Download PDF
ads:
ANGELA CRISTINA DE SOUZA REGO
DA POESIA DE INTERVENÇÃO
AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO:
alteridade e subjetividade na poesia de
Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha
Tese de Doutorado
Niterói, 2º semestre de 2008.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DE LITERATURA
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E VIDA CULTURAL
DA POESIA DE INTERVENÇÃO AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO:
alteridade e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal Fluminense por
ANGELA CRISTINA DE SOUZA REGO, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutor
em Letras. Área de concentração: Literatura
Comparada.
Orientador: Mário César Lugarinho
Niterói, 23 de setembro de 2008.
ads:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
R343 Rego, Angela Cristina de Souza.
DA POESIA DE INTERVENÇÃO AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO: alteridade
e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha /
Angela Cristina de Souza Rego.
– 2008.
286 f.
Orientador: Mário César Lugarinho.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2008.
Bibliografia: f. 283-286.
1. Literatura comparada Brasileira e moçambicana. 2. Poesia. 3. Subjetividade na
literatura. 4. Realismo. 5. Amor na literatura. 6. Erotismo na literatura. I. Lugarinho,
Mário César. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título.
CDD 800
ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE NA POESIA DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DE JOSÉ CRAVEIRINHA
Da poesia de intervenção ao signo erótico-amoroso
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.
Área de concentração: Literatura Comparada.
Aprovada em setembro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Mário César Lugarinho
Orientador
Universidade de São Paulo / Universidade Federal Fluminense
Profª Drª Simone Caputo Gomes
Universidade de São Paulo
Profª Drª Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Profª Drª Dalva Calvão
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Silvio Renato Jorge
Universidade Federal Fluminense
Profª Drª Teresa Salgado (suplente)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Profª Drª Maria Lucia W. de Oliveira (suplente)
Universidade Federal Fluminense
A Carlos Alberto, meu grande companheiro, pela constância de seu amor
e por acreditar em mim mais do que eu mesma.
A Mário Lugarinho, um amigo
que me indicou caminhos vários, para além do saber.
À minha mãe, que trocou suas habilidades
de artesã por aulas e livros que iniciaram meus estudos;
por sua memória, por seu amor, por sua luz.
AGRADECIMENTOS SINCEROS
A Carlos Alberto, pelos sonhos que temos sonhado juntos, pela vida que construímos e
pelo respeito mútuo que nos fez pessoas melhores do que éramos antes de nossos caminhos se
encontrarem.
Ao Prof. Dr. Mário César Lugarinho, mais uma vez e sempre, orientador isento o
suficiente para fazer as restrições justas e os elogios sinceros, e amigo cuja grandeza de alma
pude comprovar em nosso longo tempo de convívio.
A Carmen Lucia Borges de Abreu, colega que sempre acreditou em mim, oferecendo-
me as melhores oportunidades de evolução profissional.
A Maria Isabel Fróes Cruz, amiga sincera, primeira companheira de muitos trabalhos
acadêmicos, que me acolheu em dias difíceis e com quem dividi muitas risadas.
À Universidade Federal Fluminense, em seu Instituto de Letras, e aos professores que
me ajudaram a traçar caminhos e a vencer obstáculos durante a Graduação e o Mestrado.
Aos meus alunos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, os
quais, ao me elegerem como orientadora, sem o saber, estavam aprimorando em mim
propriedades da investigação científica.
Aos professores que compõem a banca examinadora da minha tese, pelo tempo e saber a
mim dedicados, e em especial aos que foram leitores atentos de meus textos durante a minha
jornada acadêmica.
RESUMO
Este trabalho propõe a compreensão dos processos de alteridade e subjetividade na
poesia de Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha. Pretende-se investigar de que
forma o “eu” cede lugar ao “outro”, objetivando a construção de uma poesia que se define
como “poesia de intervenção” ou “poesia revolucionária” e, inversamente, como se podem
vincular os temas e signos selecionados pelo autor a um processo subjetivo. Por outro
caminho, tenciona-se reconhecer a subjetividade que delineia a poesia erótico-amorosa
produzida por essas duas vozes poéticas. A compreensão teórica fundamenta-se, para
investigação da alteridade, na formação da poesia realista, decorrente de um processo
mimético que adquire novos conteúdos e formas a partir do século XIX, e na filosofia da
linguagem condicionada à ideologia marxista. Quanto à subjetividade erótico-amorosa,
propõe-se a construção de um estudo que se alicerça nas teorias elaboradas para investigação
do amor e do corpo erótico, fundados ambos na proposta de retorno a si mesmo que se
evidencia nos poemas produzidos por Drummond e Craveirinha após a fase de realismo a que
se dedicaram a maior parte de suas vidas.
Palavras-chave: poesia subjetividade alteridade realismo amor erotismo.
RESUMEN
Este trabajo propone la comprensión de los procesos de alteridad y subjetividad de Carlos
Drummond de Andrade y José Craveirinha. Se pretende investigar de qué forma el "yo" cede
su lugar al "otro", apuntando a la construcción de una poesía definida como "poesía de
intervención" o "poesía revolucionaria", e inversamente, cómo podemos vincular los temas y
signos seleccionados por el autor a un proceso subjetivo. Por otro camino, intentaremos
reconocer la subjetividad que delinea la poesía erótico amorosa, producida por esas dos voces
poéticas. La comprensión teórica se fundamenta, para la investigación de la alteridad, en la
formación de la poesía realista, resultante de un proceso mimético que adquiere nuevos
contenidos y formas a partir del siglo XIX, y en la filosofía del lenguaje condicionada a la
ideología marxista. En cuanto a la subjetividad erótico amorosa, se propone la construcción de
un estudio cimentado en las teorías elaboradas para la investigación del amor y del cuerpo
erótico, fundados ambos en la propuesta de retorno a sí mismo que se evidencia en los poemas
producidos por Drummond y Craveirinha, después de la fase de realismo a la que se
dedicaron la mayor parte de sus vidas.
Palabras clave: poesía subjetividad alteridad realismo amor – erotismo.
ABSTRACT
This paper suggests the understanding of alterity and subjectivity process in Carlos
Drummond de Andrade and José Craveirinha’s poetry. The purpose of this paper is to
investigate how the "ego" is replaced by “the other”, in order to build a poetry defined as
“intervention poetry” or “revolutionary poetry” and, conversely, how we can connect the
themes and sign selected by the author to the subjective process. To put it another way, we
try to recognize the subjectivity that outlines the erotic and love poem produced by these two
poetic voices. The theoretical understanding is based on, to the alterity investigation, in the
building of realistic poetry, resulting from the mimetic process acquires new contents and
format from XIX century and in the Philosophy of Language depending on Marxist Ideology.
Regarding the erotic and love subjectivity, it is suggested the research building based on
theories prepared for the love and erotic body investigation, both founding in the oneself
return proposal shown in the poems by Drummond and Craveirinha after the realism
movement to which they dedicate most part of their lives.
Key-words: Poetry Subjectivity Alterity Realism Love Eroticism.
ADVERTÊNCIA
Serão utilizada as seguintes obras dos poetas analisados no corpo do texto desta tese,
identificadas segundo as respectivas legendas:
PC Poesia Completa, de Carlos Drummond de Andrade (2003)
C1 Cela 1, de José Craveirinha (1980)
M Maria, de José Craveirinha (1998)
OP Obra Completa, de José Craveirinha (1999)
PE Poemas Eróticos, de José Craveirinha (2004)
PP Poemas da Prisão, de José Craveirinha (2004)
SUMÁRIO
1. O SUJEITO EM RISCO: O “EU” E O “OUTRO” EM MOVIMENTO DIALÉTICO..Erro!
Indicador não definido.
2. ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE: EVIDÊNCIAS TEÓRICAS E CONJUNÇÕES
POÉTICAS .............................................................................. Erro! Indicador não definido.8
2.1 - Drummond, o mundo e a percepção do “outro”.......... Erro! Indicador não definido.8
2.2 - Craveirinha e a palavra-nação ....................................... Erro! Indicador não definido.
2.3 - Convergências poéticas: o “eu” e o “outro’ .................................................................34
3. A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO, SEGUNDO
AUERBACH ............................................................................................................................41
3.1 - Textos realistas: a consciência clara do mundo............................................................41
3.2 - A mimesis da realidade: um processo de subjetividade................................................46
3.3 - A presentificação da subjetividade no texto literário: uma interpretação do leitor.Erro!
Indicador não definido.8
3.4 - A imitação da realidade por uma concepção estética e estilística................................69
3.5 - Literatura social: uma nova perspectiva do realismo ...................................................78
4. AINDA SOBRE MARXISMO: O SIGNO NA POESIA DE INTERVENÇÃO.............88
4.1 - Em defesa da “poesia de intervenção”.........................................................................88
4.2 - A individualidade psíquica refletida na ideologia social..............................................94
4.3 - O mundo exterior como ideologia do mundo interior: um percurso do “eu” para o nós”
..............................................................................................................................................99
4.4 - Ideologia do cotidiano: uma expressão marxista .......................................................102
5. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A EXPERIÊNCIA DA REALIDADE E DA
SUBJETIVIDADE .................................................................................................................111
5.1 - A arte da imitação e o discurso social: o objeto no espelho do sujeito ......................111
5.2 - Signos do homem real: subjacentes ao mundo, libertos no verso ..............................119
5.3 - A subjetividade como expressão estética e estilística na poesia drummondiana .......130
5.4 - Uma leitura dos textos de Drummond, segundo a evidência do “eu”........................136
6. UM PAÍS NA VOZ POÉTICA DE JOSÉ CRAVEIRINHA: O EU E O “MUITOS”......151
6.1 - A construção do sujeito pelo apagamento do “outro” invasor ...................................151
6.2 - O “eu” e o “outro”: a coexistência no verso transformadorErro! Indicador não
definido.68
6.3 - A experiência estética da poesia: um caminho subjetivo de reconstrução da realidade
............................................................................................................................................186
6.4 - O “outro” em si: o equilíbrio na formação da subjetividade na poesia de Craveirinha
............................................................................................................................................196
7. SIGNOS DE AMOR NA CONSTRUÇÃO DO “EU”.....................................................205
7.1 -
Em repouso de alteridade: o poema na estância do sujeito ......................................205
7.2 - A experiência drummondiana de amar...................... Erro! Indicador não definido.10
7.3 - Carlos Drummond de Andrade: o corpo em êxtase ...................................................219
7.4 - Por ausência de Maria, o amor de Zé Craveirinha .....................................................235
7.5 - José Craveirinha: a subjetividade erótica e a boneca de jagreErro! Indicador não
definido.252
8. FIM DA TRAMA POÉTICA: O QUE FICOU DO “EU” E DO “OUTRO”................Erro!
Indicador não definido.75
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................283
Fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e
emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia.
Carlos Drummond de Andrade
A poesia é a essencialidade da escrita.
José Craveirinha
11
1. O SUJEITO EM RISCO: O “EU” E O “OUTRO” EM MOVIMENTO DIALÉTICO
A poesia coloca o homem fora de si e, simultanea-
mente, o faz regressar ao seu ser original: volta-o
para si.
Octavio Paz
Conjugar interesses e transformá-los em projeto acadêmico não é tarefa fácil; mas ne-
nhum trabalho será autêntico se não tiver origem em idéias particulares e desejos individuais.
Poesia e subjetividade, Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha: dois conceitos, dois
poetas, um só objeto. Construir voz uníssona do que, em princípio, se inscreve mais como
desarmonia do que como concerto é tarefa que exige muita reflexão e método cuidadoso.
Assim, a construção de um paralelo teórico e analítico entre a poesia de Carlos Drum-
mond de Andrade e de José Craveirinha pode parecer, à primeira vista, um projeto que se rea-
lize, apenas, pela composição de analogias fundadas na língua que comungam e na estrutura
socioeconômica e política desenvolvida em seus países. O que não seria tarefa simples, consi-
derando-se a complexidade que envolve as estruturas sociais e lingüísticas a serem estudadas.
Entretanto, na investigação da poesia lírica de caráter realista, podemos planear um estudo
que nos faça compreender a motivação desses poetas em sua escritura e perscrutar os cami-
nhos trilhados no verso, sem estarmos limitados pela comparação de suas formas, o que, pre-
tendemos, revelará outras propriedades da existência poética de Drummond e de Craveirinha,
a fim de que o “outro” a quem consagram seus poemas possa se evidenciar, sendo a poesia o
espaço privilegiado dos que ficam relegados à margem da sociedade.
Estamos, evidentemente, diante de uma literatura que se insere para além de qualquer
proposta estética, pois o poeta compreende o seu fazer literário como espelho que o identifica
diante do mundo e, dessa forma, o estabiliza como sujeito social. Assim, os versos coadu-
nam-se com as ideologias mais prementes e instauram-se nos discursos que são investigados
12
muito mais à luz das teorias políticas e sociais do que sob os códices da crítica literária.
Identificam-se, portanto, nos poemas de Carlos Drummond de Andrade e de José Cra-
veirinha, os movimentos percebidos por Michel Löwy:
Acrescentando o termo social visão social de mundo , queremos insis-
tir em dois aspectos: a) trata-se da visão de mundo social, isto é, de um con-
junto relativamente coerente de idéias sobre o homem, a sociedade, a histó-
ria, e sua relação com a natureza (e não sobre o cosmos ou a natureza en-
quanto tais); b) esta visão de mundo está ligada a certas posições sociais (...),
isto é, aos interesses e à situação de certos grupos e classes sociais. (LÖWY,
2003, p. 13)
A poesia, de fato, cumpre uma missão que se lhe foi destinada pelas imposições soci-
ais a que estavam condicionados os autores. Entretanto, não se constitui objeto deste trabalho
fazer um estudo sobre a “poesia de intervenção”, considerando as modalidades reducionistas
do conceito. O que se propõe como análise é a expressão de uma subjetividade que perpassa o
verso realista e de caráter ideológico, pois que podem ser deflagradas no texto poético estân-
cias de subjetividade mais ou menos claras, de acordo com o signo que lhe dê conformidade.
Advêm da análise, todavia, novos espaços de configuração da subjetividade. Arrefeci-
dos os ânimos e os discursos revolucionários, acende-se no texto poético o desejo em diversas
manifestações, desde a auto-identificação ao conhecimento do corpo, passando pelos riscos de
amor a que se submete o sujeito da poesia.
Enveredamos, por conseguinte, nos estudos que identificam a vontade do ser, nos
quais conceitos ligados à teoria da subjetividade (o conhece-te a ti mesmo e o cuidado de si,
entre outros) e aos discursos sobre sexualidade, amor e erotismo prometem guiar a compreen-
são de versos que se inscrevem sob o registro do desejo. Para tanto, faz-se necessário nos
concentrarmos em questões teóricas, exigência de cuidados e atenções especiais com o texto a
ser elaborado. Dessa forma, relevaremos o saber que vem sendo consolidado pela crítica a
respeito dos poetas em evidência e de um projeto literário que não exige esforços de compre-
ensão, mas de um planejamento na exposição das idéias, consideradas as formas complexas
13
de construção poética.
Antes, porém, do registro de qualquer pensamento, é fundamental conhecer os instru-
mentos de que se disporá para a realização de um trabalho árduo, embora saibamos que, quan-
to mais assim o for, maior a promessa de contentamento.
Estudos comparativos oferecem riscos, e não estamos dispostos a assumi-los sem res-
trições, por prudência ou por vontade de exatidão. Assim, damos início a uma pesquisa que
objetiva, antes de tudo, consolidar o exercício de cotejo proposto. Primeiro, uma voz alenta-
dora:
Progride rapidamente o número dos que levam oficialmente a etiqueta
de “comparatistas”. O que vale ainda muito mais é que a idéia comparatista
atrai cada vez mais especialistas de todas as disciplinas. (...) Vemos uma ra-
zão muito simples para essa real popularidade: a literatura comparada não é
uma técnica aplicada a um domínio restrito e preciso. Ampla e variada, refle-
te um estado de espírito feito de curiosidade, de gosto pela síntese, de abertu-
ra a todo fenômeno literário, quaisquer que sejam seu tempo e seu lugar.
(BRUNEL, PICHOIS, ROUSSEAU, 1995, p. 16)
Não tarda, e os métodos se impõem à vontade e lançam dúvidas. A literatura compara-
da exige que se pense sobre a procedência das analogias (gêneros literários, estilos, experiên-
cias vitais, universalismo dos textos) e a aplicação das teorias (ideologias políticas e religio-
sas, induções científicas e morais, filosofia e psicanálise, conteúdo e forma). Acende-se o a-
lerta:
Qualquer que seja o método (...), filiações e parentescos serão minu-
ciosamente fixados, para evitar o passar das abstrações através do mundo,
segundo o gosto de falaciosas semelhanças. Pela análise do veículo sensível
da idéia, da sua estrutura típica, por uma dosagem prudente da influência po-
sitiva e das constantes humanas eternas, cuidar-se-á de não comparar senão o
comparável. (ibid., p. 84-5)
Entre o entusiasmo e a técnica, iniciamos uma pesquisa da poesia de Carlos Drum-
mond de Andrade e de José Craveirinha, objetivando investigar os textos literários sob o im-
pacto da emoção que nos levaria ao estabelecimento de semelhanças, mas atendendo as injun-
ções que se prescrevem como método, considerando, antes de tudo, o valor das diferenças.
14
E entre Brasil e Moçambique foram erguidas pontes diversas, vias duplas de conheci-
mentos e labores que trouxeram ao saber os conceitos de alteridade e subjetividade. Então,
fazem-se notar os pontos de intercessão entre Drummond e Craveirinha.
A chamada “poesia realista” ? com sua semântica revolucionária e seu verso contun-
dente, marcada por uma ideologia social tenaz e pela fixação da concretude da vida ? cobre
um longo tempo do fazer poético dos dois autores em análise. É a primeira e mais evidente
aproximação entre os poetas. As diferenças, sempre destacadas na observação dos textos para
que não haja equívocos de interpretação, não anulam os pontos de convergência.
1
Ocupando um lugar de destaque nas Letras, Drummond e Craveirinha projetaram, em
sua poesia, a mesma preocupação com questões sociais, especialmente quando relevam nos
versos os homens comuns de seu país, marginalizados e legados ao esquecimento, nomeando-
os, destacando-os no mosaico confuso de uma sociedade imersa na desordem.
2
Os poetas nar-
1
Não podemos prosseguir nossos estudos sem que se faça uma advertência ao leitor sobre as razões que nos
levam a ainda discutir uma literatura ideológica, visto que: a) essa tendência analítica é corrente e consolidada
especialmente quando o objeto de estudo é a obra de Carlos Drummond de Andrade por vozes que se
destacaram na crítica literária, o que poderia parecer discurso gasto; b) a práxis marxista tem sido revista com
freqüência e não sem uma dose de intolerância por parte dos estudos teóricos sobre arte; c) confere-se ao estudo
das ideologias um certo receio por parte de quem nele se aventura e uma certa desconfiança por parte de quem
dele se ocupa, pois sempre há um alerta sobre as precauções que se deve tomar antes de se dedicar a uma aplica-
ção teórica das ideologias, como o fez Michel Foucault, em Microfísica do Poder, em argumento que nos inte-
ressa reproduzir: “A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, quei-
ra-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema
não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de
outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são
em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o
sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação alguma coisa que deve funcionar para ela
como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção que
não deve ser utilizada sem precauções”. (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1999, p. 7)
Embora não seja este argumento fundador nem instigador de nossos estudos, e ainda que não discordemos
totalmente do ponto de vista apresentado, dele retiramos os contra-argumentos que ora expomos, e que funda-
mentam nossa proposta: 1 não buscamos a verdade dos discursos, mas os caminhos de verdade do sujeito; 2
por se tratar de poesia o objeto da pesquisa, é exatamente a matéria poética virtual que nos interessa; 3 os “e-
feitos de verdade” destacados pelo autor, e que se condicionam ao que historicamente se estabelece nos discur-
sos, é realmente o que possibilita a inventividade poética; 4 se a ideologia fixa -se na figura de “alguma coisa
como o sujeito”, então acreditamos ter condicionado corretamente conceito e objeto; 4 como estamos lidando
com arte, consideramos distintas e não incluídas em nossa proposta outras esferas em que se (des)estabilizem a
ideologia. Assim, paradoxalmente, o pensamento de Foucault é verdadeiramente contributivo de nossa análise.
2
Há críticas feitas a Carlos Drummond de Andrade sobre o papel que o poeta exerceu na literatura brasileira.
Ainda que não discordem de seu valor literário, algumas vozes se levantam contra o que a crítica considera ver
na poesia de Drummond, qual seja, uma literatura engajada. Uma dessas vozes é a de Luís Carlos Prestes, adver-
15
ram a vida desses homens: suas feridas no corpo e no espírito e suas mortes banalizadas; seus
sonhos esquecidos ao amanhecer; o enrijecimento da mente e o enfraquecimento do corpo.
Evidentemente, entre Drummond e Craveirinha há uma distância circunscrita não apenas à
sociedade e à realidade que não comungam de maneira efetiva. Entre os dois escritores há o
que Roland Barthes define como a Natureza da linguagem: para o escritor brasileiro, a litera-
tura é uma escolha de consciência, não de eficácia; para o escritor africano, a literatura se con-
figura no seio de uma revolução, por esse motivo, além da consciência, é necessário pensar
em sua eficácia em termos de expansão.
Todavia, a convergência do processo se explica no mesmo Barthes:
(...) a escrita é uma realidade ambígua: por um lado, nasce incontestavelmen-
te de um confronto entre o escritor e a sua sociedade; por outro lado, por
uma espécie de transferência mágica, remete o escritor dessa finalidade soci-
al para as fontes instrumentais de sua criação. (BARTHES, 1997, p. 21)
Drummond e Craveirinha elaboraram, em sua poesia, espaços semelhantes, às vezes
de luta, às vezes de reconstrução quimérica da realidade. Explodiram gritos de revolta e alerta
nos versos, mas também contaram, com voz desalentada, as muitas dores que andaram pre-
senciando ao longo de sua existência.E é assim que, em ambos, forma-se um fazer literário de
desvanecimento do “eu” e elaboração do “outro”.
O “outro” é aquele por quem se é responsável politicamente, projeto que ultrapassa a
responsabilidade social. A massa do pão é substituída pela palavra: alimento de sonho, não de
corpo. A estética alia-se a uma voz revolucionária, ilusão de que a escritura possa revelar a
face amarga do sofrimento e inaugure uma nova ordem social.
A poesia realista promove a extensão do ser, dinâmica em que o “eu” apaga-se para
dedicar-se à observação crítica e criteriosa do “outro” (ora severa, ora cúmplice). Com
sário político histórico do escritor mineiro, que declarou: “Qualquer brasileiro que avalie sabe que ele pode ter
bons poemas. Mas a posição de Drummond era a de um conformista. Conformado com essa ordem, não se inte-
ressa absolutamente pela miséria do nosso povo ? que deve revoltar qualquer brasileiro. Não vejo, por parte de
Drummond, nenhuma revolta nesse sentido”. (MORAES NETO, Geneton. O dossiê Drummond. São Paulo:
Editora Globo, 2007, p. 106) Todavia, como nosso trabalho não é fundamentalmente biográfico, fica apenas o
registro como visão ampliada do tema.
16
Drummond e com Craveirinha é-nos permitido ver objetivamente o que angustia, o que fere, o
que rouba o sonho e a vida.
Muito mais que um projeto social que se alheia do sujeito poético, o texto de Drum-
mond revela um “eu” no “outro” e deste se pretende alicerce. Tais registros percebem-se em A
Rosa do Povo (1945). O sujeito poético leva consigo e em seus poemas o seu compromisso, a
sua ideologia: o “outro”. Quer alienar-se, mas não consegue e reclama contra si, impiedosa-
mente. O “eu” poético não aceita o silêncio e insiste no chamado: Vem do mar o apelo, / vêm
das coisas gritos. / O mundo te chama: / Carlos! não respondes? (PC, p. 121)
Se o compromisso com o “outro” faz o poeta revelar a dor, da mesma forma ele se e-
xige a construção da esperança, ainda que por vias de revolta. É o que se registra no poema
A flor e a náusea”: Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam
anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma
esperança mínima.
3
(ibid., p. 119)
A propalada consciência que a crítica literária reconhece em A Rosa do Povo foi as-
sumida pelo próprio poeta:
Escrito [o livro] durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as
preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas,
através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu.
4
Entretanto, o texto não disfarça uma realidade que atua decisivamente sobre a disposi-
ção intelectual do sujeito poético: Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos. (...)
tempo de gente cortada. (ibid., p. 125-6)
E, finalmente, o “eu” coletiviza-se, assumindo, na superfície do texto, sem sofisticar
3
A título de esclarecimento, o qual ajudará na compreensão das futuras abordagens que faremos em relação aos
conceitos de alteridade, identidade e subjetividade, informamos que o “menino de 1918” é uma referência auto-
biográfica. Naquele ano, o poeta, que contava 16 anos, foi premiado no Colégio Anchieta da Companhia de
Jesus em Nova Friburgo, RJ, pela apresentação do poema “Onda”; em 1919, foi expulso do mesmo colégio, onde
era aluno interno, sob a acusação de “insubordinação mental”. Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. LXXV.
4
Texto introdutório inserido em ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. São Paulo: Círculo do Livro,
s/d, p. 5.
17
em demasia o signo, o compromisso com o “outro”, com a realidade social em que está inseri-
do e com a ideologia com a qual comunga: O poeta / declina de toda responsabilidade / na
marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas /
promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, / um verme. (ibid., p. 130)
Atendendo a outra dinâmica, deixando de lado o “eu” coletivo que se elabora em alte-
ridade, o poeta permite-se a constituição de um “outro” individual. O poema organiza-se com
signos que revelam uma alteridade que não é mais a do ser social, mas de alguém individuali-
zado que perscruta a própria existência. Nesse processo, constatamos que o sujeito poético de
Carlos Drummond de Andrade, em muitos textos, lança-se na emoção do ser por ele intentado
com a máxima genialidade, porque ganha vida em diversas estâncias desse “outro” individual.
No poema “José”, o “outro”, completamente individualizado na sua dor, vê-se integra-
do a um “eu” solidário na voz poética: E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o
povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José? (ibid., p. 106 )
Na mesma seara de um “outro” individual, o sujeito poético harmoniza-se e enreda-se
na emoção de um “outro” sem identificação, como nos versos de “Consolo na Praia” que,
organizados em sentenças breves, imprimem um tom de cumplicidade e alento. Aqui, o sujei-
to poético despe-se da dicção política, da amargura e do ceticismo e constrói uma proposta de
acalanto: Vamos, não chores. / A infância está perdida. / A mocidade está perdida. / Mas a
vida não se perdeu. // O primeiro amor passou. / O segundo amor passou. / O terceiro amor
passou. / Mas o coração continua. (...) Dorme, meu filho. (ibid., p. 181)
Uma terceira representação de um “outro” individual faz o sujeito do poema lançar
mão de um recurso que pode confundir o leitor. Utilizando signos que remetem não a ele (su-
jeito poético), mas ao próprio autor, numa referência biográfica (salvaguardados todos os
conceitos inibidores da teoria literária a respeito do tema), o sujeito do poema, que deveria
estar ligado a este “outro” que se apresenta, ao contrário, dele se distancia, como em “Não se
18
Mate”: Carlos, sossegue, o amor / é isso que você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija,
/ depois de amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que será. (ibid., p. 57)
Ir ao encontro do “outro” e transformar-se nele atende a especificidades não só do esti-
lo de um escritor, mas da realidade intrínseca ao “fazer poético”. Transformar-se em “outro”,
muito mais do que abdicar de sua emoção individual, pode significar renunciar ao próprio ser
constituído como humano.
No que concerne à África, a guerra colonial exigirá a preeminência de um processo li-
terário de abandono do “eu” para construção do “outro”. Mesmo vivenciando a dor do cárce-
re, o poeta busca em si mesmo o “outro”, a voz coletiva com a qual construirá a liberdade. Da
prisão, José Craveirinha substitui um “eu” que sente na carne a dor por um “outro” que proje-
ta no verso e no qual se projeta: História, Mãe África ou uma formiga, companheira de cela:
Havia uma formiga / compartilhando comigo o isolamento / e comendo juntos. (C1, p. 16)
Neste caso, a relação com o “outro” funda-se no contexto histórico de colonização: E / tenho
no coração / gritos que não são meus somente / porque venho de um País que ainda não exis-
te. (OP, p. 17)
No texto poético de Craveirinha intitulado “Quero Ser Tambor”, não há apenas a com-
placente abnegação de si, mas o desejo de ser um “outro”, estranho em matéria, mas não em
essência, por considerar que esse “outro”, nova proposta de ser, eleva-se em grandeza ante o
“eu” do sujeito poético: Tambor está velho de gritar / ó velho Deus dos homens / deixa-me ser
tambor / só tambor gritando na noite quente dos trópicos. (ibid., p. 177)
Assim como Drummond, Craveirinha também edifica o “outro” no poema, individu-
almente. Crianças, homens e mulheres da África clamam a esperança, gritam a revolta, calam
a dor; constroem o verso: e eu sei poesia / quando levo comigo a pureza / da mulata Marga-
rida / na sua décima quinta blenorragia. (ibid., p. 39) Do mesmo modo que Drummond, Cra-
veirinha não permite ao sujeito poético a desistência da vida, que é luta. Também ele carrega
19
seu fardo, sua poesia em que estão todos os da África: Eu sou carvão! / Tenho que arder / E
queimar tudo com o fogo da minha combustão. (ibid., p. 12) E, mais uma vez, como Drum-
mond, Craveirinha cria em si mesmo a alteridade, e reclama a um Zé o compromisso maior,
que não é consigo mesmo, mas com o “outro” ao qual se conjuga: Meu amor: / Desculpa-me
se tão cedo / te não escrevo cartas sentimentais / fechadas com o terno adeus de praxe: ?
Amo-te. Saudades. Mil beijos. / E assinadas: teu Zé. (ibid., p. 179) O “outro” que se identifica
como Zé, “José Mulato”, exige a não desistência, porque se sabe comprometido com um ideal
maior do que a própria vida: E se canto assim / oiçam atentos a voz / humana / do filho mo-
çambicano que se gerou. (PP, p. 39)
Contudo, fazendo a elisão temporária da consciência social que sempre operou em
primazia, e abdicando do processo de alteridade, os poetas refugiam-se na subjetividade que
se consagra no amor e no corpo erótico, onde os encontraremos repousando de longas viagens
pela existência do “outro”.
Em Carlos Drummond de Andrade, o amor se anuncia, antes, em textos dispersos,
pausas dissonantes dos muitos poemas de alteridade e de voz revolucionária. Destacam-se,
nesses intervalos, o tom mais intimista, a voz mais melancólica, a métrica mais suavizada que
se decalcavam do conjunto de textos em que se haviam inserido: Como nos enganamos fugin-
do ao amor! (PC, p. 1275)
O cotejo de versos e formas evidencia uma clara tendência para a compreensão racio-
nalista do amor, o que promove um distanciamento do sujeito poético pela visão perscrutado-
ra, às vezes sagaz e austera, às vezes irônica, do sentimento amoroso. Em 1930: E o amor
sempre nessa toada: / briga perdoa perdoa briga. (ibid., p. 8); em 1934 (Como é maravilhoso
o amor / (o amor e outros produtos) (ibid., p. 43); em 1940: O amor não tem importância. /
No tempo de você, criança, / uma simples gota de óleo / povoará o mundo por inoculação
(ibid., p. 75) O tempo passa, as páginas se sucedem, e, em 1973: Que é que vou dizer a você?
20
/ Não estudei ainda o código / de amor. (ibid., p. 1024)
O código de amor, que o próprio poeta/sujeito poético declara não haver ainda exami-
nado, representa um desafio à investigação científica. Todavia, chega-se à recompensa em
poema do ano de 1984, quando o corpo se mostra em pleno exercício de subjetividade: A me-
tafísica do corpo se entremostra / nas imagens. A alma do corpo / modula em cada fragmento
sua música / de esferas e de essências / além da simples carne e simples unhas. (ibid., p.
1232) O corpo, soberano sobre o “eu”, exige, paradoxalmente, que o “eu” se consagre em si
mesmo: Eis que se revela o ser, na transparência / do invólucro perfeito. (ibid., p. 1233)
E, não deixando dúvidas sobre o que se apreendia como evidência, encontramos a
publicação póstuma de O Amor Natural (1992), livro em que Drummond descortina os códi-
gos de amor erótico por ele estabelecidos, e no qual, no primeiro poema, faz a proposição de
seus textos: “Amor pois que é palavra essencial”.
Identifica-se, na natureza do corpo, a expressão máxima da subjetividade em Carlos
Drummond de Andrade. O sujeito partido, o sujeito cortado, o sujeito em silêncio que não
vive mais o tempo das mãos dadas, que removeu pedras e às vezes removeu caminhos, que
colheu a feia flor do asfalto recupera-se no improvável: o corpo erótico-amoroso como ins-
trumento de redenção, refrigério das desilusões.
A proposta de poesia amorosa, tendo o corpo como centro do texto, volta à cena. Em
1996, com a obra Farewell, o corpo assume, definitivamente, sua representação de subjetivi-
dade. Esquecido da sentença anterior (Não faças poesia com o corpo), o autor promove novas
possibilidades, sugere uma “Missão do Corpo”: Claro que o corpo não é feito só para sofrer,
/ mas para sofrer e gozar (ibid., p. 1418); e com ele reconcilia-se, quase em êxtase: Salve,
meu corpo, minha estrutura de viver / e de cumprir os ritos do existir! / Amo tuas imperfei-
ções e maravilhas, / amo-as com gratidão, pena e raiva intercadentes. (ibid., p. 1419) E, fi-
nalmente, o corpo drummondiano faz transcender o sujeito drummondiano: Meu corpo, minha
21
dor, / meu prazer e transcendência, / é afinal meu ser inteiro e único. (ibid.)
José Craveirinha possibilitou uma pesquisa menos complexa, porque delimita tempo e
espaço de composição do seu sujeito amoroso. Após os poemas do cárcere, da “inclandestini-
dade” e do projeto de revolução, o sujeito poético isenta-se de toda ideologia política e social,
para inscrever-se no verso através do sentimento de amor. Maria, amada, empresta seu nome
ao livro que dela falará já em ausência: Ausência do corpo. / Amor absoluto. (M, p. 41) Em
Maria (1988), sentidos versos traçam o ritual da morte no Livro I, com signos que inscrevem
a dor: «pêsames», «urna», «cruzes» e «lágrimas». A pesada realidade da ausência, no Livro II,
constrói-se com «inventário», «desarrumação», «memória», «olhos enxutos» e «cicatriz». No
Livro III, o sujeito amoroso, sem Maria, reage contra a vida e depois consola-se: Não há mor-
te / quando se viveu / a face da vida que se quis. (ibid., p. 107) O sujeito poético reaprende a
viver sem Maria, envolvido com vassouras, netos, chás amargos e cafés frios. A subjetividade
é construída pelo “outro”, mas agora “outro” é, intrinsecamente, o próprio sujeito.
Não fosse o livro Maria mergulho suficiente na subjetividade o que valeria, por si
, um longo estudo , José Craveirinha, generosamente, oferece mais um caminho de pes-
quisa: a publicação de seu livro Poemas Eróticos (2004), cujos originais foram entregues pelo
poeta, aos cuidados da pesquisadora Fátima Mendonça, sob a condição de serem apresentados
ao leitor postumamente.
5
A obra compõe-se de textos poéticos divididos em quatro conjuntos de poemas: “Re-
zas de Amor”, “Arte Barroca”, “Frenesi dos Zangãos” e “25 Unhadas às Gatas”. O objeto do
poema e do desejo erótico é a “boneca de jagre”, nem sempre revelada ao leitor. O cor-
po se prioriza sobre outros elementos que formam um todo erótico, como a sedução e o dese-
jo. E ? em mais uma dinâmica que desafia teorias e instiga a crítica literária ? mesclam-se,
nos versos, o poeta, o sujeito poético e o sujeito erótico-amoroso, sem fronteiras que os defi-
5
Encontramos, nesse informação, mais uma coincidência entre Craveirinha e Drummond: ambos decidiram não
publicar, em vida, seus textos eróticos.
22
nam claramente, como em “Sinfonia do Zé”: Entretanto / quando me gemes / as duas simples
letras / do meu banal diminutivo / ao meu ouvido / o sussurrante som da sílaba / na pauta dos
teus lábios / ultrapassa um sinfónico / ditirâmbico universo / de milhentos Zés. (PE, p. 71)
Apresenta-se um sujeito sem culpas: na encantação arterial dos solfejos / orando no teu cor-
po de igreja. (ibid., p. 23); um sujeito sem interditos: Dedos / e bocas / em manuais / de Sade.
(ibid., p. 17); um sujeito identificado na transcendência de amar: E... / Todas as homilias su-
plicando / de dentro para mais dentro / gorjeios no altar da mútua assunção. (ibid., p. 24)
Apresentados os poetas e identificados os temas, a pesquisa exige a fundamentação
teórica que consolide o que se nos apresenta como tese.
A poesia requer, para sua análise, que sejam consideradas as propostas de criação que
fundaram a literatura ocidental. Assim sendo, de Erich Auerbach destacamos o trabalho inti-
tulado Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (2004), cuja diretriz
fundamental é a identificação de um processo mimético da realidade, a partir de fragmentos
de textos canônicos, em um recorte que compreende três milênios de literatura, iniciando-se
com a Odisséia de Homero e finalizando-se com To the Lighthouse de Virginia Wollf.
A trilha de investigação proposta por Auerbach parte de um momento em que a litera-
tura expressa a realidade, e o escritor pode aventurar-se no desvendamento de outras experi-
ências, marcadamente periféricas às grandes questões políticas. Ganham expressão no texto
literário: o saber cotidiano; as relações humanas desenvolvidas fora da corte, consideradas
então “baixas”; os comportamentos vulgares; as paixões amesquinhadas pela simples condi-
ção de pertencerem ao homem do povo. Fazendo a mimesis da realidade mais cotidiana, o
escritor chamado realista pôde contribuir para o estamento dessa mesma realidade, com carac-
terísticas próprias de cada época.
Outra proposição teórica, a qual converge para a mesma visão sobre literatura realista,
é a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004) de Mikhail Bakhtin. A proposta do autor
23
avança sobre uma hipótese de que a literatura realista, plenamente formada, engendra novas
concepções atendendo aos anseios sociopolíticos e ideológicos de uma época, datada pelos
fatos históricos que a marcaram e modificaram a poesia moderna. Os estudos de Bakhtin pos-
sibilitarão a demarcação do discurso ideológico na poesia estudada, permitindo que os signos
sejam investigados à luz de conceitos da sociolingüística que permitam o seu aprofundamento
analítico, distinguindo significação e identidade, individualidade e universalismo, enunciação
e enunciado.
O projeto que intentamos, a princípio, é decalcar idéias, estilos e estéticas que defla-
graram a realidade na literatura em poemas selecionados dos autores que compõem o corpus
desta pesquisa. Assim, faremos uma revisão da criação da realidade através da observação do
homem comum e de sua vida cotidiana. Foi preciso, muitas vezes, buscar em teses estranhas à
teoria da literatura e à crítica literária mas que, a elas associadas, ampliaram o saber sobre
os textos poéticos coligidos possibilidades de formulação de uma análise menos conven-
cional da poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha que vise reconhecer
os percursos literários desses poetas para além das ideologias sociais das quais emerge a mai-
or parte dos estudos a eles dedicados.
A realidade forjada por Drummond e por Craveirinha possibilitou o projeto literário
das chamadas “poesia de intervenção” e “poesia revolucionária” que, durante três décadas,
nortearam a sua escritura, envolvidos que estavam por um processo político acachapante e
marcados por uma ideologia impregnada de realismo social. Outrossim, devemos destacar
que, ao discutir a chamada “literatura de esquerda”, pretendemos inferir o processo criativo
dos autores e seu compromisso individual com a sociedade em que vivem, sem investigar a
verdade de sua atuação política. Ao fazer uma reflexão sobre essa “literatura de intervenção”,
Barthes revela um pensamento que vem ao encontro de nossa proposta:
Literatura de luta? Sem dúvida alguma. Mas de uma luta à altura das
indagações formuladas pelo homem histórico e pelo homem eterno. O escri-
24
tor não luta por uma mudança de ministério, ainda que essa mudança seja
muitíssimo desejável, mas por uma transformação das condições externas e
internas que determinam o indivíduo, seus pensamentos, sua moral. (BAR-
THES, 2005, p. 38)
Seguindo as pistas dos versos, aportamos na subjetividade, eixo central de todo o estu-
do proposto. É por tal conceito que procuraremos empreender, desde a primeira análise, um
alcance da dimensão do sujeito poético formado tanto por Carlos Drummond de Andrade
quanto por José Craveirinha. Entendemos que, no processo de criação dos poetas marca-
damente nos textos selecionados neste estudo —, não se dá, efetivamente, o alijamento do
sujeito na constituição da alteridade, idéia comum atribuída ao seu fazer poético, visto terem
suas obras assinalado períodos importantes da história de seus respectivos países. Assim, co-
mo início de percurso, a literatura engajada de um e a literatura revolucionária de outro serão,
de fato, o centro de nossa pesquisa; paradoxalmente, é por elas que empreenderemos um e-
xame das pistas de uma subjetividade que foi relegada nas apreciações que se estabilizaram
como saber votado ao aplauso irrestrito, e do qual, evidentemente, não dispensaremos a ajuda
na elucidação dos problemas que surgirem durante o estudo que empreenderemos em busca
do conhecimento mais ampliado da escritura de Drummond e de Craveirinha.
A subjetividade que transpassou a alteridade reforça-se na poesia amorosa e erótico-
amorosa de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Os seus textos têm caracte-
rísticas específicas, mas convergem em muitas das hipóteses que serão levantadas. O que as
une, porém, em um mesmo projeto, é um dado circunstancial, mas de extrema relevância para
que compreendamos essa vertente literária a que os autores se dedicaram: um intervalo tem-
poral na sua vida poética.
Dedicado à poesia de caráter realista e social desde sua estréia, em 1930, com Alguma
Poesia, o poeta mineiro cede sua voz e seu lirismo a poemas que representam o sentimento
amoroso em espaços de intermitência entre um e outro texto de aguçada vertente política. Em
meio a palavras que acutilam a realidade, quase sempre difícil, de seu país e de sua gente, o
25
poeta propõe a suavidade em um texto marcado pelo signo amoroso; em meio a uma obra que
projetou o ideal, surgem textos dedicados ao erotismo, à fala do corpo e da sedução. Poemas
como “A metafísica do corpo” e o livro O Amor Natural (1992) inauguram um espaço de
subjetividade latente e luminosa, não condicionada a um saber universal, mas apenas ao sentir
de um indivíduo em estado de amor.
Da voz moçambicana mais representativa, do “grito negro” mais intenso e reproduzido
ao som de tambores ancestrais e revolucionários, ouve-se também o gemido, o sussurro, o
apelo amoroso. José Craveirinha, o poeta combativo e audaz, abre uma lacuna no seu tempo
histórico, tempo em que foi país, em que foi outro, em que foi irmão, para inaugurar-se co-
mo sujeito em estado de arrebatamento na sua poesia amorosa e na sua poesia erótica. O livro
Maria (1998) é a voz dolente e dolorida do enlutado, de quem perdeu o amor de uma vida
inteira. Não há revolução em seus versos nem arma em seus signos. Marcados por lamentos e
lágrimas, os poemas representam o sujeito que se permite afastar de todos os ideais para estar
sozinho com sua imensa solidão. Porém, interstício de dor e de vida, Craveirinha também se
dedicou ao corpo intensamente e à paixão erótica por uma “boneca de jagre”, sedutora e liber-
ta, objeto amoroso único de Poemas Eróticos (2004), e que promove a libertação do sujeito
que se negara a evidenciar os prazeres individuais durante a sua vida dedicada à revolução
que planejou.
Nos dois poetas, portanto, mais uma via em comum: o retorno à subjetividade, seja pe-
lo olhar-se no espelho, pela primeira vez, como “eu” e não como o “outro” que insistiu em
forjar em si mesmo, seja pela identificação do amor. Nos dois poetas, a licença autoconsentida
de expressar, enfim, e com a máxima intensidade, o erotismo que se calara dentro do sujeito
que cada um é, e que agora se expressa sem ideologias, ou antes, tendo como única ideologia
a assunção do prazer carnal.
O conceito de subjetividade que desenvolveremos foi pesquisado segundo as proposi-
26
ções indicadas por Michel Foucault em A Hermenêutica do Sujeito (2004); os preceitos literá-
rios de Denis de Rougemont apresentados na obra O amor e o Ocidente (1988); as teorias
psicanalíticas, literárias e lingüísticas de Julia Kristeva em Histórias de Amor (1988); as ques-
tões que suscitam o amor carnal, segundo Georges Bataille, na obra O Erotismo (1987); e
novamente Foucault, que com seus livros História da Sexualidade I a vontade de saber
(1979), História da Sexualidade II o uso dos prazeres (1984) e História da sexualidade III
o cuidado de si (1985), responde a algumas indagações sobre o comportamento sexual e eróti-
co ao longo da História. Dessa forma, ideamos reunir teorias que iluminem a formação dos
discursos erótico-amorosos que se refletiram, por afirmação ou negação, nos versos dos poe-
tas Drummond e Craveirinha. Consideramos, para efeitos de análise, que as teorias sobre o
sujeito, o amor, o erotismo e a sexualidade, a despeito de se desenvolverem, por vezes, em
projetos distintos, devem associar-se para elucidação dos códigos poéticos estabelecidos no
corpus.
Poesia Completa (2003), antologia que colige as obras de Carlos Drummond de An-
drade publicadas entre 1930 e 1996, e Cela 1 (1980), Maria (1998), Obra Poética I (1999),
Poemas da Prisão (2004) e Poemas Eróticos (2004) de José Craveirinha fornecem os textos
que nos permitem lançar luz sobre versos que consideramos melhor representar as diversas
faces poéticas reveladas neste estudo.
6
A crítica literária brasileira e muitas teses africanas
objetaram sobre interpretações impressionistas e esclareceram signos menos afeitos à decifra-
ção imediata. Outros tantos autores e outras tantas teorias se tornaram pertinentes em momen-
6
O livro Babalaze das Hienas, publicado em 1997, apesar de também compor-se de poesia lírica, não foi incluí-
do como corpus deste trabalho por considerarmos que a voz poética, que se permitiu nessa obra uma impetuosi-
dade indisfarçável contra a condição colonial em Moçambique, não atende a nossa proposta, visto que o sujeito
poético, nos poemas, compõe uma visão pictórica de um país em flagelo, registrando-se, então, os textos, como
poemas-denúncia. Nesse caso, não há, entendemos, uma relação dinâmica e dialética entre o “eu” e o “outro”.
Para melhor explicar, recorremos à síntese de Fernando J. B. Martinho, em prefácio do livro, pela qual destaca a
indignação do poeta/sujeito poético ante um estado de privação absoluta da dignidade humana e da vida, e enu-
mera as cenas que formam o quadro social: “o sangue, o latrocínio, os ataques cegos e indiscriminados de armas
brancas e de fogo, a violação, a mutilação, a degolação, o esquartejamento, o rebentamento de minas”. (CRA-
VEIRINHA, José. Babalaze das hienas. Maputo: Minerva Central, com o apoio de ASDI Instituto Camões,
1985, prefácio)
27
tos diversos da pesquisa, visando sempre pôr em evidência as duas vozes poéticas que se al-
ternam na construção da alteridade e da subjetividade.
Muitos poemas, muitos estudos e uma certeza apenas: a de que uma análise compara-
tiva das formas literárias de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha pode se re-
velar um exercício de investigação que não se insere, unicamente, em conceitos teóricos ante-
riormente formulados, mas que se apresentam sob o efeito de rupturas nos saberes consolida-
dos e formalizados. Disso resultam o risco e o encantamento.
28
2. ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE: EVIDÊNCIAS TEÓRICAS E CONJUNÇÕES
POÉTICAS
2.1 - Drummond, o mundo e a percepção do “outro”
Escuto vocês todos, irmãos sombrios.
No pão, no couro, na superfície
macia das coisas sem raiva,
sinto vozes amigas, recados
furtivos, mensagens em código.
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade, poeta nascido na cidade mineira de Itabira, não negou
seus versos ao sentimento interiorano de que fez parte e que nunca abandonou, mas também
não permitiu que os limites das pequenas cidades reduzissem sua visão contemporânea sobre
o mundo. Expandiu-se por grandes metrópoles, saindo de Belo Horizonte e chegando ao Rio
de Janeiro; abdicou das montanhas para compreender o complicado desenho dos prédios; se
viu estrelas, viu luzes; e do bucolismo de uma “cidadezinha qualquer”, confrontou-se com a
sofisticação de bairros como Leblon e com o cosmopolitismo de Moscou e Berlim.
Assim ampliada a sua percepção do mundo, soube identificar como ninguém o homem
que o habitava: o operário e o político; o atônito e o artista; as mulheres todas: mães, irmãs,
amas, amadas namoradas ou amantes amargas e abandonadas. E soube, além de tudo, expan-
dir-se por discursos e idéias várias, múltiplas possibilidades de realização poética.
A mesma proposição é atestada por Ângela Maria Dias:
Como, em Drummond, nada é puramente intelectualista, sua poesia metafí-
sica conflui, quase sempre, para os mais diferentes temas e perspectivas: o
29
discurso da elocução em primeira pessoa, o discurso mais impessoal, o ero-
tismo, o lirismo memorialista de diversa fatura e a celebração. (DIAS, 2007,
p. 158)
E se dizemos que o homem marginalizado o habitava, balizamos a afirmação no en-
tendimento de uma construção intelectual, cujos registros se dão, claro está, na sua experiên-
cia como ser político. É consenso, entre os estudiosos de Drummond que estabelecem parale-
los entre sua biografia e sua obra, assinalar o registro de homem burguês, cuja conseqüência é
o fato de que o poeta “jamais alimentou ilusões quanto à possibilidade de superação dos limi-
tes impostos por sua formação burguesa e, conseqüentemente, de uma identificação dessa
ordem”. (CAMILO, 2001, p. 77) Todavia, voltando ao pensamento inicial, queremos destacar
a elevação do “outro” no ser poético drummondiano por uma visão ideológica. Assim, se cabe
a discussão, em outras esferas, do seu caráter burguês, esse dado não é significativo no regis-
tro que fazemos do poeta. Preferimos, então, identificar uma dinâmica literária que corrobora
a visão social e a visão do “outro”, a mesma que o fez construir o gauche e transcender a sua
existência pessoal. Realce absoluto damos, portanto, ao fazer literário, muito embora o ho-
mem Drummond não desmereça o sujeito poético com que se constitui:
essa insatisfação com a situação do mundo ultrapassa o poeta e vai inquietar
também o pacato cidadão que ensaia alguns passos na tentativa de participar
mais vivamente da sociedade que integra, para mudar um pouco do muito
que havia de errado. Os gestos, no entanto, serão sempre tímidos, indicando
que a sua forma mais aguda de atuação social seria mesmo através da litera-
tura. (CHAVES, 1993, p. 14)
O sujeito poético de Drummond arriscou todas as experiências: da guerra e do desejo
de paz; do engajamento político e da desilusão; do amor e do desamor. Identificou os cami-
nhos das igrejas (E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.) (PC, p.
17) e os mistérios da Umbanda (Yemanjá, filha de Oxalá, / mãe de Xangô e de todos os ori-
xás, / sarava!) (ibid., p. 1510). Drummond muitos participou intensamente da vida do mun-
do. Sua morte, em 17 de agosto de 1987, quando contava 85 anos, doze dias após a morte de
30
sua filha, Maria Julieta (sobre quem o poeta escreveu: “Assim terminou a vida da pessoa que
mais amei neste mundo.), parece não ter acontecido. Longe de falarmos da imortalidade do
artista, falamos da imortalidade dos temas. Porque o poeta assistiu o nascimento do século
XX, e seus olhos de menino registraram as impressões da Primeira Grande Guerra enquanto
os olhos de homem analisaram a Segunda Grande Guerra; porque se ordenou nas tendências
políticas e desordenou-se em seus ditames; porque soube compreender que o objeto de sua
poesia, em dado momento, não poderia mais se incumbir da coletividade, mas se ocupar da
individualidade humana, na busca de compreender a subjetividade que nos move, apesar do
mundo. Essa particularidade de Drummond foi avaliada por Antônio Callado:
Drummond é o poeta que dá toda a inquietação do Brasil, toda a inspiração.
Há uma grande forma que a vida brasileira reclama. Drummond parece que
tem disseminado pela poesia todas essas coisas, inclusive a extrema simpli-
cidade, como em “E agora, José?”, uma expressão que vive na boca de todo
mundo porque exprime o sentimento do povo. Os poemas mais difíceis ex-
primem a aspiração de um país inteiro à ordem, à coisa clara, o que reflete a
inquietação do povo brasileiro. Drummond não é apenas um poeta de uma
maneira de expressão ou de um tema. É um poeta vário, um poeta que tem a
faculdade de ser múltiplo, um poeta e várias regiões geográficas”. (MORA-
ES NETO, 2007, p. 145)
Todavia, o que mais se destaca na poesia drummondiana é a capacidade de interseção
com o que é exógeno ao homem. Drummond não se sobrepõe ao que vê; insere-se. Lá está ele
no campo de pastagem, e também o encontramos no campo de guerra. Se analisa o mundo, as
atitudes, os acontecimentos e os sentimentos, elabora uma auto-análise. O outro depura-se
pela existência do eu.
Por esse caminho segue a crítica de Silviano Santiago: “o leitor não deve dissociar a
sua própria experiência autobiográfica da experiência de vida transmitida pelo poema”. (PC,
p. IV) Mas não propomos uma compreensão estanque da obra drummondiana. Não se trata de
colocar lado a lado homem e obra, sentimento e verso. Nossa proposta é partir de uma unida-
de homem-mundo para compreender os mecanismos utilizados em sua dissociação, quando o
poeta passou a investigar a realidade. Na poesia de Carlos Drummond de Andrade, o seu sen-
31
timento é o sentimento do mundo: angústia e esperança; desânimo e vontade; solidão que é a
de todos, que é coletiva. Seus ombros suportam o eu e o mundo. Os versos de Drummond não
são excludentes do outro” nem de si mesmo.
Drummond convida o leitor a fazer parte, pelo verso, de um mundo que se esconde em
olhos anuviados pelo receio de enxergar mais claramente o que se perde em labirintos, se es-
conde nos becos, se espraia nas favelas fora do alcance das vistas. Move-o, talvez, a sua expe-
riência como jornalista; mas, acima de tudo, move-o a vontade de comunicar a todos a reali-
dade que o incomoda, porém, da qual não quer se desobrigar.
2.2 - Craveirinha e a palavra-nação
E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
afluem doces e altivos na memória filial
e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.
José Craveirinha
O processo de transferência para um “outro” que se impõe sobre o “eu” -se inequi-
vocamente na poesia de José Craveirinha, o poeta que se revela com seus “belos e curtos ca-
belos crespos”, sorrindo com seus “dentes brancos de marfim espoliado”. Craveirinha que se
subscreve África, que se designa Moçambique, que se chama Maputo. Isso porque José Cra-
veirinha é o cidadão antes de haver nação; é o homem liberto por vontade própria, antes da
própria liberdade; é o poeta que se inventa entre grades e insetos, homem e formigas na cons-
32
trução do país.
José João Craveirinha nasceu no bairro da Mafalala, em Maputo, em 1922, e faleceu
em 2003, também na capital moçambicana. Filho de pai algarvio e de mãe negra africana,
pertencente à etnia ronga, desde sempre seu olhar volta-se para o outro, porque o diverso
em si mesmo assim o exigia. Seus poemas não negam a disposição de ver o outro para ver-
se no outro: “Jambul”, “Mulata Margarida”, “Felismina”, avós e mães, náufragos de navios
de carga, meninos famintos, menina Detinha no “céu sem anjos da África”. Sua poesia é Mo-
çambique, é África.
Todas essas personalidades que povoam a poesia de Craveirinha foram resultado de
uma criação poética assim compreendida por Fátima Mendonça e Michel Laban:A realidade
social exerceu uma tal determinante na poesia de José Craveirinha, dando origem à constru-
ção de personagens edificados, que entraram no imaginário literário moçambicano.
7
(MEN-
DONÇA, LABAN, 2008)
A escritura de Craveirinha corrobora a resistência africana contra a colonização portu-
guesa. Acusado de pertencer à FRELIMO, foi detido pela PIDE/DSG e condenado, tendo
cumprido pena até 1969. A poesia foi a sua principal arma na luta pela libertação. Entre as
paredes da cela, escreveu poemas que deram origem aos livros Cela 1 e Poemas da Prisão.
Ao escandirmos os versos de José Craveirinha, desvendamos signos que compõem
culturas étnicas, que desenham corpos conformados à natureza, que não se valem por si mes-
mos, mas em cosmogonia. Retomando “Sábado nos musseques”, de Agostinho Neto, poeta
conciliado na dor e na esperança, podemos dizer que na poesia de Craveirinha todos os seres e
coisas significam. O dizer África é a principal fonte literária do autor, como atesta Ana Ma-
falda Leite: “Com efeito, o autor de Karingana ua Karingana faz o elogio da sua terra e da
sua cultura, apontando crítica e indignadamente alguns dos episódios, dos factos históricos e
7
Texto transcrito do filme José Craveirinha, realizado por Fátima Mendonça e Michel Laban, disponível no site
www.macua.org/video/jose_craveirinha_2001a.wmv. Acesso em 25/mai/2008, às 13:20h. Advertimos que esta
citação e as que doravante utilizaremos, retiradas do site indicado, foram transcritas de áudio.
33
do quotidiano, que dentro e fora do seu país são um resultante da opressão e da injustiça.
(LEITE, 1998, p. 116) Tal projeto literário inicia-se, como ocorre com outros poetas africa-
nos, pela necessidade de denunciar o jugo colonial e expressar o sonho de liberdade. Com
Craveirinha, entretanto, o verso fugiu ao tom panfletário e adquiriu o estilo e a estética que
farão do autor ? ainda que não se configurasse um projeto seu ? ser um “Camões moçambi-
cano”, fundador de uma nação.
Segundo Benjamin Abdala Junior, Craveirinha “não aceita continuar do ponto em que
a literatura colonial parou. Sua estratégia é de confronto e procura sua legitimação num novo
campo comunicativo de caráter nacional e popular”. (ABDALA JR, 1995, p. 79) O projeto
literário assim identificado tem origem na construção de uma consciência social e ideológica
que fará da poesia de Craveirinha a expressão múltipla de uma existência moçambicana, em
que o sujeito poético engendra uma moçambicanidade que não se detém nas prerrogativas de
um discurso pós-colonial que se consolidou nas fórmulas gastas do verso revolucionário.
Longos poemas narrativos ? seguindo uma proposta neo-realista que se casava bem à
valorização do africano humilhado pela colonização ? trarão à superfície do verso as pessoas
simples de Moçambique. Por outra via de criação poética, textos concisos promoverão a ten-
são no ato de leitura, pois que se delimitam por signos cuja densidade dramática não permite a
ocultação da dor. As tragédias coloniais, cotidianas, são expressas tanto na língua estrangeira
quanto na língua ronga. Poemas laudatórios e de caráter épico contarão histórias de heróis;
poemas elegíacos lembrarão as mortes anônimas nos porões dos navios, nos machimbombos,
nos úteros, nos braços e nos olhos de mães desesperadas.
José Craveirinha é dor, mas também ressoa a esperança no som forte do tambor. “Que-
ro ser tambor”, grita o poeta, porque assim poderá transpor seu verso para além dos limites da
clandestinidade; poderá transcender sua voz, voz de tambor, e alcançar a consciência de todos
os homens. Portanto, antes de chegarmos à Maria, projeto de amor, caminharemos com o
34
poeta pelos bairros de Moçambique, perscrutando suas tragédias. Craveirinha exige muito de
seu leitor: a compreensão de seu universo, a disposição para entender o diferente, a vontade
de vida que, muitas, vezes, excede os limites de nossa percepção. Contudo, ao nível da exi-
gência corresponde a tessitura do verso que associa ao conteúdo árduo a sofisticação da for-
ma.
2.3 - Convergências poéticas: o “eu” e o “outro’
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Carlos Drummond de Andrade
Nesta civilização
o que descubro é
o ódio no coração do mundo.
Mas persisto
porque da seara da vida
ao hábito de procurar
o amor dos homens
restam sempre os grãos ao fundo.
José Craveirinha
O projeto de unir as vozes poéticas de Drummond e de Craveirinha poderia seguir o
caminho das teorias intertextuais. No entanto, desejamos compreender não somente o poeta,
mas o eu que o engendra; não apenas o objeto, mas o outro no qual se configura; não uni-
camente o verso, mas como se constrói o sujeito poético que neles se expressa.
Ao investigarmos o processo de escrita literária que gerou essas vozes, vemos que ele
35
tem início com o advento do cristianismo, prosseguiu com o pensamento científico que mar-
cou o Renascimento e chegou ao realismo moderno do século XIX, o qual impôs ao texto
literário uma análise dos fenômenos e acontecimentos cotidianos, identificando nos versos o
homem comum, decurso que analisaremos oportunamente. Validaram-se os personagens e os
fatos corriqueiros, os quais, durante toda a Antigüidade clássica, foram considerados como
temário cômico ou satírico, representados em estilo baixo.
Essa nova apreensão do mundo é designada por Michel Foucault como “vontade da
verdade”, decorrente da vontade de saber da cultura clássica, mas que resulta de uma dinâmi-
ca que procura investigar a realidade, e que desembocará nos discursos do século XIX:
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se
sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida
por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como
os sistemas dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sá-
bios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela também é reconduzida, mais pro-
fundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma socie-
dade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.
(FOUCAULT, 1999, p. 17)
A representação mimética do mundo ganha ares de cientificidade na constituição da li-
teratura européia, ocupando-se Erich Auerbach de estudá-la através da obra Mimesis - repre-
sentação da realidade na literatura ocidental (2004). O autor elabora sua tese considerando
que a arte desempenha, no século XIX, o papel investigativo de uma sociedade que emerge de
uma “vontade de verdade” que se aplica à percepção do real circundante.
A metodologia adotada por Auerbach inclina-se para a compreensão do texto selecio-
nado de modo particular, constituindo, assim, tendências e não leis, como afirma o próprio
autor. (AUERBACH, 2004, p. 501) Seguimos esse caminho, e somente a partir da análise
literária proposta, pudemos depreender os conceitos que nela se manifestavam. Dessa forma
nos foi dado conhecer um projeto que concebeu a arte literária como um movimento dinâmico
em relação ao outro, mimetizando-o para melhor investigá-lo, chegando mesmo o eu do
ficcionista ou do poeta a diluir-se na voz daquele que se colocava na cena ou no verso. Tal
36
percurso, o de concretização da realidade na literatura, sofreria, evidentemente, a ação dos
elementos exógenos ao eu. Tendências, idéias e ideologias atuariam sobremaneira na cons-
trução do texto literário, propondo, não raras vezes, uma metodologia de escritura.
Retomando o pensamento científico, o artista redireciona sua obra para a relação entre
o indivíduo e o contexto social em que se insere. Sob esse aspecto, fundamentalmente pela
teoria de Mikhail Bakhtin, apresentada em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004), po-
demos compreender o signo poético, que, para o autor, transforma-se em ponte que une inte-
ração social e consciência individual. A proposta do marxismo, segundo Bakhtin, seria ins-
crever na consciência do indivíduo uma psicologia objetiva. Dessa forma, a ideologia antece-
deria qualquer pensamento individual.
A teoria marxista, ao pensar sobre a evolução da consciência humana, estabelece sua
relação com a linguagem, ambas existentes, apenas, por se vincularem ao outro e ao meio
social:
A linguagem é tão velha como a consciência ? a linguagem é a consciência
real, prática, que, existindo para os outros homens, existe para mim próprio
pela primeira vez e, tal como a consciência, a linguagem só aparece com a
necessidade imprescindível do trato com os outros homens. Onde existe uma
relação ela existe para mim. (...) A consciência é, pois, à partida, um produto
social e continuará a sê-lo enquanto, em geral, existirem homens. A consci-
ência, bem entendido não é, antes de tudo, outra coisa senão a consciência
do meio sensível mais próximo e a do elo limitado com outras pessoas e ou-
tras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência. (MARX, EN-
GELS, 1989, p. 20)
Pelas ideologias inerentes ao tempo histórico e ao espaço social, podemos identificar
na escrita literária o outro e a sociedade que se constituem no verso. A linguagem é marca-
da pelas propostas coletivas que se fazem valer sobre a subjetividade, exigindo do sujeito poé-
tico que ele se integre no que lhe é exterior ou que se apague no discurso elaborado, a fim de
que apenas o que perscruta possa ser colocado como objeto do poema. Entretanto, o retorno à
subjetividade deflagrado na poesia de Drummond e de Craveirinha exige uma compreensão
dos recursos utilizados pelos dois autores para trilhar o caminho de volta ao eu.
37
Existir em alteridade por opção, por ideal, exige tanto do escritor que sair do “outro”
para imergir-se no “eu” pode ser um doloroso processo de renúncia. A transferência de objeto
literário requer do escritor a capacidade de reconfiguração do sujeito do poema, processo que
impõe não somente o olhar para si, como também o olhar para dentro de si, espelho e contra-
espelho posicionados, imagem e contra-imagem de quem não se habituara à sua própria pre-
sença. Por esse motivo, os versos caminham lentamente em direção à subjetividade que re-
clama o direito de se expressar. Aqui e ali, vemos, disfarçados em alteridade, um sujeito que,
vez por outra, se prenuncia mais que se anuncia. Seja em Drummond: Eu estava sonhando...
(PC, p. 16); seja em Craveirinha: e com raiva ou sem raiva / quantas vezes chorámos sem
mais lágrimas para chorar / quantas vezes, Maria? (M, p. 110)
O processo de re-descoberta da subjetividade é sempre doloroso. Sair do “outro”, es-
tância confortável na qual a voz poética triunfa em altruísmo, para assumir-se como “eu” in-
dividual promove incertezas e angústias. Ser é arriscar-se, é expor-se, é ter de buscar a ex-
pressão mais adequada para revelar sentimentos, intenções e emoções individuais.
Independente dos processos políticos, históricos e sociais em que está inserido, o pro-
jeto literário pode perpetuar ideais, ampliados e universalizados, a fim de retirar as marcas do
espaço/tempo em que foram criados. Por isso mesmo, por existir além de fronteiras artificiais,
desarticuladas sob efeito de mudanças drásticas, desalojar-se de um idealismo é custoso para
o poeta, e ele necessita de um esteio em que possa refazer-se como “eu” único, em exercício
de subjetividade. E o alicerce que identificamos na concepção da subjetividade que pretende-
mos investigar em Carlos Drummond de Andrade e em José Craveirinha é o sentimento amo-
roso, em todas as suas formas e possibilidades.
O amor por princípio e como fim é uma proposta literária já amplamente discutida nos
meios acadêmicos. Ainda que não possamos considerar esgotado o tema, visto o dinamismo
da construção amorosa, o foco de atenção desse estudo é a subjetividade e suas nuances. O
38
que nos motiva é observar um sujeito literário que transfere o interesse pelo “outro” para um
“eu” que se calou por tanto tempo.
Seria correto, dessa forma, que fundamentássemos a análise apenas em uma teoria da
subjetividade que autorizasse nossa tese, não fosse uma proposta autoral que se evidenciou
desde as primeiras leituras de Drummond e de Craveirinha e tem se tornado inconteste quanto
mais os estudos se aprofundam. O retorno ao “eu” de que falamos trilhou os caminhos do a-
mor e do erotismo com todas as angústias e delícias que instigam e professam. Vimo-nos,
assim, instados a sobrelevar os estudos sobre amor, erotismo e sexualidade aos da teoria da
subjetividade. Então recorremos a autores que desvendam os segredos do corpo e do espírito,
quando imersos no sentimento amoroso.
Michel Foucault propõe uma compreensão histórica da sexualidade. Com ele, procu-
ramos minuciar os desenhos do corpo que vão se esboçando no desejo, telas vivas e dinâmicas
projetadas por Drummond e por Craveirinha, libertos após terem cedido aos discursos morali-
zantes, como, ademais, todos os amadores o fizeram:
Evoca-se com freqüência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristia-
nismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em
todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo,
tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu
respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas
habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a
verdade; pelos quais nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por tanto
tempo. (FOUCAULT, 1979, p. 149)
O corpo não contém o erotismo que o move e vota-se inteiramente ao ato de amar. In-
submisso às normas morais, o corpo transcende seus gestos fugindo aos interditos, transgre-
dindo as leis pelo insustentável desejo que não se reduz mais aos seus próprios limites. Geor-
ge Bataille oferece muitas pistas para se compreender o erotismo no contexto da criação poé-
tica de Drummond e de Craveirinha. Destacamos uma delas:
A experiência [do pecado] leva à transgressão realizada, à transgressão bem-
sucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar prazer. A
experiência interior do erotismo exige de quem a pratica uma sensibilidade
39
bem maior ao desejo que leva a infringir o interdito que à angústia que o
funda. É a sensibilidade religiosa, que liga sempre estreitamente o desejo e o
medo, o prazer intenso e a angústia. (BATAILLE, 1987, p. 36)
Antes, porém, de entendermos o corpo em dinâmica amorosa, é preciso resgatar os
discursos que instituíram a existência do amor erótico. No entanto, esclarecemos que não se
trata de, neste trabalho, discutir o erotismo em si, com teses e formulações que procurem in-
vestigar a expressão erótica sob conceitos morais ou sociais, mas de perceber a sua atuação
sobre o sujeito.
Denis de Rougemont revisita os textos que fundaram o amor no Ocidente, e revela-nos
o que virá a constituir alguns dos mais belos versos a serem investigados, visto que se consa-
gram para além do amor erótico:
A dialética de Eros introduz na vida algo totalmente estranho aos ritmos da
atração sexual, um desejo que não decresce jamais, que nada mais pode sa-
tisfazer, que até mesmo desdenha e foge à tentação de se realizar em nosso
mundo, porque só deseja abraçar o Todo. É a superação infinita, a ascensão
do homem para o seu deus. E esse movimento é sem retorno. (ROUGE-
MONT, 1988, p. 48)
Aportando na compreensão psicanalítica, Julia Kristeva abre espaço para investigar-
mos, pela linguagem, a constituição do “eu” e do “outro” na experiência amorosa:
O amor é o tempo e o espaço onde “eu” se dá o direito de ser extraordinário.
Soberano sem sequer ser indivíduo. Divisível, perdido, aniquilado, mas tam-
bém, e pela fusão imaginária com o amado, igual aos espaços infinitos de um
psiquismo sobre-humano. Paranóico? Eu estou, em amor, no ponto mais alto
da subjetividade. (grifo nosso) (KRISTEVA, 1988, p. 25)
Iniciamos, dessa forma, a análise das mais intensas manifestações do sentir que se
propuseram e se permitiram Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha, ao se dedica-
rem a uma poesia subjetiva que reinaugurou no verso as existências do corpo, permitindo-o
expressar-se intensamente. Os prazeres e as angústias que se manifestam através da paixão e
do desejo revelam a emergência do eu sobre o outro, este que se fez soberano durante a
fase realista dos poetas, ainda que não tenha sido possível aos autores, como estudaremos
40
adiante, o apagamento absoluto do eu.
Esses dois caminhos de apreensão da arte objetividade e subjetividade guiam o
percurso da poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. A arte vinculada
à realidade, longe de ser um desvanecimento da subjetividade, é, ao contrário, o reencontro
com a subjetividade que representa em diferentes graus e sob diferentes formas de expres-
são a consciência de uma missão social cumprida à larga, mas da qual os poetas podem,
finalmente, se afastar, planeando uma instigante viagem em direção à própria existência, re-
construindo a subjetividade a partir de um profundo reconhecimento de si mesmo e de seu
fazer poético.
O “outro” que se fez presente nos versos da poesia realista, na “poesia de intervenção”
impediu, por longo tempo, a expressão singular do sujeito. No projeto literário que impelia o
olhar do sujeito para fora de si mesmo, cabiam apenas as emoções não expressas pelas vozes
desses muitos “outros” que andaram habitando os conteúdos poéticos. O poeta fala em alteri-
dade, mas é exatamente a prática desse falar que o leva ao encontro de sua própria subjetivi-
dade.
Uma nova dinâmica se impõe ao verso: o sujeito que se lacerava pelo outro recolhe
em si mesmo o que foi ofertado. Silencia as imensas dores, cultiva novas rosas, cala em si
mesmo todas as vozes e todos os sons para ouvir sua própria voz. E dessa voz que se consagra
na poesia pode emergir, de maneira incontida, o que os constitui como sujeito: a emoção de
amar.
41
3. A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO, SE-
GUNDO AUERBACH
3.1 Textos realistas: a consciência clara do mundo
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Manuel Bandeira
Ao planear um estudo da “imitação” literária, Erich Auerbach partiu de uma teoria que
se estabeleceu como linha mestra de sua pesquisa: a história da literatura registra uma ruptura
nos textos clássicos, os quais só permitiam a representação do real na comédia ou na escrita
de “estilística baixa ou média”
8
(AUERBACH, 2004, p. 132) . Por essa ruptura, os escritores
permitiram-se pensar uma realidade até então ausente da escrita e construir um processo mi-
mético que configurasse na ficção e na poesia uma representação do que fosse feio, pobre e
corriqueiro dentro de um contexto de seriedade. Dessa forma, as experiências do homem e da
realidade por ele construída puderam ser observadas e consideradas em um âmbito de estudos
que consagrou, definitivamente, os textos chamados realistas, e contribuíram para a formação
de conceitos que foram validados, posteriormente, por estudos sociológicos, filosóficos e polí-
ticos. A vida periférica à corte imperial e os temas cotidianos deflagrados no núcleo familiar
passaram a direcionar os saberes relativos ao mundo e ao ser humano.
8
Auerbach informa ao leitor que, “na antiga teoria, o estilo de linguagem elevado e sublime chamava-se sermo
gravis ou sublimis; o baixo, sermo remissus ou humilis; ambos deviam permanecer severamente separados”.
Acrescenta, ainda, o autor, que no texto cristão ambos os estilos foram fundidos na mesma construção de reali-
dade. AUERBACH, Erich. Mimesis São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 132.
42
Auerbach chama a atenção para o fato de que, embora o realismo tenha solidificado
suas bases durante o século XIX, não foi nesse período que houve a primeira resistência à
ideologia literária classicista. Antes, durante os séculos XVI e XVII, românticos com sua
proposta de unir o sublime ao grotesco e realistas enfrentaram uma severa corrente ideoló-
gica que propunha a manutenção da doutrina clássica. Assim, foram nesses três séculos que
houve um enfrentamento entre as duas tendências das artes.
9
(ibid., p. 367) Portanto, durante
toda a Idade Média e no Renascimento, registra-se a existência de um realismo fora da comi-
cidade e inserido nos padrões da alta estilística. E isso se deve, segundo Auerbach, ao discur-
so cristão, visto ter sido o advento do cristianismo que inicialmente promoveu a ruptura nas
normas gregas de estilo. A história de Cristo, com sua mistura de sublimidade trágica e cotidi-
anidade elevada à condição de incontestável e impugnável, fixou uma realidade impensada
antes independente do seu caráter não-científico , qual seja a de atribuir excelência a
pessoas humildes, inserindo um argumento de insubordinação às normas sociais vigentes: um
rei nascido do povo, com estatuto de protagonista da história. A tragédia cristã, que então ad-
quire primazia sobre as demais, redimensiona a noção de realidade.
A perspectiva de uma historicidade nos textos da Antigüidade foi limitada por uma
questão meramente regulamentar: não havia o interesse em investigar a representação do
mundo através das idéias sociais; os acontecimentos eram vistos apenas sob o prisma da mo-
ralidade, o que exclui qualquer proposta de compreensão da realidade por uma visão “históri-
co-evolutiva”. A nova compreensão do mundo, relativa aos saberes advindos da experiência
das classes populares e do homem comum, reconfigurou a literatura.
A poesia fundada no real não pôde ignorar os fatos cotidianos e o homem do povo. Em
9
Lembramos que o século XVIII foi marcado pelo retorno à estética e à ideologia clássicas. Nesse contexto, o
realismo aparece sempre a serviço das idéias iluministas, as quais moldam a arte, caso específico de Voltaire.
Segundo Auerbach, “Voltaire constrói a realidade adaptando-a a seus propósitos. É inegável que, em muitos dos
seus escritos, se encontra a realidade quotidiana, cheia de vida e de cor; mas ela é incompleta, conscientemente
simplificada, e, portanto, apesar da seriedade da intenção didática, brincalhonamente superficial.” (AUERBA-
CH, op. cit., p. 367)
43
grande escala, os ficcionistas e os poetas voltaram o olhar para as circunstâncias rotineiras,
não determinantes na história. Até então ignorado, o homem simples e suas pequenas aspira-
ções, suas emoções e desejos abafados na angústia de existir deslocam-se do espaço da exis-
tência ignorado pelas elites sociais e intelectuais e tornam-se sujeitos do texto.
Assim como Auerbach não se propôs a definir minuciosamente conceitos sobre irrea-
lismo e realismo, estilo “baixo” ou estilo “elevado”, também aqui passaremos ao largo de
concepções parafrásticas que definam o fazer literário, a fim de investigarmos mais objetiva-
mente as diretrizes que proporcionarão a compreensão dos textos selecionados nesta pesquisa.
Para traçarmos nossa linha de raciocínio, buscamos as propostas elaboradas por Auerbach no
seu estudo sobre arte e realidade, a partir de uma leitura da obra homérica Odisséia. No capí-
tulo intitulado “A cicatriz de Ulisses”
(ibid., p. 1-20), o filólogo faz seu leitor percorrer um
caminho que poderá nos servir de modelo. Inicia ele suas observações a partir do momento
em que Euricléia, velha ama, reconhece Ulisses pela cicatriz existente em sua coxa. Descober-
ta a identidade do herói através da marca em seu corpo, foi necessário que o “viandante fati-
gado” impedisse a revelação de seu nome para Penélope, que, neste momento, encontrava-se
distraída. Tomada de alegria, a velha Euricléia teria revelado estar diante do herói, não fosse a
pronta intervenção de Ulisses, que lhe dirige palavras lisonjeiras dosadas com ameaças. Toda
a ação desenvolve-se em discurso direto, e Auerbach chama a atenção para as descrições
pormenorizadas, em perfeitas “articulações sintáticas” que não permitem ao leitor homérico
aproximar-se do que se considera uma tensão.
À descoberta da cicatriz sucede uma narrativa que dá conta de todo um passado de U-
lisses, mas sem deixar em suspenso a expectativa do leitor, porque, indica Auerbach, Homero
constrói o seu texto sem segundos planos, impedindo uma sobreposição de consciência entre
o presente e o passado. É nesse ponto que o autor retoma Schiller, corroborando a sua idéia de
que Homero descreve “meramente a tranqüila existência e ação das coisas segundo a sua na-
44
tureza”.
10
(ibid., p. 3) Por essa compreensão, Auerbach conclui que o estilo homérico prevê
que os fenômenos sejam representados de maneira concreta e visível, definidos os espaços e
os tempos das ações desenvolvidas. E a construção do discurso coloca a serviço dessa repro-
dução da natureza das coisas (demarcada no tempo presente) todos os instrumentos sintáticos
disponíveis no sistema lingüístico (temporais, locais, causais, finais, consecutivos, comparati-
vos, concessivos, antitéticos e condicionais).
Para Auerbach, a realidade criada por Homero apresenta, no texto, a “alegria pela exis-
tência sensível” (ibid., p. 10) presente em um mundo no qual o leitor é inserido sem que lhe
seja exigida uma participação subjetiva no processo de construção analítica. Neste mundo, o
leitor regozija-se com as aventuras e paixões de um herói, relatos de uma realidade existente
por si mesma. Nesse sentido, vemos que há um distanciamento entre os textos épicos e a poe-
sia moderna no tocante à participação do leitor no processo de interpretação de uma realidade
a partir de estados de consciência da figura objeto do poema ou do sujeito poético. O mundo
homérico mantém o ser como unidade absoluta. Não cabem nesse espaço as projeções passa-
das ou futuras de uma existência ambivalente, capaz de dissociar a realidade dos fatos concre-
tos.
Por esta análise inicial, entendemos que se nos apresenta uma proposta teórica que ex-
plica o surgimento dos textos realistas na literatura. Os textos homéricos não permitiam o e-
xercício da subjetividade, seja do narrador, seja do leitor. Mas a força dos relatos envolve o
sujeito leitor em sua narrativa, fazendo-o partícipe de um mundo no qual ele se insere, por
isso o encantamento. O leitor é exigido na medida em que precisa relacionar os códigos que
10
Auerbach reporta-se, aqui, à correspondência mantida entre Goethe e Schiller através da qual os autores trava-
riam uma discussão sobre o sentido do efeito “retardador” na poesia homérica, efeito que, no poema épico, não
estabeleceria uma tensão, como no texto trágico, por uma elaboração estética proposta por Homero. Auerbach,
nesse ponto, discorda de Schiller e Goethe, alegando ser inverossímel que o aedo grego tivesse, realmente, uma
preocupação relevante com a estética; mais provável, ainda segundo o filólogo alemão, é que a interpolação do
efeito retardador tenha sido introduzido no texto apenas como uma “necessidade do estilo homérico de não dei-
xar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado”. Entretanto, Auerbach concorda que o efeito conse-
guido seja o de realmente descrever uma realidade cuja finalidade estaria já estabelecida em cada um dos pontos
do movimento traçado no texto épico. (AUERBACH, op. cit., p., 3)
45
apreende no texto com o mundo convencionado, ainda que não necessite de um exercício de
interpretação. Essa condição fundamental de leitura perpetua-se e intensifica-se na literatura
moderna. Os textos realistas exigem do leitor ainda que para eles a objetividade da lingua-
gem e das imagens elaboradas seja marca literária sine qua non uma consciência clara do
mundo em que se inscreve.
Discutiremos com mais clareza essa proposta ao evidenciarmos o nosso corpus. Por
ora, tomamos de Craveirinha um exemplo que nos parece adequado. O seu texto revolucioná-
rio discute uma situação política que permanecia ignorada ou pelo menos sem o alcance de
sua gravidade ? para muitos leitores. Ainda que sua poesia seja, a priori, extremamente visu-
al, fazendo uso de uma sintaxe que não deixa dúvidas sobre o estado de guerra em Moçambi-
que, o leitor necessita construir o contexto de seus versos. Além disso, os códigos apresenta-
dos, dos quais o autor não pode prescindir, pois representam a africanidade, exigem um co-
nhecimento que excede o texto em si.
O papel do leitor, nesse caso específico, é compreendido por Umberto Eco como o de
um “operador (não necessariamente empírico) capaz de abrir, por assim dizer, o dicionário
para toda palavra que encontre e de recorrer a uma série de regras sintáticas preexistentes para
reconhecer a função recíproca dos termos no contexto da frase”. (ECO, 2002, p. 35) Esse pro-
cedimento de leitura corresponde a, ainda segundo o autor, “aceitar uma série de postulados
de significado” (ibid., p. 36), e exige que o leitor complete a significação dos códigos utiliza-
dos no texto a partir do contexto estabelecido. Trata-se de apreender o não-dito do texto, atua-
lizando os conteúdos propostos para além da superfície do texto.
O leitor de Craveirinha deve recorrer a tais procedimentos para a leitura do poema
“Jambul”, da obra Xigubo, estabelecendo, em cooperação com o autor, a realidade projetada:
I
Jambul
levantou a cabeça
levantou e vibrou sua azagaia
46
Jambul cantou últimos hinos de guerra
Jambul cantou últimos hinos do seu povo.
Jambul foi derrotado pelas espingardas
foi derrotado Jambul o primeiro homem
tráfico de Jambul primeiro xibalo
começou!
(...) (OP, p. 36)
Aproximar-se da proposta autoral implica, além de identificar signos da língua autóc-
tone, ter conhecimento da guerra colonial em Moçambique, reconhecendo em Jambul a figura
de um herói da resistência contra o colonialismo português.
A realidade na poesia de José Craveirinha somente se concretiza pelos signos e códi-
gos inerentes ao seu universo moçambicano. O signo poético investe-se da representação da
vida estruturada em conformidade com o real vivenciado pelo sujeito poético. O poeta reveste
sua própria linguagem da expressão que representa o homem de seu povo.
3.2 A mimesis da realidade: um processo de subjetividade
A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa in-
terpretação objetivada duma impressão subjetiva.
Fernando Pessoa
A construção do texto realista não o isenta de sinas de subjetividade. O fato de estar o
autor comprometido com o objeto e com os elementos, fixos ou circunstanciais, que o cercam,
não determina a ausência de uma compreensão subjetiva ? seja pela voz narrativa ou poética,
seja pela visão de uma personagem ? do que se apresenta ao leitor.
47
O texto de Petrônio utilizado por Auerbach no início de seu estudo, e que corresponde
à parte do episódio sobre o banquete de Trimalcião
11
, exemplifica essa tese. Encólpio, narra-
dor do texto, pergunta a um conviva quem seria a mulher que anda pela sala. Ouve como res-
posta que se trata de Fortunata, mulher do anfitrião. Entretanto, o interlocutor de Encólpio não
se limita a identificar a mulher, mas descreve em detalhes a sua relação com Trimalcião. O
que se lê, então, é uma avalancha de pareceres desonrosos sobre a figura do casal e dos que
com ele convivem como seus subalternos. A todos, o comensal atribui desqualificações de
comportamento e caráter. Também é importante notar que, ao reputar cada personagem, o
falante confere a si mesmo, em paralelismo, uma qualificação que o eleve à vista de seu inter-
locutor, por imediata oposição de seu temperamento e atitudes ao daqueles por ele descritos.
Analisando o texto, Auerbach leva seu leitor a uma reflexão paradoxal: a realidade
então construída pelo comensal só se materializa mediante sua própria subjetividade. Pela
linguagem utilizada ? típica de um falante de baixa extração social ? , podemos destacar
propriedades da subjetividade através das emoções reveladas, como espanto, admiração, in-
dignação, inveja. Esse é o filtro utilizado pelo discursador para construir a realidade em torno
dos personagens de quem fala. Advém de sua subjetividade um juízo de valor que dá o tom
realista ao fato destacado. Opõem-se, claramente, a realidade objetiva, concreta, inequívoca
do texto de Homero e a realidade subjetiva proposta por Petrônio.
A intervenção da subjetividade na elaboração da realidade é mais do que um processo
individual e isolado. Faz parte dessa planificação um saber histórico relativo ao mundo. Se em
11
Petrônio foi um escritor de destaque na corte de Nero, que descreveu com sarcasmo a sociedade romana do
século I da era cristã na obra Satíricon. Foi conselheiro de Nero, no ano 63, e recebeu do imperador, por seu
estilo, a designação de arbiter elegantiae. Os capítulos mais conhecidos de Satíricon são “Matrona de Éfeso”,
com anedotas sobre as mulheres, e “O festim de Trimalcião”, em que o dono da casa, ansioso por mostrar-se
culto, torna-se ridículo ao desfiar uma série de citações equivocadas. Considera-se que o objetivo da obra, sem
intenções moralistas, foi ridicularizar a oposição burguesa e intelectual feita a Nero. O certo é que Satíricon
tornou-se o primeiro romance realista da literatura universal, e deu origem à novela moderna. Vítima de intrigas,
Petrônio foi condenado ao suicídio por conspirar contra Nero. Passou suas últimas horas de vida em uma festa.
Antes de cortar os pulsos, no ano de 66, catalogou todos os vícios do imperador e enviou-lhe a lista. Nova Enci-
clopédia Barsa. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações. 18v., 1999, vol. 11, p. 309.
48
Homero a realidade vivenciada foi organizada pelos deuses ? e cabe ao homem apenas de-
flagrar, por suas atitudes e seus méritos, uma vontade superior ? , em Petrônio a realidade
submete-se à observação de um processo histórico do ser humano; no caso, o enriquecimento,
as mudanças de comportamento promovidas pelas relações humanas, as diferenças sociais que
organizam castas.
Há, ainda, em Petrônio, conforme Auerbach, mais um modelo fixado que se aproxima
do realismo moderno: a “imitação não estilizada de um meio quotidiano contemporâneo qual-
quer, com sua infra-estrutura social, deixando que as pessoas falem seu próprio jargão”. (ibid.,
p. 26) O texto de Petrônio é um romance que ? a despeito dos elementos mágicos e da retóri-
ca estilística utilizada como padrão em sua época, e da comicidade que esvazia o texto de
complexidade quanto aos comportamentos, como veremos no realismo de Balzac ou Flaubert
? abre uma trilha em direção à literatura realista que se firmará posteriormente, e que, por
processo contínuo, levará à poesia de intervenção do século XX.
Esse cotejo entre as formas modernas de representação da realidade e a forma antiga,
submetida à moralidade vigente, foi desenvolvido por Auerbach no trabalho aqui referencia-
do. O romance de Petrônio é validado como primeiro passo para uma investigação mais apro-
fundada da visão realista construída pela subjetividade, expressa no texto literário. É a partir
dele que podemos distinguir no texto lírico a formação de uma subjetividade que, voltada para
a realidade, reelabora uma compreensão e uma apreensão do mundo tangível. Assim identifi-
camos, no corpus deste estudo, uma construção subjetiva que perpassa a mimesis da realida-
de, em processos literários que intensificam a proposta inicial de literatura realista.
O conhecido texto poético “Morte do Leiteiro”, de A Rosa do Povo (1945), segue essa
proposta autoral. Imagens objetivam-se no texto, seqüenciando ações cotidianas, reconhecí-
veis no mundo real. O poema roteiriza uma história, mas denuncia ao leitor atento impressões
a respeito do que se coloca como tema, além de representar um sentimento de solidariedade
49
que se constrói, apenas, em estado de subjetividade.
Cada verso é factível, delineado por referências ao mundo real: nominação, categori-
zação, descrição de atos. O leitor acompanha o desenrolar da trama, marcada pela constatação
da violência, da tragédia que vai se anunciando aos poucos:
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
(...)
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
(...) (PC, p. 168-9)
A mimesis da realidade joga luzes sobre a vida cotidiana, a exemplo do texto de Pe-
trônio destacado por Auerbach. Os códigos estabelecidos por quem vive à margem dos estra-
tos sociais elevados determinam a seqüência da ação registrada nos versos drummondianos.
Notemos, todavia, que existe uma posição assumida claramente pelo sujeito poético, eviden-
ciando sua preferência por um dos atores da cena descrita:
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
50
não sei,
é tarde para saber.
(...) (ibid., p.169)
A posição de observador assumida pelo sujeito poético transfere momentaneamente a
atenção de quem lê da imagem da vítima para a figura de um outra personagem envolvido no
acontecimento narrado: o homem que matou o leiteiro. O poeta realiza, então, uma dinâmica
de falares sobrepostos que descortinam dois movimentos subjetivos, quais sejam, o da figura
poética em ação ? o assassino do leiteiro, tomado de horror e arrependimento ? e o do pró-
prio sujeito poético ? que condena e reprova o assassinato daquele a quem vinha chamando
de meu leiteiro:
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
(...) (ibid., p. 170)
A última estrofe é marcada por uma subjetividade que não mais se contém ao ser cons-
truída uma nova imagem, de todo alheia à realidade proposta anteriormente. O sujeito poético,
em confusão de sentimentos que já vinham se manifestando ? indignação, revolta, pesar ?
elabora versos que melhor representem o que vê, reconstrói a cena com um véu de subjetivi-
dade, não para se furtar à dor ou fugir do real, mas para intensificar na impressão do leitor a
cena que o angustia:
Da garrafa estilhaçada,
51
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora. (ibid., p. 170)
O poeta tem a dimensão da realidade, vê o homem que nela se insere, solidariza-se
com ele, movimento possível que tem origem na subjetividade:
A aproximação com os homens leva Drummond a observar mais intensa-
mente a dor e a sua atenção se volta para algumas histórias que certamente
não seriam tão bonitas quanto a de Robinson Crusoé ou a sua na infância en-
tre mangueiras, ou cujo fim fosse ainda mais difícil de aceitar. Desse modo,
seus olhos descobrem “o moço que é leiteiro”, abatido a tiros por um cruel
engano, numa manifestação da violência urbana”. (CHAVES, 1993, p. 53)
Sabemos que Carlos Drummond de Andrade tem recebido da crítica uma atenção es-
pecial em relação ao seu texto objetivo e realista. E se, em decorrência de uma visão mais
aprofundada, algumas vezes discute-se a expressão da subjetividade na poesia drummondiana,
ela se dá, como o fez Affonso Romano de Sant’Anna, por vias de uma compreensão autobio-
gráfica
12
, evidentemente autorizada pelos versos de Drummond, repletos de referências de sua
própria vida. As proposições estabelecidas valem-nos como respaldo ao nosso argumento,
pois não ignoramos o que se nos é oferecido generosamente pelo poeta e pela crítica literária.
Entretanto, optamos por também pôr em realce a manifestação subjetiva que transpõe a figura
do homem Drummond.
Ao ler cuidadosamente os poemas de Carlos Drummond de Andrade, percebemos que
as figuras humanas evocadas nos versos não o são por caracteres destacados da percepção do
sujeito poético, mas que o sujeito poético desloca-se de sua posição de observador do outro
para envolver-se com o universo do outro. Por esse caminho, toda objetividade do poema
12
Cf. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond, o guache do tempo. Rio de Janeiro: INL, 1972, passim.
52
mescla-se com a subjetividade de quem fala nos versos, evidenciando impressões, desejos,
angústias, desânimos ou esperanças. Assim, o sujeito-poeta não assinala sua identidade no
texto, porque um outro sujeito, produto de muitos recursos de criação, como ainda discutire-
mos, ascende sobre o primeiro, reclamando seu direito de manifestar-se.
Representativo desse processo de criação em Carlos Drummond de Andrade é o poe-
ma “Convite Triste”, que compõe o livro Brejo das Almas (1934), em que a voz poética revela
um sujeito que, desencantado, dá-se a si mesmo, em melancolia. Evidencia-se nos versos um
sujeito, que, se convida um amigo, é pela necessidade que sente de não estar só:
Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.
(...)
Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros seqüestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir. (PC, p. 57)
Em A Rosa do Povo (1945), o longo poema “Nosso Tempo” investiga a existência pe-
la visão de um engajamento político que, segundo epígrafe do próprio Drummond em uma
das edições da obra,
“reflete um ‘tempo’, não só individual mas coletivo no país e no mundo. Es-
crito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações
então reinantes são identificas em muitos de seus poemas, através da consci-
ência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões fene-
ceram, mas o sentimento moral é o mesmo ? e está dito o necessário.
13
(gri-
fo nosso)
A voz do sujeito poético constrói-se pela constatação dos fatos que presencia e das cir-
cunstâncias que identifica; por definições do que vê, apoiadas em uma subjetividade que, por
13
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.
53
princípio, configura o real sob uma perspectiva ideológica de aparente isenção do eu:
(...)
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
(...)
No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
(...) (ibid., p. 127-8)
Entretanto, apesar do que se constrói como factível, propondo um afastamento do
eu, a voz subjetiva se expressa nos versos finais, consciente da realidade:
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme. (ibid., p. 130)
Em “A Flor e a Náusea”, também publicado em A Rosa do Povo, o sujeito investe-se
da vontade de mudar o mundo. Questiona-se sobre o seu papel social e sobre o seu poder de
subverter a ordem. Assume o seu compromisso com a vida e segue em frente. Segundo Af-
fonso Romano de Sant’Anna, nesta obra e mais especificamente nestes versos, “verifica-se
uma verdadeira axis. É o ponto em que a personagem está na parte mais aguda de sua luta
aberta com a realidade”: (SANT’ANNA, 1972, p. 21-2)
54
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.
(...) (PC, p. 118-9)
Mas, para quem tem a consciência do existir e a ciência de compreender, a realidade
limitadora dos sentimentos e das utopias não isenta o poeta de assumir uma atitude, a despeito
de acusações de “insubordinação mental”:
(...)
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
(...) (ibid., p. 119)
E porque se reconhece na arte a possibilidade de enxergar para além das fórmulas im-
postas e dos objetos visíveis, o mais comum dos fatos inacessível aos olhos embaçados e
às mentes entediadas anuncia a transformação pela natureza, em constatação poética de
que a vida se impõe pela vida:
(...)
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
55
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado da montanha, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.(ibid.)
A arte salvadora imprime sua marca até sobre o que não se define. Gastaram-se as teo-
rias, agastaram-se os ideais. Mas a poesia revivesce o sujeito isento de racionalismos. Instinti-
vamente, ele se salva pelo verso que ainda não sabe revelar. O processo de criação poética se
representa na anterioridade do ato poético:
POESIA
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira. (ibid., p. 21)
A proposta teórica assim formulada indica que a compreensão do mundo só é verda-
deiramente possível se elaborada sob uma perspectiva estética, segundo a qual até o que pare-
ce inaceitável, feio ou tenebroso nada mais é do que uma representação estética da realidade.
Assim compreendemos que a mimesis elaborada pela arte não consegue apreender verdadei-
ramente a realidade, mas o que as nossas paixões transformam em realidade, subjetividade
que não se omite na visão do objeto ou em sua configuração narrativa.
A grandeza do homem encontra-se, pela proposta de José Craveirinha, na humildade
de seu nascimento e de sua vida. A cor negra e a classe desfavorecida até de liberdade consa-
gram o homem moçambicano no texto poético.
O poema “Cântico do pássaro azul em Sharpeville”, da obra Karingana ua Karingana
56
(1974), retrata o homem humílimo que se faz em excelência pela força de sua raça:
Os homens magros como eu
não pedem para nascer
nem para cantar.
Mas nascem e cantam
que a nossa voz é a voz incorruptível
dos momentos de angústia sem voz
e dos passos arrastados nas velhas machambas.
(...) (OP, p. 127)
Os poemas de Craveirinha procuram retratar a realidade de um país em chamas e de
um povo que sobrevive em meio à guerra. Entretanto, espelhando-se no que vê, o poeta utiliza
recursos que irrompem no verso uma subjetividade que expressa a mesma dor que reflete.
No poema “Afinal... a bala do homem mau”, do livro Xigubo (1964), a voz poética
conta a estória de um menino faminto e um homem mau. História corriqueira em país coloni-
zado que resulta na tragédia de sempre. O fato é contado sem os disfarces de metáforas ou de
alusões. Mas a repetição dos versos marca um ritmo de dor e morte que surpreende o leitor e
envolve-o no mesmo processo de construção subjetiva. Há uma clara necessidade de auto-
convencimento, de depuração da dor do outro, a fim de que essa dor seja sentida em toda
sua dimensão. Não bastasse compartilharem, poeta e leitor, do grito de lamento do menino, é
preciso ainda, para perscrutação total da tragédia, ouvir o menino/sujeito poético invocar tris-
temente a mãe, que não pode ajudar:
Era noite
o menino vadio tinha fome
na papaeira a papaia estava madura
e o menino vadio estendeu a mão.
Oh... Mamanôôô...!
O menino vadio estendeu a mão cor da fome
o menino vadio estendeu a mão cor da fome
estendeu a mão sobre o branco muro de cimento
(Ah! Tinha mil fomes de uma única papaia o menino)
e a papaia estava ali no Chamanculo toda madura
mais madura que uma libra de oiro
no bolso do mulungo Sousa.
E o menino descalço estendeu a mão
57
estendeu a mão
estendeu a mão
mas de repente o homem atrás do muro
mas de repente o homem atrás do muro
calmo e certeiro puxou o gatilho
e o silêncio da noite ficou mais silencioso
e a escuridão da noite ficou mais escura
e o coração vermelho do menino ficou mais vermelho
e o calor da bala ficou mais quente
e as mil fomes do menino acabaram na fome
do chumbo maduro na barriga do menino.
Era noite
na papaeira a papaia estava bem madura
o escuro no meio do escuro estava mais escuro
e sobre o muro branco o menino estendeu a mão
mas o homem mau deu um tiro
mas o homem mau deu um tiro
mas o homem mau deu um tiro
Oh... Mamanôôô... e o menino caiu!
Oh... Mamanôôô... e o menino caiu!
Menino vadio já não pede mais esmola
menino vadio já não quer mais papaia
menino vadio já comeu toda a bala
menino vadio já não tem mais fome.
Era noite!
Era noite e o menino estendeu a mão
e afinal não era o menino que tinha fome
e afinal a bala do homem mau no Chamanculo
é que tinha mais fome do menino.
Afinal...
Afinal...
Afinal era a bala
Afinal era a bala que tinha fome
da fome do menino do Chamanculo!
14
(ibid., p. 45-7)
A partir dos conceitos estabelecidos, concluímos que a poesia lírica, admitida a sua
capacidade imitativa, apóia-se, analogamente à tragédia, ao drama e à comédia, nas ações
humanas, como propõe, em seu amplo sentido, o conceito aristotélico de mimesis. Dessa for-
ma, torna-se um elemento pendular das formas literárias tradicionais. Pensar em “ações hu-
manas” implica em pensar paixões que promovam as ações. Portanto, a representação mimé-
tica elaborada pela poesia lírica poderia estar vinculada não apenas à verossimilhança e à cre-
14
Optamos, aqui, por reproduzir o poema integralmente por considerarmos que o ritmo impresso pelo autor é
que permite a compreensão da subjetividade formada no texto.
58
dibilidade propostas por um aspecto cognitivo, mas à tensão anterior à deflagração de qual-
quer ação.
Os poetas conferem ao texto uma visão subjetiva que estrutura a realidade apresentada.
As seleções circunstanciais que se sucedem no texto de Drummond e o idealismo nacionalista
de Craveirinha evocam o ser subjetivo no fundo de cada perspectiva objetivada.
3.3 A presentificação da subjetividade no texto literário: uma interpretação do leitor
Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.
Carlos Drummond de Andrade
Diferentemente da poesia épica, a poesia lírica propõe-se à construção do que Auerba-
ch chama de “processo subjetivo-perspectivista”, pelo qual são interpostos planos de consci-
ência simultâneos, transformando o processo mimético da realidade em representação veros-
símil. Concluímos, assim, que a realidade elaborada no texto poético dependerá da represen-
tação articulada pela subjetividade presentificada no texto, na qual o leitor exerce papel de
suma importância.
15
A poesia não é uma propriedade do poeta intransferível ao leitor, e nem
15
A proposta teórica que continuamos a desenvolver e que pretende dar conta do processo mimético da reali-
dade em poesia lírica desencadeia-se, no estudo de Auerbach aqui referenciado, pela contraposição entre o
texto épico Odisséia, e o texto bíblico. O autor utiliza como exemplo a passagem em que Deus se dirige a Abra-
ão, que responde: Hinne-ni! (Eis-me aqui). Comparada a Homero, que conforma o seu texto à noção clara de
tempo e espaço, a narrativa bíblica deixa o leitor perplexo por omitir exatamente as referências mais precisas no
texto homérico: tempo e espaço. Igualmente, a causa que instigou Deus a pôr Abraão à prova não fica evidencia-
da. Valer-se de uma explicação fundamentada na noção judaica de Deus, que desde de sua origem desértica não
tinha um logos definido, segundo Auerbarch, é superficial demais. O que se propõe em seu estudo não é a reali-
dade per si, mas a sua forma de representação (no caso, a compreensão judaica de Deus). Assim, por se tratar o
59
ele aquele assim o deseja, posição destacada por Octavio Paz:
Na realidade, todo poema é coletivo. Em sua criação intervém, tanto ou mais
ainda que a vontade ativa ou passiva do poeta, a própria linguagem de sua
época, não como palavra já consumada, mas em formação: como um querer
dizer da própria linguagem. Depois, queira ou não o poeta, a prova da exis-
tência de seu poema é o leitor ou ouvinte, verdadeiro depositário da obra,
que, ao lê-la, recria-a e outorga-lhe sua significação final. (PAZ, 2005, p.
117)
Não se pretende do leitor, apenas, a assimilação imediata de um mundo pronto, dado
como real, que é o caso da epopéia, mas a sua inserção em um mundo ao qual ele, leitor, se
submete, desenvolvendo as estruturas mais profundas desse universo que se lhe apresenta pelo
texto literário. A subjetividade necessária à construção desse mundo de que a literatura nos
faz partícipes ? proposta pelo autor e assumida pelo leitor, ainda que em planos e proporções
distintas ? organiza-se tanto por elementos estéticos quanto por elaborações psíquicas em um
processo de construção literária que solidificará a noção de poesia lírica.
Carlos Drummond de Andrade serve a esse projeto pelo seu compromisso com o real
tangível, ao ponto de seus poemas submeterem-se à concretude do mundo. Seus títulos e ver-
sos propõem ao leitor a apreensão do real de forma inequívoca: são nomes de cidades e ruas,
prédios, lojas, elementos factuais. Mas não se pode negar a interferência da subjetividade que,
pela trama estética, planifica o real de maneira que o leitor compartilhe da idéia pelo processo
analítico.
texto de uma representação, uma maneira de ver a realidade dada, todas as referências a tempo e espaço apare-
cem de forma sugerida ao leitor (p. ex., “de manhã cedo” não possui uma “demarcação temporal”, mas um “sig-
nificado moral”, pois estabelece a imediata obediência de Abraão a Deus; e “Jeruel, na terra de Moriá” não
indica um limite espacial, visto não serem especificadas as fronteiras geográficas desse espaço). A comparação
estabelecida é sintetizada assim pelo autor: no texto homérico, temos fenômenos acabados, definidos no tempo e
no espaço, em um só plano, os sentimentos são expressos e os acontecimentos narrados lentamente e com pouca
tensão; no texto bíblico, somente o que há de mais relevante é pontuado, tudo o mais depende da interpretação
do leitor, que deve seguir as pistas de uma narrativa marcada por silêncios e discursos fragmentários. O que
devemos salientar é que Auerbach estabelece um ponto de comparação entre os dois textos: ambos são igual-
mente antigos e épicos. Todavia, as considerações do autor levam-nos a três questões fundamentais para nossos
estudos: a interpretação (propriedade do leitor); a interposição de um plano psíquico a um plano objetivo; e a
simultaneidade e multiplicidade de sentimentos e paixões que se revezam no texto por processos de individuali-
dade e coletividade, subjetividade e alteridade. E é por essas três vias as quais desenvolveremos neste capítulo
que o exemplo bíblico utilizado por Auerbach se aproxima do nosso objeto de investigação, que é a poesia
lírica. (AUERBACH, op. cit., 6-8)
60
Em sua obra de estréia, Alguma Poesia (1930), já percebemos a intenção autoral de
conduzir o leitor pelo caminho da mimesis. No jogo de poemas intitulado “Lanterna Mágica”
(PC, p. 10-13), os nomes dos lugares que o autor evoca prendem o leitor à realidade que se
compõe como objeto: “Belo Horizonte”, “Sabará”, “Caeté”, “Itabira”, “São João Del-Rei”,
“Nova Friburgo”, “Rio de Janeiro” e “Bahia”.
O que se dá a conhecer dos locais investe-se da subjetividade do sujeito poético e do
que por ele foi vivenciado:
(...)
Mas tudo é inexoravelmente colonial:
bancos janelas fechaduras lampiões.
O casario alastra-se na cacunda dos morros,
rebanho dócil pastoreado por igrejas:
a do Carmo ? que é toda de pedra,
a Matriz ? que é toda de ouro.
Sabará veste com orgulho seus andrajos...
Faz muito bem, cidade teimosa!
(...) (PC, p. 11)
E somente pela subjetividade é dado conhecer o que não foi vivenciado:
É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá. (ibid., p. 13)
A máxima intervenção de subjetividade pode ser apreendida no poema “Cidadezinha
Qualquer”, também de Alguma Poesia, no qual o sujeito reinterpreta a realidade objetivada,
causando estranhamento no leitor, que, da mesma forma, pela interpretação que se vê obriga-
do a realizar, percebe que também ele, leitor, expressou-se subjetivamente na construção do
poema. Seguindo a proposta de Umberto Eco, o resultado da leitura somente torna-se produti-
vo na medida em que o leitor interpreta todos os códigos e ? aqui mais cuidadosamente ? as
relações sintáticas e as pausas propostas pela pontuação:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
61
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus. (ibid., p. 23)
O leitor de Drummond deve ser partícipe de seu texto, porque o poeta identifica o ver-
so em linguagem artificiosa, que estranha e inquieta, mas desafia e instiga. Sob esse aspecto,
Álvaro Lins definiu a poesia de Carlos Drummond de Andrade como uma “linguagem mági-
ca”, que “faz cada palavra encerrar um significado múltiplo e oscilante; faz, de cada palavra,
um pequeno universo que se prolonga no leitor, que o obriga a se continuar nele, participando
da experiência do conhecimento do poeta”. (LINS, 1963, p. 7)
A interpretação subjetiva ? e não tratamos ainda de um processo exegético que re-
construa o texto literário ? possibilita novas realidades a partir do real elaborado pelo autor.
Como tal, ela ressignifica o mundo, a vida, as relações humanas e os significados místicos
(permitidos nesse novo processo de relação com a escritura) em um movimento contínuo e
conflituoso que leva o leitor às camadas profundas do texto.
Identificamos esse percurso poético com a teoria de Paul Ricouer apresentada em A
Metáfora Viva:
Esse dinamismo semântico, próprio à linguagem natural, confere à
significância uma “historicidade”: novas possibilidades de significância são
abertas, encontrando apoio nas significações já adquiridas. Essa “historic i-
dade” é conduzida pelo esforço de expressão de um locutor que, querendo
dizer uma nova experiência, procura na rede já fixada de significações um
portador adequado de sua intenção. É então a instabilidade de significação
que permite ao objetivo semântico encontrar o caminho de sua enunciação.
Portanto, é sempre em uma enunciação particular ? que corresponde ao que
Benveniste chama “instância de discurso” ? que a história sedimentada das
significações mobilizadas pode ser retomada em um objetivo semântico no-
vo. (RICOUER, 2000, p. 457)
Assim é que o leitor submete-se a um esforço interpretativo duplo: primeiro, necessita
construir as referências históricas que sustentam o texto; depois, refaz os signos à procura do
62
saber subjetivo que o poema exige para a interpretação.
Na poética de Craveirinha, pelo contexto histórico de produção de seus textos, o leitor
participa mais intensamente da construção da subjetividade literária a partir da interpretação
que elabora. Entretanto, o jogo proposto pelo autor não é o da fixação das formas, mas o de
mobilidade das significações. O autor oferece ao leitor o signo historicamente delimitado;
mas, concomitantemente, propõe a instabilidade necessária à permanência do signo em outros
campos semânticos, conduzidos pelo leitor, para além da historicidade subjacente ao texto.
No poema “Segredo”, de Karingana ua karingana (1975), o que se revela não se con-
tém no tempo e no espaço delimitados pela guerra colonial. O signo «noite» propõe uma
compreensão de existência sem fronteiras, em que o mesmo segredo compartilha-se por mui-
tas mentes:
A noite estava escura
escura e fechada até à beira do mar
escura e fechada estava a noite.
E os langues
olhos dos dois encontraram
no céu o Cruzeiro do Sul Xi-Ronga
e uma poalha de estrelas cobriu confidências
mundos de silêncio
o litúrgico frenesi dos dedos
e o desejo ardente de não ser
mais do que um.
A noite estava escura
e fechada à beira do mar.
Mas o beijo
dos dois no tempo esquecido
transformou a noite. (OP, p. 185)
O tema da subjetividade desenvolve-se, ao longo do estudo de Auerbach, sob diversos
aspectos e diferentes representações literárias. Em “Na Mansão de la Mole” (AUERBACH,
2004, p. 405-441), Auerbach faz uma análise da obra realista Madame Bovary de Flaubert. A
passagem escolhida apresenta Emma Bovary profundamente insatisfeita com a vida que leva,
a seu modo de ver, medíocre e aquém dos seus méritos. A mudança para uma pequena pro-
63
víncia, a adaptação à casa deselegante e a convivência com o marido desatento afetam seu
estado de espírito, enchendo seus dias de tédio. Uma cena cotidiana introduz o leitor na per-
cepção de Emma sobre a realidade que a cerca. Flaubert descreve minuciosamente o cenário
(“pequena sala do andar térreo, com a estufa que fumegava, a porta que rangia, os muros que
ressumavam, os pavimentos úmidos”) e todo ele tem uma direta correspondência com a subje-
tividade da personagem (“toda a amargura da existência parecia-lhe servida no seu prato e,
com a fumaça do cozido, subiam do fundo de sua alma como que outras baforadas de enjôo”).
A subjetividade presente no texto de Flaubert ainda não se dá no nível da autoconsci-
ência crítica da personagem, como será corrente em textos posteriores. Há, porém, um avanço
no sentido de construção da subjetividade, visto que o autor não expressa suas próprias opini-
ões, não comenta os fatos e os sentimentos, não emite juízos de valor. A linguagem utilizada
no texto realista libera a personagem para sentir por si mesmo o mundo ao seu redor, e permi-
te ao leitor conceber a personagem via sua própria interpretação. Consideramos que não so-
mente o romance realista obedeceu ao estilo de sua época, como também seria inverossímil,
do ponto de vista de um leitor contemporâneo, que uma mulher burguesa, casada, jovem e
entediada do século XIX pudesse ter uma consciência precisa de sua responsabilidade no pro-
cesso de construção da realidade que a submete e enfada.
Auerbach contrapõe essa proposta com um texto do século XX, To the Lighthouse
16
(ibid., p. 471-498) de Virginia Woolf, no qual a subjetividade se manifesta intensamente pela
observação e inter-relação com as coisas cotidianas, corriqueiras, aparentemente insignifican-
tes. Os personagens do romance desenvolvem uma aguda percepção crítica de si mesmos e da
16
O romance To the Lighthause, de Virgina Woolf, foi publicado pela primeira vez em 1927. Trata-se de um
texto que conta a história do casal Ramsay, sempre cercado de alguns amigos, e de seus oito filhos. Na passagem
selecionada por Auerbach, Mrs. Ramsay havia prometido ao seu filho caçula James, de seis anos de idade, que
velejariam, no dia seguinte, até o farol, caso fizesse bom tempo, quando então entregariam presentes aos mora-
dores do local, entre os quais um par de meias marrom. Diante da convicção de Mr. Ramsay e de alguns convi-
dados de que o tempo não seria propício à excursão, o menino mostra-se decepcionado e infeliz. Mrs Ramsay
ainda confeccionava as meias, e as media nos pés de James que, revoltado com o prognóstico feito, não colabo-
rava com a mãe. Durante esse breve momento, entre repreensões severas e tentativas de consolo, Mrs. Ramsay
percebe a existência do mundo externo através de suas emoções, lembranças e pensamentos que divagam, colo-
cando em relevo, esporadicamente, sons, imagens e idéias. (AUERBACH. op. cit., p. 471 et seq.)
64
realidade que os cerca, e o leitor interpreta cada objeto, palavra ou gesto pelos princípios que
regem sua moral, seus sentimentos e suas expectativas, os quais são apreendidos por quem lê
diretamente do pensamento de cada um. O mundo exterior funciona como elemento deflagra-
dor das camadas mais íntimas do ser. Vozes que se alternam distanciadas da cena principal,
imagens sugeridas, uma lembrança insubmissa que se impõe ao estado mais racional com-
põem um quadro literário que permite ao leitor instruir-se sobre a subjetividade dos persona-
gens.
A profundidade subjetiva que se estabelece no texto é tal que, diz Auerbach, há mo-
mentos em que “nem mais parece que são seres humanos a falar, mas ‘espíritos entre o céu e a
terra’, espíritos carentes de nome, que podem penetrar nas profundidades de um ser humano,
sabem algo a seu respeito, mas não podem ter uma visão clara acerca do que lá acontece”.
(ibid., p. 467) Não há, no texto, manifestações objetivas sobre os personagens; o autor apenas
traça conjecturas incapazes de responder a alguns enigmas.
O que destacamos, para além da proposta de elaboração de uma mimesis da realidade
através da subjetividade da personagem de um romance, é o jogo interpretativo que se estabe-
lece tanto nos textos do século XIX quanto nos do século XX. Nos romances realistas, o autor
constrói a realidade perceptível através da personagem, revelando, na sua concepção do mun-
do, os sentimentos e as emoções que planeiam a sua subjetividade. Isento, o escritor procura
apenas trazer para a impressão do leitor o que o mundo externo provoca na personagem. É a
interpretação do leitor que atuará sobre a construção da subjetividade. Em relação aos textos
do século XX, nos quais, por um processo histórico que investigaremos mais amiúde no pró-
ximo capítulo, a autoconsciência das personagens direciona a leitura, a interpretação entra em
cena para ativar um exercício de autofagia pelo qual cada personagem vai desvendando-se
lenta, minuciosa e ininterruptamente frente a si mesmo, ao escritor e ao leitor.
Para melhor compreendermos a interpretação de uma realidade construída pela subje-
65
tividade, extraímos dos dois textos referenciados passagens que nos indiquem claramente essa
dimensão de análise.
No texto de Flaubert, vemos que a realidade exterior surge como um todo absoluto que
impõe à personagem uma vida de tédio. O mundo, alheio às suas necessidades, faz de Emma
Bovary uma mulher infeliz, e suas sensações são reflexos dos elementos externos que sobre
ela atuam. Portanto, sua subjetividade constrói-se a partir de uma realidade que ela abomina,
mas que a submete: Mais c’était surtout aux heures dês repas qu’elle n’em pouvait plus...
17
(ibid., p. 432) Há uma realidade indissociável de sua existência contra a qual ela não reage, e
que a domina, determinando sua subjetividade.
Inversamente, no romance de Virginia Woolf, a realidade que se constrói é derivada
da subjetividade expansionista de cada personagem, que atua sobre os fatores externos, modi-
ficando sua concretude, delegando-os insuspeitadas existências: Her simplicity fathomed what
clever people falsified. Her singleness of mind made her drop plumb like a stone, alight exact
as a bird, gave her, naturally, this swoop and fall of the spirit upon truth which delighted,
eased, sustained falsely perhaps.
18
(ibid., p. 473)
Essa dupla e reversa proposta de construção textual impele-nos a uma discussão mais
aprofundada sobre a elaboração da subjetividade no texto literário, considerando a função do
leitor no movimento de criação da realidade.
Ao lermos atentamente os poemas de José Craveirinha, percebemos que, em seus pri-
meiros textos, o discurso elaborado situa a realidade no primeiro plano de recepção do leitor.
Dessa forma, a subjetividade, não aparente na superfície do texto, vai sendo construída a cada
verso pela expressão da difícil realidade que submete o sujeito poético. O leitor compreende a
mensagem: o homem está submetido a fatores externos que o massacram, porque exógenos à
17
“Mas era sobretudo às horas de refeição que ela não agüentava mais...” .
18
“A sua simp licidade sondava o que as pessoas inteligentes falsificavam. A singularidade da sua mente fazia-a
cair no prumo como uma pedra, iluminada exatamente como um pássaro, dava-lhe, naturalmente, esta queda do
espírito sobre a verdade que deleitava, aliviava, sustentava falsamente, talvez”.
66
sua cultura.
Em “Civilização”, poema de Karingana ua Karingana, o leitor percebe claramente
que o enunciador investiga a realidade que o cerca, considerando que os elementos de que ela
se compõe atuam sobre o homem ? neste caso, não apenas africano de forma negativa.
Duas épocas distintas da História da humanidade são aproximadas sob um único código ?
“civilização”. O que oprimia o homem no passado reconfigura-se no presente:
Antigamente
(antes de Jesus Cristo)
os homens erguiam estádios e templos
e morriam na arena como cães.
Agora...
Também já constroem Cadilacs. (OP, p. 76)
Um outro movimento de concepção da realidade identificado por Auerbach ? quando
o concreto sofre a ação da subjetividade ? pode ser depreendido no poema “Suelito”, da
mesma obra de Craveirinha. Apenas duas estrofes apresentam uma realidade imposta ao ho-
mem africano. A utilização do signo «lobo», associado à ciência, e do signo «esqueletos»,
associado ao cristianismo, determina a presença, na vida de Moçambique, de elementos im-
postos pela colonização. Os signos destacados, em outro contexto, indicariam possibilidades
semânticas diversas, mas no poema revelam a subjetividade do discursador atuando sobre o
real, alterando-lhe as propriedades:
No laboratório
o lobo dirige a radioactividade
e concentra o cobalto.
Na igreja
pequenos esqueletos juntam
no catecismo os metacarpos
e rezam. (ibid., p. 77)
Além da dolorosa realidade imposta pela colonização e pela guerra de libertação, o
mundo circundante atua sobre o sujeito para representar o compromisso com a África que
precisa reagir ao processo de aculturação estabelecido como projeto político salazarista. Os
67
elementos naturais dão cor ao homem africano, que desse modo constrói sua subjetividade.
Destacamos, para estabelecer a compreensão teórica, versos do poema “Manifesto”:
(...)
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
Eu xiguilo no batuque
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique. (ibid., p. 34)
Proposta diversa é apresentada por Carlos Drummond de Andrade. É certo que vários
de seus poemas organizam o mesmo processo de construção textual que destacamos em Cra-
verinha. Mas chama atenção o fato de que, já em 1930, em seu livro de estréia, Alguma Poe-
sia, e no primeiro texto apresentado ao leitor, “Poema de Sete Faces”, as duas possibilidades
de representação da subjetividade do texto indicadas por Auerbach alternam-se, marcando
uma estrutura sintática em que cada estrofe torna-se independente da anterior.
Inicialmente, o sujeito poético apresenta ao leitor com que disposição emocional e psi-
cológica irá estabelecer-se o compreender da existência:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. (PC, p. 5)
As imagens do mundo externo são avassaladoras, e o real concreto constrói a possível
subjetividade apreendida pelo leitor. Casas são vigilantes de um comportamento masculino
lascivo; o bigode determina a virilidade do homem:
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
68
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
(...) (ibid.)
Mais adiante, a subjetividade se estabelece inequivocamente, independente da decodi-
ficação proposta pelo leitor, pois altera substancialmente as significações anteriormente for-
malizadas ao introduzir novos contextos, o que levou o crítico Gilberto Mendonça Teles, a
propósito do mesmo texto, a declarar que “dentro de cada poema as estrofes, às vezes os ver-
sos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se
interseccionam aos pinchos”: (ibid., p. XLIV)
(...)
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
Se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
(...) (ibid., p. 5)
Tão intenso torna-se o exercício de subjetividade, que o sujeito poético descortina,
frente ao leitor, uma relação eu-tu de intimidade e inconfidência:
(...)
Eu não te devia dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo. (ibid.)
Essa dinâmica que contrapõe subjetividade e mundo tangível e, ao mesmo tempo, re-
laciona o sujeito à realidade exterior de que participa realiza-se apenas se o leitor atuar decisi-
69
vamente no processo de construção do texto. Se as personagens Madame Bovary e Mrs. Ram-
say tornaram-se exemplos lapidares do processo de construção da subjetividade na literatura
realista, os poemas elaborados por Drummond e por Craveirinha exigem que o leitor identifi-
que os elementos constitutivos dos versos para associá-los devidamente ao sujeito que se a-
nuncia, não esboçado na superfície do texto, mas evocado e constituído no ato de leitura.
3.4 A imitação da realidade por uma concepção estética e estilística
O objeto estético é uma criação que inclui em
si o criador: nela o criador se encontra e sente in-
tensamente a sua atividade criativa, ou ao contrá-
rio: é a criação tal qual aparece aos olhos do pró-
prio criador, que a cria com amor e liberdade (é
verdade que não é uma criação a partir do nada,
ela pressupõe a realidade do conhecimento e do
ato, que ela apenas transfigura e formaliza).
Mikhail Bakhtin
A mimesis da realidade atendeu a estilos literários de acordo com a época de produção
dos textos. Como já destacado antes, na Antigüidade, a vida cotidiana, com seus personagens
e seus fatos corriqueiros, só tinha representação no texto cômico, apoiado em uma linguagem
de estilo “baixo”, cuja intenção era agradar a um leitor que olhava de cima para essa realidade
representada, pois a ela não pertencia. Mas a linguagem também promove uma modificação
no estilo de imitação da realidade. Na tentativa de contrastar a realidade comum, portanto
cômica, com a realidade sublime, o escritor tem de buscar um estilo que possa dar conta dos
conteúdos apreendidos em seu texto e da estilística elevada. Assim o estilo, não obstante pre-
70
cisar manter a distinção entre as classes sociais ? a representada e aquela a quem se destina o
texto ? deve adaptar-se ao conteúdo, ficando a sintaxe e o vocabulário em desarmonia, “so-
brecarregados e crus, oprimidos contraditoriamente pelo sombrio realismo do conteúdo e pela
intenção estilística distinta e irrealista”. (AUERBACH, 2004, p. 48-9) O que decorre disso é
uma mistura da retórica intentada como arte e a descrição de um realismo deformado por uma
linguagem maneirista, que transfigura a realidade, transitando entre o fantasmagórico e o hor-
ripilante, o grotesco e a parvoíce.
19
A interpretação da realidade pode construir uma realidade per si, isolada dos padrões
sociais pertinentes às camadas populares. É o caso da literatura cortês, plena de formas exteri-
ores que dão conta de um cotidiano afável, elegante e grácil, representativos de hábitos con-
temporâneos de uma sociedade cortesã que privilegia os interesses feudais, como se tais hábi-
tos fossem toda a realidade existente. O amor surge aí como uma prática que tenciona propor-
cionar prazer e leveza à existência. Todavia, a literatura cortês, por ter um estilo que se con-
forma facilmente aos conteúdos da realidade, mas sem abdicar dos ideais cavaleirescos, foi
menos aproveitada como referência à construção da literatura realista. Mesmo quando os ide-
ais corteses aproximaram-se de uma cultura de caráter mais urbano, o texto literário cortês
não se aproximou dessa nova realidade; antes, manteve-se distante da realidade observável,
aprofundando na estética a sua visão de mundo, transpondo para a linguagem a inócua experi-
ência de um ethos cada vez menos reconhecido pela sociedade. Inclui-se, nesse processo, o
celebrado amor cortês, presente na historiografia literária, mas que não serviu de modelo à
literatura realista. A literatura cortês, segundo Julia Kristeva, “foi uma invenção miraculosa
do século XII que pela primeira vez impõe maciçamente ao mundo o fin amor, essa perfeição
19
Cabe, aqui, voltarmos ao advento do cristianismo e à escrita dele decorrente. A tradição da escritura cristã
valeu-se de um estilo elevado para contar a história de um rei de classe social baixa. Marca-se, dessa forma, o
fim da separação dos estilos: “Todos os acontecimentos da História Universal estão contidos fundamentalmente
neste grande drama [a vida de Cristo], e todas as posições de altura ou baixeza de comportamento humano, assim
como todos os níveis da sua manifestação estilística, têm no seu seio a sua justificativa moral e estética de exis-
tência, justificativa bem fundamentada. De tal forma, não há motivo para uma separação entre o sublime e o
baixo-quotidiano, os quais já aparecem na vida de Cristo unidos de maneira indissolúvel.” (AUERBACH. op.
cit, p. 137-138)
71
depurada, tão alegre quanto ideal, de que guardamos ainda a nostalgia pós-romântica”.
(KRISTEVA, 1988, p. 313)
Auerbach conclui que “a cultura cortesã foi decididamente desfavorável para o desen-
volvimento de uma arte literária que abarcasse a realidade em toda sua amplidão e profundi-
dade”.
(AUERBACH, 2004, p. 123)
A realidade como estilo e estética, submissa a uma interpretação criativa do autor e do
leitor, teve sua máxima representação, na visão de Auerbach, na obra Comédia, de Dante.
Nesse texto aparecem todos os recursos de imitação que o engenho de Dante foi capaz de pro-
jetar: conceitos cosmológicos, éticos e políticos; passado e presente; sublimidade e vulgarida-
de; história e lenda; tragédia e comédia; homem e paisagem; e, ainda, a história da salvação
da humanidade. (ibid., p. 164) Tudo isso se constrói no plano de uma concepção estética que
determina a imitação da realidade pela “experiência sensível da vida terrena” (ibid., p. 166),
qualidade inerente ao processo de mimesis da realidade, da qual o escritor não pode prescin-
dir, pois que incorreria no erro fatal de afastar-se em demasia do devir humano associado a
um processo histórico representado pela arte literária.
Alfredo Bosi afirma queo convívio do saber sensível e idealização formal altera, sob
um novo aspecto, a noção de mímesis, deixando aflorar uma outra tendência antropológica do
homo faber: a estilização. (BOSI, 1991, p. 31) Considerando que a mimesis não se dá pelos
mesmos artifícios e nem com os mesmos objetivos, é preciso ter em mente que ela não é um
processo semelhante nas suas diversas manifestações. “Conhecer quem mimetiza, como, onde
e quando, não é uma informação externa, mas inerente ao discurso sobre o realismo na arte”.
(ibid.) Destacamos, porém, que a noção de mimesis que, pela estética, levou a um realismo
sublimado, encontra na literatura realista moderna o seu processo inverso. O que ocorre no
texto realista é a dessublimação das formas, cabendo à estilização e à estética propor um co-
nhecimento de mundo que refreie a exaltação dessas formas.
72
Estilo e estética têm como instrumento de sua realização, primordialmente, a língua u-
tilizada pelos escritores. O latim vulgar era aquele com o qual se apreendia o real cotidiano.
Exatamente por isso os textos confrontavam-se com a impossibilidade de utilização de um
estilo mais elevado e a necessidade cada vez mais iminente de expressar a realidade. Auerba-
ch aponta o clérigo Gregório como precursor de uma estética que irá possibilitar uma imitação
mais aproximada do real cotidiano, pelo seu interesse particular em investigar o que de fato
impressiona o homem do povo. O clérigo permite que as deliberações sobre os fatos concretos
da vida construam-se através do discurso direto, autorizando seus personagens a relatar o
mundo apreensível; além disso, recorre à visualidade das cenas como estética a serviço da
imitação da realidade. O bispo Gregório ocupa-se de narrar os acontecimentos de sua época,
relacionados a traições e violências de toda ordem, e isso faz com que sua retórica aproxime-
se ainda mais do “real-material”, muito embora haja, no autor, uma aspiração a um estilo mais
elevado. Entretanto, é através do latim vulgar que a realidade se apresenta e, dessa forma, se
presentifica no texto de Gregório.
20
Houve, então, um avanço no fazer literário, estética e estilisticamente, através do latim
vulgar que passou a ser utilizado, sobretudo na poesia, como recurso que permitiu a presença
mais legitimada de uma vida real, estreitada nos limites impostos pelas ordens sociais, mas
que foi reinventada com vigor a partir do momento em que a imitação aproxima-se, pela lin-
guagem, mais individualmente do ser humano. A parataxe, recurso estilístico destacado por
Auerbach como dos mais importantes no desenvolvimento de uma retórica mimética, deixa de
ser um enfileiramento de caracteres para assumir a forma de laisse, cuja displicência aparente
na disposição das qualidades reais aproxima-se mais amiúde da vida real. Explicitamos me-
lhor citando Auerbach:
20
“Sicário e Cramnesindo”. In: AUERBACH. op. cit., p. 67-82, passim. Esse capítulo refere-se a um estudo da
obra História dos Francos de Gregório de Tours. A história versa sobre um período de extrema violência defla-
grada na cidade francesa de Tours, em que os personagens Sicário e Cramnesindo protagonizam uma cena de
vingança com assassinatos e saques.
73
Somente a poesia em língua vulgar (...) fez salientar os quadros isolados, de
maneira que as personagens ganharam plenitude humana e vida, vida que es-
tá, evidentemente, limitada pela rigidez e estreiteza das categorias, que per-
manecem inalteráveis e que pode ser também facilmente interrompida pela
falta de movimento progressivo e que, porém, justamente pela oposição que
lhe oferece a moldura das rígidas categorias, ganha em efetividade e poder.
Somente os poetas da língua vulgar viram o homem como ser humano e en-
contraram a forma na qual a parataxe possui força poética. Em lugar de um
frágil e monótono gotejar de justaposições, agora surge a forma da laisse,
que avança e retrocede aos trancos, cria em toda parte arrancadas enérgicas,
e se constitui num novo estilo elevado. Se a vida, tangível nas suas obras é,
também, estreitamente limitada e sem multiplicidade, ainda assim é uma vi-
da plena, humanamente movimentada e vigorosa, uma liberação do estilo pá-
lido e intangível da lenda da tardia Antiguidade. Os poetas da língua vulgar
também souberam valorizar o discurso direto como tom e como gesto. (AU-
ERBACH, 2004, p. 102)
Paralelamente à teoria da mimesis no texto lírico, desenvolve-se uma composição teó-
rica mais técnica, apoiada no estudo da linguagem utilizada na poesia. Um novo percurso ana-
lítico estabelece-se então, evidenciando na poesia a seleção das palavras e a sintaxe organiza-
da literariamente, o que aprimoraria a imitação dos estados de ânimo (paixões). Não se trata
mais de esperar a verdade das ações humanas, mas a verossimilhança dos elementos, cuja
apropriação se dá pela estética, fator endógeno e universalizante da poesia.
Apropriando-se de uma noção estética que viesse a nortear a poesia ? o que só é pos-
sível por uma visão científica da arte ? , o escritor e o leitor devem ter em mente que a “imi-
tação” da vida não se limita mais à experiência particularmente e essencialmente vivida. Todo
o material que a vida, o mundo e a existência humana têm a oferecer passa agora por um tra-
tamento literário que compreende todos os aspectos da cultura de que se nutre o texto poético.
A produção de um texto poético, e sua apreensão pela leitura, agora, devem servir-se de vá-
rios domínios do saber.
Recorremos a Bakhtin, em antecipação aos estudos que empreenderemos mais adian-
te, a fim de consolidar esta tese:
Realmente, o estético, de certo modo, encontra-se na própria obra de arte, o
filósofo não o inventa, mas para compreender cientificamente a sua singula-
ridade, a sua relação com o ético e o cognitivo, seu lugar no todo da cultura
humana, e, enfim, os limites de sua aplicação, necessita-se da filosofia sis-
74
temática com os seus métodos. O conceito de estético não pode ser extraído
da obra de arte pela via intuitiva ou empírica: ele será ingênuo, subjetivo e
instável; para se definir de forma precisa e segura esse conceito, há necessi-
dade de uma definição recíproca com os outros domínios, na unidade da
cultura humana. (BAKHTIN, 1998, p. 16)
Na literatura moderna, é possível que pessoas e histórias comuns a um estrato social
mais popular tenham tratamento literário sério ou mesmo trágico. E isso se deve, segundo
Auerbach, a um reconhecimento das forças históricas que movimentam a realidade, as quais
somente são identificáveis, nos textos antigos, por um estudo atemporal, já que não existia, na
Antigüidade, uma preocupação com o desenvolvimento social e com a historiografia das idéi-
as. A literatura desenvolve-se no sentido de comprometer-se com a sociedade, revelando-a
tanto sob a subjetividade das figuras que são colocadas em evidência no texto, quanto sob
uma subjetividade autoral. E, neste segundo aspecto, a estética inscreve a subjetividade do
autor no texto, sendo o leitor partícipe do processo. Ainda Bakhtin:
A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do co-
nhecimento e do ato, é o seu caráter receptivo e positivamente acolhedor: a
realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo comportamento,
entra na obra (mais precisamente, no objeto estético) e torna-se então um
elemento constitutivo indispensável. Nesse sentido, podemos dizer: de fato, a
vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior, em
toda plenitude do seu peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro
que seja. A arte é rica, ela não é seca nem especializada; o artista é um espe-
cialista só como artesão, isto é, só em relação ao material. (ibid., p. 33)
Aspectos sociais tornam-se flagrantes no texto literário realista, corrompendo a noção
de belo. Além disso, há um processo de engajamento que não pode ser negado, considerando-
se o próprio caráter da arte realista:
Quanto ao realismo do século XX, afim com uma ciência mais com-
plexa e mais perplexa que a positivista, não se contenta em reproduzir os te-
mas e as técnicas do verismo do século XIX. Propõe-se uma tarefa ousada:
construir obras que possam atravessar os reflexos da vida presente para se
constituírem em projeto de uma realidade futura. Uma arte verdadeira e re-
volucionária a um só tempo. Uma arte que produza a imagem densa e dra-
mática de uma Humanidade em mudança, carente, dominada, mas rebelde.
Uma arte na qual a consciência mais lúcida do universal penetre a represen-
tação mais viva de cada particular. (BOSI, 1991, p. 47)
75
Diante dessa nova proposta, o escritor investe-se de uma noção de estética que não se
nivela nas formas consagradas do belo. A arte moderna, realista, reconfigura a estética para
submetê-la às imagens que lhe são apresentadas. A mimesis não atende mais a uma interpreta-
ção objetiva, mas a uma interpretação subjetiva da realidade. Na evolução do conceito, diz
Antoine Compagnon, a teoria literária entra em conflito com a ideologia da mimesis, visto que
a primeira concebe “o realismo não como um ‘reflexo’ da realidade, mas como um discurso
que tem suas regras e convenções, como um código nem mais natural nem mais verdadeiro
que os outros”. (COMPAGNON, 1999, p. 107)
Confrontar o leitor com a realidade ? às vezes considerada mínima dentro do proces-
so artístico por seu caráter figurativo em que se presumem como elementos fundamentais os
conteúdos exemplares como o heroísmo, o amor sublime e a religiosidade torna-se a pro-
posta literária dos escritores do século XIX. Tal proposta intensifica-se no século XX, a partir
do momento em que entra na cena literária o texto revolucionário, e a mimesis adquire função
social. Nessa nova perspectiva, ? pela qual a estética serve ao real e amplia o fazer literá-
rio? , não podemos deixar de lembrar os personagens que circulam na poesia drummondiana:
o pai que vai a cavalo para o campo, enquanto a “mãe ficava sentada cosendo” e o “irmão
pequeno dormia”, imagens retidas pela mente da criança em “Infância”, de Alguma Poesia. A
descrição da realidade, em sintaxe mínima, contrasta com o mundo da leitura em que está
imerso o menino. O retorno ao passado mantém na memória do sujeito poético o mundo sub-
jetivo. Somente em outro tempo, distante do tempo da infância, o sujeito poético percebe o
mundo real que o circundava, ao qual a sua fantasia não lhe permitia acesso. E que agora re-
lembra, em memória subjetivo-afetiva :
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
76
(...)
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé. (PC, p. 6)
E, com mais destaque, surge o homem simples elevado à condição de objeto e sujeito
do texto, como o próprio Carlos, ser configurado pela cotidianidade:
NÃO SE MATE
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
(...)
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.
(...) (ibid., p. 57-8)
A realidade na arte nutre-se de um valor estético que só o artista é capaz de lhe conce-
der a partir dos valores que se lhe impõem quando avista e perscruta o objeto de sua arte.
Considera-se, dessa forma, que a estética é um elemento fundamental na compreensão do po-
ema:
Somente na obra de arte, na medida em que a mesma se defina e se imponha
como tal, inverte-se a relação dos valores. Os valores estéticos, mesmo não
se tornando totalmente autônomos, passam a ser critério decisivo para a ava-
liação do objeto (ou ato, ação, movimento etc.), ao passo que os outros valo-
res
21
se tornam agora acessórios ou se revestem de função serviçal. (RO-
21
Rosenfeld refere-se a outros valores por ele analisados que se relacionam com a arte. São eles: os valores de
utilidade (que servem de meio para realização dos outros valores); os valores hedonísticos (relativos ao prazer);
os valores vitais (saúde, força, viço,vigor e juventude); os valores morais (intenções ou atos de pessoas reais, e
que se opõem diretamente aos valores estéticos); os valores científicos (verdade, objetividade, correção lógica
etc.); os valores religiosos (o valor do sagrado em particular). (ROSENFELD, 2000, p. 241-248)
77
SENFELD, 2000, p. 255)
A realidade concebida pela proposta estética do poeta, em que as imagens da vida co-
tidiana são recriadas por recursos de escrita que redimensionam a existência, ganha novas
cores e formas na poesia de José Craveirinha. Salvato Trigo ressalta, em prefácio à obra A
Poética de José Craveirinha de Ana Mafalda Leite, que o poeta, “mesmo nas fases de mais
agrilhoada reivindicação, soube sempre procurar o equilíbrio entre o estético e o social, numa
manifestação clara de que nele existe conscientemente uma política da poética a suplantar-se a
uma poética da política”. (LEITE, 1991, p. 8)
O real pode ser a guerra e, decorrentes dela, a fome, a dor e a morte, razão pela qual o
mundo que o sujeito poético enxerga precisa ser reconstituído antes que o leitor dele se aposse
e perceba que, por vezes, a escritura inverte a propriedade do real:
GUERRA
Aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto
.............................................
Ah, cidades!
Favos de pedra
macios amortecedores de bombas.(OP, p. 67)
A visão do poeta, a partir do sujeito do poema, de suas experiências e vivências ? a-
inda que nele não se transforme ? indicará novos caminhos a serem trilhados pela literatura
realista, para além dos processos de conhecimento e rebeldia textual. O verso recria a realida-
de por meio dos recursos estéticos que o artista elabora através de seu engenho.
78
3.5 - Literatura social: uma nova perspectiva do realismo
É uma náusea
a manifesta piedade
e cobarde a inteligência
se não interpreta a realidade.
José Craveirinha
A literatura atende, sempre, ao contexto em que se insere, delineando-se pelas marcas
sociais, históricas e estilísticas que predominam em determinada época. Sendo assim, a litera-
tura realista seguiu a trilha da literatura social. Necessário se torna, então, compreender os
caminhos trilhados pelos autores até que chegássemos às propostas literárias de Carlos
Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Para tanto, optamos por traçar um breve pano-
rama da literatura realista a partir dos estudos da obra de Auerbach, o qual aponta uma altera-
ção na estrutura social como de fundamental importância pra a transformação da literatura,
que de reflexo de uma casta elevada passa a investigar mais a realidade, procurando uma mi-
mesis mais perfeita dos fatos sociais. Trata-se do surgimento da classe burguesa que, a partir
do século XIV, muito embora ainda mantivesse costumes ligados ao feudalismo, passou a
desenvolver, por influência de um humanismo nascente, uma visão de mundo mais fundamen-
tada em características pessoais. Essa nova forma, mais realista, de estar no mundo consoli-
dou-se com a conquista do saber, tradicionalmente consagrada apenas ao alto clero. Uma das
mais importantes transformações destacadas por Auerbach é a linguagem:
A linguagem, que recentemente ainda era frágil e desajeitada, tornou-se ma-
leável, rica, matizada e florescente, e colocou-se a serviço das necessidades
da vida social, escolhida e preenchida de elegante sensualidade; a literatura
social obteve o que até então nunca possuíra: um mundo real presente.
(AUERBACH, 2004, p. 190)
Apesar desse movimento progressivo da literatura, não temos ainda, nos primeiros si-
nais de humanismo presentes, uma visão construtiva da realidade. Volta-se, um pouco, ao
79
estilo médio do fazer literário, que não dá conta da problematização dos acontecimentos reais,
a não ser pela via do erotismo, como o fez Boccaccio em seu Decameron, mas no qual se
manteve aquém de um aprofundamento humano pertinente à problemática erótica. (ibid., p.
198-9)
Não obstante todas as dificuldades enfrentadas pelos escritores a partir do fim da Idade
Média, quando já se faziam notar nos saberes que se desenvolviam as propostas humanistas
que iriam desembocar no Renascimento, a classe burguesa ofereceu à literatura os meios para
a construção de uma mimesis da realidade mais solidificada
22
. A intimidade do cotidiano,
ainda que fosse comum também ao principado e ao feudalismo, nunca se havia mostrado tão
intimamente e com tanta diversificação de matizes. Além disso, os conceitos de individuali-
dade, sofrimento e mortalidade
23
, apresentados ao espírito humano pela Paixão de Cristo, tor-
nam-se essenciais para o realismo que servirá de base para a sociedade vindoura.
A visualidade realista promovida pelas encenações da Paixão de Cristo, comuns no
mundo medieval, recai muito mais substancialmente sobre a parte terrena do fenômeno, tor-
nando ilimitados os temas explorados pela arte realista
(ibid., p. 217-226). Dessa forma, con-
cluímos, a sociedade de fins da Idade Média precisou redescobrir uma realidade que se coa-
dunasse mais com a prática existencial, abandonando, se não totalmente, mas significativa-
22
Antoine Compagnon questiona o valor de se discutir a mimesis como vetor da literatura realista. Trata-se,
segundo o autor, de um processo pelo qual a “pretensa imitação da realidade” favorece o objeto imitado frente ao
objeto imitante. Considera ele que existia uma inocência relativa à mimesis, como no marxismo de Georg Lu-
kács, que não é mais possível no século XX. Hoje, é preciso considerar que “recusar o interesse pelas relações
entre literatura e realidade, ou tratá-las como uma convenção, é, pois, de alguma maneira, adotar uma posição
ideológica, antiburguesa e anticapitalista. Mais uma vez a ideologia burguesa é identificada a uma ilusão lingüís-
tica: pensar que a linguagem pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmente, como um espelho
ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance”. COMPAGNON. O Demônio da
Teoria literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 106-107.
Neste ponto, consideramos ser oportuno esclarecer que o veículo motor de nosso trabalho não é o de uma
compreensão de teorias ou críticas literárias que engendrem uma discussão acerca da validade deste ou aquele
modelo, conceito ou quaisquer parâmetros que estabeleçam pressupostos teóricos fundamentais da literatura. O
que buscamos, com nossa pesquisa, é, antes de tudo, compreender o sujeito que se intenta nos fazeres literários,
considerando a origem, o suposto apagamento, o ressurgimento e a permanência de sua constituição. Não enqua-
dramos nosso trabalho na discussão de propostas idealistas sobre o fazer literário, embora não seja nosso propó-
sito ignorar completamente a discussão projetada. Por ora, apenas optamos por não pôr em relevo o que se deve
validar ou não como pressuposto teórico.
23
Tais conceitos são denominados, por Auerbach, como realismo “criatural” (neologismo que em alemão cha-
ma -se kreatürliches), o que expressa o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal. (AUER-
BACH. op. cit., p. 215)
80
mente, a primazia da teoria cristã de humanidade, cuja representação dramática efetiva-se no
quadro místico da salvação eterna. Esse redimensionamento do ser e do existir será pragmati-
camente absorvido pela cultura e determinará as nuances da literatura social.
Prosseguindo na trilha da construção dos textos realistas, evidenciamos o conceito de
realismo criatural, o qual se ilustra mais vivamente com Shakespeare. Seus personagens a-
presentam-se corporeamente, sentem fome e frio, ficam bêbados ou loucos e se repugnam
com sensações desagradáveis, e a vida apresenta-se concretamente. Todavia, dentro da mesma
proposta de imitação da realidade, Shakespeare destina o trágico e o sublime apenas a perso-
nagens de um estrato social mais elevado, pois é assim que entende a vida, com suas normas
que diferenciam os homens, ainda que seus elementos, em conjunto, representem um todo de
tragédia (ibid., p. 279-280). Por essa evidência, compreendemos que a tragédia shakesperiana
infunde-se de uma noção de realidade que foge à tradição cristã de igualdade humana pela
marca trágica da mortalidade e pela possível ascensão ao plano divino, e aproxima-se das dis-
posições que regem a sociedade, com suas divisões de classe e sua inclinação para a medio-
cridade e o amesquinhamento dos gestos mais nobres, que resvalam, invariavelmente, para a
obtusidade ou para a alienação (ainda que desses gestos se faça a tragédia).
O que se destaca na compreensão da formação de uma literatura social é a perspectiva
histórica que o humanismo ofereceu à arte nos últimos anos da Idade Média, promovendo
uma comparação dessa época com a Antigüidade, compreendida então como paradigma. A-
cresce-se a isso o fato de que, a partir do século XVI, descortinou-se um mundo novo para o
homem, com uma amplitude cultural e geográfica jamais vista, além de importantes transfor-
mações sociais demarcarem mais profundamente as relações sociais, como a dissidência reli-
giosa que permitiu aos homens serem os protagonistas de sua própria condição humana, arbi-
trando, mesmo que equivocadamente em diversas ocasiões, sobre os rumos que deveria traçar
para o seu destino.
81
A literatura, então, segue por uma vereda que leva o leitor à investigação mais pro-
blematizada da existência real, cotidiana, indissolúvel nas elevações espirituais inerentes tanto
ao classicismo quanto ao cristianismo ? pois aqui se fundem as duas ideologias, no sentido
de atribuir ao ser humano de uma sublimidade desejável ? fossem por que vias isso pudesse
ser alcançado, ou, pelo menos, sonhado. O texto literário investe-se, a partir do Renascimento,
da autoridade de diligenciar minuciosamente o ser humano, sua essência e seu antropomor-
fismo negado ao longo de sua história. Partindo da compreensão de si mesmo, o homem passa
a interessar-se mais amiúde pelas condições históricas, geográficas e temporais que determi-
nam a sua existência.
Já no século XIX, a literatura foi marcada inexoravelmente por uma realidade de cores
locais, fragmentada e limitada, sem que fossem desenvolvidas idéias mais amplas sobre a so-
ciedade e a condição humana, pois que todos os temas permaneciam em busca de um equilí-
brio entre as formas de vida existentes e as aspirações espirituais de pequenos grupos repre-
sentativos da sociedade, o que só poderia realizar-se no âmbito de uma individuação da noção
de realidade.
Esse é um processo compreendido por Benedito Nunes como uma reação ao fato de
estar o homem diante de um contexto social que o oprime:
A estrutura social emergente dessas mudanças [sociais] não oferecerá
ao processo de individualização condutos abertos para a vida coletiva. Tor-
nada menos móvel e mais estranha, como um mecanismo alheio à consciên-
cia, atrofiando a individualização à falta de reajustamentos internos, a vida
coletiva contribuirá para a “alienação, a introjeção, a subjetividade e a intro-
versão das energias sublimadoras”. (GUINSBURG, 1993, p. 55)
Uma visão mais ampla da realidade se fará presente na obra de Stendhal
24
O Vermelho
24
Auerbach apresenta ao leitor uma pequena biografia de Stendhal, a qual é relevante reproduzir. O escritor foi
um homem da administração napoleônica e desfrutou, até os trinta e dois anos de idade, de toda a influência que
o cargo lhe permitia e do mundo elegante francês. Após a queda de Napoleão, perde muito do status social ad-
quirido. Auerbach deixa claro a necessidade de envolver o autor de uma obra no processo de escritura realista ao
qual se destina. No caso de Stendhal, a pobreza e o ostracismo fizeram com que ele adquirisse consciência do
mundo que o cercava: “a literatura realista de Stendhal brotou do seu mal-estar no mundo pós-napoleônico, as-
82
e o Negro (1830), pois toda a mediocridade e enfado dos personagens não advêm exclusiva-
mente da estúpida condição humana, mas são causados, sobretudo, por fatores externos da
época da Restauração. Abre-se, assim, uma nova perspectiva de literatura social e do processo
de imitação da realidade, no sentido de que os personagens são delineados muito mais pelas
pressões externas sofridas do que por uma marca individual de sua personalidade, ou ainda,
como ocorria na Idade Média, por uma mística que o levasse à salvação ou à purgação eterna.
Stendhal se dispôs a conhecer plenamente o homem de sua época e os acontecimentos históri-
cos e sociais que intentaram no povo uma consciência moral e política que traçaria o perfil do
homem moderno. Conclui Auerbach:
Todas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos apresentam-
se, na sua obra, sobre uma base política e socialmente movimentada. (...) Na
medida em que o realismo moderno sério não pode representar o homem a
não ser engastado numa realidade político-sócio-econômica de conjunto
concreta e em constante evolução ? como ocorre agora com qualquer ro-
mance ou filme ? , Stendhal é o seu fundador. (AUERBACH, 2004, p.
413)
A literatura de Stendhal refletiu-se não apenas em matizes espirituais, mas num todo
corpóreo coletivo que viria a justificar a literatura social. O mesmo se pode dizer do autor
aliado à corrente romântica
25
Balzac, apontado por Auerbach como “sendo, ao lado de Sten-
dhal, o “criador do realismo moderno”. (ibid., p. 419) Balzac foi mais além, entretanto:
Ele não somente localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua
moldura histórica e social perfeitamente determinada, como fazia Stendhal,
mas também considerou essa relação como necessária: todo espaço vital tor-
na-se para ele uma atmosfera moral e física, cuja paisagem, habitação, mó-
veis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia, atividade e desti-
no permeiam o ser humano, ao mesmo tempo que a situação histórica geral
aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais in-
dividuais. (ibid., p. 423)
sim como da consciência de não pertencer ao mesmo e de não ter nele um lugar certo”. (AUERBACH. op. cit.,
p. 411.)
25
Auerbach atribui à corrente romântica, com sua característica de misturar estilos, a responsabilidade pelo de-
senvolvimento do realismo moderno, já que possibilitou que personagens de diversas classes sociais tivessem
“representação literária séria”. (Cf. AUERBACH. op. cit., p. 424) Entretanto, o fato de pertencer à geração ro-
mântica fez com que Balzac desse um tratamento grandiloqüente a qualquer fato mais corriqueiro, e transfor-
masse qualquer personagem em herói, santificando ou demonizando as suas criaturas. (ibid., p. 431)
83
Balzac propôs-se a reconhecer no humano de seus personagens as influências oriundas
tanto da sociedade quanto da natureza. Por esse motivo, investiga “a figura individual, concre-
ta, internamente corpórea e histórica, social, física etc., e em constante mutação” (ibid., p.
425). Todavia ainda persiste em Balzac e em seus contemporâneos, como acusa Auerbach,
uma impossibilidade de apreender a ideologia imanente ao povo; primeiro, porque as classes
mais baixas são vistas de cima, portanto, sujeitas a uma compreensão da realidade que não
está permeada pela existência social dos mais humildes; segundo, porque o próprio povo ain-
da não tem uma consciência real de sua existência e de seus ideais, pois suas aspirações são
um espelhamento da classe burguesa. (ibid., p. 446-7)
Essa dificuldade será vencida por Èmile Zola, um escritor oriundo de uma classe me-
nos privilegiada do que os autores que o antecederam, e que pôde compreender e representar
melhor a plasticidade de uma gente pobre e parca, a despeito das críticas ferozes sofridas en-
tão por parte daqueles que repudiavam a estética do feio. É importante destacar que esses crí-
ticos aplaudiram antes o feio, mas por estar ele vinculado ao estilo cômico. Agora, com Zola,
o feio é um estilo literário que pretende mimetizar a realidade das classes mais populares e,
portanto, recebe um tratamento literário sério. (ibid., p. 458) A literatura, nesse cenário, surge
como arte que “não interfira de forma alguma, nos acontecimentos práticos do tempo; que
evite qualquer inclinação a influir moral, política ou praticamente, como quer que seja, sobre
a vida dos homens, e cuja única tarefa seja o desenvolvimento do estilo”. (ibid., p. 452). Tal
idéia foi defendida direta e claramente por Zola, em “O Romance Experimental” (1880):
Escreverá melhor, não aquele que galopar estouvadamente através das hipó-
teses, mas aquele que caminhar direto no meio das verdades. Estamos atual-
mente podres de lirismo, acreditamos muito erradamente que o grande estilo
é feito de um deslumbramento sublime, sempre prestes a dar cambalhotas na
demência. O grande estilo é feito de lógica e de clareza. (ZOLA, 1982, p.
70).
Concluímos, após essa revisão teórica, que a percepção da realidade social deriva de
uma classe mais abastada para uma classe mais baixa. Enquanto professava a vida de deuses,
84
reis e heróis, a literatura partia do princípio de que a tragédia seria a verdadeira arte, pela qual
se tornaria possível fazer a mimesis não da realidade concreta, mas da realidade planificada
como ascensão do ser humano. O que não pertencesse à ascese da plenitude humana somente
poderia ser concebido sob o viés da comicidade.
Com o surgimento da literatura realista, e com seu desenvolvimento, o escritor preci-
sou passar por diversas fases de apreensão da realidade concreta. Sua primeira investida foi no
sentido de retirar todo desluzimento possível dos matizes reconhecíveis nas classes baixas.
Entretanto, o escritor não havia conseguido ainda ir além de um gosto pela percepção sensori-
al dessas classes, não construindo uma ideologia a ela inerente. A literatura social, todavia, já
se manifestava inegavelmente nas páginas dos escritores franceses dos séculos XVIII e XIX,
pois o operário pobre, a doméstica, o desempregado assumiram o texto, fazendo valer ao lei-
tor os seus pressupostos sociais. Na poesia, não se percebe tão claramente essa disposição
dicotômica, o que não impede a tensão que fundamenta a literatura realista. O verso exige
muito mais do leitor; exige o investimento na análise das formas literárias, a fim de que não se
percam as propostas ideológicas intentadas pelo poeta.
Inaugurados os estilos e ideologias, e propostas a teoria e a crítica literária, cabe ao lei-
tor-pesquisador a árdua tarefa de unir o conceito ao signo, a análise vigilante da criação à per-
cepção do verso. A literatura realista lança as bases da poesia nos primeiros decênios do sécu-
lo XX, recrudescidos ainda pelos sistemas ditatoriais de composição similar que se espelham
por vários países. É notório, então, que o texto poético ressalte aqueles que mais sofrem a
opressão do regime político em voga. Cada poeta, com seus ritmos e suas propostas de cria-
ção, levará ao leitor a figura, a voz e o silêncio, a dor não expressa na própria fala das classes
populares.
No poema em prosa “O operário no mar”, de Sentimento do Mundo (1940), Carlos
Drummond de Andrade foge à inclinação ao populismo, à exaltação das massas que se torna,
85
por vezes, o repouso de consciência de muito artista pretensamente aliado ao discurso engaja-
do de esquerda. O poeta investiga o operário, perscruta-o:
Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no
drama, no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de
pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes.
Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma
significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. (...) (PC,
p. 71)
A voz poética interroga-se, questiona a existência do outro e admite sua incapacidade
de alcançá-lo: Para onde ele vai, pisando assim tão firme? Não sei. (ibid.). Não há irmandade
possível; não há mão estendida; não é o poeta o porta-voz do operário. Pertencem a mundos
diversos:
A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o
grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário
não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que
contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara
dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e a-
penas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai
o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é,
nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. (...) (ibid., p. 71-2)
O operário sorri e não há, para o poeta, significado algum nisso, porque, embora sinta
a proximidade desse sorriso, não consegue decifrar o seu sentido, simplesmente porque não
consegue compreender o outro. O poeta vê o operário afastar-se na noite, e o máximo de
idealismo alcançado é a esperança de um dia vir a compreendê-lo:
(...) Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão
do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será
noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmos-
féricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de
ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes mas-
sas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as
medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança
de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei? (ibid., p. 72)
Com Craveirinha, podemos voltar mais efetivamente ao real de Stendhal e Balzac. O
poeta moçambicano tem plena consciência de que os fatos contemporâneos que ocorrem em
seu país, marcados pela violência e pela intolerância, ? e que atuam sobre o sujeito que se
86
configura em coletividade ? estão ainda construindo a História que será contada mais tarde.
Fica claro, então, para o poeta, que o objeto deve ser privilegiado sobre o sujeito, e que ele
mesmo, sujeito, deve investir-se da condição de objeto.
O Neo-realismo, adotado pelo autor no início de sua produção poética, é a conforma-
ção ideal para uma poesia que se exige construída pela narratividade, destacando personagens,
elucidando fatos, iluminando porões, celas e escuros campos de batalha. O livro Karingana
ua Karingana tem em sua primeira parte, denominada “Fabulário” (1945-1950), exatamente
essa proposta elucidativa, clarificadora das circunstâncias históricas, como analisa Pires La-
ranjeira:
Cada poema é como que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena,
um ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição popu-
lar, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens humanas den-
tro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma denúncia em moldes alu-
sivos, expositivos, em linguagem descarnada, contida, não propriamente
contundente. Por outro lado, a composição do tema, a imagética, porque vol-
tados para uma finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-
se sem grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo in-
cipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos. (LARAN-
JEIRA, 1995, p. 279)
Tal projeto literário aproxima a poesia de Craveirinha de uma narrativa, um contar his-
tórias (como propõe o título Karingana ua karinga, que em língua ronga significa “Era uma
vez...”) em que se destacam as cenas da realidade moçambicana. Essa escritura é compreendi-
da por Ana Mafalda Leite:
Lendo-se a generalidade dos poemas, fica-se com a noção de que se trata de
uma lírica muitíssimo narrativizada (desenham-se linhas diegéticas espácio-
temporais, desenvolve-se um assunto, surgem “personagens” com nome
próprio, etc.) (LEITE, 1998, p. 115)
Ainda que, como temos visto, sejam redefinidos pela estética e pela subjetividade, os
poemas realistas de Craveirinha não prescindem do ato de contar uma estória (processo oral)
para se comunicar com seu leitor. E “este jeito de contar as nossas coisas”, que o poeta assu-
me, permite a apreensão do tempo e do espaço, estes, muitas vezes, delimitados entre a cidade
87
e o subúrbio, segundo Ana Mafalda Leite, “tópico fundamental, e isto porque o poeta, oriundo
da zona marginal da cidade, se coloca como observador crítico dos contrastes que entre os
dois mundos transitam”. (LEITE, 1991, p. 115) As coisas da terra e as circunstâncias em que
se deu a colonização compõem o mesmo poema, a mesma “História do Magaíza Madevo”. As
ações e emoções das figuras poéticas ganham destaque e sobrepõem-se à subjetividade do
sujeito poético. O emigrante mineiro, o “doido” Madevo vai no comboio; a dor de sua mãe se
expressa esteticamente, pois esconde o coração na blusa, mas percute na recepção do leitor
como dor de mau pressentimento:
Madevo
foi no comboio do meio-dia
casa de caniço ficou lá na terra
mamana escondeu coração na xicatauana
água de chuva secou no céu.
(... )(OP, p. 107)
E a história de Madevo multiplica-se e transforma-se na história de um povo escravi-
zado:
Madevo foi embora.
Filho foi no rio buscar água
senhor chefe ficou no posto beber «bebida»
(e homens petrificam
baptizados de mãos-de-obra
e multiplicam-se em milhões de randes
com pernas e braços de xibalo).
(...) (ibid.)
A literatura social que evidenciamos nesta análise não deságua no comum do verso
panfletário, de protesto. A excelência dos poetas investigados possibilitou descortinar uma
nova perspectiva literária. O verso ainda põe em cena o homem simples; o ritmo ainda traz a
indignação e a dor; as metáforas ainda propõem a transformação. No entanto, cada signo utili-
zado inscreve-se na dimensão de uma outra realidade: a que insere o sujeito na investigação
do objeto e promove novas leituras da realidade.
88
4. AINDA SOBRE MARXISMO: O SIGNO NA POESIA DE INTERVENÇÃO
4.1 - Em defesa da poesia de intervenção
Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem
tornar-se algo singular em mim, na unidade da
minha responsabilidade.
Mikhail Bakhtin
Em seus estudos sobre marxismo e filosofia da linguagem, Mikhail Bakhtin compre-
ende o signo como a materialização de uma ideologia. Assim, um objeto físico convertido em
signo reflete uma outra realidade além daquela, material, na qual se insere. Estendendo o seu
raciocínio, concebe que fenômenos naturais, instrumentos de produção ou produtos de con-
sumo podem adquirir uma forma simbólica na fusão entre signo e objeto, sem que deixem de
manter, individualmente, cada um o seu estatuto. O signo, por conseguinte, não apenas retrata
uma realidade; pelo caráter ideológico que assume, pode alterar, deformar ou intensificar uma
realidade quando a projeta. Mesclam-se signo e ideologia, pois, de acordo com Bakhtin, “tudo
que é ideológico possui um valor semiótico.” (BAKHTIN, 2004, p. 32)
A consciência sobre a realidade, sobre as coisas circundantes faz gerar o signo, mas
não o antecede, visto que compreender uma realidade que se materializa em signos só é pos-
sível porque, antes, houve uma oposição de um signo a outro signo, ao qual se responde com
outro signo. Considerada essa hipótese metodológica, os estudos de Bakhtin avançam para a
compreensão de que “a consciência individual é um fato sócio-ideológico”. (ibid., p. 35) Por-
tanto, a construção de uma consciência da realidade através dos signos não se dá como fenô-
89
meno natural, mas como produto de uma organização social instruída por uma ideologia:
A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo
organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua
lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideoló-
gica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência
de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a pala-
vra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse mate-
rial, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência,
desprovido do sentido que os signos lhe conferem. (ibid., p. 35-6)
Nesse complexo de signos e símbolos, e compreensões sociais e ideológicas dos quais
fazem parte, destaca-se a palavra, visto ser ela um signo neutro que se aplica a qualquer fun-
ção ideológica. E é na palavra que se constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da
linguagem, porque ela, ao mesmo tempo em que se estabelece como signo social, determina o
discurso interior que forma a consciência individual. Embora a palavra não substitua outros
fenômenos ideológicos, como os rituais, a obra de arte, a música, é certo que todos os atos e
fenômenos ideológicos constituem-se de palavras.
(ibid., p. 36-38). E é por esta via de pensa-
mento que Bakhtin considera a filosofia da linguagem como o caminho mais seguro para a
compreensão da ideologia marxista:
A única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta
de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas
‘imanentes’ consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como fi-
losofia do signo ideológico. E essa base de partida deve ser traçada e elabo-
rada pelo próprio marxismo. (ibid., p. 38)
Reside na palavra, e na interação verbal dela resultante, a indicação das ideologias
sociais, porque imanente a ela está a percepção cumulativa e gradual ? lenta ou acelerada,
classificada qualitativa ou quantitativamente ? das transformações que se processam no indi-
víduo e na realidade em que se fixa ou se movimenta. Assim se forma a psicologia do corpo
social, pois, segundo as teorias marxistas, ela não se dá no interior do indivíduo, mas num
processo de exteriorização. Na psicologia do corpo social, nada há de “inexprimível, de inte-
riorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no
90
material verbal.” (ibid., p. 42)
Mikhail Bakhtin orienta o estudo da psicologia do corpo social por duas diretrizes bá-
sicas: do ponto de vista do conteúdo, relativo aos temas, e do ponto de vista dos tipos e for-
mas de discurso, ou seja, como são estruturados esses temas. (ibid.) Indo ao encontro da pro-
posta do autor, não serão destacados, a priori, para a constituição de uma psicologia do corpo
social que desvende os signos poéticos que comporão o corpus de nossa pesquisa, documen-
tos que fundem uma época social, mas os signos e a enunciação que se estabelecem nas estru-
turas sociopolíticas.
Os temas concernem aos objetos sociais que adquiriram valor em determina estância
interindividual e se projetam nos signos, retornando, com vigor, à consciência individual. A
manifestação verbal que se engendra assume uma forma específica. Então, conteúdo e forma
são indissociáveis no processo analítico.
Ampliando a proposta de compreensão da psicologia do corpo social através dos sig-
nos, Bakhtin estabelece regras metodológicas que nortearão a análise do corpus selecionado
para este trabalho. Elas dizem respeito à não dissociação do signo da ideologia em que ele se
insere e das formas concretas da comunicação social, e, ainda, à não dissociação entre a co-
municação e as formas de sua base material (infra-estrutura). (ibid., p. 44) O resultado dessa
discussão, para Bakhtin, é o entendimento da “refração do ser no signo ideológico” (ibid., p.
46), o que se dá pela luta de classes. É somente por essa construção ideológica que o signo
ganha valor e prevalece, porque seu estabelecimento ocorre dialeticamente, já que se manifes-
ta sob a influência do poder dominante que o mantém, e do poder revolucionário que o faz
emergir na vida social. Pelas tensões sociais, um signo ideológico passa das infra-estruturas às
superestruturas, o que permite mantê-lo vivo. (ibid., p. 45-47) Nesse sentido, a poesia de
intervenção adquire especial relevância, na medida em que espelha, mais que qualquer outra
forma de expressão poética, as representações sociais. Os signos tecem no verso a relação
91
entre a consciência individual do poeta e a sua compreensão do mundo que o cerca, e dá-nos a
dimensão das ideologias que o compõem. Entretanto, cabe a ressalva de um entendimento das
políticas sociais que engendraram a poesia ideológica que investigamos. Para tanto, destaca-
mos a compreensão desse processo feita por Boaventura de Sousa Santos. Segundo o autor,
houve um agravamento da tensão ente subjetividade e cidadania, quando foi preciso admitir
que o Estado capitalista, ao contrário do que previu Marx, não fomentou um confronto entre
seus postulados e a classe operária; ao contrário, embora o operariado não tenha se tornado o
sujeito do pós-capitalismo, “foi sem dúvida o agente das transformações progressistas (eman-
cipatórias, neste sentido) no interior do capitalismo”. (SANTOS, 1999, p. 244) Em decorrên-
cia, as lutas de classe, que reivindicavam uma cidadania social, foram direcionadas, objeti-
vando o abrandamento das contendas, para uma integração entre o Estado e as classes traba-
lhadoras, o que acabou por legitimar o Estado capitalista. Assim, conclui Santos:
Em face disto, não surpreende que neste período se tenha agravado a
tensão entre subjectividade e cidadania. Por um lado, o alargamento da cida-
dania abriu novos horizontes ao desenvolvimento da subjectividade. A segu-
rança da existência quotidiana propiciada pelos direitos sociais tornou possí-
veis vivências de autonomia e de liberdade, de promoção educacional e de
programação das trajectórias familiares que até então tinham estado vedadas
às classes trabalhadoras. Mas, por outro lado, os direitos sociais e as institui-
ções a que eles deram azo foram partes integrantes de um desenvolvimento
societal que aumentou o peso burocrático e a vigilância controladora sobre
os indivíduos; sujeitou estes mais do que nunca às rotinas da produção e do
consumo; criou um espaço urbano desagregador e atomizante, destruidor das
solidariedades das redes sociais de interconhecimento e de entreajuda; pro-
moveu uma cultura mediática e uma indústria de tempos livres que transfor-
mou o lazer num gozo programado, passivo e heterónomo, muito semelhante
ao trabalho. Enfim, um modelo de desenvolvimento que transformou a sub-
jectividade num processo de individuação e numeração burocráticas e subor-
dinou a Lebenswelt às exigências de uma razão tecnológica que converteu o
sujeito em objecto de si próprio. (ibid., p. 245)
Contrapondo-se, porém, às estruturas sociais derivadas do esvaziamento dos ideais
marxistas, os poetas serão vozes quase solitárias na busca de compreensão do homem que tem
sua genealogia fundada no operariado do século XIX. O comportamento que se padroniza na
estabilidade das práticas e no esgotamento das idéias se concretiza nas figuras humanas, quase
92
apagadas, enfarruscadas e melancólicas que serão matéria poética.
Situados em pólos da sociedade distantes entre si, Drummond e Craveirinha não con-
vergem seus poemas no tempo histórico. Em 1930, data do primeiro livro de poesia do escri-
tor brasileiro, o menino moçambicano mal se dava conta dos horrores da colonização, certa-
mente sem compreender direito os estigmas que viria a enfrentar. Em 1965, Drummond pu-
blica, em Portugal, sua Antologia Poética, e Craveirinha era preso por determinação da dita-
dura colonial portuguesa. Em 1975, Drummond publica Amor, amores e Craveirinha desponta
como o cidadão livre prefaciado tantas vezes em sua poesia. Todavia, se não há coincidências
de datas, o mesmo não ocorre com as idéias e os ideais. Cada um, a seu tempo, fez da carne
envilecida do homem pobre sua mais bela imagem poética; cada um a seu modo, com os sig-
nos que convinham ao contexto social em curso, construiu o ideário da liberdade, da cidada-
nia efetiva e da sobrelevação do ser humano sem as tradicionais cantilenas humanistas, por-
que o verso canta, antes, o direito à dignidade social.
Essa visão de mundo ideológica, que se reflete no verso poético, tem forma em estru-
turas profundas de significação. Segundo Michael Löwy, “as ideologias e as utopias contêm,
não apenas as orientações cognitivas, mas também um conjunto articulado de valores cultu-
rais, éticos e estéticos que não substituem categorias do falso e do verdadeiro”
26
(LÖWY,
2003, p. 12). A poesia de caráter ideológico contém, intrinsecamente, a utopia, mas isso não a
torna ilegítima na concepção do leitor, visto que “a mesma visão de mundo pode ter um cará-
ter utópico num dado momento histórico para tornar-se, em seguida, numa etapa ulterior, uma
ideologia”. (ibid., p. 13) E, não esgotando a questão, como não se esgota a utopia, pensamos
26
Michael Löwy contesta, com essa afirmação, a tese de Karl Mannheim, explicitada em Ideologia e utopia, de
1929, pela qual “ideologia” seria um termo condicionado ao conceito de “ideologia total” que legitima a com-
preensão de muitos teóricos marxistas, entre eles Lenin, e que pode ser definida como “a estrutura categorizada,
a perspectiva global, o estilo do pensamento ligado a uma posição social”. Prosseguindo com a reflexão, Löwy
lembra que, na mesma obra, Mannheim apresenta outra definição de “ideologia”, considerando o conceito como
“sistemas de representação que se orientam na direção da estabilização e da reprodução da ordem vigente ? em
oposição ao conceito de utopia, que define as representações, aspirações e imagens-de-desejo que se orientam na
ruptura da ordem estabelecida e que exercem uma função subversiva. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl
Marx contra o barão de Münchausen. São Paulo: Cortez, 2003, p. 10-11
93
com Barthes:
Para que serve a utopia? Para fazer sentido. Em face do presente, de
meu presente, a utopia é um termo segundo que permite o desencadeamento
do signo: o discurso sobre o real se torna possível, saio da afasia na qual me
lança o desassossego de tudo o que vai mal em mim, neste mundo que é o
meu.
A utopia é familiar ao escritor, porque o escritor é um doador de sen-
tido: sua tarefa (ou seu gozo) consiste em dar sentidos, nomes, e ele só o po-
de fazer se houver paradigma, desencadeamento do sim/não, alternância de
dois valores: para ele, o mundo é uma medalha, uma moeda, uma dupla su-
perfície de leitura, cujo avesso é ocupado por sua própria realidade e cujo di-
reito, pela utopia. (BARTHES, 1975, p. 84)
Dessa forma, é no estatuto da palavra fundada na compreensão de marxismo que bus-
caremos analisar os signos que serão destacados na poesia de Carlos Drummond de Andrade e
de José Craveirinha. Sendo a teoria marxista amplamente discutida, ela se nos oferece como
amparo à análise dos versos selecionados. Entretanto, não convém discutir largamente as mui-
tas interpretações a respeito do tema. Até porque, como atesta Barthes, o estudo sobre mar-
xismo “está longe de ser esgotado pela História”. (BARTHES, 2005, p. 11) Mas entendemos,
outrossim, ainda associando-nos à compreensão do autor, “que as propostas marxistas ao me-
nos constituem pontos ativos de discussão para o mundo moderno”. (ibid.)
O fenômeno ideológico que se configura no fazer poético dos autores que formam
nosso corpus constrói-se a partir da palavra que se quer, preliminarmente, a constituição de
um ser social. O fazer poético serve a uma ideologia que tem sua gênese no marxismo e, por-
tanto, os signos literários atendem à proposta de construção da realidade que identifica a escri-
ta literária como uma “linguagem de valor”, porque sempre esteve associada a uma ação.
27
Temos, assim, um sujeito poético que atende aos imperativos da objetividade, e que se expan-
de para além de uma subjetividade latente. Por essa via, propomos uma leitura já manifesta
em diversos estudos anteriormente elaborados, mas sem a qual não nos será possível trilhar o
caminho que objetivamos em nossa pesquisa. Intentamos, por conseguinte, refletir sobre uma
27
Cf. BARTHES, Roland. O Grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 26-7.
94
proposição literária que atendeu aos princípios impostos pela consciência social, mas que,
antes, revela-se como conseqüência de um signo ideológico que insta pela realidade tenciona-
da pelos autores em concepção subjetiva, identificada, o mais das vezes, na utopia.
4.2 - A individualidade psíquica refletida na ideologia social
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Carlos Drummond de Andrade
A tese de que as estâncias do indivíduo e do social dão-se em esferas separadas revela-
se falsa, segundo Mikhail Bakhtin, quando se compreende que “a realidade do psiquismo
interior é a do signo”. (BAKHTIN, 2004, p. 49) Tal proposta se concretiza na concepção de
que a atividade mental torna-se tangível na expressão do signo, portanto, a construção psíqui-
ca do indivíduo relaciona-se com o mundo exterior através de um material semiótico que lhe
confere valor. Apesar de todos os recursos semióticos de que se possa dispor, é na palavra que
se concentra a força de representação do discurso interior. De acordo com a teoria de Bakhtin,
não é possível estabelecer um limite entre a ideologia e um psiquismo subjetivo individual.
Todo conteúdo ideológico pode ser compreendido pelo signo interior; da mesma forma, o
95
signo ideológico é tangível somente porque se realiza, antes, na consciência individual, sub-
metido aos critérios de compreensão, às emoções e à capacidade de assimilação subjetiva.
(ibid., p. 57).
A tese bakhtiniana evidencia-se na análise do corpus deste trabalho. Os autores estu-
dados têm em comum um projeto literário fundamentado na ideologia social. Todavia, dife-
renciam-se pela forma de seus poemas, estruturados com signos que atendem a uma “consci-
ência individual”, a uma visão de mundo particular e a experiências deflagradas em confor-
midade com o processo histórico e social no qual estão inseridos.
Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha comunicaram a guerra a seus leito-
res. Diferentes guerras, formas diversas de representar o conflito armado e a dor dele resultan-
te. Drummond, no poema “Visão 1944”, concebe a guerra mundial pelos olhos de quem dela
apenas soube. Assim, sua “visão” é emblemática de uma proposta humanista. Seus “olhos
pequenos” recusam-se a enxergar a dimensão terrífica da guerra. O que o poema significa é o
conhecimento dos fatos, poema noticioso, e o sujeito poético reage humanisticamente ante o
que vê e denuncia:
Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
96
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro e o muro é branco.
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados. (PC, p. 205-208)
O poeta moçambicano José Craveirinha participou da guerra colonial. Sua experiência
foi além da percepção social ou histórica. Craveirinha, portanto, constrói sua consciência da
guerra a partir do ato revolucionário e da prisão; e, ainda mais, a partir da comunhão da dor:
A MINHA DOR
Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distancia.
E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia. (OP, p. 69)
As diferenças percebidas e aqui estabelecidas inserem-se na proposta de compreensão
de um individualismo psíquico, o qual controla as informações recebidas pelos autores. É des-
sa forma que destacamos, nos poetas, propriedades específicas de seu fazer literário. Na cons-
ciência de Drummond, a negação de uma guerra, por não a compreender ideologicamente; na
de Craveirinha, a exaltação individual dos que se sacrificaram por uma guerra necessária para
a independência e para a paz.
O fenômeno de atuação da consciência individual sobre o signo é esclarecido por Ba-
khtin:
O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto
autor dos seus pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus
pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente
sócio-ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individu-
al” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria e-
97
tapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos
que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por
fatores sociológicos. Todo signo é social por natureza, tanto o exterior quan-
to o interior. (BAKHTIN, 2004, p. 58)
A partir da compreensão de que o psiquismo individual é também social, tanto quanto
a ideologia, uma outra idéia relevante é apresenta pelo autor. Considera Bakhtin que toda ide-
ologia é marcada pela individualidade de seu produtor. Estabelece-se, nesse caso, uma relação
dialética fundamental: a ideologia é composta por signos individuais e o signo individual, por
sua vez, só subsiste como signo social. E convém notar, nessa integração homem/ideal, que os
signos que, a princípio, parecem sugerir uma relação intrínseca com o indivíduo sem confor-
midade com a sociedade ou o contexto histórico no qual está inserido, na verdade refletem
uma posição ideológica, porque inferem um reflexo do ser social no ser psíquico:
UM HOMEM NUNCA CHORA
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem! (C1, p. 20)
Caminhamos, assim, para uma tese que pode ser defendida na análise dos poemas de
intervenção: a voz poética que representa a sociedade não o faz como o ator de um espetáculo
que se encena, mas como parte de um conjunto de expressões sociais que se organizam em
sua subjetividade. Isso equivale a dizer que, embora não se isente o autor de sua capacidade
analítica dos fatos sociais, a sua interpretação não se estrutura pela aquisição e apreensão dos
objetos e circunstâncias da sociedade, assimilando-os e retransmitindo-os. A voz poética re-
98
presenta uma voz subjetiva expressa por signos eleitos para a composição do poema que aten-
dam a propostas individuais. Assim, o “autor como hipótese interpretativa”, na definição de
Umberto Eco, corresponde a um Autor-Modelo que “põe em jogo o universo que está atrás do
texto, atrás do destinatário e provavelmente diante do texto e do processo de cooperação (no
sentido de que depende da pergunta: ‘Que quero fazer com este texto?’)” (ECO, 2002, p. 49)
Tem sido possível, no desenvolver deste estudo, relacionar as propostas literárias de
Drummond e de Craveirinha. Dessa forma, identificamos signos que, pelo caráter da poesia
de intervenção e pelo empirismo dos autores, tornam-se símbolos de luta e resistência, sem
que se configurem poesia panfletária.
Bakhtin chama atenção para o fato de que quanto mais um indivíduo se associa ao seu
signo interior e quanto mais penetra em seu próprio psiquismo, mais distante estará de uma
expressão ideológica. Por outro lado, se o indivíduo torna-se mais informado e realizado ideo-
logicamente, consegue libertar-se das amarras do seu psiquismo que o impedem de interagir
mais ativamente com o mundo exterior. Ou seja, estabelece uma relação das infra-estruturas
com as superestruturas. (BAKHTIN, 2004, p. 60) Consideramos, dessa forma, que os poemas
analisados inserem-se numa proposta autoral em que a subjetividade direciona-se, pelo signo
social e pela via ideológica, para a coletividade. Seguindo a indicação posterior de Bakhtin,
devemos entender que toda expressão semiótica ou se dirige para o sujeito, ou, a partir dele,
para uma ideologia:
No primeiro caso, a enunciação tem por objetivo traduzir em signos exterio-
res os signos interiores, e exigir do interlocutor que ele os relacione a um
contexto interior, o que se constitui um ato de compreensão puramente ideo-
lógico. No outro caso, o que se requer é uma compreensão ideológica, obje-
tiva e concreta, da enunciação. É assim que delimitamos o psíquico e o ideo-
lógico. (ibid., p. 60-1)
Ao evidenciar duas tendências antitéticas de compreensão da linguagem, Bakhtin pro-
põe a síntese que nos interessa. A tese que apresenta para análise é a do “objetivismo abstra-
to”, ligado ao Racionalismo e ao Neoclassicismo, segundo a qual a língua é transmitida de
99
geração a geração, num processo mecanicista que exclui a concepção de evolução da língua e
sua relação com os fatos sociais. A antítese estabelece o “subjetivismo individualista”, ligado
ao Romantismo
28
, como base da natureza da linguagem, circunscrevendo-a ao ato de fala,
explicando-a sob o ponto de vista do psiquismo individual do sujeito falante. A síntese pro-
posta pelo autor é a de que “a enunciação é de natureza social”. (ibid., p. 109)
Expomos aqui, mais uma vez, agora pela teoria de Mikhail Bakhtin, o cerne de nossa
tese: a compreensão dos limites e interseções entre individualidade e coletividade, subjetivi-
dade e alteridade.
4.3 - O mundo exterior como ideologia do mundo interior: um percurso do “eu” para o nós”
Ufano da condição
começa na tua humanidade
por seres tão humano
que menos pena tenhas de ti
quando tiveres pena dos outros.
José Craveirinha
O subjetivismo individualista orienta a compreensão da linguagem no sentido de ser
ela uma expressão da essencialidade individual, estância do ser que realmente importa, sendo
o mundo exterior um material passivo, obediente às regras interiores. Entretanto, Bakhtin aler-
ta para o fato de que a mesma expressão semiótica serve, igualmente, ao conteúdo interior e à
sua materialização externa. Assim, segundo o autor, “não é a atividade mental que organiza a
28
Mikhail Bakhtin explica que os românticos, defensores da tese do “subjetivismo individualista”, foram os
primeiros filólogos a reagir contra o domínio cultural que a palavra estrangeira exerceu sobre as categorias do
pensamento. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 110.
100
expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e
determina a sua orientação”. (ibid., p. 112) A enunciação é formada pelos fatos sociais con-
temporâneos vigentes que atuam sobre o sujeito falante. É o contexto externo, no qual se des-
tacam os interlocutores, que determina a expressão do discurso interior; ele a molda, interfere
em suas inflexões, seleciona, dialeticamente, os signos que serão utilizados na enunciação.
Em outras palavras, o mundo exterior reconstitui, ideologicamente, o mundo interior.
Na primeira edição do livro Lição de Coisas (1962) de Carlos Drummond de Andrade,
em nota da editora atribuída ao poeta, é apresentada uma proposta que se coaduna com a teo-
ria bakhtiniana formulada. Diz o poeta: “O mundo de sempre, com problemas de hoje, está
inevitavelmente projetado nestas páginas.” (PC, p. 454) O poeta denuncia, na mesma ocasião,
que se sentia entediado com os acontecimentos, alterando nele o projeto ideológico que se
havia iniciado com A Rosa do Povo. Todavia, tais acontecimentos de novo ofendem e, “sem
motivos para esperança, usa entretanto essa extraordinária palavra, talvez para que ela não
seja de todo abolida de um texto de nossa época”. (ibid.)
Composta de elementos exteriores ao ser, a poesia de Drummond, na referida obra,
evidencia o objeto, e o sujeito espelha o que se revela no mundo exterior, construindo, assim,
ideologias no seu mundo interior. A “Janela” é um símbolo que representa o mundo exterior,
e o sujeito poético, diante dela, oferece ao leitor, através de sua poesia, o mundo possível de
apreensão, elaborando a ideologia final:
Tarde dominga tarde
pacificada como os atos definitivos.
Algumas folhas de amendoeira expiram em degradado vermelho.
Outras estão apenas nascendo,
verde polido onde a luz estala.
O tronco é o mesmo
e todas as folhas são a mesma antiga
folha
a brotar de seu fim
enquanto roazmente
a vida, sem contraste, me destrói. (ibid., 489)
101
A poesia de José Craveirinha é plena de signos externos que se refletem no mundo in-
terior do sujeito poético. Mas ocorre, aqui, um movimento diverso daquele que projeta a poe-
sia de Drummond. Na construção ideológica de Craveirinha, percebemos uma atuação do
indivíduo no sentido de imprimir ao verso uma nota de esperança. O que não o isenta de uma
constatação permanente do negativo da vida.A práxis africana, a natureza, a ancestralidade e
todos os elementos identificáveis com a raça negra compõem os signos poéticos de Craveiri-
nha. A “Pátria” revela-se em seus versos:
Essência
dos intumescidos lábios
quilhas fendendo as ondas
in-amor rubro de férteis azagaias.
Ruge
o leão dos nervos.
A bússola norteia
entretanto irmãos das micaias
a juba e as folhas cujo destino
o vento impele norte a sul.
E landinizados filhos meus
crescendo realizam-se
genuínos com a própria terra. (PP, p. 45)
A relação do falante com seus interlocutores imediatos, pertencentes a um contexto
social irredutível à atividade mental do enunciador, polariza-se, no dizer de Bakhtin, em ativi-
dade mental do eu e atividade mental do nós. (BAKHTIN, 2004, p. 115) A primeira tende à
auto-eliminação na medida em que se potencializa, visto que perde toda ideologia e grau de
consciência. A segunda, ao contrário, tende a se intensificar, já que se molda na orientação
social de uma coletividade. Resulta disso que o mundo interior do sujeito torna-se distinto e
complexo na mesma proporção que a coletividade com a qual interage define suas tendências
e ideologias.
Outro destaque a ser feito é quanto à categoria de uma atividade mental para si indivi-
dualista. O sujeito institui o direito de ser unitário, mas, na verdade, essa posição funda-se
numa atividade mental do “nós”, característica da “intelligentsia ocidental contemporânea”.
102
Quando expressa uma consciência mental interior, o indivíduo está, de fato, expressando uma
atividade mental coletiva, visto ser ele um produto das inter-relações sociais:
Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação, a ori-
entação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à
exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala, e, acima
de tudo, aos interlocutores concretos. (ibid., p. 117)
Mais um caminho de análise se nos apresenta pela teoria bakhtiniana: a poesia de
intervenção é, não relutamos em afirmar, uma expressão de atividade mental voltada para o
nós, resultante da consciência individual orientada por um saber social e um compromisso
com a sociedade da qual fazem parte os autores.
4.4 - Ideologia do cotidiano: uma expressão marxista
As idéias só se tornam efetivas se, ao final, elas
se juntarem a uma constelação particular de forças
sociais.
Stuart Hall
À parte os sistemas ideológicos constituídos, a atividade mental projetada sobre a vida
cotidiana compõe, conforme a proposta de Mikhail Bakhtin, uma ideologia do cotidiano, não
fixada e desordenada, mas que acompanha o ser em existência. Todavia, essa ideologia do
cotidiano, equivalente, na teoria marxista, à “psicologia social”, relaciona-se em sua estrutura
profunda com os macrossistemas ideológicos (artes, ciência, religião etc.) que se alimentam
de sua consciência crítica, ao mesmo tempo em que sobre ela exercem influência. A obra
submete-se à ideologia do cotidiano que determina o seu lugar na sociedade:
A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos
103
indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que
lhe é contemporânea. A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da
consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz. É nisso
que reside a vida da obra ideológica. Em cada época de sua existência histó-
rica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambi-
ante do cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nessa
época (é claro, nos limites de um grupo social determinado). Rompido esse
vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologica-
mente significante. (ibid., p. 119)
As atividades mentais ocasionais, mesmo que tenham matizes ideológicos, não resis-
tem ao tempo ou a uma crítica social mais elaborada. As atividades mentais que se inscrevem
na ideologia do cotidiano de maneira criativa e responsável, ao contrário, inferem o pensar
social com mais mobilidade do que as ideologias constituídas. Portanto, interferem mais dire-
tamente na consciência social, sendo capazes de rever paradigmas, questionar tendências e
rivalizar com as ideologias oficiais.
A teoria de Bakhtin orienta-se, a partir dessas análises, no sentido de recusar firme-
mente “a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista”. (ibid., p. 121) Refor-
ça o autor a proposta já discutida anteriormente segundo a qual toda enunciação se organiza
em função do meio social que envolve o indivíduo. Compreendemos, pelos estudos até aqui
formulados, que não se trata de negar que no cerne de toda enunciação está o sujeito. O que se
estabelece é que toda enunciação reflete uma interação social, o que contradiz a concepção do
subjetivismo individualista que defende ser toda ideologia dedutível ao psiquismo individual.
(ibid., p. 122)
A situação de fala insere-se num contexto exterior, definido pelos receptores da enun-
ciação. No dia a dia, podem-se construir discursos estereotipados, que tendem a necessidades
de convívio social por uma identidade comportamental comum. Por outra via, as “formas de
comunicação ideológica”, apesar de amplamente pesquisadas pela retórica e pela poética, não
foram devidamente esclarecidas quanto ao seu aspecto de interação social. Assim, declarações
e discursos do saber político e do direito, bem como a arte poética e os tratados científicos não
104
foram elucidados em seus aspectos de linguagem e de comunicação social. Decorre disso que
somente a “filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar como base de sua doutri-
na a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica”. (ibid., p.
126)
É nesse contexto que consideramos a poesia de intervenção. Organizada, elaborada,
crítica e criativa, ela opõe-se aos sistemas ideológicos estabelecidos e reflete mais profunda-
mente os anseios da coletividade. O sujeito poético que expressa o seu discurso interior ultra-
passa as fronteiras do eu, exatamente porque sua consciência individual só existe em função
de uma consciência coletiva. A “poesia de intervenção” foi, em maior ou menor grau, um
caminho comum a todos os poetas que viveram intensamente a experiência social e política
no século XX. Portanto, mesmo que pretendamos fugir ao comum dos discursos, a “poesia de
intervenção” é uma via obrigatória para quem se propõe a estudar os caminhos da construção
da poesia.
Octavio Paz ordena um pensamento sobre poesia e revolução de origem marxista que
ratifica nossa proposta:
Nunca como nos últimos trinta anos pareceram de tal modo incompa-
tíveis a ação revolucionária e o exercício da poesia. Não obstante, algo os
une. Nascidos quase ao mesmo tempo, o pensamento poético moderno e o
movimento revolucionário se encontram, ao fim de um século e meio de
querelas e alianças efêmeras, diante da mesma paisagem: um espaço preen-
chido de objetos, mas desabitado de futuro. A condenação da tentativa da
poesia de encarnar na história alcança também o principal protagonista da
era moderna: o movimento revolucionário, particularmente de seu ramo
marxista. Suas insuficiências e limitações estão à vista. Já se notou que são
também as nossas? Seus erros são os da parte mais ousada e generosa do es-
pírito moderno, em sua dupla direção: como crítica da realidade social e co-
mo projeto universal de uma sociedade justa. (PAZ. 2005, p. 99)
Assim pensando, concluímos que, ainda que a crítica possa apontar ? e o tem feito de
forma até visceral ? os equívocos e contradições da poesia revolucionária, é inegável que os
erros detectados nos versos da “poesia de intervenção” refletem os nossos erros; a razão neles
expressa foi a nossa última tentativa ? um desejo marxista ? de unir sociedade e ideal; e o
105
sonho que deles resta é o alento que nos revivifica das trevas que têm nos assolado o espírito.
Aí, então, os poetas todos nos salvam, e deles elegemos ? contrariamente à aspiração quase
incontida por andar em diversas searas poéticas, colhendo das vozes múltiplas o alimento que
farte o espírito ávido ? Drummond e Craveirinha, que melhor conformam a cena literária à
nossa vivência e aspiração do saber.
Incorreríamos, aqui, em repetição do dito, não fosse a obra de Carlos Drummond de
Andrade rica em possibilidades interpretativas. Evidentemente, quando procuramos decifrar
os signos e os códigos da realidade, automaticamente estamos nos referindo, também, à “poe-
sia de intervenção”. Dessa forma, para compor uma análise que se valide como elucidativa do
fazer poético de Drummond, optamos por selecionar poemas que tenham o caráter específico
de um discurso político e que autentiquem, inegavelmente, o eu poético como sujeito contes-
tador da sociedade, desarticulador das fórmulas, transformador das idéias e dos ideais, seja
pela ironia, pelo ceticismo ou pela amargura, marcas discursivas do poeta Drummond.
Defendemos a idéia de que quase toda a sua obra, desde Alguma Poesia, deixa falar o
homem político atento às esferas sociais, das quais participa não como observador distante
ainda que em muitos poemas o sujeito procure um distanciamento do objeto que faz represen-
tar nos versos, atitude de alheamento que, acreditamos, se configura em protesto ?, mas co-
mo alguém preocupado com as questões sociais.
O poeta vê o que se passa. Seus olhos são o instrumento de que se vale para se rela-
cionar com o mundo, mantendo a distância segura de quem deseja observar sem ser observa-
do, ainda que se diga o verso em primeira pessoa. “Olhar, ver, contemplar, espiar são aqui
sinônimos de conhecer, perceber, entender, revelando um processo metonímico na fala huma-
na”. (SANT’ANNA, 1972, p. 50) Buscamos agora a metonímia da vida. Planejamos investi-
gar o percurso dos objetos de poema que contam a sua própria história, autenticada pelo sujei-
to poético que especula a existência do outro para revelar seu ideal sem se revelar.
106
“Outubro 1930”, data significativa para a política do país, guerra pátria, brasileiro alvo
de brasileiro, é um poema que compõe Alguma Poesia. A visão drummondiana da guerra pas-
sa ao largo de questões simbólicas. Drummond desfia o cotidiano da guerra, protesta como
quem conta, deixa que o alerta se realize na recepção do leitor. O poema é intercalado por
textos em prosa que funcionam como notícias da guerra, esvaziando o lirismo que se constrói
quando o sujeito/observador volta seus olhos para o interior do conflito, evidenciando objetos
que são a metonímia do sofrimento imposto pela vontade política:
Suores misturados
no silêncio noturno.
O companheiro ronca.
O ruído igual
dos tiros e o silêncio
na sala onde os corpos
são coisas escuras.
O soldado deitado
pensando na morte.
De 5 em 5 minutos um ciclista trazia do Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, com-
primida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que
era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias
olhos que não viam, olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiro-
teio.
(...)
Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão,
e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.
(...) (.PC., p. 34-5)
Sentimento do Mundo (1940) é ? juntamente com Alguma Poesia e A Rosa do Povo
? apontada pelos críticos como uma das obras mais engajadas de Drummond. Insere-se a
obra no legado da geração modernista que, após a fase do poema-piada, deixou vir à luz “uma
geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se
considerava responsável”. (COUTINHO, 1959, p. 299)
107
O gênio de Drummond, ainda que submisso a uma ordem idealista comum a seus pa-
res, não se deixa limitar. Prova disso é a pungente “Canção da Moça-Fantasma de Belo Hori-
zonte”, na qual o poeta autoriza o testemunho de uma vida que, mesmo após a inexistência,
ainda deseja revelar a sua dor:
Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes. (PC, p. 69)
O livro A Rosa do Povo é todo ele um discurso ideológico em que o homem fatigado
de tanta desordem, divergências, injustiças e hipocrisias se apropria do sujeito poético. O po-
ema, muitas vezes, constitui-se de um protesto indisfarçável contra a realidade que presencia.
Nesses casos, a voz poética compromete-se, expõe-se na medida em que declara sua insatisfa-
ção e sua angústia ou propõe novos parâmetros para o homem e a sociedade.
De todos os versos, de todas as metáforas poderíamos recolher os sinais da poesia que
se rebela, fossem eles flores, fossem eles pedras. De todas as vozes que gritam nos poemas,
poderíamos direcionar nossa atenção para qualquer uma que reclame a dor, em ato resignado
ou não. Poderíamos selecionar algumas tragédias, alguns esquecimentos, alguns abandonos, e
qualquer um seria a metonímia perfeita de um todo discursivo que se faz sob o signo da “poe-
sia de intervenção”. Optamos, entretanto, por destacar o longo poema “Canto ao Homem do
Povo Charlie Chaplin”, porque nele Drummond não faz um protesto dirigido a um tema, a
uma circunstância apenas. O poeta utiliza o recurso da oposição para expor sua negativa a
tudo o que fere, tudo o que ofende e limita o homem, representado em metonímia pela figura
de Chaplin. A imagem chapliniana confunde-se com os desvalidos, com os abandonados, e o
sujeito poético a eles fala; mas percebe que são eles ? os párias? que detêm o discurso in-
108
vectivo:
(...)
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.
Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram a estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.
Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mandado por via postal ao inventor dos
[jardins.
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de
[tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens ? e te descobriram e salvaram-se.
Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.
(...) (ibid., p. 221)
E da mudez de Carlitos surgem as palavras que compõem os versos da poesia drum-
mondiana:
(...)
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos
[exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria
[dos ditadores,
Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa
[estrada de pó e esperança.
(ibid., p. 226-7)
Os excertos deste poema não deixa margem a que possamos, ainda, especificar o pro-
109
jeto literário de Carlos Drummond de Andrade apenas no que concerne à poesia realista que
se constrói com voz de protesto. O poeta faz desfilar, em cada verso, todos aqueles que preci-
sam de sua lucidez, do seu engajamento e da sua capacidade lírica para calar, em todos nós, o
veemente ideal que professa. E assim, mais do que protestar, o sujeito poético movimenta-se
para um “nós”, na medida em que identifica o seu signo com as identidades dos que exalta.
Também a poesia de José Craveirinha tem uma inegável dimensão social. Mais que
isso: acura com visão objetiva o ser e o estar do homem moçambicano. A poesia de interven-
ção de Craveirinha direciona-se na perscrutação da vida cotidiana de sua terra, a fim de ele-
var o simples à condição de evidência, para, aí sim, relevar um discurso que, de aparente lou-
vor do homem simples, transforma-se em desafio, revisão de idéias, reflexão sobre ideais,
desfazimento de normas. Sob essa perspectiva, podemos depreender da poesia de Craveirinha
os dois tópicos que situam este capítulo: cotidiano e ideologia marxista. Ampliando o quadro
em que se localizam os personagens e as cenas em que atuam, podemos ver que há mais do
que representantes pobres e humilhados de um país colonizado, o que converge para uma de-
finição de Michel Foucault sobre uma nova perspectiva da história, que passa a considerar a
“emergência de um material plebeu”. (FOUCAULT, 1999a, p. 129)
Seguindo uma proposta de Ana Mafalda Leite, vemos, na escritura de Craveirinha,
a existência de um herói (..) colectivo, agora já não apenas representado pela
profissão, como no caso do magaíza ou da prostituta, ou ainda do trabalha-
dor do cais, mas sim pela totalidade dos moçambicanos, na sua dimensão de
povo, que vive uma odisseia simultânea de repressão e de libertação. (LEI-
TE, 1991, p. 121)
São os personagens de Craveirinha, de sua poesia narrativizada, heróis de um país co-
lonizado, reconfigurados pela civilização estrangeira. Estão marcados por intensas dores, mas,
muitas vezes, essas dores são traduzidas pelas cores e sons de Moçambique, pelos gestos e
falares, pela palavra que não altera sua identidade. E o poeta faz um “msaho”, homenagem
justa aos timbileiros que enchem de vida as terras de Moçambique:
110
MSAHO DE ANIVERSÁRIO
Negro chope
subnutrido canta na noite de lua cheia
e na timbila de ânforas de massala
toca audível msaho da virgem tonga.
E borboleta amarela
no estrénuo palpitar das asas
sozinha escreve na atmosfera agrimensurada
a fábula incrível das novas casas estranhas
e dos minérios sempre descobertos pelos outros
nas minhas terras familiares de xingombela
ao norte e ao sul do rio
agora chamadas claim.
(...) (OP, p. 48)
Ao narrar o “outro”, Craveirinha não o faz com os métodos clássicos, pelos quais o
narrador detém a existência daquele que narra para as revelar aos poucos ao leitor, suspen-
dendo a ação e garantindo o interesse pela narrativa. Essa técnica exigiria ver no “outro” o
objeto que conduz a arte. José Craveirinha, ao contrário, vê no “outro” a razão de sua arte. Por
esse motivo, abdica do”eu” e caminha em direção a esse o “outro” que se elegeu como objeto
de sua poesia, constituindo o “nós”. E, por vezes, não nomeia o “outro”, não nomeia o “eu”,
porque o “nós” é a única expressão possível de um existência multiplicada na dor e na resis-
tência à dor:
Aqui
nem um pide nos ouve
a gritar no dialecto nacional dos oprimidos
os mais fantásticos sonhos
construímos
com o invisível material da esperança
a realidade universal dentro
do povo lá fora! (...) (C1, p.27)
Criar um espaço outro de existência reflete, no sujeito poético, uma consciência ideo-
lógica do tempo em que ele vive, das condições sociais que lhe são impostas. E as identidades
de que se nutre o verso envolvem o “eu’ porque lhe são contemporâneas. Há um irrefutável
“nós” ideológico que se transforma em sujeito do poema.
111
5. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A EXPERIÊNCIA DA REALIDADE E
DA SUBJETIVIDADE
5.1 - A arte da imitação e o discurso social: o objeto no espelho do sujeito
Quando o mundo interior e o exterior se tocam, aí
se encontra o centro da alma.
Novalis
Fazer a análise dos versos de Carlos Drummond de Andrade leva o examinador a cor-
rer demasiados riscos. A imensa fortuna crítica e a generosidade dos críticos com seus leito-
res, escandindo os versos para sua melhor compreensão, ao mesmo tempo em que elucidam
dúvidas, limitam a investigação.Por outro lado, não se pode deixar de palmilhar a longa estra-
da da obra drummondiana desde o seu começo, para que almejemos, em algum momento,
chegar ao ponto ? não ao fim ? projetado como o objetivo maior, em nosso caso, a investi-
gação da subjetividade. Assim, necessário se torna retomar caminhos. Partiremos, portanto, da
ideologia que, no comum dos saberes, associa-se sempre a um movimento de alteridade. Con-
sideramos, para início de análise, a argumentação de Benjamin Abdala Junior, que propõe a
compreensão da ideologia numa “perspectiva produtiva e estrutural”, na medida em que per-
mite ao homem construir a realidade em relação dialética com o objeto que constrói. E con-
clui:
O conceito de ideologia aproxima-se, assim, do de cultura, que apre-
senta tais esquemas de pensamento (trabalho), mas com uma diferença: a i-
deologia vincula os modelos culturais a um processo de particularização, de
acordo com as aspirações de classe (conscientes ou não). Na atualização da
cultura, em cada momento histórico, há uma apropriação, dentro da dinâmica
112
da série ideológica, do patrimônio cultural coletivo. (ABDALA JR., 2003, p.
123)
A poesia drummondiana vincula-se à realidade que ela apreende e reconstrói ? como,
ademais, qualquer fazer poético ?, mas, como denuncia Abdala Jr., essa relação é dialética e,
dessa forma, o poeta/sujeito poético identifica-se na realidade que propõe, construindo, no
cerne de sua práxis, a subjetividade que se expressará nos poemas, ora de maneira subliminar,
ora de maneira incisiva.
São muitos os percursos de alteridade e várias as nuances da subjetividade impressos à
poesia de Drummond. Ângela Maria Dias, em ensaio sobre o autor, destaca que, desde Algu-
ma Poesia, a pesquisa da alteridade na obra do poeta mineiro leva à absorção de um “decisivo
acento trágico, na medida em que o signo do disjunto, do incompleto, do falível, durante o
desdobrar-se da obra, amplifica-se gradativamente”. (DIAS, 2007, p. 118) Ao constituir o
objeto de seu poema, o sujeito poético de Drummond se reconstitui como sujeito através dos
elementos que referencia e redefine. Todavia, apreender as marcas poéticas desse sujeito tor-
nar-se-á possível se, antes, soubermos identificar a constituição do real que o autor imprime
em seus versos. Planeamos, assim, um caminho de alteridade em Drummond que nos leve
diretamente ao encontro de sua poesia social. Neste capítulo, é importante observarmos a for-
tuna crítica que espelha, de modo relevante, o traçado literário de nosso poeta, entremeando-o
com o estudo já elaborado anteriormente sobre mimesis e realidade, pela voz de Auerbach, e
filosofia da linguagem e teoria marxista, proposta teórica de Bakhtin.
Ultrapassadas as fronteiras do classicismo, o escritor realista impõe o seu estilo ao texto
literário, permeando-o de descrições pormenorizadas que lançam o leitor na mais evidente
realidade. Entretanto, já não o faz sob a égide de Homero, pois o escritor moderno não mais
exige do leitor um distanciamento que o faça enxergar tudo como se estivesse postado diante
de uma vitrine, através da qual vê o narrador/sujeito poético manipular os acontecimentos sem
permitir uma interferência subjetiva de si mesmo ou de outrem. Essa condição da escritura
113
poética evidencia-se nos poemas drummondianos. Carlos Drummond transpõe para o texto a
realidade que vivencia, convidando o leitor a participar de sua visão de mundo. “A poesia
drummondiana é o homem dentro de uma objetividade subjetiva. É o retrato do homem. O
poeta procura conhecer filosoficamente o Ser. Mas também psicologicamente, suas vivências,
suas arestas da face oculta, seus tentáculos invisíveis”. (LAUS, 1978, p. 19)
Conhecer a poesia de Drummond é conhecer o mundo que o(nos) cerca e, por conse-
guinte, empreender uma busca pelo “outro” nos movimentos individualizantes a que nos re-
duzimos pela existência afora. A experiência literária de Carlos Drummond de Andrade revela
que “o poeta se debate entre a posição individualista (...) e a correção dessa hipertrofia da in-
dividualidade, pelo reconhecimento de que a medida do homem reside na relação do eu com
uma instância que o transcende”. (CORREIA, 2002, p. 47) O “outro” no espelho do “eu” pro-
põe uma troca de experiências entre o mundo exterior, real, e o mundo interior, subjetivo, do
poeta Carlos Drummond de Andrade. Leitura como reflexo de si mesmo; arte como revelação
do “outro”.
Drummond é um “homem do seu tempo”, já diziam todos os seus críticos e leitores. E
o tempo de Drummond é longo. A poesia de Carlos Drummond de Andrade testemunha déca-
das de História. De Alguma Poesia (1930) a Farwell (1996), o poeta externou nos seus versos
a compreensão dos fatos que o cercavam, com maior ou menor incidência sobre eles, de acor-
do com a intensidade de sua subjetividade. Portanto, a palavra que desenha o mundo visto por
Drummond é, concomitantemente, histórica e atemporal; palavra social, palavra individual. É
sob este duplo estatuto de interpretação que o poeta rompe as barreiras do tempo em que fo-
ram inscritos seus poemas. Ao poeta, a faculdade de ultrapassar-se, como propõe Octavio Paz:
As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias. Por
um lado, são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse
povo: são algo datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um
começo absoluto. (...) O poema é um tecido de palavras perfeitamente datá-
veis e um ato anterior a todas as datas: o ato original com que principia toda
história social ou individual; expressão de uma sociedade e, simultaneamen-
te, fundamento dessa sociedade, condição de sua existência. Sem palavra
114
comum não há poema; sem palavra poética, tampouco há sociedade, Estado,
Igreja, ou comunidade alguma. A palavra poética é histórica em dois senti-
dos complementares, inseparáveis e contraditórios: no de constituir seu pro-
duto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade.
(PAZ, 2005, p. 52)
É comum ver, na fortuna crítica de Drummond, considerações sobre ser ele uma voz de
esquerda, crítica, inquieta e desnudadora de falsas ideologias. Todavia, cada crítico que com-
põe o legado de conhecimento da obra drummondiana buscou empreender uma compreensão
de sua poesia que não se justificasse apenas ? o que, de resto, já seria toda uma literatura ?
pelo discurso de esquerda.
Voltamos a Auerbach para discutir a relação entre poesia e realidade, tema que preocu-
pou Otto Maria Carpeaux, em ensaio crítico datado de 1943. Para este autor, pode ser um e-
quívoco aproximar “movimento poético” e “movimentos da realidade social”, visto que “rea-
lidade social faz parte de uma realidade geral”.(PC, p. XLV) Acrescenta, à idéia estabelecida,
que a poesia de Drummond é objetiva, mas conceitual, não apoiada em imagens. (ibid., p.
XLVI)
De acordo com o estudo de Auerbach, foi a imagem que permitiu a constituição de uma
literatura realista. Da experiência de Homero com o uso de minuciosas descrições, que não
permitiam ao leitor participar subjetivamente do texto, passamos a várias outras propostas
literárias, que vão, aos poucos, autorizando uma leitura mais subjetiva. Em todas, porém, a
imagem, a visualidade, o descrever pormenorizado do mundo circundante permitiu que a rea-
lidade se tornasse objeto da literatura, da poesia. Evidentemente, a arte literária é uma expres-
são individual. O que relevamos, no entanto, é que a realidade estabelecida pelo escritor não
se dá plenamente em sua individualidade, sua instância psicológica ou sua subjetividade. O
que o poeta inscreve no seu texto é conseqüência do que ele vê fora de si, muito embora se
inscreva como ser social em todas as circunstâncias que o rodeiam. Claro está, como diz Otto
Maria Carpeaux, que a poesia de Drummond é conceitual, exemplificada pelo crítico com os
115
conhecidos versos Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo, / seria uma
rima, não seria uma solução. (ibid., p. XLVI) Mas o conceito identifica uma realidade social
na qual se espelha o sujeito, modificado que foi pelas manifestações externas que o recriam.
Não há dúvidas de que o realismo conceitual é uma marca literária evidente na poesia
de Carlos Drummond de Andrade. Mas não se deve eximir do texto drummondiano o projeto
de articular uma realidade como sua consciência a detém, e de transmiti-la ao leitor tal e qual
a percebe. Sem esforço de interpretação ou de compreensões teóricas, é possível perceber a
realidade concebida pela percepção aguda do sujeito poético e oferecida ao leitor sem disfar-
ces, ainda que uma leitura cuidadosa não deixe de conceber uma conceituação do plano real,
mas nada que altere substancialmente o mundo apreensível pelas sensações. Aqui a lição dos
primeiros realistas não se exclui do fazer literário contemporâneo; ao contrário, agrega-se a
todos os outros elementos que foram oferecidos por escritores de diversas épocas. Isso porque
se conserva no cerne da literatura realista uma proposta fundamental do marxismo, segundo a
qual a consciência se elabora na matéria. Serão, assim, os poemas de Drummond factíveis,
ordenados de acordo com a realidade que o poeta presencia e de que faz parte.
Em nosso parecer, o poeta não concebe a poesia fora do mundo de que participa, mes-
mo quando planeja negá-lo. E esse mundo é oferecido ao leitor que, ao apreender os versos,
percebe uma outra revelação ainda mais promissora: o indivíduo que se insinua por entre ri-
mas e metros. Encontramos em Octavio Paz a sustentação do argumento:
O poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas ex-
periências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, his-
tóricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra
coisa: revela o homem. Essa revelação é o significado último de todo poema
e quase nunca é dito de modo explícito, mas é o fundamento de todo dizer
poético. (PAZ, 2005, p. 55)
O que ressaltamos, para além da pura concepção de imagens conceituais, é o fato de
que estão elas associadas ao mundo que o escritor vivencia, e que transforma, como sujeito
poético, em versos que serão oferecidos ao leitor para que também participe de um processo
116
de investigação da realidade. Confere-nos um certo sabor de segurança analítica a compreen-
são que Antônio Houaiss fez de Drummond, ao explicitar a conhecida máxima que insere
Drummond como um “poeta de seu tempo”. Entre muitas argumentações sobre tal perspecti-
va, destacamos:
[Carlos Drummond de Andrade] é poeta do seu tempo no fato de que eleva
ao ou insere no seu poetar todas as entidades do seu real objetivo e subjetivo,
desclassificando (mas usando deles) os assuntos, motivos, temas, tópicos,
antes admitidos em poética, e classificando os até então proscritos, constru-
indo assim um poliedro poético de milhares de faces, algumas muito ilumi-
nadas por retornos no seu fazer criador, sempre a uma nova luz”. (HOU-
AISS, 1976, p. 17)
A expressão máxima de uma realidade que se apreende pela consciência de um ser so-
cial, sem a necessidade de se construir novas realidades a partir de conceitos individuais, en-
contramos em “Poema de Jornal”
29
, da obra Alguma Poesia:
O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. (PC, p. 19)
Na poesia de Drummond registram-se os elementos cotidianos e os discursos sociais
que protocolaram o homem em sua época. Em Drummond, o Gauche no Tempo, Affonso
Romano de Sant’Anna observa:
A melhor poesia é sempre uma súmula cultural. A poesia de Drummond ar-
ticula um protótipo do mundo moderno ? o gauche. Aí está o sentimento de
uma região, de um país e o sentimento do mundo. Aí o problema central é o
tempo: o crescimento e o desgaste do personagem, e a obra que resta ao fi-
nal. (SANT’ANNA, 1972, p. 37)
29
É interessante notar que a atividade jornalística de Carlos Drummond de Andrade foi, segundo definição do
próprio poeta, sem “a emoção da grande reportagem e dos grandes acontecimentos”. (MORAES NETTO, Gene-
ton. O dossiê Drummond. São Paulo: Globo, 2007, p. 37) Consideramos ? seguindo a trilha autobiográfica
tantas vezes evidenciada pela crítica e pelo próprio Drummond ? a possibilidade de este fato ter contribuído
para a constituição de sua poesia de caráter realista e social, tangível e modelada pelo cotidiano.
117
O gauche de que nos fala Sant’Anna foi construído ao longo de décadas, observando a
realidade, às vezes sendo por ela devorado, em ato dramático. Não fugiu ao seu destino, não
se refugiou a olhar pelas frestas o mundo que se lhe mostrava. Absorveu os dados, investigou
os fatos, transformou-os ou não em outra realidade, mas, acima de tudo, viu, registrou, devol-
veu o que foi apreendido ao seu leitor.
A proposta de construção de uma poesia que se origina na realidade não exige, obriga-
toriamente, a elaboração do verso comum, espelhamento fiel do que se vê. Ainda que não
consideremos apenas uma poesia conceitual na obra de Drummond, claro está que de todo não
é possível pensar em registro inequívoco do real. A festejada obra A Rosa do Povo é o maior
exemplo de uma poesia que propicia ao leitor a compreensão da realidade circundante, per-
passada pela visão crítica do autor. Não é leitura para muitos. Os poemas delineiam-se por
uma estética que, no dizer de Álvaro Lins, contém “uma substância em parte popular, ao lado
de uma forma difícil e não disposta às concessões, um estilo aristocrático e por isso inacessí-
vel ao grande público”. (PC, p. XLVIII). Todavia, outra possibilidade de compreensão do real
é a construção subjetiva de quem o observa. Essa proposição foi seguida pelos escritores con-
temporâneos, mesmo durante o Realismo, ainda que seus proponentes indicassem uma extre-
ma objetividade no fazer literário.
É importante notar que Auerbach defende a idéia de que somente através de uma visão
subjetiva do mundo a literatura adquire verossimilhança, visto aproximar-se mais do leitor, o
qual melhor se identifica com o texto. Assim, por mais que se insista na tese de objetividade
literária, especialmente na poesia política, na “poesia de intervenção”, consideramos, como
Auerbach, a impossibilidade de se excluir do texto uma ação da subjetividade sobre o que é
fato literário.
Tal ação subjetiva deu-se muito claramente, como vimos, na arte de Flaubert. Destaca-
118
mos, mais uma vez, a disposição autoral de permitir que o leitor interprete, pelos dados que
lhe são oferecidos, o mundo e a personagem que nele atua ? ou, mais precisamente, no caso
de Madame Bovary, interpretar o mundo que atua sobre a personagem. Esse recurso de cons-
trução do texto não foi esquecido pelos nossos escritores contemporâneos.
Na evolução do texto que mimetiza a realidade, a subjetividade alcança maior impor-
tância na medida em que passa a ser a estância onde todas as coisas adquirem valor. A perso-
nagem se compreende pelas circunstâncias que o rodeiam e o leitor apreende o texto porque
lhe é permitido vivenciar subjetivamente cada cena, visto que o narrador pouco interfere em
sua leitura. Tal recurso também se faz presente na poesia, quando o sujeito poético evidencia
mais o objeto do poema e o oferece diretamente ao leitor, sem que a sua própria interpretação
impeça uma construção do real pela subjetividade de quem lê:
SINAL DE APITO
Um silvo breve. Atenção, siga.
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.
(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos
seus veículos para movimentá-los imediatamente.)
(ibid., p. 24)
O poeta Drummond ainda realiza um outro movimento subjetivo, na elaboração da re-
alidade em seus textos. Neste caso, o sujeito poético domina a realidade, investiga-a, para, aí,
sim, refazê-la com as marcas de sua subjetividade. A realidade entranha-se em seus versos,
neles fica, e caprichosamente deixa-se observar ou ? conceitualmente ? analisar.
É dessa forma que consideramos o poema “Diálogo”, do livro A Falta que Ama, publi-
cado na segunda parte de Boitempo (1968). O sujeito poético perscruta a realidade, mas não se
isenta de compreendê-la através da própria subjetividade, destacando relações que passariam
despercebidas a um observador comum. Os recursos de linguagem que se fazem instrumento
119
de construção do poema redimensionam o real e possibilitam ao sujeito evidenciar novos va-
lores. Os elementos que observa são tangíveis, mas a maneira como os inter-relaciona o poeta
reveste cada um de configurações diversas:
No banco do jardim
o velho conversando
uma forma de flor.
O amor dos cachorrinhos
oferta-se em exemplo
inútil para o velho
maligno para a flor.
O velho conversando
o banco no jardim
de onde a flor deserta.
O velho conversando-se
é banco de jardim
mas em jardim nenhum. (ibid., p. 682)
Ao eleger o objeto de seu poema, Drummond traduz a realidade que observa. Todavia,
a imagem que capta e o conceito que nela se identifica participam de uma subjetividade que
se pretende especular do real. A inter-relação sujeito/objeto inscreve nos versos um movimen-
to poético dúplice: o elemento exterior ao ser conforma-o na medida em que sobre ele atua
através do processo de mimesis; o sujeito reconduz e redefine as coisas externas mimetizadas
a partir do momento em que, absorvendo as suas propriedades, é capaz de reinventá-las e re-
dimensioná-las no espaço/tempo em que subsistem.
5.2 - Signos do homem real: subjacentes ao mundo, libertos no verso
Nós não somos do século de inventar as palavras. As
palavras já foram inventadas. Nós somos do século de
inventar outra vez as palavras que já foram inventa-
das.
José de Almada Negreiros
120
Através da exposição das aspirações, angústias e problemas cotidianos da classe bur-
guesa, a mimesis da realidade pôde estender-se para além da imaginação do escritor. Agora, é
possível, pela observação da vida, explicitar a realidade no texto literário. Além disso, após o
evento da Paixão de Cristo, cada indivíduo adquiriu o direito de expressar seu próprio sofri-
mento, colocando-se em evidência num mundo que, na Antigüidade, promovia o seu apaga-
mento social e humano. Por outro lado, apesar dessa nova possibilidade cristã de exaltação da
individualidade, a sociedade ainda exerce sobre o homem uma força que o impele, muitas
vezes, a caminhos e sentimentos que não sejam a eles imanentes. Assim, com Stendhal des-
cortina-se uma tendência da literatura realista pela qual o homem, pressionado por fatores
externos, adquire consciência social. E Balzac também investe nessa forma de fazer arte mi-
mética, intensificando a proposta de Stendhal na medida em que também observa o confronto
de seus personagens com a natureza, e não apenas com as questões sociais. Entretanto, a ideo-
logia das classes menos privilegiadas só terá voz pela literatura de Zola, que, ao proclamar a
prevalência da medicina experimental sobre outras formas intuitivas de saber, assume a estéti-
ca do feio, mas não se isenta de empreender um novo estilo no qual a realidade possa, de fato,
com todos os seus matizes, estar presente no texto literário. Esse novo posicionamento do
escritor leva, mais adiante, à compreensão da tese bakhtiniana, segundo a qual todo signo pos-
sui uma carga ideológica que atua sobre a realidade, modificando-a.Vemos, aqui, uma nova
concepção do fazer literário e das suas relações com a realidade, pois não se trata mais de
mimesis, mas de reinterpretação do real, o que se dá pela palavra. Trata-se, na verdade, de um
processo de autoconsciência que se expressa no texto, destacando do real o que o autor/sujeito
poético determina seja essencial como ideologia.
Por essa proposta, objetos do poema ganharão nome e forma humanos, segredarão do-
res, serão consolados ou alertados pelo sujeito poético que entende e expressa a sua vivência,
compartilha de sua desesperança. Esses objetos vão nos contar suas histórias; a realidade tor-
121
nar-se-á, muitas vezes, tensa para o leitor; mas a densidade com que é exposta, verso a verso,
impele quem o lê à cumplicidade do que lê, por um exercício de subjetividade que se instiga
em cada signo. Do cotidiano saltam aqueles que habitam os versos do poeta, como em “Caso
do Vestido”, de A Rosa do Povo, poema no qual a realidade triste de uma vida sem cores é
percebida em matizes subjetivos que conferem ao texto enorme dramaticidade:
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Passou como, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
(...)
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,
se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,
(...) (ibid., 160-1)
A figura da pessoa simples, alijada durante séculos da literatura, aparece sem a comi-
cidade que os textos antigos lhe conferiam. O poema revela uma consciência social do sujeito
poético que os signos expressam por pertencerem ao âmbito do real, e intensificam uma sub-
jetividade que aproxima o leitor do objeto configurado, atribuindo a tal objeto uma imporn-
cia antes não obtida devido aos olhares desatentos da sociedade. O reconhecimento do homem
como centro da dinâmica do mundo, condutor e conduzido, possibilita a criação de versos que
se constroem a partir de uma figura central. Girando em torno dela, os fatos e as ocorrências
podem alterar-lhes a configuração ou serem por ela alterados.
122
Os poemas elegíacos de Viola de Bolso I (1952) evidenciam tal proposta. Poetas, pin-
tores, livreiros e até personagens que transcendem a existência das letras possuem, nos versos
de Drummond, os mecanismos que dinamizam o mundo e interferem na realidade. O mundo
concretiza-se a partir das propriedades que o poeta lhes atribui:
A LYGIA FAGUNES TELES
Após a leitura
de tua novela
(é Literatura!)
quem se esquece dela?
Miro-me no espelho.
Vejo, com assombro,
um cacto vermelho
florir no meu ombro. (ibid., p. 329)
Proposta antitética é apresentada na obra Fazendeiro do Ar (1954), em cujos poemas o
mundo real submete o homem às suas vontades. A concretude do mundo pesa sobre a existên-
cia: enfeia, muitas vezes; desilude, quase sempre; joga-a no vazio. O mundo é o “Domicílio”
do homem real, pobre e irresoluto, inadequado à vida, sem consciência de si mesmo:
...O apartamento abria
janelas para o mundo. Crianças vinham
colher na maresia essas notícias
da vida por viver ou da inconsciente
saudade de nós mesmos. A pobreza
da terra era maior entre os metais
que a rua misturava a feios corpos,
duvidosos, na pressa. E do terraço
em solitude os ecos refluíam
e cada exílio em muitos se tornava
e outra cidade fora da cidade
na garra de um anzol ia subindo,
adunca pescaria, mal difuso,
problema de existir, amor sem uso. (ibid., p. 400)
É assim que, por inúmeras vezes, o mundo real se apresenta ao poeta com proprieda-
des insubmissas. Sofre a crítica, mas não se dobra ante a visão devastadora do sujeito poético;
o gume das palavras não redesenha a realidade.
123
Versiprosa (crônica da vida cotidiana e de algumas miragens), de 1967, é um livro de
temática exclusivamente política. Em nota introdutória, Drummond esclarece que “as farpas
dirigidas nestes escritos à ação de políticos jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem
assumiram cunho pessoal”. (ibid., p. 508) O sujeito poético põe em discussão os políticos e
suas ações à luz da História; investiga os fatos, reflete sobre os resultados, questiona e contra-
argumenta; e, como o poeta mesmo admite, dirige suas farpas.
A escrita literária registra-se como escrita da História, pois os signos que se apresen-
tam de maneira formal falam da sociedade, das circunstâncias e dos fatos históricos, em rela-
ção profunda. “A História apresenta-se então ao escritor como o advento de uma opção neces-
sária entre várias morais da linguagem; obriga-o a significar a Literatura segundo possíveis
que ele não domina.” (BARTHES, 1997, p. 12)
Não escapariam ao verso drummondiano os desmandos da ideologia política, denunci-
ados no poema “HF”, datado de 9-12-1956:
(...)
Diz-que os comunas vão levar no coco
de norte a sul, entendes? se o Congresso
aprovar essa lei. Repórter Esso,
já te escuto gritar o fato louco:
“Atenção, atenção, foi preso agora
D. Helder Câmara. Este perigoso
agitador que entre favelas mora,
pregava a caridade, no Matoso”!
Estão eles mandando, lá na Guerra?
Há quem diga. Mas pensa o Condestável
expungi-los somente se a implacável
lei vigorar em nossa pobre terra?
Fidelidade, amor, fidelidade,
não a de som e tom e alto-falante...
Antes sem som nenhum, enquanto invade
nosso país a noite sufocante. (ibid., p. 533-4)
O mundo real é apreensível pelo verso. É preciso deter imagens e fatos, para que se
possa compreendê-los, refletir sobre eles, e, se possível e necessário, modificá-los.
124
Em As impurezas do branco (1973), os signos desvelam a realidade, sem subterfúgios,
como no longo poema “Diamundo 24 H de informação na vida do jornaledor”, no qual o
poeta constrói seu texto a partir de notícias e anúncios sobre o mundo, em segmentos e di-
mensões diversos. Os fatos do mundo devoram o dia, devoram o homem:
(...)
A China é azul
no Teatro Ipanema
Teólogos holandeses observam:
Jesus
jamais se declarou Deus
(...)
Mortalidade infantil decresce
em países do 3.
o
mundo
mas a dieta dos sobreviventes
diz J.M. Bengos da Organização Mundial de Saúde
continua deficitária
e os cromossomos se alteram
nas crianças mal nutridas
segundo pesquisadores mexicanos
(...)
Viúva fluminense, 37, almeja
travar relação de alto nível
com senhor de maneiras aristocráticas
tendo em vista somente
pura degustação intelectual.
(...)
Bomba francesa explode
no Pacífico
Seqüestrador faz explodir avião
Nasce em Bogotá um menino
inteiramente verde-mar.
UPI-AP-AFP-ANSA-JB (ibid., p. 709-718)
O homem não pode subverter a verdade inexorável: o fim de sua existência. É assim
que o poeta investiga o que há no mundo de mais real. Desenha “Cemitérios” em versos, e
entre muitos até mesmo o cemitério “De bolso”: Do lado esquerdo carrego meus mortos. /
125
Por isso caminho um pouco de banda. (ibid., p. 405)
O tempo determina a disposição anímica do ser. O tempo se faz-desfaz em espelhos
que revelam a face em mutação, trazem desordem para a vida, destroem as certezas. Na lírica
revela-se a possibilidade de existência, apesar do mundo acossar o sujeito, que se propõe a
“Habilitação para a Noite”:
Vai-me a vista assim baixando
ou a terra perde o lume?
Dos cem prismas de uma jóia,
Quantos há que não presumo.
(...)
E não quero ser dobrado
nem por astros nem por deuses,
polícia estrita do nada.
Quero de mim a sentença
como, até o fim, o desgaste
de suportar o meu rosto. (ibid., p. 399)
O homem pode, entretanto, desafiar a força esmagadora da realidade. O tempo crono-
lógico, concreto e implacável domina o homem. O sujeito poético compreende a proximidade
do fim. Mas não se deixa vencer por completo, retém o tempo, que um minuto lhe serve como
existência infinita:
A DISTRIBUIÇÃO DO TEMPO
Um minuto, um minuto de esperança,
e depois tudo acaba. E toda crença
em ossos já se esvai. Só resta a mansa
decisão entre morte e indiferença.
Um minuto, não mais, que o tempo cansa,
e sofisma de amor não há que vença
este espinho, esta agulha, fina lança
a nos escavacar na praia imensa.
Mais um minuto só, e chega tarde.
Mais um pouco de ti, que não te dobras,
e que eu me empurre a mim, que sou covarde.
Um minuto, e acabou. Relógio solto,
indistinta visão em céu revolto,
um minuto me baste, e as minhas obras. (ibid., p. 402)
126
O sujeito poético não apenas presencia o mundo, mas sobre ele atua e dele sofre a di-
nâmica do existir. A vontade do mundo que nele se manifesta, força que determina os seus
movimentos e seus sentimentos, impede a expressão liberta da subjetividade. Uma necessida-
de se impõe, e o sujeito poético a ela concede o seu movimento e, em conseqüência, intensifi-
ca seu estar-no-mundo, o que “pode ser um modo de capacitar o olhar para ‘enxergar’ o outro,
afinar a sensibilidade para predispor-se ao convívio”. (MARIA, 1998, p. 17)
Ter os olhos voltados para o mundo é atitude que se traduz no “Poema da Necessida-
de”:
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO. (PC., p. 68-9)
O sujeito poético pode ou não interferir no destino do ser que tenciona no verso, pela
dramaticidade que imprime, pela vontade a que se curva. Há uma consciência de que a poesia
lhe confere um poder incomum aos homens; que o signo que se liberta, no verso, de opressões
diversas, também promoverá a liberdade. O poeta poderia salvar os homens, utopicamente.
Mas a realidade que se impõe prevê uma dinâmica destrutiva, na qual podemos reconhecer
uma certa finitude antropológica, sem que, no entanto, se vislumbre a figura do super-homem
em retorno no fim da História.
127
Michel Foucault compreende que a disposição do saber do século XIX fez surgir a fi-
nitude da existência humana, concomitantemente com a historicidade da economia e um prazo
para o fim da História. O filósofo analisa a finitude antropológica:
(...) o tempo dos calendários poderá certamente continuar; mas será como
que vazio, pois a historicidade se terá superposto exatamente à essência hu-
mana. O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de
alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca
sua manifestação iluminada. A finitude com sua verdade se dá no tempo; e,
desde logo, o tempo é finito. O grande devaneio de um termo da História é a
utopia dos pensamentos causais, como o sonho das origens era a utopia dos
pensamentos classificadores. (FOUCAULT, 2000, p. 361)
Nenhum poema nos aparece com maior expressão dessa dinâmica do que “José”, figu-
ra em torno do qual o mundo gira, mas que, embora movido por algum desejo que persiste,
não pode escapar ao reconhecimento do fim de si mesmo pelo fim do tempo:
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José? (PC, p. 106)
Toda e qualquer possibilidade de reconstituição do ser e reconstrução da vida é dire-
cionada para o tempo e o lugar da não-existência:
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
128
e tudo mofou,
e agora, José?
(...) (ibid.)
Se há uma perplexidade na figura poética composta, o José-sem nada, no leitor sobre-
vém um desencanto com o próprio sujeito poético, o qual não promove uma ação libertadora.
Talvez porque não possa oferecer o que não encontra em si mesmo:
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
(...)
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde? (ibid., p. 107)
Todavia, a angústia e o assombro não são as únicas perspectivas adotadas pelo sujeito
poético. É fato que o homem, ao par das possíveis leituras filosóficas que dele se faça e ao par
do lugar que se lhe dedique na História, surge com toda sua realidade inconteste. E o poeta
submete-o ao mundo que promove sua reificação; mas, por outra dinâmica, pode libertá-lo no
verso. Os signos de que se vale propõem recontar sua história, enfrentar o tempo que o torna
nulo, ser agente de si mesmo pelo desejo que o poema acusa.
O homem busca a completude. Ter um filho realiza-se apenas como vontade. A reali-
dade marca o vazio; o verso, a plenitude. O homem subjaz ao mundo, mas o poeta reinventa-o
pela vontade do sujeito poético, restitui-lhe a parte perdida de sua existência. Assim, na obra
Claro Enigma (1951), “Ser” constitui-se somente pelo desejo de ser, falta do que se preenche
129
no verso:
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.
Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo. (ibid., p. 254-5)
É reinventando o homem que o poeta Drummond reinventa a realidade. Se o mundo
oprime, aprisiona e esmaga o ser, é possível, através do verso, propor a liberdade do existir.
“Em todos os tons irritado, zombeteiro, sarcástico, irônico, resignado, cruel, brincalhão
Drummond fez a leitura do mundo ao seu redor”. (MARIA, 1997, p. 51)
Decalcando caracteres para redimensioná-los no real, investigando a vida conceitual-
mente ou pela observação crua dos fatos, projetando a existência, o sujeito poético drummon-
diano identifica o ser humano na poesia que expressa, antes de tudo, a essência anímica do
ser.
130
5.3 - A subjetividade como expressão estética e estilística na poesia drummondiana
Para o lado de dentro há outro mundo,
maravilhoso. É preciso explorá-lo.
A vista do artista concentra-se sobre o lápis;
este se move e a linha sonha.
Herbert Read
Pessoas, lugares, coisas e fatos formam-se como objeto na poesia de Carlos Drum-
mond de Andrade. O poeta comunica ao mundo o que vê e apreende pelo exercício constante
da observação. Sua poesia é factual e informa ao leitor sobre o que se presentifica nos versos,
quase sempre sem que haja obstáculos entre o signo e o significo depreendido.
Se inventariarmos a poesia de Drummond, veremos que sua obra é marcada por uma
inequívoca alteridade, considerando que o objeto que o autor define não se submete a inter-
pretações que desconfigurem substancialmente a matéria de que se forma. Nomes se sucedem
em rito poético regular, caminho fácil de análise. Especialmente em Viola de Bolso (1952),
Drummond homenageia personalidades diversas, identificadas nos títulos dos poemas. “Abgar
Renault”, “Jorge de Lima”, “Murilo Mendes”, “Portinari” e tantos outros têm suas melhores e
mais evidentes qualidades expressas em versos. Objetos variados também se transformam em
poemas: “Um Livro” “Um Retrato”, “Um Cinzeiro”, “Cadeira de Balanço”. E fatos e circuns-
tâncias: “Setentão”, “No Aniversário do Poeta”, “Passeios na Ilha”. O que ressaltamos, na
verdade, é um estilo literário que marcou toda a obra de Carlos Drummond. O caráter noticio-
so de sua poesia, que já evidenciamos anteriormente, conformou seus versos a uma escritura
austera, pouco afeita a excessos de linguagem.
Qualquer análise do processo estilístico em Carlos Drummond de Andrade se inicia,
necessariamente, com o estudo de Gilberto Mendonça Teles sobre a estilística da repetição.
Não recusando a evidência, reproduzimos o pensamento do teórico:
131
O objetivo da repetição é o de ativar a imaginação e levar ao lei-
tor a prolongar em si aquele instante do ato criador em que o esforço
da intuição e da inteligência pressiona o material lingüístico, amol-
dando-o ao individualismo da fala, ou do estilo. (TELES, 1970, p. 48)
Atendendo as duas propostas indicadas por Mendonça Teles, a fala e o estilo, o poema
“Censo Industrial”, publicado em Boitempo (1968-1973-1979) ? obra à qual o autor consa-
gra diversas experimentações lingüísticas ?, representa um diálogo que se enquadra perfei-
tamente na estilística da repetição:
Que fabricas tu?
Fabrico chapéu
feito de indaiá.
Que fabricas tu?
Queijo, requeijão.
Que fabricas tu?
Faço pão-de-queijo.
Que fabricas tu?
Bolo de feijão.
(...) (PC, p. 1031)
Sob essa perspectiva, o autor avança a análise do recurso da repetição na poesia drum-
mondiana, com destaque absoluto para o caráter estilístico dos textos. O crítico Silviano San-
tiago, em texto introdutório à obra completa de Drummond, destaca que o processo estético
que se exacerba, especialmente em Lição de Coisas, é decorrente de uma desilusão ideológi-
ca. (ibid., p. IV) Os poemas que compõem o livro dão conta de uma realidade que se constrói
pelo tangível da existência, e que se reconstrói nos versos pela estética drummondiana. Cons-
tata-se a busca pela origem de uma língua e de um lugar, em substituição à realidade que se
imprimia na percepção do poeta com suas marcas sócio-ideológicas:
sapopema erva de chumbo
mororozinho salvina
água redonda açucena
sete sangrias majuba
sapupira pitangueira
Maria mole puruma
puruí rapé dos índios
coração de negro aipé (ibid., p. 457)
132
A desilusão ressaltada por Santiago talvez esclareça dois caminhos poéticos que en-
contramos em Lição de Coisas. O primeiro, como já destacado, é a revelação de um mundo
que se apresenta em suas formas reduzidas, o que se explica por estar o poeta seduzido “por
um possível significado extranoticial” (ibid., p. 454) O segundo caminho poético que anali-
samos identifica a existência de uma estesia poética que altera a realidade na qual estão en-
volvidos os personagens da lírica drummondiana. O resultado, percebemos, é a reconstrução
estética da realidade, o que confere ao sujeito poético um distanciamento do objeto em foco,
estabilizando-o no campo da alteridade. Assim, figuras da vida comum desfilam no poema e
explicam o que é real, como “O Sátiro” Hildebrando; “Ataíde”, o alferes de milícias; ou “O
Muladeiro” José Catumbi:
José Catumbi
estava sempre partindo
no mapa de poeira.
Almoçava ruidoso,
os bigodes somavam-se de macarrão.
As bexigas
não sabiam sorrir.
As esporas tiniam
cordiais saudações (ibid., p. 460).
Sobre o processo estético em Drummond, Houaiss afirma:
Carlos Drummond de Andrade é consabidamente (e pior é o cego que não
quer ver) um senhor mestre da língua, cujas atualidades, mas sobretudo cujas
potencialidades explora expressionalmente com tais ineditismos e inauditis-
mos, que se lhe há de reconhecer o direito-dever de superpor-se à norma, in-
fringi-la, recriá-la, adentrando-se no sistema da língua e apreendendo deste
os filamentos, meandros e conexões potenciais, as células generatrizes, para
trazê-las à luz da expressão. (HOUAISS, 1976, p. 19)
Essa propriedade de Drummond indicada por Houaiss, a de se sobrepor às normas
lingüísticas, tornou exeqüíveis poemas de surpreendente valor estético, que transitam entre o
ludismo e a emoção, como na inusitada “Declaração de Amor”:
Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gla-
díolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula
minha boca-de-leão. Minha gérbera. (...) Violeta... Amor-mais-que-perfeito.
Minha urze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome
133
no chão de minha morte. (PC, p. 1225)
Todavia, não é a compreensão estratificada do estilo e da estética o que elegemos co-
mo proposta de trabalho. É nosso desejo identificar a carga de subjetividade que se pode im-
primir ao poema, a despeito da estesia do verso, ou, diversamente, reconhecer os mecanismos
de construção da subjetividade sob os preceitos da estética e da estilística.
Assim é que, para além da simples forma, o verso pretende alcançar, pela estética, o
estatuto da existência:
O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência? (ibid., p. 488)
Mais uma vez, Antônio Houaiss recebe-nos em sua crítica, quando considera que o lei-
tor não pode apropriar-se do objeto que se oferece no poema e interpretá-lo de acordo com
seu livre arbítrio, porque, na obra de Drummond, “se está diante de um objeto poético carre-
gado de sujeito, de todo o mundo subjetivo da Obra: só com essa carga pode ele funcionar”.
(HOUAISS, 1976, p. 25) Nesse caso, a subjetividade possível está contida pelo real que a
expressa. O verso estético é um elemento do jogo entre o que é tangível e o que é captado pela
visão subjetiva do poeta. Porque, ainda que permaneça o recurso estilístico de definir inequi-
vocamente o objeto do poema, agora vem ele adjetivado e redimensionado em propriedades
estranhas à sua existência, colhidas pela impressão do sujeito poético:
MÁRIO LONGÍNQUO
No marfim de tua ausência
persevera o ensino cantante,
martelo
a vibrar no verso e na carta:
A própria dor é uma felicidade.
(O real, frente a frente,
de perfil ou de ponta-cabeça,
tal fruto gordo colhido
e triturado, transformado,
por sobre as altas vergas que emolduram
134
a morte.)
(...)
rio arco-íris, mas tão exato
na modenatura de suas cores e dores,
que captamos a só imagem de alegria
e azul disciplinado,
lá onde, surdamente,
turvação, paciência e angústia se mesclaram.
Tão mesquinha, tua lembrança
fichada nos arquivos da saudade!
Vejo-te livre, respirando
A fina luz do dia universal. (PC, p. 479-480)
Confirmamos, portanto, o caminho de nossa análise. Muito embora o processo estético
atenda, prioritariamente, a uma exegese qualificada na construção formal do verso, o engenho
de poetas como Drummond não se restringe a interpretações estruturais. A estética não pode
ser uma matriz reducionista da prática literária, proposição que se fundamenta em teses há
muito consolidadas:
O prazer estético que anima o jogo da criação é, para Kant, puramente subje-
tivo, pois se exerce com representações e não com a realidade do objeto. Ha-
veria uma verdade estética própria da representação e que não precisa coin-
cidir com a verdade objetiva. (BOSI, 1991, p. 15)
Em Alguma Poesia (1930), encontramos um exercício de subjetividade que se ensaia
na literatura engajada e Drummond. No poema “Nota Social”, após seguidos versos em que o
mundo objetivo se revela sob breves sentenças ? mais um interessante recurso estilístico que
se repetirá por toda obra drummondiana ?, o sujeito poético cede à subjetividade que, naque-
le instante, o oprime, ainda que a construção dos versos indique uma tentativa de distancia-
mento entre o poeta e o sujeito poético:
(...)
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico. (PC, p. 20)
135
A repetição serve a um propósito maior do que a própria poesia. Reflete o estado de
ânimo do sujeito poético frente ao objeto do poema que elege. A repetição intensifica a per-
plexidade, a constatação de que tudo pode ser igual, mas o homem é “Igual-Desigual”:
(...)
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores são iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar. (ibid., p. 1207)
Repetir perguntas, “Por Quê?”, é lançar sobre o “outro” a subjetividade que não se
contém em si mesma, dúvida, amargura e angústia que se deseja compartilhar por vontade de
alento:
Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer? (ibid., p. 1242)
Por fim, destacamos mais um processo estético e estilístico que direciona a interpreta-
ção para a subjetividade poética: a rememoração dos fatos. Reproduzimos a opinião de Affon-
so Romano de Sant’Anna:
Como objetivação de um estado da consciência-memória, a poesia
drummoniana realiza a síntese do subjetivo e do objetivo. Aí se confirma que
ela é um objeto que contém outras objetos, ou ainda melhor: que ela é encon-
tro do sujeito e do objeto numa nova forma. (...) Aqui não há separação entre
sujeito e objeto, entre o interior e o exterior. (SANT’ANNA, 1972, p. 204)
Memórias de infância, memórias de família, memórias de amigos, memórias de amor.
Memórias de si mesmo. Lembrar forma-se como estilo. O sujeito poético drummondiano va-
le-se da estética para recordar o que, sendo passado, permanece presente na lembrança. A
136
“Memória” interpõe os tempos e volta em versos ritmados, breves, nos quais o sujeito registra
impressões sobre um objeto que não revela:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisa tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão. (PC, p. 252-3)
5.4 - Uma leitura dos textos de Drummond, segundo a evidência do “eu”
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso!...
Fernando Pessoa
A investigação da poesia de Carlos Drummond de Andrade sugere-nos dois caminhos
fundamentais e amplamente estudados pela crítica literária: o primeiro diz respeito à sua pro-
posta de discussão da sociedade a partir das grandes questões que a norteiam; o segundo con-
cerne a uma compreensão da realidade considerando fatos cotidianos, o que leva o leitor à
imersão direta em sua poesia, alijando-se do sujeito poético. As duas propostas devem ser
consideradas, e já foram aqui discutidas. Todavia, projetamos excedê-las e realçar a subjetivi-
dade que permeia a construção literária drummondiana. Porque, como denuncia o poema
137
“Máquina do Mundo”, inserido em Claro Enigma (1951), nem sempre o sujeito poético de
Drummond esteve a serviço da percepção e análise da realidade.
O poema comporta uma subjetividade que pode ser compreendida pela metafísica,
como sugere Alfredo Bosi:
Lendo “A Máquina do Mundo” de Carlos Drummond de Andrade, re-
cebe-se o impacto de uma narrativa de teor metafísico na qual o eu poético,
palmilhando uma estrada de Minas pedregosa, é agraciado pelo dom súbito
do universo que se abre às suas retinas fatigadas e lhe concede a visão dos
seus mistérios. À graça inesperada seguem-se a fala do mundo e a procissão
das suas riquezas. A oferta, porém, é recusada pelo viajor, que outrora já
buscara em vão o sentido das coisas, e agora, tomado de pura acídia, deixa
que a máquina do mundo se feche para sempre, tornando ele ao clima exis-
tencial do início do poema, feito de melancolia e perplexidade”. (BOSI,
1991, p. 61)
No texto, o sujeito poético caminha lentamente, quando percebe a sua integração com
o mundo, o qual se revela após ele já ter desistido dessa empreitada:
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
(...) (PC, p. 301)
O sujeito poético percebe, então, toda uma realidade que transcende / a própria ima-
gem sua debuxada / no rosto do mistério, nos abismos. (ibid.) É então que uma voz lhe garan-
te ter ele alcançado “essa total explicação da vida”. Contrariamente a uma atitude que tomaria
antes, quando o comandava um anseio de conhecer a realidade de todas as coisas ? e que se
espelharia na proposta poética secular ?, o sujeito poético declina do oferecimento, e explica:
138
(...)
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais íntima ? esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol se filtra;
(...)
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagoroso, de mãos pensas.(ibid., p. 303-4)
O poema nos revela algo que, por uma visão impressionista, já havíamos detectado: o
poeta, em determinado momento, desiste de estabelecer-se em relação ao mundo, e imerge no
seu silêncio, na sua dor, no sentimento amoroso que se deflagrará em sua poesia, marcas in-
contestes de subjetividade. Assim explicamos um caminho de labor investigativo que se afas-
ta, ainda que não radicalmente, da crítica comum à obra de Carlos Drummond de Andrade.
O problema a ser investigado, no caso de Drummond, é se a sua poesia revolucionária,
dotada de paradigmas idealistas e ideológicos, é de fato e tão-somente um real exercício de
transferência de si para o outro, ou se residiria no alicerce de sua construção poética uma
busca pela expressão de subjetividade, possível de se realizar apenas quando se abdica do
próprio exercício vital para alcançar o cerne do que está no lado contrário de sua trajetória. O
que propomos como análise é se Drummond teria realmente abdicado de sua subjetividade ao
aliar-se às tendências marxistas e realistas que vigoravam à época de sua mais extensa produ-
ção literária, ou se, ao contrário, a subjetividade que expressa no texto existe, apenas, porque
a realidade a constrói e controla. Instiga-nos a possibilidade de que, para Drummond, a subje-
139
tividade poética é imanente à realidade apreensível.
Nossa leitura não se dimensiona, necessariamente, sob o valor de conceitos críticos es-
tabelecidos ao longo de toda a análise empreendida sobre a obra drummondiana. Porém, con-
sideramos fazer parte dos estudos que intentamos uma proposta crítica já ordenada que nos
alargue a visão que temos sobre a poesia de Drummond. Assim, cedemos a uma compreensão
de Gilberto Mendonça Teles que nos parece vir ao encontro de nossos anseios.
O autor identifica dois momentos cruciais na obra de Carlos Drummond de Andrade,
que assim delimita:
Toda a sua obra obedece, de um modo geral, a dois tempos estilísticos
e se divide igualmente por eles, não descrevendo uma curva marcada por um
estágio ascendente e outro descendente. São dois estágios evolutivos que se
completam numa verticalidade bastante nítida: o primeiro termina com a Ro-
sa do Povo, em 1945, nele predominando aquele objetivismo vincado de so-
lidariedade humana, como se percebe nos títulos de obras como Sentimento
do Mundo e A Rosa do Povo; o segundo, evoluindo do primeiro, constitui a
vertente luminosa de sua obra poética, prevalecendo aqui toda a inquietação
expressiva do poeta, sobretudo em livros como Claro Enigma, A Vida Pas-
sada a Limpo e Lição de Coisas, todos eles assinalados por um sentido supe-
rior de arte, uma busca ansiosa de um universalismo estético admiravelmente
logrado. (TELES, 1970, p. 15)
Destacamos, então, duas idéias que nos auxiliam: o “objetivismo vincado de solidarie-
dade humana”, o que nos leva direto para o conceito de alteridade, e a “inquietação expressi-
va”, indubitável caminho construído pela subjetividade.
De 1930, com Alguma Poesia, a 1940, data do lançamento de O Sentimento do Mun-
do, nosso poeta passou da estética modernista a um acentuado discurso aliado aos ideais de
esquerda que desembocará, de maneira insubjugável aos falares sociais, em A Rosa do Povo,
livro publicado em 1945. Investigando esse percurso, temos de imediato a definição de um
poeta realista que encontra no espelhamento mimético da sociedade de que faz parte a sua
diretriz poética. Essa a análise mais premente da poesia drummondiana, discutida mesmo pelo
poeta, da qual não nos isentamos. Entretanto, interessa-nos, por ora, identificar marcas de uma
subjetividade intensa, expressa na poesia de viés político, visto ser corrente no processo analí-
140
tico considerar a projeção no outro uma necessária anulação de si. Cabe, no entanto, inter-
rogar se Drummond não construiu um caminho contrário, ou seja, se em sua poesia percebe-
mos que o sujeito poético não se projeta no outro, mas projeta o outro em si para ser su-
jeito.
É fato que a experiência autobiográfica presente na poesia é, em primeira instância,
exercício de subjetividade. E o próprio Carlos Drummond de Andrade deixou claro para o
leitor essa proposição (“Minha poesia é autobiográfica”.) (SANT’ANNA, 1972, p. 28) Tam-
bém não negamos a idéia de que toda expressão poética encerra uma visão de mundo que in-
sere o sujeito em cada verso. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que os discursos ideo-
lógicos de esquerda fundam-se na idéia de alteridade. Ainda que diversas análises sobre a
obra de Carlos Drummond dêem-nos conta de uma individualidade presente nos seus poemas,
mormente sejam eles de caráter impessoal ? e aí reside, segundo Affonso Romano de
Sant’Anna, um dos grandes segredos da poesia drummondiana, o “caráter altamente pessoal
de sua impessoalidade” ( ibid.) ? , buscamos a compreensão de uma subjetividade que se
intensifica quanto mais cede sua existência ao “outro”.
Não há dúvidas de que essa proposição foi plenamente alcançada por Carlos Drum-
mond de Andrade, o que atestam os estudos diversos sobre o autor. Os críticos, de modo inva-
riável, dão-nos conta de uma “proposta de escrever poemas pessoais e originais, e contradito-
riamente passíveis de serem transferidos palavra por palavra ao leitor”. (PC, p. V)
Constata-se a busca pela origem de uma língua e de um lugar:
sapopema erva de chumbo
mororozinho salvina
água redonda açucena
sete sangrias majuba
sapupira pitangueira
Maria mole puruma
puruí rapé dos índios
coração de negro aipé (ibid., p. 457)
Entretanto, para além da simples forma, o verso pretende alcançar pela estética o esta-
141
tuto da existência:
O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência? (PC, p. 488)
A realidade, ousamos dizer, não é apreendida pelo sujeito poético; ao contrário, o su-
jeito se deixa apreender pelo real circundante, o que impede uma permanência na subjetivida-
de. O sujeito poético drummondiano quer encontrar-se como sujeito em seu ato poético, o que
consegue, contraditoriamente, pela escritura da realidade. A poesia reflete os elementos exter-
nos que as retinas do poeta e a consciência do sujeito poético apreendem. O que não exclui a
condição subjetiva que permeia o texto, expressa fundamentalmente, em Drummond, pelo que
de sombrio o eu poético identifica no mundo que vê, considerando a matéria de seus poemas.
Caso fosse apenas composta pela objetividade, não seria possível ao leitor envolver-se no
arrebatamento que acomete o sujeito poético, para, com um olhar perscrutador, imergir nas
mais profundas camadas da vida. A dialética objetividade/subjetividade intensifica os códigos
propostos pelo autor. Cabe ao leitor decifrá-los e, nesse processo, decifrar também a subjeti-
vidade do sujeito poético.
O que se apresenta no poema “Sol de Vidro”, da obra Brejo das Almas (1934) é uma
impossível conciliação entre signos que nos indique precisamente a mensagem proposta. As
imagens que devoraram o poeta devoram-nos na dificuldade de apreensão do texto. Apenas a
sua subjetividade arquiteta esse entrelaçamento, porque o poema não se transfere com segu-
rança ao “outro”; todas as imagens que nele transitam dão-se, somente, na concepção única de
quem alcançou a própria subjetividade, a ela se submeteu e por ela expandiu-se em forma
poética.
A experiência da subjetividade dá-se em contato com a realidade. Há, na objetividade
toda que o poema inscreve, um incontrolável grito de subjetividade que se expressa por signos
em desequilíbrio, e assim são remetidos ao leitor, que os não define, mas também não se isen-
142
ta do arrebatamento de que se é capaz na interação com o poeta.
SOL DE VIDRO
O coração na sombra do relógio,
que será de nós, que será de vós,
as virgens passam implorando
o soldado morto na colina.
Vem de ti o rumor sem número,
pontes, archotes, o que será mais,
música e tarde para o fim,
este instante não é o soluço.
Quieto no tempo um lampião
acende as mulheres atrás dos copos
você sempre com a mesma boca
não sei por que pressentimento
acorda, Princesa, é o sol de vidro. (ibid., p. 45)
Também pertencente a Brejo das Almas, o poema “Segredo” faz o leitor aventurar-se
na busca de uma possível interpretação dos versos. O sujeito poético marca o texto por signos
de negação, mas é por eles que intensifica a subjetividade:
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
Ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça. (ibid., p. 59)
O encontro com o outro não é negado, porque é através dele que a subjetividade re-
vela-se. Como a realidade apreensível não promete o sorriso e a leve inconseqüência do viver,
o “Convite Triste”, ainda em Brejo das Almas, expressa a possibilidade única do sentir, em
143
negativo:
Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
(...)
Meu amigo, vamos cantar
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros seqüestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir. (ibid., p. 57)
O que não podemos deixar de notar ainda, na poesia de Carlos Drummond de Andra-
de, é que a sua subjetividade, muitas vezes, é contida e construída pela realidade em que se
insere o sujeito poético. Vemos um movimento poético no qual o sujeito, expandindo-se para
além de si mesmo, encontra na realidade absoluta a estrutura que controla a subjetividade, a
fim de que ela não se perca.
É característica de Drummond e da “poesia de intervenção” não fugir ao propósito de
vislumbrar o real tangível, com olhar crítico e perscrutador. Então é que se torna interessante
observar como o sujeito drummondiano submete-se à realidade que compõe em seus textos,
como se fosse ela instrumento de sua existência. Em O Sentimento do Mundo, vários são os
poemas que exemplificam uma subjetividade contida pela realidade, construída pelo que há de
apreensível na vida e se manifesta ante os sentidos do sujeito poético, desde um texto clara-
mente autobiográfico, como o é “Confidência do Itabirano”, em cujos versos o sujeito declara
ser a sua existência uma conseqüência imediata do que é a sua cidade natal (Alguns anos vivi
144
em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.) (i-
bid., p. 68) até a elaboração de uma consciência que dá conta do papel do poeta, como em
“Mãos Dadas” (abaixo transcrito), da mesma obra, poema no qual a realidade e as coisas tan-
gíveis sobrepõem-se ao sujeito. Não consideramos, entretanto, tratar-se, nesse caso, de uma
ideologia que encerre a proposta de alteridade. O que vemos é uma subjetividade que, ao
transcender, encontra no real a única via de controle, a fim de que o arrebatamento não seja
um caminho sem retorno. A questão que se coloca é se o sujeito drummondiano abre mão de
si para evidenciar a realidade, ou se, ao contrário, serve-se dela, com o intuito de não se per-
der em si mesmo:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos. (ibid., p. 80)
O sujeito poético sabe o que não é, o que não vai ser. É a realidade presente que lhe
permite compreender a própria subjetividade, que não se constitui como fantasia do real. Pelo
contrário, o que se presentifica em sua vida é o que o poeta presentifica na vida:
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente. (ibid.)
Ao poeta que enxerga de forma tão clara a realidade, que às vezes se detém na mono-
tonia de “uma pedra no meio do caminho”, cabe fazer a ressalva de uma subjetividade que se
experimenta no diapasão da existência, pois que tudo vibra para além do tangível. A imagem
única da pedra compreende uma realidade que se desenha simbolicamente: uma pedra, um
caminho e as retinas que absorvem a imagem levam o sujeito ao cerne da realidade construída
145
no fazer poético.
Porquanto seja a construção da realidade um ato subjetivo, e ainda que seja a pretendi-
da compreensão do “outro” e do real a verdade de que se nutre a existência do poeta, há ins-
tantes em que um movimento multiplicador de si mesmo leva a criação poética a novamente
buscar a exacerbação do sujeito.
É o que depreendemos da leitura do poema “Um homem e seu carnaval”, de Brejo das
Almas. Percebemos um eu” que se fala. A poesia não pode recorrer, agora, ao mundo exteri-
or, pois atende a um apelo maior do que as exigências do mundo:
Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia. (ibid., p. 46)
As coisas reais perdem sua função primeva e assumem novas significações no mundo
subjetivo construído pela poesia:
O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las. (ibid.)
Assim, experimentando e vivenciando todas as coisas, o sujeito poético descortina-se
frente ao seu leitor:
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
146
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços lagos espaços
eternamente. (ibid.)
Em presença do objeto, o poeta vivencia o conhecimento do real. O que está fora de si
exige ser compreendido e falado. Nesse momento, diante do que se estabelece como “outro”,
o sujeito se lança no risco da alteridade. Todavia, investigando o que deve ser dito como a-
lheio a si, o poeta entende que ver o que está fora só é possível se ele conseguir alhear-se de
sua subjetividade. Assim, transcendendo a si mesmo, vive o arrebatamento da emoção especí-
fica que o objeto lhe proporciona. E compreende, enfim, que essa pode ter sido a sua máxima
experiência de subjetividade. Essa transcendência subjetiva é o que identificamos no poema
“Coração Numeroso”, inserido na obra Alguma Poesia, cujo título já indica a impossibilidade
do sujeito poético de permanecer em uma só estância de existência. O texto se inicia como
expressão da realidade: Foi no Rio. / Eu passava na Avenida quase meia-noite. (ibid., p. 20)
Não demora, entretanto, a revelar que o sujeito do poema permite-se todas as experiências
subjetivas que o mundo pode lhe oferecer: Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas nu-
meráveis. (ibid.)
O poeta estabelece um jogo no qual a realidade é absorvida pela visão artística, que
nada mais é do que expressão do eu; projeta o espaço de sua emoção no espaço real que o
circunda:
(...)
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas. (ibid., p. 20-21)
A realidade passa, logo, a ser transpassada pela experiência subjetiva, o que se revela
pela sintaxe desordenada, pelas interseções, pelas imagens reinventadas, pela vontade de re-
núncia denunciada no verso:
147
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso. (ibid., p. 21)
A realidade impõe-se na percepção do sujeito, ou a subjetividade integra-se ao real? O
sujeito poético cede inteiramente ao que vê e o comove, e revela-se:
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. (ibid.)
Expresso dessa forma o eu, sem subterfúgios, resta ao sujeito do poema fundir-se
com a realidade que o cerca:
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor. (ibid.)
Ao realizar no poema a sua subjetividade, o artista como que contempla a si mesmo.
Entretanto, confunde o leitor quando estabelece a complexa relação entre o “eu” e o “Outro”
que ordena em si mesmo:
Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se não sei decifrar
minha escrita interior?
(...)
A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco.
(...) (ibid., p. 1237)
Cabe ao leitor, assim, a percepção desses dois estados que se revelam tanto em sinto-
nia quanto em dissonância. Porque, da mesma forma que o sujeito vê a si mesmo e estranha,
vê o mundo e o estranha; mas é nesse estranhamento que se intensifica, muitas vezes, a subje-
148
tividade que se conforma ao texto. A conciliação entre as percepções do “eu” e da realidade
circundante não é, portanto, a única via de realização da subjetividade no texto poético
drummondiano; não raro, a subjetividade se funda em paradoxos e contraposições.
No poema intitulado “Sentimental”, de Alguma Poesia, opõem-se no texto o mundo
subjetivo e o mundo objetivo, quando o sujeito poético tenta desenhar no prosaico prato de
macarrão o nome da amada. O nome não se completa. E a voz daquela a quem dedicava o
suave verso traz para a insuavidade da vida o sujeito em contemplação. Mas, contraditoria-
mente, é nesse movimento que ele escapa do seu identificável estado de subjetividade e ob-
serva todas as coisas circundantes. O sujeito poético desiste da ação subjetiva, a fim de que o
real prevaleça e a missão poética maior seja a de compreender a humanidade. O que, de resto,
é um movimento constante na obra de Drummond: a realidade contém a subjetividade que se
representa no indivíduo, a fim de que o mesmo possa expandir-se para além de si mesmo,
lançando-se no outro, consciente de sua missão como artista:
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.” (ibid., p. 16)
Nos versos do poema “Mundo Grande”, de Sentimento do Mundo, expressa-se muito
mais claramente uma individualidade, visto que o sujeito poético analisa sua relação com o
mundo exterior:
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
149
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos. (ibid., p. 87)
A relação do mundo interior com o mundo exterior propõe o equilíbrio do sujeito, na
medida em que espelham a mesma propriedade:
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande. (ibid.)
O sujeito poético comunica-se com um “tu” não explicitado. Justifica sua inabilidade
de acolher todo o mundo em si mesmo. Até então, seus argumentos orientam-se por uma sa-
ber racionalizado, científico:
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem sem que ele estale. (ibid.)
É então que, de forma não intuída pelo leitor, o sujeito poético altera o espaço de co-
municação entre ele e o mundo externo, e todo vestígio de racionalidade se desfaz. Ainda na
relação com o “tu” estabelecido, a natureza substitui os códigos da civilização e instrui uma
nova perspectiva, muito mais subjetiva:
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos voltarão? (ibid.)
A subjetividade instaura-se definitivamente pelo processo de auto-análise. Os signos
150
não são mais contidos e o sujeito poético expande-se na revelação de si mesmo:
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.) (ibid.)
Por fim, os códigos que se apresentam no poema dão conta de um espaço não real, no
qual o sujeito poético transcende sua subjetividade, utilizando como meio de transporte a me-
taforização da realidade:
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convidando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor. (ibid., p. 88)
Transcender a si mesmo leva o sujeito poético a transpor os limites da existência real,
o que o possibilita reinscrever-se como um demiurgo:
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
Ó vida futura! nós te criaremos. (ibid.)
O poeta Carlos Drummond de Andrade percorreu todos os caminhos: objetivida-
de/subjetividade, realidade/sonho, contenção do signo/orgia estética. Desvendar um pouco o
seu fazer poético só foi possível à luz das teorias propostas, opção feita entre muitas outras
apesar da certeza de que todas ? se fosse possível utilizá-las de uma só vez ? permaneceri-
am insuficientes.
151
6. UM PAÍS NA VOZ POÉTICA DE JOSÉ CRAVEIRINHA: O EU E O “MUITOS”
6.1 - A construção do sujeito pelo apagamento do “outro” invasor
O macaco mora na rocha
O negro no funco
O mulato na loja
O branco no sobrado
Um dia virá que o macaco corre com o negro do funco
O negro corre com o mulato da loja
O mulato corre com o branco do sobrado
O branco foge para a rocha e cai no mar.
Anônimo
José Craveirinha é uma das vozes mais expressivas da africanidade. Moçambicano do
bairro de Mafalala, a experiência de vida vivida nos musseques estendeu-se para as institui-
ções de ensino do período colonial, alastrou-se pelas prisões e representou-se em páginas de
livros que revelaram, em forma de poesia, a guerra colonial, o massacre de povos africanos e
a resistência moçambicana. Craveirinha evidencia, em sua existência e em seus poemas, o
“outro”, que se representa, simbolicamente, como nação: “Bom, a partir de uma determinada
altura eu tive uma consciência política, uma consciência da África, uma consciência do país.
É uma opção. Quando opto por Moçambique, eu estou a optar por África”. (CHABAL, 1994,
p. 98) Tal posicionamento alia-se aos movimentos político-ideológicos que atuavam sobre a
produção literária e jornalística de intelectuais de diversos países:
À semelhança do que aconteceu com outros escritores de sua geração, José
Craveirinha procurou dar expressão técnica à realidade produzida pelo sis-
tema colonial, principalmente à realidade do mundo suburbano, em que o
bairro da Mafalala figurava consigo. Esta tendência foi sublinhada com a-
152
proximação a movimentos e correntes literárias cuja seção se fazia por via
temática e ideológica, tendo por substrato as aplicações da filosofia marxista.
(MANDONÇA, LABAN, 2008)
Sob esse preceito, Craveirinha estabeleceu parâmetros e fronteiras artificiosas da iden-
tidade, atendendo ao estado de exceção em que se encontrava sua gente. Por essa via, alguns
princípios nortearam a sua escritura e a formação de sua subjetividade:
Os termos, os traços da identidade são simples e contundentes, claros
e incisivos: o saber-se outro como estratégia de luta. Ou seja: há um saber do
externo e do interno de si, que, para o negro, se ergue como estratégia na
guerra das linguagens. É uma estratégia poderosa, visto que reivindicada no
Tempo e no Espaço imemoriais do inconsciente. (SILVEIRA, 1995, p. 188)
Essa transferência de Moçambique a África, do homem individual ao ser coletivo tem
origem nas ideologias forjadas pela necessidade de construir a resistência. Quando entramos
em contato com a obra de Craveirinha e, antes de tudo, com sua biografia, temos a impressão
de que renunciar ao “eu” para destacar o “outro”, ou, mais adequadamente, construir o “eu” a
partir do “outro” constituiu-se como única alternativa de existência. Filho de pai branco por-
tuguês, ou como aparece nos textos, algarvio, e de mãe negra moçambicana; transitando entre
o espaço urbano colonial e as cubatas; agindo, menino ainda, como herói americano, mas e-
xaltando-se, homem feito, na imagem ancestral; expressando-se em língua portuguesa, mas
sobrelevando a palavra ronga, Craveirinha aprendeu, desde seu primeiros anos de vida, a ser
um “outro” sem se dar conta do que viria a constituir o “eu”. O que, ademais, é uma condição
do homem africano, a qual discutiremos oportunamente. Destaque-se, também, que a oposi-
ção, ou, por vias históricas, a conciliação entre o “eu” que ainda se estranha e o “outro” torna-
se mais emblemática quando entendemos que esse “outro” representa “muitos”. É todo um
país, é toda uma nação que precisa da voz poética de Craveirinha. O “outro” que se apresenta
no poema deve ser sempre multiplicado, seja ele homem, mulher ou criança; venha de que
etnia vier; tenha os temores e as esperanças que tiver.
O sonho de liberdade de José Craveirinha não esmorecia em dúvidas. Não planejou
153
sua vida como um revolucionário: fez-se revolucionário; não pensou nas conseqüências dos
atos de vontade: foi preso e torturado. Talvez Craveirinha nunca tenha elaborado uma análise
distanciada daquele período de guerra colonial. Os “outros”, muitos, que continuaram a viver
dentro dele, quando a História dava sinais de mudança, ainda falavam coisas que poucos ou-
viam: lamentos, gemidos de fome, desesperanças.
Aos analistas, as análises. Incômodas, mas necessárias:
A luta anticolonial foi impulsionada por ideologias políticas elabora-
das pela vanguarda dessa luta e que, se não atingiram os camponeses por não
lhes dizer respeito, empolgaram as camadas intelectuais e boa parte das mas-
sas urbanas, a quem aliás eram dirigidas. Essas ideologias, como a negritude
e o pan-africanismo, foram fruto da dominação colonial. Foram uma respos-
ta a ela. Ao ferrete da inferioridade biológica do negro e da inexistência na
África de uma civilização anterior à ocupação européia ? afirmações bási-
cas da ideologia colonial ? havia que se contrapor uma ideologia de afirma-
ção e demonstração dos valores de civilização de todo um continente, mais
ainda, de toda uma raça. Era necessária uma ideologia transtribal, pan-étnica,
que englobasse e unisse a todos, especialmente aos africanos que já haviam
assimilado uma boa dose de cultura européia, melhor dizendo, da ideologia
dominante do colonizador.
30
(CHALIAND, 1982, p. 14)
Apesar das críticas que se façam ao processo de resistência promovido pelos intelectu-
ais negros ou de origem negra, por distanciamento no tempo, não se pode negar o êxito da
ação revolucionária. Isto porque foi no campo da cultura que a revolução se desenvolveu,
visto que todos os outros espaços de resistência haviam sido aferrolhados pela ditadura salaza-
rista. Mas a procedência da luta, a força das lideranças e o ânimo da palavra não foram total-
mente negados:
Tendo eliminado todos os outros campos onde seria possível a elaboração de
um projeto político ? associações, sindicatos, jornais, partidos ? os coloni-
alistas foram obrigados a constatar que não podiam controlar a totalidade do
campo cultural. Razão pela qual os jovens dirigentes políticos começaram
quase todos por ser escritores: antes de passar à prática, foram obrigados a
30
Consideramos procedente esclarecer que a referência utilizada cabe perfeitamente no propósito para a qual foi
destacada, por sua síntese, mas o texto prossegue como crítica ao movimento revolucionário. Diz ainda o autor:
“A negritude não era sensível ao camponês que, apesar da dominação colonial, havia preservado, numa encarni-
çada resistência, os seus valores étnicos, mas sobretudo aos citadinos, aos exilados nas metrópoles, àqueles que
precisavam de um ‘retorno às fontes’. Não foi por acaso que o movimento da negritude nasceu em Paris, no
início da década de 1930. (...) A negritude caducou com a causa que lhe deu origem: a ideologia racista primária
do colonialismo. Hoje é uma ideologia a serviço exclusivo das elites que a produziram, assim como outras ideo-
logias assemelhadas: a ‘autenticidade’ zairense, por exemplo ”. (CHALIAND, 1982, p. 14-5)
154
escrever a teoria da prática possível. (MARGARIDO, 1980, p. 21)
O percurso histórico e literário de José Craveirinha é o mesmo trilhado por outros poe-
tas africanos que se expressaram no período da guerra colonial. A escritura projetada atrás dos
muros da intolerância, da violência e da tentativa de apagamento cultural tem sempre o mes-
mo tom: a luta contra o colonizador, a valorização das raízes culturais negras, a transformação
da África dominada na África livre. São caminhos comuns a todos, mas, como vimos estu-
dando, a cada um coube traçar as trilhas e ordenar os passos de acordo com a sua própria
consciência psíquica, com a justa apreensão da realidade, com o signo revolucionário que
melhor lhe conviesse. E é assim que vemos, em Craveirinha, mais particularmente, uma pro-
posta de identificação do “outro” e de afirmação do “eu”. É por essa condição histórica e so-
cial que a poesia de Craveirinha passa a representar múltiplas faces de um só problema: o da
alteridade em confronto com a subjetividade. Detecta-se, então, no fazer poético de Craveiri-
nha, um movimento dinâmico que elabora várias faces de uma mesma relação entre o “eu” e o
“outro”, o qual, em um primeiro momento, se traduz como “nós”. Uma só ideologia constrói
quatro topoi discursivos: a poesia do “eu” que procura destruir o “outro” exógeno; a poesia do
“outro” incorporado ao “eu”, pela qual o sujeito do poema investe-se dos muitos objetos que
tematiza; a poesia do “eu” em si mesmo, biográfica, em cujos versos o poeta-homem Cravei-
rinha, muitas vezes Zé, revela-se ao leitor inequivocamente; e, finalmente, a poesia do “eu”
que reconhece em si mesmo, ainda que forçosamente e não sem sofrimento, a presença eterna
e indivisa do “outro”. Na África, em Moçambique de Craveirinha, foi proposta, historicamen-
te, uma revolução; dessa revolução fez-se a palavra poética; da palavra poética, a luta e a es-
perança. Talvez que os poetas africanos entendessem o que propõe Octavio Paz em seu estudo
sobre os signos «revolta», «revolução» e «rebelião» e sua aplicação literária:
Revolução é uma palavra que contém a idéia do tempo cíclico e, em
conseqüência, a de regularidade e repetição das mudanças. Mas a acepção
moderna não designa o eterno retorno, o movimento circular dos mundos e
dos astros, e sim a mudança brusca e definitiva na direção dos assuntos pú-
155
blicos. Se essa mudança é definitiva, o tempo cíclico se rompe e um novo
tempo começa, retilíneo. A nova significação destrói a antiga: o passado não
voltará e o arquétipo de suceder não é o que foi e sim o que será. Em seu
sentido original, revolução é um vocábulo que afirma a primazia do passado:
toda novidade é um regresso. A segunda acepção postula a primazia do futu-
ro: o campo de gravitação da palavra se desloca do ontem conhecido ao a-
manhã por conhecer. (PAZ, 2005, p. 265)
Assim, as literaturas africanas se consagram como discurso em que o “eu” e o “outro”
fixam a trajetória da africanidade. A poesia, em si mesma, já faculta ao escritor o trânsito en-
tre a subjetividade e a alteridade, como destaca Ruy Duarte de Carvalho:
Ora é sabido, julgo, embora estes sejam os domínios que eu prefiro delegar à
ciência dos analistas da coisa literária, é sabido, dizia, que o processo de in-
dividuação poética implica a descoberta dos termos possíveis de uma trans-
ferência de captação e de projecção das experiências de que se urde o conte-
údo subjacente a qualquer produção literária disponibilizada e tornada públi-
ca. São as questões da outridade poética, da capacidade ou da possibilidade
de assumir e veicular como suas as percepções do outro, do outro em si
mesmo ou do “OUTRO”, com letra grande, em que se explica ou refaz o
“EU”. (CARVALHO, 1995, p. 74)
O movimento poético africano, num primeiro momento, dedica-se à escritura que pre-
tende eliminar o processo de reificação em que se encontra o homem colonizado; nesse caso,
é preciso destruir todos os caracteres do “outro” colonizador e invocar, do fundo da consciên-
cia ancestral, a voz africana. O que repercute no verso, agora, tem o sabor da vitória sobre o
“outro” e da valorização do “eu”. Frantz Fanon compreende, assim, este processo histórico:
No decurso da luta, a nação dominadora tenta reeditar argumentos ra-
cistas, mas a elaboração do racismo revela-se cada vez mais ineficaz. Fala-se
de fanatismo, de atitudes primitivas perante a morte, mas, uma vez mais, o
mecanismo doravante deitado por terra já não responde. Os imóveis de antes,
os cobardes constitucionais, os medrosos, os inferiorizados de sempre, cris-
pam-se e emergem eriçados. (FANON, 1980, p. 48)
O conhecimento da história da África evidencia um problema de identidade que de-
vemos discutir, a fim de compreender os caminhos da alteridade e da subjetividade na poesia
de José Craveirinha. A presença do colonizador português em Moçambique, como nos demais
países africanos colonizados, promoveu, pela intolerância, a imposição do medo e a humilha-
156
ção, a inferiorização da raça negra frente à raça branca. Muitos são os autores que se dedicam
ao assunto, mas destacamos Manuel Ferreira:
O colonialismo, todos sabemos, é a negação da personalidade do Outro. Em
todos os aspectos. Para além da repressão individual, da exploração econó-
mica, da negação do sentimento e da consciência nacionais, projecta a ideia
de uma pátria outra. Ele, o colonialismo, nega ou reprime a cultura autóctone
e obriga à cultura metropolitana. (...) O colonialismo, de caso pensado ou por
força do seu sistema interno, despersonaliza o colonizado, deprime-o, des-
trói-lhe a imagem que ele forma do seu universo singular, coisifica-o e não
lhe permite que ele se torne sujeito da história. Cria-lhe o complexo de infe-
rioridade à sua cultura, deforma-o, aniquila-o como cidadão africano. (FER-
REIRA, 1989, p. 29)
Dois processos de formação de uma nova configuração social, assim, vão ser coloca-
dos em curso: a aculturação ? que representa a aniquilação da identidade nativa ? e a assi-
milação ? posta em prática a partir, principalmente, da adoção da língua do dominador ?
através do que serão assumidos os valores culturais do “outro”. Em um primeiro momento, o
homem africano, intelectualizado pela política colonial, ou seja, que atenda aos interesses do
colonizador, não se dá conta da extrema violência a que é submetido. Pelo contrário, até se
engrandece por partilhar com o estrangeiro a sua cultura exógena. O processo de inferioriza-
ção do negro ? e de aceitação, por parte do negro, dessa pretensa inferioridade ? tem ori-
gem em um veemente discurso colonial que lança sobre a raça negra estereótipos que se con-
solidam em práticas violentas de alheamento social. Todavia, esse discurso se realiza pela
dissimulação. O governo ditatorial português investiu contra o negro a sua cultura européia
sob a égide do respeito ao africano, desenvolvendo o discurso de “integração nacional”. É
assim que se forma uma instável compreensão de ser africano, aquele que transita entre duas
fronteiras por sua condição de assimilado:
Sabemos que “assimilado” é um indivíduo que se encontra entre dois
mundos. Desenraizado, sem laços que o unam ao seu povo, sem a sua língua,
sem os meios de realizar a sua vida conforme a sente, não se encontra tam-
bém no mundo europeu, cujos costumes adoptou, cuja língua fala, cujos há-
bitos pratica, sem que todas essas características culturais sejam de facto
sentidas, sem que façam parte do seu eu. Pratica-as muitas vezes com repul-
sa. É o homem marginal dos antropólogos, tendendo a constituir um agru-
pamento isolado, culturalmente mestiço, flutuante entre dois povos, entre
157
duas culturas, aos quais não se pode ligar. (NETO, 2000, p. 52)
Compreender as camadas profundas desse processo colonial possibilita uma consciên-
cia mais clara das conseqüências, previsíveis e imprevisíveis, que hoje determinam o devir do
homem negro. Desvendar esse devir é uma proposta de Homi K. Bhabha:
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma popula-
ção de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Apesar do jo-
go de poder no interior do discurso colonial e das posicionalidades deslizan-
tes de seus sujeitos (por exemplo, efeitos de classe, gênero, ideologia, for-
mações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e assim por di-
ante), estou me referindo a uma forma de governamentabilidade que, ao de-
limitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas de
atividade. (BHABHA, 1998, p. 111)
À margem da existência estava o colonizado; e vivenciando, ainda, uma dramática in-
fixidez do ser, os mestiços começavam a “incorporar, assimilando-os, os valores do coloniza-
dor, questionando seu saber autóctone que passava a perceber como um menos-saber”. (PA-
DILHA, 2007, p. 101) Todavia, a inevitável conscientização de que se é colonizado e, como
tal, muito diferente do branco, não tarda a se manifestar. Os negros ? e mesmo os mestiços,
como Craveirinha ? assumem a integralidade de sua raça e o direito de exaltar suas caracte-
rísticas inatas. Nessa fase, dois espaços aparentemente opostos vão se integrar em um só pro-
jeto de libertação das amarras coloniais, a escola e a prisão, assim entendidos por Salvato Tri-
go:
A Escola e a Prisão foram duas instituições de grande vali-
mento para o regime colonial. Na escola, procurava-se dominar espiri-
tualmente os colonizados pelo apagamento dos seus valores culturais e
civilizacionais, pelo banimento da sua língua, pela niilificação da sua
história. (...) Na Prisão, pretendia-se amedrontar, pela violência física,
a resistência dos que não aceitavam a opressão colonial e tinham a co-
ragem de dizê-lo.
Mas essas duas instituições, pretensamente aliadas do regime
colonial português, são também, e sobretudo, muito úteis aos coloni-
zados, porque elas permitir-lhes-ão desenvolver a consciência política
e lutar, cada vez mais, pelos seus direitos. Paradoxalmente, o regime
colonial português criava as armas da sua própria destruição. (TRIGO,
s.d., p. 148)
158
A resistência ao colonialismo organiza-se em movimentos. Fugindo ao massacre de
uma identidade colonial que se presume superior, o homem africano propõe a construção de
ideais que, por força da guerra, exigem a anulação da subjetividade, a fim de que os pressu-
postos da luta pela liberdade possam prevalecer sobre propostas individuais. As identidades
étnicas são contidas, esvaziando o significado dos elementos culturais desenhados pela escari-
ficação nos rostos. As línguas diversas calam-se para deixar falar a língua do colonizador. O
que pareceria, em um primeiro momento, alienação, nada mais é do que a semente da luta.
Não abdicando da compreensão ideológica na poesia de Craveirinha, retomamos Ba-
khtin e seu estudo sobre marxismo e filosofia da linguagem. Compreendendo que o signo “re-
sulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo
de interação” (BAKHTIN, 2004, p. 44), o autor argumenta que a relação entre o ser e o signo
se estabelece na ordem de valor ideológico que se determine por um consenso social e que
tem como característica sua inserção na luta de classes:
O ser, refletido no signo, não apenas dele se reflete, mas também se
refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O
confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade
semiótica, ou seja: a luta de classes.
Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segun-
do termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código
ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de
uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico con-
frontam-se índices de valor contraditório. (ibid., p. 46)
É assim que, sem interferir no léxico da língua portuguesa, sem alterar a sintaxe dos
enunciados, sem desestruturar a morfologia; é assim que, utilizando a mesma língua do colo-
nizador, Craveirinha comunica ao “outro” estrangeiro sua vivência, indicando que ele, o “ou-
tro”, não se identifica com sua ideologia. O “eu” se autentica no signo estrangeiro, desvane-
cendo o “outro”:
CANTIGA DO BATELÃO
Se me visses morrer
os milhões de vezes que nasci
159
Se me visses chorar
os milhões de vezes que te riste...
Se me visses gritar
os milhões de vezes que me calei...
Se me visses cantar
os milhões de vezes que morri
e sangrei...
Digo-te irmão europeu
havias de nascer
havias de chorar
havias de cantar
havias de gritar
E havias de sofrer
a sangrar vivo
milhões de mortes como Eu!!! (OP, p. 35)
O poeta/sujeito poético enfrenta as dificuldades impostas pela língua dominadora, não
no sentido de elaboração do enunciado, com seu léxico e sua sintaxe, mas pelas fronteiras
ideológicas que se apresentam ao tentar, o homem moçambicano, se expressar em uma língua
que não o identifica com a nação moçambicana:
Aqui estou neurasténico
como um cão
danado a lamber a salgada
crosta das velhas feridas.
Em que língua
e com que rosto
aos meus filhos órfãos de pai
eu vou dizer que esqueçam? (C1, p. 56)
Desenvolve-se, no discurso de resistência, a consciência de que se apossar da língua
do “outro”, manifesta pela escrita, não representa passividade, resignação e entrega. O que se
propõe é a transformação da língua do “outro” pelas identidades negras que se expressam pela
oralidade. Assim, o escritor africano propõe a transfiguração da arma do “outro” ? a escrita
? em arma contra o “outro”, o que expressa, em sua prosa poética, Manuel Rui:
Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do
outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto.
Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um
160
texto escrito meu, da minha identidade.
31
Do aprendizado e domínio da língua portuguesa e da dor que, ao invés de calar, faz
gritar o escritor africano, surgem obras que vão expressar um discurso de revolta semeador da
liberdade. Agostinho Neto, António Jacinto e José Craveirinha vão escrever, por detrás das
grades, apesar do sofrimento físico e espiritual imposto pelo colonizador, versos que expres-
sarão as dualidades que vive o africano: morte/vida, dor/esperança, aprisionamento/liberdade,
vergonha/orgulho. Tem início uma transformação histórica que se dá pela linguagem: “Falar é
poder usar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de uma ou outra língua, mas é sobretudo
assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. (FANON, 1983, p. 17) Inverte-se o
processo de alteridade. O “outro” que se pensava ser, por aproximação ideológica, agora pre-
cisa ser eliminado para que o “eu”, ainda desconhecido, possa emergir da ancestralidade e dos
elementos genesíacos. No contra-espelho da colonização, o homem africano, agora em posi-
ção inversa, vê refletido o rosto que ele precisa eliminar para que a excelência de sua imagem
possa se fazer valer. A literatura será, assim, o instrumento de (re)construção do “eu”. É pos-
vel narrar o “eu” africano ? o que representa, a priori, narrar um “outro” também africano
que se valida como “eu” na conjugação ancestral e nacionalista ? narrando a si mesmo. Con-
sidera-se que todas as experiências convergem para uma mesma experiência fatal: a de ser
homem africano, negro e colonizado. E é a partir dessa consciência que será possível destruir
o “outro” invasor.
Esse princípio, que entendemos como o logos da existência africana em um determi-
nado momento histórico, o da colonização, promove um discurso vinculador das formas e dos
conteúdos, um discurso de unidade.
A língua portuguesa aprendida nas escolas coloniais estava repleta de lacunas. Havia,
no cerne do léxico estrangeiro, vazios que poderiam ser facilmente preenchidos por uma ideo-
31
Comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra. São Paulo, Brasil, 23/05/1985.
161
logia que se forjasse no seio da revolta. Aí está o campo fértil do dizer literário, de uma escri-
tura que nasce da ausência, da vontade de dizer e não ter como. O escritor africano é, enten-
demos, um “sujeito fundante” na expressão de Michel Foucault, “encarregado de animar dire-
tamente, com suas intenções, as formas vazias da língua; (...) que, para além do tempo, funda
horizontes de significações que a história não terá senão de explicitar em seguida”. (FOU-
CAULT, 1999, p. 47)
Houve, sem dúvida, um equívoco grave no sistema colonial português ao impedir o
uso da língua autóctone, pois acabou por fortalecer os laços do homem africano com suas
origens, representadas pela língua emudecida. Com isso, essa mesma língua vai ser instru-
mento de revolução. Por outro lado, não se pode negar a perda que sofreu o africano por ter se
afastado de sua língua-mãe, como lamentou Craveirinha, ao constatar que não dominava a
língua ronga:
Foi a primeira língua que aprendi e que hoje não domino. Mas também por
culpa da negligência dos missionários e da presença portuguesa, que não
considerou isso importante. O não falarmos outra língua, principalmente a
língua materna, a língua da terra, é sempre uma perda, é sempre uma perda,
porque ainda há muitos que falam e só transmitem os seus conhecimentos a
partir dessa língua. Portanto, eu a gostaria de dominar. (MENDONÇA, LA-
BAN, 2008)
Esses “vazios” da língua portuguesa serão preenchidos tanto pela palavra ronga quanto
pelas palavras auto-referenciais, tradutoras das experiências vitais do sujeito poético. Seme-
lhante à antropofagia modernista brasileira, Craveirinha irá deslocar o “outro” de seu espaço
de permanência africano, dono que se sentia do alheio, para, lentamente, porque pela Palavra,
ocupar o território de sua existência coletiva.
O escritor africano veicula na língua do colonizador os elementos que se colocarão
contra o colonizador. Se, a princípio, a língua o dominava, com o processo de conscientização
política, ele entende que pode dispor, como quiser, do sistema lingüístico que o havia lançado
para longe de si mesmo. Craveirinha reflete: “Uma língua não pode corresponder a uma pá-
162
tria; mas pode ser um grande lugar de abrigo”. (ibid.)
Conhecendo a língua do “outro”, é possível, enfim, dar a ela o tratamento que se qui-
ser para que se elabore em matéria poética:
ANTI-LIRISMO INÚTIL
Não alfabetizes as palavras.
-as uma por uma, meu amor,
e solda o sentimento ao que elas
juntas e despidas te dizem.
Lindo o verso
faz-se do alfabeto momentâneo
que desejamos liricamente
folheando o livro dos sinónimos.
Mas o poema
esse organiza ou ressuscita
visceral consoante a humildade
com que somos mexoeira do fértil chão
o legível som exterior do xitende
o plasma longínquo dos tambores
ou a espancada
consciência do homem vivo. (PP, p. 43)
Em Poemas de Prisão (2004) ? livro que reúne textos provavelmente escritos na pri-
são e no Hospital Psiquiátrico do Infulene, constantes do Diário de José Craveirinha, entre os
anos de 1965 e 1967 ?, o “eu” africano/moçambicano se narra minuciosamente para eliminar
o “outro”. Concebidos sob as diversas dores resultantes da condição de ser preso, os poemas
não negam ao autor o direito pleno ao exercício do “eu”: sofro, amarguro, calo, grito, sonho,
espero. Os signos, em dicotomia, referenciam toda suscetibilidade do homem que se enxerga
entre grades e para além delas, porque a vida lateja no espaço representativo da não-vida:
A VIDA
A vida
órfã de sempre
-me em cada verso
uma veia esticada em mim
a retinir poesia.
Deus deu-me
esta arte mínima
de confessar as coisas
dizendo tudo a fingir.
163
E desta dádiva me sirvo
polígamo de nostalgia. (ibid., p. 30)
O “outro” se evidencia como o que está no espaço fora da vivência do “eu”. Com
menções claras ao mundo real, o poeta/sujeito poético distancia-se daquele que o submete,
mas, invertendo o processo, torna-se insubmisso à realidade pelo discurso ideológico que se
fortalece na poesia:
ANTE-JULGAMENTO
Já me sei condenado
antes de julgado
não pelo pouco que fiz
mas pelo muito que amo ser.
De outro modo
como gerar tanto ódio
a quem nada me diz
ou muito pelo tanto
que um homem sempre é
apenas ele se criou.
Não devaneio
orgulhoso ou louco.
Amam-me os que não temem
temem-me as consciências dos outros
imenso porque são pouco.(ibid., p. 31)
Fátima Mendonça, responsável pela organização do livro, registra, em nota introdutó-
ria, um alerta ao leitor para o fato de que a estética dos textos não deve minimizar o horror da
cela, espaço de criação poética:
Este processo de sublimação da realidade, em direção a outras dimensões do
Ser, tão peculiar na poesia de José Craveirinha, faz com que estes textos am-
plifiquem o eco de múltiplas e dolorosas outras experiências, transformando
o eu autobiográfico numa entidade sem referência que, exprimindo a subjec-
tividade universal do lirismo, permite que qualquer leitor nela se possa inte-
rar. (ibid., p. 14)
Craveirinha poeta, Craveirinha partícipe de um movimento revolucionário, não se ilu-
de: o “outro”, muitas vezes, pode ter o mesmo rosto, a mesma voz e a mesma ancestralidade.
Mas preferiu construir uma história diversa. O sujeito lírico reflete, irônico e amargurado, o
164
processo político que se engendra em seu país:
ONDE É QUE ESTÃO OS MEUS GRANDES AMIGOS...?
Onde é que estão os meus grandes amigos do tempo em que eu
era o José Craveirinha e não o preso vigiado pela PIDE? Onde é
que estão eles?
Não me arrependo de tudo quanto fiz ou dei para bem dos outros.
Só me custa ter sido tão pouco que não foi o suficiente para que
lembrassem de retribuir com um bocadinho que fosse para valer
à minha família.
(...)
-me ganas de riso essa peça que me preguei a mim mesmo:
Preso político.
Um gajo metido em revoluções, reuniões pela calada,
bombas de relógio, metralhadoras, minas e mapas dos quartéis.
Só falta um helicóptero e um submarino e um emissor-receptor.
Enfim! Uma anedota. (ibid., p. 50)
Pela proposta literária de se narrar e, assim, ideologicamente, eliminar o “outro”, Cra-
veirinha não omite dores, indignações, impressões do real que o esmaga. A dolorosa experi-
ência de estar preso leva-o a um processo de subjetividade que não se contém nos espaços da
razão e da consciência do real. Mas o sujeito poético, mantendo a lucidez, ainda estabelece a
diferença entre o “eu” e o “outro”:
O HOSPITAL DO INFULENE É ISTO?
O hospital do Infulene é isto?
Estarei doido? Com que então electrochoques?
Não quero ficar aqui. A sensação de prisão amarfanha-me
duplamente.
(...)
Não quero ficar aqui. Há mil avisos de que os nervos não resistirão
à tensão e estalarão como aramezinhos oxidados.
E que eu estou todo oxidado.
Molho a cabeça. A água fria dá-me uma ligeira sensação de conforto.
Conforto e lucidez.
Não durmo. Estou inquieto e não sei porquê. Tenho sede.
Bebo. Não tinha sede. Ando e desejaria não parar.
Andar, andar até cair e não pensar em nada, nada, nada.
Morrer? «Robot» como os outros? (ibid., p. 38)
A inconteste subjetividade africana, múltipla, salta de muitos versos. E na prisão, a
África, continente unificado na dor e na esperança, envolve momentaneamente o sujeito poé-
tico em luz que vem de fora da cela. O “eu” sobrevive no sonho para eliminar o “outro”, e
165
isso é certo, porque, antes, a África sobrevive no sonho, para além do “outro”, para além do
“eu” aprisionado:
ÁFRICA
A sombra
exige-me um silêncio
meio repleto de sonhos.
E o amor
sentido é o pressentimento
que vai do sentir ao ser.
Mas absurda
a realidade
fantástica
é um pontapé acordado.
E se perscruto a noite
a África sai-me gritando. (ibid., p. 80)
“África”, repetidas vezes, é evocada no poema para rememorar a ancestralidade, para
gritar dentro do eu africano a sua essencialidade e imperar sobre a cultura do “outro”:
Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.
(...) (ibid.)
O que é exógeno ao ser africano acumula-se na negativa de valoração que manifesta o
sujeito poético. Um rol de elementos associados a danos e infortúnios compõe os versos iden-
tificados com a cultura estrangeira:
Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens inventaram
a confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos-de-artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville
(…) (ibid.)
166
A ironia que reveste o verso sobrepõe o sujeito poético à “bela civilização” ocidental.
A seguir, um erotismo cosmogônico propõe uma africanidade fecundada pelo “eu” africano:
Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meu povo.
E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
E na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana. (OP, p. 16)
A língua portuguesa, além de representar, na concepção do homem africano, o servi-
lismo que ele deseja combater, não oferece elementos que possam dar conta do proprium afri-
canum. Assim, a palavra ronga recupera o ser e preenche os espaços que não registram o pen-
samento e a emoção. Resgatado o direito de expressar a língua autóctone, surgem os sujeitos
da enunciação ? integrados ao sujeito do poema ? que, ao retomar o domínio da fala, reto-
mam o domínio de si mesmos e da História que os alijava. A bem da verdade, não há uma
recusa pura e simples à língua portuguesa. O uso da língua ronga representa, para Craveirinha,
o direito de “simplesmente reivindicar os nomes das coisas. É que ninguém veio encontrar
isto despovoado; ninguém veio encontrar gente, mas muda, que não tivesse voz, que não ti-
vesse língua”.
(MENDONÇA, LABAN, 2008)
A “contaminação lingüística”, matéria necessária na compreensão das literaturas afri-
canas de expressão portuguesa,-se, segundo Ana Mafalda Leite, sob dois aspectos: a utili-
zação de termos da língua ronga, no caso específico de Craveirinha, e a utilização de modos
discursivos que, ainda que a língua de uso seja a portuguesa, atende uma visão de mundo mo-
çambicana:
No que respeita à primeira questão, convém destacar que os poemas se
167
tecem fundamentalmente entre duas línguas, o português e o ronga, língua
materna do poeta, que é usada para pôr em evidência a historicidade e carga
cultural da sua origem africana. (...)
Estas modulações operadas no corpo linguístico do poema afectam de
forma original a leitura dos sentidos textuais. José Craveirinha transplanta
para a língua portuguesa o germe linguístico-poético moçambicano e procura
criar harmonicamente uma nova fala, resultante do confronto e da transfor-
mação parcial dos dois sistemas linguísticos. (LEITE, 1998, p. 14)
Eis mais um recurso utilizado pelo eu poético de Craveirinha para eliminar de si o
“outro” que lhe dominava nas esferas intelectuais, tendo como instrumento maior de domina-
ção a língua. Esse caminho literário, utilizado por tantos outros narradores e poetas, elimina o
ser exógeno que germinava no homem africano.
Dos tratamentos lingüísticos apontados por Ana Mafalda Leite, “Xigubo” é exemplo
mais que perfeito. O próprio título do poema anuncia a proposta que se efetivará. “Xigubo” é,
ao mesmo tempo, dança guerreira e onamotopéia de tambores. As palavras rongas dançam no
verso, e “negros” e “negrinhos” dançam pela resistência, aqui representada pela poesia, contra
o “outro” colonizador:
Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!
Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã Lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
Brilham alucinados de vermelho
Os olhos dos homens e brilha ainda
Mais o fio azul do aço das catanas.
Dum-dum!
Tantã!
(...)
E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
168
aqui outra vez os homens da terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio. (OP, p. 9)
6.2 - O eu” e o “outro”: a coexistência no verso transformador
Por que, simplesmente, não tentar alcançar o outro,
sentir o outro, revelar-me ao outro?
Frantz Fanon
Construindo o caminho da alteridade, para efeitos de eliminação do “outro” exógeno,
o sujeito poético precisa, antes de mais nada, instaurar em seu discurso o “eu” que ele conce-
be. O homem africano, sujeito historicamente à colonização e aos processos de aculturação e
assimilação, quer se olhar no espelho e descobrir sua própria identidade.
O “eu” frente ao “outro” é, primeiramente, a resistência à opressão. O “orgulho de ser
preto”, de que fala Manuel Ferreira, representa uma luta contra a imagem do outro que se
impõe ante o negro colonizado. O homem negro africano representa, ele mesmo, a resistência:
Pedra basilar da construção dos impérios coloniais, sujeito à quotidiana humilhação da sua
cor, escarnecido na sua própria natureza física, o Negro acaba por ser ele próprio a libertar-se
dos anátemas e mitos europeus. (FERREIRA, 1989, p. 55)
Compreender a subjetividade na poesia de José Craveirinha exige que se investigue a
alteridade que com ela se forma. Mais ainda: requer uma compreensão ampliada do que repre-
senta o sentimento de africanidade, a dimensão do proprium africanum, a visão do homem
sobre a comunidade da qual participa.
169
O “eu” não se configura, apenas, pelo excesso de subjetividade; ao contrário, pode ser
instaurado na realidade do mundo que o cerca. Subjetividade e alteridade, portanto, não se
fixam em propostas teóricas. Se, como vimos estabelecendo, o eu subsiste na concepção do
“outro”, é fundamental compreender que o “outro” também não deve ser identificado por
formas rígidas, pois “os conceitos que giram em torno da alteridade ou da outridade não re-
presentam mais uma constante inalterável ou invariável, mas sim umas construção ideológica,
social e discursiva sujeita a profundas modificações, conforme o contexto”. (HANCIAU,
2007, p. 235)
A unidade entre os povos africanos foi uma estratégia política necessária para se al-
cançar a liberdade, como atesta Frantz Fanon: “Foi na luta nacional contra o opressor que os
povos colonizados descobriram, corretamente, a solidariedade do bloco colonialista e a neces-
sária interdependência dos movimentos de libertação”. (FANON, 1980, p. 175)
Não fosse a construção ideológica dessa proposta, uma outra ainda a sustentaria, como
destaca Honorat Aguessy:
Em todo o modo de produção cultural, quer se trate de escrita ou de
oralidade, os valores que se tornam de consumo público passam sempre,
nem que seja apenas por instantes, pelo indivíduo. Mas o indivíduo não se
opõe à colectividade, ao grupo. Que seria desse indivíduo na sociedade sem
a língua, por exemplo, ou sem a gramática moldada pela colectividade e o
vocabulário que ela lhe lega? (AGUESSY, PATHE, 1977, p. 105)
O “eu” está em cena e o “outro”, nessa fase, é conseqüência de si mesmo, de seus atos,
de sua vontade. Isso porque o “eu” projeta-se em alteridade, mas se sente incapaz de conter os
limites de sua própria existência. O projeto ideológico de destruição do “outro” colonizador
só é possível a partir da admissão, na constituição do “eu”, de um “outro”, que, agora, é com-
preendido na mesma esfera de existência: o “eu” poético assume em si o “outro” também afri-
cano. O poeta cede, a mais das vezes, o lugar ao “outro” que emerge de sua consciência polí-
tica e social. Mas esse “outro”, estritamente moçambicano, que exige estar no poema, é quase
sempre plural, porque, no processo de colonização, não há sentimentos individuais: a dor é
170
múltipla, a indignação se espraia, a revolta se grita em ecos de vozes que repetem a tragédia
quantas vezes forem necessárias, para que ela não se apague na história, também repetida, de
cada homem africano:
UM CÉU SEM ANJOS DA ÁFRICA
(...)
Oh! África!
Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor
e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços
e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal
geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado
e dormiram sem pesadelos na vasta solidão
de um coval mínimo de criança infelizmente
sem as duas covinhas na face
quando sorriam, Senhor?
(...) (OP, p. 51)
Ainda que o “eu” reclame ao sujeito poético a sobrelevação, no discurso poético, de
seus fundamentos, a realidade tangencia o engenho do poeta, que volta seu olhar para o “ou-
tro” que espera por sua palavra. O sujeito poético volta-se para o mundo sensível, mas, num
primeiro momento, ainda não consegue perceber o “outro” de forma integral. Antes de tudo,
-se como em um espelho, e os fatos reais emolduram sua figura. O “outro” é representado
em si mesmo: Ah, Mãe África no meu rosto escuro de diamante / de belas e largas narinas
másculas / frementes haurindo odor florestal. (ibid., p. 33) Aos poucos, todavia, seus versos
fazem, mais uma vez e sempre, o louvor de quem sobrevive na esperança do depois, e o pro-
cesso se inverte: o “eu” é que passa a existir na estância do “outro", sendo o “nós”: Mas a
imagem que prefiro / é a solidão ser uma quizunba / hostil que nos repatria / reconciliando-
nos connosco. (PP, p. 81)
Passando pela desalienação cultural e social, depois pela conscientização e, por fim,
pela revolta que se inicia com o discurso de independência, a poesia africana tem como um
dos eixos centrais o sentimento de esperança. Não se trata, evidentemente, de uma atitude
171
passiva, que apenas difira da resignação. Ao contrário, a esperança surge no texto poético
como combustível para a liberdade. O equilíbrio precisa passar pela estância do indivíduo,
através da esperança, para, em seguida, estabelecer-se pela estância coletiva e social, pela luta
armada. A cada tomada de consciência, o mundo da subjetividade intensa cede lugar à alteri-
dade. O poeta reassume o seu papel histórico e reconstrói o sujeito poético com os fundamen-
tos de quem se considera responsável pela sociedade de que participa e pelo “outro” que reco-
nhece em meio às circunstâncias aterradoras da guerra. O sujeito deixa de centrar-se em si
mesmo para conciliar o “outro” no Ser que intenta poeticamente:
(...)
O poeta
apesar de preso
nunca tem o problema
de sentir-se completamente só.
Porque a poesia não lhe permite
estar detido
e ficar sozinho.
(...) (C1, p. 11)
O poeta constitui o sujeito poético de seu poema não como um pai que conduz seu fi-
lho, ou um líder extremado que se colocará à frente do corpo do seu seguidor, mas como al-
guém que alerta, avisa do perigo, propõe a reflexão, permite que em todas as vozes ecoem sua
voz indignada. Há em José Craveirinha uma clara consciência de que o seu papel é auxiliar os
que sofrem o processo colonial a iluminar seu próprio caminho. A posição de Craveirinha
conforma-se à proposta de Michel Foucault, o qual acredita que não cabe mais ao intelectual
dar conselhos. Ele deve ajudar aqueles que vivem os conflitos sociais a “encontrar, eles mes-
mos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é forne-
cer os instrumentos de análise”. (FOUCAULT, 1999a, p. 151)
O “outro” pode se expressar como ser individualizado, mas representa um todo coleti-
vo africano que germina o futuro sonhado através da palavra que se constrói autóctone, atra-
172
vés da fala que se define como ancestral:
HINO À MINHA TERRA
Amanhece
sobre as cidades do futuro.
E uma saudade cresce no nome das coisas
e digo Metengobalame e Macomia
e é Metengobalame a cálida palavra
que os negros inventaram
e não outra coisa Macomia.
(...)
Grito Nhazilo, Eráti, Macequece
e o eco das micaias responde: Amaramba, Murrupula,
e nos nomes virgens eu renovo o seu mosto em Muanacamba
e sem medo um negro queima as cinzas e as penas de corvos de agoiro
não corvos sim manguavavas
no esconjuro milenário do nosso invencível Xicuembo!
E o som da xipalapala exprime
os caninos amarelos das quizumbas ainda
mordendo agudas glandes intumescidas da África
antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes
da nossa maior Lua Nova. (OP, p. 20-23)
O tempo da reconstrução da África não coube no tempo de vida de seus idealizadores,
poetas que ousaram sonhar em meio ao caos. Longas trilhas foram reconstituídas, seja para
levarem o homem africano de volta à ancestralidade, seja para o lançarem nas tramas da civi-
lização ocidental.
Finda a guerra colonial, foi preciso sair do limbo no qual a indefinição de uma identi-
dade é a pior das conseqüências. Voltar na História ou seguir em frente, buscar a conciliação
dos opostos: aí está o dilema do ex-colonizado, discutido por Homi K. Bhabha:
O “além” não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado...
Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século,
mas, neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que es-
paço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e i-
dentidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso
porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção, no “a-
lém”: um movimento exploratório incessante, que o termo francês au-delà
capta tão bem ? aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para
a frente e para trás. (BHABHA, 1998, p. 19)
173
O olhar “além”, interpretamos na dialética tradição-modernidade em que se enquadra a
existência africana pós-guerra colonial, como um sonho inconcluso, porque o contextualiza-
mos na percepção poética de José Craveirinha.
O tempo surge como elemento fundamental na construção da realidade poética do au-
tor moçambicano. O tempo é futuro, projetado a partir da assunção incondicional do passado
e inequívoca consciência do presente. O poema é de um “cidadão de uma Nação que ainda
não existe”. (OP, p. 17). O poeta propõe a compreensão do que virá pela interpretação do que
se conhece desde sempre. Refletir sobre a história, na visão de Barthes, representa construir o
futuro, porque, “como nada, no passado, existe fora da razão histórica, o futuro pode tornar-se
propriedade integral dos homens que o farão’. (BARTHES, 2005, p. 16)
Consciente de que o futuro é a única fonte de poesia, porque é no tempo que se projeta
que estarão o “eu” o “outro” conjugados na liberdade, o poeta constrói em seus versos a ima-
gem do país desejado, e convoca o rito ancestral para a construção mesmo ideal:
TIMBILEIROS
A maviosa
velha canganhiça dos timbileiros
acaba os ócios.
E toda a Zavala
bate e torna a bater agora
a cadência dos corações da turba
dançando as amotinações voluptuosas
das timbilas de ossos. (OP, p. 87)
E, assim, o poeta inventa em seus versos o futuro pretendido, mas sem que se exclua
dele o passado ancestral. E nesses versos surgem nomes outros, além da África e além de
Craveirinha. Mas a identidade desses signos que aparecem estão fundamentalmente ligados à
significação de «África» e de «Craveirinha»:
(...)
Passos soltos
tarde Xipamanine de domingo
e Tingane rua e viola de Tingane
174
ritmo
ritmo
velho ritmo inconcebível
de uma nova dança!
(...) (ibid., p. 142)
Às vezes, o poeta tem pressa do tempo, e inventa que o fruto africano amadurece rápi-
do para matar a fome do menino, pelo calor da mão infantil. Os signos «tempo», «fruto» e
«menino» são os “outros” que, na função imagética da poesia, projetam o futuro:
MAMPSINCHA
A mampsincha
é um fruto africano
rasteiro ali onde nasce
e cresce de cor verde
enquanto púrpuro se não torna
e já sazonado o levanta
nas puras mãos de ébano
o negrinho na gula do seu caroço. (ibid., p. 66)
A natureza também opera o milagre: “Os Galos”, metáfora para quem não se cala,
preparam o ressurgimento da manhã de liberdade:
Até os galos
aqui sabem o delito
do alerta que se não canta.
E a noite
escuta-os na vigília
não desperdiçada
de galar o embrião na manhã
incuba deste sul ao mundo. (ibid., p. 80)
Ergue-se, no verso de Craveirinha, o homem marginalizado pela colonização, mas que
será um paradigma da História, porque resistiu ao apagamento cultural e social e fez prevale-
cer uma nova ordem:
Nesse sentido salutar, toda uma gama de teorias críticas contemporâ-
neas sugere que é com aqueles que sofreram o setenciamento da história ?
subjugação, dominação, diáspora, deslocamento ? que aprendemos nossas
lições mais duradouras de vida e de pensamento. Há mesmo uma convicção
crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social ? como ela
emerge em formas culturais não-canônicas ? transforma nossa estratégias
175
críticas. (BHABHA, 1998, p. 240)
O “eu” o “outro” conjugam-se em “nós” para que, da margem em que estão, um e ou-
tro possam juntos refazer a História:
(...)
E deixem em nós gerar-se
irresistível a prole das sementes do beijo
consangüíneo do Grande Dia
SIA-VUMA!
Que um enxame de mãos em prece
na orgia fantástica dos augúrios do nhanga
-de voltar deste exílio
mais moçambicano connosco
SIA-VUMA! (OP, p. 221)
O processo de subjugação do negro é refletido por Frantz Fanon de maneira mais sub-
jetiva do que conceitual, levando-o a se questionar mesmo a respeito de sua condição humana,
visto que esta realidade foi negada historicamente:
Em outras palavras, começo a sofrer por não ser Branco, na medida em que
o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado,
extorque de mim todo valor, toda originalidade, diz que parasito o mundo,
que é preciso que acompanhe o mais rapidamente possível o mundo do ho-
mem branco (...). (FANON, 1983, p. 82)
Mas, apesar do complexo de dependência que acusa Fanon em seu texto, o povo ne-
gro, o povo marginalizado reagirá e nele o poeta deposita as esperanças de que o futuro conta-
rá uma nova história, a que virá dos que agora foram submetidos pela força:
DE UM POVO SUBJUGADO PELAS ARMAS...
De um povo subjugado pelas armas nasce irremediavelmente um novo
povo, um novo comportamento cultural. É uma questão de tempo entre os
vencedores, os vencidos, a terra e as mulheres. O resto é obra dos filhos.
(PP, p. 70)
Na poesia está a esperança; e o poeta não nega, em meio à dor, na “Cela 1”, a sua mis-
são maior. O corpo está preso, mas o pensamento, a imaginação e a palavra libertam-se em
direção ao futuro. E nesse processo de criação, não se vê apenas o “eu”, mas todo um povo no
176
desenho do futuro:
Metalizaram-me as portas
vãos janelizam-me às barras
mas basta reflectir transponho-as
atingindo incólume os horizontes.
(...)
Mas a imaginação
mania que não se enclausura
permite-me os substantivos
e exasperado ou sereno
concilio o medo à loucura
da profecia que me excede.
Meu amor:
Deste lado das barras
mesmo sem vinganças o raciocínio
implacável futuriza o inverso. (ibid., p. 65)
A imaginação, o pensamento, a consciência que se liberta enquanto o corpo permanece
extático, representa, na poesia de Craveirinha, um duplo: o “eu” e o “outro” em si mesmo.
Mas esse “outro” não se ordena na realidade mundana; ele existe na consciência do poeta,
dividido entre o corpo que enfraquece e o espírito que se eleva no sonho de libertar-se. O de-
sacordo entre o corpo físico e o corpo imaterial enquadra-se perfeitamente ao estudo de Henri
Bergson sobre a alma e o corpo:
Cada um de nós é um corpo, submetido às mesmas leis de todas as outras
partes da matéria. (...) Mas, ao lado destes movimentos que são provocados
mecanicamente por uma causa exterior, existem outros que parecem provir
do interior e que diferem dos precedentes por seu caráter imprevisto: cha-
mamo-los “voluntários”. Qual é a sua causa? É aquilo que cada um de nós
designa pela palavra “eu”. E o que é o “eu”? Algo que parece, com ou sem
razão, ultrapassar todas as partes do corpo a que está ligado, ultrapassar tanto
no espaço quanto no tempo. Primeiramente no espaço, pois nosso corpo se
detém precisamente nos contornos que o limitam, enquanto pela nossa capa-
cidade de perceber, e mais particularmente, de ver, alcançamos o que está
bem distante de nosso corpo: vamos até as estrelas. Em seguida, no tempo,
pois o corpo é a matéria, a matéria está no presente e, se é verdade que o
passado aí deixa seus traços, são traços de passado apenas para uma consci-
ência que os percebe e interpreta o que percebe à luz do que ela recorda: a
consciência, ela sim, retém o passado, enrola-o sobre si própria na medida
em que o tempo passa e prepara com ele um futuro que ela contribuirá para
criar. (BERGSON, 1974, p. 89)
177
Retido o corpo, mas não o espírito que se faz com a vontade de liberdade e o desejo de
luta, que se move para além do espaço ? limitado por grades ? e do tempo ? definido pelo
estado de exceção ?, o poeta elege a “Esperança” como signo que não se reduz à realidade,
e convoca o “outro” a partilhar o mesmo ideal:
Hoje
nada me alcança.
Ilícito
precedo a gambiarra dos sonhos
ao limite dos pássaros gorgeando
ritmos entre o céu e as árvores.
Face a face
aguçada existe a revelação
de saberem todos como eu nasci.
E entre o após
da raiz e eu
tenaz a esperança em nós
pulsando viriliza-me o verso. (PP, p. 77)
Os muitos “outros” de Craveirinha que circulam no pensamento e no verso do poeta se
configuram imagens luminosas ante a visão do sujeito poético. Se representam dor, podem ser
ressignificados na resistência e na esperança.
Não fosse o real objeto da poesia de Craveirinha imagem de profundidade suficiente
para validar o “outro” no texto, a própria poesia em si mesma já o faria, porque, segundo Oc-
tavio Paz, a poesia é exercício de outridade:
A conversão do eu em tu ? imagem que compreende todas as imagens poé-
ticas ? não pode realizar-se sem que antes o mundo reapareça. A imagina-
ção poética não é invenção mas descoberta da presença. Descobrir a imagem
do mundo no que emerge como fragmento ou dispersão, perceber no uno o
outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos
outros. A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade. (PAZ, 2005,
p. 102)
O poema que, no título, revela a individuação do sujeito poético, em retomada de
consciência social ? “A minha dor” ?, desenvolve nos versos uma proposta de fraternidade
do sentimento e da resistência que só se realiza na concepção de um “eu” coletivo”:
178
Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.
E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia. (OP, p. 69)
O poeta moçambicano reassume a luta por seu país, versando-se em resistência e espe-
rança. E é por esse caminho que o sujeito poético pode, mais uma vez, olhar o “outro” e ence-
nar a sua história individual, que, unida a outras tantas histórias de dor, luta, resistência e es-
perança, contará a História de Moçambique, que é, também, a história do poeta. Eis mais uma
via de aproximação entre o “eu” e o “outro”, os quais se solidarizam para transformar a reali-
dade que vivenciam.
Heróis aparecerão no texto poético, justa homenagem a quem não aceitou o jugo colo-
nial. Todavia, são mais presentes as pessoas comuns, que lutam dia a dia pela sobrevivência.
o muitas as mulheres, guerreiras e mães, aguerridas e sofridas.
A voz lírica volta-se para a mulher que se vende, “Mulata Margarida”:
(...)
E corpo moreno de mulata Margarida
é vestido de náilon que senhor da cantina pagou
é quinhenta de chá
arroz e molho de amendoim
de Zeca Macubana que herdou olhos azuis
das românticas noites
de jazz
nos bares da Rua Araújo
enquanto a cinta elástica suspende
o ovário descaído.
E eu sei poesia
quando levo comigo a pureza
da mulata Margarida
na sua décima quinta blenorragia. (ibid., p. 38-9)
As tragédias coloniais doem mais tristemente no grito de “Mamanô!”, grito que não se
cala na poesia de Craveirinha:
179
Voz de mufana
alagou a cidade com seus soluços de acusação
pequeno xipocué a tremer de frio
passou varando a noite algodoada de cacimba
a alma de órfão de mãe viva
Espezinhada!
Espezinhada!
Espezinhada!
E toda a sina atirada desesperadamente
Num grito cheio de vazio como nossa vida:
? «Mamanôôô...! Mamanôôô...!»
(...) (ibid., p. 40)
Os personagens moçambicanos desfilam suas histórias na obra poética de Craveirinha.
Contam tragédias particulares, falam de esperanças. O “outro” recebe do poeta as homena-
gens, os louvores, a glória de ser grande na humildade e digno na miséria. E entres tantas do-
res que fazem quase fenecer o “outro”, a criança surge como instrumento de transformação da
vida, de transformação da dor em liberdade. Intuitiva, não marcada em definitivo pelas dores
incomensuráveis da existência, a criança, com seu ludismo mágico, modifica a realidade,
substituindo amargura por felicidade, como numa “Fábula”
africana:
Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.
Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!
Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos. (ibid., p. 70)
É através do tema da infância que o poeta/sujeito poético retorna a um espaço antes da
dor, a um “tempo adâmico sem conflitos e sem fracturas psicológicas e culturais”. (TRIGO,
s/d, p. 72) O tema da infância tem outra possibilidade analítica que convém destacar neste
momento. Segundo Alfredo Margarido, “a infância é o lugar onde foi possível existir um pon-
180
to comum de convergência das cores. A criança, o ascendente mais remoto (...) do poeta, não
sabe ainda que é necessário discernir entre o branco e o negro”. (MARGARIDO, 1980, p. 35)
Ainda que a criança seja admoestada pela civilização estranha, que a corrompe, o poeta en-
contra na infância motivos para realizar o “Milagre” da existência, o sonho de ver a vida
transformada em liberdade:
Nas maternidades
sofrem as mães na velha dor de ter.
E nos cinemas
bombardeiros de altitude
e desintegrações do átomo
civilizam as crianças.
Mas no coração do poeta
eternamente a esperança
no sempre novo
milagre velho
de parir. (OP, p. 74)
E é ainda pela lição da infância, aprendida e não esquecida, que o sujeito poético read-
quire a esperança de que o mal dos dias coloniais não extingue a crença do bem no futuro,
porque o “outro” criança vivifica o sujeito, regozijando-se em sua existência:
MENINICE
Tudo me custa
até o ser tão menino
que nem réstia de ódio fica
no tamanho do coração
onde todo o fel dos homens
se destilou.
Interminável
dói mas não me cansa
este vício de meninice
quando o mundo oiça a nova
de que o fel dos homens
de tanta acidez em mim
finalmente acabou. (PP, p. 101)
Autorizado na luta que assume pela libertação de seu país; autorizado por ser um dos
muitos a sofrer as marcas da colonização, Craveirinha também é autorizado a falar do “outro”
181
pelo próprio exercício de linguagem, como propõe Paul Ricouer, ao discutir o corpo e os a-
contecimentos mentais (pensamentos, consciência) como primados da categoria de mesmida-
de
32
:
(...) a pessoa a quem atribuímos (...) os predicados mentais e uma consciên-
cia não é exclusivamente expressa pelos pronomes da primeira e da segunda
pessoa do singular, como seria o caso numa teoria da enunciação reflexiva.
Eles são atribuídos a alguém que pode ser também uma terceira pessoa. Se a
pessoa é aquilo de que se fala, é admitido que se fale, numa situação de in-
terlocução, da dor sentida por um terceiro que não é um dos interlocutores.
(RICOUER, 1991, p. 47)
Craveirinha fala de alguém que não é ele ? muito embora se identifique com o seu
objeto ?, porque conhece sua dor e sua coragem. Plasticamente, ilustra o “outro” em seu
poema, porque a esperança de que o sujeito poético se nutre vem da resistência do “outro”.
A maior resistência, entretanto, não se dá pela luta armada, pelo sangue que não se
conta como perdido. A maior resistência está nas múltiplas vozes dos muitos seres que carre-
ga em si o sujeito poético, e que fazem o “Manifesto” do ser moçambicano, do ser africano:
(...)
Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do breu
e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o totem mais invencível totem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Taganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.
Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore da Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
Eu xiguilo no batuque
32
O conceito de mesmidade compõe o estudo empreendido por Paul Ricouer sobre o si-mesmo e o outro. A
mesmidade seria constituída pela “noção cardinal de reidentificação”, o que consiste na idéia de assegurar não
somente que falamos da mesma coisa, mas que somos capazes de identificá-la como mesma coisa em uma mu l-
tiplicidade de ocorrências, o que decorre porque a mesmidade se dá pela localização espaço-temporal, ou seja,
uma coisa permanece a mesma em lugares e tempos diferentes. (RICOUER, 1991, p. 45-6)
182
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique. (OP, p. 34)
Muitas vozes e muitos seres. Craveirinha sabe que a poesia investe-se de uma existên-
cia múltipla e não de propriedades de exceção. E é este o seu projeto literário fundamental: o
“homem quer identificar-se com suas criações, reunir-se consigo mesmo e com seus seme-
lhantes: ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo.” (PAZ, 2005, p. 122-3) O homem e o seu
ideal, o cidadão e o país, o poeta e o desejo compartilham o mesmo verso. “No poema, o ser o
e desejo de ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea recon-
ciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu, ele, nós. Tudo estás presente: será presen-
ças”. (ibid., p. 123) A poesia de José Craveirinha apresenta ao leitor o homem comprometido
com a ideologia da libertação. A sua voz, que tanto serve a cantar o homem moçambicano, em
certos momentos, expressa vivamente a existência de um moçambicano-poeta-revolucionário.
Narrar a sua própria história significa rasurar a história oficial da colonização. De dentro da
dor, Craveirinha perscruta a si mesmo para, em versos, dizer de sua existência.
Ao se narrar, o poeta acredita estar, também, identificando os muitos outros que cir-
cundam sua existência real, visto que, ideologicamente, ele desiste de uma subjetividade una
para construir uma subjetividade coletiva. Sente como os outros, fala como os outros, sonha
como os outros ? ser “eu” representa ser “nós”. É nesse momento que a poesia biográfica de
Craveirinha surge como discurso de identidade, e o sujeito poético transcende a si próprio
para encontrar a unidade com o “outro” também africano. Foi dessa forma que, mesmo asso-
ciado aos movimentos que construíram a resistência, o poeta moçambicano José Craveirinha
conseguiu investir sua poética de uma subjetividade incomum, estabelecendo com o ou-
tro/irmão africano a cumplicidade necessária para falar intimamente de todas as experiências,
de todas as mortes, de todas as ilusões e esperanças (Não nasci apenas eu / nem tu nem ou-
tro... / mas irmão) (OP, p. 17). O verso de José Craveirinha alinha-se a uma proposta do dis-
183
curso ideológico, mas o homem José Craveirinha não se exime de revelar a sensibilidade com
que penetra todas as camadas da história moçambicana.
Ao fazer o elogio do “outro”, o poeta não inibe a expressão da subjetividade:
VIOLAS DE LATA
Minha alma grita
súplicas da Mafalala em mutovanas de avós
e geme timbilas do músico de Zavala
no ritmo das blusas de saca
do negro contratado
(...) (OP., p. 152)
Em prefácio ao livro Poemas da Prisão, Fátima Mendonça atesta:
Tal como os de Cela I, também estes Poemas da Prisão não escapam
à aproximação biográfica. Neste sentido eles são o testemunho de um per-
curso vivencial (...). A sua evocação reenvia-nos a um Tempo histórico asso-
ciado a um espaço preciso: o da conspiração política associada às tentativas
da Frelimo de se expandir para Sul, o que parece ter sido gorado com as pri-
sões ocorridas em finais de 1964.
O sujeito/personagem tipo/preso político reitera, no decurso do pro-
cesso enunciativo, a sua resistência, sob a forma de reacções sucessivas e re-
correntes perante a polícia e os torturadores: rebeldia, pânico, raiva, medo,
sucedem-se alternadamente, como para dizer que estes poemas não são mero
produto da invenção vocabular ou representação directa de vivência pessoal,
mas resultado de uma realidade transmudada em poesia. (PP, p. 13)
O dizer autobiográfico praticado por Craveirinha não deixa dúvidas quanto à constru-
ção de uma identidade que não se limita ao homem José, mas se expande para o homem mo-
çambicano, o líder, o poeta no compromisso inextinguível com sua terra:
REMENDOS DE ESTRELAS
Remendos de estrelas
passajadas no espaço
reconstroem todo o céu.
Mãe:
E se não houvesse estrelas
se o teu ventre me não gerasse
e se o céu em vez de infinito
fosse de pergamanóide azul?
Que espécie de poesia, mãe
faria um poeta que não renuncia
exactamente como eu
184
à cor com que nasceu? (ibid., p. 32)
Inequivocamente autobiográfica, a poesia de José Craveirinha constrói um dossiê da
violência colonial. Registram-se fatos, denunciam-se torturas, evidenciam-se a resistência à
colonização e o inegável amor pelo país que ainda não é, mas cuja nacionalidade se confirma
na voz poética:
APARÊNCIAS
Amigos!
Apesar das aparências
estarem de acordo com as circunstâncias
não sou eu quem morre de medo.
(...)
Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.
E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO! (C1, p. 38)
Uma das mais belas manifestações do “eu” na poesia de Craveirinha registra-se no
poema “Manifesto”, já citado anteriormente, do livro Xigubo, no qual o sujeito da enunciação
resgata a beleza da raça negra e o valor da cultura africana
33
e promove, “nessa exultante geo-
grafia do corpo físico e do corpo pátrio a incomensurável metáfora da reabilitação épica afri-
cana”: (FERREIRA, 1989, p. 55)
Oh!
33
Sobre o valor da raça e da beleza negras, reafirmados em muitos poemas de Craveirinha, há duas visões que
merecem ser destacas. A primeira, é a da crítica literária, que associa a valorização de uma estética negra ao
movimento de Negritude, conforme atestam Fátima Mendonça e Michel Laban: “Grande parte da poesia de José
Craveirinha escrita nos anos cinqüenta aproxima-se do que de mais representativo foi produzido dentro da estéti-
ca da negritude: exaltação dos valores culturais africanos, oposição aos valores da civilização ocidental”. Entre-
tanto, o poeta apresenta uma outra visão para o mesmo fazer poético: “Quando exalto a beleza eu não estou a
procurar, nem quero contrapor, ou negar a beleza de outros atributos considerados mais belos. Mas eu sempre fui
contra aquelas pessoas, as mulheres principalmente, que achavam que para ser mais belas, têm de ser mais cla-
ras”. Cf. Fátima Mendonça e Michel Laban. www.macua.org/video/jose_craveirinha_2001a.wmv. Acesso em
25/mai/2008, 13:20h.
185
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como inssurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.
(...)
Oh!
Meus dentes brancos de marfim espoliado
puros brilhando na minha negra reincarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita
de milho
o cálido selvagem da minha pele tropical.
(...) (OP, p. 31-2)
Uma série de acontecimentos vão sendo relatados pelo sujeito poético, associados,
quase sempre, às pessoas que o ajudam a escrever a sua própria estória: a mãe, o pai, a avó, a
amada Maria, em cenas de intimidade que se revelam nos versos:
HISTÓRIAS DE AMOR
Noite misteriosa de segredos murmurados
no cerrar dos dentes e no pulsar das veias
e uma canção no ritmo de nós dois
e as algas dos teus olhos a gritar nos nervos
(ah, Maria, quantas vezes morremos?)
(...) (ibid., p. 109)
O que se afirma e reafirma nos poemas é a figura de José, de Zé, filho que dedica ver-
sos “Ao meu belo pai ex-imigrante”: Pai: / Ainda me lembro do teu olhar / e mais humano o
tenho agora na lucidez da saudade (ibid., p. 157); filho que exalta da mãe o ventre fértil e sua
origem negra: Mãe: / concebido no teu ventre / na pura condição de fêmea / quase foi como
na Bíblia / o pecado original / com a diferença de não seres Eva / não haver hipóteses de
maçã; mas engravidada ficares / negra mais longe do paraíso. (PP, p. 71); amante que, mes-
mo na dor, preocupa-se com a amada: Constrange-me a expressão / permanente no teu rosto.
// Alegra-te, Maria / por favor! (ibid., p. 51)
José narra-se, poetiza-se, louva-se mesmo entre as grades, entre as paredes de cal, na
186
solidão e no silêncio, porque precisa vivificar cada minuto de permanência no ser, José que
não se rende, “José mulato”:
O meu riso
é a maquilhagem do mulato
à humilhação materna que se abriu
resignadamente astuta
no útero da negra que se vingou
E se canto assim
oiçam atentos a voz
humana
do filho moçambicano que se gerou. (ibid., p. 39)
E se registramos José Craveirinha, José, Zé na construção ideológica do “outro” e,
mais ainda, na admissão desse “outro” na existência do “eu”, é porque o próprio poeta nunca
negou, em si mesmo, o ser múltiplo que a condição colonial nele artificializou, mas que foi
transformado na mais pura essência, em seu conceito primeiro.
6.3 - A experiência estética da poesia: um caminho subjetivo de reconstrução da realidade
Aquilo que eu sei
alguém me legou.
Pai Palavra
Mãe Palavra
Palavra anterior
vem e transforma já o meu futuro.
Ruy Duarte de Carvalho
Quando falham os discursos científicos constitutivos da Humanidade, a poesia pro-
clama-se como única expressão dos males que assomam o homem e da libertação a que aspi-
am. Isso porque, antes do estudo de linguagem ou de mimesis, estuda-se a palavra. Na simbó-
lica do som encontra-se a gênese da poesia. O processo de criação textual compreende a ela-
boração de recursos variados que se configurarão em escritura poética.
187
A palavra como expressão fundadora da poesia é assim explicada por Nietzsche:
Na seqüência de palavras, portanto por meio de uma cadeia de símbolos,
algo de novo e maior deve ser simbolicamente apresentado: a esse nível tor-
nam-se novamente necessárias rítmica, dinâmica e harmonia. Esse círculo
mais alto domina agora o círculo mais estreito da palavra isolada: torna-se
necessária uma escolha das palavras, uma nova disposição delas, começa a
poesia. (NEITZSCHE, 2005, p. 38)
E pela capacidade mimética manifestada esteticamente, a poesia torna-se o veículo
possível de apreensão da realidade e expressão das experiências humanas e sociais.
Propondo uma reflexão sobre a poesia moderna, essa de que falamos, que tem na ex-
pressão da realidade seu mote central, Octavio Paz lança a pergunta: “será uma quimera pen-
sar em uma sociedade que reconcilie o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida,
criação da comunidade e comunidade criadora?” (PAZ, 1996, p. 95) A questão, segundo o
autor, não a atende uma resposta objetiva, e talvez não nos aproximemos, sequer, de uma so-
lução para o problema. No entanto, ele não se exime da busca por uma compreensão:
A pergunta contém dois termos antagônicos e complementares: não há poe-
sia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: a-
firma e nega simultaneamente a fala, que é a palavra social; não há socieda-
de sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia,
nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não po-
dem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a
mesma coisa ou ninguém falaria, sociedade transumana em que todos seriam
um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade se-
ria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a
uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois
termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em
comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em ima-
gem encarnada. (ibid., p. 96)
A poesia de José Craveirinha busca a convergência entre a palavra estética e a socie-
dade, ainda que não possa elaborar a transmutação ideal, em que o seu sonho revolucionário
fosse toda a realidade tangível. Sendo sociedade, os fatos e personagens reais circulam no
texto oferecido ao leitor e à sua reflexão. Ao formular a poesia, não se limita a uma descrição
fria do visto na sociedade; ao pensar a sociedade, não investe em favor de um signo poético
que se deseje fora do âmbito social; mas, ao traçar um verso, sabe que tem de aliar ao valor
188
estético o valor da vida. Considerando que o material retirado da realidade, e de que dispunha
para o trabalho poético, era o mais importante, Craveirinha abdica das amarras do verso, es-
pecialmente da rima: “Quando eu começo a ter uma emoção do universo político e etc ligado
à reivindicação de caráter literário, encontro no verso livre maior capacidade para exprimir os
sentimentos.” (MENDONÇA, LABAN, 2008)
É do advogado que o defendeu em tempos de prisão, Carlos Adrião Rodrigues, um
impressionante depoimento sobre o poeta José Craveirinha:
Um dia, contou-me ele [Craveirinha], estava a ser interrogado pelo
inspetor da PIDE no gabinete deste. A certa altura, o inspector foi chamado
de urgência e teve de sair deixando-o sozinho. Em cima da secretária estava
um recipiente cheio de canetas esferográficas. Pareciam querer saltar para as
mãos do Zé. Era a possibilidade de comunicar, de escrever. Mais importante
que as canetas, só a liberdade. Naquele momento, o Zé encheu-se de suores
frios. Era medo, era terror, mas era também o desejo de possuir aquele ob-
jecto mágico que iria mudar a sua vida na prisão. Rápido, sorrateiro, temero-
so, estendeu a mão e apropriou-se de uma Bic que escondeu nas calças. Pou-
co depois entrou o inspector. Teria as canetas contadas, e daria pela falta?
Nada aconteceu: continuava apenas o interrogatório. E o Zé ia respondendo
com sorriso de felicidade na face que fazia impressão ao inspector. O Zé ti-
nha agora uma caneta e um escritor com uma caneta tem uma força danada.
O inspector olhava para ele desconfiado; mas nunca se apercebeu da razão
da grande diferença.
34
(PP, p. 24)
Exercendo o direito de oralidade e de expressão autóctone, o poeta exerce o direito de
fazer poesia; utilizando como matéria poética o cotidiano de Moçambique, o poeta intervém
na sociedade a partir do ideal propugnado.
O projeto literário inicial de Craveirinha é definido claramente pelo autor e pelos críti-
cos de sua obra: falar a um outro, movê-lo em direção a um desejo de ascensão humana e so-
cial a partir da apreensão de um determinado objeto. Consideramos, assim, com Bakhtin, o
ato poético de Craveirinha:
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém.
Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. To-
34
A informação merece ser completada: José Craveirinha utilizava papel higiênico para escrever os seus poemas
de prisão; estava faltando a caneta. Em mensagem ao escritor amigo Luís Bernardo Honwana, em 1965, reflete o
poeta: “Quanto poderá valer amanhã esta película de papel higiénico no baú das tuas memórias?” (PP, p. 9)
189
da palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à cole-
tividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se
ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu in-
terlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.
(BAKHTIN, 2004, p. 113)
Foi esse o recurso utilizado por José Craveirinha para falar por seu povo. Não era a li-
teratura, como nos dá conta a sua biografia, sua meta principal. O escritor fez-se poeta, porque
esse era o instrumento possível num estado de exceção. O sonho de Craveirinha, de sua “poe-
sia de intervenção”, é o sonho de um homem que se valeu da própria existência, a fim de vali-
dar a existência do “outro”. O projeto de Craveirinha ainda mais se esclarece se pensarmos
com Octavio Paz: “O poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos
e experiências posteriores, que só adquirem coerência e sentido com referência a essa primei-
ra experiência que o poema consagra”. (PAZ, 2005, p. 53) Compreendemos: ao falar do seu
próprio desejo, Craveirinha incitava outros a desejar junto com ele a formação de um novo
tempo e uma nova África.
José Craveirinha falava sobre muitos, para muitos. Entretanto, sua poesia não se limi-
tou a uma comunicação fácil com seu interlocutor. O poeta moçambicano sempre considerou
o fazer literário para além da palavra denominativa. Falou a muitos, mas falou como poucos
falariam. Diante do real que assola o homem, o poeta valeu-se da palavra em expressão de
coexistência não passiva, mas perturbadora, da realidade. Então, deu-se o admirável processo
de que nos fala Octavio Paz: “a linguagem, tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser
linguagem. Ou seja: conjunto de signos móveis e significantes. O poema transcende a lingua-
gem”. (PAZ, 2005, p. 48)
A poesia de Craveirinha não se reduz a uma realidade única, qual seja a da guerra co-
lonial. Mesmo com os imperativos ideológicos atuando sobre o texto, ele amplia o mundo de
que participa, informando e inserindo seus leitores em realidades diversas, como atestam Fá-
tima Mendonça e Michel Laban:
190
Os seus poemas não constituem uma unidade fixa. Poder-se-ia dizer que ne-
les estão presentes não um discurso, mas vários discursos justapostos ou pa-
ralelos. Entre a escrita aberta e peremptória, alusiva à realidade objetiva de
alguns poemas de densidade opaca, refratária ao sentido enviado de outros, o
que a poesia de José Craveirinha revela é um sentido profundo de construção
da linguagem poética. (MENDONÇA, LABAN, 2008)
A palavra poética de Craveirinha transcende a palavra mimética; a realidade poética
transcende o real. A linguagem é, para além de si mesma, a imagem que se exclui da palavra,
ainda que, por insistência do desejo que nos acomete como leitor, seja nela ? na imagem ?
que procuremos a expressão mais justa para a emoção que sentimos.
Diante do real que não se quer comunicar pela palavra simplesmente, a imagem possi-
bilita ao poeta o verso mais elaborado:
A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a pa-
lavra a exprime. A imagem reconcilia os contrários, mas esta reconciliação
não pode ser explicada pelas palavras ? exceto pelas da imagem, que já
deixaram de sê-lo. Assim, a imagem é um recurso desesperado contra o si-
lêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a terrível experiência
do que nos rodeia e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em
extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras ex-
tremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fa-
la: o silêncio e a não-significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo do
idioma, das explicações e da história. Mais além, abrem-se as portas do real:
significação e não-significação tornam-se termos equivalentes. Tal é o senti-
do último da imagem: ela mesma. (PAZ, 2005, p. 48-9)
Nessa tese se enquadra a poesia de José Craveirinha. O que há de belo e de trágico em
seus versos é o exercício de mimesis que, por organizar-se como poesia, estabelece a estética
como elemento de interlocução com o leitor. As imagens elaboradas por Craveirinha referen-
ciam-se na realidade; mas a linguagem que utiliza para representá-las excede o estatuto da
palavra.
Se o conceito se nega inteiramente à razão, basta-nos a emoção do texto poético:
AFORISMO
O preconceito da ave
não é o tamanho das suas asas
nem o ramo em que poisou
191
Mas a beleza do seu canto
a largueza do seu voo...
e o tiro que a matou. (OP, p. 72)
A poesia, para que alcance a verdade de seu texto ? ainda que não em seu texto ?
vale-se tanto da experiência social comum ao escritor e ao leitor quanto da estética elaborada,
a qual evidencia a situação experimentada pelo poeta/sujeito poético. A linguagem é o ins-
trumento essencial dessa estética, porque aproxima o texto de cada indivíduo leitor através de
histórias comuns que fazem dele um partícipe pela vivência ou pelo conhecimento adquirido.
É também pela estética que o mundo, não perdendo completamente suas imagens fundadoras,
as tem transformadas pelo deslocamento do signo que só a técnica permite ao poeta.
Aliado ao engenho poético, o saber da técnica constrói o poema, como afirma Octavio
Paz:
A técnica não é nem uma imagem nem uma visão do mundo: não é
uma imagem porque não tem por objeto representar ou reproduzir a realida-
de; não é uma visão porque não concebe o mundo como figura, e sim como
algo mais ou menos maleável para a vontade humana. Para a técnica o mun-
do se apresenta como resistência, não como arquétipo: tem realidade, não fi-
gura. Essa realidade não se pode reduzir a nenhuma imagem e é, ao pé da le-
tra, inimaginável. O saber antigo tinha por fim último a contemplação da
realidade, fosse presença sensível ou forma ideal; o saber da técnica aspira
substituir a realidade real por um universo de mecanismo. (PAZ, 2005, p.
103)
No jogo de deslocamento dos signos, o poeta/sujeito poético subverte a hierarquia das
formas e apresenta a sua proposta de apreensão do objeto, em processo subjetivo.
A amizade entre José Craveirinha e Luís Bernardo Honwana registra-se, para admira-
ção e encanto do leitor, em diversas páginas de Poemas da Prisão. A técnica oferece o verso
que se faz pela “vontade humana”, e reafirma pela estética singular o que não se deseja apre-
ender pelo processo mimético usual, porque o que se constrói como verso é o que destrói co-
mo realidade:
CIVILIZAÇÃO
Para o meu irmão, esse garoto Luís Bernardo
192
Peixes de alumínio a jacto
nadam rugindo
velozes na granja dos ares.
Dentro
conduzem vermes desumanizados
com órbitas automáticas de radar
na insaciável gula
das ovas que excedem o ventre
e explodem no alvo
de crianças que não crescerão nunca
ou mães que não chorarão mais.
E quantos de nós
os paranóicos ferros das peseudo-janelas
insofisticáveis, Luís, mesmo assim
permanecemos inteiros como dantes...
(...) (PP, p. 37)
A poesia de Craveirinha não é meramente descritiva. Ela lança no interior do discurso
uma sucessão de imagens, metáforas construídas em processo estético que não são apenas
conceitos, mas novas realidades com as quais o poeta e o leitor devem lhe dar, sem, contudo,
perder a relação com a imagem primeira lançada em suas consciências individuais.
Nietzsche analisa o ser do poeta e o uso da metáfora em poesia:
(...) o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam
diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra. Por uma fraqueza
peculiar de nossa capacidade moderna, tendemos a complicar o protofenô-
meno estético e a representá-lo de maneira muito complicada e abstrata. A
metáfora é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma i-
magem substitutiva, que paira à sua frente em lugar realmente de um concei-
to. (NIETZSCHE, 2005, p. 59)
Os versos de Craveirinha restabelecem, no texto, o processo estético pelo qual impri-
me ao enunciado sua capacidade de ver além do conceito, ver a imagem como metáfora que
se realiza sobre a imagem inicial recebida por sua consciência. A realidade é devolvida ao
leitor/receptor, que identifica os matizes que se intensificaram pelo recurso de linguagem uti-
lizado, construindo uma nova consciência social, política e ideológica:
CÃES AO DESBARATO
Um género de cães ao desbarato
193
poetas cafres adoçam as nongas
ancestrais dos versos na obsessiva
carne terra dos açaimos
e não choram...
Batem! (OP., p. 68)
Os poemas de Karingana ua Karingana são exercícios de metaforização da realidade.
Todas as imagens recebidas pelo sujeito poético redimensionam-se no fazer literário de Cra-
veirinha, e cabe ao leitor identificar as relações estabelecidas entre o real e o ideológico, para
além de um conceito estratificado da situação política que vive o país e o povo moçambicano.
Em “Síntese”, duas imagens se destacam no texto como metáforas da esperança que se
autentica sobre a inevitável dor e indica um novo tempo de liberdade Toda a dura realidade
adquire, esteticamente, imagens de conciliação entre o homem e a natureza:
Na cidade
alinhadas à margem as acácias
ao vento urbanizado agitam
o sentido carmesim das suas flores.
E um
menino com mais outros
meninos todos juntos
um dia
fecundam na síntese da rua
cidade e subúrbios
meninas e flores. (OP, p. 78)
O ser poético de Craveirinha elabora imagens que se sobrepõem em movimento, ainda
não definida a forma de sua existência, porque dela depende o engenho do poeta. Bakhtin, ao
propor uma compreensão da imagem na literatura, faz a seguinte distinção para a poesia:
Na imagem poética, em sentido restrito (na imagem-tropo), toda a a-
ção, a dinâmica da imagem-palavra, desencadeia-se entre o discurso (em to-
dos os seus aspectos) e o objeto (em todos os seus momentos). A palavra i-
merge-se na riqueza inesgotável e na multiformidade contraditória do pró-
prio objeto com sua natureza “ativa” e ainda “indizível”; por isso, ela não
propõe nada além dos limites de seu contexto (exceto naturalmente o tesouro
da própria língua). A palavra esquece a história da concepção verbal e con-
traditória do seu objeto e também o presente plurilíngüe desta concepção.
(BAKHTIN, 1998, p. 87)
194
Imagem e contexto, desenhados pela palavra poética, então, propõem uma perspectiva
do objeto que não se limite à sua forma aparente. Nesse processo de construção literária, os
fatos externos apresentam-se como sínteses da realidade externa, em “3 dimensões”:
Na cabina
o deus da máquina
de boné e ganga
tem na mão o segredo das bielas.
Na carruagem
o deus da primeira classe
arquitecta projectos no ar condicionado.E no ramal
pés espalmados no aço dos carris
rebenta pulmões o deus
negro da zorra. (OP, p. 71)
São ainda as metáforas em oposição que mostram a realidade dual que não se compre-
ende pela lógica, em expressão científica, mas pelo trágico, em expressão do real, como no
poema “Machimbombos”:
Nas tépidas ilhargas
dos machimbombos os frutos
silvestres aos cachos vão amadurecendo
ao mobiloil do desespero no estribo
enquanto o alcatrão
da rua em comissuras de saibro
plagia o azimute das mamanas
perplexas na paragem
radical. (ibid., p. 82)
O que há de tragédia na poesia de Craveirinha é o que há de tragédia na vida de Mo-
çambique. Por isso a metáfora é um jogo do qual o poeta participa, porque nele a consciência
social atua incessantemente, identificando o cerne da dor.
No longo poema “Ode a uma carga perdida num barco incendiado chamado Save”,
homens são cargas e o destino fatal é revisitado pelo poeta na mais dolorosa estética. Na epí-
grafe do texto, o autor atesta o compromisso com a realidade circundante que habita nele co-
mo espíritos indomáveis: Quantos morreram nos porões? Os que estavam lá e nós. (ibid., p.
26) Outro recurso estético importante é utilizado no poema: a repetição. O texto ressoa na
195
cabeça do leitor como um tambor que pretende alertar consciências, marcando em cada ato a
tragédia que acomete o homem africano:
O barco era grande
era grande mas não chegava.
Os porões eram enormes
eram enormes os porões mas não chegavam.
Os beliches eram muitos
eram muitos os beliches mas não chegavam
e o barco encalhou.
Mas a mercadoria disciplinada coube
e quando o grande barco da Companhia encalhou
a carga de fardos de caqui e botões doirados
inteira renunciou.
(...)
II
Quem foi que gritou?
Foi a carga.
Quem foi que ardeu?
Foi a carga.
Quem foi que explodiu?
Foi a carga.
Quem foi que desapareceu?
Foi a carga.
A carga consumiu as forças
últimas dos braços e das pernas ardendo
últimas dos olhos vítreos e das mãos queimadas
últimas dos gritos consumidos pelas chamas
últimas da suruma
nos hiatos de agonia.
(...) (ibid., p. 26-7)
A força das imagens utilizadas por Craveirinha para falar da vida colonial em sua Mo-
çambique interfere na realidade, não para a alterar, mas para a clarificar. As imagens elabora-
das pelo poeta proclamam em cores subjetivas a existência em Moçambique. A estética que
traduz a dor na busca do pleno conhecimento de sua vivência e da sociedade de que participa
não inibe, entretanto, a voz de esperança que emerge do mais profundo lamento.
196
6.4 - O “outro” em si: o equilíbrio na formação da subjetividade na poesia de Craveirinha
Não gosto muito do termo “raça”; raça negra, ra-
ça mulata, raça branca... A raça é humana
José Craveirinha
O contato entre o homem negro e o homem branco deixou marcas que se inscreveram
muito além das estórias de dor e resistência. A cor da pele por vezes alterada; as línguas au-
tóctones em proibição; os costumes modificados: registros de uma convivência que, embora
conflituosa, arraigou-se na existência a africana.
Do tempo da aculturação e assimilação ao início do movimento de luta pela liberdade,
o homem africano percorreu os difíceis caminhos da convivência forçada com o “outro”.
Tendo início o processo de conscientização política pelo qual discursos ideológicos vão ser
inaugurados, a atitude de negação do “outro” faz-se presente nas literaturas africanas de ex-
pressão portuguesa. Salvato Trigo esclarece o quadro da emergência do texto literário com-
prometido com a ideologia da negritude:
As literaturas africanas assumem-se como outras, num primeiro mo-
mento, em que desejam ganhar distância e afirmar-se como diferentes da li-
teratura colonial. Esta, recorrendo embora a motivos composicionais africa-
nos, revela um imaginário tipicamente ocidental, afastando-se, portanto, da
literatura matricial, a metropolitana, apenas em aspectos verbais ou retóricos
superficiais, que lhe conferem um certo sabor local. A sua reclamação de a-
fricana é meramente geográfica, uma vez que, antropológica e civilizacio-
nalmente, não reflecte africanidade. (TRIGO, s/d, p. 62)
Duas matérias, ainda discutidas e nomeadas por Salvato Trigo, se destacarão nas lite-
raturas, reflexo da situação colonial: a “alteridade verbal” e a “alteridade cultural e psicológi-
ca”. A primeira expressa uma contaminação da língua portuguesa pelos falares africanos, por
seu índice de oralidade, o que projeta, no cerne do conceito de dominação, a insubmissão. A
segunda alteridade assinala-se na construção da identidade do africano, dúplice na medida em
que reafirma os valores negros, mas não nega completamente a contribuição dos valores oci-
197
dentais para a sua formação humana e social. Em análise mais específica:
Reconhece-se que o equilíbrio cultural e psicológico do colonizado e do afri-
canizado
35
é complexo, na medida em que a assimilação de valores alieníge-
nos a que esteve sujeito não é toda ela negativa. Por outro lado, dos valores
culturais negros a que a sua conscientização cívica e política lhe impõe que
regresse, nem todos são aceitáveis ou desejáveis, por historicamente anacró-
nicos ou por inadequação à nova realidade constituída pelo contacto coloni-
al. Assim, há que encontrar o espaço e o tempo anteriores à fractura do “eu”,
isto é, a axiologia da ataraxia cultural e psicológica que a nova geração de
intelectuais africanos esclarecidos elege como modelo para o seu reencontro
com a África, que o mesmo é dizer, consigo próprios. (ibid., p. 70)
As duas alteridades de que trata Salvato Trigo ? a verbal e a cultural e psicológica ?
representam-se no poema “Fraternidade das Palavras”:
O céu
é uma m’benga
onde todos os braços das mamanas
repisam os bagos de estrelas.
Amigos:
as palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.
E eis que num espasmo
de harmonia como todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam em poema. (OP, p. 203)
Tendo a língua como elemento fundador de uma nova identidade, as duas alteridades
anteriormente destacadas entremeiam-se no dizer poético de Craveirinha, redefinindo o novo
homem moçambicano. A língua, de instrumento de luta e resistência, passa a instrumento de
transformação do futuro. A oralidade é tida como expressão máxima da africanidade. A litera-
tura, herança inconteste da civilização e da colonização ocidentais, não negou, em seus ver-
sos, a expressão oral, marca mais evidente de tradições culturais que não se permitiam diluir
35
Salvato Trigo faz uma distinção entre “colonizados” e “africanizados”. De acordo com o autor, o segundo
termo assinala a existência de europeus ou euro-africanos, especialmente intelectuais, que devendo estar, em
princípio, associados ao grupo de colonizadores, optaram por pertencer, por sua ideologia e por sua práxis, ao
grupo dos colonizados. (TRIGO, s/d, p. 62-3)
198
em novas formas de expressão. A literatura, assim, não é apenas instrumento de resistência,
mas também de prazer, como sintetiza Laura Cavalcante Padilha: “O advento da escrita des-
loca o gozo do texto da voz para a letra”. (PADILHA, 1992, p.32) A poesia, então, reflete
essa proposta ideológica, adequando-se ao signo oral, escapando à racionalidade da escritura
que procura submeter os textos em prosa pela excessiva sintaxe, pela delimitação das idéias
em complexos morfossintáticos. Corresponde ao estatuto da poesia a flexibilidade exigida
pelo deslocamento das formas rígidas da língua escrita para a expressão oral: “A poesia é en-
carada como perfeitamente compatível com a categoria de ‘oral’, que conota espontaneidade,
afinidade simpática com o ser e a espiritualidade”. (LEITE, 1998, p. 16)
O poeta tem consciência de que a língua foi o instrumento de sua europeização. Mas
sua condição de assimilado não o faz perder, definitivamente, os laços que o mantêm preso às
suas origens. Retomando o direito de expressão, o poeta investe o sujeito poético da certeza
de que seu verso calará as marcas da colonização para fazer emergir a mais pura nacionalida-
de, alicerce de qualquer transformação que se pretenda pôr em prática. E quando proibiram a
palavra ronga, Craveirinha usou a palavra algarvia para falar. Mas, então, proibiram o poeta
também de falar. Porém, o silêncio durou pouco, porque emergiu dele a vontade de luta irma-
nada no sofrimento. Ressurgiu a palavra, fez-se o poema, o “Poemeto”:
Na cidade calada à força
agora falamos mais.
Que para violar este silêncio
basta porem-nos juntos
na prisão. (C1, p. 44)
Se a língua oficial portuguesa insiste em direcionar o homem africano para uma cultu-
ra exógena, que o leva, fatalmente, a um pensar ocidentalizado, é a oralidade, manifestação de
margem, que faz o poeta retornar à sua realidade, investigá-la e relevar, no verso, todos os que
a política colonial abandonou. O poeta entende que fazer ressurgir essas vozes e esse jeito de
falar africano representa reconstruir África a partir de suas origens.
199
Ao procurar compreender que proposta de nação emerge do povo, Homi K. Bhabha
estabelece que “o povo não mais estará contido naquele discurso nacional da teleologia do
progresso, do anonimato dos indivíduos, da horizontalidade espacial da comunidade, do tem-
po homogêneo das narrativas sociais, da visibilidade historicista da modernidade”. (BHA-
BHA, 1998, p. 213) Recorrendo a Foucault, o autor indo-britânico entende que há uma rela-
ção intrínseca entre a “integração marginal do indivíduo” e a “totalidade social”, da qual se
depreende que a individualidade se intensifica de acordo com a condição marginal em que é
colocado o indivíduo, de onde emergem discursos que projetam a nação moderna, à parte a
constituição do estado e a ascensão do individualismo burguês. Homi Bhabha conclui o racio-
cínio: “Essa é uma lição da história a ser aprendida com aqueles povos cujas histórias de mar-
ginalidade estão enredadas de forma mais profunda nas antinomias da lei e da ordem ? os
colonizados e as mulheres”. (ibid., p. 214)
A consciência de ser colonizado e marginalizado instrui no poeta duas atitudes com-
plementares: a primeira concerne à valorização da oralidade, marcando a tradição de um povo
que, como força integradora, não se submete ao estado totalitário colonizador; a segunda
promove, no fundo da marginalidade a que é lançado o indivíduo, a sua elevação histórica,
que não se dá pelos discursos oficiais, mas se glorifica pela memória dos que identificam a
própria cultura e a própria existência pelas histórias que contam. E aí o poeta vence o tempo e
permanece em sua nação, pela voz de seu povo, eternizado na cultura oral e na valorização da
ancestralidade.
Se a cultura européia define-se pela escrita, pelos livros que circulam entre os países
que formam uma cultura que se homogeneíza, o contrário ocorre com África, visto que “a
dominante em matéria de cultura desloca-se do escrito para o oral”. (AGUESSY, DIAGEE,
1977, p. 94) A oralidade pode surgir na poesia como práxis africana, “não só no que se rela-
ciona com as fontes dos valores culturais mas também no que se refere ao estatuto e ao desti-
200
no prático das condições e dos agentes de transmissão do modo de concepção do mundo”.
(ibid.) As vozes das mamanas repassam as histórias que se perpetuam, garantido a existência
da africanidade e do orgulho pátrio. O sujeito poético guerrilheiro terá confirmado, assim, o
seu exemplo de resistência e amor por África:
DÁDIVA DO CÉU
Minha guerra
será contra os pára-quedistas
suspensos entre céu e terra.
Morrerei na minha guerra
ou levarei nos braços de guerrilheiro
para as crianças da minha terra
as sedas lançadas
do bojo do bombardeiro.
E a minha glória
serão as mães contando aos filhos
a história do primeiro
autêntico vestido de seda
dádiva do céu. (OP, p. 81)
A oralidade, no contexto africano, não é uma expressão individualizada, daí sua força
como elemento sintetizador da esperança de liberdade para toda uma nação, pois “quando
falamos de oralidade como característica do campo cultural africano, pensamos numa domi-
nante e não numa exclusividade”. (AGUESSY, DIAGEE, 1977, p. 108) A certeza da oralida-
de a perpetuar a sua história e a história de seu povo, Craveirinha registra nos versos do poe-
ma “Karingana ua karingana”. O sujeito poético projeta no futuro o sonho impossível de se
realizar no tempo presente. Era uma vez a vida que se inventa pela poesia:
Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
? Karingana ua Karingana ?
é que faz o poeta sentir-se gente.
E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.
201
? Karingana! (OP, p. 65)
O que evidenciamos, nessa perspectiva, é a compreensão ulterior do escritor africano
de que simplesmente recusar o “outro” em si mesmo é uma atitude que o coloca em confronto
na estância do ser, com o que identifica em si, mas não aceita, convergência de imagens que
se pretendiam inversas.
Durante todo o tempo que planeou a anulação do “outro”, o escritor africano, e em
nosso caso o moçambicano Craveirinha, evidenciava esse “outro”, cerceando, a si mesmo, o
direito de constituir-se plenamente como sujeito, o sujeito possível de ser em termos de colo-
nização. Ao discutir o problema da alteridade, Frantz Fanon alerta, em Pele Negra, Máscaras
Branca:
O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro ho-
mem, a fim de ser reconhecido por ele. Enquanto ele não é efetivamente re-
conhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação. É des-
te outro, é do reconhecimento por este outro, que dependem seu valor e sua
realidade humana. É neste outro que se condensa o sentido de sua vida.
(FANON, 1983, p. 176)
Como vimos anteriormente, foi movimento poético em Craveirinha o alijamento do
“outro” para a sobrevivência do “eu”. Tanto pela inscrição negativa do “outro” branco, quanto
pela afirmação positiva do “eu” negro, o discurso do poeta foi o da revivescência do africano
pelo aniquilamento do europeu. Mas na dinâmica da escritura, um movimento distinto se re-
vela: o da aceitação do exógeno como elemento partícipe da identidade que se pensava inte-
gralizada na fundação do negrismo. Resultado da evolução de um pensamento que não se
mantém na fixidez das normas da existência:
É na medida em que ultrapasso meu ser imediato que apreendo o ser
do outro como realidade natural e mais do que natural. Se fecho o circuito,
se torno irrealizável o movimento nos dois sentidos mantenho o outro no in-
terior de si mesmo. Chego ao extremo de lhe tomar até este ser-para-si.
O único método para romper este círculo infernal que me reporta a
mim mesmo é restituir ao outro através da mediação e reconhecimento, sua
realidade humana, diferente da realidade natural. Ora, o outro deve efetuar a
mesma operação. (ibid., p. 177)
202
Neste segundo momento histórico, o sujeito poético entende que foi irremediavelmen-
te transformado pela presença do “outro” estranho a ele. O “outro” pode ter sido aniquilado
do espaço e do tempo estabelecidos pelas marcas coloniais, mas suas marcas identitárias fica-
ram impressas no corpo e no espírito do homem africano.
O “eu” legitimamente africano é discurso. Ele, de verdade, nunca se qualificou social-
mente, visto que, na ausência do “outro”, não se dava conta de sua própria constituição como
sujeito. O “eu” africano somente pode ser compreendido em função histórica, como observa
Honorat Aguessy:
Trata-se de uma sociedade [africana] onde o universo e a vida não poderiam
ser assumidos por um indivíduo reduzido ao solipsismo. O «outro» está
sempre implicado e integrado no que condiciona, quando não determina con-
juntamente o «eu», o «nós»: a anterioridade ou, pelo menos, a simultaneida-
de da comunidade, a partir do momento em que surge o «eu». (AGUESSY,
DIAGEE, 1977, p. 133)
Ao investigarmos a obra de José Craveirinha, vemos nitidamente essa proposta. Em
Poemas da Prisão, esta característica se evidencia, o que, a princípio, institui-se como um
paradoxo, visto que o poeta vivia as circunstâncias inequívocas da violência colonial. Mas é
nesse livro que vamos encontrar, ao lado dos poemas de revolta ou de dor, os textos que inse-
rem o branco europeu na formação cultural e psicológica do negro africano.
Consciente de si e do mundo, o poeta-prisioneiro-sujeito poético reflete sobre a cultura
estranha que assimilou e tenta compreender que valor ainda persiste na radicalização das idéi-
as. Com fina ironia, faz uma revisão de velhos conceitos e propõe a si mesmo o equilíbrio
necessário para a manutenção de sua lucidez:
(...)A sede faz-me beber uma “coca-cola” média. Isto de ingerir uma bebida
americana-yankee não será um acto de submissão ao dólar?
Mau. Começo já a torturar-me com preconceitos e políticas. A “coca-
cola” é um refresco e... pronto. Se começo a preocupar-me com uma simples
“coca-cola” terei de despir a camisa, as calças, as cuecas e as peúgas e não
calçar mais sapatos pelo menos estes que eu uso e de que gosto e voltar
a um nativismo de tanga e azagaia.
Mas o nativismo é inimigo da evolução? Se é, bolas para o nativismo.
Mas se não é, então declaro-me nativista-progressivo e está tudo em ordem.
203
E crio um termo.
(...) (PP, p. 88)
Não se negando a discutir todas as formas de alteridade, buscando soluções às vezes
reais e realizáveis, às vezes fruto do sonho irrealizado, o poeta coloca em questão o “Racis-
mo”:
Amigo:
Tremo o medo
de ouvir o medo rastejar
em mim adentro
no quase hoje ao amanhã.
(...)
Ah!
Espírito de árvores ao vento
chocalha-me as missangas do transe
e afugenta a enguia do medo...
Que a vida
é um homem todo eu
negro-mulato-branco
livre pisando tacões
nos asfaltos de todo o mundo. (ibid., p. 87)
O reconhecimento do “outro” em si mesmo não se dá sem dor e emoção. E a experiên-
cia de alteridade na formação da subjetividade que se revela mais intensa é a relação fraternal
do homem Craveirinha, sujeito poético mulato moçambicano, com a imagem de seu pai al-
garvio:
(...)
Pai: a ti e à minha mãe
perdoo-vos o amor frustrado
mulungo e negra sobre a terra
ambos luxúria e submissão
a copular evoluindo em mim.
Querido pai:
Algures escuto o lamento
da minha mãe no meu parto
mãe como todas as mães ao vagido
primeiro em que os filhos
reagem para o exterior dos sexos.
Não faço perguntas.
Deixo aos doutores o porquê
204
(até rebentarem de sociologia)
e calo-me. (ibid., p. 84)
Reconhecer o pai em si mesmo não significa abdicar de sua africanidade mais genesí-
aca (Oh, Pai: / Juro que em mim ficaram laivos / do luso-arábico Aljezur da tua infância /
mas amar por amor só amo / e somente posso e devo amar / esta minha única e bela nação do
Mundo / onde minha Mãe nasceu e me gerou / e contigo comungou a terra, meu Pai.) (OP, p.
158); reconhecer o pai em si mesmo representa não alienar de sua experiência as marcas de
alteridade que o constituem integralmente José João Craveirinha:
(...)
E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem do meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro extra-português
número UM Craveirinha moçambicano! (ibid., p. 161)
Por esses processos históricos, sociais e identitários, os falares de Craveirinha multi-
plicam-se por vozes que se alternam na sua própria voz, porque ele pretendeu, sempre, dar
conta de realidades que não se limitavam à sua própria experiência, mas não negou, à realida-
de, a vivência e a emoção que eram somente suas.
205
7. SIGNOS DE AMOR NA CONSTRUÇÃO DO “EU”
7.1 - Em repouso de alteridade: o poema na estância do sujeito amoroso
Perturbação, ferida, aflição ou júbilo: o corpo, de
ponta a ponta, arrastado, submerso em Natureza, e
tudo isso, no entanto: como seu eu usasse uma ci-
tação. No sentimento de amor, na loucura amoro-
sa, se eu quiser falar reencontrarei: o Livro, a Do-
xa, a Bobagem. Embaralhamento do corpo e da
linguagem: qual deles começa?
Roland Barthes
“Conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), proposta socrática que fundamentou o e-
quilíbrio e a ciência, foi reinterpretada em diversos textos, conforme a ideologia que vigorasse
em determinada época. Michel Foucault, ao estudar as relações entre subjetividade e verdade,
na obra A Hermenêutica do Sujeito, identifica o axioma socrático com o “cuidado de si mes-
mo” (epiméleia heautoû). (FOUCAULT, 2004, p. 4-5)
Foucault alerta para o fato de que o “conhece-te a ti mesmo” não tinha, originariamen-
te, o valor que hoje se lhe atribui, no sentido filosófico e de moral, mas como recomendação
para que o homem se reconhecesse como mortal e não como um deus, a fim de não se con-
frontar com as potências divinas.
36
Entretanto, reconhece Foucault que, no âmbito da filosofi-
a, o “conhece-te a ti mesmo” vem associado à figura de Sócrates. E é dessa forma que se a-
36
Segundo o estudo de Foucault, fundamentado no artigo Philologus (1901), de W. H. Roscher, são três os prin-
cípio que deveriam nortear o homem que fosse consultar o oráculo délfico. Além do “conhece-te a ti mesmo”
(gnôthi seautón), havia outros dois: “nada em demasia” (medèn ágan), que concerne a reduzir as questões a
serem apresentadas, e “as cauções” (engýe), princípio que orienta a não prometer aos deuses o que não se pode
cumprir. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 6.
206
proxima do “cuidado de si”, como no texto de Platão denominado A Apologia de Sócrates.
Portanto, “conhece-te a ti mesmo” estaria vinculado à idéia de que “é preciso que te ocupes
contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidados contigo mesmo”. (i-
bid., p. 7)
Considerando tal análise, encontra-se em Sócrates uma figura paradoxal. Ao mesmo
tempo em que incitava os outros a conhecer-se ou cuidar de si, o filósofo tinha, cônscio de ser
um enviado dos deuses, o olhar para fora de si, para o outro. Assim, Foucault propõe a com-
preensão do “conhece-te a ti mesmo” a partir de três formulações teóricas: a primeira indica
uma forma de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro; a segunda orien-
ta a voltar os olhos para si mesmo, ter atenção com seus próprios pensamentos; a terceira for-
mulação instrui a assumir ações que promovam modificações, purificações, transformações e
transfigurações no ser.
37
(ibid., p. 14-15)
Acerca dessas proposições, conclui Foucault:
Temos, pois, com o tema do cuidado de si, uma formulação filosófica preco-
ce, por assim dizer, que aparece claramente desde o século V a.C, e que até
os séculos IV-V d.C. percorre toda a filosofia grega, helenística e romana,
assim como a espiritualidade cristã. Enfim, com a noção de epiméleia
heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude,
formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno ex-
tremamente importante, não somente na história das representações, nem
somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da
subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. (i-
bid., p. 15)
Vemos, assim, que Foucault chama atenção para o fato de que, após o século V d.C, o
“cuidado de si” foi substituído pelo “conhece-te a ti mesmo”. Explica-nos o autor que tal pro-
posição viria de uma moral condenatória da atitude de voltar-se para si como um comporta-
mento que representaria “uma espécie de desafio e bravata, uma vontade de ruptura ética, uma
espécie de dandismo moral, afirmação-desafio de um estádio estético e individual intranspo-
37
Esse processo, segundo Foucault, é conseqüência de algumas técnicas a serem exercidas, como, por exemplo,
“as técnicas de meditação; as de memorização do passado; as de exame de consciência; as de verificação das
representações na medida em que elas se apresentam ao espírito, etc.”( FOUCAULT, ob. cit., p. 15)
207
nível”. (ibid., p. 16).
Uma segunda hipótese para o problema colocado seria a admissão de uma incapacida-
de humana do homem para “sustentar, perante seus olhos, entre suas mãos, por ele próprio,
uma moral coletiva (a da cidade, por exemplo), e que, em face do deslocamento da moral co-
letiva, nada mais então teria senão ocupar-se consigo”. (ibid., p. 16-7) Em todo o caso, qual-
quer que seja a razão, o conceito sustenta-se como uma contradição relativamente ao princípio
pregado por Sócrates, pois se inscreve como dado negativo, ao passo que o “ocupar-se consi-
go mesmo” foi instruído como princípio positivo.
Seja pela moral cristã que estabelece a ética do não-egoísmo, seja pela pelas concep-
ções modernas de que é necessário e “moral” ocupar-se com o outro, estabelecido individu-
almente ou como coletividade, o fato é que o “cuidado de si” é um conceito que permaneceu
no esquecimento ou teve deslocado o seu sentido primeiro.
Michel Foucault prossegue com suas hipóteses sobre os motivos que levaram o ho-
mem a desconsiderar o “cuidado de si”. Apresenta o autor uma outra razão, que é a instituição
do princípio cartesiano, que requalificou o gnôthi seautón e desqualificou o epiméleia
heautoû. Temos, neste caso, o domínio da consciência no conhecimento de si e no estabele-
cimento da existência do ser como sujeito, caminho de “acesso fundamental à verdade” (ibid.,
p. 19) e procedimento aceito e praticado a partir do século XVII.
É nesse ponto exato, o da busca da verdade, que nos interessa particularmente o estudo
de Foucault, pois ele estabelecerá o axioma que nos ilumina em direção àquilo que havíamos
intuído quando se nos tomou de assalto ? por deleite e estranhamento ? a poesia que consi-
deramos a mais subjetiva de Drummond e de Craveirinha, e que nos levou a enveredar por
estas considerações acadêmicas.
Retomamos o raciocínio. O homem, segundo Foucault, segue duas direções rumo à
verdade: a espiritualidade, que postula que a verdade nunca será alcançada pelo sujeito atra-
208
vés do conhecimento, e que, para alcançá-la, é necessário que o sujeito se modifique, trans-
forme e desloque a tal ponto que não seja ele mesmo; e o conhecimento, condição moderna
que propõe o encontro da verdade apenas pelo caminho infinito do conhecimento.
38
(ibid., p.
20-3)
se forma um paradoxo que, mais uma vez, joga luzes sobre o que deduzíamos como
efeito de deslumbramento:
O conhecimento se abrirá simplesmente para a dimensão indefinida de um
progresso cujo fim não se conhece e cujo benefício só será convertido, no
curso da história, em acúmulo instituído de conhecimentos ou em benefícios
psicológicos ou sociais que, no fim das contas, é tudo o que se consegue da
verdade, quando foi tão difícil buscá-la. Tal como doravante ela é, a verdade
não será capaz de salvar o sujeito. Se definirmos a espiritualidade como o
gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de
verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o
sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e ver-
dade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz
de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o suje i-
to. (ibid., p. 24)
O que vimos até aqui foi a sobrelevação do “outro” ante o “eu”. E todas essas formu-
lações explicam o pensamento humano que resultou na “poesia de intervenção” investigada,
neste estudo, pelas vozes poéticas de Drummond e de Craveirinha.
Depreende-se, então, que o “cuidado de si” não prescinde da relação com o “outro”.
Sob tal proposta, identificamos no corpus desta pesquisa as diversas relações firmadas entre o
“eu” e o “outro”, mesmo quando se propunha a elisão do primeiro para a fixação do segundo.
Evidenciamos, dessa forma, uma via de interpretação do “conhece-te a ti mesmo” e do
“cuidado de si” que nos leva tanto ao objeto quanto ao sujeito, e assim compreendemos que
tanto Carlos Drummond de Andrade quanto José Craveirinha constituem-se exemplos dessa
teoria filosófica. Todavia, ao citarmos Foucault nesse ponto de nossos estudos, pretendemos
38
Neste ponto da discussão, entre os postulados da espiritualidade e do conhecimento, Foucault insere a gnose, à
qual não nos dedicamos na investigação da tese, visto tratar-se de uma corrente filosófico-religiosa-esotérica
surgida nos primeiros séculos da era cristã, rejeitada tanto pelos Padres da Igreja Cristã quanto pela filosofia de
inspiração platônica. O gnosticismo admitia a possibilidade de o homem iniciado alcançar a verdade pela revela-
ção de um conhecimento sobrenatural, o que levaria à liberação da alma e à vitória sobre um poder cósmico
maléfico. (ibid., p. 33)
209
relevar uma posição do sujeito que nos parece fundamental para compreender a trilha que
seguiremos doravante: a do sujeito que se fala na poesia de Drummond e de Craveirinha.
O “cuidado de si”, seguindo a tese de Michel Foucault, transforma-se em “conversão
de si”. Por este movimento, o sujeito se volta para si e se consagra a si mesmo. Das muitas
expressões em latim e em grego que conferem sentido ao “retornar a si”
39
, Foucault elege
duas proposições que ressalta na discussão. A primeira idéia destacada é a de que existe um
“movimento real do sujeito em relação a si mesmo. (...) O sujeito deve ir em direção a algu-
ma coisa que é ele próprio. Deslocamento, trajetória, esforço, movimento: é o que devemos
reter na idéia de conversão a si”. (ibid., p. 302) A segunda proposta apresenta o “tema do re-
torno, tema também importante, difícil, pouco claro, ambíguo”. (ibid.) Se ao homem é dado o
direito de voltar-se para si mesmo em diferentes esferas da existência ? ainda que não tenha
obtido sucesso senão pela arte, afinal, o que de fato nos interessa como objeto de pesquisa ?,
não seria menos meritório o desejo do poeta de descansar da alteridade à qual se dedicou in-
tensamente por longos anos de produção literária. O que pretendemos relevar é o sujeito poé-
tico que se traduz inteiramente em subjetividade, para além dos esboços desenhados que fo-
ram objeto de nossa análise nos capítulos anteriores. Nesse sentido, entendemos que Carlos
Drummond de Andrade e José Craveirinha convergem na mesma proposta de subjetividade:
ambos vão configurar no discurso amoroso, em suas diversas formas, a mais intensa expres-
são do “eu”. O “outro”, por vontade e decisão consciente do sujeito, existe na medida em que
constitui o “eu”. Ao propor o deleite à figura amada, o sujeito poético vivencia as delícias da
existência amorosa; ao lamentar as dores de amar, mergulha profundamente em sua própria
dor, incontida e amargurada. Se antes o “eu” existia em função do “outro”, agora o poeta se
dá o direito de fazer o “outro” existir para que o “eu” possa, enfim, experimentar suas pró-
prias emoções, no transbordamento de si mesmo.
39
As expressões destacadas por Foucault são: eph’heautòn epistréphein, eis heautòn anakhôreîn, ad se recurre-
re, ad se redire, in se recedre, se reducere in tutum (retornar a si, voltar a si, fazer o retorno sobre si etc.).
210
Antes, porém, é necessário mais um esclarecimento: não há a intenção de se discutir
teoricamente, seja por qual for o campo do saber, os conceitos amor, erotismo e sexualidade.
Não é propósito desta pesquisa, nunca é demais repetir, divagar por teses que nos levariam a
afastar-nos de nosso objeto central: as expressões da subjetividade na poesia de Drummond e
de Craveirinha.
7.2 - A experiência drummondiana de amar
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
Carlos Drummond de Andrade
As razões por que se fala de amor já foram todas apresentadas pelos muitos estudos
que a respeito do tema se fizeram conhecer. Nada de novo pode ser acrescentado. Todavia, há
muitos motivos que justifiquem uma investigação sobre o tema amoroso na obra de Carlos
Drummond de Andrade e, mais ainda, por que agora discutir o amor em separado do erotis-
mo, a ser investigado. Cabe, também, esclarecer porque debater o amor na obra do poeta,
quando ao sentimento não foi dedicada nenhuma obra especial.
40
40
Em 2005 foi publicado, pela editora Record, o livro intitulado Declaração de Amor, homenagem a Carlos
Drummond de Andrade feita por seus netos Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, mas a obra é uma
coletânea de poemas anteriormente publicados, os quais têm como tema o amor.
211
Para iniciarmos o estudo sobre o percurso poético-amoroso de Carlos Drummond de
Andrade, reproduzimos um argumento de Julia Kristeva que consideramos a tradução perfeita
do projeto em curso:
O amor é o tempo e o espaço onde eu se dá o direito de ser extraordinário.
Soberano sem sequer ser indivíduo. Divisível, perdido, aniquilado; mas tam-
bém, e pela fusão imaginária com o amado, igual aos espaços infinitos de um
psiquismo sobre-humano. Paranóico? Eu estou, em amor, no ponto mais alto
da subjetividade. (grifo nosso) (KRISTEVA, 1988, p. 25)
O sujeito poético, convertido em sujeito amoroso pela poesia, intensifica todos os sen-
timentos contíguos ao amor: as dores, as alegrias, as surpresas, os medos, os suspiros e os
gozos, os “segredos delicados, as “brandas horas”, os “suspiros magoados”.
Falar de amor é, agora e sempre, uma necessidade, pois “o ‘amor’ aparece-nos como
um imenso denominador comum, em função do qual tudo pode ser interpretado ? apenas
variarão as interpretações de tudo e do próprio Amor”. (SENA, 1992, p. 26) E onde o amor,
em Drummond? Disperso nos discursos e nos poemas, talvez disperso na proposição do sujei-
to poético, o amor pode ser deflagrado em meio aos muitos textos poéticos que se alimentam
de outros temas. Poderiam muitos argumentar que não há razões para, ainda, se discutir o a-
mor. Contra-argumentamos com “As sem-razões do amor”, para se discutir o amor:
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
212
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor. (PC, p. 1238-9)
Se o amor é um tema tratado por Drummond, muitas vezes, de maneira intelectualiza-
da e racional em sua poesia, o que não raro provoca no leitor o estranhamento (O amor atinge
raso, e fere tanto. / Nu a nu, / fome a fome, / não confiscamos nada e nos vertemos. E é terri-
velmente adulto esse animal / a espreitar-nos, sorrindo, / como quem a si mesmo se revela.)
(ibid., p. 436), outras tantas vezes inscreve-se sob o signo do desalento, da amargura e do de-
sespero; da “Destruição”:
(...)
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente. (ibid., p. 475)
O amor justifica a sua inscrição nos discursos, porque é o único sentimento que resga-
ta o sujeito do abismo que é para si mesmo: Eu te amo porque não amo / bastante ou demais
a mim.
O amor prescinde do corpo, do ser, da permanência do “outro” no “eu”. O “amar o
amor” é tema presente na teoria literária. Explica-se: não é a um outro que se ama, mas
ama-se estar em embriaguez de amor. O amor que liga dois amantes, como Tristão a Isolda no
exemplo de Denis de Rougemont, “não pertence a nenhum dos dois, mas deriva de uma força
estranha, independente das suas qualidades, dos seus desejos, ao menos conscientes, e do seu
ser, tal como o conhecem”. (ROUGEMONT, 1988, p. 33-4)
Também Roland Barthes utilizou personagens da literatura para representar o “amar o
213
amor”: Werther não ama Charlotte, mas o amor que em sua figura se justifica: “é meu desejo
que desejo, e o ser amado nada mais é que seu agente”. (BARTHES, 1995, p. 23)
Enquanto houver a consciência de si e do outro no ato de amar, não haverá a pleni-
tude amorosa. O sujeito poético sabe que o amor ainda é uma “Aspiração”:
Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
tudo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma. (PC, p. 1239)
Esse lamento de ainda não se amar na plena tessitura do amor é constante na poesia de
Drummond. E é quando, entendemos, a subjetividade se intensifica para além dos limites da
apreensão do leitor. Há uma dor que não se traduz, porque sentida tão vigorosamente que não
nos é dado capturá-la na análise. A interrogação é uma queixa: “Por quê?”:
Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer? (ibid., p. 1242)
O amor dito pelo poeta nem sempre é objetivado, matéria de experimentações teóricas
e lingüísticas, ou de análise do real apreensível. Muitas vezes, é amor subjetivado, por isso
mesmo quase inexplicável, quase intraduzível, mas dado ao sentir que se compartilha, porque
participar da leitura é estar, também, em estado de subjetividade. Todavia, a subjetividade
amorosa não exclui o estilo. Isso posto, retornamos a Gilberto Mendonça Teles, que apresen-
tou um dos registros estilísticos mais importantes da poesia drummondiana, que é a repetição.
Após questionar sob diversas propostas de criação literária o que representaria a repe-
tição no texto poético de Drummond, o autor propõe ao leitor a seguinte reflexão:
214
Até que ponto uma análise estilística pode pretender dar respostas sa-
tisfatórias e/ou mais ou menos exatas às indagações acima, é fato que real-
mente pode ser discutido. Mas é fora de dúvida que só a análise concomitan-
te de fundo e forma nos pode levar a esse ampliável horizonte da expressivi-
dade. (TELES, 1970, p. 67)
Sigamos em frente: a repetição, que tanto serviu ao verso estético de experimentação
lingüística e que às vezes cientificou o empírico e transformou tema sisudo em ironia brincan-
te, nos aparece, agora, como recurso de subjetividade. Curioso, porém, é que, ao selecionar
versos que atestassem a idéia, encontramos todas as propostas resumidas em “Quero”, poema
que traduz a experiência de um sujeito amoroso inseguro frente ao objeto amado, incerto de
sua exatidão e plenitude amorosa:
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
(...)
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
(...)
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor. (PC, p. 729)
Compartilha-se a experiência universal de amar. A dor de amar e a angústia de não
poder ou não saber amar, o medo de ser tarde demais o “Reconhecimento do Amor”:
Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
215
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.
(...) (ibid., p. 1275)
O sujeito poético, pelo amor, evidencia-se como sujeito e se dá a conhecer sem disfar-
ces e sem pudores, compartilha a vivência amorosa. O que se realiza no verso é a máxima
identificada por Octavio Paz: “o amor é desejo de completude e assim responde a uma neces-
sidade profunda dos homens” (PAZ, 1993, 57):
Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando por esperteza do amor senti que éramos um só.
(...) (ibid., p. 1275-6)
O sujeito do poema compreende, enfim, e aceita, que o sentimento que negou durante
todo o tempo de sua vida é o que, de fato, lhe dá o sopro da vida. Negado por ser subjetivo
demais, o amor cedeu lugar a sentimentos outros, à realidade que se imperava no existir para
o mundo; mas, para regozijo do sujeito poético amoroso e do leitor amoroso, impõe-se e con-
cebe a ligação eternal:
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstância, referências temporais,
imaginações oníricas,
216
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
à revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.
(...) (ibid., p. 1276)
Tempo perdido, tempo resgatado pelo desejo de amar. O reconhecimento do amor
consolida o sentimento e convoca os amantes à unidade:
Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar. (ibid.)
O tratamento dado ao amor, em poesia, não tem continuidade. Cada poema, e mesmo
cada verso, expressa uma visão particular do sentimento amoroso. Assim, surpreende-nos o
resgate dos códigos de amor cortês ? pela razão de viver, pela sublimidade e pela não-
correspondência amorosa ? que se estabelecem no texto denominado, de forma emblemática,
Amor”:
O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime selo
Que à vida imprime cor, graça e sentido.
*
“Amor” eu disse e floriu uma rosa
embalsamando a tarde melodiosa
no canto mais oculto do jardim,
mas seu perfume não chegou a mim. (ibid., p. 1278)
A ironia impressa em vários textos de Drummond, e que marca tão profundamente a
sua obra ? estilo e subjetividade ? também andou burilando os poemas de amor:
(...)
O amor bate na porta
217
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.
(...) (ibid., p. 47)
O amor, que em muitos poemas foi marcado em negativo, aparece pacificado quando
associado à maturidade, fase em que o sujeito poético pode regozijar-se com o sentimento que
lhe renova e o faz repousar na plena subjetividade:
CAMPO DE FLORES
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus ou foi talvez o Diabo deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Mas eu sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
(...) (ibid., p. 268)
As referências culturais sobre o amor compõem os versos de Drummond. Entretanto,
não tratamos de uma poesia que se elabora em concepções intelectuais alheadas a qualquer
subjetividade. Se localiza na filosofia ou na literatura canônica os conceitos constituídos sobre
o amor, o poeta assim age para que possa melhor se expressar, para entendimento e alcance de
muitos. Assim entendido, impossível se torna destituir da visão poética a subjetividade que
expressa, porque os versos não se limitam a refletir os códigos amorosos; eles reinscrevem, na
emoção mais genuína, a dor de amar sentida pelo sujeito poético.
O amor é um mal: assim o é nas cantigas medievais e na concepção camoniana. O a-
218
mor é um mal que fere, “mata e não se vê”. A cura seria a impossível unificação dos corpos e
das almas, desejo de completude perdido na Antigüidade:
PORQUE
Amor meu, minhas penas, meu delírio,
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá um’alma,
sabendo embora ser perdido intento
o de cingir-se forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes,
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.
Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não me libertas do teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,
por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
e fazer dessa chaga meu prazer? (ibid., p. 1426)
A poesia de amor de Drummond manifesta-se em muitos escritos, dispersos entre seus
livros. Mas a poesia subjetiva amorosa pertence a uma outra esfera de criação, a qual nos inte-
ressa particularmente. Por esse motivo, excluíram-se do trabalho: o amor narrativizado através
de uma lírica que evidencia o outro ( O amor determina hoje que se casem / minha amiga
Matilde e meu amigo Mário. Sua lei é sagrada) (ibid., p. 1284); a lírica posta em termos de
uma linguagem lúdica, amor como brincadeira feliz (Reloginho, reloginho, / embora apenas
suplente, / bate bate direitinho, / bate bem rapidamente / a hora de meu bem chegar.) (ibid.,
p. 1500); e as experimentações estéticas ( Trocaica te amei, com ternura dáctila / e gesto res-
pondeu. / Teus iambos aos meus com força entrelacei.) (ibid., p. 1189)
Destacaram-se todos os versos que lançaram, pela dor, pelo êxtase, pelo arrebatamen-
to, o sujeito no sentimento amoroso. Evidenciaram-se os versos que pungiam de forma latente
a subjetividade de um poeta que, por quase toda a sua vida, manteve o “outro” real e objetivo
no centro de sua criação. E que, mais subversivo do que se pensava antes, soube falar de amor
219
sem a formatação intelectual e racional que fez de sua poesia arte de intervenção.
7.3 - Carlos Drummond de Andrade: o corpo em êxtase
Ele tenta desenvolver um discurso que não se
anuncie em nome da Lei e/ou da Violência; cuja
instância não seja nem política, nem religiosa, nem
científica; que seja, de certa forma, o resto e o su-
plemento de todos esses enunciados. Como chama-
ríamos esse discurso: erótico, sem dúvida, pois ele
tem a ver com o gozo; ou talvez ainda: estético, se
previrmos submeter pouco a pouco essa velha ca-
tegoria a uma ligeira torção, que a afastará de seu
fundo regressivo, idealista, e a aproximará do cor-
po, da deriva.
Roland Barthes
À obra de Carlos Drummond de Andrade soma-se um livro intitulado O Amor Natu-
ral, publicação póstuma de 1992, que reúne poemas eróticos, cujos versos dão conta de um
sujeito poético que se inscreve em outras estâncias discursivas, ausentes de toda poesia lírica
que investigamos até aqui. Entretanto, é com esta obra que pretendemos elucidar, em fins de
investigação, a constituição do sujeito dummondiano.
A obra teve publicação póstuma, porque Carlos Drummond não aceitava levá-la ao
conhecimento do público. E a explicação do poeta para ter tomado essa decisão justapõe-se à
análise que empreenderemos:
até hoje perdura uma onda de pornografia com a qual eu não queria que se
confundissem meus versos ? que me parecem limpos, não têm palavras
chulas e vulgares e exprimem um sentimento amoroso que se completa entre
o elemento espiritual e platônico e o elemento físico. Eu quis fazer uma sín-
tese de modo a enobrecer as relações eróticas do amor. (MORAES NETO,
2007, p. 31)
220
O amor e o erotismo conferem ao sujeito o direito de inscrever-se como tal. Mas, con-
siderando que todo projeto se anuncia antes de sua consolidação, destacamos inicialmente o
livro Corpo que Drummond publica em 1984. O título não deixa dúvidas quanto ao escopo
literário que se apresenta. Estranha, então, que o poeta que havia universalizado seus temas
em direção ao “outro”; o poeta das mais altas elaborações intelectuais; o poeta que, no dizer
de Tristão de Athayde, “é mais espírito do que corpo” (PC, p. LXXII) tenha se voltado para
um tema que lhe seria tão pouco afeito ao longo de sua trajetória.
O poema que inicia a obra denomina-se “As contradições do corpo”, e suas onze estro-
fes, cada qual com cinco versos, falam apenas do corpo, “meu corpo”. Sobreposto ao ser, o
corpo; alheio às vontades do ser, aprisionador e ocultador do ser, oposto mesmo ao ser e à sua
essência, o corpo ganha vida própria:
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.
(...) (ibid., 1231)
Rebela-se o corpo contra a sujeição que lhe foi imposta pelo ser; o corpo, agora, con-
trola o “eu”:
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.
(...)
Quero romper com meu corpo,
221
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.
(...) (ibid., p. 1232)
Vencido após a luta inglória, o “eu” entrega-se à vontade do corpo:
Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.(ibid.)
Essa estranha dualidade corpo/consciência foi pensada por Paul Ricouer, o qual com-
preende, a partir do conceito de “particulares de base”
41
, que a noção primitiva de corpo asso-
cia-se à de pessoa, sendo-lhe, portanto, constitutivo e não inferior. Assim, para entender o
estatuto do “si mesmo”, é necessário destacar o papel do corpo no conceito de pessoa:
(...) dizer que os corpos são os primeiros particulares de base é eliminar co-
mo eventuais candidatos os acontecimentos mentais, digamos as representa-
ções, os pensamentos (...). Sua sorte como predicados específicos das pesso-
as é somente adiada. Mas primeiramente precisaria que fossem desalojados
da posição dominante de referentes últimos que ocupam num idealismo sub-
jetivista. (RICOUER, 1991, p. 47)
O poema de Drummond restitui ao corpo o seu lugar de destaque, muito embora o eu
poéticoo reconheça, de imediato, essa posição na constituição do sujeito. E somente após
esgotados os recursos para que o pensamento lógico voltasse à sua atitude dominante, o “eu”
cede ao corpo, e não o nega, envolvido por sua volúpia e por sua dança libertadora.
O corpo, destituído do seu papel dominante a partir do século XVII, juntamente com a
sexualidade, pela predominância de um discurso de pudicícia
42
, agora, pela voz drummondia-
41
O conceito de “particulares de base”, adotado por Paul Ricouer, foi apresentado por P. F. Strawson na obra Os
indivíduos (1959), o qual propõe que, para fazer a identificação de um indivíduo em relação a outro indivíduo,
seria necessário isolar, entre todos os particulares que poderiam fornecer dados sobre o indivíduo, alguns que se
destacariam como de base, sendo os mais fundamentais os corpos físicos e as pessoas que somos ainda vincula-
dos a uma noção primitiva (o que difere o conceito de pessoa do de sujeito da enunciação). (RICOEUR, 1991, p.
43-4)
42
Cf. Michel Foucault em História da sexualidade I a vontade de saber. Rio de Janeiro, 1985, p. 9.
222
na, desloca-se dos movimentos psíquicos e inteligíveis articulados pelo “eu” para impor sua
vontade de expressão, desobedecer as regras, pôr, enfim, o sujeito a perder.
O corpo assumiu um lugar de destaque na pós-modernidade, de acordo com a tese de
Terry Eagleton, com o esvaziamento das ideologias revolucionárias:
Como fenômeno obstinadamente local, o corpo combina muito bem com a
desconfiança pós-moderna em relação às grandes narrativas, assim como a
paixão do pragmatismo pelo concreto. Uma vez que posso a qualquer hora
saber onde está meu pé esquerdo sem precisar de bússola, o corpo oferece
um modo de cognição mais íntimo e interno do que a racionalidade iluminis-
ta de hoje tão escarnecida. Nesse sentido, uma teoria do corpo corre o risco
de autocontradição, restituindo à mente muito daquilo com que se pretendeu
esvaziá-la mas, se o corpo nos dá um pouco de certeza sensorial num mundo
cada vez mais abstrato, ele é também uma questão elaboradamente codifica-
da, e assim também serve de instrumento para a paixão dos intelectuais pela
complexidade. Ele é o ponto de junção entre a Natureza e a Cultura, ofere-
cendo certeza e sutileza em igual medida. (EAGLETON, 1998, p. 73)
O corpo sai vitorioso da disputa entre a razão que o pretende submeter e o instinto que
o deseja libertar. Mas não sem a resistência do sujeito que ainda não se desfez das injunções
que lhe foram impostas, porque ele prevê que a libertação do corpo representará, por conse-
qüência, a libertação de uma sexualidade oculta por muito tempo, com a qual não sabe lidar.
Entretanto, um olhar atento sobre os versos deflagrará um movimento dialético entre um su-
jeito que se exige estar imune às predicações do corpo e a sua vontade de explorar as possibi-
lidades, que o corpo lhe promete, de existir para além do discurso reducionista do ser. Dessa
forma, falar do corpo é expressar uma sexualidade que se ocultara na moralidade burguesa,
como propõe Foucault:
A afirmação de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor
como na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é acompa-
nhada pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo, a
modificar sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a mudar seu fu-
turo. (FOUCAULT, 1979, p. 13)
Se, a princípio, o corpo e o sujeito vinculam-se no processo de estranhamento inicial e
posterior aceitação (deste em relação àquele), em segunda instância caberá ao sujeito compre-
ender a existência do corpo. Mais ainda: admitir que exista, relativamente ao corpo, uma me-
223
tafísica a ser perscrutada. “A metafísica do corpo” propõe, assim, um deslocamento das ativi-
dades mentais do “eu” de seus temas preferenciais (a realidade, o outro, a humanidade) para
uma auto-centralização da pessoa que se constitui, antes de tudo, com seu elemento primitivo,
o corpo:
A metafísica do corpo se entremostra
nas imagens. A alma do corpo
modula em cada fragmento sua música
de esferas e de essências
além da simples carne e simples unhas.
Em cada silêncio do corpo identifica-se
a linha do sentido universal
que à forma breve transitiva imprime
a solene marca dos deuses
e do sonho.
(...) (PC, p. 1232-3)
A seqüência dos versos explica-nos o que o sujeito poético compreende como a “meta-
física do corpo”. Já desconfiávamos de signos como «música», «esferas» e «essências». Iden-
tificávamos, neles, a presença insinuada de um desvio da localização espaço-temporal desti-
nada ao corpo no comum da existência. Prosseguem os versos e a proposta literária confirma-
se: “a solene marca dos deuses / e do sonho” não permite outra interpretação que não seja a da
configuração do corpo no espaço mítico e primevo, onde ele ativa livremente suas proprieda-
des intrínsecas, secularmente inibidas pelos muitos discursos de interdição que se voltaram
contra tudo o que fosse expressão natural do homem.
E nesse espaço mítico, no qual o corpo se instala com a anuência do sujeito, a sexuali-
dade pagã se manifesta sem pudores. O que se descortina aos olhos e à compreensão do leitor
é o mundo edênico, princípio universal da existência, processo demiúrgico em movimento:
Entre folhas, surpreende-se
na última ninfa
o que na mulher ainda é ramo e orvalho
e, mais que natureza, pensamento
da unidade inicial do mundo:
mulher planta brisa mar,
o ser telúrico, espontâneo,
224
como se um galho fosse da infinita
árvore que condensa
o mel, o sol, o sal ,o sopro acre da vida.
(...) (ibid., p. 1233)
E o sujeito poético, compreendendo e aceitando a metafísica do corpo, permite que ele
se cumpra em sua primordial função de investir-se de prazeres, em desluzimento do que se
ocultou pela moralidade que o havia interditado a si mesmo:
De êxtase e tremor banha-se a vista
ante a luminosa nádega opalescente,
a coxa, o sacro ventre, prometido
ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo
resume de outra vida, mais florente,
em que todos fomos terra, seiva e amor.
Eis que se revela o ser, na transparência
do invólucro perfeito. (ibid.)
Ultrapassados os obstáculos iniciais, em que corpo e sujeito estranhavam-se, a ponto
de o corpo fazer-se valer por ato de rebeldia; proposta a elaboração da metafísica do corpo;
entregue o ser ao desvendamento de si mesmo pelo que o corpo pudesse oferecer sem interdi-
tos, o sujeito poético passa a construir um caminho de subjetividade que se inscreve no corpo
físico, atuante e voluntarioso, desfazedor de normas e revelador de segredos do amor, do ero-
tismo e da sexualidade.
Embora a discussão sobre o amor, tema mais constante na literatura ocidental, também
se torne, na mesma proporção, a mais profícua; e por mais que nos entusiasme a idéia de dis-
correr sobre os vários modos de amar, suas acepções e conceitos, e sobre a práxis amorosa,
limitamo-nos a deslindar as formas e expressões que configuram o amor e suas variantes
na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Assim, registramos mais uma nota sobre o
tema, desveladora do corpus poético em estudo, que é a oferecida por Octavio Paz em seu
livro A Chama Dupla amor e erotismo:
A pessoa é um ser composto por uma alma e um corpo. Aqui aparece outro e
grande paradoxo do amor, talvez o central, o seu nó trágico: amamos simul-
225
taneamente um corpo mortal, sujeito ao tempo e aos seus acidentes, e uma
alma imortal. O amante ama igualmente o corpo e a alma. Inclusive pode di-
zer-se que, se não fosse pela atracção pelo corpo, o enamorado não poderia
amar a alma que o anima. Para o amante o corpo desejado é alma; por isto
fala-lhe com uma linguagem que está além da linguagem, mas que é perfei-
tamente compreensível, não com a razão, mas com o corpo, com a pele. Por
sua vez a alma é palpável: podemos tocá-la e o seu sopro refresca as nossas
pálpebras ou aquece a nossa nuca. Todos os enamorados sentiram esta trans-
posição do corporal para o espiritual e vice-versa. Todos os sabem com um
saber rebelde à razão e à linguagem. (PAZ, 1995, p. 94)
Entretanto, o autor prossegue com o argumento e destaca um outro problema relacio-
nado à questão amorosa: “ao ver no corpo os atributos da alma, os enamorados incorrem nu-
ma heresia que é reprovada igualmente pelos cristãos e pelos platónicos”. (ibid., p. 95) Assim,
entramos no campo das interdições.
A dicotomia corpo/alma, dessa forma designada, penetrará os discursos sociais e mo-
rais desde o advento do cristianismo, reforçado pelo ideário neoplatônico, chegando à idade
moderna, não sendo elidida nem mesmo pelo realismo do século XIX e pelo naturalismo fran-
cês que impregnou a literatura moderna de cientificismo. Mas o “cuidado de si”, de que tra-
tamos anteriormente, colocou o corpo no centro das discussões, ainda que fosse por tratados
médicos que associavam moral e higiene ou sob a ótica nada permissiva dos filósofos.
43
Se a cada interdito se opõe a transgressão, e se a cada discurso limitador se retorna a si
mesmo para contestação, afirmação ou renovação, o corpo permanecerá como foco de debates
em diversas esferas do saber.
Poderemos pensar, também, a atuação do corpo sexual como ato político, se conside-
rarmos que ao corpo cabe as transgressões aos interditos que lhe foram impostos, a ele e ao
homem deflagrado a partir de sua fala corpórea. Ao corpo, portanto, a missão maior de trans-
gredir, e para além dos limites já pensados, como projeta Roland Barthes:
Liberação política da sexualidade: é uma dupla transgressão, do políti-
co e do sexual, e reciprocamente. Mas isso não é nada: imaginemos agora
que se reintroduzisse no campo político-sexual assim descoberto, reconheci-
do, percorrido, liberado... um toque de sentimentalismo: não seria a última
43
Cf. FOUCAULT, Michel História da Sexualidade III o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 110ss.
226
das transgressões? a transgressão da transgressão? Pois, em fim de contas,
seria o amor: que voltaria : mas num outro lugar. (BARTHES, 1975, p. 73)
E nessa discussão cabe o debate sobre o estatuto do amor, pois que não se pensa a e-
xistência do corpo sem que ele esteja em relação com outro corpo, e sem que tal atuação de
um sobre o outro se inscreva nas histórias de amor que se consolidaram com a própria história
da humanidade.
A alma, como única estância permitida para a realização do amor, prevalecerá sobre o
corpo. Mas, como ao artista não é dado conhecer o limite de sua experiência e a materializa-
ção de seu talento e genialidade, alma e corpo irão se unir na consagração do ato de amar.
Cônscio ou não da missão a que se vota, o artista falará de amor impunemente, pois, como
constata Julia Kristeva, “o amor só entra na idade moderna como literatura”. (KRISTEVA,
1988, p. 83)
O poema que inicia o livro O Amor Natural, de Drummond, não estabelece fronteiras
entre o corpo e a alma no processo de amar. Pensado como palavra, o amor se apresenta nos
versos de “Amor Pois que é Palavra Essencial” penetrando todos os discursos e práticas,
ilimitado em sua existência, laborando, no interior da imaginação, os versos de amor. Ao cor-
po, é restituído o seu lugar de direito na plenitude amorosa:
Amor ? pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
(...) (PC, p. 1365)
O amor surge da maneira como foi pensado primeiro, completude de corpos e de vida,
o que está na gênese dos discursos amorosos:
227
(...)
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
(...) (ibid.)
Julia Kristeva ressalta a importância da compreensão filosófica para os estudos sobre o
erotismo:
Atado a essa cumplicidade entre alma e amor, na paz da dor, sabedoria e es-
cravidão, o discurso filosófico, ele próprio, é o terceiro rosto da mesma di-
nâmica, onde a dominação fálica se enobrece e se metamorfoseia em apren-
dizado do Bom e do Verdadeiro. Desligando-se da perversão que ela não
obstante não desconhece, a filosofia é ao mesmo tempo uma psicagogia ?
uma orientação amorosa das almas e uma doutrina do discurso. Do lado do
amor-dominação, do amor-escravidão, do amor-logro professado por Lísias,
Platão colocará a retórica ligada aos efeitos fáceis, de sedução e de enfeiti-
çamento que não busca a essência. Na maiêutica do discurso dialético, em
contrapartida, ele verá o equivalente daquilo que, no plano de Eros, é mode-
ração e tendência à perfeição. (KRISTEVA, 1988, p. 89)
O amor conceitual, filosófico, amor platônico em sua primeira acepção, também or-
questra-se nos versos drummondianos:
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
(...) (PC, p. 1282)
Se o amor é palavra, na concepção do poeta, a palavra fala o corpo sem disfarces e cir-
cunscreve em torno dele signos cosmogônicos:
(...)
Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
228
mas, varado de luz, o coito segue.
(...)
Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre. (ibid., p. 1365-6)
Alijado dos discursos que dominaram a era cristã desde seu início, e se estenderam na
idade moderna, o corpo erótico, o corpo amoroso, foi defenestrado e elidido do ser, em favor
de uma alma amorosa que se direciona ou à Unidade, ou ao Pai, propostas que se conformam
ao discurso evidenciado. Entretanto, como é impossível negar a existência do corpo, e como
está ele irremediavelmente associado a conceitos eróticos
44
, vemos que, após a sua reabilita-
ção durante o Renascimento, o corpo sofre novas interdições ligadas tanto aos imperativos
sociais, religiosos e de higiene, quanto à sua experiência sexual. Ao artista caberá, então, uma
revisão das diretrizes que se estabelecem para a expressão do corpo. Após o século XVI, ve-
remos uma aceitação das interdições, na medida em que o artista passa a cobrir o corpo, for-
mando-o com folhas, arbustos e véus. Ao mesmo tempo, cria-se uma ambigüidade que mante-
rá, no centro do interesse humano, a fantasia sobre o que se oculta. Isso porque, ao ceder aos
discursos religiosos e sociais moralizantes, o artista passa a evidenciar ainda mais, pela ação
do que se imagina, o corpo erótico:
A tentativa de pôr cobro à imoralidade reinante, a veleidade barroca
de ordenar o caos, instigam ainda mais a imoralidade que mina toda a vida
44
Para nosso estudo, não faremos distinção entre erotismo e sexualidade, visto nosso trabalho não ter como obje-
to a investigação de tais conceitos. O que pretendemos, com o signo e suas aproximações semânticas, é investi-
gar o corpo em atuação amorosa e o sujeito em relação com tal prática. Ainda, para reforço de argumento e ade-
quação de linguagem, citemos Freud: “Os que consideram a sexualidade como algo que é motivo de vergonha
para a natureza humana, e que a rebaixa, bem podem usar à vontade os termos mais elegantes de Eros e erótico.
Eu próprio poderia ter-me poupado a muitas oposições se tivesse agido assim desde o início, mas não o quis
porque me desagrada fazer concessões à pusilanimidade. É impossível saber até onde somos levados por esse
caminho: começamos por ceder nas palavras e acabamos por ceder no próprio fundo da questão”. (LAPLA N-
CHE, J., PONTALIS, J-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 205)
229
social e que atinge o próprio catolicismo. A Igreja que ignora o Cântico dos
Cânticos de Salomão é a mesma que produz os místicos, cuja união com
Cristo é investida de uma enorme carga erótica, e a que, a fim de impressio-
nar e cativar as massas, cria uma arte profusa, provocatória, aliciante, sedu-
tora, com que embeleza seus edifícios e que exibe nos seus ostentosos ritu-
ais. (FIADEIRO, 2003, p. 60)
O que temos buscado revelar com as propostas teóricas que evidenciamos até aqui?
Consideramos, neste ponto do estudo, dois pólos que convergem para o que entendemos seja
a fonte de um saber sobre a relação subjetividade-sexualidade. O primeiro é o corpo em si, ao
qual vimos nos dedicando. O corpo, elemento central da interdição e do desejo, se oferece,
sem recatos, à investigação teórica e à poesia erótica. O segundo pólo de análise é a lingua-
gem, pois só por ela podemos instaurar, discutir e reelaborar o amor. A linguagem é o objeto
de análise de todos os estudos que se empreendam sobre o amor, e o nosso.
E é assim que voltamos a Foucault. Opondo o período de interdição máxima, quando o
sexo ficou restrito a espaços específicos, ao momento de liberação do saber sobre sexualidade,
Foucault releva a linguagem em suas duas faces: quando foi imposto um mutismo decorrente
do puritanismo moderno e quando, pela “vontade de mudar a lei”, nos obstinamos a falar de
sexo. Mesmo considerando que, exatamente por ser reprimido, os discursos sobre sexo adqui-
rem um valor mercantil, o que mais interessa, destaca o autor, “é a existência, em nossa épo-
ca, de um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anún-
cio de um novo dia e a promessa de uma certa felicidade, estão ligados entre si.” (FOU-
CAULT, 1979, p. 13)
Por esse viés de raciocínio, o sexo se mostra na poesia de Drummond como promessa
de felicidades infinitas. A volúpia da existência ? cuja representação no verso se dá pela re-
petição dos signos ? faz fundir, num só espaço, o “eu” e o “outro” integrados no prazer abso-
luto dos corpos e do sentimento amoroso:
SUGAR E SER SUGADO PELO AMOR
Sugar e ser sugado pelo amor
230
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar o ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua. (PC, p. 1379)
A linguagem sobre o sexo, a partir do século XVII, obedeceu a regras de controle. Fa-
lar o sexo só foi permitido sob certos códigos de metáfora e alusão; também foram definidos
tempo e local permitidos para que o sexo fosse discutido, que interlocutores estavam autori-
zados a fazê-lo e em que situações poderiam expressar um vocábulo sobre sexo, previamente
autorizado.
45
Causa de efeito inverso: após o século XVIII, proliferam os discursos sobre a sexuali-
dade. O ato confessional, destaca ainda Foucault, agora atua no cerne da questão. Após a Con-
tra-Reforma, não se deve mais confessar o sexo sob o manto da discrição. A fim de combatê-
lo sobre a penitência, é preciso evidenciar “todas as insinuações da carne: pensamentos, dese-
jos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso
deve entrar, agora, em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual”. (FOUCAULT,
1979, p. 22-3)
O ato confessional minucioso desperta o interesse pelo tema sexualidade, e como dis-
semos antes, se a cada interdição corresponde uma transgressão, fora do âmbito pastoral vão
surgir discursos que, sob efeito da prática discursiva sugerida, mas fora dela e de sua morali-
dade, falarão do sexo sem pudores, como as narrativas de Sade. Então o poema revela não o
pensamento obscuro, mas o ato em si. Fala inequívoca e reveladora do gesto, o corpo atua
sobre outro corpo ou dele sofre o ato e sanciona o gesto. O sujeito poético, em deleite, sente-
se desprender, lentamente, das coisas reais, como o tempo e o espaço em que se inicia o rito
sexual, e alcançar esferas a que se chega pelo prazer:
45
Cf. Michel Foucault. História da sexualidade I a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 21-2.
231
ERA MANHÃ DE SETEMBRO
Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
Ela me beijava o membro
(...)
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro (PC., p. 1368)
O que, seja em que âmbito se registre, nos chama atenção sobre o dizer o sexo é a inci-
tação do desejo. À fala corresponde a imagem, e o desejo desta alimenta-se. Aí, então, temos
o desejo como orquestrador de uma subjetividade que se alia ao erotismo, idéia não negada
seja pela psicanálise, seja pelos teóricos dedicados ao tema. O “eu” lírico transcende a si
mesmo, posiciona-se muito além do indivíduo que se pensa, que se integra à realidade, que se
ocupa com o “outro”. Subjetividade aclamada no que se consagra à existência incomum:
EM TEU CRESPO JARDIM, ANÊMONAS CASTANHAS
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
detêm a mão ansiosa: Devagar.
Cada pétala ou sépala seja lentamente
acariciada, céu; e a vista pouse,
beijo abstrato, antes do beijo ritual,
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado. (ibid., p. 1373)
A linguagem serve ao propósito poético de libertação do dizer o sexo, impedimento
que se concretizou tanto pelas prédicas sociais quanto pelo interesse em uma poesia realista e
232
objetiva, que lançava o “eu” para fora de sua subjetividade, exceto pelas intercessões estuda-
das anteriormente. E a linguagem é a expressão inegável da subjetividade. Situamos, aí, o
cerne da questão que nos move. Ao compor versos eróticos, Carlos Drummond de Andrade,
ou que melhor seja, o sujeito poético drummondiano, em ato confessional com o leitor, expõe
a sua máxima subjetividade, “eu” devotado a si mesmo, porque o “outro”, agora, não se de-
flagra na realidade, mas se configura para a existência absoluta do sujeito.
Por mais que o objeto de amor esteja incensado no poema, todos os seus caracteres in-
flamam o sujeito que se liberta no êxtase de amar:
VOCÊ MEU MUNDO MEU RELÓGIO DE NÃO MARCAR HORAS
Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você
meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas.
Meu sono festival meu acordar entre girândolas.(...) Meu perder-me entre
pêlos algas águas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova cova cova
cada vez mais funda estreita mais mais. Meus gemidos gritos uivos guais
guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem ahah minha evaporação meu sui-
cídio gozoso glorioso. (ibid., p. 1388)
E é na absoluta experiência sexual, contemplando a si mesmo em arrebatamento, que o
sujeito poético de Drummond refaz o caminho da existência, lançando-se pleno e sem culpas
na subjetividade.
Os signos literários evidenciam o corpo. O que se percebe não é a presença do corpo
como um todo, materializado na relação amorosa. Agora, o sujeito poético examina as formas
que se desenham, sob o seu olhar atento, no “outro” desejado. O corpo, per si, é o “outro”
que merece a atenção do “eu”, o qual, sob ele, suas formas e movimentos, liberta-se de todas
as interdições que lhe foram impostas, deleita-se sem auto-recriminações, sem autopunições.
Alguns dos poemas eróticos de Drummond levam-nos ao conceito de aphrosidia, es-
tudado e definido por Foucault como um conjunto de “atos, gestos, contatos, que proporcio-
nam uma certa forma de prazer”. (FOUCAULT, 1979, p. 39) A aphrodisia manifesta-se, en-
tão, quando tais movimentos entram em cena. “A atração exercida pelo prazer e a força do
233
desejo que tende para eles constituem uma unidade sólida com o próprio ato dos aphrodisia
(ibid., p. 41) Posteriormente, pelos discursos que impõem uma moral dos costumes, haverá
uma dissociação desse conjunto que forma a aphrodisia. Mas o conceito (e o que dele decor-
re) permanece pelo desejo (epithumia). A “ética da carne” colocará em discussão não os atos,
o desejo e o prazer, mas o resultado dessa associação.
46
Se na vida submetemo-nos ao que é definido como chresis aphrodision (o uso dos
prazeres), que regulamenta a aphrodisia
47
, a literatura restitui ao sujeito poético a expressão
inequívoca de seus atos e prazeres, participando-os ao leitor. Sem pudores, dominando o dis-
curso erótico que coloca em cena no verso, o sujeito poético também não se exime da leveza
quase humor com que traduz a sexualidade e o prazer nela originado:
SEM QUE EU PEDISSE, FIZESTE-ME A GRAÇA
Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça
de magnificar meu membro.
Sem que eu esperasse, ficaste de joelhos
em posição devota.
(...)
Hoje não estás nem sei onde estarás,
na total impossibilidade de gesto ou comunicação.
Não te vejo não te escuto não te aperto
mas tua boca está presente, adorando.
Adorando.
Nunca pensei ter entre as coxas um deus. (PC, p. 1376)
A reafirmação da palavra erótica confere ao discurso do poeta a certeza de sua prática.
Investe-se o autor do direito de expressar livremente, libertário que se sente, o signo que se
conforma mais ao desejo que o move. Sem a prática da temperança, domínio do homem sobre
seu desejo e, portanto, sobre seu corpo, o sujeito poético aventura-se no prazer máximo do
corpo. Desconsiderando o controle do corpo, ao que Foucault chama de “dietética” em seu
estudo sobre o uso dos prazeres, o sujeito poético drummondiano põe em risco a alma, pois “o
46
Cf. Michel Foucault. História da Sexualidade II o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 42-3.
47
ob. cit., p. 51-2.
234
regime físico deve-se ordenar ao princípio de uma estética geral da existência, onde o equilí-
brio corporal será uma das condições da justa hierarquia da alma”. (FOUCAULT, 1979, p.
95)
Se a prática sexual é comum a todos os humanos, eleger formas de amar, destacar par-
tes do corpo que propiciem melhor o prazer, elaborar a linguagem com a qual se diz o desejo
é prática subjetiva:
A OUTRA PORTA DO PRAZER
A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.
Amor não é completo se não sabe
coisas que só amor pode inventar.
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo. (PC, p. 1380)
O signo desloca-se do texto e adquire novas possibilidades, jeitos de reter o corpo
transformados em verso:
COXAS BUNDAS COXAS
Coxas bundas coxas
Bundas coxas bundas
lábios línguas unhas
cheiros vulvas céus
terrestres
infernais
no espaço ardente de uma hora
intervalada em muitos meses
de abstinência e depressão. (ibid., p. 1373)
Mas não se nega à poesia o lirismo que lhe é intrínseco. Assim, pleno da subjetividade
que só o erotismo lhe é capaz de consagrar, o sujeito poético propõe o prazer iniciático, pelo
qual a integração sujeito-objeto, homem-mulher se eleva à razão do desejo e do prazer:
A LÍNGUA GIRAVA NO CÉU DA BOCA
235
A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu ú-
nico.
O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus
traços de cobre. Eu, ela, elaeu.
Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não re-
sultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de a-
niquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fo-
go, em núpcia, emancipado de nós.
A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à
consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor. (ibid., p.
1375)
O corpo, na poesia erótico-amorosa proposta por Drummond, escapa à estética em que
sempre se enquadrou para emergir como sujeito atuante no ato amoroso e no ato poético. O
“eu” que, em outras estâncias, havia dominado todas as coisas, cede às vontades que o seu
corpo expressa com vigor e assume plenamente os prazeres que apenas a subjetividade exer-
cida sem pudores oferece, repousada a alteridade que, por tanto tempo, havia lhe negado o
direito de existir plenamente em si mesmo.
7.4 - Por ausência de Maria, o amor de Craveirinha
Em sofrimento, ele se deixa acalentar ao som de
sua cruz, equilibrista em cima da corda: fechar-se
ali morto-vivo ou fazer disso poesia?
Julia Kristeva
O livro Maria, publicado em 1998, reúne poemas de José Craveirinha dedicados à sua
mulher, morta em outubro de 1979. Zé Craveirinha assina o “Pórtico”, que tem as seguintes
236
palavras finais:
E encerro este pórtico, concordando com todos aqueles que, nesta co-
lectânea, mais deparem com uma maneira intimista de render justo preito à
memória de um ente muito querido e menos com um exercício de escrita li-
terariamente conseguido ou poeticamente literário.
Ingressamos, então, nessa jornada de memória em busca da compreensão de um sujei-
to em estado máximo de subjetividade, pelo amor e pela perda, e de alteridade, pela lembran-
ça da pessoa amada. Submetemo-nos ao verso, como quer o poeta, para realizar a análise fun-
damentada no signo poético, único consentimento de uma voz autoral emocionada. Assim,
declinaremos das concepções teóricas sobre literatura, devotando mais atenção aos conceitos
desenvolvidos pela investigação das relações amorosas.
Convocamos Julia Kristeva, então, a expressar as primeiras palavras na edificação de
um projeto de reconhecimento da subjetividade/alteridade na poesia amorosa de José Cravei-
rinha: “A identificação faz o sujeito ser no significante do Outro”. (KRISTEVA, 1988, p. 59)
Tal axioma, ao par de sua fundamentação psicanalítica, encerra uma verdade que se ajusta
perfeitamente à interpretação da poesia de Craveirinha dedicada a sua esposa. Porque enten-
demos a figura de Maria não como os oscilantes objetos de desejo que permearam a poesia de
Craveirinha (Nos ilógicos parêntesis da vida / fúteis paixões não atraiçoam / um único amor /
de sempre.) (M, p. 71) , mas como o outro que elabora a construção do sujeito.
Projeto literário que assume dupla função ? a de resgatar a importância histórica da
companheira de um homem político e a de afirmar o inconteste amor, tão pouco declarado em
vida ?, Maria é, paradoxalmente, um exercício máximo de alteridade e de subjetividade. O
signo poético informa ao leitor o ser de Maria e potencializa o amor que por ela sente o sujei-
to poético. Entretanto, chama a atenção o fato de que, nos poemas compostos em homenagem
à amada, o poeta amador fixa seu sentimento sem que a palavra amor se destaque, seja por
conceito, seja por fala emocionada. Se consideramos, como propõe Edgar Morin, que “o amor
enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor precede a pala-
237
vra” (MORIN, 1999, p. 17), compreendemos o amor não-dito na poesia de Craveirinha como
uma expressão de sua existência para aquém e além do signo amoroso, porque o sentimento
que dá a conhecer ao leitor não se apreende na representação da linguagem. Assim, alcança-
mos a dimensão da intenção poética. Ainda mais: os poemas dedicados à Maria não se inscre-
vem pela estética erótica. Ao contrário, evidenciam-se, nos textos, elementos que assinalam a
amada em espaços para aquém do saber erótico, porque fundados na relação materno-fraternal
(Mas o Zé diz que tudo o que ele usa / não é ele mas a Maria / que o faz escolher / ao gosto
dela.) (M, p. 86) , e para além do saber erótico, porque alçados ao estado de sublimação (Ma-
ria. / Volto à espécie de amor / que para além de marido e mulher / nos fazia também ir-
mãos).
48
(ibid., p. 155) Os poemas amorosos tratam de uma relação que tem alicerces nas
exigências normativas da civilização:
O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseiam-se
numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado históri-
co de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação le-
gítima do instinto se torna suprema e sua partes componentes são sustadas
em seu desenvolvimento. Esse refinamento cultural da sexualidade, essa su-
blimação do amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações pos-
sessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo, conflitantes com as
relações sociais de posse. Enquanto, fora do privatismo da família, a existên-
cia do homem foi principalmente determinada pelo valor de troca dos seus
produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi impregnado do espíri-
to da lei divina e moral. (...) a sexualidade tinha de ser dignificada pelo a-
mor. (MARCUSE, 1975, p. 176-7)
Não imprimimos, ao amor confidenciado em Maria, nenhuma moral religiosa. Cami-
nhamos com mais segurança pela noção cultural dessa relação amorosa, advinda dos saberes
antigos e fundada no casamento tradicional, pelo que propõe Foucault:
A arte de ser casado não é simplesmente, para os esposos, uma maneira ra-
cional de agir, cada qual por seu lado, visando um fim que os dois parceiros
reconhecem e onde se reúnem; trata-se de uma maneira de viver como casal
48
Recorremos, aqui, a conceitos psicanalíticos esstabelecidos por Freud. O primeiro diz respeito às propriedades
do relacionamento amoroso feliz, dentre as quais, a atitude maternal da mulher em relação ao homem, o que
satisfaria os desejos primitivos do homem. KLEIN, Melanie, RIVIERE, Joan. Amor, ódio e reparação. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1970, p. 110. Quanto ao segundo conceito, o de “sublimação”, é definido como a “capa-
cidade de trocar o alvo sexual originário por outro alvo, que já não é sexual mas que psiquicamente se aparenta
com ele”. LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.
638.
238
e de ser apenas um; o casamento exige um certo estilo de conduta em que
cada um dos cônjuges leva a própria vida como uma vida a dois, em que,
juntos, eles formam uma existência comum. (FOUCAULT, 1985, p. 161)
Por esse princípio, é possível aproximarmo-nos mais, pela análise, da dimensão da dor
nos versos de Craveirinha. A poesia amorosa postula o direito de expressar intensamente um
corte profundo na existência, em sua parte constituída a partir do casamento, porque “a mu-
lher-esposa é valorizada como o outro por excelência; mas o marido deve reconhecê-la tam-
bém como formando unidade com ele”. (ibid., p. 165) O que se apresenta na poesia de Cravei-
rinha, sendo Maria objeto do poema, é um sujeito que se projetou como tal no que o outro
lhe permite ser em existência amorosa; e sem este outro, a dor da ausência se torna tão in-
suportável que se transforma em linguagem. Em decorrência, pela linguagem estabelece-se
novamente o “eu”, ainda que falando do “outro”, porque, como compreende Barthes, o dis-
curso amoroso não prescinde de “sua pessoa fundamental, que é o eu, de modo a pôr em cena
uma enunciação e não uma análise”. (BARTHES, 1995, p. 1)
A homenagem à ausente se inicia com “Maria. Salmo Inteiro”, poema em cujos versos
Craveirinha reconstitui a mulher amada inteiramente, oração mais que sentida:
Aos cinquenta anos de idade
toda a gente reconhece a Maria
mas unicamente, só eu
posso revelar a fútil narrativa
da esposa Maria e do seu marido Zé.
(...)
Maria com os nossos filhos para se distrair.
Maria dona de noites inteiras para não dormir.
Maria uma sistemática viúva de tudo na Mafalala.
(...)
Minha tão simples esposa Maria
incansável na quotidiana viuvez por mim
nos imitigáveis quatro anos do meu ocioso
falecimento numa exclusiva urna de óptimo ferrolho
com uma clássica paisagem de ferros em quadrilátero
na hipotética janela.
239
(...) (M, p. 9-11)
A escolha do signo poético atende à experiência anterior àquela que se transformará
em linguagem, comunicando uma vontade do sujeito. Os signos prevalentes no texto poético
decorrem de um processo de subjetividade.
Ao estudar o som do signo, Alfredo Bosi conclui:
Essa radical subjetividade ou, se preferir, essa corporeidade interna e
móvel da matéria verbal torna relativa, mediata, simbólica, jamais icônica, a
representação do mundo pela palavra. Mesmo quando um signo lingüístico
nos parece mais colado à coisa (o que acontece, tantas vezes, na fala poéti-
ca), o que se dá é uma operação expressiva organizada em resposta à expe-
riência vivida e, o quanto possível, análoga a um ou mais perfis dessa expe-
riência. Nessa operação o som já é um mediador entre a vontade-de-
significar e o mundo a ser significado. (BOSI, 2000, p. 62)
A linguagem adquire o ritmo do desespero, tambor-coração (tão-bela, tão-bela, tão-
bela) a ecoar da memória a existência perdida:
Minha bela esposa Maria!
Tão bela esposa no aneurisma sem respeito pelo seu drama.
Tão bela esposa no realismo socialista do rústico fogareiro a carvão.
Tão bela esposa cliente incorrigível das farmácias.
Tão bela esposa de pé aos solavancos no machimbombo 13.
Tão bela esposa madrugando na consulta externa.
Tão bela esposa hoje... senha da Clínica Geral.
Tão bela esposa amanhã... senha da Cirurgia
Tão bela esposa depois... senha da Cardiologia.
Tão bela esposa a seguir... senha do Raio X.
Tão bela esposa também na Oftalmologia
e tão bela esposa voltando mais neura
da Neuropsiquiatria.
(...) (M, p. 13)
José Craveirinha apresenta em sua lírica a experiência autêntica de sua vida amorosa.
Fazendo a exceção da teoria que considera a lírica uma forma inadequada à expressão da ver-
dade, o sujeito poético não se diferencia do sujeito da enunciação. Por outro lado, pela forma
literária que adota, também não se abstrai da condição subjetiva que define o texto.
49
É para o ser de Maria ausente que Zé Craveirinha semi-ausente se transfere como su-
49
Cf. Käte Hamburger. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 224.
240
jeito e também se narra:
Minha tão bela esposa Maria!
Ninguém dela tão indigno como o seu único marido
neste momento a redigir sua autobiografia de ex-falecido
4 anos inquilino onde o senhorio só cobra rendas
50
do universo da solidão
meus defeitos e suas qualidades exortando
o insólito casal perfeito.
(...)
Foi 4 anos enviuvado de si mesmo
de poéticas algemas atrás das costas
com direito a um jipe militar,
banal encenação de quem está preso
e se ignora ainda vivo
o mais mudo sotaque do último chão. (ibid., p. 14-16)
Os textos poéticos sobre Maria revelam muito do sujeito que evoca as imagens amoro-
sas, ainda que o movimento primeiro seja o de alteridade. A linguagem corporifica o outro
amado, mas o dizer o outro é uma experiência inerente ao sujeito, no que se refere ao cor-
pus que ora analisamos. O que sentiu o sujeito poético de Craveirinha pode adequar-se à tra-
dução de Octavio Paz que define a experiência da outridade
51
“como duas notas extremas de
um ritmo de separação e reunião”, sendo a experiência da separação sentida “quando caímos
no sem-fim de nós mesmos e o tempo abriu suas estranhas e nos contemplamos como um
rosto que se desvanece e uma palavra que se anula”. (PAZ, 2005, p. 109) A obra define-se por
muitos poemas de lancinante dor. O que os versos evocam, todo o tempo, é um sujeito que, ao
olhar as circunstâncias da morte da amada, expõe o sofrimento a que se consagra, féretro de si
mesmo, ritual de morte expandido para dentro de sua consciência.
A poesia também segue um ritual no livro Maria. Primeiro, vimos a descrição minu-
ciosa da mulher que se torna ausente na voz de um sujeito poético que amarga remorsos e
50
Neste verso autobiográfico, Craveirinha refere-se ao período em que esteve preso, de 1965 a 1969, pela PI-
DE/DGS, primeiro na chamada Cadeia Civil de Maputo, capital de Moçambique, e posteriormente na Cadeia de
Machava e, por fim, no Hospital Psiquiátrico do Infulene.
51
Octavio Paz discute a experiência da outridade como um conceito que liga o ser a si mesmo ante a vida, mas a
definição, como o dissemos, cabe perfeitamente a experiência amorosa de José Craveirinha.
241
arrependimentos por não ter podido amá-la como ela merecia. Depois, a obra se divide em
livros, numerados de I a IV. Caminharemos, agora, pela dor de Craveirinha, poeta-amante-
viúvo.
No Livro I, os poemas vão do lamento de “Evocação” póstuma (Muito para lá do i-
maginário / bom seria que nunca houvesse / a mais ínfima razão / para esta maneira / de e-
vocar Maria.) (M, p. 19) a “O Elogio”, desnecessário no momento final (Ninguém proferiu o
Elogio. / O que é de mais torna-se desnecessário.) (ibid., p. 55) Entre eles, o poeta/sujeito
poético perscruta todos os elementos que constituem o cenário da morte. As imagens: “tapete
de roxas flores” por onde segue o cortejo; “extenso dia taciturno de nuvens”; “mãos que te
levam”. Os sons e silêncios: “avejões corujas e corvos crocitando”; “drásticos evangelhos
silenciados na urbe das lajes e das cruzes”; “sons cavos da terra sobre as tábuas”; “a litania
das carpideiras”; o “dobre de sinos”; “um spiritual”; “violas de brisas nos ramos”. As presen-
ças na ausência mais sentida: conhecidas que chegam, “despintados os cílios humedecidos”;
“o circunstancial abraço e as convencionais expressões”.
O que do instante o homem em dor apreende transforma-se em expressão da mais in-
tensa subjetividade. As lágrimas dizem mais a respeito da dor que as palavras. A princípio,
elas teimam em não cair, porque “Em vez de lágrimas” / Só um choro em seco / põe no vértice
da minha dor / o mais intenso / auge do luto. (ibid., p. 24). A seguir, descem pela face, incon-
tidas: A sotavento / colar aquoso / se desfia. (...) (ibid., p. 43). Voltado para si mesmo no in-
tenso sentir que não se compartilha, o sujeito poético examina o pesar que se lhe manifesta:
Lágrimas? // Ou apenas / dois intoleráveis / ardentes gumes de névoa / acutilando-me cara
abaixo? (ibid., p. 44)
A estesia da lágrima é a inegável constituição de um poeta que se conjuga na dor do
sujeito:
MISSANGAS
242
Do avesso das pálpebras
gotejam missangas
de sal.
Penosa
amargura escorrendo
faz alcalino o rasto. (ibid., p. 45)
O sofrimento se intensifica a tal ponto que as lágrimas reduzem-se a “Pingos” (E / na
cinza / do meu bigode / em amaro santiámen / os pingos / perlam. (ibid., p. 46); depois ces-
sam, e a dor chega ao “Auge”:
Dor de olhos enxutos
meu auge
............................................
de choro. (ibid., p. 47)
O Livro II é o livro de Maria, plena em sua ausência, cotidiano de Zé sem sentido. É,
verdadeiramente, um livro de alteridade, pois que o amado descobre ter sido “eu” somente no
que era o “outro”. O mundo de Maria permanece, Maria, não. O poeta desdobra-se também,
cria um “outro” que lhe fale em substituição à voz suave que não ouve mais, “outro” que o
convença da vida sem Maria: Monólogos de meu outro / comigo só falam / na voz do resíduo /
que sou. (ibid., p. 59)
Um “outro” reage à dor e propõe ao sujeito uma “Elegia”:
Então meu caro Zé
o que é isso?
Paciência.
Maria foi descansar.
(...)
Era assim a Maria
sofrer por ti sofria
mas as suas lágrimas
remendavam enxutas
os rasgões da alma.
(...)
243
Quando um homem chora
é uma ferida mal sarada
que nos seus olhos sangra
com pena dele. (ibid., p. 61-2)
A vida recomeça sem Maria. Zé Craveirinha faz o “Inventário”: Cada coisa tua é um
minucioso / capítulo do romance em que te releio / e guardo em parágrafos de carinho. (ibid,
p. 63) Zé Craveirinha retoma o caminho da existência, mas sob o olhar atento de Maria: Nas
mesinhas-de-cabeceira dos hotéis / no repreensivo olhar bom de Maria / acomodo e reaco-
modo na mala / minha babel de roupas e livros. (ibid., p. 64)
O tempo sem Maria traz à memória os dias tão cotidianamente vividos, e que agora se
refazem tão líricos:
BIRRAS
Quando
uma das minhas camisas se extraviava
somente Maria tinha absoluta certeza
de ter sido a reincidente
minha inata amnésia
que me fazia perder as coisas que resolvia dar.
(...) (ibid., p. 72)
O tempo sem Maria conforma o Zé-amante-viúvo a uma dor ainda maior, porque já
não se esvai em lágrimas:
«OLHOS ENXUTOS»
Olhos enxutos
na dor de luto
é suplício exclusivo
de quem mais sofre
quanto menos chora. (ibid., p. 73)
O tempo reinsere Maria na lembrança, agora terna, de um Zé Craveirinha que ainda
vive. O que se releva, então, das reminiscências do passado com Maria, é o amor que se con-
sagra na absoluta fidelidade.
Denis de Rougemont, analisando essa propriedade comum e desejável na relação amo-
244
rosa estável, conclui que a vida se engrandece, mesmo a mais humilde vida, quando o ser de-
vota-se à pessoa amada com incondicional fidelidade. A relação amorosa, então, não se funda
na paixão nem nos arroubos românticos, e ainda assim, representa a felicidade:
Mas poderemos ainda imaginar uma grandeza que nada tenha de ro-
mântico? E que seja o oposto de um ardor exaltado? A felicidade de que falo
é uma loucura, porém a mais sóbria e rotineira. Uma loucura de sobriedade
que imita muito bem a razão ? e que não é um heroísmo, nem um desafio,
mas uma paciente e terna aplicação. (ROUGEMONT, 1988, p. 215)
O que vem à memória do sujeito poético de Craveirinha é a fidelidade de Maria, e a
felicidade, do sujeito amoroso e do objeto cantado, por assim o ser:
GOLA PUÍDA
Primeiro a Maria revirou a gola.
Depois cortou um pedaço da fralda
reconcebeu um primoroso
colarinho novo.
Nostálgico rememoro
esses nossos felizes maus tempos
com a Maria consumando o prodígio
ao fazer uma desgostosa camisa velha
tornar-me um invejado Zé de camisa nova.
A esses nossos ? agora tão saudosos! ?
atribulados bons tempos retrocedo
quando a Maria dava outra vida
à minha agonizante camisa no fio
pondo outra vez jovem
a caquéctica gola puída. (M, p. 76)
A memória insiste no episódio banal, mas pleno de beleza e lirismo, da camisa refeita
pelas mãos amorosas de Maria:
A GOLA DA CAMISA
Eu não sabia a solução
mas um dia sem me dizer nada
a Maria pegou na fatigada camisa
e numa tarde revirou-lhe a gola.
(...)
E a dita camisa e eu modernizados
com mútuo gáudio estrmos-nos 3.
a
vez.
245
Simplicíssima feitiçaria
das hábeis mãos de Maria
foi essa esplêndida camisa
vangloriando-me refeita.
(...) (ibid., p. 87)
O amor do tempo de viver o amor ganha sua mais esmerada tradução no amor sentido
no tempo de ausência do amor. É nele que o sujeito sai por completo de si mesmo e interpreta
o “outro” em plenitude:
MARIA ERA ASSIM
Maria era assim simples no que dizia.
O que ela pensava era também assim.
Tudo à sua volta era mesmo assim.
Enquanto um inconturbável fio de cabelo branco
na bela cabeça enternecia lembranças
e também era simplesmente assim. (ibid., p. 82)
E a ausência de Maria encerra no tempo de viver a vida um Zé que se concebe vivo
apenas porque além do presente que vive está a vida de viver com Maria:
A NOSSA CASA
Ambição
minha e de Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.
(...)
Pelo menos envelhecer já não é problema.
O resto na altura mais propícia
surgirá por si.
Parece que está por pouco.
Na lista onde eu consto
é injusto que tarde
estarmos juntos. (ibid., p. 100)
O livro III de Maria apresenta uma inconteste marca discursiva: a relação eu-tu que se
exprime em todos os poemas. Maria lança o sujeito Craveirinha na existência dolorosa mas
246
factível, porque todas as coisas exigem a presença de quem não se foi. Os insondáveis pressá-
gios da ausente não são compreendidos à extensão da sabedoria de quem tudo vê, mas se
pressentem na emoção da lembrança. Lembranças de Maria: dizeres e gestos, amuos e festas;
imagens reais e abstrações; ilações e profecias. Os primeiros poemas revelam a morte. Inex-
tricáveis versos refluem as coisas todas do universo na mesma voz poética. Representações de
uma existência impenetrável só permitem ao leitor ter acesso ao signo estético, pois que o
mundo tornou-se imperscrutável mesmo para o sujeito poético:
CRISTAIS ABSTRUSOS
AO TERCEIRO DIA
Que espécie de cristais
são estes paroxismos
resvalando abstrusos
pelos agrestes declives
do meu rosto
três dias imbarbeado?
(...)
Maria, o que é que se passa?
O que é que se passa, Maria? (ibid., p. 104-5)
O mundo possível é aquele em que Maria se faz Revelação. O sujeito poético quer
habitar o inabitável, ser pleno no que excede a vida:
DIAMANTES DE SONO
Do máximo repouso o Mistério
foi tua Revelação, Maria.
Íncola da mesma Sorte
quer-me também a Ténue pluma
sombra de sombra ao longe nos longes
poalha de poalhas ascéticas de nuvem
ascese nebulosa leve no predestinado
insacrílego oásis supremo na Distância.
Que outra ambição de tesouro
que não este Palácio?
E na partilhada noite do Sempre
que outro lugar de vigília,
que não o derradeiro Átrio de Sono,
do Grande Santuário, Maria? (ibid., p. 108)
247
A viagem que não se realiza, o lugar que não se compartilha, o esquecimento que não
se cumpre são substituídos pelo simbólico encontro com a ausente:
O IDÍLIO RECOMEÇADO
Eu?
Neste nosso idílio recomeçado
posso não ser pontual
mas faltar não falto
no lugar aprazado.
E tu?
No novo amor que nos casa
aceitas minhas prendas e flores
sem falar como de costume. (ibid., p. 113)
A sobrevida sem Maria tange no verso: Já não tenho quem me ature. / Mas eu cá me
arranjo. / Eu cá me arranjo, Maria! (ibid., p. 119) Maria ausente não se ausenta do mundo
pela vontade do sujeito poético, que lhe dá conta das coisas acontecidas: Ah, ia-me esquecen-
do de que fui / dizer à vizinha do lado / que de tudo que lhe ias emprestando / por sabermos o
teu modo de ser / a vizinha nada nos deve. // Por hoje / é tudo, Maria. (ibid., p. 122)
A conversa íntima fala de cenas fugazes: No orfanato das estantes / aos livros empoei-
rados / tuas queridas mãos de ausência / já não espanejam. (ibid., p. 126) E fala de sentimen-
tos intensos:
MEMÓRIA DOS DOIS
Ambos
juntos na mesma memória.
Eu
o Zé que não te esquece.
Tu
a Maria sempre lembrada. (ibid., p. 145)
Zé Craveirinha vai se refazendo aos poucos, inventando jeitos de ser sem Maria. A
inaptidão para ser só provoca o riso do verso:
248
A LINHA
Fio de linha branca.
Na mesinha-de-cabeceira
teu compassivo olhar.
Vou passajando abstracto.
Pica-me o dedo a agulha.
Nas minhas pretas peúgas rotas
são reais as sarcásticas
gargalhadas de linhas brancas. (ibid., p. 151)
Os versos melancolizam o que era desespero e dor. Ainda é com Maria que se estabe-
lece o diálogo em solidão, mas o sujeito poético afasta-se, pouco a pouco, da vida que se lhe
ata cotidianamente aos afazeres domésticos, às relações afetuosas e aos interesses tênues so-
bre a realidade dos outros. A voz pressagia uma existência que se finda, o poeta revela a Ma-
ria o “Pressentimento” que teve:
Desta vez Maria
espera aí mesmo por mim.
Exilado nos meus versos
vou ter contigo.
Sem falta! (ibid., p. 162)
Tudo confirma o inexorável fim: Todos os dias / Vou-me despedindo / dos amigos nas
estantes / e nas paredes. (ibid., p. 163) O fato não nega o mal augúrio, ressemantizado pelo
poeta, por seu desejo de reencontro com a amada, em “Boa Nova”: O electrocardiograma
promete reatarmos / nossos diálogos isentos de ilusões. / Disso te falo sem mórbido alvoroço.
(ibid., p. 164) O sujeito poético se enternece no verso, e consagra-se e a si mesmo e a Maria,
em derradeira construção de subjetividade.
O último livro de Maria, o Livro IV, tem uma outra dinâmica enunciativa. Maria não
se apresenta mais como o interlocutor imediato do sujeito poético, nem é mais o princípio
vital de todos os versos. As referências à amada escasseiam, abreviam-se, mas isso não quer
249
dizer esquecimento. Na verdade, Zé Craveirinha acumula-se de solidão, e não há sentimento
mais dolorosamente planeador da subjetividade:
OS DOIS EUS E A SOLIDÃO
Em mim
a solidão é já uma pessoa.
Onde
a um eu que não chora
um meu outro eu
chora tudo
pelos três. (ibid., p. 221)
Uma nova expressão de alteridade se anuncia nos versos. O “eu”, não suportando a
solidão que o oprime, atribui a um “outro” a insistência de existir; e a própria solidão, tangível
e fria como mármore, cortante como faca afiada, transforma-se em entidade para além de
qualquer compreensão de subjetividade e de alteridade. Mesmo a linguagem torna-se escassa,
porque a imensa dor da ausência da amada parece indizível para o poeta. A alegria de amar,
pela ausência, se transforma em dor de amar. O sujeito poético, que antes elaborava o discur-
so amoroso frente à pessoa amada, e nesse discurso consagrava-se como sujeito, agora, pelo
vazio que se faz, percebe a impossibilidade de definir, a si mesmo e ao objeto do seu poema, a
dor que sente pela ausência da figura amada. Os signos não correspondem à emoção.
Foucault, ao analisar a formação dos objetos no discurso, entende que há limitações
internas e externas o discurso, as quais dificultam estabelecer de forma precisa as proprieda-
des dos objetos. Reconhece o autor que, na formação de um discurso, não se volta, no seu
dizer, ao aquém do discurso para se compreender o objeto antes de qualquer signo formulado;
como também não se vai ao além do discurso para encontrar as formas que ficaram para trás.
Fica-se no próprio discurso, daí o risco da relação entre “as palavras e as coisas”, pois que, na
análise dos discursos, essa relação, que se pensava apenas fundada no entrecruzamento de
signo e objeto, se desfaz. Conclui Foucault:
Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que u-
250
tilizar esses signos para designar coisas. E é esse mais que os torna irredutí-
veis à língua e ao ato de fala. É essemais” que é preciso fazer aparecer que
é preciso descreve”. (FOUCAULT, 2005, p. 55)
Sendo o objeto do poema não o “eu” nem o “outro”, mas a ausência da relação amoro-
sa, a construção do discurso poético encontra a imprecisão da relação entre o significante e o
significado. O sujeito da enunciação vaga entre o “aquém” e o “além” do discurso, porque não
consegue forjar as regras discursivas, fixar um vocabulário para o que sente. A dor se trans-
forma em linguagem, mas a linguagem não consolida um discurso que sustente a significação
da dor; ela se repete, cria lacunas, recorre a signos não inerentes ao objeto:
PLENONASMOS
A
dor
mais dolorida.
(...)
Nem
uma efémera vírgula
a reticência de um pão seco
reticência de um grito sufocado
soluço soterrado no deserto
da sua própria vírgula
abrevia meus semânticos
pleonasmos de Maria. (M, p. 242)
A ausência do “outro”, para o sujeito amoroso, é assim compreendida por Julia Kriste-
va:
Quando a morte intrínseca à paixão amorosa produz-se na realidade e arreba-
ta o corpo de um dos amantes, ela é o auge do intolerável; o amante que so-
brevive avalia então o abismo que separa a morte imaginária
52
, que vivia em
sua paixão, da realidade implacável de que o amor o tinha sempre afastado:
salvado... (KRISTEVA, 1988, p. 57-8)
Diante da morte, da perda e da ausência, o sujeito narra o ser amado. Elabora-se, no
cerne da dor, o discurso que traz de volta a ausente. Essa disposição de linguagem cria um
52
Kristeva refere-se ao fato de que, em estado de amor, o sujeito desloca-se de tal forma para o outro, “que é
efetivamente do porte de um Senhor”, que o sentimento amoroso passa a representar uma morte para aquele que
ama, mas somente dessa forma adquire existência: “O amor é uma morte que me faz ser”. (KRISTEVA, 1988, p.
57)
251
paradoxo assim definido por Barthes: “Devo infinitamente ao ausente o discurso da sua au-
sência; situação com efeito extraordinária; o outro está ausente como referente, presente como
alocutário”. (BARTHES, 1995, p. 29)
O sujeito poético multiplica-se para dar conta de uma existência erma:
CAFÉ
Muito de manhã
ajunto à xícara
o respectivo pires
uma colherinha
e o café.
A mim mesmo peço
Que vá buscar o açucareiro.
Uma.
Duas.
Três colheres de açúcar.
Mexo. Provo. Está doce.
E na incongruente imensidão da casa
lacónico vou sorvendo
.............................................................
Tudo amargo. (M, p. 192)
Objetos e circunstâncias ganham vida somente para compartilhar a «solidão», signo
que resvala por toda a casa e ressoa na voz poética:
SOLITÁRIOS
Primeiro uma injuriosa nódoa nas calças.
Depois a falta de um botão na camisa.
E no desmazelo da noite
eu e o almoço
encostados ao tédio
um do outro. (ibid., p. 197)
A extrema solidão é mais extrema dor por não ser compreendida, compartilhada, des-
vanecida pela falta de compaixão de quem não adivinha que a dor se estende para além do
tempo:
252
... E EX.
MA
ESPOSA
Um
só momento
situem-se na minha carne
ao ler os convites
endereçados ao casal
Sr. José Craveirinha e Ex.
ma
Esposa. (ibid., p. 232)
E, por fim, expressa toda dor, lamentada toda solidão, o sujeito Zé Craveirinha volta a
sua Maria, repouso de si mesmo, consolo dos erros e dos infortúnios, “Memória” que não se
finda: Em suma: / Mesmo não estando / é inevitável a eterna / presença de Maria! (ibid., p.
243)
E só Camões, a quem o poeta recorre, “exausto de insónias”, oferece-lhe o mote lúgu-
bre, o mote amoroso, o verso da dor mais intensa que o Poeta Zé Craveirinha não consegue
exprimir sozinho, e canta em uníssono com o Poeta Luís Vaz : Louvada seja a Dinamene / e
Maria louvada seja também. // E ambos entoamos. (ibid., p. 241).
7.5 - José Craveirinha: a subjetividade erótica e a boneca de jagre
Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia si límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.
Pablo Neruda
A publicação, em 2004, da obra póstuma de José Craveirinha denominada Poemas E-
róticos, organizada por Fátima Mendonça, apresenta questões relevantes para o entendimento
253
do texto erótico do autor. Primeiro, diz a organizadora ter intuído que somente deveria publi-
car os poemas dos quais era a “fiel depositária” após a morte de Craveirinha. Esclarece a auto-
ra ter adivinhado um caráter autobiográfico na escritura erótica. A análise dos poemas leva à
confirmação de que eles se destinam a um só objeto, a “boneca de jagre”. Fátima Mendonça
ainda argumenta que a personagem feminina boneca de jagre “ia para além da pessoa
física que inspirava essa poesia e se transformava em arquétipo da juventude eterna”.
53
(PE,
2004, p. 7)
Antes de nos dedicarmos à análise dos textos que compõem a obra erótica de Craveiri-
nha, convém ressaltarmos que signos ligados ao erotismo sempre foram utilizados pelo autor.
Entretanto, estavam eles inseridos no universo cosmogônico onde participam também signos
associados à africanidade, como em “Canto do nosso amor sem fronteira”, da obra Karingana
ua Karigana:
(...)
Mas bem no fundo das almas
e dos corpos tatuados de esperança
o clitóris das montanhas nos sexos das nuvens
pátria do nosso desespero mais desesperado
pátria dos pés descalços na brancura do algodão
pátria de beijos e promessas de mais beijos
é o nosso genuíno grito mais gritado
a levantar no cosmos a beleza do nome
não renegável de Moçambique! (OP, p. 138)
A obra Poemas Eróticos reúne quatro conjuntos de poemas entregues por José Cravei-
rinha a Fátima Mendonça na década de 90, os quais têm as seguintes denominações: “Rezas
de Amor”, “Arte Barroca”, “Frenesi dos Zangãos” e “25 Unhadas às Gatas”. Cada uma das
partes do livro tem propostas semânticas muito claras, as quais aproximam os poemas na mes-
ma compreensão literária, mas decidimos por fazer a análise seguindo a divisão proposta pelo
53
Fátima Mendonça indica ainda, no texto que apresenta a obra, mais uma razão para só ter publicado os poemas
eróticos de José Craveirinha postumamente: a morte trágica da jovem “musa inspiradora”, em Marselha, o que
teria abalado profundamente o poeta. CRAVEIRINHA, José. Poemas eróticos. Maputo: Moçambique Editora,
Lisboa: Texto Editores, 2004, p. 7
254
poeta.
“Rezas de Amor”, primeira parte do livro, compõem-se de quatorze poemas. Como
não há uma fixação em suas formas estruturais, vamos nos ater às propostas que se apresen-
tam através dos signos. Aí temos, de fato, uma conformidade que se faz notar de imediato.
Inseridos no mesmo campo semântico do título, saltam do texto signos que se compreendem
pela semântica da religiosidade: «culto», «altar», «igreja», «santo», «hossanas», «catequeses»,
«cântico», «anjo», «sagrado» etc. Tais signos, e muitos outros, porém, participam de um con-
texto erótico, ferindo seus princípios fundamentais, alterando-lhes a configuração que lhe foi
outorgada pela moral religiosa.
Antes de iniciarmos uma discussão sobre o erotismo nos textos que integram “Rezas
de Amor”, achamos necessário empreender uma discussão sobre o uso dos signos no texto
literário, o que nos parece de fundamental importância para a análise da obra erótica de José
Craveirinha.
Segundo Paul Ricouer, em A Metáfora Viva, a teoria da palavra garante à mesma a e-
xistência de um primado não ambíguo, organizado pela ideologia, e também pelo processo
analítico à ideologia atrelado. A correspondência da palavra com a idéia a que ela conduz é o
princípio de fundamental da análise, porque dele decorre a orientação para a compreensão de
uma outra correspondência, qual seja a da elaboração da figura instituída como metáfora.
54
Destacamos, primeiramente, a constituição de uma “ideologia da palavra”. Aqui, for-
çosamente, voltamos à proposta de Mikhail Bakhtin sobre o signo ideológico, visto que, se-
gundo o autor, “tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. (...)
Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade
material, passa a refletir e refratar, numa certa medida, uma outra realidade”. (BAKHTIN,
2004, p. 31) Sob tal formulação, e retornando ao trabalho poético, precisamos estabelecer que
54
Cf. Paul Ricouer. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 83-93.
255
os signos doravante destacados para análise ? e outros que marcam os poemas iniciais da
obra erótica de Craveirinha ? inscrevem-se, primeiramente, na ideologia religiosa, mais pre-
cisamente no cristianismo.
55
A moral cristã, largamente discutida neste trabalho sob a ótica de Nietzsche e de Au-
erbach, é também apresentada por Michel Foucault em A Hermenêutica do Sujeito. Ao tratar
do “cuidado de si”, o filósofo identifica os postulados da espiritualidade na relação subjetivi-
dade/verdade. Assim, concebe que a espiritualidade não permitiu ao sujeito o acesso à verda-
de pelo conhecimento, mas por uma série de práticas e procedimentos que iam da renúncia de
si mesmo à modificação da própria existência. Resume o autor:
(...) para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si
mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, a-
companhado, duplicado, consumado por certas transformações do sujeito,
não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito. (FOU-
CAULT, 2004, p. 21)
Entrando na idade moderna, o homem considera, todavia, que somente o conhecimen-
to cartesiano lhe permitirá o acesso à verdade. Entretanto, a recompensa não se dará na pleni-
tude do sujeito, como propõe e promete a espiritualidade, recompensa pelo sacrifício e renún-
cia. A verdade, agora, será uma busca infinita que se dá pelo conhecimento.
56
É sob tais con-
ceitos, emprestados de Foucault, que pretendemos analisar a poesia erótica de José Craveiri-
nha. Os signos religiosos são indubitáveis; sabemo-los frutos de uma ideologia que confere à
palavra toda uma predicação instituída para a salvação do sujeito; entendemos que, por tal
abstração, a verdade é dada ao sujeito como recompensa pelo sacrifício de abandonar a si
55
Considerando o risco de nos desviarmos demais do objeto de análise a que se consagrou esta pesquisa, não
discutiremos, aqui, a relação do poeta com a doutrina religiosa cristã, imposta pela colonização. Ainda que con-
sideremos essa relação constituinte do processo de criação da poesia erótica, não convém nos atermos a uma
investigação que confira ao discurso erótico uma rejeição à filosofia cristã. Tal suposição não seria de todo des-
propositada por dois motivos: primeiro, porque sabemos que o poeta não foi criado sob a égide do cristianismo;
segundo, porque há poemas de Craveirinha que evidenciam posições análogas do sujeito poético. Porém tais
informações, além de não garantirem, neste caso, uma estabilidade analítica, não são relevantes para nossa análi-
se.
56
Cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 24
256
mesmo. Agora, resta-nos compreender como o sujeito da poesia promove o deslocamento do
signo religioso para constituí-lo como metáfora; a que verdade ele teve ou pretendeu ter aces-
so; a que ponto sua salvação ? caso ele a tenha almejado ? ficou comprometida pelo co-
nhecimento; e, por fim, de que conhecimentos ele dispôs para alcançar a verdade.
No primeiro poema de “Rezas de Amor”, os signos religiosos não parecem destituídos
de sua semântica primeira, ou seja, não se elaboram metáforas que lhes dêem novas significa-
ções. O que chama a atenção é a relação do sujeito poético com tais signos que representam,
não há dúvida, uma realidade extralingüística da qual o sujeito participa, mas que nela não se
consagra:
CULTO
Sábio
altar
de rezas
tua nudez
minha sedosa
madre igreja
de culto. (PE, p. 14)
Um signo, «nudez», não se conforma às práticas religiosas cristãs; outro signo, «sedo-
sa», propõe uma relação de intimidade entre o sujeito poético e o objeto do poema, a madre
igreja, que não atende aos procedimentos estabelecidos pelo “culto” tradicional. E, por fim,
«sábio» identifica uma proposta de conhecimento que se distancia da salvação pela espiritua-
lidade.
Exigindo análise mais complexa, o poema “Santo Excomungado” não somente apre-
senta signos religiosos em desvio, como alude às práticas do “eu” lírico, as quais, distanciadas
que se encontram das prédicas cristãs, não deixam de ser contextualizadas como religiosas.
Entretanto, o que se entende, neste caso, como prática de devoção espiritual mescla-se com
práticas carnais, portanto, contrárias às atividades místicas e incorpóreas:
Herege
sei-me crente
257
quando
te rezo
desde o fremir
das amaras [sic]
57
às trincadas
catequeses
das
bocas.
E
me sei
suspenso
entre
o sumo
dos gemidos
e hierovulvas
de chipendanas
58
entoando
mil
hossanas
a rebate.
Deuses
excomunguem
os que desdenham
orar
à Vida
desta maneira. (ibid., p. 15)
Aventuramos-nos na interpretação deste poema pelos signos escolhidos pelo autor, o
que foi apresentado antes como proposta de análise para a composição poética de Craveirinha
que ora investigamos. O signo «herege» define a situação inicial do sujeito do poema, e con-
sideramos estar ele, o signo, associado a um contexto social. Neste caso a palavra, ainda que
elaborada ideologicamente, valida-se pelo seu sentido primeiro e único. Em oposição, temos o
signo «crente». Aí, sim, dá-se o deslocamento do sentido da palavra, estabelecendo a metáfo-
ra. “Sei-me crente”, diz o sujeito. Dessa forma, articula-se um conhecimento sobre si mesmo
que se afasta ainda mais do sentido religioso ao ser indicada a condição dessa mudança no
57
Quanto ao vocábulo “amaras”, Fátima Mendonça considera ser sinônimo de “amargas”, embora também reco-
nheça a possibilidade de significar “amarras”.
58
Os textos poéticos de José Craveirinha na obra em análise apresentam muitas palavras do léxico moçambica-
no. A organizadora da obra, Fátima Mendonça, esclarece, em nota introdutória do livro, que optou por não fazê-
las figurar em glossário, por entender que eles são facilmente compreendidos no contexto. Concordamos com
autora, mas consideramos que, no caso deste poema, saber o significado da palavra «chipendanas» amplia a
compreensão do texto, pois refere-se o vocábulo a um instrumento unicórdio tocado com uma vareta e modulado
com a boca. Esse sentido, a nosso ver, confere novas possibilidades interpretativas aos signos anteriormente
destacados.
258
“eu”, de herege a crente. Completa o sujeito poético: “sei-me crente quando te rezo”. A rela-
ção eu-tu não permite quaisquer dúvidas a respeito da ressemantização do signo religioso.
Confirmação que não tarda a se identificar pelos signos carnais que se sucedem: «bocas»,
«gemidos», «hierovulvas». E se revela, ainda, no texto, um posicionamento do sujeito poético
de quem não pretende a salvação e o alcance da verdade pela renúncia de si mesmo. Ao con-
trário, identificamos a atitude de quem desafia as normas impostas pela espiritualidade cristã:
primeiro, pela evocação aos «deuses», o que já seria, em si mesma, uma proposta pagã; se-
gundo, por atribuir a esses deuses um direito consignado pelos códigos cristãos, que é a ex-
comunhão; e, por fim, pela ousadia de considerar fora da salvação segundo a doutrina do
sujeito poético todos os que não consideram a sua idéia de oração e louvação.
Neste ponto do estudo, achamos por bem trazer novamente à discussão as concepções
apresentadas por Paul Ricouer em seu livro A Metáfora Viva. Ao estabelecer a relação entre a
poesia e o leitor, o autor investiga a “construção do sentido” que se pode projetar pelo leitor a
partir do signo selecionado pelo poeta. Dá-se, assim, o trabalho com a metáfora.
De acordo com a proposta de Ricouer, há dois princípios que regem a lógica da “cons-
trução do sentido”: o princípio de conveniência ou congruência, que leva o leitor a decidir que
conotações convêm ao tema; e o princípio de plenitude, que possibilita a utilização, pelo lei-
tor, de todas as conotações aplicáveis ao tema. Segundo o autor, o segundo princípio, o da
plenitude, corrige o primeiro, pois a leitura poética não exige, como o faz a leitura técnica, a
escolha entre duas significações que se ajustem ao contexto. O que seria ambigüidade em
outro discurso denomina-se aqui precisamente plenitude.” (RICOUER, 2004, p. 151)
Mais uma vez está explicado, caso tenha sido necessário, o porquê da opção pela aná-
lise do signo na poesia erótica de Craveirinha. A própria estrutura do poema ressalta a pala-
vra, e cabe ao leitor, apenas e tanto, procurar desvendar que significações possam ser atribuí-
259
das ao signo de forma que ampliem a proposta poética.
59
A relação erótico-amorosa dá-se em
plenitude. A busca pelo real, pelo que está fora de si, encerra-se no momento em que os cor-
pos amantes encontram-se no ato de amar. Mais uma vez, não cabe às concepções cristãs de
amor a conversão do sentimento em palavras. Os deuses conformam-se melhor ao prazer in-
tenso e, por conseguinte, à sua expressão, porque libertários, intensos, integrados em si mes-
mos.
Se os deuses invocados pelo sujeito poético de Craveirinha são os olímpicos ou os que
se congregam ao logos africano, não importa. Fato é que esses deuses, tenham que aparência
lhes for atribuída, libertam o ser e o lançam na totalidade dos desejos.
Em A Origem da Tragédia, há uma proposição de entendimento da presença dos deu-
ses na vida humana pela qual nos parece, a nós leitores, estar mesmo o filósofo entregue ao
devaneio, tal a força dos deuses, pois que tomam de assalto a linguagem que pretende explicar
sua natureza:
Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e
procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização,
misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhes dar as
costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espiri-
tualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde
tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou
mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante
essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no
corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se de-
pararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena ? a imagem
ideal, “pairando em doce sensualidade”, da própria existência deles. (NI-
ETZSCHE, 2005, p. 35-6)
Por essa representação, entendemos o sujeito poético de Craveirinha. O que ele propõe
é o delírio dos deuses ? que nos arriscamos a interpretar mais como expressão dionisíaca ? ,
pelo qual intensifica as suas manifestações eróticas. O sujeito do poema, como que em estado
59
Não pretendemos nos demorar em teorias da palavra e da interpretação para justificar a análise que temos
desenvolvido sobre os poemas eróticos de Craveirinha, como se a própria obra já não fosse justificativa suficien-
te. Entretanto, não é demais lembrar que Umberto Eco, autor já destacado neste estudo, elabora uma importante
teoria a respeito da interpretação, especialmente no que concerne à compreensão da palavra, através do que ele
ressalta a cooperação textual, que compreende diversos recursos a serem utilizados pelo leitor-modelo na com-
preensão de um texto. ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo:Perspectiva, 2004, passim.
260
de alheamento, vê os corpos que se envolvem, narra o que vê, mas, estranhamente, vive o
mesmo delírio, sabe as intenções, adivinha as delícias. De quem os corpos? Onde o sujeito?
Em que espaço se conciliam os signos «Céu» e «Sade»? A quem ou a que se devota o crente
ou o idólatra?
O TIMBRE DOS DEUSES
Vivo
um delírio
de corpos
enovelados
tangendo
seus próprios
cânticos.
Dedos
e bocas
em manuais
de Sade.
Desencantados
dos outros
confidenciando-se
néctares
portas
adentro
dos favos
do Céu.
Exaustos
corpos encontram
o timbre
dos Deuses.
60
(PE, p. 17)
Os signos cristãos elevam o ser à espiritualidade; os signos eróticos concedem ao ser o
direito ao Desejo. Tal como um nono Cântico dos Cânticos, o poema faz um “Louvor aos
Louvores”: uma exaltação a todos os atos de louvação. O homem, ao louvar a natureza, louva
a si mesmo, pois que com ela religa-se na sede e na fome saciadas. O homem, ao louvar a
mulher, louva a si mesmo, pois que com ela retorna à origem da existência e à conjugação
60
Talvez tenha causado certa inquietação o fato de os primeiros poemas terem a mesma estrutura formal. Have-
ria, na estruturação dos versos, um sentido a ser explicado? Fátima Mendonça, organizadora do livro, não faz
referência ao assunto. Poderíamos atribuir à estrutura dos textos uma inversão no processo de elevação espiritual,
visto que os poemas, fartos em signos cristãos, atribuem aos mesmos sentidos que, para a moral cristã, represen-
tariam uma queda. Entretanto, tal hipótese interpretativa, que não se confirma teoricamente, em nada acrescenta-
ria ao estudo. Além disso, em “Rezas de Amor” há poemas de estruturação estrófica mais simplificada, e em
outros conjuntos de poemas, a mesma elaboração formal retorna, sem que encontremos analogias ou oposições
que sustentem uma hipótese.
261
carnal sagrada ? a família ? diante do pão que os alimenta. Mas na origem da existência, os
corpos conjugam-se, também, no amor erótico:
Louvada
seja
a água
que satisfaz
minha sede.
Louvado
o milho maduro
da nossa
bela farinha.
E
louvada
seja a mulher
que louva
a génese
do seu ventre
e nos concebe bem vivos
perante o mútuo pão fresco.
E
louvados
os lábios
no mútuo beijo
e mútuo pão
da mesma fome. (ibid., p. 19)
A despeito de todos os códigos e signos, é pelo encontro amoroso que se dá a máxima
subjetividade:
Deste agora
para todos os amanhãs
merencório estado de graça
alça-me contigo
em mim. (ibid., p. 22)
E no último poema de “Rezas de Amor”, o sujeito poético de Craveirinha, instituindo-
se da prerrogativa de ser humano e, por essa qualidade, conhecer o amor, e por esse amor al-
cançar a divindade, restitui a Deus o que não Lhe foi, por sua própria decisão, consagrado: o
amar como um Homem.
DEUS À SEMELHANÇA DO HOMEM
262
A
inata
qualidade
de amar
uns chamam
vício.
É defeito
a redondeza
do Mundo?
É crime gostar
do aroma
da rosa?
Valho-me
do amor
e nele me exalto
e me redimo
tal
como Deus
quando se liberta
invocando-se
alter-ego
do Homem. (ibid., p. 27)
“Arte Barroca”, o segundo conjunto de poemas da obra de poesia erótica de Craveiri-
nha, sugeriria uma compreensão ideológica dos textos, seguindo as trilhas da moral ascética e
da dicotomia corpo/alma. Entretanto, não identificamos o regimento moral e ascético proposto
pelos discursos que vigoravam à época seiscentista. Não há, nos poemas, salvo raras exce-
ções, signos que se contextualizem diretamente com o Barroco. Então, pensando a obra como
arte que se configura sob uma proposta estética, e seguindo a trilha de investigação dos sig-
nos, entendemos logo tratar-se de uma outra acepção do Barroco. O sujeito poético constitui-
se como um artista e a relação erótico-amorosa como sua obra de arte. Dois elementos de ex-
pressão da arte barroca, a escultura e a música, fazem a alegoria do amor.
Mais um intervalo se faz necessário no raciocínio linear: como o que está agora em
questão é a subjetividade, convém fazer a relação entre a criação estética e a proposta poética
que se funda no sujeito. Assim, recorremos à tese sobre estética desenvolvida por Herbert
263
Marcuse, com base na filosofia kantiana a qual designa, para a estética, o espaço intermediá-
rio entre os pólos moralidade e sensualidade:
A natureza da sensualidade é a “receptividade”, a cognição obtida por meio
de sua afetação por determinados objetos. É em virtude da sua relação intrín-
seca com a sensualidade que a função estética assume a posição central. A
percepção estética é acompanhada do prazer. Esse prazer deriva da percep-
ção da forma pura de um objeto, independentemente de sua “matéria” ou de
seu “propósito” (interno ou externo). Um objeto representado em sua forma
pura é “belo”. Tal representação é obra (ou, melhor, o jogo) da imaginação.
Como imaginação, a percepção estética é sensualidade, ao mesmo tempo,
mais do que sensualidade (...): dá prazer e, portanto, é essencialmente subje-
tiva; mas na medida em que esse prazer é constituído pela forma pura do
próprio objeto, acompanha universal e necessariamente a percepção estética
? para qualquer sujeito que percebe. Embora sensual e, portanto, receptiva,
a imaginação estética é criadora: numa livre síntese de sua própria criação,
ela constitui beleza. Na imaginação estética, a sensualidade gera princípios
universalmente válidos para uma ordem objetiva. (MARCUSE, 1975, p.
159)
Engenho e habilidade, imaginação e sensualidade transformam-se em arte estético-
amorosa:
PÍNCAROS
Cílios
em moldes
de cerâmica.
Tema
de colibri
asas abertas
na pétala
saboreando
dois píncaros
de voo. (PE, p. 32)
Considerando o sujeito poético de Poemas Eróticos como sendo masculino, a partir da
informação de que o objeto amoroso é a “boneca de jagre”, temos em “Arabescos de Giz”
uma relação que se dá pela construção do amado por quem o ama no ato mesmo de amar. E
neste ato, a dor e o gozo, gemidos de um e de outro se destinam na comunhão da carne. Os
versos libertam o sujeito da razão a que ele mesmo se vinculara por ideais que o roubaram de
si mesmo, e o forjaram como “eu” na existência do “outro”. Agora, pela estética erótica, pode
264
voltar ao gozo da subjetividade, porque “a reconciliação estética implica um fortalecimento da
sensualidade contra a tirania da razão, e, em última instância, exige até a libertação da sensua-
lidade, frente à dominação repressiva da razão”. (MARCUSE, 1975, p. 161)
Giz
de unhas
na lousa
do meu dorso
giza arabescos
de gemidos
que se gostam.
Teu
giz.
Minha lousa.
Gemidos teus
inseridos nos meus. (PE, p. 33)
Todo ato amoroso representado nos poemas é acompanhado por sons musicais. Cons-
tantes, os signos que elaboram a idéia de música conduzem cada gesto e refletem o êxtase
amoroso, o que se apresenta de imediato nos títulos dos poemas, que alternam ou mesclam
denominações européias e palavras moçambicanas: “Ópera de Xirossanas”, “Xingombela”,
“Sonatas na Areia”, “Sonatas de Caniços” e “Timbila”.
Os poemas de “Arte Barroca” seguem a mesma estrutura formal da maioria dos que
compõem “Rezas de Amor”. Entretanto, há uma redução da linguagem que faz evidenciar as
imagens propostas pelo poeta. Em êxtase erótico, o sujeito poético não forma enunciados que
dêem conta da experiência que vivencia. São muitas as lacunas que se formam entre signos
imagéticos, como se a fala tivesse sido suspensa pelo êxtase. A palavra, manifestação elemen-
tar da poesia, parece não conseguir representar a totalidade da emoção poética. O que se afi-
gura como um paradoxo é assim explicado por Octavio Paz:
A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a pa-
lavra a exprime. A imagem reconcilia os contrários, mas esta reconciliação
não pode ser explicada pelas palavras ? exceto pelas da imagem, que já
deixaram de sê-lo. Assim, a imagem é um recurso desesperado contra o si-
lêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a terrível experiência
do que nos rodeia e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em
extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras ex-
tremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fa-
265
la: o silêncio e a não-significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo do
idioma, das explicações e da história. Mais além, abrem-se as portas do real:
significação e não-significação tornam-se termos equivalentes. Tal é o senti-
do último da imagem: ela mesma. (PAZ, 2005, 48-9)
Reduzido em sua linguagem, o poema “Crisântemos” não é contido; ao contrário, o
sujeito poético, através das imagens que o envolvem, mostra-se em estado de expansão do
desejo:
Azul
de lençol
perfumado.
E crisântemos
de mamilos
meus lábios
florindo. (PE, p. 31)
A imagem é a máxima experiência do sujeito poético quando a idéia que pretende ela-
borar, por sua intensidade erótica, afirma-se para além da adequação conceitual. “A imagem é
um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do
objeto em si e a sua existência em nós”. (BOSI, 2000, p. 19)
A imagem poética, por seu deslocamento da idéia primeira que leva o signo ao objeto,
traduz a fantasia erótica do sujeito poético que aproxima universos tão distantes como o corpo
da amada e o mar, sem que sejam em presença um do outro:
MUSGO E MAR
Tactos
no poiso
de seu musgo.
Sigilos
de concha
sussurrando
seu segredo
no âmago
da ostra.
Tudo
nos fofos signos
da concha. (PE, p. 34)
266
Por fim, há um jogo dialético nesta segunda parte do livro, cuja síntese é o desejo de
rejuvenescimento do sujeito poético. No poema também intitulado “Arte Barroca”, o sujeito
descreve-se fisicamente, pelo que realça caracteres associados à velhice; à arte barroca é atri-
buída a juventude de que ele necessita. Fátima Mendonça vê nesse poema uma composição
autobiográfica, um “dramático monólogo de fim de vida de uma personagem fáustica, bus-
cando na juventude alheia o elixir impossível da imortalidade”. (ibid., p. 7)
Meu
tipo avoengo
de ralos
cabelos grisalhos.
Mesmo
tom embranquecido
lauto bigode
recobrindo
o lábio.
Sua
fresca
sexta dezena
primavera
minha
antiquada
arte barroca
peremptória
ainda mais
a rejuvenesce. (ibid., p. 30)
O último poema desta segunda parte do livro revela o objeto de desejo do sujeito poé-
tico. “Boneca de Jagre” é texto melancólico, doloroso. O corpo e a alma se ressentem de uma
ausência de ser após uma vida inteiramente preenchida pelo desejo:
Tristes
em minha cara
sinuosas
são as veredas.
Pressago
lusco-fusco
na alma.
Linda
boneca
de jagre
caboverdiana-me
267
a vida.
Na
ante-sala
do Adeus
a boneca
faz-me doce
a Despedida. (ibid., p. 42)
A terceira parte do livro Poemas Eróticos, denominada “Frenesi dos Zangãos”, elabo-
ra uma nova proposta: nos poemas coligidos, há um movimento de alternância entre subjeti-
vidade e alteridade, o que leva o leitor a empreender uma outra via interpretativa. Que subje-
tividade se expressa no verso que apresenta a visão objetiva do sujeito poético sobre as coisas
circundantes? Que alteridade se postula nos signos que expressam o “eu”? Ou, mais precisa-
mente, através de que recursos de linguagem o “eu” e o “outro” fundem-se na mesma propo-
sição? Seja a que resultado chegarmos pela análise, não devemos esquecer que, fundamental-
mente, todos os signos instauram-se no desejo erótico, pressuposto da subjetividade.
61
O primeiro poema leva o sujeito poético ao encontro que se objetiva nos versos, por-
que o integra na experiência que se constrói em alteridade:
Adoro
a respiração
das multidões.
É
perdido
lá no meio
que as deusas das urbes
me inculcam o solitário
frenesi peculiar
dos zangãos. (ibid., p. 44)
Também investido de alteridade, o sujeito poético identifica um erotismo que não seja
manifesto exclusivamente no “eu”, mas em todos que se prometem os mesmos prazeres:
BAGOS DE AMORA
61
Consideramos necessário esclarecer que o sujeito poético abandona, em “Frenesi dos Zangãos”, a disposição
formal que marcava os poemas anteriores. Os versos, agora, são lineares e se fixam em estruturas sintáticas.
268
Tesouro de homem é uma rapariga nua.
Aos deliciosos bagos de amora que homem não os morde?
Que dentes não rangem preciosos nesse gosto?
Néctar dos néctares mais antiqüíssimo dos homens é este néctar.
E o nosso ouro o êxtase glorioso no arrepio das femininas amoras.
(...) (ibid., p. 50)
Entretanto, nos versos subseqüentes, o eu do poema toma-se de novo em subjetivida-
de, ao participar a experiência que nem todos comungam:
Isto no regresso do longo exílio.
Isto no términus daquele féretro de cimento.
Isto no retorno aos carinhos da mulher sagrada.
Quem delirou tudo isto quem delirou
não sabe se sonha ou não sonha
mas pressente
e sente na carne
o feitiço dos beijos de amora bem mordidos. (ibid.)
O sujeito poético, então, desloca a cena de uma situação erótica comum para uma
situação política incomum. Como nos foi dado saber pelos diversos estudos que empreende-
mos, o discurso político é a representação da alteridade, mas o resultado de uma ação política
reflete-se na subjetividade. Por outro lado, a experiência erótica é subjetiva, porém o que dela
decorre é universal. Assim, entre alteridade e subjetividade, o sujeito poético expõe suas emo-
ções. No entanto, a alteridade que se estabelece mais vivamente nos textos é a que tematiza o
ser amado. Eu-outro, na conjugação perfeita do verbo, do verso e da carne, estabelecem a
harmonia dos contrários, iluminam as imagens antes ofuscadas pelo desalento ? do sujeito
do poema e do leitor ?, extasiam os sentidos na promessa erótica:
ARIDEZ
Teu fogo de lábios
por mais apaziguados de beijos
aos meus ósculos mordidos
que seja uma aridez ateada.(ibid., p. 46)
Há poemas em que o “outro” fixa-se em nome de mulher. Neles, o sujeito poético con-
sagra a existência feminina que permitiu o saber erótico, por suas qualidades físicas e disposi-
269
ções amorosas. Em “Pausa com Cassilda”, a união entre o homem e a mulher molda-se na
natureza: Um pudim de fogo / da cor do nosso íntimo desespero / sobre as índicas águas da
baía. (...) (ibid., p. 64); em “Nádia”, a vertigem do corpo e da existência: Em / tépido caudal /
de velho rio / me fluo. // Na cálida praia / nenúfar deságuo / em tua foz (ibid., p. 58)
O “eu” existe na consistência da carne e na diáfana sedução, uma “Ode à Laura”:
Minha ode
nasce da maravilhosa
curva mágica de um céu langoroso
no ritmo moreno das belas
ancas femininas de Laura.
Aonde a ternura
de uma pomba a não ser
a suave linha do teu ventre
dançando nas retinas dos homens
a dança mais feiticeira da música
poética das tuas pernas?
(...) (ibid., p. 63)
Na última parte do livro Poemas Eróticos, denominada “25 Unhadas às Gatas”, José
Craveirinha amplia, em seus versos, três imagens prevalecentes: a dos gatos em libertinagem;
a dos corpos em lascívia adâmica; a da velhice que não aniquila o desejo.
A propriedade dos gatos é enaltecida pelo sujeito poético:
No tempo do cio
invejo dos gatos a sorte.
Ao uivar das gatas
Qualquer bichano fá-las miar. (ibid., p. 88)
O encontro, nos poemas, entre o homem e os gatos viabiliza o erotismo proposto por
Craveirinha. O homem potencializa-se na animalidade que exalta, libertando-se dos interditos
que estabelecem um comportamento sexual doutrinário para o ser humano.
Essa primeira manifestação corpórea do homem é assim definida por Georges Bataille:
O erotismo é, de forma geral, infração à regra dos interditos: é uma a-
tividade humana. Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a anima-
lidade não deixa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade
se desvia com horror, mas ao mesmo tempo o conserva. A animalidade é
270
mesmo tão bem conservada no erotismo que o termo animalidade ou bestia-
lidade não deixa de lhe estar ligado. Foi por exagero que a transgressão do
interdito ganhou o sentido de volta à natureza, de que o animal é a expres-
são. Entretanto, a atividade à qual o interdito se opõe é parecida com a dos
animais. (BATAILLE, 1987, p. 88)
Vencendo os interditos que a moralidade e a sua atividade coletiva impunham à ex-
pressão subjetiva de sua sexualidade, o sujeito poético de Craveirinha aproxima-se da anima-
lidade que funda a condição primigênia de ser macho e ser fêmea:
(...)
Submissos
ao cúmulo do impurismo
macho e fêmea voam
puros ao timbre do arco
duplo de rins. (PE, p. 68)
O que se consagra no amor erótico é a faculdade de ser animal; o que se identifica no
sujeito e no objeto é a propriedade de ser “Gato e Gata”:
Só queria que minha huri me visse
tão belo como um velho gato
no miar dos cios
da sua gata.
E dos inevitáveis miaus
fazer as unhas da gataria
em irrefutáveis ilações
arranhar telhados (ibid., p. 87)
Assumindo plenamente a animalidade que justifica a existência do sujeito erótico, o
sujeito poético desfaz-se das metáforas e expõe o corpo e os corpos no encontro amoroso e na
realização do desejo:
Na geometria das tuas nádegas
minhas unhas aprendem o ritmo
da arquitectura natural da curva.
Deslizo nelas meu júbilo.
Quem inventou a magia desse lado?
E a quem cabe extinguir as nádegas
se nelas há a geometria do mundo
o homem busca os tons da parábola
e a mulher não ignora esse destino?
De nádegas o que o homem aprende
271
é estar nelas onde elas sabem
jungi-lo no que são:
amuleto nos olhos
liturgia das mãos
ou estar-lhes em cima. (ibid., p. 74)
O jogo entre interdito e transgressão, definido por Bataille como um “paradoxo da
liberdade sexual”, torna-se interessante na medida em que a transgressão revela o interdito; o
que, antes, era mistério, declara-se nos atos transgressores:
Somos admitidos no conhecimento de um prazer em que a noção de prazer
se mistura ao mistério que expressa o interdito determinando do prazer ao
mesmo tempo em que o condena. (...) a essência do erotismo é dada na asso-
ciação inextricável do prazer sexual e do interdito. Nunca, humanamente, o
interdito aparece sem a revelação do prazer, nem o prazer sem o sentimento
do interdito. (BATAILLE, 1987, p. 100)
Individualizando-se no verso, processo inequívoco de reconhecimento da subjetivida-
de, o sujeito poético/ poeta transgride códigos morais e revela, pela vontade e ação de trans-
gressão, o que se reprimia ou ocultava pelo interdito:
SEXTO ANDAR
Zé querido
Não te esqueças de alugar
um novo apartamento
dizia a carta dela.
Aluguei-lhe
uma nova flat
e comprei-lhe um jogo de lençóis
para estender na cama nova.
Fui lá com a sua melhor amiga
e os dois no sexto andar do prédio
minuciosamente estreámos também os lençóis. (PE, p. 72)
Ao se estabelecer como sujeito erótico, o sujeito poético evidencia o objeto do desejo,
o qual, segundo ainda Bataille, “não é todo o erotismo, mas é atravessado por ele”. (BA-
TAILLE, 1987, p. 122)
À mulher, fonte de desejos e prazeres, dedica o poeta certo lirismo, em que o erotismo
272
reinaugura-se como gênese:
Após a grande tarefa
maior dilema de Deus
era a obra inacabada.
Ante o stress divino
a monotonia celestial
e a lengalenga dos homens
uma silhueta de mulher
completou a lacuna do Universo. (PE, p. 82)
José Craveirinha insere a velhice na temática do erotismo. Uma recusa ao tempo e à
idade que desgasta o ser se revela no desejo que não arrefece. Em “25 Unhadas às Gatas”, são
três os poemas que anunciam a incômoda verdade: a chegada da velhice.
Em “Que se Lixe”, os versos especulares do rosto participam ao leitor que o sujeito,
agora, defronta-se com o tempo nas marcas do seu rosto:
Os
caracteres
hieroglíficos
inscritos no papiro do meu rosto
todos os dias contam histórias ao meu ouvido.
(...)
A bigodeira grisalha arrelvando o lábio de cima
enquadrava-se no nariz em jeitos de exórdio
como pô-las aos berros até baterem os joelhos no tecto. (ibid., p. 83)
(...)
De forma surpreendente, o poema não se conclui em melancolia. Ao contrário, o sujei-
to poético rebela-se contra sua própria enunciação, pela qual construía uma subjetividade fun-
dada no pesar de si mesma:
(...)
Porra para a poesia!
Que se lixe se não acabo
agora mesmo esta merda!
Acabei ou não acabei? (ibid.)
Que atitude decorre destes versos? De que forma nos será anunciado, a partir de então,
o sujeito de Craveirinha que se reconhece velho, mas parece, a supor pela voz insurrecta, que
273
não aceita a proscrição do sujeito erótico?
As dúvidas cessam com o poema “Coitadinho deste Velho”, o qual contrapõe a incon-
testável velhice com o desejo pela promessa sexual das mulheres jovens, sem esconder a iro-
nia e irreverência com que trata a matéria de sua suposta angústia:
Soturno
atlas
orográfico
similar
de rugas
é
meu
ex-líbris
de avô.
Em
abusos
do débil
ancião
belas
adolescentes
argutas
sempre
que podem
corrompem
a paz
deste
velho. (ibid., p. 84)
Por fim, o sujeito lírico de Craveirinha, em Poemas Eróticos, não deixa dúvidas sobre
a recusa ao envelhecimento. E parece ser mesmo a ironia seu recurso para não ceder à inexo-
rabilidade do tempo:
AINDA
Me
recuso
a ser um solitário
aposentado ancião
cabisbaixo na foz do rio da vida.
Eu
aquele jovem
ainda corrompível sessentão
274
a ciciar às meninas subentendidos
«até logo» de despedida.
O sigiloso
etcetra
vem depois. (ibid., p. 85)
Interstícios de José Craveirinha, seus poemas eróticos dão-nos uma outra imagem do
poeta revolucionário, e surpreende-nos, por ser, também este Zé, admirável e encantador
275
8. FIM DA TRAMA POÉTICA: O QUE FICOU DO “EU” E DO “OUTRO”
Palavras? Sim. De ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.
Também a luz em si mesma se perde.
(Octavio Paz)
Alguns signos, em especial, planearam a realização do estudo que empreendemos so-
bre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Percorreram o texto
científico elaborado os sons e as formas da alteridade e da subjetividade. “Eu”, “Outro” e di-
versos signos que derivam dessa relação e imprimem vida ao fazer literário foram identifica-
dos, categorizados, redimensionados para além de seu estatuto original. E, não raro, escapa-
ram à compreensão primeira, exigindo uma revisão da idéia proposta.
Um longo percurso se anunciava. A realidade, o caminho mais seguro, inicia a jorna-
da. A revisão da teoria proposta por Erich Auberbach forneceu, mais do que a segura e confi-
ável pesquisa da fortuna crítica sobre Drummond e sobre Craveirinha, possibilidades de leitu-
ra dos poemas que se aliam a um pensamento político-ideológico.
O homem e suas experiências formaram os textos realistas. Os temas mais comuns e a
expressão da vida cotidiana possibilitaram que figurassem na poesia de caráter realista o ho-
mem do povo e os sonhos de que se nutriu sua parca existência. Todavia, mais do que revelar
o “outro” no texto poético, a percepção literária desses seres mundanos revelaram o “eu”.
Surpreendente paradoxo: o criterioso desenho de quem está à parte do sujeito, constituído na
realidade que se observa, acaba por revelar a subjetividade de quem se pensava oculto no ser
alheio. E se não se identifica, na leitura isenta de perscrutação, o sujeito que dá escopo ao
verso, é porque, na forma e no método, no conteúdo e na dinâmica, o poema se consagra ao
276
“outro”.
Assim é a poesia de Drummond, poeta que, durante décadas, consolidou a primazia da
alteridade. E tal compromisso, inúmeras vezes, o fez desistir até mesmo das ideologias que
precipitaram o texto na conformação da insurgência dos discursos, somente para realizar a
identificação do ser único que necessitava de sua voz poética para existir.
Muitas outras vezes, no entanto, na poesia drummondiana constata-se o desejo, a força
revivescente de um sujeito poético que parece acreditar ser possível modificar a realidade,
refazer o mundo; e que promete ajudar a destruí-lo, mesmo que tenha de recorrer à elabora-
ção estética do verso e da existência. Então, este sujeito deixa-se apreender mais facilmente
no ato de leitura.
Craveirinha traçou um caminho similar para sua poesia realista. No entanto, deve-se
destacar que um dado diferencia os dois autores, e que não pôde ser desprezado na investiga-
ção de seu projeto literário: a realidade que expressa foi vivenciada, intensamente, pelas con-
dições sociais que lhe foram impostas. Assim, Craveirinha não precisou outrar-se com a
mesma gravitação intelectual que delineou a poesia de Drummond. Foi o próprio objeto de
seus textos. Portanto, a subjetividade que engendra o verso nasce espontânea das formas lite-
rárias. Fala do “eu” quando fala do “outro”.
Se a estesia dos versos está presente na poesia de Drummond, reconstruindo a realida-
de para trazer à luz o homem comum, em Craveirinha a própria realidade se define por uma
estética que se impõe ao poema. A oralidade, os ritmos e as cores várias pertencem ao univer-
so que o escritor africano resgata. A repetição estilística, que em Drummond é objeto de estu-
do, em Craveirinha é percepção sensorial.
Todas essas vias de estruturação da realidade exigem do leitor que ele seja partícipe
dos elementos tangíveis ou apreensíveis pela capacidade intelectual. É necessário um conhe-
cimento da realidade que se tematiza, com suas referências históricas, sociais e políticas, e da
277
subjetividade que joga com essas referências, possibilitando novas interpretações do signo
fundado na realidade.
O recurso de que dispõe o leitor para o exercício de interpretação que se impõe à leitu-
ra é a linguagem utilizada pelo poeta. O signo que se agrega à realidade, que lhe parece ine-
rente, na verdade assim o é porque antes houve uma consciência sócio-ideológica que investiu
esse mesmo signo de realidade, quando, por efeito dessa consciência, estabeleceu-se uma o-
posição com outro signo apreendido do real. A palavra, portanto, assegura a análise que leva à
compreensão das ideologias ? e, especificamente no caso de Drummond e de Craveirinha,
segundo o estudo que propomos, à ideologia marxista ? que conferem ao poema o estatuto
de literatura realista e, em decorrência, o de poesia social.A consciência sócio-ideológica de
que falamos, entretanto, somente se vincula à realidade porque, antes, houve a intervenção de
uma consciência individual. E é essa consciência que permite, mais uma vez, que a subjetivi-
dade estruture a linguagem que produz o texto poético e elabore a representação da realidade.
Caminhos vários são, por conseguinte, traçados pelos dois poetas. Alterida-
de/subjetividade, não obstante fossem, por si só, conceitos deveras complexos, a genialidade
dos poetas estudados planificou atalhos que poderiam passar despercebidos em uma leitura
menos atenta. O “eu” e “outro” em configuração dialética; o “eu” e o “outro” que convergem
em “nós”; o objeto que se constrói no sujeito; o apagamento do sujeito para elaboração do
“outro” e, em movimento contrário, o alijamento do “outro” para a consagração do “eu”: vias
de percepção e análise que exigiram não apenas o amparo de teorias diversas como também
um entendimento do texto que se estendesse para além dos saberes formalizados.
Palavras entretecidas e conceitos explanados, o estudo da subjetividade e da alteridade
na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha revelou mais do que pro-
metiam as primeiras análises. Muitos brasis e muitos moçambiques foram surgindo como os
desenhos de uma trama que se constrói lentamente, seguindo o ritmo das mãos artífices: geo-
278
grafias, gentes, formas, culturas. Muitos carlos e muitos zés se apresentaram em versos que
usaram todos os recursos de linguagem para se tecer: meninos, mulheres, homens, operários,
guerreiros, guerrilheiros, memórias, corpos.
Partindo do conceito estabelecido de “poesia de intervenção” ou “poesia revolucioná-
ria”, foi possível identificar um Drummond consciente de seu tempo e de seu espaço social.
Atento aos fatos e aos homens, o poeta elaborou sua arte na realidade que perscrutava, mas
que não aceitava em sua plena exatidão. Então, faz-se o verso desterrado do sonho, desabitado
dos palácios do lirismo, desnudo dos véus utópicos. Por outro lado, se uma utopia é, de fato,
um sonho ainda não realizado, o verso insiste na denúncia, e por conseqüência, na esperança;
não desiste, não se aliena.
Quanto à Craveirinha, traduziu a palavra possível para desfazer o que nem conseguia
apreender como realidade, de tão insólito e violento era o mundo que lhe fora apresentado.
Difícil se tornava, assim, espelhar-se no verso empreendido. A realidade, por demais pesada,
obstruía intenções subjetivas, porque o poeta mesmo teve impossibilitados os projetos de ela-
boração do eu. Criado entre duas nacionalidades, entre duas realidades, duas mães, duas lín-
guas, Craveirinha precisaria de tempo para construir a própria identidade. Até porque, quase
todos os dias de sua existência foram dedicados a ajudar a construir a identidade de seu país.
Assim, à complexidade da poesia uniu-se o intrincado processo histórico vivenciado
por cada um dos autores. O “outro”, por diversas vezes, constituiu-se como aquele que deve-
ria ser aniquilado, homem ou ocorrência, político ou miséria, colonizador ou guerra colonial.
Nesses casos, o sujeito poético distanciou-se do “outro”, e, não raras vezes, fez valer o “eu”
com todo o vigor de sua enunciação. Assim, a identidade do sujeito poético reclama no verso
a vigência a que tem direito. Outrossim, há que se notar que, mesmo nesse movimento de cri-
ação ocorre alteridade, porque o “eu” que surge, muitas vezes autobiográfico, representa uma
voz coletiva.
279
Aprazimento maior, porque exercício de análise mais dificultoso, foi desvendar a am-
bígua relação entre o “eu” e o “eu” que se coloca, em diversos momentos, na posição de “ou-
tro”. O duplo, figura tão fértil em toda literatura, surge quase sempre para contestar o “eu”,
rever suas ideologias, criticar suas posições políticas, desmitificá-lo no que se pensava exce-
lente. O sujeito poético torna-se por vezes cruel e ameaçador, por vezes sereno e fraternal,
mas sempre instigador da consciência de um “eu” que adejava entre o sonho e a frustração do
sonho.
De que ideologias se nutriram os autores para consolidar suas vozes poéticas, talvez
seja o que de menos fundamental se nos apresentou no exercício de análise. Evidentemente,
sendo necessário partir de um lugar na História do pensamento, o marxismo, de imediato,
afigurou-se como mais apropriado aos falares poéticos. Isso, deixemos claro, porque na poesia
de Drummond e de Craveirinha estão os que foram relegados historicamente e que os poetas,
por consciência social e política, resgataram e elegeram como objetos de seus textos. Todavia,
nem de longe tal projeto se consolidou como transição entre o fazer literário e o fazer político-
revolucionário. Em nenhum instante, o verso cedeu o lugar da beleza estética ao discurso en-
gajado. Por isso, o “outro” que se fez no poema é belo em sua feiúra; magnífico em sua insig-
nificância; esplendoroso em sua obscuridade; sublime em sua vileza. O “outro” que se fez no
poema pôde expressar suas dores sem o medo de ser tolhido pelo gesto impaciente; pôde ex-
pressar sua indignação sem o medo da censura. O poeta nem bem se projetou como sujeito
poético e já decantou-se para elevar no texto a voz do “outro”. Libertou-se o “outro” por sua
voz? Talvez sim, talvez não. Adquiriu consciência o “outro” por sua palavra? Possivelmente,
não. O que ficou do “outro”? O enriquecimento do leitor, certamente; e a beleza sem par de se
descobrir, na imagem que se nega, cotidianamente, aos olhos, existências de insuspeitado va-
lor.
O poeta revelou-se pelo “outro” que pretendeu revelar. Porque, intrinsecamente ligado
280
a esse “outro” que se intentava no poema, estava um sujeito que, ao não se pensar, sublimi-
narmente registrava em cada signo escolhido para descrever ou evocar seu objeto a sua mais
verdadeira emoção. Coube, então, à análise, edificar esse sujeito que se pensava em isenção:
em Drummond, o intelectual comovido; em Craveirinha, o revolucionário afetuoso. Em am-
bos, um sujeito disposto a se ausentar da própria existência para sobrelevar o “outro” que se
ausentara da realidade.
A linguagem acedeu aos ditames da ideologia e fez a trama de signos que notificaram
um mundo perverso, no qual as diferenças sociais determinam todas as angústias e, por dor
extremada, a morte. No entanto, os poetas Drummond e Craveirinha condicionaram à palavra
ideológica o engenho com que transformaram o texto em arte de som, de imagem e de vonta-
des insurretas.
Ficarão do “outro”: a dor e a dignidade; o medo e a perseverança; a torpeza e a nobre-
za; a infâmia e a sublimidade. Ficará do “outro” a criação poética que pensou a existência
mais justa, mais verdadeiramente humana.
Porém, longe de pôr termo à aventura analítica, eis que surgem, das figuras tenazes de
Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha, insuspeitados sujeitos. Em seu percurso
poético, os dois autores houveram por bem olvidar do signo o discurso contundente e arriscar-
se nos sinuosos caminhos do discurso erótico-amoroso.Nesse momento, o investigar se acau-
tela, o leitor estranha e se encanta. Somente a agudez do pensamento científico evitaria que o
estudo se desviasse pelos caminhos do deleite.
Conhecer a si mesmo, cuidar de si mesmo. Tal proposta de retorno à subjetividade re-
vivesce o labor científico ao apresentar possibilidades outras de reconhecimento da literatura
de Drummond e de Craveirinha. Curiosamente, os dois poetas, entre tantos percursos literá-
rios que poderiam ter servido a um sujeito que necessita colocar-se em evidência, escolheram
o sentimento amoroso e seus códigos de construção ideológica e representação tangível. Vis-
281
cerais, alma e corpo engendram o amor que se impõe e reinventa o sujeito.
Uma voz melancólica, manifesta na poesia de Drummond e de Craveirinha, se faz no-
tar de imediato. Falar de amor exige tom baixo, nuances delicadas, matizes suaves nas tramas
sígnicas. O amor evidencia-se sem disfarces: traz dores e delícias. O leitor fica perplexo; o
analista, cauteloso. Todavia, o texto desvela o sentimento, sem qualquer possibilidade de en-
gano.
A experiência poética alia-se à experiência humana e os enérgicos poetas entregam-se
à comovente criação de um sujeito que vive com intensidade todos os estados amorosos, gra-
dativamente, até aportar na plena idade, na maturidade. É quando um sujeito conhecedor da
vida avalia seus erros, mas não abre mão das esperanças. Expõe uma perturbadora subjetivi-
dade, aniquiladora das formas e conceitos identificáveis pelo estudo teórico.
Dissipam-se dúvidas renitentes em relação à subjetividade, porque o corpo surge em
plena nudez e aspiração à condição de sujeito do poema. O texto erótico, assim, revela o dese-
jo ocultado e as delícias até então não experimentadas no fazer poético. O corpo em Drum-
mond e em Craveirinha nomeia-se, impõe-se, decifra-se. O corpo é sujeito do poema e exige
toda a encenação de seus atos e manifestação de suas vontades. Erotismo, sexualidade, anima-
lidade latente; interdição e transgressão; conhecimento de si e do outro amado; disposições
mentais e saberes intelectuais. As teorias todas se completam para dar conta das tramas do
corpo, das quais emerge um sujeito erótico.
O que ficará do sujeito que se intentou nos poemas de Drummond e de Craveirinha?
Libertaram-se os poetas pela revelação amorosa? Refizeram-se os homens no exercício da
subjetividade? A atitude refratária propõe ao leitor a consagração de um outro Carlos Drum-
mond de Andrade? de um outro José Craveirinha? Certamente, não. Nossos poetas continua-
rão sendo aquelas vozes de luta e consciência social a que já nos acostumamos. Nós os tere-
mos sempre nas prateleiras das estantes e da memória e nos estudos acadêmicos como os poe-
282
tas maiores de seus respectivos países, vozes emblemáticas que souberam, como ninguém,
ceder sua existência ao “outro” e transformar sua arte em ato de resistência. No entanto, resta-
rá sempre a vontade de saber um pouco mais sobre o interstício na vida de cada um deles,
proposto no desenho do corpo e na liberdade da mente. Um sujeito que se desvela ao leitor
sem os escudos ideológicos a que estiveram submetidos ao longo de suas vidas literárias.
Em Drummond e em Craveirinha encontram-se caminhos de alteridade e subjetivida-
de; delineiam-se espaços da realidade e do desejo; reconstroem-se saberes que não devem
permanecer cristalizados no comum do pensamento crítico.
De Carlos Drummond de Andrade: O que eu escrevi não conta. O que desejei é tu-
do. De José Craveirinha: “A minha culpa é ter no meu íntimo a fraternidade dos homens in-
vocando a religião do amor e da igualdade”.
De Drummond e de Craveirinha a lição maior: ser “outro”, quando não é possível des-
ligar-se do mundo; ser “eu”, quando é necessário religar-se à própria existência. Ser um poeta
que se sabe o “outro”, e ser sujeito que clama, de sua essencialidade, o direito de amar e de
desejar.
283
BIBLIOGRAFIA
Corpus
1. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Agui-
lar S.A., 2003.
2. CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980.
3. ______. Maria. Lisboa: Caminho, 1998.
4. ______. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 1999.
5. ______. Poemas da prisão. Lisboa: Texto Editora, 2004.
6. ______. Poemas eróticos. Maputo: Moçambique Editora, Lisboa: Texto Editores, 2004.
Obras Gerais
1. ABDALA JUNIOR, Benjamin. “Antônio Jacinto, José Craveirinha, Solano Trindade o
sonho (diurno) de uma poética popular”. in: I encontro de professores de literaturas afri-
canas de língua portuguesa repensando a africanidade. Laura Cavalcante Padilha (org.).
Niterói: Imprensa Universitária da UFF, 1995. p. 77-86.
2. ______. De vôos e ilhas literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
3. AGUESSY, Honorat; DIAGEE, Pathe. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70,
1977.
4. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
5. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: UNESP, 1998.
6. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
7. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1975.
8. ______. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
9. ______. O grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 1997.
10. ______. Inéditos. vol. 4: política. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
11. BATTAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
12. BERGSON, Henri. “A alma e o corpo”. in: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1974.
13. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
14. BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1991.
15. ______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
16. BRUNEL, P, PICHOIS, C, ROUSSEAU, A. M. Que é literatura comparada? São Paulo:
Perspectiva, 1995.
284
17. CAMILO, Vagner. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê,
2001.
18. CARVALHO, Ruy Duarte de. “Tradições orais, experiência poética e dados de existên-
cia”. in: I encontro de professores de literaturas africanas de língua portuguesa Repen-
sando a africanidade. Laura Cavalcante Padilha (org.). Niterói: Imprensa Universitária da
UFF, 1995. p. 69-76.
19. CHABAL, Patrick. Vozes Moçambicanas literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega,
1994.
20. CHALIAND, Gerard. A luta pela África estratégias das potências. São Paulo: Brasilien-
se, 1982.
21. CHAVES, Rita. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Scipione, 1993.
22. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
23. CORREIA, Marlene de Castro. Drummond: a magia lúcida. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
24. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria São José,
1959.
25. DIAS, Ângela Maria. Cruéis paisagens: literatura brasileira e cultura contemporânea. Ni-
terói: EDUFF, 2007.
26. ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 2002.
27. EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
28. FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1980.
29. ______. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
30. FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano Editora, 1989.
31. FIADEIRO, Paula Cristina Neves. “Percursos labirínticos de Eros no Barroco: erotismo
em alguns versos e na moralística”. in: Percursos de Eros: representações do erotismo.
António Manuel Ferreira (coord.). Aveiro: Universidade, 2003. p. 57-78.
32. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edi-
ções Graal, 1979.
33. ______. História da sexualidade II o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984.
34. ______. História da sexualidade III o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985.
35. ______. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
36. ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
37. ______. A palavra e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
38. ______. A hermenêutica do sujeito. São Paulo:Martins Fontes, 2004.
39. ______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
40. GUINSBURG, J. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1993.
41. HAMBURGER, Käte. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1986.
42. HANCIAU, Núbia. “Les fous de Bassan, de Anne Hébert: uma leitura da alteridade e do
285
desejo. in: Figurações da alteridade. Eurídice Figueiredo e Maria Bernadette Velloso Porto
(org.). Niterói: EDUFF, 2007.
43. HOUAISS, Antônio. Drummond mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1976.
44.
45. KLEIN, Melanie, RIVIERI, Joan. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1970.
46. KRISTEVA, Julia. Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
47. LAPLANCHE, J. PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1988.
48. LARANJEIRA, Pires. De letra em riste. Porto: Edições Afrontamento, 1992.
49. ______. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta,
1995.
50. LAUS, Lausimar. O mistério do homem na obra de Drummond. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
51. LEITE, Ana Mafalda. A poética de José Craveirinha. Lisboa: Veja, 1991.
52. ______. Oralidades e escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
53. LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: obras, autores e problemas da literatura brasilei-
ra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1963.
54. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchausen: marxismo e
positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Ed. Cortez, 2003.
55. LUGARINHO, Mário César. “Dizer EU na África: poesia e subjetividade”. In: SCRIPTA
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Estudos Luso-Afro-
Brasileiro da PUC-Minas, v.7, n.12, 2003:314-319.
56. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
57. MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portu-
guesas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
58. MARIA, Luzia de. Drummond: um olhar amoroso. Rio de Janeiro: Léo Christiano Edito-
rial, 1998.
59. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. São Paulo: Edições Mandacaru,
1989.
60. MORAES NETO, Geneton. O dossiê Drummond. São Paulo: Globo, 2007.
61. MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
62. NETO, Agostinho. “Introdução a um colóquio sobre poesia angolana”. in: Negritude afri-
cana de língua portuguesa. Pires Laranjeira (org.). Braga: Angelus Novos, 2000.
63. NIETZSCHE. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
64. PADILHA, Laura Cavalcante. “A ficção angolana e a força de sua ancestralidade”. in:
Convergência lusíada, no 9. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1992.
65. ______. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX.
Niterói: EDUFF, 2007.
286
66. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
67. ______. A chama dupla: amor e erotismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.
68. ______. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2005.
69. RICOUER, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.
70. ______. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.
71. ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto II. São Paulo: Perspectiva, 2000.
72. ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
73. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche do tempo. Rio de Janeiro: Re-
cord, 1972.
74. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1999.
75. SECCO, Carmen Lucia Tindó. A magia das letras africanas. Rio de Janeiro: ABE Graph
Editora/Barroso Produções Editoriais, 2003.
76. SENA, Jorge de. Amor e outros verbetes. Lisboa: Edições 70, 1992.
77. SILVEIRA, Jorge Fernandes da. “José Craveirinha ‘impoética poesia”. in: I Encontro de
professores de literaturas africanas de língua portuguesa repensando a africanidade. Lau-
ra Cavalcante Padilha (org.). Niterói: Imprensa Universitária da UFF, 1995. p. 185-194.
78. TELES, Gilberto Mendonça. Drummond: a estilística da repetição. São Paulo: Experimen-
to, 1970.
79. TRIGO, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega, s/d.
80. ZOLA, Èmile. O romance experimental e o materialismo no teatro. São Paulo: Perspecti-
va, 1982.
Site pesquisado
1. www.macua.org/video/jose_craveirinha_2001a.wmv. Acesso em 25/mai/2008, às
13:20.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo