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A dignidade da pessoa humana, então, é capaz de mediar uma ponderação, a ser
realizada em cada caso em concreto, entre a liberdade e a solidariedade social. Para
explicar essa ponderação, ensina Maria Celina Bodin de Moraes
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:
De fato, a imposição de solidariedade, se excessiva, anula a liberdade; a
liberdade desmedida é incompatível com a solidariedade. Todavia, quando
ponderados, seus conteúdos se tornam complementares: regulamenta-se a
liberdade em prol da solidariedade social, isto é, da relação de cada um com
o interesse geral, o que, reduzindo a desigualdade, possibilita o livre
desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da
comunidade.
A mencionada autora, citando Joaquim B. Barbosa Gomes, elucida a valorização da
dignidade da pessoa humana através de um exemplo chamado “arremesso do
anão”, a saber:
Em 1991, uma conhecida empresa do ramo de entretenimento para jovens
decidiu lançar, em algumas discotecas de cidades da região metropolitana
de Paris e do interior, um inusitado certame conhecido como “arremesso do
anão”, consistente em transformar um indivíduo de pequena estatura (um
anão) em projétil a ser arremessado pela platéia de um ponto a outro da
casa de diversão. Movido pela natural repugnância que uma iniciativa tão
repulsiva provoca, o prefeito de uma das cidades interditou o espetáculo,
fazendo valer a sua condição de guardião da ordem pública na órbita
municipal. Do ponto de vista legal, o ato de interdição teve como
fundamento o Código dos Municípios, norma de âmbito nacional que
disciplina de forma minuciosa o exercício da ação administrativa estatal no
plano municipal. Por outro lado, a decisão administrativa do Prefeito se
inspirou em uma norma de cunho supranacional, o art. 3º da Convenção
Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais. Insatisfeita, a empresa interessada, em litisconsórcio ativo
com o deficiente físico em causa, Sr. Wackenheim, ajuizou ação perante o
Tribunal Administrativo de Versailles visando a anular o ato do prefeito. Em
primeira instância, os autores obtiveram êxito, já que a corte administrativa
julgou procedente o "recours pour excès de pouvoir" por eles ajuizado e
anulou o ato do Prefeito, entendendo que o espetáculo objeto da interdição
não tinha, por si só, o condão de perturbar a "boa ordem, a tranqüilidade ou
a salubridade públicas". Mas, ao examinar o caso em grau de recurso, em
outubro de 1995, o Conselho de Estado, órgão de cúpula da jurisdição
administrativa, reformou a decisão do Tribunal Administrativo de Versailles,
declarando que "o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos
componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do
poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias
locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da
pessoa humana" ("Le respect de la dignité de la personne humaine est une
des composantes de l’ordre public; que l’autorité investie de pouvoir de
police municipale peut, même en l’absence de circonstances locales
particulières, interdire une attraction qui porte atteinte à la dignité de la
personne humaine”).
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MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: tendências. Revista Direito, Estado
e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 15, p. 112. 2001.