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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CFCH – CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
IP - INSTITUTO DE PSICOLOGIA
EICOS - PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO DE ESTUDOS
INTERDISCIPLINARES EM COMUNIDADES E ECOLOGIA SOCIAL
MARLY CHAGAS OLIVEIRA PINTO
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
NA MÚSICA E NA
CLÍNICA EM MUSICOTERAPIA
Rio de Janeiro
2007
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MARLY CHAGAS OLIVEIRA PINTO
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
NA MÚSICA E NA
CLÍNICA EM MUSICOTERAPIA
Tese submetida ao corpo docente do
EICOS/IP-Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do
grau de doutor em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social.
Dra. ROSA MARIA LEITE RIBEIRO PEDRO
orientadora
Rio de Janeiro
2007
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Pinto, Marly Chagas Oliveira.
Processos de subjetivação na música e na musicoterapia/ Marly
Chagas Oliveira Pinto - Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2007.
x, 169 f.: 29,7 cm.
Tese (Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia
Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de
Psicologia- Programa de pós-graduação em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social– EICOS, 2007.
Referências bibliográficas f:150 -163
Referencia sonora f:164-168
Orientador: Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro
1. Produção de subjetividade. 2. Música.
3. Musicoterapia - Teses. I. Pedro, Rosa Maria Leite Ribeiro (Orient.).
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto Psicóloga -
Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e
Ecologia Social. III. Processos de subjetivação em música e em
musicoterapia.
18f-148 -166
4
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA MÚSICA E NA CLÍNICA EM
MUSICOTERAPIA
MARLY CHAGAS OLIVEIRA PINTO
TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO EICOS/IP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO–UFRJ, COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À
OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM PSICOSSOCIOLOGIA DE COMUNIDADES E
ECOLOGIA SOCIAL.
Aprovada por:
Prof. Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro – orientador, doutora em Comunicação.
Prof. Maria Inácia D’Ávila Neto, doutora em Psicologia Social.
Prof. Carole Gubernikoff, doutora em Comunicação.
Prof. Mauro José Sá Rego Costa, doutor em Educação.
Prof. Márcia Oliveira Moraes, doutora em Psicologia.
Rio de Janeiro
2007
5
À memória de meu pai, Clóvis,
de minha mãe, Irene,
de minha irmã, Daisy
e de meu irmão, Celso.
À presença amorosa de minha filha, Lis.
6
Agradecimentos
À Rosa Pedro, pela sabedoria e amizade. “Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver!”
Aos meus professores do EICOS, pelo ensinamento.
Aos colegas do grupo de pesquisa: Carlos, Ricardo, Cecília, Júlio, Flávia, Gláucio, Marcello,
Rafael pela construção coletiva de conhecimento.
À turma de 2003, pelas aulas inesquecíveis.
À Márcia Peroba , Maria Luiza Carvalho e Lia Rejane pela irmandade incondicional.
Ao Marcello Santos pela amizade constante e musical.
À Susana Hertelendy, por ter me ensinado o caminho do EICOS.
Á Marise Pedalino e Maria Lygia Daflon pelo cuidado no cotidiano,
À “Comissão Científica Permanente”: Rejane, Marco, Martha e Malú pelo que fizemos e pelo
que faremos juntos!
À Raquel Siqueira e Gracimar, pela camaradagem.
À Silvana e Mirella pelo apoio companheiro.
À Nícia, Marcello e Mônica pelas ajudas estratégicas.
À Estela Caldi, pela indicação de Almeida Prado.
Á direção do CBM-CEU pela compreensão
Ao pessoal da AMT-RJ pela paciência.
Aos meus colegas do CBM-CEU pela construção conjunta
Aos meus amigos pela força.
Aos meus alunos pela alegria.
Aos meus clientes, pela inspiração.
Ao Humbertho pela parte do caminho percorrido juntos.
Á CAPES pelo apoio financeiro
7
Os conceitos devem render-se às realidades
e não o inverso.
Guattari
(1988, p.145)
8
RESUMO
PINTO, Marly Chagas Oliveira. Processos de subjetivação na música e na clinica em musicoterapia.
Orientadora: Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro. Rio de Janeiro: UFRJ/IP/EICOS, 2007. Tese (Doutorado
em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social.
O presente trabalho tem como objetivo explorar algumas relações entre música e modos de subjetivação
em uma clínica de musicoterapia, tendo como ponto de apoio privilegiado o referencial teórico proposto
por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Parte da hipótese de que é possível compreender a problemática da
subjetividade como derivada das afecções proporcionadas pela música para, em seguida, evidenciar a
fertilidade de tal compreensão em uma clínica que se configura a partir da música : a clínica em
musicoterapia. Propõe trabalhar o conceito de subjetividade a partir de dois vetores principais: como
produção, e como configuração de agenciamentos coletivos. Trata-se de uma pesquisa teórico conceitual,
realizada em forma de ensaio, que se vale de alguns excertos de casos da clínica musicoterapêutica com o
fim exclusivo de lançar uma luz diferenciada sobre as articulações propostas. O plano da tese foi
estabelecido de modo a que, em cada capítulo, houvesse, primeiramente, a exposição de conceitos a partir
da obra de Deleuze e Guattari – especificamente, os conceitos de agenciamentos de enunciação, ritornelo,
rizoma e arte – e, em seguida, a articulação de cada um desses conceitos com a produção de subjetividade
em música e na clínica musicoterapêutica. Como conclusão, discute-se a importância desse referencial na
clínica de musicoterapia, tanto em termos heurísticos como no que diz respeito à produção política que é
capaz de instigar.
Palavras-chave: produção de subjetividade, música, musicoterapia
9
ABSTRACT
PINTO, Marly Chagas Oliveira. Processos de subjetivação na música e na clinica em musicoterapia.
Orientadora: Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro. Rio de Janeiro: UFRJ/IP/EICOS, 2007. Tese (Doutorado
em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social.
The main purpose of this thesis is to explore some relations between music and modes
of subjectivation in a music therapy clinic, using the theoretical reference proposed by Gilles
Deleuze and Félix Guattari as a principal basis of support. It departs from the hypothesis that it is
possible to comprehend the issue of subjectivity as a derivative of the affections afforded through
music to, therefore, show evidence of the fertility of such an understanding in a clinic that is
based around music: the clinic in music therapy. It proposes to discuss the concept of
subjectivity from two main directions: as production, and as configuration of collective agencies.
This work proposes itself as a theoretical conceptual research, consummated in the form of an
essay, also including a few excerpts of cases in the music therapy clinic with the exclusive aim of
casting a different light upon the proposed relationships. The plan of the thesis was established in
such a way that, in each chapter, there would be, firstly, an explanation of concepts arising from
the work of Deleuze and Guattari – specifically, the concepts of the enunciation agencies,
ritornello, rhizome and art – and, accordingly, the articulation of each of these concepts with the
production of subjectivity in music and in the music therapy clinic. In conclusion, the importance
of this reference in the music therapy clinic is debated, as much in heuristic terms as with respect
to the political production that it is capable of stimulating.
Keywords: production of subjectivity, music, music therapy
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
1 SOBRE A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE: UMA VISÃO MAQUÍNICA 28
1.1 Uma forma de produzir sujeitos 29
1.2 Um sujeito maquínico e seus agenciamentos. 32
1. 3 Os agenciamentos da enunciação 36
1.3.1 Os agenciamentos não semióticos 37
1.3.2 Os agenciamentos semióticos não subjetivos 39
1.3.3 Os agenciamentos semióticos, subjetivos não conscientizados. 40
1.4 - Os agenciamentos, os indivíduos e a subjetividade. 42
1.5 Os processos de singularização 45
1.6 Agenciamentos, subjetividades, sonoridades e música 48
1.7 Na clínica em musicoterapia 52
2 - TERRITÓRIOS E MOVIMENTOS: O RITORNELO 56
2.1 Prelúdio: o ritornelo e a música propriamente dita. 57
2.2 O ritornelo e o caos 60
2.3 Territórios: forças terrestres e forças cósmicas 65
2.4 Ritornelo e produção de subjetividade 71
2.5 Na clínica em musicoterapia 77
3 A ÊNFASE NO MÚLTIPLO: O RIZOMA 81
3.1 A metáfora e sua aplicação 81
3.2 Rizoma, sonoridades e música 85
3.3 Rizoma e produção de subjetividades 90
3.3.1 Um inconsciente maquínico. 91
3.3.2 Um corpo sem órgãos 95
11
3.3.3 Um processo contínuo: o devir 100
3.5 Na clínica em musicoterapia 103
3.5.1 Em um grupo terapêutico 103
3.5.2 Em uma instituição pública 106
4 A CONSERVAÇÃO DOS AFECTOS E PERCEPTOS: A ARTE 113
4.1 A arte como forma de pensar 113
4.2 Afecções, um conceito retirado de Espinosa. 115
4.3 A Arte como produtora de afectos e perceptos. 116
4.4 A música e seus blocos de sensíveis 121
4.5 A arte produzindo subjetividades 126
4.6 Na clínica em musicoterapia 129
5 UMA CLÍNICA NA ARTE: A MUSICOTERAPIA 132
5.1 A produção de subjetividade em musicoterapia 133
5.2 A clínica musicoterapêutica e o ritornelo 137
5.3 A clínica musicoterapêutica e a produção de blocos de sensações 142
5.4 A clínica musicoterapêutica em rizoma 148
5.5 A clínica em musicoterapia, um devir. 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS 162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 167
REFERÊNCIAS SONOGRÁFICAS 181
ANEXO- ORDEM DAS MÚSICAS DO CD 186
12
INTRODUÇÃO
Há muitos anos os temas da arte e da clínica interessam-me de perto. Tendo estudado
música a minha vida inteira, muito cedo percebi a sua potência para me sensibilizar e sensibilizar
as pessoas. Nas minhas lembranças de vida confundem-se as rodas de música popular que
existiam na casa de minha avó, quando meu pai, seus irmãos e primos cantavam, tão entregues
àquela experiência, que a hora passava célere; e as sonoridades, emocionantes para mim, do
piano de minhas tias, irmãs de minha mãe, que estudavam no Conservatório uma “outra música”.
Eu gostava muito de ambas. Gostava de conversar, também. Este duplo interesse levou-me a
graduar-me em psicologia e em musicoterapia, cursando simultaneamente as duas faculdades.
Desde então, a ciência e a arte fazem parte de minhas inquietações na vida. Optei por uma
atuação profissional em uma clínica híbrida – tanto em psicologia como em musicoterapia, e na
academia em musicoterapia.
Meu interesse por respostas que enriqueçam esta clínica esteve presente desde a época da
graduação quando, em minha monografia de conclusão de curso de musicoterapia, escrevi sobre
A importância da teoria para a prática da musicoterapia” (Chagas,1980) . No mestrado,
concluído no programa EICOS, minha pesquisa buscou compreender a constituição do
conhecimento em musicoterapia como campo de visibilidade de práticas interdisciplinares,
híbridas, que surgidas da modernidade, impõem-se na contemporaneidade aos desafios
acadêmicos
1
. (CHAGAS, 2001). Agora, em nova fase de meu percurso, a indagação do que
acontece na clínica ganha novos contornos, e outros conteúdos.
1
A dissertação “Musicoterapia, desafios da interdisciplinaridade entre a modernidade e a contemporaneidade”,
orientada pela dra. Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro, enfocou o fim a modernidade e de suas classificações
purificadoras como situação que nos coloca desafios novos de compreensão e entendimento. Baseou-se na hipótese
13
A filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari interessou-me, a princípio, pela
singularidade de um filósofo e de um psicanalista se posicionarem frente os desafios conceituais
da vida, e por incluírem a arte em tantos pontos de seu pensamento filosófico. Depois, a maioria
de seus conceitos elucidava de tal maneira a prática clínica da musicoterapia, que fui, por eles
mesmos, instigada a produzir ressonâncias de seus pensamentos em minha clínica.
O desafio deste trabalho é pensar academicamente uma filosofia que se aplica à Ciência, à
Filosofia e á Arte. Campos que se cruzam, que se tocam, que busco atravessar, mas que, segundo
a própria concepção de Deleuze e Guattari, têm diferentes maneiras de abordar o caos, ou seja:
conceitos, funções e agregados sensíveis. Dizem Deleuze e Guattari que, “por mais fortemente
elaborada por Latour (1999) que entende a contemporaneidade como àquela atitude que considera, simultaneamente,
os processos de tradução-mistura e os processos de purificação.
A modernidade, uma nova forma de pensar e de entender a realidade, se instala dentro do modo de vida ocidental
provocando uma atitude que classifica, separa e define setores e competências. A maneira moderna de pensar a
realidade implica em situá-la em dois grandes pólos: ou o que é real é o relacionamento humano - os humanos-entre-
si, a sociedade e a cultura -, ou o que é real é a natureza. Os modernos cultivam um amor pela purificação e pelo
desejo de separação, e estas são as principais características para defini-los.
Latour (1994) considera a modernidade como uma forma de designar dois conjuntos de práticas totalmente
diferentes para lidar com a sociedade e com a natureza. Ao separar a natureza da cultura, a atitude moderna utiliza
dois grandes tipos de práticas diferentes: as práticas de purificação e as práticas de tradução e de mediação. As
práticas de purificação se empenham em clarificar campos e espaços, entender separadamente situações, hierarquizar
conhecimentos. Ao mesmo tempo em que as práticas de purificação atuam, a atitude moderna produz um outro
enorme campo de atividades: as práticas de tradução e de mediação. Estas misturam coisas, situações, idéias. A
atitude moderna faz conviverem ambas as práticas, atuando simultaneamente. Quando se mistura, se separa, e se
mistura. O pólo da tradução e da mediação é componente da modernidade tanto quanto o pólo da purificação
.
O interesse moderno enfatiza a sociedade como uma entidade separada da natureza. Logo, o conhecimento que
entende a sociedade é muito diferente do conhecimento que compreende a natureza. As investigações que tratam da
sociedade são vistas como opostas às investigações que tratam da natureza. Neste contexto surgiram a ciência - como
ciência natural - e a política, posteriormente as ciências sociais.
As práticas de purificação separam os humanos dos não - humanos. E, enquanto essas práticas atuam outras
práticas, as de tradução e de mediação, os misturam. As práticas de purificação, ao criarem zonas inteiramente
distintas de humanos e de não - humanos, produzem as misturas entre os gêneros que tão cuidadosamente separaram.
É o próprio trabalho de purificação que possibilita a mediação, visto que separa o que na vida é junto, afasta o que no
cotidiano se entrelaça: coisas, sentidos, ações.
O resultado desta mistura proibida-permitida entre natureza e cultura é o surgimento de seres híbridos . Latour
(1994) considera que tanto os híbridos quanto os puros entranham-se na modernidade. Os híbridos, nesta concepção,
são todas as coisas-seres, misturas de natureza e de cultura, com as quais lidamos cotidianamente. Já nos são tão
familiares que nem nos apercebemos de sua origem inteiramente híbrida.
O conhecimento interdisciplinar, considerado como uma forma híbrida interessa-se por situações diversas segundo
uma maior ou menor síntese de conhecimentos abrangidos, sejam eles purificados ou traduzidos A musicoterapia é
apresentada como situação exemplar deste conhecimento interdisciplinar híbrido que carrega o incômodo e a
potência oriundos da tensão provocada em misturar arte e ciência e, produzido na modernidade se pretender
contemporâneo. (ver a pesquisa completa em CHAGAS, PEDRO, 2007)
14
que um artista se interesse pela ciência, jamais um composto de sensações se confundirá com as
‘misturas’ do material que a ciência determina em estados de coisas”. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 217). Sabemos disso, já que compete à ciência diminuir a velocidade do caos, para olhá-
lo, entendê-lo; à filosofia, aumentar a sua velocidade para conceituá-lo; e à arte, tentar domar o
caos, fugir dele enquanto, ao mesmo tempo, se agarra em suas velocidades...
A tarefa proposta nesta tese, portanto, é ousada. No entanto, a maior ousadia, não é a
minha. É desta clínica musicoterapêutica que canta, toca e dança para afastar os males e para
chamá-los, exorcizá-los e incorporá-los. Quem se propõe a estar nos espaços acadêmicos e nas
rodas de samba, nos debates sobre pesquisa e nos corredores lúgubre de hospitais, nas vozes das
crianças e nas sonoridades dos velhos é esta clínica da arte. Uma clínica que, embora se abra para
muitos trabalhos emocionantes, precisa ser pensada e discutida.
Peter Pelbart
2
, na argüição da tese de doutorado de Silvio Ferraz, sica e Repetição, lhe diz:
pareceu-me que você não aplicou Deleuze ao campo da teorização musical, o que
seria inócuo, mas apreendeu ressonâncias , ecos, relações de troca possíveis entre
esse campo e os conceitos de Deleuze. (...) Por outro lado você mesmo percebeu o
quanto Deleuze roubou, apreendeu, capturou do domínio musical. (...) Você então
apenas ‘retribuiu’, digamos assim, o gesto de captura mas também o de dom.
(PELBART, 2003, p. 230)
Neste estudo, busco de certo modo, apreender as ressonâncias entre a filosofia de Deleuze
e Guattari, a música e a clínica. O faço inspirada no próprio Deleuze, quando diz de Espinosa:
“sua filosofia torna-se aqui a arte de um funcionamento, de um agenciamento” (DELEUZE,
PARNET, 1998, p. 76). Penso a música e a musicoterapia igualmente como a arte que se produz
em um agenciamento. Certamente, se utilizo filosofia, arte e ciência, só poderei falar de
2
Peter Pál Pelbart é graduado em Filosofia, mestre e doutor em Filosofia. Atualmente é
professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Onde desenvolve pesquisas
articulando arte e filosofia.
15
ressonâncias, de aplicações provisórias de conceitos na clínica. A vida e sua força transbordarão,
mais cedo ou mais tarde, tornando passageiras todas as aplicações propostas.
Este trabalho, portanto, tem por objetivo explorar algumas relações entre música e modos
de subjetivação em uma clínica de musicoterapia.
Parte da hipótese de que é possível compreender a subjetividade como derivada das
afecções proporcionadas pela música e a conceitua a partir de dois vetores principais: como
produção, e como configuração de agenciamentos coletivos. A concepção de subjetividade como
produção reproblematiza o tema do sujeito, que deixa de ser pensado como uma interioridade
individualizada e dotado de uma espécie de natureza, para ser pensado em uma dimensão de
artificialidade, de maquinismo, o que de forma alguma lhe retira qualquer “autenticidade”. Ao
contrário, possibilita uma abertura para novas formas de ser. Já a concepção de indivíduo como
agenciamento aponta para sua dimensão coletiva. O individual passa a ser concebido - e
construído - em um espaço coletivo, de exterioridade, em processos, sempre presentes, de
subjetivação. A música ocupa, nessas duas perspectivas, um lugar privilegiado, visto que a sua
potência nos processos de subjetivação pode ser concebida em termos dos agenciamentos
coletivos que produz e/ou favorece..
Outros pesquisadores brasileiros já utilizaram o referencial proposto por Deleuze e
Guattari para problematizar a produção de subjetividade e modos de agenciamentos coletivos
através da arte, da clínica, ou da clínica que envolve a arte.
Peter Pál Pelbart, por exemplo, vem realizando um teatro filosófico desde 2001, quando o
Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto reservou uma ala para performances
filosóficas e convidou-o, juntamente com a atriz e bailarina Ondina de Castilho, para
desenvolverem um trabalho sobre Deleuze, particularmente sobre o Anti-Édipo. A composição
do cenário - desde a porta da sala, com um luminoso piscando escrito La Borde, ao centro do
16
espaço cênico, que incluía onze porquinhos vivos; a música escolhidaConcerto em memória de
um anjo, de Berg
3
; o texto-filosófico dito pelo performer; ao título do panfleto explicativo
distribuído no final“ pérolas aos porcos”, tudo instigava a inquietude da platéia. Neste texto,
Pelbart explica que Deleuze afirmou que um escritor sempre se dirige ao animal que existe dentro
do homem. Convocando as forças inumanas que nos habitam e subjazem à nossa forma humana,
o próprio Deleuze escreveu para os que não podem ler: analfabetos, animais e crianças. Pelbart
encerra o texto lembrando a evocação de Deleuze a um sentimento de vergonha de ser homem,
frente à vulgaridade e à baixeza contemporâneas, surgidas do pensamento–para-o-mercado que
predomina nas democracias ocidentais. (PELBART, 2004).
Silvia Balestreri Nunes
4
, em sua tese “Boal e Bene: Contaminação para um teatro
menor”, discute formas de contaminação no teatro do oprimido
5
a partir de aspectos da filosofia
da diferença e da percepção do teatro de Carmelo Bene estudadas por Deleuze e Guattari. No
teatro do oprimido enfatiza-se a busca por um teatro sem espetáculo e por um novo ator, sem
substância. Nele, o espectador não delega poderes ao ator, assumindo, ele mesmo, o papel de
protagonista e alterando a ação dramática. Boal, na conclusão de Nunes, faz do seu um “teatro
menor”, isto é, um teatro que prioriza o devir-minoritário, o devir de todas as engrenagens da
sociedade que possibilitam os processos de subjetivação singulares. O teatro do oprimido
3
Segundo Pelbart, a música preferida de Deleuze.
4
Silvia Balestreri Nunes é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Clínica. Atualmente é
funcionário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
5
Criado pelo brasileiro Augusto Boal, o teatro do oprimido é um conjunto de técnicas teatrais,
organizadas em diferentes modalidades, que tem como principal objetivo colocar algumas
maneiras de fazer teatro a serviço da transformação social, possibilitando a seus praticantes
expressar e debater, através da cena, situações opressivas que vivem e compartilhar com as
platéias a busca de alternativas para o fim dessas opressões. Hoje é praticado em dezenas de
países. (Nunes, 2004,iv)
17
“expande a experiência teatral para além de uma história a ser contada” (2004, p. 125), para
colocá-la no lugar de um grande, e potente, facilitador de agenciamentos através da arte.
Maria Augusta Silva de Moraes Bittencourt
6
escreveu, em seu mestrado em Comunicação, a
dissertação “Comunicação e criação de subjetividades e territórios na favela: o poder do algo
mais e da alegria”. (2002) Pesquisou o Grupo Cultural AfroReggae, de Vigário Geral; o Grupo
de Teatro Nós do Morro, do Vidigal e a Cia. Étnica de Dança, do Morro do Andaraí,
dimensionando o papel transformador desempenhado pela atividade artística sobre a vida dos
indivíduos e do coletivo pesquisado. Verificou-se que as atividades desses grupos privilegiam a
qualidade das relações humanas assim como da criação artística e potencializam os valores
pessoais e locais, por um lado. Por outro, desenvolvem um novo tipo de agenciamento da
produção artístico-cultural da favela, que abre espaços de visibilidade, de interferência e de
comunicação no meio cultural convencional em condições de igualdade com os produtores
advindos de segmentos sociais que tradicionalmente dominam esse campo.
Luis Eduardo Ponciano Aragon
7
, médico e psicanalista, pesquisa o que chama de “uma
forma de sofrer particularmente atual” (2005, p IX), que decorre da distância entre a alta
produtividade de objetos formais utilizados pela medicina e a restrição do poder de apreender a
realidade de forma intensiva, intuitiva. Utiliza o conceito de esquizoalgia, a agonia impensável,
isto é a “sensação de um sofrer difuso e intenso, que emerge justamente no limiar do processo de
subjetivação, de seu abafamento e produção” (id.,p.3). Pensa o sofrer como relacionado à própria
6
Maria Augusta Silva de Moraes Bittencourt é musicoterapeuta e mestre em Comunicação e
Cultura.
7
Luis Eduardo Ponciano Aragon é médico, mestre em Medicina e doutor e, Psicologia Clínica.
Atualmente é Ecocardiografista da Hospital Ana Costa e Pesquisador da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
18
emergência do processo de subjetivação e busca encontrar, utilizando na tese uma cartografia de
sua experiência pessoal, a potência de uma clínica que lida com o campo de forças imateriais.
Propões a escuta do sofrimento, sem recusá-lo, percebendo-se quais rumores pedem passagem.
Reflexões sobre as tecnologias não materiais em saúde e a reestruturação produtiva do
setor: um estudo sobre a micropolítica do trabalho vivo”’ é a tese de livre docência, defendida na
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em 2000, posteriormente
transformada em livro (2002) por seu autor, Emerson Elias Merhy
8
. Parte do princípio que somos
tanto “sujeitos de saberes e das ações que nos permitem agir protagonizando processos novos
como força de mudança”, quanto, ao mesmo tempo, “sob outros recortes e sentidos, somos
reprodutores de situações dadas” (p. 15). Em cada um desses ângulos somos responsáveis pelo
que fazemos. O tema central de sua tese é o estudo da reestruturação produtiva do setor de saúde,
com foco nos seus processos produtivos, suas composições tecnológicas e os modos de governá-
los. Pretende, a partir da categoria analítica trabalho vivo em ato, contribuir com o entendimento
a composição da “caixa de ferramentas” dos gestores das organizações de saúde. Demonstra que
na micropolítica dos processos do trabalho em saúde é necessário compreender que os núcleos de
intervenções tecnológicas permitem a existência de processos singulares de transições para
processos de reestruturações produtivas no setor de saúde, marcados pelo lugar ocupado pelo
território das tecnologias leves
9
.(2002 p 64). Do mesmo modo, no campo da saúde, o objeto não é
8
Emerson Elias Merhy é médico sanitarista, mestre em Medicina e doutor em Saúde Coletiva. Atualmente é
professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas, professor colaborador da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e livre-docente da Escola Politécnica Joaquim Venâncio.
9
As tecnologias duras são as estruturais, as representadas pelas máquinas e pelos instrumentos; as leve-duras são as
que constituem os saberes estruturados.e as leves referem-se ao que é estabelecido nas relações.
19
a cura, ou a promoção e proteção da saúde, mas a produção do cuidado, através do qual poderão
ser atingidas a cura e a saúde, que são, de fato, os objetivos que se quer atingir.
A própria experiência clínica foi problematizada por Eduardo Passos
10
e Benevides
11
(2004) em seu texto “O que pode a clínica? A posição de um problema e de um paradoxo“.
Acreditam que a clínica se situa em um ponto ilocalizável entre ela mesma, o Corpo e a Arte.
Admitindo a grande dificuldade para responder a pergunta onde a clínica se passa, optam por
entender o que se passa na clínica. Utilizam, para isso, as indicações de Espinosa sobre a
potência, sempre surpreendente, do corpo e suas afecções. Concluem que a clínica é um modo de
por em relação, um poder de afetar e ser afetado por um conjunto de afecções que se estabelecem
através de uma produção maquínica dos corpos, das relações e das pulsões. O desafio da clínica é
tornar o inconsciente em sua função expressiva na existencialização da realidade, isto é: a
possibilidade de, na clínica, tanto a realidade de si, quanto a realidade do mundo emergirem
“como efeitos de modulação do inconsciente”. (p. 285)
Lygia Clark, premiada artista plástica brasileira, amplia seu universo de criação artística,
atendendo pessoas como clientes. O trabalho terapêutico de Lygia Clark foi discutido por Mauro
Costa
12
e Suely Rolnik
13
na perspectiva deleuziana.
10
Eduardo Henrique Passos Pereira é mestre e doutor em Psicologia. Atualmente é Professor
Adjunto IV da Universidade Federal Fluminense.
11
Regina Duarte Benevides de Barros è mestre e doutora em Psicologia, com pós-doutorado em
Saúde Coletiva. Atualmente é professor adjunto IV da Universidade Federal Fluminense.
12
Mauro José Sá Rego Costa é doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde desenvolve sua pesquisa
em teoria do rádio, rádio-arte, rádio experimental, radio educativa e rádios comunitárias.
13
Suely Belinha Rolnik é mestre e doutora em Psicologia. Atualmente é professor titular da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenadora do Núcleo de Estudos da
Subjetividade. Escreveu com Guatttari “Micropolítica, cartografias do desejo”.
20
Mauro Costa considera que o trabalho terapêutico de Lygia Clark abre o espaço da
experiência artística para a vivência desta experiência no próprio corpo, através da criação de
objetos relacionais
14
. As suas proposições
tinham como estratégia ampliar a consciência sensorial e afetiva de si e do outro,
sozinho e no bojo de relações, em duplas ou em grupo – através de ‘máquinas’ que
modificam o ‘funcionamento’ do seu Bicho-corpo, impedindo ou canalizando
determinados movimentos, ou ligando ‘partes’ de forma nova, ou juntando o seu
corpo aos dos outros, em partes e meios incomuns ou diversos. (1996, p 122).
Lygia Clark tentou sistematizar sua técnica e construir uma teoria que a fundamentasse a
partir da psicanálise
15
, mas desistiu da teoria sem desistir da prática. Contemporânea do
movimento que revolucionou a psiquiatria, com Franco Basaglia, Ronald Laing e Guattari, “o
percurso de Lygia Clark na arte (e na terapia), no entanto, é inteiramente singular: uma artista que
desenvolveu um método terapêutico a partir da pesquisa em arte”. (Id., p. 129) . Atualmente Lula
Wanderley
16
continua a idéia da clínica proposta por Lygia Clark no Espaço Aberto ao Tempo,
uma das primeiras manifestações de uma psiquiatria contemporânea no Rio de Janeiro, onde
trabalha atualmente, desenvolvendo pesquisas no tratamento das psicoses com a arte.
Suely Rolnik chama o que se produz na obra de Lygia Clark, quando a artista se propõe
terapeuta, de o híbrido arte/clínica. Na tarefa de utilizar as práticas de artes plásticas em uma
dimensão clínica, não se trata de abandonar a arte, nem de trocá-la pela clínica, mas “habitar a
14
Faziam parte destes objetos, por exemplo, almofadas – leve, leve-pesada e pesada; um grande colchão bem espesso
cheio de isopor; um colchão de isopor coberto de voile; sacos plásticos cheios de ar, de água, de sementinhas,
estopa, conchas... Enfim, os mais diferentes materiais que eram manipulados sobre o corpo do paciente, tirando a arte
de um espaço contemplativo para colocá-lo no próprio corpo do cliente.
15
“Sei que parece ‘bruxaria’ até para mi mesma, o que muito me alegra. Pude sistematizar o
trabalho mas nunca consegui fazer uma teoria “ (CLARK, apud COSTA, 1996, p 124)
16
Lula Wanderley é médico e artista plástico. Trabalhou com Nise da Silveira na Casa das Palmeiras e no Museu de
Imagens do Inconsciente. Contribuiu com Lygia Clark na transposição do Objeto Relacional para uma proposta
psicoterápica junto a esquizofrênicos em hospitais psiquiátricos.
21
tensão das bordas de cada um desses terrenos” (1996 p.140). A transversalidade existente entre
essas duas práticas mobiliza a potência crítica presente tanto na arte, quanto na clínica. O híbrido
arte/clínica dá visibilidade a uma dimensão clínica
da arte e a dimensão estética da clínica, além de
enfatizar, em ambas, uma mesma dimensão ética. Esta dimensão se manifesta na necessidade de criação
de condições para que as pessoas possam se expor ao mal-estar provocado pelo trágico e desenvolver
meios para enfrentar suas exigências.
Por colocar-se nessa zona fronteiriça, sua obra tem virtualmente a força de ‘tratar’
tanto a arte quanto a clínica para que essas possam recuperar sua potência de crítica
ao modo de subjetivação em vigência, em função das diferenças que pedem
passagem; potência de revitalização do estado de arte, do que depende a invenção da
existência. Seria essa sua utopia?. (ROLNIK, 1996, p140).
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
17
, terapeuta ocupacional, depara-se em sua prática
com fragmentos estéticos ou performances que não podem ser reproduzidos e constituem
momentos privilegiados em que arte, saúde, loucura e precariedade se conectam. Coloca em
cheque os limites entre a arte e não-arte, entre arte e vida. Sua pesquisa associa-se às que
movimentam a arte contemporânea. Desenvolve uma reflexão sobre as transformações ocorridas
em relação à recepção de obras de arte produzidas em situações da clínica, concluindo que houve
uma mutação da sensibilidade contemporânea que provocou um deslocamento nas relações entre
arte, loucura e clínica. Esta nova sensibilidade é que possibilita outro olhar sobre as obras
produzidas na fronteira com o campo clínico.
17
Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima é terapeuta ocupacional, mestre e doutora em
Psicologia. Atualmente é Professor da Universidade de São Paulo.
22
Marcus Vinicius Machado de Almeida
18
, em seu livro “Corpo e Arte em Terapia
ocupacional” (2004) propõem uma terapia ocupacional do corpo inteiro. Entende cada fazer
como a possibilidade de significar a transformação dos sujeitos, e a arte como a capacidade que
tem o corpo de produzir novas existências criativas, originadas tanto dos atos simples e
cotidianos, quanto das atividades mais elaboradas e eruditas. Enfatiza a grande potência da
terapia ocupacional a partir de sua possibilidade de produzir novos corpo e novos sujeitos a
partir do fazer - a arte e o artesanato ocupando o mesmo status de produção. .
Em sua dissertação de mestrado “Escutas em musicoterapia: a escuta como espaço de
relação”, Lilian Monaro Engelmann Coelho
19
dialoga com o pensamento sobre a escuta,
desenvolvido nos campos da música do século XX, e algumas das concepções propostas por
Deleuze e Guattari: o desejo como propulsor de “uma produção que fabrica escutas, o ritornelo e
os regimes de signos. Coloca em foco a escuta musicoterápica e seus espaços de relação,
enfatizando uma escuta que inventa mundos.
Leomara Craveiro Sá
20
investiga, em sua tese de doutoramento, a clínica
musicoterapêutica de autistas em um referencial deleuziano, publicada com o título de “A teia do
tempo e o autista: música e musicoterapia” (2003). Seu principal argumento é que a trama
18
Marcus Vinicius Machado de Almeida é graduado em Terapia Ocupacional, e em dança .
Especialista em Musicoterapia, mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (1997) e doutor em Educação Física.. Atualmente é professor assistente da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e professor da graduação e da pós graduação do CBM-CEU.
19
Lilian Monaro Engelmann Coelho - Musicoterapeuta clínica, mestre em semiótica e comunicação pela PUC/SP,
professora de musicoterapia das faculdades: Paulista de Artes e UniFMU.
20
Leomara Craveiro de Sá é musicoterapeuta, doutora em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora-pesquisadora na
Universidade Federal de Goiás.
23
terapêutica desenvolvida em sessões de musicoterapia permite a produção de um regime híbrido
de signos, inclusive musicais, possibilitando conjunções e conexões variadas. Esta variedade atua
como facilitador de comunicação e interação para aqueles que, como os autistas, apresentam
maneiras diferentes da maioria de se acoplarem ao mundo.
Ronaldo Millecco
21
, musicoterapeuta que primeiro investigou os processos de
subjetivação na educação musical e na musicoterapia, considera que em ambas situações a
música é meio de expressão para o desenvolvimento de novas sensibilidades, abrindo canais de
comunicação que desencadeiam grandes transformações subjetivas (2000, p 86). A arte, nos
projetos “Tocando a Vida” – do Conservatório Brasileiro de Música – e “Cancioneiros do IPUB”,
estudados por Millecco, aparece como “uma das formas de processo criativo, podendo levar ao
extremo a capacidade de invenção e auto afirmação de fontes existenciais” ( Id, p. 91).
Renato Tocantins Sampaio
22
cria o “musicoterapia autopoiética” em sua dissertação para
propor uma nova forma de pensar e de aplicar o Fazer Musical na prática clínica
musicoterapêutica à luz da Semiótica e da Comunicação. Baseado em uma perspectiva não-
representacionista de Mundo e de Comunicação, na qual existe uma interligação entre os planos
biológico, psíquico e social do ser humano, compreende a Saúde como uma manutenção do viver.
Busca um regime pós-significante, onde é quebrada a circularidade do signo e propiciado o
surgimento de linhas de fuga diversas, favorecendo a ação mais do que a idéia, a subjetivação
mais do que a interpretação.
21
Ronaldo Pomponet Millecco (1955-2001) graduou-se se em musicoterapia e em psicologia.
Seu mestrado foi em Educação Musical. Além de suas atividades acadêmicas, na graduação do
Conservatório Brasileiro de Música e na pós–graduação da Universidade Federal de Goiás, foi
poeta, compositor e músico.
22
Renato Tocantins Sampaio é musicoterapeuta, mestre em Comunicação e Semiótica.
Atualmente é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em musicoterapia e graduação
em pedagogia da Universidade de Ribeirão Preto.
24
A problematização principal que me proponho a desenvolver na presente tese, diferindo
de todos acima mencionados, articula-se em torno da produção de subjetividade ocorrida na
música e na clínica musicoterapêutica e vincula-se ao Projeto “Produção de Subjetividade na
Sociedade Tecnológica”, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social – EICOS, sob a coordenação da Profª Dra.Rosa Maria Leite
Ribeiro Pedro, e que, juntamente com o Projeto “Redes e controvérsias: conhecimento e inovação
na sociedade tecnológica” integra o Grupo de Pesquisa “Cultura Contemporânea: Subjetividade,
Conhecimento e Tecnologia” (CNPq). O projeto “Produção de Subjetividade na Sociedade
Tecnológica” tem como objetivo geral explorar os modos de produção de subjetividade no
contexto da sociedade contemporânea, considerando a intensa mediação propiciada pelas novas
tecnologias - cognitivas, comunicacionais e biomédicas.
A questão que me movimenta é em que medida os referenciais propostos por Deleuze e
Guattari podem servir para iluminar a clínica em musicoterapia, para lançar luz sobre processos
de subjetivação que acontecem nessa clínica.
Opto, nesta tese, pela forma de ensaio: “forma livre e por isso arriscada, (...) um exercício
do pensar.” (D’AMARAL 1995 p.7). Meu interesse é compreender a subjetividade como
produzida em passagens transversais entre música e as sonoridades na clínica musicoterapêutica.
Inspirou-me, na sua construção, a posição proposta por Suely Rolnik, segundo a qual a
“teoria é sempre cartografia”. (1989, p.66) Entendendo como cartografia esse desenho que
acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação acontecem na
paisagem. A tarefa do cartógrafo é “dar língua aos afetos que pedem passagem” (Id., p. 15).
Um cartógrafo deve mergulhar nas intensidades de seu tempo e estar atento às linguagens que
encontra, para incorporar, na composição das cartografias, todos os elementos que se fazem
necessários.
25
O cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. Não tem o menor racismo de
freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os movimentos do desejo,
tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-
vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. O problema,
para o cartógrafo, não é o do falso-ou-verdadeiro, nem o do teórico-ou-empírico, mas
sim o do vitalizante-ou-destrutivo ativo-ou-reativo. O que ele quer é participar,
embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de realidade.
(ROLNIK, Ibid., p.66 a 68)
Nesta cartografia utilizei canções, outras teorias, extratos de sessões clínicas, poesia,
vários elementos, enfim, serviram-me como operadores conceituais. Todos favoreceram a
passagem das intensidades que percorrem meu corpo no encontro com a teoria que pretendo
entender
23
.
Esta é uma pesquisa teórico conceitual buscando, sobretudo na obra de Deleuze e
Guattari, os conceitos necessários para a construção do argumento para a subjetivação a partir da
música, e das ressonâncias da música na clínica. Portanto, busco na clínica em musicoterapia o
lugar de visibilidade desta construção, através da exemplificação realizada com casos clínicos
publicados. A maioria desses casos pertence à minha própria clínica. Sua escolha, a semelhança
do que propõem Deleuze e Guattari, também se deu a partir das afecções, ou seja, estão aqui
relatadas algumas das situações clínicas em que a música , ou seus elementos, se mostram mais
potentes para mim.
O critério, e princípio, de avaliação utilizado pelo cartógrafo
é o do grau de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com o caráter de
finito ilimitado que o desejo imprime na condição humana desejante e seus medos. É
o do valor que se dá para cada um dos movimentos do desejo. (ROLNIK , Ibd., pp.
69-70)
23
“’Entender’, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada
em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os
lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo,
inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem”. (ROLNIK, 1989 p 67)
26
Assim, dado exclusivamente ao grau de minha própria intimidade, e do caráter finito e
limitado de minha condição humana, optei, no fluxo de meus desejos, sempre que possível, pelos
exemplos de musicas brasileiras e, particularmente da canção brasileira.
O plano da tese foi estabelecido de modo que, em cada capítulo, haja a exposição do
conceito a partir da obra de Deleuze e Guattari, a articulação deste conceito com a produção de
subjetividade com a música e com a clínica em musicoterapia
O primeiro capítulo, “Sobre a produção de subjetividade: uma visão maquínica” constrói
a hipótese central de toda a tese: o sujeito como produção efetivada em agenciamentos
maquínicos coletivos. Utilizando argumentos para uma nova concepção de subjetividade, analisa
os eixos que compõem os agenciamentos que a engendram. Aponta os processos de
singularização como a estratégia na qual o individuo se reapropria dos componentes da
subjetividade. Analisa os agenciamentos que ocorrem na produção de subjetividades nas
sonoridades e na música, terminando por narrar na um caso da clínica de musicoterapia.
O segundo capítulo, “Territórios e Movimentos: o Ritornelo” inicia-se com uma breve
exposição sobre conceito de ritornelo em música, seguido das concepções dos movimentos do
ritornelo - alcançar o território para afastar o caos, habitar o território e desterritorializar o
território para lançar-se no caos - e suas relações com a música e o sonoro. Analisa a concepção
de ritornelo na produção de subjetividade e expõe exemplos da clínica em musicoterapia.
O terceiro capítulo, “A ênfase no múltiplo: o rizoma” apresenta o conceito de rizoma,
iniciando pela exploração desta metáfora e de seus princípios. Aplica as concepções de rizoma
nas sonoridade e na música. Discute como a produção de subjetividade se dá de uma maneira
rizomática, utilizando-se das hipótese de um inconsciente maquínico, de um corpo rizomático e
de um corpo sem órgãos e do processo de devir. Termina expondo exemplos de situações clínicas
em musicoterapia.
27
O quarto capítulo, “A conservação dos afectos e perceptos: a arte” parte da concepção da
arte como produtora de conhecimento que territorializa o caos através da conservação de afectos,
no sentido espinosiano, e de perceptos. A partir daí, explora as maneiras como isto se dá na arte
em geral e na música em particular. Verifica alguns modos com que a arte produz subjetividade
e termina expondo exemplos de situações clínicas em musicoterapia.
O quinto capítulo, “Uma clínica na arte: a Musicoterapia’ versa sobre a ressonância que
esse referencial até então exposto - a produção de subjetividade, o ritornelo, a produção de blocos
de sensações,o rizoma, e um devir – faz com essa clínica
Segue-se a conclusão em que se confirmam a possibilidade da exploração teórica proposta
e indica a conseqüência da pesquisa realizada na produção de uma atitude política que enfatiza as
intensidades provocadas pela arte na relação entre as pessoas.
A semelhança do referencial adotado, este é um trabalho que comporta múltiplas entradas,
múltiplos agenciamentos. O leitor pode escolher lê-lo na ordem aqui apresentada, ou iniciar a sua
leitura por qualquer um dos capítulos, ou ainda escolher apenas os conceitos teóricos, ou a
aplicação deles ma música ou, ainda, somente ler a prática clínica da musicoterapia.
Provavelmente, qualquer que seja a forma escolhida para a leitura, as bordas de encaixe
apresentarão vazias, pois não se trata de armarmos um quebra cabeça com um desenho fixo a ser
remontado, mas melhor compararmos à observação de um caleidoscópio, com seus belos
desenhos que surgem e desaparecem segundo o movimento que empreende que o observa.
Acompanha a tese um cd, onde se pode escutar os exemplos indicados no texto com uma
possibilidade de afecção mais ampla que o da escrita musical.
28
1 - SOBRE A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE: UMA VISÃO
MAQUÍNICA
“Há muito tempo que eu sai de casa
Há muito tempo que eu cai na estrada
Há muito tempo que eu estou na vida
Foi assim que eu quis
E assim eu sou feliz
Principalmente por poder voltar
A todos os lugares onde já cheguei
Pois lá deixei um prato de comida
Um abraço amigo
Tempo pra dormir e sonhar
E aprendi que se depende sempre
De tanta muita diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
É tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho
Por mais que pense estar
É tão bonito quando a gente
Pisa firma nessas linhas que estão
Nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente
Vai a vida nos caminhos onde bate
Bem mais forte o coração, o coração”.
24
Gonzaguinha
24
- Canção de Gonzaguinha - Caminho do Coração, Pessoa Pessoas, do Cd Caminhos do Coração – 1982. Faixa
número 1 do cd.
29
1.1 Uma forma de produzir sujeitos
Pensar a subjetividade como produção implica uma mudança do questionamento sobre os
sujeitos, fazendo-a derivar dos sistemas de enunciados e de estruturas subjetivas pré-formadas em
direção aos agenciamentos de enunciação,. Agenciamentos estes capazes de forjar “novas
coordenadas de leitura dos problemas e de colocar na existência representações e proposições
inéditas.” (GUATTARI, 1989, p. 28). Assim, o estudo das subjetividades, sob essa perspectiva,
não será a demarcação dos limites de um eu, interior, estrutural, mas a idéia de que o eu é o
“efeito de uma função ou operação que sempre se produz na exterioridade desse eu”.
(DOMENECH; TIRADO; GÓMEZ, 200, p. 122) O sujeito, então, deixa de ser unidade-identida-
de, para ser concebido como “envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato
com o exterior.”( Id., p. 122)
Para exemplificar como se dá a construção de um sujeito psicológico, o sociólogo Francês
Bruno Latour observou as sessões de etno-psiquiatria
25
realizadas por Tobie Nathan em Saint-
Denis, periferia de Paris, no Georges Devereux
26
, de ajuda psicológica às famílias migrantes. É
importante ressaltar que Latour não estava observando os dispositivos de cura postos em ação,
mas compreendendo “do que são feitos os sujeitos brancos”. (LATOUR, 2002, p. 72).
25
A etnopsiquiatria é uma prática da psiquiatria que “integra de forma igual a dimensão cultural
do problema psicológico e sua abordagem, e a análise dos funcionamentos psíquicos internos.
Essa psicoterapia recorre igualmente a antropologia e a psicanálise”. (CAVALCANTE, 2001).
26
Em Reflexões sobre o culto moderno dos deuses e fe(i)tiches (2002), Latour evidencia a convicção “que permite
passar à ação sem jamais acreditar na diferença entre construção e compilação, imanência e transcendência”
(LATOUR, 2002, p 46). Utilizando-se da antropologia simétrica, analisa os fé(i)tiches dos modernos - feitiço,
originário de feito, particípio passado de o verbo fazer, forma, figura, configuração, mas também artificial, fabricado,
factício, e por fim, fascinado, encantado - e demonstra que estes quebram duplamente seus fe(i)tiches: verticalmente
e lateralmente. Verticalmente, separando o pólo sujeito e o pólo objeto, o mundo das representações e o das coisas.
Lateralmente, afastando a forma de vida teórica, que acredita na distinção dos objetos e dos sujeitos e a forma de
vida prática, que mistura o que é “fabricado por nossas mãos e o que está além de nossas mãos” (LATOUR, 2002, p
57).
30
A equipe de profissionais que atende aos pacientes é formada por psiquiatras,
psicólogos, estudantes, etnólogos, família do paciente (tio, mãe, pai, irmão ou filhos), paciente,
visitantes, jornalistas, curiosos e transeuntes que participam da sessão. O paciente ocupa, nesse
círculo, um lugar “sem privilégio nem inferioridade” (Id., p. 70) e só é chamado de paciente para
preencher os registros da previdência social. Todos são migrantes, falam em sua língua materna e
os profissionais traduzem sua fala. Para o pesquisador, o paciente, no princípio bastante ativo,
está presente, e sua doença se ajusta bem à sua pessoa, mas vai rapidamente deixando o centro da
sala e da conversa, e a doença vai se desprendendo dele ao longo da entrevista.
Alguns tentam falar dele, dotá-lo de uma interioridade, de uma história própria, de
uma responsabilidade:’ Ele está melhor, ele se encarrega mais de si próprio, ele está
aberto, ele se comunica’, mas isso parece interessar pouco aos outros. Eles olham para
baixo, para cima, para o lado, para outro lugar, e falam de qualquer outra coisa. Do
que? Das divindades. No início, o paciente se espanta, constrangido. Esgotado por
dezenas de entrevistas psicológicas (seria preciso dizer psicogênicas
)
27
, ele parece
entediado de falar disto. Disto? Não absolutamente, vocês não estão compreendendo.
Não se procura de modo algum, neste círculo, passar da sala de jantar para a cozinha,
e de lá, para os fundos da cozinha ou para o porão. Não, as pessoas não se interessam
em absoluto por ele, nem por sua superfície, nem por sua profundidade. Se vieram
para falar do filho, é à mãe e aos avós que dedicamos duas horas de nosso tempo. Se
vieram para tratar da irmã, é pelo tio que ficou no seu país de origem que nos
interessamos. Se vierem para compreender o crime cometido por um beur
28
, vamos
dedicar a manhã às relações de Alá com seu pai e seu avô. O constrangimento do
paciente não dura. Depois de algum tempo, interessado, ele se mostra atento, junta-se
à conversa como se falássemos de um outro - e é de um outro, na verdade, que se fala
em várias línguas. Ele acrescenta, às vezes, sal às feridas. Acontece até mesmo, coisa
espantosa para o observador moralista e psicologizado que sou, que se ria às
gargalhadas com ele, a propósito dos dramas horríveis que se tramam no seu exterior.
(Ibid., p. 71).
O que Latour ressalta, sobre o observado, é o fato de a etnopsiquiatria, em uma sessão,
desfazer o que as entrevistas de psicologia fazem constantemente. O sujeito doente, assim
mantido pelo aparato amplo e sólido das instituições psicológicas e dos exercícios disciplinares,
27
O grifo é nosso
28
Jovem norte-africano, nascido na França de pais migrantes.
31
desaparece no Centro Georges Devereux. Isto é, se as condições de “disciplina e inquisição” que
retêm o sujeito doente não são mantidas, este sujeito doente também desaparece.
É como se, em três horas, assistíssemos à liquefação progressiva do sujeito
psicológico que se desprenderia lentamente do paciente, migraria pouco a pouco para
o meio da consulta e terminaria por ali se dissolver, para se configurar inteiramente de
outro modo. A doença, aliás, não mais encontrando a que se prender, parte de forma
precipitada também, mas ninguém dá realmente importância a isso. (LATPUR, 2002.,
p. 72)
Alexandra Tsallis
29
, pesquisadora brasileira que também observou sessões de Nathan,em
sua tese de doutorado descreve:
Qual não foi minha surpresa quando acompanhei o segundo encontro, no qual o
paciente traz três sonhos para serem trabalhados ali. Em oposição as minhas
expectativas, Nathan não começou a dar antídotos para a bruxaria, mas, muito pelo
contrário, convocou cada um dos presentes para se debruçar sobre aqueles sonhos,
ampliar aquela história de modo que, a cada instante, o rumo e o destino pudessem ser
alterados. Era o paciente que escolhia que fios trançar, que nós desamarrar, como
conduzir todas aquelas pessoas debruçadas sobre sua vida, revelando os limites de
seus olhares, de seus pontos de vista.
Com isso, percebi que o que estava acontecendo ali era a fabricação de uma versão
nova sobre os acontecimentos. Assim, não poderia reduzir o primeiro encontro a uma
simples receita de como combater os males que incomodavam o paciente. Essa tinha
sido a forma como interpretei a fala de Nathan naquele momento. Porém, o que
apareceu com mais nitidez, quando participei do segundo encontro, foi que as pessoas
estavam ali para se debruçarem sobre o que estava sendo contado como um território
a ser mapeado. Portanto, o paciente não tinha nas mãos um mapa que deveria ser
ajustado de acordo com a psicologia dos terapeutas. Inclusive, acredito que esse era
um dos motivos para o fato de eles serem em grande número; isto é, essa era uma
maneira de não deixar um modelo prévio de sujeito preponderar. A cada vez que um
terapeuta dava uma explicação, outro apresentava uma possibilidade diferente, desse
modo o paciente excluía e incluía trechos e marcações que fabricassem essa nova
versão. (2005, p.18).
Latour, em “Vida de Laboratório” já havia evidenciado a necessidade de "de-
sepistemologizar" todos os objetos das ciências exatas (LATOUR; WOOLGAR,1997). No
Centro Georges Devereux, através do reencontro com suas divindades e a perda de suas
29
Alexandra Cleopatre Tsallis é psicóloga, mestre em psicologia social e doutora em psicologia.
Atualmente é professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro e psicoterapeuta.
32
psicologias, a observação de uma sessão de etnopsiquiatria mostra como se constroem e se
desconstroem sujeitos. O seu estudo demonstra como a prática psicológica é, de fato,
psicogênica, isto é, produtora de um sujeito interiorizado.
O sujeito (...), sabe-se desde Foucault, não existe desde sempre. É preciso para retê-lo,
mantê-lo, um aparato cuidadoso, instituições amplas e sólidas, exercícios de
disciplina e de inquisição. (LATOUR, 2002 pp 71,72)
1.2 Um sujeito maquínico e seus agenciamentos.
O tema da subjetividade como produção encontra uma formulação bastante fértil na obra
de Deleuze e Guattari, cuja inspiração é a metáfora da máquina, o maquinismo. Guattari apóia-se
na caracterização que Francisco Varela atribui à máquina: "o conjunto das inter-relações de seus
componentes independentemente de seus próprios componentes" (GUATTARI, 1992, p 51). A
partir desta idéia, entendem máquina como algo que não se limita à sua materialidade, pois sua
organização é mais do que isso. Nela se identificam os elementos de sua construção, das relações
sociais, políticas e econômicas que sustentam suas tecnologias: seus elementos ontogenéticos.
Uma máquina se conecta a outras, estabelecendo uma verdadeira “relação de ontogenia (...) que a
faz abrir-se para o exterior” (Ibid., p. 42). Acopla-se, desta maneira, a dimensão ontogênica uma
dimensão filogênica. A máquina é usada, re-inventada, se relaciona com outras máquinas. Não é
raro conhecermos gerações de máquinas tecnológicas
30
“cada uma abrindo [-se] a virtualidade de
outras máquinas que virão” (Ibid., p. 42). A máquina também estabelece alteridade e também
finitude: nasce, se perturba, quebra, e morre.
30
Este aspecto das máquinas é compreendido por Guattari como um phylum, “onde há máquinas
que as precedem e outras que as sucedem” (Ibid., p. 42)
33
Ao utilizar-se a metáfora das máquinas na produção de subjetividade provoca-se um
alargamento desta concepção que se estende para além das máquinas técnicas. As máquinas
biológicas, sociais, urbanas, as mega máquinas lingüisticas, teóricas e mesmo as máquinas que
desejam incluem-se nela. (GUATTARI, 2005).
Considerando como máquina as produções sociais, urbanas, biológicas, podemos perceber
que a subjetividade como produção maquínica não se limita, apenas, à nossa atualidade
tecnológica. Toda sociedade produz suas subjetividades e todas as engrenagens utilizadas nesta
produção: instituições familiares, religiosas, tribais, militares, artísticas são equipamentos
coletivos de subjetivação. (GUATTARI, 2004, p. 178). Em cada época, a produção de
subjetividades possuirá características próprias na utilização desses equipamentos coletivos de
subjetivação. Por exemplo, as subjetividades pré-capitalistas ou arcaicas não separam, como o
fazem as sociedades capitalistas, os componentes de canto, de dança, de palavra, de ritual.
31
A subjetividade, máquina aberta para o seu ambiente, mantém todo tipo de relações com
os componentes sociais e com as subjetividades individuais através de agenciamentos. Um
agenciamento maquínico se dá no acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um
regime de signos correspondente. A unidade real mínima, não é a palavra, a idéia, o conceito, ou
o significante, mas o agenciamento. (DELEUZE, 1998, p.65). A vida se manifesta através de
vários agenciamentos “que não cessam de produzi-la”, como observa François Zourabichvili
(2004, p. 20).
31
Modos de subjetividade arcaicos desapareceram, como constata a pesquisadora brasileira doutora em Artes/Rádio
pela USP-SP Janete El Haouli: as culturas orais organizavam o cosmos; promoviam o novo círculo do ano, o novo
ciclo do mundo e a sucessão das estações através do canto e da voz que canta. (2002, p. 45)
34
Os agenciamentos, tão importantes na produção de subjetividade, se expressam em dois
eixos: um horizontal e outro vertical (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 112), ou em duas faces
ou cabeças. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.84).
No primeiro, o agenciamento comporta os segmentos de conteúdo e de expressão.
32
Conteúdo e expressão possuem forma e substância. O conteúdo é constituído pela trama dos
corpos: quando o punhal entra na carne, quando o alimento ou o veneno se espalha pelo corpo,
quando a gota de vinho é vertida na água, quando a mão segura o arco nas cordas do violino. No
de conteúdo ocorre às misturas dos corpos, uns reagindo sobre os outros. É onde se dá a
transmissão de afetos, às reações, as ações e as paixões sejam físicas, psíquicas, sociais, verbais
ou musicais. No agenciamento de expressão ocorrem transformações incorpóreas atribuídas aos
corpos: os signos e a produção de enunciados, os regimes de enunciados, o estilo e os gestos. A
expressão é constituída pelo encadeamento dos expressos. As transformações incorpóreas são
expressas pelos enunciados: “o punhal corta a carne”, “eu bebo”, “a água se torna vermelha”,
“toco as Bachianas”.
Deleuze, entrevistado por Claire Parnet esclarece que um agenciamento remete a estados
de coisas, e cada um deve encontrar o estado de coisas que lhe convenha
Há pouco, para beber... gosto de um bar, não gosto de outro, alguns preferem certo bar,
etc... Isso é um estado de coisas. Nas dimensões do agenciamento, enunciados, tipos de
enunciados, e cada um tem seu estilo, há um certo modo de falar, andam juntos, no bar,
32
Para compreender as relações entre os agenciamentos de expressão e os de conteúdo, Deleuze e Guattari baseiam-
se no modelo semiótico desenvolvido por Louis Hjelmslev, lingüista dinamarquês precursor das modernas
tendências da linguística. Sua análise é concebida em grade, com uma distribuição entre as noções de conteúdo,
expressão, forma e substância, distinguindo, desta maneira, entre a forma e substância do conteúdo e a forma e
substância da expressão. Isto é, tanto o plano de expressão quanto o de conteúdo são divididos em duas partes, -
forma e substância - dando lugar ao quadrinômio substância de conteúdo, forma de conteúdo, substância de
expressão, forma de expressão. No plano da expressão, a substância é a realidade acústica dos sons e a forma, a massa
acústica estruturada em fonemas, as diferenças fônicas. No plano do conteúdo, a substância do conteúdo são os conceitos,
os pensamentos mesmo que dispersos, sem nenhum tipo de organização ou realização lingüística, enquanto a forma do
conteúdo é o que determina as diferentes realizações lingüísticas para os mesmos significados. Por exemplo, “Ser”, “To
be”, “être”, “sein”. (CEIA, 2005)
35
por exemplo, há amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem
seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados
de coisas e enunciados, estilos de enunciação. (DELEUZE, 2001)
Conteúdo e expressão não possuem a mesma natureza, são duas formalizações não
paralelas, cada um com sua própria forma. As expressões se inserem nos conteúdos, não para
representá-los, “mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou
reuni-los, recorta-los de um outro modo”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.27) No entanto,
embora explicitados, aqui, em separado, agenciam-se como peças heterogêneas da mesma
máquina.
No segundo eixo - o vertical, o agenciamento tem aspectos territoriais ou
reterritorializados - que o estabilizam - e, pontas de desterritorialização, que o impelem. Existem
movimentos que animam os agenciamentos, os fixam ou os levam, “ fixam ou levam o desejo
com seus estados de coisas e seus enunciados” (DELEUZE; PARNET,1988 p. 86). Quando
acontece em um território, o agenciamento estabelece uma territorialidade e uma
reterritorialização que compreende todas as espécies de artifícios. Contudo, um agenciamento
igualmente provoca desterritorializações, linhas de fuga, “que o carregam para novas criações”.
(Ibid., p. 86). Os dois movimentos são tomados um no outro e o agenciamento é composto por
ambos.
Os dois movimentos coexistem em um agenciamento, e, no entanto, não se valem,
não se compensam, não são simétricos. Terra, ou antes, reterritorialização de artifício
que se faz constantemente, pode-se dizer que ela dá determinada substância ao
conteúdo, determinado código aos enunciados, determinado termo ao devir,
determinada efetuação ao acontecimento, determinado indicativo ao tempo (presente,
passado, futuro) ( Ibid., p. 86).
A territorialização possibilita a organização dos seres, através do conjunto dos projetos e
das representações dos comportamentos, dos investimentos afetivos, dos tempos e espaços
sociais, culturais, estéticos incluindo a música - e cognitivos. Contudo, o território pode se
36
desterritorializar para, em seguida, ter nova possibilidade de territorialização. Uma criança
cantarola de noite porque tem medo do escuro e, com sua canção, procura retomar o controle dos
acontecimentos que se desterritorializam depressa demais e que proliferam em direção ao cosmos
e ao imaginário (GUATTARI, 1988, p. 103)
Todo agenciamento implica territórios, cada um com seu território, há territórios.
Mesmo numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço, procuro
o território, lugar onde me sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de
desterritorialização, o modo como saímos do território. Em um agenciamento, tanto a
expressão quanto o conteúdo, integrantes do eixo horizontal, são mais ou menos
desterritorializados. (DELEUZE, 2001)
Um agenciamento, portanto, possui as quatro dimensões: estados de coisas, enunciações,
territórios e movimentos de desterritorialização. Não há agenciamento sem, territorialidade, e
reterritorialização - que compreendem todas as espécies de artifícios , assim como não há
agenciamento sem ponta de desterritorialização, sem linha de fuga, “que o carrega para novas
criações, ou então para a morte?” (DELEUZE; PARNET, op. cit.,p 86). É importante ressaltar
que, embora se identifique esses eixos, os agenciamentos se dão um uma perspectiva transversal.
1. 3 Os agenciamentos da enunciação
A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de
subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não
são centrados nem agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas ou
microssociais), nem em agentes grupais. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.31). Ao procuramos as
significações, os modos de semiotização devemos nos reportar aos agenciamentos de enunciação
desses modos de semiotização.
37
Pensar agenciamentos de enunciação é ultrapassar a problemática do “sujeito individual,
da mônada pensante conscientemente delimitada, das faculdades da alma (isto é, o entendimento,
a vontade...) em suas acepções clássicas” (GUATTARI, 1989, p 28). Os componentes destes
agenciamentos se encontram em interação entre domínios radicalmente heterogêneos e não se
reduzem às pulsões, aos afetos, às instancias intra-subjetivas e nem a relações intersubjetivas. Por
outro lado, podemos identificar as formas de enunciação que se estabelecem sobre agenciamentos
nos quais se articulam a palavra, ou a comunicação direta. No entanto, esta análise também não
basta já que os agenciamentos absorvem, atualmente, cada vez mais, recursos nos fluxos
informativos midiáticos levados pelos canais maquínicos
33
que transbordam de todas as partes
dos antigos territórios subjetivos individuais e coletivos.
Para ampliar o entendimento da análise dessas diversas modalidades de agenciamentos de
enunciação, Guattari aponta diferentes valorizações dadas aos componentes de semiotização, de
subjetivação e de conscientização no estabelecimento desses agenciamentos, como veremos a
seguir.
34
1.3.1 Os agenciamentos não-semióticos
Este tipo de agenciamento coloca os compostos semióticos propriamente ditos entre
parênteses. Guattari lembra as construções das abelhas e das formigas como um primeiro
exemplo de formas muito elaboradas às quais elas chegam, a partir de “códigos modulares”,
33
Lembremo-nos de que as máquinas que estão em questão aqui não são somente as de ordem
técnica, mas também as científicas, as sociais, as estéticas.
34
Esta lista que pode ser estendida em função de várias necessidades descritivas.
38
evidentemente nem semióticos, nem subjetivos, nem conscienciais. Esse tipo de agenciamento
pode ser exemplificado com os estudos de Evelyn Keller
35
e Lee Segel
36
que investigam a
aplicação da matemática a problemas biológicos. Esses pesquisadores se interessaram em
entender o comportamento do Dictyostelium discoideum, um fungo que passa grande parte de sua
vida movendo-se separadamente dos outros Dictyostelium discoideum. Sob condições adequadas,
milhares desses fungos unicelulares aglomeram-se novamente em um único organismo maior,
que, então, começa seu passeio pelo jardim, consumindo, no caminho, o alimento disponível.
“Quando o ambiente é mais hostil, o discoideum age como um organismo único; quando o clima
refresca e existe uma oferta maior de alimento, um ‘ele’ se transforma em ‘eles’. O discoideum
oscila entre ser uma criatura única e uma multidão” (JOHSON, 2003, p.10). Esse comportamento
se explica pela liberação individual de uma substância, a acrasina (AMP cíclico) seguida pela
liberação de feromônio, que os fungos encontram enquanto vagam por seu meio ambiente.
Quando as células do discoideum bombeiam uma determinada quantidade de AMP cíclico, os
agrupamentos começam a se formar. No início, as discoideum seguem trilhas deixadas por outras,
o que cria uma retro alimentação positiva que estimula outras células a se agregarem (bid.,
p.11)
37
.
Entre os humanos, podemos citar os padrões de comportamento de multidões como
exemplo desses agenciamentos não semióticos. O estudo desses mesmos comportamentos têm
sido utilizados para orientar estratégias que permitem antecipar os movimentos de grandes grupos
35
Evelyn Fox Keller é doutora em Física, pesquisadora em biomatemática.
36
Lee Segel é psiquiatra, pesquisador em matemática aplicada.
37
Atualmente, sistemas de encaminhamento das chamadas de celulares; a otimização do
planejamento da rota de vôo de companhias aéreas; o planejamento otimizado das rotas de aviões
entre vários aeroportos; sítios da Internet interessados em combater o excesso de trânsito utilizam
algoritmos baseados no comportamento de formigas (JOHNSON, 2003 pp170-175).
39
em situações de emergência, tais como uma evacuação em estádios de futebol e incêndio de
prédios. (EVERS; MUSSE, 2002)
1.3.2 Os agenciamentos semióticos não-subjetivos
Agenciamentos podem ser semióticos e não-subjetivos. Tal situação é explicada por
Guattari pelos quadros psicossomáticos relativos às “couraças caracteriológicas”, estudadas por
Wilhem Reich. Estas couraças funcionam sob a forma de atitudes musculares crônicas e fixas.
São mecanismos de defesa expressos nas atitudes corporais, repetitivas ou sem conexão, na
tentativa de defenderem a pessoa da angústia, do medo, da raiva (REICH, 1989). As
representações subjetivas passam aqui pela semiotização somática. O fenômeno do
encouraçamento, surgido com o objetivo defensivo de conter emoções e impulsos sentidos como
ameaçadores, tem como resultado uma contenção do fluxo de energia. Reich descreveu em
detalhes funcionais e topográficos os mecanismos motores e vegetativos relacionados com
disfunções emocionais e conteúdos psíquicos específicos.
Reich decodificou e mapeou o componente psicoemocional envolvido com o
encouraçamento de cada região do corpo. Trabalhando diretamente sobre os espasmos
musculares crônicos observou, na sua clínica, que a dissolução desses espasmos gerava ab-
reações emocionais espontâneas, respostas vegetativas e o afloramento de memórias reprimidas.
Concluiu, então, que esses espasmos musculares eram o mecanismo corporal pelo qual eram
mantidos reprimidos os impulsos e emoções associados aos conflitos psíquicos inconscientes.
(TROTTA, 2000).
40
Dentre os mecanismos fisiológicos para a supressão e repressão dos afetos, a inibição
respiratória é um mecanismo básico utilizado na neurose em geral. Na respiração reduzida,
absorve-se menos oxigênio. Com menos energia no organismo, as excitações vegetativas são
menos intensas, e mais fáceis de controlar. Vista biologicamente, a inibição da respiração nos
neuróticos tem a função de reduzir a produção de energia no organismo e de dimimuir assim a
produção de angústia. Reich conta o acontecido em sua clínica:
Tratei uma vez uma paciente que estava a ponto de cair em 'séria melancolia.
Estava deprimida e, durante um ano inteiro, não pôde ser induzida a se permitir
nem a mais leve emoção. Durante muito tempo, não entendi como é que fazia para
enfrentar as situações mais difíceis, sem ser afetada. Finalmente, a situação tornou-
se clara. A mais leve manifestação de sentimento, ‘regulava algo no estômago’,
prendia a respiração e olhava inexpressivamente para o espaço. Os olhos pareciam
vazios; pareciam ‘voltados para dentro’. A parede abdominal tomava-se tensa e as
nádegas encolhiam-se. Disse mais tarde: ‘Amorteço a minha barriga; então não
sinto mais nada - se não a minha barriga tem uma consciência má’. O que queria
dizer era: ‘Se não a minha barriga tem sensações e, por isso, uma consciência má’.
(REICH, 1990, p.261)
1.3.3 Os agenciamentos semióticos, subjetivos não conscientizados.
Os agenciamentos semióticos, subjetivos podem não serem conscientizados. Tais
agenciamentos estão presentes nas aprendizagens por impressão inconsciente, nas delimitações
de território, no comportamento de acolhimento, de submissão ou de hostilidade que são
relevantes da etologia humana.
Um exemplo é o existente no comportamento de apego, estudado por Bowlby (1984). O
comportamento de apego da criança inclui todos os tipos de comportamento que promovem a
proximidade com a figura materna. Assim, as formas de comportamento mediadoras do apego no
41
primeiro ano de vida, são o sorrir e o chorar, o seguir e agarrar-se, o chamar e a sucção. Sorrir e
chorar são ações que tendem a trazer o seu cuidador para o bebê e mantê-lo junto dele e são
disparadores do comportamento de cuidado.
Seguir e agarrar-se têm o efeito de levar o bebê até o cuidador e retê-lo junto dela,
preservando a proximidade e restaurando a segurança. Chamar tem um sentido social que visa
manter o outro perto do bebê; evolui do balbuciar para a plena articulação da linguagem. A
sucção tem uma função mais complexa: visa promover a ingestão de alimentos, mas muito
precocemente sofre alterações decorrentes da experiência do bebê.
Essa concepção de agenciamentos implica uma descolagem entre a consciência e a
subjetividade. Na análise das formações do inconsciente, concebida por Guattari, é necessário
economizar, na medida do possível, o uso das noções como as de subjetividade, consciência,
significância, a título de entidades transcendentais impermeáveis às situações concretas. O
inconsciente, visto por esta ótica, é algo que se derrama um pouco em toda a parte ao nosso redor,
um inconsciente trabalhando tanto no interior dos indivíduos, na sua maneira de perceber o
mundo, de viver seus corpos, seu território, seu sexo, nos gestos, nos objetos quotidianos, na tevê,
quanto no interior do casal, da família, da escola, do bairro, das usinas, dos estádios, das
universidades... (GUATTARI, 1988, p.10).
Um inconsciente maquínico é povoado de imagens e de palavras, mas também de todas as
espécies de maquinismos que o conduzem a produzir e reproduzir estas imagens e estas palavras,
inclusive sons, ritmos e música.
42
1.4 Os agenciamentos, os indivíduos e a subjetividade.
Os agenciamentos se dão no campo da experiência, de modo que Zourabichvili conclui
que indivíduo só se constitui ao se agenciar (2004,p.21) . Para Guattari,
em certos contextos sociais e semiológicos, a subjetividade se individua: uma
pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações de
alteridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas... Em outras
condições, a subjetividade se faz coletiva, o que não significa que ela se torne por
isso exclusivamente social. Com efeito, o termo ‘coletivo’ deve ser entendido aqui
no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto
ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais,
derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem
circunscritos. (GUATTARI, 1992 pp. 29,30)
O agenciamento tanto remete a instituições fortemente territorializadas, tais como o
escolar, o conjugal, familiar etc., quanto a formações íntimas desterritorializantes, como o devir-
animal, o devir - música etc. Ambos os campos são englobados na experiência em que se
elaboram essas formações. Zourabichvili comenta que um indivíduo
oscila entre sua projeção em formas de comportamento e de pensamento preconcebidas
(...) e sua exibição num plano de imanência onde seu devir não se separa mais das
linhas de fuga ou transversais que ele traça em meio às ‘coisas’, liberando seu poder de
afecção e justamente com isso voltando à posse de sua potência de sentir e pensar (
Ibidt.,p. 21)
A subjetividade não se confunde com a individualidade. Indivíduos são produzidos em
massa, serializados, registrados, modelados. A pessoa enquanto indivíduo - totalidade egóica -
existe apenas como consumidor de subjetividade, de representação, de sensibilidade. Tratar de
"processos de subjetivação", então, não significa tratar do indivíduo, já que não existe unidade
evidente da pessoa. (GUATTARI E ROLNIK, 1986, p 30).
O que comumente entendemos como indivíduo está, então, na “encruzilhada de múltiplos
componentes de subjetividade” (Ibid, p.34), incluindo os relativos ao inconsciente, ao corpo, à
43
família, e outros do domínio da produção de poder: em relação à lei, à política, etc. A
subjetividade individual é resultado do entrecruzamento de determinações coletivas de várias
espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, midiáticas, entre outras.
O que existe é uma economia de agenciamentos coletivos de subjetividade, que podem se
individualizar em algumas circunstâncias, em alguns contextos sociais. A “subjetividade está em
circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida
e vivida por indivíduos em suas existência particulares”. (ibid, p 33)
Cada individuo lida com dois pólos dos agenciamentos: o pólo estrato dos agenciamentos
e o pólo máquina abstrata. O pólo estrato dos agenciamentos (considerados "molares”
38
) é
aquele regido por códigos específicos, caracterizados por urna forma relativamente estável e por
um funcionamento que tende a reduzir o campo de experimentação de seu desejo a urna divisão
pré-estabelecida e reprodutora. O pólo máquina abstrata (considerado molecular
39
) é onde
aparece a maneira como o indivíduo investe e participa da reprodução desses agenciamentos.
Essa maneira singular pode surgir nas pequenas irregularidades introduzidas pelo indivíduo ao
utilizar as formas socialmente disponíveis, tanto quanto na elaboração involuntária e tateante de
agenciamentos próprios que decodificam ou fazem fugir o agenciamento estratificado. Os
agenciamentos artísticos prestam-se particularmente à colocação desta marca singular, quer por
um intérprete, um diretor, um coreógrafo, quer por qualquer um de nós que, ao apropriarmo-nos,
38
-. A ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de
referência. (GUATTARI , ROLNIK, op. cit.,. 321
39
A ordem molecular, ao contrário, é a dos fluxos, dos devires, das transições de fases, das intensidades. Essa tra-
vessia molecular dos estratos e dos níveis, operada pelas diferentes espécies de agenciamento, será chamada de
"transversalidade”. (Ibidem )
44
por exemplo, da música que escutamos, cantamos, e dançamos fazemos fugir os agenciamentos
estratificados.
As produções maquínicas de subjetividade contemporâneas enfocam especialmente
máquinas tecnológicas de informação e de comunicação que
operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio das suas memórias, da
sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas
inconscientes. (GUATTARI, 1992, p. 14).
Neste sentido, Deleuze e Guattari ressaltam a subjetividade como matéria-prima de toda e
qualquer produção capitalista. (GUATTARI, ROLNIK, 1986., p. 26). Para esses autores, o
capitalismo - modo de produção econômica de nossas relações materiais com o trabalho e com o
capital - molda nosso modo de sentir, de pensar, de amar. Somos subjetivados de uma maneira
totalmente influenciada pelo modo de produção capitalista e a força dessa subjetividade é a de ser
produzida tanto no nível dos opressores, quanto dos oprimidos.
Estar vivo – nascer, crescer, aprender a ler, a cantar e a entender o mundo em nossa
sociedade - significa ter sido produzido nessa sociedade, com seus interesses nos valores do
mercado. O corpo, a saúde e a própria vida são produtos de compra e venda. As exigências
feitas na atualidade são as de que sejamos cada vez mais saudáveis, jovens e vivamos a vida com
mais e mais e mais prazer. Essa atitude provoca na subjetividade atual uma crescente vontade de
cuidar do corpo, fornecendo-lhe quase a mesma importância e os mesmos cuidados outrora
concedidos à alma. Estabelece-se, com este modo de afecção, uma poderosa mega indústria
constituída pela reunião entre beleza, nutrição e saúde, transformando-se todo o corpo em
45
imagens de marca e em um marketing privilegiado do eu. (SANT’ANNA
40
,2002). Vemos surgir,
então, uma possibilidade até agora inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração
biológica, está se tornando "obsoleto", necessitando de contínuos upgrades, auto-upgrades
cotidianos (SIBÍLIA, 2002)
41
.
A subjetividade, produção coletiva, histórica e contextualizada no seu tempo e em sua
cultura, traz, portanto, hoje, as marcas da ordem capitalista projetada tanto na “realidade” do
mundo quanto na “realidade psíquica”. Essa ordem incide nos esquemas de conduta, ações,
gestos, pensamento, sentido, sentimento, afeto, sensibilidade, comportamento. Relações sociais,
relações sexuais e até mesmo nossos fantasmas imaginários são afetados por ela. A ordem
capitalista se refere aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas por
diferentes níveis semióticos. Ela incide tanto nas montagens da percepção, da memorização,
quanto na modelização das instâncias intra-subjetivas, fabricando a relação do homem com o
mundo e consigo mesmo. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 42).
1.5 Processos de singularização
O modo pelo qual os indivíduos vivem sua subjetividade oscila entre dois extremos: uma
relação de alienação e de opressão, nas quais o indivíduo se submete à subjetividade tal como a
recebe, e uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
40
Denise Bernuzzi Sant’anna é professora de História da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Doutorou-se em 1994, na Universidade de Paris VII, com tese sobre a
história do embelezamento feminino.
41
Maria Paula Sibília é antropóloga argentina. Essas idéias são partes de sua pesquisa na
dissertação de mestrado em Comunicação na UFF, “O homem pós-orgânico”.
46
componentes da subjetividade, produzindo um processo de singularização. Oscilando entre os
dois pólos, não existe uma subjetividade que se estratifique em nenhum deles. Ela não é
"recipiente” - composta essencialmente de coisas exteriores, as quais seriam "interiorizadas" -,
nem uma subjetividade totalmente singular. Haverá sempre certo “jeito de utilizar a linguagem,
de se articular ao modo de semiotização coletiva”. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.34).
Aceitamos ser capturados pelo consumo, pela mercadoria, mas também nos produzimos em
relações de criação e de expressão. Na música que fruímos no dia-a-dia observamos facilmente
esse mecanismo. Por exemplo, compramos um CD, porque gostamos da entrevista do compositor
no programa de televisão. Ao cantarmos suas músicas, inventamos outra letra para a canção ou
parte dela; ou cantamos em línguas estrangeiras, sem entendermos uma palavra daquela língua;
também podemos alterar o andamento, ou desafinar ao cantarmos. Por vezes, tocarmos em nossos
instrumentos musicais – reais ou imaginários - uma conhecidíssima canção e, assim, vamos
colocando nossas marcas singulares nos processos coletivos. A subjetividade, mesmo com seus
modos de subjetivação “assujeitados”, nos traz a possibilidade de produzirmos outros, originais e
singulares.
Com a apropriação da produção de subjetividade pelo capitalismo, até mesmo o
conhecimento da singularidade está esvaziado. Atualmente, “não se conhece as dimensões
essenciais da existência - como a morte, a dor, a solidão, o silêncio, a relação com o cosmos, com
o tempo” (GUATTARI E ROLNIK, 1986, p 43). Ficamos surpresos com a raiva, com a doença
incontrolável, com a velhice, já que o que pertence ao domínio da ruptura, da surpresa, da
angústia, do desejo, da vontade de amar e de criar “deve se encaixar de algum jeito nos registros
de referências dominantes”. ( Ibid, pp. 16,17.) No entanto, podemos ativar processos de ruptura
de toda essa lógica capitalista, atuando no campo da produção do desejo. Surgem movimentos de
protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalista, através da afirmação de outras
47
maneiras de ser, de outras sensibilidades, de outras percepções. (Ibid., p 45). São os processos
singulares que transgridem e ultrapassam a barreira do previsto, do provável.
Os processos de singularização frustram os mecanismos de interiorização dos valores da
sociedade capitalista, podendo conduzir à sua afirmação em um registro particular,
independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam de todos os lados
(GUATTARI E ROLNIK, 1986, p. 47). Nesses processos, quando há um devir diferencial que
recusa a subjetivação capitalista, se sente um calor nas relações, uma determinada maneira de
desejar, uma afirmação positiva da criatividade, uma vontade de amar, uma vontade de
simplesmente viver ou sobreviver pela multiplicidade dessas vontades ( Ibid., p. 46).
O decisivo, afirmam Deleuze e Guattari, é que há a possibilidade de desenvolvimento de
modos de subjetivação singulares (Ibid., pp.16,17), de automodelações afirmadas independentes
da ordem capitalista, que rompem com a tentativa de homogeneização que a massificação
pressupõe.
Partindo da concepção de uma subjetividade produzida em agenciamentos coletivos, Guattari propôs
a esquizoanálise como uma prática clínica com ênfase na produção de novos modos de subjetivação. Em seu
trabalho na Clínica de La Borde, na França. (GUATTARI, 1992, pp 183-293), sugere ações que se propõem a
produzir um novo tipo de subjetividade, mais do que operar em remodelagens das subjetividades existentes.
Para a instalação dessas múltiplas instâncias coletivas, é interessante conhecer o processo por que passou La
Borde. Dentre outras coisas, foram criadas ações como assembléias gerais, comissões paritárias usuários-
pessoal, ateliês diversos. Integraram, também, o pessoal da manutenção – pessoal da lavanderia, faxina,
contabilidade - no trabalho do atendimento e, reciprocamente, os técnicos foram envolvidos em tarefas
materiais como a arrumação, a cozinha, a louça, a recreação.
O que visávamos, através de nossos múltiplos sistemas de
atividade e sobretudo de tomada de responsabilidade em relação a
si mesmo e aos outros, era nos libertarmos da serialidade e fazer
com que os indivíduos e os grupos se reapropriassem do sentido de
sua existência em ma perspectiva ética e não mais tecnocrática.(
Ibidem., p. 187)
48
A partir da experiência nesta Clínica, quando pacientes e funcionários revelaram capacidade de
expressão “totalmente imprevistas” (ibidem , p 188), Guattari propõe uma ação clínico-política que, atuando
no paradigma ético-estético, pudesse reorientar a finalidade da vida de conglomerados urbanos, escolas,
hospitais, prisões no sentido de uma recriação interna permanente. Cria, então, no início dos anos setenta, a
análise institucional que, a princípio se ocupou do questionamento da psiquiatria e da pedagogia tradicionais.
42
A proposta de Guattari, com a esquizoanálise, não é a de generalizar a experiência de La Borde
como um modelo transponível, mas a de propor modificações das condições de produção de subjetividade
para que possam ser orientadas em um sentido mais criativo, envolvendo não somente as facetas cognitivas,
mas outras como as afetivas, as perceptivas, as volitivas, as mnêmicas em outros agenciamentos que
privilegiam o inconsciente como fábrica e o desejo como produção
1.6 Agenciamentos, subjetividades, sonoridades e música.
Considerar a dimensão da subjetividade como produzida nos agenciamentos coletivos nos
leva a incluir, como vimos, componentes heterogêneos dessa produção, tais como os
componentes semiológicos significantes, manifestados na família, na escola, no meio ambiente,
na religião, na arte, no esporte, na mídia, no cinema. São diversas as dimensões semiológicas
produtoras ou veiculadoras de significações. Tratam-se de dimensões desses agenciamentos, que
escapam às axiomáticas propriamente lingüísticas. (GUATTARI, 1992, p. 14). Neste sentido,
Guattari (1988, p.45) aponta a música, o capital e o poder como exemplos de consistência
abstrata ou intrínseca que portam chaves de ressonâncias significativas e campos semânticos
modeladores do universo da representação da existência.
42
No Brasil , Gregório Baremblitt desenvolve em Minas Gerais interessante trabalho com a
esquizoanálise e a Análise Institucional. Ver Fundação Gregório Baremblitt
http://www.fgbbh.org.br/editora_e_distribuidora.htm
49
A produção de subjetividade envolve instâncias humanas intersubjetivas, tais como
instâncias identificatórias, interações institucionais de diferentes naturezas e universos de
referência incorporais. Coletivos diversos, tais como aqueles relativos à arte e a música, são
chamados a participar desse processo. A produção de sentido e os processos de semiotização,
como vimos, não são centrados nem somente em agentes individuais nem somente em agentes
grupais (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 31). Np entanto, os processos de produção de
subjetividade implicam o funcionamento de máquinas de expressão tanto de natureza extra-
pessoal, extra-individual, quanto de natureza infra-humana, infrapessoal.
Sistemas extra-pessoais (ou extra individuais) produtores de subjetividade são, por
exemplo, os econômicos, os sociais, os tecnológicos, os ecológicos, os etológicos, os de mídia...
As instâncias extra-pessoais que contribuem neste processo são aqui entendidas como interações
de diferentes naturezas, dispositivos maquínicos que estabelecem universos de referência
incorporais. Dentre esses, estão os relativos à música e as sonoridades É curioso pensarmos com
Carole Gubernikoff
43
que, em nossas escolas de música, ensina-se harmonia “como se esta fosse
a natureza da música e não o produto de séculos de desenvolvimento” (2001, p.10) A instância
extra-pessoal da condição harmônica ocidental produz uma percepção de que a música só é
música se seguir uma harmonia ocidental, como nos lembra Guattari: “As músicas tocadas nas
cortes das casas reais européias impuseram sua lei, suas escalas, seus ritmos, sua concepção de
harmonia e de polifonia, seus sistemas de escrita, seus instrumentos” ( 1988, p.105).
43
Carole Gubernikoff possui graduação em Música, Composição, pela Universidade de São
Paulo (1979), mestrado e doutorado em Comunicação, pós doutorado na Universidade de
Columbia, em Nova York, quando desenvolveu pesquisa sobre a música espectral e harmonia pós
serial e Messiaen. Sua tese titular versou sobre a permanência das sensações na escuta em obras
de Rodolfo Caesar e Tristan Murail. É professara titular da UNIRIO.
50
A partir de tais considerações, podemos argumentar que a atualidade, mais do que criar e
desenvolver a música modifica radicalmente as sonoridades, produzindo novas formas de
subjetivações. A industrialização, o ruído das máquinas, os apitos, as sirenes, os games
trouxeram uma enorme variedade de sonoridades, contribuindo para o estabelecimento de uma
nova paisagem sonora.
Com o advento das novas paisagens sonoras contemporâneas, observa Fátima Santos que,
“tanto a música quanto os ambientes sonoros do cotidiano nunca mais seriam os mesmos”
(SANTOS, 2002, p29)
44
. De modo análogo, poderíamos afirmar que, a partir dos modos de
sonorização contemporânea, as subjetivações nunca mais serão as mesmas...
Murray Shafer
45
, estudioso da variedade de sons estabelecidos no cotidiano, atribui aos
sons criados pela geografia e pelo clima - os sons dos ventos, das águas, dos animais, por
exemplo - a característica de sons fundamentais de uma paisagem sonora.
46
Os sons da paisagem
sonora podem se imprimir “tão profundamente nas pessoas que os ouvem, que a vida sem eles
seria sentida como um claro empobrecimento. Podem mesmo afetar o comportamento e o estilo
de vida de uma sociedade.” (SHAFFER, 2001, p. 26) As sonoridades nos acompanham nas
manifestações que nos rodeiam, e é de nossa paisagem sonora (SHAFFER, 1991), de onde
retiramos um sentido de lugar. Hildegard Westercamp
47
atribui aos significados desses sentidos,
44
Fátima Carneiro Santos é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
45
Compositor e músico canadense Murray Shafer, desenvolveu seus estudos e pesquisas a
respeito do som ambiental, observando as características e modificações desses sons no decorrer
dos tempos.
46
Shafer criou o conceito de paisagem sonora (soundscap) para designar todo e qualquer
ambiente acústico, qualquer que seja sua natureza.
47
Compositor alemão erradicado no Canadá, artista de rádio e ecólogo do som. Pesquisador da
equipe de Shafer.
51
criados na interação entre a paisagem sonora e as pessoas, um reflexo intimo das condições
sociais, políticas, tecnológicas e naturais da área. Toda comunidade tende a ter seus próprios
sinais sonoros que dão voz aos sistemas de crenças e as atividades da comunidade. A hipótese
que trata Westercamp (2003) é a de que se compreendemos os significados do som,
compreenderemos o que um lugar, uma sociedade está dizendo acerca de si mesmo, isto é,
saberemos de outros agenciamentos, muitos deles intersubjetivos que subjetivam àquelas pessoas.
Junto aos sistemas extra-pessoais na produção de subjetividade, funcionam os sistemas
infra-pessoais (ou infra-individuais). Referem-se à apreensão da existência através de processos
que atuam nos sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de
imagens, de valor, de modos de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de
automatismos, corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos (GUATTARI; ROLNIK ,1986, p.
31). Os sistemas de percepção das sonoridades atuam neste nível infra-individual. O batimento
cardíaco, os sons de inspiração e expiração, e a voz da mãe nos primeiros momentos do
nascimento e dias de um bebê estão presentes, segundo Rolando Benenzon
48
em toda a
experiência humana (1985, p 46) e fazem parte destes sistemas infra-pessoais
Para Guattari, o próprio afeto é uma categoria pré-pessoal, instaurado antes dos limites de
identidades, e se manifestando por transferências não localizáveis, tanto do ponto de vista de sua
origem quanto de sua destinação. (GUATTARI, 1989, pp 251). A parte não-humana, pré-pessoal
da subjetividade, é essencial, já que é a partir dela que pode se desenvolver sua heterogênese
“(GUATTARI, 1992, p. 20).
49
48
Rolando Benenzon é psiquiatra e músico argentino. Criador da Metodologia Benenzon em
musicoterapia
49
Uma dessas possibilidades relacionadas à música foi estudada pelas enfermeiras Andriola e
Oliveira (2006), que investigaram a influência da música na recuperação do recém-nascido
prematuro na UTI neonatal. Em sua pesquisa observaram bebês durante uma semana sem
52
1.7 Na clínica em musicoterapia
Podemos observar alguns aspectos da produção de subjetividade no atendimento de
Branca
50
, que, diagnosticada como autista, começou seu atendimento comigo em 1991, aos sete
anos, sem falar e com muitas dificuldades de comunicação. Ao iniciar o tratamento da filha, a
mãe informa que ela canta, mas o que sua mãe chama de canto são sons, vogais na maioria das
vezes, cantadas por pouquíssimo tempo. Canta apenas quando quer. Anda, anda muito. Faz
círculos intermináveis, num andamento acelerado. Acompanho sua peregrinação. Bato palmas
no ritmo de seu caminhar. Anda na ponta dos pés, cabeça projetada para frente. Parece que não
tenho importância para ela. Apresenta alguns comportamentos repetitivos: andar em círculos,
acariciar uma das mãos com os dedos da outra, sempre de uma mesma e determinada maneira.
Não se agride. Chupa o dedo e caminha.
No início do processo musicoterapêutico em um determinado momento da sessão,
depois de uma improvisação minha em que faço uma série de seis notas cromáticas
51
descendentes, ela deita-se cercada pelas almofadas. Um ninho, um útero.
Sentadas uma diante da outra, olho para ela, em silêncio. Ela parece dotada de uma
forma especial de me perceber. Sabe da minha presença, mesmo que não esteja olhando para
mim. Parece que me vê com sua pele, e, no entanto, seu olhar me atravessa. No seu ninho, faz
estímulo musical, e, posteriormente, os mesmos bebês foram observados com a presença do som
pelo período de duas semanas para cada bebê. Os bebês apresentaram melhora na saturação de
oxigênio, regulação da temperatura corporal e das freqüências cardíaca e respiratória. As
expressões faciais foram entendidas pelas pesquisadoras como de prazer (sorriso, vocalização,
reflexo cócleo-palpebral, sucção).
A conclusão dessa pesquisa foi a de que a música contribuiu na terapêutica para a
saúde.
50
O nome é fictício.
51
Notas distanciadas uma da outra por meio tom.
53
sons guturais, pré-verbais. Chego mais perto, imitando seus sons. Ela me afasta. Pega uma
almofada e abraça-a. Faço o mesmo. Ficamos assim abraçadas, cada uma à sua almofada, frente
à frente. Pego a baqueta do metalofone e, suavemente, busco um contato com ela através do
toque da baqueta em sua pele. É a primeira vez que chego tão perto dela. Ela emite, novamente,
sons guturais. Largo a baqueta e ela a segura.
Compreendo que quer a continuação do toque. Volto a tocar em suas costas, em suas
pernas. Tudo é muito delicado. A menina se levanta e toca três notas no metalofone,
aparentemente aleatórias, e sai do “ninho”. Percuto as mesmas notas, acrescento outras, e vou
atrás dela. Ela se deita por pouco tempo e logo muda de lugar, abraçando-se a outra almofada.
Deito-me em paralelo a seu corpo, a uma distância de mais ou menos um metro. Ela inicia um
som baixinho, usando basicamente a garganta e a base da língua. Parece dizer “cá, cá, cá”.
Começo, então, um jogo de me aproximar e de me afastar, um esconde-esconde. Branca, atrás
de sua almofada, ri com a brincadeira. Vou chegando mais perto. Ela ri e cantarola um “grito de
aproximação”. O som é forte e alegre. Vou chegando mais perto com a minha voz e com o meu
corpo. Encosto minha cabeça em sua almofada, até que: “a descubro”.
Ela, então, levanta seu braço e cuidadosamente toca o meu rosto. Um movimento tão
lindo, tão comum nos bebês, mas que neste momento cresce de significado. Branca me toca,
descobrindo-me, descobrindo-se. Com a mão espalmada no meu rosto, olha. A princípio olha
para trás; é grande a espasticidade no pescoço. Eu também exploro suas mãos no meu rosto,
lambo seus dedos, faço sons; ela olha para mim e coloca seus dedos dentro da minha boca.
54
A partir dessa data, muitas vezes compartilhamos momentos de contato que foram,
gradativamente, se tornando mais freqüentes, mais longos e vinculados.
Com Branca, busco, constantemente, o contato corporal, pele a pele. Minhas mãos
procuram encontrar o seu pescoço rígido, os seus músculos para-vertebrais tensos ou a
suavidade da sua pele.
A possibilidade deste contato foi sendo conquistada a partir do toque com a baqueta em
sua pele. Depois, a aproximação se deu com o toque com o rolo de madeira, passando a toques
suaves com as mãos, culminando com contatos alegres, sonoros e interativos. A emissão da sua
voz foi se tornando mais fácil, seus sons passaram de guturais a cantados. E esses cantos,
inicialmente emitidos em intervalos de terças, passaram a ser emitidos em intervalos de oitava.
Branca e eu vivemos, durante as sessões, muitos momentos de intensa experimentação
cinética; explorações do movimento e do contato, a maioria das vezes acompanhados de
expressões sonoras ou improvisações sonoro-musicais. Nessas experiências, eu sempre enfatizo
o ritmo de seu corpo em movimento.Os movimentos sempre estão presentes: movimento de
pernas, pulos no rolo, danças...
Com o passar do tempo ela passa a se movimentar menos. Fica mais tempo quieta,
chupando o dedo.
Durante os anos em que se passa essa terapia, de fins de 91 à fins de 94, passei,
paulatinamente, a ser alguém da qual ela manifestava sentir falta. Em março de 93 fiquei doente,
repentinamente, e não consegui avisá-la que não iria à sessão. Segundo o relato de sua mãe, ela
subiu à sala, procurou-me; e só aceitou voltar para casa depois de pegar um incensário que havia
na sala e deliberadamente levá-lo para sua casa. Sua mãe conta que passou a semana inteira
segurando-o.
55
Em 1993, depois das férias de julho, quando passamos longe uma da outra duas
semanas, ela me recebe com um enorme sorriso e comprime sua boca aberta em meu rosto.
Ganho seu primeiro beijo.
Ao se estabelecer um vinculo entre nós, uma comunicação maior também se estabelece.
Conheço seus códigos, e ela conhece os meus. Reconhece as músicas que compomos nas
sessões e gosta delas.
Em 1994, Branca muda-se para um lugar longe do Rio. Vai morar em uma praia e ter
uma vida que será boa para ela. Foi quando paramos de nos ver. Parece tranqüila. Muitas vezes
está alegre. Sua fisionomia é linda, e quando conseguimos, durante nossos encontros, estar
juntas, construímos uma experiência indescritível. (CHAGAS, 1997).
A atividade clínica em musicoterapia oferece a oportunidade de inúmeros
agenciamentos: os sons, o corpo, o movimento, a criação de pequenas melodias. Possibilitar
experimentações desses agenciamentos, a-significantes, não conscienciais, infra-pessoais foram
elementos chaves na facilitação da vivência de processos de subjetivação coletivos e singulares
no trabalho com Bianca.
56
2 - TERRITÓRIOS E MOVIMENTOS: O
RITORNELO
Sou um homem comum
Qualquer um
Enganando entre a dor e o prazer
Hei de viver e morrer
Como um homem comum
Mas o meu coração de poeta
Projeta-me em tal solidão
Que às vezes assisto
A guerras e festas imensas
Sei voar e tenho as fibras tensas
E sou um
Ninguém é comum
E eu sou ninguém
No meio de tanta gente
De repente vem
Mesmo eu no meu automóvel
No trânsito vem
O profundo silêncio
Da música límpida de Peter Gast
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
O hóspede do profeta sem morada
O menino bonito Peter Gast
Rosa do crepúsculo de Veneza
Mesmo aqui no samba-canção
Do meu rock'n'roll
Escuto a música silenciosa de Peter Gast
Sou um homem comum
52
Caetano Veloso
52
Caetano Veloso, Peter Gast – canção de 1983 (CD Uns). Na faixa de número 2 do cd.
57
2.1 Prelúdio: O ritornelo e a música propriamente dita.
Deleuze e Guattari buscam na música a inspiração para a criação de um novo conceito
filosófico: o ritornelo
53
, que indica o retorno, a volta a um trecho da musical, a repetição
54
.
Qualquer músico, no entanto, sabe que a repetição do trecho musical, mesmo que se utilizem as
mesmas notas, não é igual. Só para citar alguns aspectos envolvidos nesta operação, temos as
variações de dinâmica ou de andamento - contribuindo para a ênfase interpretativa, temos as
letras variadas, ainda que na mesma música - marcando diferentes momentos.
55
Contudo, as
repetições têm tal importância para a música que Hans-Joachim Koellreutter
56
atribui à
redundância surgida pela repetição de ocorrências musicais o fator que promove a unidade formal
e estilística da obra musical (1990, p.113).
Uma repetição na música pode se referir tanto à reiteração de um som (repetições de frases,
de notas ou de sonoridades específicas dentro de um enunciado musical), quanto à recorrência de
53
Rolnik encontra dificuldade por traduzir o termo. Esclarece, em Micropolítica, cartografias do
desejo (GUATTARI ; ROLNIK,1986, p.44), que já havia traduzido ritournelle
por ladainha,
Como ladainha é também empregada no sentido de "lamento", comumente fastidioso, preferiu
traduzir por refrão
, no sentido de repetição regular de uma fórmula de qualquer espécie.
Nenhuma das duas traduções corresponde a riqueza do conceito musical utilizado por Deleuze e
Guattari. Utilizaremos nesse trabalho ritornelo, como é usado na música, como tradução para o
termo musical ritournelle.
54
Repetição: “a reapresentação de um trecho da música, geralmente indicada colocando-se o
material a ser repetido entre barras duplas com pares de pontos verticais”. (DICIONÁRIO
GROVE DE MÚSICA , 1994, p. 777)
55
Poucas pessoas percebem que as canções populares infantis ‘Marcha Soldado’ e ‘ Fui na
Espanha’ têm a mesma música.
56
Musicólogo alemão erradicado no Brasil. É dos mais importantes formuladores do pensamento
sobre a teoria e a educação musical brasileira.
58
um acontecimento qualquer associado a uma experiência sonora e musical passada (repetição de
emoções, de associações, de sentimentos e lembranças provocados pelo fato sonoro).
Silvio Ferraz
57
compositor brasileiro e estudioso da obra de Deleuze e Guattari indica que é
comum o entendimento da repetição a partir da identificação de elementos semelhantes e da
criação de diversos graus de analogias entre o objeto que acaba de ser percebido e aquele que
sobrevive enquanto memória e lembrança. Em sua teseMúsica e repetição: aspectos da
diferença na música do séc.XX” relaciona à repetição diferentes objetos-sonoros: aqueles cujos
aspectos físico-acústicos são similares; objetos sonoros que remetem a um objeto original
transmutado por retrogração
58
, ampliação
59
, inversão
60
ou permutação, e ainda os objetos sonoros
57
Silvio Ferraz é doutor em Comunicação e Semiótica, professor de composição e harmonia no
Departamento de Música da UNICAMP.
58
Retrogração: “uma seqüência de notas tocadas de trás para frente. (...) É importante no sistema
de composição dodecafônico de Schoenberg, em que séries de doze notas podem ser usadas em
retrógrado ”. (DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA, 1994, p779). Exemplos de BENNET( 1986,
p73)
59
Ampliação: quarta lei tonal: Qualquer acorde pode ser seguido por qualquer outro acorde:
acordes de tons afastados necessitam de uma preparação por harmonias intermediárias.
(KOELLREUTTER, 1978, p 31).
60
Inversão: quando a série é lida baixo para cima. (Bennett, 1986, p 73)
59
que produzem, em um ouvinte, uma mesma sensação. Como se vê, existem analogias complexas
que não estão restritas à escuta musical.
Esses elementos [que se repetem] podem ou não estar associados ao segundo tipo de
repetição, a repetição de emoções, de associações e de sentimentos que afloram em
forma de lembranças quando evocados por um fato sonoro experimentado
anteriormente. (FERRAZ, 1998 p 33)
61
Na música contemporânea, a experimentação da diferença e da repetição não está apenas
nos de graus de similaridade e igualdade de um objeto ante o outro – no grau de dissemelhança,
mas, principalmente, na diferença de natureza dos fatos musicais envolvidos
62
. Neste caso, ao
pensarmos a repetição, pensamos também a diferença. (Ibid., p 37)
Também é chamada de inversão “a reorganização das notas de um acorde construído em terças,
de forma que a nota mais grave não seja a fundamental do acorde. Se a nota mais grave é a terça
da tríade, diz-se que é uma 'primeira inversão', se a quinta, uma 'segunda
inversão'”. (DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA, 1994, p. 462)
61
Quanto à diferença na música, Ferraz acredita que a diferença não é o que se contrapõe à
repetição, mas o que repete a condição de diferente, sendo a principal característica da diferença a
repetição da potência do deixar livre a condição do diferente.
62
Por exemplo, no dodecafonismo ou serialismo Schoenberg, abandonando o sistema maior-menor em favor da
música atonal, ordena as doze notas da escala cromática, através de uma seqüência de notas - a série fundamental –
na qual todas as doze notas têm igual importância, nenhuma deve aparecer fora de sua vez. Então, no serialismo,
embora se busque a diferença na não repetição de notas, acaba-se por se basear em uma repetição de um mesmo
conceito que percorre toda a peça na forma da série. Na faixa 3 do cd , Tanzschritte da Suíte op. 29, de
60
No ritornelo o que volta não é o elemento, não é a forma nem a sonoridade. Muito
embora aquilo que volte se confunda com tais aspectos da música, o que volta é a
potência de fazer música, a potência de fazer e desfazer lugares, potência de escuta.
(FERRAZ, 2005, p.39).
Portanto, mesmo quando se analisa o ritornelo no seu sentido estritamente musical, conta-se
com uma variedade enorme de possibilidades de repetições e de outras tantas diferenças
envolvidas no fenômeno de fazer-escutar-engajar-se na música.
2.2 O ritornelo e o caos
O ritornelo de Deleuze e Guattari relaciona-se diretamente ao caos. O ritornelo exorciza e
delimita o caos, tanto quanto possibilita mergulhar nele. A característica do caos é a velocidade
infinita com a qual as determinações se esboçam e se apagam. Nele, é impossível a relação entre
duas determinações, pois quando uma aparece, a outra já desapareceu. “O caos não é um estado
inerte ou estacionário, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza, e desfaz, no infinito, toda
consistência”
63
. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 59). É um vazio que não é um nada, é um
Schö.emberg(1990) Já no minimalismo, a repetição de pequenos trechos, com pequenas variações através de
grandes períodos de tempo, ou os tons executados durante um longo tempo, acabam por aflorar a diferença
timbrística nela envolvida. Na faixa 4 do cd , a música minimalista City Life, de Steve Reich interpretada por
Murray Perahia.
63
Enfrentamos o caos, para Deleuze e Guattari, com a arte, a filosofia e a ciência. A arte
territorializa o caos, delimitando nele um ponto estável, construindo um muro em torno deste
ponto, ou possibilitando o atirar-se dentro dele. A filosofia enfrenta o caos dando-lhe
consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha. A ciência procura dar
referências ao caos, sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos, e de
operar, desde o início, em uma limitação de velocidade.
61
virtual
64
que contém todas as partículas possíveis e suscita formas que aparecem e desaparecem
sem consistência, nem referência, sem conseqüência
65
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 153)
Deleuze e Guattari comparam o caos a um imenso buraco negro (DELEUZE;
GUATTARI, Ibid., p.117). Curiosa analogia, pois o buraco negro é uma região do espaço onde o
campo gravitacional é tão forte que nada sai dessa região, nem a luz; podendo ser produzido,
teoricamente, por grandes quantidades de matéria ou matéria em altíssimas densidades.
Enfrentamos, na concepção de Deleuze e Guattari, o imenso buraco negro do caos de diferentes
modos. Ora tentamos construir um ponto como centro: um ponto frágil e nos organizamos em
torno deste ponto construído com uma pose calma, e aí ficamos; ora abandonamos a calma e nos
atiramos, escapamos da pose e nos arrojamos para fora, nos lançamos no caos.
No enfrentamento do caos surgem os três movimentos do ritornelo:
Primeira tríade [ do ritornelo]: 1. Procurar alcançar o território, para conjurar o caos;
2. Traçar e habitar o território que filtre o caos; 3. Lançar-se fora do território ou se
desterritorializar rumo a um cosmo que se distingue do caos . Segunda tríade: 1.
Procurar um território; 2. Partir ou se desterritorializar; 3. Retomar ou se
reterritorializar. (ZOURABICHVILI 2004, p 95) .
A música aparece no ritornelo logo no início da conceituação de ritornelo. Deleuze e
Guattari ilustram as três maneiras de enfrentar o caos através de exemplos musicais. É ela o que
estabiliza e acalma ou arregimenta forças para enfrentá-lo no cotidiano, tanto quanto é quem pode
64
“Todo atual se envolve de uma névoa de imagens virtuais. Tal névoa se eleva de circuitos
coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais as imagens virtuais se distribuem e correm.
É assim que uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes
ordens. Eles são ditos virtuais quando sua emissão e absorção, sua criação e destruição são feitas
em um tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável , e que tal brevidade os
mantém desde então sob um princípio de incerteza ou de indeterminação”.( DELEUZE;
PARNET,1998, p 173)
65
Deleuze e Guattari ilustram esse aspecto do caos com as experiências de Prigogine e Stengers
com a cristalização de um líquido superfundido a uma temperatura inferior à sua temperatura de
cristalização. Nesse líquido formam-se pequenos germes de cristais que aparecem e se dissolvem
sem gerar conseqüências (DELEUZE; GUATTARI , 1992, p. 153)
62
provocar a brecha, a saída pela errância, o andar na beirada do abismo do caos. Um dos exemplos
dados por Deleuze e Guattari é o da criança com medo, que se tranqüiliza cantando, e com seu
canto constrói o esboço de um centro estável e calmo. Também toma como exemplo a dona de
casa que cantarola, ou liga o rádio arregimentando forças anti-caos para enfrentar os seus
afazeres. E, por fim, citam alguém realizando uma improvisação musical, sai de casa, e esgarça o
círculo costumeiro que limita o caos. São três momentos distintos, três aspectos do ritornelo que
podem vir misturados e simultâneos.
Neste movimento, na comunicação entre os meios, na coordenação de espaços-tempos
heterogêneos, o caos tem uma chance de se tornar ritmo
66
. O esgotamento, a morte, a intrusão, a
alegria ganham ritmos. O ritmo muda de direção.
Mudar de meio, reproduzindo com energia, é o ritmo. Aterrissar, amerissar, alçar
vôo... Por aí, saímos facilmente de uma aporia
67
que corria o risco de trazer a medida
de volta para o ritmo, apesar de todas as declarações de intenção: com efeito, como
podemos proclamar a desigualdade constituinte do ritmo, quando ao mesmo tempo
nos entregamos a vibração subentendidas, repetições periódicas dos componentes?
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 119)
O ritmo, entendido desta maneira, é o condutor do ritornelo. O ritornelo se estabelece
através de um ritmo, mas transborda para fora da música no seu controle do caos. Não se limita a
uma distinção epistemológica entre “natureza”, no sentido dos seres vivos e “cultura”. Propõe
66
Ritmo não é somente medida ou cadência. O ritmo “é, antes de tudo, movimento”. (Rio de
Janeiro, Prefeitura; Conservatório Brasileiro de Música, 2002, p.11) Embora algumas vezes
descrito como tempo ordenado e métrica, o ritmo é a soma de uma variedade de fatores, cada
qual, a seu jeito, manifestação de ritmo e ordem, podendo significar um produto de uma
freqüência de eventos afins, ou mecanismos de ordenamento de características comuns e de
significados. (BERRY,1976, p. 305).
67
Aporia – [ Do gr. Aporía, pelo lat.aporia.] S. f. 1 – Filos. Dificuldade, de ordem racional, que
parece decorrer exclusivamente de um raciocínio ou do conteúdo dele. (Cf. antinomínia e
paradoxo). 2Hist. Filos. Conflito entre opiniões, contrárias e igualmente concludentes, em
resposta a uma mesma questão. 3 – Ret . Figura pela qual o orador finge exitar, ter dúvida, na
escolha de uma expressão, de um rumo para o discurso. (FERREIRA, 1986, p. 146)
63
“todos os atravessamentos e começando antes: muito antes dos ritmos nascerem como passagens
entre meios, os próprios meios sendo ritmos, como repetições periódicas, e são os ritmos que os
constituem que os tornam comunicantes”. (COSTA, 2006)
O ritornelo pode ter um sentido territorial - fechado sobre si mesmo - e um outro sentido
cósmico - levado sobre uma linha de fuga semiótica. Na relação entre esses dois estados do
ritornelo, a música, e a arte em geral desterritorializam o ritornelo. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, pp. 175,176)
Mas, por que o ritornelo, em um sentido restrito, é um agenciamento sonoro, “por que esse
aparente privilégio?" (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 132). Embora não estabelecendo um
lugar superior a nenhuma arte em relação às demais, Deleuze e Guattari, ao compreenderem as
potências de desterritorialização possíveis dos componentes sonoros, concluem que pelo som
passa uma espécie de linha filogênica, de um phylum maquínico, que faz com que produzam uma
ponta de desterritorialização.
O som nos invade, nos empurra, nos arrasta, nos atravessa. Ele deixa a terra, mas
tanto para nos fazer cair num buraco negro, quanto para nos abrir a um cosmo. Ele
nos dá vontade de morrer. Tendo a maior força de desterritorialização, ele opera
também as mais maciças reterritorializações, as mais embrutecidas, as mais
redundantes. Êxtase e hipnose ( Ibid., p. 166)
Além disso, o ritornelo, em seu conteúdo musical, carrega o bloco de conteúdo próprio da
música. Uma criança tranquiliza-se no escuro, ou bate palmas, ou inventa um passo, D
Mariquinha fez xixi na canequinha, foi falar lá pra vizinha que era caldo de galinha... Adapta
seus passos aos traços da calçada... A dô lê ta lê peti, peti peta, lê café com chocolá. Adoletá...
Uma mulher cantarola, "Quando eu vim para esse mundo...”.
Um pássaro corta o ar e lança seu grito “Bem te vi! Bem te vi!”. Todos traçam ritornelos.
O movimento do ritornelo se dá sonoramente na territorialização, por exemplo, da
angústia, do medo, da alegria, do amor, do trabalho, da marcha. Qualquer um desses motivos
pode contribuir para a produção de territórios coletivos, criados com ritmos e sonoridades, tais
como as batidas sincopadas do samba, a sonoridade anasalada das vozes das lavadeiras, os cantos
64
de trabalho, as excelências. A música é atravessada por diversos ritornelos de crianças, de
mulheres, de etnias, de territórios de amor e de destruição: nascimento dos ritmos entre os meios
e das expressões territoriais. Igualmente os sons desterritorializam, por exemplo, no uso de ondas
sonoras emitidas numa freqüência capaz de provocar temporariamente náusea e tontura para
dispersar multidões, como assinala a pesquisa de Josias Vicente de Paula Júnior
68
(2006). Os
efeitos das ondas sonoras se situam no que Alvin e Heidi Toffler (apud PAULA JÚNIOR)
chamam de “armas não letais”, numa provável "guerra sem mortes". Há muito se sabe desta
força desterritorializante intensa – o terceiro aspecto do ritornelo - e, ao mesmo tempo, coletiva.
Tambores, trombetas, hinos arrastam os povos e os exércitos, numa corrida que pode ir até o
abismo (DELEUZE; GUATTARI, 1997, pp. 103,105).
69
Santos
70
, em sua dissertação “Música e
hegemonia: dimensões político-educativas da obra de Villa–Lobos” se propôs a compreender
como a música serviu aos propósitos de criação de uma imagem de consenso político, e como o
movimento de mobilização de emoções e sentimentos pode servir à desmobilização da
consciência crítica e à uma educação para a submissão à autoridade no governo Vargas. “Mais
do que criadores e críticos, o canto orfeônico produziu uma massa mais qualificada/civilizada,
coerente com o esfôrço de criação de um novoconformismo’ urbano-social” (SANTOS, 1996 pp
114 -116).
Antônio Olinto, em seu romance A Casa da Água, coloca a dor na voz de Mariana:
68
Josias Vicente de Paula Júnior é mestre em Sociologia pela Universidade Federal de
Pernambuco. Atualmente é professor assistente da Universidade Federal da Paraíba
69
Parece que Napoleão sabia disso e é atribuída a ele a frase “Uma boa marcha vale cem canhões”. Menuhin e Davis
(1990, p. 181) contam que, algumas vezes, Napoleão apressava seu ritmo para que suas tropas pudessem ganhar
terreno mais rapidamente.
70
Marco Antônio Carvalho Santos é musicoterapeuta, doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense.
Atualmente é professor-pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e professor do Conservatório Brasileiro de Música -
Centro Universitário.
65
Mariana segurou a menina, apertou-a com força, pegou num punhado de areia, jogou-
a sobre a bandeira que cobria o morto, de repente soltou um berro, não foi choro, que
nunca chorara, mas berro, ó berro que atravessou o areal, que chegou à Casa da Água,
que fez tremerem as pessoas, ó berro que segurou aquele momento num único som, ó
berro vindo do Piau, da Bahia, do mar sem vento, das mortes em alto-mar, do sangue
da menina que virava mulher, do poço arrancado da terra, ó berro que vinha do
umbigo, da barriga, dos intestinos, e subia por todo o corpo antes de sair pela boca, ó
berro que era berro de velha e de criança, ó berro que era berro, só berro, ó berro.
(1975, pp 368, 369 )
A música se apropria do ritornelo para desterritorializá-Io, como para fazer correr um
bloco sonoro - através de um sistema de coordenadas harmônicas, melódicas, rítmicas - re-
territorializar e, novamente demarcar o lugar onde se constrói uma casa, como nos fala Ferraz:
Compor é como fazer uma casa. É desenhar um lugar. Os elementos para esta
operação, cada um os toma de um canto. E aqui as harmonias, as séries, as pequenas
reiterações, as sonoridades reverberantes, os pequenos jogos de ressonância são
aquele material que utilizamos para desenhar este lugar. É com esses pequenos
elementos colocados em círculos que desenhamos um lugar. É como desenhar um
espaço físico, como demarcar um território, um nicho. Algumas folhas são reviradas,
alguns gravetos são quebrados, faz-se xixi em alguns cantos, espalha-se um cheiro
pelas bordas do lugar, descascam-se algumas árvores, desfolha-se alguns galhos,
cavam-se alguns buracos.( FERRAZ, 2005, p. 35)
Compor constrói uma casa, escutar, cantar ou improvisar uma música também pode fazê-
lo.
2.3 Territórios: forças terrestres e forças cósmicas
O ritornelo não é o vai e volta, não é a repetição de um elemento, mas o modo com que se
escolhe um centro,se funda um centro e se desenha um lugar. Este modo pode ser um núcleo
melódico-harmônico-rítmico-timbrístico: o eixo em torno do qual se desenha um território.
O ritornelo, conjunto de matérias de expressão, traça o território, demarca-o
expressivamente com sons, com funções amorosas, profissionais e sociais, litúrgicas ou
cósmicas. Um animal marca fronteiras em seu território através da exposição do colorido de suas
66
penas, do cheiro de sua urina, de uma série de posturas
71
. Cor, postura, linha, canto. Inspira-nos
Mauro Costa
Eu posso pensar comportamentos humanos com os mesmos dispositivos com
que penso babuínos, sabiás ou coelhos, já que somos todos animais territoriais.
Por que esperaria encontrar tanta distância, tanta diferença, entre os nossos
modos de musicar, por que mesmo não buscar dispositivos comuns às nossas
músicas? ( COSTA, 2006)
O território existe quando emergem qualidades sensíveis, que deixam de ser unicamente
funcionais e se tornam traços de expressão, tornando possível a transformação de funções
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 237). Muitas funções, mesmo as orgânicas, se transformam
com o sistema território-casa: a sexualidade que pode se fazer tímida se exercida pelos jovens na
casa dos pais; a agressividade que pode se apresenta terrível na defesa da prole; a alimentação
que pode ser farnel, banquete, motivação básica para a luta ou experimentação afrodisíaca dentro
do próprio território-casa. Funções que deixam de ser apenas funções para se tornarem
expressões territoriais
Como animais territoriais, usamos nossa música para construir territórios. Deleuze e
Guattari citam os modos gregos, os ritmos hindus, mas podemos falar também dos hinos das
galeras dos times de futebol, das expressões sonoras do funk, da expessividade produzida pela
audição do hino nacional, os agenciamentos de medo e apreensão provocados, no Rio de Janeiro,
pelo som das sirenes da polícia, pelos barulhos dos fogos e dos tiros delimitando territórios das
mais diversas expressividades. A música pode desenhar território tanto nas cantigas de ninar,
71
Deleuze cita os macacos, que mostram órgãos sexuais de cores vivas para marcar os limites do
seu território ecológico ( DELEUZE ; GUATTARI , 1997 , p. 121)
67
quanto nas cantigas de roda, nas danças, nos jogos de sedução, nas brincadeiras que consistem
em enredar um alvo.
As operações próprias dos operadores-efetuadores do ritornelo que constituem territórios;
reorganizam funções e reagrupam forças; fazem surgir os ritos e as religiões.
“Cada indivíduo, cada grupo, cada nação equipa-se assim de uma série de base de
ritornelos conjuratórios (...), o ritornelo tomava função de sujeito coletivo de enunciação”
(GUATTARI, 1988, p. 103). Podemos citar como exemplo alguns desses ritornelos conjuratórios
que utilizamos no Brasil: bate-se na madeira, exclama-se Deus me livre! Ou Se Deus quiser!
Além de Xô ! Sai pra lá! Torcidas de futebol, em coro cantam seus dizeres mágicos: “Um, dois,
três, quatro, cinco, mil!... Ou É campeão! Soltadores de pipa atraem o vento com sua cantiga:
Vem, vento, caxinguelê,cachorro do mato quer me morder
72
!”
72
Retirado de ERMELINDA PAZ, 1989 p.67
68
A experiência musical organizando ritornelos territoriais em rituais pode ser observada nas
pesquisas de José Jorge de Carvalho
73
e na de Maria Ignez Cruz Mello. Carvalho
74
, no artigo
Estéticas da opacidade e da transparência. Música, mito y ritual no culto de xangô e na
tradição erudita ocidental” (2002); observa que os cantos aos orixás estão carregados de
emotividade, dinâmica e energia, principalmente nas ocasiões em que ocorre o transe, quando se
celebra a sua presença. Já as canções puramente rituais são sempre cantadas com uma espécie de
indiferença musical por parte dos adeptos na relação com essas canções, e raras vezes mostram
alguma variação ou maior expressividade no modo como as cantam. O pesquisador nota que,
quando a música é repetida, sua dinâmica, por exemplo, tende a permanecer sem mudanças e
mesmo na voz não se percebe nenhuma inflexão especial. Maria Ignez (2005), em sua pesquisa
com os Wauja sobre aspectos interculturais da transcrição musical, verifica que este povo,
habitante da Terra Indígena do Xingu no estado do Mato Grosso, vive com outros nove povos
indígenas nesta região. Os povos indígenas pertencem a famílias lingüísticas diferentes e entre
estes grupos se observa um sistema sócio-cultural compartilhado que antecede ao contato com os
brancos: uma rede intertribal de casamentos, comércio e cerimônias. Apesar da diversidade
lingüística e do intenso contato entre eles, estes grupos fazem questão de não falar a língua de
seus vizinhos e, quando se encontram, seguem falando somente a língua de seu grupo de origem,
73
José Jorge de Carvalho é Ph.D em Antropologia Social por The Queen's University Of Belfast;
pos-doutorado pela Rice University (1995) e pos-doutorado pela University of Florida.
Atualmente é professor adjunto 4 da Universidade de Brasília, Coordenador do PRONEX
"Movimentos Religiosos no Mundo Contemporâneo" do Ministério de Ciência e Tecnologia.
74
Maria Ignez Cruz Mello é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Atualmente é professora de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS/UDESC) da
Universidade do Estado de Santa Catarina. Membro dos grupos de pesquisa MUSICS (UDESC) e MUSA (UFSC),
atuando principalmente nos temas referentes à música indígena, música e relações de gênero, alto Xingu, etnologia
indígena.
69
mesmo que estejam entendendo o que o outro diz. O ritual é, desta maneira, uma forma
privilegiada de comunicação dentro deste sistema, tornando-se a forma ideal de comunicação
entre as diferentes alteridades reconhecidas pelos povos que vivem ali.
É no ritual que os diferentes grupos se encontram, que questões faccionais são
expressas, e é exclusivamente através dos rituais que homens e mulheres se permitem
fazer provocações mútuas, e que humanos e espíritos trocam ameaças e favores. A
música, neste contexto, exerce papel fundamental, pois é ela que institui o ritual ao
lidar com proporções, repetições e variações. Ela instaura o conflito, ao mesmo tempo
em que o mantém sob controle. (...) A música no Alto Xingu representa o pivot entre
o mito e a dança, ela é a forma de se ir da cognição à motricidade passando pelo
sentimento. (MELLO, 2005, pp. 221,222).
O ritornelo possibilita a existência de agenciamentos organizados em componentes dentro
do próprio território (intra-agenciamento): a angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, e de
agenciamentos organizados em direção a outros agenciamentos, ou a outro lugar (inter-
agenciamento): produção de territórios coletivos, criados com ritmos e sonoridades.O nascimento
dos ritmos entre os meios das expressões territoriais O ritornelo age integrando componentes de
passagem ou até de fuga. As três maneiras de funcionamento atuam juntas, concorrendo e
afrontando o ritornelo: as forças do caos, as forças terrestres e as forças cósmicas
.
Faço uma aplicação dos estudos de Luis Tatit
75
aos conceitos aqui expostos. Sua pesquisa
avalia a interação entre os componentes musical e verbal em uma canção popular. A interação
entre letra e música é o resultado de uma elaboração simultânea dos planos de expressão e
75
Luiz Augusto de Moraes Tatit é graduado em Lingüística e em Música. Atualmente é professor
titular da Universidade de São Paulo. Tatit busca na semiótica a teoria para sua pesquisa com a
canção popular. Sua proposta é a de “criar parâmetros semióticos para abordar esse lugar híbrido
de manifestação das canções” (TATIT, 1997, p 87). A sua pesquisa visar compreender as
estruturas que se estabelecem na “enunciação do enunciado” (idem, p.81), e suas idéias podem,
perfeitamente, ser empregadas, como o faço aqui, no entendimento das possibilidades de
territorialização e de desterritorialização dentro da canção popular.
70
conteúdo para se obter um resultado estético homogêneo. Analisa aos efeitos da interferência das
mudanças de andamento, percebendo que os recursos de aceleração tendem a concentrar os
elementos musicais, através da redução na importância dos movimentos de passagem, que são
executados com mais velocidade. A aceleração faz parecer que a melodia não precisa ir a
nenhum lugar, ao mesmo tempo em que enfatiza um aspecto geral dos temas criados, como se o
executante se decidisse por uma audição em bloco. (TATIT, 2004 pp 59-60) Já os recursos de
desaceleração possibilitam a expansão dos “elementos musicais pelo espectro das alturas,
promovendo evoluções típicas de uma linguagem que se desenvolve no tempo. (Ibid., ) Ocorre,
então, a impressão de esforço para "atingir algo". A integração letra- música – exposição de
sentimentos, é apresentada no estudo comparativo entre “ Eu sei que vou te amar”, e em “Por
toda a minha vida”, ambas de Tom Jobim
76
. Embora o pesquisador se detenha em cada uma das
canções e de suas temáticas em particular, conclui-se a partir de suas observações, que grandes
saltos intervalares facilitam os alongamento de vogais, e evocam sentimentos descontínuos – o
que indica melodicamente conteúdos verbais e emocionais diferenciados. (TATIT, 2006)
Logo, o recurso de acelerar ou desacelerar uma melodia, unido ao dos saltos intervalares,
pode proporcionar ao ouvinte a territorialização ou desterritorialização de suas experiências, pode
tornar-se aquela ponta de desterritorialização que acompanha os territórios subjetivos. A análise
do pesquisador e músico ratifica a concepção de Guattari de que a diversidade dos modos de
subjetivação corresponde a uma multiplicidade de maneiras de marcar o tempo: “Velocidades e
lentidões inserem-se na forma musical, impelindo-a ora a uma proliferação, a microproliferações
lineares, ora a uma extinção, uma abolição sonora, involução, e os dois ao mesmo tempo.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995 c, p. 95).
76
Canções de 1959.
71
2.4 Ritornelo e produção de subjetividade
A concepção territorial do ritornelo está implicada na produção de subjetividades. O
ritornelo é essencial na micropolítica dos componentes conscienciais.
Nossas relações com o espaço, com o tempo e com o cosmos tendem a ser
completamente mediadas pelos planos e ritmos impostos, pelo sistema de
enquadramento dos meios de transporte, pela modelização do espaço urbano, do espaço
doméstico, pela tríade carro-televisão-equipamento coletivo, por exemplo.
(GUATTARI , ROLNIK , 1986, p. 44)
Deleuze e Guattari atribuem ao ritornelo a possibilidade do estabelecimento de uma
lógica da existência na medida em que, através dele, procura-se alcançar o território para conjurar
o caos; traça-se e habita-se o território que filtre o caos para, depois, lançar-se fora do território,
desterritorialização rumo ao cosmo que se distingue do caos.
Adriana Didier,
77
ao pesquisar a relação que professores da rede municipal do Rio de
Janeiro têm com a música, com a educação musical e com os espaços culturais da sua cidade,
concluiu, entre outros aspectos, que esses professores acreditavam que alguns espaços culturais
da cidade - Teatro Municipal e Escolas de Música – não eram para eles freqüentarem, como
indica a fala de um deles: “eu achava que era coisa só para rico, eu jamais poderia freqüentar
esses lugares”. (DIDIER, 2003). Esses equipamentos não pertenciam ao território desse
professores, até a pesquisadora delimitar com eles uma marca expressiva tornando o território,
ainda novo, uma terra possível de se habitar.
77
Adriana Rodrigues Didier é musicoterapeuta, educadora musical, mestre em Música e
Educação. Atualmente é professora do Conservatório Brasileiro de Música-Centro Universitário e
realiza um trabalho de participação social entre vários segmentos: alunos da rede municipal,
alunos da faculdade de musicoterapia, professores.
72
Aparelhos de rádio, de tevê ou o som do cd podem ser muros sonoros demarcadores de
territórios. O estado tem seu hino, a cerimônia ritual tem sua música, o time de futebol tem seu
grito e sua melodia. Retiram-se forças no som para delimitar espaços vivenciais existenciais. As
instituições cantam. As galeras dos bailes funks cantam, dançam e delimitam seus territórios,
como bem nos relata Herschmann
78
:
As duas e pouco da madrugada, o DJ anunciou um mini festival de galeras. O
‘corredor’ se dissolveu dentro do ginásio, mas continuou na parte externa do Clube.
Parte das galeras deixou momentaneamente de brigar entre si e passou a competir por
prestígio e brindes. Os seguranças pareciam tranqüilos e só intervinham para garantir
que o ‘corredor’ não se reconfigurasse no ginásio. É óbvio que as galeras dos
territórios A e B permaneciam nas suas respectivas áreas. Todos respeitam o evento,
até porque a violação da ‘trégua’ implica a expulsão sumária do baile. O DJ e um dos
organizadores agora comandam um verdadeiro programa de auditório, com
competições de raps, danças e gritos. As meninas tornam-se mais participativas e
mobilizam aqueles que ainda estão dispostos a continuar no ‘corredor’. O ponto alto
foi uma competição de dança envolvendo moças ‘virgens’.
O baile estava no fim... O DJ anunciou que havia chegado ‘o momento que muitos
esperavam...’, o clímax do baile... os seguranças saem do centro e se postam no canto
do ginásio e do pátio. Eram os ‘15 minutos de alegria’, o momento em que, pode-se
dizer, ‘vale tudo’ no baile. Algumas galeras ficam mais cautelosas e outras avançam
sobre a outra margem do ‘corredor’. O DJ continua colocando montagens e raps mais
agitados e bem marcados, fornecendo o ritmo ideal ao combate. Por um momento
achei que as galeras fossem se destroçar. Para minha surpresa, constato que, apesar de
mais intenso, o ritual ou jogo continua com os tradicionais refugos e provocações. No
rosto dos rapazes, um sorriso e muita excitação... Finalmente, o DJ muda o ritmo e
quebra o clima. Enquanto o DJ agradece a presença de todos no baile, os seguranças
vão tomando conta do espaço, convocando todos a se retirarem. A cena da saída
também é impressionante. Desfeito os territórios A e B, as galeras se retiram
relativamente tranqüilas, como se fossem equipes em que seus atletas estivessem
cansados, após uma intensa disputa (HERSCHMANN, 2000, pp 141-142).
Territórios das galeras foram sonoramente demarcados. Também sonoramente foram
desterritorializados pelo DJ.
78
Micael Maiolino Herschmann é graduado em história e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Atualmente trabalha na coordenação do PPGCOM da ECO/UFRJ, é editor da Revista ECO-PÓS, é
coordenador do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação, e vem desenvolvendo a pesquisa intulada " O
circuito cultural do Samba e do Choro da Lapa. Comunicação, Cultura e Indústria da Música do Estado do Rio de
Janeiro - subsídios para a elaboração de políticas de desenvolvimento local sustentável e políticas culturais
democráticas" (com apoio do CNPq) .
73
Uma outra relação dos ritornelos com a produção de subjetividade observa-se na
utilização dos micro-equipamentos coletivos que modelam nossa relação com as paisagens e com
o mundo vivo. Ocorre hoje, freqüentemente, a experiência da música estar muitas vezes
desligada dos territórios em que foi produzida. Não compartilhamos mais agenciamentos gerados
somente a partir de sistemas territorializados tais quais eram vivenciados na tribo, na etnia, na
corporação de trabalho. A internet nos coloca frente a uma imensa diversidade musical. A música
torna-se um produto altamente, e “gratuitamente”
79
consumido, gerando as mais diversas
discussões sobre a legalidade, a viabilidade e as formas de acessibilidade desses procedimentos
80
.
No entanto, mesmo na era da informação, os modos de marcar o tempo em nossas vidas
continuam associados à experiência sonoro-musicais: os sons da rua, a sineta da escola, as vozes
familiares, o som do celular, a música que acompanhou a primeira experiência amorosa. Os
jovens que utilizam mp3, que permite gravar diretamente da internet os arquivos preferidos,
estabelecem com a música uma relação produzida por uma indústria altamente sofisticada, que
não está simplesmente transmitindo uma música. A indústria inventa um universo musical, uma
outra relação com os objetos musicais: inventa uma nova percepção. A subjetivação capitalista
interiorizou e individuou os territórios maquínicos que constituem a pessoa, o amor, o sentimento
de pertencimento.
A iniciação aos semióticos do tempo social não realça de agora em diante
cerimônias coletivas, mas processos de codificação, centrados sobre o indivíduo,
tendendo a conferir uma parte sempre maior às mídias. Assim, em lugar de
79
Gratuitamente desde que se tenha adquirido todos os equipamentos e habilidades de acesso ao
produto digital, o que já exclui grande parte da população.
80
Os músicos Marcelo Camelo (Los Hermanos), Lucas Santtana e BNegão contaram no
seminário “O processo da música - Entre novos modelos de negócio e ações judiciais", na
Fundação Getulio Vargas, no Rio, em novembro de 2006 suas experiências de sucesso no uso da
internet. Liberando para baixar todas as faixas de um disco independente, BNegão ganhou mais
público na Europa do que tem no Brasil. Santtana disse vender mais discos ao permitir que as
pessoas ouçam as músicas em seu site (VIANNA, 2006).
74
cantigas de ninar e das canções infantis de outrora voltam hoje em dia a uma
linguagem infantil televisual – aferida conforme as últimas pesquisas de mercado
- a induzir os sonhos das crianças, enquanto os suprimentos neurolépticos são
administrados, em alta dose, aos jovens e às jovens apaixonados... Esses
suprimentos, esses ritmos, esses indicativos invadiram todos os modos de
semiotização do tempo; eles constituem este ‘ar do tempo’ que nos leva a sentir
‘como todo o mundo’ e a aceitar o ‘mundo como ele é’. (GUATTARI, 1988, p
106)
Apesar desta intensa subjetivação capitalística, que nos faz viver sob um “regime geral de
confusão intersubjetiva malaxando
81
os fluxos cósmicos e os investimentos de desejo com o
cotidiano mais derrisório, mais limitado, mais utilitário” (Ibid., 1988, p. 106), o ritornelo também
pode se expressar na procura do território, na desterritorialização (ou partida) e no retorno (a
reterritorilização) na produção de subjetividade. Zourabichvili esclarece a posição de Deleuze e
Guattari:
O ritornelo merece duas vezes seu nome: em primeiro lugar, como traçado que retoma
sobre si, se retoma, se repete; depois, como circularidade dos três dinamismos
(procurar um território para si = procurar alcançá-la). Assim, todo começo já é um re-
torno, mas implica sempre uma distância, uma diferença: a reterritorialização,
correlato da desterritorialização, nunca é um retorno ao mesmo. Não há chegada,
nunca há se não um retorno, mas regressar é pensado numa relação avesso-direito,
recto-verso com partir, e é ao mesmo tempo que se parte e se regressa.
(ZOURABICHVILI, 2004, pp 95, 96)
O território pode se desterritorializar, pode abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até
sair de seu curso e se destruir. A reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de
um território engajado num processo desterritorializante.
A desterritorialização capitalista dos ritornelos, que organiza agenciamentos territoriais
subjetivados na família, no trabalho e nas comunidades, selecionou traços de matéria de
expressão, prestando-se ao jogo do que Guattari denomina de política dos extremos.
81
Malaxar: v.t. Amassar uma substância para amolecê-la, para dar-lhe homogeneidade: malaxar
a pomada. / Amassar. / Fazer massagem em.(
http://www.kinghost.com.br/dicionario/malaxar.html)
75
(GUATTARI, 1988, p.109). Esta política consiste na expressão dos núcleos maquínicos dos
agenciamentos de temporalização que, embora se situem em direções diferentes, são exercidas ao
mesmo tempo. São eles:
1) uma subjetivação hiper-territorializada este modo de subjetivação ocorre
principalmente nas famílias. Para Guattari, esta hiperterritorialização da subjetividade abre um
enorme campo às operações de poder. Seu objetivo maior seria o controle dos ritmos do corpo, e
dos movimentos do outro - “O que é que há com você? “Você está esquisita, o que é que vo
está pensando?” “O que aconteceu com sua alegria? Está tristinha, hoje?” “Ah... agora você
melhorou!”
82
2) Outro núcleo maquínico expresso nos agenciamentos de temporalização capitalístico
promove o desenvolvimento de novas tecnologias para obter uma sujeição cronográfica das
funções humanas, cada vez mais rentáveis para o sistema. O tempo da vida é ordenado e
programado em séries de ações e expectativas de desempenhos específicos. Entra-se na escola
cada dia mais cedo, trabalha-se cada dia mais, o lazer está reservado a áreas e tempos específicos
na semana que tem sete dias.
83
82
A subjetivação hiper-territorializada pode ser exemplificada na canção popular Como vai você de Antônio e Mario
Marcos, gravada em 1972 por Roberto Carlos: Como vai você ?/Eu preciso saber da sua vida/Peça a alguém pra me
contar sobre o seu dia/Anoiteceu e eu preciso só saber/Como vai você ?/Que já modificou a minha vida/Razão de
minha paz já esquecida/Nem sei se gosto mais de mim ou de você/Vem, que a sede de te amar me faz melhor/Eu
quero amanhecer ao seu redor/Preciso tanto me fazer feliz/Vem, que o tempo pode afastar nós dois/Não deixe tanta
vida pra depois/Eu só preciso saber/Como vai você/Como vai você?/Que já modificou a minha vida/Razão da minha
paz já esquecida/Nem sei se gosto mais de mim ou de você/Vem, que a sede de te amar me faz melhor/Eu quero
amanhecer ao seu redor/Preciso tanto me fazer feliz/Vem, que o tempo pode afastar nós dois/Não deixe tanta vida
pra depois/Eu só preciso saber/Como vai você. Faixa número 5 do cd.
83
Na linda canção Já sabe de Luis Tatit e Sandra Peres, gravada em 1996 no cd Canções de brincar, encontramos a
expectativa: Já gosta da mamãe/Já gosta do papai / Não sabe tomar banho não/Já sabe tomar banho/Já quer ouvir
histórias/Não sabe pôr sapato não/Já sabe pôr sapato/Já come até sozinho/Mas nunca escova os dentes não/Já
escova bem os dentes/Já vai até na escola/Não sabe jogar bola não/Já sabe jogar bola/Já roda, roda, roda/Não sabe
pular corda não/Já sabe pular corda/No colo quer carinho... Faixa número 6 do cd.
76
A ritornelização da força de trabalho não depende mais de iniciações corporativas,
mas de interiorização de blocos de código, de blocos de mudança de padrões
profissionais por toda parte o mesmo tipo de quadro, de agente de governo, de
burocrata, de agente técnico, etc., - delimitando meios, castas, formações de poder
desterritorializados. (GUATTARI, 1988, p. 109)
84
3) Os agenciamentos maquínicos de ritornelo incluem uma mutação rizomática, que
desterritorializa os ritmos tradicionais (biológicos e arcaicos), anulando os ritornelos capitalistas
e abrindo a possibilidade de uma nova relação com o cosmos, o tempo e o desejo. “O território só
vale em relação a um movimento através do qual se sai dele” (DELEUZE, 2001).
A desterritorialização do ritornelo anda junto com a territorialização e a
reterritorialização. O que cristalizará os agenciamentos existenciais será a vivência de outros
ritmos, singularizados através de ritornelos capazes de delimitação de Territórios existenciais.
“Cada um de nós conhece tais transposições de limiar subjetivo pela atuação de um módulo
temporal catalisador que nos mergulhará na tristeza ou, então, em um clima de alegria e de
animação” (GUATTARI, 1998, p.27).
A desterritorialização própria do ritornelo, o jogar-se no caos, a ousadia colocam em
pauta a possibilidade sempre presente de desorganização dos modos de subjetivação
84
A canção Pedro Pedreiro de Chico Buarque, de 1965, no disco Chico Buarque de Holanda, pode nos dar um
exemplo deste tipo de ritornelo: Pedro pedreiro penseiro esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar
também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem vintém/Pedro pedreiro fica assim pensando/Assim
pensando o tempo passa/E a gente vai ficando pra trás/Esperando, esperando, esperando/Esperando o
sol/Esperando o trem/Esperando o aumento/Desde o ano passado/Para o mês que vem/Pedro pedreiro penseiro
esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem
vintém/Pedro pedreiro espera o carnaval/E a sorte grande no bilhete pela federal/Todo mês/Esperando, esperando,
esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando aumento/Para o mês que vem/Esperando a
festa/Esperando a sorte/E a mulher de Pedro/Está esperando um filho/Pra esperar também/Pedro pedreiro penseiro
esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem
vintém/Pedro pedreiro está esperando a morte/Ou esperando o dia de voltar pro norte/Pedro não sabe mas talvez
no fundo/Espera alguma coisa mais linda que o mundo/Maior do que o mar/Mas pra que sonhar/Se dá o desespero
de esperar demais/Pedro pedreiro quer voltar atrás/Quer ser pedreiro pobre e nada mais/Sem ficar esperando,
esperando, esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando aumento para o mês que vem/Esperando um
filho pra esperar também/Esperando a festa/Esperando a sorte/Esperando a morte/Esperando o norte/Esperando o
dia de esperar ninguém/Esperando enfim nada mais além/Da esperança aflita, bendita, infinita/Do apito do
trem/Pedro pedreiro pedreiro esperando/Pedro pedreiro pedreiro esperando/Pedro pedreiro pedreiro esperando o
trem/Que já vem, que já vem, que já vem (etc.) Faixa número 7 do cd.
77
capitalísticos, por mais eficientes que se mostrem. É quando entram em cena modos de relação
singulares e criativos.
2.5 Na clínica em musicoterapia
Vejamos dois exemplos clínicos. O primeiro deles refere-se à minha experiência na
Associação de Apoio à Criança com Neoplasia, Casa Ronald McDonald,
85
no Rio de Janeiro
Durante muitos anos coordenei, como voluntária, o serviço desta instituição em trabalhos que
envolveram equipes de profissionais psicólogos, musicoterapeutas, terapeutas corporais e
arteterapeutas, A equipe técnica trabalhava com as crianças e adolescentes, com os
acompanhantes e com os voluntários. (CHAGAS et col, 1996).
Cantar com os voluntários da Casa Ronald McDonald alivia tensões, possibilita a
expressão e clarificação de sentimentos, além de integrar a equipe. Sempre cantamos em nossas
reuniões, seja em pequenos ou grandes grupos.
Certa vez estava participando de uma importante reunião administrativa da Casa. O clima
havia ficado muito tenso por uma discussão, absolutamente normal e necessária do ponto de
vista da organização dos grupos, mas o impasse paralisou o grupo. Propus uma dinâmica
musical. Fizemos uma grande roda e pedi para que cantassem o que quisessem. A primeira
música surgida foi o "Atirei o pau no gato
86
, cantado forte, com os pés batendo no chão
85
A Casa Ronald McDonald, órgão da Associação de Apoio à Criança com Neoplasia, funciona
desde dezembro de 1994. Seu objetivo principal é possibilitar à criança com câncer, que não
reside na cidade do Rio de Janeiro, uma hospedagem que facilite a continuação de seu tratamento
no regime ambulatorial. Funciona basicamente com serviço voluntário
86
Atirei o pau no gato - Música folclórica.
78
enquanto rodavam. A segunda música foi “Que tudo mais vá para o inferno”
87
· cantada com
gestos de mãos, vozes claras e sonoras. Por último “Bandeira Branca”
88
foi cantada em um
andamento mais lento, expressivamente, no seu tom menor, os participantes dançando com
gestos largos. O grupo cantou, e voltou a trabalhar.
Não fiz para eles nenhuma interpretação. Apenas cantamos. Eu, porém, entendi que a
reunião prosseguiria e que o impasse seria resolvido, porque as músicas me anunciaram o
desfecho. Realmente eles atiraram o pau no gato, mas o gato não morreu, mesmo com a
admiração de D. Chica com o seu enorme berro. O que importava mesmo era que só queriam
algo que lhes aquecesse no inverno, tudo mais que fosse pro inferno. Apesar de difícil o embate e
da solidão sentida ao estar só no carro, pediram paz, acenando uma bandeira branca. A
tonalidade passa do maior para o menor. O conteúdo das letras pode ser escutado por todos nas
vozes claras e sonoras dos participantes que dançaram harmoniosamente enquanto cantavam.
(CHAGAS, 2004, pp 23, 24)
O território de experiências existenciais vividos pelos que participam de uma casa de
apoio e todos as diversas manifestações da solidariedade humana
89
incluem muitas
manifestações de subjetivações hiperterritorializadas. Dentre estas, no cotidiano da Casa Ronald
se experiencia diferentes expectativas quanto a reação do outro, expectativas essas que, muitas
vezes, tanto provocam crises grupais - que dificultam os encontros produtivos-, quanto geram
potências criativas advindas do encontro dessas mesmas diferenças. Cantar, brincar, expressar-se
87
Música Quero que vá tudo pro inferno de Roberto e Erasmo Carlos, 1965 gravado no disco
Jovem Guarda
88
- Música - Bandeira Branca de Laércio Alves e Max Nunes, de 1970
89
Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema da solidariedade como forma de
subjetivação coletiva ver MARIASCH, T. L. REINVENTANDO A VIDA: Da “Solidariedade
por decreto” à “Solidariedade por convivência” , 2004
79
neste dia relatado possibilitou ao grupo de voluntários uma reterritorialização de territórios
existenciais. Ampliaram-se as experiências humanas e a comunicação entre eles foi facilitada
pela desterritorialização – imagine trinta gestores, de mais de 40 anos, brincando alegremente de
roda – logo territorializada novamente a partir de outros agenciamentos coletivos de enunciação.
O segundo exemplo clínico é o expressivo relato das musicoterapeutas Martha
Negreiros
90
e Renata Figueiredo
91
(2005) que comentam o trabalho de construir território e
produzir subjetividades em pacientes psicóticos em enfermaria de longa permanência do Hospital
Psiquiátrico de Jurujuba.
Ao chegarmos àquele espaço, habitado por 14 pessoas, os primeiros sentimentos
foram um misto de repulsa e desafio - os cheiros, os ruídos, os gritos, as roupas
puídas, a falta de luminosidade, o pátio de cimento, um lugar ermo. O limbo psíquico.
Algo como o não classificado da exclusão. Aonde a música?
A equipe se restringia à enfermagem (auxiliares, técnicos e um enfermeiro
coordenador), a um clínico geral, a um psiquiatra e à coordenadora do setor (albergue
e enfermaria). Naquele tempo, havia tão somente a oficina de beleza realizada pela
enfermagem.
Foi grande nosso impacto e estranhamento. Eram vidas imensas, loucas e ao mesmo
tempo, tão breves. Ficamos a pensar em que momento uma ruptura de tal forma
drástica havia acontecido? De quê modo a vida de relação daquelas pessoas, a
vivência dos papéis familiares e sociais, havia se rompido? E o empobrecimento da
expressão verbal, corporal, facial? Vidas devastadas, desdentadas, imensas de
sofrimento e loucura marcados na pele, no rosto. Como a música?
Por onde começar? Pela dificuldade de comunicação verbal não pudemos realizar a
entrevista inicial musicoterápica a fim de recolhermos indicadores da história sonoro
musical de cada um. Nos metemos, então, no espaço multi-uso da enfermaria -
refeitório, sala - de televisão- e delimitamos um círculo com as cadeiras e bancos,
empurramos as mesas e colocamos (orgulhosasl!) nosso tapete lindo e novo que
centralizava o local onde seria disposto nosso material. Iniciamos com o instrumental
que dispúnhamos: um repenique velho, dois chocalhos, um pandeiro pesado e
inadequado, um guizo de cabo, um violão mais ou menos, um afochê, um ganzá. Pois
bem, tínhamos nosso corpo, nossa voz, e, sobretudo, o desejo de trabalhar. 'Tal como
a "loucura necessária das mães', no dizer de Winnicott, antecipávamos subjetivamente
90
Marta Negreira Sampaio Vianna é musicoterapeuta, professora convidada do curso de Especialização em
musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário, atualmente responsável pelo Projeto
MAME – musicoterapia no aleitamento materno exclusivo, realizado na Maternidade escola da UFRJ.
91
Renata Figueiredo é musicoterapeuta. Foi presidente da Associação de Musicoterapia do
Estado do Rio de Janeiro. Trabalha atualmente com pessoas portadoras de necessidades especiais
e sofrimento psíquico
80
canções circulando naquele espaço, memórias carregadas de afeto sendo ativadas,
conectadas, acessadas pela música, pelo som dos instrumentos sendo tocados... Algo
vivo, pulsante, ritmado, organizado, estruturado. Um banho de linguagem na música
!
Estabelecemos para os encontros a freqüência de duas vezes por semana com duração
de, aproximadamente, sessenta minutos cada. O que aconteceu? A equipe de
enfermagem foi o elo primordial, convidando e trazendo os pacientes para a nova
atividade, participando ativamente, nos apoiando, nos Inserindo naquele espaço. E os
pacientes? Para nossa surpresa e espanto não tiveram qualquer Iniciativa para
escolher ou experimentar nenhum daqueles instrumentos, tampouco sugerir canções
ou cantá-las, emitir quaisquer sons musicais. De imediato ficou claro que nós é que
deveríamos dar voz àquele espaço. Escolhemos, primeiramente, as cantigas de roda.
Pudemos observar esboços de sorrisos, alguns rasgos de curiosidade na forma como
nos olhávamos, alguma chama de expressividade. Como pode o peixe vivo viver fora
da água fria? Como poderei viver sem a sua companhia?
Em um dia qualquer, lá pelo décimo encontro, uma paciente nos pede uma marchinha
de carnaval. Menina vai, com jeito vai, senão um e dia a casa ca
92
i. E daí, vieram
outras, e mais outras, e mais outras. Alguns dançaram, outros cantaram, ainda que
baixinho. E neste momento pudemos identificar o gênero musical que havia tocado
aquelas pessoas. O nosso círculo de música havia, enfim, se feito e assim teve início a
construção da nossa história sonoro-musical.
Hoje, passados 22 meses e 146 encontros de musicoterapia, muitos caminhos vêm
sendo trilhados, outros tantos a descobrir... O repertório vem se ampliando - sambas,
sambas- canção, pagodes, MPB, hinos religiosos, e a exploração dos instrumentos
musicais, ainda que de forma bastante inibida, é significativamente mais freqüente. O
uso da voz para cantar é igualmente inibido, mas também se faz mais presente, bem
como a iniciativa de sugerir canções.
Esta é uma clínica que desafia o caos, reterritorializando o território da expressão
perdida. Os territórios do pequeno tapete novo, dos instrumentos, das canções adivinhadas
construíram, pouco a pouco, mais do que um pequeno gesto, construíram a relação com a terra,
produziram a possibilidade do ritornelo territorial, fechado sobre si mesmo em função da
construção de uma terra natal nova -por vir- que o musicoterapeuta constrói sobre um plano de
imanência. A música traça um território sobre a própria desterritorialização, colabora na
construção do ponto frágil que se organiza dentro do caos. A marchinha de Carnaval surgida,
composta com a predominância de intervalos descendentes pede aos musicoterapeutas tato na
construção da casa-território: Menina vai, com jeito vai, senão um e dia a casa cai.
92
Marchinha Vai com jeito, composta por Braguinha, em 1956.
81
3 - A ÊNFASE NO MÚLTIPLO: O RIZOMA
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um contof
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
Tom Jobiml
93
3.1 A metáfora e sua aplicação
Deleuze e Guattari utilizam o rizoma como metáfora inspiradora para propor uma
concepção de fenômenos, uma visão das coisas, uma interpretação do mundo: um mundo repleto
Águas de Março, canção lançada em 1972 no Disco de bolso: O tom de Tom Jobim e o tal do João Bosco, um
encartado no semanário carioca "O Pasquim". Famosa na interpretação de Elis Regina e Tom no disco Elis &Tom,
lançado em 1974 e relançado em 2004. No cd é a faixa de número 8.
82
de multiplicidades, agenciamentos e linhas de fuga. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 11). A
idéia de rizoma é oposta a de árvore: o rizoma é múltiplo, a árvore é única, o rizoma se
multiplica, se conecta a qualquer parte, a árvore somente a partir de seu caule. Um rizoma é um
tipo de caule de crescimento horizontal, com hastes subterrâneas ou aéreas que se cruzam em
todas as direções; pode ter folhas de vários tipos e tamanhos e até mesmo frutos
94
, bulbos ou
tubérculos. É uma raiz espalhada. “
Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra
numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas”. (DELEUZE; GUATTARI, 1992 p 17).
Um mundo em rizoma não tem começo nem fim, é um meio pelo qual cresce e transborda.
A conexão de uma parte a outra do rizoma não requer das partes o pertencimento à mesma
natureza para se efetivar. Ele pode colocar em relação regimes de signos muito diferentes. Nele,
subtrai-se o único da multiplicidade (o n-1), embora o rizoma não se reduza nem ao múltiplo,
nem ao Uno. É feito de dimensões, ou antes, de direções movediças. A própria origem é afetada
pela diferença e pelo múltiplo. Não há o caráter a priori. Não há ponto de origem, nem princípio
primordial comandando todo o pensamento. O avanço significativo é dado pelo encontro impre-
visível, na reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito. Um rizoma não começa nem
conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas.
Para Zourabichvili a perspectiva em rizoma configura um anti-método que parece tudo
autorizar - e de fato o autoriza, pois este é o seu rigor, não julgar previamente qual caminho é
bom para o pensamento, mas recorrer à experimentação, erigir a benevolência como princípio,
considerar enfim o método uma muralha insuficiente contra o preconceito. (ZOURABICHVILI,
2004, p.98).
Um rizoma tem as seguintes características-princípios de funcionamento na concepção dos
filósofos:
94
A banana, tão conhecida entre nós, é o fruto de um rizoma.
83
- Princípio de conexão e de heterogeneidade:
Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve fazê-lo. Um
rizoma sempre conecta outras cadeias, podendo acoplar diferentes pontos de uma cadeia
semiótica, tais como organizações de poder, expressões artísticas, leis sociais, econômicas,
políticas, tecnologias, linguagens diversas, gestos.
Deleuze e Guattari colocam os dois primeiros princípios, conexão e heterogeneidade,
unidos. A conexão é de heterogeneidades e as heterogeneidades se conectam.
- Princípio de multiplicidade:
O princípio da multiplicidade do rizoma versa sobre o múltiplo tratado como substantivo,
de tal forma que perca qualquer relação com o uno, como sujeito ou como objeto, como
realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. O múltiplo torna-se objeto de uma
síntese imediata. As multiplicidades são rizomáticas, elas não têm nem sujeito nem objeto,
possuem unicamente determinações, tamanhos, dimensões. As multiplicidades se definem pelo
fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de
natureza ao se conectarem às outras.
- Princípio de ruptura a-significante:
Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma
segundo uma outra de suas linhas e segundo outras linhas. Não há cortes que sejam
especialmente significantes, há linhas de segmentaridade dentro das quais um rizoma pode ser
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído. As linhas de desterritorialização
igualmente o compõem. Cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, há
rupturas no rizoma. A linha de fuga faz parte do rizoma. Como as linhas de fuga remetem umas
às outras, não se pode contar com qualquer dualismo ou dicotomia. No entanto, em uma linha de
84
fuga, há sempre, o risco de se reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto,
formações que dão novamente o poder a apenas um significante.
95
- Princípio de cartografia e de decalcomania:
Um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele não é
organizado em estados sucessivos, nem é explicado por uma estrutura profunda. Tem múltiplas
entradas O rizoma funciona como um mapa
96
e não como decalque. A árvore funciona como um
decalque, se orientando para o que está feito. O mapa-rizoma se orienta para a experimentação
que atua sobre o real. O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável,
reversível, susceptível de receber, constantemente, modificações O mapa tem múltiplas entradas.
O decalque volta sempre ao mesmo. Pode ser rompido, alterado, adaptado a montagens distintas.
No entanto, o mapa também comporta fenômenos de redundância que são como que seus
próprios decalques: estratos onde se enraízam unificações e totalizações, massificações,
mecanismos miméticos, atribuições subjetivas. Isto é: no mapa se projeta o decalque. Um
decalque não pode reproduzir o mapa, pois o decalque só consegue reproduzir a si mesmo, ainda
quando crê reproduzir outra coisa. São os impasses, os bloqueios, os pontos de estruturação o que
o decalque reproduz do rizoma. O inverso, porém, é possível. Se o mapa for projetado no
decalque, permite a abertura sobre as linhas de fuga possíveis.
As múltiplas entradas de um rizoma autorizam que se entre neles pelos seus decalques,
pelas suas territorialidades endurecidas, mas que, ainda assim, têm possibilidades de operações
95
São essas rupturas a-significantes rizomáticas que possibilitam nossos vírus conectarem com
outros animais, e vice-versa. Com isso, humanos morrem em mais devido a contaminações por
bactérias ou vírus do que devido a doenças hereditárias.
96
Deleuze e Guattari utilizam, em Mil Platôs, a metáfora do mapa para explicar o princípio de
cartografia no rizoma. Suely Rolnik esclarece que a cartografia é diferente do mapa, já que a
cartografia é um desenho que se faz ao mesmo tempo em que acontecem os movimentos de
transformação da paisagem (ROLNIK, 1989, p.15).
85
transformadoras. Em estruturas de árvore ou de raízes, mesmo em um elemento microscópico, há
a chance de brotar um rizoma. ”No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um
galho, um novo rizoma pode se formar.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, pp. 15 - 24).
3.2 Rizoma, sonoridades e música.
“A música é rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, Ibid., p. 21), Suas conexões diversas e
heterogêneas iniciam-se a partir da dificuldade na sua definição. Iazzetta
97
afirma que
qualquer definição de música representaria, quando muito, a definição de uma música
em particular, ou ainda, apenas o ponto de visita restrito e particular sobre o assunto.
A validade dessa busca por algo que não cabe dentro de definições estanques é
questionável na medida em que a música se apresenta como estrutura dinâmica e viva
que se reconfigura dentro de suas práticas, dentro da criação e da escuta e como tal
deve ser percebida como algo vivo, em constate mutação e que se atualiza a cada
momento de sua realização ( 2001, p.5)
Muitos objetos diferentes podem ser chamados de música. A música pode ser a erudita, e
escolhe-se a partir de estilos de época: a barroca, a clássica, a romântica, a contemporânea; ou
podemos entender que seja algo que se compõe de ritmo, melodia e harmonia – e termos
diferentes escutas para cada um desses aspectos: pode ser o que ouvimos no rádio, ou no
computador; o que nos facilita a execução do trabalho; o que embala o sonho; o que se
experimenta nos laboratórios eletro-eletrônicos.
O sistema tonal da música, no entanto, foi o que estabeleceu, em ressonância com todo o
arsenal moderno, determinantes de centros estáveis de poder atrativo, centros organizadores de
97
Fernando Iazzetta é livre docente na área de Música e tecnologia, doutor em Comunicação e
Semiótica, professor na área de Música e Tecnologia do Departamento de Música da Escola de
Artes da USP e pesquisador do Laboratório de Acústica Musical e Informática (LAMI)
86
coletivos - a sala de concerto, as leis da harmonia, o erudito separado do popular e do folclórico -,
distintas e distintivas formas para um sistema centrado, linear, de tipo arborescente.
Foi a música construída a partir do século XX - a música contemporânea, incluindo
sonoridades até então inéditas que, rompendo com o temperamento, com as alturas, com os
componentes tradicionais do som, e utilizando um material complexo e elaborado – a que
ampliou, de forma extraordinária, as conexões heterogêneas no universo musical. As mudanças
ocorridas, durante o século XX, dizem respeito a outras concepções do tempo e do ritmo, da
produção sonora, da forma, da estrutura musical, dos significados e das atitudes de escuta.
Compartilhamos, hoje, rizomaticamente, com a possibilidade de coexistir as mais variadas
tendências e correntes. O ecletismo contemporâneo abrange desde o setor especializado da nova
música - o universo dos concertos em geral - até os meios de comunicação, as indústrias de
gravação – que produzem discos de música ocidental do período medieval ao contemporâneo -
discos de música artística não ocidental, de música folclórica e popular de todo mundo. Esta
oferta variada e abundante contribui para a existência de uma vida musical pluralista e
heterogênea (GREIF
98
, 2004, p. 1,2).
Portanto, esta multiplicidade se expressa tanto no cardápio musical oferecido atualmente,
quanto na pesquisa sonora realizada pelos compositores
99
.
98
Elza Lancman Greif é graduada em piano e em Fundamentos da Educação. Mestre em Música
pelo Conservatório Brasileiro de Música-CEU (1994). Atualmente é Professor I do Instituto
Superior de Educação, Professor do Conservatório Brasileiro de Música-CEU e Professor do
Colégio Estadual Ignácio Azevedo do Amaral.
99
Um interessante exemplo desta variedade é encontrada na obra "Helikopter-Streichquartett” Nela Stockhausen
cria uma composição – idealizada a partir de um sonho – cujos componentes são um quarteto de cordas, quatro
helicópteros com pilotos, equipamento áudio e vídeo. Escutar essa composição
http://www.stockhausen.org/heli_mp3.html
nos coloca frente a uma sonoridade na qual o ruído das pás dos
helicópteros tem tanta importância quanto o som dos instrumentos de corda. O compositor produz um
desterritorialização simultânea do helicóptero e da música (BORGES e FONTES, 2006). Outro exemplo é o de Atau
Tanaka que, colocando sensores sobre o corpo, conectados a computadores, torna as contrações musculares a fonte
de sons para fazer música com os seus músculos (BRUNO, 1999, p 105) http://www.sensorband.com/atau/
87
Deleuze e Guattari compreendem que
o par matéria-forma é substituído pelo acoplamento material-forças. O sintetizador
toma o lugar do antigo "juízo sintético a priori", mas com isso todas as funções mudam.
Colocando em variação contínua todos os componentes, a música se torna, ela mesma,
um sistema sobrelinear, um rizoma ao invés de uma árvore, e fica a serviço de um
continuum cósmico virtual, do qual ate mesmo os buracos, os silêncios, as rupturas, os
cortes fazem parte( DELEUZE; GUATTARI , 1992b, pp. 38-39).
Não somente a contemporânea, mas toda música é rizoma. Jonh Cage, indagado por
Shafer sobre sua definição de música afirma: “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos
dentro ou fora das salas de concerto”. (SHAFER, 1991, p 120). Os sons que nos rodeiam formam
uma paisagem sonora (ou o soundscape)
100
que está em relação íntima com outros fatores sociais
presentes: as condições políticas, o aparato tecnológico e as sonoridades da natureza.
(WESTERKAMP, 2005). A mudança nestas circunstâncias altera o ambiente sonoro provocando
outros agenciamentos e outros modos de subjetivações. Por exemplo, as inovações tecnológicas,
rápidas e numerosas no século XX, provocam mudanças no som, no ruído, na música, no
silêncio, enfim, no cotidiano sonoro de nossas vidas.
As multiplicidades da música-rizoma na atualidade se ampliam com a possibilidade de
ouvirmos e convivermos cada vez mais, como aponta Iazzetta,
com sons provenientes de corpos invisíveis contidos nos circuitos de sintetizadores,
samplers, gravadores magnéticos e computadores (...) São sons novos e extremamente
ricos, mas ao mesmo tempo, conflituosos, já que vêm desvestidos de qualquer
conexão com corpos ou gestos.(1997, p. 28)
A música, como rizoma, ocupa essa paisagem sonora territorializada, mas com linhas de
fuga que a desterritorializam.
100
Paisagem sonora – “O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro
vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções
abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas
como um ambiente”. (SCHAFER, 2001, p. 366)
88
A música nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas
‘multiplicidades de transformação’, mesmo revertendo seus próprios códigos, os que
a estruturam ou a arborificam; (...) a forma musical, até em suas rupturas e
proliferações, é comparável à erva daninha, um rizoma (DELEUZE; GUATTARI,
1995a, p. 21)
Um rizoma conecta um ponto qualquer a outro ponto qualquer e cada um de seus traços
não remete necessariamente a traços de mesma natureza. O modo como as sonoridades são
apreendidas pelo ouvido ou pela pele/ossos é uma aplicação deste princípio na música. O ouvido
não pode deixar de ouvir, não tem pálpebras, conforme alerta Schafer:
Ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os
olhos podem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, sempre abertos. Os olhos
podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons
do horizonte acústico, em todas as direções. (1991, p, 67).
A pele e os ossos, também captadores da vibração sonora, são grande extensão de
recepção tátil, percebendo ininterruptamente as vibrações. Percebermos os sons por ouvidos
abertos e pele sensível, ambas as formas de recepção contribuindo para a música rizoma
101
.
Escutamos a música com nossas múltiplas entradas corporais.
Essa multiplicidade chega aos seres ainda na vida intra-uterina. Os sistemas vestibular e
auditivo possibilitam ao feto ser capaz de responder a estímulos como a luz, dor e sons a partir da
24ª semana de gestação. “A exposição a uma ou outra música poderia causar a aceleração ou
diminuição dos batimentos cardíacos do feto” (HICKS, 1995).
102
101
Como ilustração, reproduzo o comentário feito por uma mãe cujo filho se tratava no Instituo
Nacional de Câncer (INCA), em sessão de musicoterapia na Casa Ronald McDonald “Hoje
esteve no INCA a musicoterapeuta que toca violino. Aquele som infernal que vai me procurar
onde eu estou... que vai me cutucar até no banheiro”.
102
Ouvir, contudo, ainda é considerado pela acústica tradicional como um ato passivo, no qual uma série de energia
é transferida da fonte para o receptor, cada componente do sistema analisado independentemente um do outros
(CAMPOS e CARVALHO, 2005; CARVALHO e SOARES, 2004; MENEGUELLO
, DOMENICO, COSTA et col,
2001). Mas além desta concepção, há outras, e, dentre elas, as de "escuta que pensa”, escuta que se interessa pelo
relacionamento entre ouvinte e paisagem sonora (SCHAFER,1991). SANTOS (2002), ao pesquisar uma escuta
89
A música é um rizoma que faz rizoma. As suas rupturas a-significantes
103
dizem respeito
à possibilidade de um rizoma poder ser quebrado em um lugar qualquer e retomar segundo uma
outra de suas linhas.
Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende
também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p. 18)
A título de ilustração desta dinâmica das rupturas a-significantes na música, em estados
alterados de consciências, musicoterapeutas relatam a experiência de pessoas que criam imagens
mentais ao ouvir música em sessões no método GIM (Imagens Guiadas e Música)
104
. Nele o
cliente, em estado alterado de consciência, cria livremente imagens, ouvindo música erudita e
dialogando verbalmente com o musicoterapeuta. O cliente embarca em sua “viagem” através de
qualquer um dos muitos aspectos oferecidos pela música: o ritmo, a sonoridades de um
instrumento, a linha a melódica, a harmonia, o contra-ponto. A característica rizomática da
música erudita, com suas múltiplas entradas sonoras, é o grande facilitador deste tipo de
experiência.
nômade, propõe uma diferenciação entre o ato de ouvir - considerado uma espécie de habilidade passiva, que parece
trabalhar com ou sem esforço consciente - e o de escutar - função ativa, envolvendo diferentes níveis de atenção e
cognição.
103
O termo a-significante é utilizado para se opor as "semióticas significantes" - aquelas que
articulam cadeias significantes e conteúdos significados. As "semióticas a-significantes" agem a
partir de cadeias sintagmáticas, sem engendramento de efeitos de significação no sentido
lingüística. Podem estar diretamente conectadas com seus referentes no quadro de uma interação
diagramática. Exemplo de semiótica a-significante: a escrita musical, o corpus matemático, as
sintaxes informáticas, as dos robôs” ( GUATTARI ; ROLNIK, 1986, p 317).
104
Método criado pela violinista e musicoterapeuta Helen Bonny (BONNY, 1978)
90
3.3 Rizoma e produção de subjetividades.
A compreensão da ocorrência de fenômenos de um modo rizomático traz conseqüências e
desafios teóricos importantes para a concepção da produção de subjetividades. Uma delas é que
para pensar qualquer aspecto envolvido na sua produção, a ênfase será deslocada de estruturas
pré-formadas para a importância da experimentação. Como no rizoma não há começo real, senão
no meio, a “gênese”, inclusive a dos humanos, adquire valor de “devir”, sem relação com uma
origem. A produção de subjetividade enfatiza intensidades e não locais de partida, linhas de fuga
e não anamneses. A valorização será colocada na possibilidade da existência do encontro, não
havendo razão para desqualificar a priori certos caminhos e valorizar outros. Se um encontro não
é selecionado pela experiência é por que certos acoplamentos não produzem nem mudam nada.
Uma subjetividade concebida em uma produção rizomática inclui conexões,
heterogeneidades, multiplicidades, ruptura a-significantes, a cartografia tanto quanto a
decalcomania.
O núcleo de um indivíduo vivo, de um grupo, de um pensamento, de uma teoria, pode
ser perfeitamente heterogêneo à estrutura que explica seu funcionamento. Não é nem
a partir da totalização fenomenológica, nem a partir da estrutura simbólica, nem a
partir do conjunto sistêmico que se poderá apreender a real vida maquínica.
(GUATTARI, 1988, p. 148).
Baseando-nos no rizoma para compreender a produção de subjetividades, não nos deteremos
nas gêneses dos seres, ou nas suas patologias, já que um rizoma coloca em relação regimes de
signos muito diferentes. A prioridade será cartografar os diversos componentes de subjetivação
em sua natural heterogeneidade (GUATTARI, 1989).
O nome próprio, na concepção de Deleuze e Guattari,
não designa um indivíduo: ao contrário, quando o indivíduo se abre às multiplicidades
que o atravessam de lado a lado, ao fim do mais severo exercício de desper-
91
sonalização, é que ele adquire seu verdadeiro nome próprio. O nome próprio é a
apreensão instantânea de uma multiplicidade. O nome próprio é o sujeito de um puro
infinitivo compreendido como tal num campo de intensidade. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p. 51).
Indivíduos ou grupos somos atravessados por linhas, trópicos, meridianos distintos:
não têm a mesma natureza, nem o mesmo ritmo. Somos compostos por conjuntos de linhas de
várias espécies: algumas linhas nos interessam mais do que as outras; algumas nos são impostas,
pelo menos em parte, de fora; outras surgem ao acaso; outras ainda deveremos inventar. As linhas
de fuga são questões de cartografia. “Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas
se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.” (DELEUZE; GUATTARI,
1996 p. 77).
Para ilustrar essa discussão, analisaremos a concepção do inconsciente visto como
maquínico, as hipóteses sobre a produção contemporânea do corpo e processo do devir:
contribuições teóricas úteis na compreensão da produção de subjetividade na sua dimensão
rizomática.
3.3.1 Um inconsciente maquínico.
O inconsciente, nesta ótica, é maquínico, ”não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O
inconsciente produz”. (DELEUZE, 2001) Funcionando como fábrica, é constituído de
proposições das quais as suposições semiológicas e lógico-científicas não são suficientes para
apreendê-lo de forma exaustiva. “O inconsciente maqnico corresponde ao agenciamento das
produções de desejo, e, ao mesmo tempo, a uma maneira de cartografá-las”. (GUATTARI;
ROLNIK, 1986, p. 210).
92
A busca de uma cartografia geral das formações do inconsciente deve incluir a
possibilidade da articulação de diferentes modos de semiotização
105
. Traçando passagens entre as
ações clínicas e a produção de territórios existenciais, Guattari propõe como exercício, uma
tópica do inconsciente que poderia ter, de uma vez, nove tipos de entrada:
1
o
) Uma certa concepção do primeiro modelo pulsional freudiano: as concepções das
energéticas pulsionais antes de terem sido esvaziados das problemáticas do corpo e das
energias não verbais.
2
o
) Uma concepção de modelização do tipo icônico (...) [ independente] das semióticas
da linguagem. Constata-se a presença de semióticas icônicas perfeitamente elaboradas,
com um funcionamento próprio, sem implicar absolutamente a discursividade do
significante. (...).
3
o
) Um componente da ordem daquilo que Pierre Janet tinha chamado de ‘automatismos
de repetição’.
4
o)
Uma percepção do inconsciente como a de Sartre, em suas tentativas de elaboração
de uma psicanálise existencial. (...) É o inconsciente de A Náusea: Sartre fala muito
dele, o tempo todo, afirmando, intrinsecamente, que dele nada se pode dizer com
precisão. Pode-se considerar que, nessa dimensão, existiria uma pura memória de ser,
não discursiva: a discursividade, aí, se volta sobre si mesma.(...)
5
o
) Uma concepção do inconsciente, muito mais estruturalista, que acentua o
significante.
6
o
) Produções do inconsciente que dependem de formações mais coletivas, como é o
caso do conceito de "imago" em Jung, ou dos componentes do inconsciente da natureza
de uma inscrição sistêmica, herdados de Bertalanffy
106
, que estão se elucidando
atualmente no campo das terapias.familiais.
7
o
) Uma modelização do inconsciente da natureza daquilo que eu chamaria de
semióticas anagógicas
107
, segundo a concepção de Silberer
108
. Essa concepção
105
- Princípio de cartografia e de decalcomania: “Um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural
ou gerativo”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p.21). O rizoma não é organizado em estados sucessivos, nem é
explicado por uma estrutura profunda. Tem múltiplas entradas O rizoma funciona como um mapa e não como
decalque.
106
“Bertalanffy desenvolve o modelo de sistema aberto, entendido como complexo de elementos
em interação e em intercâmbio contínuo com o ambiente, que promverá o início da teoria dos
sistemas
( BERTALANFFY , 1977)
107
Anagógico – “passagem do sentido literal ao místico” (DICIONÁRIO HOUAISS, 2001,p.
201)
108
Silberer escreveu sobre a relação entre psicologia, misticismo e as tradições esotéricas (SILBERER, 1970).
93
corresponde em muitos pontos ao inconsciente de Jung. Trata-se também de um modelo
que deveria restituir a especificidade às produções semióticas, das sociedades arcaicas,
às concepções mitológicas das produções subjetivas. Em tais concepções há toda uma
economia das almas, dos espíritos, toda uma apreensão por afeto que não passa pelo
discurso ao nível significante, que dá um conhecimento de universo anterior a qualquer
processo de discursividade
109
.
8º ) Um componente que eu e Deleuze chamamos de "inconsciente capitalístico" e que
poderíamos atribuir, por exemplo, à Metro Goldwyn Mayer ou à Sony - por que, não?
Ele corresponde à subjetividade produzida pela mídia e pelos equipamentos coletivos,
de um modo geral, ou seja, a produção de subjetividade capitalística.
9º ) E por último, provisoriamente, aquilo que eu e Deleuze chamamos de ‘inconsciente
maquínico’ ,que colocaria a problemática da articulação desses outros componentes, e a
colocaria não como um processo de fechamento, de controle das formações do
inconsciente: ao contrário, ele seria um meio de' leitura do inconsciente - isso, quando
sua produção é possível.(GUATTARI; ROLNIK, 1986, pp. 209-210) .
Guattari nomeia nove entradas, mas como ele próprio acredita que outra pessoa possa
perceber diferentes e múltiplas entradas (Ibidem, p. 211), indicamos, também, como possíveis
acessos para uma tópica de um inconsciente rizomático algumas contribuições já sistematizadas
dentro do campo da musicoterapia:
- Um componente de identidade sonora e dos ISO’s
110
Universal, gestáltico, cultural
complementar, em interação, ambiental; grupal, familiar; ambiental e comunitário.
(BENENZON, 2006)
109
“Tomemos o exemplo da música: numa certa época da história da música, temos as
semânticas da música oral, as semânticas da escrita de toda natureza e a conjunção dos dois
universos: um complexo maquínico que associa uma máquina de escrita a máquinas de música
oral, instrumental e melódica. Antes mesmo que alguma produção musical efetiva se faça,
delineia-se uma potencialidade de universos polifônicos, harmônicos, etc. Antes mesmo que duas
notas tenham sido articuladas, tal universo é apreendido justamente comesse caráter de afeto, esse
caráter de perturbação que pode até conduzir à loucura, ou então a inspiração, ou simplesmente à
descoberta. Ou seja, surge um universo antes mesmo que haja discursividade.” (GUATTARI;
ROLNIK, op.cit., p. 210)
110
A metodologia Benezon postula a existência de uma identidade sonora individual, o ISO, conjunto de energias
sonoras, acústicas e de movimento que pertencem a um indivíduo, à família, à comunidade, ao ecossistema, ao
ambiente e o caracterizam (Benenzon, 2007). É formado pela herança sonora, pelas vivências sonoras gestacionais,
pelas experiências sonoras vividas desde o nascimento. Fazem parte deste princípio: o ISO universal, o gestáltico o
cultural e o grupal. O Iso universal é composto, no inconsciente, pelas energias sonoras, herdadas por milênios. Estas
energias sonoras são características de todo o gênero humano, com as variáveis de heranças mais recentes: o ocidente
e o oriente (BENENZON, 1988) No homem ocidental encontra-se as seguintes características: o ritmo binário, o
94
- a percepção da music child utilizada em Musicoterapia Criativa
111
que entende como
possível a toda pessoa responder a experiência musical de maneira significativa e acoplando
vários tipos de desenvolvimento à experiência musical (cognitivo, motor, expressivo, etc)
(ROBBINS; ROBBINS, 1991, p.57).
Cada uma destas entradas não se reduz nem despreza as outras. Em uma situação
subjetiva qualquer, participam muitas dessas – e outras – dimensões. Em um inconsciente
rizomático, as interações entre as estruturas molares, delimitadas pelos objetos e pelos sujeitos
estão em constante interação com a ordem molecular, dos fluxos, dos devires e das intensidades.
Essas interações existem a partir de agenciamentos estratificados, decalcados, visíveis e a partir
de "potências invisíveis" nascidas de matérias de expressão, nem sempre delimitadas do ponto de
vista de coordenadas espaço-temporais e conceituais explicitáveis. Preserva-se, desta maneira, a
batimento cardíaco, os sons da inspiração e da expiração, a escala pentafônica, o acorde perfeito, o ostinato, o canon,
o silêncio. O ISO gestáltico contém o inconsciente das energias sonoras das vivências do indivíduo desde o momento
de sua concepção. Essas energias podem influenciar e modificar àquelas que se encontram no ISO universal. O ISO
cultural é formado pelas energias sonoro-musicais a partir do nascimento. O ISO grupal é a característica sonora de
grupos que possuem um trabalho musicoterapêutico contínuo (BENENZON, Id.). “O Iso é um conceito dinâmico no
qual intervém o indivíduo e sua história” (BENENZON, ibid, p.66). O processo musicoterapêutico se desenvolve a
partir do estabelecimento de uma relação terapêutica que busca a comunicação sonora a partir da identidade musical
do cliente – seja ele uma pessoa ou um grupo – e do terapeuta. Recentemente Benenzon inclui, em sua teoria, o ISO
ambiental, cuja busca é reencontrar no próprio lugar os nos que o caracterizam e o ISO Comunitário - o conjunto de
fenômenos não verbais que se sucedem no transcurso do dia e através do tempo que caracterizam um determinado
grupo de indivíduos que interatuam em um determinado lugar tendo um princípio comum (BENENZON, 2005)
111
Musicoterápia Criativa é um Método (...) baseado em trabalhos de Paul Nordoff e Clive
Robbins com crianças comprometidas neurológica e fisicamente. Utiliza-se da improvisação
musical e de sua análise como principal ferramenta clínica. Faz parte das crenças básicas deste
método a premissa de que cada pessoa possui um núcleo, que faz com que seja capaz de
responder às experiências musicais. Essa musicalidade individual é inata a todos, independente
de deficiências, e reflete uma sensibilidade universal à música e a seus vários elementos,
pertencendo ao self do indivíduo . Nordoff e Robbins chamaram a esta possibilidade de “music
child." (ROBBINS; ROBBINS,1991, p 57). As respostas dadas às propostas musicais são
impulsionadas pelo music child que, por sua vez, é influenciado pela forma com que
desenvolvemos esta condição na nossa vida, a condition child .Através da concepção de que
todos possuímos um núcleo musical interno, este método se propõe a promover o crescimento de
todo o self através da experiência musical criativa. As intervenções musicoterapêuticas
modificam as condições impeditivas da expressão da musicalidade, facilitando o acesso de
energias básicas de sensibilidades e integração do self.
95
multiplicidade e a heterogeneidade de todas as entradas possíveis, de todas as emergências de
novos pontos de cristalização, inclusive as sonoro-musicais.
Um ponto central molar pode instalar-se sobre um maquínico molecular. Um
agenciamento molecular em rizoma pode ser portador de "placas molares". “As
consistências molares e moleculares se instauram urnas em relação às outras sem
quebra de continuidade
112
(GUATTARI, 1988, p. 151).
Os componentes de subjetivação e de conscientização resultam de modos de semiotização
heterogêneos que aceitam os agenciamentos materiais, biológicos, sociais, etc. como capazes de
criar universos complexos heterogêneos
113
. Portanto, se as conexões efetuadas por alguém forem
compatíveis com um conjunto de proposições maquínicas, então tudo é possível. (Ibidem, p.
154). A própria origem – dos fenômenos, dos humanos, as coisas, da vida – é afetada pela
diferença e pelo múltiplo, perdendo seu caráter de um a priori que tudo engloba. O múltiplo,
subtraído da influência do Uno (n-1), torna-se o objeto de uma nova síntese.
3.3.2 Um corpo e um corpo sem órgãos
O corpo visto sob a ótica do rizoma possui múltiplas entradas
114
que o afetam. As
trabéculas ósseas se organizam em função de um vetor de força: a musculatura se hipertrofia no
112
Princípio de conexão e de heterogeneidade: Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve fazê-lo.
113
- Princípio de multiplicidade: O princípio da multiplicidade do rizoma versa sobre o múltiplo tratado como
substantivo, de tal forma que perca qualquer relação com o uno, como sujeito ou como objeto, como realidade
natural ou espiritual, como imagem e mundo.
114
Deleuze inspira-se em Espinoza para colocar em discussão o corpo e sua potência, afinal “o que pode um corpo?
De que afetos é ele capaz?” (DELEUZE; GUATTARI, 1997 p 42). Exigências externas são feitas ao corpo em
96
aumento da exigência de uma carga; os vasos colaterais se produzem para auxiliar na circulação
sanguínea de uma área. Todo o corpo é plástico, cada tecido, é plástico a seu modo. (ALMEIDA,
2004, p. 41).
A partir de conexões heterogêneas estabelecidas na atualidade, as possibilidades advindas
da tecnologia reconfiguram o corpo rizomático e a produção de subjetividade que dele advém. A
tecnologia “abre algumas possibilidades, (...) algumas opções culturais ou sociais [que] não
poderiam ser pensadas a sério sem a sua presença”, segundo as pesquisas de Pierre Lévy
115
.(LÉVY, 1999, p.25). Alguém se lembra, ainda, de quando só se sabia o sexo de um bebê
quando ele nascia? Ou de quando a operação de vesícula exigia um enorme corte? O corpo, hoje,
se expande com os mais variados implantes: marca-passos, stents, placas de titânio, silicones,
cirurgias extra-corpóreas. Artefatos biocompatíveis, minúsculos, ampliam o inorgânico no
orgânico corporal. “Esses tecnoimplantes ou próteses interiorizáveis desvinculam ou 'liberam' o
corpo de seus limites biológicos” (BRUNO
116
, 1999, p. 101)
Aumentando as possibilidades das conexões do corpo, estão àqueles dispositivos
tecnológicos, que afetam um corpo partilhado à distância, como a cultura digital, a criação do
ciberespaço, a proliferação das comunidades virtuais. É esse corpo partilhado a distância o
utilizado na arte de Eduardo Kac (2007) que, para a exposição "Arte Suporte Computador",
realizada na Casa das Rosas, em São Paulo, entre 11 de Novembro e 20 de Dezembro, 1997,
criou a obra "Time Capsule
," na qual um micro chip é implantado em seu calcanhar esquerdo.
determinadas situações que o afetam diminuindo a sua potência de agir, ou tornando-o mais forte, aumentando a sua
potência.
115
Pierre Lévy é filósofo, professor da Universidade ParisVIII.
116
Fernanda Glória Bruno é graduada em psicologia, doutora em Comunicação. Atualmente é
Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
97
“As obras de Kac colocam em coexistência elementos do espaço virtual e do real na busca de
expandir o corpo físico natural através do espaço eletrônico e das diferentes formas de tele-ação”.
(MENDONÇA
117
, 2007).
Outra possibilidade de experimentações corporais encontra-se na aplicação da
nanotecnologia
118
com seus encaixes até há pouco tempo inusitados: uma microssonda de apenas
4,7 milímetros de comprimento permite estudar com detalhes o cérebro humano e os circuitos
neuronais (CARDOSO, 2007); uma paciente portadora de epilepsia refratária ao tratamento
medicamentoso pode ser submetida à cirurgia depois de serem colocados em seu cérebro
eletrodos de profundidade intracerebrais que possibilitaram o registro de forma clara da atividade
epileptiforme, determinando com precisão a área cerebral epileptogênica a ser removida.
(MENESES, FOLLADOR, ARRUDA, SANTOS, YONESAWA, HUNHEVICZ
119
,1999).
De aparatos simples a exames sofisticados o corpo é investigado, exteriorizado:
ultrasonografia, doppler, ressonância magnética, colonoscopia provocando rupturas a-
significantes as mais diversas. Na avaliação de Bruno,
Se as neurociências já permitem a ingestão de elementos químicos que modulam o
nosso comportamento e a nossa sensibilidade, as nanotecnologias prometem a ingestão
de estimulantes técnicos - pastilhas inteligentes - que não visam apenas suprir um
déficit ou corrigir um desvio, mas superestimular e superexcitar as faculdades mentais
que não mais estarão limitadas ao corpo orgânico e químico. (BRUNO, 1999, p 101).
117
Carlos Camargos Mendonça é mestre em comunicação social, professor do departamento de
Comunicação Social de UFMG.
118
A nanotecnologia age em escala molecular e que visa compor, manipulando átomo por átomo,
matérias 'inteligentes' miniaturizadas (um nanômetro corresponde à bilionésima parte do metro)
capazes de armazenar uma grande quantidade de informação e de processar em alta velocidade
(BRUNO, 1999 p 101)
119
Murilo Meneses e Sonival Hunhevicz são neurocirurgiões; Flávia Follador, Walter Arruda e Heraldo Santos são
neurologistas e Débora Yonesawa é neuropsicóloga, Integram a equipe da Unidade de Cirurgia de Epilepsia do
Hospital das Nações de Curitiba.
98
Todos esses aspectos indicam as múltiplas versões do corpo contemporâneo que esgarça
seus limites. Inspirados em Artaud, Deleuze e Guattari propõem a utilização de um corpo ainda
mais surpreendente: um corpo sem órgãos (CsO), um corpo cartografia. O CsO, embora diga
respeito ao vivido, refere-se a um vivido extraordinário.
“[O CsO] não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de
práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de
chegar a ele, é um limite (DELEUZE;GUATTARI , 1996, p.9)
Um CsO é fabricado e, depois disto faz circular, circula , permite que passe por ele:
fluxos, movimentos, desejos, sons
120
. Uma vez criado, poderá ser preenchido, percorrido por
afetos, em virtude das próprias condições, por exemplo, em que foi constituído. Almeida
contribui para o entendimento:
O corpo sonhador cria novos entendimentos sobre a vida. Há entendimentos de
diversas ordens. Quem é que sabe racionalizar a maneira como se solta pipa, ou
a maneira como é produzida uma certa sensação de leveza no braço de um
bailarino? (ALMEIDA, 2004, p. 15)
O CsO, uma vez criado, pode ser reinventado, desfeito, já que é uma prática. Deleuze e
Guattari recomendam indagar a cada tipo de CsO:
“1) Que tipo é este, como ele é fabricado, por que procedimentos e meios que
prenunciam já o que vai acontecer; 2) e quais são estes modos, o que acontece, com
120
Deleuze e Guattari citam os Corpos sem órgãos “do corpo hipocondríaco, cujos órgãos são destruídos, a
destruição já está concluída, nada mais acontece (...), - do corpo paranóico, cujos órgãos não cessam de ser atacados
por influências, mas também restaurados por energias exteriores (...) - do corpo esquizo, acedendo a uma luta interior
ativa que ele mesmo desenvolve contra os órgãos, chegando à catatonia; o corpo drogado, esquizo experimental: "o
organismo humano é de uma ineficácia gritante; em vez de uma boca e de um ânus que correm o risco de se arruinar,
por que não possuir um único orifício polivalente para a alimentação e a defecação?(...) - do corpo masoquista, (...)
deixa-se suspender para interromper o exercício dos órgãos, esfolar como se os órgãos se colassem na pele, enrabar,
asfixiar para que tudo seja selado e bem fechado”.( DELEUZE; GUATTARI,1996, p.10)
99
que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas em relação à
expectativa?” ( DELEUZE; GUATTARI, 1996 , p. 12)
Um CsO estabelece uma relação particular de síntese ou de análise. Na síntese algo, não
se sabe o que, vai ser necessariamente produzido sobre tal modo e, na análise, aquilo que é
produzido já faz parte da sua produção, já está compreendido nele, mas com uma infinidade de
passagens, de divisões e de sub-produções. A experimentação que engendra não leva a
estagnação dos modos. Ele é ocupado, povoado por intensidades. Não é uma cena, nem um
lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo, já que o que conduz são intensidades, que
produz e distribui. Não está no espaço, é matéria não estratificada. Mas, não estando no espaço,
ocupa um espaço correspondente ao grau das intensidades produzidas. O CsO é como o ovo
pleno e anterior à extensão ( Ibid, pp.12 13)
É o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo. Desejo
visto como processo de produção. O campo de imanência ou plano de consistência construído;
por agenciamentos muito diferentes, “perversos, artísticos, científicos, místicos, políticos, que
não têm o mesmo tipo de corpo sem órgãos”. (Ibid p. 19).
Creio que, algumas vezes, o musicoterapeuta é participante na criação de corpos sem
órgãos. Ocorre quando trabalha com pessoas portadoras de imensas dificuldades com seus
corpos: impedimentos na fala, no movimento, na expressão, mas, movendo-se neste campo de
imanência do desejo produzido pela música experimentam novos movimentos, outras expressões.
A produção de subjetividades advinda do corpo rizomático pode se utilizar do decalque e
da cartografia, do corpo-organismo, onde cada órgão desempenha a sua função própria, e do
corpo sem órgãos, onde as construções são sempre experimentais. A subjetividade, com suas
entradas múltiplas, segue realizando novas conexões a-significantes: inúmeras e surpreendentes.
100
3.3.3 Um processo contínuo: o devir
Uma produção de subjetividade em rizoma estará aberta a novos rizomas. Abandonar em
definitivo um modelo estrutural, arborescente, para perceber as conexões heterogêneas, as
máquinas abstratas e o metabolismo do possível, é aderir a concepções sobre o que não depende
somente das matérias lógicas para pôr em jogo matérias de expressão diferenciadas, que
territorializam-desterritorializam- reterritorializam... O possível se faz a partir de um processo de
desterritorialização. Os rizomas, na produção de subjetividade, se relacionam ao devir. Devir
como verbo, que não se reduz.
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja de justiça ou
de verdade. Não há um termo do qual se parte, nem um ao qual se chega ou se deve
chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão 'o que você está se tornando'
é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna
muda tanto quanto ele próprio” (DELEUZE; PARNET, 1998, p 10).
O que se busca, com o devir, não é o término, não é os ”eu produto”, mas o próprio
devir, o seu processo, “as condições de um relançamento da produção desejante ou da
experimentação” (ZOURABICHVILI, 2004, p.37). Uma linha de devir não tem nem começo
nem fim, nem saída nem chegada, nem origem nem destino: urna linha devir só tem um meio. “O
meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade absoluta do movimento. Um devir está
sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 91). É um
entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, um bloco (bloco-linha). Constitui uma zona de
vizinhança e de indiscernibilidade, uma relação não localizável que arrasta dois pontos distantes
ou próximos, tornando vizinhos qualquer ponto.
A subjetividade produzida “pelo meio”, sem primazia de ponto de origem ou de princípio
primordial comandando a experiência, conduz a concepções sobre a vida infantil diferentes das
101
tradicionais. A compreensão rizomática liga “reagenciamentos originais dos diferentes modos de
codificação e de semiotização, dos quais não se pode determinar a priori a natureza nem o
encadeamento” (GUATTARI, 1988, p. 156).
Stern (1992) inventa uma hipótese que contribui para a compreensão de como pode se dar
este processo intersubjetivo de produção de um eu. Parte de um questionamento da noção de
fases encaradas como tarefas do desenvolvimento de épocas específicas da fase de bebê, para
compreender as tarefas do desenvolvimento como questões para toda vida e não para uma
determinada fase, operando essencialmente nos mesmos níveis em todos os pontos do
desenvolvimento na produção de diferentes sensos de eu.
Descreve diferentes sensos de eu, cada um definindo um domínio diferente da auto-
experiência e do relacionamento social. Por “senso”, Stern denomina a consciência simples, não
auto-reflexiva, o nível de experiência direta, não do conceito. Por “de eu”, diz de um padrão
invariante de consciência, uma organização que surge apenas no momento das ações ou
processos mentais do bebê, a contrapartida pré-verbal, existencial, do eu objetificável, auto-
reflexivo e verbalizável. Esses sensos do eu estabelecem os fundamentos para a experiência
subjetiva do desenvolvimento social, normal e anormal. Os sensos do eu se severamente
prejudicados, rompem o funcionamento social normal e provavelmente conduzem à loucura ou a
um grave déficit social. São eles:
o senso de agência (sem o qual pode haver paralisia, o senso de não ser possuidor de
auto-ação, a experiência da perda de controle de agentes externos); O senso de coesão
física (sem o qual pode haver fragmentação da experiência corporal, despersonalização,
experiências fora-do-corpo, desrealização); o senso de continuidade (sem o qual pode
haver dissociação temporal, estados de fuga , amnésia, não “ continuar sendo”, nos
termos de Winnicott); o senso de afetividade (sem o qual pode haver anedonia, estados
dissociados); o senso de um eu subjetivo que pode chegar à intersubjetividade com
outrem (sem o qual existe a solidão cósmica ou, no outro extremo, a transparência
psíquica); o senso de criar organização(...); o senso de transmitir significado ( sem o
qual pode haver a exclusão da cultura, pouca socialização e nenhuma validação do
conhecimento pessoal).( STERN, 1992, p.5)
102
Uma vez formado cada um permanece totalmente funcionando e ativo durante toda a
vida. Todos continuam a crescer e coexistir.
A hipótese de Stern se coaduna com o pensamento de Guattari, no qual
os ‘estádios’ [de desenvolvimento] em questão não têm nada de automático; a
criança, enquanto totalidade orgânica individualizada, constitui somente uma in-
tersecção entre os múltiplos conjuntos materiais, biológicos, sócio-econômicos,
semióticos que a atravessam. (GUATTARI, 1988, p. 156).
O devir, sendo da ordem da aliança, provoca diversas conexões. A mudança, no lugar de
filiativa e hereditária, torna-se comunicativa ou contagiosa. O contágio, a epidemia coloca em
jogo termos heterogêneos, “combinações que não são genéticas, nem estruturais, inter-reinos”.
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 22). Nestas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-
funcionamento de contágio entram certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus
devires. Cada multiplicidade “reúne em seu devir animais, vegetais, microorganismos, partículas
loucas, toda uma galáxia”. ( Ibid., p34)
O devir é o conteúdo próprio do desejo: desejar é passar por devires das mais variadas
espécies, inclusive os que desfazem a organização humana do corpo, atravessam as suas zonas de
intensidade, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações e as espécies
que os habitam (DELEUZE; 1992, p. 21)
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui
ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações
de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que
estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido
que o devir é o processo do desejo. Esse princípio de proximidade ou de aproximação
é inteiramente particular, e não reintroduz analogia alguma. Ele indica o mais
rigorosamente possível uma zona de vizinhança ou de co-presença de uma partícula,
o movimento que toma toda partícula quando entra nessa zona. ( DELEUZE;
GUATTARI , 1997,p. 64)
103
Na zona de vizinhança e suas conexões por contágio, heterogêneas, múltiplas, o devir é
um movimento pelo qual a linha libera-se do ponto, e torna os pontos indiscerníveis. Com este
movimento, o devir é uma anti memória. A lembrança tem uma função de reterritorialização, mas
o devir, com seu vetor de desterritorialização opera em níveis de intensidade que pode conectar-
se não a, por exemplo, memórias da infância, mas a blocos de infância, isto e, a um devir-criança,
uma criança que coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir,
numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos.- contrariamente à criança
que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasiamos. (DELEUZE; GUATTARI,
Id., p. 92)
Conceber subjetividades em rizoma provoca, necessariamente, todas as possibilidades de
um devir. As conexões podem se dar de maneiras inusitadas nos encontros possíveis, nas
provocações do viver, nas heterogeneidades da expressão. E, como as desterritorializações
"internas" - por exemplo, as que alargam a visão do mundo exterior, são inseparáveis de
desterritorializações "externas", que trabalham a circunstância e o campo social, “o rizoma
interior não pode ser considerado independente do rizoma exterior.” (GUATTARI, 1988, p.100)
Como conseqüência, cada nova conexão provocará outras tantas
121
...
3.5 Na clínica em musicoterapia
3.5.1 Em um grupo terapêutico.
121
Escute a canção “Não fala de Maria”, de Chico Buarque do disco Chico Buarque de Holanda,
n. 4 de 1970, e observe as conexões feitas pelo autor através da letra, do desenho melódico, que
traça uma linha de profundidades e alturas criada através de intervalos ascendentes e
descendentes, e das imagens que provoca no ouvinte. Faixa de número 9 no cd
104
Estávamos em um grupo terapêutico. Eu, musicoterapeuta, propus que cada pessoa
cantasse a música que lhe viesse à cabeça, para, depois, trabalharmos ampliando sentidos,
significados, sensos, outras canções.
Roberta, um dos componentes do grupo, canta uma estranha combinação, pois apesar de
ser uma talentosa musicista além de musicoterapeuta, o que canta é a letra e de Asa Branca
122
,
“quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João”...
123
, com a música de Assum
Preto
124
. Roberta não percebeu o que cantava. Pergunto ao grupo se alguém sabe o que Roberta
produzia. O grupo identifica o fato, mas apenas Rui sabe cantar Assum Preto.
Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor (bis)
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió (bis)
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis)
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
125
.
122
Canção de Luis Gonzaga e Humbertho Teixeira, de 1947.
123
Faixa de número 10 do cd. Voz: Marly Chagas; violão: Marcello Santos,
124
Canção de Luis Gonzaga e Humbertho Teixeira, de 1950.
125
Faixa de número 11 do cd. Voz: Marly Chagas; violão: Marcello Santos,
105
Rui é um componente de grupo mais velho do que todos os outros, e é cego. Roberta, ao
escutar a canção emociona-se muito e nos conta que, desde o início da vivência lembrara-se
muito de seu avô, que era cego e morrera quando ainda era criança. Peço-lhe para que traga à sua
memória a imagem de seu avô, e diga-lhe o que deseja dizer-lhe. Roberta confessa que, quando
criança, envegonhavasse muito de sair com seu avô, cego, pelas ruas da cidade, pede-lhe perdão
pelas atitudes infantis e declara-lhe o seu amor e a sua saudade, comunicando a falta que faz a sua
presença amorosa na vida. Solicito que perceba, a partir da imagem do avô que estava criando
naquela hora, o que ele lhe diz quando sabe dessas revelações, guardadas hà tanto tempo em seu
coração. Roberta vê seu avô sorrindo, dizendo-lhe que sempre soube de seu amor. Canto para
ela, então, e o grupo me acompanha a parte final de Asa branca, a outra música que viera à
cabeça de Roberta:
Quando o verde dos teus olhos
Se espaiá na plantação
Eu te asseguro, não chores não, viu
Que eu voltarei, viu, meu coração
126
.
A música presente nessa sessão clínica foi à música popular. Trazida à sessão pelas
lembranças de Roberta, já nos chega múltipla. A estrutura musical das frases melódicas das duas
músicas é bastante parecida, com uma diferença básica: Asa Branca está composta em uma
tonalidade maior e Assum Preto em uma tonalidade menor, o que empresta a cada uma das
canções atmosferas absolutamente diferenciados. Produzida por seu insconciente-máquina-
rizoma, que, afetado por pontos das duas músicas, as une. A partir do canto de Roberta, não é
apenas ela e sua vida individual os afectados.. Todos nós somos Roberta, e Roberta é todos nós.
Rui é a Roberta que canta Assum-Preto, todos nós somos seu avô e seu avô é o nosso avô. Asa
126
Faixa de número 12 do cd. Voz: Marly Chagas; violão: Marcello Santos,
106
Branca também chega se espalhando na plantação. Todo o ocorrido faz parte de uma
territorialização- desterritorialização que é mais que memória, mais que lembranças. São
multiplicidades heterogêneas que se abrem para novas possibilidades de agenciamentos,
potencias do devir. A deficiência visual de Rui provoca lembranças que se derramam na melodia
triste, em modo menor de Assum Preto, escorre pela letra de Asa Branca produzindo uma
manifestação terra ardendo- tudo em volta- só tristeza- liberdade. Heterogênese, múltiplos,
intensidades: rizoma (CHAGAS-PINTO, 2006a)
3.5.2 Em uma instituição pública
O projeto “Buscando Caminhos Através da Arte”uma parceria entre o Conservatório
Brasileiro de Música - Centro Universitário e a Fundação Leão XIII, do Estado do Rio de Janeiro
- foi desenvolvido em abrigos de adultos em situação de rua nas unidades da Fundação, nos
bairros Fonseca e Itaipu (Niterói), e Campo Grande e Triagem (Rio de Janeiro). (CHAGAS, 2006
b). A inspiração para sua realização tem enorme ressonância com o modelo de rizoma.
Nestes Centros, os usuários estão numa situação limite de vida, e necessitam de um
atendimento mais especializado. O Projeto dirigido aos usuários e aos funcionários dos abrigos
ofereceu: atividades de música, teatro, artes plásticas, movimento corporal, contação de histórias
e musicoterapia. As experiências com as linguagens artísticas e com a Musicoterapia,
diretamente ligadas à percepção, à comunicação das sensações, das emoções e das reflexões,
permitem ao ser humano se perceber melhor e com isto perceber o outro. Pretendíamos também
levar apresentações artísticas aos abrigos provocando uma interação e participação dos usuários e
107
funcionários com os artistas, além de organizar uma apresentação planejada pela equipe de
profissionais, ao final de cada três meses de trabalho. Conseguimos essas apresentações somente
algumas vezes: A bateria mirim da Mangueira, a apresentação de grupo de forró, a palhacinha
Batuca
127
... Nesse programa, além das atividades realizadas na Fundação Leão XIII, foram
realizadas reuniões técnicas de acompanhamento e seminários teórico-técnicos envolvendo os
profissionais do projeto e representantes dos abrigos.
O projeto pode ser entendido como um facilitador de algumas práticas saudáveis, já que
buscou a produção de uma subjetividade construída em territórios existenciais experimentados
em diferentes campos da cultura.
Confirmamos, nessa experiência, a potência da arte como produtora deafectos que
transbordam a força daqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
213). Durante o projeto, ampliaram-se significativamente as conexões entre as pessoas,
expandindo, de forma significativa, a produção de saúde na instituição.
Desde os primeiros momentos, percebemos que o que estávamos construindo possuía uma
riqueza ímpar. Trabalhar nos abrigos da Fundação é estar no fio da navalha. É tocar com espanto
um lugar de limite: da sociedade e de nós mesmos. É repensar o contrato social que
descontratamos e o outro que ainda não estipulamos. É chafurdar na indignação, na coragem, na
utopia e na desesperança...
Nos abrigos da Fundação Leão XIII, não há consumo, nem reclamação que se escute além
dos muros, ninguém faz passeata, nem greve, muitos não têm certidão de nascimento, nem título
de eleitor. Indignamo-nos porque a frase afixada no alto da porta indica Centro de Recuperação
Social, objetivo que aparentemente a Fundação não cumpre. Aparentemente, por que precisamos
recuperar aquelas pessoas adoentadas, demenciadas, idosas, drogadictas? Para qual sociedade?
127
Personagem de Cristiana Brasil, profissional do projeto.
108
Para quais membros? Para quem? “Recuperá-las” em uma sociedade como a nossa é deixá-las lá,
quietinhas, sem incomodar muito os sonhos consumistas-espetaculares-capitalistas de todos.
Esse projeto, contudo, não fez isso. Não deixou ninguém lá, quietinho, como se fosse
estátua, ou vegetal, ou “cidadão civilizado”
128
Partindo da compreensão de que entender as
mazelas da Fundação é entender as feridas sangrentas do mundo em que vivemos, é entrar em
contato com nossas próprias agonias, é perceber essa “nota pedal
129
” do funcionamento social, o
baixo contínuo que insere tanto quanto desloca o nosso trabalho. O abrigo transforma-se na casa
não identificada como moradia, no lugar de passagem que se fixa no tempo. O projeto trabalhou
com a recomendação de Rolnik e Guattari (1986, pp. 94-196): sem a desalienação dos desejos e a
reconstrução de uma sensibilidade ética e política, não haverá como promover mudanças. Nós
desejamos, e como desejamos.
“Sabiá lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, voou”
130
, cantam as mulheres
de Fonseca. “Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicante lhe peço a minha nova
inscrição”
131
, cantam os idosos de Itaipu. “Não posso ficar nem mais um minuto com você”
132
,
canta Campo Grande. “Quando, você se separou de mim, quase a minha vida teve um fim”
133
,
128
Referência a canção Bichos Escrotos – Titãs , do álbum Go Back, de 1988.
129
Chama-se “nota pedal” ao som continuo, que não varia durante a música.
130
Sabiá lá na Gaiola – Canção de Hervé Cordovil e Mário Vieira – de 1946. gravado em 1950
por Carméloa Alves.
131
A volta do boêmio – Canção de Adelino Moreira, gravada em 1956 por Nelson Gonçalves.
132
Trem das onze – Canção de Adoniran Barbosa, composta em 1961 e gravada em 1965 pelo
Demôniso da Garoa
133
Quando – Canção de Roberto Carlos, do disco Roberto Carlos em ritmo de aventura, de 1967.
109
canta Triagem. Todos cantam “Quero uma casinha branca de varanda”
134
. “Eu desenhei uma
princesa, ela está em um castelo com um príncipe. Ela não tem dente, igual a mim!”, conta-me a
mulher do Fonseca, mostrando seu desenho em símbolos pré-esquemáticos.
O projeto funcionou com múltiplos núcleos, com inúmeras ramificações em vários
sentidos e direções. Cada Centro de Recuperação possui sua dinâmica, cada profissional, cada
usuário, cada linguagem e núcleo onde se entrecruzam muitos e diferentes agenciamentos. As
reuniões de acompanhamento do projeto, feitas no CBM-CEU, exemplificam a grande troca de
trabalhos, indignações, reclamações, casos extraordinários, impotências, potências. Tudo e todos
agenciando ações de conseqüências imprevisíveis.
Na panorâmica da situação atual, as subjetividades produzidas para o mercado compõem
uma estrutura de Estado que direciona sua atenção principalmente para aspectos econômicos,
deixando desatendidas questões importantes para outros setores sociais, tais como educação,
saúde e moradia. Buscamos, através da arte, a efetivação de micropolíticas, aquelas que se dão
nas relações sociais, subvertendo a paralisia do Estado contemporâneo que não mais se
responsabiliza pelo bem-estar de seus membros. Acreditamos na potência do rizoma que, através
de novas conexões, fez surgir desenhos expressivos inimagináveis.
O projeto buscou a construção de uma subjetividade entendida no sentido que lhe dá
Guattari, como o “conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou
coletivas estejam em posição de emergir como ‘território existencial’ auto-referencial, em
adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade, ela mesma subjetiva
(GUATTARI, 1992, p. 19).
Os territórios existenciais foram construídos nos diferentes campos da cultura, através de
diversas formas de expressão e experimentação. Os usuários da Fundação Leão XIII, seus
134
Casinha Branca – Canção de Gilson e Joram, de 1979
110
funcionários e os próprios profissionais integrantes do projeto realizaram muitos agenciamentos
através da arte: texturas, cores, formas, histórias, sons, participação na cultura popular, o boi da
boa nova, o bloco da Leão, o almoço de integração, os esquetes, as canções, criadas por eles
mesmos ou reinterpretadas, os instrumentos, o espaço físico, a integração pessoal. A
subjetividade é produção social construída através de processos éticos, estéticos e autopoiéticos,
onde ocorre a possibilidade de os sujeitos se movimentarem e criarem novos devires.
A estratégia micropolítica é dada pela utilizão da arte com a sua potência afetiva.
Afetos que “transbordam a força daqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 213), suas possibilidades e limites. Ampliam-se as conexões através da
própria vida que pulsa. Situações novas vão sendo despertadas: conseguimos uma cadeira de
rodas para Itaipu; gaitas para Campo Grande; no Carnaval do Fonseca, a bateria mirim da
Mangueira proporcionou um integração geracional emocionante, e a viagem dos meninos a
Niterói ofereceu aos pequenos mangueirenses, cruzar a ponte Rio- Niterói. A enfermaria de
longa permanência de Triagem canta sob a árvore frondosa do pátio da Instituição; Campo
Grande tem um grupo instrumental; as mulheres do Fonseca foram ao teatro; os homens de Itaipu
organizaram, auxiliados pelos funcionários, um festival de música, outro de poesia. Dançamos
juntos cirandas e forrós. Criamos histórias, desenhamos, construímos instrumentos – nas várias
dimensões desse termo. Devir. Ouvimos cada história, cada história... Cada história!
Ao final do projeto, no dia 6 de dezembro de 2004, produzimos um Seminário no
Conservatório Brasileiro de Música, o “Arte pelo Caminho”, onde falaram, em mesas redondas,
profissionais do projeto, membros da equipe técnica da Fundação e, em cada Mesa um debatedor
acadêmico que provocou novas questões à equipe de trabalho. A primeira mesa, “A arte no
contexto”, contou com a participação de Marcello Santos, responsável pela musicoterapia do
Abrigo de Itaipu; Rita de Cácia Rocha Teixeira, da Fundação Leão XIII; Michele Simone,
111
musicoterapeuta do Abrigo de Campo Grande e Isabel Reis, contadora de Histórias do abrigo de
Campo Grande. Nesta mesa, o professor dr. José Cláudio Souza Alves (UFRRJ) foi o debatedor.
Antes do almoço, os usuários de Campo Grande fizeram uma apresentação de seu trabalho no
auditório do CBM-CEU. Os usuários almoçaram no Conservatório. Este almoço foi uma
experiência singular. No alto do prédio da Graça Aranha, com a vista da Bahia de Guanabara e do
Pão-de-Açúcar, aqueles homens simples comiam estrogonofe de carne, refrigerante e musse de
chocolate. Alguns sentiram falta de seu prato preferido: carne moída com macarrão; outros se
deliciavam com o novo sabor. Todos encantados com a possibilidade de repetir quanto
quisessem... Delicados e gentis. Uma heterogenidade total naquela quase secular escola de
música. A mesa redonda da tarde, intitulada “Arte: possibilidades e limites”, contou com a
participação de Cristiane Celano, musicoterapeuta da Triagem, Guilherme Milagres, educador
musical do Abrigo de Fonseca, Albelino Carvalhaes, musicoterapeuta de Itaipu, Carmélia
Barbosa Calderini da Fundação Leão XIII e Janice Gomes, educadora musical de Campo Grande.
O debate ficou a cargo do professor Dr. José D’Assunção Barros(CBM – CEU), seguindo-se a
apresentação dos usuários de Fonseca e Itaipu. O tema da última mesa redonda, “A arte pelo
Caminho” foi desenvolvido pelo musicoterapeuta de Fonseca, Murillo Brito; por um
representante do Departamento de Assuntos Especiais da Fundação - o DAE, pela supervisora do
projeto, a musicoterapeuta Raquel Siqueira, e por mim, coordenadora do projeto. A professora
dra. Rosa Pedro (UFRJ) foi a debatedora , O encerramento do Seminário se deu com criações
musicais dos usuários apresentadas pelos profissionais do projeto.
A última conseqüência do pensamento de Guattari é a de que a sociedade não se
transforma sem as várias micropolíticas que articulem a revolução molar com a revolução
molecular.
112
No atual estágio do capitalismo periférico brasileiro, a dinâmica de superação da
alienação das massas exige mais do que pôr às claras os processos de exploração do
capitalismo, mas agenciar o desejo de construir uma nova sociedade, a utopia-concreta
(MANCE
135
, 1991, p 19).
Essa é a utopia que nos move: constituir um projeto com a pretensão de semear atitudes e
de facilitar um viver artista.
135
Euclides André Mance é filósofo, mestre em educação. Leciona Filosofia da Linguagem e Filosofia Latino-
Americana em instituições de ensino superior em Curitiba. É colaborador da Rede Brasileira de Socioeconomia
Solidária, membro da Equipe Impulsora da Rede Social Mundial e responsável pelo portal
www.redesolidaria.com.br, que opera em favor da difusão, apoio e articulação de práticas de Redes Solidárias.
113
4 - A CONSERVAÇÃO DOS AFECTOS E PERCEPTOS: A ARTE
Qualquer canção de amor
É uma canção de amor
Não faz brotar amor
E amantes
Porém, se essa canção
Nos toca o coração
O amor brota melhor
E antes
Qualquer canção de dor
Não basta a um sofredor
Nem cerze um coração
Rasgado
Porém, inda é melhor
Sofrer em dó menor
Do que você sofrer
Calado
Qualquer canção de bem
Algum mistério tem
É o grão, é o germe, é o gen
Da chama
E essa canção também
Corrói como convém
O coração de quem
Não ama.
Chico Buarque
136
4.1 A arte como forma de pensar
É estimulante entender a posição de Deleuze e de Guattari a cerca das diferentes formas
com que conhecemos: a filosofia, a ciência e a arte. Ao desvendarmos os componentes da célula,
136
Qualquer canção, de Chico Buarque, de 1980. Gravação na faixa de número 13 do cd.
114
ao discutirmos as instâncias do Ser ou ao participarmos de um festival de dança, em todas essas
situações estamos conhecendo, e nenhuma destas áreas é superior à outra.
Estas três formas de pensar possibilitam traçar uma cartografia do caos, através de uma
“divisão do trabalho que suscita entre elas relações de conexão”. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 120)
O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e
a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos.
Mas a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de
imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a
ação de personagens conceituais. A ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para
ganhar a referência: ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas, que
define sempre estados de coisas, funções ou proposições referenciais, sob a ação de
observadores parciais. A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um
plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas,
sob a ação de figuras estéticas. (Ibiden, 1992, p. 253)
A arte territorializa o caos; a filosofia o enfrenta dando-lhe consistência, sem perder o
infinito no qual o pensamento mergulha; a ciência enfrenta-o procurando dar-lhe referências:
renuncia aos movimentos e velocidades infinitos, opera limitando a sua velocidade. A filosofia
forma, inventa, produz conceitos
137
; a ciência constrói funções ou proposições
138
e a arte
engendra perceptos e afectos. “Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por
sensações”. As três vias são específicas e nenhuma dessas é melhor, mais plena, mais completa
ou mais sintética que a outra. (Ibidem., pp 253,254).
Detendo-nos na arte, verificamos que a concepção deleuzeana propõe, para ela, a
conservação e a produção de afectos.
137
. “Em outras palavras, a filosofia tem o poder de produzir síntese de elementos intensivos que
o pensamento percorre com a velocidade infinita do Ser-caos de que ela participa” (GUALANDI,
2003., p 106)
138
“A ciência também se define por sua relação com o plano de imanência absoluto do Ser-caos,
e as funções científicas que daí extrai são também criações.Mas ela é formada por uma vontade
de redução, como se seus processos de criação fossem dirigidas pelas exigências de um sujeito
que diminui os devires em função de uma previsibilidade, que obriga o Ser-caos a convergir mais
rapidamente dentro da “referência’, dentro da individuação acabada do objeto” (GUALANDI,
op.cit., pp. 105-106)
115
4.2 Afecções, um conceito retirado de Espinosa.
Esses filósofos partem da idéia de que
Um indivíduo é, antes de mais nada, uma essência singular, isto é, um grau de
potência. A essa essência corresponde uma relação característica; a esse grau de
potência corresponde certo poder de ser afetado. Essa relação, finalmente,
subsume partes, esse poder de ser afetado é necessariamente preenchido por
afecções. (DELEUZE, 1992, p 33)
Adotam de Espinosa o conceito de afecções.
Para Espinosa as afecções (affectio) são os próprios modos, necessariamente ativos
139
.
Também afecções é o que acontece ao modo, às modificações do modo e aos efeitos dos modos
sobre o corpo. As afecções são imagens ou marcas corporais. As idéias das afecções englobam
tanto a natureza do corpo afetado quanto a do corpo exterior afetante.
Embora a afecção (affectio) se refira, geralmente, ao corpo, e o afeto (affectus) ao espírito,
o afecto implica, tanto para o corpo como para o espírito, em um aumento ou em uma diminuição
da potência de agir.
Um modo existente define-se por “certo poder de ser afetado”. A sua potência de agir ou
força de existir aumenta ou diminui se a potência do outro modo lhe acrescenta, ou lhe subtrai.
Espinosa chama de alegria ao aumento da potência de agir e de tristeza a diminuição desta
potência. “A paixão triste é um complexo que reúne o infinito dos desejos e o tormento da alma,
a cupidez e a superstição” (DELEUZE, 1992, p. 31). Partindo da concepção espinoziana, os
afetos nos enfraquecem quando diminuem nossa potência de agir, e também nos tornam mais
fortes quando aumentam nossa potência. É isso que define a potência dos corpos, isto é, pelos
afetos nos quais são capazes, seja nas ações que executem, ou nas paixões que experimentem
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.74). Não existe na filosofia espinosista o bem ou o mal, mas há
o bom e o mau, sendo que
será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto
pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por
compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua
potência.(...) Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao
acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as conseqüências, pronto a gemer e a
139
As afecções se explicam em Espinosa pela natureza de Deus como causa adequada, e Deus
não pode padecer (DELEUZE, 1992, p 55)
116
acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria
impotência. (DELEUZE , 1992, pp 28-29).
Portanto, na direção apontada pelo pensamento de Espinosa, os encontros podem ser
organizados por afectos bons, ou fortes, se compuserem relações que aumentem nossa potência.
Serão maus, ou fracos, os encontros que a diminuírem.
4.3 A Arte como produtora de afectos e perceptos.
“A arte conserva, e é a única coisa no mundo que conserva” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p.213). Conserva-se o sorriso de Mona Lisa
140
na tela desde 1507; a sonoridade de A
Cantata 147
141
142
, desde 1716; a alegria dos Sonhos de uma Noite de Verão
143
desde 1596; a
sensualidade vigorosa da coreografia de Maurice Béjart para o Bolero de Ravel vibra desde a
década de 80, quando o assisti no Rio. O que se conserva da obra de arte? Não é o material - a
tinta, a tela, o tom. Conserva-se o percepto ou o afecto provocado. O artista pinta, compõe,
escreve com sensações. Sensações essas que não se remetem referencialmente a um objeto, mas
são o percepto ou o afecto do material mesmo, e o material é tão diverso em cada caso, que é
difícil dizer onde o material acaba e onde começa a sensação. A arte “só pode viver criando
novos perceptos e novos afectos como desvios, retornos, linhas de partilha, mudanças de níveis e
de escalas...” (Ibidem., p.248). Silvio Ferraz observa que
Quando o compositor escreve sua música ele se vale de coisas, se vale de formas
musicais, se vale de blocos sonoros, de acordes, até mesmo de alguns acordes cheios
de nomes, ou de melodias cheias de história (eu uso um piano e ali está toda a história
da música tocada no piano, como disse Cortázar a respeito de Prossezion de
Stockhausen), este é o material. Agora, que fazer com o material? Tecer um plano de
composição, tornar sensível, com este material, aquilo que não é sensível. Tornar
sensível ali, em uma sala de concerto, a violência do mar; tornar sensíveis ali, em um
acorde extremamente gritado e dissonante, o ciúme e a perda; tornar sensível, ali em
um fone de ouvidos, o frio gélido do corpo de um filho morto, o frio gélido da lápide;
140
De Leonardo da Vinci
141
De Johan Sebastian Bach
142
Conhecida como “Jesus, alegria dos homens”
143
De William Shakespeare
117
tornar sensível, tornar sonoras as forças não sonoras, esta é a forma de Klee trazida
para a música. (FERRAZ, 2005, pp 96,97)
Os perceptos tornam “sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos
afetam, nos fazem devir” (DELEUZE; GUATTARI, 1992., p. 235). Transbordam ao vivido,
transbordam a própria percepção. Os perceptos, como os afectos, são seres de sensação e se
conservam em diferentes materiais da arte. Os perceptos não são percepções propriamente ditas,
já que as percepções nos remeteriam a um objeto de referência. Quando se assemelham a algo, o
fazem por uma semelhança produzida por seus próprios meios. O que Deleuze e Guattari
chamam de perceptos, é um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo, enquanto a
afecção é a passagem de um estado a um outro, com o aumento ou a diminuição do potencial-
potência que se dá em um corpo sob a ação de outros corpos. Nenhum é passivo em interação
com outros corpos. Todos estão em interação (Ibidem, p. 199). O artista arranca o percepto das
percepções do objeto, arranca o afecto das afecções, criando agregados sensíveis.
Podemos exemplificar as sensações sendo buscadas, através da experiência, no relato de
Marcus Vicius Almeida:
Lembro-me de uma solicitação feita certa vez por minha professora de piano: ao
executar um prelúdio de Ravel, ela me pediu que, nas últimas notas de um intervalo de
terça, tentasse dar a sonoridade da cor-do-vinho. Num primeiro momento a solicitação
pareceu-me um tanto imprecisa e esnobe, pois não percebi o que poderia ser uma
sonoridade cor-do-vinho. Executei algumas vezes as notas, porém nenhuma chegava ao
efeito desejado. Minha professora, frente à minha impossibilidade, fez soar ao piano a
maneira como eu tocava e, logo após, o seu tão sutil toque cor-do-vinho. Uma distinção
notável! A audição foi capaz de me sensibilizar para com a diferença entre as sono-
ridades, realmente entendi que havia o meu mundo sonoro e um mundo cor-do-vinho,
recém-inaugurado em minha sensibilidade musical. Tentei depois várias vezes,
reproduzir a cor-do-vinho, porém todas as minhas tentativas foram inúteis. Durante
cinco dias estudei diariamente o mesmo prelúdio de RaveI na tentativa de alcançar
aquela nova sonoridade e parecia impossível que meu corpo, meus dedos, realizassem
tal efeito. Mas no sexto e sétimo dias, esporadicamente, como se fosse por acaso, a
sonoridade aparecia em minhas mãos. Sem que eu tivesse consciência de como a
realizei, sentia que as repetições de algum modo aproximavam-me de um mundo antes
sentido, mas não dominado pelo meu corpo. Havia uma inteligência corporal que não
era apreendida pelo intelecto. Na aula seguinte não consegui, sequer uma vez, executar
o efeito cor-do-vinho, porém minha professora comentou que sentia que eu estava me
aproximando dele, embora ainda não o dominasse. Uma semana depois, cada vez mais,
foi possível passar pelo toque até que, no final da segunda semana, consegui executar
tal sonoridade: como por milagre, meus dedos já a dominavam e a realizavam quando
eu desejava. Não sabia explicar com precisão como fazer, mas sabia fazer, estava
impresso em meu corpo, em minha mão, aquela sonoridade precisa surgia quando eu
118
desejava. Muitas vezes a empreguei em outras músicas, às vezes mesclava-a com outras
sonoridades, com outros efeitos. Ela passou a fazer parte de minha vida sonora. Foi
como se muitos mundos cor-do-vinho tivessem sido inaugurados em minhas execuções
instrumentais. (ALMEIDA, 2004,pp 83,84)
Os meios utilizados pela arte para provocar a semelhança do percepto com o vivido é a
construção dos blocos de sensação. O artista se utiliza de um determinado material como suporte
necessário para que a conserve, fazendo-a durar, embora o que se conserva, de direito, não seja o
material - a tinta, a cor, o corpo, a voz, o som do instrumento - que constitui, somente, a condição
de fato.
Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e
de se conservar em si, na eternidade que coexiste com esta curta duração. Enquanto
dura o material, é de uma eternidade que a sensação desfruta nesses mesmos
momentos. A sensação não se realiza no material, sem que o material entre inteira-
mente na sensação, no percepto ou no afecto. Toda a matéria se torna expressiva.
(DELEUZE. GUATTARI, 1992, pp 216, 217)
144
Podemos ilustrar essa possibilidade com a pesquisa de Barcellos
145
(1999 b), que
constatou ser possível encontrar no tecido musical a pertinência para “o que vem na cabeça
dos ouvintes”, quando a escutam
146
.
O artista pode se inspirar no vivido, mas ao criar uma obra de arte importa que ele torne
durável o momento vivido, fazendo-o existir por si. Importa que o artista ultrapasse os estados
perceptivos e as passagens afetivas do vivido. Essa expansão, provocada pela arte, faz do afecto
não a passagem de um estado vivido a um outro, mas o despertar da possibilidade de uma outra
vivência. ”Não celebra algo se passou, mas transmite para o futuro as sensações persistentes que
encarnam o acontecimento” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 229) Para um compositor, um
144
Por isso, ainda que com uma manifestação de arte tão efêmera, como a arte contemporânea,
podemos falar de arte como o modo em que se conservam as sensações.
145
Lia Rejane Mendes Barcellos é graduada em Piano e em Musicoterapia. Mestre em Música,
Área de Concentração Musicologia. Possui o aperfeiçoamento em Método Bonny de Imagens
Guiadas e Música pela Temple University e o aperfeiçoamento em Composição Contraponto e
Fuga pela Academia de Música Lorenzo Fernândez. Atualmente é professor titular do
Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário. É das mais importantes pesquisadoras
em musicoterapia no Brasil.
146
A pesquisadora utilizou em sua análise o “Noturno n
o
3” de Lorenzo Fernandez e o “2º Movimento do
Concerto em Dó menor para Oboé e Orquestra de Cordas” de Benedetto Marcello
.
119
músico, um pintor as lembranças de infância, por exemplo, não são suficientes. A arte ativa
“blocos de infância”, “devires-criança do presente”. (Ibid., p 217, 218). Na obra de arte, a matéria
se torna expressiva, como em Motivo, de Cecília Meirelles
147
(2007):
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
O artista, utilizando-se de um mecanismo similar ao da “fabulação criadora”
148
, excede
os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido.
Ele [o artista] viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da
vida com o que a ameaça, de modo que os pedaços de natureza que ele percebe ou os
bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles,
perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa
espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de
azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. (...) Trata-se
sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate
incerto. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222)
147
Cecília Meirelles é poetisa e autora da dramaturgia brasileira (1901 - 1964) Escreveu seu
primeiro poema aos seus seis anos de idade. Foi professora de leciona Literatura Luso-Brasileira
e de Técnica e Crítica Literária, na Universidade do Distrito Federal (hoje UFRJ). Realizou
conferências nos Estados Unidos, Europa, Ásia e à África, sobre Literatura, Educação e Folclore.
Organizou a primeira biblioteca pública infantil do Rio de Janeiro, em 1934. Colaborou com
jornais, revistas e rádio.
148
“Confabulação ou fabulação é uma modalidade especial de alteração da memória e atenção, que consiste no
relato de temas fantásticos os quais, na realidade, nunca aconteceram. Em grande parte, resultam de uma alteração da
fixação e de uma incapacidade para reconhecer como falsas as imagens produzidas pela fantasia. (...) A confabulação
ou fabulação serve para preencher um vazio da memória que o paciente sente e se mostram como se fosse criada para
este fim, podendo variar de tema e conteúdo. No sentido mais particular, a fabulação é, nos estados em que não há
delírio, um sintoma de comprometimento orgânico.” (DICIONÁRIO DE NEURO-CIÊNCIAS, 2007).
120
Os perceptos podem ser telescópicos ou microscópicos, dando aos personagens e às
paisagens dimensões de gigantes, ainda que sejam medíocres. Os perceptos agem “como se
estivessem repletos de uma vida à qual nenhuma percepção vivida pode atingir”. (Ibidem, 1992,
p. 222).
A obra de arte é um monumento. Esse monumento tem uma lei de criação: precisa ficar
de pé sozinho, isto é, uma vez criado, um composto de sensações se conserva em si mesmo e,
para isso, a um só tempo, precisa ser, igualmente, saturado de perceptos e afectos e conservar o
vazio. Ludibriar o caos e adentrar nele. A sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um
músico, os traços e as cores de um pintor são utilizados para se elevar das percepções vividas ao
percepto, das afecções vividas ao afecto. O monumento, criado pela arte, não celebra algo que
passou: transmite para o futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento
(DELEUZE; e GUATTARI, 1992, pp 214, 218, 229). Um exemplo é o que faz Almeida Prado,
compositor brasileiro contemporâneo
149
, que, no lugar do tradicional ‘allegro”, “andante”,
“lento”
150
, utiliza como indicações para a execução de suas composições expressões tais como:
metálico
151
, transparente como uma aurora, sempre contínuo
152
, saudoso
153
...
O afecto é “o devir não humano do homem”, devir - criança do adulto, devir-planta,
devir-animal, devir-cosmo. O devir não é semelhança, mas, antes, uma contigüidade. Embora
haja semelhança: uma semelhança produzida (Ibid., p. 224). Na produção do afecto pela arte, é
149
José Antônio de Almeida Prado nasceu em Santos, em 1943. É hoje dos principais expoentes
da música erudita brasileira. Estudou com Camargo Guarnieri, Oswaldo Lacerda, Olivier
Messiaen e Nadia Boulanger. Um dos primeiros compositores brasileiros a fazer “música de
vanguarda”, compôs desde músicas inspiradas no modalismo até o atonalismo pós-serial. Hoje
em dia, o compositor afirma ter alcançado um alto grau de “liberdade estética”, não se prendendo
a estilos e misturando diferentes técnicas e estéticas como lhe convém. (BITONDI, 2007)
150
Indicações de velocidade e de intenção para a interpretação da música erudita.
151
Em Múltiplas articulações I (Cohen, Galdeman, 2006, p 214)
152
Em Coemapiranga , (Cohen, Galdeman, Id., p 198). Gravação retirada do cd que acompanha a
cartilha na faixa de número 14 do cd. Pianista: Sara Cohen.
153
Em Sonhos em Lilás (Cohen, Galdeman, Id.,, p 68)
121
como se coisas, animais e pessoas tivessem atingido uma zona de indeterminação, de
indiscernibilidade.
Só a vida cria tais zonas, em que turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-Ia e
penetrá-la, em sua empresa de co-criação. (...) Um artista inventa afectos não
conhecidos, ou desconhecidos, e os faz vir à luz do dia”. (, Ibid., pp. 225, 226).
A arte, na concepção deleuziana, não é privilégio humano. A arte começa com o animal
que recorta um território e faz uma casa. Nesta demarcação surgem qualidades sensíveis, que
deixam de ser unicamente funcionais, tornando-se traços de expressão. Com o território e a casa,
a expressividade se torna construtiva: ergue os monumentos que já são arte no tratamento dos
materiais exteriores, nas posturas e cores do corpo, nos cantos e nos gritos, nos traços, e sons. São
blocos de sensações, ritornelos. São esboços de uma obra de arte total. O canto de um pássaro
tem suas relações de contraponto com o canto de outras espécies, e pode, ele mesmo, imitar estes
outros cantos. É a arte estabelecendo o território e formando a casa. Contudo, o território, depois
de estabelecido, abre-se para forças cósmicas, que sobem tanto de dentro dele próprio quanto de
fora, tornando seus efeitos sensíveis sobre o habitante (DELEUZE; GUATTARI , 1992, pp. 236 a
240)
Desse ponto de vista, a arte não deixará de ser habitada pelo animal. Eis tudo o que é
preciso para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos - sob a condição de que
tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco, como uma vassoura de bruxa, uma
linha de universo ou de desterritorialização. ( Ibid., pp. 238, 239)
A arte, que não começa com a carne, com o corpo, mas com a casa> Traça,
expressivamente, um território para depois, ela mesma, arrancar-nos da casa recém construída e
nos colocar no espaço desterritorializado do cosmos, pois “a casa mais fechada está aberta sobre
um universo, como uma passagem do finito ao infinito”, do território à desterritorialização.
Passa-se da casa ao cosmos. E, depois, volta-se para a casa.
4.4 A música e seus blocos de sensíveis
A música, “que por definição é uma forma de expressão temporal e evanescente”
(GUBERNIKOFF, 2003, p.13), também constrói seu bloco de sensações. Deleuze e Guattari
acreditam que cada modalidade artística, assim como cada artista, tem sua maneira própria de
122
extrair do material os afectos e perceptos através de grandes tipos de "variedades" de compostos
de sensação. São eles: a vibração, o enlace, o recuo, divisão e distensão do material.
A vibração é apontada como a primeira característica (ou modalidade) de um ser de
sensação. Na música, a vibração é base do som, pois a onda sonora é, ela mesma, a propagação
de uma vibração transmitida pelos corpos vibrantes, através da atmosfera ou de um ambiente
líquido, aos nossos corpos
154
. No entanto, parece que Deleuze e Guattari se referem a uma
vibração mais ampla do que esta simples condição da emissão - recepção física do som, já que
constitui a própria sensação “a vibração contraída, tornada qualidade e variedade”. (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 271) A pista que nos revelam é a de que a vibração é “durável ou
composta, porque ela sobe ou desce, implica uma diferença de nível constitutiva, segue uma
corda invisível mais nervosa que cerebral” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.218). Os dois
filósofos exemplificam a vibração com o que chamaram de ária
155
melódica, e entendem a ária
como um ritornelo monofônico, um motivo simples, (Ibid., p. 244). Vibra o solo do instrumento,
a voz que canta, vibra a canção, vibra o canto da cigarra provocando diferenças, mais nervosas
que cerebrais, mais sensíveis que racionais.
A segunda modalidade do ser de sensação é o que ocorre quando “duas sensações
ressoam uma na outra esposando-se tão estreitamente, num corpo a corpo que é puramente
‘energético’“ (Ibid., p. 218). Na música, as sensações ressoam comumente uma na outra.
Barcellos (1999, p. 109) cita a idéia de Summer sobre a sinestesia na música: a capacidade de
uma sensação secundária, vinda de um outro sentido que não o auditivo, ser despertada pela
música. Assim, ouvindo música podemos sentir sensações diversas: térmicas, táteis, gustativas,
olfativas, além de podermos experimentar vários estados alterados de consciência.
156
Deleuze e
154
“O que nos conecta enquanto a música está sendo tocada? Um certo tipo de vibração, chamada
som, que se propaga de um ponto a outro na forma de ondas, e à qual nosso ouvido é sensível.”
(ROEDERER, 2002, p 17)
155
Ária (do it. aria, "ar") Termo que designa uma canção independente, ou que é parte de uma obra maior. A palavra
italiana pode ser entendida como "estilo" ou "maneira", e no séc. XVI aria designava composição simples sobre
poesia ligeira (por ex., "aria napolitana"). (DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA , p 39)
156
O método de Imagens Guiadas em Música, criado pela musicoterapeuta Helen Bonny utiliza-
se desta característica da música em seu trabalho de musicoterapia. (BONNY, 1978)
123
Guattari pensam o motivo
157
como um exemplo do corpo- a- corpo em música, isto é, uma
melodia intervindo no desenvolvimento de uma outra, fazendo um contraponto
158
. (DELEUZE;
GUATTARI , op. cit., p. 244).
A terceira característica da sensação na arte é o recuo, a divisão e a distensão das
sensações. Ocorre quando duas sensações se separam e voltam a se reunir. As alturas e durações,
os timbres e as intensidades, repetidas e/ou variadas fazem, na música, o som se diferenciar
ilimitadamente. Deleuze e Guattari encontram esta modalidade da sensação no tema
159
, com suas
possibilidades de modificações provocadas pelas linhas melódicas que produzem o que “não
fecha sem se descerrar, fender e também abrir" (DELEUZE; GUATTARI , 1992, p. 245).
Se consideramos a sonata, encontramos aí uma forma enquadrante particularmente
rígida, (...) [que] apresenta as seguintes dimensões: exposição do primeiro tema,
transição, exposição do segundo tema, desenvolvimentos sobre o primeiro ou o
segundo, coda, desenvolvimento do primeiro com modulação, etc. É toda uma casa
com seus aposentos. Mas é antes o primeiro movimento que forma assim uma célula,
e é raro que um grande músico siga a forma canônica; os outros movimentos podem
abrirse, notadamente o segundo, pelo tema e variação, [...]. A sonata aparece então
antes como uma forma-cruzamento em que, da junção das dimensões musicais, da
clausura dos compostos sonoros, nasce a abertura de um plano de composição” (
Ibid., p. 245).
No escopo deste trabalho, não comporta explicar musicalmente as nebulosas
conceituações trazidas por Deleuze e Guattari sobre ária, motivo, tema ou mesmo da forma
157
“Unidade estrutural elementar, melódica e/ou rítmica, com duração correspondente a duas ou
três unidades de tempo”. Koellreutter (1990, p 90) O discurso musical pode ser organizado por
motivos, proposições e períodos de igual tamanho. Ver quadratura em KOLLREUTER, 1990,
p109.
158
O contraponto, técnica de composição, utiliza-se de um jogo entre as vozes melódicas –
levando em conta, simultaneamente o perfil melódico de cada uma delas e a qualidade
intervalar e harmônica gerada pela sobreposição das duas ou mais melodias – ou entre texturas
sonoras.
159
O tema é um “supersigno individualizado que se destaca no decorrer da composição; elemento básico, gerador da
maioria dos componentes da composição musical tradicional (clássica e romântica). Distinguem-se quatro tipos de
tema: o tema básico - constituído de um período, dividido em dois semiperíodos simétricos e correspondentes em
comprimento, forma e posição relativa de partes; o tema evolutivo - constituído de um período direcionado,
ascendente ou descendentemente, a um ponto de gravidade, desfecho ou clímax; e o tema antitético - constituído de
um período, dividido em dois semiperíodos que expressam idéias de caráter oposto; e o tema concêntrico -
constituído de dois semiperíodos que estão em lados opostos de um centro comum.(KOELLREUTTER, 1990, pp
128, 129)
124
sonata. Estas questões são problematizadas no âmbito da musicologia. Tentamos, apenas, seguir
alguns conceitos que Deleuze Guattari para compreender os compostos de sensações sonoras que
se tornam mais complexos. Ferraz, dentro deste pensamento, nos convida a pensar com ele:
Beirando muitas vezes uma literatura sem graça, em um jogo simples de criar
metáforas e mais metáforas - as piores metáforas que existem, pois se pretendem
como a explicação de algo -, assiste-se hoje proliferarem questões e explicações que
raramente encontramos no ofício de se escrever música, mas a ele se dirigem. É claro
que ouvimos o rumor do mar em La Mer de Debussy, uma tempestade em Vivaldi, a
tristeza em canto de Verônica durante uma procissão, mas pouco importa se isto vem
do título da peça, de sua sonoridade ou de seu entorno. Tanto Vivaldi, quanto
Debussy, quanto o compositor religioso, foram atraídos por um efeito, por uma força
quase que sem nome, a qual tem a potência de tornar sonora a força da temperatura,
de tornar sonoro o movimento, de tornar sonora a força da tempestade e de tornar
sonora uma situação não sonora como a tristeza. Como diz Debussy em Monsieur
Crochê antidiletante, realçando na música um ponto em que "não há mais imitação
direta, mas transposição sentimental daquilo que é “invisível' na natureza". De onde
vem este efeito? Se vem do hábito de ouvirmos o mar, se vem do hábito de
associarmos som e título, se vem da religiosidade quase pagã de um povo... Seja lá
como for, existe uma grande distância entre descrever o efeito, entre narrar o quase
inenarrável da sensação que desencadeia uma escuta musical, e um processo de
abstração e ação de um quadro de previsibilidade para uma próxima escuta. Está
certo! Não tratarei então de pensar ou falar por que alguém, ao ouvir La Mer, ouve o
mar, mas em pensar como Debussy e outros músicos brincaram com sonoridades,
lembranças, jogos de força, tamanhos... assim como trouxeram para o som a
grandeza, a força, a cor, o cheiro do mar. (FERRAZ, 2005, pp 16,17)
O trabalho do plano de composição pode provocar as variações na vibração, no enlace,
no recuo e na distensão. Assim, os pequenos ritornelos, as músicas territoriais são carregadas de
um potente canto desterritorializado.
O gesto do músico consiste em desenquadrar, encontrar a abertura, retomar o plano de
composição, segundo a fórmula que obceca Boulez: traçar uma transversal irredutível à
vertical harmônica como à horizontal melódica que conduz blocos sonoros à
individualização variável, mas também abri-las ou fendê-las num espaço-tempo que
determina sua densidade e seu percurso sobre o plano. (DELEUZE; GUATTARI ,
1992, pp 246, 247).
Um aspecto original relacionado à permanência das sensações em música é apontado por
Carole Gubernikoff em sua tese “Escuta, Análise e Empirismo”. Utilizando Deleuze em sua
discussão sobre o valor e a permanência de obras de arte ou literárias baseadas nas sensações, e
não apenas em documentos históricos ou nos processos de legitimação social, a autora aborda as
125
composições eletroacústicas
160
. Estas composições estão, direta ou indiretamente, relacionadas
com a questão central da escuta empírica, visto que a música eletroacústica não é intermediada
pela notação ou pela representação abstrata.
A escuta e as composições eletroacústicas ultrapassam em muito o vivido e o sentido
no senso comum, põem em questão e problematizam a escuta humana, apontando
para uma ultrapassagem da escuta usual. Não por acaso, os sons fontes da música
eletroacústica, os objetos sonoros, podem ser extraídos de sons cotidianos: portas que
batem ou rangem, pedras que rolam, trens, passos, como se fossem sonoplastias
intensificadas e sem relação de causalidade. Mas, da mesma maneira que na música
de concerto tradicional e da maneira descrita por Rameau
161
, eles devem ‘se bastar a si
mesmos’, ‘se manter em pé’. (GUBERNIKOFF, 2005, p. 17)
Embora vários aspectos indiquem uma ruptura da música eletroacústica com a música
convencional, Gubernikoff chama atenção para um traço importante e significativo de
continuidade, mantido desde a música tradicional: a intensificação da escuta na sala de concerto,
com seu planejamento para a absoluta concentração: a semi-obscuridade, as caixas acústicas
cercando os ouvintes por todos os lados.
A conseqüência para o espectador é de intensa fabulação, provocada pelo caráter
ambíguo do que estamos escutando: um misto de sons e ruídos, sem escalas de
referência, sem pulsação definida e estável, sem gestos instrumentais reconhecíveis,
sem intérpretes no palco. O fato de estarem sentados numa sala de concertos com
palco italiano, aumenta a situação paradoxal: o palco vazio, na penumbra e a platéia
cercada por sons, muitas vezes contínuos, que percorrem o espaço em todas as
direções. A linearidade confortável do discurso musical, com sua seqüência de notas e
cadências previsíveis é substituída por sons que desconhecemos a origem, que não
correspondem a gestos instrumentais nem a sistemas de formas de ataque consagrados
pelo uso e aos quais estamos habituados”. (GUBERNIKOFF, 2005, p. 21).
Além do que propôs Gubernikoff, existe ainda a possibilidade de a música transbordar a
sala de concerto. A música preenche o cotidiano provocando e desencadeando estranhos devires
através “de suas ‘paisagens melódicas’ e seus ‘personagens rítmicos’“ (MESSIAEN, citado por
DELEUZE e GUATTARI, 1992, p 220). A música compõe, no mesmo ser de sensação a carne, a
160
A música eletroacústica utiliza sons que ultrapassam o som instrumental, sendo realizada diretamente sobre
suporte eletrônico, sem intermediação da escrita ou do instrumento. (GUBERNIKOFF,2005, 14,15)
161
Gubernikoff faz referência ao Traité de l’harmonie réduite à ses principes naturels , de Jean-
Philippe Rameau. Esta obra, publicada em 1722, foi fundamental para a harmonia ocidental.
126
casa e cosmo. O território e a desterritorialização, a vida, a morte, a dor e a alegria, a calma e o
agito.
A música [é] ligada ao cosmo e a terra. A música (...) torna audíveis forças que não são
audíveis, que não são. A comunhão de pequenos ritornelos com o grande ritornelo. O
poder de levar [as sonoridades] para um nível cósmico. É como se as estrelas
começassem a cantar uma pequena ária de sinos de vacas, uma pequena ária de pastor.
É o inverso, os sinos de vacas são de repente elevados ao estado de ruído celeste ou de
ruído infernal. (DELEUZE, 2001)
4.5 A arte produzindo subjetividades
A característica mais importante da arte, portanto, é que ela conserva afectos e perceptos,
porque os blocos de sensação nos atingem, nos atravessam e criam, em nós, uma dinâmica
contagiante. Mostra e inventa afectos. Possibilita que a transformemos e nos transformemos com
ela. Produzimos sensações e afectos quando atingidos pela arte. Ele recoloca sensações,
pensamentos, movimentos e outros tantos modos diversos de subjetivação.
A arte produz, inventa afectos esquecidos, não conhecidos, desconhecidos.
É assim que, de um escritor a um outro, os grandes afectos criadores podem se
encadear ou derivar, em compostos de sensações que se transformam, vibram, se
enlaçam ou se fendem: são estes seres de sensação que dão conta da relação do artista
com o público, da relação entre as obras de um mesmo artista ou mesmo de uma
eventual afinidade de artistas entre si. O artista acrescenta sempre novas variedades ao
mundo. Os seres da sensação são variedades, como os seres de conceitos são
variações e os seres de função são variáveis. É de toda a arte que seria preciso dizer: o
artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em relação com
os perceptos ou as visões que nos dá (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.227)
Que estranhas áreas de semelhança são despertadas com a audição das músicas que
gostamos, ou detestamos... Curiosos devires. Ser transportado, desterritorializado, tornar-se outro
ser, ou melhor, passar de mim a outro, da cidade ao campo, da infância à velhice, de mulher ao
homem, de bêbado à equilibrista. Certa vez, no projeto de Musicoterapia Oncológica no Instituto
Nacional de Câncer
162
uma mãe que acompanhava sua filha, menina recém operada, pediu para
162
Projeto Encanto, convênio firmado desde 2003 entre a graduação de musicoterapia do
Conservatório brasileiro de Música-Centro Universitário e o Instituto Nacional de Câncer, sob
minha supervisão. Detalhes sobre este projeto, ver em Chagas, 2006c.
127
lhe cantarmos O Bêbado e a Equilibrista
163
. No meio da canção ela se retira abruptamente do
quarto para chorar no corredor. Acompanho-a, deixando musicoterapeutas-estagiários
continuando o trabalho no quarto, com a criança. A mãe, emocionada, me diz: “É isso, é isso! A
minha esperança é equilibrista!” O que se passou, em tão poucos minutos? Uma sensação, um
afecto. “Só a vida cria tais zonas, em que turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-Ia e
penetrá-la, em sua empresa de co-criação”. (Ibid., p 225).
A subjetividade é produzida nos agenciamentos coletivos e, como vimos, a arte está
dentre os seus componentes semiológicos significantes. Ilustrando a complexa variedade desses
processos, Rose Hikiji
164
considera:
A música está ‘no sangue’ de nossa gente. Quem gosta de música (de samba, pelo
menos), ‘bom sujeito não é’. Estar ‘afinado’ ou ‘em sintonia’ com alguém denota a
proximidade entre as pessoas. Todos querem viver ‘em harmonia’. Um elo com
segundas intenções é uma ‘cantada’. Os exemplos tirados da ‘boca do povo’ são
representativos dos lugares atribuídos à música no senso comum do brasileiro. Neles,
é revelada uma imbricada teia de sentidos que une história, raça, preconceito e classe
social, para ficarmos nas camadas mais evidentes.
O verso musical que de tão cantado ganhou status de dito popular – ‘quem não gosta
de samba, bom sujeito não é’ - pode ser ouvido, de modo diacrônico, como uma
espécie de ‘resposta’ ao ‘desafio’ da elite e do clero paulista que, no início do século
XX, chamava o mesmo samba de ‘manifestação de homens vadios e perigosos’.
‘Bons sujeitos’ não eram, então, os músicos e freqüentadores das rodas de samba,
música dita ‘dos pretos’, associada à pobreza, à promiscuidade, à malandragem, às
práticas mágico-religiosas condenadas pelos ‘bons’ costumes da época, ou seja, ‘aIém
de algo socialmente vergonhoso e reprovável, também, e por isso mesmo, catalogada
legalmente como 'caso de polícia’ .
João Baptista Borges Pereira, ao analisar a inclusão do negro no sistema radiofônico a
partir do final dos anos de 1930, descreve o processo pelo qual a música negra e
principalmente o samba – e os músicos - passam a ser aceitos pela elite branca. O
crescimento da atividade radiofônica teria sido um dos principais responsáveis pela
aceitação da música ‘negra’ por setores diversos da população. Aos poucos, a música
passou a ser um trabalho para muitos dos músicos antes marginalizados. Atividades
como a de professor de violão - instrumento antes repudiado nas casas de ‘família’ -
passam a ganhar espaço, e o negro passa a dar aulas para as moças da elite carioca.
Porém, se a música era uma porta de entrada para o profissional negro nas casas da
elite, essa não era, obviamente, a "porta da frente". Borges Pereira nota que a
aceitação e valorização do negro como músico ou radialista profissional não é
163
Canção de João Bosco e Aldir Blanc, 1973.
164
Rose Satiko Gitirana Hikiji é mestre e doutora em Antropologia. Realizou um pesquisa
etnográfica que pretendeu compreender significados do fazer musical entre crianças e jovens
participantes de um projeto governamental de ensino de música destinado à população de baixa
renda de São Paulo.
128
acompanhada de sua inserção nos eventos sociais freqüentados quase exclusivamente
por brancos. "Diferentemente do que se dá com o artista branco, o convite [para o
artista negro participar de uma recepção em residência particular] é sempre ao
profissional, nunca ao indivíduo. E naquela qualidade espera-se que ele dê
demonstrações de suas habilidades artístico-profissionais sem se prevalecer da
oportunidade para usar as prerrogativas reservadas ao 'autêntico' convidado’." (2006,
pp 231, 232)
A arte e as sonoridades compõem múltiplos agenciamentos no cotidiano de
nossas vidas. Para Seeger, é por meio da performance musical que se “recria, re-
estabelece, ou altera a significância do cantar e também de pessoas, tempo,
espaços e audiências envolvidas” (apud HIJIKI, 2006 p.62) Então , a sala de
concertos, além do local privilegiado da amplificação da escuta, também é um
lugar de produção de subjetividades conforme ilustram os entrevistados da
pesquisa realizada por Hijiki
A gente se sente bastante importante em cima do palco. O palco é uma magia, e a
gente estando ao contrário da platéia, é bem gratificante. É um prêmio.
Pergunta: O que é essa magia?
Resposta: É um negócio indescritível. Não dá para exprimir. É uma coisa que eu
realmente sinto. Às vezes eu chego a me emocionar e me arrepiar. Então é uma coisa
que não dá para explicar. É uma coisa que vem do âmago mesmo. (Aza, maestro da
orquestra do pólo Mazzaropi).
Não dá para explicar o que a gente sente. A gente sente um prazer, uma emoção
muito grande do pessoal estar escutando a música e estar gostando. É uma satisfação
grande, imensa. Mesmo quando a gente está mais pra baixo, vai pra uma
apresentação e volta mais alegre, mais feliz. A gente vê que o nosso esforço não está
sendo em vão, que o público está gostando muito. (Tatiane Miê Hirano, 18, estudava
violino no pólo Mazzaropi havia três anos).
A ‘magia’ do palco está também na aura que o envolve. ‘Ali é um lugar sagrado’, o
maestro Márcio alerta os meninos do pólo Febem. Para subir no palco é preciso
respeitar novas regras (‘não dá para conversar com o mano, bater papo’), abandonar
características pessoais, vestir uma nova máscara (‘sorriam para o público, sejam
simpáticos, agradeçam’). (2007, pp 170,171)
165
Verifica-se, na pesquisa de Hijiki, uma hipótese levantada por Guattari: a singularização
existencial da pessoa na sua relação consigo mesma, tanto quanto a circunscrição de seu domínio
165
A pesquisa de doutorado de Maria José Chevitarese, realizado no programa EICOS sob a
orientação da professora Dra Maria Inácia D’Ávila, nos oferece importante contribuição no que
diz respeito ao papel da atividade coral nos processos de subjetivação de crianças e adolescentes.
Este trabalho vem sendo desenvolvido no SOLAR MENINOS DE LUZ, situado no morro do
Cantagalo e Pavão-Pavãozinho.
129
de alteridade, não são evidentes, não são dadas nem de direito nem de fato, mas resultam de
processos complexos de produção de subjetividade. E a criação artística, em condições históricas
bem específicas, representa uma exacerbação extraordinária desta produção (GUATTARI, 1989,
p. 253).
O grande ritornelo se eleva à medida que nos afastamos da casa, mesmo se é para
retornar a ela, já que ninguém mais nos reconhecerá quando retornarmos (DELEUZE,
GUATTARI, 1992, pp. 246, 247).
4.6 Na clínica em musicoterapia.
Ana procurou-me para terapia por ser uma mulher muito contida na expressão de suas
emoções, que ficam absolutamente sob controle. O pai de Ana havia morrido seis meses depois do
seu nascimento, vitimado por uma doença antiga. Sempre que falávamos na morte do pai, Ana dizia
que não sentia absolutamente nada, nem falta, nem tristeza, nada. Um dia quando ela me dizia que
sua avó costumava “brincar” dizendo que ela era filha de um espermatozóide podre, pedi para que
cantasse para seu pai. Ana não conseguia lembrar-se de nenhuma música, até que se lembrou de uma,
mas dizia que nada tinha com seu pai. Não tem importância, disse-lhe, cante assim mesmo. Ela cantou
Ah, eu vim aqui amor
Só pra me despedir
E as últimas palavras
Desse nosso amor
Você vai ter que ouvir
Me perdi de tanto amor
Ah, eu enlouqueci
Ninguém podia amor assim
E eu amei
E devo confessar
Aí vou que eu errei
Vou te olhar mais uma vez
Na hora de dizer adeus
Vou chorar mais uma vez
Quando olhar nos olhos seus
Nos olhos seus
Ah, saudade vai chegar
E por favor, meu bem
Me deixe pelo menos
Só de ver passar
Eu nada vou dizer
Perdoa se eu chorar
Vou chorar mais uma vez
130
Quando olhar nos olhos seus
Nos olhos seus.
166
Pedi que cantasse outra música, e ela cantou:
Meu bem
Você tem que acreditar em mim
Ninguém pode destruir assim
Um grande amor
Näo dê ouvidos à maldade alheia
E creia
Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo
Meu bem
Use a inteligência uma vez só
Quantos idiotas vivem só
Sem ter amor
E você vai ficar também sozinha
E eu sei porque
Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo
Quantas vezes eu tentei falar
Que no mundo não há mais lugar
Prá quem toma decisões na vida sem pensa
Conte ao menos até três
Se precisar conte outra vez
Mas pense outra vez
Meu bem
Eu te amo
Meu bem
Sua incompreensão já é demais
Nunca vi alguém tão incapaz
De compreender
Que o meu amor é bem maior que tudo
Que existe
Mas sua estupidez não lhe deixa ver
Que eu te amo
167
Disse-lhe como compreendia as músicas para seu pai – Vejo uma menina pequena, só,
que pergunta ao pai: Por que, papai, você morreu? Como você foi tão estúpido que não percebeu
que eu te amo, que preciso de você? Como eu tão pequenina não pude sequer me despedir. Passei
a minha vida perdida de tanto amor.
166
De tanto amor: canção de Roberto e Erasmo Carlos, de 1971. Gravação do disco Roberto
Carlos, de 1971, na faixa de número 15 do cd.
167
Sua estupidez: canção de Roberto e Erasmo Carlos, de 1969. Gravação do disco Roberto
Carlos, 1969, na faixa de número 16 do cd.
131
Pedi a Ana que cantasse de novo as músicas. E, pela primeira vez, esta mulher machucara
chorou a morte de seu pai. (CHAGAS, 1990, pp 590)
132
5 UMA CLÍNICA NA ARTE: A MUSICOTERAPIA
Certas canções que ouço
cabem tão dentro de mim
que perguntar carece
Como não fui eu que fiz
Certa emoção me alcança
Corta minha alma sem dor
certas canções me chegam
Como se fosse o amor
Contos da água e do fogo
cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
o coração do cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono ou mar
Carvão e giz abrigo
Gesto molhado no olhar
Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar
Milton Nascimento e Tunai
168
A musicoterapia
169
surge como possibilidade de abordagem científica para tratamento,
reabilitação e prevenção das dores humanas na segunda metade do século XX
170
. Deleuze e
168
Certas Canções, de Milton Nascimento e Tunai, 1982. Gravação na faixa de número 17 do cd.
169
"A utilização da música e/ou de seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia), por um profissional
qualificado, com um cliente ou grupo, em um processo destinado a facilitar e promover comunicação,
relacionamento, aprendizado, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, a fim
133
Guattari, com seu pensamento fértil e instigante, e a proposição de uma clínica esquizoanalítica
oferecem novas perspectivas para a musicoterapia.
5.1 A produção de subjetividade em musicoterapia.
O enfoque da subjetividade como produção tem por uma de suas conseqüências o
estabelecimento de uma questão conceitual e técnica focada nos agenciamentos de enunciação.
Dentre os componentes maquínicos dos agenciamentos de enunciação estão inúmeras
sonoridades, canções, expressões sonoro–musicais, tanto do musicoterapeuta quando de seus
clientes. O agenciamento, através do conteúdo e da expressão, por um lado; e da territorialização
e da desterritorialização, por outro, são os produtores de enunciados subjetivos. Para Guattari,
todas as significações e todos os modos de semiotização devem ser reportados a seus
agenciamentos de enunciação (GUATTARI, 1988, p.41). O sujeito é agenciado por um conjunto
de componentes heterogêneos, compostos em uma multiplicidade de instâncias (GUATTARI,
1992, pp 36-37).
Em uma sessão, todas as interações maquínicas se equivalem na ordem dos fluxos, dos
devires, das transições de fases, das intensidades. O agenciamento de conteúdo, o que comporta
os segmentos de conteúdo e de expressão, o agenciamento maquínico de corpos, sejam eles
físicos, psíquicos, sociais, ou musicais, misturam esses corpos, que agem e reagem uns sobre os
outros. O trabalho de uma clínica musicoterápica funciona com “agenciamento maquínico de
de atender às necessidades físicas, mentais, sociais e cognitivas. Ela procura estimular potenciais e/ou restaurar
funções do indivíduo para que ele ou ela alcance uma melhor organização intra e/ou interpessoal e,
conseqüentemente, uma melhor qualidade de vida, através de prevenção, reabilitação ou tratamento." (World
Federation of Music Therapy Inc.,1996)
170
No Brasil, o projeto de lei 4827/2001, que regulamenta a profissão de musicoterapeuta,
atualmente está em tramitação no Senado Federal.
134
corpos” institucionais, históricos, sonoros, familiares que interagem com o agenciamento de
expressão: os mesmos corpos transformando-se nesta interação. O corpo musical, o corpo
institucional, o corpo pessoal se transformam na ação clínica. A declaração do diretor de um
hospital onde funciona o trabalho de musicoterapia pode exemplificar este fato:
Acompanhei de perto o trabalho do musicoterapeuta e pude perceber a importância do
trabalho desenvolvido junto à equipe de profissionais, pacientes, acompanhantes e
familiares. As canções, ao serem entoadas, envolvem a todos, criando ambiente
emocionante de bem-estar, favorecendo um clima de confiança, fraternidade,
estimulando uma maior integração e humanizando o cuidar do paciente. As canções
tocam fundo em nossos corações, trazendo à tona os mais variados e profundos
sentimentos que despertam a equipe e paciente na busca de uma melhor qualidade de
vida e parceria no seu tratamento. (RONDINELLI. 2005)
A produção de enunciados proposta pela utilização da música em musicoterapia, dá
visibilidade ao aspecto de produção coletiva, onde não há um sujeito cujas estruturas internas são
as únicas responsáveis pela formulação de enunciados. “O nome próprio não designa um sujeito,
mas alguma coisa que se passa ao menos entre dois termos que não são sujeitos, mas agentes,
elementos”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p 65). É assim que, em dado momento, um cliente, ao
cantar uma canção, o faz na primeira pessoa, ocupando os diferentes lugares, as diferentes
emoções. A canção propõe vários agenciamentos: a melodia, o ritmo, a harmonia, a letra, o
instrumento escolhido, o grupo terapêutico, o terapeuta. Assim, posso dizer, com minha voz, em
primeira pessoa, por exemplo: “você foi mor rata comigo”!
171
, e logo depois, igualmente afirmar,
sem nenhuma exigência de sentidos outros que não a ação musical: “vejo meu bem com seus
olhos/ E é com meus olhos / Que o meu bem me vê”
172
.
171
Canção Rocks, de Caetano Veloso, de 2006, do cd Ce.
172
Canção Meu Namorado de Edu Lobo e Chico Buarque, de 1983 do disco O Grande Circo
Místico.
135
A subjetividade se produz nos elementos da música, realizados “ao vivo” no fazer musical
de uma clínica em musicoterapia. O cliente e o musicoterapeuta, à semelhança do escritor,
inventam agenciamentos, a partir de agenciamentos que o inventaram (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 65). A musicoterapia funciona, assim, como um facilitador da passagem de uma
multiplicidade para a outra, embora, como bem nos lembra Deleuze, “o difícil é fazer com que
todos os elementos de um conjunto não homogêneo conspirem, fazê-los funcionar juntos”.
A música, de maneira muito eficiente, produz novos enunciados aos sujeitos, seja através
da improvisação, da audição, da composição ou da canção. Em muitas sessões, o paciente fica
envolvido na tarefa de tocar, de improvisar, de experimentar os sons, de entrar em contato com
instrumentos musicais. Essas experimentações tecem novos agenciamentos, que oportunizam as
cadeias a-significantes de experimentações subjetivas. Não existem efeitos de significação no
sentido lingüístico para essas práticas: há experimentação musical, ou seja, uma enunciação
subjetiva muito própria dos processos musicoterapêuticos.
Uma outra maneira eficaz desta experimentação é a que ocorre na recriação, quando as
canções dizem respeito a experiências vivenciais muito diferentes da experiência pessoal do
cliente; e, no entanto, a potência do devir, atuando nas bordas da ressonância, nos faz, a todos
nós, cantores, saltimbancos.
A canção de Marisa, mulher de 60 anos, cheia de medo e de ansiedades perante as
situações de sua vida, serve como ilustração. Naquele dia, ela estava bastante entusiasmada para a
realização de seu trabalho terapêutico comigo. No transcorrer da sessão sugiro que cante uma
música, e ela canta Carinhoso
173
. Peço que a dedique a alguém, e ela dedica a si mesma. Peço que
173
Carinhoso, canção de Pixinguinha e João de Barro. A música de Pixinguinha foi grava sem letra pela primeira vez
em 1929, e com a letra de João de Barro em 1937, com gravação em disco de Orlando Silva.
136
repita a canção e cante em primeira pessoa, já que a dedicada, realmente, era ela e que era essa
sua intenção. Marisa canta
174
:
Meu coração, não sei por que,
Bate feliz quando me vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão me seguindo
Mas mesmo assim. fujo de mim
Ah! Se eu soubesse como eu sou
Tão carinhosa e o muito,
Muito que me quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que eu não
Fugiria mais de mim
Venho! Venho! Venho! Venho!
Venho sentir o calor dos lábios meus
A procura de mim
Venho matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz, bem feliz
Marisa se apodera da canção. Aceita a provocação e se diverte. A qualidade de sua voz é
suave. Acompanha-se com o pandeiro e dança. Parece realmente feliz avaliando, através do
canto, a si mesma. (CHAGAS, 2001 p. 121)
O aspecto dos agenciamentos que dizem respeito à territorialização e a
desterritorialização, a modos de subjetivação coletivos e singulares, acontecem frequentemente
nas sessões de musicoterapia, como se pode ver no exemplo exposto. Vários movimentos
musicais fixam os agenciamentos, territorializando-os, e outros movimentos musicais os
desterritorializam, levando para longe da terra firme do conhecido cotidiano, da patologia, da
mesmice. Em algumas situações clínicas, o fundamental é a fixação do território, em outras, fazer
voar...
174
“Carinhoso na primeira pessoa” – faixa de número 18 do cd . Voz: Marly Chagas, violão
Marcello Santos.
137
5.2 A clínica musicoterapêutica e o ritornelo.
Eu me pergunto: ‘Quando é que cantarolo? ’ Cantarolo em três ocasiões: quando dou
uma volta pelo meu território e tiro o pó dos móveis. O rádio está ao fundo. Ou seja,
quando estou na minha casa. Cantarolo quando não estou em casa e estou voltando
para casa ao anoitecer, na hora da angústia. Procuro meu caminho e me encorajo
cantarolando. Estou a caminho de casa. E cantarolo ao me despedir e levo no meu
coração... Tudo isso é canção popular: ‘Vou embora e levo no coração... ’ Quando
saio da minha casa, mas para ir aonde?”(DELEUZE, 2001)”.
A música fixa um território através da expressividade, estabelece suas fronteiras, indica
onde eu estou, com quem estou, como estou. Foi o que observamos, Ronaldo Millecco e eu,
musicoterapeutas no projeto “Buscando caminhos”, realizado de dezembro de 1999 a dezembro
de 2000 em uma parceira entre a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS (RJ)
175
e o Conservatório Brasileiro de Música-Centro Universitário
176
. O projeto teve como
objetivos a capacitação e o desenvolvimento institucional de profissionais de quatro unidades do
Centro Municipal de Atendimento Social Integrado - do programa “Vem Pra Casa”, um sistema
de atendimento oferecido a crianças e adolescentes em situação de rua. . Os CEMASI - Centro
Municipal de Assistência Social Integrada - escolhidos pela equipe técnica do “Vem pra Casa”
para a execução do projeto foram: Gonzaguinha (Engenho de Dentro); Guadalupe; Ayrton Senna
(Maracanã); Sol Garson (Vila Isabel). O projeto teve a duração de seis meses em cada unidade e,
durante este período, realizaram-se oficinas de diversas linguagens expressivas e artísticas que
duravam, em média, doze semanas em cada unidade, havendo revezamento de unidades.
Educação musical; criação verbal - a arte da palavra; teatro; dança; atividades criativas foram as
oficinas oferecidas, além dos educadores participarem de palestras sobre Arte e Cultura, visitas
175
Órgão da prefeitura responsável pela formulação e implementação de políticas de assistência
social.
176
Instituição de Ensino de formação de musicoterapeutas desde 1972, atualmente é um Centro
Universitário.
138
culturais ao centro histórico do Rio e, acompanhando os seis meses de atividades em cada
CEMASI e sessões de musicoterapia uma vez por semana.
O início do processo nos grupos musicoterapêuticos deu-se, em todos os CEMASI, com
apresentações feitas com canções. “Escolha uma canção que possa servir para apresentar você
ao grupo.” As canções surgem diversificadas, emocionadas, diferentes... ”Começar de novo, e
contar comigo
177
; “Cada macaco no seu galho
178
"; ”A minha alegria atravessou o mar
179
...”
Acompanhadas de comentários diversos: “Não queiram saber da minha música, se vocês não
quiserem ver um homem grande chorar”. Mas nós queremos ver um homem grande chorar!... E,
realmente, chora quando canta “Pai, você foi meu herói meu bandido
180
.” A surpresa da
repetição de músicas escolhidas em comum:Veja só, a minha música foi a mesma dela!”
(Referindo-se a Canção da América
181
).
A proposta inicial de apresentação pessoal por canções demarca um primeiro território
existencial. Porém, na mesma hora que o demarca, o desterritorializa, para, em seguida,
reterritorializá-lo. A música conhecida, própria da vida cotidiana, algumas vezes massificada pela
escuta continuada imposta pela mídia, assume características inteiramente novas ao estar no papel
de conteúdo sonoro da apresentação de si.
177
Trecho da canção “Começar de Novo” de Ivan Lins e Victor Martins, de 1979, gravado por
Simone em 1980.
178
Trecho da canção “Cada macaco no seu galho” de Caetano Veloso, de 1972.
179
Trecho do samba enredo “É Hoje” de Didi e Mestrinho, 1982.
180
Canção “Pai” de Fábio Júnior, de 1979.
181
Canção de Fernando Brant e Milton Nascimento, de 1979, álbum Jouney to Dawn;
139
As canções também serviram como dedicações entre os membros do grupo. Nestas ocasiões,
surgiram manifestações de ternura e de hostilidade. Pudemos observar o indivíduo na
encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 1986 p. 34) e
os grupos de profissionais puderam adquirir a liberdade de viver seus processos, a capacidade de
ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles.
Em uma das instituições, por exemplo, ao dedicar uma canção a uma colega, um membro
do grupo cantou: “Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor
182
.” A musicoterapeuta pediu
para que a pessoa que recebeu a dedicatória, a respondesse: “Joga pedra na Geni, joga bosta na
Geni!
183
A musicoterapeuta música ao colega provocador, e veio: “Carcará, pega, mata e come
184
.” De novo uma réplica: “Nunca vi fazer tanta exigência
185
.”
Na avaliação final do projeto, obtivemos o seguinte depoimento:
“Eu nunca me esqueço que a L. cantou para mim ‘O bêbado e o equilibrista’
186
. Na
hora o CD estava aqui. Ela pediu não sei... a alguém para colocar. E aí ela falou
assim: esta música retrata muito como ela me vê, porque é uma música linda, já
pensou você ser identificada com uma música daquela! Aquilo para mim foi uma.
(gesto) É legal que você conhece o outro através de uma música! Você identifica a
pessoa, né, como a pessoa é, a personalidade da pessoa, a força que a pessoa tem, ou a
fraqueza. Ou o encanto, né. Foi muito legal isto! A música dentro do teu momento.
Momento em que tu tá bem, em que tu tá ruim. Como ela retrata tudo. ..” (
MILLECCO; CHAGAS, 2002)
182
Trecho da canção “Paraíba” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, de 1950.
183
Trecho da canção “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque, de 1977-1978 da peça Ópera do
malandro.
184
Trecho da canção “Carcará” de João do Vale e José Cândido de 1981.
185
Trecho da canção “Ai, que saudades da Amélia” de Ataulfo Alves e Mario Lago, de 1941.
186
Referência a canção “O bêbado e a equilibrista” de João Bosco e Aldir Blanc, de 1979.
140
A música pode promover a ordem no caos, o centro de estabilidade, “como o fio de
Ariadne” conduzindo o que se afasta do perigo. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.116). As
mães de filhos prematuros cantando para seus bebês tão pequenos e sujeitos a tantas incertezas,
buscam estabilidade nesse território com a música. As forças do caos rondam: seu pequeno filho
que enfrenta a morte. O buraco negro é palpável no centro do peito. E as mães cantam as músicas
da moda, a que toca o dia inteiro no rádio massificando a audiência. Na observação de Barcellos
(2004), essas mães buscam a segurança e o conforto que a música proporciona. Na canção
encontram a terra, o chão. Os pacientes hospitalizados cantam: a música lhes dá a mão. Encaram
o medo, a tristeza e a morte. “Nossa senhora, me dê a mão
187
“,” se chorei o se sofri, o importante
é que emoções eu vivi
188
”, “ Tristeza, por favor vá embora
189
.
É a música construindo um território na clínica. O ritmo compassado, o pulso regular, o
instrumento conhecido, a expressão do desejo que se aloca nas possibilidades sonoras oferecidas
culturalmente. Baseado na observação da improvisação musical em sessões clínicas, Nelson
Cruz
190
vem construindo um conceito de notas de segurança, aquelas que, por serem
recorrentes, permitem um continente sonoro/musical ao paciente." (2001) As notas de segurança,
geralmente pertencentes à série de acordes harmônicos da melodia que está sendo tocada pelo
paciente na sessão, funcionam como um porto-seguro, como o suporte buscado pelo cliente. É o
equivalente ao território, à estabilidade vivida no fazer musical.
187
Trecho da canção de Roberto e Erasmo Carlos, Nossa Senhora, de 1993.
188
Trecho da canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos – Emoções, de 1981.
189
Trecho da marchinha de Haroldo Lobo e Niltinho – Tristeza, de 1965.
190
Nelson Falcão de Oliveira Cruz é musicoterapeuta, graduado no CBM-CEU.
141
Keneth Bruscia (1987) enfatiza a base rítmica, ou um ostinato
191
rítmico que o
musicoterapeuta oferece ao cliente em uma improvisação, como a ajuda na organização musical
que promove sentimentos de segurança e estabilidade. Funciona como o apoio para os esforços
do cliente em “manter os pés no chão”. Cita também o centro tonal, que pode ser oferecido pelo
terapeuta, através de um baixo de base - um ponto pedal
192
, ou ostinato melódico - como uma das
formas de ajudar ao cliente a expressar sentimentos desarticulados.
A influência do andamento para delimitar um território pode ser constatado na sessão de
Pedro, homem de 29 anos, intelectual, casado, cuja queixa inicial é a de não conseguir estar
inteiramente nas coisas que faz. Tudo fica muito na cabeça”. Com 14 meses de trabalho
terapêutico peço que cante a música que lhe vier a cabeça. Pedro canta muito, muito lentamente
Marinheiro só
193
. Eu o acompanho também muito lentamente, sublinhando com a interpretação
dramática a sua execução musical. O andamento desacelerado sublinha as evoluções da
linguagem, e a relação clínica promove a conquista de um território singular onde, apesar de
continuar só, compartilhamos a canção.
O tocar junto, o ouvir e ser ouvido. Os componentes sonoros constróem um muro para
impedir a invasão das forças do caos. A evidência das tentativas de limitar essas forças pode ser
191
Ostinato é a repetição de um elemento musical que poderá ser rítmico, melódico ou ambos ao mesmo tempo.
192
O ponto pedal é uma nota sustentada que pertença a harmonia executada.
193
Marinheiro só – samba de roda de domínio público
142
observada com a forte presença da temática da casa nas sessões de musicoterapia (KARL
194
,
2004). “Quero uma casinha branca de varanda...
195
”.
O fazer musical pode enxertar linhas de errância, desterritorializar, abrir a experiência
clínica ao imprevisível. A improvisação pode retirar o apoio, abrir-se para a instabilidade
harmônica, para as cadências não resolvidas, para os acordes suspensivos; a voz se embarga,
desafina, falha, explora sonoridades totalmente inusitadas; a audição pode trazer escutas exóticas,
ameaçadoras, instigantes; os materiais sonoros podem ser tantos e tais que manuseá-los pode
constituir-se em uma experiência de linha de fuga.
Os exemplos clínicos, contudo, são difíceis de serem capturados pela escrita. Estão no
âmago das experiências subjetivas que aparecem no brilho do olhar, nas mãos que se apertam, no
Corpo sem Órgãos. Além disso, podem estar presente em cada uma das situações clínicas
descritas. Afinal, qualquer casa pode abrir uma janela para o cosmos.
5.3 A clínica musicoterapêutica e a produção do bloco de sensações
A hipótese defendida por Carole Gubernikoff
196
- a importância da sala de concerto como
ambiente propício para a intensificação da escuta - enriquece a compreensão das sessões de
musicoterapia como um espaço que possibilite a ênfase nas sensações. Ênfase essa que poderá
provocar a ampliação da escuta tanto do musicoterapeuta quanto do cliente. A conseqüência
dessa ampliação de sensações poderá ser a facilitação na produção de novos modos de
194
Letícia Karl é musicoterapeuta, graduada no CBM-CEU.
195
Referência à canção “Casinha branca” de Gilson, Joran e Marcelo, de 1975.
196
Ver no capítulo 4.
143
sensibilidade; o investimento em modos de criatividade produtores de uma subjetividade
singular; a formação de territórios existenciais construídos através da utilização dos instrumentos,
das canções, da composição, da escuta musical. Todos esses aspectos agenciados em um conjunto
de forças múltiplas, constróem um setting em rizoma que possibilita a promoção de
“autopoiese”
197
.
Bakhtine (apud GUATTARI, 1992, p.25) descreve uma transferência de subjetivação que
se opera entre o autor e o contemplador de uma obra. “Nesse movimento, para ele, o
"consumidor" se torna de algum modo, co-criador”. Quando uma pessoa canta, no setting
musicoterapêutico, ele ou ela não reproduz simplesmente a canção, mas se apropria dela. A
canção torna-se sua, passível de improvisos: recriação. Utilizada como uma atividade produtora
de subjetividade, a canção toma uma nova forma, instantânea, produzida ali pelo indivíduo ou
pelo grupo, não é possível de ser repetida, é única. Não se confunde com a sua gravação oficial.
Não objetiva a qualidade técnica ou estética. Seu co-autor, o cliente cantor, pode transgredir a
qualquer forma já estabelecida de acompanhamento, de andamento, de harmonia, de prosódia. A
canção popular torna-se viva, recriada, improvisada tanto pelo cliente como pela musicalidade
clínica do terapeuta que irá perceber novos sentidos e novas possibilidades de encaminhamentos
musicais na conhecida canção popular. É co-criador, igualmente, o cliente que escuta a música,
erudita, e que faz daquela obra, a sua obra. O cliente pode, acompanhando uma gravação, reger,
imponente, qualquer grande orquestra, pode realizar junto aos maiores interpretes os solos mais
elaborados, tanto quanto “viajar” na cauda de um cometa sinfônico a lugares inimagináveis...
197
Poiesis é um termo grego que significa produção. Autopoiese é um conceito utilizado pelos
biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela para definir os seres vivos como sistemas que
produzem continuamente a si mesmos. Esses sistemas são autopoiéticos por definição, porque
recompõem continuamente os seus componentes desgastados. Um sistema autopoiético é ao
mesmo tempo produtor e produto (MATURANA;BARELA 1995).
144
A música, com sua característica de produtora de afectos e perceptos, mesmo apresentada
massificada no modo de subjetivação capitalista, possui, como as outras expressões de
subjetividade contemporâneas, “certo enfraquecimento dos requintes caligráficos, da riqueza dos
traços prosódicos, das etiquetas posturais, enfim, de tudo o que dava vida e graça aos
agenciamentos de expressão mistos”.(GUATTARI, 1988, p.104). As pessoas, hoje, consomem as
produções sonoras vendidas no mercado ou disponíveis na internet. No entanto, nas sessões de
musicoterapia, pode-se ter a oportunidade de fazer “a língua gaguejar,(...) ou balbuciar, o que não
é a mesma coisa” (DELEUZE, 2001). O tambor em minha mão espera ser tocado com o pulso
que eu mesma impuser. Se toco em grupo, o meu som ressoa no som de outras pessoas. Se danço,
a música que escuto se expressa junto a minha própria graciosidade ou falta de jeito. Se canto,
desafino, engasgo, troco as letras das canções, brinco com minhas sonoridades. Gaguejo...
Jacila Maria da Silva
198
em sua tese “Variações quase atonais entre Psicanálise e Música:
a escuta, o silêncio e a musicalidade” (2004) considera que escutamos a escuta do outro através
da voz.
“A voz é um pouco a composição de cada um – no arranjo das palavras, através dos
sons e dos silêncios. A voz nos remete à escuta de uma escuta, (...) – alguém escutando
o mundo e o transmitindo através da voz. Mas cada mundo, sabemos, é constituído de
muitas vozes, de muitos mundos, de uma diversidade de sonoridades e de silêncios.”
(op. cit., p. 139)
A emissão da voz provoca, por exemplo, uma vibração corporal. As cordas vocais vibram
com a passagem do som. O rosto, o tórax, a garganta são as caixas de ressonância para a escuta
deste som emitido. E a caixa de ressonância também vibra com o som. O trabalho com a vibração
da voz traz interessantes possibilidades de desbloqueio dos anéis de tensão corporal, na medida
198
Jacila Maria da Silva é musicoterapeuta, psicóloga, mestre e doutora em Teoria psicanalítica.
145
em que é uma massagem vibratória de dentro para fora, a partir do próprio som do sujeito.
(CHAGAS, 1990 p 587). Balbucio.
Vibrar a sensação enlaçar-se com ela e depois distendê-la... O uso da voz, o improviso, a
escuta da música, a composição: em todos esses experimentos pode-se estar lidando com esse
bloco de sensações. As sensações se enlaçam a outras tantas sensações, ressoam em outros
territórios existenciais. Foi o que aconteceu com os homens da enfermaria, adultos em situação
de rua da Fundação Leão XIII, quando compuseram a com a ajuda dos musicoterapeutas do
projeto “Buscando Caminhos através da Arte” , no carnaval de 2004:
CORDÃO DOS CAÍDOS
“Esse é o cordão, cordão dos caídos.
Tá mais morto que vivo
Ta mais morto que vivo. ( Bis)
Agora, tem que enrolar.
Enrolar nesse cordão
Tem que desenrolar
Pra não cair no chão
Pra não cair no chão
E dar numa canção”.
199
199
Cordão dos Caídos. Letra: usuários da enfermaria masculina da Fundação Leão XIII em
Itaipú. Música: musicoterapeutas Martha Negreiros, Ângelo Cuisi, Helena de Lima, Priscilla
Winandy. Faixa de número 18 do cd. Voz: Marly Chagas. Violão: Marcello Santos
146
147
Em minha clínica particular recebi uma criança de cinco anos. A família me procurou
pelo imenso sofrimento que o menino demonstrava diariamente ao se separar de sua mãe para ir à
escola. Há dois anos perdera, no espaço de alguns meses, o avô querido em um enfarto súbito,
uma tia que estava grávida de um neném em um desastre de automóvel, e duas tias avós. Em sua
primeira sessão de musicoterapia escolheu “montar uma bateria”. Juntou instrumentos de
percussão e o xilofone. Colocou-me no piano e começamos a improvisar, ele oferecendo a
direção da música que estávamos produzindo. Entregamos-nos ao trabalho terapêutico. A música
crescia em intensidade e entrosamento entre nós. Subitamente o menino pára o fazer musical e
exclama: “Ai!”. “O que foi?” lhe pergunto, e ele sorrindo, o semblante iluminado: “Dá um
triquilim por dentro!”. E continuou a tocar e a cantar, com uma expressão radiante.
O meu pequeno cliente percebeu o que descreveram Deleuze e Guattari: em alguns casos,
a sensação se realiza no material, no caso o material sonoro.
O composto de sensações se projeta sobre o plano de composição técnica bem
preparado, de sorte que o plano de composição estética venha recobri-lo. É preciso
pois que o material compreenda, ele mesmo, mecanismos de perspectiva graças aos
quais a sensação projetada não se realiza somente cobrindo o quadro, mas segundo
uma profundidade. (DELEUZE; GUATTARI , 1992, p.248).
Em outros casos, é o material que entra na sensação.
O plano de composição ganha espessura, enquanto o material sobe,
independentemente de uma profundidade ou perspectiva, independentemente das
sombras e mesmo da ordem cromática da cor (...) Não mais se recobre, faz-se subir,
acumular, empilhar, atravessar, sublevar, dobrar. É uma promoção do solo, e a
escultura pode tornar-se plana, já que o plano se estratifica. Não mais se pinta ‘sobre’,
mas ‘sob’. ( Ibid., pp 249, 250).
A música e seu material sonoro incitam sensações, provocam o contágio das lembranças,
reinventam as possibilidades do viver. É quando o material entra na sensação, e construímos a
possibilidade da reinvenção criativa dos conflitos humanos.
148
5.4 A clínica musicoterapêutica em rizoma
Além do setting fechado, com seu espaço de intensificação da escuta, conforme a
argumentação em relação à sala de concertos, o espaço clínico pode estar espalhado, rizomático,
estabelecendo laços heterogêneos e produções subjetivas diversas. Há uma experiência,
rizomática, contagiante que pode ser estabelecida, em uma clínica musicoterapêutica, como a de
Marcello Santos
200
:
Iniciamos nosso trabalho descrevendo a seguinte cena: ao centro de um círculo
composto por idosos portadores das mais diferentes patologias (combinadas ou não),
além de parentes e cuidadores, um facilitador entoa as primeiras notas de uma canção
da época de ouro da Rádio Nacional que foi pedida por alguém. Há algo de
reminiscência, de ressignificação, de contato com o outro, de afeto, naquela sala. Há
também angústia, saudade, carências. O grupo pulsa na cadência daquela música,
oscilante no ritmo, impreciso nas letras, mas agregado e acolhido pelo som. Não há
preocupação com o estético, mas a beleza insiste em surpreender a todos naquele
espaço improvisado na sala de estar daquela “nursing home”
201
. A canção afeta a
todos no prédio, invade os quartos, se instala na cozinha, impregna a sala da direção.
Faz parte da rotina. É uma sessão de Musicoterapia. Um espectador mais desatento
poderia perguntar diante de tal balbúrdia numa clínica:’Afinal de contas, como essa
cantoria veio parar aqui, numa instituição médica, para intervenções de saúde? Sei
que a Música é uma ‘terapia’ para mim, mas isso cura alguém?’. (Santos, 2005, p.1)
As sessões clínicas assim realizadas provocam um acontecimento. “O acontecimento é
sempre produzido por corpos que se entrechocam, se cortam ou se penetram, a carne e a espada”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 78), a voz e o canto, o tambor e a maceta, o teclado e a mão. O
acontecimento, porém, não se reduz a nenhuma coisa, a nenhum instrumento musical, a nenhuma
pessoa, a nenhuma canção. O acontecimento envolve as coisas e as pessoas. É o produtor do
200
Marcello da Silva Santos é psicólogo, musicoterapeuta, professor da graduação do Conservatório
Brasileiro de Música – Centro Universitário. Em seu mestrado no Programa EICOS, pesquisou a mudança
de paradigmas nas ciências entendida como processo que possibilita a emergência de novas perspectivas,
focalizando sua análise na emergência da Musicoterapia na Saúde contemporânea. (Santos, 2005).
201
Modalidade de clínica de enfermagem que trata de pessoas com necessidades de cuidado contínuo. (
Santos, 2005, p. 1)
149
sentido. O futuro e o passado do acontecimento estão em função de um presente definitivo, do
ponto de vista daquele que o encarna, configura-se o presente de um instante (DELEUZE, 1974,
p. 134)
A perspectiva de existência simultânea do sentido e do devir no acontecimento, a ênfase
na produção de subjetividade e nas formas de seus agenciamentos maquínicos ecoam em uma
concepção do inconsciente como um plano de produção com materiais heteróclitos onde
paradoxalmente o inconsciente é a produção e o produto, ou seja, é autopoiesis
202
”. (PASSOS
203
;
BENEVIDES
204
, 2004). Todas essas produções de um inconsciente que é uma fábrica e de um
corpo que se abre em outras possibilidades rizomáticas podem existir em sessões de
musicoterapia. E, talvez, seja essa perspectiva de construção subjetiva sonora – uma música
produzida com tantos e diferentes objetos - que faz dos encontros musicais proporcionados nas
sessões clínicas tão atraentes aos clientes que as freqüentam.
Neste setting promotor de autopoiesis pela afecção provocada na utilização da arte, ou dos
materiais artísticas que atingem as sensações, a potência dos corpos surpreende. A reabilitação
motora; a intervenção em portadores de graves dificuldades neurológicas – pacientes com
Alzheimer, ou que sofreram acidentes vasculares cerebrais, ou portadores de paralisias cerebrais -
; a diminuição da dor; a expressividade comovente dos que possuem as mais diversas
202
Poiesis é um termo grego que significa produção. Autopoiese foi usada por Varela, Maturana
para definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos. Esses
sistemas são autopoiéticos por definição, porque recompõem continuamente os seus componentes
desgastados. Um sistema autopoiético é ao mesmo tempo produtor e produto. (1995).
203
Eduardo Henrique Passos Pereira é mestre e doutor em Psicologia. Atualmente é Professor Adjunto IV da
Universidade Federal Fluminense.
204
Regina Duarte Benevides de Barros é mestre e doutora em Psicologia, com pós-doutorado em
Saúde Coletiva. Atualmente é professor adjunto IV da Universidade Federal Fluminense.
150
dificuldades cognitivas, entre outras tantas aplicações da musicoterapia, traz à discussão clínica a
potência de um corpo, ainda que débil, a possibilidade de ser afectado pela música, através de
encontros que aumentem a sua eficácia somato-emocional.
Zenith Miranda é uma jovem cadeirante, usuária das sessões de musicoterapia da ABBR,
e, na Jornada de Musicoterapia da Associação Brasileira Beneficente, surpreendeu a todos lendo
seu poema-depoimento, que transcrevo:
MUSICOTERAPIA VIDA E ALEGRIA
205
Zenith de Lima Miranda
Há momentos em que a vida
Dá uma rasteira na gente
E quando se acorda percebe
Que ficou sem braços e pernas de repente
Em alguns casos a gente até
Esquece quem é
Acorda e se sente perdido
Sem nada ao redor conhecido
Vendo sonhos enterrados
E com um grito na garganta engasgado
É nesse momento que chegamos aqui
E a ABBR se torna para muitos
O que tem se tornado para mim
O lugar onde encontramos refugio e esperança
E independente da idade nos tornamos crianças
E nos vemos nas mãos dos terapeutas que vem nos tratar
Passamos por vários setores
Que só se dispoõem a nos ajudar
Mas entre estes setores
Há um lugar especial
Onde agente entra
E consegue com a melodia
Mandar pra longe
A tristeza e o baixo astral
Sem coordenação motora
205
A Jornada de Musicoterapia da ABBR foi realizada em 22.11.2006.
151
Nos tornamos uma orquestra
Que regido pela emoção
Torna aqueles minutos em festa
E assim, tornamo-nos cantores
Não dos mais afinados
Cantamos, choramos, rimos
E mesmo nas cadeiras dançamos
Lembramos de pessoas que amamos
De momentos vividos
E que foram apagados, esquecidos
No meu grupo tem o Vinícios
O Dr. Que não desistiu
Tem a Solange, que depois de muito tempo
Percebeu que som dela saiu
Tem a outra Solange, que era tímida
E agora fala pelos cotovelos
Tem uma senhora que diz
Que só queria dormir
Agora ela tem alegria
De cantar porque aprendeu aqui
Tem gente que nem lembro os nomes
Mas uma coisa eu quero dizer,
Para você que está aqui nessa jornada:
Por favor!
Não deixe a musicoterapia na ABBR morrer.
Ela é que me motiva três vezes por semana vir para cá
Um dia em que minha memória estava apagada
Com uma canção o nome da minha filha eu pude lembrar
Por isso, este poema eu compus para dizer
Que a Musicoterapia é na ABBR
O lugar, onde nós voltamos a sorrir e a crer
Que mesmo limitados
Podemos ter prazer em viver.
A musicoterapia pretende lidar com múltiplas restrições humanas. Os sons, com a sua
particular capacidade de a-significância, se torna expressivo do que não tem palavras. Os
musicoterapeutas trabalham na borda das desterritorializações pungentes dos gritos de autistas,
do ranger das cadeiras de roda, dos hip - hops e funks proibidos tornados ternos nas vozes das
152
mães adolescentes, na força de comunicação dos portadores de sofrimento mental. Os
musicoterapeutas sabem que
É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada
aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação. É também necessário
conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o
exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas
rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à
realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de
consistência desestratificando grosseiramente” ( Deleuze; Guattari, 1996, p; 23)
Musicoterapeutas frequentemente atendem pessoas com muitas dificuldades de expressão
verbal, trabalham com crianças que nunca falaram e vivem suas vidas em meio a uma intensa
limitação cognitiva. São seres que precisam de um pouco de organismo. Muitos profissionais são
surpreendidos com o sorriso de uma criança ao reconhecer a música que toca todo o dia na
televisão e, muitas vezes, a comunicação com elas se inicia através da emissão destes mesmos
massificados trechos musicais, que irão assumir um outro sentido naquelas vozes titubeantes. É o
aproveitamento de uma música que chega “pelo meio”, rizomática.
O acontecimento, o inconsciente maquínico, a produção de subjetividade e a música se
apresentam de maneira rizomática com toda a potência do devir. Podemos exemplificar com
experiências musicais ocorridas no projeto “Buscando Caminhos”. Apesar de o objetivo do
projeto ter sido o de colaborar na qualificação de educadores daqueles meninos, algumas poucas
vezes, por razões da estrutura do próprio Centro – falta de funcionários, ou a pedidos da própria
instituição – não realizávamos a sessão de musicoterapia com os educadores, e nos
encontrávamos com as crianças.
O encontro que relato a seguir se deu no Centro Municipal de Assistência Social
Integrada – Cemasi - Gonzaguinha. Esse Centro fica situado no antigo Hospital Pedro II, no
Engenho de Dentro, e abriga meninos de 6 a 12 anos recolhidos da rua. Os meninos estudam, e o
153
discurso institucional afirma que o objetivo maior é que possam ser reintegrados a suas famílias,
voltando para suas casas.
Naquele dia, havia levado um pequeno gravador e propus, sentada no pátio, que cada um
gravasse uma música que quisesse. A escolha era livre. Queria escutá-los. As crianças logo se
sentaram bem pertinho de mim, grudadas, encantadas com o gravador que lhes devolvia as suas
próprias escolhas, a sua própria voz. As músicas que escolheram eram aquelas comuns ao seu
dia-a-dia: funks, paródias, melodias predominantemente rítmicas, com forte apelo à violência.
Como um radical
206
ou um vacilão
de bobeira no movimento
207
sei que ta mancando
a matar ta sacando
e a comunidade
no procedimento
de bate com bu
não acredito num gueto
monte de paz
e ato virapia
tira já esbelto
só vou dar dez
em quem tem mais
o tempo é o remédio
e o proveitei
de modo o dia a dia
a caôzada simpatia
já ta virando epidemia
valeu uma vez
e tou bolado
e novamente
eu vou falar
só cura safado
o abú ta ligado
vacila bala de azar
por isso que eu digo
cuidado comigo
206
Gravação na faixa de número 19 do cd.
207
Movimento – Atividades e pessoas ligadas ao tráfico de drogas (HERSCHMAN, 2000, p.187)
154
meu bozo bolado
é um perigo ô
covarde acudido
garoto metido
só é cartucheira de um bandido
208
A música desse menino mostra seu dia-a-dia. Concomitante à batida funk, surge a
exposição clara das motivações e dos valores de uma infância submetida ao cotidiano do tráfico e
à desilusão de ascensão social pelo trabalho ou pelo estudo. Revelam-se integrantes da cena
cultural contemporânea, que aproxima cidadania e consumo. Um decalque.
Os meninos não cantaram apenas funk, o cotidiano da violência aparece em paródias de
músicas da parada de sucessos, tais como
209
:
Se cagoetou os amigos,
Ta mandado
Peraê, peraê
Vai morrer
Tá pensando o quê?
Tá pensando o quê?
Depois de todas as músicas de conteúdo tão violento, os meninos cantam uma canção de
amor.
Olha
Olha nos meus olhos
Tem um sentimento
Uma eternidade
Lua
Cheia de feitiço
Ó meu anjo lindo
Uma eternidade
Amor você nasceu pra mim
Vai pra lá meu mundo
208
Nessa música predominam dois elementos: a letra e o ritmo. A melodia não tem papel central, como em outros
tipos de músicas da moda, o centro está na batida, na dança sensual, no domínio do pulso.
209
Paródia da música de Marquinhos, Lala Carvalho e Sissy de Melo, “Peraê”, cantada pela
Banda Beijo de 1999. Gravação na faixa de número 20 do cd.
155
O que será e não tem mistério nosso amor
Pétala de flor
Nã,nã,nã me quer
Só bem me quer meu coração
O amor tudo era vazio, mas você ficou
Com paixão
Você manda e desmanda no meu coração
Eu já não posso mais
Não posso te perder
Eu sonho te esquecer
Sonho se desfaz
Quem sabe um dia
Eu te pego no meu peito
Eu te calo no seu leito
Eu gosto tanto de você.
210
E também cantaram:
Alvo parado na “boca”, Vivendo
Onda atividade gritou:Sujou sujou sujou
Todos os amigos bolados
Destravaram os bicos
De repente a chapa esquentou - e o safado
Porque ele vem encapuzado
mas que cara safado
Sabe o que acontece depois...
Vai e fica todo furado demorou - furado de 762
Demorou
211
.
Quando o inverno é bate
É claro que a gente monta buta, sim
Põe os alemão
212
da favela pra fora
Para invadir o japa que fica maluco Iê iê iê iê
Da o fuzil, dá a pistola
213
210
“Búzios e Tarô” , pagode do grupo Soweto, de 2000. Gravação na faixa de número 21 do cd.
211
Demorou - Termo que expressa/enfatiza a aprovação. Isso mesmo, sim (HERSCHMANN,
2000, p 186)
212
Alemão - Pode ser uma galera rival, agentes da polícia ou mesmo alguém ( ou um grupo) que
contraponha aos códigos ou interesses do grupo. Inimigo, oponente.( HERSCHMANN, 2000, p
186)
213
Paródia de “Sozinho”, canção de Peninha, de 1997. Gravação na faixa de número 22 do cd.
156
Nessa singular situação terapêutica, não pude deixar de cartografar outras percepções,
sentada naquele pátio do Centro Municipal de Atendimento Social Integrado, rodeada de meninos
de 8, 9 e 10 anos, crianças pobres desse meu país. Conexões heterogêneas provocando diferentes
capturas. . A tese da esquizoanálise
214
é a de que o desejo é máquina, “síntese de máquina,
agenciamento maquinístico – máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção e toda a
produção é, ao mesmo tempo, desejante e social” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 375).
Minha escuta clínica mescla-se às minhas indagações sócio-políticas, e eu ouço a voz dessa
criança cantando para mim, aquela outra música que originou a paródia. Violento-violentado, o
menino, na minha fabulação criativa, passa a inquirir-me:
Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico aqui sonhando acordado
Juntando o antes, o agora e o depois
Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
‘Tô me sentindo muito sozinho
Não sou nem quero ser o seu dono
É que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho os meus desejos e planos secretos
Só abro pra você e mais ninguém
Por que você me esquece e some?
E se eu me interessar por alguém?
E se ele, de repente, me ganha?
Quando a gente gosta
214
Deleuze e Guattari, em o Anti-édipo (1976) apresentam a esquizoanálise como o procedimento de cura que
pretende esquizofrenizar em lugar de neurotizar como a psicanálise(p460), atingindo os investimentos de desejo
inconsciente do campo social. A esquizoanálise propõe quatro teses: 1)O desejo é da ordem da produção, toda
produção é ao mesmo tempo desejante e social( 1976 p375); 2)Distingui-se nos investimentos sociais o investimento
libidinal inconsciente de grupo ou de desejo, e o investimento pré-consciente de classe ou de interesse. (...). A
economia libidinal não é menos objetiva que a economia política , e a política não é menos subjetiva que a libidinal,
embora as duas correspondam a dois modos de investimento libidinal inconsciente da mesma realidade como
realidade social (idem pp 436, 438); 3) O primado dos investimentos libidinais do campo social estabelece-se
sobre
o investimento familiar, tanto do ponto de vista do fato quanto do direito, estímulo qualquer na partida, resultado
extrínseco na chegada (Idem p452). 4) O libidinal social possui dois pólos: o paranóico e reacionário e o esquizóide,
revolucionário.(idem p465)
157
É claro que a gente cuida
Fala que me ama
Só que da boca pra fora
Ou você me engana
Ou não está maduro
Onde está você agora?
215
(CHAGAS, 2004)
5.5 A clínica em musicoterapia, um devir.
Tal qual na interpretação de um sonho, a questão de um trabalho em musicoterapia é que
a sua interpretação se dá nos agenciamentos desencadeados. Eles não remetem, necessariamente,
ao musicoterapeuta e ao cliente. Os agenciamentos engendrados em uma sessão podem reportar à
cultura, à família, a outros espaços e tempos. A singularidade expressiva do fazer
musicoterapêutico dá-se na possibilidade de o profissional situar os diversos sistemas de
referência existentes naquela situação clínica, incluindo os elementos estéticos.
A singularidade expressiva que emerge no sonho se dá em diversos registros de
expressão. E eu coloquei que, a meu ver, nenhum deles é interpretante dos
outros. É, exatamente, como a nota musical numa expressão sinfônica: ela pode
se dar, ao mesmo tempo, no registro do ritmo, da construção melódica, da
construção contrapontística e harmônica, e nos registros instrumentais os mais
diversos. No caso da música, fica evidente que não faz sentido dizer que certas
concatenações singulares e notas, que pertencem especificamente a um desses
níveis, seria o interpretante geral dos outros níveis. As notas musicais não
pertencem ao piano, mesmo que nele sejam tocadas, mas à melodia, à intenção
do universo musical proposto. Atualmente, os músicos já consideram que a
música não consiste apenas em repetir notas, que o referente não está apenas no
texto musical, e sim na produção de um movimento de expressão, que se chama
interpretação. Se a interpretação dos psicanalistas adotasse o sentido que essa
palavra tem para os músicos, eu pararia de aporrinhá-la - e a eles também...
(GUATTARI , ROLNIK, 1986, p 222)
Lia Rejane Barcellos indica, em seu artigo A movimentação musical em musicoterapia:
interações e intervenções, ações estritamente musicais realizadas pelo musicoterapeuta: as
intervenções rítmicas - que compreendem o andamento, a intensidade, o compasso; intervenções
215
Sozinho, canção de Peninha, 1997-faixa 23 do cd.
158
melódicas – “para esclarecer ou clarificar algum trecho musical que esteja emergindo,
possibilitando assim que o paciente possa expressar o que estava tentando”; as harmônicas – que
são feitas através da intervenção do terapeuta na harmonia apresentada pelo cliente; as
intervenções paraverbais- realizadas através das modificações da emissão, som, intensidade e
inflexões rítmico-sonoras da voz, e as intervenções corporais – com a utilização do corpo como
instrumento musical. (GUATTARI; ROLNIK, 1986 pp. 20-25). Todas essas intervenções são
estéticas.
Portanto, interpretar, em musicoterapia, tem um sentido de ação, de experimentação.
A interpretação, para mim, (...) é, antes de mais nada, um trabalho que consiste em
situar os diversos sistemas de referência da pessoa diante da qual nos encontramos
com seu problema familial, conjugal, profissional ou estético, tanto faz. (...)
Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. (Ibdem, 1986, p 222, 223)
Um outro aspecto da clínica em musicoterapia é que ela reporta, necessariamente, a um
devir. “Urna linha devir só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado” (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 91) As mãos anciãs, encarquilhadas e esquecidas, tocam seu ritmo
simples; as vozes frágeis tornam-se o que quiserem na expressividade da ação musical; a
transgressão gramátical da loucura encontra sonoridades novas que reinventam o passado ao
tornar acontecimento presente. Experiências de devir. Experiências tornadas audíveis, como na
composição de Baptista e Dantas, integrantes dos Cancioneiros do IPUB, o grupo híbrido de
portadores de sofrimento psíquico e profissionais de saúde, pioneiro neste tipo de atuação clínica,
coordenado pelo musicoterapeuta André Vidal:
SINTOMAS
216
Letra: Orlando Baptista
217
216
- Reprodução da gravação original 24 na faixa do cd.
159
Música: Miguel Dantas
218
Se eu vejo as palavras que combinam
Com o que eu penso, com o que eu vivo, com o que eu vejo
Se eu olho ou escuto alguém falar
Se alguém ri ao me olhar
Eu penso que é pra mim
Eu penso que é de mim
Eu penso que é pra mim
Eu penso que é de mim
Vozes escutei e pensei que alguém me perseguia
Eu tinha medo de pensar e alguém entender o que eu ouvia
Eu achava que era Hitler ou judeu
Eu estava fora de mim, eu era um ateu sem o meu eu
Não sou eu quem eu vejo no espelho
Eu penso que é pra mim
Eu penso que é de mim.
O devir criado pela clínica musicoterapêutica, entendida em um enfoque deleuziano,
provoca a possibilidade de, além da preocupação em prevenir doenças e promover saúde, incluir
a arte em seu trabalho no sentido de produzir saúde. Se concebermos a subjetividade como
produzida em agenciamentos coletivos que organizam as expressões dos enunciados, se existem
possibilidades de, em todas as circunstâncias, criarmos utilizações singulares destes
agenciamentos, então a própria saúde, e seus tantos componentes maquínicos, pode ser utilizada
pelas pessoas de uma maneira vital, que inclua a música em seu próprio cerne.
Poderemos produzir uma saúde em ambos os sentidos conferidos à palavra pelo
dicionário. Primeiro sentido: disposição: bem-estar, energia, força, higidez, resistência, robustez,
vitalidade; Segundo sentido: brinde, felicitação, voto. Saúde. Produzi-la respeitosamente, através
217
Orlando Santos Baptista pertence aos Cancioneiros do IPUB (Instituto de Psiquiatria da
Universidade do Brasil), coordenado pelo musicoterapeuta André Vidal. A canção “Sintomas” foi
baseada em tudo o que viveu em uma de suas crises. ”( VIDAL, AZEVEDO, LUGÃO. 1998. p
79)
218
Miguel Dantas membro do Cancioneiros do IPUB, relata que “compõe o que sente, o que lhe
vem a cabeça e depois dá um formato adequado à idéia”( VIDAL, AZEVEDO, LUGÃO. Id., .p
67)
160
das relações criativas que estabeleçamos com outras pessoas. Vitalidade. Produzir a saúde que se
manifesta nos afetos que compartilhamos através da música que fazemos juntos. Resistência.
Estar em uma comunidade produzindo saúde é estar atento às canções e as festas daquele grupo, é
compartilhar rituais e deslocar o foco da prisão de resultados futuros para a imaginação do que se
coloca agora, com o desfrute do presente. Brinde. Fazermos de nossas vidas, vidas artistas;
encontra-se cantos que não conhecíamos e encontros que não suspeitávamos em meio à violência
cotidiana. Produz-se saúde encontrando sentidos diferenciados, nos implicarmos em redes de
poder horizontal, estando juntos compartilhando nossas dores e teimando as nossas esperanças.
Podemos observar, na clínica do Projeto de Oncologia no Instituto Nacional de Câncer
219
,
um exemplo desta produção de saúde realizada pela musicoterapia, no relato de Matos (2006)
220
:
Quando entrei no quarto, uma paciente estava chorando muito e não estava se
comunicando com nenhum de seus familiares. Aproximei-me deles e perguntei ao seu
esposo o que estava acontecendo com ela, o que estava sentindo. Ele não sabia me
responder, porque desde a hora que ele chegou, ela não parava de chorar. Então,
perguntei se ele queria oferecer uma música para a sua esposa, mas ele não quis falar
nada. Percebi que ele estava muito preocupado e angustiado ao vê-la naquela
situação, então ofereci a música ‘Como é grande o meu amor por você
221
’ de Roberto
Carlos
Eu tenho tanto pra lhe falar
Mas com palavras não sei dizer
Como é grande o meu amor por você
E não há nada pra comparar
Para poder lhe explicar
Como é grande o meu amor por você
Nem mesmo o céu, nem as estrelas
Nem mesmo o mar e o infinito
Não é maior que o meu amor
219
O Projeto de Oncologia e Musicoterapia – projeto Encanto – é realizado em uma parceria do
Instituto Nacional de Câncer (INCA) com a graduação de musicoterapia do Conservatório
Brasileiro de Música- Centro Universitário, e funciona desde 2002 sob a minha supervisão em
unidade do hospital especializada em câncer ginecológico e que presta assistência também a
usuários da clínica geral.:o HC II.
220
Flavia Cristine Matos foi estagiária de musicoterapia no INCA em 2006.
221
Canção de 1967
161
Nem mais bonito
Me desespero a procurar
Alguma forma de lhe falar
Como é grande o meu amor por você
Nunca se esqueça nenhum segundo
Que eu tenho o amor maior do mundo
Como é grande o meu amor por você
Ao ouvir a música, a mulher foi parando de chorar e foi sorrindo aos poucos. Eu
cantava olhando bem nos seus olhos e num andamento lento. Ela olhava fixamente
para mim e com muita atenção. Ao terminar a música ela parou de chorar, deu um
sorriso e me agradeceu. O marido dela ficou sem saber o que dizer, me abraçou e em
seguida abraçou a sua esposa.
Nesta hora senti que se criara uma ponte para um diálogo, pois quando me afastei
deles a mulher começou a conversar com o seu marido.
Este é um trabalho em musicoterapia que opera um grande contágio de música, emoção e
saúde no hospital. As sonoridades vibram, se enlaçam e se dividem em muitas sensações que
espalham um devir novo, de saúde, mesmo que o local esteja saturado de sofrimento.
Alem disso, a arte produz conhecimento. A clínica em musicoterapia, utilizando-se da
arte, cria novos campos para o conhecimento das sensibilidades humanas – e não humanas
222
. O
desafio de uma clínica musicoterapêutica interessada na produção de processos de subjetivação
singulares é o de fazer do corpo uma potência - que não se reduz ao organismo, embora o leve em
conta – e do pensamento uma potência - que não se reduz à consciência.
Nessa concepção de terapia, o que se busca é a invenção de novos focos catalíticos
suscetíveis de fazer bifurcar a existência. Uma singularidade, uma ruptura de sentido, um corte,
uma fragmentação, a separação de um conteúdo semiótico, por exemplo, podem originar pontos
mutantes de subjetivação. Em sessões de musicoterapia, caberia à função poética recompor
universos de subjetivação artificialmente rarefeitos e re-singularizados mais do que utilizar a
música para incentivar padrões formais de modelizações. A musicoterapia pode operar, desta
maneira, uma catálise poético-existencial.
222
- São conhecidas as utilizações da música na agricultura e na pecuária (Benezon,1981,pp
30,31)
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão.
Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
E se lambuzar de mel
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão
223
Milton Nascimento e Chico Buarque
Este ensaio teve como objetivo desenvolver uma articulação em torno da produção de
subjetividade ocorrida na música e na clínica musicoterapêutica. Através de uma pesquisa teórica
conceitual, constatou-se que é possível explorar relações frutíferas entre os conceitos propostos
por Deleuze e Guattari e a clínica em musicoterapia, para lançar luz sobre processos de
subjetivação que acontecem nessa clínica.
223
Cio da Terra – Milton nascimento e Chico Buarque, canção de 1977. Faixa número 25 do cd.
163
O trabalho de um musicoterapeuta é realizado em rizomas, com muitas multiplicidades,
conexões, interligações: são atores humanos e não humanos, os instrumentos musicais, os cds, as
instituições, as políticas públicas, as perspectivas éticas, a associação a qual estamos filiados, os
encontros de estudo, os fluxos, circulações, alianças, movimentos. Um rizoma altamente instável
e dinâmico, com trocas intensas entre os vários pontos, conexões e atores. Nossa ação é
potencializada pela utilização da arte que, em nossa clínica, traz uma possibilidade do exercício
de inúmeras intensidades, de inusitados corpo a corpo, de produção de vários corpo-rizomáticos,
que se constituem em um fazer musical amplo: cantar, tocar, escutar, dançar, chorar, dar
gargalhada, compor. A música utilizada com maior amplitude do que a função de produzir
reações determinadas, pois a música pode produzir sujeitos, ampliar intensidades, provocar
fluxos de sensibilidade. Por vezes, sofremos tal impacto com a experiência musical que muitas
lógicas surgem para explicá-las. Certamente serão bem-vindas, pois como o cartógrafo,
concluímos que: “Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”. (ROLNIK,
1989 p.66).
A filosofia de Deleuze e Guattari tornou mais vivas as práticas clínicas, encharcou-as de
expressividades, de múltiplas intensidades, tornando-se passagens entre ações clínicas, a
produção de territórios existenciais e a reflexão conceitual. Fertilizou, expandiu, iluminou a
minha clínica. Compreender os conceptos aqui expostos aumentou a confiança em relação ao
meu trabalho e, principalmente, um enriquecimento na maneira de explicitá-lo. Busco os
encontros bons, os alegres, os que aumentam a potência dos corpos. A tarefa do terapeuta como o
facilitador de fluxos cósmicos e os fluxos da terra. Eu e o outro na potência de estar ali. As
situações humanas mais degradantes, o desprezo pelo ser, a indignação frente à miséria podem
ser acolhidas em um projeto de produção de saúde. Uma saúde que será consumida ali, no ato de
164
musical, que fará ressonâncias em platôs inimagináveis. Inspiro-me, na minha prática clínica em
Deleuze e Guattari, que dizem:
É preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos,
necessários a uma empresa tão grande, que recria por toda a parte os pântanos
primitivos da vida. (DELEUZE , GUATTARI , 1992, p. 225).
Como musicoterapeuta, sorvo da arte e do artista o que posso para recriar por toda a parte
os pântanos luminosos e primitivos da vida, para que exerça uma clínica produtora de saúde e
possibilitadora das experimentações singulares, que se empenhe na construção de mundos e na
facilitação das manifestações dos afectos.
Àqueles que esperam que a apropriação do referencial filosófico de Deleuze e Guattari no
âmbito da musicoterapia redunde em uma “apropriação científica da arte com efeitos clínicos” eu
diria: “trata-se de uma tarefa impossível”. Do ponto de vista da ciência propriamente dita - da
atitude de diminuir as velocidades do caos para atribuir-lhe funções através da imagem de um
movimento capturado, de um retrato-, essa tarefa implicaria em tomar cada sessão aqui exposta e
analisá-la em cada um de seus componentes, ressaltando os elementos das suas funções (os
functivos). No entanto, essa opção de desacelerar o caos para dar-lhe referência, implicaria em
uma renúncia ao infinito, e só se
pode montar cadeias de functivos que se quebram necessariamente em certo
momento. As bifurcações, as desacelerações e acelerações produzem buracos, cortes e
rupturas, que remetem a outras variáveis, outras relações e outras referências.
(DELEUZE, GUATTARI, 1992, p 161)
As conseqüências de tal opção não coincidem com minhas pretensões clínicas. Receio que
se percam, não só a velocidade dos conceptos, mas, sobretudo, a permanência das sensações tão
pujantes na clínica musicoterapêutica. Algo que, ao se realizar, empobrece todos os seus
componentes...
165
Gostaria , por fim, de apontar, como última conseqüência deste pensamento filosófico na
minha prática é a construção política. Retomo as idéias de Bruno Latour: política é o que permite
a aproximação entre as pessoas, o que produz coletivos.
Todo agregado, qualquer que seja ele, precisa de um trabalho de (re)apreensão. (...)
Não há agrupamento sem (re)agrupamento, não há reagrupamento sem uma palavra
mobilizadora. (LATOUR, 2004, p20).
A conseqüência política está na atitude de mediar, traduzir, misturar as situações, coisas,
música, teoria. Estar aqui, costurando sentidos, potências e vínculos. Política no sentido do
esforço da tradução para o que se desloca nos grupos (LATOUR, id), na efetivação do fazer elo
de entendimento entre o sofrimento humano, a compaixão, a paixão, o singular e o coletivo; a
abertura de espaços nos espaços públicos; a aplicação da musicoterapia na saúde mental, na saúde
do trabalhador, nas políticas junto à infância, aos idosos, a saúde da família. Político no combate
ao desânimo tanto quanto no combate à arrogância, e na preservação da esperança. Guattari, na
proposição de um “paradigma ético-estético”, coloca no processo artístico a capacidade de
renovação das relações sociais e de intensificação das dimensões criativas que atravessam outros
universos de valor.
É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto
extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de
qualidades de ser jamais vistas, jamais pensadas.(GUATTARI, 1992, p 135)
Convivendo em territórios tão dramáticos como os dos dias atuais em nossa sociedade,
podemos encontrar na arte algumas das respostas que precisamos para nos auxiliar a construir
outras maneiras de produzir novas subjetividades.
Voltando o foco para a clínica, o musicoterapeuta Renato Sampaio afirma que “estamos
sempre reinventando nossos pacientes e nós mesmos enquanto terapeutas... reinventando a
166
própria musicoterapia, reinventando o mundo... reinventando o ser humano...” (SAMPAIO R,
2005 p 23).
Esse, um grande desafio: debulhar o trigo com as próprias mãos, recolher cada bago do
trigo para dele nascer o milagre do pão múltiplo ...e se fartar de pão.
167
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Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado. 1 cd que acompanha o livro.
__________________.Múltiplas articulações . Intérprete - Sara Cohen In GALDEMAN, S.;
COHEN. S. Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado. 1 cd que acompanha o livro.
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CHICO BUARQUE. Pedro Pedreiro. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque de
Holanda. Editora Musical Brasileira Moderna Ltda, 1965, 1 LP. Faixa 6.
___________________Não fala de Maria. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque de
Holanda, vol 4. Philips, 1970,1 Lp faixa 02
___________________Qualquer canção Intérprete: Chico Buarque. In: Vida.Polygram.1980, 1
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CHICO BUARQUE; EDU LOBO Meu namorado. Intérprete: Simone In: Grande Circo
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CHICO BUARQUFE; MILTON NASCIMENTO. Cio daTerra. Intérprete: Milton Nascimento.
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Gonzaga 50 anos de Chão 1941 – 1987. Bmg Int´l. 3 cd. 2002. Disco 1 faixa 4.
______________________________________Paraíba. Intérprete: Luiz Gonzaga. In: Luis
Gonzaga 50 anos de Chão 1941 – 1987. Bmg Int´l. 3 cd. 2002. Disco 1 faixa 15.
________________________________ Paraíba. Intérprete: Luiz Gonzaga.In: Meus sucessos
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Nascimento. In: Amigo. 1995. Warner Music. 1 cd. Faixa 02.
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MILTON NASCIMENTO; TUNAI . Certas Canções. Intérprete: Milton Nascimento. In: Anima,
1 LP. 1982. Ariola. Faixa 08.
ORLANDO BAPTISTA; MIGUEL. DANTAS Sintomas. Intérprete: Cancioneiros do IPUB. In:
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Janeiro: FUJB, IPUB/UFRJ. 1998. Faixa 13.
PENINHA. Sozinho. Intérprete: Caetano Veloso. In: Prenda minha, ao vivo. 1999. Universal
Music. Faixa 11.
PIXINGUINHA; BRAGUINHA. Carinhoso. Intérprete: Orlando Silva. In: Carinhoso 1959. 1
Lp. RCA Vítor. Faixa 01.
ROBERTO CARLOS. Como é grande o meu amor por você. Intérprete: Roberto Carlos. In:
Roberto Carlos em ritmo de aventura. 1967. Faixa 02.
ROBERTO CARLOS; ERASMO CARLOS. Quero que vá tudo pro inferno. Intérprete: Roberto
Carlos. In: Jovem Guarda. Sony.1965. 1LP. Faixa 01.
___________________________________ Quando. Intérprete: RobertoCarlos. In: Roberto
Carlos em ritmo de aventura, CBS,1967. 1 Lp. Faixa 07.
_________________________________Sua estupidez. Intérprete: Roberto Carlos. In: Roberto
Carlos. Sony.1969. 1 Lp. Faixa 09.
_________________________________De tanto amor. Intérprete: Roberto Carlos. In: Roberto
Carlos. Sony.1971. 1 Lp. Faixa 11
________________________________ Emoções. Intérprete: Roberto Carlos. In Roberto
Carlos. Sony.1981. 1 Lp. Faixa 07.
_______________________________ Nossa Senhora. Intérprete: Roberto Carlos. In: Roberto
Carlos, pra sempre. Década de 90. Sony BMG. 10 cd’s. 4º cd. Faixa 05.
SCHÖNBERG. ARNOLD. Tanzschritte Suíte op. 29.Intérprete: Jacqueline Roscheck-Morard
(violino); Gererd Kanzizn (viola); Kentaro Yoschi (violoncello); Gerard Pachinger- Siegfried
185
Küblböck (clarinete); Gottfried Mayer (clarinete baixo). Arnold Schöenberg. Orfeo
International Music GmbH 1990. Faixa 2
SERGIO BRITO; ARNALDO ANTUNES; NANDO REIS. Bichos escrotos. Intérprete: Titãs. In
Go Back. WEA, 1988. 1 cd. Faixa 3.
SOWETO. Búzios e Tarô. Intérprete: Soweto. In: Farol das Estrelas. Emi Music. 1999 1 cd.
Faixa 06.
STEVE REICH,. City Life. Intérprete: Murray Perahia (piano). In: Piano especial: música para
verão Sony Classical/ Quark. 1996. 1 cd. Faixa:18
STOCKHAUSEN. Helikopter-Streichquartett http://www.stockhausen.org/heli_mp3.html
TATIT, LUIS; PERES, SANDRA. Já sabe. Intérprete: Sandra Peres. In:Canções de brincar.
Palavra Cantada.1996. 1 CD. Faixa 5.
TOM JOBIM. Águas de Março. Intérprete: Tom Jobim. In: Disco de bolso: O tom de Tom
Jobim e o tal do João Bosco. 1972. Zen Editora. Compacto 33 rpm, vinil, encartado no
semanário carioca "O Pasquim";Intérprete: Elis Regina e Tom Jobim, In: Elis &Tom, Philips,
1974.1 LP. Relançamento Trama 2004 1CD. Faixa 01
186
ANEXO – ORDEM DAS MÚSICAS DO CD
187
1 – Caminho do Coração (Pessoa=pessoas) - Gonzaguinha
2 – Peter Gast - Caetano Veloso
3 - Tanzschritte da Suíte op. 29 - Schöemberg -
4 - City Life - Steve Reich
5 - Como vai você - Antônio e Mario Marcosi
6 - Já sabe - Luis Tatit e Sandra Peres
7 - Pedro Pedreiro - Chico Buarque
8 - Águas de Março – Tom Jobim
9 - Não fala de Maria – Chico Buarque
10- Recriação clínica: Asa Branca com a melodia de Assum Preto - Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira.
11- Assum Preto – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
12 – Asa Branca - Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
13 – Qualquer canção - Chico Buarque
14 - Coemapiranga – Almeida Prado
15 – De tanto amor – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
16 – Sua estupidez – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
17 – Certas Canções – Milton Nascimento e Tunai.
18 – Cordão dos Caídos
19 -Carinhoso, na primeira pessoa
20 – Como um radical
21 – Paródia de Peraê
22 – Búzios e Tarõ - grupo Soweto
23 – Paródia de Sozinho. Peninha
188
24 – Sozinho – Peninha
25 – Sintomas - Orlando Baptista e Miguel Dantas
26 – Cio da Terra – Milton Nascimento e Chico Buarque
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