprio
tratamento particular. Segundo estudo de Samrsla et al (2007), a resposta afirmativa à questão
“Você doaria seus óvulos em troca de tratamento para engravidar?” aumentou
proporcionalmente ao tempo de espera no HRAS e foi dada pela maioria das mulheres do
grupo de estudo, ao contrário das do grupo controle
34
.
A relação entre vulnerabilidade e programa Acesso pôde ser observada em outros
atendimentos no setor. Por exemplo, também em primeira consulta no serviço, um casal
trouxe o diagnóstico de infertilidade masculina e indicação para Fiv da antiga ginecologista,
com quem tentava engravidar desde 2004. Imediatamente, a dica voluntária, que estagiava
duas semanas no serviço, colocou em dúvida o encaminhamento apresentado,
34
O grupo controle era composto por 27 mulheres em fase de investigação das causas de infertilidade do casal, 63% entre 26
e 35 anos. O grupo de estudo era formado por 24 pacientes em fase de espera por tratamento, de 2 a 4 anos ou mais, com
diagnóstico já concluído, 37,5% na faixa etária de 26 a 35 anos e 37,5% na de 36 a 45 anos.
63
corroborando a suspeita do casal de que a indicação para Fiv teria sido feito por interesses
financeiros, que o procedimento seria oferecido na clínica particular da antiga
ginecologista. O casal revelou o orçamento recebido “de R$8.900,00 para o tratamento, mais
R$5.500,00 para os medicamentos, num total de R$14.400,00” [sic esposo] e comentou que a
antiga médica tinha ficado p. da vida” [sic esposa] ao saber que tentaria vaga no Hospital
Moncorvo Filho. “A médica não queria encaminhar a gente pra cá; ela disse que aqui não
fazia o que ela oferecia [a Fiv]” [sic esposo].
Além do alto custo da Fiv, o esposo não gostaria de fazer o procedimento porque “não
é uma coisa natural” [sic]. A médica voluntária reforçava, a todo o momento, que
provavelmente o casal não precisaria deste procedimento, até começar a ler os exames de
espermograma trazidos pelo marido. Todos revelavam uma contagem extremamente baixa de
espermatozoides. Foi constrangedora a insistência da médica ao perguntar se aqueles exames
não eram antigos, “de antes da operação de varicocele” [sic], realizada em 2004. Diante da
garantia do esposo de que estes eram os exames mais recentes (de 2004, de 2005 e de 2008), e
da fala da esposa de que “o exame de antes da cirurgia era mais baixo ainda, quase estéril”
[sic], a médica concluiu, então, que “a cirurgia não deu o resultado esperado, pois conseguiu
cair mais ainda [a quantidade de espermatozoides]” [sic].
Foi então que a médica olhou para a pesquisadora e sorriu como se estivesse pedindo
autorização para falar de uma técnica que o serviço não oferece. “Não vou resistir [...] vocês
ouviram falar sobre a Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide (ICSI)?” [sic]. Diante
da resposta negativa do casal, a dica continuou: “É show! De 40 milhões necessários
[espermatozoides], você tem 2 milhões, mas teoricamente é preciso de um e é feito a ICSI”
[sic]. Depois disso, pediu que o casal aguardasse e saiu da sala para confirmar o diagnóstico
com a médica responsável pelo setor. Ao retornar, comentou que ainda se surpreendia com
esta médica, revelando que “vocês realmente precisam de Fiv por causa da infertilidade
masculina [...] a outra médica não estava errada. [...] Mas aindasaída para vocês. Tem dois
caminhos: a inseminação e a Fiv” [sic]. Olhou novamente para a pesquisadora e disse: “não
sei se é certo o que vou fazer... mas eu vou fazer” [sic]. Indicou, então, uma clínica particular
para Fiv, prometendo que o casal poderia entrar no programa Acesso pagando até metade do
preço pelo tratamento. Pelo celular, tentou primeiro falar com sua secretária em seu
consultório particular, para conseguir o contato da clínica. Sem resposta, ligou diretamente
para o médico dono da clínica. “Tem paciente de consultório que conseguiu pela metade do
preço. ouviram falar [programa Acesso]? Não? A outra médica não falou nem isso?” [sic
médica]. Orientou o casal a “falar a palavra-chave: Acesso” [sic], depois de a paciente ter
64
revelado que tinha ligado para esta clínica e se informado que a 1ª consulta custava
R$200,00.
É importante ressaltar que esta não é uma postura defendida ou incentivada pela
médica responsável do ambulatório de reprodução humana. Pelo contrário, a dúvida ética
apresentada pela estagiária confirmou que a orientação recebida na supervisão não incluiu o
programa Acesso. Adiante, outros atendimentos revelaram que tal programa, por vezes, foi
uma alternativa indicada, mas sem ser especificada nenhuma clínica em particular, nem de
maneira tão entusiasta e enfática como foi neste caso. O procedimento a ser seguido pelo
serviço quando o casal precisa de Fiv é encaminhá-lo para o Hospital Pérola Byinton, em São
Paulo, que realiza a técnica gratuitamente pelo SUS. O serviço social do HUMF apresenta-se,
inclusive, bastante engajado em auxiliar estes casos específicos do ambulatório, além de
tentar aumentar o comprometimento político das Secretarias de Saúde do Estado e do
Município do Rio de Janeiro, tanto na resolução do encaminhamento para São Paulo, como na
possibilidade de extensão da cobertura de Fiv no Rio de Janeiro (Costa, 2008).
Sendo assim, a médica voluntária não deixou de comentar sobre a Fiv em São Paulo,
informando que o casal precisaria “fazer agendamento, ir para uma fila, passar pela consulta e
ser escolhidos, etc” [sic]. No entanto, contrapôs estas dificuldades a serem enfrentadas no
SUS às facilidades do programa Acesso, já que o casal estaria nos critérios para ingresso:
“[...] vocês estão 8 anos tentando engravidar e têm fator masculino de infertilidade. Agora
é decisivo para vocês, qualquer outro tratamento é perda de tempo para vocês” [sic médica],
reforçando o encaminhamento para o programa.
Mesmo assim, ao final do atendimento, a paciente pediu informações sobre como
poderia fazer a IA no serviço, se precisaria remarcar consulta ou trazer novo encaminhamento
médico, como da primeira vez. A médica pediu que o casal se informasse, então, com as
enfermeiras na recepção, mas deixou seu telefone particular, pedindo para receber notícias.
Chamou à atenção a insistente indicação do programa Acesso pela médica voluntária,
passando uma falsa impressão de simplicidade e facilidade de ingresso sem que fossem
informados, principalmente, os riscos e a baixa eficácia da Fiv. O mesmo não ocorreu em
outros atendimentos no setor, nos quais o mesmo programa foi informado como uma opção
aos pacientes de maneira mais cautelosa e realista, como no caso citado do paciente que,
diante da morte do único filho homem, gostaria de reverter sua vasectomia de 11 anos. Neste
caso, o o procedimento da Fiv foi explicado, como ainda foi estimado o elevado custo
que o casal teria, caso ingressasse no programa Acesso. Durante a supervisão de outro caso,
este programa também chegou a ser cogitado como uma possibilidade, além do
65
encaminhamento para o SUS. No entanto, a médica que fez o atendimento achou melhor não
comentar com a paciente sobre o programa, evitando criar expectativas que o casal o
poderia arcar devido à baixa renda familiar. Após 13 anos de casamento, 3 anos de tentativa
para engravidar, uma cirurgia de endometriose em 2007, a retirada do ovário esquerdo e ter
feito 32 anos de idade, a paciente deveria ser imediatamente encaminhada para Fiv em SP
segundo a médica. Tentar um tratamento de baixa complexidade no setor poderia colocar a
paciente em risco, que a medicação para estimulação ovariana poderia piorar, em muito,
sua endometriose.
Mas foi na observação da consulta de L., de 37 anos, que a situação de vulnerabilidade
na qual a paciente se encontrava comoveu tanto a pesquisadora quanto a médica responsável
pelo setor, que fazia o atendimento. Bastante alterada emocionalmente, L. beijou e abraçou a
médica ao chegar, dizendo que estava meio chorosa hoje” [sic]. Demonstrava muita tristeza
e, ao mesmo tempo, desespero para encontrar uma solução para seu problema. 15 anos
tentando engravidar, teve gravidez tubária durante tratamento no ambulatório e, por causa
deste risco e da idade mais avançada (37 anos), foi encaminhada para fertilização in vitro em
São Paulo.
Inconformada com a indicação, a paciente tentou de diversas maneiras ser
encaminhada para o programa Acesso de clínicas particulares no Rio de Janeiro. Reclamou
que o processo em SP levaria mais de 1 ano e perguntou o que precisaria para ser aceita no
programa. A médica, sempre com uma postura acolhedora, tentou explicar o funcionamento
do programa e que um dos critérios para ingresso era ter a renda familiar inferior a
R$8.000,00. Imediatamente, a cliente se alegrou por sua renda ser menor do que R$600,00, já
que estava desempregada. A médica insistiu no encaminhamento ao SUS, pois “mesmo no
programa o tratamento sai caro” [sic]. Mas a cliente continuou perguntando se as clínicas o
aceitariam passar as consultas no plano de saúde da minha irmã ou então parcelar o
tratamento em mais de 10 vezes, posso passar em diferentes cartões de crédito, pego
emprestado de amigos, de parentes” [sic]. Seu desespero aumentava a cada negativa recebida.
Por fim, a cliente revelou uma grande confiança na médica, acreditando que esta
poderia encontrar alguma alternativa de tratamento para seu problema tubário: “não para
soprar, não, para abrir as trompas?” [...] É 90% de pegar [a gravidez] nas trompas, eu sei [...]
mas se tivesse um remédio, uma bombinha para soprar nas trompas...” [sic]. O sofrimento era
tão grande que adica se solidarizou com a paciente, concordou que seria ótimo se existisse
uma bombinha, mas infelizmente ela não existia. Aconselhou, mais uma vez, a cliente a tentar
a Fiv em SP, a não desanimar. A paciente saiu da consulta com a cabeça baixa, sem conseguir
66
olhar diretamente para a médica, com lágrimas nos olhos e ainda pedindo “desculpa por
qualquer coisa” [sic]. Indubitavelmente, a vulnerabilidade à qual a paciente está exposta é o
grande que não como discordar da médica que, após o término da consulta, desabafou
dizendo: “é nessas horas que a pessoa faz qualquer negócio, se coloca em situação de maior
vulnerabilidade” [sic, negrito nosso].
Diante do longo tempo de espera, de repetidas tentativas fracassadas, de gastos
financeiros e de envolvimento pessoal dispendiosos, é frequente surgir um sentimento de
anormalidade em quem passa pelo tratamento da reprodução assistida sem sucesso,
intensificando a estigmatização e os efeitos emocionais e sociais da infertilidade. Segundo
Straube (2007), esta estigmatização se estende, inclusive, aos casais que obtiveram êxito na
reprodução assistida, perpetuando-se após o nascimento e crescimento de seus filhos, pela
pouca disposição em relatar suas experiências. A autora conclui que a reprodução assistida
oferece resolução parcial ao estigma da infertilidade, pois “cala a coerção social”, mas deixa
marcas e cicatrizes que se traduzem nas inquietações dos pais em revelar ou não suas
vivências aos familiares, aos amigos e aos próprios filhos.
Neste processo da reprodução assistida, diversos autores discutem estas e outras
contingências coercitivas que impossibilitam, em geral, uma espera prazerosa e desejante de
filhos, caracterizando situações de maior vulnerabilidade. Corrêa (2001) destaca que, durante
o tratamento, é comum surgir uma constante e obcecada vigilância do corpo feminino à
procura do menor sinal de uma possível gravidez ou insucesso do tratamento; também são
frequentes os sentimentos de raiva e inveja de quem consegue ter filhos, mesmo de amigos ou
parentes, levando a uma aversão a qualquer grupo familiar e, consequentemente, ao
isolamento e à depressão.
“E quando sei quando tem gravidez? Porque tô sentindo uma aguaceira na boca, tonteira...” [sic
J., 37 anos, encaminhada para IA e/ou Fiv]; “Eu achava que eu tava grávida, mas a outra
médica aqui do serviço disse que eu não tava” [sic M., 32 anos, no ciclo de tratamento,
recebendo a confirmação da não gravidez durante exame de ultrassonografia]; A paciente de 1ª
vez trouxe um BHCG negativo, mas ainda acreditava poder estar grávida, “pois falaram que se
fosse um mês de gravidez, o exame daria negativo” [sic I., 25 anos]. A médica corrigiu a
informação, mas a usuária continuou a relatar sintomas comumente atribuídos à gravidez, como
estar “enjoada, com seios maiores” [sic]; A paciente estava agendada para ultra na feira por
dizer que havia menstruado na 6ª. Durante o exame, a médica disse que não dava para ver nada
ainda, mas a usuária mantinha a esperança de estar grávida. Perguntou se aquele endométrio
grossinho pode ser gravidez, né, ou é a menstruação que ainda não veio?” [sic L., 37 anos]. A
médica tentou, delicadamente, desfazer esta expectativa, dizendo que “tá mais parecido com
menstruação que ainda não veio” [sic]; Após dois exames BHCG negativos, como ainda não
tinha menstruado, a usuária reclamou estar “salivando demais, com gosto amargo na boca.
Sinto uma coisa na barriga muito estranha, não é dor, é um incômodo, quando deito melhora,
mas quando faço esforço volta” [sic]. À sugestão da médica de refazer o BHCG pela vez, a
paciente reagiu dizendo “de novo?!” [sic]. Assim, a médica resolveu passar remédio para que
ocorresse a menstruação. “Se menstruar ou não, é para voltar dia 1710. Tem que tomar cuidado
com as trompas, para gravidez tubária. Sentindo qualquer dor, é para ir imediatamente ao
hospital” [sic].
67
“É tanta gente novinha com filho e eu 10 anos tentando” [sic A., usuária com diagnóstico de
endometriose grave, com aderências]; Em consulta psicológica no ambulatório, R., de 42 anos
[mesmo caso discutido anteriormente], conta que “quando eu vou ao aniversário dos filhos das
minhas amigas, eu logo penso que poderia ser o aniversário dos meus filhos que eu tive aborto,
que poderiam ter aquela idade [foram 2 gravidezes interrompidas no mês de gestação, uma
em 1999 e outra em 2001]” [sic]. A paciente conta o exemplo como um trauma” [sic], com
muito sofrimento. “[...] Eu tento ficar com a parte boa, mas é o inconsciente que escangalha a
gente” [sic].
Um caso clínico marcou o ambulatório de reprodução humana observado nesta
pesquisa, citado tanto pela médica responsável quanto pela psicóloga do serviço como
exemplo do quanto o processo de reprodução assistida pode desestruturar emocionalmente
uma pessoa ou um casal. Uma paciente, há muitos anos em tratamento no setor, precisou ser
atendida com urgência pela psicóloga do serviço e encaminhada para a saúde mental, sendo
necessária uma internação em hospital psiquiátrico. E este não foi o único caso de sofrimento,
desânimo e depressão no ambulatório:
“Depois que eu operei um cisto e descobri a endometriose, fiquei muito deprimida, achei que
eu não podia mais engravidar. Eu tinha 24 anos, tinha uns 2 anos de casada. Eu ficava muito
em casa, sem querer falar nem ver ninguém. Fiquei assim uns 3 anos, me encaminharam pra
psicólogos, especialistas, rodei muito até chegar aqui [...] e a idade foi passando. melhorei
quando comecei a trabalhar fora e quando entrei aqui para o serviço. [...] Eu estava no fundo do
poço” [sic G., 31 anos].
Em consulta de vez, a paciente revelou nunca ter engravidado, apesar de tentar 3 anos.
Dois anos atrás, teve depressão por eu ter pensado que eu estivesse grávida e fiquei muito
deprimida quando soube que não tava” [sic]. No prontuário, estava anotada a observação de
“gravidez psicológica” no encaminhamento ao serviço. Quando a médica perguntou como
tratou da depressão, se tomou medicamento ou se fez terapia, a paciente disse: “a terapia foi
Jesus mesmo” [sic].
A médica perguntou como estava a paciente no início da consulta. Com certo ar de desânimo,
ela respondeu: indo” [sic]. Com 39 anos, no ambulatório desde maio/2007, aguarda que o
serviço ofereça a inseminação artificial: “porque são 9 meses esperando [a IA]” [sic
paciente]; Daqui a pouco nasce” [sic médica]. Ambas tentam descontrair diante da difícil
situação.
Outra usuária, ao ver a médica preenchendo sua idade [39 anos] no pedido de exame de
prolactina, tem seus olhos cheios de lágrimas. No seu ciclo de tratamento, perdeu o último
por falta de medicamento. “Tenho mais uma chance desse tratamento, né, doutora?” [sic].
“Com esses medicamentos podemos tentar mais 3 vezes [...] às vezes temos que insistir um
pouco, podemos tentar com outros medicamentos”, responde a médica.
Muitas das reações emocionais descritas por Muñoz (2006 apud Straube, 2007:45) a
casais que se descobrem inférteis até sua adesão aos procedimentos reprodutivos foram
relembradas e/ou apresentadas pelos usuários durante as consultas observadas no campo. Sem
necessariamente haver uma sequência rigorosa destas etapas, foram sintetizadas as reações
mais comuns frente à impossibilidade ou dificuldade de engravidar: 1) estado de choque
período inicial de autocompaixão e surpresa; 2) negação busca por outras opiniões dicas
face à possibilidade de erro diagnóstico; 3) culpa – atribuição de causalidade da infertilidade a
comportamentos passados; quem carrega o diagnóstico de infertilidade sente-se culpado(a)
68
por privar seu(sua) parceiro(a) de ter filhos; 4) culpabilização alguns casais culpam um ao
outro pela incapacidade de conceber, vivenciando ressentimentos e raiva, muitas vezes
resultando em separações; 5) desesperança associada à depressão, em geral quando o ciclo
do tratamento não é exitoso; 6) perda de controle descobrir a infertilidade pode gerar
sensação de incontrolabilidade, quando o casal tem incertezas sobre o futuro, o tempo e o
projeto de vida; 7) solidão – é frequente o isolamento como maneira de proteger-se de
sentimentos de raiva e inveja de famílias férteis, diminuindo o convívio social e restringindo a
vida do casal em torno da infertilidade; 8) agressão a hostilidade para com o/a
companheiro/a, seus familiares, o médico e para com a sociedade em geral, frustração, inveja
e impotência podem flutuar no decorrer do tratamento; 9) aceitação após períodos de
esperança e otimismo que se alternam com angústia, culpa e frustração, pouco a pouco os
casais vão aceitando sua dificuldade ou impossibilidade de conceber, principalmente quando
novas metas pessoais são compartilhadas, permanecendo sem filhos ou optando-se pela
adoção.
No trabalho de campo também foi notada certa responsabilização vinda de alguns
profissionais do ambulatório aos próprios pacientes por suas situações de infertilidade,
tornando-os ainda mais vulneráveis. Como exemplo, mais uma vez pode ser citado o caso de
R., de 42 anos, que diante de sua frustração e crítica ao serviço, foi acolhida e apoiada em
consulta psicológica. A profissional que a atendia enfatizou as qualidades do serviço, pedindo
para que a paciente levasse suas dúvidas aos médicos, aconselhando-a a explorar cada
consulta médica, perguntar mais aos médicos e se manter erguida” [sic]. No entanto, ressaltou
que “o que a gente pode perceber de tudo o que você passou é que esansiosa, mas você
depende dos médicos e eles dependem do seu organismo” [sic], atribuindo à ansiedade certa
“responsabilização” pela dificuldade da paciente engravidar. Em outro atendimento, esta
insinuação foi mais claramente identificada, quando a psicóloga recomendou que G., de 31
anos, ficasse no ambulatório por ser um lugar especializado, mas que também controlasse sua
ansiedade, pois esta pode alterar o funcionamento dos hormônios e a pessoa não sabe o que
está acontecendo. Você está no caminho certo” [sic], referindo-se ao retorno da paciente à
vida social e profissional. Por sua vez, a usuária respondeu que “agora está nas mãos de Deus
e dos médicos; se eu conseguir, amém; se não conseguir, amém. mais relaxada por estar
aqui” [sic]. Mas a psicóloga a lembrou que “está também em suas mãos [o tratamento]” [sic].
A esta colocação, a usuária terminou a consulta dizendo: “só vou desistir quando o médico
disser que não tem mais jeito... e o médico pode dizer, que eu acredito ainda que tá na mão de
Deus” [sic].
69
Outro dado de campo que, certamente, mereceria um estudo mais aprofundado, talvez
relacionado tanto a esta responsabilização quanto à noção de risco como normatização da
reprodução social, diz respeito à frequência com que o desejo de filhos das pacientes foi
colocado em dúvida frente ao frequente excesso de peso / obesidade apresentado por muitas
delas. Aqui, a hipótese de “responsabilização” está baseada na ideia de certa “força de
vontade”, muitas vezes instigada pelos médicos durante as consultas a usuárias obesas:
“Já identifiquei uma possível causa, pode ter outras, mas o excesso de peso é um [IMC=36,8].
Tem que perder peso [coloca a meta de 70kg; hoje a paciente pesa 84kg] e usar a camisinha até
novembro [por causa da vacina de rubéola]. [...] Não é estético, a gente quer que você
engravide, mas não de qualquer jeito, com saúde e para o bebê também. Se você quer mesmo
engravidar, tem que perder peso, tem que mostrar pra gente que vai perder peso, mesmo
que não consiga até novembro [próxima consulta]; ninguém perde 10 kg de uma hora para
outra” [sic médica]. A paciente foi encaminhada para a nutricionista do hospital. Ao explicar os
exames e resultados à usuária, a médica tenta animá-la dizendo: “você é nova, tem 30 anos,
tempo de resolver isso tudo” [sic].
“Aqui parado enquanto você não perder peso, não adianta aqueles regimes malucos porque
senão perde saúde e depois não para engravidar. Vai trazendo boas notícias: perdi 2,5 kg’”
[sic médica]. A paciente, de 26 anos, não menstrua 3 anos por causa da obesidade
[IMC=39]. Ao ser encaminhada para a endocrinologia e nutricionista próximos à sua
residência, a médica diz: e pensa direitinho se você quer mesmo engravidar [sic], na
tentativa de pressionar para que ela perca peso, por causa da possível gravidez de risco.
Terminada a consulta, a médica comenta com a pesquisadora que “o problema é que a paciente
não quer fazer dieta” [sic].
Diante da dificuldade em emagrecer apontada pela paciente, de 31 anos, a médica responde:
mas se quer filho tem que fazer uma força. [...] Aqui não se faz ninguém engravidar se não
tiver boa saúde [a paciente escom a glicose alta e excesso de peso]. É sério, vai ter diabete
cedo” [sic], encaminhando a usuária para fazer dieta com nutricionista.
A paciente, no ambulatório desde junho de 2006, iniciou a consulta se justificando: “a senhora
já falou para mim: ‘vou dar 2 meses para alcançar a meta de 80kg’, mas eu não consigo, parece
que eu fico ainda mais nervosa. [...] Minha nutricionista já me deu esporro, disse que ia desistir
de mim. [...] Na verdade não tenho tempo nem de correr, trabalho de caixa [em supermercado],
faço esteira 30 minutos em casa, [...] não queria tomar fórmula porque tomando outros
medicamentos” [sic]. A usuária parecia estar muito desanimada e com muito medo de levar
bronca da médica, pois a primeira pergunta da consulta foi se ela tinha conseguido perder peso.
Com bastante sensibilidade e atenção, ao invés de brigar, a médica tentou entender como estava
a dieta da paciente e no que poderia ajudar, analisando sua rotina, seus hábitos e dando algumas
alternativas como “aumentar a esteira para 1h à noite, comer mais proteína e coisas sem glúten,
evitar biscoitos e farinha, comer de 3 em 3 horas” [sic]. Por trabalhar como caixa, a paciente
não pode fazer estes intervalos para alimentar-se, nem comer frutas enquanto trabalha; diz que
seus empregadores reclamam até quando ela sai para ir ao banheiro. Mudando, então, a dieta, a
médica avisa que “não vou te dar bronca, não, você volta em 2 meses” [sic]. Ambas começam a
rir da brincadeira da bronca, mas logo em seguida a paciente tem seus olhos cheios de lágrimas:
“eu fiquei com medo porque a nutricionista já me deu esporro... eu nem queria vir [na
consulta]” [sic]. Frente às diversas frustrações e coerções vivenciadas pela paciente, a médica
comenta com a pesquisadora que “a gente tem que saber até onde pode apertar a paciente; ela já
deve ter tomado bronca comigo há 2 meses [estava com 95kg e hoje está com o mesmo peso]
[sic].
Nestes exemplos, não se pretende ignorar a influência que o excesso de peso pode ter
na dificuldade para engravidar, nem o risco de saúde que talvez estas mulheres possam sofrer
ao ter uma gestação com o IMC acima de 30, máximo permitido para que seja iniciado o
tratamento no ambulatório. No entanto, de um lado permanece a questão: será que esta mesma
exigência de emagrecimento, ou pelo menos a mesma faixa de IMC é imposta em clínicas
70
particulares de reprodução assistida para iniciar um tratamento? De outro, o problema de
obesidade parece ser tratado, aqui, mais como uma “falta de força de vontade”, de
responsabilidade das próprias pacientes, a ponto de terem a legitimidade de seus desejos de
filhos e a continuidade de tratamento questionada pelos profissionais de saúde. É importante
implicar os sujeitos nas mudanças das contingências em que vivem, mas será que a cobrança e
a responsabilização tem sido uma forma efetiva?
Alguns leitores podem se perguntar, neste momento, qual seria, então, a forma mais
efetiva e/ou assertiva para o trabalho nesta área da reprodução assistida. Não é pretensão desta
dissertação trazer um modelo ideal de atendimento, nem desqualificar as propostas
observadas no campo. Inevitavelmente, este será sempre um difícil exercício, o de observar
“de fora” uma realidade viva, dinâmica, repleta de imbricadas interações e variáveis que nem
sempre estão ao alcance dos olhos e, em se tratando de um serviço público de saúde, quase
nunca ao alcance de uma modificação imediata, apesar de inúmeras tentativas daqueles
profissionais implicados na melhoria do SUS.
Além dos paradoxos e limitações expostos neste capítulo 2, outras barreiras históricas,
sociais, econômicas, cotidianas estão presentes no ambulatório do HUMF, que representam
verdadeiros desafios aos profissionais de saúde que persistem em suas práticas visando
integralidade, acolhimento e atenção. Este é o convite do capítulo 3, discutir alguns dos
desafios, barreiras e persistências nas práticas de saúde de um serviço público de reprodução
humana no Rio de Janeiro.
71
3. DESAFIOS DE UM SERVIÇO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO
3.1. Hospital Moncorvo Filho e o Setor de Reprodução Humana do IGUFRJ
O objeto das Ciências Sociais é histórico. Isto significa que as sociedades humanas existem num determinado
espaço cuja formação social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o
futuro, num embate constante entre o que está dado e o que está sendo construído.
Cecília Minayo
Conhecer um pouco da história tanto do Hospital Moncorvo Filho, quanto do Instituto
de Ginecologia da UFRJ, especificamente do seu Setor de Reprodução Humana, faz-se
necessário não apenas para descrever melhor o campo de pesquisa, mas principalmente para
contextualizar as relações médico-paciente apresentadas nesta dissertação de mestrado.
Ambas as instituições têm suas fundações intimamente relacionadas ao processo disciplinar
discutido no capítulo 1, mais especificamente com a regulação dos bitos diários e
comportamentos individuais de crianças e mulheres, através da puericultura e da
medicalização do corpo feminino, principalmente pelas especialidades médicas da pediatria e
da ginecologia. Resgatar este breve histórico institucional complementará as análises das
anotações feitas em campo.
Hospital Moncorvo Filho: o início da puericultura no Brasil
A puericultura, estabelecida pela medicina francesa desde o final do século XVIII, que
define como deve ser o cuidado infantil, chega ao Brasil com a criação das primeiras
faculdades de medicina no país durante o século XIX (Loyola, 1983). Segundo Loyola, a
mortalidade infantil enquanto indicador social e de saúde logo passou a ser usado no Brasil
pelo dico Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo, após estágio de 2 anos em serviços de
pediatria em Paris. Graduado em 1872 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
atualmente uma das unidades da Universidade Federal do Rio de Janeiro
35
, Moncorvo de
Figueiredo dedicou-se ao estudo de doenças tipicamente infantis. Fundou a Policlínica Geral
do Rio de Janeiro em 1881, responsável pela formação dos primeiros pediatras brasileiros. O
primeiro curso regular de pediatria do país foi criado pelo médico, cuja frequência tornou-se
35
Na época, denominada Universidade do Brasil, tendo a atual denominação desde 1965. Para conhecer a história da UFRJ,
ver: <http://www.ufrj.br/pr/conteudo_pr.php?sigla=HISTORIA>
72
obrigatória em 1895, com aulas práticas a partir dos atendimentos às crianças na policlínica.
Reconhecido pelo conjunto dos pediatras como o pai da Pediatria Brasileira, foi substituído
por seu filho único na direção da instituição em 1901, após seu falecimento, quando
completaria 55 anos de idade
36
.
Carlos Arthur Moncorvo Filho, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1871, seguiu
os passos do pai na Medicina, graduando-se pela mesma faculdade, em 1897. Desde então,
propôs modificações nas instituições de amparo à infância existentes na cidade. Corroborando
as ideias higienistas da época, Moncorvo Filho acreditava que:
[...] estas crianças viviam sem o menor preceito de higiene, atrofiadas pela falta de ar e de luz
suficiente e pessimamente alimentadas. Para ele, esta situação contrariava os princípios
científicos e sociais que deviam presidir estas instituições. [...] Foi um defensor da assistência
médico-social à criança brasileira pobre. Iniciou uma intensa propaganda a favor da higiene
infantil e de uma “verdadeira” Puericultura
37
.
A “noção de infância”
38
e sua valorização, originadas a partir do século XVIII,
firmavam-se através da puericultura e da criação de espaços específicos para o atendimento e
o cuidado da criança, como o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro,
instituição filantrópica fundada por Moncorvo Filho em 1899, transferida para sua sede
própria em 1920, construída em terreno doado pelo governo federal, onde até hoje funciona o
Hospital Moncorvo Filho, no centro da cidade (Wadsworth, 1999).
Moncorvo Filho estabeleceu metas bastante ambiciosas para o Instituto, as quais continuaram
a guiar a maior parte do seu trabalho posterior. Ele preconizava uma organização que deveria
inspecionar e regular as amas de leite, estudar as condições de vida das crianças pobres,
providenciar proteção contra o abuso e a negligência para com menores, inspecionar as
escolas, fiscalizar o trabalho feminino e de menores nas indústrias. Seus outros objetivos
eram: campanha de vacinação, disseminação de conhecimentos sobre doenças infantis, como
a tuberculose; criação de institutos orientados para a assistência da criança, fundação de um
hospital para menores carentes, manutenção do Dispensário Moncorvo e a criação de outras
instituições semelhantes, além do estabelecimento de cooperação com os governos federal,
estadual e municipal, visando a proteção dos jovens e apoio a todo tipo de iniciativa que
pudesse maximizar a proteção à infância (ibidem: 2).
Almejando um programa nacional de assistência à infância, o médico idealizou e
dirigiu o Departamento da Criança do Brasil de 1919 a 1938, cujo objetivo era coletar
informações sobre diversos aspectos da assistência à infância no país. Apesar de não
conseguir transformar seus institutos em agências governamentais, é notória a contribuição de
Moncorvo Filho para o desenvolvimento posterior do programa federal de assistência à
36
Academia Brasileira de Pediatria. Cadeira 1. Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo (1846-1901). Disponível em:
<http://www.sbp.com.br/show_item.cfm?id_categoria=74&id_detalhe=1273&tipo=D> Acesso em: Nov. 2008
37
Academia Brasileira de Pediatria. Cadeira 2. Carlos Arthur Moncorvo Filho (1871-1944). Disponível em:
<http://www.sbp.com.br/show_item.cfm?id_categoria=74&id_detalhe=1274&tipo=D> Acesso em: Nov. 2008
38
Para discussão histórica da noção de infância, ver: Áries, 1981.
73
criança, assim como para a aprovação de leis específicas relativas aos direitos das crianças à
vida e à saúde (Wadsworth, 1999).
Wadsworth não deixa de destacar que, em um contexto de elevada taxa de mortalidade
infantil, de crescimento urbano, de doenças endêmicas e do aumento do “problema da
delinquência juvenil”, as propostas de Moncorvo Filho ensejavam uma ideologia eugenista,
de cunho nacionalista, cujo objetivo seria o de assegurar a riqueza e o progresso da nação
brasileira. A partir de três eventos importantes organizados pelo médico (os Concursos de
Robustez Infantil, o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância e o Museu da
Infância), o autor analisa de que forma sua estrutura institucional reforçava as hierarquias
sociais e de gênero da época, passando pelo silencioso discurso racial.
Os papéis da mulher como esposa e mãe, cuidadora do lar, sob a perspectiva das
classes sociais médias e altas, eram preconizados pelas Damas da Assistência à Infância, que
disseminavam os novos preceitos de higiene às mulheres das classes populares, cujo dever de
criar “crianças saudáveis” tornava-se uma questão patriótica. Folhetos e cartilhas educavam e
treinavam as mulheres pobres a serem mães melhores”, apresentando filhos gordinhos e
saudáveis” nos Concursos de Robustez (não por acaso, os ganhadores eram sempre brancos,
em geral meninos). Os congressos revelavam forte tendência para a centralização e o controle
governamental da assistência infantil pública e privada. O Museu da Infância, de grande
popularidade na época, reforçava a importância do progresso da medicina e da caridade
moderna nas variadas exposições sobre as crianças do passado (ano de 1500), em
contraposição às do presente (ano de 1922) (Wadsworth, 1999:6). O discurso e o saber
científico sobre como cuidar da infância eram legitimados pela diferenciação entre o normal e
o patológico, garantindo ao médico o poder e o direito de intervir no cotidiano das pessoas.
Traçar um paralelo entre as discussões de Foucault (1988) sobre instituições
disciplinares e as propostas de Moncorvo Filho torna-se inevitável, ao se caracterizarem por
um poder produtivo que considerava as crianças as representantes do futuro da nação
brasileira, sendo necessário oferecer um novo padrão de moralidade, saúde e bem-estar para
que a ordem social e a estabilidade econômica fossem preservadas, em meio a uma realidade
político-econômica capitalista. Conforme discutido no capítulo 1 deste trabalho,
principalmente no final do século XIX, a biopolítica da vida passava a organizar a população
e a espécie humana por dispositivos governamentais, através de normas que regulavam a vida
reprodutiva e social das pessoas, como as de aleitamento, de alimentação, de higiene, de
cuidado com a criança, de parto e de puerpério, por exemplo.
74
Instituto de GinecologiaUFRJ: do parto às novas tecnologias reprodutivas
Assim como as crianças, as mulheres tornaram-se alvo preferencial de cuidado, estudo
e normatização a partir do século XVIII. Imperava a ideia de que a fisiologia e a patologia das
funções sexuais femininas determinavam o comportamento social das mulheres, e que suas
possíveis consequências morais deveriam ser reguladas pela medicina. Era necessário um
forte investimento político na regulação da vida e do desenvolvimento da espécie humana,
reforçado pela nova especialidade médica: a ginecologia.
Segundo Rohden (2002b), progressos técnicos desenvolvidos a partir daquele século
como a assepsia, a antissepsia e a anestesia revolucionaram a medicina em geral e foram
decisivos para o surgimento da ginecologia, inicialmente uma especialidade cirúrgica da
região abdominal, que ao longo do século XIX distinguiu-se da obstetrícia e da cirurgia geral.
Mais do que conhecer e tratar os órgãos e as doenças femininas, a ginecologia se propôs a
estudar as próprias diferenças sexuais entre mulheres e homens, supostamente contidas na
totalidade fisiológica e psicológica dos indivíduos, não apenas nos órgãos genitais,
legitimando papéis sociais distintos atribuídos a homens e mulheres.
Assim, a supremacia das normas e prescrições médicas recaía, a partir do século XIX,
também sobre o parto e o puerpério, que desde então deveriam ser realizados apenas por
especialistas formados e credenciados por instituições médicas modernas, baseadas no
positivismo e empirismo, caracterizando a já discutida medicalização do corpo feminino
(Corrêa, 2001).
No Rio de Janeiro, a ginecologia como especialidade médica
39
foi marcada em 1936,
quando deixou de ser ministrada em conjunto com a cirurgia geral, configurando-se em uma
cadeira clínica específica, transferida em 1942 para o Hospital Moncorvo Filho. Neste mesmo
ano foi criado o Consultório de Esterilidade e, em 1943, o Ateneu da Clínica para a
discussão de seus casos e problemas. Em 1947, finalmente, o Conselho Universitário aprovou
a criação do Instituto de Ginecologia da Faculdade de Medicina (IGUFRJ). Clínica e
cátedra se uniram no ensino da especialidade, oferecendo vários cursos de extensão
39
Os dados históricos da cátedra de ginecologia do IGUFRJ apresentados neste trabalho foram retirados dos sites do Instituto
de GinecologiaUFRJ <http://www.geocities.com/HotSprings/3570/historia.htm> e
<http://www.ginecologia.ufrj.br/institucional/index.php#>; da UFRJ
<http://www.ufrj.br/pr/conteudo_pr.php?sigla=HOSPITAIS> e do Ministério da Educação
<http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/hugine.pdf>. Acessos em: 15 nov. 2008.
75
universitária, especialmente sobre câncer ginecológico, tornando o instituto um centro de
excelência no ensino da ginecologia no país.
Na cada de 1950, mudanças importantes foram notadas nas mais variadas práticas
de saúde, não restritas apenas ao parto e ao puerpério. Loyola (1983) destaca a criação, nesta
época, de organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde e a Organização
Pan-americana de Saúde, de grande influência na reorientação da prática médica no país,
instituindo normas e programas únicos de saúde para a América Latina, com destaque para as
práticas relacionadas à reprodução e aos cuidados com recém-nascidos. Acompanhando estas
mudanças, o IGUFRJ uniu-se às sociedades médicas, apoiando a criação da Federação
Brasileira da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia – FEBRASGO, em 1959.
Os diretores sucessores do instituto continuaram a incentivar a formação de
especialistas, sendo criados, em 1964, o Curso de Especialização em Ginecologia, em sistema
de residência, e o de Pós-Graduação “Stricto sensu” em Ginecologia, em 1975, ambos ainda
em funcionamento. Do ponto de vista acadêmico, prosseguem até hoje atividades de ensino,
pesquisa e extensão no IGUFRJ, como: disciplinas eletivas e internatos rotatórios e eletivos
para alunos de graduação da Faculdade de MedicinaUFRJ; cursos de extensão universitária
de diversos temas; o Mestrado e o Doutorado em Ginecologia; seminários e reuniões
semanais do Centro de Estudos; conferências ministradas por professores convidados, além de
inúmeras publicações e participações dos docentes e alunos em cursos, jornadas e congressos
da especialidade em todo o Brasil.
Do ponto de vista assistencial, os atendimentos têm sido de natureza primária,
secundária e terciária em ambulatórios especializados e no de ginecologia geral, e em
procedimentos cirúrgicos correspondentes a leitos de enfermaria. Embora funcione dentro da
rede assistencial como Hospital de Referência, a tendência é funcionar como hospital de
natureza terciária.
Localizado no Hospital Moncorvo Filho, no Centro da Cidade, o Instituto de Ginecologia é
centro de referência para a região do Grande Rio e de todos os municípios do estado. Em seus
57 anos de funcionamento, já foram atendidas 250 mil pacientes. É a única unidade hospitalar
da UFRJ que possui Serviço de Radioterapia, existente apenas em mais duas instituições
públicas no município do Rio de Janeiro Inca e Hospital de Oncologia. A radioterapia é
procedimento terapêutico imprescindível na oncologia ginecológica e determina um
prolongado acompanhamento dos pacientes. Trabalham ainda com reprodução humana e
fertilidade e através de uma reestruturação para um melhor atendimento ao público o próximo
passo será promover a reprodução IN VITRO
40
[grifo da autora].
40
Retirado de: <http://www.ufrj.br/pr/conteudo_pr.php?sigla=HOSPITAIS> Acessado em: 15 nov. 2008
76
Setor de Reprodução Humana: Professora Clarice do Amaral Ferreira
Promover a fertilização in vitro talvez ainda demore a ocorrer no IGUFRJ, mas a
infertilidade humana tem sido objeto de estudo e de intervenção desde 1942, quando foi
criado o Consultório de Esterilidade.
No início, as consultas de esterilidade aconteciam na sala de curativos da enfermaria,
caracterizando-se como um “serviço móvel”, quando a jovem e pioneira médica, Clarice
Amaral Ferreira, andava pelo hospital com as fichas médicas (prontuários) nos bolsos do
jaleco, atendendo as pacientes onde fosse possível (Ferreira et al, 1974 apud Costa, 2008).
Um local específico de atendimento foi estabelecido no Ambulatório Geral anos mais
tarde. Em 1974, o Setor de Esterilidade fazia parte da Divisão de Reprodução Humana do
Instituto de Ginecologia. Em 2007, as instalações físicas deste ambulatório passaram por
reforma, sendo inaugurado, em março de 2008, o então Setor de Reprodução Humana: Profa.
Clarice Amaral Ferreira.
Apesar de vivenciar um momento promissor na área de esterilidade, com ampliação da
produção acadêmica e premiações de trabalhos em congressos nacionais, a atual médica
responsável pelo setor vem enfrentando dificuldades administrativas, financeiras e políticas
desde 2003, quando assumiu o cargo, recebendo críticas veladas ou mesmo explícitas por
programar um setor de reprodução assistida na instituição (Costa, 2008). Muitas dessas
dificuldades estão presentes desde a fundação do serviço, barreiras comuns a diversos outros
setores do sistema público brasileiro, como as modestas instalações, a falta de um quadro de
funcionários mais adequado às necessidades do ambulatório, o o acesso a exames e
procedimentos específicos de diagnóstico e de tratamento. Outras estão relacionadas a
questões sociais e de gênero ligadas à reprodução e à sexualidade, fazendo-se presentes na
observação de campo desta pesquisa, algumas já destacadas anteriormente neste trabalho.
Atualmente, o serviço funciona às segundas, quartas e sextas-feiras pela manhã (das
8h às 12h). Em média, são atendidas entre 15 e 30 mulheres/ casais por dia. No ano de 2007,
até o mês de outubro, ingressaram 360 novas pacientes e 1575 deram continuidade ao
tratamento, com 41 mulheres grávidas (Costa, 2008).
O setor conta com uma sala de espera, na qual ficam dispostas cadeiras individuais
encostadas na parede para as usuárias, uma pequena TV e uma mesa de recepção em frente à
porta de entrada, ocupada por pelo menos uma enfermeira responsável pelo atendimento e
ordenação dos prontuários por ordem de chegada, por consultas de 1ª vez, por monitoramento,
ou por ultrassonografia. Esta sala de espera dá acesso a uma pequena sala de reuniões, que às
77
vezes é usada também para atendimentos, com uma mesa redonda e um computador para
armazenamento da base de dados do setor.
Ela ainda divide o ambulatório em duas “alas”. Na da esquerda, três consultórios
clínicos, todos com lavatório e cadeira ginecológica, que é separada de uma mesa de
atendimento e de duas cadeiras por uma divisória alta, garantindo mais privacidade ao exame
clínico. Ainda nesta ala, uma pequena sala de atendimento, em geral usada para
monitoramento e encaminhamento ou atendimento do serviço social. Na ala da direita, há uma
sala de ultrassonografia com banheiro exclusivo e uma pequena antessala, onde as usuárias
aguardam pelo exame, já vestidas com jaleco próprio. Ao lado, uma escada estreita acesso
à sala de atendimento psicológico realizado por duas voluntárias em dias alternados. Um
grande armário guarda formulários e jalecos limpos para exames. Um corredor (onde ficam
uma balança e um negatoscópio) acesso a uma pequena copa, a um laboratório (que ainda
está sendo equipado para o futuro serviço de inseminação artificial), a uma sala de
esterilização de instrumentos usados nos exames ginecológicos, a um banheiro exclusivo para
as mulheres do ambulatório e a um quarto consultório, que difere dos demais por ser equipado
também de ar condicionado e cadeira ginecológica mais moderna, onde serão realizadas as
inseminações, assim que o procedimento estiver disponível. Hoje, ele também é usado,
quando necessário, para atendimentos e exames clínicos.
No mesmo espaço físico, à tarde e nos demais dias da semana, funcionam os
ambulatórios de Gineco-Endócrino, de Infarto-Puberal, de Adolescentes e de Planejamento
Familiar do Instituto de GinecologiaUFRJ.
Apesar de a Constituição Federal garantir a todo cidadão direito ao Planejamento Familiar,
poucos hospitais da rede pública oferecem o serviço. Entre eles, encontra-se o IG/UFRJ que
oferece aos casais avaliação, indução da ovulação, controles ultrassonográficos, técnica de
relação programada, tratamento cirúrgico laparoscópico e histeroscópico, microcirurgia de
trompas, entre outros. A lista de espera para a marcação da primeira consulta é de seis meses.
(Olhar VirtualUFRJ, 2007)
O Instituto de Ginecologia
41
esintegrado ao SUS, atendendo usuários nas diversas
enfermarias, ambulatórios e centro cirúrgico
42
. Embora instalado dentro do Hospital
Moncorvo Filho, possui autonomia administrativa, sendo um dos mais importantes órgãos do
41
Sobre a descrição do IG: A unidade ambulatorial compreende: Ambulatório Geral – triagem fina; Patologia cervical –
prevenção do câncer ginecológico; Patologia vulvar; Mastologia – Unidade de Mastografia de alta resolução; Urologia
feminina; Esterilidade; Endocrinologia ginecológica; Ginecologia infanto-puberal e da adolescência; Planejamento familiar;
Endoscopia ginecológica e Ultrassonografia; Radioterapia; Assistência social; Videoendoscopia diagnóstica e cirúrgica.
A unidade de hospitalização compreende: Leitos para radioterapia - 07 leitos; Leitos para patologia cirúrgica - 43 leitos
ativos; Leitos para patologia cirúrgica - 17 leitos (one day); Leitos para recuperação anestésica - 06 leitos; Quartos
particulares - 02 leitos; Total - 58 leitos existentes. Dados retirados do site
<http://www.geocities.com/HotSprings/3570/historia.htm> Acesso em: 15 nov. 2008.
42
Disponível em: <http://www.ginecologia.ufrj.br/institucional/index.php#> Acesso em: 15 nov. 2008.
78
Centro de Ciências da Saúde da UFRJ
43
. Em 2001, foi descredenciado pelo Sistema Único de
Saúde por causa de uma séria crise, tendo suas atividades prejudicadas com a falta de
recursos
44
. Um movimento em prol da recuperação da instituição foi iniciado por
funcionários, pacientes, alunos, ex-alunos e amigos do IG/UFRJ, com o restabelecimento das
atividades acadêmicas e assistenciais no segundo semestre de 2002 (Costa, 2008).
Os esforços atuais m sido para transformar a unidade em um centro de excelência
em fertilidade, oferecendo Reprodução Assistida de média complexidade. Em depoimento à
publicação da coordenadoria de comunicação da UFRJ, o diretor do IG afirmou que "temos
espaço e material humano para isso, o que nos falta são verbas, um pouco de vontade política
e que a sociedade tente compreender o pesado fardo de quem não consegue ter filhos" (Olhar
Virtual, 2007). A expectativa era de que, em novembro de 2008, o serviço já oferecesse a
inseminação artificial, o que ainda não foi concretizado, apesar dos esforços. Conforme
apontado, os casais que recebem indicação para IA ou FIV são encaminhados para tratamento
público em São Paulo, sendo auxiliados pelas assistentes sociais do IG.
3.2. Perfil do público usuário
O perfil do público a ser descrito e analisado tem como base a tese de doutorado da
bióloga Tonia Costa (2008), que sistematizou dados pessoais e de relevância clínica da busca
por solução da infertilidade no serviço. A partir de amostra aleatória simples, o estudo
quantitativo analisou 327 prontuários de pacientes de primeira consulta (prontuário zero) do
ambulatório de infertilidade (20% do total de 1617 prontuários de primeira consulta datados
entre janeiro de 2003 a dezembro de 2005). Na parte qualitativa, foram realizadas entrevistas
para identificar representações, valores e crenças associadas à percepção de risco relacionada
à saúde reprodutiva humana em mulheres/ casais inférteis. De fevereiro a julho de 2007, todas
as mulheres que compareceram ao serviço foram convidadas a participar da pesquisa, após a
43
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/hugine.pdf> Acesso em: 15 nov. 2008.
44
Segundo matéria do Jornal do Brasil online, houve denúncias de que o instituto estava cobrando pelos exames de
mamografia e ultrassonografia, o que de fato era realizado apenas para as pacientes particulares, não vinculadas ao SUS. Ver:
<http://jbonline.terra.com.br/extra/2001/08/08/e0808093.html> e
<http://jbonline.terra.com.br/extra/2001/08/08/e0808050.html> Acessos em: 27 nov. 2008
79
consulta médica. No total, foram ouvidas 50 mulheres: 25 de “primeira vez” e 25 em
acompanhamento
45
.
Idade e busca por tratamento
A maioria das mulheres atendidas no ambulatório tinha entre 26 e 35 anos, conforme a
tabela abaixo:
Tabela 1.1- Distribuição das pacientes por idade e por tipo de coletada de dado.
Dados quantitativos: prontuários
Ano: 2003 a 2005
Dados qualitativos: mulheres entrevistadas
Ano: 2007
Idade 327 em consulta de 1ª vez
25 em consulta de 1ª
vez
25 em acompanhamento
26 a 30 anos 30,6% 30,8% 28%
31 a 35 anos 33,3% 42,3% 44%
É interessante notar que, para o período de 2003 a 2005, os dados o mostraram
diferença percentual relevante entre os grupos de 26 a 30 anos e de 31 a 35 anos. No entanto,
já nos dados qualitativos de 2007, esta diferença se faz presente nos dois grupos entrevistados,
principalmente entre as que estão em acompanhamento no ambulatório, possivelmente
retratando uma difícil realidade de as mulheres, quando em tratamento pelo SUS, avançarem
em suas idades reprodutivas na espera por consultas, exames, diagnósticos, medicamentos e
encaminhamentos.
Esta prevalência etária poderia ser remetida à discussão de diversos autores sobre a
decisão, cada vez mais comum na contemporaneidade, de adiar a maternidade, refletida nas
estatísticas sobre as taxas de fecundidade observadas no país, em queda desde os anos 60
46
.
As mudanças na forma de urbanização e industrialização, o aumento da participação da
mulher no mercado de trabalho, a ampliação e aumento no nível de escolaridade, mesmo que
repercutidos de formas desiguais entre as diferentes classes sociais e regiões do país, sem
dúvida contribuíram para que a fecundidade no Brasil chegasse, nos dias atuais, a taxas
comparáveis a de países desenvolvidos (Corrêa, 2001).
No caso do Brasil, é importante reforçar, mais uma vez, que a transição demográfica
remete muito mais à medicalização da reprodução, atrelada à pressão da indústria da
contracepção e planejamento familiar, do setor privado na medicina, de empregadores,
principalmente sobre a mulher inserida no mercado de trabalho, e dos meios de comunicação
45
Para descrição completa da metodologia, instrumentos, coleta dos dados e outras características do perfil do público
usuário do setor de Reprodução Humana do HUMF/UFRJ, ver Costa (2008).
46
É sabido que, no Brasil, “as taxas sofreram redução de 24.1% entre 1970 e 1980, de 38.6% na década seguinte e a partir
daí, 11.1% entre 1991 e 2000” (Berquó & Cavenaghi, 2003:1). Segundo as autoras, a PNAD 2004 confirmou a tendência
declinante da fecundidade em relação ao último censo (12.5% de queda), atingindo seu nível mais baixo: média de 2.1 filhos
por mulher.
80
de massas, do que à melhoria efetiva das condições de vida da população. Cabe-nos, então,
questionar quais consequências desse processo se fazem presentes nas observações de campo
desta pesquisa e nos dados apresentados sobre o perfil do público atendido no Setor de
Reprodução Humana do IGUFRJ.
Por outro lado, o fato de as mulheres do setor terem, em sua maioria, entre 31 e 35
anos o significa que tentaram engravidar apenas a partir destas idades. Muitas chegaram ao
HUMF após longa peregrinação em busca de diagnóstico e tratamento para a ausência de
filhos, inclusive em serviços particulares, como no caso observado de C., com 30 anos,
quinze tentando engravidar (desde que se casou). Em sua consulta no ambulatório, relata
nunca ter usado nenhum método contraceptivo e, mesmo depois de 10 anos fazendo exames,
“nunca chegaram a uma conclusão do por que não engravido [...] porque fico meses fazendo
exames sempre dando normais... vamos ver agora, né?” [sic]. fez dois tratamentos de baixa
complexidade, em 2008, em Duque de Caxias, mas pelo alto custo dos medicamentos,
lamenta dizendo que “aí fica mais difícil” [sic].
Vale ressaltar que um dos critérios de ingresso ao serviço de Reprodução Humana do
Moncorvo Filho é ter, no máximo, 35 anos, salvo alguns casos analisados separadamente pela
médica responsável. O estabelecimento desta idade máxima para a entrada vai além da
tentativa de adequar a enorme procura pelo serviço ao número limitado de consultórios e
médicos/residentes disponíveis. Revela uma preocupação médica com a idade reprodutiva da
mulher, com os riscos gestacionais que uma gravidez “tardia” pode representar para a sua
saúde, além da falta de recursos de alta complexidade para o tratamento no serviço, caso
sejam necessários.
“A entrada (das pacientes) é de até 35 anos, mas não tem idade para permanecer... mas ficam
até 38 ou 39 anos, porque se demorar muito para encaminhar para FIV, por exemplo, elas
não têm a menor chance, porque vão ficar na fila [do SUS]; até conseguir vão estar com mais
de 42 anos... ou recebem alta daqui” (resposta de uma médica, após ser questionada sobre o
limite de permanência no serviço pela pesquisadora).
Encaminhamentos
Segundo Costa (2008), do total de mulheres pesquisadas no setor, 65,8% declararam
uma busca prévia por tratamento de 3 a 8 anos. Entre as mulheres em acompanhamento, 23%
chegaram a declarar de 10 a 14 anos de tentativa de gravidez. Dos dados quantitativos, 96,5%
das pacientes chegaram ao setor encaminhadas (a grande maioria pelo SUS- 69,9%; 12,1%
pela rede particular). Dos dados qualitativos, 80% das mulheres em consulta apresentaram
81
encaminhamento, inclusive de outros municípios, e 96% das usuárias em acompanhamento
chegaram referenciadas de outros serviços.
Este elevado número de encaminhamentos iniciais mostra, na maioria das vezes, que
os usuários têm que enfrentar não apenas a ausência de políticas públicas sobre o problema,
mas principalmente o cansaço, a frustração, o desânimo e a cobrança social incessante da
paternidade e maternidade biológicas.
“Rodei muito até chegar aqui [...] e a idade foi passando” (G., 31 anos). Em consulta
psicológica, a paciente relata ter operado um cisto 7 ou 8 anos, quando descobriu uma
endometriose. Tenta engravidar desde os 24 anos, dois após se casar com seu atual marido.
Depois da cirurgia, ficou muito deprimida por achar que não poderia mais engravidar, sendo
encaminhada para especialistas. Por 3 anos, só ficava em casa, sem querer falar com ninguém.
Melhorou quando começou a trabalhar fora: “eu estava no fundo do poço” [sic].
Moradia
Em sua maioria, os usuários residem em localidades distantes do hospital,
demandando mais tempo e dinheiro para o deslocamento. Durante a observação de campo,
esta distância foi apontada como grande dificuldade por alguns usuários. Uma paciente
reclamou que, mesmo acordando às 5h, muitas vezes só consegue chegar ao hospital às 11:30,
quase no final do atendimento, o que é recriminado por alguns médicos por acharem “uma
sacanagem aquela que chega às 11h e ainda quer ser atendida” [sic]. Um casal, em consulta
pela 1ª vez no setor, mostrou-se preocupado com o custo que poderia ter com transporte, pois
não sabia se o micro-ônibus da prefeitura de sua cidade seria disponibilizado novamente para
os exames e os retornos. Outro usuário preferiu fazer o espermograma em clínica particular,
pois o preço que gastaria indo ao hospital seria o mesmo gasto com o exame (R$20,00).
Outro caso ilustrativo foi o de uma paciente que perguntou à médica se o esperma do
marido não poderia ser colhido em casa e trazido ao laboratório, já que este não tinha
conseguido coletar a amostra no hospital, apesar de algumas tentativas. Morando há mais de 2
horas do hospital, esta o era uma solução viável para o casal, pois o material deve ser
levado em, no máximo, 40 minutos, mesmo no isopor. Neste exemplo, outras variáveis
interferiram na coleta, principalmente a falta de um lugar apropriado dentro do setor de
urologia ou de reprodução humana. Os homens têm que ejacular em recipiente próprio para o
exame no mesmo banheiro que atende ao público geral do hospital, muitas vezes sendo
pressionados por outros homens que querem usar o banheiro. Sem alternativa, médica e
paciente concordaram que uma solução seria o esposo coletar o men na casa de sua mãe, na
82
Tijuca (bairro relativamente próximo ao hospital), mesmo sendo uma situação desconfortável
e constrangedora para o casal.
A dificuldade do espermograma no hospital se repete. Em outro caso, o marido não
conseguiu fazer o exame, pois ficou muito nervoso ao ser pressionado no local da coleta
(banheiro do hospital). A esposa pediu, então, para darem uma volta enquanto pensava em
alguma solução. Ele queria desistir e ir para casa, mas caminhando na rua ela sugeriu dele
entrar em um motel barato próximo ao hospital e fazer o exame com calma. Foi o que
aconteceu.
Não podemos esquecer que, atreladas à dificuldade de moradia e de infraestrutura do
hospital, encontram-se questões de gênero importantes nos breves relatos acima sobre o
espermograma, relacionadas a temas já debatidos neste trabalho, como masculinidade e
virilidade. Neste último caso, por exemplo, mesmo conseguido realizar o exame, o marido
pediu que a esposa entregasse a amostra ao laboratório, sem querer entrar novamente no
hospital. Ela demorou apenas 10 minutos para chegar do motel até o setor de entrega.
Atividade Econômica
A grande maioria das mulheres trabalha (cerca de 60%), destacando-se as atividades
administrativas e serviços complementares (11,2%), os serviços domésticos (10,1%), os
trabalhos no comércio (11,6%), no setor de serviços (9,3%), nas áreas de educação (4,8%) e
de saúde humana e serviços sociais (4,5%)
47
.
Segundo a médica responsável pelo setor (Olhar Virtual, 2007), a maioria dos casais
que procura ajuda nas unidades públicas de saúde, como o Instituto de Ginecologia da UFRJ,
ganha mensalmente de dois a cinco salários mínimos. A dificuldade financeira para comprar
medicamentos e realizar exames impossibilita, muitas vezes, o apenas que estes casais
procurem clínicas particulares de reprodução assistida, mas também que deem continuidade
aos tratamentos oferecidos no SUS.
A paciente, de 31 anos, seis tentando engravidar, comprou o remédio receitado pelo
antigo ginecologista para as “manchas no útero” após 6 meses da consulta, porque dava
mais de R$200,00; eu nem voltei no médico” [sic].
A usuária, de 25 anos, diz ter vindo ao setor hoje porque de manhã menstruei, mas quando
cheguei aqui não desce mais [...] dá raiva [...] mas senão teria que esperar até novembro para
vir” [sic]. Desde abril/2005 no ambulatório, ela conhece bem os ciclos de tratamento e não
queria perder este. No entanto, teria que aguardar a médica responsável retornar das férias
para ver se, em novembro, o setor conseguirá amostras do medicamento, que custa em torno
47
Para especificar estas categorias, ver Costa (2008).
83
de R$600,00. Outra usuária, de 39 anos, também perdeu o ciclo do tratamento pela falta da
medicação; ela estava no seu quarto ciclo de tratamento.
No retorno ao ambulatório, a paciente trouxe os exames de sangue solicitados, mas não fiz
o raio-x, não; estava caro, mais de R$50,00 perto de onde eu moro” [sic].
Paciente e médica comentam do preço do exame de HSG em clínicas particulares, que varia
em torno de R$340,00 a R$500,00. Tentando encontrar alternativas gratuitas ou mais baratas,
a médica informa que “no Hospital da Santa Casa está R$150,00; nos hospitais de
Bonsucesso, da Lagoa e de Ipanema é de graça, mas demora a conseguir o exame” [sic].
Explicou para a usuária o que era o exame e sua preparação.
Outras dificuldades enfrentadas por quem tem emprego e precisa ficar a manhã toda
no ambulatório também foram observadas. Todas as clientes são agendadas para as 8:00 (o
horário de funcionamento é das 8h às 12h), sendo chamadas por ordem de chegada e por
categorias (1ª vez, monitoramento ou acompanhamento). Em geral, por demandar mais tempo
de consulta e ser feito o preenchimento de uma ficha com dados gerais e ginecológicos, as de
1ª vez são deixadas por último ou atendidas pelos residentes.
Quando o ambulatório conta com vários médicos voluntários e alunos, o atendimento
costuma ser pido. No entanto, em muitos dias apenas um ou dois dicos no setor,
fazendo aumentar a espera. Especificamente no mês de outubro, quando a médica responsável
estava de férias, por vários dias havia apenas uma médica voluntária para atender mais de 20
usuárias no período da manhã. Às vezes, foi preciso atender duas ao mesmo tempo, uma em
cada consultório, adiantando o preparo de exames ou fazendo monitoramento, por exemplo.
Esta médica tentava garantir, mesmo assim, a atenção necessária na consulta, realizando
exames clínicos antes de fazer encaminhamentos para o HSG, por exemplo, para verificar o
colo do útero e possíveis infecções, ou explicando detalhadamente o uso de medicamentos e
indicações.
No entanto, eram inevitáveis o desespero e reclamações de algumas usuárias que
precisavam chegar ao emprego ainda pela manhã, como no caso de J., de 37 anos, que estava
no ambulatório desde as 7:40h e ainda não tinha sido atendida até às 10h, precisando estar no
trabalho às 10:30. No atendimento, ouviu que “infelizmente, o pior é que esperou para eu
dizer que ainda não estamos fazendo IA” [sic médica].
Outra dificuldade diz respeito ao atestado médico a ser apresentado no trabalho,
justificando as ausências para os diversos exames diagnósticos ou retornos. Tanto mulher
quanto homem podem solicitar aos médicos um atestado, mas a situação se complica quando
os pacientes moram longe do hospital, ou quando o atestado é destinado ao parceiro:
J. [homem], de 54 anos, motorista de ônibus, estava com medo do empregador não aceitar um
atestado de “reprodução humana”, pedindo para a médica colocar outra justificativa. De fato,
não é incomum discriminação em empresas, principalmente quando é a mulher quem
84
apresenta um atestado confirmando que ela está tentando engravidar. No caso do homem, o
atestado carrega importantes questões de gênero, como tornar pública a possível infertilidade
masculina. No caso deste paciente, pelos resultados dos espermogramas a indicação é de IA.
Segundo a médica, sua própria profissão atrapalha na gravidez, que permanece sentado de
10 a 11 horas por dia. “Mas o que eu devo fazer? Eu preciso trabalhar.” [sic usuário]. Ele
tenta marcar os exames e consultas em sua folga semanal (nas 2as feiras). Pelos exames, o
que esalterado é a motilidade do espermatozoide que, segundo a médica voluntária, isso
volta fácil, é ficar uns 5 dias sem trabalhar” [sic]. No entanto, a médica ainda alerta que o
esposo deve passar pelo andrologista para ver se tem algum outro problema.
A esposa pergunta se a médica pode dar o dia todo para o marido, porque eles moram longe,
mas ele teria que levá-la em casa e ainda se arrumar para ir ao trabalho. A médica diz que
poderia dar atestado para o horário de atendimento e de espera. Complementa dizendo para o
esposo: “olha, você não precisa ficar vindo aqui, pois já trouxe seus exames [...] a não ser que
queira e tenha disponibilidade” [sic]. Tanto a dificuldade de conseguir atestados quanto a fala
da médica podem desestimular a participação masculina no tratamento.
No final da consulta, receoso e gagejando um pouco, o esposo pede atestado para ele, pois
sempre acompanha a esposa, que tem problemas auditivos e maior dificuldade em atravessar a
rua sozinha ou em compreender tudo o que é falado durante a consulta.
L., de 33 anos, tenta engravidar desde 2006. fez 6 ciclos com CLOMID
48
em tratamentos
anteriores. Os médicos do ambulatório do HUMF decidem tentar mais 3 ciclos com o
medicamento para, depois, fazer reavaliação e programar IA. Na terceira consulta (100908 -
indução de ovulação; 170908 - retorno monitoramento; 190908 - programada nova visita), a
médica anota no prontuário que a paciente “talvez não poderá fazer o próximo controle pois já
faltou 2 vezes ao trabalho. Deixa também período para tentar fazer fora. Não tem como voltar
para ver rotina” [sic].
A paciente V., de 34 anos, que tenta engravidar desde os 21, revela que está grávida e que
precisa de um encaminhamento formal do ambulatório para fazer o pré-natal. Imediatamente,
a residente parou de ler o prontuário (a 1ª consulta data de 01/4/1998) e disse “mas o pré-natal
não é feito aqui [...] mas engravidou, não tem mais nada a ver com a gente [sic]. A
paciente explicou que o hospital mais próximo de sua casa, em Bangu, pediu que ela levasse
um encaminhamento formal do HUMF. Também relatou estar sentindo muito enjoo e tontura,
o que a tem atrapalhado no emprego. Perguntou, então, se a residente não poderia dar uma
“dispensa” [sic] para que levasse no trabalho, “porque não consigo pegar no pesado” [sic].
Em resposta, a residente informa que posso dar dois dias de atestado que é o tempo de você
correr atrás disso [do pré-natal]” [sic]. Receitou medicamento para enjoo e tontura.
Este último caso é o mesmo discutido no capítulo 1 sobre o estigma da “infertilidade
secundária” que poderia, ou não, estar relacionada ao aborto provocado pela paciente aos 16
anos. O que seria motivo de festa em outras situações no ambulatório, o houve nenhuma
comemoração por parte da residente pela tão esperada gravidez. Ao contrário, a paciente foi
imediatamente desligada do serviço, que se “engravidou, não tem mais nada a ver com a
gente” [sic]. Sobre o atestado, dificilmente a paciente conseguiria agendar o pré-natal em dois
dias, considerando todas as barreiras burocráticas que existem em serviços públicos de saúde,
a começar pelo pedido de encaminhamento formal do HUMF. A paciente tentara fazer este
agendamento, provavelmente perdendo algum outro dia de trabalho.
48
Segundo a bula do medicamento, CLOMID é usado no tratamento de infertilidade feminina decorrente de anovulação,
induzindo a ovulação. O tratamento consiste de 3 ciclos, o qual pode ser contínuo ou alternado, a critério médico. Após o
tratamento, a paciente deve tentar a gravidez. Informações retiradas de:
<http://www.bulas.med.br/index.pl?C=A&V=66506F737449443D35363138266163743D73686F7752656164436F6D6D656
E7473> Acesso em: 11 fev. 2009
85
É importante ressaltar que a postura adotada pela residente não foi a mesma de outra
médica, mais tempo no ambulatório, em atendimento a outra usuária grávida no
ambulatório. A paciente, de 28 anos, que tentava há 1 ano e 6 meses engravidar, foi orientada
sobre o pré-natal a ser realizado em outro serviço, sem ser imediatamente desligada do
HUMF. A médica falou sobre uma possível infecção urinária, o uso do ácido fólico para a
formação fetal nos três primeiros meses de gestação, além de medicar os frequentes enjoos;
pediu para a paciente tentar agendar uma ultrassonografia no ambulatório “para o dia 14, que
já deve dar para ver alguma coisa [...] não é a que dá para ver todo o bebê” [sic]. Ao explicar a
ultra, a médica ainda informou que esta não fazia nenhum mal para o bebê, assim como
manter relações sexuais durante toda a gravidez, abrindo espaço para a usuária tirar dúvidas:
“Tem alguma dúvida? Cólica? Sangramento? Qualquer dúvida?” [sic]
Escolaridade
Com relação à escolaridade, unindo os dados quantitativos aos qualitativos de Costa
(2008), uma grande parcela estudou até o Ensino Fundamental (28,6% incompleto e 19,4%
completo) e outra até o Ensino Médio (15,3% incompleto e 26,5% completo). Mesmo que em
número menor, 10% das pacientes chegaram ao Ensino Superior (4,9% incompleto e 5,1%
completo ou mais). Apenas uma (0,2%) das pacientes era analfabeta.
Sem menosprezar as inúmeras variáveis que condicionam o exercício pleno da
cidadania, a educação é parte fundamental para que as decisões dentro do contexto da RA
possam ser tomadas com maior “autonomia”, esclarecimento e “liberdade”, levando-se em
consideração o debate proposto no capítulo anterior sobre estes conceitos. Em observação de
campo, uma médica comentou que apesar de o sistema público de saúde ter muita carência,
“faltando tudo, as mulheres do serviço reclamam pouco, talvez por não acharem que têm
direitos quando o assunto é fertilização in vitro [sic]. Talvez esta declaração pudesse ser
diferente caso o grau de escolaridade das usuárias fosse maior e, principalmente, se a
desigualdade social e o desrespeito às políticas públicas de saúde o fossem tão exacerbados
no Brasil.
Foi curioso quando uma das pacientes apresentou seus exames gravados no seu laptop,
recebidos online pelo laboratório onde os realizou. A dinâmica do ambulatório mudou; os
alunos não sabiam como atender aquela paciente, demonstrando maior receio de não adotarem
o procedimento correto, aguardando que a médica responsável pelo setor pudesse acompanhá-
los na consulta. “Estas clientes assustam os residentes e internos. [...] Parece cliente da clínica
86
particular [...] é bom que cheguem mulheres aqui com mais informação” [sic]. Esta foi a
opinião da médica que, em diversos momentos da observação, estimulou o melhor
entendimento das pacientes sobre os procedimentos realizados por elas, seja durante os
exames ginecológicos e ultrassonográficos, seja na busca por seus direitos reprodutivos,
dentro e fora do hospital.
3.3. Barreiras e persistências de um serviço de referência no SUS
A aproximação do campo realizada durante três meses no setor do HUMF/UFRJ
possibilitou que esta dissertação conhecesse, pelo menos um pouco, o difícil cotidiano não
apenas de homens e mulheres, que por anos persistem em seus desejos por filhos, mas
também de médicos e médicas que enfrentam antigas barreiras políticas, econômicas e
burocráticas do serviço público de saúde brasileiro. Algumas destas questões foram
apresentadas em outros momentos deste trabalho, porém neste subitem pretende-se destacar
as observações referentes à atenção médica nas práticas de saúde e as normas de gênero e de
reprodução social embutidas nas falas e posturas de usuários e profissionais, constituindo a
viva e dinâmica realidade de um serviço de referência em reprodução humana no Rio de
Janeiro.
Em consonância com Costa (2008), pode-se dizer que, em relação ao atendimento, um
primeiro grande problema está no quadro de funcionários efetivos do serviço. A dica
responsável pelo setor é a única efetiva do HUMF/ UFRJ. Se já é difícil atender uma demanda
diária de quinze a trinta pacientes em acompanhamento e de três a cinco pacientes de
“primeira vez” apenas com os médicos voluntários e residentes, o atendimento fica ainda mais
lento no início dos períodos letivos ou de férias escolares, sem o auxílio dos alunos da
faculdade de medicina. Algumas vezes, a ausência de médicos prejudica ou até interrompe o
tratamento dos usuários, como no caso de uma paciente. Por causa do diagnóstico de
endometriose grave, A. toma certo medicamento três anos sem intervalo. Precisou
interrompê-lo para realizar HSG, mas além de o laboratório onde realizaria o exame não ter
aceitado seu plano de saúde, a paciente ficou 15 dias com sangramento, sem saber o que fazer,
por não conseguir falar com nenhum médico do ambulatório, reunidos em um congresso de
reprodução assistida na época. A usuária teve que aguardar sua próxima consulta: é tanto
obstáculo que às vezes penso em desistir” [sic].
87
Outra paciente, no seu ciclo de tratamento no ambulatório, solucionou o problema
de o serviço estar fechado quando precisava realizar uma ultrassonografia pagando pelo
exame em uma clínica particular: “ah, fui fora e fiz [o exame transvaginal, após ir ao
serviço e não encontrar médico nem 5ª, nem feira]. Nossa, para não perder o ciclo [...]
nossa, é uma luta!” [sic]. Pelo exame, a paciente tinha ovulado: “Agora é aguardar, não
para ver mais nada” [sic médica]. “Ai, não aguento mais” [sic], diz a paciente que está há dois
anos em tratamento no serviço e já perdeu uma gravidez. Recomeçou, então, a medicação.
Também o processo de aprendizagem é prejudicado pela sobrecarga de atendimentos
no setor, sem necessariamente haver disponibilidade para leituras prévias de prontuários ou
discussões mais detalhadas dos casos encaminhados ou em andamento, conforme orientação
para conduta médica no ambulatório. Em muitas observações de campo, esta leitura e as
discussões sobre procedimentos, sintomas e hipóteses diagnósticas eram realizadas na
presença dos usuários. Por um lado, esta prática oferecia a estes a oportunidade de entender
melhor seus próprios problemas, conhecer os termos técnicos usados, discriminar alterações
em seus próprios corpos e metabolismos ou ainda tirar dúvidas que, em outros momentos, não
seria possível.
Durante o exame de ultrassonografia transvaginal, uma das residentes focalizou uma sombra
grande, mas a médica responsável disse que se tratava de um vaso e não de um folículo ou
cistos no ovário. A usuária, imediatamente, perguntou se aquilo [vaso] era ruim. Por
realizarem muitos exames, as clientes acompanham o que os médicos dizem, tentam entender
e encontrar alguma justificativa para a dificuldade de engravidar. A paciente recebeu da
médica uma explicação para a sua dúvida.
Para outra paciente, a médica responsável perguntou se o fato de conversarem [médica e
alunas] durante a ultrassonografia sobre o exame a incomodava. Pelo contrário, a paciente
disse que “até gosto de ouvir” [sic]. Passou, então, a fazer perguntas para a médica: “só tem
uma trompa boa, doutora... isso diminui as chances? [...] é normal sair carne de dentro na
menstruação?” [sic]. A médica disse que isso pode ser por causa do remédio de progesterona,
além de explicar que mesmo se a trompa esquerda tiver obstrução, a outra iria atrás do
folículo bom, onde quer que ele estivesse” [sic].
Durante exame ginecológico, a residente conversa com aluna interna sobre o colo do útero da
paciente, que questiona sobre o que as médicas estavam falando. A residente explica que não
era nada, apenas que o exame revelava estar tudo normal. Falou à paciente sobre um
corrimento com mau cheiro, que poderia ser a causa das dores reclamadas por ela.
Este processo educativo no serviço foi identificado por Costa (2008: 147-152) nas
entrevistas com as usuárias do ambulatório, que relataram receber um acolhimento
diferenciado no setor, definindo os dicos como atenciosos e carinhosos. Em comparação a
outros serviços, sentiam-se confortadas pelo apoio recebido nas consultas, nas quais tinham a
possibilidade de esclarecer dúvidas e entender melhor seus tratamentos. Costa apontou
também a sala de espera como outro espaço de aprendizagem, onde usuárias podiam discutir
livremente seus anseios, dúvidas e opiniões acerca dos procedimentos e exames, entre si e
88
com as enfermeiras que ali se encontravam. Compartilhar histórias de vida e de tratamento
pode aumentar a probabilidade de os usuários conhecerem seus direitos e questionarem por
eles.
A qualidade da atenção dica no setor foi observada em diferentes momentos do
trabalho de campo desta pesquisa. Um exemplo foi o atendimento a uma mulher com
histórico de violência sexual, bastante fragilizada emocionalmente; diante do resultado
positivo para sífilis, a médica pediu que a paciente refizesse o exame, explicando que a
doença era causada por uma bactéria e que esta deveria ser tratada antes de qualquer gravidez.
Em nenhum momento a médica expôs a paciente à sua difícil situação vivida, orientando que
tanto ela quanto o atual esposo tomassem a vacina contra hepatite B “gratuitamente no posto
de saúde” [sic]. Esta mesma médica tem muito cuidado ao falar sobre doenças sexualmente
transmissíveis e exames específicos com os usuários, como o de HIV, por exemplo. Em todo
atendimento de primeira vez, diversos exames são solicitados e antes de preencher o pedido,
esta médica certifica-se de que os pacientes sabem o que significa HIV e um possível
resultado positivo: “este exame é pedido nos exames de rotina e ter o vírus não significa que a
pessoa está doente de Aids, mas que tem o vírus HIV e que precisa entrar em tratamento
imediatamente” [sic].
Especificamente sobre o HIV, em geral os médicos tinham a preocupação de realizar o
aconselhamento para o exame, não apenas a médica supracitada. No entanto, identificou-se
que o procedimento interno do hospital para a revelação da sorologia o funcionava
adequadamente, que por vezes os próprios médicos do setor tiveram que dar a notícia aos
usuários de que estes portavam o vírus, mesmo sendo o exame de sangue realizado no
laboratório do HUMF. Segundo a médica responsável pelo serviço, o diagnóstico de HIV
deve ser dado por uma médica do ambulatório geral, assim como o encaminhamento para
tratamento. Quando o casal do setor de Reprodução Humana é soropositivo, ele é
encaminhado para outro hospital de referência no Rio de Janeiro, que faz acompanhamento de
grávidas soropositivas.
A orientação dos médicos sobre exames e rede de referência foi uma constante na
observação de campo. Muitos pacientes o sabiam que para realizar o exame de sangue no
HUMF era necessário “apenas chegar em jejum”, nem que o espermograma poderia ser feito
no setor de urologia do próprio hospital, ou então que poderiam ter acesso a alguns
medicamentos nos postos de saúde ou na farmácia popular. Conhecer a rede de referência e
fornecer informações torna-se um diferencial do setor, que encaminha os usuários de acordo
com suas necessidades específicas.
89
A médica alternativas para a paciente, de 32 anos, fazer cirurgia de endometriose: em
Bonsucesso geralmente é mais rápido, de 3 a 4 meses está de volta [...] ou então no Fernandes
Figueira [hospital], onde tem que depender mais da sorte para conseguir vaga” [sic]. Ainda
orienta a paciente a trazer um xérox do documento de identidade e do comprovante de
residência para que a enfermeira do ambulatório marque a cirurgia no Hospital de
Bonsucesso, pelo próprio serviço do HUMF: elas fazem tudo por telefone ou correio, direto
entre os hospitais” [sic]. Para outra paciente, a médica orienta que “aqui não faz HSG com
sedação, então vou mandar para Bonsucesso, porque no HSE [Hospital dos Servidores do
Estado do Rio de Janeiro] é muita demora”.
A paciente, de 37 anos, pergunta sobre alguns resultados de exame, confirmando se quando
vem ‘não reagente’ é porque ‘não tem’, né?” [sic]. A médica explica que é isso mesmo, mas
ressalva que “tem reagente que é bom ter, por exemplo, quando teve vacinação” [sic].
Como a mãe da paciente teve câncer de mama aos 37 anos, a residente explica a ela o porquê
de indicar, aos 35 anos, mamografia anual preventiva. Bastante atenciosa, a médica relata à
usuária tudo o que vai ser feito no exame ginecológico: “primeiro vou olhar fora, a vulva [...]
agora vou colocar o especulo [...] isso é para colher o preventivo [...]” [sic].
Os exemplos transcritos aqui demonstram momentos de integralidade da atenção e do
cuidado nas práticas de saúde de reprodução humana do HUMF. Mesmo diante de inúmeros
obstáculos presentes no SUS, pode-se dizer que o serviço tem conseguido, em muitos
momentos e através da prática de alguns profissionais, mudanças significativas para a garantia
do melhor acolhimento e vínculo nas relações entre profissionais e usuários.
Com base nas discussões apresentadas por Gomes e Pinheiro (2005) sobre as práticas
de integralidade na gestão do cuidado em saúde, a atual pesquisa traduziu acolhimento como
relação humanizada entre os profissionais, o serviço e os diferentes tipos de usuários, na qual
existe espaço para solidariedade, escuta ativa e resposta pró-ativa na solução de problemas.
Em diversas consultas observadas, estas práticas revelaram momentos ímpares de
acolhimento e “horizontalização” do atendimento médico-paciente, seja no esclarecimento de
dúvidas trazidas pelos usuários, seja na sensibilidade de alguns profissionais em entender e
confortar o sofrimento de quem era atendido.
O casal, em primeira consulta no ambulatório, parecia estar desconfiado, ansioso e até
agressivo, fazendo muitas questões à médica sobre exames, procedimentos, tratamentos, em
tom de confronto. Por que ela teve que fazer raio-x de tórax se vai operar o útero?” [sic
esposo] “Mas vai precisar cortar para fazer o exame; vou perder o útero?” [sic esposa]
certo a gente ser encaminhado do posto de saúde para o Hospital da Lagoa e eles falarem
que faz exame com encaminhamento de médico de lá? [...] No meu exame de sangue deu
‘falso positivo para cirrose, mas eu nem bebo!” [sic esposo]. A médica respondeu, uma a
uma, as dúvidas do casal: explicou a relação do raio-x com o risco cirúrgico; falou da
impossibilidade de realizar a videolaparoscopia pelo perigo de hemorragia diante da baixa
contagem de plaquetas da mulher; falou da importância da consulta com um hematologista
(especialidade não disponível no hospital); orientou o casal sobre o Hospital da Lagoa;
explicou que o “falso positivo” era, na verdade, não reagente”; etc. Segundo a percepção da
médica, em comentário após o atendimento, eles estavam prontos para brigar” [sic], mas
com um atendimento atencioso e com informações, o casal poderia se sentir mais acolhido.
Sem a usuária dizer nada, a médica percebeu certo incômodo quando remarcou a consulta
para a próxima 6ª feira. Atenta, a médica perguntou se a paciente teria algum problema em vir
no dia marcado e esta pediu para “se possível, ser de 4ª, senão tudo bem” [sic]. Tinha
problemas em conseguir dispensa no trabalho às 6as feiras. Refazendo as contas, a médica
90
disse que, pelo ciclo da paciente, a próxima consulta poderia ser, então, remarcada para a
outra 4ª feira.
A médica, sensível à dificuldade da esposa em entender as perguntas, falou pausadamente, em
tom mais alto, com palavras mais coloquiais. Conferiu com a usuária se ela estava ouvindo
bem.
Para confortar a paciente que começou a chorar e a se culpar pelo aborto provocado aos 16
anos [caso discutido no capítulo 1 desta dissertação], a psicóloga tentou contextualizar esta
decisão: “A vida é feita de momentos, hoje você não é mais a menina de 16 anos, não adianta
se cobrar de um passado que não volta mais. Tenta não se culpar e se libertar do seu passado;
naquele momento esta era sua alternativa” [sic]. Com o pouco tempo disponível para
atendimento, a psicóloga se colocou à disposição para novas conversas em outras consultas,
inclusive em dias que a paciente não tivesse médico agendado.
É intenção do serviço, sob a organização da médica responsável, formar uma equipe
multidisciplinar de acolhimento para novos usuários, oferecendo um bate-papo inicial sobre
infertilidade entre profissionais e pacientes, no qual também participariam aqueles em
acompanhamento no setor. Neste espaço, os profissionais poderiam falar sobre exames,
tratamento, encaminhamentos, mas principalmente poderiam ouvir as expectativas, desejos,
medos e frustrações dos usuários. Sem dúvida, neste formato, esta proposta de escuta e
diálogo poderia reforçar o acolhimento como uma importante diretriz operacional da
integralidade no SUS, considerando o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado em
suas demandas e necessidades (Gomes e Pinheiro, 2005).
No entanto, apesar destas propostas e práticas acolhedoras no serviço, nem sempre ou
nem todos os profissionais demonstraram preocupação em esclarecer aos pacientes as razões
de conversarem, por exemplo, com os alunos internos ou residentes sobre exames e casos
clínicos, por vezes colocando-os em situações de vulnerabilidade e constrangimento. Mesmo
pedindo autorização, a vulnerabilidade pode ser tão grande que impossibilita qualquer
resposta contrária por parte dos usuários.
Durante a leitura do exame de espermograma de 2005, a residente comentou com a aluna
interna que “o exame dele está alterado” [sic], sem dar explicações ao casal. A médica
voluntária foi chamada para assinar os novos pedidos de exames. Mais uma vez, o
espermograma foi apontado como a possível causa da não gravidez pela médica voluntária,
que em nenhum momento olhou para o casal no consultório. O esposo estava de pé, ao lado
da porta, permanecendo de braços cruzados e com as sobrancelhas tensionadas,
principalmente enquanto discutiam sobre seu espermograma, como se ele estivesse ausente. A
supervisão foi tão rápida que a médica não acompanhou o final da consulta, quando a
residente se esqueceu de explicar em qual dia do ciclo o exame de sangue deveria ser feito,
além de não saber a dosagem da medicação preparatória da HSG: “estamos aprendendo” [sic].
Por sorte, o casal ainda pedia informações à enfermeira na sala de espera.
A paciente, de 42 anos, que está no ambulatório mais de um ano [este é o mesmo caso
discutido no capítulo 2 deste trabalho], fez questão de apontar que esta seria a vez que ela
seria examinada clinicamente no serviço: “não é falta de ética, mas é a vez que sou
examinada aqui” [sic]. estando a paciente em posição ginecológica e pronta para iniciar o
exame, a médica pergunta se a paciente está se sentindo bem e se a aluna interna poderia
realizar o procedimento para aprendizagem. “Ah, doutora, estou me sentindo tão invadida
que tudo bem” [sic]. A paciente, ao sair da consulta, agradece à médica e pede “desculpas por
qualquer coisa” [sic].
91
Por ser um hospital escola, segundo uma das médicas observadas, o ambulatório
mantém uma prática não muito desejável para um atendimento clínico com privacidade.
sempre muitos alunos assistindo os exames (incluindo pesquisadores de dentro e de fora da
UFRJ, como no caso deste trabalho); as consultas são interrompidas ou “invadidas” [sic] por
enfermeiras que precisam pegar materiais ou por outros profissionais dicos que desejam
tirar dúvidas ou “contar algum problema” [sic]. Para a médica, o serviço melhorou muito
depois da reforma (realizada em 2007), pois antes as baiasdivisórias eram baixas, um pouco
acima da altura das mesas, sem nenhuma privacidade para as clientes durante os exames
ginecológicos. O barulho ainda continua a incomodar, principalmente para a médica, que fala
baixo, mas hoje os consultórios têm portas e divisórias que chegam a medir mais de 1,70m de
altura.
A falta de material e de insumos no ambulatório prejudica não apenas o aprendizado
de alunos, residentes e médicos voluntários, mas principalmente o atendimento preventivo e o
tratamento dos usuários. Segundo uma dica, por haver apenas um profissional responsável
pelas análises laboratoriais do HUMF, a especificação é a de não colher o preventivo nos
exames ginecológicos do hospital, sendo as pacientes encaminhadas para postos de saúde.
“Os exames clínicos devem ser feitos, mas sem colher [o preventivo] para não gastar o
material, porque o preventivo pode ser feito no posto de saúde; vamos deixar para gastar a
bala do hospital com coisas mais complicadas. É um hospital de referência aqui, os residentes
não entendem muito isso, querem fazer o preventivo aqui” [sic médica voluntária].
A dificuldade na marcação de consultas no setor de reprodução humana e em outras
especialidades no HUMF é tão grande que, por vezes, os usuários comparecem nos dias
agendados apenas para não perderem suas vagas, mesmo estando doentes, sem terem
conseguido realizar exames ou até quando têm dúvida se devem ou não continuar o
tratamento.
“Eu vim mesmo muito doente, resfriada, porque demorou 4 meses para marcar e não podia
perder a consulta.” [sic paciente]
A paciente, de 26 anos, em tratamento no setor desde março/2007, justificando sua ausência
durante alguns meses diz que queria engravidar, mas não queria mais fazer tratamento,
falaram para eu voltar [...] minha mãe me fez vir até o hospital para eu não perder a vaga”
[sic]. A paciente mostrava-se extremamente acuada, não responsiva, nitidamente sem querer
estar em um lugar que, muito provavelmente, tornou-se aversivo para ela, não apenas pelo
fato de não ter filhos, mas talvez porque teria que emagrecer muitos quilos antes de começar
qualquer tratamento. Hoje ela pesa mais de 120kg. Morando 3 horas do hospital, foi
encaminhada para endocrinologista e nutricionista perto de sua residência.
92
Haver, no próprio HUMF, especialidades médicas que frequentemente são indicadas
nas consultas de reprodução humana como, por exemplo, nutrição, endocrinologia, urologia,
andrologia, entre outras, o significa que os pacientes do setor tenham maior facilidade em
conseguir vagas. No guichê de marcação das consultas, uma abertura retangular na parede
(com uma bancada e um vidro transparente) separa os atendentes dos usuários. Impressos em
folhas de papel A4, seguem alguns avisos ao público:
a. “Código Penal art. 331- desacatar funcionário público no exercício da sua função ou em
razão dela. Pena: detenção de 06 meses a 2 anos ou multa”
b. Não mais vagas de: cardiologia, oftalmologia, dermatologia, genética, endocrinologia
feminina, tireoide. Marcações para 2009 feitas a partir de outubro. Não estamos marcando
pacientes de 1ª vez.”
c. Informações sobre a coleta de urina de 24h do IEDE
Diversas críticas seriam possíveis à existência, no código penal, de um artigo
específico sobre desacato a funcionários públicos, mas vê-lo como primeiro aviso do guichê,
além de intimidador, pode causar ainda mais desânimo e impotência, pelo menos à primeira
vista. A dificuldade de um casal em atendimento pela primeira vez no ambulatório foi
acompanhada pela pesquisadora no guichê de marcação. A consulta foi realizada em
27.8.2008, sendo o esposo encaminhado para o andrologista e a esposa para exame a ser
realizado no 21º do ciclo (no dia 01.9.2008). O marido conseguiu consulta para dezembro
de 2008, enquanto a esposa ainda tentaria, em outro guichê, marcar seu exame, que muito
provavelmente não seria para dali a 4 dias. Por isso, o casal pretendia realizar este exame pelo
plano de saúde do marido ou pagar na rede particular.
Diante de tantas dificuldades, assim como outros usuários do setor, a credibilidade do
SUS foi colocada em xeque pelo casal observado acima: “Não é falar mal, não, mas é difícil
conseguir informação, tem que procurar que nem doido” [sic esposo]. Corroborando a visão
do casal, a médica voluntária que fez seu atendimento lamenta, dizendo que trabalhava “há 25
anos no serviço de saúde público e, ao invés de melhorar, só piora, o dinheiro vai para o ralo e
acham que a reprodução humana é luxo, sabe que não é quem passa por isso” [sic]. Ao
serem encaminhados para outros serviços do SUS, alguns pacientes ainda questionaram: “É
certinho mesmo o exame feito no posto?” [sic usuária encaminhada para preventivo]; Pode
ser particular? Porque no posto demora muito [cerca de 3 meses]” [sic outra usuária, também
encaminhada para preventivo].
Apesar da rede de referência ter sido indicada neste trabalho como um diferencial do
serviço observado, persistentes lacunas fazem esmaecer ainda mais a luta pelos direitos
sexuais e reprodutivos no Brasil. Sem desmerecer os esforços do ambulatório em construir
93
redes fortalecidas entre diferentes setores e instituições, auxiliando usuários e usuárias a
concretizarem seus desejos de filhos, a postura de alguns profissionais saltou aos olhos por
demonstrarem rupturas nesta rede e na integralidade propostas pelo SUS. Um exemplo
discutido foi o da residente que desligou imediatamente uma usuária do serviço, ao saber que
esta tinha conseguido engravidar: “[...] mas engravidou, não tem mais nada a ver com a
gente [sic]. Na mesma linha de raciocínio, outro exemplo poderia ser o atendimento
transcrito abaixo:
A paciente, de 32 anos, que já tinha sido encaminhada para a Fiv, retornou ao ambulatório dia
22.10.2008, solicitando papéis necessários para a Secretaria de Estado de Saúde (SES/RJ). Foi
atendida no final da manhã, na sala de reuniões. A médica voluntária que a atendeu olhou o
exame de HSG que estava com a paciente contra a luz da própria sala, perguntando se este
tinha sido mostrado. Os resultados estavam anotados no prontuário, que não tinha sido lido
pela médica. Aproveitando que um aluno interno a aguardava para ter sua caderneta de
presença assinada, a médica mostrou o exame explicando as complicações da trompa na
frente da usuária: “olha a trompa dela obstruída [...] este exame foi mal feito [...] essa paciente
é para Fiv” [sic]. Durante a consulta, a médica atendeu seu celular e orientou uma cliente
particular, que estava grávida, sobre um novo exame de BHCG e sobre o embrião. Após
telefonema, ainda comentou com o aluno que tinha agendado uma vistoria do seu carro no dia
anterior para as 8h, mas que saiu de só às 12h: deprimente, o DETRAN [departamento de
trânsito] não funciona direito” [sic]. A usuária pediu à médica, então, um laudo de
encaminhamento e uma confirmação de que estaria agendada para o dia 11.11.2008 no
Hospital Pérola Byington/SP, para solicitar ajuda de custo de viagem à SES/RJ. Segundo a
médica, “não tem como [confirmar seu agendamento] porque não é o meu serviço, não temos
ingerência sobre isso. O que pode ser feito é você ir e trazer o comprovante para ter
reembolso” [sic]. A usuária tentou explicar que o agendamento foi feito por telefone e que,
por isso, o hospital de SP não mandou nenhum papel de confirmação. Mas a médica
continuou: isso é fora daqui e não posso dar comprovante de um serviço que eu nem
conheço. [...] Além disso, é você que está falando que tem consulta dia 11 em SP[sic].
Ao final, já preenchendo uma ficha específica trazida pela usuária (“Laudo Médico para
Tratamento fora do domicílio” SUSRJ Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento
Centro de Informação em Saúde), a médica explicou que colocou a necessidade de um
acompanhante na viagem, justificando que é uma cidade muito grande, sem mencionar as
dificuldades do próprio tratamento. Sobre a confirmação, aconselhou a usuária a “falar que a
gente não pode afirmar que você terá consulta dia 11” [sic] e a trazer todos os comprovantes
do hospital e da viagem, “para lutar pelos seus direitos e ter o seu reembolso” [sic].
A espera relatada pela dica no DETRAN é, infelizmente, uma rotina para muitas
usuárias do ambulatório, inclusive para esta paciente que estava sendo atendida depois do
meio dia. Em nenhum momento, a médica fez referência ao próprio setor do serviço social do
HUMF, que tem conseguido auxiliar as usuárias encaminhadas para Fiv em SP. Apesar de ser
interestadual, será que a rede não poderia ser melhor estabelecida entre o HUMF e o Hospital
Pérola Byington? Por que não existe, assim como no encaminhamento para exames em
Bonsucesso, um contato direto entre as instituições? Será que apenas os obstáculos
burocráticos fizeram deste atendimento um exemplo de pouco acolhimento, falta de
privacidade e de humanização?
94
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As normas de gênero, de reprodução biológica e social constituíram os principais
aspectos debatidos nesta dissertação. Pode-se dizer que a histórica essencialização biológica e
social da diferença sexual permanece justificando sonhos, desejos e buscas frente à ausência
involuntária de filhos, conforme demonstraram os vários diálogos e práticas apresentadas
neste trabalho. A observação do setor de reprodução humana do HUMF foi essencial para que
“barreiras” e persistências” pudessem contextualizar o acesso às novas tecnologias
reprodutivas pelo SUS, mesmo com os limites próprios a um trabalho de campo. Garantir a
integralidade, a igualdade e a equidade neste serviço, apesar dos esforços de muitos de seus
profissionais, não tem sido tarefa fácil. Permanecem as desiguais condições de direitos
sexuais e reprodutivos àqueles que não podem arcar com os altos custos dos procedimentos de
RA em clínicas privadas, onde estes estão disponíveis.
Um ponto a ser destacado neste estudo é o quanto a subjetividade, a parentalidade e a
filiação ainda permanecem inteligíveis a partir da reiteração de normas procriativas, sociais e
de gênero. O diagnóstico de infertilidade e de risco têm sido duas importantes estratégias
biopolíticas pelas quais estas normas se fazem presentes, evidenciando o paradoxo trazido
pelo liberalismo, qual seja a da defesa de uma “liberdade” e “autonomia” de decisão e, ao
mesmo tempo, de uma “necessária” regulação dos corpos e do social pela avaliação de riscos
e perigos à saúde.
Sem um marco legal específico sobre a RA no Brasil, fica ainda mais difícil esclarecer
alguns pontos de tensão, como a utilização de um conceito estritamente médico de
infertilidade, muitas vezes arbitrário e impreciso, para se restringir o acesso a um direito
individual. Apesar das tentativas de avanço dos direitos sexuais e reprodutivos, sendo incluída
a questão do HIV e de mulheres solteiras na portaria do ministério sobre reprodução assistida
no país, por exemplo, permanecem sem encaminhamento discussões complexas na área.
Como resolver o acesso a homens solteiros ou homens homossexuais que dependem de um
útero para o uso das tecnologias reprodutivas? Como garantir a universalidade do SUS com os
altos custos de cada ciclo de tratamento e uma demanda cada vez maior? Será que existem
meios legítimos para se estabelecer limites a seu acesso? Seria justo definirmos quem pode ou
não desejar a maternidade ou a paternidade a partir de critérios mais ou menos arbitrários,
como a idade da paciente, a ordem de chegada, ser ou não obesa, ter ou não parceria fixa, etc?
95
Quais os impactos de políticas governamentais de saúde que estimulam a esterilização e o
adiamento da gravidez na oferta de reprodução assistida pelo SUS?
O que o é dito, o que permanece sem discussão aberta e legítima, aumenta a tensão
existente nas discussões sobre reprodução assistida no país. E o mesmo parece acontecer no
dia-a-dia dos serviços de saúde, que muitas vezes reproduzem normatividades em suas
práticas profissionais, sem necessariamente ser uma visão compartilhada pela equipe. As
questões de gênero estão tão entrelaçadas às relações sexuais e reprodutivas que identificá-las
em nossos discursos e práticas, muitas vezes, pode ser um difícil exercício de análise, ou de
autoanálise.
Por isso, tomou-se o cuidado neste trabalho de não serem feitas generalizações a partir
das interações observadas no serviço de referência do Rio de Janeiro. Ao serem trazidos
exemplos específicos do campo, tentou-se relativizar as práticas encontradas, procurando-se
destacar dificuldades impostas a usuários e profissionais que nem sempre são percebidas nas
análises de contingências de saúde. No campo, questões éticas e morais misturaram-se a
decisões pessoais, a limites determinados pela falta de recursos humanos, de insumos, de
infraestrutura, de comprometimento político governamental.
De fato, em muitos casos observou-se que a regulação do acesso às tecnologias
reprodutivas fazia-se a partir de normas reiteradas pelas práticas médicas, dependendo da
visão compartilhada pelo profissional sobre, por exemplo, a laqueadura”, o “aborto”, os
“direitos sexuais e reprodutivos”, o “recasamento”, a “pobreza”, a “monoparentalidade”, entre
outros aspectos discutidos ao longo deste estudo. Mas também ficou evidenciada a impotência
que muitos especialistas enfrentam cotidianamente em suas práticas, mesmo quando
defendem subversões às normas reprodutivas e sociais, possíveis através do uso de técnicas de
reprodução assistida que, em geral, permanecem restritas às clínicas particulares.
Caso exista uma constante nas observações realizadas e pontos discutidos nesta
dissertação, talvez esta se refira à importância atribuída à biologia para a definição do
parentesco. Mais como ilustração, vale comentar um totem comemorativo do mês de maio,
de aproximadamente 1,55m de altura, colocado na porta de entrada do serviço de reprodução
humana do HUMF, oferecido pelo fabricante de um medicamento para o tratamento da
infertilidade. A imagem de uma mulher de perfil, bastante sorridente e tranquila, segurando a
barriga de uns sete meses de gestação, é seguida pelos dizeres: “Para as mães, um mês de
muita felicidade. Para todos os profissionais envolvidos, um mês de orgulho. FELIZ DIA
DAS MÃES!”.
96
O que para muitos poderia ser um carinhoso incentivo, para outros poderia trazer a
veiculação de normas reprodutivas, ao se caracterizar a maternidade pela gestação biológica,
de uma mulher jovem, branca. Certamente, esta é uma propaganda destinada a serviços de
infertilidade, cujo objetivo é auxiliar mulheres a engravidar. Justamente por isso, talvez não
tenha sido escolhida a imagem de uma mulher com uma criança nascida, o que poderia
ampliar o significado da maternidade, abrangendo a adoção de crianças e a doação temporária
de útero, por exemplo.
No trabalho de campo, frequentemente os exemplos explorados traziam valores
relacionados à maternidade, paternidade, gênero, hereditariedade, consanguinidade que nos
remetiam às discussões sobre as teorias de parentesco e de filiação, trabalhadas por diversos
autores
49
. Estudos sobre a doação de óvulos e de espermatozoides, incluindo a doação
temporária de útero, têm apontado para a biologização e genetização do parentesco no
contexto da reprodução assistida. A necessidade de gametas de terceiros é frequentemente
indagada e até rejeitada por casais, refletindo significados dos laços sanguíneos na construção
da parentalidade e da filiação, atrelados a questões de gênero debatidas neste trabalho. Não
é à toa que a aceitação da doação de material genético de terceiros é maior quando esta é feita
por parentes, podendo representar o desejo de conservar o patrimônio genético e a
continuidade não apenas de um grupo social ou de uma família, mas do próprio indivíduo pela
descendência (Corrêa, 2001:174).
Chamado pela psicóloga do serviço para conversar sobre sua recusa ao espermograma, o
usuário justificou-se dizendo ter verdadeiro “pavor” de hospitais, apresentando reações
corporais de pânico, sudorese intensa, taquicardia e tontura cada vez que pensa em um.
“Aconteceu muita coisa [...] faz 30 anos que não faço exames, mas também não sinto nada
[sic]. Reafirma querer ter filhos, e muito, só faltando isso, quase tudo realizado [...]
quando é urgente, eu vou no hospital, faço sacrifício [prometendo fazer o espermograma]. Eu
não sou novo [57 anos], todo mundo vai morrer e o que eu vou deixar para o mundo? Casa?
Não tenho. Dinheiro? Não tenho.” [sic] Refere-se ao filho como a única herança que poderia
deixar como continuidade dele para a sociedade. Diz que “para as mulheres é fácil, estão
acostumadas a ir ao médico e fazer exames, mas eu tenho muito medo de hospital por lembrar
que vou morrer um dia” [sic].
O desejo de filhos biológicos não se restringe àqueles que nunca os tiveram, assim
como o se limita à orientação sexual de quem os deseja, nem à sua condição civil. Mesmo
quando ambos os parceiros têm filhos biológicos, podem buscar os serviços de RA para uma
maternidade/parternidade em novas condições, com renovadas expectativas de formação
familiar. Apesar de não ser possível aprofundar esta questão neste trabalho, pela limitação de
49
Strathern, 1992, 1995; Fonseca, 1995; Corrêa, 1997, 2001; Luna, 1999, 2005; Peixoto, 2007; entre outros.
97
tempo e de falta de dados, evidenciou-se um importante interlocutor oculto na discussão
sobre RA (Ramírez-Gálvez, 2003): a adoção de crianças.
Em consulta psicológica, a paciente relatou que antigamente não aceitava a adoção, ao
contrário do marido, que sempre foi a favor e conversava muito sobre esta possibilidade com
ela. Eu acredito que eu quero [engravidar] mais do que ele [o marido], porque seja com ele,
seja com outro, eu quero ter filho [biológico]” [sic usuária, 31 anos]. A paciente mostrou
receio em adotar, que cuidou de um “sobrinho dos 9 aos 15 anos como se fosse um filho”
[sic], após o suicídio da irmã, que deixou outros 3 filhos. Cada irmão cuidou de um sobrinho.
Hoje, a usuária não cuida mais do adolescente, depois que ele se envolveu com drogas,
porque ele não teve pai e a mãe se suicidou” [sic]. O uso de drogas foi sua justificativa para se
opor à adoção: “pensei, ai, não quero cuidar dos filhos dos outros não, porque é diferente [...]
mas disseram que no caso dele [do sobrinho] foi diferente porque ele ficou revoltado com o
pai que nunca teve e com a mãe que se matou” [sic]. O conselho da psicóloga sobre a
possibilidade de adoção foi: “deixe para pensar nisso no fim” [sic] [destaque nosso].
Em consonância com Corrêa (2001:193), a fala final da psicóloga poderia nos remeter
à discussão sobre o frequente senso de responsabilidade suscitado nas usuárias pelos planos
de tratamento, o que dificulta se pensar na adoção aque todas as possibilidades médicas”
estejam esgotadas. De fato, a adoção de crianças tem sido uma alternativa mais
frequentemente realizada por quem tentou, sem sucesso, vários procedimentos de RA. Mesmo
assim, estes casais são cada vez mais estimulados a continuar esperando por possíveis
soluções, na medida em que surgem novas técnicas e facilidades de acesso. Também
apareceu, no exemplo acima, o comum receio de pais adotivos sobre a informação genética e
gestacional das crianças, acreditando-se que, além dos genes, o que a mãe biológica passa
para o feto durante a gestação também pode interferir nas características da criança (Ramírez-
Gálvez, 2003). Neste atendimento, se a dúvida o passou pelos dados genéticos, que a
criança “adotada” era um sobrinho, filho de uma irmã, referiu-se às suas condições de
crescimento até os nove anos de idade, quando passou a morar com a tia.
Diversos autores consideram a procura às tecnologias reprodutivas um desprestígio da
adoção de crianças, chegando a questionar o que aconteceria com este “recurso social” ante a
forma moderna e amplamente divulgada da RA como meio de resolver a ausência
involuntária de filhos. Neste debate, o que se destaca é justamente a necessidade de vínculo
biológico para a definição de parentalidade e de filiação. De acordo com a análise proposta
por Corrêa (2001), a busca pela adoção no contexto da RA poderia representar, socialmente,
uma dupla falha: a de não conceber e a de não conseguir curar-se.
Os casais que não têm filhos sentem-se doentes, diminuídos, desprovidos de autoestima,
podendo levar até a depressão. “Eles o duplamente penalizados. O Sistema Único de Saúde
(SUS) não lhes oferece atendimento pleno e a sociedade os condena. As pessoas argumentam
que as ruas estão cheias de crianças abandonadas, que os orfanatos estão lotados, porém não
conhecem a dificuldade de uma adoção no Brasil. Além de esquecerem que a culpa das ruas
estarem cheias de crianças não é dos casais inférteis e sim um problema de toda a sociedade”.
98
[Afirmações dadas em entrevista pela médica responsável do setor de Reprodução Humana do
HUMF]. (Olhar Virtual, 2007).
Não precisamos ir longe para comprovarmos na prática as afirmações trazidas pela
médica acima. Se a sociedade condena os casais que, ao invés de adotar, fazem qualquer
negócio” para tentarem seus filhos biológicos, o que dizer dos dois exemplos discutidos nesta
dissertação sobre a estigmatização da “esterilização secundária”, de duas médicas residentes
do próprio setor de reprodução humana? Ambas achavam “uma palhaçada” [sic ambas] o
tratamento de infertilidade para mulheres que fizeram esterilização, após já terem filhos
biológicos. Uma mostrou-se indignada por haver “tanta gente para adoção”, enquanto
mulheres que “querem ter mais filhos porque mudou de parceiro e tem medo dele cair fora
porque ela não consegue dar um filho para ele” [sic]. Outra, mesmo tentando não se
posicionar diretamente durante uma consulta, não conseguiu esconder sua preferência pela
adoção como tratamento social da infertilidade, pelo menos não para o caso abaixo, de uma
mulher laqueada, sem condições socioeconômicas favoráveis para a maternidade.
“Meu marido me enchendo o saco, ele diz para deixar isso [tratamento] prá lá, ‘vamos
adotar’” [sic P., 37 anos]. A paciente mostra-se reticente quanto à adoção; quer continuar o
tratamento, mas tem que fazer a HSG no hospital onde foi encaminhada para Fiv [mesmo
caso de reversão de laqueadura analisado no capítulo 2 desta dissertação]. Questiona não
apenas o instinto materno em caso de adoção, mas também como a família tratará a criança
adotada. “Até pensei em adotar, meu marido quer filhos e diz que quer adotar, mas não sei se
sou eu que penso errado” [sic], perguntando para a residente o que esta achava. Não sei
dizer, porque isso é muito pessoal, depende do casal, mas tem gente que adota e é feliz, que
trata o filho adotivo igual” [sic residente]. Em continuação, a médica discute sobre esta
possibilidade atrelada aos problemas emocionais de se ficar tentando por muito tempo o filho
biológico, de a idade avançar e os riscos aumentarem na gravidez tardia. Deu à paciente duas
alternativas: ou faz o exame em Bonsucesso, ou adota porque aqui está igual a fevereiro de
2008, quando você veio [saber sobre a IA]. [...] Se resolver adotar, pode demorar, mas
certo [...] tem tanta gente precisando de uma mãe e você querendo ser mãe” [sic].
Para finalizar, como um possível desdobramento do presente estudo, poderia se pensar
em aprofundar o debate sobre reprodução biológica, adoção e reprodução assistida.
Coincidentemente ou não, todos os exemplos discutidos aqui de homens que defenderam a
adoção, ao contrário de suas esposas que preferiam permanecer em tratamento no setor,
tinham filhos biológicos de outros relacionamentos. É provável que esta condição possa ter
influenciado suas posições frente à adoção, mas sem um estudo específico, afirmar tal
influência poderia desmerecer possíveis decisões conscientes dos riscos da RA para suas
esposas, como neste exemplo: R., de 42 anos, descreveu o marido como sendo bastante
compreensivo e carinhoso. Ele sempre quis ter filhos com ela, mas após duas depressões
provocadas por dois abortos espontâneos e as explicações médicas sobre os riscos
gestacionais na idade da esposa, começou a incentivar ainda mais a adoção de crianças. Em
99
consulta psicológica, R. se defende dizendo que “até parece que foi ele quem perdeu um
filho” [sic]. E de fato ele também perdeu estes dois filhos, mesmo que o impacto tenha sido
sentido de forma diferente.
Este debate sobre adoção não deve ficar restrito à reprodução assistida, aos casais
considerados inférteis. O que dizer daqueles que, sem apresentarem problemas de
infertilidade, também não optam pela adoção para realizarem seus desejos de filhos? Será que
os casais homossexuais que buscam a RA para terem filhos, por exemplo, estão
necessariamente reproduzindo o modelo hegemônico de família? Sabemos que este é um
debate difícil, com múltiplas variáveis, cujo aprofundamento faz-se necessário em diversos
fóruns, desde a área acadêmica até os movimentos civis de defesa de direitos sexuais e
reprodutivos. Mais uma vez, especificamente em relação às NTRc, o foco parece permanecer
na importância biológica da reprodução, principal justificativa para a oferta e a procura de
serviços de RA (Corrêa, 2001). E foi pensando nela que um casal de lésbicas, em São Paulo,
virou notícia recentemente no Brasil
50
.
Pela primeira vez no país, pelo menos de notoriedade pública, as tecnologias
reprodutivas explicitamente subverteram a heteronormatividade, a serviço da realização do
sonho do filho biológico. Adriana e Munira, casadas 2 anos, sempre tiveram o sonho de
engravidar e ter filhos. Em função de uma endometriose, Adriana, de 26 anos, foi
diagnosticada como infértil. tinha perdido um ovário e metade do outro estava
comprometido: “Fiquei muito desiludida quando soube que o podia ter filhos. estávamos
nos preparando para uma adoção, mas quando vimos que podíamos gerar os bebês, ficamos
muito felizes. Eu sempre quis ser mãe e tenho esse direito.
51
No mês de gestação, Adriana
está grávida de gêmeos, uma menina e um menino. Os óvulos, fecundados com sêmen de um
banco de esperma, eram de sua companheira Munira, de 27 anos. O médico do casal sugeriu
que fosse usado o sêmen de um homem com traços físicos semelhantes ao de Adriana, pois
assim os filhos poderiam ser parecidos com as duas mães.
“Para a lei, mãe biológica é quem carrega a criança no ventre. Mas um exame de DNA
mostraria o contrário. Nem Adriana nem Munira pretendem disputar na Justiça a guarda das
crianças. O que elas querem é sair da maternidade juntas, com um documento que permita
registrar as crianças no cartório com o sobrenome de cada uma e o nome das duas mães na
certidão de nascimento. Como qualquer família normal”. (Revista Época)
50
Matéria disponível no site <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI64032-15228-2,00-
ESTOU+GRAVIDA+DA+MINHA+NAMORADA.html>. Acesso em: 20.03.2009.
51
Retirado da matéria disponível em: < http://extra.globo.com/saude/materias/2009/03/20/casal-de-lesbicas-usa-fertilizacao-
para-gerar-gemeos-pretende-registrar-criancas-com-nome-das-duas-maes-754920290.asp>. Acesso em: 20.03.2009.
100
É justamente atrás deste conceito de “família normal” que, em geral, camuflam-se ou
apoiam-se injustiças e desrespeitos aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. Apesar das
jovens mães terem o apoio dos familiares, dos amigos e do médico, que considerou a relação
das pacientes um modelo de família, justificando assim a técnica de “útero de substituição”
perante o CFM, é provável que elas enfrentem obstáculos no judiciário para concretizarem o
também direito de registrar os filhos no nome de ambas. O casal tem ao seu lado uma
importante aliada, a advogada Maria Berenice Dias, especializada em Direito Homoafetivo.
No entanto, ainda correm o risco de terem seus direitos negados pela legislação não prever
estes exemplos de pluralidade e diversidade em relação à filiação, dependendo, mais uma vez,
da consciência e da boa vontade não mais de médicos e profissionais de saúde, mas agora de
juízes.
“A questão dos casais homoafetivos depende sempre das questões de uma determinada
sociedade ou um determinado local. A família se constitui. Às vezes algumas técnicas surgem
e dizem-na uma ameaça à constituição da família. Não é verdade. A ciência
caminha. Encaremos como uma possibilidade a mais no conceito de uma família pós-
moderna, ambivalente, com parentesco construído de modo diferente do tradicional. Embora
assuste a muitos, apenas confirma o fato de que famílias continuarão a ser criadas, algumas
vezes diferentemente do que podemos nos esforçar para entendê-las hoje. Se serão melhores
ou piores, apenas o tempo dirá.” (Declaração da médica responsável do Setor de Reprodução
Humana do HUMF, em reportagem para o OLHAR VIRTUAL/UFRJ, 2008).
101
REFERÊNCIAS
ARÁN, Márcia. Sexualidade e política na cultura contemporânea: as uniões homossexuais. In:
LOYOLA, Maria Andréa (org.). Bioética: reprodução e gênero na sociedade contemporânea.
Rio de Janeiro: ABEP; Brasília: Letras Livres, 2005.
ARÁN, Márcia; CORRÊA, Marilena C. D. V. Novas tecnologias em saúde e os sistemas
normativos de sexo-gênero. In: GOMBERG, Estélio. Leituras de Novas Tecnologias e Saúde.
Sergipe: Editora da Universidade Federal de Sergipe. Prelo, 2009.
ARÁN, Márcia; PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Vulnerabilidade e vida nua: bioética e
biopolítica na contemporaneidade. Revista de Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública do
Estado de São Paulo. Journal of Public Health., v.4, p.849 - 857, 2007b.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1981.
BARBOSA, Rosana. Desejo de filhos e infertilidade: um estudo sobre a reprodução assistida
no Brasil. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo.
______. Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: produzindo classes distintas de
mulheres? In: GROSSI, M. P.; PORTO, R. M.; TAMANINI, M. (orgs.) Novas Tecnologias
Reprodutivas Conceptivas: questões e desafios. Brasília: Letras Livres, 2003. 196 pp.
BARROSO, Carmen. Esterilização feminina: liberdade e opressão. Rev. Saúde Pública, São
Paulo, v. 18, n. 2, abr. 1984
BECKER, Howard S. De que lado estamos? In: BECKER, H.S. Uma teoria da ação coletiva.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p.122-136.
BERQUÓ, Elza. Brasil, um caso exemplar -anticoncepção e parto cirúrgicos- à espera de uma
ação exemplar. Estudos Feministas. v.1, n.2, p.366-381, 1993.
BERQUO, Elza; CAVENAGHI, Suzana. Direitos reprodutivos de mulheres e homens face à
nova legislação brasileira sobre esterilização voluntária. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro,
2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2003000800025&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 fev. 2009.
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.358, de 11 de novembro de 1992.
Adota Normas Éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, como dispositivo
deontológico a ser seguido pelos médicos. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 19 nov. 1992, Seção 1, p. 16053. Disponível em:
<http://www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/versao_impressao.php?id=2970>
Acesso em: 10 fev. 2009.
______. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Imprensa
Nacional. 20 set. 1990. Seção 1, p.18055. Disponível em:
102
<http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/legislacao/arquivo/04_lei_8080.pdf> Acesso em: 04 fev.
2009.
______. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição
Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências.
Brasília, DF, 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9263.htm>
Acesso em: 04 fev. 2009.
BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the discursive limits of “sex”. Nova York: British
Library, 1993.
______. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”.
Cadernos Pagu (11) p. 11-42, 1998
______. Gender regulations. In: BUTLER, Judith. Undoing gender, Routledge: New
YorkLondon, 2004.
______. Le genre comme performance. In: BUTLER, Judith. Humain, inhumain. Lê travail
critique dês normes. Entretiens. Paris:Éditions Amsterdam, 2005, p.13-42.
______. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, n.21, pp. 219-260,
2003a.
______. Problemas de gênero : Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003b.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1978.
CITELI, Maria Teresa. A reprodução humana na pauta dos jornais brasileiros
(1996-2000). Olhar sobre a Mídia, Belo Horizonte: Comissão de Cidadania e Reprodução /
Mazza Edições, 2002, p. 184-213.
COOK, Rebecca J.; DICKENS, Bernard M.; FATHALLA, Mahmoud F. Saúde reprodutiva e
direitos humanos: integrando medicina, ética e direito. Rio de Janeiro: CEPIA, 2004, 608p.
CORDEIRO, Hésio. Descentralização, universalidade e equidade nas reformas da saúde.
Ciênc. saúde coletiva , Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232001000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 31 Jan 2008.
CORRÊA, Marilena C.D.V. A tecnologia a serviço de um sonho. Um estudo sobre a
reprodução assistida no Brasil. [tese de doutorado] Instituto de Medicina Social, Rio de
Janeiro, 1997.
______. Bioética e Reprodução Assistida. Infertilidade, produção e uso de embriões humanos
In: LOYOLA, Maria Andréa (org). Bioética, reprodução e gênero nas sociedades
contemporâneas. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Estudos Populacionais (APEP);
Brasília: LetrasLivres, 2005.
______. Novas Tecnologias Reprodutivas: limites da biologia ou biologia sem limites? Rio de
Janeiro: EDUERJ, 2001.
103
CORRÊA, Marilena C.D.V.; LOYOLA, Maria Andrea. Novas tecnologias reprodutivas:
novas estratégias de reprodução? Physis. Revista de Saúde Coletiva. v.9, n.2, 1999, p.209-
234.
______. Reprodução e bioética. A regulação da reprodução assistida no Brasil. Caderno CRH,
Salvador, v.18, n.43, JanAbr. 2005, p.103-112.
COSTA, Tonia. Infertilidade e reprodução humana: um estudo sobre a percepção social dos
riscos. Tese de Doutorado. Instituto Oswaldo Cruz, Ensino de Biociências e Saúde. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2008. Disponível em:
<http://www.bdtd.cict.fiocruz.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=143>
Acesso em: 23 Mar. 2008
COSTA, Tônia; STOTZ, Eduardo N.; GRYNSZPAN, Danielle; SOUZA, Maria do Carmo
Borges. Naturalização e medicalização do corpo feminino: o controle social por meio da
reprodução. Interface, Botucatu, v. 10, n. 20, Dez. 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832006000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 Dez. 2008.
CUNHA, Antônio C. R. da; WANDERLEY, Miriam da S.; GARRAFA, Volnei. Fatores
associados ao futuro reprodutivo de mulheres desejosas de gestação após ligadura tubária.
Rev. Bras. Ginecol. Obstet., Rio de Janeiro, v. 29, n. 5, maio 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
72032007000500002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 fev. 2009.
DA MATTA, Roberto A. O Ofício do Etnólogo ou Como ter Anthropological Blues. In:
NUNES, E. (org.) A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. Os Limites da Teoria Principialista. In: O que é Bioética.
São Paulo. Ed. Brasiliense. 2002: 34-37.
DINIZ, Débora. Introdução. In: DINIZ, Débora; BUGLIONE, Simone. (orgs) Quem pode ter
acesso às tecnologias reprodutivas? Diferentes perspectivas do direito brasileiro. Brasília:
Letras Livres, 2002
______. Tecnologias reprodutivas no debate legislativo. População, bem-estar e tecnologia,
#6, MultiCiência, maio 2006. (Artigo originalmente publicado como Tecnologias
reprodutivas conceptivas – o estado da arte do debate legislativo brasileiro. Jornal Brasileiro
de Reprodução Assistida. Rio de Janeiro, vol. 7. n. 3. nov/dez 2003. pp. 10-19).
______. Tecnologias reprodutivas, ética e gênero: o debate legislativo brasileiro. Série Anis,
Brasília, n. 15, p. 1-23, 2000.
DINIZ, Débora; BUGLIONE, Simone. (orgs) Quem pode ter acesso às tecnologias
reprodutivas? Diferentes perspectivas do direito brasileiro. Brasília: Letras Livres, 2002
DINIZ, Débora; COSTA, R. G. Infertilidade e Infecundidade: Acesso às Novas Tecnologias
Conceptivas. Série Anis 37, Brasília, Letras Livres, p. 1-9, fev 2005.
DOSSIÊ REPRODUÇAO HUMANA ASSISTIDA. Rede Feminista de Saúde. Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, 2003. Disponível em:
104
<http://www.redesaude.org.br/Homepage/Dossi%EAs/Dossi%EA%20Reprodu%E7%E3o%2
0Humana%20Assistida.pdf> Acesso em: 21 nov. 2008].
FERREIRA, C.A, et al Análise de 30 anos de funcionamento de setor de esterilidade da
Divisão de Reprodução Humana do I.G. da U.F.R.J. Gin. Bras., 1974, mar-abr; 6(2): 67 - 72.
apud COSTA, 2008.
FERREIRA, Maria de Fátima. Esterilidade e reprodução assistida: no jornal impresso diário
e na narrativa de homens e mulheres estéreis no Brasil. Araraquara, 1998. Tese (Doutorado
em Sociologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista.
______. Gênero e Reprodução Assistida- um olhar sobre o jornal impresso diário no Brasil.
Trabalho apresentado no NP13- Núcleo de Pesquisa Comunicação e Cultura das Minorias,
XXV Congresso Anual em Ciências da Comunicação, SalvadorBA, 04 e 05. setembro.2002
FONSECA, Cláudia. Amor e família: vacas sagradas da nossa época. In: DUARTE, Luiz
Fernando D. (org). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade
brasileira. São Paulo: Loyola, 1995, pp.69-89
FOUCAULT, Michael. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1988.
______. História da Sexualidade III .O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
______. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São
Paulo: Martins Fontes, 2008 (Coleção tópicos).
GEERTZ, Clifford. “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do entendimento
antropológico. In: GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
Petrópolis: Vozes, 1999.
GIFFIN, Karen. Modernidade perversa e reprodução humana no Brasil. In: LEAL, M.C. et.al.
(org). Saúde, ambiente e desenvolvimento. São Paulo/ Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1992,
p.99-121
GINSBURG, F.D.; RAPP, R. (Eds) (1995 Conceiving the new world order: The global
politcs of reproduction. Berkeley: University of California Press, 1995. Apud VAN BALEN
& INHORN, 2002.
GOMES, Márcia Constância Pinto Aderne; PINHEIRO, Roseni. Acolhimento e vínculo:
práticas de integralidade na gestão do cuidado em saúde em grandes centros urbanos.
Interface (Botucatu), Botucatu, v. 9, n. 17, ago. 2005 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832005000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 fev. 2009.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final
do século XX. In: Silva, Thomaz Tadeu da (org) Antropologia do ciborgue – as vertigens do
pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.37-130.
105
IACUB, Marcela. Homoparentalité et ordre procreative. In: BORRILLO, Daniel; FASSIN,
Eric (orgs). Aù dela du PaCS: L’éxpertise familiale à l’epreuve de l’homossexualité. Paris:
Presses Universitaires de France, 1999.
LAQUEUR, T. Inventando o sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
LENOIR, Remi. Reprodução social e moral familiar. In: LOYOLA, Maria Andréa (org.).
Bioética: reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: ABEP; Brasília:
LetrasLivres, 2005.
LOYOLA, Maria Andréa. A cultura pueril da puericultura. Novos Estudos. CEBRAP, v.1,
n.1, pp.40-46, abril 1983.
______. A. Sexualidade e medicina: a revolução do século XX. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 875-884, 2003.
______. Bioética, reprodução e gênero na sociedade contemporânea: introdução. In:
LOYOLA, Maria Andréa (org.). Bioética, reprodução e gênero nas sociedades
contemporâneas. Rio de Janeiro: APEP; Brasília: LetrasLivres, 2005.
LOYOLA, Maria Andréa; CORRÊA, Marilena C.D.V. Relatório de Pesquisa ao CNPq.
Reprodução, gênero e ciência. Um estudo sobre a reprodução assistida no Rio de Janeiro,
2008 [mimeo, disponibilizado pelas autoras]
LUNA, Naara. Bebê de proveta, barriga de aluguel, embriões de laboratório : as
representações sociais das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro, 1999. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
______. Natureza Humana criada em laboratório: biologização e genetização do parentesco
nas novas tecnologias reprodutivas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.2, p.
395-417, maio-ago. 2005
______. Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Estudos Feministas,
Florianópolis, v.9, nº 2, p.389-413, 2001
MALDONADO, Mariana; ALMEDA, Mônica. Anticoncepção cirúrgica voluntária. In:
ALMEDA, Mônica; COSTA, Ney F. P. (org). Normas técnicas em anticoncepção. 2ª e. rev. e
atual.- Rio de Janeiro: BEMFAM, 2007. p.144-157.
MARTINS, Luiz Alberto Moreira. Da disciplina ao controle: tecnologias de segurança,
população e modos de subjetivação em Foucault. Rio de Janeiro, 2007. 90p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
MARTINS, Luiz Alberto Moreira; Peixoto Júnior, C. A. Genealogia do Biopoder. Revista
Psicologia e Sociedade (prelo, 2009)
MATTOS, Ruben Araujo de. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade).
Cad. Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, 2004 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2004000500037&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 Jan 2008.
106
MAY, Tim. Pesquisa social: questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed, 2004
MEDEIROS, Luciana. AS LEIS DO DESEJO - Bioética e Direito de Acesso ao Serviço de
Reprodução Humana Assistida. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, Programa de Pós-
Graduação em Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa
Catarina, Área de Concentração: Ciências Humanas e Políticas Públicas em Saúde. Linha de
pesquisa: Bioética. Florianópolis, 2007. Disponível em:
<http://www.pos.ufsc.br/arquivos/41000999/diversos/DissertacaoLucianaSoares.pdf>
MINAYO, M. C. S. (org) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1994.
MUÑOZ, L. M. P. Infertilidad y Pareja: Construcciones Narrativas como Horizonte para La
Intervención. Revista Diversitas – Perspectivas en Psicología, v. 2, n. 1, p.149-158, 2006,
apud STRAUBE, 2007.
NEUSPILLER F, ARDILES G. Conceitos e Epidemiologia em Medicina Reprodutiva. In:
Scheffer, Bruno Brum (Org). Reprodução Humana Assistida. São Paulo: Atheneu; 2003 apud
COSTA, 2008.
OLHAR VIRTUAL. UFRJ. Argumento. Os filhos da modernidade. Edição83, 31/maio2007.
Disponível em: <http://www.olharvital.ufrj.br/2006/imprimir.php?id_edicao=083&codigo=3>
Acesso em: 17 dez. 2008.
______. Ginecologia inaugura Setor de Reprodução Humana. Olhar Vital- UFRJ, Rio de
Janeiro, Ed. 119, 27 mar. 2008
______. Um novo passo na reprodução assistida. Olhar Vital- UFRJ, Rio de Janeiro, Ed. 119,
27 mar. 2008
OLIVEIRA, Fátima. Bioética – Uma face da cidadania. São Paulo: Ed. Moderna, 2004 apud
MEDEIROS, 2007.
PEIXOTO, Clarice Ehlers. As transformações familiares e o olhar do sociólogo. In: SINGLY,
François de. Sociologia da família contemporânea François de Singly; tradução Clarice
Ehlers Peixoto. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, pp.11-28.
PRECIADO, Beatriz. Tecnologias del sexo. In: Manifesto contra-sexual, Pensamiento, Opera
Prima, Madrid, 2002, p.118-135.
QUEIROZ, Ana Beatriz Azevedo; ARRUDA, Ângela. Refletindo sobre a saúde reprodutiva e
a situação de infertilidade. In: Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14 (1): 163-178,
2006.
RAMIREZ-GÁLVEZ, Martha Celia- Deslocamentos, exclusões e consumo de tecnologias
reprodutivas conceptivas. Seminário Fazendo Gênero. 2007 Disponível:
http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/M/Martha_Celia_Ramirez_Galvez_43.pdf
______. Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptiva- Fabricando a Vida, Fabricando o
Futuro. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Departamento de Antropologia do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2003.
107
REIS, A.R.G. A fertilização in vitro no Brasil. A história contada, as estórias. Brasília:
Biblioteca do Senado Federal, 1985 (mimeo).
RIOS, Roger R. Acesso às Tecnologias Reprodutivas e princípios Constitucionais: igualdade,
pluralismo, direito constitucional de família e orientação sexual no debate bioético brasileiro.
In: Quem pode ter acesso às tecnologias reprodutivas? Diferentes perspectivas do direito
brasileiro. DINIZ, D.; BUGLIONE, S. (orgs) Brasília: Letras Livres, 2002, p.51-72.
ROHDEN, Fabíola. A construção da diferença sexual na medicina. Cad. Saúde Pública, Rio
de Janeiro, 2003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2003000800002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 nov. 2008.
______. As novas tecnologias reprodutivas e a velha oposição natureza/cultura na visão de M.
Strathern. Revista Ilha. Florianópolis, v.4, n.2, 2002a, p.175-195
______. Ginecologia, gênero e sexualidade na ciência do século XIX. Horiz. antropol., Porto
Alegre, v. 8, n. 17, jun. 2002b. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
71832002000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 nov. 2008.
SAMRSLA, Mônica; NUNES, Juliana C.; KALUME, Carolina; CUNHA, Antônio C. R. da;
GARRAFA, Volnei. Expectativa de mulheres à espera de reprodução assistida em hospital
público do DF - estudo bioético. Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v. 53, n.1, 2007.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
42302007000100019&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 Jan 2008.
SANDELOWSKI, Margatete; LACEY, Sheryl de. The uses of a “disease”: Infertility as
rethorical vehicle. In: INHORN, M.C.; VAN BALEN, F. Infertility around the Globe. New
thinking on childlessness, gender and reproductive technologies. University of California
Press Berkeley and Los Angeles, California, 2002
SILVA, Paula Martinho da. Perspectivas jurídicas portuguesas e européias sobre a
reprodução assistida. In: Bioética, vol.11, n.2, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano. In:
Antropologia do ciborgue- as vertigens do pós-humano organização e tradução de Thomaz
Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.9-18.
STRATHERN, Marilyn. Necessidade de pais, necessidade de mães. Revista Estudos
Feministas, vol.3, n.2, 1995, pp.303-329.
______. Reproducing the future: anthropology, kinship and reproductive technologies.
Manchester: Manchester University Press, 1992.
STRAUBE, Kátia Maria. Da Família Pensada À Família Vivida: Estigma, Infertilidade e as
Tecnologias Conceptivas. [tese de mestrado em Sociologia] Departamento de Sociologia da
Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Dra. Marlene Tamanini, Curitiba, 2007.
TAMANINI, Marlene. Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: bioética e controvérsias.
Estudos Feministas, Florianópolis, v.12, nº 1, p.73-107, 2004.
108
VAN BALEN, F.; INHORN, M.C. Interpreting Infertility: A View from the Social Sciences.
In: INHORN, M.C.; VAN BALEN, F. Infertility around the Globe. New thinking on
childlessness, gender and reproductive technologies. University of California Press Berkeley
and Los Angeles, California, 2002
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, E. (org.) A Aventura Sociológica, Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil. São Paulo: M. Ventura, 2002.
VIEIRA, Elisabeth Meloni. O arrependimento após a esterilização feminina. Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro, 2009 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X1998000500015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 fev. 2009.
WADSWORTH, James E.. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais
e ideológicos da assistência à infância no Brasil. Rev. bras. Hist. , São Paulo, v. 19, n.
37, set. 1999. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01881999000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 nov. 2008.
WHO. World Health Organization. Current practices and controversies in assisted
reproduction report of a meeting. Genebra: WHO, 2001 apud ARÁN & CORRÊA, 2009.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo