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Outro dado de campo que, certamente, mereceria um estudo mais aprofundado, talvez
relacionado tanto a esta responsabilização quanto à noção de risco como normatização da
reprodução social, diz respeito à frequência com que o desejo de filhos das pacientes foi
colocado em dúvida frente ao frequente excesso de peso / obesidade apresentado por muitas
delas. Aqui, a hipótese de “responsabilização” está baseada na ideia de certa “força de
vontade”, muitas vezes instigada pelos médicos durante as consultas a usuárias obesas:
“Já identifiquei uma possível causa, pode ter outras, mas o excesso de peso é um [IMC=36,8].
Tem que perder peso [coloca a meta de 70kg; hoje a paciente pesa 84kg] e usar a camisinha até
novembro [por causa da vacina de rubéola]. [...] “Não é estético, a gente quer que você
engravide, mas não de qualquer jeito, com saúde e para o bebê também. Se você quer mesmo
engravidar, tem que perder peso, tem que mostrar pra gente que vai perder peso, mesmo
que não consiga até novembro [próxima consulta]; ninguém perde 10 kg de uma hora para
outra” [sic médica]. A paciente foi encaminhada para a nutricionista do hospital. Ao explicar os
exames e resultados à usuária, a médica tenta animá-la dizendo: “você é nova, tem 30 anos, dá
tempo de resolver isso tudo” [sic].
“Aqui tá parado enquanto você não perder peso, não adianta aqueles regimes malucos porque
senão perde saúde e depois não dá para engravidar. Vai trazendo boas notícias: ‘perdi 2,5 kg’”
[sic médica]. A paciente, de 26 anos, não menstrua há 3 anos por causa da obesidade
[IMC=39]. Ao ser encaminhada para a endocrinologia e nutricionista próximos à sua
residência, a médica diz: “e pensa direitinho se você quer mesmo engravidar” [sic], na
tentativa de pressionar para que ela perca peso, por causa da possível gravidez de risco.
Terminada a consulta, a médica comenta com a pesquisadora que “o problema é que a paciente
não quer fazer dieta” [sic].
Diante da dificuldade em emagrecer apontada pela paciente, de 31 anos, a médica responde:
“mas se quer filho tem que fazer uma força. [...] Aqui não se faz ninguém engravidar se não
tiver boa saúde [a paciente está com a glicose alta e excesso de peso]. É sério, vai ter diabete
cedo” [sic], encaminhando a usuária para fazer dieta com nutricionista.
A paciente, no ambulatório desde junho de 2006, iniciou a consulta se justificando: “a senhora
já falou para mim: ‘vou dar 2 meses para alcançar a meta de 80kg’, mas eu não consigo, parece
que eu fico ainda mais nervosa. [...] Minha nutricionista já me deu esporro, disse que ia desistir
de mim. [...] Na verdade não tenho tempo nem de correr, trabalho de caixa [em supermercado],
faço esteira 30 minutos em casa, [...] não queria tomar fórmula porque já tô tomando outros
medicamentos” [sic]. A usuária parecia estar muito desanimada e com muito medo de levar
bronca da médica, pois a primeira pergunta da consulta foi se ela tinha conseguido perder peso.
Com bastante sensibilidade e atenção, ao invés de brigar, a médica tentou entender como estava
a dieta da paciente e no que poderia ajudar, analisando sua rotina, seus hábitos e dando algumas
alternativas como “aumentar a esteira para 1h à noite, comer mais proteína e coisas sem glúten,
evitar biscoitos e farinha, comer de 3 em 3 horas” [sic]. Por trabalhar como caixa, a paciente
não pode fazer estes intervalos para alimentar-se, nem comer frutas enquanto trabalha; diz que
seus empregadores reclamam até quando ela sai para ir ao banheiro. Mudando, então, a dieta, a
médica avisa que “não vou te dar bronca, não, você volta em 2 meses” [sic]. Ambas começam a
rir da brincadeira da bronca, mas logo em seguida a paciente tem seus olhos cheios de lágrimas:
“eu fiquei com medo porque a nutricionista já me deu esporro... eu nem queria vir [na
consulta]” [sic]. Frente às diversas frustrações e coerções vivenciadas pela paciente, a médica
comenta com a pesquisadora que “a gente tem que saber até onde pode apertar a paciente; ela já
deve ter tomado bronca comigo há 2 meses [estava com 95kg e hoje está com o mesmo peso]”
[sic].
Nestes exemplos, não se pretende ignorar a influência que o excesso de peso pode ter
na dificuldade para engravidar, nem o risco de saúde que talvez estas mulheres possam sofrer
ao ter uma gestação com o IMC acima de 30, máximo permitido para que seja iniciado o
tratamento no ambulatório. No entanto, de um lado permanece a questão: será que esta mesma
exigência de emagrecimento, ou pelo menos a mesma faixa de IMC é imposta em clínicas