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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA E DE PESQUISA
MESTRADO EM FILOSOFIA
GILSON MARCIANO DE OLIVEIRA
A AGRESSÃO HUMANA
Uma investigação filosófica mediante o pensamento de Steven Pinker
CURITIBA
2009
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GILSON MARCIANO DE OLIVEIRA
A AGRESSÃO HUMANA
Uma investigação filosófica mediante o pensamento de Steven Pinker
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu do Mestrado em
Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas Pró-Reitoria Acadêmica e de Pesquisa
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
como requisito à obtenção do Título de Mestre em
Filosofia.
ORIENTADOR: Profº Dr. CLEVERSON LEITE
BASTOS.
CURITIBA
2009
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GILSON MARCIANO DE OLIVEIRA
A AGRESSÃO HUMANA
Uma investigação filosófica mediante o pensamento de Steven Pinker
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu do Mestrado em
Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas Pró-Reitoria Acadêmica e de Pesquisa
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
como requisito à obtenção do Título de Mestre em
Filosofia.
COMISSÃO EXAMINADORA DE DEFESA
___________________________________
Prof. Dr. Cleverson Leite Bastos
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
____________________________________
Prof. Dr. João de Fernandes Teixeira
Universidade Federal de São Carlos – São Paulo
____________________________________
Prof. Dr. Kleber Bez Birolo Candiotto
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, 12 de março de 2009.
4
Dedico esse trabalho a minha esposa Jane e a meu filho Renan, que souberam
compreender as longas horas de ausência e as divagações filosóficas a que
eles foram submetidos no decorrer da pesquisa.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Cleverson Leite Bastos, um homem muito à frente de seu tempo,
que teve paciência de me auxiliar em todas etapas desse trabalho e também pelos
estímulos dados nos momentos difíceis.
Aos professores Ericson Sávio Falabretti pelas sugestões e críticas pertinentes ao
trabalho; Kleber Bez Birolo Candiotto pelos incentivos a pesquisa científica desde os
tempos da graduação; Edimilson Antônio Paschoal pela sua busca incessante em
melhorar a conceituação do Curso de Mestrado em Filosofia.
A secretaria do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu do Mestrado em Filosofia,
Antonia Sideneia Poletini, pela presteza e educação que sempre pautou seu
comportamento no atendimento aos alunos do curso.
A instituição de ensino Pontifícia Universidade Católica do Paraná, por ter fornecido a
bolsa de estudo e pela total liberdade de pesquisa, o que nos faz acreditar que ela é
uma instituição comprometida com a produção do conhecimento.
6
Ciência e moralidade são esferas de raciocínio separadas. Somente
reconhecendo-as como separadas poderemos ter ambas. Se a discriminação é
errada apenas quando as médias dos grupos são iguais, se guerra, estupro e
ganância são errados apenas quando as pessoas nunca se sentem inclinadas a
praticá-los, se as pessoas são responsáveis por suas ações apenas quando as
ações são misteriosas, então ou os cientistas precisam dispor-se a camuflar seus
dados ou todos nós devemos nos dispor a abrir mão de nossos valores.
STEVEN PINKER
7
SUMÁRIO
RESUMO......................................................................................................................................................ix
ABSTRACT...................................................................................................................................................x
1
. INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................
01
2
.
TRÊS MITOS QUE FALSEIAM O COMPORTAMENTO HUMANO...........................09
2.1 PRIMEIRO MITO: O FANTASMA NA MÁQUINA......................................................10
2.2 A DISSIPAÇÃO DO FANTASMA..............................................................................17
2.3 SEGUNDO MITO: A TÁBULA RASA........................................................................20
2.4 A FALÁCIA DABULA RASA................................................................................26
2.5 TERCEIRO MITO: O BOM SELVAGEM...................................................................31
2.6 A UTOPIA DO BOM SELVAGEM.............................................................................36
3. AGRESSIVIDADE HUMANA E BIOLOGIA DO CÉREBRO......................................42
3.1 UMA MORAL ORIUNDA DE FATORES BIOLÓGICOS............................................44
3.2 A CAIXA PRETA DO HUMANO................................................................................47
3.3 FISIOLOGIA CEREBRAL DA AGRESSÃO E SEUS FREIOS NATURAIS...............51
3.4 A INSTABILIDADE COMPORTAMENTAL E O CÓRTEX PRÉ-FRONTAL..............53
3.5 A SOCIOPATIA ADQUIRIDA....................................................................................56
3.6 O FATOR HORMONAL NO COMPORTAMENTO HUMANO..................................58
3.7 DISPOSITIVOS MENTAIS E A DERIVA COMPORTAMENTAL..............................61
4 A NEUROFISIOLOGIA DO COMPORTAMENTO HUMANO......................................65
4.1 AVESSOS A REGRAMENTO SOCIAL.....................................................................66
4.2 A INSTABILIDADE COMPORTAMENTAL NA ADOLESCÊNCIA.............................70
4.3 OS MITOS QUE SUSTENTAM A EDUCAÇÃO........................................................73
4.4 HOMENS PERVERSOS JÁ FORAM CRIANÇAS.....................................................75
4.5 SOB O JULGO DA CARTA DE SEVILHA.................................................................82
8
5 O FUNDO GENÉTICO DA AGRESSÃO ENTRE GÊNEROS.....................................85
5.1 O ESTUPRO NA ÓTICA SOCIAL.............................................................................86
5.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL NA ÓTICA DA EVOLUCIONISTA.......................................88
5.3 A POSSIBILIDADE DE A VIOLÊNCIA SEXUAL SOFRER INFLUÊNCIA
GENÉTICA......................................................................................................................91
5.4 A ORIGEM DE NOSSOS COMPORTAMENTOS.....................................................94
5.5 O COMPARTILHAMENTO GENÉTICO DA AGRESSÃO.........................................97
5.6 A AGRESÃO SEXUAL PRATICADA POR PRIMATAS NÃO HUMANOS..............100
5.7 O COMPORTAMENTO PACÍFICO DOS BONOBOS.............................................103
CONCLUSÃO...............................................................................................................107
REFERÊNCIAS.............................................................................................................112
9
RESUMO
Amparados nas teses do psicólogo evolucionista Steven Pinker, buscaremos uma
melhor compreensão do comportamento humano, fazendo uma revisão no modelo
clássico de ciências sociais. Para ele o arquétipo delineador do comportamento
humano se encontra ultrapassado e não consegue abarcar a complexidade social
deste início de século XXI. No seu entendimento, o regramento social vigente é oriundo
de uma moralidade alicerçada no período moderno, e que na sua ótica se fundamenta
em cima de três mitos, sendo eles: o fantasma na máquina, que têm suas origens nos
pensamentos do filósofo francês René Descartes; a tábula rasa, que pressupõe sermos
uma folha em branco quando nascemos, tese fundamentada pelo filósofo inglês John
Locke; o bom selvagem, entendimento que diz que o homem em estado de natureza é
bom, e que o convívio social o torna pervertido, proposta levantada pelo filósofo
genebrino Jean-Jacques Rousseau. Em contra posição a tais fundamentos, os
entendimentos de Steven Pinker estimulam uma reavaliação no conceito de natureza
humana, e que desta reflexão possam surgir novos instrumentos (padrões de
moralidade e aparatos jurídicos) que possam amenizar comportamentos nocivos –
assassinatos, estupros, guerras dos quais a espécie humana ainda não conseguiu se
desvencilhar totalmente no decorrer de sua caminhada evolutiva. As idéias de Steven
Pinker, como se pode notar, são provocativas ao mesmo tempo em que põe abaixo
alguns pilares que sustentam o edifício da moralidade ocidental.
Palavras chaves: agressão, biologia, cérebro, comportamento, cognição, genética.
10
ABSTRACT
Supported in the teses of evolucionista psychologist Steven Pinker, we go to search one
better understanding of the human behavior, making a revision in the classic model of
social sciences. For it archtype limiting of the human behavior if finds exceeded and
already it does not obtain to accumulate of stocks the social complexity of this beginning
of century XXI. In its agreement, the effective social detach is deriving of a morality
rooted in the modern period, and that on its optics if it bases on of three myths, being
they: the ghost in the machine, that has its origins in the thoughts of the french
philosopher René Discardings; it tabulates it flat, that it estimates to be a blank leaf
when we are born, thesis based for the english philosopher John Locke; the good
savage, agreement that says the man in nature state is good, and that conviviality
becomes the social it perverted, proposal raised by the genevan philosopher Jean-
Jacques Rousseau. In against position to such beddings, the agreements of Steven
Pinker stimulate a reevaluation in the nature concept human being, and that of this
reflection new instruments can appear (legal standards of morality and apparatuses)
that they can brighten up harmful behaviors - murders, rapes, wars - of which the
species human being not yet obtained to disentangle it self totality in elapsing of loosen
walked its. The ideas of Steven Pinker, as it if can notice, are provocative at the same
time where it puts below some pillars that support the building of the morality occidental
person.
Key words: aggression, biology, brain, behavior, cognition and genetics.
11
1 INTRODUÇÃO
Copérnico reduzira a terra a grão de poeira entre as nuvens; Darwin reduziu o
homem a um animal em luta para transiente dominação do globo. Deixou o
homem de ser filho de Deus; passou a filho da luta, com suas guerras
crudelíssimas a espantarem os mais ferozes animais. A espécie humana não
era mais a criação favorita duma deidade benevolente, e sim, uma espécie
simiesca, que os azares da mutação e da seleção ergueram a precária
dignidade, e que a seu turno está destinada a ser superada e desaparecer. [...]
Imagine-se a impressão destas idéias sobre a suave filosofia dos vossos anos
verdes, e o esforço para adaptar-nos a sangrenta pintura do mundo
darwiniano.
1
Passaram-se 150 anos da divulgação do livro de Charles Darwin (1809-1882)
Origem das espécies publicado em 1859. Uma obra que levou ao conhecimento do
mundo a tese de que como todas as espécies evoluíram de forma lenta por meio de um
processo de seleção natural, cujo objetivo é levar as características dos mais aptos
adiante. O livro A Origens das espécies ficou no prelo por 20 anos, pois Darwin temia
que o ambiente conservador da Inglaterra vitoriana pudesse rejeitar suas idéias. As
proposições de Darwin chocaram os setores mais conservadores, e aceitar suas teses
era pôr fim à existência de Deus. Mesmo sendo o ideário mais plausível no que tange a
origem do homem, suas teses ainda encontram grandes dificuldades de aceitação nos
dias atuais, e mesmo hoje encontramos aqueles que repelem com veemência a teoria
evolucionista. Ao mesmo tempo alguns segmentos negam os entendimentos de Darwin,
paradoxalmente não conseguem explicar muito dos nossos comportamentos, dentre
eles a agressão, que sempre caminhou ao lado do homem. Até agora o que se fez foi
atribuir os fatores geradores de agressão ao ambiente social.
O intuito de nossa investigação é desmistificar o atual modelo clássico de ciências
sociais que, no entender de Steven Pinker, encontra-se fundamentado em três mitos
que ele denomina de Santíssima Trindade: o primeiro mito estaria calcado no fantasma
da máquina, oriundo das teses de René Descartes (1556-1650), que pressupõem existir
em nossas mentes um fantasma capaz de promover nosso livre-arbítrio; o segundo mito
deriva da suposição de que nossa mente é uma tábula rasa ao nascermos, idéia
formatada pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704); o terceiro mito é uma suposição
1
DURANT, W. Os grandes pensadores. P. 26 e 27.
12
de que o convívio social degenera o homem, um ideário fundamentado no bom
selvagem de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Não podemos negar que parcelas significativas de nossos comportamentos
derivam do convívio social. Entretanto, os avanços no campo das ciências cognitivas,
biologia molecular e genética comportamental, suscitam uma reavaliação das
premissas que norteiam os mitos acima mencionados. O alvorecer do século XXI
sugere a busca de novos conceitos no entendimento daquilo que convencionamos
como natureza humana. O mundo globalizado é uma teia social extremamente
complexa e necessita de novas abordagens para que possamos discutir assuntos como
clonagem humana, eutanásia, aborto e demais pesquisas envolvendo o campo da
biogenética.
A nossa pesquisa estará aportada nas teses de Steven Pinker (1954-), um
psicólogo da linha evolucionista, que atualmente é professor do Centro de Neurociência
Cognitiva do MIT Universidade de Harvard (USA). Pinker é uma das maiores
autoridades no que se refere às ciências cognitivas, tendo várias obras publicadas
em língua portuguesa: Como a mente funciona, Tábula rasa, O instinto da linguagem e
Do que é feito o pensamento. Em seus livros e artigos Pinker aborda vários assuntos
religião, ciências, filosofia, dentre outros mas um tema está sempre presente: o
comportamento agressivo da espécie humana. No seu entender as humanidades
evitam discutir este assunto, e quando abordam o problema, o fazem negando a
agressão como derivada de fatores biológicos e genéticos.
Pinker comenta que a violência sempre se fez presente na vida dos humanos,
durante toda sua caminhada evolutiva até os dias de hoje. Ele cita as recentes
descobertas de sítios arqueológicos e antropológicos que demonstram que o homem
pré-estatal assassinava seus semelhantes em escalas muitas vezes superiores as de
hoje.
Em um sítio de 850 anos no Sudoeste dos Estados Unidos, arqueólogos
encontraram ossos humanos cortados como se cortam ossos de animais
usados como alimento. Também encontraram vestígios de mioglobina humana
(uma proteína existente nos músculos) em cacos de panelas e condenação
certa em um pedaço de excremento humano fossilizado. Membros do Homo
antecessor, parentes do ancestral comum do Homem de Neanderthal e do
13
humano moderno, também se trucidavam, indicando que a violência e o
canibalismo remontam a pelo menos 800 mil anos.
2
Para consolidar estes entendimentos que o comportamento humano possui
aspectos de origem biológica e genética, buscaremos argumentação nas obras de
vários autores neodarwinistas
3
, os quais entendem que o cérebro humano foi
adquirindo dispositivos biológicos e genéticos ao longo de sua evolução e que em
determinadas situações de estresse estes dispositivos podem ser acionados. Mas estes
mesmo pesquisadores são unânimes em afirmar que os dispositivos de violência
vagarosamente foram atenuados pelos controles sociais, que como o biológico,
também se desenvolveu em uma escala evolutiva. Entretanto, a evolução social
acontece de forma muito mais rápida que a biológica. Enquanto na biológica um avanço
genético evolui ao longo de centenas ou mihares de gerações, o mesmo não podemos
dizer da evolução sociocultural. Basta olharmos para o passado recente da Inglaterra
conservadora de Charles Darwin culo XIX onde a mulher tinha um papel
específico de procriar e cuidar dos afazeres domésticos, e, conferirmos a mulher de
hoje, chefiando grandes empresas, nações, e a cada dia crescem os lares onde elas
são os principais provedores de sustento familiar.
Como havíamos dito anteriormente, os livros e artigos de Pinker abordam problemas
estimulados por uma visão neodarwinista, questionando de forma veemente os
modelos delineadores da natureza humana atual, que na sua percepção derivam de
idéias originadas há mais de duzentos anos. Do ponto de vista de Pinker, estes
entendimentos oriundos do período moderno, enfraquecem as normas sociais, que para
ele são fundamentais para vivermos em paz. São conceitos provocativos que
encontram antipatia nos setores conservadores da esquerda e direita nos mais variados
segmentos - ciência, religião, cultura, meio acadêmico, política entre outros. Questionar
o modelo de compreensão de natureza humana provoca uma desestabilização dos
mitos e dogmas que dão sustentação ao edifício social-cultural do Ocidente. É claro que
diante de um campo tão minado é de se ter algumas precauções, uma vez que à teoria
2
PINKER, S. Tábula rasa. P. 417.
3
Edward Osborne Wilson (Universidade de Harvard - USA), Richard Dawkins (Universidade de Oxford -
Inglaterra), António Damásio (Universidade de Iowa - USA), Robert Wright (redator chefe do jornal The
New Republic - Inglaterra), Richard Wrangham (Universidade de Harvard - USA) dentre outros nomes.
14
da evolução apresenta algumas fendas que a deixam vulnerável diante de certos
questionamentos, uma vez que a história evolutiva é contada através de achados
fósseis, sendo que muitos elos (fósseis de indivíduos) que ligam uma geração à outra
foram perdidos ao longo de milhões de anos. É um claro aviso de que não podemos
estabelecer as teses evolucionistas como leis profetizadas.
Steven Pinker entende que as premissas que balizam o modelo atual de natureza
humana são oriundas da modernidade, e traz no seu bojo um ranço de religiosidade
mística. Apesar do período moderno ter como marca o antropocentrismo, o homem
ocidental moderno ainda é concebido como um produto da criação divina, diferindo dos
demais animais que habitam a terra. Mesmo com todos os avanços significativos das
ciências, parcelas significativas da humanidade ainda fundamentam seus
conhecimentos em crendices populares e religiosas, quando o assunto é a natureza
humana. Mesmo em países altamente desenvolvidos, as superstições ainda persistem.
A esse respeito, Pinker comenta pesquisas realizadas nos Estados Unidos da América:
A concepção judaico-crisainda é a mais popular teoria da natureza humana
nos Estados Unidos. Segundo levantamento recentes, 76% dos americanos
acreditam no relato bíblico da criação, 79% acreditam que os milagres descritos
na Bíblia realmente aconteceram, 76% acreditam em anjos, no diabo e em
outras almas imateriais, 67% acreditam que existiram sob alguma forma depois
de morrer e apenas 15% acreditam que a teoria da evolução de Darwin é a
melhor explicação para a origem da vida humana na terra. Políticos de direita
acolhem explicitamente a teoria religiosa, e nenhum político influente ousaria
contradizê-la em público.
4
Para ele, qualquer pessoa que tenha entendimento mediano das descobertas feitas
no campo arqueologia, da antropologia, da cosmologia e das ciências biológicas te
grandes dificuldades para acreditar que o mundo foi criado por Deus em seis dias e na
gênesis bíblica da criação do homem ou em qualquer outra concepção de vida neste
planeta.
Em consonância com os estudos cognitivos desenvolvidos por Steven Pinker, a
nossa pesquisa caminha em sentido contrário do pretendido pelos defensores do
criacionísmo, tendo como objetivo principal investigar a agressão humana fazendo uso
das teses evolucionistas de Steven Pinker. Com o instrumental das ciências cognitivas,
4
PINKER, S. Tábula rasa. P. 20 e 21.
15
vamos buscar elementos biológicos e genéticos que possam alargar a nossa
compreensão do conceito de natureza humana. Como Pinker alega, ainda somos
conduzidos por premissas que foram concebidasmais de duzentos anos, que já não
conseguem fazer frente aos problemas do século XXI. Vivemos em ambientes de
extrema complexidade que nem de longe espelham os problemas que as sociedades
de dois séculos atrás tinham de enfrentar. Deste modo, se faz necessário um novo
entendimento naquilo que norteia a conduta humana: moralidade e leis positivadas,
cujo intento final é levar luzes numa possibilidade de se perceber o comportamento
humano a partir de um novo significado que não seja apenas pelo viés sócio-cultural.
Nele também seriam levados em conta os dispositivos biológicos e genéticos que os
humanos adquiriram paulatinamente na sua escala evolutiva. No encaminhamento das
nossas pesquisas teremos sempre em mente a busca incessante de melhor
compreender as derivas do comportamento agressivo da espécie humana. Nesse
sentido, o primeiro passo é admitir o homem como um composto de átomos, moléculas,
células, tecidos, enfim, um organismo de grande complexidade regido por dezenas de
bilhões de neurônios ocultos em sua caixa craniana.
Estudiosos da cosmologia, como o professor de matemática e astrofísica Stephen
Willian Hawking, da Universidade de Cambridge (Inglaterra), estimam que o universo
passou a existir após uma grande explosão teoria do big bang que teria acontecido
aproximadamente 15 bilhões em um passado longínquo
5
. Na mesma trilha, a Terra teria
surgido por volta dos cinco bilhões de anos atrás. De acordo com os cientistas a vida na
terra passou há existir com o seu resfriamento, o que deve ter acontecido há 3,5 bilhões
de anos. Até então, a Terra era totalmente inóspita, muito diferente de como está hoje.
Não havia oxigênio em nossa atmosfera, predominando o carbono, amônia, hidrogênio
em um ambiente aquático. Nesta sopa primordial é que os primeiros elementos - as
moléculas - se agruparam e formaram estruturas estáveis. A estabilidade foi um evento
fundamental para constituição da vida, pois somente através de moléculas estáveis é
que foi possível a constituição dos primeiros seres. Foi neste caldo primitivo que as
primeiras formas vivas tomaram contorno ganhando estrutura, evoluindo de forma
seletiva, ou seja, somente as formas mais estáveis garantiam a sua sobrevivência e
5
HAWKING, S, W. O universo numa casca de noz. P. 22.
16
passavam seus dados (genes)
6
para gerações futuras. Richard Dawkins (1941-), autor
do livro O gene egoísta, argumenta que o grande fator da evolução em nosso planeta é
o gene, que para ele possui a seguinte finalidade: “Um gene é definido como qualquer
porção de material cromossômico que dura potencialmente por um número suficiente
de gerações para servir como unidade de seleção natural”.
7
Segundo ele, os genes são
os grandes manipuladores da vida em nosso planeta. Richard Dawkins radicaliza ao
dizer que os nossos corpos são apenas meros transportadores de genes, somos
usados para levar adiante as características de seus elementos através duma evolução
que seleciona aqueles que devem sobreviver.
As teses evolucionistas sugerem que nos nossos ancestrais desceram das árvores
das florestas equatoriais da África e aos poucos foram ganhando uma postura ereta.
Sua crista sagital foi suavizada, seu maxilar encolheu, seus membros superiores foram
ganhando maior especialidade. Assim, vagarosamente a linhagem humana foi se
afastando das outras espécies orangotango, gorilas, chimpanzés e bonobos
(chimpanzés pigmeus). Por último, seu rebro aumentou em virtude das novas
demandas cognitivas em conformidade com o aumento da complexidade social. Os
primeiros primatas humanos teriam surgido aproximadamente quatro milhões de
anos, com bases no achado do crânio de Lucy
8
Australopithecus Afarensis
encontrado no triângulo etíope de Afar. Nesse período a caixa craniana de nosso
ascendente continha em torno de 450 a 550 cm³ de massa encefálica e não possuía
uma linguagem articulada. Uma linguagem ainda que rudimentar vai surgir com o
homo habilis. Com um repertório de palavras muito limitado, seu aparelho fonador
emitia sons um pouco mais sofisticado que a linhagem símia, cujo crânio comportava
600 a 800 cm³ de massa encefálica.
6
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. P. 180. Um gene é um filamento de letras de DNA que codificam
a receita de uma proteína. Em muitos casos, contudo, o gene é composto de vários trechos pequenos de
“sentido”, interrompidos por longos trechos sem nenhum sentido. Os pedaços com sentido são chamados
de exons, e os sem sentido, introns. Depois que o gene é transcrito em uma cópia funcional feita de RNA,
e antes que seja traduzido em uma proteína, os introns são removidos em um processo chamado splicing
(montagem). Isto foi descoberto em 1997 por Richard Roberts e Philip Sharp, e lhes garantiu um prêmio
Nobel.
7
DAWKINS, R. O gene egoísta. P. 50.
8
HAFF, G. A origem da humanidade. P. 93. O fóssil foi encontrado em 24 de novembro de 1974 por
Donald Johanson, próximo ao rio Awash, numa região desértica entre o altiplano etíope e o mar
Vermelho.
17
A linhagem da qual descendemos só teria surgido por volta de 200 mil anos – fóssil
do crânio de Eva Homo Sapiens. Este primata tinha um crânio que comportava
aproximadamente 1200 cm³ de massa cerebral, um crescimento expressivo para
justificar as suas recentes demandas cognitivas e uma linguagem mais sofisticada.
Sobre essa incrível mudança na caixa craniana do Homo sapiens, Pinker comenta:
“uma única mutação numa única mulher, a Eva Africana, simultaneamente conectou a
sintaxe, mudou a forma e o tamanho do crânio e modificou o trato vocal”.
9
Contudo, o
Homo sapiens sapiens teria surgido em torno de 80 mil anos atrás, mas o próprio
Pinker gosta de trabalhar com uma margem de segurança que pode ir até 40 mil anos
pretéritos. Esse ancestral muito se assemelha àquilo que somos hoje, pois seu rebro
possuía a capacidade de armazenar 1800 cm³ de massa encefálica, o que possibilitou-
o desenvolver uma linguagem complexa e, por conseguinte, uma sociabilidade maior.
Sobre esse espantoso crescimento do cérebro, o zoólogo Matt Ridley comenta:
“Uma vez que o cérebro grande estava lá, como que por gica, 50.000 anos atrás, o
Homo sapiens subitamente descobriu que podia usá-lo para fazer arcos e flechas,
pintar paredes de cavernas e pensar no significado da vida.”
10
Estes fatores foram
importantes para que os nossos ancestrais deixassem de ser caçadores e coletores,
abandonando a forma nômade, para se dedicarem à agricultura e ao pastoreio de
animais. Vejamos nas palavras dos antropólogos Richard Wrangham e Dale Peterson
como o cérebro humano evolui no decorrer de milhões de anos:
Nossos próprios ancestrais dessa linhagem começaram a fazer ferramentas de
pedra e a confiar de modo muito mais constante na carne por volta de 2 milhões
de anos atrás. Seus cérebros começaram a se expandir na direção do tamanho
humano por volta de 1,8 milhão de anos atrás, num desenvolvimento
impressionante que terminou meio milhão de anos. Desenvolveram a
linguagem humana em algum momento posterior desconhecido, talvez 150
mil anos. Inventaram a agricultura 10 mil anos atrás. Criaram a pólvora há cerca
de mil anos e os veículos a motor um século atrás.
11
Não fica difícil perceber que nossa evolução foi paulatina e que o crescimento do
cérebro nos diferenciou dos demais animais. O nosso cérebro é o grande fator de
9
PINKER, S. O instinto da linguagem. P. 471.
10
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. P. 88.
11
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 82.
18
desequilíbrio com os outros animais, vale lembrar que o animal que mais se aproxima
do homem na árvore genealógica é o chimpanzé, o qual possui semelhanças genéticas
de 99% do DNA quando comparado com o humano. No entanto, o seu cérebro
comporta aproximadamente 400cm³ de massa encefálica.
No encaminhamento de nossa pesquisa vamos buscar esclarecimentos de como a
máquina cerebral do humano funciona; sabendo que o sistema nervoso se divide em
duas partes: Sistema Nervoso Central e Sistema Nervoso Periférico. O primeiro situa-se
dentro do crânio e o segundo é distribuído pela coluna vertebral, abrangendo o tronco,
membros superiores e inferiores. Ressaltando que os dois sistemas são constituídos
por células que a comunidade científica denominou de neurônios. Estas células
possuem a finalidade de sinalizar as informações do sistema nervoso, em uma de suas
extremidades ela recebe os sinais os dendritos e na outra ela repassa os sinais
axônio. As comunicações realizadas de um neurônio para o outro é um processo
elétrico e químico, pelo qual um neurônio não chega a tocar no outro; esse arranjo de
comunicação feito por um impulso nervoso é chamado de sinapse, que tem por
finalidade levar uma mensagem para a célula seguinte.
De posse destes conceitos, pretendemos dar o encadeamento para nossa
pesquisa, questionando o modelo clássico de ciências sociais que, segundo Pinker,
não consegue abarcar a complexidade das relações sociais que o século XXI impõe à
humanidade
12
. A nossa dissertação vai ser elaborada em quatro capítulos, sendo eles:
I Os três mitos que falseiam o comportamento humano; II Agressividade humana e
biologia do cérebro; III- A neurofisiologia do comportamento humano; IV O fundo
genético da agressão entre gêneros. Na seqüência, buscaremos compreender como
foram construídos esses ideários modernistas, e de que forma Steven Pinker refuta as
teses desses autores.
12
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 63.
19
2- OS TRÊS MITOS QUE FUNDAMENTAM O COMPORTAMENTO HUMANO
Os problemas filosóficos têm um quê de divino, e a solução favorita na maioria
das épocas e lugares é o misticismo e a religião. A consciência é uma fagulha
divina em cada um de nós. O eu é a alma, um espírito imaterial que paira acima
dos eventos físicos. As almas simplesmente existem, ou foram criadas por
Deus. Ele concedeu a cada alma um valor moral e o poder da escolha. Ele
estipulou o que é bom e registra os atos bons e maus de cada alma no livro da
vida, recompensando-a ou punindo-a depois que deixa o corpo. O
conhecimento é concedido por Deus ao profeta ou ao vidente ou garantido a
todos nós pela honestidade e consciência de Deus.
13
Mesmo sabendo dos constrangimentos que poderemos ser submetidos em
decorrência de nossas pesquisas, o capítulo que ora se inicia tem como meta
desmistificar três mitos que na ótica do psicólogo evolucionista Steven Pinker ainda são
os grandes parâmetros no regramento da conduta humana. Para ele, as sociedades
contemporâneas ainda sofrem uma influência muito grande de um tripé de conceitos de
origem modernista citados no introdutório dessa pesquisa. A crítica de Pinker não é
direcionada exclusivamente naqueles que criaram as premissas falsas no
entendimento dele mas sim naquelas pessoas que em tempo atuais, insistem na
manutenção destes ideários e na sua propagação, como um formulário eficiente de
engenharia social.
Nesse escopo vamos fazer uma abordagem individualizada de cada autor, com a
clara intenção de buscar nas obras desses pensadores as idéias nas quais Steven
Pinker tomou por base, para fazer pesadas críticas àqueles que ainda insistem em
propagar o corolário modernista como mitos inabaláveis. Para tanto, nesse e também
nos capítulos subseqüentes desse estudo, faremos uso do instrumental de outros
autores, realizando uma transversalidade de informações com as ciências cognitivas e
outras áreas do conhecimento: antropologia, primatologia, etologia, arqueologia,
paleontologia, neurologia, biologia, genética comportamental.
Antes de tratarmos as idéias dos artífices que fundamentam as críticas, se faz
necessário esclarecer que o regramento social de qualquer cultura humana
costumeiramente é feito pela moralidade, ou então por leis positivadas. Os autores
modernos sobre o quais dissertaremos são importantes no sentido de dar os primeiros
13
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 585.
20
direcionamentos do regramento humano em uma nova conjuntura política, da qual
deriva os estados, como forma de governo que hoje conhecemos. No entender de
Pinker, as idéias levantadas por esses autores são muito peculiares e admissíveis para
sua época, mas atualmente são desprovidas de eficácia. Havemos de compreender
que os autores modernistas, apesar de todo seu arrojo conceitual para padrões de sua
época, ainda trazem nos seus conceitos muitos traços de religiosidade. Apesar da
modernidade ser marcada pelo antropocentrismo, Deus ainda é um ator visto com muita
freqüência nas obras de René Descartes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.
Veremos mais adiante que uma das características marcantes da modernidade é a de
que os filósofos e outros intelectuais da época desenvolviam suas proposições até o
limite de sua capacidade cognitiva. Após isso feito, depositavam os problemas
insolúveis no colo de Deus. É claro que no contexto de seu tempo, as idéias faziam
sentido, mas adotar os ideário modernista como parâmetro para o regramento da
conduta humana do século XXI é algo despropositado, de acordo com Steven Pinker.
As nossas sociedades diferem em muito o grau de complexidade das sociedades
de duzentos e cinqüenta anos atrás. Vivemos em um mundo globalizado, onde bilhões
de pessoas interagem simultaneamente, num verdadeiro frenesi social, fortemente
influenciado por um conhecimento que se renova de forma espantosa. Nesse sentido, o
regramento de nossas sociedades atual ganhou contornos sutis inimagináveis há dois
séculos. Portanto, concordamos com as críticas que Steven Pinker desfere contra o
atual modelo ajustador de regramento social, que tem como premissas principais o
fantasma na máquina de René Descartes, a tábula rasa de John Locke e o bom
selvagem de Jean Jacques Rousseau das quais passaremos a tratar individualmente
na seqüência desse capítulo.
2.1 PRIMEIRO MITO: O FANTASMA NA MÁQUINA
É ponto pacífico na história do pensamento ter René Descartes como pai da
filosofia moderna. É ele o primeiro a priorizar os problemas de ordem epistemológica
valor do conhecimento em detrimento dos demais problemas filosóficos, dando início
ao estudo do conhecimento.
21
Muitos poderiam dizer que Aristóteles havia abordado a metafísica como uma
problemática epistemológica valor como princípio de não-contradição. Mas, havemos
de reconhecer que em Aristóteles não encontramos uma contenda dos problemas
epistemológicos e tão pouco um condicionamento de qualquer campo da filosofia à
epistemologia. O que a filosofia cartesiana quer verificar antes da mais nada é o valor
do conhecimento humano. E para que isso aconteça, ele cria um método para validar a
pesquisa filosófica.
As proposições epistemológicas cartesianas são o grande diferencial para marcar o
início da modernidade, suficiente para eleger Descartes como aquele que deu início à
filosofia moderna. As premissas cartesianas trazem na sua envergadura um diferencial
quando comparado com o período medieval, que invariavelmente tratava do
conhecimento como algo fora de dúvida. Com Descartes a filosofia sofre uma guinada
ao evidenciar o valor do conhecimento humano.
O grande mérito da filosofia cartesiana está na tentativa de incrementar a filosofia
clássica com o seu novo método científico com bases mecanicistas. Entretanto, suas
proposições demonstram uma exagerada valorização do racional, transformando a
razão em um mito, fazendo dela um referencial de todas as coisas. Para ele, aquilo que
não é racional deve ficar em segundo plano, mesmo que não seja negado história,
poesia, as artes, dentre outras. Outro ponto, e sobre o qual esta pesquisa pretende
tratar, é a tentativa de Descartes em aplicar uma metodologia mecanicista no que diz
respeito à natureza dos corpos humano e animal, que para ele devem ser
compreendidos como uma mecânica automatizada.
Logo no início do Discurso do método, Descartes chama a atenção do leitor ao
dizer que todos somos iguais na maneira de pensar e ajustar decisões e aquilo que nos
faz diferenciar o verdadeiro do falso é denominado por ele como bom senso ou razão
livre-arbítrio. Para ele, todos os homens são providos naturalmente de bom senso, e
ninguém deseja ter mais do que possui, o que nos a condição de tomar decisões
acertadas. Sobre as escolha de nossas decisões, ele diz:
Assim, não é verossímil que todos se enganem; mas, pelo contrário, isso
demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que
é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é por natureza igual
em todos os homens; e portanto que a diversidade de nossas opiniões não
22
decorre de nossas opiniões serem mais razoáveis de uns serem mais razoáveis
que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por
diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas.
14
Descartes trabalha em busca de uma veracidade, sugerindo que devemos
primeiramente decompor os problemas em pequenas partes, para posteriormente
compreendermos o todo. Em conseqüência dessa proposição ele elabora uma primeira
regra, dizendo a si mesmo que necessitamos rejeitar como absolutamente falso tudo
aquilo que possa nos causar a menor dúvida, para que depois possamos nos certificar
de que existe alguma coisa em nossa crença que ainda possa ser inteiramente
inquestionável. Logo em seguida, ele diz que a segunda regra consiste em dividir cada
problema em pequenas partes quantas forem necessárias, na busca de uma melhor
compreensão. Na terceira, ele procura uma ordenação das idéias, iniciando pelos
objetos de menor complexidade, subindo gradualmente em grau de complexidade até
chegar naqueles mais complicados. Finalmente, na quarta, ele elabora um modelo que
consiste em concatenar as idéias através de numerações precisas, revisando tudo até
que se tenha certeza de que nada tenha sido omitido. As proposições elaboradas por
Descartes refletem ainda a filosofia clássica, a qual buscava um modelo geométrico
como garantidor de nossas certezas. A busca de um modelo cognitivo baseado na
geometria é a base para construção do edifício filosófico de René Descartes.
É originária de Descartes a célebre proposição: “E, notadamente que esta verdade
penso, logo existo era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes
suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar.
15
O famoso enunciado
penso, logo existo transpassa sua filosofia, sugestão de uma verdade que lhe deve
ser tomada como princípio inicial, e que lhe revela, além disso, ser ele uma substância,
cuja única essência é pensar, inteiramente independente do corpo, do lugar, e de tudo
quanto é material. É o pensar que garante o pensar, o sentir e o querer.
Assegurado de que a sua existência é dada pela razão, Descartes acredita não
haver outra certeza maior daquela dada pelo racional. Ele encontra a estabilidade
mental na meditação, mas, desde que cesse de meditar, sua mente volta a ficar
atribulada e ele tem muitas outras dúvidas. Mas inovador que é, julga que deve adotar a
14
DESCARTES, R. Discurso do método. P. 05.
15
Ib Id. P. 38.
23
atitude de duvidar constantemente, transformada em vontade ao adentrar um aposento
onde se pode pensar sem as interferências do mundo externo, que seu entendimento
causam vicissitudes em nossos sentidos, os quais seriam são grandes causadores de
nossos equívocos, e que não devemos confiar naquele que um dia nos traiu numa
clara referência aos sentidos. Mas, como se desfazer duma dúvida absoluta e tão
inventiva? Naquilo que concebe a sua própria existência ele desvelou e desafiou o
Enganador por meio de sua fórmula gica de: eu sou, eu existo. É uma tentativa de
fazer com que todo o resto, seu próprio corpo como também o mundo, seja ou possa vir
a ser reconhecido como existente tão bem quanto ele. No que tange a verdade,
caminha numa trilha espantosamente sutil. Em nada tem segurança a não ser em seu
pensamento. Ele pode ser empregado, sem nada invocar além de si próprio. A certeza
de existir mediante o pensamento é assim descrito por ele em Meditações sobre
filosofia primeira:
Eu, eu sou, eu, eu existo, isto é certo. Mas, por quanto tempo? Ora, enquanto
penso, pois, talvez pudesse ocorrer também que, se eu não tivesse nenhum
pensamento, deixasse totalmente de ser. Agora, o admito nada que não seja
necessariamente verdadeiro: sou portanto, precisamente, coisa pensante,
isto é, mente ou ânimo intelecto ou razão, vocábulos cuja significação eu antes
ignorava. Sou, porém, uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas
qual coisa? Já disse: coisa pensante.
16
Estabelecendo a razão como marco capital de sua filosofia, Descartes faz uma
reconstrução interessante de todo universo metafísico clássico, seguindo um caminho
por onde caminharam filósofos ilustres como Platão e Agostinho de Hipona.
Descartes faz um grande esforço para provar que a marca do homem, e aquilo que o
caracteriza é a alma. Através da experiência racional ele demonstra a imperfeição, e
subseqüente ele cria uma idéia de perfeição na possibilidade da existência de Deus. O
eu nada mais é para Descartes do que a alma, aquela que me a garantia de ser o
que realmente sou. Na ótica cartesiana, a alma é algo totalmente distinto do corpo
físico, sendo ela imortal, pois mesmo que o corpo deixasse de existir, a alma
permaneceria existente como substância. Seguindo esse caminho, a essencialidade do
16
DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. P. 27.
24
homem é a alma e não o corpo. A filosofia cartesiana considera o corpo como uma
substância completa, a qual existe por si , diferente da alma, um oposto da alma.
Para Descartes, o corpo é uma coisa extensa, enquanto a alma é a coisa pensante, e
mesmo sendo o diferentes elas possuem um ponto de junção. Na visão cartesiana a
alma e o corpo fisiológico se unem em apenas uma região do cérebro humano
conhecida como glândula pineal
17
.
Na sua obra Paixões da alma, Descartes é enfático ao dizer que existe no cérebro
uma pequena glândula e é precisamente nessa gndula que a alma exerce suas
incumbências, em detrimento de outras partes do corpo. A certeza de que a glândula
pineal é a principal sede da alma é evidente na filosofia cartesiana. Nas Paixões da
alma ele explica como chegou a essa conclusão:
A razão que me persuade de que a alma não pode ter, em todo o corpo,
nenhum outro lugar, exceto essa glândula, onde exerce imediatamente suas
funções é que considero que as outras partes do nosso cérebro são todas
duplas, assim como temos dois olhos, duas mãos, duas orelhas, enfim todos os
órgãos de nossos sentidos são duplos: e que, dado que não temos senão um
único e simples pensamento de uma mesma coisa ao mesmo tempo, cumpre
necessariamente que haja algum lugar onde as duas imagens que nos vêm
pelos dois olhos, onde as duas outras impressões que recebemos de um só
objeto pelos duplos órgãos dos outros sentidos, se possam reunir em uma
antes que cheguem à alma, a fim de que não lhe representem dois objetos em
vez de um só. E pode-se conceber facilmente que essas imagens ou outras
impressões se reúnem nessa glândula, por intermédio dos espíritos que
preenchem as cavidades do cérebro, mas não qualquer outro local no corpo
onde possam assim unir-se, senão depois de reunidas nessa glândula.
18
Descartes traz para a filosofia um receituário mecanicista garantido pela certeza
que ele imaginava ter encontrado na geometria. Munido do ferramental mecânico, ele
se aventura a dissecar cadáveres, numa clara tentativa de compreender o
funcionamento dos corpos físicos como se fossem máquinas. No capítulo quinto do
Discurso do Método, Descartes busca subsídios que garantam o funcionamento do
corpo físico humano e por conseguinte a existência da alma. No seu entendimento, a
17
LENT, R. Cem bilhões de neurônios. P. 494. A glândula pineal fica alojada na parte central do
cérebro, tendo como principal função à produção de hormônio melatonina. Sabe-se que a melatonina é
um sinal químico que atua sobre vários órgãos assinalando a duração da noite. A concentração de
sangue na glândula pineal cresce durante a noite; quanto maior a duração do período noturno, mais alta
a concentração de melatonina.
18
DESCARTES, R. As paixões da alma. P. 239.
25
circulação do sangue pelas artérias é responsável pela criação daquilo que ele
considera espíritos animais”
19
, um conceito oriundo da escolástica que imaginava os
espíritos animais como entidades mistas, mas modificadas pela filosofia cartesiana, que
entende os espíritos animais como partículas muito pequenas e dotadas de mobilidade.
Elas teriam sua origem no sangue, entretanto, passam por um processo de depuração,
recusando suas partes mais grosseiras e impuras e com isso abandonando as formas
sanguíneas. Após terem passado pelo processo de depuração, os espíritos animais
“concentram-se numa cavidade do cérebro situada perto da glândula pineal e irradiam-
se daí para todo o organismo, no qual têm a função de agentes mecânicos da
sensação e do movimento”.
20
Na sua ótica, os espíritos animais estariam mais
concentrados no rebro, mas quando necessários são jogados na corrente sanguínea
para movimentar músculos e por conseguintes os membros. Eles também seriam
responsáveis pela nossa percepção sensitiva e emoções.
A temática da alma é a coluna vertebral da filosofia cartesiana. Para ele, a alma é a
grande condutora na nau humana. De início ele demonstra que a essência do homem é
alma; logo em seguida, através da idéia de imperfeição e de perfeição, ratifica a
existência de Deus. Para ele, a existência de Deus pode ser comprovada através do
processo indutivo e também pelo procedimento dedutivo, tendo como instrumento
principal o raciocínio ontológico. Deus é, “onde afinal se encerram todos os tesouros
das ciências e da sabedoria ao conhecimento de todas as outras coisas.”
21
Partindo
desse princípio, ele trabalha com a possibilidade de existir em nós uma centelha divina
de perfeição, a qual nos possibilitaria fazer as escolha corretas nos livrando dos
equívocos. Mas, se Deus é perfeito e nunca se engana, porque nós, que fomos criados
por ele, cometemos erros? Descartes busca argumentos, reconhecendo que é
impossível algo perfeito cometer erros, e todo engano deriva do imperfeito, o que por
conseguinte não pode estar em Deus. Os erros seriam a denúncia de que a imperfeição
habita no homem e suas origens estariam na faculdade das escolhas – arbítrio
simultaneamente com a vontade.
19
DESCARTES, R. Discurso do Método. P. 61.
20
Ib Id. P. 99.
21
DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. P. 105.
26
Descartes afirma que nem um erro pode ocorrer no intelecto. O intelecto não pode
afirmar nem negar nada, mas tão somente perceber as idéias da qual tenho que fazer
um juízo. Segundo ele, Deus não nos dotou de conhecimento integral, e os erros por
nós cometidos, são uma deriva daquilo que julgamos sem ter um conhecimento pleno.
Nesse sentido, ele supõe que Deus colocou nos homens apenas alguns atributos de
perfeição, mas que Deus foi precavido em dotar os homens de vontade e arbítrio
suficiente para que possamos tomar decisões acertadas. Porém, não podemos atribuir
a Deus as nossas escolhas equivocadas, pois seu conhecimento é vastíssimo. Bom! De
onde então viriam nossas escolhas equivocadas? René Descartes responde:
Unicamente de que, como a vontade manifesta-se mais ampla do que o
intelecto, não a contenho dentro dos mesmos limites e a estendo também a
coisas que não entendo. E, por ser indiferente a essas coisas, a vontade
desvia-se facilmente do verdadeiro e do bom e é, assim, que erro e peco. Por
exemplo: como examinasse nesses dias se existia algo no mundo e notasse
que, pelo fato de o examinar, segui-se evidentemente que eu existia, não pude
julgar que o que entendia tão claramente fosse verdadeiro. Não que a isso
fosse coagido por uma força externa, mas, porque uma grande luz no intelecto
tem como conseqüente uma grande propensão na vontade, assim, nisso
acreditei tanto mais espontânea e livremente quanto menos lhe fui indiferente.
22
Dúvidas incessantes atormentam a mente cartesiana, e o bem julgar é dificultado
pela dualidade mente e corpo. rias conjunturas chegam na mente a todo o momento
através dos sentidos, e tão somente a reta razão é capaz de fazer a escolha correta.
Ele insiste em dizer que não devemos atribuir uma culpabilidade em Deus diante de
nossos erros, pois de certo modo existe em nós um grau maior de perfeição
concebido por Deus – capaz de produzir ações acertadas do que ao contrário. Por outro
lado, ele vai afirmar que não existe nem uma imperfeição por parte de Deus em
conceber o poder de arbítrio a nós, pois o que existe é uma imperfeição que habita em
nós, e o mau uso dessa liberdade consiste em deliberar a respeito daquilo que não
conheço. Os julgamentos acertados são aqueles em que a razão impõe nossas
vontades dentro dos limites do nosso conhecimento, e assim fazendo, é impossível que
cometamos algum erro, pois é uma percepção inequívoca. Para sair dessa
incongruência, a filosofia cartesiana sugere que uma clareza cognitiva pode ser obtida
22
Ib Id. P. 115 e 116.
27
desde de que sigamos as sugestões contidas no método elaborado por ele. É no
método que os pressupostos filosóficos cartesianos se apóiam em busca de uma
certeza infalível dada reta razão, cuja conectividade com Deus é realizada pela alma,
pois os sentidos são eternos enganadores.
2.2 A DISSIPAÇÃO DO FANTASMA
A crença cartesiana de que existe em nossos cérebros uma alma racional capaz de
fazer escolhas de forma acertada, é dado pelo Ocidente como condição suficiente para
que possamos deliberar corretamente as nossas ações. Para Descartes, o penso logo
existo é, no seu entender, o pressuposto garantidor de nossas escolhas. Através dessa
reflexão garantia suficiente de minha existência poderíamos conhecer a nós
mesmos, pois no seu entender a alma é apartada do corpo. Com Descartes, o
entendimento de que a alma existe é um cálculo suficiente para fundamentar uma razão
dotada de poderes cognitivos inequívocos quanto ao bem julgar. São pressuposições
que no entender de Steven Pinker o Ocidente adotou como um dogma. O livre-arbítrio
de nossas ações é um fator basilar para o direito positivado do Ocidente e, por
conseguinte, também para a moralidade.
Pinker entende que a suposição cartesiana – dada pela razão – é um dos mitos que
ainda permeia nossos cotidianos, principalmente no que diz respeito ao livre-arbítrio. Na
sua visão, o mito se fundamenta na possibilidade de existir dentro de nós um fantasma,
que ficaria localizado em uma parte específica de nosso cérebro e, por conseguinte,
deliberando a respeito de nossas escolhas. Essas premissas cartesianas fundamentam
fortemente a moral e as leis positivadas vigentes, num claro entendimento de
possuírmos um fantasma no interior de nossos cérebros com capacidade suficiente
para arbitrar nossas escolhas, tendo como instrumento principal a razão. Pressupor a
existência de um fantasma é condição suficiente para nos fazer acreditar que com o
instrumental da razão podemos escolher o que é correto ou incorreto, diante de
determinadas situações com as quais nos deparamos no convívio social. É claro que
em conseqüência dos avanços das ciências cognitivas, as teses de Descartes ficaram
frágeis.
28
Sobre a possibilidade de existir um fantasma no interior de nossos cérebros capaz
de fazer a escolhas corretas diante de determinados eventos, o zoólogo Matt Ridley faz
coro com Pinker ao dizer que “não um eu dentro de meu cérebro; somente um
conjunto de estados cerebrais em eterna transformação, uma destilação de história,
emoção, instinto, experiência e influência de outras pessoas para não falar no
acaso.”
23
As críticas desferidas por Pinker contra o ideário cartesiano também podem ser
encontradas nos estudos produzidos pelo neurobiólogo norte-americano Antonio
Damásio. Seu livro, O Erro de Descartes, faz um questionamento de como deveria se
comportar René Descartes se tivesse à sua disposição o conhecimento da
neurobiologia atual. Damásio cita o acidente sofrido pelo operário ferroviário Phineas
Gage, ocorrido em setembro de 1848, no Estado de Vermont (USA). Enquanto
trabalhava na construção de uma estrada ferroviária, Phineas teve seu cérebro
empalado por uma barra de metal, instrumento utilizado por ele como calibrador de
explosivos. O fato aconteceu no verão de 1848, por volta das 16h30min. Gage colocava
pólvora em rastilho em direção a um buraco contendo explosivos, no instante que um
colega de trabalho o chama tirando sua atenção, enquanto ele continua calcando a
pólvora com o bastão de ferro, em uma fração de tempo a barra de ferro provoca uma
fagulha e acontece uma explosão próxima ao rosto de Gage. A barra de ferro penetra
logo abaixo do olho esquerdo de Gage, atravessando a base do crânio, trespassa a
parte anterior, saindo como um foguete pelo topo da cabeça. A barra cai a mais de
trinta metros de distância do corpo, enquanto Phineas Gage encontra-se caído no chão
com a cabeça envolta em sangue e massa encefálica, mas permanece vivo.
Phineas Gage sobreviveu ao acidente, porém mudou seu comportamento. Ele, que
até então era uma pessoa extremamente extrovertida e sociável, depois do sinistro,
passou a demonstrar irritação constante, tornou-se rude e agressivo, perdendo
capacidade de planejar suas ações, de antecipar o futuro e de planejar suas ações em
conformidade com essa antecipação, quando se deparava diante de situações sociais
complexas. Ele também perdeu o sentido de responsabilidade sobre si mesmo e
também para com outras pessoas; também perdeu a faculdade de organizar
23
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. P. 344.
29
deliberadamente sua sobrevivência através de suas decisões livre-arbítrio. O médico
que cuidou de Phineas Gage na época, John Harlow, comenta o comportamento de seu
paciente após o acidente: “deixou de demonstrar qualquer respeito pelas convenções
sociais; os princípios éticos eram constantemente violados; as decisões que tomava
não levavam em consideração seus interesses mais genuínos.”
24
Gage faleceu em 1861. Cinco anos mais tarde seu corpo foi exumado pelo mesmo
médico que havia cuidado de Gage quando do seu acidente. O crânio, bem como a
barra de ferro, estão expostos no Warrren Medical Museun da Harvard Medical School
na cidade de Boston (USA).
Passados cento e vinte anos da morte de Phineas Gage, a médica americana
Hanna Damásio resolveu investigar o crânio de Gage fazendo uso de projeções em
computadores com caixa craniana acidentada e a barra de ferro. Constatou-se daí que
o pedaço de metal, o qual atingiu o cérebro de Gage afetou a região cerebral
denominada de córtex pré-frontal
25
. Mais adiante veremos a importância que possui
esta região do cérebro na contenção de nossos impulsos de agressão e sociabilidade.
Caso Descartes tivesse acesso aos fatos envolvendo o acidente com Phineas
Gage, poderia ele se questionar a respeito da alma de Phineas Gage? Damásio faz
esta interrogação prevendo que a resposta seria negativa, pois sabemos que o acidente
acontecido com Gage modificou substancialmente o seu comportamento, e a parte do
cérebro atingido não foi a região da glândula pineal, onde Descartes imaginava estar
localizada a alma humana. Nas palavras de Antonio Damásio, podemos compreender
melhor o novo paradigma estabelecido pelo acidente de Phineas Gage, assim
interpretado por ele:
Poderá Gage ser descrito como estando dotado de livre-arbítrio? Teria
sensibilidade relativamente ao que está certo e errado, ou era vítima de seu
novo design cerebral, de tal forma que as decisões lhe eram impostas e por
isso inevitáveis? Era responsável pelos seus atos? Se concluirmos que não era,
que nos pode isso dizer sobre o sentido de responsabilidade em termos mais
gerais? Existem muitos Gage à nossa volta, indivíduos cuja desgraça social é
perturbadoramente semelhante. Alguns têm lesões em conseqüência de
tumores cerebrais, de ferimentos na cabeça ou de outras doenças de caráter
neurológico. Outros, no entanto, não tiveram qualquer doença neurológica e
comportam-se, ainda assim, como Gage, por razões que m a ver com seus
24
DAMÁSIO, A.R. O erro de Descartes. P. 31.
25
Ib Id. P.45.
30
cérebros ou com a sociedade em que nasceram. [...] Nem o encarceramento
nem a pena de morte resposta que a sociedade atualmente oferece para
esses indivíduos contribuem para compreensão do problema ou para sua
solução.
26
O que Damásio tenta demonstrar é que o acidente que vitimou Phineas Gage fez
ele perder uma região do cérebro córtex pré-frontal que possibilita o ajustamento
comportamental diante de situações de sociabilidade com as quais os humanos se
deparam no seu cotidiano. Nesse sentido podemos considerar o acidente de Phineas
Gage como um novo paradigma no entendimento do comportamento humano. Os
avanços da neurociência mostram que Gage não perdeu sua alma com o acidente; o
que ele perdeu foi a parte pré-frontal do cérebro: a grande balança de nossas decisões,
e que responde diretamente pela nossa sociabilidade.
Devemos deixar claro que o fator biológico, por si não explica todos os
comportamentos do humano. Nossos cérebros foram dotados de dispositivos
automáticos de sobrevivência ao longo da caminhada evolutiva. Mas eles por si
próprios, não resolvem todos os problemas com os quais nos deparamos todos os dias.
Parte da solução vem do estrato social no qual estamos inseridos e muito de nossos
mecanismos biológicos foram criados para solucionar dificuldades vindas do ambiente
social. Portanto, a biologia não pode arrogar para si a explicação de todos eventos
comportamentais do humano. Mas, também não podemos atribuir apenas aos fatores
social e cultural a agressividade praticada por humanos.
2.3 SEGUNDO MITO: A TÁBULA RASA
Steven Pinker é taxativo em condenar outro mito de origem modernista: a bula
rasa de John Locke. No seu entendimento este mito como o anterior é extremamente
nocivo para o regramento de nossas sociedades. O que difere o mito da tábula rasa do
fantasma de máquina é seu campo de atuação mais específico. Enquanto o fantasma
da máquina nos dá a certeza das escolhas corretas, o mito da tábula rasa busca formas
de conhecermos a verdade através da compreensão de como a nossa mente funciona.
O empirismo de John Locke pressupõe que nossas mentes são semelhantes a uma
26
Ib Id. P. 40 e 41.
31
folha em branco quando do nosso nascimento, e que através da educação sentidos
poderemos escrever nela os mais lindos poemas. No Ensaio acerca do entendimento
humano ele diz:
Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco,
desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será
suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada
fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde
apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo,
numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e
dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento.
27
Na visão de Steven Pinker, a arquitetura educacional do ocidente encontra-se
calcada nos alicerces da tábula rasa de John Locke. Como no mito anterior, Steven
Pinker ataca com ferocidade os atributos da tábula rasa, os quais segundo ele já não se
sustentam diante dos avanços obtidos no campo da genética comportamental,
derivadas de pesquisas realizadas com gêmeos idênticos, assunto que retornaremos
assim que expusermos alguns pontos do pensamento de John Locke.
A metáfora de que a mente humana no momento do nascimento do homem, se
assemelha a uma tábula rasa, ou seja, uma folha de papel em branco a espera de
anotações, é uma síntese da crítica feita pelo empirismo que contradiz a doutrina do
inatismo cartesiano. No entendimento de John Locke, tudo aquilo que conhecemos é
sempre, por definição, aprendido, seja pela percepção do ambiente, seja pela reflexão
sobre a própria condição interior.
Entretanto, em alguns pontos John Locke segue as premissas cartesianas,
principalmente no que diz respeito à filosofia como ciência do conhecimento. Mesmo
usando lentes diferentes, existe um outro tema em que estes filósofos comungam seus
pontos de vista: no entendimento da alma e possíveis desdobramentos cognitivos
diante da existência de Deus. John Locke também se aventurou a pesquisar no campo
da medicina, como também o fez seu antecessor René Descartes. Porém, existe uma
questão marcante entre os dois filósofos modernistas no campo da cognição, sobre a
qual eles divergem. Enquanto René Descartes imaginava os homens dotados de um
conhecimento inato, John Locke vai discorrer suas teses em sentido contrário, pois no
27
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. P. 159.
32
seu entendimento o homem ao nascer é desprovido de qualquer conhecimento inato.
Se assim for, John Locke haveria de perguntar: qual é então processo pelo qual a
idéias são formadas? Qual a origem do poder criativo da mente humana? A sua tese
caminha no sentido de que é possível afirmar que a mente humana não inventa
nenhuma idéia, postulando que os conteúdos produzidos pela mente possuem suas
origens na percepção dada pelos órgãos sensoriais de nosso corpo. Usando uma outra
terminologia, poderíamos dizer que a mente é condicionada a apenas reelaborar na
forma de abstração os conteúdos e percepções oriundos do mundo exterior. Seguindo
a fórmula do empirismo de Locke, nada poderia existir no intelecto humano que ainda
não tivesse passado pelos sentidos. O mesmo regramento é aplicado às noções mais
abstratas, que aparentemente pouco se assemelham com os eventos oriundos dos
órgãos sensoriais. Ou seja, quase tudo que existe no intelecto não se assemelha ao
que foi dado nos sentidos.
A obra capital de John Locke no que tange a cognição é o Ensaio acerca do
entendimento humano. Nela, ele trata respectivamente das idéias inatas, e da
metodologia dos processos cognitivos, da linguagem e dos valores atribuídos ao
conhecimento.
No primeiro livro Nem os princípios nem as idéias são inatas, ele faz uma crítica
contundente à idéia cartesiana do conhecimento inato. Uma tese que no seu entender
não possui sustentação, pelos seguintes motivos: primeiramente, se assim fosse, as
idéias inatas estariam presentes na mente dos selvagens e das crianças criadas
distantes da civilização. Subseqüentemente, a verdade sobre as idéias também não é
passiva de verificação, pois a possibilidade da existência de idéias inatas não pode ser
confrontada com a experiência, o que no entender de Locke torna legítimo dizer se uma
coisa é verdadeira ou falsa; por último, Locke vai expor que a argumentação que
sustentação e fundamenta a teoria do inatismo não tem valor de avaliação. A
argumentação de que o conhecimento é igual em todos os homens, bem como uma
possível universalização da natureza humana, não diz nada no que concerne a respeito
da origem das idéias, pois aquilo que foi adquirido muito tempo por hábito tende a
ser confundido como inato.
33
As críticas desferidas por Locke relativas ao inatismo fizeram com que ele atrelasse
o nascimento da alma com o momento do nascimento de uma pessoa. Daí ele concluir
que se um homem possui alma e, por conseguinte adquire conhecimento e também
outros conteúdos, não passam de conteúdos de idéias provenientes da experiência
dada pelos órgãos sensitivos. Em seguida ele procura encontrar quais seriam os
subsídios que constroem o processo cognitivo humano, buscando saber qual tamanho
da sua extensão e a possibilidade de aplicação desse conhecimento.
No segundo livro, As idéias, John Locke vai analisar mais profundamente o
processo cognitivo, reafirmando que ao nascer a mente é totalmente desprovida de
idéias. Nessa perspectiva, todo o processo do conhecimento humano tem
necessariamente que passar pela experiência sensível, não existindo nada no nosso
intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos. Ele vai usar largamente a
palavra “idéia” enquanto a filosofia cartesiana fazia uso da “alma”, e sobre o uso
freqüente da palavra idéia ele diz: “qualquer coisa que pode ser entendida quando o
homem pensa, usei-o para expressar qualquer coisa que pode ser entendida como
fantasma, noção, espécie, ou tudo o que pode ser empregado pela mente pensante.”
28
O processo cognitivo concebido por Locke passa por quatro fases distintas: a)
Intuição: é uma etapa onde as idéias são recebidas da experiência imediata pela
intuição; b) Síntese: as idéias simples são formadas por síntese, ou seja, por
combinação de idéias complexas; c) Análise: é a conjunção de várias idéias complexas
que formam por análise as idéias abstratas, sendo que esse processo se através da
análise de várias idéias complexas, dessa forma podemos chegar a idéia de pessoas,
como por exemplo: Sócrates, Platão e Aristóteles indivíduos que formam uma idéia
abstrata de homem.
No entendimento de John Locke, a idéia abstrata não representa necessariamente
a idéia de essência das coisas. Para ele, a essência das coisas é incognoscível para o
intelecto humano. Nesse sentido, os elementos contidos nas idéias abstratas não são
imprescindíveis, mas comuns. São eles que deixam uma impressão mais intensa no
intelecto. Sob o seu ponto de vista, a idéia de maior profundidade é a sustância em
geral. Locke faz uma distinção entre substância particulares idéias complexas e
28
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. P. 142.
34
substância geral correspondente à idéia abstrata de substância. No seu entender, a
mente não possui condições de conhecer suficientemente a idéia abstrata de
substância, e apesar da certeza que temos da existência de substâncias corpóreas e
espirituais, não podemos firmar com precisão a existência delas. Para solucionar essa
problemática, ele apela para uma deidade, e conforme seus temas avançam em
complexidade, ou quando surge uma dificuldade muito grande em suas proposições,
John Locke busca no místico os argumentos necessários para suas explicações, um
artifício semelhante ao empregado por René Descartes, que também usava o místico
para solucionar algumas de suas incongruências filosóficas. A justificativa de Locke é
que Deus não permitiu aos homens o conhecimento das substâncias existentes nas
coisas. Para ele, não é necessário ao homem ter o conhecimento de coisas tão
complexas como a totalidade das coisas – substância.
No terceiro livro Palavras, o escopo investigativo de Locke é centrado na natureza
e no valor da linguagem. As palavras no seu entender são sinais oriundos das idéias, e
essas por sua vez são sinais das coisas. Os nomes singulares carregam uma
sinalização de idéias simples e complexas; os nomes gerais seriam um indicativo das
idéias abstratas. Seguindo essa linha de raciocínio, a linguagem apresenta um grande
valor de praticidade, pois de certa forma simplificaria o processo de cognição, fazendo
uma unificação seriada de coisas particulares sob o desígnio de um mesmo sinal a
palavra.
Ao fazer o uso da linguagem, John Locke imaginava ser possível criar um sistema
matemático através do qual a moralidade pudesse ser demonstrada, desde que se
preservasse a realidade exata dos significados morais que tais palavras desejassem
demonstrar. Seria uma forma de clarear as proposições morais, buscando um
conhecimento mais preciso, não deixando margem para interpretações dúbias. A moral
condicionada por premissas matemáticas trariam mais clareza nos discursos morais,
assim definida por ele:
Uma definição constitui o único meio pelo qual o sentido exato das palavras
morais pode ser conhecido, e apenas um meio pelo qual seu sentido pode ser
conhecido com certeza, sem deixar qualquer lugar para ser contestado. E,
portanto, a negligência ou obstinação do gênero humano não pode ser
desculpada [...] Especialmente de palavras morais, importa no que mencionei
35
pouco antes, a saber, que é a única maneira pela qual o significado da maioria
delas pode ser conhecido com certeza.
29
Finalmente, no quarto livro, Conhecimento e opinião, a filosofia de John Locke vai
investigar o valor do conhecimento, tendo como premissa maior suposição de que a
mente não pode conhecer a essência das coisas, mas o somente a sua existência.
Onde ele vai dizer: “Com respeito a nossa própria existência, percebemos isto tão clara
e tão certamente que não necessita nem é capaz de qualquer prova. Pois nada nos
poder ser mais evidente que nossa própria existência.”
30
Deriva de sua compreensão
que o nosso intelecto não possui faculdades suficientes para conhecer a essência das
coisas, uma conclusão à qual Locke chega após refletir a respeito da substância.
Entretanto, o homem pode conhecer a existência das coisas, não de forma direta, dado
que o objeto direto do conhecimento são as idéias, mas ele pode conhecer
indiretamente através do nexo causal que as coisas têm com os nossos sentidos. Locke
diz que através das reflexões produzidas pelo nexo causal é possível ao homem
conhecer as coisas existentes no mundo e também a Deus.
Locke vai dizer que Deus é um ser cognoscente desde o início dos tempos, e que,
se por ventura existiu um tempo anterior a Deus, certamente foi um tempo desprovido
de qualquer conhecimento, onde as coisas bailavam cegamente, sem que produzissem
qualquer ato de cognição. Na filosofia do conhecimento promulgada por John Locke, é
ponto pacífico que Deus existe, uma certeza que segundo ele nos é fornecido pelo
conhecimento oriundo da razão. Na sua ótica, o conhecimento deriva primeiramente da
suposição de que Deus existe. Segundo ele, Deus é o “mais poderoso e mais
cognoscente Ser, que, se alguém tiver o prazer de denominar Deus, não importa. A
coisa é evidente, e desta idéia devidamente considerada, facilmente reproduziremos
todos os outros atributos que devemos destinar a este Ser eterno.”
31
Como podemos perceber, as proposições que tratam do conhecimento formuladas
por John Locke no Ensaio acerca do entendimento humano, são construídas com muita
habilidade, tendo como intento principal a demonstração de que o conhecimento é
concebido como uma deriva de nossas experiências, as quais necessariamente têm de
29
Ib Id. 262.
30
Ib Id. 307.
31
Ib Id. 309.
36
passar pelos nossos sentidos. As obras sociais e políticas encontradas em outros
estudos de Locke caminham paralelamente a esse entendimento. Assim como não
existem idéias inatas na mente humana, também não existe um poder inato,
considerado como divino. Portanto, os reis não nasceriam com um conhecimento inato
e superior aos demais homens. A mente de um rei ao nascer é igual à de qualquer
homem comum: uma folha em branco. No Segundo tratado sobre o governo, Locke vai
pormenorizar que num estado de sociedade o poder político deriva de um acordo
firmado entre os homens. E decorrente desse pacto, o rei também estará sujeito ao
previamente convencionado pelos entes de uma assembléia. As proposições políticas
de John Locke são as primeiras noções de estados modernos como conhecemos hoje.
Portanto, as hipóteses formuladas por John Locke possuem grande poder de
persuasão até mesmo nos dias atuais. Pesquisas com embriões humanos e células
tronco causam grande controvérsia em decorrência do pressupostos de Locke de que a
alma passa a existir no momento do nascimento de uma pessoa e com isso abrindo
uma larga discussão ética e epistemológica.
2.4 A FALÁCIA DABULA RASA
O entendimento de que podemos moldar nossos filhos através de um padrão
educacional é outro dogma modernista que Steven Pinker não se cansa de denunciar,
um pressuposto que na sua visão, é proveniente da tábula rasa do inglês John Locke.
Para ele, basta uma rápida análise psicológica na estrutura familiar para que
percebamos as diferenças. É muito raro que numa família com três filhos, os irmãos
terem os mesmos padrões de comportamento: seja na maneira de se vestir, na escolha
da profissão, nos padrões de personalidade introspectivo, extrovertido, agressivo,
amável.
O mito educacional vigente entende que é dever dos pais suprir as mentes de seus
filhos com suas experiências, uma idéia que Steven Pinker concebe como falaciosa.
Fundamentado nas idéias da tábula rasa, existe no mercado editorial vasta literatura e
manuais de como criar bem os filhos. Além disso, os pais educadores podem recorrer
ao auxílio de profissionais dicos, psicólogos, assistentes sociais em busca de
37
uma boa educação para seus filhos. Segundo Pinker este modelo é perverso para os
pais, pois eles se tornam reféns de uma armadilha criada por eles mesmos. Se os filhos
não saírem como o sonhado se tornam transgressores da lei, alcoólatras, usuários de
drogas, depressivos a culpa pode recair sobre eles. Os filhos ou sociedade podem
culpar os pais por terem negligenciado ou não terem dedicado tempo necessário na
educação da prole.
Na visão de Steven Pinker, no princípio quase que universalizado pelo Ocidente, a
idéia de que os pais podem moldar as personalidades de seus filhos é algo tão
profundo em nossa cultura que os pesquisadores não questionaram se é apenas uma
suposição. A hipótese de que somos capazes de modelar a personalidade de nossos
filhos começa a ser desfeita após as divulgações dos resultados realizados com
gêmeos idênticos. Com base nesses resultados, Steven Pinker elabora três premissas
que tomam por base a genética comportamental, as quais teriam força de lei.
Primeira lei: Todas as características de comportamento humano são
hereditárias. Segunda lei: O efeito de ser criado na mesma família é menor que
o efeito dos genes. Terceira lei: Uma porção substancial da variação em
características complexas do comportamento humano não é explicado por
efeitos de genes ou famílias.
32
A presunção de que filhos podem ser moldados pelos seus pais foi testada e as
informações coletadas modificam substancialmente os parâmetros estabelecidos até
então no quesito educacional verificado no núcleo familiar.
Os dados revelados com pesquisas envolvendo gêmeos idênticos desmistificaram
o mito de que as pessoas possuem uma mente moldável, caindo por terra os
fundamentos comportamentais estabelecidos até então. As informações coletadas e
que surpreenderam os psicólogos possui sua base de fundamentação no fator
hereditariedade, ou seja, o quanto uma variância genética se correlaciona em pessoas
de uma mesma descendência. Segundo Pinker, a forma mais tradicional de realizar
estas pesquisas é com gêmeos idênticos, os quais foram separados ao nascerem. Este
método é interessante porque os gêmeos nesta situação compartilham todos os genes
herdados de seus pais, porém o compartilham nada do ambiente. Da mesma forma,
32
PINKER, S. Tábula rasa. P. 504.
38
foram observados gêmeos idênticos criados em um mesmo ambiente, compartilhando
todos os genes com a quase totalidade do ambiente. As pesquisas também abordaram
irmãos biológicos e adotivos. As análises contemplaram não apenas descrição de
traços picos, sendo introduzido situações ambientais de consumo de álcool e pais
separados. Os estudos com gêmeos idênticos tiveram um grande incremento a partir de
1970, principalmente nos Estados Unidos, Holanda, Dinamarca, Suécia e Austrália.
Pinker comenta os surpreendentes resultados derivados das pesquisas:
Um resultado tornou-se muito conhecido. Boa parte da variação personalidade
– cerca de 50% tem causa genéticas. Gêmeos idênticos separados ao nascer
são parecidos; irmãos biológicos criados juntos são mais parecidos que irmãos
adotivos. Isso significa que os outros 50% têm de provir dos pais e do lar,
certo? Errado! Ser criado em um lar e não em outro responde, no máximo, por
5% das diferenças de personalidade entre pessoas. Gêmeos idênticos
separados ao nascer não são apenas semelhantes; eles são praticamente tão
semelhantes quanto gêmeos idênticos criados juntos. Irmãos adotivos no
mesmo lar não são apenas diferentes; eles são quase tão diferentes quanto
duas crianças escolhidas aleatoriamente na população. A maior influência que
os pais têm sobre os filhos é no momento de sua concepção.
33
Pinker é rápido em esclarecer que os pais o são desnecessários no processo
educacional de seus filhos. O que a pesquisa estava aferindo são as diferenças
encontradas entre os próprios irmãos, e aquelas constatadas quando eles estão
adultos. Para ele, questões do amor, do carinho e a responsabilidade por uma boa
educação para os filhos o antes de tudo uma questão ética, imprescindível para nós
humanos. O verdadeiro intento do estudo é demonstrar o que aconteceria se você
apenas trocasse os pais das crianças, mas mantivessem-nas nos mesmos lares e
ambiente social.
Essas aferições poderiam gerar vários questionamentos, que o fator genético é
responsável por 50% das nossas personalidades e que a família pode influenciar até
5%, poderíamos perguntar qual a origem dos outros 45% que complementam o
restante das variações. De forma segura, Pinker diz que ninguém sabe qual a origem
dos 45% que influenciam profundamente a nossa personalidade. Ele trabalha com a
possibilidade de que esta parcela significativa possa ter origens em eventos fortuitos
quando da constituição de nossos cérebros e no seu constante aparelhamento.
33
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 471.
39
Segundo ele, vários eventos que podem influenciar nossas personalidades devem ser
levados em consideração, tais como: posição do feto no útero, hábitos e vícios da mãe,
dificuldades no parto, acidentes na infância (batidas na cabeça), doenças infecciosas
nos primeiros anos. Na mesma trilha, a nossa personalidade pode ser influenciada por
atos de agressão que presenciamos, por gestos de gentilezas e bondades de pessoas
que nos cercam. Também podemos trazer traços na personalidade decorrente do
ambiente social no qual estamos inseridos, pois a todo o momento as crianças
competem com seus irmãos e colegas em busca de status. Para a criança encontrar
seu espaço e mantê-lo, é necessário um cérebro de grande volatilidade, pois os palcos
em que ela atua possuem regras diferentes, e a criança necessita de seu domínio para
um convívio satisfatório.
Em termos mais simplificados, poderíamos dizer que uma grande parcela de
nossas personalidades é gerada praticamente ao acaso ou ao gosto do destino. A
arquitetura universal da personalidade humana já vem desenhada em nosso DNA,
porém aquela característica de comportamento que nos fazem únicos, resulta de
contingências sobre as quais não possuímos domínio. Segundo Pinker, qualquer
evento – biológico, genético, psicológico, cognitivo – pode nos fazer diferentes no
aspecto comportamental. Para ele, até raios smicos podem causar mutações em
segmentos de nossos DNA. Ele cita como exemplo uma célula nervosa – neurônio – em
crescimento que venha receber esta energia, em decorrência disso pode se moldar em
uma configuração levemente diferente daquela pretendida pela arquitetura genética.
Convicto, ele diz:
Um raio cósmico causa mutação em um trecho do DNA, um neurotransmissor
faz zigue em vez de zague, o cone de crescimento de um axônio vai para a
esquerda em vez de ir para a direita, e o cérebro de um gêmeo idêntico pode
moldar-se em uma configuração ligeiramente diferente da do cérebro do outro
gêmeo. [...] Mesmo linhagens geneticamente homogêneas de moscas,
camundongos e vermes, criadas em laboratórios monotonamente controlados
podem diferir uma das outras.
34
Isso nos faz pensar que os arranjos cerebrais acontecidos de forma aleatória e
caótica podem tirar o projeto genético traçado, e destes eventos nascerem pessoas
34
PINKER, S. Tábula rasa. P. 535 e 536.
40
monstruosas? Não! Pinker diz que as mudanças são tão sutis, que os aparelhos
inventados pelo homem até agora, não são capazes de captarem as possíveis
mudanças. Tão rápido como sua tese choca, em seguida ele nos tranqüiliza ao
afirmar que a estrutura do DNA que nos faz humanos não sai fora de sua rota durante o
crescimento, como se estivessem protegidas por uma carapaça genética. Mesmo que o
projeto estrutural do nosso DNA características humanas esteja protegido em sua
essência, uma parcela significativa o está sob controle de pais, educadores,
psicólogos, médicos ou qualquer profissional que seja. Diante dos dados revelados por
Pinker, a falácia da tábula rasa fica desprovida de sentido, não mais motivos para
que pessoas esclarecidas propaguem e vivenciem essa utopia, que no entender de
Pinker é uma grande promotora de sofrimento no campo educacional, bem como no
que diz respeito a pesquisas genéticas.
As informações reveladas pelo campo das ciências cognitivas alardeadas por
Pinker fazem com que até mesmo determinados procedimentos científicos sejam
revisados, para que melhor possamos compreender parcelas de nossos
comportamentos. Sobre a casualidade comportamental, ele faz ressalvas:
Se o componente não genético da personalidade for resultado de uma roleta de
neurodesenvolvimento, teremos duas surpresas. Uma é que, assim como o
termo “genético” da equação do geneticista comportamental não é
necessariamente genético, o termo “ambiental” não é necessariamente
ambiental. Se a variância inexplicada for um produto de eventos fortuitos na
montagem do cérebro, mais uma parte da nossa personalidade seria
“biologicamente determinada” (embora não genética) e estaria fora dos mais
bem concebidos planos de pais e sociedade.
35
É claro que suas idéias contradizem praticamente tudo aquilo que foi
estabelecido como corretamente aplicável no campo da educação familiar e escolar.
Mas convenhamos, não é tão desesperador como se possa conceber. Imagine que
sentido teria se pudéssemos traçar todos os destinos de nossas crianças. Diante de tal
previsibilidade comportamental, dificilmente poderíamos ficar maravilhados com algum
talento revelado por nossos filhos que não fossem aqueles programados por nós. No
entanto, Pinker o é voz única, outros pesquisadores pensam de forma semelhante,
dentre eles destacamos o neurocientista Antonio Damásio, que também aborda temas
35
Ib Id. P. 537.
41
que levam em conta os caracteres genéticos existentes em cada ser, e os fatores
educacionais que podem interferir na personalidade. Antonio Damásio caminha no
mesmo sentido de Pinker ao afirmar que “nossos cérebros e nossas mentes não são
tabulae rasae quando nascemos. Contudo, também não são, na sua totalidade,
geneticamente determinada. A sombra genética tem um grande alcance, mas não é
completa.”
36
2.5 TERCEIRO MITO: O BOM SELVAGEM
Na percepção de Steven Pinker, o mito do bom selvagem de Jean Jacques
Rousseau é extremamente perceptível em nosso cotidiano. Tudo aquilo que possui
origens no conceito de naturalidade é tido comumente como bom: alimentação natural,
fármacos naturais, partos naturais, dentre outros. Rousseau foi buscar a inspiração do
bom selvagem nas histórias trazidas para o continente europeu pelos colonizadores
que retornavam do continente americano ou de correspondências escritas por eles. Os
atos de paixões, segundo ele, sempre foram causadores de discórdias e de agressões
entre homens. No seu ver, o homem em estado natural é desprovido dessas mazelas,
basta ver o comportamento dos índios caraíbas, que em sua época habitavam onde é
hoje a Venezuela. Na sua obra Discurso sobre a origem e a desigualdade entre os
homens, Rousseau afirma: “por serem os caraíbas dentre os povos existentes, o que
até agora menos se distanciou do estado de natureza, justamente os mais tranqüilos
em seus amores e os menos sujeitos a ciúme.”
37
Dizer que o homem em estado de natureza é bom, a sociedade é que o perverte, é
outro mito que na visão de Steven Pinker costumeiramente anda de mãos dadas com o
mito da tábula rasa. Tal fato pode ser constatado com facilidade ao manusearmos a
obra Emílio ou da educação de Jean-Jacques Rousseau, onde podemos encontrar
várias passagens em que ele faz referências a John Locke. O livro tem um forte cunho
pedagógico, e lembra muito a tábula rasa, pressupondo que a melhor idade para se
moldar um homem é na sua infância, quando a mente é desprovida de conteúdos, é o
36
DAMÁSIO, A, R. O erro de Descartes. P. 140.
37
ROUSSEAU, J,-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
P. 195.
42
momento em que devemos induzir as crianças a imitarem aquilo que ainda não podem
fazer por vontade própria: o amor à bondade.
38
O imaginário de Rousseau concebe um homem bom ao nascer e que
posteriormente a sociedade com suas enfermidades acaba por corrompê-lo. Basta que
o homem se insira no contexto social, para que logo em seguida as mazelas de ordem
constitucional operem no indivíduo tornando-o mau, fazendo ele voltar-se para o mal. O
costume como as sociedades são organizadas é feito de tal maneira que é quase
impossível ao homem ser virtuoso. Uma das causas, se não a mais importante na
corrupção do homem, é a razão, que na percepção de Rousseau prejudicou outras
faculdades, primeiramente a dos sentidos, em seguida a magistratura e por final, a
transformação do poder legítimo em arbitrário. Quanto à primeira, Rousseau delega o
estado de riqueza e pobreza; a segunda seria a causa do poder e da fraqueza;
responsabilizando a terceira pela criação das classes de senhorios e de escravos, que
no entendimento de Rousseau são maiores motivos da desigualdade entre os homens
e, por conseguinte, as injustiças.
Para operar uma transformação nesse sistema corrompido, a filosofia de Rousseau
sugere um novo modelo educacional com ênfase na educação infantil. No Emílio ou da
Educação, ele sugere que para modificar uma sociedade corrompida se faz necessário
educar as crianças distantes do convívio social. O seu retorno à convivência social
deve acontecer quando a criança estiver totalmente imune dos males que derivam do
ambiente social. Dessa forma seria possível reconduzir os homens a uma nova forma
de convívio, onde o homem teria controle dos seus instintos descontrolados, e tendo
como norma o instinto disciplinar da lei.
No Emílio, Rousseau cria um modelo educacional contado através de uma história
de um menino educado longe do convívio danoso de uma grande cidade – Paris. Nessa
história, o menino não ficando claro se ele realmente existiu é educado no campo
por um predecessor – Rousseau com a missão de fazer com que o menino se
desenvolva física e mentalmente de uma forma natural – no campo. A educação
imaginada no Emílio começa por desenvolver as faculdades oriundas dos sentidos, pois
na sua óticao as primeiras a tomarem forma, mas que comumente são esquecidas e
38
ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. P. 94.
43
negligenciadas. Ele condena o modelo educacional em que as crianças são induzidas a
criarem hábitos que ao seu ver coíbem a atividade dos sentidos das crianças e a sua
natural vontade de apalpar e pegar em todas as coisas. Para ele uma criança é falha
em conhecimento, e o campo é o melhor lugar para impressionar o seu olhar cheio de
curiosidade. Ele justifica a escolha do campo como lugar melhor apropriado para
educar uma criança, assim dizendo:
Eis mais uma razão para querer educar Emílio no campo, longe da canalha dos
lacaios, os últimos homens depois de seus amos; longe dos maus costumes
das cidades, que o verniz com que se cobrem torna sedutores e contagiosos
para as crianças; ao passo que os vícios dos camponeses, sem requintes e
grosseiros, mais repelem do que seduzem, não se tem nem um nenhum
interesse em imitá-los.
39
Segundo Rousseau, durante o período educacional relativo aos sentidos a criança
não percebe os valores contidos na lei moral. A criança não compreende as noções de
dever e obrigações, é incapaz de obedecer, ou seja, ela não é dotada de um
condicionamento consciente de sua vontade própria, no que se refere à vontade de
outra pessoa. Não entendendo a vontade de outra pessoa, ela tende a pensar que é
apenas mero capricho de outrem, uma medida injustificada que lhe retira a liberdade.
Entretanto, existe uma natural obediência às coisas encontradas na natureza, sendo
necessário manter a criança nessa forma de sujeição. Não sendo a criança dotada de
certas faculdades, ela não possui condições plenas de apreender a obrigação moral e
subseqüentemente emanadas de seu educador, mas possui condições suficientes para
sentir a força física da natureza operando no seu corpo, sentido que as forças que
circundam são mais fortes que ela. Nesse modo de educar em que a natureza é a
grande força, não existe a moralidade, o que por si descarta os castigos e
repreensões. Nesse sentido, o conceito de dependência das coisas, e não da
autoridade do educador, não pode ter outra forma de sanção que seja a reação natural
de uma má ação que a criança possa vir a praticar. Na ótica de Rousseau, a eficácia da
natureza seria condição suficiente para fazer a criança entender que existe uma força
natural nas coisas, um freio natural, diferente daquele que emana da autoridade do
educador; existindo algo natural no homem, que o faz suportar de forma resignada os
39
Ib Id. P. 82.
44
eventos naturais que emanam das coisas, ao mesmo tempo em que ele não está
condicionado a suportar a maldade de outrem pacificamente.
Passado a fase que educa os sentidos, a próxima etapa da instrução estipulada no
Emílio é a educação da razão, o que segundo Rousseau deve começar por volta dos
quinze anos. Mesmo nessa fase, o educador deve estimular o jovem a buscar por si
o conhecimento, instigando sua mente com problemas e posterior busca de soluções
dadas por ele mesmo. A racionalidade do jovem deve ficar livre a qualquer opinião do
educador, do contrário a razão ficará sob o controle da autoridade, que no entender de
Rousseau é extremamente prejudicial, uma vez que o jovem perderia o poder de
raciocinar, ficando à mercê de jogo de opiniões de outras pessoas. É com a educação
da razão que aflora no jovem o senso de moralidade, fazendo desabrochar nele uma
percepção de sociabilidade. É nessa idade que a valoração dos sentimentos humanos
surge no jovem.
A força da natureza também é assistida nessa fase, pois o desabrochar instintivo é
operado de forma espontânea no jovem, fazendo com que ele saia do isolamento,
aparelhando-o com noções de moralidade, prepara o indivíduo para o convívio com
seus semelhantes. Para que possamos impedir que os atos de piedade se degenerem
em fraqueza, se faz necessário estender os atos de beatitude a todo gênero humano,
como medida de justiça. No entender de Rousseau, a justiça é o conceito que pode
levar equilíbrio e, por conseguinte, o bem comum entre os homens, e que isso pode
ser realizado com os instrumentos da razão. A razão nos dá o instrumental necessário
para um julgamento justo, oriundo da experiência que o jovem adquiriu no período em
que foi educado na natureza. Na visão de Rousseau, o conceito implantado na mente
do indivíduo nos moldes naturais é condição suficiente para bem julgar os atos de
moralidade no convívio social. Na educação pautada na natureza estariam os antídotos
naturais contra a corrupção moral imposta por uma sociedade. Sobre as benesses de
ser educado no campo, Rousseau escreve:
Os verdadeiros princípios do justo, os verdadeiros modelos do belo, todas as
relações morais dos seres, todas as idéias da ordem, gravam-se em seu
entendimento; ele o lugar de cada coisa e a causa que a afasta desse lugar;
ele o que pode fazer o bem e o que o pode impedir. Sem ter experimentado
as paixões humanas, conhece suas ilusões e seu jogo. [...] Educado
diferentemente, com sentimentos contrários aos dos outros, instruído de outra
45
maneira, seria muito mais surpreendente que a eles se assemelhasse do que
ser como suponho. Não é o homem do homem, é o homem da natureza.
40
A missão do educador idealizado por Rousseau é fazer com que as crianças
percebam como os sentimentos do homem se comportam após ter sido contaminado
pela sociedade corrompida, e como seria o seu comportamento se elas tivessem
permanecido na sua índole original, ou seja, em estado de natureza. Isto para que o
jovem saiba que os indivíduos são naturalmente bons, mas o convívio social é
determinante na corrupção e posterior depravação de seu caráter.
Como havíamos alertado anteriormente, Rousseau, como os seus antecessores
Descartes e Locke, fazem incursões no campo da religiosidade como forma de
complementar e afirmar suas proposições filosóficas. Segundo ele, a noção que temos
de humanidade perceptível no outro, faz com que tenhamos a consciência da existência
de Deus. Para ele, o mundo pressupõe uma arrumação, em que todas as coisas são
arranjadas para manter a ordenação das coisas no mundo. Deus é um ser que tem a
força de tornar todas suas vontades realizáveis, existindo por si mesmo, uma força que
move e ordena todas as coisas existentes no universo.
Rousseau reflete sobre a necessidade do homem se reportar a Deus, na busca de
praticar o bem. Ele conclui que não é necessário pedir a Deus para sermos bons, uma
vez que fomos dotados por ele de consciência suficiente para a prática de ações
justas. Deus nos dotou de razão suficiente para fazer as escolhas certas, e se eu fizer o
mal ele Deus não tem culpa: faço-o decorrente das escolhas de minha razão ou do
livre-arbítrio. Na sua compressão, Deus teria dotado todos os homens de condições
racionais suficientes para praticar o bem. Toda a verdade está contida nele, e em Deus
devemos depositar toda a nossa confiança. O mais importante para uma sociedade
humana é o compromisso que todos devem ter perante os desígnios de Deus, para
com nós mesmos e para com nossos semelhantes. Podemos perceber que filosofia
iluminista fundamentada na razão de Rousseau possui um forte apelo religioso
mesclado com o romantismo; no Emílio ou da educação ele discorre sobre o que
realmente é importante ensinar:
40
Ib Id. P. 284.
46
Mas o que interessa a mim, e a todos os meus semelhantes, é que todos
saibam que existe um árbitro da sorte dos humanos, de quem somos todos
filhos, que nos prescreve sermos justos e amarmos uns aos outros, sermos
generosos e misericordiosos, cumprir nossas promessas, mesmo em relação
aos inimigos; que a aparente felicidade desta vida não é nada; que outra
depois dela, na qual esse Ser supremo será recompensador dos bons e juiz dos
maus. Tais dogmas e dogmas semelhantes são os que importa ensinar à
mocidade e a todos os cidadãos.
41
Apesar de Rousseau ser um crítico no que diz respeito à razão cartesiana, no
Emílio ela é autônoma em si mesma, maior que tudo que deriva da autoridade do
educador, fato que aparece com grande evidência quando suas proposições tratam do
problema da educação religiosa. Para ele, o jovem deve ter acesso a educação
religiosa quando sua razão estiver suficientemente dotada de faculdades que o
possibilite sozinho compreender a existência de Deus. E se perguntássemos para
Rousseau qual seria o melhor formulário para vivermos de forma justa e pacífica no
seio de uma sociedade? Certamente ele responderia: “Para que a sociedade fosse
tranqüila e mantivesse a harmonia, seria preciso que todos os cidadãos, sem exceção,
fossem igualmente bons cristãos.”
42
2.6 A UTOPIA DO BOM SELVAGEM
Fazendo uso das lentes da psicologia evolutiva de Steven Pinker, basta olharmos
com mais acuidade o corpo do ser humano para que percebamos nele uma máquina de
agressão quando comparamos o gênero masculino com o feminino. O volume de seu
tórax é um claro flagrante de como a evolução dotou os indivíduos masculinos para a
competição. Outros sinais podem ser percebidos sem muito esforço, como: expor os
dentes caninos em um momento de raiva, ou cerrar as mãos. Mas os sinais mais
importantes nossos olhos não podem ver, pois muito dos atores que compõem o
comportamento agressivo se encontram ocultos no interior da caixa craniana humana.
Os gestos que demonstram raiva ou medo são produzidos muitas vezes por hormônios
masculinos como a testosterona; aliás, sobre isto o filósofo e psiquiatra Mauro
Maldonado comenta que foram encontradas altas taxas de testosterona em mulheres
41
Ib Id. P. 446.
42
ROUSSEAU, J.-J. O contrato social. 163.
47
com características violentas
43
. Mas também podem ocorrer distúrbios no sistema
inibitório do cérebro por drogas como álcool, com reflexos imediatos lóbulo frontal,
amígdala, hipotálamo nos neurônios cerebrais, o que pode desencadear ataques de
agressão imprevisíveis.
Em qualquer ponto do planeta habitado por humanos vamos encontrar garotos que
participam de brincadeiras que envolvem lutas, o que leva Pinker a acreditar que nossa
constituição evolutiva foi dotada para a disputa. Para ele, as crianças são equipadas
com mecanismo de agressão muito antes de serem contaminadas por brinquedos ou
jogos de vídeo violentos, e que o período da adolescência não é o único em que a
violência aflora como comumente é pensado. Os dados produzidos por estudos
recentes de meninos com menos de dois anos, brincando em áreas de lazer,
evidenciou que a metade deles mordia, batia e chutava, fato também observado nas
meninas, porém em uma escala um pouco menor. Para Pinker, as crianças dessa idade
não matam umas as outras porque não lhes fornecemos armas revólveres e facas
para tanto; na sua ótica, nas últimas três décadas os cientistas buscaram entender
como as crianças aprendem agredir e descobriram que o foco da questão estaria
errado, pois a indagação correta é: como elas aprendem a não agredir?
44
A agressão humana sempre se fez presente na cultura de todas as civilizações.
Nas tragédias gregas, na mitologia greco-romana ou nas narrações bíblicas do velho
testamento, estão repletas de assassinatos. E, no entender de Pinker, a agressão
nunca abandonou os humanos. Desde os primórdios da existência humana até os dias
atuais, a trilha por onde os homens caminharam, sempre esteve apinhado de
cadáveres de homens assassinados por seus próprios congêneres. Buscar a
compreensão das origens da agressão humana, tentando elencar fatores que
credenciem dizer que ela não é apenas gerada por fatores sócio-culturais; e que fatores
biológicos adquiridos na caminhada da evolução humana podem explicar em grande
parte o nosso comportamento agressivo é o farol que norteia a investigação de nossas
pesquisas.
43
MALDONADO, M. A mente plural. P. 110.
44
PINKER, S. Tábula rasa. P. 430.
48
Muitos estudiosos se debruçam em mesas para pesquisar os motivos que levam
pessoas pacatas e serenas a cometerem assassinatos com requintes de perversidades.
Tentar decifrar os agentes causadores de violência é algo antigo. Cesare Lombroso
(1835-1909) pensava ser possível identificar pessoas que cometiam crimes com
freqüência, através de um exame das formas do crânio, nariz ou orelhas. Claro que
suas teses não foram credenciadas, uma vez que se tratava de um falso cientificismo.
Vejamos uma censura feita pelo neurocientista Antonio Damásio contra estudos que
derivam das teses de Lombroso.
Devemos criticar igualmente as propostas absurdas da frenologia, como por
exemplo a idéia de que os diferentes órgãos cerebrais geravam faculdades
mentais que era proporcionalmente ao tamanho do órgão, ou a idéia de que
todos os órgãos e as faculdades eram inatos. A noção de tamanho como índice
de potência de uma determinada faculdade mental está divertidamente errada,
embora alguns neurocientistas contemporâneos o se tenham coibido de
utilizar precisamente a mesma noção em seus trabalhos.
45
As críticas de Damásio à frenologia são pertinentes, uma vez que os nazistas
fizeram uso em larga escala para identificar quem era judeu na Segunda Guerra
Mundial. Pessoas eram identificadas seguindo os critérios da frenologia sendo
posteriormente eliminados de forma sumária. Com isso, os nazistas buscavam uma
raça pura ariana mesmo que tivesse que ocorrer a eliminação física de milhões de
pessoas.
O argumento para explicar a agressividade humana que mais se disseminou no
Ocidente, e também mais aceito, é o argumento de Jean-Jacques Rousseau: somos
aquilo que o ambiente determina. Argumento que Pinker rechaça com veemência, por
que estaria fundamentado em bases falsas, e não condiz com o espelhamento dos dias
atuais, nem em tempos pretéritos.
Na natureza, a agressão pode ser observada a olho nu e possui os dois lados
como uma moeda. Se de um lado a agressão é o garantidor de uma alimentação, onde
um animal mata o outro para se alimentar, no outro lado da moeda, é a mesma
violência que o salva de uma agressão por parte de outro animal revidando o ataque.
Os animais também podem usar a mesma agressão para obterem água ou conseguir
45
DAMÁSIO, A, R. O erro de Descartes. P. 36 e 37.
49
uma fêmea para procriar. Para Pinker, foi Rousseau quem criou uma natureza
romântica, onde correm rios de água doce, existindo nas suas margens árvores
frondosas carregadas de frutos, abrigando várias espécies que habitam um mesmo
espaço em perfeita harmonia, enfim, um paraíso destituído de agressões e violência.
dito anteriormente, o bom selvagem de Rousseau é uma fantasia romanceada,
oriunda de narrações feitas pelos colonizadores a respeito dos nativos que habitavam a
América Latina na sua época. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, podemos encontrar várias passagens em que ele
menciona os selvagens. Vejamos com as lentes românticas de Rousseau, o
comportamento do bom selvagem: “Vejo-o saciando-se sob um carvalho, matando a
sede no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu
refeição e assim satisfeitas suas necessidades.”
46
Na ótica evolucionista de Pinker, isso
não passa de um sonho utópico, desprovido de qualquer realidade, independente da
época que tal homem tenha existido. No seu modo pensar, a natureza biológica diverge
frontalmente com a natureza romântica criada pelo imaginário de Rousseau. Neste
sentido Pinker é incisivo:
Com exceção das frutas (que astuciamente induzem animais famintos a
dispersar suas sementes), praticamente todo alimento é parte do corpo de
algum outro organismo, que prefereria conservar sua parte para si mesmo. Os
organismos desenvolvem defesas contra serem comidos, e os aspirantes a
comedores desenvolvem armas para vencer essas defesas, compelindo os
candidatos à refeição a criar defesas melhores e assim por diante, numa corrida
armamentista evolutiva. Essas armas e defesas m base genética e são
relativamente fixas no decorrer da vida de um indivíduo; portanto, elas mudam
lentamente. O equilíbrio entre comedores e comidos desenvolve-se apenas ao
longo do tempo evolutivo.
47
Eventos comportamentais estudados pelos etologistas ciência que estuda o
comportamento dos animais em ambiente natural nos permitem compreender que a
agressão pode ter alguns componentes genéticos e que em determinadas
circunstâncias estes dispositivos instalados em nossos cérebros podem ser disparados
tanto para atacar alguém em uma disputa, ou, em defesa de suas vidas, quando os
indivíduos se sentem ameaçados por algum perigo iminente. A agressão à luz das
46
Ib Id. P.164.
47
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 202.
50
ciências naturais não possui cunho moral de ser boa ou má; ela é um mecanismo de
sobrevivência das espécies e pode ser utilizada em determinadas circunstâncias –
ataque ou defesa.
Os estudo de Pinker demonstram que os instintos de agressividade tiveram um
papel preponderante para sobrevivência de nossa espécie nos primórdios da história
humana. Entretanto, os nossos laços de sociabilidade evoluíram, novos parâmetros de
moral e leis foram disciplinando e por conseqüência diminuindo a conduta agressiva.
Seguindo esse caminho, em março de 2007 Pinker publicou o artigo A história da
violência, trabalho que descreve a agressão no decorrer da epopéia humana, e os
equívocos de alguns intelectuais e cientistas em pressupor que o homem em estado de
natureza é dócil, entretanto o convívio social faz com que ele se torne perverso. No seu
entender, as modernas pesquisas derivadas da antropologia, arqueologia e da própria
história da humanidade evidenciam que a escala da agressão vem diminuindo em
conformidade com o fortalecimento das instituições reguladoras da conduta humana:
leis positivadas e moralidade. Contrariando as idéias românticas que ainda são vistas
com muita freqüência na escrita de muitos intelectuais e cientistas, Pinker diz:
Parece que demonizar pessoas e muitas vezes lugares, torna legítimo a
conquista colonial e outras aventuras estrangeiras, e escondem os crimes de
nossas próprias sociedades. A doutrina do bom selvagem a idéia que os
seres humanos são pacíficos em estado de natureza e naturalmente são
corrompidos pelas modernas instituições, são vistas com freqüência na escrita
de intelectuais públicos como José Ortega y Gasset (“A guerra não é um instinto
mas uma invenção”), Stephen Jay Gould (“Os homo sapiens não são uma
espécie perversa e destrutiva”;) e Ashley Montagu (“Os estudos biológicos
emprestam a sustentação à ética da irmandade universal;). Mas, agora que os
cientistas sociais começaram contar corpos em diferentes períodos históricos,
descobriram que a teoria romântica teve um início inverso: Longe de fazer com
que nos tornemos mais violentos, algo na modernidade e suas instituições
fizeram-nos mais nobres.
48
Devemos lembrar que as pressuposições políticas de Rousseau ecoam fortemente
nas cartas magnas e constituições de várias nações ocidentais, que, por conseguinte,
norteiam o direito positivado que regula o comportamento de seus cidadãos. Assim
sendo, as normas vigentes que regram o comportamento têm seus fundamentos em
48
PINKER, Steven. A história da violência. A History of Violence; disponivel em
http://www.edge.org/3rd_culture/bios/pinker.html. Acesso em 19 de dezembro de 2008.
51
uma natureza humana descabida, que o consegue fazer frente diante dos
conhecimentos evidenciados pelas ciências cognitivas, uma disciplina ainda jovem, mas
que ganhou corpo nas últimas décadas. Steven Pinker, uma das maiores autoridades
no campo da cognição, é incansável na tentativa de explicitar que o comportamento
humano não é regido somente por fatores derivados de eventos sociais. Suas teses são
muito claras ao afirmar que parte significativa de nossos comportamentos possui uma
deriva biológica e genética, e que os diversos extratos de indivíduos que compõe
nossas sociedades – legisladores, juristas, políticos, cientistas, religiosos não
podem mais ignorar estes fatos.
52
3 AGRESSIVIDADE HUMANA E A BIOLOGIA DO CÉREBRO
São os seres humanos inatamente agressivos? Esta é uma pergunta favorita
nos colóquios em universidades e nas conversas em reuniões sociais; ela
provoca emoção nos ideólogos políticos de todos os tipos. A resposta é sim. Ao
longo da história as guerras, que não passam de técnicas de agressão mais
organizadas, têm sido endêmicas em todas as formas de sociedade, desde os
bandos de caçadores-coletores até os Estados industriais. Durante os últimos
três séculos a maioria dos países da Europa esteve envolvida em guerras. [...]
Os teóricos que desejam inocentar os genes e atribuir a agressividade humana
exclusivamente à perversidade do ambiente apontam para uma diminuta
minoria de sociedades que parecem ser inteiramente pacíficas, ou quase. [...]
As tribos mais pacíficas hoje freqüentemente foram devastadoras outrora, e
provavelmente produzirão de novo soldados e assassinos no futuro.
49
As idéias acima fazem parte da filosofia do biólogo Edward Osborne Wilson, que
complementa a evolução darwinista, situando os fatores biológicos à luz das ciências
humanas a sociobiologia. Fortemente amparado nas premissas de Wilson, o
psicólogo evolucionista Steven Pinker propõe uma nova visão de entendimento de
natureza humana, fazendo um reexame dos procedimentos que até agora interpretaram
o comportamento do humano. Neste novo patamar de pesquisa não lugar para
dogmatismo, tampouco conclusões reducionistas e deterministas. Teremos que abordar
dificuldades centrais. Problemas como a ideologia religiosa e até mesmo os
procedimentos científicos terão de ser observados por lentes interdisciplinares, para um
maior entendimento dos fatores e dispositivos biológicos que formatam a estrutura
humana. Na ótica evolucionista de Pinker, o homem tende a se tornar melhor quando
ele realmente souber de onde brotam as suas origens. o premissas que estimulam
os homens a tratar seus congêneres como eles realmente são, e não com teorias
criadas por antropólogos de gabinete
50
, como Pinker gosta de frisar.
O momento para estas reflexões é extremamente favorável, pois vivemos uma
crise de identidade sem precedentes, e os princípios basilares que norteiam o
comportamento humano se encontram cambaleantes. Os pilares que sustentam o atual
entendimento da conduta humana pressupõem que sejamos todos iguais em termos
biológicos, e que possuímos uma mente capaz de deliberar livremente sobre nossas
49
WILSON, E.O. Da natureza humana. P. 99 e 100.
50
PINKER, S. Tábula rasa. P. 26. É como ele se refere aos filósofos René Descartes, John Locke e
Jean-Jacques Rousseau.
53
ações. São entendimentos de uma velha arquitetura modernista que rapidamente vem
sendo demolida pelos avanços científicos no campo da biologia e das ciências
cognitivas. Um novo edifício daquilo que entendemos ser natureza humana está sendo
construído com ajuda instrumental da neurociência. Temos noção da polêmica que o
tema instiga, no entanto estamos seguros de que as teses de Steven Pinker possuem
as ferramentas necessárias para que os primeiros tijolos deste edifício possam ser
assentados com lógica e coerência. Estamos concisos de que um novo entendimento
jurídico e moral do humano passa antes de tudo por uma melhor compreensão das
dezenas de bilhões de neurônios que cintilam no cérebro homem; e que esta, talvez;
seja a maior fronteira a ser vencida pelas ciências materiais do século XXI.
Uma das formas que mais estimula o ato de filosofar é o espanto do homem diante
de algumas circunstâncias que fogem da sua compreensão em determinado momento
de sua existência. Nesta trilha de raciocínio, nada mais instigante para o homem
contemporâneo do que buscar a compreensão dos mistérios que envolvem a sua
própria máquina de filosofar: o cérebro.
Se nos primórdios da filosofia os gregos ficavam extasiados diante do cosmos e
buscavam sua compreensão, hoje, no alvorecer do século XXI, o homem cai em
perplexidade diante daquilo que os cientistas dizem ser a coisa mais complexa que o
mundo conhece: o cérebro humano. Empoleirado nos ombros do homem, ele é
interligado por bilhões de neurônios, cujos arranjos entre si podem produzir um número
de conexões (sinapses) maior que toda matéria existente no universo concebido pela
teoria do Big Bang. Portanto, um dos focos dessa pesquisa é a busca de uma melhor
compreensão do cérebro humano, que, como tudo que possui vida nesse planeta, é
regido por leis biológicas. Posteriormente, procuraremos elementos que possam
identificar fatores fisiológicos que em determinadas circunstâncias levem o homem a
cometer agressões contra os seus congêneres. E que os dados coletados nessa
pesquisa sirvam como provocações para novas políticas de combate à violência, e que
também sejam úteis para os operadores do direito no sentido de aperfeiçoar o aparato
jurídico que ainda é fundamentado em premissas culturalistas.
54
3.1 UMA MORAL ORIUNDA DE FATORES NEUROBIOLÓGICOS
O século XIX foi prodigioso e caracterizado por grandes mudanças no
entendimento da natureza humana. Neste período, nasceu uma sociedade marcada por
buscar um conhecimento que não fosse mais pautado por dogmas do poder religioso.
No ambiente sócio-cultural conservador da era vitoriana inglesa, veio ao mundo Charles
Darwin (1809-1882) e com ele uma nova biologia. Darwin pôs fim ao reino no qual o
humano era soberano, apartado dos demais animais, quando levou a público a sua
obra mais marcante, A Origem das Espécies (1859). Conhecida sem exageros como a
obra que abalou o mundo, esgotou-se no primeiro dia e nas seis publicações seguintes.
Ao propor que o homem descendia da mesma árvore genealógica do macaco, a mente,
um atributo supremo criado pela divindade, deixava o místico para trás, e o
conhecimento passou a pautar-se a partir da matéria cerebral humana. No entender de
Pinker, “ele mostrou que órgãos de extrema perfeição e complexidade, que justificam e
despertam nossas admirações, não se originam da providência de Deus”.
51
Mais tarde
(1871), Darwin complementa seus estudos publicando o livro A Origem do Homem,
quando ele nos familiariza com as idéias da evolução por seleção sexual.
Darwin foi contestado por praticamente todos os seguimentos da época e por
alguns ahoje por não conseguir levar à prova suas teses de como as espécies
evoluem e passam esta evolução para gerações sucessivas. Entretanto, diferente do
que muitos pensam, a força da teoria evolucionista não está na sua capacidade de
experimentação; a sua força é verificada na coerência interna de suas proposições. Isto
é atestado pelo biólogo e professor da Universidade de Oxford (Inglaterra) Richard
Dawkins, que diz: “A seleção natural não só explica a vida toda; ela também nos
conscientiza para o poder que a ciência tem para explicar como a complexidade
organizada pode surgir de princípios simplórios, sem nenhuma orientação deliberada.”
52
Os questionamentos científicos praticamente cessaram após as descobertas da
biologia molecular no início do culo XX. Mas os ataques mais ferrenhos feitos a
Darwin o vieram dos cientistas opositores, e sim dos segmentos religiosos, pois as
51
PINKER. S. Como a mente funciona. P. 33.
52
DAWKINS, R. Deus, um delírio. P. 158.
55
teses de que as espécies vivas evoluíram em um processo natural de seleção negava a
espécie humana como o pináculo da obra de Deus, isolando a condição humana no
nível dos demais animais existentes na terra. Para Darwin, somos sociáveis uns com os
outros porque isso trás benefícios para a sobrevivência da espécie. E a única coisa que
nos diferencia dos demais animais é a moralidade e as faculdades mentais, que nos
possibilita rever nossos atos em uma reunião entre todos sociedade. Assim assevera
ele:
Ser moral é aquele capaz de refletir sobre seus atos passados e seus motivos,
e de aprovar uns e desaprovar outros: o feito de ser homem é dele ter estas
condições, constituídas, de todas as diferenças, esta é a maior verificada entre
os animais inferiores existentes. [...] Trato de mostrar que o sentido moral é uma
seqüela, é no primeiro momento, oriundo da natureza persistente e uma
constante nos instintos sociais. [...] E de uma extraordinária atividade de suas
faculdades mentais e da extrema rapidez com que se reproduzem os feitos
passados: por estas últimas qualidades ele difere dos animais inferiores.
53
A nossa pesquisa tem como uma das pretensões a compreensão da natureza
humana, tendo como base a teoria darwiniana, evolução por seleção natural, pela qual
o mais apto sobrevive e transmite seu patrimônio genético para as gerações seguintes.
Pinker comenta que nas primeiras comunidades de humanos prevalecia o egoísmo.
Entretanto, com o passar das gerações, nossos antepassados foram percebendo que
era mais vantajoso para sua sobrevivência colaborar com seus competidores, dando
origem a um “ethos” ao repartir a carne do animal abatido com aqueles que não
lograram êxito na caça. A sorte na caçada de um dia poderia estar ausente no outro;
entretanto, se a sobra de sua caça fosse cedido a outra pessoa que na busca anterior
não havia obtido sucesso na procura de alimento, o seu ato de partilha poderia se
reverter em beneficio próprio, pois o sucesso de seu oponente traria retribuições. Dessa
forma, o altruísmo cresceu em sofisticação e paulatinamente criou mecanismos
biológicos cerebrais, repassados para as futuras gerações.
Para muitos autores, a moral pode ser compreendida como uma necessidade da
evolução humana. Nesse sentido, no livro Fundamentos naturais da ética, Michael
53
DARWIN, C. El origen del hombre. P. 780.
56
Ruse da Universidade de Guelph (Canadá) um dos filósofos da biologia mais
proeminente de nossa época, afirma de forma categórica:
:
A ética normativa é simplesmente uma adaptação levada a cabo pela seleção
natural para fazer de nós seres sociais, podemos ver também toda a
ingenuidade que haveria em pensar que a moral (isto é, a moral normativa)
possui fundamento. A moral é antes uma ilusão coletiva dos genes para nos
tornar “altruístas”. A moralidade, enquanto tal, o tem um estatuto mais
justificador que qualquer outra adaptação, como os olhos, as mãos ou os
dentes. Trata-se como qualquer coisa que tem um valor biológico e nada
mais.
54
Na caminhada de nossa evolução, o altruísmo surgiu como uma necessidade de
sobrevivência e para tanto nossa matriz genética foi sendo aperfeiçoada ao longo
dessa marcha. Dispositivos cerebrais de cooperação foram incorporados pelo cérebro
dos indivíduos. Dessa forma, o altruísmo cresceu em sofisticação e foi um fator de
grande relevância para que a espécie humana formasse grandes coalizões de pessoas,
cujo intento maior era a sobrevivência da espécie. Esses grupos de pessoas, por
necessidade ou ao acaso, saíram do continente africano buscando novas formas de
sobrevivência em outros continentes. Essa odisséia migratória fez com que a espécie
humana povoasse todo o planeta, mesmo nas condições climáticas mais adversas.
mais de um século cientistas buscam compreender as funções cerebrais ao
pesquisar comportamentos de pessoas que sofreram acidentes lesões em
determinadas regiões de seus cérebros. Com os avanços extraordinários da
computação, o campo das ciências cognitivas obteve grandes progressos
principalmente nos anos 1990. A ressonância computadorizada funcional é um dos
instrumentos largamente utilizados pelos pesquisadores. Ela consiste num
monitoramento pelo qual eletrodos são ligados a determinados pontos na cabeça de um
indivíduo e, posteriormente, este mesmo indivíduo é estimulado a falar, escutar, sentir
determinados odores, efetuar cálculos etc. Quando estimulada, a parte cerebral onde
está sendo processada a informação se torna mais oxigenada pelo sangue, e as
imagens feitas pelo computador conseguem captar o feito em tempo real. Sobre essa
experiências, Roberto Lent explica:
54
RUSE, M; (Org.) CHANGEUX, J-P. Fundamentos naturais da ética. P. 54.
57
O procedimento consiste em ativar uma determinada função do indivíduo e
analisar se essa atividade funcional especifica ilumina uma, muitas ou todas as
regiões cerebrais. Observou-se, por exemplo, em concordância com os estudos
de pacientes com lesões, que a função do tato está representada em uma
região bem demarcada do lobo parietal, que a função auditiva é realizada por
um setor restrito do lobo temporal, que a visão é localizada no lobo occipital, e
assim por diante.
55
Segundo Lent, tais experimentos são fáceis de realizar, e sendo possível aferir e
localizar outras áreas do cérebro responsáveis por atividades mais complexas como a
linguagem ou mesmo juízos de cunho moral, basta você solicitar a um indivíduo que
faça uma reflexão sobre determinada frase que lhe é apresentada, como as que se
seguem: “as mulheres possuem menos inteligência que os homens” ou “os índios são
uma sub-raça humana”. Esses testes trazem uma forte evidência de que nosso cérebro
elabora conteúdos de informação em várias regiões, e que tais regiões trocam
informações entre si em tempos ínfimos, em um turbilhão de sinapses efetivadas por
um processo elétrico e químico, quando, muitas vezes milhões de neurônios são
acionados ao mesmo tempo para coordenar uma ação simples, como a do indivíduo
atravessar uma rua com grande movimento de veículos. Portanto, devemos usar de
muita cautela nas interpretações do cérebro, por ser ele um mosaico de regiões
extremamente complexas. Ainda devemos levar em conta a hereditariedade que cada
um de nós carrega no bojo de nossos genes, o que faz com que tenhamos reações
diferenciadas em determinadas situações extremas, quando nossa vida pode estar
sendo posta em risco, ou em questões de interesse próprio. Também não esquecendo
que somos fortemente influenciados pelo processo sócio-cultural no qual estamos
inseridos.
3.2 A CAIXA PRETA DO HUMANO
Os gregos foram os primeiros ocidentais que tentaram identificar um órgão no
corpo humano onde poderia estar localizada a emoção, logro creditado a Alcmaeon de
Cróton no século VI a.C. Ele postulava que o cérebro seria responsável pelo tato, olfato,
visão, etc. No século IV d.C., a igreja cristã incorporou os conhecimentos anatômicos do
55
LENT, R. Cem bilhões de neurônios. P. 22.
58
romano Galeno (130-200d.C). que trabalhava com a hipótese de que a mente residia
nos espaços ventriculares do cérebro. Por um longo tempo o cérebro passou
despercebido ou ignorado, até que no início da modernidade o francês René Descartes
elevou a estatura do cérebro ao dizer que a única coisa que confirmava sua existência
era o fato de ele pensar.
56
Em solo inglês, Thomas Willis (1621-1675) deu início às
primeiras anotações de anatomia do cérebro humano, ao descrever a importância do
sistema nervoso.
O cérebro não é algo fácil de estudar, pois ele se encontra enclausurado e
protegido pela calcificação óssea denominada caixa craniana. O acesso a seu interior é
muito delicado daí o cérebro ser conhecido como a caixa preta do humano. Segundo
Lent, os cérebros humanos comportam aproximadamente 85 bilhões
57
de neurônios
58
células nervosas responsáveis pelas transmissões de dados sinapses
59
. Mas estas
células transmissoras de sinais tão importantes para o cérebro só foram descobertas no
final do século XIX pelo médico espanhol Santiago Ramón Cajal (1852-1934), prêmio
Nobel de Medicina no ano de 1906. Outro fato bastante significativo verificado ainda no
século XIX foi a descoberta do médico neurologista francês Pierre Paul Broca (1824-
1888), que cuidava do paciente chamado Laborgne, o qual após ter sofrido um acidente
vascular encefálico não conseguia mais falar. Dado seu falecimento, seu cérebro foi
autopsiado e estudado por Broca, que constatou uma lesão restrita no hemisfério
esquerdo de Laborgne. Essa lesão que impossibilitava o paciente de Broca falar foi
adotada pelos manuais de neurologia como a “área de Broca”. Outro cientista muito
importante no que diz respeito ao procedimento da fala foi o alemão Carl Wernicke
56
DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. P. 43.
57
É comum dizer que o cérebro humano possui 100 Bilhões de neurônios, mas recentemente o
neurocientista Roberto Lent juntamente com a neurobióloga Suzana Herculano-Housel desenvolveram
um método original, que tornou possível contar as células de um cérebro, e a capacidade cerebral do
humano ficou estimada em 85 milhões. Disponível em http:
//globouniversidade.globo.com/globouniversidade/0,AA1607604-8744,00.html. Acesso em 28/03/2009.
58
LENT, R. Cem bilhões de neurônios. P. 14. Ele define o neurônio como sendo uma célula nervosa
que produz e transporta diminutos sinais elétricos que são verdadeiros bits de informação, capazes de
identificar tudo o que sentimos a partir do ambiente externo e do ambiente interno, e tudo o que
pensamos a partir de nossa própria consciência.
59
Ib Id. P. 98. Para Lent, sinapse é a unidade processadora de sinais do sistema nervoso. Trata-se da
estrutura microscópica, e faz o contato entre um neurônio e outra célula, mediante qual se a
transmissão de dados entre as duas. Ao serem transmitidas, as mensagens podem ser modificadas no
processo de passagem de uma célula para outra, e é justamente nisso que reside a grande flexibilidade
funcional do sistema nervoso.
59
(1848-1904), a primeira autoridade a descrever os processos de afasia de
compreensão quando alguém fala, quem recebe a mensagem parece não
compreender e também é de sua autoria o primeiro modelo científico do
processamento neurolingüístico.
60
O neurônio é uma célula especializada na recepção e propagação de sinais
elétricos e possui vários prolongamentos para difusão – out put – intitulado de axônio, e
outro para recepção in put denominado dendrito. Esses conjuntos de bilhões de
células interagem entre si mediando várias combinações, podendo chegar à cifra de
cem milhões de arranjos ao mesmo tempo. Estas unidades microscópicas são
extremamente flexíveis conexões e nisso reside a grande capacidade funcional de
produzir idéias quase que infinitas.
Existem basicamente dois tipos de sinapses: as de caráter químico e as outras
cujos processos são elétricos. As sinapses elétricas são também chamadas de junções
comunicantes, responsáveis pela sincronia operacional das células. Já as sinapses
químicas são verdadeiros chips biológicos, em decorrência da capacidade que elas
possuem para alterar dados diante de determinadas circunstâncias. Mas o cérebro não
trabalha com sinapses isoladas, pois elas seriam de pouco utilidade. A grande
plasticidade e capacidade que o cérebro possui vem da disposição dos milhares de
arranjos que cada neurônio pode realizar com outros neurônios simultaneamente.
Apesar da grande capacidade de arranjos que as sinapses proporcionam, elas por
si sós não podem explicar todos os atos cognitivos humanos, nem tampouco podem ser
responsabilizadas pelas nossas tomadas de decisões. Sobre esta complexa rede de
transmissão de dados, Pinker comenta: “A plasticidade neural não é um poder mágico
versátil do cérebro, e sim um conjunto de ferramentas que ajudam a transformar
megabytes de genoma em terabytes de cérebro, que implementam o processo
chamado aprendizado”.
61
Para ele, os neurônios carregam no seu interior uma herança
genética, que juntamente com os dados externos fornecidos pelo ambiente formam as
premissas comportamentais do humano. Confirmando Pinker, Antonio Damásio, diz:
“Existem assim setores cerebrais aonde chegam sem cessar sinais vindos do corpo
60
Ib Id. P. 635.
61
PINKER, S. Tábula Rasa. P.146.
60
propriamente dito ou dos órgãos sensoriais do corpo.”
62
Com isso Damásio entende
que o cérebro produz padrões comportamentais a partir de dados coletados no
ambiente externo do corpo através dos sentidos, bem como nos arranjos neuronais
produzidos pelo próprio cérebro com informações oriundas do mesmo corpo.
Nessa forma de acepção, exigir que todas as pessoas tenham um padrão único de
comportamento contraria a natureza humana, uma vez que os arranjos neuronais são
motivados pelas contingências do nosso cotidiano e resultam em ações diferenciadas.
Cada indivíduo age de forma diferente, que sua herança genética difere de qualquer
outra pessoa. Pinker pondera que os conceitos que balizam as normas jurídicas
ocidentais moral e ética não levam em conta o condicionante genético, ou quando
levam é em virtude de questionamentos isolados, não existindo uma normatividade
para tal.
Em Tábula Rasa, Pinker cita estudos da genética comportamental, dizendo que
gêmeos fecundados a partir de um mesmo óvulo apresentam comportamento
diferenciado dos gêmeos fraternos; e irmãos consangüíneos são diferentes dos
adotivos.
63
É isso que os neurocientistas estão tentando demonstrar: que o projeto
arquitetônico do cérebro é construído por ditames biológicos e genéticos, e que em
determinadas circunstâncias perigo eminente de vida os humanos como qualquer
outro mamífero agem de acordo como os instintos genéticos de sobrevivência, muitas
vezes não levando em conta os condicionantes cognitivos do meio cultural. As teses de
Pinker são de caráter lógico e reforçam o entendimento de que a natureza humana é de
extrema complexidade e que não se pode abordar esse tema por apenas uma
condicionante o social-cultural como se pretendeu aentão. Para ele, uma boa
ferramenta para abarcar a complexidade da natureza humana é a sociobiologia de
Osborne Wilson, que sugere um olhar para dentro de nós mesmos.
A fim de procurar uma nova moralidade baseada numa definição mais fiel do
homem, é necessário olhar para dentro, dissecar a maquinaria da mente e
traçar novamente sua história evolutiva. [...] Existem no cérebro censores e
motivadores inatos que afetam profunda e inconscientemente nossas premissas
éticas; dessas raízes, a moralidade evoluiu como instinto. Se essa visão estiver
correta, logo a Ciência poderá estar em posição de investigar a própria origem e
62
DAMÁSIO, A, R. O erro de Descartes. P. 117.
63
PINKER, S. Tábula rasa. P. 531.
61
significado dos valores humanos, dos quais decorrem todos os julgamentos
éticos e muitas das práticas políticas.
64
3.3 FISIOLOGIA CEREBRAL DA AGRESSÃO E SEUS FREIOS NATURAIS
Nas primeiras décadas do século XX, Philip Bard desenvolveu pesquisas com
gatos desconectando os hipotálamos
65
cerebrais destes animais. Esse fato provocou
grande interesse por parte dos neurocientistas no tocante aos mecanismos da raiva e
agressão. Essas experiências com gatos demonstraram que o hipotálamo é de vital
importância na compreensão dos fenômenos comportamentais do homem. Os dados
coletados foram de grande valor, pois até então se pensava que os mecanismos
responsáveis pelo comportamento poderiam estar localizados em diversas áreas do
cérebro. rios elementos das experiências observados em animais também foram
constatados nos humanos em cirurgias cerebrais, ou em decorrência de acidentes
vasculares ou tumores. São conclusões que o professor de neuroanatomia Ângelo
Machado atesta, ao dizer: “Parece, pois, fora de dúvidas que as manifestações
emocionais são, pelo menos em parte, coordenadas e intergradas em nível
hipotalâmico.”
66
na cada de 1930, em um evento de sorte, o psicólogo experimentador Heirich
Klüver e o neurocirurgião Paul Bucy desenvolviam pesquisas para melhor
conhecimento do lobo temporal do cérebro em macacos. As pesquisas eram realizadas
em um animal específico extremamente agressivo. Os cientistas retiram uma parte do
lobo temporal e a partir do ato cirúrgico o animal passou a ter um comportamento muito
diferente do apresentado antes da cirurgia; não conseguia mais identificar objetos,
tentava copular com machos ou meas de forma aleatória e tornou-se pacífico.
Posteriormente, o experimento fortuito foi confirmado em outros macacos, e ao poucos
os pesquisadores foram reduzindo a área lesionada no cérebro até conseguir localizar a
64
WILSON, E, O. Da natureza humana. P. 04 e 05.
65
MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. P. 195. O hipotálamo fica localizado no plano mediano da
base cerebral. É uma estrutura muito pequena, que segundo o professor Ângelo Machado pode pesar
apenas quatro gramas, fazendo parte de um cérebro que pesa 1.200 gramas.
66
Ib Id. P. 226.
62
região cerebral responsável pela diminuição da agressividade, feito alcançado através
da remoção cirúrgica da amígdala dos animais estudados
67
.
As pesquisas de Klüver e Bucy foram aprofundadas na década de 1960 pelo inglês
John Downer. Os experimentos foram aplicados novamente em macacos, mas desta
vez foi retirado a amígdala somente de um lado do cérebro; os dois lados do cérebro
que comandam a visão foram apartados por uma cirurgia que separava completamente
um hemisfério do outro – lobotomia. Os cientistas tapavam um dos olhos e estimulavam
os macacos. Roberto Lent comenta a experiência:
Nessas condições, os animais eram normalmente agressivos quando portavam
um tapa-olho no lado lesado, mas tornavam-se inteiramente dóceis e pacíficos
se o tapa-olho era colocado no lado não-operado! Os estímulos que
normalmente provocam comportamento agressivo nos macacos, como a
presença de seres humanos, eram eficazes quando visualizados por um dos
olhos, aquele que mantinha conexões através do tálamo do córtex com a
amígdala normal.
68
Lent conclui que emoções como o medo, podem acionar dispositivos na região
cerebral da amígdala e subseqüentemente levar o indivíduo a sentir raiva. Ele anota
que a amígdala se encontra conectada com o hipotálamo através da grísea
periaquedutal, atuando como uma coordenadora de ataques defensivos, que é uma das
características do medo. Trata-se de uma região vital para nossa sobrevivência, pois
sem ela não teríamos a noção de perigo, pondo em risco nossa sobrevivência.
Outra região que também interfere nas emoções humanas é a área cerebral
denominada de hipocampo
69
. Em 1937 James Papez demonstrou que as emoções não
são atividades exclusivas de centros cerebrais e sim de vários circuitos que trocam
informações entre si. Antes das descobertas de Papez, se pensava que o hipocampo
era responsável pelo sentido do olfato; mas após desenvolver pesquisas com macacos,
67
Ib Id. P. 229. Amígdala em grego quer dizer amêndoa. Esta estrutura cerebral possui dois centímetros
de diâmetro e está localizada no pólo temporal do hemisfério cerebral, em relação com o núcleo caudal
do cérebro. Ela faz parte do sistema límbico, exerce parcela significativa em nossos comportamentos
agressivos. A retirada do corpo amigdalóide de pessoas com graves distúrbios de comportamento
resultaram numa diminuição significativa de estados de excitação emocional e, por conseguinte, dos
comportamentos anti-sociais.
68
LENT, R. Cem bilhões de neurônios. P. 668.
69
MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. 229. O hipocampo tem como uma de suas funções a
regulação das emoções. Outra função importante exercida por essa região cerebral está relacionada com
a memória. É uma região muito complexa, interligada com outras partes do cérebro.
63
se observou que animais que haviam sofrido lesões bilaterais intervenções cirúrgicas
propositais – no hipocampo apresentavam sinais evidentes de agressividade.
Com os exemplos citados de experimentos científicos consagrados por
estudiosos do campo da neurociência, procuramos evidenciar que as áreas do cérebro
que influenciam fortemente nossas emoções são muito amplas e diversificadas. Vale
ressaltar que além dessas regiões estarem ligadas diretamente com as emoções, elas
também estão relacionadas com outros comportamentos, tais como o sexo e
alimentação. Elas também são responsáveis pelo choro do homem, pelo aumento da
salivação, por eriçar os pelos de felinos, pelo aumento do batimento cardíaco e ritmo de
respiração. São sinais que tornam mais fácil o nosso entendimento de certos distúrbios
emocionais, que podem levar os humanos a agredirem fisicamente seus congêneres
em situações de estresse. Todo esse aparato cerebral responsável pelas nossas
emoções é dado o nome de Sistema Límbico.
70
É uma estrutura muito antiga, oriunda
de uma evolução de milhões de anos, quando ainda éramos répteis de sangue frio. A
região límbica está diretamente ligada com outra região cerebral de vital importância
para nossa sobrevivência: o córtex pré-frontal, o qual funciona como um freio biológico
para nossos comportamentos agressivos. Vale ressaltar que os esquemas que
demonstram as interações cerebrais comunicação entre si são sempre circulares,
vias de mão dupla, que levam e ao mesmo tempo trazem informações coletadas no
ambiente externo (meio ambiente) e interno do cérebro (córtex, região límbica e regiões
periféricas).
3.4 A INSTABILIDADE COMPORTAMENTAL E O CÓRTEX PRÉ-FRONTAL
É ponto pacífico entre vários autores que o córtex pré-frontal é responsável por
nossos pensamentos abstratos e associação de eventos produzidos por outras regiões
cerebrais. Um dos grandes feitos do livro O cérebro em transformação, de Suzana
Herculano-Houzel, é o fato dela trazer à tona, com muita competência, como realmente
esta importante área cerebral interage com os fatores externos e internos do cérebro.
70
Ib Id, p. 227. Estreitamente ligado aos fenômenos de emoção, comportamento e controle do sistema
nervoso autônomo. Localizada na parte central interna do cérebro.
64
O córtex pré-frontal possui vasta ligação com a região límbica do rebro que
exerce papel preponderante em nossas emoções (raiva, medo, afeto), matéria
tratada no capítulo anterior. Ele é dividido em duas regiões: a primeira fica localizado na
parte frontal do cérebro (logo atrás dos nossos olhos) denominada como Córtex Órbito
Frontal (OFC); a outra região é dado o nome de Córtex Pré-Frontal Dorso-Lateral
(DLPFC) localizado logo acima do OFC (onde se inicia o couro cabeludo). Estas duas
regiões são ricas em conexões com praticamente todas regiões do córtex cerebral,
tendo como função principal a associação de eventos externos e internos que possam
gerar benefícios ou malefícios para um indivíduo. Poderíamos dizer de forma muito
resumida que o OFC e DLFC calibram nossos comportamentos.
O córtex órbito-frontal é interligado com estruturas como a amígdala e o
hipocampo, que cuidam das emoções e da memória, e portanto exerce um
papel fundamental no comportamento social, regulado pelas emoções
passadas. o córtex dorso-lateral, ou DLPFC, é interligado com as regiões do
córtex frontal e núcleos da base que controlam os movimentos, e inclui uma
região, o córtex cingulado anterior, encarregado da monitoração de erros (ou
seja, aconteceu o que você esperava que acontecesse, ou algo saiu errado?) e
da regulação dos comportamentos motivados. Por isso, o DLPFC é o grande
responsável pelas tais “funções superiores”: a memória de trabalho, o controle
de impulsos, e o raciocínio abstrato e contingente. Ou seja, boa parte daquilo
que muda na adolescência.
71
Estas duas regiões do cérebro são vitais para um relacionamento mais elaborado e
sua ausência ou, por ainda estar imaturo, dificulta o adolescente reavaliar os conflitos
sociais a que ele está sujeito nesta fase de sua existência. Suzana comenta que
conforme a idade avança os conflitos tendem a diminuir, isto porque o córtex órbito-
frontal é uma das últimas partes do cérebro a ficarem satisfatoriamente equipadas. A
vantagem de um OFC funcionando a contento traz benefício para adolescente e para
aqueles que fazem parte do seu circulo social. É nesta região do cérebro que podem
estar localizados os mecanismos que ativam a nossa percepção de alteridade. Sem
esta região talvez fosse impossível a ética, ou até mesmo a compaixão pelo próximo.
Suzana cita uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Princeton (U.S.A.)
com o auxilio de 19 voluntários que foram introduzidos em um aparelho de ressonância
magnética monitorado por computador. Os voluntários foram estimulados a participarem
71
Ib Id. P. 144.
65
de um jogo que excitava os jogadores a dividirem com os demais participantes quantias
de dinheiro obtidas através do jogo. O intento da pesquisa era revelar regiões do
cérebro que, diante de uma circunstância injusta ou justa, fosse ativada e, por
conseguinte, mapeada pelos equipamentos de ressonância magnética. Os resultados
decorrentes do monitoramento revelaram que quando um dos pesquisados achava que
estava sofrendo alguma atitude injusta não recebeu os valores que imaginava ser
correto a região do cérebro denominada como córtex cingulado anterior
72
era ativada
com mais intensidade do que o normal. Outra região ativada pelos mesmos motivos foi
o córtex da insula superior
73
; conforme aumentava a percepção de injustiça sofrida pelo
jogador, mais ativada ficava a região do córtex da insula do seu cérebro. A mesma
pesquisa também revelou que a região do DLPFC comentada anteriormente (córtex
pré-frontal dorso-lateral) foi a mais ativada quando os pesquisados se sentiam
injustiçados na partilha dos ganhos derivados do jogo proposto pela pesquisa.
A intenção desta pesquisa é dizer o quanto estas regiões são importantes para o
complexo jogo das relações sociais a que estamos submetidos constantemente. Esses
módulos cerebrais são imprescindíveis para que tenhamos uma percepção ética e
altruística, entretanto, ficam estáveis e com um funcionamento satisfatório, por volta
dos 30 anos de idade, sendo que o quadro tende a se estabilizar quando atingimos a
idade de 40 anos.
74
Levando as teses da neurobióloga Suzana Herculano para uma
linguagem computacional, poderíamos dizer que o cérebro fisiológico é o hardware,
pronto desde a nossa infância. as ativações neuronais entre as várias regiões do
cérebro seriam os softwares, que no decorrer da adolescência vai sendo
constantemente atualizado por novos programas, para que os adolescentes, enquanto
indivíduos, possam resolver os intricados problemas que a nova ordem social do mundo
adulto impõe a eles.
Muitos comportamentos humanos que antes só ficavam no campo das conjecturas,
paulatinamente vão sendo clareados pelas luzes da neurociência. Com o auxílio de
72
MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. P. 49. O cíngulo constitui uma formação contínua que
circunda as estruturas inter-himisféricas e que muitos consideram como um lobo independente, lobo
límbico, parte importante do sistema límbico, relacionado com o comportamento emocional e o controle
do sistema nervoso autônomo.
73
Ib Id. P. 45. Afastando os lábios do sulco lateral evidencia-se ampla fossa no fundo do qual está
situada a ínsula. Ela possui forma cônica e apresenta sulcos e giros.
74
HERCULANO-HOUZEL, S. O cérebro em transformação. P. 136.
66
uma de suas lentes – neurobiologia – a nossa pesquisa pode constatar o quanto
importante são as regiões do cérebro OFC e DLPFC. o estruturas indispensáveis
para que vivamos em relativa paz social, e que nos adolescentes vão sendo atualizadas
a todo tempo. Lembrando que recentemente o seu cérebro adolescente estava
equipado para resolver problemas inerentes à sua infância, que em nada lembram o
intrincado tabuleiro que norteia os jogos sociais adultos. Os adolescentes são retirados
do conforto de ser criança pelos hormônios, que avisam o cérebro daquele individuo
que está na hora de ser adulto. O agora adolescente vai ser jogado em um tabuleiro
sem que seus principais acessórios OFC e DLPFC estejam totalmente prontos e
calibrados para as adversidades que o complicado jogo social exige de seus
participantes.
3.5 A SOCIOPATIA ADQUIRIDA
A sociopatia é um distúrbio mental em que o indivíduo apresenta uma
personalidade anti-social. Ela deriva de uma lesão do córtex órbito-frontal. As pessoas
acometidas desta doença apresentam quadros de desatino, são emotivas e
irresponsáveis, apresentando um comportamento inapropriado para o meio social no
qual ela está inserida, não conseguem dimensionar as conseqüências de seus atos. As
pessoas que sofrem desta doença são incapazes de sentirem culpa ou ter compaixão
com suas vítimas. Segundo Suzana, os diagnósticos padrões adotados pela psiquiatria
revelam que 6% dos adolescentes de sexo masculino e 1% das adolescentes do sexo
feminino podem ser considerados sociopatas. Deste universo de sociopatas
adolescentes, 30% dos meninos e 15% das meninas podem apresentar condutas que
infrinjam as normas sociais estabelecidas por um grupo. Suzana diz que “a prevalência
do comportamento anti-social aumenta quase dez vezes durante a adolescência e,
dependendo da forma de análise, é muito mais comum do que se suspeita.”
75
Outra pesquisa muito interessante citada por Suzana, e que corrobora os
entendimentos de que o período da adolescência é marcado por condutas anti-sociais,
está em curso na Nova Zelândia, mais precisamente na cidade de Dunedin. A pesquisa
75
Ib Id. P.186.
67
abrange um universo de 1.037 pessoas, das mais variadas coloração de pele, etnia e
condição financeira. Há mais de 30 anos elas estão sendo monitoradas de forma virtual,
sendo que grandes parcelas dos jovens masculino ou feminino monitorados
cometeram alguma conduta que contrariava as normas sociais e leis vigentes ao
completarem a idade de 15 anos. Baseada em dados publicados pela Universidade de
Cambridge, da Inglaterra, Suzana comenta a pesquisa:
Mais impressionante ainda, segundo esse estudo, é que ao chegarem aos 21
anos, virtualmente todos os jovens acompanhados declaravam ter praticado
algum tipo de delinqüência ao menos uma vez durante a adolescência. Nesta
idade, quase 60% dos jovens haviam praticado roubo, 75% tinham se
envolvido em algum ato violento, e 90% tinham tido ao menos uma vez algum
problema com drogas. Aos 18 anos,
somente 9% dos rapazes e 14% das
moças nunca tinham dado demonstração de delinqüência.
76
Contudo, a mesma pesquisa realizada em Dunedin nos trás um relativo conforto ao
concluir que a maioria dos jovens que cometeram atitudes anti-sociais no seu período
de adolescência tendem, no futuro, a serem pessoas com comportamento estabelecido
dentro de um padrão de normalidade e perfeitamente adaptáveis ao convívio social.
Neste sentido, no ano de 1993, uma das diretoras do estudo Terrie Moffitt, classificou
os comportamentos desajustados em duas classes: a primeira seria composta de um
diminuto número de indivíduos que apresentam comportamentos anti-sociais desde
quando eram crianças, e mantiveram o mesmo comportamento na fase adulta, em 6%
dos homens e 1% das mulheres; a segunda a escala de indivíduos apresentou-se
maior, e aqueles que apresentaram comportamento anti-sociais somente no período da
adolescência cresceu substancialmente, que se traduziram em 30% dos homens e 15%
das mulheres.
77
Com base nestes resultados, evidencia-se que os comportamentos anti-sociais,
muito comuns no período transitórios da adolescência, não tende a serem repetidos
quando as áreas cerebrais responsáveis pela sociabilidade atingem um certo padrão de
amadurecimento. Na fase adulta os freios biológicos do córtex pré-frontal dão conta
76
Ib Id. P.187.
77
Moffitt T.E. Adolescence-limited and life-course-persistent antisocial behavior: a developmental
taxonomy. Psychol Rev 100:674-701, 1993. Apud HERCULANO-HOUZEL, S-H. O cérebro em
transformação. P. 187.
68
de gerenciar satisfatoriamente as contingências que o alto grau de interação impõe aos
debutantes do mundo adulto.
É claro que não podemos ser ingênuos em supor que somente o fator biológico
seja o causador dos desajustes de condutas nos meios sociais. O meio ambiente
exerce substancial parcela na conduta dos indivíduos. O estresse é um fator de grande
influência na desestabilização dos hormônios que regulam o bom funcionamento do
cérebro. Crianças e adolescentes expostos a ambientes urbanos com autos índices de
violência podem sofrer traumas em regiões do cérebro OFC e DLPFC e podem
desenvolver nelas condutas anti-sociais na idade adulta. Ambientes contínuos de
conflitos guerra civil, guerra entre nações, conflito entre grupos rivais podem dar
origem nos indivíduos espectadores, doenças para as quais ainda não se conhece a
cura, como por exemplo, a sociopatia. Os esclarecimentos feitos por Suzana vão de
encontro às aspirações de Steven Pinker, que busca incessantemente denunciar a
agressão humanaviolência dizendo que não se pode pretender resolver esta chaga
sem que antes tenhamos um perfeito entendimento de como funciona o cérebro
humano.
78
3.6 O FATOR HORMONAL NO COMPORTAMENTO HUMANO
Os homens são em média de 20 a 40 vezes mais violentos que as mulheres
79
, e o
grande fator para essa discrepância comportamental entre gêneros podem ser os
hormônios masculinos, principalmente a testosterona. O médico neuroanatomista
Ângelo Machado comenta que os hormônios o substâncias químicas e quando
introduzidos artificialmente em determinadas áreas do cérebro pode desencadear uma
mudança comportamental no indivíduo. Cientistas verificaram que a introdução de
hormônios sexuais masculinos ou femininos na região do hipotálamo faz com que estes
indivíduos apresentem comportamentos próprios de macho e fêmea, contrário do que
apresentavam anteriormente. Constatou-se que a introdução de testosterona no
hipotálamo de ratos modificava o comportamento sexual destes animais, que tentavam
78
PINKER, S. Tábula rasa. P. 431.
79
Ib Id. P 427.
69
copular com machos ou fêmeas indistintamente.
80
Taís experiências demonstram que
existem circuitos cerebrais próprios para cada sexo, cujo funcionamento depende da
presença do hormônio adequado. Também foi constado que a introdução de
testosterona em ratas recém nascidas faz com que elas apresentem comportamentos
masculinizados.
Os níveis de testosterona variam de indivíduo para indivíduo, como também varia
no mesmo indivíduo durante suas atividades cotidianas, em um relacionamento direto
com o seu apetite sexual, confiabilidade em si mesmo e impulsos de dominação do
ambiente. Pinker comenta que determinados marginais que cometem crimes atrozes,
apresentam níveis de hormônio testosterona maiores que marginais não violentos; e
que até mesmo advogados que participam de júris populares apresentam níveis
hormonais maiores que aqueles que desempenham serviços burocráticos.
81
Mas o
próprio Pinker faz ressalvas que a matéria requer muito cuidado na análise dos dados
coletados em pesquisas, pois segundo ele, os níveis de testosterona no sangue não
possuem grande significância. O que realmente importa no comportamento é
capacidade de recepção do hormônio por parte das moléculas. As variantes
psicológicas que acontecem durante o seu dia podem afetar diretamente os seus níveis
de testosterona.
82
Pessoas que, por motivo de saúde, receberam injeções do hormônio
testosterona demonstram uma mudança comportamental bastante significativa, como
alterações na libido e sensação de segurança ao falar em público. Os níveis hormonais
apresentam mudanças de comportamento nos dois gêneros: mulheres que possuem
níveis de testosterona elevados cometem adultérios com mais freqüência e o mais
retraídas, e fazem mais pressão com as mãos quando cumprimentam pessoas.
Um hormônio vital para o bom funcionamento das funções cognitivas do cérebro é
serotonina, sendo que foram identificados mais de 14 tipos diferenciados, o padrão
que interessa nessa pesquisa é o denominado de serotonina-2. Esses hormônios
podem ser encontrados em altas concentrações no córtex pré-frontal e na amígdala,
regiões do rebro reguladoras de nossos comportamentos. O professor de neurologia
Antonio Damásio comenta a importância da serotonina:
80
MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. P. 231.
81
PINKER, S. Tábula rasa. P. 470.
82
Ib Id. P. 429, 445, 469 e 471.
70
A serotonina é um dos principais neurotransmissores, substâncias cujas ações
contribuem para virtualmente todos os aspectos da cognição e do
comportamento. [...] Em animais laboratoriais, quando se bloqueia a liberação
de serotonina nos neurônios que a originam, uma das conseqüências é o
comportamento impulsivo e agressivo. De um modo geral, o aumento do
funcionamento da serotonina reduz agressão e favorece o comportamento
social.
83
A atuação da serotonina depende do contexto químico no qual ela atua – sinapse –
funcionando muitas vezes como um agente desinibidor nas pessoas, tornando-as mais
seguras em um ambiente social, fazendo com que elas se sintam mais fortes e com
mais segurança nas suas ações. A falta deste hormônio no cérebro causa grandes
transtornos e perigo para as pessoas, apresentando sintomas de baixa-estima,
depressão, tendências ao suicídio e agressão. Os neurotransmissores como a
serotonina fazem parte de uma cadeia genética que atua diretamente nos processos
comportamentais do pensamento e da emoção, e podem influenciar o cotidiano das
pessoas.
Quando as pessoas são forçadas pelo meio social a habitar em áreas de poucos
recursos e densidade demográfica muito grande, a criminalidade pode surgir como uma
adaptação ao meio, pois não tendo condições para conseguir recursos de forma
honesta, as pessoas podem buscar os meios garantidores de sua sobrevivência de
forma ilícita. Em seu livro O animal moral, Robert Wright comenta: “Um estudo mais
recente revelou que as pessoas com baixos níveis de serotonina têm maior
probabilidade de cometer crimes impulsivos.”
84
Assim, a desonestidade poderia ser
uma resposta de adaptação ao meio imputado ao indivíduo nele inserido. Os dados
sentenciados por Wright nos levam a postular que os níveis de serotonina associados
com o ambiente podem influenciar o comportamento e as emoções humanas.
Positivamente, quando os veis estão normais ou negativamente quando os veis
hormonais se encontram muito baixo.
Na ótica de Pinker, a pobreza não traz apenas um sentimento de inferioridade
psicológica. Em condições de extrema pobreza não é o status das pessoas que fica
83
DAMÁSIO, A, R. O erro de Descartes. P. 102.
84
WRIGHT, R. O animal moral. P. 217.
71
doente. As comunidades pobres possuem as piores condições de saúde e uma auto-
estima baixa. Pinker cita pesquisas feitas pelo médico Richard Wilkinson (USA) que
desenvolveu estudos em áreas pobres e constatou que pessoas inseridas em nichos
sociais, nas quais a luta e a fuga são uma constante, desenvolvem patologias típicas
destes ambientes; os ferimentos tecidos lesionados são difíceis de cicatrizar, pois a
imunidade biológica causada pela baixa auto-estima cai a níveis críticos. Os índices de
criminalidade em comunidades carentes onde as disparidades de riquezas são maiores,
os comportamentos anti-sociais tende a crescer. Segundo Wilkinson, a condição de
pobreza constante torna os homens obcecados pela busca de sucesso. Em condições
de pobreza e degradação os assassinatos são cometidos pelos motivos mais fúteis que
se possa imaginar.
85
3.7 DISPOSITIVOS MENTAIS E A DERIVA COMPORTAMENTAL
Se formos produtos de uma evolução, então a mente também o é. Poderíamos
argumentar que os mesmos dispositivos mentais que estão no homem podem
perfeitamente ser encontrados em alguns primatas. Lembrando que os chipanzés
possuem 99% de similitude com o DNA humano. Então, como explicar que humanos e
macacos possuem cérebros tão diferentes no que tange ao comportamento? Para
Pinker, somos símios nus e falantes, mas o que nos diferencia dos macacos é a nossa
mente. Somos possuidores de um cérebro muito grande para os padrões da natureza.
O chimpanzé possui um cérebro com 1/3 de massa encefálica, quando comparado ao
humano. O cérebro extragrande do Homo sapiens foi uma adaptação grandiosa em
termos evolutivos. Graças a essa adaptação é que se tornou possível o homem
dominar todo o meio ambiente terrestre e recentemente levar sondas robôs a lugares
longínquos como o planeta Marte. Os chimpanzés, por sua vez, convivem em
ambientes delimitados em florestas úmidas da África, muito deles à beira da extinção,
vivendo da mesma forma em que viviam há milhões de anos.
Essa diferença de apenas 1% entre o DNA humano e o dos macacos é
perfeitamente possível quando aplicamos a teoria evolucionista. Segundo o
85
PINKER, S. Tábula rasa. P. 415.
72
primatologísta holandês Frans de Waal, o que separa primatas chimpanzés de
humanos é o fato de eles estarem duzentas e cinqüenta mil gerações atrasadas em
relação aos primatas humanos.
86
A evolução é um processo lento que avança de forma
gradual, mas não pode ter muito conservadorismo. Caso contrário, seriamos répteis,
dos quais herdamos o nosso cérebro primário, responsável pelas funções autônomas
do corpo batimento cardíaco, respiração, digestão, etc. Na percepção de Pinker, a
evolução segue uma escala de tempo geológica, pela qual uma baleia teria evoluído de
seu ancestral em cem milhões de anos, do mesmo ancestral de onde também derivou
animais da espécie suína e bovina.
Os nossos genes não são guarda-costas particulares, que velam pela nossa
sobrevivência o tempo todo. A evolução de nossos cérebros de origem darwiniana não
pode ser aplicada com o mesmo critério em nossos comportamentos. Muitas de nossas
ações são estimuladas por fatores ambientais e culturais. A evolução humana é um
processo que segue seu curso milhões de anos, e na sua quase totalidade
existencial, os humanos viveram de forma muito simples, caçando ou coletando
alimentos. Seu cérebro não foi constituído para lidar com coisas tão complexas.
Instituições sociais como justiça, escola, polícia, sistema bancário, bolsa de valores,
poder legislativo e governo, o faziam parte do cotidiano do homem nômade de 30 mil
anos atrás. Mas o cérebro humano é dotado de uma grande plasticidade. Algumas pré-
disposições genéticas como a de cometermos adultério verificada em maior escala no
gênero masculino, pode ser repelida por outras disposições como aquele que deseja ter
uma parceira de confiança para levar a prole adiante. O mesmo pode ser aplicado no
comportamento agressivo. Quem já não pensou em matar alguém ou ao menos agredir,
quando de alguma forma se sentiu ultrajado? Mas em contrapartida, nosso cérebro
avalia córtex pré-frontal que nosso oponente pode revidar e colocar nossa vida em
risco, além do regramento jurídico leis positivadas que pode nos penalizar pelo
intento. Porém, diante de circunstâncias extremadas, nossos cérebros podem disparar
estímulos de agressividade, e pessoas consideradas pacatas cometem atos de extrema
violência contra seus provocadores. Desse modo, não temos um regramento específico
ditado por nosso código genético. Nossa constituição genética cerebral é equipada com
86
WAAL, F. Eu, primata. P. 122.
73
mecanismos de defesa e ataque, que em determinadas circunstâncias podem ser
acionados, e os resultados podem ser imprevisíveis e catastróficos. Em suma,
poderíamos dizer que nossas atitudes não são determinadas somente pelo fator
genético. Nossas ações o um intrincado composto de fatores internos biológicos e
genéticos – com as condicionantes externas – sociais. Um melhor entendimento daquilo
que designamos por natureza humana requer o uso de várias lentes do conhecimento,
pois diante da complexidade desta superestrutura que é o cérebro fica praticamente
impossível definir o comportamento por uma só disciplina.
Os cérebros de todos os animais são altamente especializados e, por extensão, o
restante do corpo. Os rebros dos mamíferos foram desenvolvidos de acordo com a
necessidade de cada indivíduo. Dessa forma, não é correto comparar o grau de
inteligência de uma espécie com outra, muito menos pelo quilate de inteligência que os
humanos adquiriram ao longo da evolução. Não existe uma baliza para determinar a
inteligência de cada animal. Cada espécie desenvolveu mecanismos cerebrais de
astúcia para resolver suas dificuldades específicas. A evolução desenvolveu nossa
mente para equacionar problemas nossos, que diferem de outras espécies, como
exemplo os primatas chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos.
No entendimento de Pinker, a maioria dos animais teve a construção de seus
cérebros e corpos seguindo um plano básico e comum a todos. Muitos dos elementos
químicos constitutivos, átomos, moléculas, tecidos, órgãos e funcionamento em geral,
são comuns a várias espécies. Mas, numa investigação mais apurada, à luz de
microscópios, as querelas aparecem. As diferenças entre os demais mamíferos e os
primatas são encontradas no campo da visão e nas interligações realizadas pelo
cérebro do que vemos com áreas do lobo frontal, região onde as decisões são
elaboradas. Qualquer que seja o talento desenvolvido por uma espécie, tem reflexo
imediato na constituição de seu cérebro que muitas vezes pode ser observada até
mesmo sem o auxilio de lentes especiais. Nos macacos, a visão ocupa quase a metade
da região cerebral, que lhes permite uma série de percepções: cores, distâncias,
movimentos, enfim, funções que são monitoradas pelo campo visual.
As teses derivadas da psicologia evolucionista de Pinker nos passa a percepção de
que não existem animais com estratégias mais sofisticadas do que outros. Cada
74
espécie desenvolveu seu aparato cognitivo para resolver problemas inerentes às suas
necessidades. Um dos cientistas mais influentes do neodarwinismo, Richard Dawkins
possui entendimentos que caminham neste mesmo sentido. Do seu ponto de vista, os
animais desenvolvem partes de seus cérebros para uma melhor adaptação e
sobrevivência. Para Dawkins, um bom exemplo é o dos morcegos, que desenvolveram
um design cerebral para atender suas necessidades de vôos noturnos em busca de
alimentos. E de forma contagiante ele diz:
Os pioneiros do sonar e do radar o sabiam, não sabiam, mas hoje todo
mundo sabe que os morcegos ou melhor, a seleção natural agindo sobre os
morcegos haviam desenvolvido esse sistema dezenas de milhões de anos, e
que seu radar é capaz de proezas de detecção e navegação que deixariam um
engenheiro boquiaberto. [...] Esses morcegos são como aviões de espionagem
em miniaturas, repletos de instrumentos sofisticados. Seus cérebros são
pacotes de minúsculas engenhocas eletrônicas finamente calibradas,
programadas com o intricado software necessário para decodificar uma
infinidade de ecos em tempo real.
87
O cérebro humano também sofreu grandes mutações no decorrer da caminhada
evolutiva. Da simplicidade em que nossos antepassados viviam nas savanas africanas,
o seu design foi se modificando de forma vagarosa, conforme as necessidades de
adaptação foram surgindo. O fator cognitivo foi imperioso no nosso desenvolvimento,
pois conforme a vida ancestral foi ganhando complexidade, o rebro seguiu o mesmo
caminho, tanto em crescimento, como em especialização de áreas responsáveis pela
sociabilidade córtex pré-frontal. Por isso, o nosso aparelho cerebral não segue os
padrões de outros animais encontrados na natureza, como podemos perceber nas
palavras de Pinker: “nosso cérebro é três vezes grande demais para um macaco
genérico que tivesse o corpo do tamanho do nosso”.
88
No vestígio desse raciocínio, se
seguíssemos o crescimento do corpo de um macaco em proporção ao tamanho de seu
cérebro, teríamos que pesar quase meia tonelada e ter a altura em torno de três metros.
Sem dúvidas, os humanos possuem o maior cérebro entre todos os animais em uma
escala de proporção, decorrência da evolução que nos adaptou com essa
extraordinária quina de resolver problemas, que é o sistema nervoso central do
87
DAWKINS, R. O relojoeiro cego. P. 45 e 47.
88
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 198.
75
homem. Portanto, o grau de inteligência de cada espécie é diretamente correspondente
às necessidades de sua sobrevivência, cada espécie possui um grau de inteligência
que a manutenção de sua espécie exige.
76
4 A NEUROFISIOLOGIA DO COMPORTAMENTO HUMANO
A ciência comportamental não é para covardes. Os pesquisadores podem
acordar um belo dia e descobrir que são figuras públicas desprezadas por
causa de alguma área que decidiram estudar ou de alguns dados que
acabaram encontrando. Descobertas sobre certos temas creches,
comportamento sexual, memórias de infância, tratamento de toxicomania –
podem atrair difamação, hostilidade, intervenção de políticos e ataques
físicos.
89
Com freqüência a opinião pública brasileira é abalada por crimes de assassinatos
hediondos cometidos por jovens adolescentes de classes abastadas e de bom nível de
instrução.
90
Chocada, a sociedade se pergunta, o que levaria jovens de bom nível sócio-
cultural a cometerem delitos de tamanha barbárie? Fatos como estes podem ser
evitados?
É comum no Brasil, que diante de qualquer fato negativo que cause grande
comoção propor alterações nas leis ou até mesmo a criação de outras normas jurídicas
para tentar resolver o problema evidenciado. Neste caso específico envolvendo
adolescentes, alguns políticos saem proclamando que a solução pode ser resolvida
com a redução da maioridade penal. Em nosso país a Constituição Federal define que
uma pessoa é considerada adulta a partir dos 18 anos. As penas para aqueles que
cometem crimes na faixa etária que vai dos 12 aos 18 anos são consideradas medidas
sócio educativas, que não devem ultrapassar três anos de internamento. Para alguns
políticos ou até mesmo operadores do direito, o problema poderia ser reduzido
drasticamente se rebaixássemos a maioridade penal para 16 anos, ou seja, uma
pessoa passaria ser considerada adulta ao completar 16 anos.
Em contrapartida, encontramos aqueles que defendem a manutenção do atual
parâmetro de 18 anos para dizer quando uma pessoa pode ser considerada totalmente
capaz de responder por seus atos. Porém, os argumentos para sustentar a manutenção
89
PINKER, S. Tábula rasa. 173.
90
Como aquele em que cinco jovens de classe média alta espancaram a empregada doméstica Sirley
Dias de Carvalho Pinto enquanto aguardava um transporte coletivo de ônibus na cidade do Rio de
Janeiro, quase a levando a morte, fato ocorrido em 24/06/2007 no Rio de Janeiro; ou dos jovens e
adolescentes que atearam fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos que dormia num ponto de
parada de ônibus, o qual acabou falecendo, fato acontecido em 20/04/1997 em Brasília; ou ainda, o
assassinato brutal de Manfred e Marisa von Richthofen cometido por sua filha Suzane Richthofen
juntamente com o namorado, ocorrido em 31/10/2002 na cidade de São Paulo.
77
via de regra o frágeis, tais como: a Constituição não pode ser mudada, pois o artigo
que define a maioridade de 18 anos é considerado por muitos juristas como cláusula
pétrea e não pode ser modificada; ou então, que a desigualdade social em nosso país é
muito grande, e expressiva parte de nossos adolescentes não possui acesso a uma boa
educação, com isso, são induzidos a práticas criminosas.
Podemos perceber que os lados envolvidos na questão de maioridade penal,
sistematicamente fazem uso de argumentos que apenas contemplam o aspecto cultural
e social. No entanto, esse tema deveria ser tratado através de lentes interdisciplinares
que a neurociência contempla psicologia, medicina, biologia, genética
comportamental, ciências cognitivas dentre outras pois o problema não é tão simples
como se imagina. O período de vida considerado como da adolescência é um tempo de
transformação e maturação dos corpos dos jovens, em que o cérebro passa por um
período de ebulição causado por hormônios que dizem a ele que já está na hora do
corpo deixar de ser criança para adentrar na vida adulta.
Steven Pinker denuncia que o trato da criança e do adolescente sempre foi feito por
uma abordagem de cunho cultural. Para ele, parcela significativa de nossos
comportamentos é gerada por fatores biológicos e genéticos. Tentando alargar essa
compreensão, a nossa pesquisa vai procurar elementos na neurobiologia, fundamentos
que possam nos fazer entender porque adolescentes via de regra apresentam
comportamentos anti-sociais, causando grandes transtorno para seus familiares e
muitas vezes cometendo crimes atrozes que chocam e causam grande comoção em
nossas sociedades. Para levar a cabo o intento, utilizaremos teses e pesquisas
desenvolvidas pela neurobióloga Suzana Herculano-Houzel, professora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de vários livros, dentre eles O Cérebro
em transformação.
4.1 AVESSOS A REGRAMENTO SOCIAL
De forma clara, Suzana Herculano faz uma abordagem pragmática do adolescente
através das lentes da neurobiologia. Nos faz relembrar que os comportamentos
praticados pelos jovens que hoje abominamos o foram praticados por nós de alguma
78
forma quando adolescentes. Ela também chama a atenção para o problema hormonal
que comumente é entendido como o grande causador de distúrbios comportamentais
nos jovens. Suzana desmistifica essa compreensão fazendo uso do instrumental
fornecido pelas neurociências, que entende que os hormônios não o os principais
atores no desajuste de comportamento. Para ela, os hormônios são ferramentas que o
cérebro se utiliza para estimular as mudanças em nossos corpos. Os hormônios
disparam alguns mecanismos em nossos cérebros quando é chegado o momento de
deixarmos de ser crianças e iniciar a caminhada rumo ao mundo adulto. É uma
mudança muito abrupta nos sensores cognitivos, pois o aparato cerebral de uma
criança se encontrava estruturado para resolver problemas do seu cotidiano, tais como
a escolha de um brinquedo, ou desejo por uma guloseima. De forma muito resumida,
poderíamos dizer que o cérebro de uma criança age de modo bem simplificado e de
certa forma até ingênuo. Muitas vezes, gestos ou frases proferidas por uma criança nos
deixa (de sobremaneira) encantados pela ingenuidade e simplicidade denotada.
Para Suzana, a entrada no mundo adulto é percebido facilmente pelas mudanças
nos corpos dos jovens: crescimento de seios nas meninas, surgimento de pelos nos
rostos dos meninos, dentre outros aspectos de cil percepção. Também se percebe
que eles crescem de forma muito rápida em um curto espaço de tempo. Por sua vez, o
cérebro tem certa dificuldade em ajustar e calibrar gestos simples como pegar um copo
de suco na hora da refeição. Um gesto cotidiano como acabamos de elencar pode se
tornar em um pequeno acidente, pois o cérebro ainda não absorveu as novas
dimensões de alguns membros, o que pode levar o jovem a derrubar o copo de suco de
uva na melhor toalha de linho branco de sua mãe. Em virtude dessas novas dimensões
corporais, se deduz porque os jovens são tão desajeitados e atrapalhados nessa
transição.
Os transtornos e acidentes domésticos causados pelas novas dimensões de seu
corpo são fáceis de se contornar quando comparados com as desordens causadas no
comportamento social. Buscar algo inédito, coisas desafiadoras, aventuras de risco, são
marcas registradas do comportamento dos adolescentes, pois fazem parte do sistema
de recompensa do cérebro que é ativado por regiões cerebrais que estimulam o prazer
79
como forma de prêmio
91
. Na compreensão de Suzana, estes comportamentos de certa
forma são benéficos, pois estimulam o jovem a buscar saídas para as novas demandas
sociais, e ao poucos fazem o jovem abandonar o comportamento de criança. O lado
ruim é que o comportamento estimulado pelo sistema de recompensa é muito arriscado
e pode deixar seqüelas que vão acompanhar o jovem na sua vida de adulto, tais como:
vícios por drogas (lícitas ou ilícitas), lesões corporais provocadas por acidentes,
doenças venéreas, ou uma gravidez.
Se não são os hormônios os grandes responsáveis pelas atitudes intempestivas
dos adolescentes, então o que seria? Para Suzana, as atitudes excessivas dos jovens
são muito parecidas com os sintomas apresentados por adultos que tiveram alguma
lesão na região do cérebro denominada de córtex pré-frontal, o que para ela demonstra
que esta parte do cérebro no adolescente ainda não está totalmente estruturada.
Devemos entender que a estruturação não é dizer que o córtex pré-frontal esta ausente
no cérebro de uma criança ou danificado. Para Suzana esta região do cérebro esta
presente nos primeiros meses de nossas existências. Dito em uma linguagem
computacional, o que estaria faltando no cérebro de um adolescente seria programas
específicos, para ele poder lidar com as contingências do mundo adulto. Sobre a
existência e funcionalidade do cérebro de uma criança, Suzana comenta:
O córtex pré-frontal é funcional na infância, sim: exames de imageamento
funcional, que medem o metabolismo da várias regiões do cérebro, constatam
atividades, aliás, bastante grande, no córtex pré-frontal infantil, ainda nos
primeiros meses de vida ela seja de fato pouco intensa. A fonte de diferenças
entre o comportamento infantil e o adulto, no que concerne ao córtex pré-
frontal, está na reorganização da sua arquitetura e conectividade ao longo da
adolescência. Ou seja: na qualidade do funcionamento do córtex pré-frontal.
92
Estas explicações nos fazem perceber que determinadas regiões do cérebro do
adolescente ainda não se encontram totalmente formatadas para resolver os problemas
que a inserção no mundo adulto exige. A maioria de suas experiências cognitivas ainda
remonta a fase infantil, e somente aos poucos seu cérebro vai adquirindo novas
conecções para poder resolver os problemas que a fase adulta exige.
91
HERCULANO-HOUZEL, S. O cérebro em transformação. P. 90.
92
Ib Id. P. 133 e 134.
80
No entanto, devemos tomar algumas cautelas quando associamos comportamento
humano com biologia, pois parcelas significativas dos profissionais de algumas áreas
do conhecimento não acompanharam o desenvolvimento das neurociências. Por outro
lado, essas pessoas, as quais Steven Pinker gosta de chamar de analfabetos
científicos, reagem de forma brutal quando associamos comportamento social com
neurobiologia. Recentemente o neurocientista Jaderson da Costa (Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e o geneticista Renato Zamora Flores
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) arquitetaram um projeto de pesquisa cujo
foco principal era verificar aspectos neurobiológicos, psicológicos e sociais do
comportamento violento. Para tanto, a pesquisa tinha como foco de estudo um grupo de
adolescentes infratores da Fase – antiga Febem do Rio Grande do Sul. A notícia
estourou como uma bomba nos meios intelectuais e acadêmicos. Rapidamente foi
mobilizada uma nota repudiando o projeto de pesquisa que tinha como objeto principal
verificar a possibilidade de o comportamento dos internos estarem associados com
fatores neurobiológicos. A nota de repúdio com mais de cem assinaturas foi firmada por
psicólogos, advogados, antropólogos e educadores, matéria publicada no Jornal Folha
de São Paulo em 28 de janeiro de 2008.
93
A nota traz como título Estudos sobre a
“base biológica para a violência em menores infratores”: novas scaras para velhas
práticas de extermínio e exclusão. Vejamos um dos parágrafos da referida nota:
Privilegiar aspectos biológicos para a compreensão dos atos inflacionais dos
adolescentes em detrimento de análises que levem em conta os jogos de
poder-saber que se constituem na complexa realidade brasileira e que
provocam tais fenômenos, é ratificar sob o agasalho da ciência que os
adolescentes são o princípio, o meio e o fim do problema, identificando-os seja
como “inimigo interno” seja como “perigo biológico”, desconhecendo toda a luta
pelos direitos das crianças e dos adolescentes, que culminou na aprovação da
legislação em vigor – o Estatuto da Criança e do Adolescente.
94
É fácil perceber o temor de alguns pesquisadores e intelectuais quando o tema
associa comportamento e biologia em busca de esclarecer comportamentos anti-
sociais. Ao ler a nota, fica evidente que as premissas da tábula de John Locke ainda
prevalecem nos meios educacionais, ela é propagada como uma ideologia, e procurar
93
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2201200810.htm.
94
Ver em http://www.ciespi.org.br/portugues/noticias_006.htm.
81
novos entendimentos do comportamento humano que não pressupõem a mente como
uma folha em branco é buscar aviltamento contra os ideólogos de plantão.
4.2 A INSTABILIDADE COMPORTAMENTAL NA ADOLESCÊNCIA
Iniciamos este capítulo mencionando ocorrências de violência cometidas por jovens
adolescentes assassinatos. Tivemos o cuidado de citar exemplos em que os autores
das agressões fossem oriundos de um ambiente favorável para suas realizações
humanas. Os exemplos têm a clara intenção de desmistificar que a agressão não é
somente um produto gerado por fatores sociais, como a desigualdade de classe, e que,
portanto, somente os indivíduos mais carentes seriam capazes de cometerem tais
atrocidades. Também tivemos a intenção demonstrar que nos episódios não foram
utilizadas armas de fogo ou até mesmo objeto cortantes. No caso de Brasília a morte do
índio patafoi causada por queimaduras provocadas pela combustão de álcool; no
exemplo de São Paulo, Suzane e seu namorado assassinaram seus pais fazendo uso
de bastões de madeira; no crime ocorrido no Rio de Janeiro, as agressões cometidas
pelos jovens foram somente produzidas pelos próprios membros superiores e inferiores
(mãos e pés). Nos três casos citados os instrumentos utilizados para assassinar e
agredir vítimas, podem ser encontradas na maioria dos lares brasileiros. São os
mesmos instrumentos os, pés, fogo, pedaços de madeira que o bom selvagem
de Rousseau utilizava para sua sobrevivência em um tempo imaginário desprovido de
qualquer violência.
Para Steven Pinker as políticas públicas de combate à violência não surtem os
efeitos desejados por não levaram em conta os dispositivos biológicos de agressão que
cada um carrega dentro de nós. Devemos nos precaver, pois o tema em tela é
espinhoso, e aqueles que se aventuram em pesquisar e propagar que a violência pode
estar associada com fatores biológicos podem sofrer descrédito e constrangimentos de
toda ordem, pelos mais variados seguimentos sociais. Ele nega que a pobreza seja a
única causa geradora de agressões, dizendo:
82
A idéia romântica de que todos os malfeitores são maus porque são carentes
está desgastada entre especialistas e leigos. Muitos psicopatas tiveram vida
difícil, é claro, mas isso não significa que ter uma vida difícil transforma alguém
em psicopata. [...] Personalidades maquiavélicas podem ser encontradas em
todas as classes sociais existem cleptocratas, barões ladrões, ditadores
militares, e financistas patifes.
95
Pinker entende que os pilares construídos na modernidade e que dão sustentação
à compreensão daquilo que denominamos como natureza humana são frágeis, e suas
bases não passam de crenças diante das descobertas trazidas à tona pela
sociobiologia e pela genética comportamental. No seu entendimento, as bases que
sustentam a moralidade e as leis positivadas estão calcadas em conhecimentos que
foram superados, mas que ainda sustentam discursos utópicos de intelectuais em pleno
século XXI. Esses ideólogos com seus discursos belíssimos, não levam em conta a dor
e sofrimento de milhões de pessoas homens, mulheres e crianças que todos os
anos são assassinadas, estupradas, ou sofrem outras modalidades de agressões
físicas e até mesmo psicológicas.
Jean-Jacques Rousseau teve contato com as obras de John Locke e acabou por
adotar as proposições da tábula rasa como parâmetro para educar homens. Claro que
John Locke e tampouco Jean-Jacques Rousseau não sabiam, mas hoje sabemos que
pessoas acometidas de doenças como a psicopatia e sociopatia para as quais ainda
não existe cura são incapazes de sentirem consternação com as suas vítimas. Para
sociopatas e psicopatas, a percepção de alteridade fica reduzida, o outro como pessoa
não é importante. No livro Serial Killers made in Brasil, Ilana Casoy descreve os
transtornos sociais acarretado por pessoas portadoras de psicopatia:
É enorme o sofrimento social, econômico e pessoal causado por algumas
pessoas cujas atitudes e comportamento resultam menos das forças sociais do
que de um senso inerente de autoridade e uma incapacidade para a conexão
emocional em relação ao resto da humanidade. Para esses indivíduos
(psicopatas), as regras sociais não são uma limitante, e a idéia de um bem
comum é meramente uma abstração confusa e inconveniente. São
considerados predadores intra-espécie que usam o charme, manipulação,
intimidação e violência para controlar os outros e para satisfazer suas próprias
necessidades. Em sua falta de confiança e de sentimentos pelos outros, eles
tomam friamente aquilo que querem, violando as normas sociais sem o menor
senso de culpa ou arrependimento.
96
95
PINKER, S. Tábula rasa. P. 359.
96
CASOY, I. Serial killers made in Brasil. P. 28.
83
Na ótica de Steven Pinker, a tese da tábula rasa de John Locke, que diz que todos
somos uma folha em branco quando nascemos e que aos poucos ela vai sendo
preenchida pelas experiências, e que neste sentido bastaria uma boa educação para
que pessoas se efetivassem como boas, não passa de um discurso falacioso quando
olhamos os genocídios ocorridos no século XX. Nossas bases comportamentais são
muito diferentes do ideário modernista, elas decorrem de múltiplos processos cerebrais
complexos, onde várias regiões do cérebro trocam informações em um pequeno espaço
de tempo, e muitas vezes nossos cérebros o influenciados por fatores externos
meio ambiente e por fatores internos determinados pela fisiologia cerebral, que em
cada indivíduo pode se manifestar de forma diferente, já que a nossa constituição
genética é única para cada indivíduo.
Os estudos desenvolvidos por Suzana Herculano-Housel demonstram que os
adolescentes padecem de um cérebro bem estruturado, e que as suas decisões não
contemplam satisfatoriamente as conseqüências de suas atitudes. Os dados coletados
na pesquisa reforçam o entendimento de que determinados comportamentos anti-
sociais podem produzir tragédias de grandes proporções. Nesse sentido Suzana
pondera sobre eventuais soluções:
Especialistas em jurisprudência afirmam que a aplicação de sentenças duras a
adolescentes temporariamente anti-sociais faz piorar as perspectiva de vida
dessas pessoas, ao passo que a formação de alguns laços sociais trabalho
estável, casamento, e até mesmo o alistamento militar pode construir pontos
de mutação favoráveis para eles. Se estas mutações não acontecem na maioria
dos adolescentes-problemas, é porque, uma vez no caminho da delinqüência,
eles têm pouca probabilidade de optar por esses laços salutares. E aqui está
um bom ponto onde pais e sociedade podem intervir, oferecendo um córtex
órbito-frontal maduro emprestado.
97
Entretanto, se não existe cura para adolescentes que sofrem de sociopatia e
psicopatia, o que deveremos fazer com aqueles que apresentam estes sintomas e
reiteradamente voltam a infringir as leis? Qual a solução? Só a redução da maioridade
bastaria? A educação pode ressocializar uma pessoa que apresente uma lesão no
97
HOUZEL, S-H. O cérebro em transformação. P. 193.
84
córtex pré-frontal congênita ou causada por um acidente no decorrer de sua vida? São
questionamentos que cedo ou tarde teremos que necessariamente enfrentar.
4.3 OS MITOS QUE SUSTENTAM A EDUCAÇÃO
Nos episódios citados anteriormente de crimes cometidos por adolescentes, os
agressores eram pessoas privilegiadas culturalmente e de poder aquisitivo. Em todos
os eventos os agressores eram oriundos de classe média alta, tendo sido educados em
escolas conceituadas, sem que nada lhes faltassem em termos de bens materiais. São
fatos como esses que reforçam as teses de Pinker, nas quais o fator social não é o
único motivador de agressões. Acontecimentos como esses não são raridades, eles
acontecem todos os dias, talvez não com a notoriedade que estes alcançaram. Porém,
se folharmos os periódicos dedicados a fatos sensacionalistas, poderemos encontrar
inúmeras situações semelhantes. Então o que falhou? Foram os pais destes
adolescentes que não souberam impor limites para seus filhos? Foi o estado o culpado,
criando leis muito brandas para adolescentes que cometem crimes? Afinal, nós temos o
controle dos filhos em nossas mãos? Na percepção de Pinker, as nossas sociedades
atuais implantaram padrões de educação que não correspondem à realidade de nossa
natureza humana. Tentamos moldar nossos filhos como se eles fossem massinhas de
brinquedo. Sobre a pretensa influência que os pais imaginam ter sobre seus filhos,
Pinker comenta:
A esta altura, a maioria dos pais instruídos acredita que tem nas mãos o destino
de seus filhos. Querem que seus rebentos sejam populares e autoconfiantes,
que tirem boas notas e permaneçam na escola, que evitem drogas, álcool e
cigarro, que evitem ter filhos na adolescência, que se mantenham do lado certo
da lei e que tenham um casamento feliz e sucesso na profissão.
98
O entendimento de que podemos moldar nossos filhos através de um padrão
educacional é outro dogma que tem suas premissas fundamentadas nos princípios
cognitivos da tábula rasa do inglês John Locke. Um dos discursos mais célebres de
apologia à tábula rasa foi feita pelo fundador do movimento behaviorista, John Broadus
98
PINKER, S. Tábula rasa. P. 516.
85
Watson (1878-1958). Na visão behaviorista, o comportamento de um indivíduo pode ser
compreendido independente da biologia, e sem necessariamente considerar os fatores
genéticos ou evolutivos da espécie. Watson é autor da seguinte fala:
Dêem-me uma dúzia de recém-nascidos sadios, bem formados, e um mundo
especificado para criá-los, e garanto escolher qualquer um ao acaso e prepará-
lo para tornar-se qualquer tipo de especialista que eu possa selecionar -
médico, advogado, artista, comerciante e, sim, até mesmo mendigo e ladrão,
independente de seus talentos, pendores, tendências, capacidade, vocações e
raça de seus ancestrais .
99
A tábula rasa também influenciou as teses de Rousseau, que didaticamente ensina
como devemos moldar as crianças, induzindo-as a “imitarem os atos a que as
queremos habituar enquanto aguardamos que o façam por discernimento e por amor ao
bem. O homem é imitador, até o animal o é; o gosto da imitação é da natureza bem
ordenada; mas degenera em vício na sociedade.”
100
Por conseguinte, o educador o deve transmitir nenhum saber. A sua função é
basicamente impedir que o aluno entre em contato com conteúdos oriundos da
sociedade que possam deturpar sua educação. Outra missão do educador é satisfazer
de forma sistemática e natural às curiosidades do educando em qualquer nível; por
último, criar situações de vida apropriada que favoreçam o crescimento espontâneo do
aprendiz.
As teses do Rousseau pedagogo inspiraram a criação de personagens de desenho
em quadrinhos, livros e filmes. Dentre os mais famosos podemos citar Mowgli, o menino
que teria sido criado por animais da selva. O outro, e talvez o mais conhecido, é Tarzan
o Rei das Selvas. Vejamos nas próprias palavras de Rousseau por que ele prefere o
homem em estado selvagem em detrimento ao homem regrado pela sociedade:
O primeiro ao repouso e a liberdade, quer apenas viver e ficar ocioso, e
mesmo a ataraxia do estóico não aproxima de sua profunda indiferença por
qualquer outro objeto. O cidadão ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se,
atormenta-se continuamente para encontrar ocupações mais laboriosas;
trabalha até a morte, até corre ao seu encontro para se colocar em condição de
viver, ou enuncia à vida para adquirir imortalidade. [...] Tal é, de fato, a
99
WATSON apud PINKER. Tábula rasa. P. 40..
100
ROUSSEAU, J-J. Emílio ou da educação. P. 94.
86
verdadeira causa de todas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem
sociável, sempre fora de si, sabe viver na opinião dos outros e é, por assim
dizer, do juízo deles que lhe vem o sentimento da sua própria existência.
101
Os dois modelos a tábula rasa e o bom selvagem ainda hoje são os grandes
parâmetros educacionais do Ocidente. As obras de Rousseau e de John Locke ainda
são os grandes referenciais para nossos pedagogos e, por extensão, das políticas
educacionais. Aos olhos de Pinker, “as versões do bom selvagem e da tábula rasa no
século XX mantiveram pais e filhos no centro do palco”.
102
Suas variantes são a
espinha dorsal das pedagogias aplicadas em nossas crianças e adolescentes, e os
resultados são duvidosos quanto à sua eficácia. Basta verificar o nível de violência em
que vivem as escolas de países desenvolvidos como os EUA, onde com freqüência
crianças e adolescentes são assassinadas no próprio ambiente escolar. O Brasil
também sofre uma epidemia de violência no ambiente estudantil. Muitas instituições de
ensino instalaram câmeras de vigilância continua dos alunos em salas de aula e
banheiros de escolas e colégios. Algumas adotaram práticas de revistar muitas vezes
fazendo uso de detector de metais os alunos e seus pertences ao adentrarem no
ambiente escolar. Estamos falando somente de violência, sem entrar no mérito da
qualidade do ensino, que por si só mereceria um estudo mais aprofundado.
4.4 HOMENS PERVERSOS JÁ FORAM CRIANÇAS
No encadeamento dessa pesquisa vamos buscar reforçar a tese de Steven Pinker
de que a tábula rasa é um formulário que foi adotado por vários regimes políticos
ditatoriais, e as conseqüências foram catastróficas para nós enquanto humanos. Para
tanto, vamos nos fazer valer de conceitos de renomados autores como Franz de Waal,
uma das maiores autoridades no campo da primatologia, uma ciência que nos remete a
um passado longínquo, tentando desvelar as origens de nossos comportamentos
agressivos e porque de alguns comportamentos tão nocivos para nossas sociedades
ainda persistem no cérebro do homem do século XXI.
101
ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
P. 241 e 242.
102
PINKER, S. Tábula rasa. 515 e 516.
87
O livro Eu, Primata, do biólogo holandês Frans de Waal, é uma obra bastante
esclarecedora sobre nossas origens. Seus estudos clarificam a incessante busca que
todos temos em saber de onde viemos. Até meados do século XIX havia uma opção
para explicar nossas origens: o criacionísmo de que fomos criados por uma deidade.
Entretanto, com as publicações das obras de Charles Darwin A origem das espécies
(1859), evolução por seleção natural, posteriormente A origem do homem (1876)
evolução por seleção sexual, que complementa os estudos da evolução, a partir daí
passamos a ter mais uma explicação para nossas origens: evolucionismo. A primeira, A
origem das espécies, completou um século e meio desde sua publicação, e apesar
de todos os debates em torno de suas teses, ainda são poucas as pessoas que de fato
conhecem e compreendem o que realmente Charles Darwin revelou. Interpretações
equivocadas das teses darwinistas levaram os nazistas a buscarem uma eugenia,
procurando fortalecer a idéia de uma raça superior. Nessa mesma trilha os cientistas
Richard Wrangham e Dale Peterson, autores do livro O macho demoníaco, buscam
explicações da origem da violência cometida por humanos. Com a concepção da árvore
genealógica da evolução, esses autores realizaram de estudos de observação em
ambiente natural de nossos ancestrais: chimpanzés e bonobos, animais que carregam
em seus corpos uma carga genética praticamente igual à humana.
A Europa é o continente considerado pelos ocidentais como o berço de nossa
civilização, uma terra pródiga em revelar talentos nos mais vários campos da cultura e
do conhecimento. No continente europeu está localizada a Alemanha, um país que
gerou filhos ilustres nos mais variados segmentos: músicos, pintores, religiosos,
escritores, poetas, cientistas, filósofos e políticos. Do ventre da Alemanha nasceram
crianças, que foram educadas, cresceram, se tornaram adultos e trazendo uma
substancial melhora para condição humana através da propagação de seus
pensamentos. Vejamos alguns nomes dentro do campo filosófico: Immanuel Kant
(1724-1804), Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Wilhelm Joseph Schelling
(1775-1854), Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), Ludwig Feuerbach (1804-1872),
Arthur Schopenhauer (1788-1860), Karl Marx (1818-1883), Friedrich Wilhelm Nietzsche
(1844-1900), dentre outros. Os nomes citados influenciaram de maneira muito forte as
humanidades, criando parâmetros para ética, moral, ciências, política, religião, e
88
noutros campos do conhecimento e das artes. Com eles, o Ocidente ganhou um
aspecto civilizado, ficando a barbárie sepultada nas catacumbas dos castelos e igrejas
medievais da Europa.
Paradoxalmente, foi em solo alemão que nasceram outras crianças e que seguindo
as premissas da tábula rasa, foram educadas por famílias inseridas em um ambiente
sócio-cultural propício para suas realizações. Estas crianças, como as anteriores,
também se tornaram adultos, mas ao contrário das primeiras não contribuíram para
melhorar a condição humana; sem que fosse desejo de seus pais, estes homens
criaram uma ideologia conhecida como nazismo e empreenderam o maior ato de
barbárie contra humanos que a história conhece: o holocausto judeu.
Os campos de concentração para eliminação sistemática de pessoas foram
minuciosamente planejado e construído pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.
Eram na verdade verdadeiras fábricas para assassinar pessoas em grande escala. O
holocausto judeu levado a cabo pelos nazistas fez o mundo reavaliar o conceito de
natureza humana. Após esse evento, a fina película de proteção que a cobria o
conceito de civilidade havia sido ferida, e atônitos pudemos ver as entranhas da
agressão humana contra seus semelhantes. Frans de Waal faz a narrativa daquele
momento:
Com suas câmaras de gás, execuções em massa e destruição premeditada, a
Segunda Guerra Mundial mostrou o pior do comportamento humano. Além
disso, quando o mundo ocidental fez o inventário depois que a poeira baixou, foi
impossível ignorar a selvageria cometida no coração da Europa por pessoas
que, não fosse por aquilo, seriam civilizadas. As comparações com animais
foram generalizadas. Os animais não têm inibições, argumentou-se. o têm
cultura, portanto deve ter sido algo animalesco, algo em nossa constituição
genética que rompera o verniz da civilização e atropelara a decência
humana.
103
É difícil acreditar que algum pai ou mãe tenha escolhido a personalidade de seus
filhos para requintes de perversidade como as praticadas pelos nazistas pessoas que
um dia foram crianças. Entretanto, o regime nazista não foi o único no culo XX. O
regime comunista soviético de Josef Stalin (1879-1953) também trabalhava com as
premissas da tábula rasa, eliminando milhões de pessoas e apostando na possibilidade
103
WAAL, F. Eu, primata. P. 33 e 34.
89
de criar uma nova sociedade a partir da educação juvenil. Fatos semelhantes foram
postos em prática pela ditadura comunista chinesa comandada por Mao Tse-tung
(1893-1976), ou no regime comunista ditatorial de Pol Pot (1928-1998) do Camboja,
cujo nome verdadeiro era Saloth Sar.
Durante séculos, pensadores do Ocidente buscaram formatar a conduta social
através de projetos de engenharia social. A primeira tentativa de regrar o
comportamento humano se deu ainda no período Clássico com Platão (428-347 a.C);
feito descrito na célebre A república. No período Medieval foi a vez de Aurélio
Agostinho (354-430 d.C.); com arranjos do neoplatonismo, o livro A cidade de Deus
escrito por Santo Agostinho descreve como seria o comportamento ideal do homem
regido pela doutrina cristã. Rompendo o medievo, o renascimento foi buscar nos
clássicos gregos a inspiração para ajustar as sociedades daquela época; para tanto
Tomás Morus (1478-1535) leva a público A utopia, uma obra inspirada nos ideais de A
Republica de Platão uma ilha imaginária onde as pessoas viveriam de forma
igualitária e pacífica. no final do período Moderno, um grande projeto de engenharia
social é edificado por Karl Marx (1818-1883) e prontamente posto em experiência pela
revolução soviética vale dizer que 50 anos após a morte de Karl Marx, um terço da
Europa já vivia sob o auspício do comunismo.
No entendimento de Steven Pinker, os homens sempre buscaram construir um
edifício que pudesse abrigar o comportamento humano. Entretanto, todos os projetos
falharam, pois os alicerces eram frágeis por não contemplarem a natureza humana
como ela realmente é. Os desenhos pressupunham que o humano fosse modelável, e
que uma boa educação resolveria todos os malefícios que derivam do comportamento
humano. Nessa linha de raciocínio, Pinker comenta os projetos de engenharia social
baseados na tábula rasa, os quais foram postos em prática por vários regimes de
ideologia marxista.
Os expurgos de Stalin, o Gulag, os campos de extermínio de Pol Pot e quase
cinqüenta anos de repressão na China tudo isso tem sido justificado pela
doutrina de que idéias dissidentes refletem não o funcionamento de mentes
racionais que chegaram a conclusões diferentes, mas produtos culturais
arbitrários que podem ser erradicados fazendo-se a reengenharia da sociedade,
“reeducando” os que foram contaminados pela velha educação e, se
90
necessário, começando de novo com uma nova geração de tábulas que ainda
estejam rasas.
104
Estima-se que estes três regimes ditatoriais Rússia, China e Camboja
juntamente com o nazismo, tenham sido responsáveis pelo assassinato de
aproximadamente cem milhões de pessoas no século XX. São fatos contemporâneos,
aconteceram recentemente e ainda estão vivos na mente dos que sobreviveram ou na
mente dos órfãos daqueles que foram assassinados. Vejamos nas palavras do
jornalista Marcelo Whatey Paiva um pouco da infância e adolescência de Adolf Hitler,
escrita no livro Hitler por ele mesmo.
Adolf Hitler tem uma infância bastante normal e tranqüila, exceto talvez a
agitação das várias mudanças que a família teve de fazer, seja por exigência de
serviço do pai aduaneiro, seja depois por sua irrequietude de aposentado. [...]
Adolf inicia a escola em Fischlham, em 1895, depois freqüenta por dois anos o
convento beneditino de Lambach, onde se exibe entre os pequenos coristas;
terminado o primário em Leonding, entra (1900) na escola secundária de Linz, a
Realschule.
105
Como pudemos ver na citação acima, um dos homens mais cruéis de que se tem
registro da humanidade teve sua infância em um ambiente semelhante em que foram
educados os nomes citados acima e que enalteceram o pensamento filosófico. Mas
então o que acontece com pessoas que na infância tiveram uma vida dentro de um
padrão estabelecido como normalidade e, quando adultos, transformam-se em pessoas
cruéis e impiedosas? São perguntas que ainda não podemos responder com clareza.
Uma das primeiras pessoas a pesquisar a agressão humana foi o biólogo austríaco
Konrad Lorenz, na década de 1960. Especialista em comportamento de peixes e
gansos, ele foi o precursor em dizer que o comportamento humano era influenciado
pelos genes. E de modo figurativo ele diz que o primeiro assassinato teria sido
cometido por Caim, que matou seu irmão Abel. Segundo Lorenz, após ter ferido seu
irmão, Caim ficou chocado com o que havia feito, talvez não fosse a intenção agredir
com tamanha gravidade, talvez ele tenha tentado levantar seu irmão, mas o fato é que
ao assassinar Abel fez com que Caim compreendesse a enorme gravidade do ato de
104
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 59.
105
PAIVA, M.W. Hitler por ele mesmo. P. 26.
91
matar o irmão mediante violência física.
106
Inspirado nos escritos de Lorenz, o
primatologísta Franz de Waal diz que “matar tornou-se a marca de Caim da
humanidade.”
107
Após o rmino da Segunda Guerra Mundial, o mundo ficou atônito com as
revelações de imagens feitas pelos próprios nazistas de extermínios de judeus em
campos de concentração. O mundo também ficou atarantado diante do silêncio do povo
europeu. Durante anos seguidos os nazistas exterminaram sistematicamente milhões
de pessoas em campos de concentração, cuja única finalidade era matar pessoas. É
difícil acreditar que ninguém sabia dos fatos, uma vez que eliminação de milhares de
pessoas todos os dias requer uma logística muito grande e extremamente organizada.
Primeiro selecionava-se a pessoas, depois confinavam as mesmas em guetos
cercados; depois de meses ou anos de confinamento, transportavam os selecionados
de trem para os campos de extermínio. Nos campos, toda uma logística foi
desenvolvida por cientistas e engenheiros, no sentido de desenvolver produtos tóxicos
e mecanismos para matar o mais rápido possível o maior número de pessoas
diuturnamente. E, por último, a queima dos corpos em fornos de alta temperatura, os
quais emitiam fumaça produzida pela combustão dos cadáveres, e que podiam ser
observada a quilômetros de distância. Devemos nos questionar a respeito do silêncio
do Vaticano diante do holocausto judeu? E porque não dos pensadores europeus?
Afinal, a Europa não é a pátria dos humanistas e existencialistas?
O sucesso do projeto de engenharia social levado a cabo pelos nazistas pode ser
creditado em boa parte à pessoa de Josef Goebbels (1897-1945). Doutor em filosofia,
ele teria conhecido Hitler no ano de 1925, e dizia que os grandes homens sempre foram
aqueles que possuíam o domínio da oratória. Sua propaganda visava às emoções em
detrimento da razão. As manobras de massas através do discurso eram criteriosamente
pesquisadas por Goebbels antes de serem levadas à prática. Ele contratava diretores,
roteiristas, cinegrafistas, fotógrafos para elaborar as propagandas que visavam à
manobra em massa da população alemã. Hoje este expediente é fartamente utilizado
por políticos do mundo inteiro, conhecido como marketing político.
106
LORENZ, K. A agressão, uma história natural do mal. P. 279.
107
WAAL, F. Eu, primata. P. 34.
92
Para muitos, idéias de filósofos são verdadeiros devaneios, mas na prática o é
isso que acontece, pois elas podem contaminar a cultura popular, sendo que suas
repercussões podem ecoar durante séculos e muitas vezes de forma catastrófica. No
entender de Pinker, a bula rasa e as idéias que derivam dela surgem em lugares
diferentes e de forma surpreendente. Vejamos algumas:
William Godwin (1756-1835), um dos fundadores da filosofia política liberal,
escreveu que “as crianças são uma espécie de papel em branco”. Em tom mais
sinistro, Mao Tse-Tung justificou sua radical engenharia social dizendo: “É
numa página em branco que se escrevem os mais belos poemas”. Até Walt
Disney inspirou se na metáfora e escreveu: “Imagino a mente de uma criança
como um livro em branco. Durante seus primeiros anos de vida, muito será
escrito nessas páginas. A qualidade desses escritos afetará profundamente sua
vida”. [...] Locke não poderia ter imaginado que suas palavras levariam ao
Bambi (Disney queria ensinar autoconfiança); Rousseau não poderia ter
entrevistado Pocahontas, o mais rematado exemplo de bom selvagem.
108
Como os exemplos demonstrados acima tiveram uma objetivação óbvia de
reafirmar os conceitos de Steven Pinker de que o cérebro humano tem um jeito próprio
de funcionar e quando tentamos modificar a sua maneira de funcionar para justificar
princípios morais, na verdade estamos sabotando tanto a ética como a ciência, nesse
sentido como avaliaríamos esses princípios se os resultados das pesquisas científicas
demonstrassem que o rebro funciona de maneira diferente do que imaginávamos? É
claro que nem todos os segmentos políticos apreciam essas idéias progressistas, pois o
sonho de qualquer poder despótico é tábula rasa.
109
Os arquitetos dos grandes projetos
de engenharia social abominam uma mente imprevisível. O que a grande maioria dos
idealizadores desses projetos desejam é que as mentes das pessoas sejam moldáveis
e que os seus ideais sejam impostos sem muitos questionamentos.
4.5 SOB O JUGO DA CARTA DE SEVILHA
Na visão de Steven Pinker, as políticas públicas de combate à violência não levam
em conta a possibilidade de que a violência humana possa ter um fundo biológico ou
108
Pinker, S. bula rasa. P. 31.
109
PINKER, S. O instinto da linguagem. P. 553.
93
genético. As ações que buscam a diminuição da violência pleiteada por instituições
como Organização das Nações Unidas (ONU) ou Organização dos Estados Americanos
(OEA) trazem nos seus currículos disciplinadores normas técnicas jurídicas denotando
que a violência é gerada somente por fatores culturais e sociais. Neste sentido, no ano
de 1986, vinte pessoas renomadas, das mais variadas áreas do conhecimento, de
vários países, se reuniram na cidade de Sevilha, na Espanha, para discutir aspectos da
violência. Em 16 de maio 1986, os vinte congressistas chegaram a um acordo e
assinaram um documento que ficou conhecido como a Declaração de Sevilha sobre a
violência. No ano de 1989, na 25ª Sessão da Conferência Geral, a UNESCO adotou a
carta de Sevilha como parâmetro no combate à violência no mundo. Vejamos um dos
parágrafos promulgados na carta e que diz respeito ao nosso objeto de pesquisa: o
cérebro humano.
É CIENTIFICAMENTE INCORRETO dizer que os humanos têm um “cérebro
violento”. Embora tenhamos o aparato nervoso para agir violentamente, esta
reação não é automaticamente ativada por estímulos internos ou externos.
Como os primatas superiores, e diferente de outros animais, nossos processos
neurais superiores filtram tais estímulos antes de possamos agir em resposta. A
forma como agimos é determinada pelo modo como fomos condicionados e
sociabilizados. Não nada em nossa neurofisiologia que nos obrigue a reagir
violentamente.
110
É praticamente um consenso entre pessoas de médio entendimento que a violência
pode ser gerada pelas mais variadas formas: condições sócio-econômicas, alcoolismo,
uso de substâncias tóxicas, estados anárquicos e assim por diante. Mas relegar a
violência a tão somente fatores ambientais e culturais é descabido diante dos avanços
revelados pela neurociência nas últimas décadas. Dizer que a forma como agimos
deriva unicamente do ambiente onde fomos socializados são argumentações
incoerentes e escassas de fundamentação científica.
É claro que no ano de 1986 os congressistas reunidos em Sevilha talvez não
soubessem que uma determinada região do cérebro é responsável pelo incitamento de
nossos comportamentos agressivos região límbica. Talvez também não soubessem
que outra região do cérebro pode ser responsável por frear nossos comportamentos de
agressividade o córtex pré-frontal. Não por ausência de estudos, pois a literatura
110
Ver o texto integral em http://www.escolaresponsavel.com/index_arquivos/Page751.htm.
94
médica já sabia do operário ferroviário Phineas Gage – já comentado no primeiro
capítulo – o qual já havia sido objeto de estudos no início do século XX.
Como John Locke, os congressistas daquele ano de 1986 talvez não possuíssem
um conhecimento a respeito do cérebro como temos hoje. Como havíamos citado na
introdução deste estudo, as grandes pesquisas na busca de melhor compreender o
cérebro humano ganharam um impulso gigantesco somente no final do século passado.
Os avanços foram enormes e, sem exageros, a grande maioria dos pesquisadores
nesta área são unânimes em afirmar que o conhecimento significativo do cérebro foi
desenvolvido a partir de 1990 em diante.
Steven Pinker entende que os pressupostos que fundamentam uma natureza
humana que não levem em conta os nossos comportamentos perniciosos são uma
falácia de cunho naturalista. Essa leitura naturalista distorcida faz parte de um corolário
utópico, pressupondo que tudo que tem origem na natureza é correto. Pensar que
determinados grupos de grandes e pequenos animais vivem em harmonia para
manutenção de um ecossistema teleológico é algo que não reflete a realidade, pois na
ótica evolucionista todos competem pela sobrevivência independente de um bem maior
para todos. Nós enquanto humanos o somos muito diferentes, pois também somos
uma espécie que evoluiu ao longo de milhões de anos, e que, portanto, ainda
carregamos em nossos cérebros alguns dispositivos de agressão, os quais foram muito
importantes para nossa sobrevivência em um passado longínquo. O problema é que
ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente desses mecanismos que ainda
habitam nossos cérebros, e que outrora garantiram nossa sobrevivência em meios
hostis, muito diferente dos meios sociais que vivenciamos hoje. Pensar que por um
passe de mágica esses mecanismos ficaram na beira da estrada ao longo da nossa
caminhada evolutiva é querer mascarar a realidade, pois o homem continua com a sua
saga assassina, basta ligarmos a televisão ou ler alguns jornais sensacionalistas para
vermos como ainda cometemos assassinatos. Nós não somos uma espécie angelical
como muitos gostam de pensar. Para Pinker, o homem assim como algumas espécies,
em determinadas contingências mata. Nesse sentido, vejamos o que Steven Pinker
pensa a respeito da Carta de Sevilha:
95
A história registrada desde a Bíblia até o presente é uma história de
assassinatos, estupro e guerra, e a etnografia honesta mostra que os povos
que vivem da coleta de alimento, como o resto de nós, são mais selvagens do
que nobres [...] Evidentemente, os humanos não m um “instinto de guerra” ou
um “cérebro violento”, como nos garante a Declaração de Sevilha, mas também
não têm exatamente um instinto de paz ou um cérebro não violento. Não
podemos atribuir toda a história e etnografia humana a armas de brinquedo e
desenhos animados de super-heróis.
111
Diante desse cenário dantesco, a diminuição do número de assassinatos estaria
totalmente descartada? Pinker responde que não, e aqueles que tentam associar
argumentos morais no sentido de dizer que a guerra pode ser algo salutar para a
espécie humana não passam de hipócritas. Ele vai mais além ao dizer que não
precisamos da pressuposição da Declaração de Sevilha para dizer que entre os
animais não existe guerra, e que a violência entre eles não passa de laços de
dominâncias hierárquicas, cujo intento maior é a preservação da espécie. Todavia, não
faria mal algum se essas pessoas levassem em conta que existe algo de perverso na
psicologia do humano. A esperança de que possamos mudar os comportamentos
perniciosos pode ser iniciada quando aquilo que estabelecemos como consagrado
fosse invertido: ao admitirmos que a nossa mente é um grande complexo de arranjos
neurofisiológicos pode ser mais vantajoso para diminuição dos atos perniciosos do que
a tábula rasa estabelecida até então pelo modelo clássico da ciência social.
111
Pinker, S. Como a mente funciona. P. 62.
96
5 O FUNDO GENÉTICO DA AGRESSÃO ENTRE GÊNEROS
Os homens atraem as mulheres com sua riqueza e status, portanto, se um
homem não os possui e não tem como obtê-los, está num caminho de mão
única pra o nada genético. Como as aves que se aventuram em territórios
perigosos quando estão à beira da morte por inanição e os treinadores de
hóquei que mandam o goleiro partir para o ataque quando falta um minuto para
terminar o jogo e seu time está perdendo por um gol, um homem sem esposa e
sem futuro deveria estar disposto a correr qualquer risco.
112
O objetivo desta argumentação que se inicia é tentar reforçar as teses de Steven
Pinker de que o bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau não passa de uma utopia
romântica. Para tanto, levaremos um pouco de luz nas relações da biologia com a
natureza humana e vice-versa, onde dois temas de grande controvérsia vão ser
abordados: a diferença que existe entre os gêneros e o sexo mediante coerção física
o estupro. Com muita consciência, Pinker aborda o problema mesmo sabendo que as
críticas virão dos dois lados expostos nesta abordagem: homens e mulheres. Para ele,
os movimentos feministas devem rever alguns conceitos, pois diante dos avanços
significativos da genética comportamental e biologia molecular, fica muito claro que
existem diferenças entre os sexos, mas que isso não diminui a importância em nenhum
dos gêneros pesquisados. Vale lembrar que nossa evolução se deu em conformidade
com as nossas necessidades, e as nossas necessidades de hoje diferem em muito
daquelas que tínhamos quando habitávamos as savanas africanas e sobrevivíamos da
caça e da coleta. É importante salientar que somos um produto de uma evolução e que
nossos rebros foram sendo aparelhados ao longo de milhões de anos, e muito
recentemente passamos a adotar determinados comportamentos sob a tutela de um
conjunto de normas sociais intrincadas.
Para Pinker, o medo de que as mentes dos homens sejam diferentes da mente
feminina é temível por parte das mulheres, pois essa diferença poderia trazer um
desequilíbrio, e as vantagens seriam dos homens e os prazeres de ordem sexual
seriam de sua exclusividade.
Sob o ponto de vista da genética, os genes femininos possuem uma estratégia de
sobrevivência o boa quanto à dos homens. Pinker analisa que da perspectiva
112
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 522.
97
biológica é melhor ter adaptações dos machos para solucionar contingências que dizem
respeito a machos e ter adaptações de fêmeas para resolver problemas femininos.
Para ele, os homens e as mulheres não são seres extraterrestres, oriundos de
galáxias diferentes. Homens e mulheres possuem uma mesma origem as florestas
úmidas e savanas africanas, uma espécie única que evoluiu em conformidade com os
arranjos e necessidades que a natureza impôs a eles. Suas estruturas cerebrais são
idênticas a olho nu, como também o são os coeficientes dios de inteligência,
possuindo um mesmo aparato cognitivo para o uso da linguagem e conhecimentos. Os
níveis de emoções também são iguais para ambos: gostam de receber carinho, gostam
de sexo, cuidam da prole, competem por status e muitas vezes cometem agressões em
defesa de seus interesses.
Mas é evidente que a mente feminina difere da masculina em muitos aspectos.
Algumas são de fácil percepção, como o gosto em maior proporção que os homens
possuem pelo sexo sem compromisso, o gosto pela prostituição e pela pornografia
113
.
Alguns comportamentos sexuais são quase exclusivamente verificados no sexo
masculino, bastas olharmos a recente onda de pedofilia que assola o mundo inteiro
através da internet, sendo raro as ocorrências de pedofilia que envolve mulheres
pedófilas. Os homens são mais violentos na disputa por companheiras e, muitas vezes,
ele pode ser tão violento a ponto de matar um concorrente na disputa por uma parceira.
Outro fator perceptível é o da estatura, pois em dia os homens são mais alto do que
as mulheres. Os homens também cometem de 20 a 40 vezes mais assassinatos do que
as mulheres. Mas a polêmica maior à qual queremos chegar é a violência praticada
pelo homem contra a mulher, com uma ênfase maior nas causas e natureza do estupro,
ou seja, o que leva um homem a agredir uma mulher na busca do sexo?
5.1 O ESTUPRO NA ÓTICA SOCIAL
O estupro é um assunto de extrema relevância na percepção de Pinker, talvez
nenhum outro tema supere em dor a abordagem do estupro, e em nenhum outro tema
se percebe um contingente intelectual tão mobilizado em negar a natureza humana
113
PINKER, S. Tábula rasa. P. 465.
98
como no estupro. Qualquer alternativa posta em debate que não entenda o estupro
como uma conseqüência do ambiente social é imediatamente rechaçada pelos meios
intelectuais. Para o autor de Como a mente funciona, aquele se dedicar em pesquisar
as causas do estupro merece sua admiração, sugerindo seguirmos os procedimentos
da medicina – para estirpar um mal, antes você precisar compreender como ele atua. O
próprio autor adverte que nenhum conhecimento é adquirido por revelações de cunho
místico, e que devemos criticar aqueles que tentam impor os dogmas de que a violência
sexual contra mulher é de cunho social e nada tem a ver com nossos genes. Esta visão
também é compartilhada por Robert Wright. Para ele os povos ocidentais ainda são
muito conservadores em matéria de sexo, e que obedecemos “nossos impulsos sexuais
como se eles fossem as vozes do bom selvagem, uma voz que poderia nos reconduzir
a um estado de felicidade que, na realidade, jamais existiu”.
114
No ponto de vista destes
autores, os intelectuais contemporâneos sustentam suas reputações às custas de
milhões de mulheres que todos os anos são vítimas de agressões sexuais por não
termos uma melhor compreensão deste fenômeno.
O terreno em que fermenta estas discussões não é nem um pouco propício para
novos acordos, pois em dias atuais prevalecem os entendimentos de que o estupro não
possui nenhuma relação como o sexo. Vejamos alguns pressupostos que definem as
causas do estupro no meio social atual:
O estupro é um abuso de poder no qual o estuprador tenciona humilhar,
envergonhar, embaraçar, degradar e aterrorizar a vítima”, declaram as Nações
Unidas em 1993. “O objetivo principal é exercer poder e controle sobre outra
pessoa.” “O estupro não tem relação com o sexo; tem relação com a violência e
uso do sexo para exercer poder e controle. [...] A violência doméstica e a
agressão sexual são manifestações das mesmas forças sociais poderosas: o
sexismo e a glorificação da violência.
115
O estupro persegue as mulheres por toda sua caminhada evolutiva, e muito
recentemente, a partir da década de 1970, é que a violência sexual contra as mulheres
passou a ter mais atenção por partes das autoridades governamentais. Até então era
114
WRIGHT, R. O animal moral. P. 123.
115
PINKER, S. Tábula rasa. P. 495. Report on the human rights in the territory of the Yugoslavia, 1993
United Nations documents E/ CN. 4/1993/50; J.E. Bells, “Ending the silence on sexual violence” Boston
Globe, 10 de abril 2000.
99
comum as vítimas terem de provar que resistiu de todas as formas contra seus algozes,
a ponto de quase pagarem com a vida numa tentativa de justificar a resistência. Em
caso de ser vítima, a mulher poderia ser questionada sobre a roupa que estava usando,
pois isso poderia ser um estímulo para o acometimento da violência. Em determinadas
ocorrências de agressão sexual era necessário apresentar testemunhas que tivessem
presenciado os fatos. As vítimas destes crimes muitas vezes eram tratadas com total
descaso. Recordando, que não faz muito tempo que o estupro praticado pelo marido
não era crime. Até mesmo estupro provocado por namorado era difícil de ser
configurado como agressão. Muitas vezes “o estupro era uma ofensa contra o marido
da mulher estuprada e não contra ela.”
116
Pinker concorda que neste ponto os movimentos feministas foram positivos, uma
vez que trouxeram a tona um problema que as sociedades relutavam ter de enfrentar: o
sexo mediante coerção física. Paulatinamente os conjuntos de regras morais e
positivados foram percebendo a gravidade e os traumas a que as mulheres vítimas de
agressão sexual são submetidas. Hoje, várias cidades do Brasil possuem centros de
atendimentos especializados para atender mulher vítima de violência sexual. Novas leis
foram criadas para tentar refrear a violência contra elas. Apesar de todos os avanços
obtidos nas últimas cadas, estamos longe de uma solução para a questão do
estupro. Entretanto, outras percepções de suas origens estão surgindo, dentre elas, as
que trabalham com hipóteses de que a violência sexual praticada pelo sexo masculino
pode ter um fundo biológico.
5.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL NA ÓTICA EVOLUCIONISTA
Estudos propondo que o estupro pode ter ligações diretas com a natureza humana
surgiram no ano de 2000. Em Tábula rasa, Pinker diz a que discussão foi aberta pelo
biólogo Randy Thornhill, professor de biologia da Universidade do Novo México (EUA) e
pelo antropólogo Craig Palmer, autores do livro Natural history of rape biological bases
of sexual, ainda sem tradução para língua portuguesa
117
. Esses pesquisadores partem
116
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 516.
117
PINKER, S. Tábula rasa. P. 10, 225, 245, 486, 499.
100
de um princípio básico: um estupro pode gerar uma gestação, e que o ser gerado por
esta gravidez poderia levar o gene do estuprador. Para eles, o problema é de ordem
psicológica masculina, e que a capacidade de estuprar o teria sido eliminada do
processo de seleção natural
118
. Mas o próprio Pinker adverte que nem um leitor de
consciência deve pensar que se o estupro é algo natural, então que ele seja bem-vindo.
É claro que o objetivo dos pesquisadores não é o de construir teses para que aceitemos
de forma passiva o estupro. As pesquisas têm por objetivo elevar a nossa compreensão
das causas que levam um homem agredir uma mulher na busca pela satisfação sexual,
sejam elas ambientais ou genéticas. O que leva homens bons e pacíficos em caso de
convulsão social ou de guerra a estuprarem mulheres indefesas? Seria o condicionante
ambiental ou o genético? Ou a combinação dos dois fatores?
Os estudos também levaram em conta o trauma psicológico sofrido pelas mulheres
após terem sido violentadas, pois na escala evolutiva das espécies sempre foram as
fêmeas que escolheram os machos com os quais iriam acasalar, num claro controle da
qualidade dos pais que iriam gerar seus filhos. Quando as mulheres são estupradas,
toda essa herança genética que controla a qualidade da reprodução fracassa, e o poder
de escolha que a mulher tinha é usurpado. Se olharmos com mais cuidado estas teses,
podemos perceber que elas não estão totalmente desprovidas de sentido, uma vez que
os traumas psicológicos sofridos pela mulher em detrimento à consternação mediante a
violência sexual é muito maior que qualquer outra agressão por ela sofrida. Pinker
observa que os comportamentos que diferenciam machos e fêmeas podem ser
observados em praticamente todos os animais: “os machos competem, as fêmeas
escolhem; os machos buscam quantidade, as fêmeas, qualidade.”
119
Mas como qualquer tese que fragmenta um dogma, ela vai encontrar fortes
resistências por parte daqueles que tentam preservar o estabelecido, por isso a visão
da psicologia evolucionista de que agressão mediante estupro pode ter um fundo
biológico foi fortemente combatida, e na visão de cientistas radicais elas causam
náuseas. As teorias de Thornhill e Palmer se contrapunham aos entendimentos de que
o estupro teria suas origens somente nas variantes de sociabilidade e causaram
118
PINKER, S. Tábula rasa. P. 492.
119
Ib Id. P. 345.
101
repulsa na comentarista Margaret Wertheim que escreve sobre ciência, tendo ela feito
pesadas críticas sobre o livro The natural history of rape. Em uma resenha, ela
comenta: “As pessoas que desejam demonstrar uma solidariedade com as vítimas de
estupro e as mulheres em geral aprenderam que devem rejeitar este livro como
pseudociência sexista e reacionária”.
120
Como se percebe, falar do estupro com as lentes de Darwin é certamente
polêmico. Porquanto, a maioria esmagadora de sexólogos e psicólogos, construíram
suas teses que tratam da agressão sexual num alicerce social e cultural. Realmente, as
aparências são de que o problema é sócio-cultural, mas se olharmos as novas
pesquisas no campo da genética comportamental, etologia, primatologia, veremos que
outros autores consagrados fazem coro com as vozes de Steven Pinker, dentre eles
podemos citar Robert Wright, que no livro O animal moral comenta que é perfeitamente
cabível aplicar as teses darwinistas no comportamento humano, e sobre a violência
sofrida pelas mulheres ele diz:
Ao leigo pode parecer natural que a evolução de cérebros dotados de
pensamento e consciência de si nos libertasse das leis básicas do nosso
passado evolutivo. A um biólogo evolucionista, o que parece natural é quase o
oposto: que o rebro humano não evoluiu para nos isolar das leis de
sobrevivência e reprodução, mas para as cumprirmos com maior eficácia, ainda
que de forma mais flexível; que à medida que evoluímos de uma espécie cujos
machos raptam mulheres à força para uma espécie em que os machos
sussurram palavras doces, o sussurro será governado pela mesma lógica que
governa o rapto é um meio de manipular as fêmeas para que consintam nos
objetivos dos machos, e sua forma cumpre essa função. As emanações básicas
da seleção natural são refratadas pelas partes mais internas e antigas do nosso
cérebro até os seus tecidos mais recentes. De fato, o tecido mais novo não teria
surgido se não estivesse alicerçado na seleção natural.
121
Para reduzirmos os índices de mulheres violentadas se faz necessário
primeiramente enfrentar a realidade, e o primeiro passo segundo Pinker é levarmos em
consideração os dispositivos genéticos que temos em nossos cérebros para levar
adiante a nossa espécie através do ato sexual. É claro que muitos indivíduos não
possuem controle de seus ímpetos sexuais e nem por isso devemos isentá-los de
culpa, pois o estupro é um crime. Portanto os que praticarem a violência sexual devem
120
Wertheim apud Pinker. Tábula rasa P. 495.
121
WRIGHT, R. O animal moral. P. 35 e 36.
102
ser punidos com rigor. Outros dois antropólogos, Richard Wrangham e Dale Peterson,
especialistas em estudos de primatas, ressaltam que não devemos confundir o estupro
como sendo algo natural, provocado por pressões evolutivas e por isso deve ser
relevado em determinadas circunstâncias.
122
As leis ainda são os instrumentos de maior
eficácia contra a prática da violência sexual contra as mulheres. Em estados
anárquicos, os índices de estupros aumentam consideravelmente. Em guerras de
nações, o cometimento de violência sexual contra mulheres é muito comum. O estupro
em alta escala também é verificado em civilizações que sofrem uma ruptura política
abrupta, onde seus governantes são destituídos com violência. Destas considerações
podemos sugerir que o primeiro passo a ser tomado é dar continuidade ao
aperfeiçoamento de leis rígidas contra aqueles que cometem o crime de estupro. Num
segundo momento, buscar a compreensão dos mecanismos biológicos e genéticos que
ainda podem estar incrustados em nossos cérebros e que podem levar indivíduos do
sexo masculino a cometerem as agressões sexuais contra mulheres e crianças
indefesas.
5.3 A POSSIBILIDADE DE A VIOLÊNCIA SEXUAL SOFRER INFLUÊNCIA GENÉTICA
Não poderíamos deixar de comentar nesta exposição as pesquisas desenvolvidas
por Nancy Wilmsen Thornhill, do Departamento de Biologia da Universidade do Novo
México, Albuquerque (USA), a qual fez um estudo rigoroso e profundo do estupro em
uma abordagem adaptacionista. As suas pesquisas levaram em conta as mutações que
sofremos no decorrer da nossa caminhada evolutiva, avaliando as adaptações mentais
que nos afetam e os desdobramentos que delas resultam. O próprio Pinker alerta que é
difícil trabalhar com dados quando o assunto é a violência sexual, talvez em virtude do
constrangimento por que passam as vítimas destes crimes, elas relutam a fornecer
maiores informações para as bases de pesquisa. No desenrolar de sua investigação, a
bióloga Nancy se fez valer das pesquisas desenvolvidas no final dos anos 1970 pelo
Instituto Joseph Peters da Filadélfia, onde foram entrevistadas 790 vítimas de violência
sexual, e para tanto foi aplicado um questionário de situações constantes num universo
122
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 156.
103
de 265 variáveis: idade das vítimas, hora do fato, se o coito foi vaginal ou anal, dentre
outros quesitos.
Ao analisar os dados coletados, Nancy Thornhill percebeu que as mulheres que
apresentavam características de ainda procriarem eram vítimas mais freqüentes de
estupro com relações vaginais, em proporção às moças adolescentes ou mulheres com
idades mais avançadas. Ela entendeu que os homens tinham uma preferência por
mulheres que ainda podiam gerar filhos, independente de haver violência ou não. Para
confirmar a veracidade dos indícios coletados, ela separou os dados coletados em duas
categorias: as mulheres que poderiam e as que não poderiam gerar filhos. As mulheres
que não poderiam gerar filhos tinham idade que variava de zero até 11 anos e também
aquelas que possuíam mais de 45 anos; aquelas que podiam gerar filhos possuíam
idades que variava de 12 até os 44 anos. Na seqüência, ela dividiu as idades das
vítimas em três conjuntos: moças com idade de zero até 11 anos foram denominadas
como pré-fecundáveis; mulheres com idades de 12 até 44 ficaram designadas como
fecundáveis; e aquelas que tinham idade superior a 45 ficaram estabelecidas como
pós-fecundáveis.
Aquilo que Nancy Thornhill havia previsto antes de dar início à pesquisa
posteriormente se confirmou na apuração dos dados coletados. Quando os dados
foram cruzados nos computadores, surgiram informações apontando que as mulheres
capazes de gerar filhos estavam mais sujeitas à violência sexual, num probabilismo de
90,4% de serem vítimas de estupro via relações vaginais, em um contraste de 45,9%
daquelas que não se encontravam em idade de procriar.
123
Ela também constatou que
as moças denominadas como pré-fecundáveis tinham uma porcentagem de 65,7% de
chance de não sofrerem relações vaginais do que serem submetidas a elas. Nancy
também apurou que as mulheres em condições de procriação são as que mais sofrem
os efeitos de traumas psicológicos.
Os dados revelados pela pesquisa foram contundentes ao confirmar que os
estupros são em grande parte cometidos contra mulheres que ainda se encontram em
fase de reprodução, e que nestas mulheres os atos de violência sexual se consumam
em relações vaginais. As informações coletadas podem indicar que alguns homens
123
THORNHILL, W.N; (Org) CHANGEUX, J-P. Fundamentos naturais da ética. P. 156.
104
ainda trazem em seus genes mecanismos cerebrais oriundos de um passado evolutivo,
e que em determinadas circunstâncias são disparados, e os estupradores homens
que não conseguem seduzir as meas como os machos bem sucedidos tentam levar
adiante sua carga genética, buscando mulheres que ainda estejam em idade de
reprodução. Vejamos os comentários dos antropólogos Richard Wrangham e Dale
Peterson que estudaram em profundidade as origens da agressividade humana em
primatas em ambiente natural e em cativeiro:
A teoria da evolução aventa que qualquer comportamento que ocorra com
regularidade ou de forma sistemática possui uma lógica embutida na dinâmica
da seleção natural para o êxito reprodutivo. Como o estupro poderia aumentar o
êxito reprodutivo? uma possibilidade gritantemente óbvia e direta: ao
estuprar, o estuprador pode fertilizar a fêmea. Em outras palavras, o estupro
pode ser, para alguns machos, a maneira de lograr a concepção, sem qualquer
outra importância biológica.
124
Devemos levar em conta que em um pretérito não muito longínquo os nossos
ancestrais raptavam mulheres e praticavam atos sexuais sem o consentimento das
mesmas. Portanto, é possível que ainda carreguemos em nossos genes mecanismos
para agressão sexual, os quais foram implantados em nossa arquitetura cerebral no
decorrer dos milhões de anos de nossa odisséia evolutiva. O biólogo Konrad Lorenz, no
ano de 1963, já alardeava:
Basta portanto conhecer as “falhas patológicas” dos mecanismos inatos do
comportamento a que chamamos instintos para nos libertarmos para sempre da
ilusão de que os animais, ou com maioria de razão os seres humanos, são
orientados unicamente por fatores apenas compreensíveis em termos de
finalismo e que não admitem ou necessitam de qualquer explicação causal.
125
Portanto, comungamos com as premissas de Pinker de que antes de combater o
crime de estupro devemos primeiramente compreender como funciona a mente dos
delinqüentes, ou desajustados socialmente, como queiram. É necessário ter a
percepção de que o mais importante não é verificar quais mecanismos cerebrais são
causadores de agressão, mais sim de se verificar quais mecanismos o cérebro humano
124
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 172.
125
KONRAD, L. A agressão, uma história natural do mal. P. 108 e 109.
105
possui para frear os nossos instintos de violência. Após isso feito poderemos
desenvolver políticas e estratégias no sentido de diminuir os crimes de violência sexual,
que ainda leva milhões de mulheres ao sofrimento em todo o mundo.
Na procura de conhecimentos que possam nos ajudar a compreender os
mecanismos de agressão sexual e também seus freios, nossa pesquisa vai retroceder a
um tempo longínquo no qual nos separamos dos demais primatas em nossa caminhada
evolutiva. Talvez esteja em nosso passado distante algumas das explicações para
comportamentos nocivos com os quais ainda convivemos em dias presentes.
5.4 A ORIGEM DE NOSSOS COMPORTAMENTOS AGRESSIVOS
Para que possamos realmente compreender as agressões sofridas pelas mulheres
no decorrer da História da humanidade, teremos de retroceder no tempo, quando os
nossos ancestrais habitavam as florestas equatoriais úmidas do continente africano.
Quando falamos em evolucionismo é comum as pessoas pensarem que a tese de
Charles Darwin faça a alusão de que possuímos parentesco com os macacos. Ledo
equívoco, pois a árvore genealógica da qual somos descendentes é a dos grandes
primatas, da qual fazem parte os chimpanzés, bonobos (chimpanzés pigmeus), gorilas,
orangotangos e humanos. Uma característica marcante que diferencia os grandes
primatas dos macacos é o fato de eles não possuírem cauda e a seu grande porte
físico. De todos os grandes primatas, os que mais se assemelham a nós, tanto no
comportamento social como geneticamente, são os chimpanzés e os bonobos. Até o
início do século XX, sabíamos da existência do chimpanzé, mais tarde cientistas
descobriram outra espécie que até então era tida como chimpanzé, dado a sua
semelhança física. Eram os bonobos, também conhecidos como chimpanzés pigmeus,
que até então eram confundidos com a mesma espécie dos chimpanzés.
Com base em pesquisas de DNA, a partir de 1984 os cientistas chegaram a um
acordo de que os primatas divergiram de seus ancestrais milhões de anos: primeiro
o orangotango 14 milhões de anos atrás; os gorilas 7,5 milhões; os humanos 5,5
milhões; chimpanzés e bonobos 2,5 milhões de anos. O local onde estes ancestrais
evoluíram foram as florestas equatoriais úmidas do continente africano, lugar onde
106
ainda é possível observar algumas espécies em ambiente natural. Os antropólogos
Richard Wrangham e Dale Peterson, explicam:
Os grandes primatas são um pequeno grupo de primatas de maior tamanho que
não têm cauda, limitado aos gibões do Sudeste Asiático (os primatas menores)
e aos quatro grandes primatas. Não são macacos e nem são aparentados de
perto com os macacos. Os macacos forma uma coleção muito maior e mais
distante de espécies: babuínos, macacos, colobus, langures, e assim por
diante. Os humanos e os primatas o intimamente aparentados entre si,
enquanto que os macacos pertencem a seu próprio grupo, separados, como
agora se sabe, da linha primata-humano há cerca de 25 milhões de anos.
126
Até 1984 era entendimento entre os pesquisadores antropólogos e
primatologístas de que os humanos descendiam de uma árvore genealógica
específica, a dos hominídeos, e os primatas formavam outro grupo. Pensava-se até
então que estes grupos haviam se separados num período que variava entre 15
milhões e 10 milhões de anos pretéritos. Isso dava uma conotação de que nossos laços
em comum haviam sido perdidos em um tempo remoto. Os comportamentos
comparativos entre os primatas e hominídeos não diziam muita coisa para esclarecer
nossas origens. Podíamos dizer que eles eram nossos parentes mais próximos, mas
não ajudava muito na explicação de nosso crescimento evolutivo. Eram postulações
válidas até o ano de 1984.
Bruscamente o mundo científico foi sacolejado por uma notícia estrondosa quando
os biólogos Charles Sibley e Jon Ahlquist da Universidade de Yale (USA) anunciaram
terem feito uma descoberta através do DNA, colocando os humanos no mesmo grupo
dos primatas. Na percepção dos cientistas, se isso fosse verdade iria se constituir em
um poderoso instrumento para aferir dados coletados em sseis com os genes dos
primatas vivos, onde os especialistas teriam poderosas lentes para enxergar o passado
e poder criar um imaginário nítido de como os primatas evoluíram. Como uma máquina
do tempo, poderíamos voltar até o famoso fóssil de Lucy australophitecus afarensis
que teria vivido em torno de 3 a 3,8 milhões anos atrás, tendo sido encontrada no
Nordeste da África. Mas para que tenhamos uma razoável compreensão dos fatos,
126
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 50.
107
antes teremos de entender um pouco de como funciona uma molécula de DNA. De
forma clara e didática, Richard Wrangham e Dale Peterson esclarecem:
O DNA é uma molécula extraordinária, com uma estrutura muito simples. É
enorme, muito comprida e estreita, composta de duas metades que se ajustam
intimamente, como se fosse um zíper com quilômetros de comprimento. Os
dentes do zíper são unidades químicas que se ligam com o parceiro do lado
oposto, o dente complementar do zíper. Os dentes do zíper são unidades
químicas chamadas nucleotídeos e se apresentam em quatro tipos, e apenas
quatro: adenina e timina, citosina e guanina. Cada tipo se liga com um dos
outros. A adenina só liga com a timina (e vice-versa), a citosina com a
guanina (e vice-versa). Isto significa que cada metade do zíper é inteiramente
previsível em relação à outra metade. Assim sendo, tudo que se tem de fazer
para analisar a semelhança entre o DNA de duas espécies é tomar metade do
zíper e ler os nucleotídeos. As espécies aparentadas mais de perto possuem
uma lista mais parecida de nucleotídeos.
127
É claro que não devemos nos iludir que o processo de aferimento tenha a
simplicidade que os autores descreveram. Hoje sabemos que o DNA do humano foi
completamente mapeado e que os avanços no campo da genética foram enormes, e
novidades nessa área surgem a todo o momento. Contudo, mesmo para os dias de
hoje o processo comparativo de DNA é lento e trabalhoso, exigindo profissionais
qualificados e laboratórios sofisticados para realização dos testes.
De posse deste instrumental, os pesquisadores logo se alvoroçaram em fazer
medição com primatas da linhagem humana, chimpanzé e gorila. Imediatamente surgiu
uma pergunta que causou um abalroamento nas comunidades científicas. A pergunta
tinha o propósito de saber que espécie tinha mais proximidade com chimpanzé: o
humano ou o gorila? Por motivos lógicos e analíticos, todos pensaram que os gorilas
tivessem um grau maior de parentesco com os chimpanzés. Mas os biólogos de Yale
Sibley e Ahlquist fecharam o zíper de DNA das espécies em tela e o resultado foi
surpreendente: geneticamente os chimpanzés eram mais semelhantes com os
humanos do que com os gorilas.
128
De início os dados coletados foram contestados,
sendo que novos testes foram realizados, e os novos resultados confirmavam o
anterior.
127
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco P. 56.
128
Ib Id. P. 58.
108
Estas descobertas no campo da genética mudaram substancialmente a datação
em que viveram nossos ancestrais. Esse poderoso instrumento que capacita
pesquisadores a decifrar os códigos genéticos deu início a um novo modelo de
compreensão no que diz respeito às nossas origens. Esse novo padrão estabelece que
duas espécies são mais parecidas como espécie: chimpanzés e bonobos; sendo que
nós, os humanos, seguimos essas duas espécies, vindo em seguida os gorilas e logo
depois os orangotangos. Antes delas era consenso que os ancestrais de primatas e
humanos teriam surgido em torno de 10 a 15 milhões de anos atrás. Com esse novo
aparato científico, agora podemos precisar que o ancestral tanto dos chimpanzés como
dos humanos teria vivido por volta 4,9 milhões de anos. Como se deu a evolução de
uma espécie e de outra ainda fica por conta do imaginário. O que os pesquisadores
afirmam é que determinadas espécies são mais conservadoras em termos de evolução.
Portanto, os chimpanzés podem ser os primatas mais conservadores, perambulando
pelas florestas africanas nos últimos cinco milhões de anos sem que mudanças
substanciais tenham ocorrido na espécie.
Com os olhos no passado, ou seja, estudando o comportamento dos primatas que
mais se assemelham ao humano chimpanzés e bonobos poderemos tirar algumas
lições para compreender alguns traços de agressão e fraternidade que marcam a
personalidade do humano. Na seqüência de nossos estudos, pretendemos fazer um
comparativo de traços comportamentais que podemos ter herdado tanto dos
chimpanzés como também dos bonobos. Veremos que os nossos parentes mais
próximos, os chimpanzés, são muito diferentes do imaginário de Jean-Jacques
Rousseau, que tinha como certo uma natureza harmoniosa.
5.5 O COMPARTILHAMENTO GENÉTICO DA AGRESSÃO
Até a década de 1960, pensava-se que os chimpanzés viviam às sombras de
árvores frondosas, colhendo frutos, raízes, brincando e procriando-se. Era um quadro
romântico, um lugar paradisíaco, uma paz que comumente as pessoas associam à
natureza. Esta representação idílica, nas palavras de Richard Wrangham e Dale
Peterson, é “uma rica fantasia de Jean Jacques Rousseau ou uma tela de cores vivas
109
de Paul Gauguin, nossa primeira imagem real dos chimpanzés não era perturbada por
quaisquer indícios de conflitos sociais graves.”
129
Até então, pensava-se que esses
primatas transitavam por toda selva sem que fossem perturbados ou provocados por
membros de sua espécie. A etóloga britânica Jane Goodall foi a primeira pesquisadora
a trabalhar com chimpanzés em seu habitat natural, numa região específica do Parque
Nacional do Gombe, na Tanzânia. No ano de 1966, ela já havia catalogado em torno de
15 fêmeas e 17 machos. Aos poucos, Jane Goodall foi percebendo que o grupo
estudado, que inicialmente parecia único, era na verdade dividido em dois.
Em 1970, o então professor de antropologia Richard Wrangham se deslocou até a
mesma região de Gombe e também passou a observar os animais. Rapidamente ele
percebeu que os dois grupos de chimpanzés observados por Jane Goodall
apresentavam uma cisão, que aos poucos foi se agravando. No ano 1972, apenas dois
machos circulavam de um subgrupo para outro; porém em 1973, os contatos entre os
dois grupos cessaram por completo. No decorrer das observações, Richard percebeu
que os chimpanzés faziam patrulhas de fronteiras de seus territórios, geralmente em
grupos de quatro a seis primatas. Para melhor aferir as observações, os pesquisadores
deram o nome de Kasekela para os chimpanzés da região norte, e para os chimpanzés
da região sul designou-se o nome de Kahama. Em agosto de 1973, os pesquisadores
encontraram uma fêmea adulta do grupo de Kasekela que acabara de morrer. Não
havia mais dúvidas para os pesquisadores de que aqueles primatas eram violentos,
pois o corpo encontrado apresentava vários ferimentos de dentadas por todo o corpo.
Após esses fatos, os ataques do grupo Kasekela tornaram-se uma constante. Um
outro membro do grupo Kahama foi encontrado morto. Sete semanas após este fato,
ocorreu outro ataque e um macho de Kahama foi vitimado. Um ano depois, outro
membro de Kahama foi morto. Aos poucos o grupo de Kasekela foi eliminando um a um
chimpanzés do grupo de Kahama, de tal modo que em 1977 só havia sobrado um único
macho, a quem os pesquisadores deram o nome de Sniff. Ele tinha então 17 anos
quando foi morto por um grupo de seis chimpanzés do grupo de Kasekela. Tudo bem!
Havemos de nos perguntar, e as fêmeas do grupo Kahama, o que foi feito delas?
129
Ib Id. P. 23.
110
Segundo Richard Wrangham, elas foram desaparecendo aos poucos, quando então
sobraram três. O antropólogo narra os momentos finais do grupo:
Então, em setembro de 1975, quatro machos adultos atacaram a fêmea velha,
arrastando-a, estapeando-a, erguendo-a e atirando-a ao chão, batendo nela até
que ela desmaiou e ficou inerte. Nesse dia, ela ainda conseguiu se arrastar dali,
mas morreu cinco dias depois. O ataque contra Madam Bee foi assistido pelo
adolescente Goblin e por quatro fêmeas de Kasekela, dentre elas Little Bee,
que a essa altura se havia juntado aos de Kasekela. Quatro meses depois de
Madam Bee ter sido morta, sua filha mais moça, Honey Bee, também passou
para o grupo de Kasekela. [...] No final de 1977, o grupo de Kahama não existia
mais.
130
Esses acontecimentos deixaram a comunidade científica chocada, pois as mortes
em si até que eram aceitas. A agravante em tudo isso é o fato de que no passado as
duas comunidades viveram em espaço comum de florestas, eram conhecidos uns dos
outros até acontecer a cisão dos dois grupos. Os pesquisadores tinham dificuldades em
absorver o impacto, uma vez que vítimas e algozes no passado haviam compartilhado
um mesmo ambiente de sociabilidade: brincado junto, copulando, repartiram comidas,
trocaram carícias. As mortes também chocaram pela raiva denotada pelos agressores
contra aqueles que um dia foram seus parceiros. Outros sítios de chimpanzés foram
pesquisados e apresentaram índices de mortalidade de 30% dos machos, todas por
agressão física.
Os dados coletados por Richard Wrangham na África na década de 1970 são
plenamente aceitos por outras autoridades renomadas da área da primatologia. Um dos
que comungam com estes feitos é o holandês Frans de Waal, que atualmente reside
nos Estados Unidos, onde é chefe do Centro de Pesquisa de Primatas em Atlanta.
Franz de Waal comenta os ataques desferidos por chimpanzés em defesa de suas
fronteiras territoriais.
Como seus territórios o enormes, raramente incidentes violentos entre
comunidades de chimpanzés são testemunhados. Mas os poucos episódios
que o são não deixam dúvida de que estamos diante de matança específica e
deliberada – em outras palavras, “assassinato”. Percebendo o tamanho da
polêmica que tal afirmação causaria, Jane Goodall perguntou-se de onde viria
aquela impressão de intencionalidade. Por que a matança não poderia ser mero
130
Ib Id. P. 30 e 31.
111
efeito colateral da agressão? Sua resposta foi que os atacantes demonstraram
um grau de coordenação e maus-tratos nunca visto durante agressões de
indivíduos da própria comunidade.
131
Fica perceptível que agressão de forma intencional não é algo de exclusividade dos
primatas humanos, como se pensava aentão. Os chimpanzés são organizados em
sociedades territoriais e com muita freqüência os embates entre grupos rivais
acontecem nessa disputa. É claro que as disputas territoriais de chimpanzés nem de
longe lembram as guerras de nações praticadas por humanos. Todavia, através das
observações de nossos parentes distantes podemos começar a entender o nosso
passado, que, diferentemente que imaginava Jean-Jacques Rousseau, não é de paz,
mas sim de disputas onde o perdedor muitas vezes paga com a vida. Entender o
comportamento dos primatas pode ser um grande passo na compreensão de nossas
atividades cognitivas, pois no juízo de Richard Wrangham e Dale Peterson as nossas
mentes foram equipadas com mecanismos de sobrevivência e “a mesma arquitetura
cognitiva une a atividade predatória e o demonismo social. O assassinato e caça
podem estar ligados mais intimamente do que costumamos pensar.”
132
5.6 A AGRESÃO SEXUAL PRATICADA POR PRIMATAS NÃO HUMANOS
Outro comportamento observado em chimpanzés e também verificado no homem é
a obtenção de sexo mediante a coerção física pelos machos. As fêmeas de chimpanzés
não são rigorosas com quem fazem sexo, qualquer parceiro pode ter acesso e ser
aceito para uma cópula. Entretanto, em um ponto a fêmea de chimpanzé é rigorosa:
elas rejeitam os irmãos de sangue materno. Com muita freqüência a sua rejeição é
aceita pelo irmão sem maiores problemas para ela. Todavia, pode acontecer de o irmão
ficar inconformado com a recusa. É claro que o macho por ter um porte físico mais
avantajado e por conseguinte maior força exerce sua superioridade física tentando
obter sexo através da agressão. Ela pode tentar se esconder ou gritar em busca de
socorro. Mas o socorro pode não vir a tempo, e então “ele a encontra novamente. Dá-
131
WAAL, F. Eu, primata. P. 168.
132
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 269.
112
lhe murros e pancadas, prende-a no chão e não nada que ela possa fazer. No fundo
da floresta, ocorre um estupro.”
133
As sociedades de chimpanzés são hierárquicas, os grupos possuem um macho
alfa. Como um chimpanzé não possui força suficiente para impor sua liderança com as
suas próprias forças, ele tem de se unir a outros machos. Com auxílio se seus
simpatizantes, ele forma uma coalizão para comandar o grupo. As disputas pela
liderança acontecem em média a cada quatro anos, com lutas violentas que podem
acabar em morte para ambos os lados: desafiante e desafiado. Mas os riscos são
recompensados para os vencedores, pois dentre outros privilégios ele vai ter à sua
disposição a quase totalidade de fêmeas, as quais ele costuma compartilhar somente
com aqueles que sustentam sua liderança. Desta forma, parcelas significativas de
machos ficam sem acesso a fêmeas. Não que seja impossível. Um chimpanzé com
hierarquia baixa pode ter acesso a uma fêmea, contanto que não seja aos olhos do
líder. Pode ocorrer enquanto ele cochila após uma refeição, ou em encontros furtivos
nos interior da selva.
A agressão em forma de infanticídio é verificada com muita freqüência nos gorilas.
Qualquer macho solteiro pode adentrar em um ambiente de gorilas fêmeas e pegar um
gorila jovem acabando por espancá-lo até a morte. Aos nossos olhos esse gesto causa
repulsa, entretanto para os gorilas isso pode trazer algumas vantagens: primeiramente
a suspensão da lactação, e por seguinte novas possibilidades de reprodução; segundo,
o macho assassino pode convencer a fêmea de que ela precisa de uma proteção mais
garantidora para seus filhos. Para o macho agressor isso pode reverter em seu
benefício, pois a fêmea pode abandonar o antigo pai de seu filho assassinado e se
casar com o assassino em busca de proteção para seus futuros rebentos. Sobre essas
estratégias tidas por nós como repulsivas, o zoólogo Matt Ridley comenta que elas
trazem “recompensas genéticas para os machos, que, portanto, tornam-se ancestrais
mais fecundos que os machos que não matam bebês; daí a maioria dos gorilas
modernos descenderem de assassinos. O infanticídio é um instinto natural nos gorilas
machos.”
134
133
Ib. Id. P. 18 e 19.
134
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. P. 33.
113
Os orangotangos também fazem parte da nossa árvore genealógica. Eles estupram
as fêmeas com uma freqüência que causa impressão nos pesquisadores, levando
Richard Wrangham e Dale Peterson a comentar que a literatura de zoologia fica
constrangida em tratar desses assuntos, e comumente são ocultados da população
comum. Eles também explicam que o estupro praticado com freqüência por uma
espécie pode ter causas biológicas adquiridas na trilha de sua evolução. E que fazer
uma associação entre os estupros praticados por orangotangos com os praticados por
humanos é algo temeroso por todos, como uma desculpa para agressão sexual. Eles
fazem ressalvas, pois mesmo que tenhamos um compartilhamento genético com esses
primatas, o estupro humano não se justifica sob nenhuma hipótese. Seus
comportamentos sociais são muito diferentes dos humanos. Vivem praticamente
sozinhos nas copas das árvores nas florestas úmidas de Bornéu e Sumatra. São
cobertos por uma bizarra pelagem ruiva que o difere dos demais primatas.
No ano de 1968, o pesquisador inglês John MacKinnnon se instalou às margens do
Rio Segana, na região Nordeste de rneu. E ali ele deu partida para um estudo com o
qual obteve grande sucesso, observando orangotangos em seu ambiente natural. Sob
adversidades severas de clima, picadas de mosquitos, animais peçonhentos,
crocodilos, ele não se absteve e levou adiante suas observações. Em um espaço de um
ano e meio, catalogou aproximadamente 200 orangotangos, em observações que
ultrapassaram 1.200 horas. No decorrer da pesquisa ele pode observar oito cópulas, e
que no seu entender sete foram cópulas sem o consentimento das fêmeas, portanto
estupros. Richard Wrangham e Dale Peterson citam a narrativa de John MacKinnon:
As fêmeas demonstravam medo e tentavam fugir dos machos, mas eram
perseguidas, agarradas e às vezes golpeadas e mordidas. Às vezes as fêmeas
gritavam, seus filhotes sempre gritavam, mordendo, puxando os pêlos e
golpeando os machos durante a cópula. Geralmente, o macho agarrava a
fêmea pelas coxas ou pela cintura com seus pés flexíveis. A fêmea, porém,
puxando com os braços, conseguia continuar se movendo e o macho era
obrigado a acompanhá-la. Essas sessões de estupro duravam cerca de 10
minutos
.
135
135
MACKINNON apud WRANGHAM; PETERSON. O macho demoníaco. P. 169.
114
Nesse breve estudo, procuramos evidenciar que as suspeitas argüidas por Konrad
Lorenz na década de 1960, da agressão humana ser motivada por mecanismos
genéticos, não são totalmente desprovida de fundamentos. Os gorilas e principalmente
os chimpanzés possuem traços genéticos muito semelhantes com os humanos (99%), é
por isso que talvez ainda carregamos em nossos organismos algumas das suas
características, das quais ainda não conseguimos nos desvencilhar. E que
diferentemente do que pensava Jean-Jacques Rousseau, o regramento social é
imprescindível quando nossos freios biológicos por si não conseguem interromper
alguns instintos bestiais estupro que ainda se fazem vivos nos genes de alguns
indivíduos da espécie humana. O regramento social e as leis positivadas ainda são os
melhores antídotos para a agressão sexual praticada contra as mulheres e crianças.
5.7 O COMPORTAMENTO PACÍFICO DOS BONOBOS
Como já havíamos comentado anteriormente, os bonobos o muito parecidos
fisicamente com os chimpanzés, e amesmo especialistas podem confundir as duas
espécies. O grande diferencial dos bonobos em relação aos chimpanzés é verificado
em seus comportamentos sexuais e sociais, tanto no cativeiro como em ambiente
natural. Uma das primeiras constatações feitas por pesquisadores de uma espécie para
outra é a comunicação: os chimpanzés se comunicam em gritos altos que podem ser
escutados a quilômetros de distância; os bonobos, por sua vez, emitem bramidos curtos
e suaves.
Um dos maiores especialista em estudos de bonobos é o japonês Takayoshi Kano.
Ele passou 20 anos estudando o comportamento desses animais em Wamba, na África.
Seu trabalho foi publicado em 1992 descrevendo o comportamento dos bonobos. O que
Kano observou e posteriormente foi confirmado por outras pesquisas é que os bonobos
são muito pacíficos quando comparados aos chimpanzés. Richard Wrangham e Dale
Peterson comungam da opinião de que os bonobos descenderam de uma espécie
muito semelhante à dos chimpanzés, e que a evolução os separou. Com base em
cálculos genéticos, Richard e Dale estimam que a ruptura deve ter ocorrido entre 1,5 e
3 milhões de anos atrás. Os bonobos são mais evoluídos socialmente, que “eles
115
reduziram o nível de violência nas relações entre os sexos, nas relações entre os
machos e nas relações entre as comunidades”.
136
Outro fator importante que distingue o comportamento sexual dos chimpanzés com
os dos bonobos é o ciclo menstrual das fêmeas: nos chimpanzés as fêmeas
apresentam intumescimento genital quando se encontram em período de fertilidade;
as fêmeas bonobos apresentam intumescimento genital independente de estarem
férteis, com exceção do pequeno período de menstruação. O primatólogo Frans de
Waal acredita que o quesito sexual faz o grande diferencial entre bonobos e
chimpanzés. Nos seus estudos, também confirmados por outros pesquisadores,
observou-se que parcelas significativas de desavenças intragrupo do bonobos são
resolvidas mediante o ato sexual. Segundo ele, é muito comum conflito interno entre
fêmeas serem resolvidos com a cópula entre fêmeas. Para estes atos bissexuais, a
comunidade de primatologísta deu o nome de GG-rubbing, ou fricção gênito-genital
entre fêmeas.
Frans de Waal comenta que o orgasmo sexual foi até pouco tempo considerado
uma emoção exclusiva do humano, mas segundo ele basta observar duas fêmeas de
primatas bonobos numa cópula, e não teremos essa certeza.
As fêmeas mostram os dentes de orelha a orelha e emitem gritos agudos
enquanto esfregam freneticamente o clitóris. As fêmeas também se masturbam
rotineiramente, uma atividade que não teria sentido se elas não auferissem
disso alguma coisa. Sabemos, por experimentos de laboratório, que não somos
a única espécie na qual as fêmeas apresentam aumento da freqüência cardíaca
e rápidas contrações do útero no clímax da relação sexual.
137
Os bonobos praticam a cópula nas mais variadas posições e também com uma
gama variada de parceiros, quando um indivíduo da espécie pode copular rias vezes
em um mesmo dia, com parceiros diferentes. As observações feitas por pesquisadores
refutam a idéia de que o sexo entre eles tenha como única finalidade a reprodução, pois
é observado que parcela significativa de cópulas se dá entre o mesmo gênero: são atos
bissexuais, fêmea com fêmea, e também macho com macho. Isso leva Frans de Waal
136
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 251.
137
WAAL, F. Eu, primata. P. 117.
116
acreditar que os bonobos adotaram estratégias sexuais na sua caminhada evolutiva,
cuja finalidade é a diminuição dos conflitos que se verificavam na espécie.
Outro fato mencionado por Frans de Waal é as descoberta feita por neurocientistas
que tratam das propriedades do hormônio ocitocina, facilmente encontrado em animais
mamíferos. Esse hormônio era aplicado em mulheres grávidas em serviço de parto,
pois ajudava nas contrações do útero facilitando o nascimento do rebento. O que os
cientistas ainda não sabiam era o fato da ocitocina ser um fármaco no que diz respeito
à redução da agressão. Quando aplicado em ratos machos, observa-se uma gradual
redução de ataques aos filhotes recém-nascidos. No cérebro masculino, esse hormônio
alcança seu ápice logo após o orgasmo sexual. Ele argumenta que hormônio ocitocina
produzido pelo sexo é um dispositivo biológico que tem por finalidade promover o
apaziguamento das espécies, e que sociedades mais intransigentes com a questão
sexual tendem a ser mais violentas quando comparada com aquelas que abordam a
questão sexual com mais liberdade
138
. Conseqüentemente, aquelas pessoas que
tentam diminuir a violência fazendo uso das palavras associadas “paz e amor” não
estariam equivocados de seus propósitos. A ocitocina pode ser no futuro uma pílula
contra a agressão como é o Viagra para o sexo masculino na busca do prazer.
Apesar de todo o pacifismo das comunidades desses primatas, os bonobos estão
longe do sonho utópico de Jean-Jacques Rousseau. Foram mais de 20 anos de
observações em quatro comunidades diferentes de bonobos, onde os pesquisadores
constataram que até mesmo os bonobos cometem agressões.
Muitas vezes viram os bonobos correrem para a fronteira a fim de enxotar
vizinhos. Pode haver choques, que às vezes levam a ferimentos sangrentos, de
modo que os bonobos não vivem na utopia. Não obstante, durante todo esse
tempo, ninguém jamais viu patrulhas de fronteira, ataques mortíferos,
agressões letais ou espancamento de forasteiros. A diferença entre eles e os
chimpanzés parece nítida. [...] Os bonobos machos não são tão violentos
quanto os chimpanzés machos.
139
Esperamos que os exemplos evidenciados pelo campo da primatologia, bem como
da antropologia, tenham sido suficientes para trazerem um pouco de luz na
compreensão de comportamentos perniciosos estupro dos quais ainda não
138
Ib Id. P.135.
139
WRANGHAM, R; PETERSON, D. O macho demoníaco. P. 264.
117
conseguimos nos desvencilhar. Os estudos de primatas são argumentações fortes, no
sentido de demonstrar que nem mesmo ancestrais mais longínquos viveram em um
ambiente desprovido de hostilidade, como pressupõe o olhar romântico daqueles que
propagam o ideário do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau. A sobrevivência de
qualquer espécie viva sempre foi pautada por incessante luta, sobrevivendo apenas os
mais aptos. As teses de Charles Darwin denotam que qualquer forma de vida existente
no planeta necessariamente em algum momento de sua existência tem que lutar para
sobreviver. Assim escrito por ele:
Tudo o que podemos fazer é ter sempre em mente a idéia de que todos os
seres vivos pelejam por aumentar em proporção geométrica, e que cada qual,
pelo menos em algum período de sua vida, ou durante alguma estação do ano,
seja permanentemente, ou então de tempos em tempos, tem de lutar por sua
sobrevivência e está sujeito a sofrer considerável destruição. Quando refletimos
sobre essa luta vital, podemos consolar-nos com a plena convicção de que a
guerra que se trava na natureza não é incessante e nem produz pânico; que a
morte geralmente sobrevém de maneira imediata, e que os mais resistentes, os
mais fortes, os mais saudáveis e os mais felizes conseguem sobreviver e
multiplicar-se.
140
140
DARWIN, C. A origem das espécies. P. 97.
118
6 CONCLUSÃO
O primeiro passo para compreender a violência é deixar de lado nossa ojeriza
por ela durante tempo suficiente para nos permitir examinar por que ela, às
vezes, pode compensar do ponto de vista pessoal ou evolutivo. Isso requer
inverter a formulação do problema: não mais por que a violência ocorre, mas
por que ela é evitada. Afinal, a moralidade não entrou no universo com o Big
Bang e então o permeou com a radiação de fundo. Ela foi descoberta por
nossos ancestrais depois de bilhões de anos de processo indiferente à
moralidade denominado seleção natural.
141
Na epígrafe da nossa dissertação trazemos uma citação de Steven Pinker, na qual
ele deixa explícito que ciência e moralidade são esferas do conhecimento que
necessariamente devem ser compreendidas de forma separadas, para que então
possamos aplicá-las de uma forma única. No seu entender, a humanidade se encontra
numa encruzilhada e precisa escolher qual caminho seguir. O primeiro caminho é
desconsiderar todas as descobertas científicas ou então ocultar os fatos revelados. O
segundo caminho sugere que diante das fortes evidências científicas de que o
comportamento humano tenha um fundo biológico e genético, a humanidade faça uma
revisão nos parâmetros que norteiam a conduta humana.
142
Na esteira dessas proposições, Stephen Hawking, tido por muitos como o maior
nome das ciências depois de Albert Einstein, considera o fato de que até o século XVIII
os filósofos detinham o conhecimento humano e científico. Entretanto, após os séculos
XIX e XX, as ciências se tornaram disciplinas muito técnicas, com equações
matemáticas complexas, tanto para compreensão dos filósofos bem como de outras
pessoas, ou seja, um conhecimento restrito a poucos especialistas. Para Hawking, os
filósofos sempre tiveram como prioridade a inquirição das coisas que diziam respeito à
condição humana e do cosmo. No entanto, essa incumbência ficou restrita a um
conhecimento adquirido no passado, que por sua vez não consegue fazer frente aos
problemas atuais com os quais a humanidade se depara. Em Uma breve história do
tempo, Hawking faz uma crítica dura ao dizer que os pensadores atuais “reduziram
tanto o escopo de suas indagações que Wittgenstein, o mais famoso pensador desse
141
PINKER, S. Tábula rasa. P. 431.
142
PINKER, S. Como a mente funciona. P. 67.
119
século, declarou: A única tarefa que sobrou para filosofia foi a análise da linguagem.
Que decadência da grande tradição de filosofia de Aristóteles e Kant!”
143
Richard Dawkins compartilha desses pressupostos ao dizer que até 1859 ano da
publicação do livro Origem das espécies a humanidade fazia uso de uma burca negra
mental, cuja fenda proporcionava uma visão reduzida e nebulosa do mundo que estava
à sua frente. Ele professa que um dos responsáveis pelo alargamento da fenda da
burca foi a ciência pautada nas teses de Charles Darwin. Aentão, a percepção de
mundo tinha forte apelo místico. Muitas das coisas que não podiam ser explicadas eram
tidas como milagre ou então que não diziam respeito aos homens ou da natureza, mas
sim a Deus.
Nesse sentido concordamos com Steven Pinker, que conhecimentos com grande
teor de veracidade como a física quântica (átomos e suas partículas), e a biologia
molecular (DNA), não faziam parte do ambiente científico e cultural no período em que
viveram René Descartes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Assim entendendo,
seria descabido imputar culpa a esses autores. Pinker não condena os autores em si,
pois eles refletiam a compreensão do mundo daquela época. O foco do problema,
segundo ele, estaria naquelas pessoas que mesmo tendo conhecimento dos avanços
significativos trazidos a tona pelas ciências ainda na primeira metade do século XX
persistem em disseminar teses que aos olhos de Pinker são descabidas em dias atuais.
Dentre outros avanços científicos de grande significância, podemos citar a teoria da
relatividade geral de Albert Einstein (1879-1955) e a mecânica quântica de Werner
Heisenberg (1901-1976). As hipóteses de Einstein e Heisenberg trouxeram para o
pensamento contemporâneo profundas implicações na forma de percebermos o mundo
– cosmologia, biologia, física, química dentre outros campos do conhecimento – e
mesmo tenha se passado mais de meio século, esses postulados ainda não foram
examinados suficientemente pelos filósofos e por isso ainda são fatores geradores de
embates quando trazidos para discussões.
Richard Dawkins, ao se referir ao período moderno, diz que os conhecimentos
dessa época distante denominado por ele como conhecimento do Mundo Médio
eram ferramentas limitadas para lidar com coisas tão improváveis como partículas
143
HAWKIN, S. W. Uma breve história do tempo. P. 238.
120
subatômicas, ou então a vastidão do universo e o tempo geológico da Terra. Nesse
aspecto, ele comenta que fatos desprovidos de significado no Mundo Médio hoje são
plausíveis, dizendo que os procedimentos científicos abriram “a estreita fresta através
da qual estamos acostumados a enxergar o aspecto de possibilidades. O cálculo e o
raciocínio libertam-nos para visitar regiões de possibilidades que estiveram fora dos
limites permitidos, ou povoadas por dragões”.
144
Os dragões de Richard Dawkins podem ser os mesmos dragões que os
professores de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Cleverson Leite
Bastos e Kleber Bez Candiotto comentam em seu livro Filosofia da ciência. Para eles,
algumas teses são formatadas pelo próprio imaginário daquele que as cria, e de forma
quase que ingênua certas pessoas se lançam a discorrer sobre o mundo e pessoas,
criando um emaranhado lingüístico capaz de dar sustentação a qualquer corolário que
a mente humana possa imaginar. Para esses autores, existem alguns pressupostos que
são imprescindíveis no que tange a descrição e explicação dos eventos naturais e de
nós enquanto humanos. A não observância de determinados critérios lógicos e
sintáticos podem nos levar a criar mundos utópicos. Na percepção de Leite Bastos e
Candiotto, a não observância de alguns juízos críticos pode nos induzir a devaneios
proposicionais “capazes de sustentar qualquer discurso acerca de qualquer objeto,
porque não idiotice que não possa ser provada ou sustentada lingüística ou
dialeticamente pela razão, desde dragões na garagem (Sagan) a alienígenas, incubos,
súbubos e diabos tais”.
145
No vestígio das idéias de Steven Pinker, e sempre tomando cuidado com os
dragões, essa pesquisa buscou incessantemente alargar a fenda da burca negra que
encobre as origens do homem e sua deriva comportamental, almejando uma melhor
compreensão do comportamento humano agressivo. Para tanto, fomos buscar
entendimento em vários cenários do conhecimento e os atores que fazem parte desse
teatro, ficando evidenciado que o comportamento humano, diferentemente que muitos
pensam, é extremamente complexo e fatores culturais e sociais não são os únicos a
determinarem nossas ações. Por isso, nosso trabalho centrou esforço em investigar A
144
DAWKIN, R. Deus, um delírio. P. 474.
145
BASTOS, C, L; CANDIOTTO, K, B, B. Filosofia da ciência. P. 13.
121
agressão humana, procurando compreender o funcionamento da quina cerebral,
suas derivas biológicas e genéticas, que isoladas não explicam tudo, havendo a
necessidade de levar em consideração o ambiente no qual nos encontramos inseridos
e suas contingências.
Concluímos que o grande feito de nosso estudo foi o de se fazer perceber que a
cultura científica e a cultura social, que comumente são divergentes, ainda assim
podem habitar um mesmo espaço. O homem ao mesmo tempo em que possui um
aspecto biológico e genético, também possui um aspecto sócio-cultural. Pudemos
entender que o cérebro estudado pelas ciências cognitivas e ciências humanas, mesmo
que alguns momentos sejam conflituosos, não deixam de ser faces de uma mesma
moeda, ou seja, são ferramentas necessárias que nos possibilitam compreender aquilo
que designamos como natureza humana.
O itinerário que trilhamos em nossa dissertação não teve a pretensão de levar o
eleitor a crer, em nenhum momento, que tenhamos chegado a uma resposta conclusiva
no que diz respeito ao comportamento humano agressivo. Acreditamos que o grande
feito de nossa investigação foi o de assentar alguns tijolos na grande parede que
compõe a conduta humana. Também não podemos cair em erros de posicionamentos
extremados, uma vez que o campo das ciências cognitivas ainda é muito jovem,
alimentada por um conhecimento que se renova muito rapidamente e qualquer
posicionamento tomado como dogma não é bem-vindo.
Não vamos sugerir qualquer fármaco milagroso que possa combater a agressão
humana, pois pensamos que o tema sugere um melhor aprofundamento das pesquisas
trazidas a tona até o momento. Não podemos ser levianos em propor um formulário que
possa acabar ou atenuar com os comportamentos anti-sociais como um passe de
mágica. O problema da agressão é tão antigo quanto nossa própria existência. Por isso
concordamos com os postulados de Pinker, que nos incita a estudar e conhecer quais
dispositivos cerebrais nos impedem de cometer agressões. Para uma melhor
compreensão desses mecanismos que podem suavizar a conduta humana anti-social,
vamos nos empenhar em busca de novas pesquisas para melhor compreender a
estrutura cerebral humana e sua deriva comportamental.
122
Finalizamos dizendo que as proposições levantadas pela psicologia evolutiva de
Steven Pinker refletem aquilo que Charles Darwin alardeou praticamente em forma de
profecia ao dizer que em um futuro distante o cérebro seria o centro das pesquisas mais
importantes e a psicologia estaria fadada a ser a grande ferramenta para buscar novos
conhecimentos da epopéia evolutiva humana. Prevendo o futuro ele escreve no livro
Origem das espécies: “A Psicologia irá basear-se num fundamento novo, o da
necessária aquisição gradual de cada faculdade mental. Nova Luz será lançada sobre o
problema da origem do homem e de sua história.
146
146
DARWIN, C. Origem das espécies. P. 365.
123
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