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para a razão está na possibilidade de mudar de perspectiva ao admitir não apenas sua
limitação, mas também que não é irracional aquilo que a ultrapassa. Em outras palavras, “uma
vez que o entendimento é transformado, batizado pelo absurdo, ele se torna novamente
disponível e útil de uma forma que antes era impossível
250
. O que ultrapassa a estrutura do
dever e da moral do geral é, também, razão, porém em outra categoria
251
. É outra forma de
racionalidade. É a lógica do absurdo que pode ser organizada pela fé.
É por isso que Silentio/Kierkegaard não pode ser considerado um irracionalista, pois,
de fato, ele não se opõe à razão. Contudo, ele indica a não autonomia da razão, ao reconhecer
que a mesma possui suas próprias limitações.
O cavaleiro da fé, como testemunha, compreende que a razão não comporta o absurdo.
Ele tem consciência desta impossibilidade e, por esse motivo, crê no absurdo. A fé não está
em oposição à razão, porém, pertence a uma categoria diferente, que faz parte do paradoxo da
vida. Esses são os termos de Silentio/Kierkegaard a respeito:
Eu creio, sem reserva, que obterei o que amo em virtude do absurdo, em
virtude da minha fé de que tudo é possível a Deus. O absurdo não pertence
às distinções compreendidas no quadro próprio da razão. Não se pode
identificar com o inverossímil, o inesperado, o imprevisto. No momento em
que o cavaleiro se resigna, convence-se segundo o humano alcance, da
impossibilidade. Tal é o resultado do exame racional que tem a energia de
fazer. Porém, pelo contrário, do ponto de vista do infinito, subsiste a
possibilidade no seio da resignação; mas esta posse é, também, uma
renúncia, sem ser entretanto por isso um absurdo para a razão, visto que esta
conserva o direito de sustentar que, no mundo finito onde ela é soberana, a
coisa é e continua a ser uma impossibilidade. O cavaleiro da fé tem também
lúcida consciência desta impossibilidade; só o que o pode salvar é o absurdo,
o que concebe pela fé.
252
250
GOUVÊA, Ricardo Q. A palavra e o silêncio, São Paulo: Custom, 2002. p. 113.
251
GOUVÊA, Ricardo Q. A palavra e o silêncio, São Paulo: Custom, 2002. p. 160. “ Temor e Tremor pode ser
visto, portanto, como uma introdução à filosofia do absurdo, e do absurdo enquanto categoria filosófica que se
define pelo estabelecimento dos limites da razão e pelo retorno, por meio de uma segunda imediatez, às formas
de discurso supraracionais típicas da experiência e da comunicação moral e religiosa.
252
KIERKEGAARD, S.A. Temor e Tremor, São Paulo: Abril Cultural, 1979. p.136.