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expressões artísticas convencionais, mas era viva nas festas, nos ritos e em outras manifestações
simbólicas e sinestésicas. Eram culturas e histórias manifestadas por um outro vocabulário, por
uma outra sintaxe, que não era exclusivamente a da palavra, mas dos gestos, da música, das
tradições. Então o Mário revolucionou esse sistema quando ele saiu em busca de referências e
registros dessa nossa cultura. Ele saiu com um gravador para gravar a música lá no interior do
nordeste, do norte, no interior de São Paulo. Ele saiu com o Luis Saia filmando as congadas. O
Mário falava que existia um Brasil que tem a ver com os gestos, que tem a ver com a cultura não
material e que precisava ser trazido para dentro dos museus. Se a gente continuasse aprendendo
só o Brasil dos documentos, o Brasil escrito, a gente só ia valorizar Dom João VI e capitania
hereditária. Ele falava, “onde está a congada?” Está lá, viva, acontecendo neste momento, e se eu
não for gravar e filmar ela pode deixar de acontecer. Então o Mário revolucionou isso, só que o
Mário teve todo aquele embate político da era Vargas, com o Departamento de Cultura que
depois o rechaçou.
Bom, na seqüência desse raciocínio, salvo algumas pessoas que trabalharam mais
próximo do Mário e alguns exemplos isolados, você vai ver esta questão ser retomada somente
20 anos depois, com Lina Bo Bardi, que vem de fora. Ela olha a cultura brasileira e se encanta
com a Bahia. Ela é uma pessoa que também pensa reunindo as coisas e objetos. Um caso
emblemático... eu não conheci a Lina pessoalmente, mas as várias vezes que tive acesso aos
objetos dela, que hoje pertencem ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, tive esse contato por
portas abertas pelo Emanoel. Quando o Emanoel queria alguma coisa e ligava lá, o Instituto
podia estar desorganizado, estar em briga com a família do Bardi, mas o Emanoel ligava e falava
e eu ia buscar. Eu entrava e a casa estava, até por uma questão litigiosa, como a Lina tinha
deixado. Em cima da mesa da Lina tinha uma foto do Che Guevara, um fifó nordestino e um
brinquedinho de plástico de kinder ovo. Eu chorava de comoção, de sentir a presença viva e forte
dela. A Lina tinha esses objetos e eu chegava a ter saudades da “Dona Lina”! Sabe a vontade de
chorar de saudade de alguém? Aquilo estava tão impregnado da pessoa, tão impregnado desses
pensamentos. Você diz: essa mulher “escreveu” isso para mim, ela está falando comigo por esses
objetos, ela organizou esses objetos na casa. A mulher já morreu e ela está conversando comigo
por esses objetos. Então vemos que é uma forma de transmitir, de comunicar, pra além da
experiência pessoal, pra além da experiência de quando as pessoas estão vivas. O Emanoel sabia
escrever dessa forma, sabia traduzir isso. Aí eu te digo, uma coisa é você saber como isso
funciona e outra coisa é ter a capacidade de fazer isso funcionar. A outra coisa ainda é você fazer
isso funcionar em larga escala do ponto de vista científico e profissional. Algo mais além disso
tudo é disseminar uma visão do mundo, uma visão do Brasil que você quer falar e que a
burocracia oficial ou a cultura oficial não te permitem, então você vai por esses subterfúgios. Aí
é onde tudo isso se interliga com a cultura afro-brasileira, ou seja, quando os negros eram
perseguidos, eles tinham uma outra forma de se comunicar, de escrever isso e de transmitir isso,
além da sua limitação física no tempo e no espaço. Os seus códigos, a sua cultura (a Maria Lúcia
me ajudou a entender isso), ou seja, o quanto esses signos e significados são importantes. Se Lina
está me comunicando uma frase ou pensamento, a cultura negra conseguiu transmitir uma
cosmologia inteira simplesmente pela articulação de gestos, de sons e de referenciais estéticas,
simbólicas e sensoriais.
O que acontece é que o Emanoel é também uma pessoa erudita. Ele viajou pelo mundo e
fez contato com essas pessoas. Então o arcabouço do Emanoel não é simplesmente a defesa,
digamos assim, da cultura popular e negra. Isso está junto também com a cultura altamente
erudita que o acompanha desde Santo Amaro da Purificação, passando por Nova York, França,
Alemanha, Bixiga e Parque do Ibirapuera.
E como você vê isso? O Emanoel, com os vários conceitos que ele tem, vai de encontro com
uma nova museologia, de abrir o museu para novos públicos, sem ser apenas o público de
especialistas. Ele cria um debate através dessas obras, não é aquela coisa dirigida. Ele
colocou essa arte que até então não estava lá no museu. Na Pinacoteca, por exemplo, tem a
exposição Os Herdeiros da Noite e antes teve a do Rodin. Aconteceu também a sala do